Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
“Sua vida foi uma reprodução vivaz das virtudes do doutor angélico, do qual
tomou o nome a fim de assinalar sua devoção por ele. De fato, uniu a um trabalho
intelectual acérrimo um grande amor pela oração e um ardente desejo da perfeição
religiosa. Os estudantes acorriam a seus cursos, atraídos pela profundidade e solidez de
sua doutrina2.”
Não obstante, um século após João de Santo Tomás (1685-1737), Billuart (1685-
1737) ainda qualificou esta tese de Caetano e de João de Santo Tomás como a “mais
comum”7. De nossa parte, ela nos parece solidamente sustentada. Com o texto que
publicamos aqui e os anexos que o seguem, os leitores poderão julgar com
conhecimento de causa.
Le Sel de la terre.
4 Este livro editado pela DPF (Chiré-en-Montreuil) em 1975 não foi comercializado, parece, a pedido do
autor. Alguns exemplares, todavia, têm circulado e são considerados como uma importante referência.
5 O título que apresentamos nesta tradução é do original em português. Em francês, editou-se sob o nome
Quanto ao primeiro ponto, veremos três casos principais nos quais uma
deposição pode ocorrer. O primeiro é o caso de heresia ou de infidelidade. O segundo é
o caso de insanidade permanente. O terceiro é o caso de dúvida sobre a validade da
eleição.
8 Decreto de Bonifácio VIII (em 6) l. 1, T. 7, cap. 1. De Renunciatione: “Quoniam aliqui curiosi disceptantes de
his, quae non multum expediunt, et plura sapere, quam opporteat, contra doctrinam Apostoli, temere apetentes, in
dubitationem solicitam, na Romanus Pontifex ((máxime cum se insufficientem agnoscit ad regendam uniuersalem
Ecclesiam, et summi Pontificatus onera supportanda) renunciare ualeat Papatui, eiusque onri, et honori, deducere
minus prouide uidebatur: Caelestinus Papa quintus praedecessor noster, dum eisudem ecclesiae regimini
praesidebat, uolens super hoc haesitationis cuiuslibet materiam amputare, deliberatione habita cum suis fratribus
Ecclesiae Romanae Cardinalibus (de quorum numero tunc eramus) de nostro, et ipsorum omnium concordi consilio
et assenso, auctoritate Apostolica statuit, et decreuit: Romanum Pontificem posse libere resignare. Nos igitur ne
statutum huiusmodi per temporis cursum obliuioni dari, aut dubitationem eandem in recidiuam disceptationem
ulterius deduci contingat: ipsum inter constituitiones alias, ad perpetuam rei memoriam, de fratrum nostrorum
consilio duximus redigendum.” – No Código de Direito Canônico de 1917, há o cânon 221: “Se sucede do
pontífice romano renunciar a seu cargo, nem a aceitação dos cardeais, nem qualquer outra aceitação é
necessária para a validade desta renúncia”.
UMA DEPOSIÇÃO PODE OCORRER POR CAUSA DE HERESIA OU DE
INFIDELIDADE?
Argumentos de autoridade
O mesmo é confirmado pela carta de Adriano II, relatada no 8º Concílio geral [4º
de Constantinopla, 869-870], 7ª sessão, onde é dito que o pontífice romano não é julgado
por ninguém, mas que o anátema foi usado pelos orientais contra Honório porque ele
foi acusado em matéria de heresia, única razão pela qual é lícito aos inferiores resistirem
a seus superiores10.
Igualmente, diz o papa São Clemente em sua primeira epístola que São Pedro
ensinou que o papa herético deve ser deposto.11
9 Pars I, D 40, c.6: “Si papa suae et fraternae salutis negligens reprehenditur inutilis et remissus in operis suis, et
insuper a bono taciturnus, quod magis sibi et omnibus, nihilominus innumerabiles populos cateruatim secum ducit,
primo mancipio gehennae cum ipso plagis multis in eternum uapulaturus. Huius culpas istic redarguere presumit
mortalium nullus, quia cunctos ipse iudicaturus a nemine est iudicandus, nisi deprehendatur a fide deuius; pro
cuius perpetuo statu uniuersitas fidelium tanto instantius orat, quanto suam salutem post Deum ex illius
incolumitate animaduerunt propensius pendere.”
10 Jean-Dominique MANSI, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima collectio, Venise, 1771, t.16, col. 126.
