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I

Conceito material de crime, princípios e fundamentos


1. Definição do Direito Penal: o problema nas suas vertentes

O Direito Penal é um conjunto de normas que se autonomizam no Ordenamento Jurídico


por atribuírem a certos factos descritos pormenorizadamente – os crimes -, consequências
jurídicas profundamente graves – as penas e as medidas de segurança.

Os elementos identificadores das normas penais são, consequentemente:

 Crime  constituem o conteúdo da previsão da norma penal.


 Pena; Correspondem à estatuição da
norma penal.
 Medida de segurança.

O caráter não talismânico das palavras crime e


pena

Há que se ter, porém, em atenção que esta identificação do Direito Penal encerra em si
uma ilusão que se traduz no seguinte: não poderemos reconhecer uma norma como penal
apenas porque o legislador designou os factos que previu como crimes e as sanções que
estatuiu como penas. As palavras crime e pena que identificam o Direito Penal não são
talismãs, de virtudes e poderes sobrenaturais, que alteram a realidade que designam, dando
uma ideia falsa da mesma.

I. O legislador português não poderia assim vir a considerar como crime punível,
tome-se como exemplo, criticar o Governo, limitando o direito à livre expressão do
pensamento – apesar de essa ser a sua intenção, não haveria aqui uma norma
penal. É por isso que se diz que o crime a pena têm um conteúdo pré-legislativo
indisponível.

Esta indisponibilidade revela, por sua vez, uma relação entre a definição material
de Direito Penal e a temática da legitimidade constitucional, relação essa que
postula que o Direito Penal português não poderá ter um qualquer conteúdo.

II. O crime e a pena são entidades produzidas por instancias sociais antes de serem
moldadas pelo legislador como tais. Há uma vinculação – embora não rígida -,
entre a noção de crime dos diversos grupos sociais e a definição legislativa. Assim,
as representações sociais sobre o que é uma atividade criminosa são,
normalmente, reproduzidas pelo legislador. Por outro lado, a aceitação das
decisões legislativas depende da receção das representações sociais dominantes
por aquelas decisões.

Por estas questões, não é correto afirmar que uma conduta é criminosa porque é punida,
nem no âmbito da ciência jurídica, nem num plano cientifico geral.

Isto porque, no plano das ciências do crime que o encaram como mero facto social, o
crime é geralmente estudado como uma realidade nociva que é produzida por certas
condições da sociedade ou do agente. No entanto, contra esse entendimento parece estar a
teoria de que a lei e os tribunais assumem um papel essencial na identificação dessa realidade
– como é típico da teoria do labeling-approach, contribuindo para uma espécie de seleção
social da conduta delinquente.

Nesta última perspetiva, todavia, a determinação social do crime ainda persiste nos
processos sociais que levam a etiquetar condutas como criminosas. Desta forma, a decisão de
punir não fundamenta racionalmente o ilícito criminal (como se este pudesse existir através de
um ato de criação consciente e arbitrário) -, é apenas um processo social descritível nas suas
causas e variantes, que explica a seleção de certas condutas como criminosas. Assim, por
exemplo, etiquetar alguém como delinquente devido aos seus antecedentes criminais ou ao
grupo social em que se insere, apesar de transferir a razão de ser da pena de conduta
objetivamente criminosa para o mero processo de atribuição da qualidade de delinquente ao
agente, não resulta de atos de vontade dos indivíduos ou instituições. Fundamento da
incriminação não será, por conseguinte, a decisão legislativa de punir, mas a necessidade social
de estigmatizar determinados grupos de indivíduos. Permanece, por isso, mesmo para esta
perspetiva teórica, a possibilidade de prever pré-legalmente quais as condutas e os agentes
que uma sociedade identificará como delinquentes, isto é, de representar a materialidade do
conceito de crime.

A afirmação de que um comportamento constitui um crime porque é punido deve ser


substituída pelo reconhecimento de que só é criminoso o comportamento que mereça uma
pena. Este reconhecimento apela à legitimação constitucional do Direito Penal e remete para
o estudo da realidade social e psicológica do crime.

Com esta perspetiva não se confundem os objetos e métodos da ciência jurídica com
outras ciências da sociedade, isto é, as restantes ciências da sociedade não irão afundar o
Direito Penal, impondo a metodologia própria dessas ciências. O objetivo é, somente, a
afirmação de que as representações sociais sobre o crime, pré-juridicamente conformadas,
constituem (como factos sociopsicológicos) pontos de referencia do legislador penal na
definição jurídica do crime. A teoria do Direito Penal não poderá, por consequência, definir o
crime só em função da atribuição de uma pena, mas terá antes de encontrar um sentido
jurídico último do crime e da pena, que permita não os confundir, enquanto manifestações de
ilícito e sanção, com outras realidades.

É uma expressão normal desde desiderato a consideração do Direito Penal como ramo do
Direito Público, em que à lesão dos bens jurídicos essenciais para a vida em sociedade são
atribuídas as sanções mais graves do Ordenamento Jurídico. Na noção da essencialidade dos
bens, está também compreendida a imagem social da pré-compreensão do crime que nos
permite identificar materialmente o Direito Penal.

Uma outra forma de determinar o sentido último do Direito Penal consiste em investigar
as funções das penas, de modo a poder identificar as condutas e os agentes que merecem
sofrer a consequência jurídica da sua aplicação – esta é uma direção que nos remete para um
plano de legitimidade do Direito Penal, mas que faz depender a definição do preceito primário
(previsão do crime) da definição do preceito secundário da norma (estatuição da pena): olha-
se primeiro a função, o fim da pena e, em função disso, identificam-se as condutas e agentes
merecedoras desta consequência jurídica.

Importa, assim, olhar primeiro para o que as ciências da sociedade ou ciências que
estudam o comportamento humano sob perspetivas não jurídicas nos dizem sobre o crime e,
posteriormente, determinar o estado que a teoria jurídica atingiu na definição material de
crime.

Assim, quanto à questão “o que surgiu primeiro? O crime em sentido social ou o crime em sentido jurídico-
normativo?”, parece compreensível que sem a ideia de crime e a representação da mesma na sociedade, o
poder legislativo não teria força suficiente para definir o conceito com uma natureza jurídica. É neste sentido
que as palavras «crime» e «pena» têm um conteúdo pré-legislativo indisponível. Sem a aceitação social da
definição de crime (no caso dos regimes totalitários), o crime não existe, ideia assente na máxima «o Direito
existe para o Homem e pelo Homem» - contrariamente a convicção errónea de que o Direito cria, em
absoluto, o seu objeto – a realidade regular.

Flaviano, na antiga Roma, dava conselhos acertados – que batiam sempre certos com a realidade -, a quem o
consultava. Isto porque, limitava-se a reproduzir o que ouvia na sociedade. O mesmo acontece com o Direito
Penal: a sociedade só o aceitará se o mesmo produzir o que é aceite pela sociedade. Problema: O Direito não é
a opinião, não é o voto da sociedade – isso é a lei. O Direito é o pensar justo e haverá justiça nas conceções da
sociedade?
2. O problema da definição pré-jurídica do crime: a Criminologia e a sua importância
para o Direito Penal

Dá-se o nome de criminologia ao conjunto de estudos científicos não jurídicos sobre o


crime como fenómeno social ou psicossocial. Como é facilmente compreendido, a definição de
crime constitui também para estes estudos uma preocupação fundamental.

Quando se procura uma definição operatória de crime, recursa-se, naturalmente, uma


formulação jurídico-formal e apela-se às “forças não jurídicas do controlo social do
comportamento humano”, definindo-se, por exemplo, o crime como comportamento
“antissocial” (Mannheim), através da influencia comum da Ética, da Moral e do próprio Direito.
A característica da anti-socialidade ou da irregularidade social é sempre referida quanto às
valorações sociais dominantes em determinada época.

Tradicionalmente, a Criminologia é uma ciência de base descritiva e não normativa, isto é,


não pretende mostrar nem o que deve ser crime nem como se deve responder com justiça ao
crime, mas somente compreendê-lo e explica-lo, com recurso a outras ciências.

Sistematizando o entendimento sobre o crime como objeto da Criminologia, segundo a


organização de Hassemer, distinguir-se-ão conceções que identificam o crime como:

 Deficiências do agente:
o Biologia; Rejeita-se, assim, analisar o crime
como deficiência ou fenómeno
o Neurologia; puramente objetivo, alterando
o Psicologia. assim o estatuto epistemológico
(ramo da filosofia que se ocupa do
 Deficiências na socialização ou estrutura social: conhecimento humano) do estudo
o Sociologia. sobre o crime.

 Deficiências na natureza social e funcional do crime.

Esta sistematização deverá, porém, ser relacionada com três perspetivas metodológicas
diferentes:

 A perspetiva do crime como acontecimento individual que reúne as conceções:


o Biológicas e psicológicas tradicionais;
o Teses cognitivistas da psicologia contemporânea.
 A perspetiva do crime como acontecimento social, baseado em padrões sociais de
ação vigentes em determinado período temporal, segundo uma lógica behaviorista ou
psico-sociológica.
 A perspetiva do crime como fenómeno significativo e comunicacional, na linha das
teses interacionistas.

