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CELSO MARTINS AZAR FILHO

A FILOSOFIA DE MONTAIGNE:
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO RENASCENTISTA
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Para Gerd Alberto Bornheim


In memoriam
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PREFÁCIO

O escritor e filósofo francês Michel de Montaigne ainda é relativamente ignorado


no âmbito da universidade brasileira. Geralmente conhecido apenas incidentalmente,
através de citações eruditas, o inventor do ensaio e primeiro filósofo francês ainda não foi
“descoberto” como objeto de investigação científica, entre nós. Em que pese ser um dos
chamados autores clássicos que mais diretamente nos dizem respeito, em função de ter se
servido da realidade brasileira que lhe era contemporânea como matéria de reflexão, através
dos índios canibais, o pensamento e a obra de Montaigne aguardam nosso devido
reconhecimento acadêmico. Perdemos nós com isso, por não informar e fazer refletir as
novas gerações, mostrando-lhes a riqueza de ideias e o pensamento surpreendentemente
moderno desde autor renascentista que fascina a maior parte daqueles que tem a
oportunidade de lê-lo.
Felizmente, este panorama vem progressivamente mudando, graças à produção de
algumas dissertações e teses acadêmicas em diferentes universidades brasileiras. Nesse
contexto, a contribuição de Celso Martins Azar Filho é significativa. Nos últimos anos, este
jovem professor e filósofo carioca tem publicado vários artigos acadêmicos nos melhores
periódicos montaignistas, a exemplo do Bulletin de la Société Internationale des Amis de
Montaigne. Temos agora a oportunidade de conhecer sua dissertação de mestrado,
orientada pelas mãos seguras de Gerd Bornheim, em forma de livro. É com satisfação que a
apresentamos e a recomendamos ao leitor.
Trata-se de uma instigante introdução às ideias de Montaigne, inseridas no contexto
da cultura e da filosofia do Renascimento. Uma das funções de obras dessa natureza – e
simultaneamente seu grande desafio – é tornar mais facilmente compreensíveis certas ideias
e conceitos do universo não raro árido da filosofia. Nesse sentido, acreditamos que Celso
Azar logrou êxito, pois uma das qualidades do seu livro é expor claramente aspectos do
pensamento do autor francês. Esta tarefa, diga-se de passagem, não é das mais fáceis, uma
vez que o pensamento de Montaigne é complexo, dinâmico, resistente a sistematizações
redutoras.
Dividido em três capítulos, complementados por um apêndice, o presente livro
aborda aspectos importantes dos Ensaios. Os dois primeiros são mais frequentemente
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tratados na fortuna crítica, uma vez que as questões da natureza e do ceticismo são centrais
no pensamento de Montaigne. Ambas são tratadas e reinseridas em seus respectivos
contextos históricos e filosóficos com competência e clareza didática. Comparativamente, a
questão da imaginação é menos contemplada, mas aqui ela é devidamente enfocada em
suas relações com o ceticismo, nos proporcionando uma reflexão oportuna e inspirada.
Finalmente, Celso Azar faz um exercício de leitura crítica a partir do primeiro capítulo dos
Ensaios, mostrando como este já dá o tom de toda a obra, posto que ele exemplifica talvez
a principal característica do ensaio: a de exercitar o julgamento, analisando os diversos
aspectos, via de regra contrários, através dos quais uma questão pode ser apreciada e
julgada.
A publicação deste livro é especialmente oportuna neste Ano da França no Brasil,
pois dá sua contribuição para aproximar o público brasileiro desse autor francês que, entre
outros méritos, defendeu corajosamente a humanidade dos nossos índios numa época em
que eles eram acusados de serem “bárbaros e selvagens”. Nesse sentido, o Brasil lhe deve
as devidas homenagens, as quais este livro se desincumbe, à sua maneira. Que outros livros
sobre Montaigne e seu tempo venham se somar a este, a fim aprofundar a reflexão e nutrir o
debate de ideias, especialmente nos tempos em que vivemos, marcados pela superação ou
aparente esgotamento de determinados paradigmas teóricos. Grandes pensadores, como
Montaigne, têm sempre algo de novo a nos dizer e nos dão uma dimensão ao mesmo tempo
modesta e profunda, sem pedantismo ou arrogância, da humana condição.
João Pessoa, julho de 2009.

José Alexandrino de Souza Filho


Professor de Literatura Francesa da Universidade Federal da Paraíba
Criador do Projeto “Livraria” de Montaigne
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SUMÁRIO

PREFÁCIO............................................................................................................................ 3

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 6

I. NATUREZA E LEI NATURAL NOS ENSAIOS............................................................ 13

II. ENSAIO, CONTRADIÇÃO E CETICISMO................................................................. 28

III. IMAGINAÇÃO E VERDADE ..................................................................................... 51

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA ............................................................................................. 82

APÊNDICE.......................................................................................................................... 83
INTRODUÇÃO

Os técnicos dividem e denotam suas ideias mais especifica e minuciosamente. Eu, que
não vejo senão o que o uso me informa, sem regra, apresento de forma geral as minhas, e ao
acaso. Como aqui: pronuncio minha sentença por artigos descosturados, como coisa que não se
pode dizer de uma vez e em bloco. A relação e a conformidade não se acham em almas como as
nossas, baixas e comuns. A sabedoria é um edifício sólido e inteiro, no qual cada peça tem seu
lugar e porta sua marca. “Só a sabedoria se contém toda em si mesma” (Cícero, De finibus).
Deixo aos artistas, e não sei se chegarão a seu fim em coisa tão misturada, miúda e fortuita, de
distribuir em partes esta infinita diversidade de aspectos, e fixar nossa inconstância e a
ordenar. Não somente acho difícil ligar nossas ações umas às outras, mas acho, cada uma por
sua parte, difíceis de designar propriamente por qualquer qualidade principal, tanto elas são
dúbias e heterogeneamente matizadas por diversas perspectivas (Ensaios III, 13, 1076).
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O pensamento de Michel Eyquem (1533-1592), Seigneur de Montaigne, possui


muitas faces, movimentos aparentes e ocultos, enfeixando e possibilitando vasta pluralidade
de perspectivas que permitem múltiplos procedimentos de abordagem com resultados
diversos.
Hoje parecem em geral concordar os comentadores dos Ensaios em considerar seu
autor como um “cético”. Devemos, porém, desde o inicio marcar que, com relação à sua
filosofia, como é comum acontecer com as obras dos grandes pensadores, as comparações –
venham de onde vierem – não serão nunca completamente válidas. Os Ensaios constituem
um microcosmo surpreendentemente rico e sugestivo, cobrindo em suas páginas um largo
campo da cultura renascentista: eles falam por si.
Consequentemente, exorto o leitor a ter o texto ora estudado sempre diante dos
olhos: Montaigne cria seu próprio estilo; este, embora aparentemente frequente depois dele,
talvez com seu autor tenha morrido. Pois, a noção de estilo, como a compreende o ensaísta,
não se limita ao domínio linguístico, mas nomeia a maneira como um homem age e reage –
inclusive na linguagem1. No ensaio, a forma está tão intima e estreitamente ligada à sua
matéria, que não se pode na maior parte das vezes modificar sua estrutura, trocar a ordem
de vocábulos ou frases, sem alterar a mensagem. E a citação inoportuna, fácil frente à
virtude dadivosa dos Ensaios, deturpa, limita, muitas vezes abastardando completamente a
palavra montaigniana: esta é una e dificilmente pode ser fracionada sem alguma perda de
sentido. Emerson dizia do texto de que agora nos aproximamos: “Corte essas palavras e
elas sangrarão; são vasculares e vivas” 2. Por isso, a citação, no presente estudo, mesmo
tentando certamente determinar em si certo grau de generalização (variável segundo o
momento) no que toca ao todo do pensamento em pauta, deverá reger-se mais pelo intuito
de ilustrar do que de demonstrar. Creio que assim se corresponderá melhor ao próprio
espírito da filosofia ensaística.
E é em função deste espírito próprio que a escrita montaigniana apresenta, logo ao
primeiro contato, uma dificuldade que deve ser bem discernida: a impressão de atualidade

1
Ver, por exemplo: Ensaios I, 40, 252; II, 17, 653 (a edição referida nas citações é a de Villey-
Saulnier – Paris: PUF, 1988). Tomei a liberdade de evitar a repetição do nome “Ensaios” nas citações; assim,
quando sem referência de título (aparecendo somente o número do livro seguido dos do capítulo e da página),
a citação a eles pertence. E, para facilitar o trabalho do leitor, referi também as obras e autores citados por
Montaigne (o que ele mesmo não fez), segundo as informações daquela mesma edição.
2
Representative Men, IV. Todas as traduções são de minha responsabilidade (sempre cotejadas com
as traduções brasileiras e portuguesas disponíveis).
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suscitada pela familiaridade do tom coloquial de suas descrições da humaine condition. Isso
não nos pode privar do imprescindível senso histórico. Com efeito: ler os Ensaios
alienando-os dos problemas históricos de sua constituição é arriscar-se a perdê-los. E, ainda
mais, porque estes são palco de acontecimentos decisivos, tanto para a história da filosofia,
como para a história da língua e da literatura.
Montaigne escreve em um mundo em mutação, em uma época, mais que qualquer
outra, inaugural. Lá, o universal partira-se, e as raízes mesmas da realidade social, política e
econômica abalaram-se, transformando-se. A redescoberta do saber antigo (que então
aparece como um todo autônomo); a Reforma religiosa e as guerras de religião; o
descobrimento do Novo Mundo; a peste; a revolução técnico-científica – e a sinergia de
todos estes eventos realçada por sua difusão pela imprensa: tal é o cenário das dores de
parto da modernidade. Assim, temos, desde já, de nos entender muito bem com relação ao
significado do termo 'Renascimento'.
A divisão da história em períodos organizados seja sob qual for o ponto de vista,
sempre pecará por excessiva generalidade. Certos estudiosos chegarão a dividir o período
renascentista em quatro sub-períodos para tentar dar conta da complexidade não-
homogênea do todo de suas obras. De qualquer forma, os limites destes, como dos mega-
períodos tradicionais, serão sempre incertos, desde que apenas abstrações úteis. No escopo
de nossa investigação não necessitaremos de tão sofisticadas aproximações. Cabe ressaltar,
contudo, um ponto muito importante: parece ter sido o colapso da Renascença, e não o alto
Renascimento, que ambientou as pré-condições da modernidade. Ou seja, quando o
equilíbrio clássico entre o medieval e o antigo, característico do primeiro Renascimento,
entra em crise, começa a vir à luz aquilo que, na cultura em geral, podemos propriamente
chamar moderno.
O que se costuma designar como clássico no Renascimento tem muito da Idade
Média, sendo na verdade os movimentos de restauração cultural dos séculos XI-XII (que se
reportam, por sua vez, aos séculos VIII-IX) suas grandes fontes. Tendo isto em mente,
usaremos os termos 'Renascimento' ou ‘Renascença’ indistintamente, sem deixar, porém,
quando necessário, de distinguir o período clássico de fins do século XIV e o XV do
período crítico e maneirista do XVI, limiar da modernidade, ao qual pertence Montaigne.
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Mas, sobretudo não tornemos rígidas estas definições auxiliares: as grandes obras
renascentistas – basta nomear Leonardo da Vinci – ultrapassam quaisquer rotulações.
Fato também reconhecido por seus contemporâneos, a ideia de uma revivescência
sob a influência dos modelos clássicos foi concebida e formulada por Petrarca: este
conceito chegaria por volta de 1500 a se difundir por praticamente todos os ramos do saber
e da arte. Tal comunicação foi uma diferença decisiva com relação aos renascimentos
medievais. Mas o que diferencia o Renascimento dos períodos precedentes é
principalmente sua preocupação com a forma; e nada mais natural para um movimento
intelectual que se origina nos campos de representação retórica e poética e nas artes visuais:
o alto humanismo busca um equilíbrio entre ideia e forma, em uma filosofia de conteúdo
mais concreto do que a abstração em geral resultante do divórcio tipicamente medieval
entre pensamento e expressão.
Muitos elementos da ciência moderna vieram à luz pela mão das belas-artes, e
inclusive seu elemento central: o critério experimental quantitativo. Pois, na Renascença, a
experimentação de formas, proporções, medidas e perspectivas torna-se meio e condição,
não só da reformulação de teorias da arte e da ciência, mas de uma reunificação de sua
linguagem, baseada na analogia com a criatividade natural de todos os domínios do saber
em seus termos fundacionais.
O ensaio é também uma experimentação da forma e, nesse sentido, da própria
experiência. Para entendê-lo, voltemos nossa atenção para a composição dos Ensaios.
Nós conhecemos vários estados publicados do texto dos Ensaios: As edições de
1580/1582, 1588, 1595 e aquela baseada no Exemplar de Bordeaux (um exemplar da
edição de 1588 corrigido pelo próprio autor). A controvérsia linguística acerca da
reconstrução do texto mais fiel e completo possível não pode ser resolvida em definitivo:
uma vez que nos falta o aval do ensaísta, essa responsabilidade deve recair sobre os
organizadores de cada uma das reedições contemporâneas3. A dificuldade de
estabelecimento do original é, aliás, frequente nos textos do século XVI, e no caso dos
Ensaios, em virtude precisamente da maneira com que foi construído, o problema se torna

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Por dois motivos: primeiro, o Exemplar de Bordeaux encontra-se bastante mutilado; segundo, a
edição de 1595 é póstuma e organizada pelos amigos de Montaigne, ou seja, a “família” à qual ele reserva (no
“Aviso ao leitor”) a prerrogativa de interpretar sua obra, e é presumível que eles pudessem ter adicionado algo
aos Ensaios no intuito mesmo de lhes serem fiéis.
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ainda mais complicado: este é composto não apenas pela adição de novos capítulos, mas
também pelo remanejamento e acréscimo, nos ensaios já constituídos, tanto simplesmente
de palavras, como de frases e até de páginas inteiras (chegando ao montante provável de
1.000 retificações na última fase de quatro anos – da edição de 1588 até a morte do autor –
o que aumentará a edição de 1595 em mais de um terço com relação às precedentes). A
compreensão deste processo de “aluvionamento”, que dura cerca de vinte anos, é altamente
significativa para a interpretação do pensamento montaigniano. No entanto, não devemos
nunca esquecer que Montaigne assinou com seu nome o conjunto dos Ensaios, e não quis
nem previu que ficassem claras suas modificações. Assim, as considerações sobre a
evolução do pensamento ensaístico devem ser apresentadas cuidadosa e raramente para não
desfigurarem suas noções centrais, isto é, aquelas que tocam ao fundo de sua concepção
sendo atingidas em seu desenvolvimento mesmo. Porquanto, muito embora possamos falar
de modificações em certos pontos deste pensamento (ao longo das duas décadas nas quais
os três livros são escritos), trata-se mais de um desdobramento (como veremos, decorrente
da própria ideia de ensaio e previsto em seu método) que não somente não renega suas
contradições, mas parte delas, ensaiando-as. Vejamos o que diz o ensaísta em uma de suas
adições tardias:

“Meu livro é sempre um. Salvo que eu, à medida que o vão reeditando, a fim de que
o comprador não saia de mãos completamente vazias, permito-me incrustar (pois não passa
de uma marchetaria mal encaixada) algum ornamento supranumerário. Não são senão
acréscimos que não condenam a primeira forma, mas dão algum valor particular a cada uma
das seguintes por uma pequena sutileza ambiciosa. Daí, todavia, acontecerá facilmente que
se junte aí alguma transposição cronológica, meus contos tomando lugar segundo a
oportunidade, nem sempre segundo sua época” (III, 9, 964).

Montaigne é o primeiro autor que chama seu livro de Ensaios. Mas não se encontra
aí designada uma categoria literária (como hoje comumente entendemos o gênero
ensaístico), mas uma noção de método para a filosofia moral. Explicar como e porque é o
intento desta dissertação.
Comecemos por identificar a raiz latina de ensaio, exagium, que significa peso e
ação de pesar. Com ela ressoa a raiz de pensar. E não é inoportuno lembrar que estudamos
aqui a obra de um homem que até os seis anos de idade – graças aos desvelos de um pai
fascinado pelos clássicos – não sabia falar senão o latim.
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As línguas românicas produzirão para ‘ensaio’ e ‘ensaiar' toda uma série de novas
acepções concretas. Basta citar: exercício, prelúdio, tentativa, tentação, experimentação,
degustação para o primeiro; tatear, verificar, degustar, correr um risco, tentar, induzir em
tentação, pesar, tomar impulso, empreender, para o segundo; e todas já correntes na França
do século XVI.
O título da obra com a qual nos ocupamos refere-se, intencionalmente, à ideia de
uma disposição aparentada ao ceticismo, significada por ‘ensaio’: primariamente encontra-
se aí marcada a atitude investigativa do cético, pondo sucessivamente em causa suas
próprias conclusões e contentando-se com uma verdade provisória e aproximativa.
“Proponho as fantasias humanas e minhas, simplesmente como humanas fantasias, (...),
como as crianças propõem seus ensaios: como quem se instrui, e não como instrutor; (...)”
(I, 56, 323). E daí encontra expressão o sentido dominante de ensaio: experiência de si
mesmo, de sua força e fraqueza, ou de sua natureza própria: “Quanto às faculdades naturais
que estão em mim, das quais está aqui o ensaio, (...)" (I, 26, 146).
A modéstia expressa no título ‘Ensaios’ – admirada já por seus contemporâneos –
serve de encaminhamento à noção de método nela mesma delineada, e até mesmo por sua
acepção ampla, flutuante e polissêmica (característica frequente dos conceitos
montaignianos): o ensaio ensaia a si mesmo, congregando unidade e multiplicidade,
identidade e alteridade, em seu desenvolvimento.
Os Ensaios não formam, pois, um sistema, porém uma rapsódia (I, 13, 48). E isso
não significa proceder desordenada ou descuidadamente, mas pôr em jogo uma exigência
estética através da qual se projeta a reflexão, unindo tarefa artística e problema moral na
escrita e na vida. Com isto, neste texto, a vida humana se tornará complexa, no sentido
moderno, pela primeira vez (Auerbach 1987: 275). Tal pensamento não busca a unidade
integral, estável e rígida das puras entidades lógicas, todavia realiza a união de maneira
implícita, móvel e aberta. Sua ideia de verdade aborda a noção de conhecimento desde a
procura de uma veracidade pessoal que só pode se efetivar no tempo e em situação, na
obrigação de portar em seu dizer a virtude e a realidade singulares das questões
consideradas.

“Pois, nisto que digo, não garanto outra certeza senão que é o que então tinha eu em
meu pensamento, pensamento tumultuado e vacilante. E à maneira de conversa que falo de
tudo, e de nada por modo de conselho. Nunca me envergonhei, como aqueles, de ter
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confessado ignorar aquilo que ignoro (Cícero, Tusculanas). Eu não seria tão ousado ao
falar se me coubesse ser crido; e isto foi o que respondi a um grande personagem que se
queixava da aspereza e esforço de minhas exortações. Vós estais inclinado para um lado, eu
vos exponho o outro, com toda aplicação que posso, para esclarecer vosso julgamento, não
para o obrigar” (III, 9, 1033).

A dúvida é o motor e um elemento constitutivo da razão montaigniana: o ensaio não


se dedica a estabelecer a verdade, mas a procurá-la (I, 56, 317). Pois, em meio às
metamorfoses naturais a única verdade possível é a da ciência do presente. Por isso trata-se,
para o ensaísta, de compor uma rapsódia, uma poética da natureza, realizada pelo ensejo de
reconhecer a marcha de suas próprias mutações no tempo (II, 37, 758), cujo fim é o
conhecimento da oportunidade e da ocasião propícia, ou a harmonia com a fortuna. E isto é
algo que deve ser reconquistado por cada um de nós a cada momento. “Não está aqui minha
ciência (doctrine), é meu estudo: e não é a lição de outro, é a minha” (II, 6, 377). É neste
estado dubitativo positivo – provocador e estimulante da investigação – que devemos nos
acercar da filosofia montaigniana, porquanto o ensaísta exige nossa ação e nosso
engajamento para nos permitir acompanhá-lo. E todo cuidado de nossa parte se faz
necessário, muito embora não pareça possível evitar, ao interpretar os Ensaios,
involuntariamente, traí-los, sistematizando-os e simplificando-os – “(...) e todo resumo de
um bom livro é um tolo resumo (...)” (III, 8, 939). Tentei minimizar o prejuízo elegendo o
conceito ensaístico de natureza como centro e limite de minhas preocupações: nele se funda
a possibilidade de uma moral cética.
Enfim, é uma responsabilidade algo inquietante escrever sobre um filósofo que
afirmou: “Voltaria de bom grado do outro mundo para desmentir aquele que me formasse
outro que não sou, mesmo que fosse para me honrar” (III, 9, 983). Contudo, em outro lugar,
este mesmo pensador também escreveu: “Um leitor capaz descobre frequentemente nos
escritos de outro, outras perfeições além daquelas que o autor aí pós e percebeu,
emprestando-lhes sentidos e aspectos mais ricos” (I, 24, 127). Esperando estar à altura,
almejo com este trabalho difundir o conhecimento da obra de Montaigne e aumentar sua
influência sobre o homem do nosso tempo.
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Capítulo I

Natureza e lei natural nos Ensaios

Mas quem se apresenta, como em um quadro, a grande


imagem de nossa mãe natureza em sua inteira majestade; quem lê em
seu semblante uma tão geral e constante variedade; quem se enxerga
lá dentro, e não só a si, mas a todo um reino, como um traço de
delicadíssima fineza: só esse estima as coisas segundo sua justa
grandeza.
Este grande mundo, que alguns multiplicam ainda como
espécies sob um gênero, é o espelho ao qual nos devemos mirar, para
nos conhecermos ao justo viés. Em suma, quero que seja este o livro
de meu discípulo (I, 26, 157).
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A natureza é o grande princípio. Segui-la, segundo a filosofia dos Ensaios, é o


preceito soberano: “Eu tomei, como já disse alhures, bem simplesmente e de maneira crua
no que me concerne, este preceito antigo: que nós não saberíamos falhar em seguir a
natureza, que o preceito soberano é de se conformar a ela” (III, 12, 1059).
A importância do referencial ‘natureza’ para o pensamento o renascentista é
facilmente reconhecível: ela serve de ponte entre os sujeitos e os objetos do conhecer,
relacionando ser e pensamento pelas vias da analogia, conveniência e semelhança, em um
saber cuja estruturação e ordenação mesmas recebem o título de “naturais”. A natureza foi
a grande entidade metafísica da Renascença.
Pelo menos desde o século XII (em uma tendência que remonta ao século IX) a
idéia de natureza começa a sofrer, em suas expressões teóricas e artísticas, transformações
substanciais, embora permaneçam geralmente emolduradas pelas disposições extáticas do
pensamento cristão medieval. O resultado será o desembocar de concepções bastante
divergentes em um vasto confronto que, no outono da Idade Média, resultará em recíprocas
remodelagens. E o alto Renascimento alcançará realizar brilhante equilíbrio entre suas
várias heranças antigas e medievais. Porém, mais e mais certas contradições básicas se
tornarão evidentes, e a sustentação dos paradoxais padrões assim vigentes, problemática. O
termo ‘natureza’ será então repleto de significados que se permutam, opõem-se e
superpõem-se, pois a própria natureza aparecerá – no esfacelar de sua feição medieval em
meio ao reviver do mundo antigo e ao descobrimento de novos mundos – espantosamente
móvel e variada em seus “(...) meios infinitamente desconhecidos. Há grande incerteza,
variedade e obscuridade no que ela nos promete ou ameaça” (III, 13, 1095). Palavra de
múltiplas e complexas significações (e que, no período em questão, poderá chegar a ocupar
o mesmo lugar de Deus4), a natureza sofreu ao longo de sua história profundas
modificações semânticas, porque por grandes mudanças passou o relacionamento e
interação do homem com esta.
Evitemos, pois, justificar o passado a partir deste futuro e projetar naquele nossos
ideais, ou, ao menos, não fazê-lo de forma completamente inconsciente. Tomemos a sério o
fato de Giordano Bruno considerar-se um “delineador do campo da natureza” (Acerca do

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Em Montaigne ocorrem fórmulas quase assimilativas como “de Dieu et de nature” (460). E,
ao longo dos Ensaios, cada vez mais frequentemente se pode substituir um termo pelo outro com prejuízo
mínimo para o sentido das frases que os contém.
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infinito, do universo e dos mundos, epístola preambular): uma vez que os quadros e
conceitos transcendentes sob os quais se organizava a ideia de natureza aparecem rompidos
e desgastados, a procura de sua ordenação imanente se torna a preocupação primeira. A
posição e condição do homem em um universo transfigurado: este é o problema central
para a filosofia renascentista. Note-se que, no século de Montaigne, longe estamos da
natureza mecânica, à disposição do homem, do século XVII. Aqui ‘natureza’ é uma
designação extensa e vaga, cujo peso moral torna ainda mais abstrata. Prenhe de
investimentos culturais obscuros e em plena mutação, dada a progressiva falência dos
avatares teóricos tradicionais, oferece de si uma imagem muito pouco distinta e bastante
instável.
No período medieval, discorrer acerca da natureza (em um universo finito,
hierarquicamente imóvel, e expresso através do realismo linguístico dominante) é, em
geral, falar da necessidade nos termos metafísicos de causa, origem e finalidade. Isto toca
diretamente a liberdade e consciência do homem que, inscrito em um universo definitivo, já
encontra sua natureza e seu papel dados de antemão. Desde antes do Renascimento estas
estruturas começam a ser abaladas por choques sucessivos, se propagando em uma
“descrença” mais ou menos difusa – descrença toda especial que não provém ou procede
por exclusão, mas por inclusão, e não necessariamente acontece pela falta de fé, mas,
amiúde, pelo seu excesso; ou seja, um desacreditar da ortodoxia e das explicações finais em
geral. A obra montaigniana é a expressão mais original e acabada do ceticismo daí
resultante, reencontrando o antigo sentido do termo em um olhar enriquecedor que, longe
da mera negação, reafirma a complexidade da natureza sobre suas sempre imperfeitas
interpretações. Assim, tal ceticismo difere bastante, por exemplo, de certo dogmatismo do
senso comum o qual, em busca da evidência completa de uma clareza total (talvez a pior
ilusão), rejeita absolutamente o que não compreende. Simplifica, ao contrário de
Montaigne, cujo ceticismo considera possível mesmo o que escapa ao pretenso bom senso e
é todo penetrado de uma espécie de “temor metafísico”: “É preciso julgar com mais
reverência esta infinita potência da natureza e com maior reconhecimento de nossa
ignorância e fraqueza” (I, 27, 180). Se esta reverência tem a intensidade de um sentimento
religioso, ela não é mais a consequência do temor ao Deus criador medieval, mais sim da
compreensão ensaística do homem e da natureza.
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A natureza, nos Ensaios, é o princípio de criação, movimento e diversificação, tanto


do desenvolvimento dos seres singulares, como da economia do todo. Como tal, a natura
montaigniana – traduzindo muito bem a noção grega de physis, força que gera e sustém –
não se opõe ao “espírito” ou à história que são, antes, compreendidos sob seu domínio.
Contudo, não está aí em questão a ideia de uma natureza que procedesse uniformemente,
acionando sempre o mesmo efeito para cada causa (“Em coisas naturais, os efeitos não se
referem senão em parte às suas causas (...)”: II, 12, 531), mas a de uma natura creatrix,
variável, mutante e inventiva, que sobrepuja qualquer enquadramento teórico. O
conhecimento humano, seus objetos e sujeitos, originados e nutridos pela mesma fonte, são
(como todo o resto) arrastados pela mesma corrente natural de infinitas possibilidades de
metamorfoses:

“Se a natureza encerra nos termos de sua marcha ordinária, como todas as outras
coisas, também as crenças, os juízos e opiniões dos homens; se tudo isso tem sua revolução,
sua estação, seu nascimento, sua morte, como as couves; se o céu lhes agita e lhes rola ao
seu talante, que autoridade segura e magistral lhes vamos atribuindo?” (II, 12, 575)

“(...) todas as coisas estão em flutuação, mudança e variação perpétua” (II, 12,
601). As imagens do fluxo, movimento e mutação da realidade multiplicam-se no texto
montaigniano: o escoar incessante do devir universal é uma experiência fundamental para a
filosofia ensaística. “O mundo não é senão balouçar perene. Todas as coisas nele se movem
sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, e do movimento geral e
do seu particular” (III, 2, 804). Do ponto de vista da consciência individual, trata-se de um
mover-se externo e interno, cercado por inumeráveis outros movimentos: “E nós, e nosso
juízo, e todas as coisas mortais vão fluindo e rolando sem cessar. (...) e o julgador e o
julgado estão em continua mutação e movimento” (II, 12, 601). Esta natureza vertiginosa
aparece como diversidade e variação: “A natureza se obrigou a nada fazer que não fosse
dessemelhante” (III, 13, 1065); “O mundo não é senão variedade e dessemelhança” (II, 2,
339). Entretanto, mesmo em sua variabilidade a mére nature não perde sua unidade (“É
uma mesma natureza que rola seu curso”; II, 12, 467) e, até poderíamos dizer sua
“personalidade”, pois Montaigne fala dela como de uma pessoa próxima: nos Ensaios, a
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natureza discursa, ordena, recomenda, sugere, guia, consola, estende a mão, dá, etc 5. Seu
autor não se considerava (e nem pretendia que o homem fosse ou viesse a ser) mestre e
possuidor da natureza, mas muito mais seu protegido. O Renascimento retoma o saber
antigo que, em geral (e marcadamente na filosofia helenística, através da qual muito
frequentemente os humanistas leem os clássicos), prescreve subordinação à medida natural.
Prescrição esta que se afigura tanto mais importante conforme percebemos a intenção do
vivere secundum naturam implicada com a construção mesma da linguagem ensaística. E
nada mais natural, desde que a natureza não é aí apenas algo de exterior ao homem, mas a
própria força que constitui sua individualidade (como a de cada ser singular), sendo
acessível desde seu interior mesmo. O natural, então, é onde se cruzam liberdade e
necessidade, e a perfeição da personalidade (ideal da sabedoria helênica e renascentista,
compartilhado por Montaigne) consiste na realização da ligação intima entre homem e
natureza: viver a propósito é reencontrar constantemente esta harmonia fundamental.
Desde o século V (com o Pelagianismo) esta virtude salutar autônoma da natureza,
sinal de resistência da tradição pagã, ocupará Agostinho em sua refutação: ela se opõe a sua
doutrina da graça sobrenatural, central no cristianismo, para o qual a natureza é um ens
creatum, estritamente separada de Deus e irremediavelmente corrompida pelo pecado
original. Este "paganismo", tendo se feito cada vez mais presente desde o século XII,
impõe-se nos séculos XV e XVI com força inusitada. Suas fontes, helenísticas, são as
mesmas às quais se refere a natureza montaigniana: Deus e natureza são, nos Ensaios, por
vezes empregados como quase sinônimos (II, 12; III, 13), e esta é a representante autônoma
daquele.
A ideia eminentemente grega do crime como ato antinatural, radicalizada pelo
estoicismo e reorganizada segundo o sobrenatural universo cristão, atravessou a Idade

5
Se, aparentemente, as inumeráveis metáforas dos Ensaios sobre a natureza contribuem para
tornar vaga sua noção e até mesmo realçar certo caráter de transcendência divina, muito ao inverso o que
ocorre é a multiplicação dos laços afetivos com ela, através do enriquecimento das tonalidades expressivas da
linguagem. A natureza está presente principalmente à visão interior de Montaigne (II, 10, 407). O ensaio
exclui deliberadamente tudo que as ciências naturais poderiam fornecer em definições (e tal também pelo
emprego retorcido de suas perspectivas e linguagem técnica). Pois, para uma filosofia cujo fim básico é o
aperfeiçoamento da personalidade, importa a consideração da natureza enquanto força que organiza a
individualidade, ou como a resultante da convergência de forças interiores e exteriores em sua remodelação
recíproca no indivíduo; a metáfora é a expressão disto. Ela serve tanto à crítica da definição universal e do
conceito como critica a si mesma, evitando o papel de instrumento do conhecimento (atacando implicitamente
certos pensadores neoplatônicos: Baraz 1968: 63).
18

Média e o Renascimento: lá, ser criminoso ou pecador era afrontar a ordem moral
universal. Mas, no texto montaigniano, além de não mais encontrarmos apelos ao
sobrenatural, a compreensão do que seja contra a natureza sofre torção decisiva, tornando-
se extremamente problemática. Seu ceticismo questiona precisamente a inteligibilidade
daquela ordem natural, fazendo ressoar novamente a interrogação incisiva de Sextus
Empiricus: “Qual natureza?” (Pyrrhoneiai Hypotyposeis, I, 98). As distinções dogmáticas e
teológicas com relação à natureza apagam-se nos Ensaios (ou antes, se multiplicam em
confrontos ou combinações de plástico contraste) e o sobrenatural é absorvido pela natural:
nada é, senão segundo a natureza, o que quer que seja (II, 30, 713).
No entanto, se a natureza é mãe e doce guia, a qual “não saberíamos falhar em
seguir” (e rege, assim, o que é e o que deve ser), em vão procuramos ler nos Ensaios o
enunciado de alguma lei natural:

“Mas eles são divertidos quando, para dar alguma certeza às leis, dizem que algumas
há firmes, perpétuas e imutáveis, que eles chamam naturais, que são impressas no gênero
humano pela condição de sua própria essência” (II, 12, 579).

