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Há que se ter, porém, em atenção que esta identificação do Direito Penal encerra em si
uma ilusão que se traduz no seguinte: não poderemos reconhecer uma norma como penal
apenas porque o legislador designou os factos que previu como crimes e as sanções que
estatuiu como penas. As palavras crime e pena que identificam o Direito Penal não são
talismãs, de virtudes e poderes sobrenaturais, que alteram a realidade que designam, dando
uma ideia falsa da mesma.
I. O legislador português não poderia assim vir a considerar como crime punível,
tome-se como exemplo, criticar o Governo, limitando o direito à livre expressão do
pensamento – apesar de essa ser a sua intenção, não haveria aqui uma norma
penal. É por isso que se diz que o crime a pena têm um conteúdo pré-legislativo
indisponível.
Esta indisponibilidade revela, por sua vez, uma relação entre a definição material
de Direito Penal e a temática da legitimidade constitucional, relação essa que
postula que o Direito Penal português não poderá ter um qualquer conteúdo.
II. O crime e a pena são entidades produzidas por instancias sociais antes de serem
moldadas pelo legislador como tais. Há uma vinculação – embora não rígida -,
entre a noção de crime dos diversos grupos sociais e a definição legislativa. Assim,
as representações sociais sobre o que é uma atividade criminosa são,
normalmente, reproduzidas pelo legislador. Por outro lado, a aceitação das
decisões legislativas depende da receção das representações sociais dominantes
por aquelas decisões.
Por estas questões, não é correto afirmar que uma conduta é criminosa porque é punida,
nem no âmbito da ciência jurídica, nem num plano cientifico geral.
Isto porque, no plano das ciências do crime que o encaram como mero facto social, o
crime é geralmente estudado como uma realidade nociva que é produzida por certas
condições da sociedade ou do agente. No entanto, contra esse entendimento parece estar a
teoria de que a lei e os tribunais assumem um papel essencial na identificação dessa realidade
– como é típico da teoria do labeling-approach, contribuindo para uma espécie de seleção
social da conduta delinquente.
Nesta última perspetiva, todavia, a determinação social do crime ainda persiste nos
processos sociais que levam a etiquetar condutas como criminosas. Desta forma, a decisão de
punir não fundamenta racionalmente o ilícito criminal (como se este pudesse existir através de
um ato de criação consciente e arbitrário) -, é apenas um processo social descritível nas suas
causas e variantes, que explica a seleção de certas condutas como criminosas. Assim, por
exemplo, etiquetar alguém como delinquente devido aos seus antecedentes criminais ou ao
grupo social em que se insere, apesar de transferir a razão de ser da pena de conduta
objetivamente criminosa para o mero processo de atribuição da qualidade de delinquente ao
agente, não resulta de atos de vontade dos indivíduos ou instituições. Fundamento da
incriminação não será, por conseguinte, a decisão legislativa de punir, mas a necessidade social
de estigmatizar determinados grupos de indivíduos. Permanece, por isso, mesmo para esta
perspetiva teórica, a possibilidade de prever pré-legalmente quais as condutas e os agentes
que uma sociedade identificará como delinquentes, isto é, de representar a materialidade do
conceito de crime.
Com esta perspetiva não se confundem os objetos e métodos da ciência jurídica com
outras ciências da sociedade, isto é, as restantes ciências da sociedade não irão afundar o
Direito Penal, impondo a metodologia própria dessas ciências. O objetivo é, somente, a
afirmação de que as representações sociais sobre o crime, pré-juridicamente conformadas,
constituem (como factos sociopsicológicos) pontos de referencia do legislador penal na
definição jurídica do crime. A teoria do Direito Penal não poderá, por consequência, definir o
crime só em função da atribuição de uma pena, mas terá antes de encontrar um sentido
jurídico último do crime e da pena, que permita não os confundir, enquanto manifestações de
ilícito e sanção, com outras realidades.
É uma expressão normal desde desiderato a consideração do Direito Penal como ramo do
Direito Público, em que à lesão dos bens jurídicos essenciais para a vida em sociedade são
atribuídas as sanções mais graves do Ordenamento Jurídico. Na noção da essencialidade dos
bens, está também compreendida a imagem social da pré-compreensão do crime que nos
permite identificar materialmente o Direito Penal.
Uma outra forma de determinar o sentido último do Direito Penal consiste em investigar
as funções das penas, de modo a poder identificar as condutas e os agentes que merecem
sofrer a consequência jurídica da sua aplicação – esta é uma direção que nos remete para um
plano de legitimidade do Direito Penal, mas que faz depender a definição do preceito primário
(previsão do crime) da definição do preceito secundário da norma (estatuição da pena): olha-
se primeiro a função, o fim da pena e, em função disso, identificam-se as condutas e agentes
merecedoras desta consequência jurídica.
Importa, assim, olhar primeiro para o que as ciências da sociedade ou ciências que
estudam o comportamento humano sob perspetivas não jurídicas nos dizem sobre o crime e,
posteriormente, determinar o estado que a teoria jurídica atingiu na definição material de
crime.
Assim, quanto à questão “o que surgiu primeiro? O crime em sentido social ou o crime em sentido jurídico-
normativo?”, parece compreensível que sem a ideia de crime e a representação da mesma na sociedade, o
poder legislativo não teria força suficiente para definir o conceito com uma natureza jurídica. É neste sentido
que as palavras «crime» e «pena» têm um conteúdo pré-legislativo indisponível. Sem a aceitação social da
definição de crime (no caso dos regimes totalitários), o crime não existe, ideia assente na máxima «o Direito
existe para o Homem e pelo Homem» - contrariamente a convicção errónea de que o Direito cria, em
absoluto, o seu objeto – a realidade regular.
Flaviano, na antiga Roma, dava conselhos acertados – que batiam sempre certos com a realidade -, a quem o
consultava. Isto porque, limitava-se a reproduzir o que ouvia na sociedade. O mesmo acontece com o Direito
Penal: a sociedade só o aceitará se o mesmo produzir o que é aceite pela sociedade. Problema: O Direito não é
a opinião, não é o voto da sociedade – isso é a lei. O Direito é o pensar justo e haverá justiça nas conceções da
sociedade?
2. O problema da definição pré-jurídica do crime: a Criminologia e a sua importância
para o Direito Penal
Deficiências do agente:
o Biologia; Rejeita-se, assim, analisar o crime
como deficiência ou fenómeno
o Neurologia; puramente objetivo, alterando
o Psicologia. assim o estatuto epistemológico
(ramo da filosofia que se ocupa do
Deficiências na socialização ou estrutura social: conhecimento humano) do estudo
o Sociologia. sobre o crime.
Esta sistematização deverá, porém, ser relacionada com três perspetivas metodológicas
diferentes:
Todas estas orientação são combináveis e têm uma mais valia para o Direito Penal,
colocando, porém, diferentes problemas de articulação metodológica.
Estas teorias baseavam-se, porém, uma deficiente interpretação dos dados empíricos,
uma vez que não confrontavam devidamente os vários grupos sociais, cingindo-se a uma
amostra reduzida (condenados prisionais), bastando-se assim com a análise de pessoas
vivendo no meio isolado (prisões) sem considerar fatores sociais que poderiam ter conduzido
ao crime.
Tais teorias correspondem à procura de uma base biológica do comportamento criminoso,
que deixaram uma herança importante às investigações contemporâneas que levaram:
Objeções:
A verdade é que nada pode ser inferido sobre uma eventual origem dos
comportamentos criminosos no funcionamento do cérebro. O significado do
comportamento é sempre produto de uma interação social. Não há uma
correlação fixa entre a atividade neuronal – que é um dado objetivo e sem
significado pré-determinado – e a caracterização do comportamento como de um
certo tipo – que é intersubjetiva e intrasubjetiva (no sentido de se estabelecer
entre a relação dos sujeitos, no processo da socialização).
III. Além disso, existem ainda objeções éticas em retirar consequências jurídicas dos
estudos sobre o cérebro, tendo em conta a experiencia das consequências
associadas à prática da lobotomia para erradicar a agressividade, que deixaram
marcas profundamente negativas na história da ciência.
Perspetiva biologista:
Lombroso:
Criminosos natos (logo, sem livre arbitro e, por isso não a podemos censurar, tendo de arranjar
outra forma de lidar com o crime).
Traços biológicos e psicológicos próprios;
Escola positivista;
Prisão como tratamento a nível biologista;
Estado do primarismo – atraso físico e psicológico verificável através de traços como maxilar,
crânio, entre outros.
Muito criticado – amostra muito reduzida (só em prisioneiros), entre outras críticas.
Em Portugal destacaram-se, neste campo, Júlio de Matos e Miguel Bombarda, apesar da sua
vertente mais humanista.
Teorias psicologistas
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Damásio refere, por exemplo, a propósito de certos casos de pacientes em que as lesões pré-frontais se concentram no setor
ventromedial, que estes avaliam dilemas morais de modo excessivamente utilitarista.
Primeira fase
Eysenck
Objeções
Conceção determinista;
Reducionismo metodológico.
Taylor
Segunda fase
Clive R. Holin
Dentro desta linha de análise, Clive R. Holin refe como mais recente tendência –
citando Gibbs – a conceção das distorções cognitivas. Estas distorcem o reconhecimento da
autoria ou desvalorizam a responsabilidade pelo próprio comportamento, suportando o baixo
nível de desenvolvimento sociomoral.
--
No polo oposto, surgem teorias que pretendem reconhecer no crime uma escolha
racional, vendo no benefício pessoal a sua motivação determinante (Clive R. Holin). Esta
orientação acentua a importância e melhoramento do indivíduo e da sua capacidade de
escolha em detrimento de fatores sociais e da influencia do grupo.
Em conclusão, a aproximação da Psicologia ao problema da personalidade delinquente
revela a compreensão de formas e características comportamentais que, em regra,
correspondem a padrões:
De interação;
De processamento da informação;
Da relação das pessoas com a solução dos problemas.
Grande ponto problemático destas teorias: o direito penal assenta na ideia de uma ação livre.
Todas estas teorias podem por, assim, em causa o direito penal.
Teorias sociologistas
Durkheim
Com uma origem histórica no positivismo cientifico, esta perspetiva precede análises
behavioristas, desenvolvidas nos Estados Unidos, nos inícios do século XX, como as do filosofo
e psicossociólogo Mead (primórdios da escola de Chicago).
Mead
A orientação da análise para o padrão social dos comportamentos olha para o crime
como um problema de socialização, impondo uma solução crítica das condições da deficiente
socialização.
--
Sutherland
Segundo este autor, o crime pressupunha fenómenos de aprendizagem por contacto, pela
chamada associação diferencial com padrões de comportamento criminosos e anti criminosos.
A ideia básica consiste no facto do crime não se explicar pela expressão de necessidades
ou de valores, nem pelo meio social ou por deficiências do indivíduo – já que essas
necessidades, valores e condições presidem todo o comportamento social, criminoso ou não -,
mas sim pela intensidade, frequência e precocidade de certos contactos sociais. Assim, este
autor vem estabelecer uma verdadeira teoria da determinação do comportamento criminoso
em nove aspetos. São eles os seguintes:
Albert K. Cohen
Sykes e Matza
Em suma, o crime não seria a expressão de uma racionalidade diversa do comum, nem
uma hostilidade cultural a valores ou mesmo aos valores subjacentes ao sistema normativo
legal, mas apenas utilizaria, na linha de Sutherlan, processos de um comprometimento
específico como esses valores, uma logica de justificação formalmente idêntica à reconhecida
pelo sistema legal, mas com conteúdos desviantes.
Dentro deste grupo de conceções, Sellin também analisa os tipos de conflitos normativos,
desde os conflitos entre culturas diversas externamente até aos conflitos internos, mostrando
que os conflitos não são de culturas, mas de normas de conduta, afetando, sobretudo, os que
se encontram em situações de transição de culturas, como os imigrantes de segunda geração.
Merton
Para Merton, no entanto, o determinante era o vício da estrutura social; o agente seria
vítima da estrutura sociocultural. A causa do comportamento criminoso seria a distorção
referida entre a promoção de valores como a ascensão social e a efetiva escassez dos meios
legítimos para a atingir. Tal desfasamento geraria indiferença aos valores e mecanismos de
adaptação individual – se não tenho os meios legítimos necessários para alcançar os fins, então
também não serei obrigado a respeitas as mesmas normas daqueles que os têm.
O condicionamento social pelo meio seria tao elevado que as chamadas self-fulfilling
prophecies corresponderiam a situações em que a definição pelo grupo de predições acerca de
um indivíduo, embora falsas, poderiam levar a que o individuo se adaptasse a esse papel e
viesse a realizar exatamente as referidas profecias, adaptando-se à “verdade social” sobre ele.
O crime seria um verdadeiro produto social, embora suscetível de ser prevenido se se atuasse
sobre os seus pressupostos estruturais, corrigindo desajustamentos nas condições sociais.
Esta orientação veio retirar ao conceito estático de crime qualquer função de objeto
cientifico para colocar, no seu lugar, processos sociais de criminalização de condutas. O crime e
a criminalidade como factos sociológicos seriam o resultado de um processo de seleção social,
segundo o qual o legislador, a polícia, os tribunais e todas as instancias formais de controlo
elegeriam algumas condutas e não outras como criminosas ou apenas certas pessoas como
delinquentes. Mas não só, também os grupos sociais (família, vizinhos, colegas), como
instancias não formais de controlo, etiquetariam certas pessoas como potencias ou efetivas
autoras de crimes.
Com esta via, a Sociologia Criminal admitiria, contudo, o total relativismo quanto ao
que é designado socialmente como crime e renunciaria de certo modo à explicação do sentido
e função social do comportamento delinquente e da sua génese – deixaria assim de pretender
explicar por que motivo certos comportamentos são designados ou eleitos como crime
segundo as representações sociais dominantes, para se preocupar fundamentalmente com os
processos de seleção social e a arbitrariedade dos mesmos.
Através desta perspetiva, a tese de Durkheim, segundo a qual os crimes são “parte
integrante da sociedade sã”, determinados pela própria estrutura social (e variáveis, claro está,
segundo ela), tornar-se-ia menos interessante para as ciências do crime.
Esta Teoria dos Rótulos Sociais é então marcada pela ideia de que as noções de
crime e criminoso são construídas socialmente, a partir da definição legal e das
ações de instancias formas e informais de controlo social, a respeito do
comportamento de determinados indivíduos. A criminalidade não é, assim,
uma propriedade inerente a um sujeito, mas uma “etiqueta” atribuída a certos
indivíduos que a sociedade entende como delinquentes e que acabam por se
comportar como tal. Em suma, o comportamento desviante é aquele que é
rotulado como tal.