As duas primeiras perspetivas definem tendencialmente o crime como uma realidade


objetivamente identificável. Pelo contrário, a última perspetiva focaliza o objeto da
Criminologia:

 Nos próprios sujeitos que definem o crime;


 Nas instituições de controle;
 Nos processos de interação sociais que definem o crime e a delinquência.

Todas estas orientação são combináveis e têm uma mais valia para o Direito Penal,
colocando, porém, diferentes problemas de articulação metodológica.

I. Teorias que aceitam o crime como um fenómeno identificável objetivamente

Para estas teorias, o crime é sempre visto como alteração de um padrão de


comportamento tido como normal, seja como fenómeno individual, seja como fenómeno
social.

a) Crime como acontecimento individual

Concentrando-se na deficiência do agente, estas teorias procuram identificar causas


biológicas de uma diferença, colocando no centro da investigação a pessoa isolada do meio.

Lombroso (teorias neurobiológicas)

No princípio do século XX, algumas teorias criminológicas procuraram encontrar fatores


biológicos da criminalidade. Destaca-se Cesare Lombroso, L’Uomo Delinquente, propondo que
os criminosos seriam delinquentes natos, próximos dos primitivos, que independentemente do
meio social não poderia deixar de cometer crimes.

Estas teorias baseavam-se, porém, uma deficiente interpretação dos dados empíricos,
uma vez que não confrontavam devidamente os vários grupos sociais, cingindo-se a uma
amostra reduzida (condenados prisionais), bastando-se assim com a análise de pessoas
vivendo no meio isolado (prisões) sem considerar fatores sociais que poderiam ter conduzido
ao crime.
Tais teorias correspondem à procura de uma base biológica do comportamento criminoso,
que deixaram uma herança importante às investigações contemporâneas que levaram:

 À identificação do cromossoma da violência;


 À duplicação do cromossoma y (em meados dos anos sessenta);
 Às conexões que o estudo do cérebro pela neurociência pode sugerir quanto a certos
tipos de comportamento.

Objeções:

I. As conexões entre o funcionamento do cérebro e o comportamento humano, pela


sua complexidade, não permitem, porém, concluir que haja uma causalidade
linear entre fenómenos registados no cérebro e certos comportamentos. Neste
sentido, embora possam detetar disfunções cerebrais como certo tipo de lesões
pré-frontais com implicações na impulsividade, por exemplo, que não podem
deixar de ser consideradas na resposta ao crime pela justiça penal, não só é
duvidoso que em todos os casos de comportamento criminoso se verifiquem tais
afetações, como também é duvidoso que a merda existência das mesmas conduza
a comportamentos criminosos, sem a presença de outros fatores relacionados
com o meio e a cultura.
II. Por outro lado, há uma objeção metodológica de fundo na conexão entre as
alterações do cérebro e os comportamentos, que é a dependência da própria
investigação neurobiológica das conceções jurídicas ou éticas sobre a identificação
dos comportamentos. A relevância dada às especificidades do funcionamento do
cérebro, por exemplo, no comportamento violento ou mesmo no mentiroso
pressupõe conceitos de violência ou de mentira pré-estabelecidos pela conceção
jurídica, ética e social. Se um comportamento foi tido como mentira, mas não tiver
o propósito de enganar, a atividade neuronal que tentámos associar aos
comportamentos antissociais abrangerá esses outros significados?

A verdade é que nada pode ser inferido sobre uma eventual origem dos
comportamentos criminosos no funcionamento do cérebro. O significado do
comportamento é sempre produto de uma interação social. Não há uma
correlação fixa entre a atividade neuronal – que é um dado objetivo e sem
significado pré-determinado – e a caracterização do comportamento como de um
certo tipo – que é intersubjetiva e intrasubjetiva (no sentido de se estabelecer
entre a relação dos sujeitos, no processo da socialização).

III. Além disso, existem ainda objeções éticas em retirar consequências jurídicas dos
estudos sobre o cérebro, tendo em conta a experiencia das consequências
associadas à prática da lobotomia para erradicar a agressividade, que deixaram
marcas profundamente negativas na história da ciência.

Perspetiva biologista:

Lombroso:

 Criminosos natos (logo, sem livre arbitro e, por isso não a podemos censurar, tendo de arranjar
outra forma de lidar com o crime).
 Traços biológicos e psicológicos próprios;
 Escola positivista;
 Prisão como tratamento a nível biologista;
 Estado do primarismo – atraso físico e psicológico verificável através de traços como maxilar,
crânio, entre outros.
 Muito criticado – amostra muito reduzida (só em prisioneiros), entre outras críticas.

Em Portugal destacaram-se, neste campo, Júlio de Matos e Miguel Bombarda, apesar da sua
vertente mais humanista.

A neurociência ganha força e influencia o Direito Penal. Estamos sobretudo a pensar na


inimputabilidade. No que toca à psicologia, tem-se como problemática principal sobretudo o
principio da culpa e a medida da pena.

Teorias psicologistas

Estas considerações críticas da relevância da neurobiologia para a explicação do


comportamento criminoso não impedem que se tenha de admitir a importância da forma
como certas pessoas avaliam os motivos e tomam decisões em comparação ao modelo de
pessoa média e racional pressuposta pelo Direito 1.

1
Damásio refere, por exemplo, a propósito de certos casos de pacientes em que as lesões pré-frontais se concentram no setor
ventromedial, que estes avaliam dilemas morais de modo excessivamente utilitarista.
Primeira fase

Eysenck

Ainda, centrando-se no indivíduo como referência essencial, se integram as


perspetivas psicológicas, numa primeira fase próximas das neurobiológicas. Essas perspetivas
procuram a explicação do crime no funcionamento psíquico individual, nos aspetos de
diferenciação e de patologia, como a teoria geral de Eysenck.

Segundo este autor, a herança genética condicionaria diferenças no funcionamento do


sistema nervoso cortical e autonómico que interfeririam com a capacidade de aprender com
os estímulos exteriores. As dimensões da personalidade – extroversão, neurotismo e
psicotismo – teriam variações de intensidade e articulação nos indivíduos. O comportamento
antissocial estaria relacionado sobretudo com a combinação da extroversão, neurotismo e
psicotismo, combinação essa que produziria pouca resposta dos indivíduos aos estímulos
sociais e menor controlo do seu comportamento – havendo menos propensão noutras
combinações.

Objeções

 Conceção determinista;
 Reducionismo metodológico.

Taylor

Taylor conceberia a personalidade individual, para além de um substrato biológico e


social, como uma praxis “a forma significativa de um autor tentar construir e desenvolver a sua
própria conceção”.

Segunda fase

Nesta fase, é desenvolvida a abordagem do crime centrada na personalidade do


delinquente, afastando assim uma análise estritamente comportamental, passando a incidir
também na relação do crime com o processo cognitivo, tanto no aspeto pessoal como no
aspeto interpessoal.

Gottfredson (Theory of Crime) e Hirschi

Estes autores associam o crime à impulsividade, à falta de autocontrole e à


incapacidade de deferir a gratificação almejada pela ação.
Piaget e Kohlberg

Esta orientação da Psicologia associa também o crime à questão do desenvolvimento


moral no processo social. Exemplos disso mesmo são Piaget e Kohlberg. Kohlberg refere-se a
vários estádios no desenvolvimento dos juízos morais:

 Pré-moralidade, em que os agentes apenas se motivam pela punição e obediência com


uma visão hedonista, isto é, o prazer é visto como um bem supremo e objeto da vida.
 Conformidade convencional, com raciocínios de proveito pessoal e aceitação do
Direito por razoes egoístas.
 Fase dos princípios em que, em última análise, se atinge a perspetiva do contrato
social e as ideias abstratas de justiça, respeito e confiança. Acontece por volta dos 25
anos.

Para esta orientação, os comportamentos antissociais estariam relacionados com a


incapacidade de atingir os estádios superiores dos níveis de desenvolvimento da
personalidade.

Clive R. Holin

Dentro desta linha de análise, Clive R. Holin refe como mais recente tendência –
citando Gibbs – a conceção das distorções cognitivas. Estas distorcem o reconhecimento da
autoria ou desvalorizam a responsabilidade pelo próprio comportamento, suportando o baixo
nível de desenvolvimento sociomoral.

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Psicologia e Sociologia: zonas de convergência

Em suma, a própria Psicologia, centrada na análise da personalidade, tem-se orientado


por modelos baseados no processamento da informação social pelos indivíduos, que permitem
compreender que os indivíduos agressivos desenvolvem perceções limitadas das situações e
das soluções para os problemas que lhes são colocados nos conflitos interpessoais, não
conseguindo alcançar técnicas alternativas à violência para resolver tais conflitos (Dodge).

No polo oposto, surgem teorias que pretendem reconhecer no crime uma escolha
racional, vendo no benefício pessoal a sua motivação determinante (Clive R. Holin). Esta
orientação acentua a importância e melhoramento do indivíduo e da sua capacidade de
escolha em detrimento de fatores sociais e da influencia do grupo.
Em conclusão, a aproximação da Psicologia ao problema da personalidade delinquente
revela a compreensão de formas e características comportamentais que, em regra,
correspondem a padrões:

 De interação;
 De processamento da informação;
 Da relação das pessoas com a solução dos problemas.

Ao contrário dos modelos neurobiológicos, pautados por um determinismo mecânico, as


perspetivas psicologistas abrem a possibilidade de alteração de modelos de raciocínio, de
avaliação e decisão de conflitos, mostrando que há arbítrio na decisão.