Este é um trecho da Apologia de Raymond Sebond: trata-se de uma investigação


acerca da natureza do homem e do conhecimento. É neste mais longo dos ensaios (II, 12)
que o ceticismo montaigniano exprime-se de forma plenamente consciente de si mesmo, a
partir de seu encontro – que parece lhe confirmar suas próprias impressões – com o texto de
Sexto Empírico. Esta conjunção será crucial para o desenvolvimento posterior do
pensamento moderno. Para os dois séculos seguintes, Montaigne e Sexto Empírico serão os
grandes representantes de uma filosofia que nega a existência de leis naturais. Mas na
verdade as coisas não se passam tão simplesmente nos Ensaios: o que foi negado na última
citação não foi exatamente a existência de leis da natureza (“A natureza as dá sempre mais
felizes do que aquelas que nós nos damos”: III, 13, 1066), mas seu conhecimento imediato
e seguro:

“Se nós víssemos tanto do mundo como nós não vemos, nós perceberíamos, como é
de crer, uma perpétua multiplicação e vicissitude das formas. Não há nada de novo e de raro
em relação à natureza, mas sim em relação ao nosso conhecimento, que é um miserável
fundamento de nossas regras e que nos apresenta provavelmente uma muito falsa imagem
das coisas” (III, 6, 908).
19

Em função desta constatação fundamental, as oposições tradicionais natureza x


contra/sobre/anti-natureza serão substituídas na filosofia dos Ensaios pela contraposição
natureza x arte. Isso traz para o centro da problemática geral do ceticismo ensaístico a
crítica do pensamento e do ato humano frente à natureza. Para Montaigne, o homem será o
animal que tem o poder, para sua desgraça, de contradizer a natureza através de uma
espécie de ilusão ontológica racional:

“Pode-se crer que haja leis naturais, como se vê nas outras criaturas; mas em nós elas
estão perdidas, esta bela razão humana se metendo a tudo dominar e comandar,
embrulhando e confundindo a aparência das coisas segundo sua vaidade e inconstância:
Nada resta, portanto, que seja nosso: o que chamo nosso é artificial (Cícero, De finibus)”
(II, 12, 580).

Paradoxalmente, o esforço mesmo de compreender e determinar a lei natural, com


frequência nos desvia da natureza.

“Os filósofos, com grande razão, nos reenviam às regras da natureza; mas elas não
têm o que fazer de tão sublime conhecimento; eles as falsificam e nos apresentam sua
aparência muito pintada e muito sofisticada, de onde nascem tantos diversos retratos de um
objeto tão uniforme” (III, 13, 1073).

Não é nada simples, portanto, seguir aquele preceito soberano enunciado de inicio.
Pois,

“(...) esta razão que se maneja a nosso talante, (...), não deixa em nós nenhum traço
evidente da natureza. Com esta fizeram os homens como os perfumistas com o óleo:
sofisticaram-na com tantas argumentações e reflexões chamadas do exterior, que ela se
tornou variável e particular a cada um, e perdeu seu próprio aspecto constante e universal,
(...)” (III, 12, 1049).

Como, então, seguir a natureza? Por um lado, a via de um quietismo naturalista


simplista, que se contentasse em se reunir à espontaneidade instintiva dos animais,
recusando a intervenção racional, se encontra, ao menos para nós – homens “civilizados” e
distantes da felicidade do antigo Brasil canibal (tal como Montaigne o apresentou no livro
I, ensaio 31) – fechada. Por outro lado, persiste o problema de não haver acesso racional
direto ou garantido às leis naturais.
Mantendo a questão em suspenso, são oportunos certos comentários paralelos.
A lei de que Montaigne trata aqui por certo é aquela que nós denominaríamos
‘moral’. Mas, para o Renascimento, lei física e lei moral são apenas extremos, bastante
20

imbricados, do campo de sentido do natural. A noção renascentista de lei, como a de


natureza, não corresponde às modernas ou contemporâneas: não nasceu nossa compreensão
cientifica (hipotético-dedutiva) do que sejam leis da natureza, e muito menos nossa certeza
instintiva no tocante a elas. Para o autor dos Ensaios não parecia possível que qualquer
norma humana tirânica pudesse limitar a potência incomensurável de uma natureza
animada, providencial, e em incessante metamorfose sob seus olhos. As leis que buscava o
Renascimento eram, em uma larga acepção, éticas, principalmente porque, lá, o problema
moral adquiriu dramática complexidade, já que então a própria imagem do homem e do que
seria o humano foi posta em causa: pela afluência dos novos e antigos mundos, a
diversidade histórico-geográfica da natureza humana se torna mais e mais patente e a
descoberta de “novos” tipos humanos no século XVI traz à baila a questão de se conviria ou
não chamá-los homens. E mesmo do ponto de vista jurídico, a disposição das leis
renascentistas poderia nos parecer no mínimo curiosa: por exemplo, sob sua legislação
penal estabeleciam-se julgamentos formais mesmo para os animais. Além disso, esta é uma
época na qual a natureza pode interferir diretamente, por meio de presságios e sinais, na
execução das leis (e tal testemunhado e confirmado por homens, então, famosos por seu
saber e habilidade), e onde os reis ainda curam.
Fala, nos Ensaios, um moralista. Mas, esta designação tem aqui um significado
especial: Montaigne é um estudioso dos mores (costumes). Ou seja, estuda o homem
através de uma compreensão empírica de seu modus vivendi, buscando isenção dos juízos
de valor rígidos. Trata-se de uma tendência da filosofia helenística que, recomposta,
adquire força e formas mais definidas no renascimento italiano, para provar um
florescimento mais constante na França (se espalhando também pela Espanha, mais tarde
na Inglaterra e, posteriormente, na Alemanha). Não é uma filosofia moral nos moldes
antigos, ou um saber das normas morais em um âmbito universal ou metafísico. Interessa
aos moralistas, não a criação de cânones éticos ou de pedagogias para a formação e
“melhoramento” do homem, mas a observação e a análise da facticidade concreta da
condição humana em suas naturezas e costumes diversos (em meio aos quais o “imoral” é
apenas uma questão de perspectiva). Esta linha de investigação, que descende do mais puro
humanismo (como herdeira direta de Petrarca), recorre de preferência à forma literária
aberta (dando papéis importantes para a sátira e a poesia), confrontando a ordem
21

hierárquica e logicamente formalista do discurso tradicional acerca da natureza humana, e


evitando toda sistematização metafísica para manter o problema moral em aberto. Ao que
tudo indica, foram as relações entre os príncipes italianos que fomentaram e ambientaram o
nascimento desta observação tática dos homens e situações. Esta vicejou com vigor, em
seguida, nas cortes renascentistas em geral, mas especialmente, logo após Montaigne, na
francesa (onde o inchamento e a esclerose da estrutura cortesã absolutista tornarão tal tipo
de consideração estratégica das relações humanas quase uma necessidade de
sobrevivência).
No Renascimento, os limites da natureza, dos seres e dos estados são incertos. A
noção de lei é problemática, e mais ainda nos Ensaios do Seigneur de Montaigne, que foi
ele mesmo diplomata, prefeito e juiz de muitas causas: há tanta incerteza “em interpretar as
leis, como em fazê-las” (III, 13, 1065). Esta conclusão, porém, não é apenas jurídica, mas
filosófica: desenvolve-se, aí, uma crítica do universal em geral, que orienta a linguagem
ensaística, desde a cunhagem e o emprego de seus termos, até a organização sintática e a
disposição de sua argumentação. Contudo, tal não impedirá Montaigne de ser um moralista
convicto e resoluto quando julgar necessário (com ecos, sem dúvida, daquela filosofia
moral que, como queriam os antigos, deveria ser parte primeira e principal de todo saber).
Como o pôde ser? Cético em sua recusa de fundamentação última para leis ou princípios
(“Ora, não pode haver princípios para os homens se a divindade não os revelou”: II, 12,
540), o ensaísta buscará apoio, em meio às revoluções do mundo e do homem, no
autoconhecimento, através de uma representação pictórica do ‘eu’. Por este caminho, os
Ensaios compreenderão um estudo fenomenológico da consciência moral, podendo
prescindir, tanto do esquematismo categórico e verticalizante do saber de seu tempo, como
da ciência nova emergente, em favor de uma compreensão estética da personalidade que,
através de sua capacidade plástica, procura ordenar a fecundidade transbordante da
natureza: ele busca, não a lei, mas a atitude correta; não apenas o conceito, mas a imagem
sensível; e não compreender racionalmente a natureza – akatalepsia6– mas, mais além,
segui-la e realizá-la.

“Soubestes meditar e governar vossa vida? Vós realizastes a maior empresa de todas.
Para se mostrar e agir a natureza não precisa de fortuna: ela se mostra igualmente em todos

6
“Eu não compreendo”: uma das frases (número 55) gravadas por Montaigne nas traves de sua
biblioteca.
22

os níveis e atrás, como sem cortina. Compor nossos costumes é nosso oficio, não compor
livros, e ganhar, não batalhas e províncias, mas ordem e tranquilidade em nossa conduta.
Nossa grande e gloriosa obra-prima é viver a propósito” (III, 13, 1108).

Montaigne não aspira, ao contrário de certo naturalismo teológico-humanista seu


contemporâneo, ao conhecimento no nomotético da natureza humana, mas, em nossos
termos, ideográfico: não encontraremos, antes de Montaigne, um estilo tão intensamente
figurado. Pintando um quadro de si mesmo, tentando exprimir e compreender o
relacionamento de sua natureza individual com a natureza geral, ou sua maneira (seu estilo,
onde seu ‘eu’ se materializa), ele se presta, simultaneamente, a estudar o homem:

Les autres forment I'homme; je le recite et en represente un particulier bien mal formé, et
lequel, si j'avoy à façonner de nouveau, je ferois vrayement bien autre qu'il n'est. Meshuy c'est
fait. Or les traits de ma peinture ne forvoyent point, quoy qu'ils se changent et diversifient. Le
monde n'est qu'une branloire perenne. Toutes choses y branlent sans cesse: la terre, les rochers
du Caucase, les pyramides d'Aegypte, et du branle public e du leur. La constance mesme n'est
autre chose qu'un branle plus languissant. Je ne puis asseurer mon object. Il va trouble et
chancelant, d'une yvresse naturelle. Je le prens en ce point, comme il est, en l'instant que je
m'amuse à luy. Je ne peins pas l'estre. Je peins le passage: non un passage d'aage en autre, ou
comme dict le peuple, de sept en sept ans, mais de jour en jour, de minute en minute. Il faut
accommoder mon histoire à l'heure. Je pourray tantost changer, non de fortune seulement, mais
aussi d'intention. C'est un contrerolle de divers et muables accidens et d'imaginations irresoluës
et, quand il y eschet, contraires: soit que je sois autre moy-mesme, soi que je saisisse les
subjects par autres circonstances et considerations. Tant y a que je me contredits bien à
l'adventure, mais la verité, comme disoit Demades, je ne la contredy point. Si mon ame pouvoit
prendre pied, je ne m'essaierois pas, je me resoudrois: elle est tousjours en apprentissage et en
espreuve.
Je propose une vie basse et sans lustre, c'est tout un. On attache aussi bien toute ia
philosophie morale à une vie populaire et privée que à une vie de plus riche estoffe: chaque
homme porte la forme entiere de l'humaine condition7.

7
O trecho foi citado no original por ser, tanto esclarecedor com respeito aos objetivos da investigação
ensaística, como também representativo de sua disposição formal. Esta é a tradução que propomos: “Os
outros formam o homem; eu o descrevo e apresento um particular bem mal formado, e que, se eu tivesse de
formar de novo, o faria, em verdade, bem diferente do que é. Mas hoje já está feito. Ora, os traços de minha
pintura não deixam de ser fiéis, embora mudem e se diversifiquem. O mundo não é senão balouçar perene.
Todas as coisas nele balançam sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, e do
balanço geral e do seu próprio. A constância mesma não é outra coisa senão um balouço mais lento. Eu não
posso fixar meu objeto. Ele vai agitado e cambaleante, por uma embriaguez natural. Tomo-o neste ponto,
como ele está, no instante em que me entretenho com ele. Não pinto o ser. Pinto a passagem: não a passagem
de uma idade para outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas dia a dia, de minuto a minuto. Devo
acomodar minha história à hora. Poderei mudar em breve, não somente de fortuna, mas também de intenção.
E uma vigilância de diversos e mutáveis eventos e de pensamentos indecisos e, quando calha, contrários: ou
porque eu mesmo seja outro, ou porque eu apreenda os objetos por outras circunstâncias e considerações,
Tanto que eu talvez me contradiga bastante, mas a verdade, como dizia Demades, eu jamais contradigo. Se
minha alma pudesse tomar pé, eu não me ensaiaria, eu me resolveria: ela está sempre em aprendizagem e
sendo posta à prova. Eu exponho uma vida inferior e sem brilho, pouco importa. Toda a filosofia moral tanto
se refere a uma vida popular e privada como a uma vida feita de matéria mais preciosa: cada homem porta a
forma inteira da condição humana” (III, 2, 804-805).
23

A construção deste pensamento é rigorosa. Sua formulação lógica permite viva


compreensão do procedimento montaigniano – que já foi descrito, por certos comentadores,
como um método experimental, e científico no sentido moderno do termo. Falta à natureza,
tal como Montaigne no-la apresenta, uma finalidade pressuposta, uma causalidade fechada,
uma ordem natural fixa. Em sua mobilidade e variedade criadoras ela não se deixa
apreender em definitivo pela razão humana, também ela inconstante e mutante, como todo
o resto. Não é, pois, em função da transcendência inatingível da divindade, ou por uma
impotência ontológica da razão humana, que a lei natural não pode ser enunciada, mas,
primeiramente, pela imanência de nosso intelecto e de nosso ser ao devir. “Há pouca
relação de nossas ações, que estão em mutação perpétua, com as leis fixas e imóveis” (III,
13, 1066). Mesmo porque, sendo as leis, em última instância, produtos também do balouçar
natural, com este se movem (II, 12, 579). Isso ilustra muito bem o colapso e a crise dos
ideais do primeiro Renascimento, acontecimento do qual a obra montaigniana é uma das
primeiras e mais claras demonstrações: todos os valores se tornam relativos e a verdade
passa a ter natureza condicional. O ensaísta percebe que, não só se movem a natureza, o
homem e as leis, mas ainda, e isto é o decisivo, que a validade atribuída a tais conceitos e
os valores daí derivados são de origem humana, logo não sobrenatural (“Seja o que for que
nos preguem, e o que for que aprendamos, deveríamos sempre lembrar que é o homem
quem dá e o homem que recebe; é uma mão mortal que nos o apresenta, é uma mão mortal
que o aceita”: II, 12, 563), e históricos. Contudo, de outro lado, a história é, de certa forma,
a própria natureza: o que nos tornamos, somos. Montaigne se empenha, portanto, em
descrever este processo ébrio no qual a natureza vem a ser, fazendo com que sua escrita a
represente em seu desenvolvimento. Então, os traços cambiantes da pintura de sua própria
natureza servirão de espelho para o homem, assim como este se refletirá no quadro
montaigniano. Basicamente, porque “As almas dos imperadores e dos sapateiros são
fundidas no mesmo molde” (II, 12, 476). Esta frase, que foi utilizada como epígrafe do
Journal dos sans-culottes na época da revolução francesa, não prega, porém, a igualdade de
todos os homens. Não por acaso, um dos capítulos do primeiro livro se intitula Da
desigualdade que há entre nós (I, 42). Neste, Montaigne afirma que “(...) há mais distância
de tal a tal homem, do que de tal homem a tal animal: Ah! de um homem a outro, que
distância!” (Terêncio, Eunuco). Assim, o ensaísta, como Terêncio, não iguala os homens,
24

mas assinala a unidade da condição humana: “Sou homem, nada do que é humano me é
estrangeiro” (frase 22 da biblioteca, referida também no texto dos Ensaios, famosa citação
do Heautontimorumenos de Terêncio). Ou seja, a vida de qualquer homem é uma vida a
qual todos os acidentes da vida humana concernem:

“Gostaria mais de me entender bem em mim que em Cícero. Da experiência que eu


tenho de mim, já acho bastante do qual me fazer sábio, se for bom aluno. Quem recorda em
sua memória os excessos de sua cólera passada, e até onde essa febre o levou, vê a fealdade
desta paixão melhor que em Aristóteles, e lhe concebe um ódio mais justo. Quem se lembra
dos males por que passou, daqueles que lhe ameaçaram, das ligeiras ocasiões que lhe
removeram de um estado a outro, se prepara por lá para as mutações futuras e ao
reconhecimento de sua condição. A vida de César não tem mais exemplos que a nossa para
nós; e imperadora, e popular, é sempre uma vida a qual todos os acidentes humanos
concernem. Escutemos somente: nós nos dizemos tudo do qual nós temos principalmente
necessidade” (III, 13, 1073).

O caminho escolhido por Montaigne para estudar o homem enquanto ser moral visa
se ajustar a mobilidade de todas as coisas: não é possível desligar o essencial das
circunstâncias, acidentes e causalidades respectivas, e, por isso, o ensaísta renuncia a uma
definição última de si mesmo ou do homem; ele deve escutar e experimentar a si e ao
mundo sempre de novo, desistindo de uma resolução final em favor do ensaio – meio que
porta seu fim em si. A consciência da instabilidade da razão frente à inconstância universal
abre ao ensaio a dimensão crítica do juízo: estar consciente da miséria da ratio humana, a
qual falta uma luz natural (instintiva ou divina) que esclarecesse suas ideias até a evidência
imediata, é afirmar sua dignidade própria.

“Pois que aprouve a Deus nos dotar de alguma capacidade de raciocínio, a fim de
que, como os animais, nós não fôssemos servilmente sujeitados às leis comuns, mas que nós
nos aplicássemos por julgamento e liberdade voluntária, nós bem devemos dar um pouco à
simples autoridade da natureza, mas não nos deixar tiranicamente levar por ela' somente a
razão deve ter a condução de nossas inclinações. Eu tenho de minha parte, o gosto
estranhamente insensível a estas propensões que são produzidas em nós sem a ordenação e a
intervenção de nosso julgamento” (II, 8, 387).

Encontramos aqui a resposta àquela interrogação acerca de como seguir a natureza:


sequere naturam é seguir a razão. Mas este não era, para o ensaísta, um problema possível
de ser resolvido de uma vez por todas. Ou não era a mesma razão, ou um mau uso dela, a
culpada de nos termos desviado da natureza? Portanto, antes de suprimir superficialmente a
questão, atentemos para o trecho citado: trata-se de passagem significativa, da qual
devemos marcar, antes de tudo, a cooperação entre gosto, razão e julgamento – esta
25

inclinação sensível é fundamental no pensamento montaigniano. Em seguida, notemos a


liberdade da vontade. O trabalho do julgamento é o ensaio: experimento e tentativa em um
discurso que não se fecha; resultado da exigência racional em uma vontade livre, todavia
capaz de advertir a razão mesma a respeito da incerteza de suas próprias leis: “Tu não
enxergas senão a ordem e o governo deste pequeno porão onde te alojas, se é que as
enxergas: (...): é uma lei municipal que alegas, tu não sabes qual é a universal” (II, 12, 523).
“No mais, quantas coisas há em nosso conhecimento, que combatem estas belas regras por
nós talhadas e prescritas à natureza?” (II, 12, 526).
Preservemos, aqui, o paradoxo produtivo entre natureza e razão, ou entre a
afirmação e a negação das leis naturais: nos Ensaios, julgamento e dúvida coexistem. Esta
última, pertencendo à atividade formal daquele (pois, é ela que, possibilitando a reflexão no
pôr as teses e contrapor as antíteses, permite o movimento do julgar), não deve ser
abandonada: “Depois de ter estabelecido a dúvida, querer estabelecer a certeza das opiniões
humanas não seria estabelecer a dúvida e não a certeza, (...)?” (III, 9, 964). Assim, a dúvida
ensaística, momento necessário do exercício da razão montaigniana, não é comparável, nem
à dúvida preliminar aristotélica, nem à dúvida metódica cartesiana. É pelo seu concurso,
principalmente, que a constituição da subjetividade cética de Montaigne será um evento de
singular importância, divergindo da subjetividade racional do espírito científico moderno
(que se devotará à dominação técnica da natureza) já em sua proto-história. De uma parte, o
destacamento reflexivo da razão frente às normas morais operado pela filosofia dos ensaios,
é decisivo para a formação das noções modernas de sujeito e consciência; de outra, mantém
sua diferença, experimentando a verdade subjetiva mesma como caminho de uma relação
mais completa e autêntica do indivíduo com as coisas.
Tendo se colocado de saída no elemento da impermanência universal, Montaigne
considera que, nada permanecendo o mesmo, não é possível a visão compreensiva do todo
(denominada katalepsis pelos estóicos); o homem somente percebe partes e dados relativos,
ou as coisas como inseparáveis da sua reflexão em um olhar – aparências. Dizer, aqui, que
nós não saímos do domínio subjetivo não é pressupor um universo objetivo oculto, uma
natureza fixa, substancial, ou uma essência das coisas portadora, ela sim, de verdade e
subsistindo independentemente de nós (e que, uma vez atingida, dispensasse e dispersasse a
subjetividade do pesquisador ante si mesma), mas expor uma visão da interação homem-
26

mundo que entende o aparecimento do sujeito e do objeto como tais somente no interior e
no desenrolar deste relacionamento mesmo. O ‘eu’, como toda natureza, sofre influência do
tempo em seu ser mesmo; e não é possível, dada nossa condição, nem mesmo distinguir
nitidamente nossa própria mudança e movimentos do fluxo das coisas. Não poderia haver
isolamento do sujeito: pois, por sua natureza relacional, ele está aberto ao fluir da realidade
desde dentro.
Diante deste quadro, o mau uso da razão é aquele que exclui a dúvida.

“(...), mas me tem ensinado a razão que, condenar assim resolutamente uma coisa
como falsa e impossível, é dar-se a vantagem de ter dentro da cabeça os termos e limites da
vontade de Deus e da potência de nossa mãe natureza; e que não há no mundo mais notável
loucura do que reduzi-los à medida de nossa capacidade e suficiência. Se chamamos
monstros ou milagres isto onde nossa razão não pode ir, quantos tais se apresentam
continuamente à nossa vista? Consideremos através de que névoas e de que maneira tateante
somos levados ao conhecimento da maior parte das coisas que temos às mãos: certamente
nós descobriremos que é mais o costume que a ciência, o que nos priva de estranhamento.
Cansados, saciados de ver [o espetáculo do céu], já ninguém se digna a erguer os olhos
para os templos de luz celestes (Lucrécio), e estas coisas lá, se elas nos fossem apresentadas
como novas, nós as acharíamos tanto ou mais incríveis que nenhumas outras, (...)” (I, 27,
179).

A razão que se deixa cegar e enrijecer pelo costume está fora de si: é preciso
diferenciar a lei humana da lei natural (ver, por exemplo: I, 27, 180; I, 36, 225) tendo
sempre em vista que se afastar da natureza é se afastar da razão por empregá-la mal.

“Eu aceito de bom coração, e com reconhecimento, o que a natureza fez por mim, e
me congratulo com ela e louvo-a. Erra-se com esta grande e toda poderosa doadora em
recusar seu dom, em anulá-lo e desfigurá-lo. Tudo bom, ela fez tudo bom” (III, 13, 1113).

Devemos, pois, engajar-nos nesta busca do natural; sua pré-condição é a dúvida


salutar que nos aconselha Montaigne. O objetivo não é a simples afirmação dogmática da
inexistência das leis naturais, mas problematizar nossa atitude frente a estas: tal é a função
básica desta espécie de naturalismo cético distintivo da filosofia ensaística. E aqui está uma
de suas melhores definições:

“Se entendêssemos bem a diferença que há entre o impossível e o inusitado, e entre o


que é contra a ordem do curso da natureza, e contra a opinião comum dos homens, em não
crendo temerariamente, nem também descrendo facilmente, observaríamos a regra: Nada em
excesso, ordenada por Quílon” (I, 27, 180).
27

Se Montaigne recusa qualquer acesso racional garantido ao conhecimento do ser


(“Nós não temos nenhuma comunicação com o ser, (...)”: II, 12, 601), isto não significa
impossibilitar qualquer concordância entre ser e pensamento, porém dar importância
primeira à unidade entre vida e pensamento (que se deve realizar a nível pessoal). O
ensaísta está muito mais empenhado em viver as leis naturais do que em conhecê-las; e o
‘não’ gnoseológico quanto a elas é parte do ‘sim’ moral.

“Eh! Pobre homem, já tens bastantes incômodos necessários, sem os aumentar por
tua invenção: e és bastante miserável de condição, sem o ser por arte! Tens fealdades reais e
essenciais suficientes, sem forjar imaginárias. Achas que estás demasiado a teu gosto, se o
teu gosto não vier a te desagradar? Achas que cumpriste todos os deveres necessários a que
a natureza te convida, e que ela em ti fique falha e ociosa, se tu não te obrigas a novos
deveres? Tu não temes ofender suas leis universais e indubitáveis, e te vanglorias das tuas,
particulares e fantásticas; e quanto mais particulares, incertas e controversas, tanto mais
nisso te esforças. Preocupam-te e prendem-te as regras positivas de tua invenção, e as de tua
paróquia: as de Deus e do mundo não te tocam. Percorre um pouco os exemplos destas
considerações: neles está toda tua vida” (III, 5, 880).

* * *
28

Capítulo II

Contradição e ceticismo nos Ensaios

Desagradável moléstia, de se crer tão forte a ponto de se persuadir que não se possa
crer ao contrário (I, 46, 320).

Por que não nos lembramos de quantas contradições sentimos em nosso próprio
julgamento? De quantas coisas nos serviam ontem de artigos de fé, que hoje nos parecem
fábulas? (I, 27, 182).

Mas nós somos, não sei como, duplos em nós mesmos, o que faz com que aquilo que
cremos, não o cremos, e nem podemos nos desfazer daquilo que condenamos (II, 26, 619).

As contradições, pois, dos julgamentos, não me ofendem, nem me exaltam; elas me


despertam somente e me exercitam (III, 8, 924).

Há grande possibilidade de falar a favor e contra (Homero, Ilíada, XX, 249;


Ensaios I, 47, 281; frase 30 da librarie).
29

A natureza constitui o principio vital de movimento e transformação cujas leis


regem a harmonia sócio-cósmica que sustenta a realidade. Para o homem renascentista esta
noção arcaica possuía força e presença para nós perdida.
Podemos, ainda, entender o que seria a natureza para um paganus (aldeão)? É nos
dado compreender a natura mater renascentista em toda a extensão de sua significação
original? Na verdade, nossos padrões científicos, éticos ou estéticos não servem sequer para
imaginá-la com precisão, quanto mais para descrevê-la com rigor definitivo. Em torno desta
encontrávamos, lá, um saber voltado para o caráter anímico do mundo e da existência,
ligado à Terra e seus ritmos por mágica proximidade; uma religião divinatória,
investigadora da alma do mundo, e uma ética dos fluxos de consciência e das relações
afetivas universais. E tudo isso integrado em um conhecimento que partia frequentemente
de experiências artísticas, e onde se misturavam teoria da arte e teoria da ciência: de um
lado, o pintor para Leonardo da Vinci, era um investigador da natureza; de outro,
Montaigne propunha-se a pintar, através de si mesmo, a natureza humana. A arte constituía,
aí, agir, tanto de artífice, como de artista – significações inextrincavelmente ligadas no
interior das questões vitais.
Assim, o cuidado no uso de certas palavras – em razão, não só da distância
histórica, como também das características singularíssimas da filosofia que ora estudamos –
afigura-se determinante. Vitalismo, por exemplo, é uma designação que, se empregada
irrefletidamente com relação ao pensamento renascentista, pode contribuir apenas para
obscurecer a verdadeira envergadura do fenômeno “vida”, expresso pelo conjunto da
cultura deste período, desde que a própria distinção entre o vivo e o não-vivo não
corresponde aos nossos parâmetros: já a agora renascente mitologia antiga afirmava a vida
e a consciência das coisas, a alma do mundo resistirá até o século XVII (e Kepler, como
Montaigne, acreditava na vida dos astros), a ciência renascentista concebia geração mesmo
entre as pedras, etc. Não é demais, portanto, renovar a advertência contra as generalizações
conceituais fáceis: elas não nos podem fazer perder, nem a virtual completude do quadro,
nem o valioso detalhe.
O Renascimento é o descortinar de novos mundos, tanto exteriores, como interiores:
um fecundo, e sem precedentes, enriquecimento, tanto da imagem do universo, como das
30

possibilidades humanas. “Tua razão não tem em nenhuma outra coisa mais verossimilhança
e fundamento do que quando te persuade da pluralidade dos mundos” (II, 12, 524).
A filosofia de Montaigne busca se orientar em meio a esses vastos e ilimitados
espaços naturais, cujas articulações aparecem, então, como imediatamente inconcebíveis.
Frente a fantástica liberdade e mobilidade que as noções de natureza, homem e sociedade
ora adquirem, a necessidade de ordenação e regulamento é premente; contudo, a absurda e
perturbadora complexidade da realidade, agora percebida de maneira extremamente viva,
não leva os pensadores renascentistas a uma ciência da natureza (como a entendemos hoje),
mas a uma espécie de comunhão mágica e artística com ela: a natureza é, aí, muito mais
principio de saúde, prazer e sabedoria do que algo a ser conhecido.
Entretanto, mais e mais os acontecimentos desta época dificultarão uma visão
harmônica da natureza ou da sociedade: as guerras contínuas (pelas divisões religiosas e
pela agressividade inerente a estados de limites incertos), a peste, o saque de Roma (grande
capital cultural renascentista) em 1527, o nascimento de novas estruturas sociais e
econômicas, etc., favorecem, ao contrário, as imagens de crise e as visões apocalípticas:
“(...) quem não clama que esta máquina se transtorna e que o dia do julgamento nos pega
pela gola, (...)?” (I, 26, 157). Ora, parece ser justamente a tensão entre este panorama e
aquele ideal antigo de equilíbrio e unidade que cria a brilhante e sensual harmonia expressa
pelo pensamento e pela arte do Renascimento.
O saber medieval, suas instituições, hierarquias e certezas, representam
determinações e direcionamentos que, se contrastados com o infinito emergente dos
mundos, são sentidos como sufocantes. Com certeza, trata-se de uma época que
experimenta o pensamento puramente abstrato como limitante: o que é tanto mais
significativo se considerarmos vigoroso impulso que a retórica, a teologia e a lógica
conheceram no período imediatamente anterior. Todo o aparato formal das articulações e
entidades lógicas, legisladoras do discurso e balizadoras da experiência em geral, fica mais
ou menos desacreditado por não dar mais conta dos desdobramentos da realidade em seu
violento alargamento dos horizontes. Mas, se a identificação teológica do belo, bom e
verdadeiro já aparece vazia, deslocada e questionável, as relações que os ligam persistem
nas novas tentativas de estabelecer um acordo entre o conhecimento crescente dos fatos da
31

natureza e a noção diretora do divino, entre o caráter chocante e conflituoso do real e a


poderosa vontade de reconciliação.
As tensões desta época de grandes mudanças são o motor profundo de suas obras.
Do confronto, e da exigência de adequação e conciliação, de imanência e transcendência,
cristianismo e paganismo, revelação e razão, teologia e filosofia, nascem seu saber e sua
arte. Claro que o conjunto dessas oposições abstratas não poderia descrever sem desvios o
clima intelectual real que os pensadores renascentistas experimentaram: as formas da teoria,
desde sua linguagem até seus objetivos e questões, não correspondem as nossas. É certo,
contudo, que a cultura do Renascimento lidou com cisões, quebras, passagens,
ambiguidades: encontramo-las no fundo das obras, e nos atos, como nas falas, dos homens
renascentistas. A justificação e/ou superação das contradições constitui o grande vetor
temático.