11 Não encontramos esta passagem na 1ª carta de São Clemente aos Coríntios, a única a ser considerada
A razão é que devemos nos separar dos heréticos segundo Tito 3,10: “Afastai
(devita) o herege, depois de advertido uma primeira e uma segunda vez”. Ora, não se
deve evitar aquele que permanece no [soberano] pontificado, ao contrário, a Igreja deve
sobretudo estar unida a ele como sua cabeça suprema e comunicar-se com ele; então, se
o papa é herético, ou a Igreja deve se comunicar com ele; ou ele deve ser deposto do
pontificado. A primeira solução conduz à evidente destruição da Igreja, e compreende
intrinsecamente o risco de que todo o governo eclesiástico erre, se este tiver que seguir
uma cabeça herética. Ademais, como o herético é um inimigo da Igreja, o direito natural
permite que ela se proteja contra um tal papa segundo as regras da legítima defesa, pois
ela pode se defender de um inimigo, tal como um papa herético; consequentemente, ela
pode agir (justamente) contra ele. Assim, de todo modo é preciso que um tal papa seja
deposto.
É preciso responder que Cristo Senhor não ordenou que os fariseus fossem
tolerados na cátedra de Moisés mesmo sendo declarados heréticos, nem que qualquer
outro herege ou infiel fosse mantido no sacerdócio ou no pontificado, senão que
simplesmente deu esta instrução para o caso em que fossem tolerados. Se ainda não
foram declarados e depostos de sua cátedra, os fiéis devem escutá-los e obedecê-los,
pois eles conservam seu poder e sua jurisdição; todavia, se a Igreja vier a declará-los
heréticos e não mais tolerá-los, Cristo Nosso Senhor não proíbe isto, com as palavras
supracitadas.
Mas é preciso saber se o papa pode ser deposto em qualquer caso de heresia e
seja qual for sua forma de ser herético; ou se algumas condições suplementares são
necessárias, sem as quais a heresia não é suficiente para depor o pontífice.
É preciso responder que o pontífice não pode ser deposto e perder o pontificado
a não ser que duas condições se encontrem reunidas: que a heresia não seja oculta mas
pública e juridicamente notória; além disso, que ele seja incorrigível e pertinaz em sua
heresia. Nestas duas condições o pontífice pode ser deposto, não sem elas; e ainda que
interiormente ele não seja infiel, se, no entanto, se comporte exteriormente como um
herético, ele pode ser deposto, e a sentença de deposição será válida.
Outros pensam que seja necessário que a heresia seja externa e provada em foro
externo para que o pontífice possa ser deposto do pontificado: assim pensam Soto (4
Sent. D. 22, q.2 a. 2), Cano (de Locis, I.4), que pensa que a opinião contrária nem mesmo é
provável, Caetano (Sobre o poder do papa12, c. 18 e 19), Suarez, Azorius, Belarmino (Do
pontífice romano, c.30). O princípio é que os heréticos ocultos, enquanto não sejam
condenados pela Igreja e separados, fazem parte da Igreja e se comunicam com ela
como que movidos pelo exterior, mesmo se não recebem mais interiormente o
movimento vital; por consequência o pontífice, se é herege de modo oculto, não está por
isso separado da Igreja; consequentemente, ele ainda pode ser sua cabeça, dado que
ainda é uma parte e um membro dela, mesmo não sendo vivente.
12 Thomas De Vio Cardinalis CAIETANUS, De Comparatione auctoritatis papae et concilii cum apologia
eiusdem tractatus, edição feita por Vincent Pollet, Roma, Angelicum, 1936.
Uma confirmação é que os padres de uma ordem inferior podem exercer o poder
de ordem e de jurisdição sem a fé, já que um padre herético pode conferir os
sacramentos e absolver em caso de extrema necessidade [...]
A segunda condição para que se possa depor o papa, a saber, que ele seja
incorrigível e contumaz na heresia, é evidente, pois aquele que está disposto a ser
corrigido e que não é pertinaz na heresia não pode ser reputado herético (Decreto de
Graciano n. 24.3.29 “Dixit Apostolus”); consequentemente, se o papa está disposto a ser
corrigido, ele não deve ser, em absoluto, deposto como herético.
DA DEPOSIÇÃO DO PAPA
Resta tratar a segunda dificuldade: por que poder deve ser feita esta deposição
do papa. E toda a questão gira em torno de dois pontos:
1. A sentença declarativa pela qual se declara o crime do papa deve ser proferida
pelos cardeais ou pelo concílio geral? E, em caso de ser o concílio geral, por qual
autoridade ele deve ser reunido, e por qual razão pode ele julgar a causa?