Benefícios:
Howard S. Becker
Howard S. Becker, no seu livro Outsiders, dizia mesmo que a déviance não é uma
qualidade interna dos factos sociais, mas antes o produto dos grupos sociais que criam as
regras cuja violação a suscita e que aplicam com sucesso (estigmatização) a qualificação de
déviant aos que violam as normas. É, neste sentido, uma pura criação social.
Lemert
Edwin Schur
Este autor enunciaria processos de criminalização como os dos crimes sem vítima – por
exemplo, o consumo de drogas – que mostravam a importância da projeção da sociedade na
construção de crimes sem qualquer ofensa direta de direitos ou bens jurídicos, mas que
potenciariam crimes instrumentais de roubo ou de homicídio.
Edwin Goffmann
Numa ótima diferente, este autor acentuaria a relação da construção de si mesmo com
a interação com os outros como um acontecimento dramatúrgico, utilizando a metáfora do
teatro para explicar como as pessoas se apresentam aos outros baseadas em normas, mitos,
valores, desempenhando uma performance e extraindo um efeito.
--
Em suma, estes desenvolvimentos permitem conceber a desconstrução da realidade
subjetiva e a própria consciência, que se torna um objeto de si própria. Como diz Paul Rock
“central para esta ideia é a refletividade, a capacidade da consciência para se retirar e
transfigurar-se no seu próprio objeto”, uma espécie de brinquedo, em que as pessoas
assumem papeis e identidades conforme a expetativa ou as reações dos “outros significativos”
e em que assumindo o papel dos outros, se transferem para além de si mesmos.
--
Em suma
Porém, a herança de Mead conduziu a perspetivas metodológicas mais profundas, em
que os comportamentos sociais seriam o produto de configuração, através de uma interação
simbólica dos significados sociais e da construção da realidade, incluindo, porém, o mundo
interior dos indivíduos.
Benefícios e malefícios:
A conceção do crime como comportamento humano danoso socialmente por atingir bens
necessários à conservação ou ao desenvolvimento da sociedade, subjacente acriticamente às
conceções do sistema penal e, por vezes, usada instrumentalmente pela própria Criminologia,
por razoes de compreensão do fenómeno da criminalização, só poderá ser ponto de partida
2
A noção de crime utilizada pela Criminologia, que aceita o fenómeno da irregularidade e, por
consequência, concentra na capacidade de desvio o pathos do crime, inclui na noção de crime o desvio
relativamente a normas éticas – facto que alarga o conceito de crime.
A outra noção, evidenciada no texto, é substancialista, introduzindo como método uma perspetiva da
teoria geral da sociedade, dos fatores da sua patologia, da sua preservação e da sua evolução. O
desenvolvimento de um conceito material de crime em tal ótima pressuporá, no entanto, uma teoria
dos fatores objetivos (e não meramente interaccionistas) de criminalização, que terá de se basear no
reconhecimento das necessidades reais e ideológicas que a continuidade de um sistema social
pressupõe satisfeitas. A noção material de crime dissolver-se-á por isso, segundo esta ultima via, na
referida teoria da sociedade. Desenvolvendo esta inserção da definição criminológica do crime na teoria
da sociedade, veja-se Hassemer.
enquanto se identificarem os pressupostos cultural, estruturais e os processos
sociopsicológicos simbólicos de valoração dos comportamentos.
Ora, a resposta passa por uma análise prévia do conceito matéria do crime conduzida
no pensamento penal sobretudo nos quadros dos princípios constitucionais e considerando
várias discussões da filosofia penal ao longo de séculos. Haverá, no entanto, que retirar da
Criminologia uma primeira interpelação epistemológica, isto é, relacionada com as condições
criticas da definição social do crime como objeto de pensamento. O que deva ser considerado
crime legitimamente não pode ser um tema que se abstraia das condicionantes
sociopsicológicas, em que se produz a definição socialmente vigente.
Epistemologia (= Filosofia do conhecimento, Teoria do conhecimento): ramo da filosofia que se ocupa dos
problemas que se relacionam com o conhecimento humano, refletindo sobre a sua natureza e validade.
A problemática dos fins das penas surgiu na historia do pensamento jurídico como
controvérsia sobre:
Historicamente, a pena tem e sempre teve uma conotação mágica, um significado sagrado.
Ora, isto persiste ainda hoje: a pena revela-se sempre como imposição de um mal:
Para a pessoa do criminoso, sobretudo para a sua honra – sob a máxima popular
vergonha não é roubar, é ser apanhado.
Para o património do criminoso.
Foram três as conceções neste domínio que se proliferaram, já desde remotas etapas
do pensamento filosófico-jurídico:
3
É neste âmbito que se pode formular a discussão em torno da dignidade humana (ou não) no tocante
às penas.
A retribuição;
A prevenção geral;
A prevenção especial
a) Teorias retributivas/absolutas (olho por olho, dente por dente)
Falamos em teorias absolutas porque nestas a pena é concebida como uma exigência
absoluta, metafísica e ética, de justiça, independentemente de considerações utilitaristas, da
maior ou menor conveniência que tal pena possa acarretar na perspetiva do interesse social
aferido num determinado contexto histórico concreto. Esta utilidade e conveniência serão
sempre secundárias em relação à exigência pura de justiça.
É célebre o exemplo dado por Kant, expoente desta teoria, ao aludir à comunidade de
habitantes de uma ilha que, antes de se desintegrar como comunidade com a dispersão desses
habitantes por outros locais (e sem que se verifique, por isso, alguma necessidade de proteção
dos interesses futuros de coesão ou pacificação dessa sociedade), não pode deixar de punir
quem seja responsável por crimes que no seu seio tenham sido cometidos. É assim porque,
afirma Kant numa frase também célebre, «quando a justiça desaparece, a vida na terra deixa
de ter valor». A pena é, pois, nesta visão, um imperativo categórico. Pune-se porque se tem de
punir, como uma exigência ética natural de justiça, anterior a qualquer ordenamento jurídico
positivo e a qualquer opção política concreta, e não para prosseguir algum interesse ou
utilidade social.
Kant
Ideia essencial: Não há pena sem crime nem crime sem pena:
No entanto, note-se que para negar o Direito, o crime tem de, indiretamente,
afirmá-lo. Só se nega algo que existe, algo que dá para negar. É aqui que entra a função
da pena:
Assim, é de notar a finalidade da pena. Caso a pena não existisse, caso não houvesse
resposta ao crime, algo que o negasse, o crime ficaria afirmado e, por consequência, o
Direito negado (na lógica aristotélica, menos com menos dá mais). A finalidade da pena
é, assim, reafirmar o Direito. No entanto note-se que a pena é criada pelo Direito, logo,
o Direito reafirma-se a si mesmo através da pena.
Em suma:
A pena não é moral – se o fosse, seria um perdão -. Hegel remete a pena para o plano da
objetividade do Direito, a partir das características da generalidade e abstração da
norma.
Assim, necessariamente, a pena, tal como a crime, não vale em função da vontade nem
dos autores do crime nem de quem impõe a pena, mas enquanto afirma ou nega o
Direito num plano das ideias e num plano meramente lógico.
Nota: A problemática da pena como refere Ricoeur, situa-se no plano do Direito abstrato e
não no plano da consciência, da subjetividade e da vontade, que a tornariam uma pura
vingança. Para que a pena supere o plano da vingança e, por isso, o do próprio crime, é
necessária uma transformação da vontade particular e subjetiva em universal, em principio
universal. A pena conduz assim, necessariamente, à moralidade objetiva (universal, da
coletividade), própria das comunidades e do Estado.
Crítica: parece-me que esta teoria afirma mais a finalidade do Direito para o Crime e,
por consequência, para si mesmo, para a sua sobrevivência do que propriamente a
finalidade da pena – que é aqui somente um meio de alcançar um fim: a sobrevivência, a
reafirmação do Direito, sem nenhuma finalidade “autónoma”.
Assim, ao castigo que representa a pena, está associada a noção do valor moral da
expiação (cumprimento da pena ou castigo, sofrendo as suas consequências). A este respeito,
é comum referir o exemplo retratado no protagonista do célebre romance de Dostoievsky,
Crime e Castigo, que reflete a exigência, sentida pelo criminoso e provocada pelo remorso
devido à prática do crime cometido, de expiação através do sofrimento e da pena.
Pressuposto antropológico desta teoria é a visão da pessoa humana como ser livre e, por
isso, responsável, capaz de escolher entre o bem e o mal. Reconhecer a dignidade da pessoa
humana é, na conhecida visão kantiana, rejeitar a sua degradação a objeto, a meio ou
instrumento. E o Estado estará a instrumentalizar a pessoa se utilizar a sua condenação para
prosseguir um interesse da sociedade, para tal condenação servir de exemplo aos potenciais
criminosos, intimidando-os. Só não se verificará essa instrumentalização, a degradação da
pessoa de fim a meio, se a pena tiver uma base ética e não puramente utilitária, se
corresponder à culpa concreta do agente, se esta culpa for pressuposto e medida dessa
pena.
Numa lógica utilitarista, pelo contrário, poderia prescindir-se da culpa como pressuposto
e como limite da pena se o interesse social assim o reclamasse. As necessidades de prevenção
da criminalidade poderiam levar à punição de alguém que não fosse culpado, ou à punição
para além da medida da pena, numa lógica puramente utilitarista, se tal fosse necessário para
prevenir a prática de outros crimes pelo próprio agente (devido à sua perigosidade) ou por
quaisquer potenciais criminosos (que deveriam ser intimidados através do exemplo que
representa uma qualquer condenação).
Numa lógica retributiva, que parte do princípio da culpa, tal não seria nunca possível.
Como veremos, ainda que a orientação hoje predominante no nosso e em vários
ordenamentos jurídicos da nossa área cultural, seja no sentido da rejeição desta teoria, o
princípio da culpa, que a ela está ligado, mantém-se como um dado adquirido do património
jurídico-cultural. A culpa é pressuposto da pena e limite da medida da pena. Não há pena sem
culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (ver artigo 40º, nº 2, do
Código Penal).
Assim, num ordenamento onde está vigente a prevenção geral, esta tem como limite o
principio retributivo da culpa.
O que será, então, que distingue a justiça da vingança? Contra esta crítica, afirmam os
partidários do retribucionismo que a gravidade da pena há de ser, na lógica retributiva,
proporcional à gravidade do crime, não necessariamente igual ou equivalente a essa
gravidade. E que a pena é, como o crime, um mal em sentido fáctico, mas não é, ao contrário
do crime, um mal em sentido ético. Afirma, a este respeito, Giuseppe Bettiol, que:
«O direito penal começa precisamente lá onde acaba a vingança. Não deve identificar-se a
ideia de vingança com a ideia de reação. A pena retributiva é a expressão de uma justiça que
se liga à ideia de proporção e equilíbrio entre dois termos, momento racional que contrasta
com qualquer movimento passional, o qual tende à exclusividade, de que decorre sempre a
vingança. Importa distinguir entre o “mal” em sentido naturalístico, como sinónimo ou
equivalente de sofrimento físico ou psíquico, e o mal de natureza moral, ou seja, algo de
intrinsecamente mau enquanto antitético em relação à natureza racional do homem.
A pena retributiva é uma noção cujo conteúdo não pode esgotar-se no mundo
naturalístico, devendo antes elevar-se ao mundo dos valores, ao das supremas “exigências”
fora das quais a vida se transforma num puro processo biológico».
Numa primeira aproximação, podemos notar como a teoria retributiva encontra eco em
reações espontâneas de pessoas comuns diante da prática de crimes, motivadas pelo anseio
de que «se faça justiça» e de que quem pratica crimes «preste contas», «receba o que
merece» e «pague pelo que fez». Porém, aquilo que pode parecer um compreensível anseio
de justiça também frequentemente degenera na lógica da lei de talião (“olho por olho, dente
por dente”), quando se pretende fazer equivaler o mal associado à pena ao mal associado ao
crime, com a justificação da pena de morte, ou da severidade das penas.
Neste sentido, e apesar de ser um mal em sentido fáctico, a pena leva a uma
compensação com dupla vertente: não somente naturalística (equivalente ao sofrimento
físico ou psíquico ao autor do crime, dentro dos limites da racionalidade) – e dai dizer-se
que a sua gravidade é proporcional e não necessariamente igual – facto que, caso
contrário, poderia apagar a linha ténue entre justiça e vingança, mas também uma
compensação em sentido moral.
Assim:
Para Jorge de Figueiredo Dias, esta teoria deve ser «recusada in limine». Em sentido
idêntico, pronuncia-se, também, Anabela Miranda Rodrigues. São estes autores que,
indiscutivelmente, mais têm influenciado neste aspeto a nossa jurisprudência, como será visto
adiante.
Mas importa também considerar vozes discrepantes que também se têm feito ouvir, e até
recentemente. No sentido da aceitação da teoria da retribuição podem ver-se, na doutrina
portuguesa recente, José de Sousa e Brito, José de Faria e Costa e A. Lourenço Martins
(Procurador-Geral Adjunto; eleito, em 1995, pelo Conselho Económico e Social das Nações
Unidas).
Por um lado, alega-se que o princípio do livre-arbítrio, pressuposto básico de que ela
parte, não pode ser objeto de demonstração científica.
A teoria retributiva parte de uma ideia de responsabilidade individual baseada no
liberum arbitrium indiferentiae que o conhecimento cientifico não permite comprovar.
Somente é aceitável presumir que as pessoas são livres na medida em que a
sociedade e o Direito reconhecem a responsabilidade individual, isto é, aceita-se a
causa na medida em que se assume a consequência.
A liberdade de decisão é para muitos algo que se convenciona existir e nada mais. E
mesmo que se reconhecesse, em abstrato, a liberdade da vontade, ter-se-ia de nega-
la na maior parte dos criminosos que chegam ao crime por um processo social
conhecido da Criminologia. Indemonstrabilidade dos pressupostos.
Por outro lado, afirma-se que a realização de uma “justiça divina”, ou de um “ideal
metafísico de justiça” não é compatível com um Estado laico, democrático e pluralista.
A retribuição tem tido um pressuposto – a culpa ética -, surgindo como sua
consequência necessária. Ora, a intervenção do Estado, investido no seu poder
punitivo não pode servir para sancionar automaticamente esta culpa. Na verdade,
nem os meios do processo penal podem atingir este nível profundo, nem a própria
pena é adequada a uma intervenção na personalidade de casa criminoso.
Aliás, não cabe ao Estado, nas Constituições que seguem o modelo do Estado de
Direito democrático, promover uma Ética ou uma Moral em si mesmas, mas apenas,
quanto muito, na medida indispensável à preservação das condições sociais de
existência. O chamado principio da necessidade da pena (18º/2 CRP) postula que a
pena só seja aplicada quando for necessária para a preservação da sociedade.