“Nossa vida é composta, como a harmonia do mundo, de coisas contrárias, como de


tons diversos, doces e ásperos, agudos e baixos, suaves e fortes. O músico que não amasse
senão uns, que poderia ele dizer? E preciso que ele saiba deles se servir em comum e lhes
misturar. E nós também os bens e os males, que são consubstanciais à nossa vida. Nosso ser
não é possível sem esta mistura, e um lado não é menos necessário que o outro. Tentar
reagir contra a necessidade natural, é imitar a loucura de Ctesiphon, que empreendeu lutar a
pontapés com sua mula” (III, 13, 1089).

Coincidentia oppositorum, coincidência dos opostos, luta e reconciliação dos


contrários, concordia discors, discordia concors: para um tempo que tem na imagem o
principal meio do conhecimento, uma das mais presentes. A lira e o arco de Apolo; a
serpente que, formando um circulo, morde a própria cauda; o bastão de Hermes, com a
figura das duas serpentes que se entrecruzam; o hermafrodito da última carta dos arcanos
maiores do Tarot (o Mundo). A própria Idade Média é repleta destes símbolos. Mas lá eles
eram apenas símbolos, aqui, modelos do conhecimento.
São precisamente as obras de “entrelaçamento” de Leonardo que lhe valem as
famosas acusações de feitiçaria e provocam os boatos acerca de seu pacto com o demônio:
nelas seria manifesta a intenção de reconstituir um mundo em dissolução. Os traços
enigmáticos das novas ideias sobre o homem e o cosmos não se devem somente a busca de
diferentes possibilidades e formas da compreensão e expressão, mas também a necessidade
de defesa em tempos beligerantes e fanáticos: muito já se falou das concepções filosóficas
armadas do século XVI.
32

“Pelo juízo alternativo” (judicio alternante – frase 54), diz uma das frases gravadas
nos pilares da librarie de Montaigne. Convém colocar, aqui, em destaque, esta que é uma
das poucas alusões programáticas do ensaísta com relação à disposição lógica de seu
discurso: ela fala não só a respeito da opção alternativa do ensaio, com respeito a
intransigência formal escolástica, mas se refere também a alternância como
encaminhamento próprio ao raciocínio do ceticismo ensaístico e à economia dos Ensaios. A
indicação é valiosa: Montaigne, geralmente, por exigências internas ao seu pensamento,
como da situação em que viveu, evitará pôr em evidência as articulações lógicas de sua
filosofia.

“Eu estimo que no templo de Palas, como nós vemos em todas outras religiões,
existiam mistérios aparentes para serem mostrados ao povo, e outros mistérios mais secretos
e mais altos, para serem mostrados somente aqueles que aí eram iniciados” (III, 10, 1006).

“As damas cobrem seu seio com um véu, os padres cobrem várias coisas sagradas; os
pintores sombreiam suas obras, para lhes dar mais brilho (lustre); e dizem que o golpe do
Sol e do vento é mais forte por reflexão que direto. O egípcio respondeu sabiamente aquele
que lhe perguntou: que trazes, aí, escondido sob seu manto? – ‘Está escondido sob meu
manto afim de que tu não saibas o que é’. Mas certas outras coisas há que se esconde para se
mostrar” (III, 5, 880).

Central nos Ensaios (e parte do que Montaigne, ocultando, exibe) é a preocupação,


tipicamente renascentista, com a forma: seu pensamento, ao se expor, cria um novo gênero
literário. No entanto, antes de ser uma criação literária, o ensaio montaigniano era um
método para a filosofia moral; sua principal característica é que estilo e ideia aí formam um
todo. A coexistência dos contrários encontra-se no fundo da concepção filosófica
montaigniana, tanto em seu conteúdo e matéria, como em sua forma e ordenação. O
pensamento na Renascença busca quase sempre, além da expressão abstrata, uma
“materialização” simbólica e gráfica: este é um de seus traços essenciais. Por exemplo, se
os Ensaios são um quadro, o primeiro livro é, na própria disposição de seus capítulos, uma
composição maneirista cuja simetria coloca em seu centro o extremo e a origem. Além
disso, o ensaio é uma experiência de sincronia com o movimento natural, que é uma
sintonia com a natureza própria do ensaísta; o ensaio nasce do jogo reflexivo dos contrários
(buscando equilíbrio no se mover oportunamente com o tempo), “(...) como na natureza o
contrário se vivifica pelo seu contrário” (I, 20, 82). O emblema da balança, que figurou na
capa de edição dos Ensaios imediatamente posterior a morte de seu autor, é uma
33

representação imagética excelente do procedimento ensaístico. Montaigne fez cunhar uma


medalha no qual se encontrava o desenho da balança e o dístico “Que sei eu?”. Estas
divisas expressam alguma coisa de fundamental na filosofia dos ensaios. O mote é uma
interrogação que faz convergir uma afirmação impossível, “eu sei”, e uma negação
impossível, “eu não sei”. Notemos a irônica contradição: “Diz-se comumente que a mais
justa partilha que a natureza nos tenha feito de suas graças, foi a do bom senso: pois não há
ninguém que não esteja contente com o que lhe foi distribuído” (II, 17, 657).

“Em suma, para voltar a mim, este único por onde eu me estimo qualquer coisa, é
isto mesmo em que jamais homem se estimou deficiente: meu louvor é vulgar, comum e
popular, pois quem jamais pensou ter falta de bom senso? Esta seria uma proposição que
implicaria em si a contradição. E uma doença que não está jamais onde ela se vê; ela é bem
tenaz e forte, mas a qual, no entanto, o primeiro raio da vista do paciente rompe e dissipa
como o olhar do Sol a um nevoeiro opaco; acusar-se seria escusar-se em tal matéria; e
condenar-se seria absolver-se. (...). Nós reconhecemos facilmente nos outros a vantagem da
coragem, da força corporal, da experiência, da disposição, da beleza: mas a vantagem do
julgamento, nós não a cedemos a ninguém; e as razões de outrem que partem do simples
discernimento natural, nos parece que não teríamos senão que olhar daquele lado lá, que nós
as teríamos achado” (II, 12, 656).

Outros pensam ser o sens8, algo de imediato e inevitavelmente dado; o ensaísta, ao


contrário, trabalha com as oposições internas e externas – que sem cessar se recobrem, se
desfazem, se confundem – para manter o equilíbrio do juízo ilustrado pela balança. Esta já
havia sido empunhada por Pirro de Élis, lendário fundador do ceticismo, e significava a

8
Em Montaigne, o termo sens possui diversas traduções, mas pode, em geral, ser identificado com a
razão. Outros já notaram a semelhança destas passagens com o início do Discurso do Método de Descartes.
Contudo, a idéia de um bom senso, de uma razão natural, comum a todos os homens, é encarada com reservas
por Montaigne. É como se o ensaísta enfatizasse o que Descartes diz no 1º parágrafo do Discurso: “(...) não é
suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem”. Para o pensador renascentista é como se o
procedimento correto fosse algo de constitutivo ao caráter ou a consciência e não algo de exterior que pudesse
ser ou não empregado desta ou daquela forma: o método é o estilo ou a maneira mesma de ser. Nos Ensaios o
uso mesmo do termo ‘comum’ (e seus derivados: comunicação, comunidade, comunicar, etc.) não é unívoco:
ele pode ser pejorativo ou laudatório segundo a situação enfocada. Este é um efeito daquela contradição
interna ao intento de um uso ótimo do bom senso comum anunciada no trecho citado acima: o simples
discernimento natural, apesar de sua obviedade, não tem acesso garantido à verdade. Isso porque o homem,
tendo se afastado da natureza, pode chamar de bom senso o mero seguir cegamente o costume e, assim, vai
frequentemente contra a própria razão: esta dificuldade (que Descartes vê muito bem) é radicalizada por
Montaigne. Segundo Hegel (1970), encontramos aqui a diferença básica entre o ceticismo originário e a
orientação posterior (que encontra seu grande sistematizador em Sexto Empírico): o primeiro se define por
uma recusa radical do dogmatismo do senso comum; o segundo, a ele retorna, atacando a própria filosofia
como guia para a vida. É precisamente porque Montaigne acha lugar em sua filosofia para uma e outra destas
opiniões que, tanto defende Pirro da tradição anedótica a seu respeito (falseadora de sua vida no intento de
atacar sua doutrina), afirmando que este não quis renunciar ao senso comum das “ações comuns” (II, 12, 505),
como também louva Pirro pela indiferença com relação ao usage commun (II, 29, 705). E isso significa “(...)
julgar pela via da razão, não pela voz comum” (I, 31, 202): um dos problemas filosóficos centrais dos Ensaios
consiste em saber como devemos proceder para realizar tal distinção.
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suspensão do julgamento. Porém, diferente deste, para Montaigne esta não é apenas a
imagem de uma abstenção, mas do funcionamento correto do julgamento:

“Nenhuma proposição me espanta, nenhuma crença me fere por mais contrária que
seja à minha. Não há ideia, por mais extravagante e frívola, que não me pareça condizente
com a produção do espírito humano. Nós outros, que privamos nosso julgamento do direito
de sentenciar, consideramos complacentemente as opiniões diversas; e, se nós não lhes
cedemos o julgamento, cedemos facilmente a orelha. Quando um prato está vazio de todo na
balança, eu deixo vacilar o outro sob os sonhos de uma velha. (...). Todas essas quimeras,
que estão em crédito ao nosso redor, merecem ao menos que se escute. Para mim, elas
superam somente a vacuidade [imagem do prato vazio], mas a superam” (III, 8, 923).

Notemos, de passagem, como a relação consigo mesmo do ensaísta passa pela


relação com o outro (e vice-versa). A alternância do discurso montaigniano não exprime
somente o conflito de posições logicamente antagônicas, mas a experiência sucessiva de
exigências que se requerem mutuamente; elas se contradizem para se completar e se
determinar reciprocamente. “Além do que talvez eu tenha alguma obrigação particular a
não dizer senão pela metade, a dizer confusamente, a dizer discordantemente” (III, 9, 996).
O que não devemos fazer é hipostasiar a importância da contradição nos Ensaios até
considerá-la postulado de um meta-discurso acerca do funcionamento da realidade,
tornando-a um “ente” metafísico – isto é exatamente o que Montaigne procurou evitar. A
retórica ensaísta (que se apropria dos instrumentos e procedimentos tradicionais para
invertê-los) é pictórica porque assume representar a imagem do objeto (e não o objeto em
si), desde que este só existe enquanto aparecer, ou em movimento, furtando-se a qualquer
representação absoluta. “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem”; devemos reler aquela
passagem do inicio do segundo ensaio do terceiro livro citada atrás longamente no original,
na qual este processo é descrito. Não se define aí uma opção: marca-se um reconhecimento,
interno ao ensaio, da mobilidade geral da diversidade natural (que também no contraste e
na oposição se organiza e compõe), frente ao qual qualquer discurso apofântico torna-se
problemático. Montaigne contradiz a si mesmo, mas não a verdade, porque esta é a própria
possibilidade de que algo venha a ser verdadeiro no tempo. Isto quer dizer que, ao menos
segundo a definição do principio de não-contradição enunciado na Metafísica (IV, 3) de
Aristóteles (“É impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo sujeito,
no mesmo tempo e na mesma relação”), as contradições ensaísticas não são verdadeiras
contradições: o tempo não sendo o mesmo, a relação ou o ponto de vista não podem ser os
35

mesmos (“É preciso acomodar minha história à hora...”), pelo simples fato de que nada é o
mesmo. Assim, pode haver contrastes aparentes no dizer que são, justamente, frutos da
fidelidade ao aparecer (uma vez que as aparências se contradizem: II, 12, 601). Abstrair do
tempo, do acontecer que é a natureza mesma em seu vir-a-ser, é absolutizar suas formas e
conceitos, e, na sequência, erigir uma Humanitas normativa e modelar a partir da qual se
julga o homem e o universo em bloco.
Não nos escapou, decerto, naquele mesmo longo trecho citado no original, o tom
divergente entre o início “mobilista”, e a frase que afirma a unidade da condição humana
em cada homem. Outros leitores também notaram: ninguém se contradiz de maneira tão
flagrante sem segundas intenções. Renovemos o paradoxo: por um lado, “Somos todos de
pedaços, e de uma contextura tão informe e diversa, que cada peça, cada momento, faz seu
jogo. E se acha tanta diferença de nós a nós mesmos, quanto de nós a outro” (II, 1, 337);
por outro, “(...): não há ninguém, se se escuta, que não descubra em si uma forma sua, uma
forma mestra, que luta contra a educação, e contra a tempestade das paixões que lhe são
contrárias” (III, 2, 811). Os homens renascentistas possuíam certamente os sentidos mais
ativos que os nossos (com exceção, é claro, da visão). Parte de um esforço de encarnação
da realidade no discurso, além de uma forma de materializar e “naturalizar” a linguagem, as
metáforas sensuais são bastante importantes na filosofia montaigniana, mormente, a noção
de escuta (pois se trata de um sentido que se aplica, tanto ao exterior, como ao interior).
Aquela forma mestra de que fala Montaigne não se identifica à consciência: a primeira é a
natureza singular de cada homem; devemos escutá-la ou deixá-la falar (mas não como se
ouvíssemos aí algo de necessariamente “bom”). Nossa consciência (que nasce do costume:
I, 23, 115) adquire na escuta de sua natureza (ou na experiência sensível de suas
inclinações) uma função reflexiva que não se limita à introspecção, pois é através dela, em
seu movimento constitutivo, que participamos do branloire natural. Por isso, a forma
mestra não pode ser completa, direta ou definitivamente expressa: é no decorrer do tempo e
em cada situação que ela se exprimirá; tentar compreendê-la de uma vez por todas seria
deformá-la e perdê-la. “Nenhuma qualidade nos cinge pura e universalmente” (I, 38, 234).
A consciência de si em Montaigne se dá em obra, sua escrita é seu instrumento: ela parte da
certeza de que é preciso considerar o moi em sua irredutibilidade a qualquer instrumental
conceitual fixo, acabado ou universal.
36

A reflexão identidade-alteridade está intimamente ligada, em sua operação, a natural


alternância e coexistência dos contrários no tempo: a este movimento se referem os
destacamentos, distanciamentos e cisões que sofre o “eu” no ato do julgamento, função
formal unificadora cuja existência só se torna possível no presente vivo, natureza. La force
de tout conseil gist au temps (III, 2, 814). A identidade consigo mesmo, pela escuta da
forma mestra pessoal, é um estar em obra que acontece no jogo das resistências e conflitos
inerentes a realidade. Apreender a forma mestra é aprender a harmonia: o relativo
compreende, no tempo, sua disposição relacional. “Não há nada de inútil na natureza; nem
a inutilidade mesma; nada se ingeriu neste universo, que não tenha aí lugar oportuno” (III,
1, 790). A natureza, no devir, acolhe em si todas as contradições; nosso ser mesmo, afirma
a sequência desta última passagem, é palco de tal reunião.
Parece, portanto, que o cético acredita em uma necessidade natural; no entanto,
tanto a causalidade, quanto a finalidade desta providência nos escapam, pois suas relações
constituintes são contingentes:

“Entre nossas disputas, aquela do destino se mistura; e, para ligar as coisas futuras e
nossa própria vontade a determinada e inevitável necessidade, se está ainda sobre este
argumento do tempo passado: Pois que Deus previu que todas as coisas deveriam assim
acontecer, como ele faz sem dúvida, é preciso que elas aconteçam assim. Ao que nossos
mestres respondem que o ver que qualquer coisa acontece, como nós fazemos e Deus
também (pois, tudo lhe estando presente, ele vê mais do que prevê), não significa obrigar o
acontecer: verdadeiramente, nós vemos porque as coisas acontecem, e as coisas não
acontecem porque nós vemos. O acontecimento faz o conhecimento, não o conhecimento o
acontecimento. isto que nós vemos acontecer, acontece; mas poderia de outro modo
acontecer; (...)” (II, 29, 708).

O acontecimento, l'advenement, é soberano, e mesmo Deus parece, aqui, sofrer a


influência de sua necessária contingência. Logo, Montaigne se diz cristão, mas não costuma
se arrepender:

“Em todos os trabalhos, quando eles são passados, seja como for, eu tenho pouco
pesar. Pois esta idéia me livra de pena, que eles deviam assim se passar: lá vão no grande
curso do universo e no encadeamento das causas estóicas; vosso entendimento não pode,
por desejo e imaginação, remover um ponto, sem que se subverta toda ordem das coisas, no
passado e no futuro” (III, 2, 815).

Esta passagem perfaz um contraste, a primeira vista, chocante com a tese da


contingência apresentada na citação imediatamente anterior. Mas o importante, aí, é que
essa necessidade imaginária está a serviço da afirmação da imprevisibilidade da fortuna:
37

“(...) vivemos por acaso” (II, 1, 337). Para compreender tal coexistência de necessidade e
acaso, fundamento da filosofia ensaística, é preciso realizar uma primeira abordagem da
noção central de fortuna – palavra a qual, principalmente, desagradou a Igreja nos Ensaios.
A Fortuna é a grande deusa renascentista; e era já nas suas mãos que o deus
dantesco deixava todos os detalhes da condução do mundo. Figura amiúde presente (e, em
geral, com grande destaque) nas festividades italianas, ela unia em sua significação o
aspecto de sorte enquanto herança devida com o de puro acaso. Para entender a concepção
montaigniana de fortuna (“Não tenho nenhum outro sargento de batalha a dispor minhas
partes senão a fortuna”: II, 10, 409) – que rompe simultaneamente com a providência (ou a
inteligibilidade do governo divino) e com o fatalismo (ou a escravidão à necessidade
inflexível do destino) – devemos contrastá-la com a noção vizinha da virtude. Com efeito,
elas frequentemente aparecerão lado a lado nas cenas das representações populares e nos
palcos mais restritos da teorização humanista; mesclando-se ou opondo-se, as imagens da
virtude e da fortuna sempre se encontrarão de alguma forma em relação, ou referidas uma à
outra, em figurações acerca da liberdade humana frente à necessidade cósmica
(etimologicamente, virtus é a expressão da força natural do homem). Em Montaigne, o
sentido do termo ‘virtude’ e sua compreensão sofrem uma “evolução” mais ou menos clara.
O problema enfrentado em seu ensaio é outra faceta daquele da primeira parte (natureza ou
razão?) e se liga às questões da lei natural e da “forma mestra”. Se, inicialmente, a virtude é
definida como o que necessita, por ser uma espécie de vigor, de contraste e oposição para
se exercer e crescer, posteriormente, o ensaísta louvará uma virtude doce, fácil e
voluptuosa. O ponto de torção é, significativamente, marcado por uma interrogação9: “Será
verdade que, para sermos bons de fato, nos é preciso ser por oculta, natural e universal
propriedade, sem lei, sem razão, sem exemplo?” (II, 11, 428). Tal equivale a perguntar: a
fortuna detém domínio absoluto sobre a vida do homem? Ou regem a razão e a vontade
humanas, ao menos individualmente, seu destino? O ensaio destas indagações é recorrente
na filosofia montaigniana e na renascentista como um todo; a estas retornaremos. Aqui,

9
A interrogação (já recomendada por Sexto Empírico como alternativa anti-dogmática no enunciado
das fórmulas céticas: Hypotyposes I, 189) é um elemento fundamental da atitude crítica frente à linguagem,
básica na filosofia montaigniana. E note-se que o problema de uma definição da virtude aparece
frequentemente em meio a desenvolvimentos de crítica linguística (por exemplo: I, 37, 230; III, 13, 1069). A
virtude, segundo Montaigne, constitui o fim da filosofia (I, 26, 161); mas sua definição envolve uma dupla
dificuldade – linguística e moral; pois este é o tema onde geralmente se mostra mais agudamente a
discordância entre o dizer e o fazer.
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cabe negar uma e outra, para afirmá-las em conjunto: a fortuna, a sorte de cada indivíduo, é
decorrência de sua vertu, expressão de sua natureza própria; esta, porém, por sua vez,
depende da fortuna. A virtude de Sócrates ou Catão resultou de um logo exercício dos
preceitos filosóficos se encontrando com uma bela e rica natureza (II, 11, 426). Se a sorte é
filha da alma, a alma é filha da sorte.
“A inconstância do balouçar diverso da fortuna faz com que ela nos deva apresentar
toda espécie de aspecto” (I, 38, 220). Esta proposição, como a anterior, é uma das maneiras
de enunciar o cruzamento do predeterminado com o eventual na ação e no pensamento
humanos. Repare-se que o autor dos Ensaios usa a mesma palavra para indicar o
movimento da natureza e o da fortuna. Isto é altamente significativo, e ainda mais por ser
essa a frase inicial de um capítulo que se intitula: La fortune se rencontre souvent au train
de la raison. Lidar com a fortuna, segundo o ensaísta, é perceber que ela pode sobrepujar
“(...) em regramento as regras da prudência humana” (I, 34, 222) e, se soubermos escutar,
corrigir, por vezes, nossos projetos de maneira imprevista (I, 34, 221). Saber obrar de
acordo com a fortuna é agir conforme a natureza (guia sábia e justa: III, 13, 1113) e,
portanto, viver à propósito. Providência, acaso e fatalidade são, assim, reunidos e recusados
pela noção ensaística de fortuna, pois, nesta, o necessário e o casual se excluem,
identificando-se como simples reduções discursivas frente ao acontecer, meras abstrações
exteriores ou projeções em relação a um fim premeditado.

“Assim nos acostumamos a dizer com razão que os acontecimentos e conseqüências


dependem, notadamente na guerra, na maior parte, da fortuna, a qual não quer se submeter e
sujeitar à nossa razão e sabedoria, como dizem estes versos:
E o mal concebido é o primeiro, e a sabedoria engana
Frequentemente a fortuna não favorece as causas que o merecem
Mas vai sem discriminação errando em meio a todas
É que há, uma potência superior que nos domina, nos rege
E conduz as coisas mortais segundo suas próprias leis (Manilius, IV, 95)
Mas, vendo bem, parece que nossos desígnios e decisões também dela dependem, e
que a fortuna empenha em sua perturbação e incerteza também nossa razão.
Nós raciocinamos ao acaso e inconsideradamente, diz Timeu em Platão, porque,
como nós, nossos pensamentos têm grande participação no acaso” (I, 47, 286).

Nessa aparente digressão acerca da ideia de fortuna não se resolveu completamente


a questão do entrelaçamento de necessidade e acaso inicialmente colocada, mas já a
esclarecemos em alguma medida, aproveitando para trazer à cena outros problemas e
elementos paralelos. Por exemplo, a importância do recurso ao mito no estudo do
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pensamento renascentista e, especialmente neste caso, onde o detalhe decisivo, que explica
a aparência de contradição entre o contingente e o inevitável, é o uso montaigniano dos
termos fantasie e imagination (que ocorre também nos trechos já citados). Entenderemos
porque mais tarde; para tanto, devemos, antes, examinar outra contraposição fundamental
dos Ensaios: fé e razão.
Delimitação de extrema importância quando se deseja apreciar o projeto filosófico
renascentista (e helenístico) da constituição de uma moral natural (ou seja, através da
identificação de leis naturais, qualificar o “soberano bem” para o homem). Tal equivale a
tentar de uma vez por todas compreender totalmente a natureza humana em seu
relacionamento com o universo. Ao exame desta possibilidade é consagrado o mais longo
dos Ensaios: a Apologia de Raymond Sebond. Seu inicio é demonstrativo de suas intenções
e conteúdo:

“E, em verdade, a ciência coisa importante e útil, aqueles que a desprezam, dão prova
de estupidez; mas eu não estimo, entretanto, seu valor até esta medida extrema que alguns
lhe atribuem, como o filósofo Herillus, que situava nela o soberano bem, e sustentava que
em seu poder estava tornar-nos sábias e contentes: isto não creio, nem o que outros têm dito,
que a ciência é mãe de toda virtude, e que todo vicio é produzido pela ignorância. Se isso é
verdade, é sujeito a uma longa interpretação” (II, 12, 438).

A ciência não é suficiente para nos tornar sábios: esta é uma das teses centrais da
filosofia montaigniana. Recusar aqui o ideal comumente identificado com a perspectiva
socrático-platônica é, para Montaigne, atacar tanto a Reforma, como a moral natural
teológico-racionalista proposta por Sebond (o que faz deste ensaio uma apologia no mínimo
curiosa): ele vê, em ambos os lados, o perigo de uma pretensão exagerada da razão humana.
A Theologia naturalis sive liber creaturarum de Raymond Sebond, publicada em
1484 em Lyon, teve várias edições até o meio do século XVII, influenciando, por exemplo,
Nicolau de Cusa, Charles de Bovelle e Grotius. Ela aparece em oposição à doutrina da
‘dupla verdade’ do averroísmo latino, formando ao lado da corrente iniciada por Raymond
Lulle. Este tentara (a partir, principalmente, das ideias de Santo Anselmo) unir a religião e a
ciência, a filosofia e a teologia, em um saber sem discordâncias. E o faz, porque o
irracionalismo (no que toca a fé) averroísta, separando ciência e religião, abria espaço para
a descrença e o livre movimento da razão; um perigo para a igreja, cuja própria doutrina
oficial tomista limitava a competência da razão, ou da luz natural, aos preambula fidei,
40

aparecendo incapaz de oferecer combate ou constranger à obediência dogmática os frutos


teóricos do averroísmo (como a Escola de Pádua).
Na obra de Sebond, em um dos primeiros atos de nascimento da autonomia
moderna do pensamento, o racionalismo surge do interior da própria teologia: a natureza é
o livro escrito por Deus, inteligível para o homem (enquanto objeto natural, imanente, de
seu conhecimento), ápice da hierarquia dos seres (abaixo somente das “ideias” e de Deus) e
fim de toda criação (pois, razão de ser de todos os seres abaixo). Trata-se de uma posição,
grosso modo, semelhante às expressões correntes da dignitas hominis nas obras dos
teólogos humanistas italianos.
No começo de sua Apologia, Montaigne relata como seu pai lhe encarregara da
tradução do livro de Sebond (sem deixar de ironizar o mau latim em que a obra fora
vertida), presente de um amigo que lá enxergava um bom remédio contra as “novidades” de
Lutero. Não tomemos este motivo ao pé da letra (esta tradução interessava pessoalmente a
Montaigne), nem aquele outro, galantemente cavalheiresco, pelo qual se justifica a própria
Apologia: “Porque muitas pessoas se dedicam à sua leitura, e principalmente as damas, a
quem mais devemos serviço, tenho-me achado frequentemente no ensejo de socorrê-las”
(II, 12, 440). E não nos deixemos enganar pelo título, aparentemente programático, do
ensaio: a Apologia é uma máquina de guerra bastante complexa, que desfere o golpe de
misericórdia em todo um mundo intelectual; a intenção real não é apenas defender Sebond.
Pois, defendendo-o, Montaigne destruirá a pretensão deste em fundar a fé na razão; mas,
mostrará que, pelos mesmos motivos, seus acusadores nada podem lhe opor, desde que esta
última, por si só, nada de absolutamente certo pode fundar: “(...) todos os objetos
igualmente, e a natureza em geral desaprovam sua jurisdição e intromissão” (449). No
entanto, toda a exposição será efetuada por meio da pura e simples razão humana, e sem o
recurso a qualquer transcendência:

“Consideremos, pois, agora, o homem só, sem socorro estrangeiro, armado somente
de suas armas, e desprovido da graça e conhecimento divino, que é toda sua honra, sua força
e o fundamento de seu ser. Vejamos quanto há de solidez neste belo equipamento. Que ele
me faça entender, pela força de sua razão, sobre que fundamentos erigiu essas grandes
vantagens que ele pensa ter sobre as outras criaturas. Quem o persuadiu de que este
movimento admirável da abóboda celeste, a luz eterna desses fachos rolando tão altaneiros
sobre sua cabeça, os movimentos espantosos deste mar infinito, sejam estabelecidos e se
continuem tantos séculos para sua comodidade e para seu serviço? É possível imaginar algo
tão ridículo quanto esta mísera e mesquinha criatura, que não é nem mesmo mestra de si,
41

exposta às ofensas de todas as coisas, dizer-se senhora e imperadora do universo, do qual é


nem a mínima parte é capaz de conhecer, e muito menos de comandar?” (ibid.)

O que é, então, a razão?

“Eu chamo razão a essa aparência de discurso que cada um forja em si: esta razão, da
qual pode haver cem contrárias em torno de um mesmo objeto, é um instrumento de
chumbo e de cera, alongável, dobrável e acomodável a todas as perspectivas e a todas as
medidas: não é preciso senão a habilidade que o saiba contorcer” (565).

Não devemos, porém, tomar o uso do termo ‘razão’ neste ensaio distante da
refutação à qual Montaigne havia, de inicio, se proposto. Em função disso, deve-se apreciar
o discurso violentamente destruidor da Apologia, em suas marchas e contramarchas através
dos diversos níveis da dúvida. Na última vez que o nome de Sebond aparece neste ensaio (e
suas teses já terão sido esquecidas bem antes), ainda faltam muitas páginas para seu fim e o
ensaísta encerra sua defesa, dirigindo-se, reza a tradição, a Margarida de Valois (futura
mulher de Henrique IV):

“Vós, por quem eu tomei a pena de estender tão longo texto contra meu costume, não
vos recuseis defender vosso Sebond pela forma ordinária de argumentar com a qual fostes
todos os dias instruída, e exercereis nisto vosso espírito e vosso estudo: pois este último
golpe de esgrima aqui, não se deve empregar que como um remédio extremo. E um golpe
desesperado, no qual é preciso abandonar vossas armas para fazer perder a vosso adversário
as dele, e uma habilidade secreta, da qual é preciso se servir raramente e moderadamente. É
grande temeridade perder a vós mesmas para perder a outro” (557).

Este procedimento aparentemente abortivo, na realidade, parteja. Não por acaso,


Montaigne foi considerado um racionalista por boa parte de seus intérpretes. Encontramos,
nos Ensaios, uma concepção de razão que faz da arte de lidar com a contradição uma de
suas mais importantes habilidades. O nome ‘razão’ aparece 472 vezes nos Ensaios
(segundo a Concordance de Montaigne de Leake) e, entre os substantivos, somente
‘homem’ e ‘homens’ têm maior número de ocorrências. Os usos contraditórios, claramente
propositais, deste termo e seus derivados, além de serem um efeito e parte da empresa
crítica peculiar ao ensaio, obedecem a um desígnio expresso (por exemplo: III, 5, 873) de
renovação, enriquecimento e adensamento geral da linguagem pela investigação das suas
possibilidades inexploradas. Montaigne evita determinar estreitamente seus termos. Faltava
precisão semântica ao vocabulário teórico do século XVI e o ensaísta utiliza exatamente
este elemento de imprecisão e mobilidade da língua em proveito da expressão de suas
42

ideias. O termo com o qual isto acontece com maior clareza é também aquele no qual este
efeito tem maior importância: razão – “instrumento flexível, contornável e acomodável a
toda forma” (II, 12, 539). E quando esta se volta contra si mesma, o faz em virtude de uma
exigência crítica que lhe pertence: “Nós o propusemos [o homem] a si mesmo, e sua razão,
à sua razão, (...)” (557). Não encontraremos no autor dos Ensaios um irracionalista; ao
contrário, ele se pergunta, por que não estender a participação nesta faculdade racional aos
animais (tradicional tópico cético desde os gregos) e mesmo aos astros?

“Dir-nos-ão que nós não vimos nenhuma outra criatura senão o homem no uso de
uma alma racional? Et quoy! Já vimos algo semelhante ao sol? Deixa ele de ser, por que nós
não vimos nada semelhante? E seus movimentos de ser, por que não há parecidos? Se o que
nós não vemos, não é, nossa ciência é maravilhosamente curta: Tanto são estreitos os
limites de nosso espírito” (Cícero, De natura deorum I, xxxi) (452).