Em relação ao primeiro ponto, deve-se dizer que esta declaração de crime não
compete aos cardeais, mas ao concílio geral.
Isto verifica-se, em primeiro lugar, pelo costume da Igreja. Com efeito, no caso
do papa Marcelino (papa de 296 a 304) a propósito dos incensos ofertados aos ídolos,
um sínodo foi reunido, como dito no Decreto de Graciano13. E no caso do grande cisma,
quando havia três papas, reuniu-se o concílio de Constança para aplacar o cisma.
Igualmente no caso do papa Símaco (papa de 498 a 514), reuniu-se um concílio em
Roma para tratar o motivo pelo qual havia sido acusado, como relata Antônio
Agostinho em seu Epitome juris pontificii veteris 14; e nos princípios do direito canônico
supracitados vê-se que os pontífices que quiseram justificar os crimes a si imputados o
fizeram diante de um concílio.
[...] Este concílio pode ser reunido pela autoridade da Igreja que está entre os
bispos ou a maior parte deles; a Igreja tem pelo direito divino o direito de se separar de
um papa herético, e por consequência ela tem todos os meios que são necessários para
uma separação deste tipo; ora, um meio necessário em si mesmo (per se) é o de poder
constatar juridicamente um crime deste tipo; mas não se pode constatá-lo se não houver
um julgamento competente, e em algo tão grave não pode haver um julgamento
competente a não ser pelo concílio geral, pois trata-se da cabeça universal da Igreja, de
modo que isto compete ao julgamento da Igreja universal, isto é, do concílio geral. Não
concordo com a opinião de Pe. Suarez, que julga que tal questão possa ser tratada por
concílios provinciais; com efeito, um concílio provincial não representa a Igreja
17 Sobre Decretos de Bonifácio VIII (em 6º), cap. “In fidei de haereticis”, e Decreto de Graciano, Distinção 40.
universal, de modo que tal matéria possa ser tratada por sua autoridade; e mesmo
vários concílios provinciais não possuem tal representação nem tal autoridade.
Se se trata não da autoridade em virtude da qual se deve julgar, mas daquela que
deve convocar o concílio, penso que esta convocação não é confiada a uma pessoa
específica, mas que pode ser feita ou pelos cardeais, que podem comunicar a notícia aos
bispos, ou pelos bispos mais próximos que podem anunciá-la aos outros, a fim de que
todos se reúnam; ou mesmo a pedido de príncipes, não como uma convocação com
força coativa, como quando o papa convoca um concílio, mas por uma convocação
“enunciativa” que denuncia e manifesta tal crime aos bispos para que eles procurem
solucioná-lo. E o papa não pode anular tal concílio ou o recusar porque ele mesmo é
parte18, e a Igreja tem o poder, pelo direito divino, de reunir o concílio com este fim, pois
ela tem o direito de se separar do herético.
As diversas opiniões
As duas extremas: uma diz que o papa é deposto sem julgamento humano pelo
simples fato de ser herege20; em oposição, outra diz que o papa tem simplesmente um
poder superior a si por meio do qual ele pode ser julgado 21.
As duas posições medianas: uma diz que o papa não possui superior de modo
absoluto, mas somente em caso de heresia; a outra diz que o papa não possui superior
18 “Quia ipse est pars”: parte da Igreja? Do concílio? Ou parte do processo? A frase não é clara.
19 Thomas De Vio Cardinalis CAIETANUS, De Comparatione auctoritatis papae et concilii cum apologia
eiusdem tractatus, edição feita por Vincent Pollet, Roma, Angelicum, 1936. Trata-se do capítulo 20.
20 Esta é a opinião de Belarmino e Suarez.
21 Esta opinião não pode mais ser adotada. Já Caetano a considera falsa.
na terra, nem de modo absoluto, nem em caso de heresia, mas somente de maneira
ministerial: do mesmo modo que a Igreja tem um poder ministerial de escolher a pessoa
[do papa], mas não de lhe dar o poder, pois isto é feito imediatamente por Cristo,
também na deposição, que é a destruição da ligação pela qual o pontificado é unido a
tal pessoa em particular, a Igreja tem o poder de depor de modo ministerial; mas é
Cristo que o priva [de seu poder] com autoridade.