Terreno jurídico-constitucional.
Por último, diz-se que não é racionalmente compreensível que se possa eliminar um
mal (o que resulta da prática de um crime) acrescentando-lhe um mal equivalente, ou,
pelo menos, um outro mal (como é, sempre, a pena).
4
«Parece lícito concluir que o livre arbítrio é praticamente o único determinismo biológico do ser humano. A sua
existência é a garantia de que o Homem não está deterministicamente preso a qualquer ação homeoestática
particular, mas, ao contrário, que pode e deve escolher entre um leque possível de opções de ação.» Ana Paiva (in
«António Damásio e a “Nova Sociologia”».
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Numa perspetiva da filosofia da ciência, é de assinalar a tese indeterminista de Karl Popper, que salienta o absurdo
da crença na previsibilidade de algo como uma sinfonia de Mozart.
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Assim, claramente, os dois autores portugueses (Jorge de Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues) acima
citados.
contingente ou arbitrária do Estado (é essa como poderia ser outra), mas têm uma
validade anterior ao próprio Estado e vinculam o próprio Estado.
As conveniências sociais, ou mesmo o facto de os valores acolhidos pelo sistema penal
beneficiarem da adesão maioritária numa determinada sociedade, não são
fundamento ético suficiente para que daí possa derivar uma restrição tão acentuada
dos direitos individuais como é a sanção penal. Esse fundamento há de encontrar-se
para além das opções políticas ou do direito positivo, não na teologia (a secularização
do direito penal é um dado adquirido), mas no direito natural (a secularização do
direito penal não implica o positivismo, a fundamentação metafísica não é irracional).
Afirma, a este respeito, Giuseppe Bettiol: «o crime não é um simples desvio de uma
regra de comportamento social», mas supõe a «distinção fundamental de natureza
ontológica entre o bem e o mal», é «uma escolha consciente e voluntária do mal». E
Maurice Cusson: «O furto não é injusto por ser proibido, é proibido por ser
universalmente considerado como ato injusto».
Atribuir à punição um suporte metafísico traduz-se num baluarte que protege o
princípio da culpa (princípio que não é, pois, contingente) e impede que alguma vez se
caia na tentação de prescindir do nexo entre culpa e punição, e de proporção entre
culpa e medida da pena, em nome de exigências de prevenção geral e especial 7. E não
parece que tal seja incompatível com dois princípios hoje também adquiridos nos
Estados laicos, democráticos e pluralistas: a distinção entre o direito e a moral (porque
esta não se confunde com a neutralidade axiológica do direito) e o da subsidiariedade
do direito penal ou da intervenção mínima do direito penal (porque o direito penal
não tem de intervir sempre que uma conduta é eticamente censurável, mas, para
intervir, deve estar eticamente legitimado para tal) 8.
Um breve percurso pelos textos de Kant e Hegel, revela que o fundamento ético não é
uma moralidade subjetiva, mas uma certa racionalidade entre Estado e Direito.
Assim, não é totalmente convincente uma critica que associa a retribuição a uma
perspetiva moral particular e à culpa ética da tradição judaico-cristã, na sua expressão
mais comum. Na racionalidade da retribuição esta antes uma necessidade lógica de
afirmação do Direito.
Porém, uma coisa é reconhecer que há uma imposição racional de afirmação ou
reafirmação do Direito perante o crime, e outra é saber se essa forma de reafirmação
é a pena retributiva ou antes e prevenção de males futuros e a preservação da ordem
7
É contra essa “deriva” que se insurge Andrew Von Hirsh e a teoria do “justo merecimento”.
8
Numa linha de conciliação entre o retribucionismo e estes princípios, pode ver-se José de Faria Costa.
jurídica – perspetiva preventiva. É de salientar que, em certos casos, a reafirmação do
Direito pode exprimir-se pela dispensa de pena – como o CP prevê para certos crimes
menos graves no seu artigo 74º -, ou por formas de intervenção social alternativa que
melhor assegurem a proteção jurídica de direitos e bens.
Para a professora Fernanda Palma, o que há de universal e objetivo na pena é a ideia
de reafirmação do Direito perante a sua violação, e não uma retribuição
historicamente concebida. Neste sentido, a professora revela como critica a esta
doutrina, não só a sua associação com a promoção de uma perspetiva moral
determinada, mas também o reconhecimento de uma confusão concetual entre
retribuição e a reafirmação – não estando a reafirmação do Direito em causa, se for
articulada com um principio liberal da necessidade da pena, de adequação e
proporcionalidade ao facto da mesma. Em suma, para esta autora, não é necessário
retribuir para reafirmar o Direito.
A associação entre a teoria da retribuição e a lei de talião (“olho por olho, dente por
dente”) e a ideia de que a resposta a um mal com outro mal não tem base racional já
serão, porém, mais difíceis de afastar. É certo que, como já atrás se referiu, pena
representa um mal em sentido fáctico, não em sentido ético, e que entre a gravidade
da pena e a gravidade do crime deve verificar-se uma relação de proporcionalidade,
não uma relação de equivalência. Também é certo que a pena tem uma dimensão
aflitiva incontornável: se não provocasse sofrimento (fosse qual fosse a sua finalidade),
não seria uma pena, seria um prémio ou uma medida assistencial. Mas é difícil
encontrar numa pena paradigmática como a de prisão uma dimensão social positiva
que contrarie a imagem da resposta a um mal com outro mal. Embora se reconheça
que a retribuição parece corresponder a uma exigência conatural dos seres humanos,
Mário Cattaneo considera «dificilmente superável a ideia de que na sua base esteja a
ideia de vingança»9.
Para superar esta suspeita, ou a lógica da resposta a um mal com outro mal, haverá,
então, que conceber e aplicar penas com uma dimensão social positiva marcante,
como sucede, de forma paradigmática, com a pena de prestação de trabalho a favor
da comunidade. Nesta, será nítido que ao mal do crime se responde com um bem,
9
Para Maurice Causson (op. cit., pgs. 40, 41, 60 e 177), entre pena e vendetta não há uma oposição
radical, antes uma equivalência funcional, e a justiça penal não é a antítese da vingança, antes a sua
“domesticação”. A história e a antropologia demonstram como ambas se substituem mutuamente. A
abstenção da justiça penal conduz espontaneamente ao renascer da vingança.
com uma atividade socialmente meritória 10. Mas a dimensão retributiva não está
ausente dessas penas. A prestação de trabalho a favor da comunidade não deixa de ter
um alcance sancionatório efetivo (não se confunde com uma medida educativa ou de
apoio social).
Também não parece incompatível associar o alcance retributivo da pena ao alcance
ressocializador desta. A pena deve favorecer a reinserção social do agente do crime e
deverá ser concebida como apelo e convite à “reconciliação” entre esse agente e a
comunidade ofendida com a prática do crime. O primeiro passo para essa
“reconciliação” é a aceitação, pelo agente, da necessidade de “saldar” a “dívida” que
contraiu com a prática do crime. Quando há arrependimento sincero, essa aceitação,
ou até essa exigência, é espontânea e natural 11. Mas a pena encarada como apelo e
convite à ressocialização, ou à “reconciliação” entre o agente do crime e a comunidade
não pode ser vista como um mal que responde a outro mal.
Procurando conciliar a natureza repressiva da pena, e a sua justiça, com a reintegração
social do agente do crime, afirma Cavaleiro de Ferreira: «E assim, a pena não constitui
intrinsecamente um mal. Enquanto restringe a esfera jurídica dos condenados, é
castigo e como tal deve ser sentida. O castigo, porém, na sua essência, está na
reprovação do crime pela condenação. A pena, na sua aplicação e execução, deve ao
invés apontar para a redenção da culpa (repressão), através da readaptação social. A
pena não será, portanto, um mal ou sofrimento equivalente ao mal cometido ou
sofrimento causado; mas o meio adequado a suscitar a restituição à sociedade pelo
delinquente do bem equivalente ao mal cometido, presuntivamente correspondente à
extinção da culpa, a qual reage à pena». Também neste aspeto, uma pena como a de
prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser paradigmática e exemplar:
porque, sem deixar de ter um alcance retributivo, é reveladora de um esforço
(recíproco) de aproximação e “reconciliação” entre o agente do crime e a comunidade.
Mas estamos a entrar, por esta via, no âmbito de outra das finalidades da pena, a
prevenção especial positiva, que será adiante analisada, na medida que já nos
10
É este princípio de que ao mal do crime se deve responder com o bem que, para Giorgio del Vecchio,
deveria servir de base ao direito penal. À malum actionis deveria uma bonum actionis, uma atividade e
sentido contrário do autor do crime, que anula ou reduza os seus efeitos na medida do possível. A pena
de prisão impediria, na prática, o ressarcimento do dano provocado á vítima e à sociedade («Justiça
Divina e Justiça Humana», in Direito e Paz – Ensaios, trad. port., Braga, 1968, pgs. 40 e segs.).
11
Afirma o juiz francês
As doutrinas Michel Anquestil
retributivas assentam (op.
emcit., pg. 135): «Quando
pressupostos a culpa é reconhecida,
antropológicos: a conceçãoraramente
da pessoao
princípio da pena é contestado. São as condições do julgamento, e depois de execução da pena, que
humana como agente livre, responsável, eticamente motivado e fim em si mesmo (e não
suscitam um formidável sentimento de revolta e matam à nascença a possibilidade de reconciliação.»
meio útil para a sociedade).
situamos fora do âmbito da teoria da retribuição na sua pureza. Mas também se
verifica, desde já, como é possível conciliar, ou combinar, contributos de várias das
teorias sobre os fins das penas.
b) Teorias relativistas
Assim, a pena não se justifica por si mesma («porque tem de ser», porque é um puro
imperativo de justiça), mas tem uma finalidade relativa e circunstancial, uma utilidade. Ora,
essa utilidade traduz-se na circunstância de funcionar como obstáculo à prática de novos
crimes. Não se trata de realizar a justiça, mas de proteger a sociedade. Não se castiga porque
o agente praticou um mal, um crime, mas para que ele próprio, ou outros, não pratiquem
crimes no futuro.
Se se pretende evitar que seja o próprio agente a praticar novos crimes no futuro, estamos
no domínio da prevenção especial. Se se pretende evitar que sejam os agentes sociais em
geral a praticar novos crimes no futuro, estamos no domínio da prevenção geral, que será
agora analisada na sua vertente de prevenção geral negativa ou de intimidação.
Para a teoria da prevenção geral negativa ou intimidação, a pena funciona como exemplo
que pretende dissuadir (intimidando) os potenciais criminosos, relativamente à violação da lei
penal – linha de pensamento desenvolvida por Anselm von Feurbach (finais do século XVIII,
inícios do século XIX), sendo o qual, a pena serviria para impedir (psicologicamente) quem
tivesse tendências contrárias ao Direito de se determinar por elas.
A oportunidade de aplicação de cada uma das penas e a medida destas hão de, pois, ser
vistas à luz da sua capacidade de dissuadir o potencial criminoso, que pondera as vantagens e
inconvenientes decorrentes da sua ação. Também encontramos facilmente reflexos, mais ou
menos conscientes, desta teoria em reações espontâneas do cidadão comum diante da prática
de crimes e da aplicação de penas. Sempre que – como é frequente – se proclama a
necessidade de aplicação de penas severas para dissuadir da prática futura de crimes por parte
de potenciais criminosos, ou se advogam alterações legislativas nesse sentido para combater a
criminalidade, é a ideia de intimidação como finalidade da pena que subjaz a tais posições.
Numa apreciação crítica desta teoria, impõe-se começar por reconhecer que tem algum
fundamento e que a visão algo pessimista da natureza humana que lhe subjaz (claramente
redutora é certo) não deixa de ser dotada de algum realismo.
Mas, de qualquer modo, são várias e relevantes as críticas que podem ser endereçadas a
esta teoria:
12
É por isso que, no Japão, se colocam, ao longo de estradas, manequins que simulam a presença desses
agentes.
penas, tem sido demonstrado que os destinatários das normas penais não se guiam,
normalmente, pelo conhecimento que possam ter dessas normas (até as
desconhecerão, na maior parte dos casos), mas, antes, pela maior, ou menor,
probabilidade de os seus atos virem a ser efetivamente detetados e perseguidos
criminalmente. É intuitivo que o fator que pode demover, nesta perspetiva, um
potencial homicida, não será tanto a probabilidade de a sua condenação ser de oito ou
dezasseis anos (porventura, qualquer delas poderia demovê-lo, ou não) mas de ser, ou
não, efetivamente condenado. Nesta perspetiva, o maior ou menor incremento da
criminalidade não dependerá, tanto, da severidade das penas, como, sobretudo, dos
mecanismos fiscalizadores que reforçam a probabilidade de efetiva aplicação da pena.
Também é errado pensar que à decisão de prática do crime está sempre subjacente
uma ponderação racional. Muitas vezes, trata-se de uma decisão fruto de um impulso
momentâneo, alheio a qualquer ponderação racional de vantagens e inconvenientes
futuros. E isso sucede, frequentemente, em crimes graves, como o de homicídio. Para
não falar nos casos de terroristas dispostos a tudo perder (até a própria vida) em nome
da causa que os move. Não será certamente o medo da pena (por mais severa que
seja) a demovê-los…
Assim, será de pensar o que será mais eficaz: a severidade da pena ou a
efetividade e prontidão da sua aplicação (que em termos de investigação, quer em
termos de aplicação).
Crítica: porque é que são tão indissociáveis a gravidade da pena e a sua efetiva
aplicação? Não podemos ter os dois?
Por outro lado, mesmo sem discutirmos, ainda, os redutores pressupostos
antropológicos de que parte esta teoria, sem nos afastarmos, ainda, de uma
perspetiva pragmática, impõe-se reconhecer que não será nunca viável um qualquer
sistema jurídico alicerçado, fundamentalmente, na intimidação. Para isso, seria
necessário ter um agente policial sempre ao lado de cada cidadão (também outro
agente policial ao lado desse agente policial para «guardar o guardião», e assim
sucessivamente). A generalidade dos cidadãos respeita as leis, não por medo das
sanções a que possa vir a estar sujeita, mas por razões éticas e educacionais. E tem de
ser assim, independentemente de quaisquer pressupostos filosóficos, por razões de
“sobrevivência” do sistema. Talvez o exemplo evocado anteriormente (relativo ao
controlo dos limites de velocidade na estrada) pareça contrariar esta ideia. No
entanto, a “ressonância ética” é muito mais marcante no domínio penal, onde
situamos esta nossa reflexão sobre os fins das penas (em crimes contra bens jurídicos
como a vida, a integridade física, a liberdade, a honra, a propriedade, etc., onde mais
claramente se pode dizer que a generalidade das pessoas se abstém da sua prática por
razões éticas e não pelo medo das sanções), do que no domínio das infrações
contraordenacionais (como são a generalidade das infrações rodoviárias), a que não
são aplicáveis penas, mas outro tipo de sanções. Afirma-se geralmente que reside aí,
na presença ou ausência dessa “ressonância ética”, ou no grau dessa “ressonância”, a
distinção entre crimes e contraordenações. Mas, mesmo no domínio das infrações
contraordenacionais, deve dizer-se que é na modificação das mentalidades e hábitos
cívicos que deve apostar-se para diminuir a frequência dessas infrações, mais do que
na severidade das sanções ou na intensidade da fiscalização policial (precisamente
porque não pode estar um agente em cada curva de uma qualquer estrada).