O ensaio, como Montaigne o criou e utilizou, toma por motivadora uma intenção
moral cujo fim principal não é a investigação epistemológica, mas a formação de sua vida
pessoal: “Eu empenhei todos os meus esforços em formar minha vida. aí estão meu oficio e
minha obra” (II, 37, 784). E já no Aviso ao leitor somos desencorajados de nos ocupar de
matéria tão vã, que nada busca nos ensinar. “Eu não ensino, eu narro” (III, 2, 806). Isto
porque, segundo aquele intuito moral e a mirada psicológica a ele subjacente, o problema
cognitivo assume um caráter completamente diverso do que teria em uma teoria do
conhecimento formal: os desacordos do homem consigo mesmo se evidenciam de maneira
chocante (as contradições entre desejo e vontade; as incongruências entre os motivos e os
atos; a diversidade dos hábitos e ideias; os problemas da memória, da mentira, do prazer,
etc.) como consubstanciais ao seu ser, e a mera teoria não os resolve. “O homem em tudo e
em toda parte, não é senão amálgama e miscelânea” (II, 20, 675). A alma humana não é
puramente racional – e qualquer outra definição seria igualmente inútil: “Sei melhor o que é
homem do que o que é animal, ou mortal, ou racional” (III, 13, 1069) –, mas um concerto
de faculdades, para o qual é muito mais importante a harmonia do que o conhecimento (este
valendo sempre, em última instância, pela maneira com que é empregado; como em geral
nossas faculdades: “(...) eu aumento sempre esta crença de que a maior parte das faculdades
de nossa alma, como nós as empregamos, perturbam mais a tranquilidade da vida do que a
servem”: II, 37, 760). Daí a dimensão estética dos Ensaios: o ensaísta procura, fazendo de
seu texto quadro e espelho, provocar pela sua escrita uma espécie de “pathos harmônico”
43

que materialmente expresse o ideal moral de seu autor, servindo de auxilio (para si, tanto
quanto para o leitor) na forja da personalidade. A razão não poderia deixar de ser, aí, fator
decisivo (“(...): pois escravo não devo ser senão da razão, ainda que não o consiga bem”:
III, 1, 794), mas se trata de uma maneira particular de pô-la em ação. Para bem a discernir,
talvez o momento mais oportuno da obra seja quando, na Apologia, a razão é contrastada
com outra capacidade humana: a fé.
Neste mais longo dos ensaios, a fé, louvada e afirmada, é – como qualquer via
transcendental – posta de lado todo o tempo. Ela constitui um domínio não permeável à
razão e à lógica humanas: essa é a conclusão racional do ensaio, que não teoriza acerca das
possibilidades desta “abertura” não limitada pela razão. A fé funciona, no ensaio, como a
forma superior da incerteza, em um nível além da jurisdição racional: como Deus, ela faz
parte do indizível. Esse aparente irracionalismo de fundo se motiva, precisamente, pelas
exigências da razão.
A recusa de interpretar racionalmente os mistérios, revelações e dogmas cristãos foi
designada, em tempos posteriores a Montaigne, com o nome de fideísmo. Essa separação
do saber e da fé pôde servir, ao longo da história, a diversos interesses. A própria doutrina
tomista, reconhecendo certa autonomia à razão, fora já uma abertura na ortodoxia católica;
concepções que separavam o saber da fé estiveram lado a lado com a escolástica, desde
seus inícios até seu declínio (por exemplo, em Duns Scot, Ockham e Roger Bacon). No
momento de Montaigne, a escola de Pádua (que teve grande influência sobre o meio
cultural francês) é o maior exemplo do humanismo racionalista de inspiração averroísta.
Fende-se, mais e mais, a milenar ordem espiritual da igreja; abre-se espaço para a liberdade
crítica da razão sobre si mesma, pelo distanciamento com relação aos seus próprios meios e
fins. É certo, também, que uma nova maneira de encarar a religião se faz cada vez mais
presente, ao lado do nominalismo, do interesse pela ciência experimental e, o que é de
particular importância aqui, do ceticismo pirrônico.
Na Itália e na França do século XVI as ideias fideístas se encontram difundidas na
poesia e na literatura em geral, mas basta um olhar para as concepções antropomorfas e
antropocêntricas de, por exemplo, um paduano famoso como Pomponazzi, para se ter
certeza da singularidade da posição montaigniana: o homem está no centro da investigação
ensaística (“... neste estudo que faço, do qual o sujeito é o homem, (...)”: II, 17, 634), mas
44

de nenhuma forma no centro do universo. Para Pomponazzi, contudo, Deus é a lei eterna
imposta através de uma providência natural voltada para a utilidade humana; cabe à
astrologia, e a outras ciências divinatórias, conhecer esta necessidade da natureza que tem
por fim o homem. Montaigne, retomando Xenófanes (que sabe, por Diógenes Laércio e
Sexto Empírico, ter sido considerado um precursor do ceticismo), ridiculariza os
antropomorfismos antigos, medievais e renascentistas: “(...), para nós são os destinos, para
nós o mundo; ele luz, ele troveja por nós; e o criador e as criaturas, tudo é por nós. É o fim
e o ponto que visa a universalidade das coisas” (II, 12, 533). A conclusão montaigniana é
extraordinária em sua época: “Os olhos humanos não podem perceber as coisas senão pelas
formas de seu conhecimento” (535). Isso não significa dar crédito àquela presunção da
razão humana, mas, bem ao inverso, denunciá-la:

“Verdadeiramente Protágoras nos contava belas, fazendo do homem a medida de


todas as coisas, o qual jamais nem mesmo a sua soube. Se ele não o soube, sua dignidade
não permitirá que outra criatura tenha essa vantagem. Ora, sendo ele em si tão contraditório,
subvertendo sem cessar um julgamento por outro, essa favorável proposição não era senão
uma gargalhada que nos leva a concluir por necessidade a nulidade do compasso e do
medidor” (557).

O fideísmo serviu a muitas causas: Montaigne, é certo, se preocupou com a defesa


do catolicismo (mesmo que de uma perspectiva heterodoxa) contra o protestantismo.
Porém, sem inclinação fanática (“Nós somos cristãos como perigordinos ou alemães”: 445),
mas a partir de convicções políticas (os primeiros parágrafos da Apologia já o demonstram)
que encontram fundamentação em sua filosofia.
Interessa ressaltar é a coalizão entre fideísmo e ceticismo na Apologia, e, mais
precisamente, o encontro de Montaigne com a obra de Sexto Empírico. Cruzamento de
importância, não apenas para a filosofia dos Ensaios, mas também para a história da
filosofia moderna. Pois, quando a reforma levanta a questão da fé (seu papel e alcance
ontológico) acontece aí o movimento inicial de uma crise muito maior, que atingirá seu
auge no decorrer dos dois séculos seguintes, com destaque particular para a primeira
metade do século XVII, mas cujos ecos serão ouvidos, nitidamente, em pleno Iluminismo.
O acidente histórico da redescoberta do texto do médico grego no momento crucial da
disputa entre católicos e protestantes é decisivo: a querela em torno da verdade teológica
suscitará a interrogação mais fundamental acerca do critério de verdade e conhecimento.
Neste campo de batalha, o arsenal cético das Hypotyposes de Sexto será devastador.
45

Pico della Mirandola (de quem Montaigne parece não ter conhecido a obra) é o
primeiro a fazer um uso significante da argumentação cética de Sexto; antes dele o
ceticismo era conhecido principalmente pelas mãos de Cícero, Luciano, Diógenes Laércio e
Galeno. Mas, em Pico, o ceticismo serve para desacreditar toda tradição filosófica pagã
(alguns historiadores insistem, aqui, na influência de Savonarola). Com intenção
semelhante aparece Cornelius Agrippa von Nettesheim: pela revelação cristã como única
fonte da verdade, e contra a filosofia e o conhecimento em geral, fontes das vicissitudes de
Adão. A originalidade dos Ensaios é, ao contrário de certas tendências rigidamente anti-
intelectualistas mais ou menos difundidas no Renascimento, desenvolver a dúvida pelo
raciocínio cuidadoso, chegando, com método, a algumas dificuldades filosóficas cruciais.
Ceticismo e fideísmo são cronologicamente anteriores, na obra montaigniana, à
Apologia; mas, aqui, marcadamente, a crítica da ciência atinge nitidez favorável ao exame.
Devemos notar, em primeiro lugar, que tal crítica é, em certa medida, pressuposta, isto é, se
desenvolve a partir daquela intenção primeira de provar a virtude como algo diferente
(embora não excludente) da ciência. Para tanto, passa a contradizer as certezas do saber
renascentista em um discurso cético corrosivo, utilizando praticamente todos os modos da
suspensão do juízo, e cuja ponta de lança é formada por dois modelos básicos de
argumentação: o ‘círculo’ e o ‘terceiro homem’ (padrões clássicos de argumentação,
utilizados, por exemplo, por Platão, pelos sofistas e pelos céticos). Por eles, e pela ironia,
pela reductio ad absurdum, e diversas outras figuras, trata-se de demonstrar como qualquer
critério de verdade e certeza cai, inevitavelmente, ou em um raciocínio hiperbólico,
circular, ou leva a um regresso ao infinito na procura de paradigmas ou bases seguras. Daí
que alguns filósofos antigos tivessem a opinião, nos conta o ensaísta, de situar “o soberano
bem no reconhecimento da fraqueza de nosso julgamento” (491). Chegamos assim a uma
definição completamente oposta àquela de Herillus, que identificava inteiramente virtude,
ciência e soberano bem. As contradições formam a tessitura móvel da Apologia: é com
pretensa ignorância que Montaigne fala da teologia e da ciência, e discursa acerca da
ignorância com indisfarçável ciência. É neste jogo complexo de balanços e contrastes,
amplo exercício de lógica e estilo, que se purificará a filosofia montaigniana. Pois este
ensaio tem um peso considerável no conjunto da obra: além de sua extensão, ele é como um
centro de forças prenhe de possibilidades, que faz o pensamento ensaístico avançar e
46

também recuar, corrigindo-se; uma massa fértil de máximas, aforismos, versos, exemplos,
epigramas, reflexões, etc. – solo onde a filosofia dos ensaios finca suas raízes. Lá, a razão é
vista como uma espécie de capacidade discursiva que pode ser ludicamente contraposta a si
mesma, criando um espaço no qual toda linguagem se torna gesto (454) para a dramaturgia
ensaística do pensamento10.
Se Montaigne procura a si mesmo nos Ensaios, neste “anti-ensaio” ele parece com
prazer se perder: as razões (“chamo razão aos nossos devaneios e sonhos, com a licença da
filosofia, que diz que mesmo o tolo e o malvado deliram pela razão, mas que é uma razão
de forma particular”: 523) mais contraditórias vêm à cena, desempenhando alternadamente
seus papéis. Como espectador parece se deleitar o ensaísta com o desfile dessa miríade de
filosofias, ciências, civilizações, costumes, homens, deuses e animais; cada novo
personagem, mais um motivo de dúvida e ensaio.
Julgar racionalmente não é crer que necessariamente deva nossa razão compreender
as razões últimas ou a essência das coisas: esse, na verdade, é o erro, o pressuposto
presunçoso (“A presunção é nossa doença natural e original”: 452) que nos leva a empregar
de maneira errada esta perigosa lâmina de dois gumes chamada razão (654). Na Apologia
se ensaia a justa medida entre o conhecer e o ignorar: “Um personagem sapiente não é
sapiente em tudo; mas o homem de talento é em tudo talentoso, e em ignorar mesmo” (III,
2, 806). Uma excelente mediocridade (em grego no original: III, 13, 1103) – que é muito
mais inclusão do que exclusão dos contrários – define para o ensaísta aquele antigo ideal da

10
Em Montaigne, as palavras raison e discours (que não por acaso em conjunto traduzem o termo
grego logos) são geralmente sinônimas. A razão humana é uma razão discursiva que, quando tenta
teoricamente conhecer o que as coisas absolutamente são e disserta acerca das razões do ser, nos engana. Ela
encontra seu domínio próprio trabalhando como razão prática (em conjunção com a vontade e subordinada ao
julgamento), com “jurisdição privada” (pessoal), formada e baseada em nossa experiência, e voltada para a
condução de nossa vida. Deixar de lado a pretensão dominadora da razão, a fantasia filosófica de “(...) que a
razão humana é a controladora geral de tudo que está fora e dentro da abóboda celeste, que abraça tudo, que
pode tudo, por meio da qual tudo se sabe e se conhece” (541), é usar racionalmente, com o perdão da
redundância, a razão: é esta função autocrítica que é realçada nas contradições da Apologia. Ora, para
Montaigne, por um lado, o texto constitui uma janela para o mundo e para a alma humana: o ensaio é um
espelho, um palco, uma tela, uma forma de intervir na realidade reconstruindo-a na representação. Mas, por
outro, a linguagem serve ao pensamento; este fruto da unidade complexa de nossa personalidade pode se
exercer além de toda palavra (pois é também, e talvez principalmente, produtor de imagens). Ter consciência
do valor subordinado do discurso é tomar posse deste de maneira muito mais segura: é vê-lo como gesto
humano particular, enxergando nele o homem e o pensamento por trás das palavras, e poder, através da
atenção aos vários discursos, esclarecer nosso próprio julgamento. Assim, a dimensão estética da linguagem
será revalorizada, através de sua inscrição no quadro maior dos 'movimentos' (II, 12, 454) de comunicação (da
qual também participam os animais, de acordo com sua inteligência própria) no qual as atitudes e o silêncio
podem ser mais significativos que uma torrente de palavras.
47

harmonia11. Trata-se de encontrar a medida própria e oportuna entre as discordiae


concordes naturais (dor e prazer, sabedoria e loucura, vida e morte, etc.) para que a balança,
imagem emblemática do julgamento, possa se equilibrar com justiça. Principalmente, por
isso, o autoconhecimento, a experiência da própria natureza, será essencial para a filosofia
montaigniana: ela desvela certos desregramentos do pensamento (II, 12, 460), ocasionados
pelo uso errôneo da liberdade de nossa imaginação, que poderiam nos levar a uma elevação
desmedida, fazendo-nos pretender uma posição privilegiada para o homem no cosmos
(“Nós não estamos, nem acima, nem abaixo do resto”: 459) e uma falsa e perigosa certeza
para sua razão. O desconhecimento de nossa condição e a avaliação descentrada de nosso
ser geram aquela ilusão ontológica à qual já nos referimos: ela resulta do trato descuidada
com a palavra ‘ser’, termo fundamentalmente enganador, que tem o poder – se mal
compreendido e empregado – de engendrar um esquecimento do caráter temporal da
realidade e, por aí, da mobilidade criativa primordial e constitutiva da natureza (na qual não
há nada de permanente ou subsistente - II, 12, 603 - e onde nada é igual).
A combinação de fideísmo e ceticismo na Apologia parece servir, basicamente, para
mostrar que o discurso apofântico cabe somente à fé (e somente a ela deve sua certeza,
ainda que devamos sempre apoiar racionalmente sua possibilidade) e assim reconduzir a
razão ao que o ensaísta considera seu domínio próprio e seu alcance virtual: aperfeiçoar sua
conduta, sua atitude, sua personalidade, favorecendo pelo exemplo, aqueles que buscam o
mesmo fim. Não havendo um critério universal definitivo de verdade, dada a variedade e
mutabilidade natural de um todo inapreensível, os Ensaios – “(...): matéria de opinião, não
matéria de fé; (...)”: I, 56, 323 – pretendem somente ilustrar as opiniões modestamente
humanas de seu autor. Deste modo, mesmo se o ceticismo montaigniano nunca é limitado

11
Montaigne usa ‘medíocre’ também como depreciativo (por exemplo: II, 17, 658). Sua noção de
equilíbrio moral como coexistência harmônica de opostos se refere tanto à ética socrática como à aristotélica
(um bom exemplo é: II, 20, 674). Vejamos como o ensaísta, discorrendo acerca da educação ideal a ser dada a
um seu hipotético aluno (no ensaio Da educação das crianças, endereçado à Condessa de Gurson e ao seu
futuro filho), louva o discípulo mais famoso de Sócrates, Alcebíades - como modelo: “Que ele [o aluno] possa
fazer todas as coisas, e não ame fazer senão as boas. Os filósofos mesmos não acham louvável em Calistenes
ter perdido as boas graças do grande Alexandre, seu senhor, por não ter querido beber tanto quanto ele. Ele [o
aluno] rirá, caçoará e debochará com seu príncipe. Quero que no deboche mesmo ele ultrapasse em vigor e
firmeza seus companheiros, e que não deixe de fazer o mal por falta de força ou de ciência, mas por falta de
vontade. Há grande diferença entre não querer e não saber fazer o mal (Sêneca, Cartas). (...). Eu
frequentemente notei com grande admiração a maravilhosa natureza de Alcibíades, de se transformar tão
facilmente segundo maneiras tão diversas, sem prejuízo de sua saúde: excedendo tanto a suntuosidade e
pompa persa, quanto a austeridade e frugalidade lacedemônia: tão puritano em Esparta, como voluptuoso na
Jônia” (I, 26, 167; ver também II, 36, 757).
48

por qualquer verdade revelada, ao separar fé e razão (permanecendo no âmbito desta), torna
flutuantes as fronteiras entre crença e certeza.
Ora, os juízos universais parecem a Montaigne expressar muito mais a impotência
do homem do que sua capacidade de conhecer a realidade: pois não há, nesta, substância
fixa que lhes sirva de substrato referencial, nem razão universal transcendente
imediatamente acessível ao homem que os garanta. A forma ensaística coaduna-se com a
ideia montaigniana de natureza. O ensaísta procede como que salientando, em toda
tentativa de universalização, a particularidade; o que não significa invalidar toda
generalização e conceituação (já que isso, como é óbvio, seria impossibilitar a própria
linguagem), mas apontar decididamente o particular, sensível e temporal, como a porta e a
via pelas quais se chega ao universal e pelas quais este se manifesta. O ensaio de nosso
julgamento (I, 50, 301) deve nos auxiliar a, racionalmente, conservar a liberdade da
experiência sensível de sintonia e sincronia com o ritmo do “balouçar” natural segundo a
ocasião. Trata-se de fazer incidir sobre o juízo as exigências de medida, proporção e senso
(“Isto que opino é ainda para declarar a medida de minha vista, não a medida das coisas”:
II, 10, 410), adquiridas pela observação, e expressando serena confiança na natureza e
aceitação afirmativa de suas contradições. O projeto ético-estético do ceticismo ensaístico
busca reconciliar o homem com o devir e com sua sensibilidade.
Ao final da Apologia, após a travessia do oceano balouçante da dúvida, deparamo-
nos com a imagem de um Deus imóvel em seu eterno, incriado e verdadeiro ser: “Pelo que
é preciso concluir que somente Deus é, (...) (II, 12, 603). Nós nos enganamos “(...),
tomando o que aparece pelo que é, (...)”. Em sua impermanência, natureza e tempo não são
realmente; só Deus permanece na eternidade imutável do verdadeiro ser. A função
metafísica desta figura divina, pelo rompimento mesmo que esta opera no desenvolvimento
do texto, parece ser completamente negativa – “Nós não temos nenhuma comunicação com
o ser” 12 –, mas seu peso ético e seu efeito estético não devem ser desprezados. Erro seria
esperar, em consequência deste Deus, instruções acerca da ascensão do homem ao divino,
ou esclarecimentos sobre a constituição do mundo pela emanação do Uno (esquemas
característicos da época): o que deve ser ressaltado nesta divindade, afora a separação

12
II, 12, 601: Notemos como esta conclusão migra da Apologia, décimo-segundo capítulo do segundo
livro da primeira edição, para o terceiro capítulo do primeiro livro na segunda edição (pg. 17): foi este
movimento de avanço e recuo característico da escrita ensaística que assinalei há pouco.
49

radical do humano e do divino, é a religiosidade pagã de Plutarco de quem o ensaísta toma


este trecho final (“... esta conclusão tão religiosa de um homem pagão...”: II, 12, 603) que,
por si só, e em sua situação no conjunto da argumentação da Apologia, ensaia o julgamento
através da contradição e coincidência entre movimento e imobilidade, paganismo e
cristianismo, imanência e transcendência. Não só a sequência da argumentação e a
articulação das suas partes importam nos Ensaios, mas cada elemento vale por si e por seu
posicionamento particular no quadro total da montagem deste texto pictórico. Montaigne
“dá peso” à sua balança, equilibrando-a com este Deus que além de não ser garantia do
conhecimento humano, marca sua impossibilidade mesma, nos moldes, tanto da ciência per
causas escolástico-aristotélica, como naqueles do itinerário da mente até o Um da mística
neoplatônica. Fica evidente, paralelamente, a disposição icônica do ensaio, segundo a qual
quadros menores se inscrevem em quadros maiores formando painéis onde cada detalhe é
importante e nos quais cada traço se movimenta se opondo e se compondo com os outros.
Outras oposições equilibram “(...) o fim deste longo e enfadonho discurso, que me
forneceria matéria sem fim" (II, 12, 603 - grifo meu): a decisiva conclui que o homem
deve, e não deve, elevar-se acima da humanidade (604). E a última palavra do ensaísta é
metamorphose. Todos estes pontos são significativos, pois, se explicar a natureza, Deus ou
a união dos contrários seria exceder o que se pode dizer, a aparência de verdade evocada
pela linguagem (como eco de uma atitude moral) possui um valor reflexo de afecção,
portadora indireta do verdadeiro, inexplicável, mas sensível. E dada a separação entre
humano e divino, só resta ao homem voltar-se para a plenitude de sua experiência sensível:

“Nesta universalidade, eu me deixo ignorante e negligentemente manejar pela lei


geral do mundo. Conhecê-la-ei suficientemente quando a sentir. Minha ciência não saberia
fazê-la mudar de rota; ela não se modificaria por mim. Seria loucura esperá-lo, e maior
loucura ainda aborrecer-se, pois ela é necessariamente semelhante, pública e comum. A
bondade e capacidade do governante devem pura e plenamente nos descarregar da
preocupação com seu governo” (III, 13, 1073).

Esta passagem, tirada do último capítulo dos Ensaios, fala de uma via sensível para
a moral, a qual não deve de forma alguma ser vista como uma função emocional opondo-se
à racional, porém como a própria razão no uso integral de suas acepções congêneres de
senso e sentido.
É a luz daquela antinomia entre fé e razão que podemos entender os problemas da
lei natural e da fortuna; se conhecêssemos Deus e a Natureza de maneira evidente,
50

alcançaríamos a certeza com relação a estas questões fundamentais; como tal não parece
possível a Montaigne, temos no ensaio opinião e crença. Precisamente esta perspectiva abre
caminho à sensação: se a verdade não pode ser diretamente fixada em uma fórmula
universal, a tarefa da linguagem ensaística é desta obliquamente se aproximar em todas as
direções, pintando-a em suas metamorfoses. O deus no final da Apologia mostra como o
estilo impressionista de Montaigne não progride de forma apenas logicamente linear, mas
também vertical, figurativa, permitindo ao ensaio representar fisicamente o pensamento
expresso. Como sabemos, as contradições renascentistas acusam, em geral, a convivência, a
luta e a adequação do novo com o antigo. Mas há algo mais em Montaigne: o ser imóvel é a
grande moldura da natureza móvel da Apologia; seu fecho denuncia o poeta e o pintor por
trás do filósofo. O que faltava ao gigantesco painel montaigniano da dúvida e do
deslocamento senão o verdadeiro ser, a completude de um Deus imutável e imóvel, un
realement estant, qui, par un seul maintenant emplit le tousjours (II, 12, 603)? Ele tanto é
parte do movimento da Apologia, como, por assim dizer, sua moldura; nele, a atomização
característica da obra maneirista vem ao encontro de razões filosóficas profundas.
Parmênides, sabemos, foi considerado, na Antiguidade, precursor do ceticismo, mesmo
tendo entremeado “(...) seu estilo de cadências dogmáticas” (II, 12, 509). Todas as
referências a Parmênides na obra montaigniana estão neste ensaio: e não por acaso, já que
este é um texto lírico, no sentido antigo. No Renascimento, tanto a filosofia se torna
poética, como a poesia filosófica. O ideal do poeta vates como modelo poético do século
XVI, e seu parentesco com o filósofo, na busca de compreensão e expressão da harmonia
universal, parece ser um centro oculto da Apologia.
É sintomático que Montaigne cite de Plutarco (o mesmo de quem o ensaísta tanto
toma no final deste capítulo) a afirmação de que a metafísica de nada serve (II, 12, 508).
Bem sabe o cético que esta não é toda a verdade, e por isso a pôs na boca de outro. A
metafísica não é possível; a metafísica é possível. De qualquer modo, se não nos
comunicamos com as essências eternas, estamos ligados ao fenômeno – e, aqui, “(...) ser
consiste em movimento e ação” (II, 8, 386).

* * *
51

Capítulo III

Imaginação, verdade e ceticismo

Minha filosofia está na ação, no uso natural e presente: pouco na imaginação (III, 5, 842).

Eu proponho fantasias informes e incertas, como fazem aqueles que publicam


questões duvidosas, para serem debatidas nas escolas: não para estabelecer a verdade,
mas para procurá-la (I, 56, 317).
52

A filosofia dos Ensaios não se identifica completamente, e nem pode ser


confundida, com o ceticismo antigo (“o mais sábio partido dos filósofos”: II, 15, 612). Mas
o método ensaístico, ou, como talvez preferisse seu autor, sua ‘maneira’ de lidar com as
questões fundamentais da filosofia, possui inconfundível parentesco com a atitude cética.
Vejamos algumas consonâncias básicas.
Primeiro, a ideia de uma investigação que não se detém: “Quem quer que procure
qualquer coisa chega a este ponto: ou diz que a encontrou, ou que não se pode encontrá-la,
ou que está ainda em busca. Toda filosofia se reparte nestes trás gêneros. Seu intento é
procurar a verdade, a ciência e a certeza” (II, 12, 502). Skeptikós, sabemos, significa
investigador (ou aquele que observa, considera): Montaigne reforça esta citação de Sexto
(Hypotyposes I, 1, 4) acrescentando ainda uma definição da própria filosofia como busca ou
procura da verdade. Daí a metáfora, frequente nos Ensaios e no Renascimento em geral, da
caça à verdade e ao conhecimento como atividade incessante que concerne à nossa natureza
mesma: “Pois nascemos para procurar a verdade; (...)” (III, 8, 928). Em outra possível
tradução, mais ao pé-da-letra, o sentido seria: nossa natureza consiste em procurar a
verdade. Natural que o homem, ser inacabado num mundo inacabado, deseje o
conhecimento. A natura, como principio de desenvolvimento dos seres, liga-se na língua
latina ao verbo nascor (nascer). Uma relação semelhante encontramos entre physis e phyein
(engendrar). “Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Nós ensaiamos
todos os meios que a ele podem nos levar” (III, 13, 1065). Esta primeira frase do último
capítulo dos Ensaios (De l'experience) parece ser uma citação da abertura da Metafísica de
Aristóteles (livro I, 1). O ensaio trata de deslocar qualquer definição fechada do homem, ser
que não detém, mas busca o conhecimento.
Segundo, a aproximação da filosofia como concerto de ideias (e lembremos o valor
de fonte primária que possui, para a história da filosofia, a obra de Sexto Empírico),
dissociando os sistemas em elementos separados de seus todos. E tanto se os contrapõe um
a um (“Não há razão que não tenha uma contrária, diz o mais sábio partido dos filósofos”:
II, 15, 612), quanto elabora listas de opiniões dos diversos autores e escolas sobre um
mesmo tema ou termo. Tais listas, muitas vezes longos poemas, eram comuns no século
XVI: exprimiam o espanto e o maravilhar-se ante todas as possíveis metamorfoses da
natureza humana e da realidade, reunindo os antigos e novos mundos para a perplexidade
53

do homem. Para Montaigne, trata-se de um procedimento descritivo consciente, “(...), eu


folheio ora um livro, ora outro, sem ordem e sem plano, à pieces descousues; ora devaneio,
ora registro e dito, em me passeando, meus sonhos que aqui estão” (III, 3, 828). Não
poderá, portanto, e nem o interessa, julgar as teses como deveria, ou seja, a partir da
significação que elas adquirem em seus respectivos sistemas. Assim, ele toma ou recusa
ideias confrontando-as ou adequando-as segundo seu pensamento (“Não digo os outros,
senão para melhor me dizer”: I, 26, 148): sua aproximação assistemática e antidogmática da
filosofia não é compatível senão com o ceticismo.
Terceiro, o papel da imaginação, noção central na gnoseologia helenística cujo
emprego nos Ensaios deve ser considerado com atenção. É a partir da semelhança com o
ceticismo antigo que se evidenciará sua singularidade.
Montaigne utiliza o termo em seu sentido antigo: a phantasia é uma espécie de
instância intermediária entre a percepção e o pensamento, uma mistura entre perceber e
julgar, ou ainda uma faculdade mediadora, caracterizada como capacidade imagética (de
natureza sensual e intelectual) de impressionar e alterar a alma 13. A imaginação foi o
critério de verdade estoico: mergulhando suas duplas raízes na sensibilidade e no
entendimento, ela operava a mediação entre sensação e julgamento. Permitia, assim, a
síntese do juízo que, através da luz natural nele infundida pelo próprio caráter lógico da
realidade (o hegemonikon), detinha um critério seguro do acordo entre exterioridade e
interioridade. Para Sexto Empírico, porém, a imaginação permanece um fator de isolamento
subjetivo, uma vez que nem ela, nem o julgamento (que age a partir dela) podem garantir a
passagem verídica entre o exterior e o interior do sujeito cognoscente (Hypotyposes II, 70-
78). Notemos, entretanto, que os céticos pirrônicos da linha de Sexto não negam a
existência dos objetos exteriores, como não recusam suas afecções (opondo à apathia
estoica a metriopathia, ou a habilidade de equilibrar a alma entre as impressões
divergentes). Não negam, também, e aqui está o ponto decisivo, o poder da imaginação de
formar imagens, verdadeiras, como falsas, e nem pretendem que o juízo verdadeiro seja
impossível. Não admitem, isso sim, critério geral, inerente à realidade ou transcendental,

13
Platão trata a phantasia como uma mistura de percepção e juízo no Theeteto (194d-195d). Para
Aristóteles, esta serve de intermediária entre aisthesis e noesis (De anima, III, 427b - 429a) – como em
Plotino (Ennéades, IV, 4, 12).
54

que possibilite a aferição da verdade universal: todo saber humano é opinião.


Analogamente, os Ensaios:

“Pois assim estão aqui meus humores e opiniões; eu as dou pelo que está na minha
crença, não pelo que se deva crer. Eu não viso aqui senão descobrir a mim mesmo, que serei
porventura outro amanhã, se novo aprendizado me muda. Não tenho autoridade para ser
crido, nem a desejo, sentindo-me muito mal instruído para instruir outros” (I, 26, 148).

Para Montaigne, como a imaginação (I, 21), “(...) a crença é como uma impressão
que se faz em nossa alma” (I, 27, 178). O ensaísta, vimos, separa fé e ciência, mas apaga as
diferenças objetivas entre crença e certeza: ambas dependentes da imaginação, e por isso
sempre subjetivas e submetidas à regência do tempo, permanecerão relativas.

“Se o ser original destas coisas que nós tememos, tivesse o dom de alojar-se em nós
por sua autoridade, ele se alojaria parelho e semelhante em todos: pois os homens são todos
de uma espécie, e salvo o mais e o menos, se acham munidos de iguais utensílios e
instrumentos para conceber e julgar. Mas a diversidade das opiniões que nós temos de tais
coisas mostra claramente que elas não entram em nós senão por composição: alguém talvez
lhes aloja consigo em seu verdadeiro ser, mas mil outros lhes dão um ser novo e contrário
neles” (I, 14, 51).

Fantasia, crença, imaginação e opinião designarão nos Ensaios, não apenas as ideias
alheias, mas frequentemente as próprias ideias montaignianas. Se é possível, como fiz atrás,
traduzir nos Ensaios imagination por ideia foi porque, por volta do inicio do século XVI,
difundiu-se o costume de designar com esta, não apenas o conteúdo de uma representação,
mas a própria faculdade desta, identificando-a com a imaginação. A ideia já não é, então,
vista como algo constituído a priori na mente do artista, mas – mudança decisiva – a
posteriori pela experiência: isso significa que a natureza tem em si mesma seu principio e
pode ser vista, em seu curso mesmo, como “(...) sábia e justa” (III, 13, 1113). Este
acontecimento de tremendas implicações está na base do ceticismo ensaístico: a ideia é
extraída da realidade na experiência; entendendo-se, por realidade a confluência dos
movimentos interiores e exteriores, particulares e públicos na imaginação, e por experiência
o seu aparecer para a consciência.
A fantasie e a imagination terão, na filosofia ensaística, funções de memória,
sensibilidade e criação. É pela faculdade, ativa e passiva, da imaginação que o pensamento
pode ser modificador de nosso ser e existência, pois é por composição da fantasia que o
homem se relaciona com o mundo e consigo mesmo: através dela damos forma à fortuna (I,
55

14, 50-51). Logo, só encontramos a verdade por acaso: “Não, talvez, que alguma noção
verdadeira não resida em nós, mas é por acaso. E, porquanto pela mesma via, mesma
maneira e conduta, os erros são recebidos em nossa alma, ela não tem com que lhes
distinguir, nem com que escolher entre a verdade e a mentira” (II, 12, 561). Somente Deus
possui a verdade (III, 8, 928). Verdade que só vem ao homem (excetuados os eleitos da luz
divina) pela fortuna e no devir deve ser perdida (II, 12, 553). A fortuna montaigniana
combina acaso e necessidade, meras generalizações discursivas acerca do movimento de
uma mais alta razão. Esta razão divina do governo do universo é “(...) tanto mais segundo a
razão, quanto ela é contra a razão humana” (II, 12, 499); nós, com falsos títulos, roubamos-
lhe o nome (II, 12, 541). Logo, para Montaigne, a realidade é racional; porém, não há
solução de continuidade possível entre a razão humana e a divina: elas são duas,
incomunicáveis, tendo somente o nome em comum. É essencial, entretanto, que se perceba
de onde Montaigne afirma esta razão superior:

“Confessemos ingenuamente que Deus só no-lo disse, e a fé: pois a lição não é da
natureza ou de nossa razão. E quem experimentar seu ser e suas forças, e dentro e fora, sem
este privilégio divino; quem olhar o homem sem lhe lisonjear, não verá nele bem eficácia,
nem faculdade que cheire outra coisa senão a morte e a terra” (II, 12, 554).