Assim, existe um certo estádio de desenvolvimento da Psicologia cognitiva-


comportamental (cognitive behavioural theory) que torna possível, como realçado por Clive R.
Holin, desenhar técnicas de intervenção que funcionam em contraposição ao desespero a que
até aí tinha chegado a Criminologia que, através de Martinson, clamava em 1974, “nothing
works”. Os conceitos mais populares desta linha de intervenção da Psicologia parecem ser o
tratamento da motivação em programas com fases delineadas (Clive R. Holin) ou as chamadas
teorias da mentalização (Fonagy) - que se baseia:

 Na aquisição da capacidade para “mentalizar”;


 Relacionar a experiencia interior com a representação atual;
 Compreender-se a si e aos outros;
 Lidar com as emoções;
 Construir relações reais e solidas, em personalidades border line.

Há, porém, uma interligação importante entre a neurobiologia e a psicologia.

 Grande ponto problemático destas teorias: o direito penal assenta na ideia de uma ação livre.
Todas estas teorias podem por, assim, em causa o direito penal.

Teorias sociologistas

As conceções de base sociológica radicam o crime na deficiência da socialização dos


indivíduos e, por isso, acentua, como génese do crime:

 Os padrões sociais de relação entre o individuo e os grupos sociais (deficiência na


socialização);
 A própria estrutura social (deficiência na sociedade).

Durkheim

A orientação de Durkheim constitui a linha de força destas conceções. Segundo este


autor, o crime seria uma expressão do funcionamento normal de todas as sociedades; seria,
em certo sentido, útil ou funcional, na medida em que permitia sinalizar quais as regras
dominantes e necessárias, exprimindo inovações comportamentais inerentes à evolução
social, nomeadamente às conceções éticas dominantes.

A tradição de Durkheim, na análise do crime:

 Acentuou os fenómenos de indiferença às normas (anomia) suscitadas pela


organização das sociedades, nomeadamente pela divisão do trabalho social;
 Acentuou a raiz dos comportamentos antissociais na natureza das estruturas sociais.

Esta modificação do paradigma da compreensão do crime, desde a personalidade


deficiente até uma espécie de normalidade social, instaura uma linha de pensamento que
entende o crime como puro facto social e o analisa como uma função social e não como uma
projeção da experiencia subjetiva.

Com uma origem histórica no positivismo cientifico, esta perspetiva precede análises
behavioristas, desenvolvidas nos Estados Unidos, nos inícios do século XX, como as do filosofo
e psicossociólogo Mead (primórdios da escola de Chicago).

Mead

Este autor explica os comportamentos sociais como o resultado da interação entre a


sociedade e o indivíduo, em que a sociedade determina a construção das conceções de si
mesmo (self) e a construção se significados (interacionismo simbólico). A mesma abordagem
olha para os comportamentos de forma objetiva, explicando-os através de uma resposta algo
padronizada das pessoas às condicionantes do meio social.

A orientação da análise para o padrão social dos comportamentos olha para o crime
como um problema de socialização, impondo uma solução crítica das condições da deficiente
socialização.

A tradição de Mead, na análise do crime:


 Orientou a Sociologia para a compreensão dos fenómenos de interação e de resposta
do indivíduo ao meio, que estão subjacentes a teorias da aprendizagem dos
comportamentos criminosos e à constrição de si e da personalidade delinquente.
 Abriu igualmente caminho às possibilidades de reconstrução de si mesmo como são
propostas pelas teorias da psicologia cognitiva-comportamental.

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As teses da Sociologia Criminal têm acentuado a primeira ou a segunda das vertentes


referidas, combinando-as muito frequentemente:

 Uma maior valorização do interacionismo e da relação do crime com a deficiente


socialização será encontrada:
o Nas teorias da associação diferencial de Sutherland;
o Nos conflitos de cultura de David Matza e Gresham Sykes.
o Nas subculturas delinquentes de Albert K. Cohen.
 Por outro lado, encontramos uma mais intensa relação com o “funcionalismo” de
Durkheim e a sua ideia de anomia social, no pensamento de Merton.

Sutherland

Segundo este autor, o crime pressupunha fenómenos de aprendizagem por contacto, pela
chamada associação diferencial com padrões de comportamento criminosos e anti criminosos.

A ideia básica consiste no facto do crime não se explicar pela expressão de necessidades
ou de valores, nem pelo meio social ou por deficiências do indivíduo – já que essas
necessidades, valores e condições presidem todo o comportamento social, criminoso ou não -,
mas sim pela intensidade, frequência e precocidade de certos contactos sociais. Assim, este
autor vem estabelecer uma verdadeira teoria da determinação do comportamento criminoso
em nove aspetos. São eles os seguintes:

1. O comportamento criminoso é aprendido;


2. O comportamento criminoso é aprendido por interação com outras pessoas num
processo de comunicação;
3. A aprendizagem faz-se por contacto dentro de grupos íntimos e pessoais;
4. A aprendizagem inclui técnicas, motivos e atitudes;
5. A orientação especifica dos motivos depende dos códigos legais como favoráveis ou
desfavoráveis à infração;
6. Uma pessoa torna-se delinquente em consequência do prevalecimento das posições
favoráveis às infrações;
7. As associações diferencias podem variar em frequência, duração, prioridade e
intensidade, sendo mais decisivas as mais precoces, por exemplo;
8. O comportamento criminoso envolve todos os elementos de uma aprendizagem, não
sendo uma mera imitação;
9. Conquanto o comportamento criminoso seja uma expressão de necessidades e valores
gerais, não é explicado por eles, porque tais necessidades e valores gerais presidem
todo o comportamento social, criminoso e não criminoso.

Sutherland, ao recentrar a explicação dos comportamentos criminosos no contacto


individual e na aprendizagem, pôde vir a incluir na sua teoria, após um estudo muito célebre –
os white colar crimes – que o comportamento antissocial não se restringia às classes baixas
nem era determinado pela pobreza e pelas deficiências familiares automaticamente, mas tinha
a ver com padrões comportamentais desenvolvidos por grupos sociais.

As teses de Sutherland, bem construídas e fundamentadas, revelam-se anti


estigmatizantes e otimistas, na medida em que:

 Não só revelam como a génese do crime não é determinista, através da prevalência


que atribui à ideia de aprendizagem;
 Como também sugere que todas as pessoas de todos os grupos sociais não estão
imunes a esses fenómenos, afastando a identificação entre crime e pobreza ou outra
particularidade como género ou raça.

Albert K. Cohen

Esta orientação realça na criminalidade os fenómenos de conflito de valores culturais e


da substituição dos valores dominantes por outros valores e pautas normativas que
originariam as subculturas delinquentes.

Sykes e Matza

Evidenciaram que, no fenómeno do crime, estudando sobretudo a delinquência


juvenil, se revelam técnicas de neutralização normativa, pelas quais os agentes superariam
conflitos normativo-comunicativos.

Seria possível reconhecer padrões de comportamento em que os agentes utilizariam


técnicas de desresponsabilização, tais como:
 A representação do agente como produto das circunstancias;
 A negação do ilícito e da injustiça da atuação em nome de lógicas de duelo como a luta
entre gangs rivais;
 O desprezo pelas vítimas que justificaria a sua punição;
 A reprovação dos acusadores, tribunais, polícia, políticos;
 O apelo a instancias superiores como a fidelidade ao grupo ou a amizade, numa
perspetiva ética particularista.

Em suma, o crime não seria a expressão de uma racionalidade diversa do comum, nem
uma hostilidade cultural a valores ou mesmo aos valores subjacentes ao sistema normativo
legal, mas apenas utilizaria, na linha de Sutherlan, processos de um comprometimento
específico como esses valores, uma logica de justificação formalmente idêntica à reconhecida
pelo sistema legal, mas com conteúdos desviantes.

Dentro deste grupo de conceções, Sellin também analisa os tipos de conflitos normativos,
desde os conflitos entre culturas diversas externamente até aos conflitos internos, mostrando
que os conflitos não são de culturas, mas de normas de conduta, afetando, sobretudo, os que
se encontram em situações de transição de culturas, como os imigrantes de segunda geração.

Em suma, a Sociologia Criminal a partir de Mead começou por conceber o crime


como expressão de processos sociais de comunicação, em que são transmitidas
racionalidades conformadores dos comportamentos criminosos, que demonstram que o
crime é uma resposta ou a solução de um tipo de conflitos ou problemas de interação
entre o agente e o meio, previsível e reconfigurável até certo ponto.

Uma outra grande perspetiva da Sociologia Criminal formulou-se a partir do conceito


de anomia, a que Durkheim se referia, como foi desenvolvido por Merton, mostrando
sobretudo que o crime e a explicação do comportamento criminoso residiam nas deficiências
da estrutura social.

Merton

Este autor, desenvolvendo o conceito de anomia de Durkheim, pelo qual se exprimia a


indiferença relativamente às regras vigentes numa certa sociedade, explicaria o crime pelo
desfasamento entre as metas sociais gerais e as vias para as alcançar – já Sellin, com a teoria
dos conflitos de cultura, ou Cohen, com o conceito de subcultura delinquente, tinham radicado
o crime na eticidade produzida pela estrutura social; e, numa outra perceção das coisas,
Sutherland, com a teoria da associação diferencial, tinha definido a criminalidade como
aprendizagem de modelos de conduta, compreendendo tanto as técnicas como a orientação
dos móbeis, racionalizações e conceções que conformam a conduta delinquente.