Crítica: acreditar na bondade humana e fundamentar um sistema inteiro nela, é só
irreal.
Em Portugal: população envelhecida. Há mais jovens, sobretudo na faixa até aos
25 anos que, comprovado cientificamente, é a idade onde se atinge o último
estagio intelectual – o estagio dos princípios e valores sociais. Assim, não vale de
nada apostar um sistema penal em valores morais e éticos quando a percentagem
maioritária de possíveis criminosos ainda não os tem e poderá nunca vir a ter.
Já quanto aos pressupostos filosóficos desta teoria, dir-se-á que atribuir à pena uma
função utilitária e intimidatória que é independente de considerações éticas e de
justiça, se levado às últimas consequências (as quais são decorrência direta dos
pressupostos de que se parte), põe em causa a dignidade da pessoa humana em que
assenta o Estado de Direito. Já atrás foi invocada a objeção kantiana à
instrumentalização da pessoa em função de interesses sociais de combate à
criminalidade. Numa perspetiva puramente utilitária, a intimidação até poderia fazer-
se à custa da condenação de inocentes (a experiência dos totalitarismos do século XX
demonstra-o), ou poderia justificar a aplicação de penas para “servir de exemplo”,
numa medida desproporcional em relação à culpa do agente em concreto – na
verdade, este pensamento não consegue justificar a atribuição da pena ao criminoso
por algo que ele tenha feiro e com base na medida da gravidade do facto, fazendo com
que a pena deixasse de ser vista como consequência do crime. Fala-se, a este
propósito, em terrorismo penal (que pode traduzir-se em terrorismo legislativo
quando, para tal, se privilegia a função legislativa, ou em terrorismo judiciário, quando,
para tal, se privilegia a função judicial).
Não deixa de ser significativo que a reação a esta teoria se tenha evidenciado de modo
particular na doutrina e jurisprudência alemãs no período imediatamente posterior à II
Guerra Mundial e à queda do regime nacional-socialista. Nos Estados Unidos, diante
do pretenso insucesso dos programas de ressocialização, tem-se acentuado a
severidade das penas em nome de exigências utilitaristas de prevenção geral, em
termos que poderão ser considerados desproporcionais (a população prisional foi
multiplicada por cinco nos últimos trinta anos).
Contra esta tendência, em nome do primado de critérios éticos de justiça, que impõem
a proporcionalidade objetiva entre a pena e a gravidade do crime, sobre critérios
utilitaristas, reage Andrew Von Hirsh, expoente da doutrina do “justo merecimento”.
Tal proposta seria mais justa e igualitária e conduziria a penas menos severas, desde
logo porque qualquer pretensão de redução da criminalidade não caberia no âmbito
das funções da pena, mas de medidas políticas situadas noutros âmbitos. O Direito não
pode afirmar-se fundamentalmente através da intimidação e da superioridade própria
do monopólio estadual do uso da força. A afirmação, a força e a superioridade do
Direito hão de assentar na ética e na justiça. Por isso, nunca os seus instrumentos
poderão contrariar, por razões pragmáticas e utilitárias (como se os “fins”
justificassem os “meios”), as bases éticas do sistema, sob pena de este se desmoronar
a partir da erosão dos seus próprios alicerces. Tal não ocorrerá, porventura, de
imediato, mas certamente ocorrerá numa perspetiva de, mais ou menos, longo prazo.
Este é um princípio que importa não esquecer hoje, quando, em nome da luta contra o
“inimigo” (que poderá ser o terrorismo internacional) se sugere o sacrifício de
princípios adquiridos (autênticas conquistas civilizacionais) de direito processual penal
que decorrem do primado da dignidade da pessoa humana (a começar pela proibição
da tortura, por exemplo). Quando se fazem estas cedências, é a autoridade e a
superioridade ética do Direito que é posta em causa, são o Estado e o Direito que
começam a descer ao nível do “inimigo”, começam a deixar de se distinguir desse
“inimigo” no plano ético e começam (para além de qualquer eficácia imediata) a dar-se
por vencidos13.
13
Há outros domínios onde se jogam conflitos entre exigências pragmáticas de combate à criminalidade
e considerações de justiça. Penso, por exemplo, no tratamento dos chamados “arrependidos”, agentes
da prática de crimes que, pelo facto de colaborarem com a justiça, beneficiam de um tratamento penal
mais benévolo, ou podem ser, mesmo, isentos de pena (ver o artigo 299º, nº 4, do Código Penal). É
indubitável a utilidade prática deste procedimento (que permitiu, em Itália, por exemplo, desmantelar
organizações criminosas como a Máfia). Mas não será justo que quem, às vezes durante largos anos,
participou na atividade criminosa e dela beneficiou, por vezes tanto ou mais do que outros agentes
condenados, veja “apagado” todo esse seu passado por ter colaborado com a justiça e por razões
pragmáticas de combate à criminalidade. É certo que também será justo compensar os graves riscos que
Assim, o artigo 1º da CRP – defende a professora Fernanda Palma -, «ao consagrar a
essencial e igual dignidade da pessoa, inibir-nos-ia de adotar esta posição sobre os fins
das penas, se uma tal perspetiva não fosse já cultural e eticamente indefensável».
Como analisado, a função da pena enquanto instrumento de prevenção geral negativa tem
como destinatários os potenciais criminosos. Ora, estes são sempre (como também vimos)
uma minoria. A generalidade dos cidadãos adere espontaneamente à pauta de valores
tutelada pelo direito penal. É a estes cidadãos, que confiam na validade da ordem jurídica,
que se dirige a função da pena como instrumento de prevenção geral positiva.
Deste modo, a esta teoria não poderá ser dirigida a crítica dirigida à teoria da prevenção
geral negativa ou da intimidação, segundo a qual esta permitiria a instrumentalização da
para o “arrependido” decorrem do facto de colaborar com a justiça, como será justo considerar o
próprio arrependimento (quando é autêntico e não fruto de um juízo de conveniência, como muitas
vezes sucede). E também pode optar-se por soluções de conciliação entre as exigências pragmáticas e as
considerações de justiça em jogo, afastando a pura e simples isenção de pena. Mas, esta “entorse” ética,
esta cedência às razões pragmáticas com sacrifício de princípios de justiça e igualdade, não deixa de
afetar a credibilidade e autoridade do próprio sistema.
pessoa em nome de interesses sociais e punir segundo critérios utilitários sacrificando
considerações de justiça e de adequação à culpa concreta do agente.
Há quem veja nesta doutrina uma versão disfarçada da doutrina retributiva e a critique
por isso. É certo que a recção que satisfaz a consciência jurídica comunitária, que impede o
“abalo” dessa consciência e que reforça a confiança dessa consciência na validade da ordem
jurídica é, inegavelmente, uma reação de tipo retributivo (embora também haja situações em
que tal função pedagógica se cumpre com reações apenas simbólicas). Quem adira às
doutrinas retributivas, ou não as rejeite liminarmente, encontrará neste facto um significativo
apoio em favor das suas posições. No entanto, há que assinalar duas importantes diferenças
entre a doutrina retributiva e a doutrina da prevenção geral positiva:
14
Figueiredo Dias, Anabela Miranda Rodrigues e Américo Taipa de Carvalho.
prisão). E é assim porque a pena só poderá justificar-se por necessidades de
prevenção, não por uma exigência absoluta de adequação à culpa do agente (uma vez
que não é esta o fundamento da pena). Refletem estes princípios alguns aspetos do
regime jurídico-penal vigente entre nós. A pena de prisão, que poderia ser adequada e
proporcional à culpa do agente (atendendo à gravidade do crime), observados
determinados requisitos e dentro de determinados limites, será substituída por multa
se a execução da pena de prisão não for exigida pela necessidade de evitar a prática de
futuros crimes (artigo 44º, nº 1, do Código Penal), ou por prestação de trabalho a favor
da comunidade, se desta forma se realizarem de forma adequada e suficiente as
finalidades da punição (artigo 58º, nº 1, do Código Penal), sendo estas finalidades
encaradas na perspetiva preventiva indicada. A pena de prisão, que também poderia
ser adequada e proporcional à culpa do agente, será, se observados determinados
requisitos e dentro de determinados limites, suspensa na sua execução, também se
desta forma se realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
(artigo 50º, nº 1, do Código Penal). Também reflete esta ideia o critério geral de
escolha da pena decorrente do artigo 70º do Código Penal: se ao crime forem
aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal
dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as
finalidades da punição. E será, até, possível, observados determinados requisitos e
dentro de determinados limites, dispensar a própria pena se a esta não se opuserem
razões de prevenção (artigo 74º, nº 1, c), do Código Penal).
Assim, deverá o juiz guiar-se por esta tão volátil e incerta conceção do sentimento jurídico
coletivo? Neste desvio relativista não haverá sempre perigos de sacrifício de princípios
racionais e objetivos de igualdade e proporcionalidade? 16
A frequência e visibilidade (hoje cada vez mais frequentemente mediatizada) dos vários
tipos de crime podem acentuar as exigências de prevenção geral positiva, assim entendidas,
sem correspondência a esses critérios racionais e objetivos de igualdade e proporcionalidade.
E com isto, estamos a “descer à terra”, ao nosso quotidiano… E, sem aludir a algum caso
em concreto (“qualquer semelhança com personagens da vida real será pura coincidência”), é
de se lançar um pequeno desafio à nossa reflexão: não serão hoje os juízes, à luz das
exigências de prevenção geral positiva assim concebidas, tentados a tratar de forma
15
Saliente-se, porém, que também há quem acentue que, pelo contrário, em obediência à função
pedagógica das penas, as exigências de prevenção geral positiva serão tanto maiores quanto mais
acentuada for a ausência de sensibilidade da consciência jurídica comunitária (malformada) perante a
lesão de determinados bens jurídicos, como poderão ser os que são atingidos pela criminalidade
económica, fiscal ou ambiental (assim, Américo Taipa de Carvalho, op. cit., pg. 327). Mas os perigos de
sacrifício de princípios objetivos de igualdade e proporcionalidade manter-se-ão.
16
Será oportuno evocar, a propósito das reações emotivas populares diante da prática de crimes, os
perigos associados ao mecanismo do bode expiatório, a necessidade de encontrar uma qualquer vítima,
como instrumento de catarse coletiva e pacificação social.
diferenciada os casos mediáticos? Ou seja, a punir mais gravemente apenas e tão só por causa
da repercussão inerente à mediatização do caso (puniriam de forma mais branda se não se
verificasse tal mediatização, porque não se trata, verdadeiramente, de um caso distinto e mais
grave do que muitos outros que enchem os tribunais), porque o impacte no plano pedagógico
e de pacificação social é muito maior devido a essa mediatização? Mas não poderemos cair,
assim, na instrumentalização da pessoa como bode expiatório para além da proporcionalidade
com a medida da culpa e com desprezo das exigências de ressocialização do agente do crime,
que não deixam de colocar-se nestes casos com a mesma acuidade do que nos outros? E
também com desprezo de elementares exigências de igualdade e objetividade (tratando de
forma desigual o que é substancialmente igual), com sobreposição das exigências utilitárias a
critérios de coerência ética? Por outro lado, como aferir as expectativas da consciência jurídica
comunitária, sem cair no subjetivismo, na ausência de dados empíricos objetivos? Como
interpretar essa consciência? Quem a representa, quando as valorações socialmente vigentes
são heterogéneas e contraditórias? Será que a comunicação social a espelha de forma fiel?
Terá o juiz (para além do legislador, que opera no âmbito da generalidade e tem legitimidade
democrática) legitimidade para se fazer intérprete dessas exigências (que serão, normalmente,
genéricas e não específicas do caso concreto sujeito à sua apreciação, campo em que a sua
legitimidade já não seria questionável)?17 Poderá questionar-se, por outro lado, até onde é que
se poderá dizer, com critérios seguros e objetivos, que a consciência jurídica comunitária é, ou
não, abalada pela renúncia à pena ajustada à culpa. Não haverá sempre alguma forma de
“abalo”, ou, pelo menos, de frustrante incompreensão face à injustiça da impunidade, por
exemplo, em muitas situações de suspensão, pura e simples, da execução da pena (situações
que reclamariam, segundo critérios de justiça, talvez não a execução da pena de prisão, mas a
imposição de deveres (ao abrigo do artigo 51º do Código Penal) de alcance efetivamente
sancionatório, como condição dessa suspensão? Também já se tem dito, em crítica a esta
teoria, que aos crimes mais graves (como os do regime nacional-socialista, por exemplo), por
serem objeto de uma condenação unânime e indiscutível, não chegam a causar a necessidade
de reforçar a confiança da consciência jurídica comunitária na validade da ordem jurídica. Se
17
A. Lourenço Martins faz-se eco deste tipo de preocupações (op. cit., pgs. 156 a 160 e 256 a 258).
Salienta a carência de índices relevantes para auscultar ou sentir o pulsar da comunidade sobre o
quantum necessário à preservação da confiança na validade das normas e no ordenamento geral para
protecção dos bens jurídicos («como se o abalo das expectativas fosse passível de ser medido por uma
espécie de sismógrafo de que o Julgador estivesse munido quando ditasse a sentença). Adverte para o
facto de nem sempre os receios da população se basearem em informação rigorosa, mas mais em
estereótipos alimentados pela imprensa popular. E para o facto de apenas uma percentagem de crimes
praticados ser objecto de condenação, de onde resulta que os poucos condenados são transformados
em instrumento da reafirmação da validade do sistema, mas essa instrumentalização acaba por ser
inútil, pois continuará fora do sistema a maioria dos que cometem crimes e não são condenados.
esses crimes mais graves não forem punidos, não será por isso que surgirão dúvidas ou
hesitações na consciência jurídica comunitária quanto à relevância dos bens jurídicos em jogo.