A opinião de Caetano
Assim, a opinião de Caetano contém três pontos. O primeiro é que o papa herético
não é privado do pontificado nem deposto em consequência da heresia considerada de
maneira separada. O segundo é que a Igreja não tem nenhum poder nem nenhuma
superioridade sobre o papa no que diz respeito a seu poder de papa, mesmo em caso de
heresia; em nenhum caso o poder da Igreja é superior ao poder do papa, nem, por
consequência, superior ao papa de modo absoluto. O terceiro é que o poder da Igreja
tem por objeto a aplicação do poder papal a tal pessoa, designando-o pela eleição, e a
separação deste poder em relação a tal pessoa, ao declará-la herética e a ser evitada
pelos fiéis. É por isso que, embora a declaração de crime seja como uma disposição
antecedente à própria deposição e que a ela esteja relacionada de modo ministerial, ela,
no entanto, atinge a própria forma de maneira dispositiva e ministerial; enquanto tende
à disposição, tende de maneira mediata à forma : da mesma maneira, na geração e na
corrupção de um homem aquele que engendra não produz nem “eduz”22 a forma, e
aquele que corrompe não a destrói, senão que o primeiro produz a conjunção da forma
e o segundo a separação, atingindo imediatamente as disposições da matéria em relação
à forma e, por seu intermédio, a forma.
— em primeiro lugar, porque o papa, por mais real e pública que possa ser sua heresia,
a partir do momento em que está disposto a ser corrigido, não pode ser deposto e a
Igreja não pode depô-lo segundo o direito divino, pois ela não pode nem deve evitá-lo,
porquanto o Apóstolo disse: “evitai o herético depois de uma primeira e de uma segunda
correção”; então, antes da primeira e da segunda correção ele não deve ser evitado, e por
consequência não deve ser deposto; então, é falso dizer que o papa é deposto logo que
(ipso facto) se torna um herege público: ele pode ser um herege público, mas ainda não
ter sido corrigido pela Igreja, nem ter sido declarado incorrigível.
— em segundo lugar, porque (como frisa bem Azorius) qualquer bispo herético, apesar
de visível sua heresia, e ainda que incorra em excomunhão, não perde ipso facto a
jurisdição e o poder episcopal, até o momento em que seja declarado pela Igreja e
deposto; com efeito, apenas os excomungados “não tolerados” perdem ipso facto a
jurisdição, a saber, os que são nomeadamente excomungados ou que atacaram
manifestadamente um sacerdote (manifesti percussores clerici). Assim, se um bispo ou
qualquer outro prelado não perde ipso facto seu poder por uma única heresia exterior,
por que o papa a perderia antes da declaração da Igreja? Quanto mais que o papa não
pode incorrer em excomunhão: de uma parte, nenhuma excomunhão – suponho – é
aplicada pelo próprio direito divino; de outra parte, ele não pode ser excomungado pelo
direito humano, pois é superior a todo direito humano.
22Na linguagem escolástica, diz-se que a forma é eduzida ou tirada da matéria, pois esta a contém em
potência.
A Igreja não tem nenhum poder e nenhuma superioridade sobre o papa no
que se refere ao seu poder de papa, mesmo em caso de heresia
Tese a se provar
Argumento de autoridade
E não se pode citar nenhuma autoridade que afirme que Cristo Senhor deu desta
maneira à Igreja um poder superior ao do papa. As autoridades citadas em caso de
heresia não indicam formalmente uma superioridade sobre o poder do papa , mas
somente falam de evitá-lo, de separar-se dele, de recusar a comunhão, etc., tudo o que
pode ser feito sem um poder formalmente superior ao da pessoa do papa.
Não há nenhum fundamento que permita afirmar que Cristo Senhor, que deu
sem restrição um poder supremo e independente ao papa e à Santa Sé, tenha
determinado que, em caso de heresia, este poder seria formalmente, enquanto poder (in
ratione potestatis), dependente e inferior ao da Igreja, o que implica que se tornaria
subordinado ao da Igreja, e não mais superior como antes.
Argumento teológico
Este segundo ponto de Caetano (a Igreja jamais, em senso estrito, tem poder
superior ao papa), é largamente provado pelo que foi dito acima, pois a Igreja deve ser
submetida ao papa e o poder do papa não tira sua origem da Igreja, como o poder
político, mas imediatamente de Cristo do qual o papa é o vigário.
— De uma parte porque o poder do papa não é, em caso algum, derivado da Igreja,
nem proveniente dela, mas de Cristo: por isso em nenhum caso o poder da Igreja é
superior.