Para Merton, no entanto, o determinante era o vício da estrutura social; o agente seria
vítima da estrutura sociocultural. A causa do comportamento criminoso seria a distorção
referida entre a promoção de valores como a ascensão social e a efetiva escassez dos meios
legítimos para a atingir. Tal desfasamento geraria indiferença aos valores e mecanismos de
adaptação individual – se não tenho os meios legítimos necessários para alcançar os fins, então
também não serei obrigado a respeitas as mesmas normas daqueles que os têm.

Merton distinguia cinco mecanismos:

 Conformação: em que existiria congruência entre as metas culturais e os meios


institucionais.
 Inovação: em que as metas institucionais seriam prosseguidas por meios não
institucionais. Todos têm os mesmos fins, mas nem todos têm os mesmos meios,
então começam a inovar nos meios para alcançar os mesmos fins, abrindo caminho
para o crime.
 Ritualismo: em que faltam metas culturais, mas se seguem formalmente meios
institucionais. Já não interessam tanto os fins, mas a ritualizada, a burocracia de seguir
sempre o mesmo caminho.
 Apatia: em que faltam metas culturais e a própria utilização da ação institucional.
Chega-se à conclusão que não se vai alcançar os fins, então os fins e meios são
diferentes; mas não vai contra a sociedade, só se exclui. Há apatia.
 Rebelião: em que os agentes não se conformam com as metas culturais e obviamente
também não pautam o seu comportamento pelos meios institucionais. Fins são
diferentes, meios diferentes, mas a prática vai contra a sociedade. Mais radical. Novos
fins e novos meios. Pode ser algo bom – revolução do 25 de Abril – ou mau –
terrorismo. É neste caso que os crimes são uteis à sociedade, porque põe algo em
causa e arranja nova forma para esse algo.

Os comportamentos desviados estariam, na perspetiva deste autor, associados à inovação


ou à rebelião, que enquadraria tanto os comportamentos revolucionários como o próprio
terrorismo. A apatia e o ritualismo seriam igualmente perigosos para a desintegração social,
englobando os comportamentos aditivos e a burocracia opressora e a sociedade de autómatos
respetivamente.

Na perspetiva de Merton, o comportamento desviante, embora desempenhando uma


função latente (não manifesta) adaptativa aos fins culturais, não seria indispensável ou útil
como sugeria o puro funcionalismo de inspiração em Durkheim ou Parsons. A natureza do
comportamento desviante permitiria conceber, antes, possíveis alternativas de adaptação – ou
mesmo uma modificação das condições estruturais no sentido de adequar os fins culturais e os
meios institucionais.

O crime não seria, no entanto, um problema de escolha individual ou de tendência dos


agentes, mas um problema estrutural, envolvendo anomia e desvio das normas, que afetaria
certas pessoas e que criaria disfuncionalidades sociais, impondo uma solução por políticas
públicas.

O condicionamento social pelo meio seria tao elevado que as chamadas self-fulfilling
prophecies corresponderiam a situações em que a definição pelo grupo de predições acerca de
um indivíduo, embora falsas, poderiam levar a que o individuo se adaptasse a esse papel e
viesse a realizar exatamente as referidas profecias, adaptando-se à “verdade social” sobre ele.
O crime seria um verdadeiro produto social, embora suscetível de ser prevenido se se atuasse
sobre os seus pressupostos estruturais, corrigindo desajustamentos nas condições sociais.

Embora Merton não tivesse deixado de considerar o facto de os desvios não se


verificarem em todos os indivíduos que coexistissem no mesmo meio social, nomeadamente
através das diversas modalidades de adaptação que foram referidas, sublinhava sobretudo os
padrões sociais de cada tipo de adaptação e não os modos psicológicos da referida adaptação.

Vitimologia: olhar para a vítima


como a causa do crime – no sentido
de escolher ser sempre a vítima.

Labeling approach (década de 60, nos EUA)

É com o labeling approach que a explicação do crime muda de paradigma


racionalizador, conduzindo a lógica interacionista da escola de Chicago para uma alteração de
objeto da análise e para uma alteração metodológica do estudo do crime.

Esta orientação veio retirar ao conceito estático de crime qualquer função de objeto
cientifico para colocar, no seu lugar, processos sociais de criminalização de condutas. O crime e
a criminalidade como factos sociológicos seriam o resultado de um processo de seleção social,
segundo o qual o legislador, a polícia, os tribunais e todas as instancias formais de controlo
elegeriam algumas condutas e não outras como criminosas ou apenas certas pessoas como
delinquentes. Mas não só, também os grupos sociais (família, vizinhos, colegas), como
instancias não formais de controlo, etiquetariam certas pessoas como potencias ou efetivas
autoras de crimes.

Com esta via, a Sociologia Criminal admitiria, contudo, o total relativismo quanto ao
que é designado socialmente como crime e renunciaria de certo modo à explicação do sentido
e função social do comportamento delinquente e da sua génese – deixaria assim de pretender
explicar por que motivo certos comportamentos são designados ou eleitos como crime
segundo as representações sociais dominantes, para se preocupar fundamentalmente com os
processos de seleção social e a arbitrariedade dos mesmos.

Através desta perspetiva, a tese de Durkheim, segundo a qual os crimes são “parte
integrante da sociedade sã”, determinados pela própria estrutura social (e variáveis, claro está,
segundo ela), tornar-se-ia menos interessante para as ciências do crime.

Na verdade, a teoria do labeling-approach não dá total relevância à tese de eu um


certo modo de organização social gera “necessariamente” certos crimes e, em suma, à função
social do crime, condensando antes nos processos de seleção dos criminosos toda a
problemática sociológica da criminalidade.

Esta Teoria dos Rótulos Sociais é então marcada pela ideia de que as noções de
crime e criminoso são construídas socialmente, a partir da definição legal e das
ações de instancias formas e informais de controlo social, a respeito do
comportamento de determinados indivíduos. A criminalidade não é, assim,
uma propriedade inerente a um sujeito, mas uma “etiqueta” atribuída a certos
indivíduos que a sociedade entende como delinquentes e que acabam por se
comportar como tal. Em suma, o comportamento desviante é aquele que é
rotulado como tal.

Até aqui, o foco estava no próprio agente como capacidade de socialização ou na


disfuncionalidade da estrutura social. Aqui o foco não é o agente nem o contexto social onde
está inserido – passamos de olhar para o agente, e passamos a olhar para as instancias formais
e informais que vão qualificar algumas pessoas como potenciais criminosos, que poderão leva-
las a crimes e a forma como esta catalogação é feita – relativismo; a preocupação não é qual
será o crime ou porque é que acontece. Se declaramos que algo vai acontecer, vai mesmo
acontecer – é natural, quase como se não tivesse escapatória. Aqui a pergunta não é se o
Estado deverá criminalizar aquela conduta e até onde deverá criminalizar, mas sim a forma
como tratamos o agente e o que isso traz por consequências.

Benefícios:

 Melhoramento das instancias formais;


Malefícios:
 Totalmente relativista – não dá pista sobre o que é legítimo criminalizar, logo, não
ajuda a construir o conceito material de crime.

Howard S. Becker

Howard S. Becker, no seu livro Outsiders, dizia mesmo que a déviance não é uma
qualidade interna dos factos sociais, mas antes o produto dos grupos sociais que criam as
regras cuja violação a suscita e que aplicam com sucesso (estigmatização) a qualificação de
déviant aos que violam as normas. É, neste sentido, uma pura criação social.

Lemert

O estudo dos processos de etiquetagem conduz a ideias-chave desta corrente de


pensamento como a déviance secundária, da autoria de Lemert. Esta corresponderia aos
papeis desencadeados pela atribuição primária do comportamento criminoso, como uma
resposta ou modo de lidar com a própria estigmatização.

Edwin Schur

Este autor enunciaria processos de criminalização como os dos crimes sem vítima – por
exemplo, o consumo de drogas – que mostravam a importância da projeção da sociedade na
construção de crimes sem qualquer ofensa direta de direitos ou bens jurídicos, mas que
potenciariam crimes instrumentais de roubo ou de homicídio.

Edwin Goffmann

Numa ótima diferente, este autor acentuaria a relação da construção de si mesmo com
a interação com os outros como um acontecimento dramatúrgico, utilizando a metáfora do
teatro para explicar como as pessoas se apresentam aos outros baseadas em normas, mitos,
valores, desempenhando uma performance e extraindo um efeito.

--
Em suma, estes desenvolvimentos permitem conceber a desconstrução da realidade
subjetiva e a própria consciência, que se torna um objeto de si própria. Como diz Paul Rock
“central para esta ideia é a refletividade, a capacidade da consciência para se retirar e
transfigurar-se no seu próprio objeto”, uma espécie de brinquedo, em que as pessoas
assumem papeis e identidades conforme a expetativa ou as reações dos “outros significativos”
e em que assumindo o papel dos outros, se transferem para além de si mesmos.

Por diferentes modos, o reconhecimento do simbolismo da realidade e a construção


interacionista des-objetivizam o crime e acentuam a repercussão da perspetiva dos sujeitos
em interação no significado social.