E a punição não deixa, nestes casos, de se justificar por simples exigências de justiça. Mas estas
são simples reflexões pessoais, que não podem fazer esquecer o acolhimento que esta teoria
tem tido (em termos que analisarei melhor de seguida, e que, como veremos, a fazem escapar
a algumas destas críticas) na doutrina portuguesa mais autorizada e na própria legislação
vigente.
Não é raro invocar em sentenças tais exigências (ligadas à frequência de determinado tipo
de crime e a necessidade de combater a sua prática) como circunstâncias agravantes (a
propósito de crimes como os rodoviários, de tráfico de estupefacientes, roubo, furto, e muitos
outros). Pensa-se que esta tendência é suscetível de crítica e aqui se deixa, por isso, outro
desafio à nossa reflexão.
Exigências de ordem geral são cons ideradas pelo legislador ao determinar a moldura
abstrata da pena, não deverão sê-lo pelo juiz ao aplicar a Lei ao caso concreto. O que é geral e
independente das circunstâncias específicas, únicas e particulares do caso concreto cabe ao
legislador. Ao juiz cabe considerar, precisamente, o que o caso concreto tem de específico,
único e particular, não aquilo que poderia ser dito desse caso concreto como de qualquer
outro caso de prática do mesmo tipo de crime. Se as exigências da prevenção geral são
particularmente acentuadas, isso há de se refletir em molduras abstratas particularmente
severas (é o que sucede com o crime de tráfico de estupefacientes, por exemplo), não tem que
refletir-se de novo, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, na
medida concreta da pena. Dir-se-á que pode distinguir-se entre a consideração das exigências
da prevenção geral pelo legislador e a consideração dessas exigências pelo juiz, que atua num
contexto histórico eventualmente diferente do do legislador. Podem tais exigências ter-se
acentuado desde o momento da publicação da Lei. Ou pode o legislador não ter considerado
certas circunstâncias da prática de determinado crime (o uso de uma seringa pretensamente
infetada, por exemplo) que só a prática judiciária vem a revelar ser de verificação frequente e
que, precisamente por ser frequente, suscitam particulares exigências de prevenção geral.
Nesta perspetiva, não estaríamos perante uma violação do princípio da proibição da dupla
valoração. Mas o juiz estaria a substituir-se ao legislador, a suprir as suas supostas lacunas,
extravasando do seu papel de aplicador da Lei ao caso concreto. Violar-se-ia, assim, o princípio
da separação de poderes.
Poderá, ainda assim, dizer-se que deveria distinguir-se entre a consideração das exigências
de prevenção geral pelo legislador e a consideração dessas exigências pelo juiz, que atua num
contexto, já não histórico, mas espacial (ou territorial) próprio. Na verdade, não é raro
encontrar alusões em sentenças às exigências da prevenção geral e a frequência da prática de
determinado tipo de crimes com referência à realidade da comarca. A este respeito, o que
pode questionar-se é se, à luz de um princípio de unidade do sistema jurídico, por um lado, e
considerando a realidade de uma mediatização que cada vez mais assume dimensões
nacionais, por outro lado, é legítimo e razoável considerar uma dimensão regional ou comarcã
das exigências de prevenção geral. Deixo a questão à nossa reflexão. Devo salientar, de
qualquer modo, que, também quanto a este aspeto, a perceção pelo juiz das exigências de
prevenção geral se baseia normalmente em dados pouco precisos e rigorosos (raramente se
citam estatísticas, que por vezes não existem, mas de outras vezes existem). Sobre esta
questão, e a propósito da análise das circunstâncias elencadas no artigo 71º, nº 2, do Código
Penal como circunstâncias de que depende a medida da pena, pronunciou-se José de Sousa
Brito nestes termos: «É de notar que na enumeração das circunstâncias que graduam a pena
dentro da sua moldura dentro da sua moldura legal (assim o nº 2 do artigo 71º) não há
nenhuma que faça variar as exigências preventivas gerais independentemente das
circunstâncias que fundamentam a ilicitude material do caso concreto e são abrangidas pela
culpa. Não são, portanto, de admitir considerações relativas ao aumento geral da
criminalidade ou à frequência de certo tipo de crimes (acidentes de trânsito mortais, por
exemplo) para justificar a irrelevância total ou parcial da prevenção especial. A solução
contrária é uma constante tentação da prática judicial, mas deverá entender-se que o
legislador, ao fazer intervir a prevenção geral como mera exceção à prevalência da prevenção
especial para graduar a pena dentro da medida da culpa ou abaixo dela, quis evitar os perigos
daquela tentação. Tais perigos são, como é sabido: a parcialidade e a emocionalidade da
decisão sob o impacto do caso concreto, a inconstitucional instrumentalização do indivíduo
criminoso como meio de atemorizar os outros em nome da utilidade geral, o desrespeito pela
separação de competências entre o legislador penal e os juiz, e a reduzida racionalidade da
opção por uma alternativa de prevenção geral, em face da falta de base empírica para afirmar
que uma certa medida da pena – e não a simples descoberta e punição do crime – tem um
efeito intimidante geral diferenciado do de uma pena alternativa».
É de salientar que Sousa Brito entende que o regime do Código Penal vigente exclui a
consideração das exigências de prevenção geral na determinação da medida da pena, mas já
não da escolha da pena ou da opção por uma pena de substituição (é nestes âmbitos que o
legislador faz intervir a prevenção geral como «exceção à prevalência da prevenção especial
para graduar a pena dentro da medida da culpa ou abaixo dela»).
Mas, diante do que se vem afirmando e da tese de Sousa Brito, é natural que se pergunte:
«que sentido dar, então, à referência genérica, no nº 1, do artigo 71º do Código Penal às
“exigências da prevenção” como circunstâncias a considerar na determinação da medida da
pena? “Exigências de prevenção” poderão ser, para este efeito, indubitavelmente as exigências
de prevenção especial. Por definição, as exigências de prevenção especial dependem das
particularidades do caso concreto e cabem, por isso, no âmbito de competência próprio do
juiz.
Por outro lado, pode considerar-se as exigências da prevenção geral de um modo indireto,
tornando-as dependentes dos graus de ilicitude e culpa do crime em concreto: essas
exigências serão tanto mais acentuadas quanto mais acentuados esses graus de ilicitude e
culpa. Nesta perspetiva, tais exigências deixarão de ser uma variável independente das
particularidades do caso concreto e poderão ser consideradas na determinação da medida da
pena.
A prevenção especial considera que o fim das penas é a intervenção sobre o cidadão
delinquente, através da coação psicológica, inibindo-o da prática de crimes ou eliminando nele
a disposição para delinquir.
A intimidação;
O melhoramento;
A eliminação do criminoso.
Numa versão radical, esta teoria parte de um pressuposto determinista, que nega o livre
arbítrio. Para a escola clássica do positivismo (Lombroso, Ferri, Garofolo), o criminoso (o homo
criminalis) é levado à prática do crime por fatores (para uns, antropológicos, para outros,
psíquicos ou sociais) que escapam à sua vontade. Situamo-nos, assim, nos antípodas das
teorias que assentam numa conceção de pessoa humana como ser livre e responsável.
Doutrinas clássicas com particular expressão nos finais do século XIX, como a doutrina
correcionalista (que exerceu influência na Península Ibérica) e a teoria da emenda acentuaram
o papel da pena como instrumento dirigido à reforma interior do condenado, procurando
influenciar os seus critérios e opções no plano ético. Nesta vertente, as doutrinas da prevenção
especial positiva atribuem à pena objetivos ligados à regeneração moral ou reeducação
(expressão utilizada no artigo da Constituição italiana que enuncia explicitamente os fins das
penas) dos agentes do crime.
Outra é a postura das doutrinas mais influentes nos tempos mais recentes, como a da
Nouvelle Defense Sociale, que, nalguma medida, inspirou o Código Penal português vigente.
Acentua-se, como função da pena, um objetivo de reinserção social ou ressocialização 19. Trata-
se, tão só, de prevenir a reincidência. Haverá que respeitar, também em nome da neutralidade
axiológica do Estado, as conceções de vida e juízos de valor próprios do condenado, sem
pretender qualquer forma de doutrinamento ou “lavagem ao cérebro”. Estatui, nesta linha, o
artigo 43º, nº 1, do Código Penal: «A execução da pena de prisão (…) deve orientar-se no
sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo
socialmente responsável, sem cometer crimes».
Estas doutrinas tenderão a dar outro relevo, que não é dado pelas doutrinas anteriores,
aos fatores sociais que estão na génese do crime. Afirma Marc Ancel que «não se trata de
19
Muitas vezes, trata-se, antes, de inserção social ou socialização, porque o agente, verdadeiramente,
nunca chegou a estar socialmente inserido ou socializado. De outras vezes, trata-se, antes, de evitar a
“desinserção” social, porque o agente nem chega a estar, à partida, socialmente desinserido. O que
poderá suceder é que uma pena de prisão seja, nesta perspetiva, contraproducente. Haverá que buscar,
então, a aplicação de penas alternativas à pena de prisão.
defender a sociedade contra os delinquentes porque são perigosos, mas de defender estes,
porque estão em perigo, socializando-os».
Assim e como se tem feito em relação às outras teorias, cabe agora tecer alguns
comentários a respeito das teorias da prevenção especial positiva.:
Em primeiro lugar, importará realçar como esta dimensão positiva se coaduna com o
(sempre presente nos meus comentários, por compreensíveis e constitucionalmente
fundamentadas razões) princípio da dignidade da pessoa humana. Esta dignidade
mantém-se para além da prática do crime, por muito grave que este seja. O agente do
crime (o “criminoso”) não deixa, por ser agente do crime, de ser pessoa, com as
virtualidades (eventualmente escondidas devido múltiplos fatores) que daí decorrem.
E não deixa de ser membro da comunidade. É, pois, também uma visão solidarista 20
que, de certa maneira, subjaz a estas doutrinas. O agente do crime não se torna um
excluído que deva ser ostracizado, mas é chamado a reatar os laços que o unem à
comunidade e que a prática do crime, de algum modo, quebrou. Uma cultura marcada
por raízes cristãs (para além dos limites estritamente confessionais) descobrirá nas
imagens evangélicas do regresso do filho pródigo e da ovelha perdida que se
reencontra algum eco desta dimensão positiva de reconciliação entre o agente do
crime e a sociedade, ou mesmo, mais modestamente, de ressocialização e reinserção
20
Ou que, mais ambiciosamente, dê relevo ao valor da fraternidade, o terceiro do mote da Revolução
Francesa, até agora mais esquecido.
social. E também esse eco torna espontaneamente aceitável nas nossas sociedades,
apesar de algumas aparências em contrário, esta vertente do sistema jurídico-penal.
A prevenção especial positiva permite, por outro lado, encarar de forma mais radical
a própria proteção da sociedade e das vítimas. É a reeducação, ou a ressocialização,
que permitem atingir, na sua raiz, os fatores que estão na génese do crime, mais do
que a sanção em si mesma. E evitar, mais do que a severidade das penas, a
reincidência, como o demonstra a aplicação de penas de prisão. Voltando a evocar um
exemplo do quotidiano dos tribunais, quando é a toxicodependência a contribuir para
a prática do crime, mais do que qualquer pena (que também se justificará por outros
motivos), só o tratamento da toxicodependência permitirá afastar o perigo de
continuação da atividade criminosa. Olhar a todos os fatores que contribuem para a
prática do crime ou a facilitam, sem que essa prática deixe de ser encarada como um
ato livre e sem que se desresponsabilize o agente (como “vítima da sociedade”), é,
além do mais, uma forma realista de combater a criminalidade.
Há que reconhecer que o entusiasmo com que estas doutrinas foram acolhidas a
partir dos anos sessenta do século XX foi, progressivamente, esmorecendo. E, nos
Estados Unidos, vem-se acentuando, até, um movimento constante de recurso cada
vez mais frequente à pena de prisão (multiplicado por cinco nos últimos trinta anos).
O balanço das experiências de aplicação de penas alternativas à pena de prisão, que
não contribuíram para a diminuição da reincidência, desiludiu, falou-se em “efeito-
zero” desses programas e tornou-se célebre, a este respeito, o adágio: What works?
Nothing works. No entanto, o balanço de aplicação de penas alternativas à pena de
prisão não é assim tão unívoco. Há dados que revelam algum sucesso na perspectiva
da diminuição da reincidência21. E não pode dizer-se que o regresso à aplicação
sistemática da pena de prisão se tenha traduzido numa consequente diminuição
minimamente relevante dos índices de reincidência ou da criminalidade em geral.
Entre nós, nunca a aplicação de penas alternativas à pena de prisão, como a
suspensão de execução da pena com regime de prova ou de prestação de trabalho a
favor da comunidade encontrou uma expressão minimamente significativa que
21
Anabela Miranda Rodrigues, in A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa da
Liberdade, Seu Fundamento e Âmbito, Coimbra, 1982, págs. 142 a 144, contesta a validade de tais
conclusões. Jean-Hervé Syr, (op. cit., pags. 122 e segs.) faz referência e estudos donde se retira que o
sucesso ou insucesso dependerá da atitude de maior ou menor acolhimento e colaboração por parte do
agente. O estudo de Carolina Estarte, Núria Rosell e Maria Eulália Reina, «Penas Alternativas a la Prisón
y Reincidência: um Estúdio Empírico», monografia da Revista Arazandi de Derecho y Proceso Penal, nº
16, demonstra o sucesso da aplicação dessas penas, em relação à pena de prisão, na perspetiva da
diminuição da reincidência.
permita fazer qualquer tipo de balanço. Antes de cruzar os braços e desistir, importa
saber se foi feito (pelo sistema judicial e pela sociedade) tudo o que está ao nosso
alcance22.
Como vimos, há quem afirme que o sistema jurídico-penal não pode pretender do agente
do crime a adesão a qualquer pauta de valores, bastando-se com a conformação externa à lei
vigente e a abstenção da prática de crimes 23. Ao Estado democrático e pluralista faleceria, até,
legitimidade para optar por uma qualquer pauta de valores e impô-la 24. Mas será possível
conduzir um agente à observância dos ditames do sistema jurídico-penal sem apostar na sua
motivação interior? E essa motivação não terá de ser mais sólida do que a que decorre do
temor das sanções e das desvantagens que, no plano puramente utilitarista, lhe possam estar
associadas?25
E, por outro lado, a pena também não perde sentido em várias situações em que não se
colocam particulares exigências de reeducação ou ressocialização: os crimes ocasionais (como
são quase todos os crimes de homicídio) ou os crimes negligentes. Não se colocarão exigências
de ressocialização (pelo menos, na forma como esta é tradicionalmente encarada) nos
26
Sufragamos inteiramente a afirmação de Anabela Miranda Rodrigues já acima citada, segundo a qual
deve ser salvaguardada a liberdade do homem, «a quem compete, em último termo, decidir sobre a
adesão, ou não, os valores que a ordem jurídico-penal defende.»