— De outra parte porque o poder do papa, que encontra sua origem no de Cristo, foi
instituído como um poder supremo superior a todo outro poder da Igreja aqui embaixo
(como provamos mais acima com inúmeras autoridades); nenhum caso foi excetuado
por Cristo onde este poder estaria limitado e submisso a outro, mas sempre e em
relação aos outros [poderes] ele menciona-o como um poder supremo e uma
monarquia. Sempre que trata do caso da heresia, não atribui superioridade em relação
ao papa, mas prescreve somente evitar o herético, de separar-se dele, de não se
comunicar com ele, coisas que não indicam uma superioridade e que podem existir sem
ela. Consequentemente, o poder da Igreja não é superior ao poder do papa, mesmo em
caso de heresia.
Argumento canônico
Enfim, o direito canônico nos dá igualmente esta convicção quando diz que a Sé
Primeira não é julgada por ninguém, e isto se aplica mesmo em caso de infidelidade,
pois os Padres reunidos para examinarem o caso do Papa Marcelino disseram: “Julga-te
a ti mesmo”.
O poder da Igreja tem por objeto a aplicação do poder papal a tal pessoa
Argumento teológico
O terceiro ponto decorre de seus precedentes. Pois a Igreja pode declarar o crime
do pontífice e proclamar (proponere) aos fiéis que ele deve ser evitado segundo o direito
divino, deliberando que um herege deve ser evitado. Ora, um pontífice que deve ser
evitado por esta disposição torna-se necessariamente impedido de ser a cabeça da
Igreja, pois é um membro que deve ser evitado, e consequentemente não pode
influenciá-la; é por isto que, em virtude de tal poder, a Igreja dissolve de modo
ministerial e dispositivo a ligação entre o pontificado e tal pessoa. A consequência é
manifesta: um agente que pode induzir sobre um sujeito uma disposição que conduz
necessariamente à separação da forma, uma disposição com a qual a forma não possa
subsistir no sujeito, tem um poder sobre a dissolução da forma, e age de modo indireto
sobre a forma para separá-la do sujeito, e não para destruí-la nela mesma; isto aparece
claramente no caso de um agente que corrompe um homem: ele não destrói a forma [a
alma humana], mas induz a dissolução da forma, estabelecendo na matéria uma
disposição com a qual a forma não pode subsistir.
Assim, então, já que a Igreja pode declarar o pontífice como pessoa a ser evitada,
ela pode induzir nesta pessoa uma disposição com a qual o pontificado não possa
subsistir; o pontificado é assim dissolvido de modo ministerial e dispositivo pela Igreja,
e com autoridade por Cristo, do mesmo modo que a Igreja, designando o pontífice por
eleição, o dispõe, ao final, a receber a concessão do poder por Cristo Nosso Senhor.
Quando Caetano diz que a Igreja age com autoridade (auctoritative) sobre a união
ou a separação entre o pontificado e a pessoa, e de modo ministerial sobre o próprio
pontificado, deve-se compreender no sentido de que que a Igreja tem a autoridade para
declarar o crime do papa, assim como ela a tem para designá-lo ao papado, e que o que
ela faz com autoridade, nesta declaração, atua simultaneamente de modo ministerial
sobre a forma [do papado] para uni-lo ou a separá-lo [da pessoa]: pois sobre a própria
forma e de modo absoluto e nela mesma (absolute et in se) a Igreja nada pode, já que o
poder papal não lhe é submisso.
Argumento canônico
Resposta às objeções
Objeção 1. “Um herético não é um membro, então não pode ser cabeça da
Igreja”.
Belarmino objeta que o Apóstolo disse que se deve evitar o herético depois de
duas correções, isto é, depois que ele apareça como manifestamente pertinaz, antes de
qualquer excomunhão e sentença de um juiz, como diz São Jerônimo em seu
23 Pars I, D 79, c.11: “Eiectionem summorum sacerdotum sibi Dominus reseruauit, licet electionem eorum bonis
sacerdotibus et spiritualibus populis concesisset.”
24 Pars I, D 40, c.6, citado acima (nota 9).
25 Pars II, q.7, c.13: “Oves, que suo pastori commissae sunt, eum nec reprehendere (nisi a fide exorbitauerit), nec
ullatenus accusare possunt, quia facta pastorum oris gladio ferienda non sunt, quamquam reprehendenda recte
uideantur”.
comentário, pois os heréticos se separam por sua própria heresia (per se) do Corpo de
Cristo.