Esta reconstrução epistemológica permite vários desenvolvimentos nem sempre


concordantes na resposta ao problema do crime, desde uma relativização de certos
comportamentos criminosos sobretudo associados a camadas sociais mais desfavorecidas, em
função da critica social às instancias de controle, até a conceções mais interventivas, que
assumem a descrição da déviance como fenómeno de interacionismo simbólico, utilizando
esse enquadramento ao serviço de técnicas de reconstrução do conceito de si mesmo pelos
agentes. Neste ultimo sentido, menciona-se, reorientando as narrativas sobre si e a sua
própria vida, o trabalho de Braithwaite, que tenta converter os mecanismos informais de
controle da vergonha pelos “outros significativos” em rituais de integração impeditivos,
potencialmente, da déviance secundária.

--

Em suma
Porém, a herança de Mead conduziu a perspetivas metodológicas mais profundas, em
que os comportamentos sociais seriam o produto de configuração, através de uma interação
simbólica dos significados sociais e da construção da realidade, incluindo, porém, o mundo
interior dos indivíduos.

Diferentemente, a perspetiva do funcionalismo estruturalista reduziu o objeto de


estudo às relações entre elementos do sistema social, às disfunções e aos mecanismos de
adaptação, relativizando a relevância dos padrões subjetivos de comportamento.

Vários autores utilizaram estas diferentes orientações na explicação do


comportamento criminoso, mas ainda assim aceitando que o comportamento criminoso,
embora sendo uma construção social, teria alguma objetividade e seria em si mesmo o tema
de estudo, a explicação, a compreensão e solução.

O labeling approach, como se referiu, veio a reconhecer, quase radicalmente, que o


crime seria expressão de um processo subjetivo-social de estigmatização dos delinquentes e
de seleção de verdadeiras carreiras criminosas. Assim, como se disse, o objeto de estudo no
que se refere ao crime seriam esses processos e os seus protagonistas – e não tanto a função
dos conteúdos das normas incriminadoras. Howard S. Becker, no seu livro Outsiders, dizia
mesmo que a déviance não é uma qualidade interna dos factos sociais, mas antes o produto
dos grupos sociais que criam as regras cuja violação a suscita e que aplicam com sucesso
(estigmatização) a qualificação de déviant aos que violam as normas. É, neste sentido, uma
pura criação social.

No polo oposto do interacionismo simbólico

Nos antípodas (vertente oposta) do interacionismo simbólico, ressurge a ideia da


escolha racional num aparente regresso ao paradigma da velha escola clássica, mas agora com
referencias pragmáticas, que concebe o crime como o produto de uma decisão útil para o
próprio indivíduo – sobre esta linha, Hollin, citando os chamados modelos motivacionais e
alguns programas de tratamento da delinquência – e que, embora esteja em contradição com
a tradição da própria Psicologia e com as teorias que defendem que o crime é uma
manifestação de falta de controle, tem em comum com as explicações sociológicas uma certa
racionalidade funcional no crime.

Esta linha de pensamento provém de uma tradição de utilitarismo hedonista e, na


verdade, adequa-se aos critérios e fórmulas do Direito Penal, tais como:

 A própria conceção de motivo criminoso;


 E, sobretudo, as diferenciações da gravidade do comportamento criminoso segundo
graduações da intensidade da vontade do agente na prática do facto.

Benefícios e malefícios:

 A perspetiva de uma escolha racional adequa-se a politicas penais preventivas e à


própria atuação tradicional dos sistemas penais como retributivos e preventivos,
correspondendo à elevação a critério cientifico de convicções de senso comum, que
podendo oferecer, em certos casos, resultados positivos na intervenção sobre o crime
e na redução da criminalidade, não conseguem, porém, uma resposta global a uma
atuação sobre os aspetos mais profundos do comportamento criminoso.
 Embora pese a excessiva abstração dos modelos propostos por estes estudos, eles
permitem simultaneamente explicar as causas do crime e elaborar ações para o seu
controlo pela sociedade. Porém, esta pretensão de operatividade pressupõe,
claramente, uma identificação pré-jurídica (e não formal) do crime.

O papel fundamental da Criminologia

A Criminologia, ao investigar os problemas do crime, terá, assim, de utilizar uma noção


pré-legal de crime, eventualmente critica das soluções legais e capaz de debater as questões
com ele relacionadas – descriminalização e neocriminalização 2. Note-se que nem o conceito
jurídico de crime e criminoso pretende explicar o crime – recorrendo, assim, às ciências sociais
suprarreferidas -, nem as ciências sociais de que aqui se falou pretendem oferecer uma
resposta jurídico-normativa ao crime: é assim que ambas se completam.

As tentativas empreendidas pela Criminologia para atingir um tal conceito material de


crime como alguma objetividade revelam que uma noção operatória de crime engloba sempre
a violação de regras ou de valores tidos como essenciais, pressupondo sempre um contexto de
normatividade social e de antinormatividade, bem como uma problemática de motivabilidade
por valores:

 O comportamento humano irregular, por violar regras éticas ou jurídicas;


 O comportamento desviado de Sutherland ou os comportamentos adaptivos e
invocadores por serem violadores de meios institucionais de Merton.
 Ainda, na perspetiva do interacionismo simbólico, o crime dependeria da construção
da realidade e dos significados sociais, que seriam a base de definição de valores.

A conceção do crime como comportamento humano danoso socialmente por atingir bens
necessários à conservação ou ao desenvolvimento da sociedade, subjacente acriticamente às
conceções do sistema penal e, por vezes, usada instrumentalmente pela própria Criminologia,
por razoes de compreensão do fenómeno da criminalização, só poderá ser ponto de partida

2
A noção de crime utilizada pela Criminologia, que aceita o fenómeno da irregularidade e, por
consequência, concentra na capacidade de desvio o pathos do crime, inclui na noção de crime o desvio
relativamente a normas éticas – facto que alarga o conceito de crime.
A outra noção, evidenciada no texto, é substancialista, introduzindo como método uma perspetiva da
teoria geral da sociedade, dos fatores da sua patologia, da sua preservação e da sua evolução. O
desenvolvimento de um conceito material de crime em tal ótima pressuporá, no entanto, uma teoria
dos fatores objetivos (e não meramente interaccionistas) de criminalização, que terá de se basear no
reconhecimento das necessidades reais e ideológicas que a continuidade de um sistema social
pressupõe satisfeitas. A noção material de crime dissolver-se-á por isso, segundo esta ultima via, na
referida teoria da sociedade. Desenvolvendo esta inserção da definição criminológica do crime na teoria
da sociedade, veja-se Hassemer.
enquanto se identificarem os pressupostos cultural, estruturais e os processos
sociopsicológicos simbólicos de valoração dos comportamentos.

Assim, e em função desta conclusão, qual é o interesse da Criminologia para o Direito


Penal e de que modo pode o Direito Penal relacionar as suas soluções com os conhecimentos
da Criminologia?

Ora, a resposta passa por uma análise prévia do conceito matéria do crime conduzida
no pensamento penal sobretudo nos quadros dos princípios constitucionais e considerando
várias discussões da filosofia penal ao longo de séculos. Haverá, no entanto, que retirar da
Criminologia uma primeira interpelação epistemológica, isto é, relacionada com as condições
criticas da definição social do crime como objeto de pensamento. O que deva ser considerado
crime legitimamente não pode ser um tema que se abstraia das condicionantes
sociopsicológicas, em que se produz a definição socialmente vigente.

Nesta linha de pensamento, dir-se-á que o problema da legitimidade do conceito base


de um sistema penal – o que deve ser o crime (algo que “deve ser” e por isso se tem de
legitimar) – não pode ser apenas uma discussão sobre ideias de liberdade, perigosidade ou de
valores objetivos sem considerar as condicionantes sociais e psicológicas dos comportamentos
valoras e das pré-compreensões dos próprios intervenientes na discussão acerca dos fins e
fundamentos do sistema. Não se pode deixar de considerar uma espécie de necessidade
epistemológica, que apela à Criminologia no conhecimento da matéria das valorações e das
próprias conceções.

Com efeito, se uma delimitação ou mesmo uma subordinação a princípios da


criminalização de comportamentos tem sido, historicamente, uma racionalização do sistema
penal, associada ao desenvolvimento do Estado de Direito e à ideia de democracia, a
informação que resulta da Criminologia mostra como fenómenos de desfasamento entre o
sistema formal (normativo) e o real (práticas dos tribunais e polícias) ou as próprias
representações sociais sobre o crime não podem deixar de ser consideradas numa perspetiva
de funcionalidade ou necessidade real das incriminações, seus critérios e limites.
Esta reserva metodológica ou epistemológica estará assim subjacente ao que se
designará como argumento criminológico no problema da formulação de um conceito material

Epistemologia (= Filosofia do conhecimento, Teoria do conhecimento): ramo da filosofia que se ocupa dos
problemas que se relacionam com o conhecimento humano, refletindo sobre a sua natureza e validade.

de crime, no contexto de uma reconstrução da legitimação e dos limites do Direito Penal.