27
Deve assinalar-se que – di-lo a modesta experiência de um juiz - a generalidade dos agentes da prática
de crimes não contesta ou rejeita a pauta de valores tutelada pelo direito penal vigente. Tal como, por
exemplo, a generalidade dos toxicodependentes que pratica crimes ligados a essa toxicodependência
não rejeita deliberadamente, por uma qualquer postura “contestatária”, a vontade de dela se libertar.
Mas é nítido que qualquer deles precisa de alguma ajuda para assumir com perseverança qualquer
propósito de mudança. Afirma C. Roxin (apud Anabela Miranda Rodrigues, A Posição..., cit., pág. 125):
«O criminoso não é, como muitas vezes julga o leigo, um homem forte cuja vontade tem de ser
quebrada, antes, em grande número de casos, um ser diminuído, inconstante e pouco dotado, por vezes
com traços psicopáticos e que procura compensar através de crimes o seu complexo de inferioridade
provocado por uma deficiente preparação para a vida. Para o ajudar é necessário a cooperação de
juristas, médicos, psicólogos e pedagogos contribuindo para o aperfeiçoamento de um programa de
ressocialização».
28
Como já tem sido salientado, a reinserção social não depende apenas do sistema jurídico-penal,
depende do próprio agente e da sociedade
chamados “crimes de colarinho branco”, praticados por pessoas sem problemas de inserção
social. E a pena não deixa de ter sentido em relação a qualquer deste tipo de crimes.
29
Entre nós, a pena relativamente indeterminada, prevista nos artigos 83º a 85º do Código Penal, tem
uma expressão circunscrita e limitada.
necessariamente, se não for desvirtuado o próprio sentido da pena. O “tratamento” há de ser
instrumental em relação à pena e não pode substituir-se a ela.
Penso que são também, e tão só, as exigências da prevenção especial positiva que
justificam a aplicação do regime especial dos jovens (Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de
setembro), ou podem justificar, para além da aplicação desse regime, a consideração da idade
jovem como circunstância atenuante. Não se trata, em meu entender, de considera que a
imaturidade juvenil se traduz num menor grau de culpa («são novos, não pensam…». Não há
uma semi-maioridade penal. O jovem não é, por ser jovem, menos culpado ou responsável do
que o adulto30. O que se verifica é que a nocividade da pena de prisão, com o perigo dos seus
efeitos criminógenos e estigmatizantes, é particularmente acentuada quando aplicada numa
fase etária em que as opções de vida ainda estão por consolidar.
30
A. Lourenço Martins (op. cit., pgs. 188 a 203) identifica nalguma jurisprudência o aflorar da ideia de
que «numa personalidade ainda em formação podem exacerbar-se as paixões, acicatar-se os impulsos e
as emoções, dizendo-se imatura a noção de responsabilidade».
Trata-se de seguir a célebre máxima de Ortega y Gasset: «Eu sou “eu” e a minha
circunstância». A consideração desse contexto não se destina a influenciar o juízo de culpa,
como se a adversidade dessas condições familiares, sociais e económicas, por si só, tornasse
desculpável, ou menos culpável, a prática de qualquer crime (pois agentes em condições
igualmente adversas fazem opções diferentes e abstêm-se de praticar crimes). Há, porém, que
atender à motivação do agente na determinação da medida da pena. E quando essa motivação
(em crimes contra o património) é a penúria económica e a necessidade de a ela obstar, é
óbvio que a condição social e económica do agente não pode ser ignorada na perspetiva do
juízo de culpa.
O contexto familiar, social e económico releva, sobretudo, para a escolha da pena mais
adequada à reinserção social (ou não desinserção social) do agente. Tal contexto deve ser
considerado na escolha dessa pena, na escolha dos deveres que podem condicionar a
suspensão da execução da pena (artigo 51º do Código Penal), ou na elaboração do plano de
reinserção social em que assenta o regime de prova (artigo 53º, nº 2, do mesmo Código).
A este respeito, gostaria de alertar para um risco que pode correr-se se seguirmos um
raciocínio que já vi aflorado (embora de forma ténue) em algumas sentenças. A adversidade
das condições familiares, sociais e económicas do agente não serve, por si só, como vimos, de
circunstância atenuante. Mas também não deve, obviamente, ser circunstância agravante.
Explico o porquê deste meu receio. Pode fazer-se este raciocínio: porque as perspetivas de
reinserção social são mais difíceis devido às condições adversas que rodeiam o arguido
(desemprego, falta de apoio familiar, residência num bairro dos que hoje se designam como
“problemáticos”), ele não beneficiará de um tratamento (suspensão da execução da pena, por
exemplo) de que poderia beneficiar se não se verificassem essas condições adversas (se
estivesse empregado ou tivesse apoio familiar ou residisse num bairro de classe média).
Estamos perante condições alheias à vontade do arguido (não perante antecedentes criminais,
que indiscutivelmente relevam negativamente na escolha da pena a aplicar como sinal da
dificuldade do objetivo de reinserção social do arguido). Fazer dessas condições motivo para
um tratamento mais desfavorável do arguido representa uma perversão dos objetivos
solidaristas das teses que acentuam as exigências da prevenção especial positiva. E conduz a
resultados manifestamente contrários ao princípio da igualdade. Na linha das críticas da
corrente do “justo merecimento” (“jsut deserts”) às teses que dão predomínio aos objetivos
da reinserção social do agente, podemos aqui identificar efeitos (perversos) da desvalorização,
em prol de objetivos utilitários, de critérios éticos objetivos de igualdade e proporcionalidade.
O Código Penal Português e os fins das penas
Para tal, há que partir da análise do artigo 40º do Código Penal, resultante da revisão
deste diploma operada em 1995 e que tem por epígrafe, precisamente, “Finalidades das penas
e das medidas de segurança”. É este o teor dos dois primeiros números deste artigo:
Pode discutir-se, e tem sido discutida, a questão de saber se deste artigo decorre a
consagração de uma opção clara e acabada por uma teoria a respeito dos fins das penas.
O legislador não pretende encerrar o assunto, como se à doutrina nada restasse para
discutir, no âmbito do quadro legal em vigor, a respeito desta tão profunda e recorrente
questão dos fins das penas. Mas, mesmo assim, algumas opções a esse respeito são tomadas,
para orientar, e também vincular, o aplicador da lei penal.
Sobre a extensão e alcance dessas opções e dessa vinculação, algumas divergências
subsistem, porém.
Poderá considerar-se que a questão não está encerrada por via legislativa, nem o
artigo 40º representa a “dogmatização” de uma qualquer teoria sobre os fins das penas. Mas,
de qualquer modo, este artigo fornece ao aplicador do direito critérios seguros para proceder
a essa determinação. Assim, do nº 2 desse artigo decorre a consagração inequívoca do
princípio da culpa, na sua vertente unilateral de limite. A pena supõe a culpa e não pode
ultrapassar a medida da culpa. Mas, por outro lado, porque deliberadamente se rejeita a
consagração do princípio bilateral da culpa (segundo o qual, não há culpa sem pena), não será
possível, à luz desse artigo, invocar considerações de culpa para recusar a aplicação de uma
pena de substituição, de uma pena não privativa de liberdade em substituição da pena de
prisão. Não é a gravidade do crime, na perspetiva da culpa, por si só, que impõe a aplicação de
uma pena de prisão efetiva, independentemente das exigências de prevenção, geral ou
especial, positiva ou negativa.
Jorge de Figueiredo Dias vai um pouco mais longe e entende que do teor do citado
artigo 40º decorrem quatro postulados básicos que devem orientar de forma vinculativa o
aplicador da lei jurídico-penal.
Este tipo de moldura não se confunde com uma moldura de culpa, como a que era
proposta, como ponto de partida de determinação da medida da pena, pela doutrina
portuguesa mais antiga (Manuel Cavaleiro de Ferreira e Eduardo Correia) - e é, hoje, proposta
por José Sousa Brito. Mas tal não significa que, na prática, os resultados a que se possa chegar,
por uma ou outra via, sejam muito diferentes. É que, no entendimento de Jorge de Figueiredo
Dias (tal como o de Anabela Miranda Rodrigues), a pena adequada à tutela da confiança e às
expectativas da comunidade na manutenção da ordem violada é, em regra, a pena adequada à
gravidade objetiva e subjetiva de um crime em concreto. É a aplicação dessa pena justa que a
comunidade espera e reclama e é essa aplicação que reforça a confiança da comunidade na
vigência da ordem jurídica e na validade dos bens jurídicos em questão. Não será assim em
situações em que essa mesma consciência comunitária tolera a não aplicação da pena
adequada à culpa, em nome de outras exigências e valores (como podem ser a necessidade de
evitar a desinserção social do agente, que aconselha a não aplicação de uma pena de prisão
efetiva, mesmo que esta fosse a mais adequada ao grau de culpa), sem que essa não aplicação
coloque em causa a defesa do ordenamento jurídico, abalando os seus alicerces ao criar
perplexidades nessa consciência comunitária a respeito da validade dos bens jurídicos em
questão e da vigência desse ordenamento31.
A partir deste ponto de partida, funcionam como ponto de chegada (é este o terceiro
dos postulados apontados por Jorge de Figueiredo Dias) as exigências de prevenção especial,
nomeadamente as de prevenção especial positiva ou de socialização.
Não muito distante desta tese de Jorge de Figueiredo Dias, situa-se a de Américo Taipa
de Carvalho, para quem a medida da pena deve ser dada pelas exigências concretas de
prevenção especial positiva dentro de um quadro delimitado, no seu limite máximo, pela
medida da culpa (a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa) e, no seu limite
mínimo, pelas exigências da prevenção geral positiva, de defesa do ordenamento jurídico
encarada na perspetiva da prevenção geral positiva.
Em todo o caso, e porque estamos noutra sede, permito-me ir para além desta posição
dominante e abrir os horizontes a outros modos de pensar, que também se têm manifestado
na doutrina portuguesa.
Mesmo dentro dos parâmetros do Código Penal vigente e do citado artigo 40º, há
quem considere que a pena é não apenas o pressuposto e limite da pena, mas também o seu
32
Em sentido próximo, no que se refere a estes critérios de determinação da medida da pena,
pronuncia-se Anabela Miranda Rodrigues in «O Modelo…», cit., págs. 177 e seguintes.
fundamento. É o que defendem José de Sousa Brito e José de Faria Costa. Para este autor, a
culpa é não apenas limite, mas fundamento da pena, pois só com base num juízo de culpa
pode encontrar legitimidade a pena enquanto intervenção estadual na esfera pessoalíssima do
delinquente. E daqui não decorre necessariamente que a pena deva ser aplicada sempre que
se formula um juízo de culpa (o princípio bilateral da culpa). O facto de a pena não ser
necessariamente aplicada quando se impõe um juízo de culpa (como se verifica em caso de
dispensa de pena, prevista no artigo 74º do Código Penal para situações de comprovada
prática de crimes) não invalida que a culpa seja o fundamento da pena sempre que esta é
aplicada. Os princípios da necessidade, da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito
penal impõem que se puna só na estrita medida da necessidade de proteção de bens jurídicos,
mas tal não invalida que, para intervir na esfera jurídica pessoal dos agentes, o direito penal
careça de uma base ética que vai para além do simples interesse social ou da sobreposição
deste aos direitos individuais. Esse fundamento há de assentar no princípio da culpa. Distinguir
o direito penal da ética, e conceber o direito penal como ultima ratio, não significa prescindir
de um sólido fundamento ético, não puramente utilitário, de qualquer intervenção penal.
Esta visão não seria incompatível com o direito constituído. O artigo 18º, nº 2, da
Constituição contém um limite à restrição de direitos, não um critério de fundamentação da
responsabilidade penal. O enfoque do artigo 71º do Código Penal é bem expresso no sentido
de que a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da
culpa do agente e das exigências de prevenção. Do artigo 40º, nº 1, do Código Penal não
resulta que tenha de ser afastado um “modelo de culpa” e retribuição que se preconiza como
integrador dos diversos fins das penas.
Mas, apesar das notórias diferenças de pressupostos, talvez não sejam muito
diferentes os resultados a que se pode chegar ainda que partindo desses diferentes
pressupostos.
O princípio da culpa
A. Lourenço Martins questiona se para chegar a estes resultados não será necessário
considerar a pena não apenas limite, mas também medida da pena. Não estaríamos, pois,
perante um simples “jogo de palavras” sem consequências práticas. A mim, parece-me que
podermos chegar a estes resultados quer se considere que a medida da culpa se deve traduzir
na medida da pena, quer se considere que a medida da culpa é limite da medida da pena. Que
a culpa seja limite da medida da pena não significa apenas que não há pena sem culpa (nulla
poena sine culpa), mas também que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da
culpa.
33
Entendo, pois, que a toxicodependência há de considerar-se circunstância atenuante, e não agravante
(sobre a questão, pode ver-se a aprofundada análise jurisprudencial de A. Lourenço Martins in op. cit.,
páginas. 259 a 292).
34
Aos formandos auditores de justiça costumavam-se a salientar as virtualidades da pena de prestação
de trabalho a favor da comunidade no caso de condenações por crimes rodoviários de consequências
graves (vg. homicídio), por ser uma pena mais adequada ao grau de culpa e às exigências de prevenção
geral e de prevenção especial positiva do que a pena de prisão efetiva (esta eventualmente
desproporcional à culpa e desadequada às exigências da prevenção especial positiva, embora
eventualmente adequada à exigências de prevenção geral) e do que a pena de prisão suspensa na sua
execução sem imposição de deveres (esta eventualmente desadequada às exigências da prevenção
geral). Uma aprofundada análise jurisprudencial da penologia relativa a este género de criminalidade
rodoviária, pode ver-se em A. Lourenço Martins, op. cit., pgs. 341 a 353)
O juízo de culpa há de referir-se ao crime em concreto, não à personalidade do agente.
O agente deverá ser punido pelo que fez, não pelo que é como pessoa, ou aquilo em que se
tornou por sua culpa. É de rejeitar a conceção da culpa na formação da personalidade ou da
culpa na condução da vida. O facto criminoso não é um simples pretexto para formular um
juízo sobre o carácter ou a personalidade do agente. Considerar o contrário exigiria do juiz, em
rigor, um esforço de indagação sobre a biografia do agente, sobre a génese (mais ou menos
influenciada pelo seu contexto familiar e social, ou mais ou menos adquirida e imputável às
suas opções e à sua culpa), da sua propensão para a prática do crime. Um esforço
eventualmente inglório que ultrapassa os limites do conhecimento judiciário. E, sobretudo,
que entra em domínios de conhecimento pessoal e intimidade incompatíveis com a separação
entre o direito e a moral, entre o juízo jurídico de factos e o juízo moral de personalidades.