No entanto, é justamente da morte e da terra que nos falam os Ensaios. O Deus


montaigniano vale mais pela perspectiva axiológica referencial através dele alcançada que
como verdade teórica. Deus é garantia da “bondade” da natureza, não de sua
inteligibilidade. E se a comunicação entre homem e Deus não é de todo impossível, é
perigosa, porque se dá pelo deslocamento de nossa razão na exaltação das paixões, ou por
seu entorpecimento nos estados oníricos, e, assim, não é por si mesma confiável desde que
irracional e individual (II, 12, 568). Reencontramos, aqui, a exigência de medida racional.
Mas, se a razão e o julgamento devem regrar a imaginação, sempre dependem de suas
imagens e, por isso, esta determinação racional é difícil de ser formulada abstratamente,
pois depende em parte, segundo o tempo e as circunstâncias, daquilo mesmo que ela deve
ordenar.

“É um preceito salutar, certo e de fácil compreensão: Contentai-vos com o vosso, ou


seja, com a razão. A execução, porém, não é para mim, como tampouco para os mais sábios.
E um mote popular, mas tem terrível extensão. O que não abrange ele? Todas as coisas
tombam em distinção e modificação” (III, 9, 988).
56

A verdade pura, absoluta e estática não é para nós: “É da miséria de nossa condição,
que amiúde o que se apresenta à nossa imaginação como o mais verdadeiro, não se
apresenta como o mais útil a nossa vida” (II, 12, 512). O homem deve viver, e “A vida é
um movimento material e corporal, ação imperfeita por sua própria essência, e desregrada;
eu me dedico a servi-la segundo ela” (III, 9, 988). O cético, segundo Sexto Empírico (por
exemplo: Hypotyposes III, 2 e 235; Adversus Dogmaticos 165), toma a vida por guia. Não
obstante, a maneira como Montaigne segue tal orientação é bastante diversa daquela que
Sexto aconselha: a diferença, que se tornará mais clara no decorrer da presente discussão,
reside na especificidade, em uma e outra concepções, das noções básicas de filosofia, vida e
verdade e suas inter-relações.
O ensaísta tem, por oficio e arte, viver (II, 36, 379). Na vida, se É loucura reportar
o verdadeiro e o falso a nossa capacidade (I, 27; título), de todo modo, o gosto dos bens e
dos males depende em boa parte da opinião que nós deles temos (I, 14; título), ou seja,
“(...) nossa opinião dá preço às coisas, (...)” (I, 14, 62). E na avaliação do bem e do mal,
“(...) a crença se dá essência e verdade” (ibidem, 67). Significa que nosso julgamento
pessoal pode servir de critério e fundamento de uma moral individual, e que, mesmo tendo
sido excluído da verdade e do ser uniformes e constantes, o homem participa fisicamente de
sua harmonia: “O conhecimento das causas pertence somente àquele que detém a conduta
das coisas, não a nós que não temos senão o sofrimento, e que temos seu uso perfeitamente
pleno, segundo nossa natureza, sem lhe penetrar a origem e a essência” (III, 11, 1026).
“Os homens (diz uma antiga sentença grega) são atormentados pelas opiniões que
eles têm das coisas, não pelas coisas mesmas” (I, 14, 50). Dar forma à fortuna, como diz
Montaigne, significa compreender que nossa crença, nosso juízo e nossas subsequentes
ações, transformam nossa realidade. Na avaliação, no julgar, a imaginação é o elemento
primordialmente móvel e mutante, espécie de espelho translúcido onde convergem devir
interior e exterior: por um lado, é ela que, em sua inevitável ingerência, torna opostos o
bom uso da razão e a certeza (“A impressão de certeza é um testemunho certo de loucura e
de extrema incerteza”: II, 12, 541); por outro, a divisão reflexiva da razão é tornada
possível pela variação das impressões que a imaginação lhe fornece. “Se filosofar é
duvidar, como se diz, com mais forte razão divagar e fantasiar, como faço, deve ser
duvidar” (II, 3, 350). É nesse movimento dúbio, e simultaneamente passivo e ativo, que ela
57

faculta ao julgamento a determinação recíproca de vontade – que podemos definir como a


afecção mestra de um ser14 – e razão no valor e na ação em geral.
Juízo ético e juízo estético não se confundem nos Ensaios, mas no ensaio se
configura uma região fronteiriça ambígua entre sensação e intelecção, instaurada pela
imaginação, na qual ética e estética não podem escapar de se bordejarem. Entender o que
isto significa é compreender algo de central e basilar na concepção filosófica montaigniana.
Julgar é (na sua acepção mais ampla) referir o particular ao universal: mas o
ceticismo ensaístico questiona, precisamente, a legitimidade dos universais. Segundo
Montaigne, o universal representa muito mais uma multidão de seres singulares reunidos
através daquilo que eles possam ter de semelhante em função de uma consideração a eles
exterior, ou uma coleção de experiências humanas, do que uma substância ou uma essência
única. O objetivo primeiro de tal crítica, onde cooperam nominalismo e ceticismo
pirrônico, é não permitir que a avaliação se torne simples revalorização das normas
tradicionais e da autoridade de sua revelação. Tentando recuar à origem das normas
estabelecidas (movimento de extrema importância nos Ensaios e na filosofia renascentista
do direito), Montaigne relata:

“Outrora, tendo que fazer valer algumas de nossas observâncias, e recebidas com
absoluta autoridade bem longe em torno de nós, e não querendo, como se faz, lhes
estabelecer somente pela força das leis e dos exemplos, mas pesquisando sempre até sua
origem, achei o fundamente tão fraco, que foi difícil não me desgostar, eu que tinha que lhe
confirmar para outro” (I, 23, 116).

Autoridade de verdade e razão confere o costume à crença e à imaginação;


reificando-as ele forma a consciência (cujos valores lhe aparecem naturais):

“As leis da consciência, que nós dizemos nascer da natureza, nascem do costume:
cada um tendo em veneração interna as opiniões e costumes aprovados e recebidos em torno
de si, não se pode desprender deles sem remorso e nem se aplicar sem aplauso. (...)

14
O governo e a economia do nosso ser, da natureza ou dos estados, acontecem segundo um equilíbrio
instável de contrários (por ex.: III, 1, 790, 791) que na luta e na oposição incessantemente se compõe e
recompõe (por ex.: I, 28, 234, 235; III, 13, 1106). O símbolo da balança ilustra este equilíbrio natural (por ex.:
II, 12, 565). A vontade é precisamente o resultado momentâneo deste confronto entre os contrários no
homem; podemos defini-la, conquanto Montaigne não o faça diretamente, como o impulso dominante e a
afecção mestra (movimentos vinculados na atividade imaginativa) de um ser, apoiados nas várias passagens
nas quais o termo ‘vontade’ pode ser substituído por afecção, sentimento ou intenção, e estes por aquele (por
ex.: II, 8, 395; III, 5, 882; III, 5, 862; III, 6, 905; III, 10, 1016). Relacionada à imaginação (por ex.: I, 37, 231;
III, 2, 808), a vontade cresce no contraste (II, 15, 612) e se move na oposição. Neste jogo de forcas cósmico
das vontades e afecções, noções como sofrimento, gosto, humor, etc, tentam expressar a interação entre os
seres e o Ser.
58

Mas o principal efeito de sua potência é de prender-nos e agarrar-nos de tal sorte, que
mal nos podemos reaver de sua pegada e reentrar em nós, para discorrer e meditar sobre
seus decretos. Deveras, porque nós lhe sorvemos com o leite de nosso nascimento, e porque
a face do mundo se apresenta neste estado a nossa primeira vista, parece que nascemos
condicionados a seguir esta trilha. E as imaginações comuns, que achamos em crédito em
torno de nós, e infundidas em nossa alma pela semente de nossos pais, parecem-nos ser as
gerais e naturais.
Donde acontece que o que está fora dos gonzos do costume, cremos estar fora dos
gonzos da razão: Deus sabe o quão desarrazoadamente, o mais frequentemente” (I, 23, 115).

Talvez o que transforma a crença em certeza, a persuasão em convicção, seja crer


que seu conteúdo e forma representam e são fundados em normas relativas à natureza
humana. De qualquer maneira, sua pretensão à universalidade objetiva sempre estará,
enquanto modo de afirmação específico de uma consciência particular, exposta à
contradição. Pois – e isso será cada vez mais evidente para a época renascentista – as
crenças mais diversas são passíveis: a imaginação e o costume as multiplicam. “Estimo que
não tomba na imaginação humana nenhuma fantasia tão estapafúrdia, que não reencontre o
exemplo de algum uso público, e por consequência, que nossa razão não esteie e não
funde” (I, 23, 111). A falta de fundamento último ou universal não impede que a vida e a
ação requeiram opiniões, crenças e costumes. Não saberíamos não tê-los, a vida os supõe:
“Cabe ao costume dar forma à nossa vida, tal como lhe agrada; ele pode tudo nisto: é a
beberagem de Circe, que diversifica nossa natureza como bem lhe parece” (III, 13, 1080).
Mas, o simples fato da inevitabilidade das crenças e costumes e da impossibilidade de viver
sem eles, não serve para legitimar alguns dentre eles (e, se Montaigne, coerente com a
tradição cética, confia na autoridade dos costumes de seu país, reserva para si boa margem
de escolha com relação à sua participação neles). Paralelamente, o intento abstrato do
abandono de todas as crenças, coloca-se em um nível de generalidade tal que somente
estancando o movimento vital, ou se supondo fora dele, poderia ser realizado: a única
situação real a que corresponde semelhante propósito é a da reflexão.
Ora, o ensaísta separa teoria e prática para poder discernir melhor seus entrechoques
e intermediações. Tal resulta do reconhecimento, primário para Montaigne, de que a ordem
da verdade não deve ser confundida com a ordem do valor, e nem a ordem natural com a
ordem política. Mas, atenção, não podem se confundir, mas não é possível isolá-las e evitar
suas implicações, desde que têm sempre em comum o serem produções da natureza no
universo de reciprocidades montaigniano: o edifício político tem sua economia natural
59

própria, como as árvores, as ações e pensamentos humanos. E todos os seres naturais têm
seu fim em si, para o qual não há medida exterior.
É a atividade mesma do julgamento montaigniano que lemos no procedimento
descritivo e rapsódico do ensaio. Suas descrições, vastas confrontações por vezes, não
intencionam classificar ou exaurir seus temas, porém, tornar patentes as diversidades e
contradições, “(...) a fim de que tendo na imaginação esta contínua variação das coisas
humanas, tenhamos o julgamento mais esclarecido e mais firme” (I, 49, 297). Não se trata
aí, de referir o particular ao universal e, sob a clivagem deste, avaliar aquele como bom ou
mau, correto ou incorreto, porém de ressaltar os aspectos característicos da particularidade
no que ela tem de mais refratário a qualquer comparação com as outras singularidades que
a cercam, destruindo toda exigência de conformidade com um esquema ou padrão único.
Onde outros imporiam suas normas como absolutamente prescritivas, o ensaísta, consciente
da ilusão de universalidade imposta pelo costume (“O hábito adormece a vista de nosso
julgamento”: I, 23, 112), refere as normas e valores particulares a seus campos próprios de
aplicação, percebendo, então, as ordens em que se instalam e seus funcionamentos diversos.
Por exemplo, com relação aos canibais brasileiros, o juízo montaigniano compreende que
não se trata de nutrição, mas da significação religiosa ou moral da antropofagia (vingança:
I, 31, 208; ou fazer a vida persistir: I, 23, 116; etc.). Deve ser enfatizado, aqui, o fato de que
o julgamento não é um costume e não pode ser confundido com um valor. “O julgamento é
um utensílio para todos os objetos, e se intromete em tudo. Por este motivo, nos ensaios que
dele aqui faço, emprego toda sorte de ocasião” (I, 50, 301). O julgamento é um critério
formal, sempre local e contingente e, portanto, não engajado em normas de uma vez para
sempre obrigatórias: é precisamente em função desta mobilidade que ele não entra em
contradição com a dúvida.
“Distingo é o membro mais universal de minha Lógica” (II, 1, 335). Distingo é um
dos termos escolásticos invertidos por Montaigne para atacar o corpo mesmo da teoria da
qual fazia parte. Se distinguir é a operação mais universal da lógica ensaística, o é porque
“(...) não há nenhuma qualidade tão universal nesta imagem das coisas quanto a diversidade
e a variedade” (III, 13, 1065). Em meio à continua variação e diversificação das coisas,
esclarecer o julgamento é flexibilizá-lo para firmá-lo, tal é o paradoxo da regra do
60

julgamento montaigniano, cuja busca da medida ideal entre tensão e liberdade, natureza e
razão, visa a saúde do juízo.
A maneira como Montaigne lida com a contradição entre as diversas concepções
filosóficas é reveladora de sua própria filosofia. O ceticismo de Sexto Empírico, apesar de
se qualificar como pesquisa filosófica no início das Hypotyposes, acaba por se voltar contra
a filosofia. A principal preocupação de Sexto, nos textos que dele nos chegaram, era
combater o que entendia como dogmatismo; seu método consistia em contradizer e fazer
aparecer a contradição entre as filosofias (e isso será levado a efeito até mesmo contra o
ceticismo que lhe precedeu). A atitude de Montaigne, conquanto por vezes aparentemente
similar, é diferente: se o ensaísta rejeita toda objetividade e realismo dos universais, e
desacredita tanto os átomos de Epicuro, como as ideias de Platão e os números de
Pitágoras, é porque não se convence de que eles mesmos tenham querido fechar questão:
“Eles eram muito sábios para estabelecer seus artigos de fé em coisa tão incerta e
discutível” (II, 12, 511). Sabiam, então, como Montaigne, que suas filosofias eram ensaios,
tentativas de resolver as insolúveis questões vitais, e conheciam perfeitamente suas
dificuldades.

“E o mais vasto campo das repreensões dos filósofos uns contra os outros, decorre
das contradições e diversidades nas quais cada um deles se acha enredado, ou de propósito
para mostrar a vacilação do espírito humano em torno de qualquer matéria, ou, malgrado
ele, forçado pela volubilidade e incompreensibilidade de toda matéria” (II, 12, 510).

Por isso, da discordância entre as filosofias, o ensaísta não conclui sua não-verdade;
e, frente às grandes obras da antiguidade, afirma: “(...); eu acho que todos têm razão cada
um por sua vez, mesmo que se contradigam” (II, 12, 570). Se isso também pode ser um
motivo para desconfiar de si mesmo, como deles, não vai aí nenhuma reprovação contra a
filosofia, mas uma indicação a respeito de uma maneira especial de filosofar: “Um antigo a
quem se reprochava que fazia profissão da filosofia, a qual em seu julgamento ele não
tinha, contudo, em grande conta, respondeu que isto era verdadeiramente filosofar” (II, 12,
511). Portanto, quando Montaigne ataca a filosofia, o faz no interesse da própria filosofia.
A posição de Sexto com relação a esta é fundamentalmente diferente: “(...) o cético não
vive conforme a uma doutrina filosófica (sobre este ponto ele manifesta seguramente uma
inatividade filosófica), mas em tomando a experiência e a vida por guia não filosófico, (...)”
61

(Adversus Dogmaticos, 165). A divergência é clara: para Montaigne, a filosofia é a própria


arte da vida: viver – é isto que ela propriamente ensina (I, 26, 163; e assim, enquanto “arte
de bem viver”, não depende de nenhuma outra arte: I, 26, 168).
Mas para entender a ética ensaística, a filosofia moral expressa nos Ensaios,
devemos tentar compreender como Montaigne legitima sua própria escolha. Como julga e
com que medida estima seus valores? Porque certamente ele julga: “Tenho minhas leis e
minha corte para julgar de mim, às quais me dirijo mais que a qualquer outra parte” (III, 2,
807). Esta talvez seja a primeira vez que se apresenta a consciência moral moderna: com
que direito ela julga? Antes de tudo, com isenção de todo preconceito, seja moral, religioso
ou intelectual. É oportuno notar, porém, que o conhecimento não funda a moral não por
seus limites próprios (na verdade, indefiníveis), mas principalmente pelo estatuto de
relativismo prático da moral montaigniana, decorrente de sua ideia de natureza. O
julgamento e a sabedoria são estritamente pessoais: “Os homens são diversos em gosto e
em força; é preciso levá-los a seu bem segundo eles, e por caminhos diversos” (III, 12,
1052). E aceitar a diversidade, aprendendo com ela, já é uma função do julgamento são.
A caracterização mais comum das transformações que sofre o conceito de natureza
no Renascimento é aquela que destaca sua propensão à imanência. Compreenderemos
melhor este processo se percebermos como ele implica um deslocamento na concepção de
alma, que então se “encarna”15. A filosofia da natureza renascentista tende ao
pampsiquismo, ao pandinamismo e ao panteísmo. Da anima, noção plurivalente (que
amarra física, ética e estética), derivam as noções paralelas de paixão, afecção, ânimo, etc,
que especificam as relações afetivas universais. Aqui, o cosmos é o embate e a composição,

15
Segundo Montaigne, alma e corpo formam uma unidade indissolúvel (ver, por exemplo, II, 12, 519,
520; II, 17, 639), e se “entre comunicam” suas fortunas (I, 21, 104). Como, porém, se dá esta ligação, como se
realiza esta interação entre corpo e espírito, o ensaísta confessa não saber exatamente (II, 12, 539). É
interessante notar como a intuição da alma encarnada, em Montaigne, é empírica: ele a procura em suas
possíveis manifestações naturais; e mesmo as obscuras relações entre vida e morte poderiam, de certo modo,
ser corroboradas pela observação (I, 3, 21). Mas se provam pela razão os Ensaios, não pela experiência (I, 21,
105). Ou seja, o importante aí não é que o conteúdo das referências particulares ao problema, os exemplos,
sejam verídicos, mas a maneira como nos é apresentado certo naipe de possibilidades as quais, constituídas
por experiências do ensaísta com a linguagem e a comunicação em geral, buscam fazer faiscar o universal no
particular através do relampejante jogo das analogias. Aqui os exemplos deixam de serem modelos para se
tornarem espelhos (III, 13, 1088). Justamente por isso, as analogias perdem seu caráter dogmático de fatos
verídicos e de verdade dos fatos, deixando de definir a essência das coisas pela pura razão: no ensaio, na
esteira do ceticismo antigo, já não se trata de demonstrar, porém de constatar as sucessões – história – mas,
mais que isso, de trabalhar com as várias formas de constatação, decisão, ou certificação, e interrogá-las em si
mesmas.
62

a oposição e a cópula de forças anímicas e volitivas. Sabemos o quanto há nisso de herança


medieval, mas já devemos saber, também, do que até aqui foi dito, das profundas
diferenças. O universo medieval é, em geral, uma estática hierarquia das animae, no qual o
movimento é, exclusivamente, a busca de cada coisa de um pré-determinado lugar “natural”
na economia do todo (e Dante é o melhor exemplo). No todo, o mundo é apenas uma figura
do além, e organizado de fora e de cima, onde somente reencontrará sua substancialidade
verdadeira. Assim, o próprio mundo se torna imaterial e espiritual. No Renascimento, e
notadamente nos Ensaios, a alma se incorpora e se materializa como força e ponto de
contato entre a necessidade e a liberdade do homem. A natureza não é mais, então, aquilo
que resiste ao Deus, mas o próprio meio do divino.
Cada vez mais encontraremos, ao longo da Renascença, um conceito de natureza
baseado na intuição imediata, sensível, empírica. Para definir, nisto, a posição
montaigniana podemos, inicialmente, demarcá-la segundo uma dupla diferença: primeiro,
com relação ao ceticismo de Sexto, ao qual o ensaísta concederia ser impossível demonstrar
o movimento, como o repouso, mas, seguiria afirmando sua experiência da variabilidade da
natureza; segundo, frente à ratio natural medieval, fundada na comunicação sagrada com a
natureza divina, cujo reverso perverso é colocar a natureza real, presente, mundana e
humana como aquilo que deve ser vencido e abandonado. Para a lírica de Petrarca, porém,
como para a filosofia de Montaigne, é o espelho vivo do eu quem fornece a medida da
natureza. Pouco a pouco esta afrouxará a relação unilateral que a liga ao homem, mas pelo
mesmo caminho, agora aberto, da observação direta e da percepção sensível, tal se
realizará. Luta para nascer, aqui, a ideia moderna de experiência; em seu trabalho de parto
unem-se teorias da arte e teorias científicas. Da “fantasia exata” de Leonardo ao idealismo
matemático de Galileu, não há tanta distância como em geral se pensa: ambas as posições,
são oriundas de semelhantes exigências formais em relação à experiência. Contudo, e é isso
que interessa ressaltar, a primeira comporta um elemento sensível, uma disposição sensual,
que talvez a segunda já não admita.
Em Montaigne, a ligação da sensibilidade com o julgamento (através da
imaginação) é sempre clara16. Reportemo-nos ao final da Apologia, onde o ensaísta

16
Como no latim sensus (que traduz conjuntamente sensação, pensamento e ideia) e sentire (que une
as significações de sentir, pensar e julgar), senso e sentido misturam-se na língua montaigniana. Se o ensaísta
põe “(...) em dúvida que o homem seja provido de todos os sentidos naturais” (II, 12, 588), isto também
63

examina a possibilidade da certeza sensível; tão importante quanto o que aí se nega – uma
ciência baseada nos sentidos – é o que se afirma:

“Ora todo conhecimento se encaminha em nós pelos sentidos: são nossos mestres, a
grande via por onde penetra a evidência no mais próximo do coração do homem e no
santuário de seu espírito (Lucrécio 5, 103). A ciência começa por eles e a eles se reduz.
Afinal, nós não saberíamos mais do que uma pedra, se não soubéssemos que há som, odor,
luz, sabor, medida, peso, moleza, dureza, aspereza, cor, polimento, largura, profundidade.
Aí estão os alicerces a princípios de toda a construção de nossa ciência. E, segundo alguns,
ciência não é outra coisa senão sentimento. Quem quer que possa obrigar-me a
contradizer os sentidos, agarra-me pela garganta: ele não saberia me fazer recuar mais atrás.
Os sentidos são o começo e o fim do conhecimento humano: (...). Que se lhes atribua o
menos que se possa, sempre será preciso conceder-lhes isto, que por sua via e intermédio se
encaminha toda nossa instrução” (II, 12, 587).

A adição tardia de Montaigne, por nós grifada, ligando ciência e sentimento, é


reveladora (e marquemos que a expressão “segundo alguns” refere-se ao Theeteto de
Platão). Sentir é uma condição necessária do julgamento montaigniano: o sentimento
consiste em perceber tanto os pensamentos, como as modificações corporais. Em outro
lugar, Montaigne diz: “Os sentidos são nossos próprios e primeiros juízes, (...). É sempre
com o homem que tratamos, do qual a condição é maravilhosamente corporal” (III, 8, 930).
Esta condição corporal faz com que nossos sentidos tenham “(...) todos esta potência de
comandar nossa razão e nossa alma” (II, 12, 595). Nossas ideias derivam da experiência de
nossos sentidos. Ora, eles nos enganam; mas, se lermos a crítica montaigniana dos sentidos
na Apologia, veremos que a nota dominante é de aceitação eivada de ironia para com os
filósofos desprezadores das sensações. Lá o mais importante é deixar claro que a
necessidade de um critério objetivo para a ciência não pode ser satisfeita: não é possível,
em função do processo imaginativo de nossa percepção, determinar sua objetividade.

“Nós recebemos as coisas outras e outras, segundo como estamos e como nos parece.
Ora, nosso parecer estando tão incerto e controverso, não é mais milagre se nos dizem que
nós podemos reconhecer que a neve nos aparece branca, mas estabelecer se de sua essência

significa “provido de todos os sentidos que a natureza comporta”. O sentir se aplica tanto ao exterior como ao
interior do homem; e o sentido é passivo e ativo. Por isso, a questão é dar medida ao espírito (III, 3, 821) em
relação ao corpo; primeiro, reconhecendo a intermediação inevitável entre senso e sentido, pela qual, se não
cessamos de ser subjetivamente singulares, nunca nos tornamos sujeitos puros dotados de puras inteligências,
pois tal purificação nem sequer é desejável; e isto porque – segundo ponto, do qual é importante estar
consciente – mesmo que fosse possível de ser realizada, esta disposição purificadora não bastaria para nos
conduzir à essência das coisas: “Pois não está dito que a essência das coisas se refira somente ao homem” (II,
12, 597). Além disso, Montaigne chega a pôr em dúvida (contra Platão: II, 12, 518-519) que, mesmo após a
morte, seja possível a sobrevivência isolada da “parte espiritual do homem” à qual caberia “gozar as
recompensas da outra vida”.
64

e na verdade ela é tal, nós não saberíamos responder: e, este começo abalado, toda ciência
do mundo se vai necessariamente por água abaixo” (II, 12, 598).

Retomando e aprofundando o antigo argumento cético do sonho (utilizado por


muitos antes e depois), Montaigne mostra como as condições de nossa percepção são tais
que sonho e vigília aí se confundem:

“Estes que têm comparado nossa vida a um sonho, tiveram mais razão, talvez, do que
pensavam. Quando sonhamos, nossa alma vive, age, exerce todas suas faculdades, nem mais
nem menos que quando vela; mas mais molemente e obscuramente, não tanto com certeza
que a diferença seja como da noite para uma viva claridade; mas sim, como da noite para a
sombra: lá ela dorme, aqui ela cochila, mais e menos. São sempre trevas, e trevas cimérias.
Nós velamos dormindo, e dormindo velamos. Eu não vejo tão claro no sonho; mas quanto
ao velar, não o acho jamais bastante claro e sem névoa. Ainda o sono em sua profundidade
adormece por vezes os sonhos. Mas nosso velar não é jamais tão desperto que purgue e
dissipe totalmente os devaneios, que são os sonhos dos acordados, e piores que sonhos” (II,
12, 596).

As sensações e as paixões se inter-correlacionam nas afecções da imaginação: como


separar, então, a aparência do objeto? “(...): são, digo eu, nossos sentidos que talham as
diversas qualidades dos objetos, ou será que tais eles as têm? E sobre esta dúvida, que
podemos nós resolver quanto à sua verdadeira essência?” (II, 12, 599) “Desta extrema
dificuldade nasceram todas estas fantasias: que cada objeto tem em si tudo que nele
achamos; que nenhum tem nada do que nele pensamos achar” (II, 12, 591). Mas, a própria
imaginação, que torna a razão dependente da opinião17, é também a via do sentimento. E
não podemos desprezar, nem os sentidos (quem deles se priva, priva-se de seu ser e de sua
vida: II, 12, 595), nem a paixão (vento que impulsiona as velas da alma: II, 12, 567): são a
matéria do juízo. E, por isso, desejar um juiz isento de afecção e sem pré-ocupação do
julgamento, seria querer um “juiz que não fosse” (II, 12, 600).
No universo de reciprocidades dos Ensaios é preciso mesnager sa volonté (manejar,
administrar, sua vontade: III, 10, título), ou seja, saber lidar com a paixão e ter senso com
os sentidos. A vontade funda as regras do dever: “(...) não há nada realmente em nosso
poder senão a vontade: nela se fundam por necessidade, e se estabelecem todas as formas
do dever do homem” (I, 7, 30). A moral ensaística é uma moral da intenção; seu problema
maior (e resolvê-lo constitui a tarefa fundamental do julgamento) consiste em dirigir a
vontade de maneira a pô-la de acordo consigo mesma no indivíduo.
17
“A razão humana é uma tintura infusa, mais ou menos na mesma proporção, a todas nossas opiniões
e costumes, de qualquer forma que eles sejam: infinita em matéria, infinita em diversidade” (I, 23, 112).
65

“Em toda a antiguidade, é difícil de escolher uma dúzia de homens que tenham
orientado sua vida segundo certa e segura marcha, o que é o principal objetivo da sabedoria.
Pois, para compreendê-la toda em uma palavra, diz um antigo, e para enfeixar em uma todas
as regras de nossa vida, é querer e não querer, sempre, a mesma coisa; não concederia, diz
ele, ajuntar: contanto que a vontade seja justa; pois, se ela não é justa, é impossível que seja
sempre una. De verdadeiro, de outra vez aprendi que o vício não é senão desregramento e
falta de medida, e, por conseguinte, é impossível lhe aplicar a constância. E um dito de
Demóstenes, diz-se, que o começo de toda virtude é reflexão e deliberação; e o fim e
perfeição, constância. Se pela razão nós tomássemos certa via, a tomaríamos a mais bela;
mas ninguém nisto pensou, O que quis, rejeita; quer de novo o que ainda há pouco deixou;
agita-se, e com toda a ordem da vida discorda” (Horácio, Epístolas I, I, 98) (II, 2, 332-333).