3. Fins das penas

Para se compreender o pensamento em torno do conceito material de crime, é necessário


relacionar esta temática com temas próximos, tais como a problemática dos fins das penas e a
discussão sobre os modelos de política criminal. Esta relação é facilmente compreendida: para
se estabelecer critérios de argumentação sobre a validade da eleição de certos
comportamentos como crimes, é fundamental pensar no próprio sentido da pena –
indissociável do crime. Assim, p.e., se o sentido da pena é o de prevenir, quais as ações que
podem e devem ser prevenidas? É o sentido, a finalidade da pena que permite procurar o
sentido último do Direito Penal e do merecimento criminal, isto é, a dignidade punitiva (sim,
porque também há dignidade na punição! 3), das condutas humanas.

Apesar de facilmente se perceber a relação entre a temática da definição material do


crime e a problemática dos fins das penas, estas são discussões autónomas.

A problemática dos fins das penas surgiu na historia do pensamento jurídico como
controvérsia sobre:

 O sentido que lhes é atribuído;


 O sentido que lhes deve ser atribuído.

Historicamente, a pena tem e sempre teve uma conotação mágica, um significado sagrado.
Ora, isto persiste ainda hoje: a pena revela-se sempre como imposição de um mal:

 Para a pessoa do criminoso, sobretudo para a sua honra – sob a máxima popular
vergonha não é roubar, é ser apanhado.
 Para o património do criminoso.

Foram três as conceções neste domínio que se proliferaram, já desde remotas etapas
do pensamento filosófico-jurídico:

3
É neste âmbito que se pode formular a discussão em torno da dignidade humana (ou não) no tocante
às penas.
 A retribuição;
 A prevenção geral;
 A prevenção especial
a) Teorias retributivas/absolutas (olho por olho, dente por dente)

Falamos em teorias absolutas porque nestas a pena é concebida como uma exigência
absoluta, metafísica e ética, de justiça, independentemente de considerações utilitaristas, da
maior ou menor conveniência que tal pena possa acarretar na perspetiva do interesse social
aferido num determinado contexto histórico concreto. Esta utilidade e conveniência serão
sempre secundárias em relação à exigência pura de justiça.

É célebre o exemplo dado por Kant, expoente desta teoria, ao aludir à comunidade de
habitantes de uma ilha que, antes de se desintegrar como comunidade com a dispersão desses
habitantes por outros locais (e sem que se verifique, por isso, alguma necessidade de proteção
dos interesses futuros de coesão ou pacificação dessa sociedade), não pode deixar de punir
quem seja responsável por crimes que no seu seio tenham sido cometidos. É assim porque,
afirma Kant numa frase também célebre, «quando a justiça desaparece, a vida na terra deixa
de ter valor». A pena é, pois, nesta visão, um imperativo categórico. Pune-se porque se tem de
punir, como uma exigência ética natural de justiça, anterior a qualquer ordenamento jurídico
positivo e a qualquer opção política concreta, e não para prosseguir algum interesse ou
utilidade social.
Kant

Ideia essencial: Não há pena sem crime nem crime sem pena:

 A comunidade cede liberdade em troca da segurança;


 Quem pratica crimes, tem as tuas consequências. O crime é a expressão da
negação de si mesmo e, por isso, dos próprios direitos do criminoso. Isto porque, a
negação do direito alheio é sempre uma negação do Direito geral, o que abrange
os direitos dos próprios criminosos – assim diz “aquele que rouba torna insegura a
propriedade de todos os demais, portanto priva-se a si mesmo (segundo o
principio da retribuição) da segurança de toda a possível propriedade”.
 Livre arbítrio desde que não entre em confronto – crítica: quando “livre arbítrio”
vem acompanhado de “desde”, não se trata de um verdadeiro livre arbítrio, na
minha opinião;
 Ideia de universalidade (que é, em última análise, a condição dos direitos de cada
pessoa, a lei geral da liberdade que permite a articulação do livre-arbítrio de cada
um com os demais – imperativo categórico – a questão é saber se uma regra
consegue ser uma lei universal, porque o que é universal, é definitivo. O mal (o
crime) é a negação da universalidade da lei, logo deve ser executado com a pena –
o Direito é visto como condição da liberdade, reclamando assim a pena.
 Pessoa como um fim em si mesmo e não como utilidade social. Reconhecer a
dignidade da pessoa humana é, na conhecida visão kantiana, rejeitar a sua
degradação a objeto, a meio ou instrumento.
Hegel

Ideia essencial: crime como silogismo lógico (lógica aristotélica):

 Direito afirma uma norma. Exemplo: “é proibido matar”.


 Crime nega essa norma. Exemplo: matando.
 Logo, o crime nega o Direito.

No entanto, note-se que para negar o Direito, o crime tem de, indiretamente,
afirmá-lo. Só se nega algo que existe, algo que dá para negar. É aqui que entra a função
da pena:

 O crime nega o Direito (-).


 A pena nega o crime (-).
 Logo, a pena afirma o Direito (+).

Assim, é de notar a finalidade da pena. Caso a pena não existisse, caso não houvesse
resposta ao crime, algo que o negasse, o crime ficaria afirmado e, por consequência, o
Direito negado (na lógica aristotélica, menos com menos dá mais). A finalidade da pena
é, assim, reafirmar o Direito. No entanto note-se que a pena é criada pelo Direito, logo,
o Direito reafirma-se a si mesmo através da pena.

Em suma:

 A pena não é moral – se o fosse, seria um perdão -. Hegel remete a pena para o plano da
objetividade do Direito, a partir das características da generalidade e abstração da
norma.
 Assim, necessariamente, a pena, tal como a crime, não vale em função da vontade nem
dos autores do crime nem de quem impõe a pena, mas enquanto afirma ou nega o
Direito num plano das ideias e num plano meramente lógico.

Nota: A problemática da pena como refere Ricoeur, situa-se no plano do Direito abstrato e
não no plano da consciência, da subjetividade e da vontade, que a tornariam uma pura
vingança. Para que a pena supere o plano da vingança e, por isso, o do próprio crime, é
necessária uma transformação da vontade particular e subjetiva em universal, em principio
universal. A pena conduz assim, necessariamente, à moralidade objetiva (universal, da
coletividade), própria das comunidades e do Estado.

Crítica: parece-me que esta teoria afirma mais a finalidade do Direito para o Crime e,
por consequência, para si mesmo, para a sua sobrevivência do que propriamente a
finalidade da pena – que é aqui somente um meio de alcançar um fim: a sobrevivência, a
reafirmação do Direito, sem nenhuma finalidade “autónoma”.

Nota: esta teoria pressupõe liberdade, oportunidade de escolher algo de errado.

Nota2: a pena é, aqui, inerente ao conceito de crime.


Falamos em teorias da retribuição porque tal exigência de punição de acordo com a
justiça se traduz na conceção da pena como castigo. Ao mal do crime responde-se com o mal
da pena. A pena é uma forma de reparação do mal cometido, uma forma de “saldar a dívida”
contraída com a prática do crime. Afirma o juiz francês Michel Anquestil: «O mecanismo da
pena decorre do princípio da reação: no domínio da natureza, tal como no domínio da cultura,
todos os seres reagem uns aos outros, e cada ordem da realidade defende-se em particular
contra toda a agressão, contra todo o ato que tende a destruí-la».

Assim, ao castigo que representa a pena, está associada a noção do valor moral da
expiação (cumprimento da pena ou castigo, sofrendo as suas consequências). A este respeito,
é comum referir o exemplo retratado no protagonista do célebre romance de Dostoievsky,
Crime e Castigo, que reflete a exigência, sentida pelo criminoso e provocada pelo remorso
devido à prática do crime cometido, de expiação através do sofrimento e da pena.

Pressuposto antropológico desta teoria é a visão da pessoa humana como ser livre e, por
isso, responsável, capaz de escolher entre o bem e o mal. Reconhecer a dignidade da pessoa
humana é, na conhecida visão kantiana, rejeitar a sua degradação a objeto, a meio ou
instrumento. E o Estado estará a instrumentalizar a pessoa se utilizar a sua condenação para
prosseguir um interesse da sociedade, para tal condenação servir de exemplo aos potenciais
criminosos, intimidando-os. Só não se verificará essa instrumentalização, a degradação da
pessoa de fim a meio, se a pena tiver uma base ética e não puramente utilitária, se
corresponder à culpa concreta do agente, se esta culpa for pressuposto e medida dessa
pena.

Os principais pontos de dispersão entre a lógica utilitarista e retributiva

Numa lógica utilitarista, pelo contrário, poderia prescindir-se da culpa como pressuposto
e como limite da pena se o interesse social assim o reclamasse. As necessidades de prevenção
da criminalidade poderiam levar à punição de alguém que não fosse culpado, ou à punição
para além da medida da pena, numa lógica puramente utilitarista, se tal fosse necessário para
prevenir a prática de outros crimes pelo próprio agente (devido à sua perigosidade) ou por
quaisquer potenciais criminosos (que deveriam ser intimidados através do exemplo que
representa uma qualquer condenação).

Numa lógica retributiva, que parte do princípio da culpa, tal não seria nunca possível.
Como veremos, ainda que a orientação hoje predominante no nosso e em vários
ordenamentos jurídicos da nossa área cultural, seja no sentido da rejeição desta teoria, o
princípio da culpa, que a ela está ligado, mantém-se como um dado adquirido do património
jurídico-cultural. A culpa é pressuposto da pena e limite da medida da pena. Não há pena sem
culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (ver artigo 40º, nº 2, do
Código Penal).

Assim, num ordenamento onde está vigente a prevenção geral, esta tem como limite o
principio retributivo da culpa.