E eis seu raciocínio: um não-cristão não pode ser papa, pois o que não é membro
não pode ser cabeça; ora, um herético não é um cristão, como dizem comumente os
Padres; então um herético manifesto não pode ser papa.
Não se pode objetar que permanece nele um caráter, pois se ele se mantivesse
papa em razão de um caráter, dado que este é indelével, ele não poderia jamais ser
deposto. É por isto que os Padres ensinam comumente que o herege, em razão da
heresia e independentemente da excomunhão, é privado de toda jurisdição e poder,
como dizem São Cipriano, Santo Ambrósio e São Jerônimo.
Por isso, vemos que isto sempre foi praticado pela Igreja em caso de deposição
do papa, e é por isso que a própria causa é tratada pelo concílio geral antes que se tenha
o papa por “não papa”, como dissemos mais acima. Em consequência, não é por ser o
papa herege, mesmo publicamente, que ele cesse ipso facto de ser papa antes da
declaração da Igreja, e antes de que ele seja proclamado por ela como “a se evitar” pelos
fiéis.
[a] A Igreja não pode ter poder sobre a união do pontificado com a pessoa a não
ser que tenha um poder sobre o próprio pontificado; com efeito, o papa não faz mais
que destruir sua união com o episcopado sempre que depõe um bispo, pois ele não
destrói o próprio episcopado; então, se a Igreja tem um poder sobre a união do
pontificado com a pessoa, por consequência ela tem um poder sobre o pontificado e a
pessoa do papa.
[b] Uma confirmação deste raciocínio é que o papa é deposto contra sua vontade,
de modo que é punido por esta deposição; mas compete ao superior e ao juiz punir. De
modo que a Igreja que depõe, ou que pune pela pena de deposição, tem superioridade
sobre o papa.
[c] Enfim, quem tem um poder sobre as partes reunidas ou sobre sua união,
simplesmente tem um poder sobre o todo. De modo que se a Igreja tem um poder sobre
a união do pontificado com a pessoa, ela tem simpliciter um poder sobre o papa, o que
Caetano nega.
Resposta: [a] Responde-se que não é da mesma maneira que o pontífice tem um
poder sobre o bispo quando o depõe e a Igreja sobre o pontífice: com efeito, o pontífice
sanciona o bispo como alguém que lhe é submisso, dotado de um poder subordinado e
dependente, que o pontífice pode limitar e restringir; assim, ainda que ele tire o
episcopado da pessoa e não o destrua, no entanto, o faz pela superioridade que tem
26O Padre Garrigou-Lagrange, apoiando-se em Billuart, explica em seu tratado De Verbo Incarnato que um
papa herético, mesmo não sendo membro da Igreja, pode excepcionalmente continuar a ser a cabeça
desta. Com efeito, o que é impossível no caso de uma cabeça física é possível (embora anormal) para uma
cabeça moral secundária. Ver o texto em anexo.
sobre a pessoa, inclusive neste poder que lhe é subordinado. É por esta razão que ele
realmente retira o poder desta pessoa, e não se limita a retirar esta pessoa do poder. Ao
passo que a Igreja retira o pontificado [não27] não por uma superioridade sobre o
mesmo, mas por uma potência somente dispositiva e ministerial, enquanto pode causar
uma disposição incompatível com o pontificado, como já foi dito.
[c] No que concerne à última razão, quem tem um poder sobre a união das partes
tem um poder sobre o todo simpliciter, a não ser que seu poder sobre a união seja
ministerial e dispositivo; é preciso distinguir entre as realidades físicas, onde as
disposições têm uma conexão natural com o próprio ser do todo, de modo que quando
o agente realiza a união produzindo as disposições que ligam as partes, ele produz o
todo simpliciter; e as realidades morais, onde a disposição realizada pelo agente, só tem
uma conexão moral com a forma, por uma instituição voluntária, de modo que aquele
que faz a disposição não é considerado fazer o todo simpliciter; por exemplo, quando o
pontífice concede a alguém o poder de designar um local que será privilegiado para
ganhar indulgências ou de retirar indulgências declarando que o local não é mais
privilegiado, esta designação ou declaração suspende ou concede as indulgências não
com autoridade ou de modo principal, mas de modo ministerial somente.