Neste primeiro ensaio do segundo livro (Da inconstância de nossas ações) é


evidente o processo de desenvolvimento, ou de ensaio, do pensamento montaigniano: se,
quando começou a ser composto, era principalmente um elogio do ideal filosófico da
constância como o caminho moral que permitiria a irresolução humana convir com a ordem
do todo, em sua forma final constitui-se como afirmação da flexibilidade da natureza
humana; esta pode se acordar com o todo a partir de si mesma e de seu próprio movimento.
É o reconhecimento da mutabilidade da fortuna, e de que é o homem, ser de móvel parecer,
quem lhe dá sentido, que permite a Montaigne elaborar uma linguagem capaz de
identificar, não subjacente às mudanças, mas na mudança mesma, a “forma mestra” da
personalidade (noções expostas à mesma época).
Lembremos: cabe à razão a conduta de nossas inclinações, no entanto, estas são
algo de anterior em nós, que alcançamos primeiro pelo sentimento: “A dor, o amor, o ódio
são as primeiras coisas que sente uma criança: se, a razão sobrevindo, elas se aplicam a ela,
isto é a virtude” (III, 13, 1111). Não que a capacidade de raciocínio não seja possivelmente
inata, natural no homem (como, em certa medida, nos animais), mas ela se forma no tempo
e pela experiência, e pode ser inclusive contrariada. Montaigne fala algumas vezes de uma
razão natural comum (por exemplo: I, 16, 70; II, 1, 336; I, 26, 152), mas não define suas
regras. Quando o faz é com a intenção de subverter a ideia de uma razão natural
imediatamente acessível ao homem como aqui: “Chamamos contra a natureza o que
acontece contra o costume: nada é senão segundo ela, o que quer que seja. Que esta razão
universal e natural expulse de nós o erro e a perplexidade que a novidade nos traz” (II, 30,
713). Ora, já se viu que a razão natural é criadora, e nunca completamente determinável de
antemão pelo homem. “Estes julgamentos universais que vejo tão ordinários não dizem
nada. São pessoas que saúdam todo um povo em tropa e em bando. Aqueles que têm
66

verdadeiro conhecimento o saúdam e designam pelos nomes e particularmente” (III, 8,


936). No particular o universal manifesta-se ao homem. “Nós enredamos nosso pensamento
no geral e nas causas e condutas universais, que se conduzem muito bem sem nós, e
deixamos para trás o nosso caso e Michel, que nos toca de mais perto ainda do que o
homem” (III, 9, 952). Em suma, não se trata de discursar acerca da razão natural, mas de
ensaiar o acordo com esta. A exigência racional impõe-se por si mesma. Mas porque ela se
aplica sobre a matéria imaginativa, e depende em sua aplicação da vontade (o abrasamento
da vontade incita a razão: II, 12, 566), a razão deve se reconhecer instrumento. E é este
reconhecimento, alcançado pela própria razão, que possibilita ao julgamento um
distanciamento precioso com relação a seus juízos ou aos alheios. Justamente porque a
razão pode entender as limitações que lhe são inerentes, torna o julgamento livre, ou capaz
de escolher as formas e as ocasiões propicias de seu engajamento. Pelo direito da
consciência julga a moral montaigniana, sendo, por isso mesmo, fundada na noção diretora
da liberdade da vontade (reclamada por uma razão crítica).
Tudo isso contribui para esclarecer a disposição da consciência ensaística: porque
esta é, antes de tudo, moral, e como, para sê-lo, deve considerar a percepção, o
entendimento e o julgamento por uma perspectiva marcadamente ético-estética. “(...) a
maior parte das mais belas ações da alma procedem e têm necessidade desta impulsão das
paixões” (II, 12, 567). Isso não significa aceitar incondicionalmente os impulsos da paixão,
do instinto ou do desejo, mas compreender que não há nada de puramente corporal ou
espiritual para o homem (cf. III, 5, 892; III, 10, 1007-1008). E este é um dos primeiros
passos para levar natureza e razão a se inter-relacionarem de maneira adequada, regrando a
fantasia, para que a vontade se torne una, concordando por si mesma com a razão natural.
Não devemos nos prender, como já deixamos entrever, a definições estritas de cada
um destes designativos de faculdades ou funções da alma humana, mesmo porque os
conceitos montaignianos são, em geral, propositalmente polissêmicos (pois o ensaio é
também um experimento com a linguagem): “Nós não sabemos distinguir as faculdades dos
homens; elas têm divisões e limites difíceis de discernir e delicadas” (992). Se ainda assim
insistirmos em obter pelo menos uma definição de desejo por oposição à vontade, pode-se
dizer que o desejo é um impulso-afecção completamente subordinado à imaginação, e a
vontade é o “lugar” onde o impulso-afecção dominante pode ser trazido à consciência, e
67

tanto sofrer a ingerência da razão, como a influenciar. Ora, nosso julgamento deve servir à
busca da verdade e não ao projeto de nosso desejo (III, 10, 1013), que não sabe achar o que
nos falta (II, 12, 576). Contudo, se o corpo não deve seguir seus apetites em prejuízo do
espírito, este também não deve seguir os seus em prejuízo daquele (III, 5, 893). Então, para
se decidir acerca dos desejos salutares (que nos põem de acordo com as leis naturais),
Montaigne – à semelhança do Epicuro (Diógenes Laércio X, 149) e Sêneca (Cartas, XVI) –
distingue os desejos naturais dos não-naturais (III, 10, 1009-1011) mostrando como existem
dois perigos opostos para o julgamento (um, o desregramento da imaginação; outro, o
costume empedernido que se quer chamar razão – por exemplo: I, 23, 116, 117), mas só
uma saída: referir-se à verdade e à razão – ou à natureza. Tudo o que foi dito até aqui neste
livro trata de tentar explicar como se realiza, através das contradições naturais, esta
“reflexão essencial” cujo objetivo é fazer retornar cada um de nós à sua natureza própria.
Uma disciplina da ação não deixa de ser, portanto, possível para o cético. Mas, guardemo-
nos de ver, nesta possibilidade de concordância entre homem e mundo, o modelo
renascentista do micro e macro cosmos em suas revoluções e relações circulares e
concêntricas, acontecendo segundo uma regularidade universal do movimento: talvez, a
única “universalidade” que atravessa virtualmente homem e mundo, nos Ensaios, seja a
concordia discors. E é por razões vizinhas que devemos evitar tentar definir estritamente os
termos montaignianos: assim, em uma página memorável (II, 12, 537), Montaigne ironiza a
ideia do homem-microcosmo, como elaborada pelo alto Renascimento, e, na sequência,
adverte contra as divisões imaginárias da alma humana.
O mais importante nisto tudo é marcar como o julgamento deve permanecer local e
contingente, pois depende do contato sensível e passional com a realidade, seguindo o
tempo.

“Digo mais, que nossa sabedoria mesma e deliberação seguem na maior parte das
vezes a condução do acaso. Minha vontade e minha razão movem-se, tanto de uma maneira,
como de outra, e há muitos destes movimentos que se governam sem mim. Minha razão tem
impulsos e agitações diárias e casuais: Transformam-se as disposições das almas, e os
peitos [aqui considerados como sedes da alma, do coração e do pensamento] tomam agora
uns movimentos, então outros, como o vento agita as nuvens” (Virgílio, Geórgicas) (III, 8,
934).

Vontade e razão, dada a constituição sensual e relacional da percepção humana,


seguem a fortuna: nosso dever não tem outra regra senão fortuita (II, 12, 578). É claro que
68

de outro ângulo, como vimos, vontade e razão são as fiandeiras da fortuna. Pois esta
permanece fruto de nossas concepções, ainda que não seja em si mesma metódica (e a partir
daí se move a crítica montaigniana ao método experimental científico: II, 37, 782). Se
precisamos constantemente reajustar nossos juízos à realidade, o contrário também é
verdadeiro. Não obstante, o ponto decisivo é marcado precisamente pela frase que se segue
àquela citação: “A verdade deve ter um aspecto igual e universal”. Afirmando a
legitimidade da referência ao universal ‘verdade’ ou à verdade como universal, Montaigne
confirma, não a inexistência de regra para o dever, mas a devoção deste ao tempo e à
situação, ou à natureza. E, assim, o ensaísta abre a possibilidade da verdade ser, e deixar de
ser, no devir: se há uma lei universal, esta se edita no presente, e é em nossa vida cotidiana
que nós a constatamos e confirmamos.
Por exemplo, acerca da avaliação que um homem faz de seu próprio valor, está dito:
“O julgamento deve em tudo manter seu direito: é razoável que ele veja neste assunto,
como alhures, aquilo que a verdade lhe apresenta” (II, 17, 632). Mas é preciso, sobretudo,
ter consciência de que isto não se faz sem dificuldade: “A vista de nosso julgamento se
refere à verdade, como o olho da coruja ao esplendor do Sol: assim o disse Aristóteles” (II,
12, 552). Logo, mesmo asseverando, em diversas passagens (I, 9, 37; I, 26, 169; III, 1, 795;
etc.), a verdade una, simples, uniforme e constante, Montaigne não nos imporá nenhuma
verdade absoluta.

“Ferecides, um dos sete sábios, escreveu a Tales pouco antes de expirar: Eu, disse
ele, ordenei aos meus, depois que me tiverem enterrado, te levarem meus escritos: se te
contentam e aos outros sábios, publica-os; se não, suprime-os; eles não contêm nenhuma
certeza que a mim mesmo satisfaça. Também eu não faço profissão de saber a verdade, e de
alcançá-la. Abro (J’ouvre) as coisas mais do que as descubro. O mais sábio homem que já
houve, quando lhe perguntaram o que ele sabia, respondeu que sabia que não sabia nada. Ele
verificava o ditado de que a maior parte do que sabemos é a menor do que ignoramos; ou
seja, que isto mesmo que pensamos saber, é uma parte, e bem pequena, de nossa ignorância.
Nós sabemos as coisas em sonho, diz Platão, e as ignoramos em verdade” (II, 12, 501).

J'ouvre...: notemos a ambivalência de sentido entre obrar e abrir. Ora, formamos


nossa verdade pela consulta e concurso dos sentidos (II, 12, 590) através de nossa
imaginação, que tanto serve de ponte como critério; aí se unem em ato o pesquisador e o
mundo na sua recriação simultânea por meio da busca de conhecimento. Assim, o caminho
para a verdade passa necessariamente pelo autoconhecimento. “Eu me estudo mais que
qualquer outro objeto. Esta é minha metafísica, esta é minha física” (III, 13, 1072).
69

Considerar o conhecimento de si como parte integrante de qualquer tentativa de


conhecimento em geral constitui uma característica fundamental do ceticismo ensaístico:
“E quem não entende de si, de que pode entender? Como se pudesse empreender medir
qualquer coisa, quem ignora sua própria medida (Plínio, História Natural, II, 1) (II, 12,
557)”. O ‘conhece-te a ti mesmo’, escrito na fachada do templo do “Deus da ciência e da
luz” (III, 13, 1075), é uma necessidade prática que compõe uma exigência gnoseológica
inescapável mesmo no domínio das ciências naturais:

“Estas pessoas que se empoleiram encavaladas sobre o epiciclo de Mercúrio, que


veem tão longe no céu, elas me arrancam os dentes: pois, no estudo que faço, cujo objeto é o
homem, achando uma tão extrema variedade de julgamentos, um tão profundo labirinto de
dificuldades umas sobre as outras, tanta diversidade e incerteza na escola mesma da
sapiência, vós podeis pensar, desde que estas pessoas lá não puderem se resolver acerca do
conhecimento de si mesmas e de sua própria condição, que está continuamente presente aos
seus olhos que está dentro delas; desde que não sabem como se move o que elas mesmas
fazem mover-se, nem como nos pintar e decifrar as forças que eles mesmos têm e manejam,
como lhes iria eu dar crédito sobre a causa do fluxo e refluxo do rio Nilo” (II, 17, 634).

Temos sempre que lembrar os objetivos gerais da crítica montaigniana à ciência:


primeiro, pôr em questão a concepção renascentista de ciência; segundo, e mais importante,
a construção de uma filosofia moral orientada pela assunção primordial da não-
identificação de ciência e virtude: “Eu vi, em meu tempo, cem artesãos, cem lavradores,
mais sábios e mais felizes que reitores de universidade, e aos quais preferiria me
assemelhar” (II, 12, 487). Por isso, Montaigne não quis faire mestier d'escrire (III, 12,
1057).

“Minha arte e minha indústria têm sido empregadas em fazer valer a mim mesmo;
meus estudos, a me ensinar a fazer, não a escrever. Empreguei todos os meus esforços em
formar a minha vida. Eis aí o meu ofício e a minha obra. Sou menos fazedor de livros que
qualquer outro trabalho” (II, 37, 784).

E daí o conteúdo dos Ensaios:

“Digo pomposa e opulentamente a ignorância, e digo a ciência magra e


lastimosamente; acessoriamente esta aqui e acidentalmente, aquela lá expressa e
principalmente. E não trato justamente de nada que do nada, nem de nenhuma ciência que
aquela da insciência” (III, 12, 1057).

No entanto, é preciso esclarecer, novamente, que não se trata de pregar o


irracionalismo ou a inconsciência: ao contrário, é pelo autoconhecimento, pelo trazer à
70

consciência, que se regram nossas inclinações. O ensaio constitui-se como um rigoroso e


constante exame de consciência. Para Montaigne, afirmar a “insciência” significa atentar
acima de tudo à ciência do presente (I, 25, 136) – a sabedoria ou arte sem arte do viver. O
julgamento são e equilibrado é aquele que pode se examinar:

“Quem quer curar a ignorância, é preciso confessá-la. Íris é filha de Thaumantis. A


admiração é o fundamento de toda filosofia, a investigação é o progresso, a ignorância o
fim. Verdadeiramente, há certa ignorância forte e generosa que não deve nada em honra e
coragem à ciência, e não há menos ciência em conceber esta ignorância que em conceber a
ciência” (III, 13, 1030).

Não se trata também, certamente, de confundir estupidez e sabedoria (ver, por


exemplo, III, 10, 1014), porém de entender a regra apolínea, não como mero convite à
introspecção, mas muito mais como advertência: compreende tua condição humana, diz o
Deus (III, 9, 1001). A autoconsciência é uma questão de método e de princípio – e assim
um problema – para a filosofia moral montaigniana: “É preciso ver seu vício e o estudar
para relatá-lo. Estes que o ocultam a outro, o ocultam frequentemente a si mesmos. E não o
têm por bastante escondido, se o veem; eles o subtraem e disfarçam à sua própria
consciência. Por que ninguém confessa seus vícios? Porque ainda agora neles está: é
preciso estar acordado para narrar seus sonhos” (Sêneca, Cartas) (III, 5, 845). Entre
vigília e sonho, já o vimos, não há diferença de natureza, mas apenas de grau: a consciência
disso é uma das facetas do conhecer a si. No mais, é importante notar como desta maneira
singular de entender o autoconhecimento provém uma definição particular do que
chamamos hoje de inconsciente. Este não se encontra fechado à consciência por algum
obstáculo psicológico intrínseco (apesar da dificuldade que há por vezes em observar as
dobras internas do espírito), mas resulta de uma falha de comunicação: ou seja, não é o
desconhecimento de si que falseia ulteriormente a relação com o mundo e os outros
homens, porém, é a rigidez presunçosa com relação ao outro e aos acontecimentos, a
produtora da ignorância de si. Pois nos conhecemos no mundo e em relação ao outro, e no
contato temporal, circunstancial, com estes é que sabemos quem somos.
Como vimos, com a intervenção da imaginação (intermediário ativo e passivo entre
sensação e juízo) os movimentos internos e externos ao indivíduo nunca se tornam, para
este, nitidamente distinguíveis ou completamente independentes: o conhecimento aparece,
assim, como relação ambígua e ambivalente na qual nos conhecemos no mundo (“Este
71

grande mundo, (...), é o espelho onde nos devemos mirar para nos conhecermos ao justo
viés”: I, 26, 157), e, a este, segundo conhecemos a nós mesmos. O que importa a
Montaigne, portanto, não é conceber uma teoria do conhecimento, mas examinar suas
próprias opiniões – onde se tocam o eu e o mundo.

“Viver e bem me conduzir, eis aí, para mim, a ciência (Lucrécio) Ora, as minhas
opiniões, eu as acho infinitamente decididas e constantes em condenar a minha
insuficiência. Em verdade, este é também um assunto sobre o qual eu exerço meu
julgamento mais que em qualquer outro. O mundo olha sempre face a face; quanto a mim,
volto minha vista para dentro, ali a planto, e a entretenho lá. Todos olham para diante de si;
eu olho para dentro de mim: não tenho o que fazer senão comigo, considero-me sem cessar,
controlo-me, provo-me. Os outros, se pensarem bem nisto, sempre vão para fora, vão
sempre para diante, Ninguém tenta descer em si mesmo (Pérsio), eu, porém, volvo-me a
mim mesmo” (II, 17, 657).

Descer em si mesmo e se experimentar, julgando nossas fantasias segundo sua


consistência e gosto (II, 12, 459), é questionar a rede de relações em que se constitui o eu,
através da qualidade de sua experiência. No nível mais básico, somente o sentir tem
penetração suficiente para possibilitar tal exame: “Eu não me julgo senão por verdadeiro
sentimento, não por raciocínio” (III, 13, 1095). Fazer o contrário, diz a sequência desta
passagem, é se arriscar a ser pressionado por imaginações sem corpo. Dito de forma
esquemática: há um movimento inicial da sensibilidade neste julgar a si mesmo que não
deve, por assim dizer, ser sufocado por uma racionalização desarraigada; um segundo
(entendido em sentido, não necessariamente cronológico, mas lógico) movimento,
entretanto, traz à consciência: “(...) quase não tenho movimento que se oculte e furte à
minha razão, (...)”.
A obra montaigniana faz parte de uma corrente de revalorização dos dados
sensíveis. Antes da redescoberta dos textos de Sexto Empírico, a contribuição dos filósofos
franciscanos – ao conferir certa preeminência ao individuum perante o universalis,
rebaixando o conceito ou as ideias gerais, para reafirmar a importância da experiência
sensível – parece ter sido decisiva (temos aí Roger Bacon, Ockham, Duns Scot, Rabelais).
Mas, a noção de experiência, seja qual for sua fonte renascentista, sempre contém ainda sua
disposição acidental muito acentuada em função do caráter inespecífico de sua forma: ela
experimenta então a si mesma; seus critérios são vários e vagos. Até que a inspiração
matemática de Nicolau de Cusa e Leonardo da Vinci consiga se impor, estabelecendo o
padrão científico moderno, a relação intuitiva com a natureza, e o elemento de
72

incompreensibilidade e localidade no dado sensível, persistirão. Montaigne, embora


evitando qualquer decreto de necessidade instituído por mão humana, bate-se por esta
diversidade. Uma vez que, “O homem não pode ser senão o que é, nem imaginar senão
segundo sua capacidade” (II, 12, 520), o que é propriamente seu deve ser avaliado: nisto
que ele é está a natureza. “A natureza abraçou universalmente todas as suas criaturas” (II,
12, 456). Sujeito e objeto convergem e divergem continuamente no movimento da
imaginação; justamente porque o julgamento está em solução de continuidade com ela,
pode adquirir certo distanciamento no considerar seu jogo: examinando seus reflexos e
saltos, suas apreensões e expressões, torna-se possível compreendê-la melhor. E isso se faz,
não pela isenção de paixões, mas com a moderação (nascida da contemplação e afirmação
dos contrários) que impede a corrupção da sede da razão sob a pressão das afecções (I, 12,
46-47).

“O julgamento tem em mim um lugar magistral, ou ao menos se esforça


cuidadosamente; deixa minhas inclinações seguirem sua maneira de ser, e o ódio e a
amizade, e mesmo aquela que dedico a mim, sem se alterar e corromper. Se ele não pode
reformar as outras partes a seu modo, ao menos não se deixa deformar por elas: ele faz seu
jogo à parte” (III, 13, 1074).

Pela nossa medida própria, em nossa atitude e estilo pessoais, pela forma mestra de
nossa personalidade, podemos refletir a medida e a harmonia íntimas da natureza
conduzindo-o pela via verdadeiramente plena e vigorosa da saúde (III, 5, 844). A alegria
intrínseca à saúde é consequência da “coligação” interativa de alma e corpo (talvez,
diferentes apenas do ponto de vista da sutileza de suas substâncias na trama fechada da
natureza): tal experiência baseia na consciência o ajuizar-se da salubridade de seus atos e
opiniões segundo a medida de sua natureza. Sensualismo pragmático? De maneira alguma:
“Para dizer a verdade, não cheguei ainda a esta perfeição de habilidade e galanteria de
espírito, de confundir a razão com a injustiça, e meter em derrisão toda ordem e regra que
não se acorde com minha inclinação: (...)” (III, 5, 853). Ora, para Montaigne, aquela mesma
virtude, cujos sinais distintivos são o prazer e a alegria (III, 5, 845), também busca
naturalmente a verdade.
A partir da constatação da inexistência de um critério universal de verdade, o
discurso de Sexto Empírico assumiu uma perspectiva negativa com relação à verdade
filosófica. Basicamente, Montaigne concorda com a inexistência do critério, mas o que se
73

segue daí não pode ser identificado com nenhuma das concepções céticas que lhe
precederam. O ensaísta esteve ocupado em construir uma filosofia moral para seu próprio
uso e que pudesse também servir de referência a outros homens. E, segundo o mesmo, “O
mundo não é senão uma escola de investigação” (III, 8, 928), onde o espírito generoso
busca a verdade por sua força natural:

“Só por fraqueza particular nos contentamos com o que outros e nós mesmos
achamos nesta caça de conhecimento; um mais hábil não se contentaria. Há sempre lugar
para um seguinte, sim e para nós mesmos, e rota para alhures. Não há nenhum fim em
nossas investigações; nosso fim está no outro mundo. E sinal de encurtamento do espírito
quando ele se contenta, ou de lassidão. Nenhum espírito generoso se detém em si: ele
pretende sempre e vai além de suas forças; ele tem impulsos além de sua realidade; se ele
não avança e nem se apressa e não, se acua e nem se choca, só está vivo pela metade; suas
perseguições são sem termo e sem forma; seu alimento é admiração, caça, ambigüidade. E o
que bem manifestava Apolo, sempre nos falando duplamente, obscuramente e
obliquamente, não nos repassando, mas nos ocupando e empregando. E um movimento
irregular, perpétuo, sem padrão, e sem fim. Suas invenções estimulam-se, seguem-se e se
entre produzem uma à outra” (III, 13, 1068).

Note-se como este trecho está envolvido (III, 13, 1066-1070) por uma discussão
acerca das dificuldades de interpretação e expressão da verdade e da virtude, do direito, do
conhecimento, etc, e sobre as relações entre linguagem e realidade de modo geral. Pois, a
questão primeira é: como criar um discurso moral, desde a consciência da dificuldade do
estabelecimento de leis éticas (III, 13, 1070), pelo reconhecimento radical da mutabilidade
da natureza e da imprevisibilidade da fortuna? “Nada de nobre se faz sem risco” (I, 24,
129).
A diferença fundamental entre Sexto Empírico e Montaigne, evidente mesmo no
contato mais superficial com suas obras, está na maneira como ambos usam a linguagem,
estruturando seu discurso. Só chegou até nós a parte destrutiva do ceticismo de Sexto: ela
dava lugar, no plano prático, a um saber técnico baseado na experiência; mas, o teorizar
acerca e a partir da experiência, já não é tarefa a ser empreendida no campo de sua
investigação. Assim, o médico grego nos apresenta o ceticismo como uma espécie de
remédio, na forma de uma técnica verbal depurativa, cuja função, purgar os preconceitos
dogmáticos, em se cumprindo suprimiria simultaneamente a si mesma. Descrevendo esta
imagem em famosa passagem (II, 12, 527), Montaigne alude às dificuldades que teriam os
pirrônicos em exprimir sua concepção filosófica: faltava-lhes, nos diz ele, uma nova
linguagem, pois a assertividade da linguagem comum lhes era inimiga (já que toda
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afirmação comporta uma referência do particular ao universal, mas está em dúvida a


experiência humana da constituição ontológica deste). Em seguida, o ensaísta confecciona
outra imagem para a mesma concepção: “Esta fantasia é mais seguramente concebida por
interrogação: Que sei eu? tal como a trago na divisa de uma balança” (II, 12, 527). O ensaio
é, sob certo aspecto, a criação da linguagem que faltava aos céticos pirrônicos; linguagem
investigadora, de afirmações provisórias, e singular, baseada na verdade pessoal do
ensaísta, tendo por fim seu aperfeiçoamento moral. E por isso, diretamente contra Sexto,
nos Ensaios, o remédio é a própria filosofia: “No entanto, temos este tão doce remédio que
é a filosofia: pois dos outros não se sente prazer senão após a cura, esta aqui agrada e cura
ao mesmo tempo” (II, 25, 690).
A filosofia ensaística considera secundário todo saber especializado e primordial o
bem viver (por exemplo: I, 26, 167; II, 12, 508, 540; III, 8, 926), arte sem arte, apogeu e
origem de toda arte, e sem a qual qualquer técnica ou artifício de pouco valem. Não vai aí
nenhum desprezo obscurantista contra as artes e as ciências particulares (há proveito em
nelas se exercitar: por exemplo, II, 12, 509), porém importa principalmente a maneira como
delas nos ocupamos:

“(...), e acho melhor dizer que o mal provém da maneira ruim com que se aplicam às
ciências; e que, pelo modo como somos instruídos, não é de maravilhar se nem os,
estudantes nem os mestres se tornem mais capazes, embora se façam mais doutos. A dizer a
verdade, o cuidado e as despesas de nossos pais visam apenas mobiliar nossa cabeça com
ciência; quanto ao discernimento e à virtude, poucas noticias. Gritai de um passante ao
nosso povo: ‘Oh! homem sábio!’; e de um outro: ‘Oh! homem bom!’. Não faltará quem
torne os olhos e o respeito para o primeiro. Faltaria um terceiro gritando: ‘Oh! cabeças
pesadas!’ Gostamos de perguntar: ele sabe grego ou latim? Escreve em prosa ou em verso?
Mas, se ele se tornou melhor ou mais avisado, que era o principal, isso fica para trás. Era
preciso se perguntar quem sabe melhor, e não quem sabe mais” 18.

O ensaio é um instrumento do aperfeiçoamento moral montaigniano: “Sinto um


proveito inesperado da publicação de meus costumes, pois isto me serve de algum modo de
regra” (III, 9, 980). O ‘eu’ torna-se, nos Ensaios, sua própria obra: modelar a si é modelar o
texto. E a comunicação tem, aqui, um papel regulador fundamental: mesmo que o acordo
não seja medida da verdade (III, 11, 1028), a relação com o outro é parte da relação consigo
mesmo. Deste modo, a verdade é o lugar ao qual deve tender naturalmente o estilo
18
Talvez fosse melhor traduzir sçavant por sabedor, ou sapiente, pois o ensaísta em geral diferencia-o
do sage, o sábio; em uma palavra, e para usar uma metáfora montaigniana (III, 3, 819), o último forja sua
alma, enquanto o primeiro contenta-se em mobiliá-la. A arte não é senão o controle e o registro da produção
das grandes almas dos homens sábios, levada a efeito pelos sçavants (III, 3, 825).
75

ensaístico, porquanto ele é expressão e extensão de uma atitude moral, bem como meio de
sua experimentação e apuro. E, desta, a melhor definição é: Je laisse faire nature (I, 24,
127); o que, como já sabemos, significa viver oportunamente ou a propósito (e nada tem a
ver com o oportunismo hodierno; por exemplo: III, 1, 792-793; I, 24, 129). Certamente, isto
é algo que não dispensa a arte: dela temos necessidade para talhar, segundo a medida
conveniente à nossa saúde, os limites da caça à verdade e ao conhecimento (II, 12, 559).
Tais limites são encontrados pela arte que nos faz livres: a filosofia. Logo, é com ela que
Montaigne ocuparia um seu hipotético discípulo:

“Pois me parece que as primeiras reflexões de que se lhe deve abeberar o


entendimento devem ser as que regram seus costumes e seu senso, o ensinam a conhecer-se,
e saber bem morrer e bem viver. Entre as artes liberais, comecemos pela arte que nos faz
livres. Todas e as servem de algum modo à formação de nossa vida e a seu uso, como todas
as outras coisas de algum modo servem para isso. Mas escolhamos aquela que para isso
serve diretamente e profissionalmente. Se soubéssemos restringir as dependências de nossa
vida a seus justos e naturais limites, acharíamos que a melhor parte das ciências que estão
em uso, está fora de nosso uso; e que nestas mesmas que usamos, há extensões e
profundidades inutilíssimas, que melhor faríamos em deixar lá, e, seguindo o ensinamento
de Sócrates, deter o curso de nossos estudos à beira dessas, onde falta a utilidade. Ousa
saber, começa: adiar a hora de bem viver é se assemelhar a um camponês que espera que o
rio baixe; mas o rio corre e correrá eternamente (Horácio, Cartas)” (I, 26, 159).

A filosofia vista de certa maneira é também arte. Mas, a sabedoria, a arte da vida,
por ser o grau mais elevado da arte, é natural, pois segue a natureza – grande artista e
grande arte. Lidar com esta – com o movimento, a metamorfose e a fortuna – significa
criar: “Nós outros naturalistas estimamos haver maior e incomparável preferência de honra
na invenção do que na alegação” (III, 12, 1056). E, se há uma economia do todo e uma
providência, ela permanece, e deve permanecer, obscura, sem se expor na claridade de uma
ordem natural óbvia e artificial (Vitam regit fortuna, non sapientia: Cícero, Tusculanas; III,
9, 984). Por isso, Montaigne não representa a natureza, mas, ensaiando colocar-se em
sintonia e sincronia com esta, cria uma ‘natureza’: os Ensaios.
Nem cópia, nem primitivismo, prega o naturalismo montaigniano, porém uma ideia
de invenção como expressão da natureza ou da forma mestra da personalidade: assim o
tempo da frase ensaística traduz frequentemente a ideia expressa e sua construção mimética
permite a Montaigne representar fisicamente seu pensamento. Este fraseado e este tempo
não existiam antes dos Ensaios (Gray 1958: 94-95). Uma linguagem sincrônica permeia a
disposição diacrônica do discurso adquirindo, para o ensaio, riqueza lírica inusitada.
76

Comparando a natureza a uma poesia enigmática, e a filosofia a uma poesia sofisticada (II,
12, 536), o ensaísta elabora uma prosa poética que não trata de aplicar os valores próprios
da poesia à filosofia, porém cria uma poética da natureza que serve à contemplação do
paralelismo interativo entre o principio criativo natural e o artístico através de sua
transposição metafórica na linguagem ensaística.
O ensaísta pinta com palavras: nos seus quadros, nem o mundo, nem o eu, são o que
mais propriamente se torna visível, mas sua convergência no estilo ensaístico, na maneira
montaigniana de entender e trabalhar a linguagem. O estilo, aí, revela um comportamento,
uma atitude, um conduzir-se no cotidiano, que se reflete no discurso e vice-versa: “O
verdadeiro espelho de nosso pensamento é o curso de nossas vidas” (I, 26, 168).

“Quem tiver valor, que o faça aparecer em seus costumes, em seus propósitos
ordinários, ao tratar do amor ou de querelas, no jogo, na cama, na mesa, na condução de
seus afazeres, e na administração de sua casa” (II, 37, 784).

A própria ideia de uma linguagem pictórica já é um desenvolvimento tardio de um


pensamento orientado, antes de qualquer outra coisa, para a vida pessoal.

“Eu louvaria uma alma de diversos andares, capaz de se elevar e de se abaixar, que
esteja bem por toda parte aonde a leve sua fortuna, que possa conversar com seu vizinho
sobre a sua construção, sobre sua caçada, sobre sua demanda, e entreter com prazer um
carpinteiro e um jardineiro; (...)” (III, 3, 821).

Nesta citação, além de encontrarmos mais uma observação montaigniana acerca da


conduta natural da sabedoria, também podemos entrever como o ensaio desenvolve toda
uma arte literária dos níveis, véus e máscaras da verdade. O moi é exibido em seus valores
e julgamentos, mas não lhe é conferido nenhum privilégio em matéria de julgamento: ele
desempenha o papel da modalidade do juízo no emprego modulado de sua fala. O critério
formal judicativo age, assim, em função de diversos graus de verdade, determinando “em
situação” a urgência e a intensidade de seu engajamento.
O julgamento deve seguir a natureza; entretanto, Montaigne implode a tradicional
moldura metafísica da ideia de natureza, fragmentando-a e reunindo-a para o homem
somente em um nível de percepção vizinho ao furor e ao arrebatamento. Nos Ensaios,
deparamo-nos com uma natureza liberada de qualquer substrato essencial, de qualquer
propósito teleológico racionalmente compreensível. Já houve por isso quem a entendesse
como uma anti-natureza, e seu autor como anti-humanista. No fundo, porém, trata-se de
77

uma filosofia que no humanismo teve sua origem e desenvolvimento. O maneirismo, pôde
ser, tanto naturalista, como anti-naturalista, e racionalista, como místico: é neste jogo de
oposições e composições que se movimenta o ensaio. No Renascimento, a imaginação era o
lugar ambíguo onde a continuidade da natureza se ligava à continuidade da consciência.
Para Montaigne, no entanto, aquela vive como estas na variação e no contraste: cabe regrá-
la por um julgamento são e natural. Assim, vimos que o ensaísta não se dedica a negar
dogmaticamente as leis naturais, porém a questionar nossa atitude, teórica e prática, quanto
a estas. Para tanto, deixa de empregar uma linguagem estritamente representativa, do tipo
que parte da certeza da apreensão da verdade e da garantia de sua comunicação, e procura
uma linguagem conotativa com a qual, pela participação explicita do ‘eu’, misturando
narração e reflexão, realiza uma pintura capaz de, através de sua disposição estética, ter um
efeito moral pedagógico.
A natureza será, então, quadro (I, 26, 157), poema (II, 12, 536), música (III, 13,
1089). E da mesma maneira que o naturalismo montaigniano não se inclina à cópia, mas à
invenção, seu maneirismo pode exprimir serenidade e equilíbrio clássicos, mesmo no
universo da coexistência fortuita dos contrários. Pois o ensaísta possui confiança na
natureza, e a confirma pela alegria, contentamento e prazer inerentes à verdadeira virtude.
Ora, se há em sua filosofia algo parecido com um critério prático universal, é este:

“Deveras, ou a razão escarnece de nós, ou ela não deve visar senão nosso
contentamento, e todo seu trabalho tender, Em suma, a fazer-nos bem viver, e com alegria,
como diz a Santa Escritura. Todas as opiniões do mundo concordam neste ponto, que o
prazer é nosso fim, conquanto se sirvam de meios diferentes; de outra maneira, seriam
repelidas de entrada: pois quem escutaria aquele que estabelecesse como fim nossa pena e
mal-estar? As dissensões das seitas filosóficas, neste caso, são verbais. Passemos
rapidamente por tão frívolas sutilezas (Sêneca, Cartas). Há, aí, mais teimosia e picuinhas
do que convém à tão santa profissão. Mas qualquer papel que o homem desempenhe,
sempre joga o seu de permeio. Digam o que disserem, na própria virtude, o último alvo de
nossa visada, é a volúpia. Agrada-me bater suas orelhas com esta palavra que tanto os
contraria. E se ela significa algum supremo prazer e excessivo contentamento, isso se deve
mais à assistência da virtude do que a qualquer outra assistência. Esta volúpia, por ser mais
galharda, nervosa, robusta e viril, não será senão mais seriamente voluptuosa. E à virtude
deveríamos dar o nome de prazer, mais favorável, mais doce e natural, e não de vigor, como
a denominamos. Essa outra volúpia mais baixa se merecesse tão belo nome, deveria ser por
concorrência, não por privilégio” (I, 20, 83).