Princípio da culpa e da dignidade da pessoa humana – justiça e vingança na lógica


retributiva

O princípio da culpa é uma necessária decorrência do princípio da dignidade da pessoa


humana em que assenta a República Portuguesa, como solenemente proclama o artigo 1º da
Constituição. A lógica retributiva poderá conduzir à lógica da lei de talião (“olho por olho,
dente por dente”), com o barbarismo que lhe está associado e que a história do direito penal
anterior ao iluminismo ilustra. Se o mal da pena responde ao mal do crime, a gravidade da
pena deverá ser equivalente à gravidade do crime. De acordo com esta lógica, pode advogar-
se a pena de morte, como fazia Kant em relação ao homicídio.

O que será, então, que distingue a justiça da vingança? Contra esta crítica, afirmam os
partidários do retribucionismo que a gravidade da pena há de ser, na lógica retributiva,
proporcional à gravidade do crime, não necessariamente igual ou equivalente a essa
gravidade. E que a pena é, como o crime, um mal em sentido fáctico, mas não é, ao contrário
do crime, um mal em sentido ético. Afirma, a este respeito, Giuseppe Bettiol, que:

«O direito penal começa precisamente lá onde acaba a vingança. Não deve identificar-se a
ideia de vingança com a ideia de reação. A pena retributiva é a expressão de uma justiça que
se liga à ideia de proporção e equilíbrio entre dois termos, momento racional que contrasta
com qualquer movimento passional, o qual tende à exclusividade, de que decorre sempre a
vingança. Importa distinguir entre o “mal” em sentido naturalístico, como sinónimo ou
equivalente de sofrimento físico ou psíquico, e o mal de natureza moral, ou seja, algo de
intrinsecamente mau enquanto antitético em relação à natureza racional do homem.

A pena retributiva é uma noção cujo conteúdo não pode esgotar-se no mundo
naturalístico, devendo antes elevar-se ao mundo dos valores, ao das supremas “exigências”
fora das quais a vida se transforma num puro processo biológico».
Numa primeira aproximação, podemos notar como a teoria retributiva encontra eco em
reações espontâneas de pessoas comuns diante da prática de crimes, motivadas pelo anseio
de que «se faça justiça» e de que quem pratica crimes «preste contas», «receba o que
merece» e «pague pelo que fez». Porém, aquilo que pode parecer um compreensível anseio
de justiça também frequentemente degenera na lógica da lei de talião (“olho por olho, dente
por dente”), quando se pretende fazer equivaler o mal associado à pena ao mal associado ao
crime, com a justificação da pena de morte, ou da severidade das penas.

Assim, na perspetiva retribucionista, a gravidade da pena é proporcional à


gravidade crime – não sendo necessariamente igual ou equivalente a essa gravidade (a
morte de alguém pune-se com a morte de quem matou). Ora, isto porque, a pena é um
mal em sentido fáctico, ao contrário do crime que é um mal em sentido fáctico e em
sentido ético.

Neste sentido, e apesar de ser um mal em sentido fáctico, a pena leva a uma
compensação com dupla vertente: não somente naturalística (equivalente ao sofrimento
físico ou psíquico ao autor do crime, dentro dos limites da racionalidade) – e dai dizer-se
que a sua gravidade é proporcional e não necessariamente igual – facto que, caso
contrário, poderia apagar a linha ténue entre justiça e vingança, mas também uma
compensação em sentido moral.

Se a compensação pela pena fosse somente em sentido naturalístico, perder-se-ia


a racionalidade desta teoria, levando a que, assim como o crime, a pena fosse encarada
também como um mal em sentido ético – confundindo-se as duas e levando à vingança,
justificando, por exemplo, a morte com a morte (lei de talião). Como a compensação é
também em sentido moral, esta parte irracional da compensação é punida em termos
morais.

Assim:

• Compensação em sentido naturalístico (sofrimento físico ou psíquico ao autor do


crime) até ao limite do racional, e antes de se ultrapassar a linha que separa a vingança (lei
de talião) da justiça – até onde o principio da dignidade da pessoa humana e o principio da
culpa permite;
Como suprarreferido, a tendência que prevalece hoje na doutrina penalista, entre nós e na
generalidade dos países da nossa área jurídico-cultural, aponta no sentido da rejeição da teoria
da retribuição, tendendo a justificar-se pela eficácia preventiva-geral do Direito Penal.

Para Jorge de Figueiredo Dias, esta teoria deve ser «recusada in limine». Em sentido
idêntico, pronuncia-se, também, Anabela Miranda Rodrigues. São estes autores que,
indiscutivelmente, mais têm influenciado neste aspeto a nossa jurisprudência, como será visto
adiante.

Mas importa também considerar vozes discrepantes que também se têm feito ouvir, e até
recentemente. No sentido da aceitação da teoria da retribuição podem ver-se, na doutrina
portuguesa recente, José de Sousa e Brito, José de Faria e Costa e A. Lourenço Martins
(Procurador-Geral Adjunto; eleito, em 1995, pelo Conselho Económico e Social das Nações
Unidas).

Três ordens de argumentos têm servido para a rejeição desta teoria:

 Por um lado, alega-se que o princípio do livre-arbítrio, pressuposto básico de que ela
parte, não pode ser objeto de demonstração científica.
A teoria retributiva parte de uma ideia de responsabilidade individual baseada no
liberum arbitrium indiferentiae que o conhecimento cientifico não permite comprovar.
Somente é aceitável presumir que as pessoas são livres na medida em que a
sociedade e o Direito reconhecem a responsabilidade individual, isto é, aceita-se a
causa na medida em que se assume a consequência.
A liberdade de decisão é para muitos algo que se convenciona existir e nada mais. E
mesmo que se reconhecesse, em abstrato, a liberdade da vontade, ter-se-ia de nega-
la na maior parte dos criminosos que chegam ao crime por um processo social
conhecido da Criminologia.  Indemonstrabilidade dos pressupostos.
 Por outro lado, afirma-se que a realização de uma “justiça divina”, ou de um “ideal
metafísico de justiça” não é compatível com um Estado laico, democrático e pluralista.
A retribuição tem tido um pressuposto – a culpa ética -, surgindo como sua
consequência necessária. Ora, a intervenção do Estado, investido no seu poder
punitivo não pode servir para sancionar automaticamente esta culpa. Na verdade,
nem os meios do processo penal podem atingir este nível profundo, nem a própria
pena é adequada a uma intervenção na personalidade de casa criminoso.
Aliás, não cabe ao Estado, nas Constituições que seguem o modelo do Estado de
Direito democrático, promover uma Ética ou uma Moral em si mesmas, mas apenas,
quanto muito, na medida indispensável à preservação das condições sociais de
existência. O chamado principio da necessidade da pena (18º/2 CRP) postula que a
pena só seja aplicada quando for necessária para a preservação da sociedade. 
Terreno jurídico-constitucional.
 Por último, diz-se que não é racionalmente compreensível que se possa eliminar um
mal (o que resulta da prática de um crime) acrescentando-lhe um mal equivalente, ou,
pelo menos, um outro mal (como é, sempre, a pena).

A respeito destas críticas e argumentos, tem-se a dizer o seguinte:

 Releva de uma conceção estreitamente positivista a rejeição de quaisquer dados ou


princípios apenas porque estes não podem ser demonstrados cientificamente. Essa
rejeição levar-nos-ia muito longe e haveria de conduzir a resultados desastrosos.
Também se poderia dizer que não têm demonstração científica princípios que
alicerçam um Estado de Direito democrático, como o da dignidade da pessoa humana,
na base de todos os direitos fundamentais.
Para além da evidência científica, há a evidência filosófica. Para lá dos dados
externamente observáveis, há os dados da consciência, e é no plano dos dados da
consciência que se situa a evidência do livre arbítrio 45.
Mas, como também já se referiu, os críticos do retribucionismo não levam,
normalmente, tal crítica às últimas consequências e, concretamente, neste aspeto, não
chegam a pôr em causa o pressuposto do livre arbítrio e o princípio da culpa, que dele
é corolário6.
Por outro lado, não parece que os princípios de um Estado laico, democrático e
pluralista sejam incompatíveis com a fundamentação metafísica e absoluta (já seriam
incompatíveis com uma fundamentação puramente teológica, mas esta não se
confunde com a fundamentação metafísica e absoluta) do direito de punir. A laicidade
e a democracia não implicam o relativismo axiológico, mas assentam em princípios
absolutos, como o da dignidade da pessoa humana, que não resultam de uma opção