27No texto latino, a palavra “non” visivelmente foi omitida por um copista, pois o “sed” (mas) que segue
faz supor que a frase precedente seja negativa, e se se omite esta palavra, Caetano diria aqui o contrário
de tudo o que disse anteriormente.
ALGUMAS REFLEXÕES À GUISA DE CONCLUSÃO
28 Ver Le Sel de la terre 79, p.40. O texto se encontra também no site dominicains-avrille.fr.
ANEXOS
Bañez
Em seu comentário sobre a Suma teológica (II.II, q.1, a.10), defende a seguinte
opinião:
Se o pontífice supremo cai na heresia, não perde imediatamente a dignidade pontifical,
antes de ser deposto pela Igreja.
Ele explica que certo número de teólogos pensa que o papa que se torna herege
perde imediatamente seu poder. Mas a opinião que defende é esta de Caetano, a qual
ele resume os argumentos:
1. Os outros bispos, se se tornam hereges, conservam sua dignidade episcopal até o
momento em que sejam depostos pelo papa. [...]
2. Se o pontífice que se torna herege está disposto a se corrigir, não deve ser deposto, como o
admitem até os que têm opinião contrária, de modo que ele não cessa de ser papa. [...]
Responde-se facilmente a esta objeção com a doutrina que apresentamos ao explicar a definição
de Igreja. O soberano pontífice não é chamado cabeça da Igreja em razão de sua santidade
ou de sua fé, pois não é deste modo que ele influi sobre os outros membros, mas é chamado
cabeça da Igreja em razão de seu ofício ministerial que visa governar a Igreja definindo a
verdade, estabelecendo leis, administrando os sacramentos, tudo o que é exercido
exteriormente segundo a hierarquia eclesiástica visível, e por assim dizer, palpável. Na
verdade, o fato de o pontífice, por causa da heresia, cessar de ser membro de Cristo porque
cessa de receber dele a influência espiritual tendo em vista sua própria santificação não o
impede de ser chamado o membro principal da Igreja, a saber, sua cabeça, relativamente ao
governo eclesiástico. Da mesma maneira, o chefe de Estado é chamado cabeça da república.
Como a noção de membro é empregada metaforicamente, dissemos mais acima que pode
haver diversos pontos de vista da metáfora: segundo um ponto de vista [NDLR: a influência
espiritual recebida de Cristo] o pontífice não é membro de Cristo ou da Igreja; segundo
outro, [NDLR: o poder de governar] ele é membro.30
Os carmelitas de Salamanca
Billuart
No tratado da encarnação (De Incarnatione, diss. IX, a.II, § 2, obj. 2), Billuart
defende que o papa que cai na heresia oculta permanece cabeça da Igreja. Por
conseguinte, ele deve ser membro.
Instância: repugna ser cabeça de um corpo sem ser membro, pois a cabeça é o membro
principal.
Resposta: distingo a primeira frase: que isto repugne para uma cabeça natural, concedo; para
uma cabeça moral, nego. Por exemplo, Cristo é cabeça moral da Igreja, não é um membro. A
razão da diferença é que a cabeça natural não pode influir sobre os outros membros sem
receber um influxo vital da alma. Mas a cabeça moral, como o é o pontífice, pode exercer a
jurisdição e o governo sobre a Igreja e seus membros, ainda que ela não receba a forma da
alma da Igreja, que é a fé e a caridade, e que não receba nenhum influxo vital. Em uma
palavra, o papa é constituido membro da Igreja pela fé pessoal que pode perder, e cabeça da Igreja pela
jurisdição e pelo poder que pode se conciliar com uma heresia interna32
No tratado sobre as regras da fé (De Regulis fidei, diss. IV, a. VIII, § 2, obj, 2 et 6),
Billuart defende a seguinte tese: o soberano pontífice é superior pela autoridade e pela
jurisdição a todo concílio.
Ele responde:
Isto acontece porque, em caso de heresia, e não nos outros casos, ele perde o pontificado por
causa de sua própria heresia: como poderia permanecer cabeça da Igreja aquele que não é
mais membro? É por isso que ele é submisso ao julgamento da Igreja, não para ser deposto,
pois que ele já se depôs a si mesmo pela heresia e rejeitou o pontificado (pontificatum
abjecerit), mas para ser declarado herege, e para que assim seja conhecido pela Igreja que ele
não é mais pontífice: antes desta declaração não é permitido negar-lhe a obediência, pois ele guarda
até aí a jurisdição, não por direito, como se ainda fosse pontífice, mas de fato, Deus querendo
e dispondo assim para o bem comum da Igreja.34
Outro, objetando, frisa que a Igreja seria privada de remédio se não pudesse
submeter o papa ao concílio no caso onde ele lhe seria prejudicial e procuraria subvertê-
la.