Se lermos a sequência desta passagem, notaremos como, aqui, ao ironizar o neo-


estoicismo seu contemporâneo, Montaigne o faz a partir de uma ideia que não foi estranha
àquele. Jogando com a noção de fim, o ensaísta reconstrói a clássica crítica epicurista ao
78

estoicismo, mas de um ponto de vista que poderia ser também facilmente assimilado a este:
ora, para o sábio estoico (como em geral para os filósofos helenísticos), a finalidade, o
objetivo, não está em simplesmente chegar ao fim, mas também importa, e principalmente,
a maneira de alcançá-lo. Da mesma forma, o ensaísta não deixa de ser cético (e isto mostra
como estas proveniências são enfim relativas) ao aceitar o critério epicurista: apenas
reafirma, aí, a condição primariamente indispensável da experiência sensível e a
necessidade do julgamento independente de cada situação. “O mal é para o homem bem por
sua vez (Le mal est à l’homme bien à son tour). Nem da dor deve sempre fugir, nem a
volúpia sempre seguir” (II, 12, 493). O prazer e a tranquilidade, atributos consubstanciais
da virtude e da sabedoria, devem ser visados segundo um cálculo racional orientado, não
simplesmente pelo grau de aproximação da verdade, mas também pela forma de investigá-
la:

“(...) a caça é propriamente de nossa alçada: nós não somos desculpáveis de conduzi-
la mal ou impertinentemente; perder a presa é outra coisa. Pois nós nascemos para procurar
a verdade: a uma maior potência cabe possuí-la. Ela não está, como dizia Demócrito,
escondida no fundo dos abismos, mas antes elevada em altura infinita no conhecimento
divino. O mundo não é senão uma escola de investigação. Não se trata de alcançar o fim,
mas de fazer as corridas mais belas. Tanto pode ser tolo aquele que diz o verdadeiro, como
aquele que diz o falso: (...)” (III, 8, 928).

Que se repita: segundo Montaigne, a filosofia tem por fim a virtude (I, 26, 161) –
maneira excelente de agir. Mas, esta não provém do que mais comumente se entende como
conhecimento ou ciência, no sentido de não poder ser obtida pelo simples “encher-se” da
memória. Logo, os Ensaios não tratam de fornecer uma definição universal de virtude, e
não por acaso tal termo vem à cena frequentemente em meio a desenvolvimentos de crítica
linguística: pois a discussão desta ideia constitui, para o ceticismo ensaístico, o campo
próprio à colocação da questão fundamental da determinabilidade discursiva da verdade e
das possibilidades de sua comunicação: “A marca peculiar de nossa verdade deveria ser a
mossa virtude, como ela é também a mais celeste marca e a mais difícil, e que vem a ser a
mais digna produção da verdade” (II, 12, 442).
A virtude procura ser verdadeira, porque busca naturalmente o acordo do dizer com
o fazer (“Nenhuma virtude se acompanha de falsidade; e a verdade não é jamais matéria de
erro”: II, 6, 379; II, 17, 647-648). Entretanto, justamente na tentativa de defini-la evidencia-
se, da maneira mais chocante, a distância entre o dito e o feito (cf. III, 13, 1069-1070),
79

porque, aqui, se confundem os domínios lógico, epistemológico, estético e ético, na


interrogação primordial acerca da implicação e do abismo entre linguagem e realidade.
Para o ensaísta, é em função de um uso pervertido da linguagem (que consiste
principalmente em lhe conferir excessiva importância, em detrimento dos atos), sintoma da
condição humana, que a virtude acaba se tornando mero jargão escolástico. Mas, apesar de
seu nominalismo, Montaigne sabe que a virtude não é apenas uma palavra:

“Este século no qual vivemos, ao menos em nosso clima, é tão chumbado que, nem
digo a execução, mas a imaginação mesma da virtude falta; e parece que não seja outra
coisa senão um jargão de colégio: Eles creem que a virtude não é sendo uma palavra, e em
um bosque sagrado veem apenas madeira para queimar (Horácio, Cartas). Virtude que eles
deveriam honrar mesmo quando fossem incapazes de compreendê-la (Cícero, Tusculanas).
É um penduricalho bom para pendurar em um gabinete, ou à ponta da língua, como à ponta
da orelha, por enfeite” (I, 37, 230).

Por isso, o ensaísta ataca os “pedagogismos” de sua época:

“Recaio frequentemente neste assunto da inépcia de nossa educação: ela se propôs o


fim de nos tornar, não bons e prudentes, porém sapientes: ela o conseguiu. Não nos ensinou
a seguir e a abraçar a virtude e a sabedoria, mas ela nos imprimiu a derivação e a etimologia.
Se a não sabemos estimar, sabemos declinar a virtude; se nós não sabemos o que é a
sabedoria por obra e por experiência, sabemo-lo no jargão e de cor” (II, 17, 660).

Não se trata de falar da virtude, porém de virtuosamente falar: ela não deve ser dita,
mas tomar a palavra. Forma e conteúdo devem fazer-se um, assim como pensamento e
ação. Daí a advertência montaigniana para não nos preocuparmos estritamente com a forma
de sua linguagem (sob o risco de se perder o sentido de suas palavras), mas com a maneira,
ou seja, também com o fundo que a anima:

“Sei bem, quando ouço alguém se limitar à linguagem dos Ensaios, que preferiria
que se calasse. Fazê-lo não é tanto elevar as palavras, como rebaixar o sentido, (...).
Voltando à virtude faladeira, não acho grande diferença entre não saber dizer senão mal, ou
nada saber senão dizer bem. A afetação não é ornamento para um homem (Sêneca, Cartas).
Os sábios dizem que, em relação ao saber não há senão a filosofia, e, em relação à prática,
senão a virtude, que geralmente sejam convenientes a todos os graus e ordens” (I, 40, 251).

A filosofia e a virtude são, portanto, úteis a todos e possíveis nos homens de


qualquer condição social. Representando a vertu o fundo e a força de nossa natureza, só na
medida racional de nossa aproximação desta poderia consistir nosso aperfeiçoamento. A
esse movimento são inerentes a saúde, o prazer, a alegria e a tranquilidade: porque a virtude
nunca os põe como fins exteriores; erro seria reduzi-la ao gozo imediato. É porque ela se
80

contenta em si mesma (I, 39, 241) que pode julgar tendo como solo sua própria solidez
moral, espécie de concordância sempre a ser reconquistada entre razão e vontade, da qual
um dos nomes e condição primeira é a saúde. A forma reflete o conteúdo; o pensamento, a
ação; o corpo, a alma – e vice-versa.
Daí que condenar a vida consagrada ao prazer não seja necessariamente considerá-
lo um mal. E, para o ensaísta, como para Platão, Aristóteles ou Epicuro, o prazer verdadeiro
é bom por si mesmo, e um bem. Sabendo-o, Montaigne não está tão preocupado em
construir uma ética hedonista, como em recuperar todo um lado da questão que concerne à
experiência e à definição do bom e do bem; pois a virtude e a natureza reconciliam os
contrários: “Nem a virtude assim simples, que Ariston e Pirro e ainda os estoicos faziam
fim da vida, lhes pôde servir sem mistura, nem a volúpia cirenaica e aristipica” (II, 20,
673). Tudo é uma questão de medida, proporção, senso, equilíbrio e ritmo. E Montaigne
tenta revalorizar a discriminação sensível na compreensão do bem e do bom, procurando
reafirmar a opinião ingênua e natural de que aquilo que faz bem, pelo menos em algum
sentido, é bom, e vice-versa.
A afirmação do prazer como um bem corre paralela à confiança montaigniana na
natureza, cujo motor é uma apreciação positiva da vida que o ensaísta busca reconstituir, e
a qual se nos tornou estranha. O sentido próprio da virtude antiga sofre um obscurecimento
que principia já na Antiguidade: a identificação de ciência e virtude gera, paradoxalmente,
um desgaste e enfraquecimento de seu sentido próprio e originário, acabando por
desembocar em uma cisão definitiva entre ‘bem’ e ‘bom’; pois, só em função de uma
pretensa completa inteligibilidade da virtude, pode-se definir o dever sem relação com o
agradável. Isolando-se o bem “em pensamento”, permite-se a qualificação ética à parte de
suas implicações fisiológicas e estéticas. Há aqui uma espécie de armadilha lógica que se
arma quando a lógica procura se sobrepor a vida; mas não é esta enfim sua tarefa? E aí está
a aporia. Como a gramática com a linguagem, o método na busca de conhecimento, o
sistema como caminho de estruturação do pensamento, etc. – e daí o problema da relação
entre razão e natureza, ou de sua interação e distinção simultâneas.
Quando Montaigne procura recobrar a unidade harmônica da antiga virtude,
somente como tarefa de reunião do que se tornou contraditório, adverso e fragmentado,
pôde esta se apresentar (e, seguramente, tanto as transformações políticas do período
81

helenístico, como os atos de constituição do indivíduo e estado modernos, ensaiados desde


o Renascimento, têm muito a ver com isso). E, no momento em que começam a ser
produzidas as condições para o nascimento da moderna tecnologia, urge distinguir desta o
verdadeiro conhecimento: ao intuito de possibilitar seu reconhecimento serve o ensaio, o
qual, na experiência, forma o julgamento; o objetivo é a harmonia do homem consigo
mesmo e com a natureza que Montaigne chama sabedoria.

“Gostaria de dizer-lhes que o fruto da experiência de um cirurgião não é a história de


suas práticas, e lembrar que curou quatro pestilentos e três gotosos, se ele não sabe deste uso
tirar algo com que formar seu julgamento, e se não sabe nos fazer sentir que se tenha
tornado mais sábio com o uso de sua arte. Como, em um concerto de instrumentos, não se
ouve um alaúde, uma espineta e a flauta, mas uma harmonia em globo, reunião e fruto de
todo este conjunto” (III, 8, 931).

O mais importante com relação à ciência é o uso que dela se faz – “Toda outra
ciência é prejudicial àquele que não tem a ciência da bondade” (I, 25, 141) –, e nenhum
momento mais oportuno do que hoje para dizê-lo. Porquanto, para nós, muito mais do que
fora para o ensaísta, tornou-se vital renovar a busca do antigo ideal da harmonia. Seu
primeiro passo, como já se assinalou, é o conhecimento de nossa própria condição:
“Poderiam ter-me por sábio, mas em tal condição de sabedoria que eu teria por tolice” (III,
5, 847). É esta disposição que nos predispõe ao aprendizado da virtude: antes de tudo uma
atitude a ser, diariamente, além de reaprendida, reconquistada. Do verdadeiro
conhecimento, como do prazer supremo, não há memória – trata-se de algo que só no
presente se ganha ou se perde, e depende de nosso esforço e exercício contínuos. Por isso,
o fim deste trabalho, obra de formação e construção de si mesmo e do mundo, é prosseguir
(III, 13, 1112), pois tem a extensão do tempo de todos os dias.

* * *
82

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

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University of California Press, 1979.
STAROBINSKY, J. Montaigne en mouvement. Paris: Gallimard, 1982.
TODOROV, T. Montaigne ou la découverte de l’individu. Tournai: La Renaissance du
Livre, 2001.
83

APÊNDICE

O primeiro capítulo dos Ensaios

Amo a modéstia; e não foi por meu alvitre que escolhi esta sorte de falar escandaloso: foi a
Natureza que o escolheu para mim (III, 5, 889).

Voicy mes leçons. Celuy-là y a mieux proffité, qui les fait, que qui les sçait. Si vous le voyez, vous
l'oyez; si vous l'oyez, vous le voyez (I, 26, 167).

A palavra é metade de quem fala, metade de quem escuta (III, 13, 1088).
84

Para que se possa compreender melhor tudo o que foi dito, impõe-se uma análise
mais profunda da maneira montaigniana de investigar e expor ou, se assim se quiser, do seu
método: o ensaio. É o que se pretende no texto deste apêndice. Trata-se do resultado, em
primeiro lugar, de uma exigência de meu orientador de mestrado, Gerd Alberto Bornheim,
que em determinado momento pensou ser necessária uma interpretação ou um comentário
corrido de algum capítulo dos Ensaios: fechando a dissertação, este serviria como exemplo
do funcionamento in loco do método montaigniano, bem como daria, mais que qualquer
outra forma de conclusão, o melhor acabamento ao trabalho – uma exposição sintética dos
resultados de minha pesquisa servindo como demonstração da força analítica da
metodologia aí empregada. Foi o que tentei fazer. E anos depois, remanejado, ampliado e
traduzido, foi publicado pelo Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne (8ª série, nº 37-
38, jan.-jun. 2005, p. 15-30). O republico agora – apenas um pouco modificado – pela
primeira vez em língua brasileira, com a licença da Société Internationale des Amis de
Montaigne.

* * *

Tomemos o primeiro ensaio ('Por meios diversos chega-se ao mesmo fim'): este não
por acaso é a porta de entrada dos Ensaios, sendo consenso mais ou menos geral entre seus
intérpretes considerá-lo como uma espécie de introdução19. Tendo sido notavelmente
enriquecido de edição em edição, e sabendo-se que este provavelmente não foi o primeiro
capítulo a ser escrito20, parece correto acreditar encontrar aí apresentadas ideias

19
Por exemplo: segundo Donald Frame (Montaigne’s Essais: a study. Englewood: Prentice-Hall,
1969, p.75), este capítulo seria uma introdução “natural” ao livro I e aos dois livros da edição de 1580; para
Hélène-Hedy Ehrlich (Montaigne: la critique et le langue. Paris: Klincksieck, 1972, p. 31) uma introdução ao
conjunto dos Ensaios; os quais David Quint (Montaigne and the quality of Mercy. Princeton: Princeton
University Press, 1998, p. xi) lê como um extenso comentário do primeiro ensaio; que, segundo Lawrence D.
Kritzman (Destruction/Découverte: le fonctionnement de la rhétorique dans les Essais de Montaigne.
Lexington: French Forum Publishers, 1980, p. 21), serviria de modelo temático nuclear inicial aos Ensaios; e
para Edwin M. Duval (“Le début des Essais et la fin d’un livre”, Revue d’histoire littéraire de la France, nº 5,
set.-oct. 1988, p. 900), uma introdução “no sentido estrito do termo” para a edição de 1580. No mesmo
sentido, ver também Barbara C. Bowen (The age of bluff, Chicago: University of Illinois Press, 1972, p. 128 e
seq.) e Lino Pertile (“L’esordio di Montaigne”, Rivista di letterature moderne e comparate, nº 25, 1972).
20
Ver a introdução ao primeiro ensaio na edição de referência Villey-Saulnier (Paris: PUF, 1988, p. 7).
Cf. também de Villey, Les sources et l’évolution des Essais de Montaigne, Paris: Hachette, 1933, vol. I, p.
348.
85

primordiais, que Montaigne julgava fundamentais e indispensáveis à compreensão de sua


obra. A interpretação aqui elaborada pretende confirmar esta inferência.
Mesmo desde a época em que a opinião dominante sobre os ensaios iniciais
limitava-se a lhes atribuir pouca importância, o primeiro dentre estes foi estudado com
resultados preciosos. E meu trabalho aqui deve muito às interpretações anteriores, sobre as
quais me apoio para abrir caminho em direção a uma nova leitura deste capítulo decisivo.
Com efeito, este texto poderia ser comparado à abertura de uma ópera, na qual a
maior parte dos elementos ou tópicos a serem desenvolvidos já está presente21. O peso das
noções ensaiadas neste primeiro capítulo pode ser ainda aferido pela frequência com que
marcam sua presença, e por seu posicionamento estratégico, ao longo dos Ensaios. Não só
o primeiro ensaio do segundo livro, porém a própria edição de 1580 (fim do ensaio 37 do
livro II), fecha-se sobre matéria semelhante: a dificuldade de julgar a diversidade,
contrariedade e inconstância dos atos e opiniões humanas a partir de normas gerais fixas.
Além disso, muitas outras passagens, e mesmo capítulos inteiros, têm origem na mesma
matriz temática, que é sempre recorrente na filosofia ensaística22.
Seguindo de perto a argumentação deste primeiro ensaio, veremos como ele já nos
apresenta desde o inicio as grandes linhas da obra, colocando-nos em contato com um novo
uso da linguagem ao construir um texto de significação multifacetada e “pluriarticulada”,
onde as ideias e sua composição formal completam-se e se auxiliam, perfazendo uma
unidade complexa que se desenvolve em um movimento singularíssimo de desdobramentos
inesperados.

* * *

A questão capital deste ensaio, enunciada no seu título, se concretiza no primeiro


parágrafo na dupla proposição posta em jogo: existem duas maneiras de amolecer o
21
Anthony Wilden (“Par divers moyens on arrive à pareille fin: a reading of Montaigne”, Modern
Language Notes, vol. 83, 1968, p. 597) chega a dizer que o título da “novel” montaigniana é aquele do
primeiro ensaio. E de forma semelhante Michael L. Hall (“Diverse ways: Montaigne’s Ethos and the Rhetoric
of Indirection”, Montaigne Studies, vol. XIV, nº 1-2, 2002, p. 73) pensa que, sob um certo aspecto, Montaigne
tenta em sua obra demonstrar o que é sugerido no capítulo inicial.
22
Por exemplo, Ann Hartle (“Montaigne and skepticism”, In The Cambridge companion to
Montaigne, ed. Ulrich Langer, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 196-198) vê ainda o
primeiro capítulo do terceiro livro partilhando da semelhança assinalada entre os capítulos dos dois primeiros
livros por desenvolver um procedimento dialético que será aqui também notado como essencial.
86

coração daqueles que querem de nós se vingar (se é o caso de terem a nós e, portanto, “a
vingança, em mãos”); a mais comum é comovê-los pela nossa submissão, inspirando-lhes
piedade; no entanto, a bravura e a constância, meios totalmente opostos, operam por vezes
o mesmo efeito. O ensaísta começa ilustrando as possíveis atitudes. Seguem-se três
exemplos nos quais a virtude, com seu brilho estonteante e sua atração simpática exercida
sobre aqueles que participam de seu movimento, salva da vingança. Primeiro dois
exemplos que pintam a virtude segundo a acepção mais corrente na mentalidade da nobreza
francesa da época – a valentia guerreira – levada ao extremo – o coração heroico que não
pode ser vencido. O terceiro exemplo, porém, se destaca, pois não houve lá, nem submissão
completa, nem desafio ofensivo, muito embora tenha havido bravura, constância e piedade.
Tendo sitiado e forçado à rendição a cidade de Weinsberg em 1140, o imperador Conrado
III perdoa somente as mulheres nobres com um salvo-conduto que lhes permitia levar com
elas o que pudessem carregar sobre seus ombros; estas decidem então assim carregar seus
maridos, seus filhos e mesmo seu governante, o Duque; amolecem desta forma a alma do
imperador e obtém seu perdão. O “coração magnânimo” das gentils-femmes (“cavalheiras”,
mulheres-nobres) da Baviera, a singularidade desta virtude feminina que não se reduz a
mera castidade23, interessa também por romper com o código estoico de conduta militar
que alguns creram ler na primeira edição dos Ensaios. Temos aí um excelente exemplo da
maneira como o pensamento montaigniano procede por desdobramento do que está
presente em germe desde a sua forma primeira: este terceiro exemplo já comporta algo que
permitirá de ir além da questão posta no começo.
Montaigne, então, em uma adição aparentemente digressiva, examina a si mesmo
frente aos dois meios retratados e conclui que se deixaria levar facilmente, tanto por um,
como por outro, mas ainda mais naturalmente pela compassion24 do que pela estimation.
Nesta primeira adição feita na edição de 1588, vê-se ainda que Montaigne não se posiciona

23
Em geral a única qualidade moral profana atribuída à mulher pela mentalidade medieval mais
comum. Esta virtude feminina descrita neste exemplo – a um só tempo amorosa e guerreira – constituía um
tópos retórico privilegiado na união dos contrários característica da filosofia moral montaigniana cuja
referência mais marcante encontra-se na evocação da figura de Bradamante no De L’Institution des Enfans (I,
26, 162); cf. Carol Clark, “Bradamante, Angelica and the eroticizing of Virtue in Montaigne’s Late Writing ”,
Montaigne Studies, vol. VIII, nº 1-2, 1996.
24
Montaigne – a quem a compaixão era natural (III, 13, 1100) – critica, aqui, não só o estoicismo, mas
um de seus mestres: Sêneca. É Villey (edição dos Ensaios, p. 1275) quem esclarece: “Não encontrei nenhuma
influência do De Clementia de Sêneca: para Sêneca a compaixão é um vício; para Montaigne, é a essência da
bondade natural, (...)”.
87

somente no ponto de vista do vencido, mas também no do vencedor. E, no final do


parágrafo, a referência ao estoicismo alude à noção de “paixão” (passion), pedra de toque
para as filosofias helenística e renascentista e conceito central para a concepção estrutural e
formal do ensaio – é sobre o fundo de compreensão principalmente desta ideia, ou no seu
ensaio, que os quatro primeiros capítulos parecem ter sido construídos.
Na sequência imediata do texto, o autor declara: “Estes exemplos me parecem
muito a propósito, porque neles se vê essas almas assaltadas e postas à prova (essayés) por
estes dois meios, em sustentar um sem se abalar e curvar sob o outro”. Deixa, assim, claro
desde já um dos sentidos mais fortes de ‘ensaio’: a alma, ou a personalidade,
experimentada pelas afecções que a perpassam. Os Ensaios procuram pintar e compreender
este movimento, pois depende da natureza de quem é afetado, e da qualidade da paixão que
o afeta, a reação a certa situação ou determinado ato. Assim, prossegue Montaigne, a
compaixão surge mais frequentemente no coração das naturezas mais fracas (como as das
mulheres e crianças) e do vulgo. Ao contrário, a alma que desdenha choros e súplicas e só
se rende à reverência diante da “santa imagem da virtude” é uma alma forte, nobre, viril.
Notemos a ironia característica de Montaigne: ele, aqui, coloca a si mesmo – desde que se
define como homem de natural compassivo – entre as naturezas fracas ou vulgares. Essa
ironia é um elemento constante na retórica ensaística; desta maneira, o ensaísta denota o
apreço e o respeito do qual era alvo, na época, por parte de seus contemporâneos,
demonstrando confiança de ser compreendido em uma argúcia de estilo que, como bem se
sabe, possui um teor metodológico. Outro ponto digno de atenção: como Montaigne desde
o início colocou-se no papel de juiz da atitude daquele que pede piedade, é ele mesmo um
vencedor que perdoa e, portanto, segundo seus próprios termos até aqui, um fraco-forte ou
vice-versa.
Retornemos ao terceiro exemplo: este possui uma coloração diferente dos anteriores
e dos que se seguirão. As mulheres, aí, não exibem qualidades guerreiras ou determinação
agressiva, porém, mesmo com sua “fraca alma”, fazem sua virtude aparecer de tal modo
que até a “alma forte”, por natureza pouco propensa à piedade, rompe em pranto. Note-se a
descrição da emoção do algoz: ele é tomado de “grande prazer” ao contemplar a “gentileza
[= nobreza] da coragem” das mulheres da cidade vencida. Não se trata da simples oposição
de um exemplo aos anteriores. Por meio dele, Montaigne flexibiliza sua posição, alarga seu
88

horizonte de análise: estuda, ensaia. Trabalha de maneira absolutamente única na história


da filosofia, colocando em cena motivos, afecções e determinações ímpares, ações e
reações de uma qualidade toda especial, que apontam para o potencial oculto e mutante do
homem. E é o que há de insuspeito e imprevisível nos indivíduos e nos eventos – em si
mesmos resultantes do cruzamento de uma multiplicidade móvel de relações complexas
entre ser e não-ser se desdobrando em diversos níveis – que exige esta maneira tão singular
de filosofar: sabe-se bem aí que, nem o autor, nem nós, leitores, estamos isolados, postados
em lugares neutros, como sentinelas que pudessem observar de fora esta configuração
instável de forças que chamamos natureza; e que, dada tal condição, o único meio de
aprender, com esta e nesta, é tomando consciência da interação entre os seres, da dinâmica
participação universal cujo nome é justamente “natureza”. A invenção do ensaio permite a
Montaigne estar simultaneamente dentro e fora disto que se experimenta, permite circular
em meio às diversas possibilidades de subjetivação e objetivação, através de uma nova
utilização da linguagem que combina diacronia e sincronia, narração e reflexão. Por esta
via, o ensaio será a escritura que se dobra sobre si mesma para se reinventar sem cessar.
É assim que já parece haver no terceiro exemplo, pela sua ambiguidade mesma, um
tom de passagem que prepara a seguinte inversão completa da questão. Nos primeiros dois
exemplos, aquele do príncipe Eduardo e o outro de Scanderberg, a virtude reconhece a
virtude: trata-se da admiração (estimation) ou a estima do alto valor. No terceiro exemplo,
temos a compaixão, porém de um tipo todo especial, partindo da alma “que tem em afecção
e honra um vigor másculo” pela virtude feminina a qual, de certa forma, é tão dúbia como
dupla, pois tanto se submete (ao decreto do vencedor), quanto é constante e brava
(afrontando sua cólera com temperança e sagacidade), preenchendo as duas possibilidades
enunciadas no primeiro parágrafo do texto. Mas é no quarto exemplo que encontramos a
primeira contraposição virtual face ao real problema do capítulo que só agora começa a ser
visível em sua real envergadura: como prova o comportamento do povo de Tebas
libertando Epaminondas, também o vulgo (ou seja, as “almas menos generosas”) é capaz
do espanto, admiração e perdão perante a “altura” (hautesse) da coragem que o desafia.
Frustra-se, portanto, quem esperava de Montaigne algo como uma declaração conclusiva
acerca de semelhantes que se atraem e se reconhecem, que levasse a uma apologia da
virtude nobre e santa e, por conseguinte, a alguma regra de conduta que estabelecesse, por
89

exemplo, que se deva implorar ao povo e ser bravo face à nobreza. E esta desilusão é um
dos efeitos mais constantes da pedagogia ensaística.
A verdadeira intenção de Montaigne no tratamento do tema somente no quarto
exemplo se deixa perceber, ao mesmo tempo em que se revela a originalidade de seu
procedimento: é como se ele preparasse uma armadilha didática para a possível vaidade e
presunção de seus leitores. O efeito é de um dar-se conta que faz a atenção do leitor então
retroagir ao sub-repticiamente antes afirmado e que só agora pode ser compreendido em
sua integralidade. Ao ser surpreendido no beco sem saída do falso problema até o qual foi
guiado (em parte, por si mesmo), o leitor é forçado a reexaminar a questão e a si: muitos
caminhos, nos Ensaios, conduzem até espelhos – e, através destes, a passagens secretas que
conduzem a saídas inesperadas, janelas para novos horizontes.
Vejamos, agora, como Montaigne empreenderá os ataques finais contra a “santa
imagem da virtude”. No primeiro, aponta a alma de um rei insensível à virtude que mesmo
seus soldados podem reconhecer. Porém, o personagem é Dionísio, o Velho (o mesmo que
vendeu Platão como escravo25), ele mesmo de duvidosa virtude, não sendo, por isso, um
exemplo característico de “alma forte”.
Segue-se a famosa passagem:

“[A] Certes, c'est un subject merveilleusement vain, divers, et ondoyant, que


l'homme. Il est malaisé d'y fonder jugement constant et uniforme” 26.

O homem é vário no julgar e difícil de ser julgado... O cético não conclui de forma
definitiva: ele persiste na investigação. Há, aqui, uma espécie de andante dramatúrgico, que
trabalha abertamente com nossa percepção de um ponto de vista estético, jogando com
nossas afecções27: caminhamos, pode-se pressentir, para um desfecho dramático.
O último exemplo é decisivo; ele segue “directment contre” os primeiros: mostra-
nos Alexandre, “o mais corajoso dos homens e tão clemente ao vencidos”, exercendo
livremente sua cólera e crueldade contra, precisamente, a virtude combativa e corajosa que

25
Diógenes Laércio, III, 19; Ensaios, III, 7, 920.
26
“Certamente, sujeito prodigiosamente vão, diverso e ondulante é o homem. Difícil é fundar sobre ele
juízo constante e uniforme” (I, 1, 9).
27
Montaigne, como Petrônio e outros, compara o mundo a um teatro (III, 10, 1011), e louva seu papel
na educação e nos costumes em geral (I, 26, I76-177). No mais, é preciso lembrar também que dramaturgos
como Webster, Marston e Shakespeare usaram expressões e textos dos Ensaios em suas peças.
90

ele mesmo possuía em alto grau, e a qual, nos dois episódios narrados, não foi suficiente
para lhe provocar empatia, solidariedade, admiração ou compaixão. Mas não se trata aqui
de simplesmente condenar a atitude cruel de um tirano (ainda que tal seja o caso); é bom
marcar que tal mancha na reputação de Alexandre, o Grande, não será suficiente para
Montaigne o rebaixar da condição de ser um dos três “homens mais excelentes” 28.
Parece claro que está em jogo, não expor uma verdade absoluta, mas uma relativa e
circunstancial. E isso é tanto mais evidente se notamos que as dificuldades de fundar um
julgamento preciso e definitivo no âmbito do que é humano retornam sobre si mesmas,
mantendo a discussão em aberto. Ela permanece simplesmente dada porque a tarefa de
discerni-la nitidamente, através de seu ensaio (que é, aí mesmo, ensaio da natureza do autor
e de seus leitores) constitui o fim e a origem, a matéria e a forma deste capítulo. Os temas
que orientam seu desenvolvimento (que são, aqui, somente aflorados) extrapolam este
enquadramento e transbordam para os capítulos seguintes, bem como refluem daqueles
para este, traçando as diversas linhas de pesquisa dos Ensaios.
Devemos apreciar atentamente a condução da argumentação em um texto que
demandou vinte anos para tomar seu presente aspecto: o ensaísta põe um problema e duas
maneiras de encará-lo; adianta certos exemplos que inclinam nosso olhar para um dos
lados, lidando com nossos preconceitos através de uma ironia velada e, súbito, tira-nos o
chão com contra exemplos, fechando o caminho para qualquer dos lados e nos forçando a
alcançar uma perspectiva mais abrangente, elevada e aberta; sua ‘não-conclusão’
(“Certamente, sujeito prodigiosamente vão...”) efetua, como em uma peça teatral ou
poética, o reconhecimento parcial do verdadeiro problema, preparação para que este, no

28
Essais, II, 36: note-se que este texto, o último na sequência, é cronologicamente o primeiro, uma vez
que o exemplo de Alexandre em I, 1 é apresentado somente na edição de 1588. Notemos também que a
próxima ocorrência do nome do conquistador nesta segunda edição (I, 6, 29), coloca na boca “deste grande
Alexandre” uma citação de Quinto-Cúrcio que cabe muito bem, ainda que em sentido contrário, para o tema
do primeiro ensaio: “Prefiro ter que me lamentar da fortuna do que me envergonhar de minha vitória”. Talvez
para compreender a atitude de Montaigne diante de Alexandre, seria preciso se lembrar que para o ensaísta a
personalidade de cada um de nós consiste em um todo complexo em que a paixão, a razão, o vício, a virtude,
etc., coabitam; e esta qualidade inconstante e contraditória de nossa humanidade se encontra por vezes
realçada nas almas extraordinárias da Antiguidade (dado o vigor de seu espírito: I, 49, 299), capazes
simultaneamente de grandes bens como de grandes males. Com relação ao Alexandre de Montaigne, ver
James J. Supple, “Vices and Virtues: Montaigne and Alexander”, Montaigne Studies, vol. XIV, nº 1-2, 2002.
Não resisto, por fim, a levantar a hipótese de que Montaigne (cuja filosofia moral é profundamente
influenciada por Aristóteles) esboça nisto uma crítica implícita à pedagogia aristotélica visando sua principal
produção, Alexandre, a partir da ideia (que se encontra já em Petrarca e é clássica no humanismo) da
insuficiência de uma ética que apenas defina logicamente o bem sem convocar retórica e praticamente para
ele.
91

final, se mostre inteiramente. O texto nos coloca, assim, diante de um conjunto de


problemas: exibe a inconstância humana e seu julgamento impossível e imprevisível;
mostra-nos a contradição entre nossas convicções morais ou ideológicas e a realidade
observada; leva-nos a considerar o inesperado nos eventos e nas reações humanas,
apontando para os móveis meios e resultados não previamente, ou mesmo posteriormente,
discerníveis de nossas ações (assinalando, aí, de passagem, o que chamamos hoje de
dimensão inconsciente da alma humana) 29.
No último trecho do ensaio (produto da última fase da obra montaigniana)
assistimos o próprio vulgo, antes aparentemente menosprezado, encarnando a virtude que o
que grande Alexandre decide passar pelo fio da espada. As ações do homem não são
previsíveis, pois seu julgamento varia: logo, não é possível saber com certeza que conduta
– se um dia estivermos à mercê do inimigo – seria a mais eficaz. Se insistirmos em obter
uma resposta direta e simples a tal problema prático proposto pelo primeiro capítulo dos
Ensaios, poderemos encontrá-la (e posta, aliás, de maneira profundamente significativa),
não aqui, mas na frase final de outro ensaio deste mesmo livro (I, 15, 69): “Assim,
sobretudo é preciso se guardar, se possível, de cair nas mãos de um juiz inimigo, vitorioso e
armado”.