Esta visão não deixa de ter reflexos práticos importantes em questões que dominam o
nosso quotidiano judiciário. Dou alguns exemplos.
O relevo que deve ser dado aos antecedentes criminais há de depender deste
pressuposto: os antecedentes criminais relevam não tanto como elementos de um juízo de
culpa sobre a personalidade independente do crime em concreto, mas como elementos que
tornam mais grave esse crime em concreto, pois a sua prática traduz o desrespeito da
advertência que representaram as condenações anteriores. Isto significa que a agravação
decorrente dos antecedentes criminais há de estar sempre limitada pela gravidade do crime
em concreto. Por muito graves que sejam os antecedentes criminais em causa, a agravação da
pena correspondente a um crime de pequena gravidade objetiva há de estar sempre limitada
por uma relação de proporcionalidade com esta pequena gravidade 3536.
35
É exemplar, a este respeito, o caso (já acima referido) decidido no acórdão da Relação de Coimbra de
17/1/1996 (in C.J., 1996, I, pg. 38) de um furto de pequena gravidade praticado por um agente com
antecedentes criminais de gravidade acentuada.
36
O mesmo raciocínio se aplicará a um juízo de perigosidade do agente. O perigo de continuação da
atividade criminosa que inequivocamente representa a toxicodependência do agente não permite a
condenação numa pena desproporcional em relação à culpa referida ao crime em concreto. Se este é de
pequena gravidade, a pena há de refletir esta pequena gravidade, por muito elevado que seja o perigo
de continuação da atividade criminosa e as exigências de prevenção especial negativa.
37
Em sentido contrário a este pronuncia-se A. Lourenço Martins.
Dir-se-á que não é diferente afirmar que o arguido não beneficia das circunstâncias
atenuantes da confissão e do arrependimento (o que será sempre possível afirmar) ou afirmar
que agrava a sua responsabilidade a ausência dessa confissão e desse arrependimento (o que
me parece de rejeitar, pelas razões que indiquei). Penso, porém, que é diferente, e tem
consequências diferentes, não fazer operar uma circunstância atenuante e fazer operar uma
circunstância agravante.
Nenhuma das teorias dos fins das penas consegue dar uma resposta satisfatória ao
problema da legitimidade da pena. Facto é que as teorias filosóficas e jurídicas sobre os fins
das penas tratam de um problema mal colocado: o dos fins “ideais” das penas.
A esses fins ideais contrapõe-se, porém, a amarga necessidade de punir, devendo toda a
discussão sobre os fins das penas estar condicionada pelo seu conteúdo histórico e pela sua
função social. Assim, o ponto de partida nesta discussão não é o idealismo das penas, mas
antes a sua realidade: aquilo que é, e não aquilo que deveria idealmente ser.
Não terá cabimento, consequentemente, proclamar que a pena não deve ser retributiva
quando a primeira necessidade humana que a pena pública satisfaz é a da substituição
psicológica – e física - da vingança privada. O problema fundamental será, então, o de saber se
a pena poderá cumprir aquele destino racionalmente e de forma juridicamente aceitável e ser
instrumento de efeitos sociais úteis.
A existência da comunidade social tem, porém, uma sedimentação mais profunda do que a
lógica contratualista supõe. As necessidades que justificam a comunidade estatal não se
reduzem à liberdade de cada um e não são livre e renovadamente discutíveis por cada
indivíduo, sempre a todo o tempo, dependendo antes de consensos temporários ou de
maiorias contingentes.
Recorde-se que o contratualismo apela ao mito de um estado original – mito este que é
somente um argumento racional e não um facto histórico -, anterior à formação do Estado,
permanentemente invocável, abafando a integração dos indivíduos na comunidade como
facto histórico e o reconhecimento de que a máxima realização individual pode ser realização
de fins coletivos pelo indivíduo.
Mesmo a ideia da máxima realização individual como fim social não está vinculada a uma
lógica contratualista. Ela é tão só o produto da história que gerou comunidades igualitárias e
democráticas que prezam a sua identidade e os seus valores. As razões da organização social
são, assim, ideias culturais em que se baseia a comunidade social – estas ideias são o cimento
da validade do sistema jurídico e adquirem a sua expressão formal na Constituição.
Por outro lado, quer a prevenção geral, quer a prevenção especial, só se legitimam, como
fins das penas, através da culpa. Também a culpa funciona como fundamento ou, pelo menos,
como alguns autores defendem, limite da pena preventiva.
Como ficou dito, o problema dos fins das penas deve ser colocado como problema do
fundamento da legitimidade das penas estatais em face da legitimidade do poder punitivo do
Estado e não como mera escolha de modelos ideologicamente suportados ou puros modelos
normativos assentes em construções ferais sobre os fins dos seres humanos.
Numa outra perspetiva, porém, tem havido uma deslocação do problema dos fins das
penas para uma discussão sobre modelos de política criminal em termos sobretudo
pragmáticos. Esta discussão vale por si mesma, mas saber qual é a sua importância para o
problema do conceito material de crime é o que se pretende, no fundo, obter.
À controvérsia clássica entre as teorias dos fins das penas sucedeu, mais recentemente, o
confronto entre os modelos de política criminal.
Ora, são estes conjuntos de soluções que, na sua globalidade, se confrontam trazendo os
princípios diretores do Direito Penal e os conteúdos das normas penais para o centro de uma
discussão que, outrora, foi desenvolvida pelas teorias sobre os fins das penas.
A pena desapareceu como premissa do controlo do crime e a discussão sobre os seus fins
legítimos foi relativizada, por se reconhecer que a sua aplicação é absolutamente necessária.
Estes modelos são apenas tendências. No plano prático da política criminal real têm ainda
surgido, desde os finais do século XX, modelos de pura incapacitação (actuarial justice) do
delinquente, preocupados exclusivamente com técnicas de classificação, identificação e
controle de grupos de pessoas perigosas, como a chamada perspetiva das broken Windows, ou
as tendências para a privatização de instituições penais, que afastam claramente a política
criminal de princípios ético-jurídicos.
38
Dias, J. Figueiredo, Direito Penal Português – Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do crime, págs.
56 e seguintes.
Broken Windows theory
Esta é uma teoria norte-americana e assenta na seguinte premissa: Consider a building with a few
broken windows. If the windows are not repaired, the tendency is for vandals to break a few more windows.
Eventually, they may even break into the building, and if it's unoccupied, perhaps become squatters or light fires
inside.Or consider a pavement. Some litter accumulates. Soon, more litter accumulates. Eventually, people
even start leaving bags of refuse from take-out restaurants there or even break into cars.
Há três décadas, a criminalidade em várias áreas e cidades dos EUA – com Nova York no topo da lista -
atingia níveis alarmantes, preocupando a população e as autoridades americanas, principalmente os
responsáveis pela segurança pública. Nesta linha, foi implementada uma Política Criminal de Tolerância Zero,
que seguia os fundamentos da "Teoria das Janelas Partidas". As autoridades entendiam que, por exemplo, se os
parques e outros espaços públicos deteriorados forem progressivamente abandonados pela administração
pública e pela maioria dos moradores, esses mesmos espaços seriam progressivamente ocupados por
delinquentes.
A Teoria das Janelas Partidas foi então aplicada pela primeira vez em meados da década de 80 no
metro de Nova York, que se havia convertido no ponto mais perigoso da cidade. Começou-se por combater as
pequenas transgressões: lixo no chão das estações, alcoolismo entre o público, evasões ao pagamento da
passagem, pequenos roubos e desordens. Os resultados positivos foram rápidos e evidentes. Começando pelo
pequeno conseguiu-se fazer do metro um lugar seguro.
Posteriormente, em 1994, Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York, baseado na Teoria das Janelas
Partidas e na experiência do metro, deu impulso a uma política mais abrangente de "tolerância zero". A
estratégia consistiu em criar comunidades limpas e ordenadas, não permitindo transgressões à lei e às normas
de civilidade e convivência urbana. O resultado na prática foi uma enorme redução de todos os índices criminais
da cidade de Nova York.
A expressão "tolerância zero" soa, a priori, como uma espécie de solução autoritária e repressiva. Se
for aplicada de modo unilateral, pode facilmente ser usada como instrumento opressor pela autoridade
fascista, tal como um ditador ou uma força policial dura. Mas os seus defensores afirmam que o seu conceito
principal é muito mais a prevenção e a promoção de condições sociais de segurança. Não se trata de punir com
grande violência o pequeno delinquente, mas sim de impedir a eclosão de processos criminais incontroláveis. O
método preconiza claramente que aos abusos de autoridade da polícia e dos governantes também se deve
aplicar a tolerância zero. Ela não pode, em absoluto, restringir-se à massa popular. Não se trata, é preciso frisar,
de tolerância zero em relação à pessoa que comete o delito, mas tolerância zero em relação ao próprio delito.
Trata-se de criar comunidades limpas, ordenadas, respeitosas da lei e dos códigos básicos da convivência social
humana.
A tolerância zero e sua base filosófica, a Teoria das Janelas Quebradas, colocou Nova York na lista das
metrópoles mundiais mais seguras.
As antinomias entre os fins das penas permanecem, assim, nos modelos político criminais.
A própria emergência de um novo paradigma não supera por completo a discussão tradicional
sobre os fins das penas. Mesmo que o novo paradigma resulte de uma articulação harmoniosa
dos princípios constitucionais de Direito Penal, como a culpa e a necessidade da pena, não
deixa de existir discussão intra-sistemática, isto porque a discussão sobre a política criminal
não desemboca numa só direção, numa só alternativa, num só programa.
A este único paradigma emergente deve opor-se a desconstrução dos velhos modelos
à luz do estado atual da discussão – isto é, a compreensão destes velhos modelos com
os novos instrumentos científicos de que dispomos atualmente
Por outro lado, a própria emergência de um novo paradigma só se verifica no
confronto com a descrença global na política criminal, como já se referiu.
39
Na perspetiva dos neo-retribucionistas como Eusebi e Figueiredo Dias. O retorno à pena da culpa foi defendido na
Suécia pelo Conselho de Prevenção. A proposta do Conselho sueco foi a de um restabelecimento da relação entre
pena e crime. Entre outras razoes, fundamentou-se a proposta por não ser possível formular um prognóstico seguro
relativamente ao perigo que o individuo representa para a sociedade. O parecer do referido Conselho defendia
ainda que a ressocialização nunca seja imposta, mas apenas proposta ao delinquente.
5.2.O modelo verde
Este modelo baseia-se, como já foi antecipado, em premissas que exigem discussão.
Desde logo, a prevenção geral de integração utiliza, ao que parece, a função psicanalítica
da pena – a representação de estabilidade e segurança que ela gera -, função meramente
simbólica, como fundamento da pena, na perspetiva agora “objetivista” da necessidade.
Porém, a própria função psicanalítica da pena poderia justificar, através de uma abordagem
científica da mesma natureza (psicanalítica), a rejeição pura e simples do plano tradicional da
necessidade da pena. Onde a necessidade resultar somente da procura de uma terapia
simbólica contra a insegurança gerada pelo crime, a pena surgirá como resposta a várias
carências que, eticamente, não devem ser satisfeitas por esse meio (terapia simbólica).
Mesmo que se rejeite, como FD, uma fundamentação psicológica da prevenção geral de
integração, opondo-se-lhe a ideia de que “as expetativas geradas pelo crime não devem ser
praticamente conexionadas com o clamor (discurso feito normalmente aos gritos) social da
pena, mas normativamente implicadas com a incolumidade da crença social na validade e na
vigência da norma violada” – as expetativas geradas pelo crime vs. aquilo que a sociedade
discursa sobre a pena não devem ser conexionadas na prática, mas antes, normativamente
protegidas pela crença social na validade e na vigência da norma violada -, nada nos diz que a
representação dessa mesma incolumidade (circunstância em que se está segurado e/ou
salvaguardado; proteção; segurança) exige somente o funcionamento célere e eficaz da justiça
penal e não a dureza do castigo exemplar. Esta “incolumidade da crença” também resulta, com
toda a certeza, da prevenção de uma representação psicológica, que fundamentará a
intervenção penal.
As dúvidas que tais soluções suscitam são geradas pela duvidosa legitimidade de um
modelo anti-processual e pela substituição do poder dos juízes pelo poder dos grupos sociais.
Proposta por José Luis Diez Rippoléz, numa perspetiva mais global e próxima do discurso
político.
Segundo este modelo, as restrições públicas da liberdade só podem ser justificadas pela
própria necessidade de garantir a liberdade. Há aqui uma lógica contratualista e universalista
quanto à rijeza dos interesses individuais. Neste sentido, a intervenção pública punitiva só
poderia ser justificada em função da proteção de direitos e interesses individuais, tornando-se
aceitável pelos próprios destinatários do direito penal.
A orientação deste modelo como um reduto, uma espécie de fortificação edificada dentro
de outra fortificação, invencível e inviolável, do Estado de Direito democrático, uma espécie de
modelo de defesa do mesmo Estado de Direito, tornou-o vulnerável devido à crescente
convicção, desde meados do século XX, de que o Direito Penal deveria ser um reforço das
várias políticas sociais do Estado, um braço direito do Estado nas suas dimensões económicas,
financeira, fiscal e ultimamente ambiental.
O tema dos desvios ao referido modelo tornou-se, assim, central no pensamento penal
contemporâneo.
6.2. O modelo expansionista
O modelo de fundamentação passa a referir-se, neste sentido, aos fins do Estado e aos
bens coletivos, à utilidade social e ao bem-estar geral.
Segundo esta lógica, é posta em causa a universalidade (geral) dos bens jurídicos e o
Direito Penal é delimitado pelo interesse político e pela necessidade de utilização dos seus
instrumentos sancionatórios em cada momento histórico.
A segurança como valor objetivo e, por vezes, simbólico, passa a ser condição fundamental
da intervenção penal. Os crimes de perigo abstrato – em que não há sequer perigo efetivo
para os bens jurídicos – tornam-se o paradigma das normas incriminadoras.
Este crescente ceticismo, fomentado por razões economicistas, tem levado a substituir
políticas ressocializadoras por políticas incapacitantes baseadas em modelos securitários. Tais
modelos são, por vezes, baseados numa logica preventiva como acontecia na já referida linha
das broken Windows.
Esta alteração de modelos penais tem tipo, desde o século XX, uma dimensão muito
significativa com a recentração do Direito Penal na relação do agente e da sociedade com a
vítima, a qual passará a influencia decisivamente o se e o como da pena.