Se o papa prejudicasse a Igreja de outra forma que não fosse a fé, alguns dizem
que se poderia resistir a ele por força de armas, sem que com isso ele perca sua
superioridade. Santo Tomás de Aquino diz que é preciso recorrer a Deus para que ele o
corrija ou que o leve deste mundo (4 Sent. D. 19, q. 2, a. 2, q.la 3, ad 236). Billuart prefere
pensar que
como Deus governa e conserva com uma Providência especial sua Igreja, não permitirá,
como até o momento não permitiu que esta situação aconteça, e se a permitir, não deixará de
dar os meios e os auxílios oportunos 37.
38 Du pape et du concile. Textes de saint Alphonse de Liguori, traduits, classés et annotés por P. Jules JACQUES,
Santo Afonso defende ainda a mesma ideia em 1768 em sua refutação aos erros
de Febronius:
Se alguma vez o papa enquanto pessoa privada caísse em heresia, então ele seria
imediatamente destituído da autoridade papal, pois estaria fora da Igreja e não poderia
mais, por isso, ser cabeça da Igreja. Assim, neste caso, a Igreja, na verdade, deveria não o
depor, pois ninguém tem direito superior ao papa, mas declará-lo deposto do pontificado.
(Dissemos: se o papa caísse na heresia enquanto pessoa privada, pois o papa enquanto papa,
42 Verité de la foi (1767), penúltimo capítulo “De la Supériorité du pontife romain sur les conciles”, art. I,
Padre Garrigou-Lagrange
Belarmino objeta que um papa caído na heresia oculta permanece membro da Igreja em ato,
pois que ele permanece ainda cabeça da Igreja, como o ensina [também] Caetano, Soto,
Cano, Suarez e outros.45
É preciso responder que este caso é de todo anormal, de modo que não é espantoso que dele
derive uma consequência anormal, a saber, que um papa ocultamente herético não
permaneça membro da Igreja em ato (segundo a doutrina que vimos exposta), mas que
guarde a jurisdição pela qual influi sobre a Igreja governando-a. Assim ele manteria a razão
(a natureza) de cabeça relativamente à Igreja, sobre a qual continuaria a influir, mas cessaria
de ser membro do Cristo, pois que não receberia mais o influxo vital da fé de Cristo cabeça
invisível e primeira. Assim, de maneira de todo anormal, quanto à jurisdição ele seria cabeça
da Igreja, mas não seria mais membro.
Isto seria impossível se acontecesse em uma cabeça física, mas não é contraditório para uma
cabeça moral secundária. A razão é que, enquanto uma cabeça física não pode exercer
influência sobre os membros sem receber um influxo vital da alma, uma cabeça moral, como
o é o pontífice [romano], pode exercer uma jurisdição sobre a própria Igreja mesmo se ela
não recebe da alma da Igreja nenhuma influência de fé interna e de caridade.
Em resumo, como diz Billuart, o papa é constituído membro da Igreja por sua fé pessoal, que
ele pode perder, e cabeça da Igreja visível pela jurisdição e pelo poder que podem coexistir
43 Vindiciae pro suprema pontificis potestate adversus justinum febronium (1768), cap. VIII, resposta à objeção
6º. [p. 616 da edição Jules JACQUES, 1869].
44 Reginaldus GARRIGOU-LAGRANGE O.P., De Christo Salvatore, Roma-Turim, Marietti, 1946, p.232.
45 Todos estes autores são concordes sobre o fato de que um papa herético oculto continua a ser cabeça da
Igreja. Alguns, como Caetano, pensam que um herético oculto continua a ser membro da Igreja, de modo
que não há dificuldade. Outros, como Padre Garrigou-Lagrange pensam que um herético oculto cessa de
ser membro da Igreja. Donde a dificuldade a resolver. (NDLR.)
com a heresia interna. A Igreja aparecerá sempre visível como uma reunião de membros
dispostos sob uma cabeça visível¸ a saber, o pontífice romano, de modo que alguns dos que
parecem ser membros da Igreja podem ser heréticos interiores. É preciso, pois, concluir que
os heréticos ocultos são apenas membros aparentes da Igreja, que eles professam
exteriormente e visivelmente ser a verdadeira Igreja.