* * *

Dito isso, vamos examinar o texto mais de perto.

29
Há aqui evidentemente forte influência da ironia e da maiêutica socráticas, como notou Hélene-
Hedy Ehrlich (op. cit., p. 33) em sua esclarecedora interpretação do primeiro ensaio. O método “(...) consiste
em avançar um argumento para refutá-lo em seguida – método no qual se inspirou Pascal e também a
pedagogia jesuíta no jogo do pro et contra. A complexidade da questão se descobre a medida que o jogo de
contrastes prossegue” (ibid., p. 35). O melhor lugar dos Ensaios para observá-lo é na Apologia (II, 12), onde
sofre particular radicalização: voir Fabienne Pomel, “La fonction critique de l’ironie dans l’Apologie de
Raimond Sebond”, Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne, série 7, n. 35-36, 1994. O ensaísta
experimenta colocar-se de maneira a permitir a compreensão de realidades e possibilidades nas coisas, em si
mesmo e nos outros que os preconceitos próprios e coletivos bloqueavam. O mais interessante neste
procedimento é seu aspecto relacional: o conhecimento de si passa necessariamente pelo conhecimento do
outro. Fechar os olhos para si é fechar os olhos para o mundo, e vice-versa. Não se trata de ensinar
diretamente, mas de partilhar a natureza essencial (no sentido de um “próprio” que nos une a todos, por
caminhos diversos, na condição humana) do autor, do leitor e, por consequência, do homem. A virtude, assim,
não é exclusividade dos nobres, e estes não são tão virtuosos como se imagina: para o humanista a verdadeira
nobreza é aquela do espírito.
92

É significativa, nas antíteses postas neste primeiro ensaio, a repetição de palavras


como toutesfois, quelquefois, peuvent: elas assinalam a passagem da reflexão acerca da
universalidade de uma máxima à singularidade dos exemplos históricos 30. Só se conhece a
ação humana no caso singular: o padrão formal haurido da analogia com outras ações não
dá conta de suas condições e razões particulares. Mas atenção: isto não quer dizer que
recusar toda forma de generalização, de referência ou modelo, seja a intenção primeira ou
última do autor. Trata-se de examinar, experimentar, ensaiar. Ora este verbo – essayer –
destaca-se no capítulo em questão: primeiro tomado na sua acepção mais larga (tentar) é
empregado no segundo exemplo em uma construção participial que permite a Montaigne
combinar vários planos de ação31:

“Scanderberch, (...) suyvant un soldat des siens pour le tuer, et ce soldat ayant
essayé, par toute espece d'humilité et de supplication, de l'appaiser, se resolut à toute
extrémité de l'attendre l'espée au poing” (I, 1, 7).

Em seguida, é inserido em um jogo fonético (“assaillies et essayés”) que lhe


confere o tom violento próprio ao verbo contíguo:

“(…) d'autant qu'on voit ces ames assaillies et essayées par ces deux moyens, en
soustenir l'un sans s'esbranler, et courber sous l'autre” (I, 1, 8).

Estas são ocorrências que já o texto da primeira edição dos Ensaios trazia. Na sua
primeira versão, esse capítulo poderia ser lido como um elogio estoico à coragem, bela
mesmo quando, no desenrolar dos acontecimentos, se revela impotente. Esta impotência,
tanto quanto a verdadeira vitória conquistada pelo valor daquele guerreiro que mesmo a
iminência da morte não detém, encontrarão expressão no último emprego do verbo
“ensaiar” neste capítulo:

“Nul ne fut veu si abatu de blessures qui n'essaiast en son dernier soupir de se
venger encores, et à tout les armes du desespoir consoler sa mort en la mort de quelque
ennemi” (I, 1, 10).

30
Hugo Friedrich, Montaigne, Paris: Gallimard, 1968, p.159; Karlheinz Stierle, “L’histoire comme
exemple, l’exemple comme histoire”, Poétique 10, 1972, (IV).
31
Floyd Gray, Le style de Montaigne, Paris: Nizet, 1958, p. 55.
93

O brilho desta virtude que não pode ser domada, um dos assuntos principais deste ensaio,
continuará a sê-lo da obra como um todo, mesmo se prevalece cada vez mais o tom próprio
a Montaigne de uma contemplação serena da trágica condição humana.
Consideremos agora as adições da edição de 1588: a primeira (logo após o terceiro
exemplo), importantíssima, testemunha um dos momentos da progressiva “personalização”
dos Ensaios, marcando a crítica montaigniana da postura estoica. A segunda (o exemplo da
conduta de Alexandre em relação a Bétis) realça a incerteza da relação entre os motivos e o
caráter de um homem e seus atos (a respeito dos quais o ensaísta suspenderá seu juízo até a
última redação do texto). A realidade do ato não pode ser rigidamente interpretada segundo
os princípios de alguma moral, mas apenas ser constatada. O homem pode agir, tanto por
uma causa, como por outra (e nem ele mesmo pode, boa parte das vezes, reconduzir seus
atos aos seus motivos virtuais): nossos prognósticos não esgotam sua imprevisibilidade,
nossos julgamentos não o conseguem enquadrar ou resolver. Em 1588, o ensaio acabava-
se, então, em um problema. A audácia nascida do desespero, ou a coragem que se sustenta
até o fim, na situação-limite em que o inimigo nos tem à sua mercê, possui utilidade incerta
desde a primeira edição. Mas, lá, ela ainda poderia parecer provável: na nova versão, o
julgamento aprofunda-se na aporia.
As mudanças que Montaigne traz ao texto em seus últimos anos desembocam,
entretanto, em uma meditação acerca do caráter trágico do heroísmo e da ineficácia da
grandeza estoica; e o silêncio do narrador-juiz no fim do ensaio ressoará de maneira ainda
mais significativa32. Notemos como certa rigidez retórica, presente na primeira edição, se
suaviza nos detalhes das modificações estilísticas e na variação dos procedimentos
discursivos. Razões estéticas presidem alterações de ritmo e de termos; elas são
determinadas, por sua vez, pelas mesmas diretrizes filosóficas que misturam, aí, narração e

32
É um desenvolvimento do que lá se encontrava desde o começo (ver G. A. Pérouse, “Le seuil des
Essais”, in Claude Blum et François Moreau (org.), Études Montaignistes. H. Champion: Paris, 1984, p. 215-
221). As modificações sofridas pelo ideal de sabedoria são paralelas ao desenvolvimento de ensaio ele mesmo
no correr do tempo. Nos primeiros capítulos – que “puent un peu à l’étranger” (III, 5, 875) – o sábio estóico,
modelo inculcado por sua educação, serve de referência (jamais de maneira estrita, porém, pois que
Montaigne já se permite objeções ao estoicismo). Mas a subversão geral dos valores normativos levada a
efeito no ensaio acarreta a redefinição de seus próprios parâmetros e ideais. Veja-se que de um ponto de vista
histórico, como notou muito bem Geralde Nakam (Montaigne: la manière et la matière. Paris: Klincksieck,
1991, p. 170), esta evolução exprime também a angústia de Montaigne diante da escalada de um perigo: a
tirania. Aliás, toda subversão epistemológica, ética e estética empreendida nos Ensaios tem por um de seus
alvos mais importantes a questão da atitude conveniente frente à autoridade (e suas consequências) – questão
crucial para a época.
94

reflexão; e o ensaio em tela reteve em seu tecido as três conclusões que, ao longo do tempo,
lhe deu Montaigne, retratando o movimento de seu julgamento e, por ele, a natureza da
“forma mestra” de sua personalidade; em sua sucessão e construção quase musicais, temos
excelente introdução à arte poética da filosofia ensaística.

* * *

Se o assunto do ensaio é o homem, sua forma reflete a tendência humanista de


renovação da linguagem. É preciso ver, no entanto, como o pensamento montaigniano
opera uma revolução dentro do humanismo:

“Há nos objetos que se manejam partes secretas e imprevisíveis, notadamente, na


natureza dos homens, condições mudas, sem mostra, desconhecidas por vezes pelo
possuidor mesmo, que se manifestam e despertam por causas sobrevindas” (III, 2, 814).

O título do primeiro capítulo é um “lugar-comum” humanista, enunciando ao


mesmo tempo o tema do ensaio e uma espécie de provérbio útil (espécie de guia de
conduta). Ora, como se sabe, studia humanitatis é o interesse pelo estudo de gramática,
retórica, poesia, história e filosofia, que caminha a par com a renovação da compreensão da
Antiguidade. Um humanista é, de forma geral, um homem preocupado com as maneiras de
usar a linguagem e de viver – e as implicações entre uma coisa e outra. No alto
Renascimento – sob o impacto fascinante da verdadeira amplitude do saber antigo – muitas
vezes serão confundidas sabedoria, eloquência e mera repetição dos autores antigos. O
colégio em que Montaigne estudou a partir dos seis anos era dedicado à tarefa de ensinar o
latim; visava-se a assimilação do estilo e do espírito dos Antigos. Para tanto, a técnica
pedagógica central envolvia o uso de cadernos de anotações conhecidos como “livros de
lugares-comuns” nos quais o vasto corpo da literatura antiga era gradualmente posto à
disposição, filtrada e organizadamente. O lugar-comum servia assim de fio condutor, tanto
para a escrita, como para a vida.
É uma hipótese plausível a de que o ensaísta tenha composto os Ensaios com a
ajuda de seus próprios cadernos de lugares-comuns33. No entanto, seu autor emprega suas

33
Roger Trinquet (La jeunesse de Montaigne. Paris: Nizet, 1972, p. 29, n. 84) pensa que o primeiro
ensaio é um resultado bem característico deste procedimento. A forma primeira dos Ensaios seria, pois,
95

anotações menos como recurso mnemônico do que como instrumento de um pensamento


no qual teoria e ação, arte e vida, ética e estética não cessam de interagir. “Por caminhos
diversos chega-se ao mesmo fim” (Par divers moyens on arrive a pareille fin): porém, no
final, Montaigne terá demonstrado que não só por meios opostos chegamos ao mesmo fim,
mas também que a fins diversos por meios idênticos somos levados. O ensaísta subverte,
assim, o lugar-comum em virtude de uma maneira de argumentar que lhe era peculiar. O
texto trabalha com a justaposição de oposições sucedendo-se desde o título (onde “divers”
significa mais “opostos” do que simplesmente “diferentes”), arguindo “de ambos os lados”
ou “em ambos os sentidos”, in utramque partem34. O resultado final é a transformação, no
ensaio, deste instrumento do ceticismo acadêmico no de um ceticismo ainda mais radical, e
que possibilita a Montaigne reformular o programa humanista de educação. A
inconclusividade e a suspensão do julgamento em muitos dos primeiros ensaios resulta da
característica original do modo in utramque partem de raciocínio, cuja principal serventia
consistia em ensinar a aplicar normas relativas à conduta humana em situações particulares;
metamorfoseando-o, Montaigne irá, em vez de construir lugares-comuns, destruí-los. Em
síntese, o ensaísta transforma um instrumento de estabelecimento e exploração de verdades,
em uma maneira de procurar a verdade. De forma semelhante ao que fez com o estoicismo,
o movimento de crítica e aprofundamento simultâneos que perfaz o ensaio, remodela o
ceticismo para fazer deste um instrumento de pesquisa – e assim, ao mesmo tempo em que
o reconstrói, o reconduz a sua forma originária.
Mas, para além da recepção do ceticismo antigo, há muito mais na criação e
aperfeiçoamento do ensaio. Pois este, fundindo diversas correntes de pensamento (como
acontece com a retórica humanista em geral) na fundação de um novo método para a
filosofia moral, recebe a influência de vários outros saberes, matrizes teóricas e formas
culturais; por exemplo, história e poesia, direito e medicina. O ensaio apresenta um caráter
investigativo e experimental tal que, dados obtidos como em um processo, tratados como

tributária de um gênero de escritos largamente difundido desde a baixa Antiguidade, encadeando citações
segundo temas ou palavras-chave – os testimonia (Carlo Ginzburg, Occhiacci di legno, Milan: Giangiacomo
Feltrinelli ed., 1998, chap. 4, 1; ver também Pierre Villey, Les sources & l’évolution des Essais de Montaigne,
Paris: Hachette, 1933; E. Auerbach, Mimesis, Berna: A. Francke, 1946; Terence C. Cave, The cornucopian
text, Oxford: Oxford University Press, 1979).
34
Sobre os loci communes e o modo de argumentação in utramque partem, sua origem aristotélica, sua
história, sua voga na Renascença, sua assimilação e transformação por Montaigne, ver Zachary S. Shiffman,
“Montaigne and the rise of skepticism in early modern Europe: a reappraisal”, Journal of the History of Ideas,
oct.-déc. 1984, vol. XLV, nº 4, p. 163.
96

testemunhos e evidências, são confrontados com os de uma anamnese terapêutica, em uma


rapsódia polifônica na qual epistemologia, ética, fisiologia e estética não se separam. O
ceticismo ensaístico não permanece encerrado em si mesmo. Criando uma forma de
filosofar cujo fim, de certa forma, está nela mesmo, ou em sua própria evolução, mas que
precisamente por isso não se fecha sobre si, Montaigne empreende a construção e
exposição de um método que permite fazer convergir o conhecimento e a virtude, a busca
da verdade e a busca da felicidade. Pondo em questão nossa relação com o mundo – nossa
relação com o outro, com a alteridade e alternância, tanto fora, como em nós –, o ensaio é
um meio de experimentação e aperfeiçoamento de nossa conduta e personalidade por meio
da dúvida. Tal como a verdade não pode ser concebida como simples adequação do
discurso aos fatos, a ideia da ação correta, do bem viver que nos levaria à felicidade, torna-
se problemática, desde que, não apenas a conexão de nossa razão com qualquer razão
universal, mas as noções mesmas de razão e universal, de “eu” e mundo, são aí
desconstruídas. Sujeitos e objetos dobram-se e se desdobram multiplicando-se ao infinito a
partir das inúmeras perspectivas pelas quais apenas se constituem. Faltam os padrões que
poderiam servir como critérios ou referências seguras para se julgar da aproximação da
verdade porque falta a percepção da verdade ela mesma: e assim muito frequentemente a
verdade não se encontra por meio da verossimilhança35. Acreditar nisto seria já partir de
algum esquema metafísico pressuposto ou implícito. E mesmo que existisse tal esquema
que organizasse os seres em relações ontológicas necessárias, em uma ordem natural das
coisas, o homem não disporia de nenhuma garantia de algum critério que lhe assegurasse a
compreensão definitiva. “Não temos nenhuma comunicação com o ser, (...)” 36. O cético
ensaísta – aquele que continua sem cessar a experimentar, a buscar a verdade, e deste modo
a se exercitar e amadurecer – não afirma ou nega de maneira definitiva (ou afirma e nega
diversas vezes em ocasiões diferentes, o que dá no mesmo) a existência de uma ordem
35
É interessante encontrar no Tristam Shandy de Lawrence Sterne precisamente esta afirmação – ‘La
Vraisemblance (as Bayle says in the affair of Liceti) n’est pas tousjours du Côté de la Verité’ (em francês no
original: R. M. Hutchins (ed.), Great Books of the Western World, Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc.,
1952, vol. 36, p. 349) – logo após uma citação de Montaigne. Mas a desconfiança deste em relação ao critério
de verossimilhança nada tem a ver com o recusá-la em favor de uma evidência absoluta exclusiva, que
negasse todo grau intermediário de certeza entre o verdadeiro e o falso – como o fará, por exemplo, Descartes
(Discours de la méthode, Paris, Vrin, 1938, p. 50-51).
36
II, 12, 601. A maneira mais fácil de se desviar de tal ordem universal (abstração feita da questão de
sua existência ou configuração) seria crer que nós já a compreendemos: nos Ensaios, a presunção é sempre o
grande inimigo. Ver Celso M. Azar Filho, “Montaigne et la justice universelle”, Bulletin de la Société des
Amis de Montaigne, 8a. série, nº 21-22, jan.-jun 2001.
97

universal: ele explora suas possibilidades, pesquisa, e nesta pesquisa mesma ensaia criá-la,
ensaiando viver de maneira feliz, adequada, harmoniosa, prazerosa, sábia, virtuosa, etc. –
em se formando assim, consequentemente, a si mesmo.
Esta atitude poderia ser descrita como resultado de um desenvolvimento particular
do método dos lugares comuns. Este, procurando delinear as ideias fundamentais que
organizam a realidade pelo estabelecer de suas referências cruzadas, tenta restabelecer
sobre o papel os modelos da trama natural que constitui e sustenta o universo 37. Aplica-se a
tornar, mais que compreensíveis, visíveis, legíveis, as relações mais ou menos sutis que
atravessam todas as coisas; como se os seres e os eventos fossem apenas os nós, os pontos
de entrelaçamento de linhas de força irradiadas por formas ideais que não pairam mais além
das coisas, mas que devem ser reveladas em suas interações, a partir de simpatias e
antipatias, humores, arrebatamentos, afecções, influências, virtudes, etc. Em reação a estes
esforços renascentistas de confecção dos mapas normativos dos sentidos do ser, na
tentativa de revelar uma gramática cósmica, Montaigne acentua sua inerente – histórica –
tendência à imanência e rompe com os enquadramentos ideais, realçando o movimento, a
multiplicidade, a metamorfose, a instabilidade, em uma palavra, o balanço perpétuo de toda
existência. Todo saber absoluto é recusado, porque é percebido como arrogância intelectual
cuja condição está em uma compreensão superficial da realidade e uma atitude mecânica
ou rígida, desequilibrada e desajeitada, frente à vida. A esta, como à natureza, deve-se
tomar por guia, diz o cético, e não querer lhe ensinar sua própria lição. Assim todo
pressuposto metafísico é rejeitado na busca de uma metafísica mais fundamental – ou mais
bem fundamentada. Esta, por constituir – enquanto experimentar da própria potência vital
em suas potencialidades éticas – a fonte e a visada, o solo e o horizonte, o lugar próprio e
originário de todo discurso que busca a verdade, não mais poderá ser simples ou
levianamente enunciada. Pois se trata de procurar a verdade não só por meio da linguagem,
mas na linguagem; o que obriga o ensaísta a retornar a fonte mesma de sua autenticidade –
nossa humanidade, com todas as questões que tal conceito suscitava e ainda suscita, para
renová-la no frescor das formas restauradoras do dizer verdadeiro. Das suas possibilidades
dinâmicas de estruturação surge e se constrói o sentido da existência do homem: descrever

37
Este procedimento forma, aliás, a base conceitual do método indutivo que caracteriza a ciência
moderna: cf. Ann Blair, “Humanist Methods in Natural Philosophy : the Commonplace Book”, Journal of the
History of Ideas, out.-dez. 1992, vol. LIII, nº 4.
98

o mundo e a si é descrever a conexão, desimpedir e abrir canais de comunicação, ensaiar os


nexos que determinam a condição humana.
A mais célebre passagem do capítulo estudado apresenta uma conclusão que reflui
sobre si mesma: “Certamente, sujeito prodigiosamente vão, diverso e ondulante é o
homem. Difícil é fundar sobre ele juízo constante e uniforme”. Como a natureza, o homem
é diverso e cambiante, renovando-se constantemente em si mesmo: a natureza humana, por
ser fundamentalmente mutante, não permite julgamentos definitivos. E tal conclusão possui
um duplo sentido que lhe é natural: se o homem não pode ser julgado de maneira definitiva
é porque não pode julgar definitivamente; não é possível estabelecer um juízo firme, único,
homogêneo, nem sobre ele, nem, por assim dizer, a partir dele, ou seja, partindo de
qualquer perspectiva humana. Daí outra fórmula que parece a melhor para ilustrar o
procedimento montaigniano de definição (cuja principal característica é a de unir sem
contradição aspectos positivos e negativos) da natureza humana: “Nascemos para procurar
a verdade” (III, 8, 928). Como nota P. Villey (ibid., nota 3), isto significa que “nossa
natureza é procurar a verdade”. È como se aquilo que Montaigne dá com uma mão, ele
tirasse com a outra, sem que se anulasse a positividade da proposição: de um lado, só
procura alguma quem considera que esta exista, e o ceticismo montaigniano engaja-se na
“caça da verdade” (II, 12, 507); de outro, o homem não é o ser que detém o conhecimento
(ou que se define por sua posse), mas aquele que o busca, e nesta busca se constitui como
ser, fazendo desta parte de sua natureza: “Não há desejo mais natural que o desejo de
conhecimento” 38. Como bem viu Hugo Friedrich, em sua análise do primeiro ensaio,
“Estudar o homem, para Montaigne, é reconduzi-lo ao seu mistério” 39. Buscar o
conhecimento é, para o homem, buscar a si mesmo.

* * *

O procedimento discursivo que une o positivo e o negativo nas asserções


montaignianas é certamente aparentado ao método socrático. Seguindo esta via o ensaio vai

38
III, 13, 1065: como se sabe, uma tradução da primeira frase da Metafísica de Aristóteles.
39
Montaigne. Paris: Gallimard, 1968, p. 163.
99

se tornar a “nova linguagem” 40 que faltava aos céticos antigos: esta não será mais pura e
simplesmente dogmática ou cética, mas se constituirá como experiência das possibilidades
de verdade por meio da experimentação constante de si mesma, sabendo-se
simultaneamente arquiteta, guardiã e transmissora de sentido. Que sei eu?
A escrita dos Ensaios procura se ligar estreitamente à vida, dedicando-se a uma
meditação constante acerca da interação entre pensamento e ação, e à abertura do filosofar
para o viver. E mais além, figurando em seu corpo tal intenção. Assim o ensaio será
também – e talvez principalmente – uma solução para o problema do exame e
representação das relações entre prática e teoria no domínio ético: o estilo montaigniano
apresenta, em sua disposição estética própria, uma espécie de mediação linguística entre a
vida e a filosofia. Pela tentativa de exprimir a coexistência e conexão dos contrários 41 em
sua dialética dinâmica, trata de aperfeiçoar nossa capacidade de compreensão de nós
mesmos, da realidade e nosso lugar nesta. Desta forma a expressão e a compreensão
auxiliam-se mutuamente em um processo de feedback, de retroalimentação, no qual
frequentemente a escrita conduz e realiza o pensamento por interferência reflexiva da teoria
e da prática no espelho linguístico. Em sua força literária, o desenvolvimento do texto
subverte as generalidades normativas lógicas, e amiúde os próprios pontos de vista nos
quais parecia se apoiar, para se reconciliar com a realidade em um nível mais profundo de
apreensão e exposição desta e de suas perspectivas. Que se repita: os Ensaios realizam algo
de único em toda a história do pensamento ocidental com a capacidade – graças à maestria
filosófica e artística de seu projeto e realização – de trazer os movimentos das coisas para o
interior do discurso, de fazer do ensaio uma passagem para o mundo, recriando-o pela
palavra. Tornando-se um medium metamórfico entre o pensamento e o real, a filosofia
ensaística chegará a tocar mistérios vitais indiscerníveis para o logicismo ingênuo tão em
voga à época (e que constitui uma das grandes pragas filosóficas de todos os tempos).

40
II, 12, 527. Para uma análise mais detalhada da relação metodológica entre o pensamento
montaigniano, socrático e cético, ver Celso M. Azar Filho, “Montaigne e Sócrates: cepticismo, conhecimento
e virtude”, Revista Portuguesa de Filosofia, tomo LVIII, 4, 2002.
41
O melhor exemplo desta dialética singular é a célebre divisa citada acima – “Que sei eu?” –
enunciada no centro da importante passagem sobre o ceticismo lembrada na nota precedente. Esta constitui
uma modificação do “só sei que nada sei” socrático e da profissão cética do não-saber, propondo uma atitude
de dúvida que, ao contrário de todo obscurantismo, pretende justamente servir de estimulante à pesquisa.
Convém notar como o ensaísta une aqui a ironia de uma pretensa depreciação de todo saber, com a
interrogação que leva ao exame do que realmente se sabe – questionamento cuja finalidade é se preparar para
partir em busca do que é preciso com a consciência já voltada para o que se pode e deve saber.
100

O primeiro ensaio é tão importante pelo que diz quanto pelo que cala – como é
geralmente o caso na filosofia montaigniana; o não-dito ele mesmo sendo sempre aí
bastante significativo. Assim, Montaigne não se detém na mera contemplação do caráter
trágico da existência, evidenciado no problema moral que surge no final deste capítulo: faz
deste o prelúdio de uma extensa pesquisa, que ele continuará até o fim de sua vida, sobre a
maneira correta de agir. Nesta caça à sabedoria e à verdade – do mesmo modo que na caça
ao amor, em uma erótica da verdade ou do verdadeiro prazer – o importante é a forma, a
maneira, e não somente o fim42. Mas os aspectos artísticos da forma ensaística não têm por
razão qualquer veleidade literária: uma intenção filosófica profunda os anima. Tentando
discernir de uma vista mais elevada as frequentes contradições nas decisões e ações
humanas, o ensaísta volta-se para a consideração dos indivíduos em suas situações
particulares, fundando a percepção propriamente moderna da condição humana. Os
silêncios de Montaigne anunciam uma nova forma de pensar que, muito além de pretender
enunciar as leis universais da natureza, preocupa-se em saber como as encarnar em seu
comportamento para poder compreendê-las, não apenas em seu intelecto, mas também em
seu corpo e alma; em uma palavra, com todo seu ser, e da única maneira possível – sendo.
Reciprocamente, se Montaigne é um artista, ele o é na medida em que é filósofo. Em seu
livro, os personagens, as narrações, as lembranças, etc., não são senão os nós, os
cruzamentos de linhas de força conceituais, consubstanciação dramatúrgica, pictórica, das
ideias – são estas que importam, mas não como formas universais pré-concebidas,
derivadas de um sistema qualquer ao qual seria necessário se conformar. Novamente: o
ensaio não é somente um modo de expressão, é também um meio de pesquisa. O que faz
com que o primeiro ensaio se cale diante da figura de Alexandre, é o se interrogar
constantemente diante do que é o humano, interrogação que está na origem do humanismo
assim como o espanto diante da realidade gera a investigação filosófica. As palavras e as
coisas conectam-se no pensamento, e é esta conexão que lhes atribui sentido segundo a
ocasião. Conceitos, personagens, ações são tomadas e avaliadas de maneira diversa ao
longo das páginas dos Ensaios; pois tão importantes quanto as ideias tomadas
isoladamente, talvez mais, são os numerosos fios que as ligam em uma trama filosófica
cuja coerência e envergadura permanecem normalmente invisíveis em um primeiro tempo,

42
Ver, por exemplo: II, 12, 507; 510; 559; III, 8, 928; 13, 1068; sobre a erótica: II, 11, 430; III, 5, 881.
101

por vezes provavelmente para o ensaísta ele mesmo: corrente abissal do pensamento que
revela indireta e inconscientemente a economia subjacente das interações entre o balouçar
universal e as possibilidades da vida humana e de sua compreensão.

* * *

Empenhando-se em inscrever tal pesquisa na linguagem dos Ensaios, seu autor


procura atingir uma espécie de acordo harmônico entre sua natureza interior e o mundo, e
daí tirar um guia de conduta. A mistura de estilos, formas e gêneros literários que
Montaigne realiza em seu livro – baixo/elevado, trágico/cômico, prosa/poesia, etc. –,
claramente perceptível desde o primeiro ensaio, corresponde a uma combinação de
maneiras de agir aparentemente disparatadas, que tem por fim uma convergência e uma
remodelagem das diretrizes morais em uma atitude mais equilibrada e consistente. Este
bricolage de disposições estilísticas e opções éticas à primeira vista contraditórias visa
também um efeito pedagógico. Examinando e experimentando em si as ações e reações
adequadas, refletindo em sua pessoa, na pintura de si mesmo, a justaposição de diferentes
circunstâncias possíveis sob ângulos diversos, o ensaísta arrasta consigo seu leitor. E não
por acaso o primeiro ensaio foi lido como uma metáfora da confrontação não exatamente,
ou apenas, de inimigos (como indica o texto), mas de autor e leitor, evocando as
possibilidades de persuasão e resistência inerentes a ambas as situações 43. No ensaio da
união e interação dos estilos reflete-se o problema ético basilar da atitude e da atuação
corretas – ou da virtude – como reconciliação complexa de elementos diversos e mesmo
contrários, de forma a sublinhar a interferência, a confusão, a fluidez, dos limites entre
vício e virtude e, por extensão, entre o se elevar e se abaixar na formação e na direção dos
espíritos, segundo sua consubstancialidade com o corpo e sua ligação intrínseca com a
alteridade ou com a coletividade humana. Ora, a virtude é relacional: ela se realiza na
relação com o outro e a sociedade, com o mundo, a fortuna e a divindade, em um
contraponto em que se desenha a linha melódica de nossa vida. O “eu” não é senão um
efeito de superfície dos diferentes encontros e cruzamentos, um espelhar entre nós e as
coisas. Montaigne utiliza a linguagem como um instrumento de seu aprimoramento
43
Robert D. Cottrell, “Croisement chiamastique dans le premier essai de Montaigne”, Bulletin de la
Societé des Amis de Montaigne, 6ª série, nº 11-12, 1982 (jul.-dez).
102

espiritual, como um meio de, por assim dizer, refletir sobre a reflexão, de pensar as
possibilidades de toda subjetividade segundo sua interação com os eventos, de maneira a
reunir e despertar no caleidoscópio da consciência a percepção da plural realidade interior,
flutuando com as correntes e marés do ser.

* * *

Em conclusão, é preciso recusar de uma vez por todas a leitura que apresenta a
filosofia dos Ensaios como expressão de um solipsismo cético simplista.
Este desprezo sempre reiterado, que geralmente cita o primeiro ensaio como
exemplo de um impasse gnoseológico ou ético, procede de uma má-vontade histórica –
resultado de preconceitos intelectuais, políticos, religiosos e outros – com relação ao
pensamento renascentista como um todo. O fato é que precisamente a marca distintiva
deste – a correlação estreita entre forma e fundo, repousando sobre a exigência fundamental
de interação entre teoria e prática – não somente não foi jamais admitida pela história da
filosofia ocidental como um de seus momentos decisivos, mas foi mesmo amiúde
considerada uma espécie de desvio. Aos olhos de Montaigne, a virtude e o conhecimento
devem ser tornados indissociáveis, e é sua integração que normalmente significa no
Renascimento o tão presente termo “sabedoria” 44; que se mostra, em primeiro lugar, no
reconhecimento da impossibilidade de possuir ou mesmo de se definir de uma vez por
todas a virtude ou a conhecimento. O ensaísta vê no ceticismo um meio de busca da
verdadeira ciência; e no ensaio a forma própria de uma tentativa de superar a ignorância, a
finitude humana, a partir de si mesmo, de sua consciência singular, esforçando-se para que
as mesmas forças, as mesmas leis que governam todas as coisas, e também o nosso ser,
governem o discurso e por este meio nosso entendimento45. O cético renascentista
desconfia antes de tudo da presunção ingênua com relação ao saber: a inabilidade do
caçador que, para retomar a metáfora da caça, não contente de perder a presa, perseguindo-

44
Apesar de uma leitura frequentemente errônea da apologia montaigniana da ‘inscience’ (III, 12,
1057 C), não se pode confundir ‘stupidité’ (III, 10, 1014 B) e sabedoria: “Voire dea, il y a quelque ignorance
forte et genereuse qui ne doit rien en honneur et en courage à la science, ignorance pour laquelle concevoir il
n’y a pas moins de science que pour concevoir la science” (III, 11, 1030 BC).
45
Note-se o sentido de “razão” ou “raciocínio” conferido ao termo “discours” nos Ensaios – duplo
sentido que se encontra então em diversas línguas vulgares (no português clássico ou, ainda em nossos dias,
no italiano) e que é frequente nos grandes textos da época (por exemplo, no Dom Quijote).
103

a de maneira estúpida, apaga sua pista, confundindo todos os outros que também a buscam.
Seu elogio da inocência e da ignorância está ligado à recusa da crueldade e da presunção,
procedendo da percepção da interdependência universal – a qual lhe ensina a se manter
pacientemente à escuta, na tocaia: o caçador sabe enfim que caça a si mesmo – a presa que
se debate na armadilha é o homem.

* * *

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