Por outro lado, a decisão punitiva, em vez de se orientar pela resposta a dar à
censurabilidade do agente vai deslocar-se para a satisfação das necessidades psicológicas da
vítima.
O pensamento jurídico tem procurado definir materialmente o crime ou, noutros termos,
o ilícito criminal, diferentemente da Criminologia, que aceita uma definição genérica de crime
que abrange a violação de regras morais ou até, como explica Becker, acentua que nada define
o crime como uma categoria especifica de comportamentos, antes de alguém ser
estigmatizado num processo de interação social como delinquente – assim, para esta teoria
criminológica, primeiro encontra-se e delimita-se o delinquente e, somente a partir daí se
constrói o conceito de crime.
A divergência teórica que mais se repercute, ainda hoje, na análise estritamente jurídica
do conceito material de crime é a que se configurou a partir do século XIX, acerca do objeto de
infração criminal. As grandes alternativas que surgiram neste conceito foram a definição do
objeto da infração criminal como:
O confronto entre estas duas perspetivas revela uma diferença quanto à conceção da
legitimação do direito penal. Assim:
Assim:
Conceções objetivistas
Birnbaum
Binding
Conceção de puro positivismo legalista: reduz o bem jurídico aos valores ou condições
de vida da comunidade jurídica, tal como definidos pelo legislador.
--
Nota: foi, porém, a conceção de Birnbaum, transsistemática e normativista, que tornou mais
proveitoso o conceito de bem jurídico para a ciência do Direito Penal, abrindo portas a uma
avaliação crítica dos interesses protegidos pelas normais penais.
Von Liszt
Este autor, desenvolveu esta mesma perspetiva de Birnbaum, definindo o bem jurídico
como interesse humano vital, expressão das condições básicas da vida em comunidade. No seu
entendimento, o bem jurídico é um conceito legitimador do Direito Penal (e do Direito em
geral), descomprometido com a norma legal.
Para este autor, o conceito de bem jurídico tem ainda um conteúdo individualista
liberal. A esta perspetiva contrapor-se-á uma outra, baseada igualmente numa delimitação
objetivista do fundamento da infração criminal, a associa a bens ou valores supra individuais
(como se verá em seguida)
--
Liberal.
Conceção de Estado e de Direito supra individualista ou mesmo transpersonalista. Ora,
esta última conceção é representada pelo Estado hegeliano (relativo a Georg Friedrich
Hegel) e, mais recentemente, pelas ideologias totalitárias, considerando que os valores
da personalidade e do indivíduo estão necessariamente ao serviço de valores
coletivos. Assim, os bens jurídicos são protegidos pelo interesse que representam para
a comunidade – o conceito de bem jurídico em geral torna-se uma abstração sem
substancia, designando fins do Estado e não as coisas de que os indivíduos ou a
sociedade carecem. P.e.: a vida de cada um como bem é substituída pelo bem da
preservação da vida em geral e o património dos indivíduos é substituída pela
preservação da propriedade privada como valor social básico. Assim, os bens
individuais adquirem valor em função dos coletivos e não o inverso.
As conceções sobre a finalidade do direito (dependente dos fins do próprio Estado) sob a visão de Gustav
Radbruch
Conceção individualista: nesta visão, o indivíduo estaria acima de qualquer acontecimento, quer
produzido pelo Estado, quer pela cultura. O Estado e o direito produzido por ele serviriam apenas
Conceção supra individualista: para esta teoria, tanto os valores da personalidade como os da cultura
Estado e do direito. Esta teoria, denominada também por intervencionista, é uma exaltação aos
Conceção transpersonalista: nesta ótica, os valores culturais seriam o grau mais elevado da
humanidade. Seriam, pois, algo eterno. Para esta corrente, tanto o indivíduo como coletividade são
findáveis; o que não acaba, porém, é a cultura, as obras humanas. Nesta linha de pensamento, os
Esta doutrina pretende a síntese integradora entre as duas correntes opostas, aproveitando os
os coletivistas devem subordinar-se aos valores da cultura. A opção entre um valor e outro, quando
se revelam inconciliáveis, deve ser feita de acordo com a natureza do fatco concreto e em função dos
princípios de justiça, de tal sorte que o indivíduo não seja esmagado pelo todo, nem que a
Assim, em suma, os fins ou finalidades últimas do Estado, de acordo com as várias conceções,
seriam:
Teoria de sociedade
Porém, o Direito Penal não se satisfaz com esta perspetiva meramente de preferência
normativa, procurando a perspetiva cientifica do conceito de bem jurídico. Nessa via, procura-
se situar na estrutura social – independentemente da instancia política ou da decisão política –
os critérios que tornam necessária a incriminação de determinadas condutas e a proteção de
certos bens – sendo que esta necessidade se prende com a mera sobrevivência ou
continuidade da estrutura social; assim, não se pretende uma discussão quanto às conceções
da sociedade ou do Estado, não sendo uma discussão ideológica e não autorizando um debate
exclusivamente ético. Basta uma pergunta: quais os bens jurídicos e as condutas que levam à
sobrevivência e continuidade da sociedade? Que é o mesmo que perguntar quais os fatores
sociológicos constantes que instituem certas realidades como bens jurídicos?
Estas questões não conduzem, porém à validade universal das condições de existência
– assim, não haveria um conceito universal e absoluto de bem jurídico, mudando em função da
sociedade, de acordo com os fins concretos que cada sociedade deverá realizar, segundo a sua
própria escolha.
Os sistemas sociais são auto referentes, construindo a sua própria legitimidade através
dos traços da sua identidade. E, por esta via, a teoria da sociedade chega ao ponto de partida
recusado, na medida em que subordina o conteúdo da norma penal à pura escolha normativa.
Assim, esta conceção social conduziria a um desfecho trágico do Direito Penal: a da
incapacidade de definir com universalidade condições de existência humanas e necessidades
sociais. Expressão deste desenlace é, como se verá adiante, uma cerca abordagem do
funcionalismo – sobretudo o funcionalismo sistémico.
Explicação:
Outra razão para isso é o facto de o sistema ser capaz de fixar os seus próprios limites,
ao diferenciar-se do ambiente, limitando as possibilidades no seu interior. Todavia, a
tendência é de que num ambiente mais complexo o sistema também se torne mais
complexo, ainda que não na mesma proporção. Sob um outro ângulo, pode-se concluir
que o aumento da complexidade de um sistema estimula o aumento da complexidade de
outros sistemas que o observam, quando aquele estiver na condição de entorno destes.
Para dar conta da complexidade interna, o sistema auto diferencia-se. Por exemplo, o
sistema Direito diferenciou-se, primeiramente em público e privado, depois, em direito
constitucional, administrativo, penal... e civil, comercial..., e assim sucessivamente. Esse
processo revela a evolução. O sistema não tem uma estrutura imutável que enfrenta um
ambiente complexo. É condição para esse enfrentamento que o próprio sistema se
transforme internamente, criando subsistemas, deixando de ser simples e tornando-se
mais complexo, ou seja, evoluindo. Cada um desses subsistemas criados dentro do sistema
tem o seu próprio entorno. A diferenciação do sistema não significa, portanto, a
decomposição de um todo em partes, mas da diferenciação de diferenças
sistema/entorno. Não existe um agente externo que o modifica, é ele mesmo que o faz
para sobreviver no ambiente.
Mas a evolução do sistema não ocorre de forma isolada, ela depende das irritações do
ambiente. E, conforme a tolerância do sistema, as irritações podem levá-lo a mudar as
suas estruturas. Essa característica de produzir a si mesmo é chamada de autopoiese,
responsável por um aumento constante de possibilidades até que a complexidade atinja
limites não tolerados pela estrutura do sistema, levando-o a mudar a sua forma de
diferenciação. A evolução do sistema ocorre quando ele se auto diferencia e ainda quando
há uma passagem de um tipo de diferenciação para outro.
Luhmann lembra que, na sociedade, muitas coisas são planejadas, como, por exemplo,
currículos escolares, sistemas de tráfego e campanhas eleitorais, mas isso não garante que
os efeitos ocorram conforme pretendidos, o que o leva a concluir que o sistema evolui
quando desvia do planejamento, quando não reage da mesma forma, quando não se
repete. A evolução não pode ser planejada, ela se nutre dos desvios da reprodução
normal.
o Os não vivos;
o Os vivos;
o Os psíquicos;
o Os sociais.
Os sistemas não vivos são incapazes de produzirem a si mesmos, por isso não podem
ser classificados como autopoiéticos. Para manterem-se, dependem do ambiente. Por
exemplo, uma máquina que estraga não é capaz de consertar-se sozinha, a partir de elementos
internos. Precisa que uma pessoa queira consertá-la. E será essa pessoa, não o sistema, quem
decidirá que peça irá repor para fazer com que a máquina volte a funcionar. São, portanto,
diferentes dos demais tipos de sistemas que se caracterizam como autopoiéticos.
Os sistemas vivos são, por exemplo, as células, os animais, o corpo humano. Eles são
compostos de operações vitais, responsáveis pela manutenção do sistema. Se uma célula está
com falta de ferro, por exemplo, ela não vai ficar esperando pela disposição do ambiente em
suprir-lhe a falta. A célula não depende de uma decisão do ambiente em relação a ela. Ao
contrário, seleciona o que considera importante no seu entorno.
Tudo que não pertence ao sistema encontra-se na condição de seu ambiente. Assim,
os sistemas psíquicos e físicos são ambiente de um sistema social qualquer, bem como todos
os outros sistemas sociais, e vice-versa. Por exemplo: a consciência de um médico e um
coração são ambiente do sistema medicina. Também o direito, a teologia e a psicologia são
seu entorno. O sistema medicina é um sistema social e como tal é composto somente por
comunicação. Todos os sistemas sociais formam a sociedade ou o sistema social global.
Neste sentido, surge uma nova conceção da sociedade e, por consequência, uma nova
definição de Direito. O Direito não é, assim, um “dever moral” ou um “imperativo político”,
mas apenas a institucionalização de expetativas de ação – o que o liga, certamente, à
necessidade de estabilização de possíveis conflitos interiores ao sistema social e reduz o
problema da legitimação do direito à dimensão da funcionalidade. Em face disto, toda a
conduta “desviada” em relação à norma surge como uma frustração das expetativas de
comportamento asseguradas juridicamente.
Porém, ao contrário do que se possa pensar, esta frustração não é, em si, disfuncional
ou exterior ao sistema de interação social, na linha de Durkheim. Como conduta antissocial, ela
é antes uma consequência das decisões básicas variáveis do sistema social. Ela é produzida
através dos mesmos processos sociais que indicam a conduta conforme ao Direito – é,
portanto, uma reação “normal” ou mesmo em certo sentido funcional. Normal, porque quem
espera o melhor, tem de esperar o pior; a institucionalização de expetativas serve para as
positivas e negativas. Funcional, no sentido de mostrar a evolução do pensamento e
expetativas sociais sobre uma determinada conduta; o que hoje é considerado um crime pela
sociedade, amanha poderá não ser. Isto porque a conduta desviada busca o seu sentido na
ordem dominante, na medida em que é impossível uma subcultura criminosa (como um contra
direito), sem qualquer referencia a ordem dominante – não é contra direito sem direito;
mostra o que está de errado no Direito da sociedade, através dos comportamentos antissociais
(que, se forem em larga escala, frustram o que até aí eram expetativas sociais sobre alguma
coisa, mostrando a evolução das mesmas).
Interacionismo simbólico
O ponto de vista de que o Direito Penal visa proteger bens jurídicos é substituído,
absolutamente, pela função de estabilização contra fática (contra facto jurídico) das
expetativas geradas pela violação de uma norma incriminadora. A função do Direito Penal
seria, assim, manter padrões de ação que organizam as expetativas sociais sobre o
comportamento alheio.
O crime deixa de ser visto como problema externo ou desafiante do sistema, para ser
encarado como dano social objetivo, para se tornar pretexto de afirmação de modelos de ação
– assim, o Direito serve para institucionalizar as expetativas jurídicas e o Direito Penal para
afirmar modelos de ação para que as expetativas jurídicas não sejam frustradas. A aplicação
da pena é vista, neste prisma, como oportunidade de controlar a interação social – fazer com
que as pessoas não fujam aos modelos de ação, para as expetativas não serem frustradas.
Assim, para Jakobs, o funcionalismo destrói a legitimação do Direito Penal num
conceito material de crime, porque destina os bens jurídicos aos fins definidos pelo sistema e
porque atribui ao Direito Penal uma função ideal ou simbólica de controlo social.
Em suma
Sem pretender falar de uma corrente ou escola, divisa-se, porém, uma tendência de
análise, um modo de relacionar a fundamentação normativa com a teoria crítica da sociedade.
A discussão sobre o conceito material de crime poderá incorporar esta perspetiva de que
os comportamento incrimináveis são definíveis num modelo argumentativa de ética do
discurso, em que a legitimidade depende de não se contradizerem pela incriminação
condições básicas da subjetividade e do reconhecimento recíproco, como aconteceria, por
exemplo, com a incriminação de blasfémia ou de certos comportamentos sexuais em privado,
mas já não com a incriminação de condutas que revelem a exploração da necessidade como o
aproveitamento da prostituição.
A esta perspetiva acresce uma tendência para colocar o tema dos limites da criminalização
no contexto de fundamentos da democracia e do Estado de Direito, num nível referido ao
discurso político em torno de novas perceções do contrato social. Assim, por exemplo, para
Klaus Gunther, a atribuição de responsabilidade estaria associada a uma igualdade de
participação exterior à subjetividade de cada um, mas referida a uma legitimação democrática
das normas e à consideração da pessoa como cidadão e participante na deliberação
democrática. Este parâmetro não só interfere com o tipo de condutas criminalizáveis,
delimitando-as, como também interfere com os critérios de atribuição pessoal da
responsabilidade, em que a divergência censurável do agente para com a norma é aferida
pelos deveres de cidadão participante, nas condições de uma posição “deliberativa critica”.
Para além desta primeira via metodológica, poder-se-á ainda introduzir uma espécie de
argumento criminológico – que se verá mais adiante -, que integrará aspetos de uma teoria
mais ampla sobre a construção da realidade social, utilizando as interpretações criminológicas
dos comportamentos como critério de ponderação da adequação à realidade das opções
normativas de criminalização, mais próxima da segunda via referida. Não se trata de aplicações
normativas da Criminologia, mas de responder normativamente, com critérios de justiça
baseados no pensamento critico, à produção social do crime ou à construção da personalidade
delinquente. Esse tópico constituirá o argumento criminológico e será analisado mais adiante.