4
«Parece lícito concluir que o livre arbítrio é praticamente o único determinismo biológico do ser humano. A sua
existência é a garantia de que o Homem não está deterministicamente preso a qualquer ação homeoestática
particular, mas, ao contrário, que pode e deve escolher entre um leque possível de opções de ação.» Ana Paiva (in
«António Damásio e a “Nova Sociologia”».
5
Numa perspetiva da filosofia da ciência, é de assinalar a tese indeterminista de Karl Popper, que salienta o absurdo
da crença na previsibilidade de algo como uma sinfonia de Mozart.
6
Assim, claramente, os dois autores portugueses (Jorge de Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues) acima
citados.
contingente ou arbitrária do Estado (é essa como poderia ser outra), mas têm uma
validade anterior ao próprio Estado e vinculam o próprio Estado.
As conveniências sociais, ou mesmo o facto de os valores acolhidos pelo sistema penal
beneficiarem da adesão maioritária numa determinada sociedade, não são
fundamento ético suficiente para que daí possa derivar uma restrição tão acentuada
dos direitos individuais como é a sanção penal. Esse fundamento há de encontrar-se
para além das opções políticas ou do direito positivo, não na teologia (a secularização
do direito penal é um dado adquirido), mas no direito natural (a secularização do
direito penal não implica o positivismo, a fundamentação metafísica não é irracional).
Afirma, a este respeito, Giuseppe Bettiol: «o crime não é um simples desvio de uma
regra de comportamento social», mas supõe a «distinção fundamental de natureza
ontológica entre o bem e o mal», é «uma escolha consciente e voluntária do mal». E
Maurice Cusson: «O furto não é injusto por ser proibido, é proibido por ser
universalmente considerado como ato injusto».
Atribuir à punição um suporte metafísico traduz-se num baluarte que protege o
princípio da culpa (princípio que não é, pois, contingente) e impede que alguma vez se
caia na tentação de prescindir do nexo entre culpa e punição, e de proporção entre
culpa e medida da pena, em nome de exigências de prevenção geral e especial 7. E não
parece que tal seja incompatível com dois princípios hoje também adquiridos nos
Estados laicos, democráticos e pluralistas: a distinção entre o direito e a moral (porque
esta não se confunde com a neutralidade axiológica do direito) e o da subsidiariedade
do direito penal ou da intervenção mínima do direito penal (porque o direito penal
não tem de intervir sempre que uma conduta é eticamente censurável, mas, para
intervir, deve estar eticamente legitimado para tal) 8.
 Um breve percurso pelos textos de Kant e Hegel, revela que o fundamento ético não é
uma moralidade subjetiva, mas uma certa racionalidade entre Estado e Direito.
Assim, não é totalmente convincente uma critica que associa a retribuição a uma
perspetiva moral particular e à culpa ética da tradição judaico-cristã, na sua expressão
mais comum. Na racionalidade da retribuição esta antes uma necessidade lógica de
afirmação do Direito.
Porém, uma coisa é reconhecer que há uma imposição racional de afirmação ou
reafirmação do Direito perante o crime, e outra é saber se essa forma de reafirmação
é a pena retributiva ou antes e prevenção de males futuros e a preservação da ordem

7
É contra essa “deriva” que se insurge Andrew Von Hirsh e a teoria do “justo merecimento”.
8
Numa linha de conciliação entre o retribucionismo e estes princípios, pode ver-se José de Faria Costa.
jurídica – perspetiva preventiva. É de salientar que, em certos casos, a reafirmação do
Direito pode exprimir-se pela dispensa de pena – como o CP prevê para certos crimes
menos graves no seu artigo 74º -, ou por formas de intervenção social alternativa que
melhor assegurem a proteção jurídica de direitos e bens.
Para a professora Fernanda Palma, o que há de universal e objetivo na pena é a ideia
de reafirmação do Direito perante a sua violação, e não uma retribuição
historicamente concebida. Neste sentido, a professora revela como critica a esta
doutrina, não só a sua associação com a promoção de uma perspetiva moral
determinada, mas também o reconhecimento de uma confusão concetual entre
retribuição e a reafirmação – não estando a reafirmação do Direito em causa, se for
articulada com um principio liberal da necessidade da pena, de adequação e
proporcionalidade ao facto da mesma. Em suma, para esta autora, não é necessário
retribuir para reafirmar o Direito.

 A associação entre a teoria da retribuição e a lei de talião (“olho por olho, dente por
dente”) e a ideia de que a resposta a um mal com outro mal não tem base racional já
serão, porém, mais difíceis de afastar. É certo que, como já atrás se referiu, pena
representa um mal em sentido fáctico, não em sentido ético, e que entre a gravidade
da pena e a gravidade do crime deve verificar-se uma relação de proporcionalidade,
não uma relação de equivalência. Também é certo que a pena tem uma dimensão
aflitiva incontornável: se não provocasse sofrimento (fosse qual fosse a sua finalidade),
não seria uma pena, seria um prémio ou uma medida assistencial. Mas é difícil
encontrar numa pena paradigmática como a de prisão uma dimensão social positiva
que contrarie a imagem da resposta a um mal com outro mal. Embora se reconheça
que a retribuição parece corresponder a uma exigência conatural dos seres humanos,
Mário Cattaneo considera «dificilmente superável a ideia de que na sua base esteja a
ideia de vingança»9.
Para superar esta suspeita, ou a lógica da resposta a um mal com outro mal, haverá,
então, que conceber e aplicar penas com uma dimensão social positiva marcante,
como sucede, de forma paradigmática, com a pena de prestação de trabalho a favor
da comunidade. Nesta, será nítido que ao mal do crime se responde com um bem,

9
Para Maurice Causson (op. cit., pgs. 40, 41, 60 e 177), entre pena e vendetta não há uma oposição
radical, antes uma equivalência funcional, e a justiça penal não é a antítese da vingança, antes a sua
“domesticação”. A história e a antropologia demonstram como ambas se substituem mutuamente. A
abstenção da justiça penal conduz espontaneamente ao renascer da vingança.
com uma atividade socialmente meritória 10. Mas a dimensão retributiva não está
ausente dessas penas. A prestação de trabalho a favor da comunidade não deixa de ter
um alcance sancionatório efetivo (não se confunde com uma medida educativa ou de
apoio social).
Também não parece incompatível associar o alcance retributivo da pena ao alcance
ressocializador desta. A pena deve favorecer a reinserção social do agente do crime e
deverá ser concebida como apelo e convite à “reconciliação” entre esse agente e a
comunidade ofendida com a prática do crime. O primeiro passo para essa
“reconciliação” é a aceitação, pelo agente, da necessidade de “saldar” a “dívida” que
contraiu com a prática do crime. Quando há arrependimento sincero, essa aceitação,
ou até essa exigência, é espontânea e natural 11. Mas a pena encarada como apelo e
convite à ressocialização, ou à “reconciliação” entre o agente do crime e a comunidade
não pode ser vista como um mal que responde a outro mal.
Procurando conciliar a natureza repressiva da pena, e a sua justiça, com a reintegração
social do agente do crime, afirma Cavaleiro de Ferreira: «E assim, a pena não constitui
intrinsecamente um mal. Enquanto restringe a esfera jurídica dos condenados, é
castigo e como tal deve ser sentida. O castigo, porém, na sua essência, está na
reprovação do crime pela condenação. A pena, na sua aplicação e execução, deve ao
invés apontar para a redenção da culpa (repressão), através da readaptação social. A
pena não será, portanto, um mal ou sofrimento equivalente ao mal cometido ou
sofrimento causado; mas o meio adequado a suscitar a restituição à sociedade pelo
delinquente do bem equivalente ao mal cometido, presuntivamente correspondente à
extinção da culpa, a qual reage à pena». Também neste aspeto, uma pena como a de
prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser paradigmática e exemplar:
porque, sem deixar de ter um alcance retributivo, é reveladora de um esforço
(recíproco) de aproximação e “reconciliação” entre o agente do crime e a comunidade.
Mas estamos a entrar, por esta via, no âmbito de outra das finalidades da pena, a
prevenção especial positiva, que será adiante analisada, na medida que já nos

10
É este princípio de que ao mal do crime se deve responder com o bem que, para Giorgio del Vecchio,
deveria servir de base ao direito penal. À malum actionis deveria uma bonum actionis, uma atividade e
sentido contrário do autor do crime, que anula ou reduza os seus efeitos na medida do possível. A pena
de prisão impediria, na prática, o ressarcimento do dano provocado á vítima e à sociedade («Justiça
Divina e Justiça Humana», in Direito e Paz – Ensaios, trad. port., Braga, 1968, pgs. 40 e segs.).

11
Afirma o juiz francês
As doutrinas Michel Anquestil
retributivas assentam (op.
emcit., pg. 135): «Quando
pressupostos a culpa é reconhecida,
antropológicos: a conceçãoraramente
da pessoao
princípio da pena é contestado. São as condições do julgamento, e depois de execução da pena, que
humana como agente livre, responsável, eticamente motivado e fim em si mesmo (e não
suscitam um formidável sentimento de revolta e matam à nascença a possibilidade de reconciliação.»
meio útil para a sociedade).
situamos fora do âmbito da teoria da retribuição na sua pureza. Mas também se
verifica, desde já, como é possível conciliar, ou combinar, contributos de várias das
teorias sobre os fins das penas.

b) Teorias relativistas

Para as teorias relativas, a legitimidade da pena depende da sua necessidade e eficácia


para evitar a prática de crimes.

Assim, a pena não se justifica por si mesma («porque tem de ser», porque é um puro
imperativo de justiça), mas tem uma finalidade relativa e circunstancial, uma utilidade. Ora,
essa utilidade traduz-se na circunstância de funcionar como obstáculo à prática de novos
crimes. Não se trata de realizar a justiça, mas de proteger a sociedade. Não se castiga porque
o agente praticou um mal, um crime, mas para que ele próprio, ou outros, não pratiquem
crimes no futuro.

Se se pretende evitar que seja o próprio agente a praticar novos crimes no futuro, estamos
no domínio da prevenção especial. Se se pretende evitar que sejam os agentes sociais em
geral a praticar novos crimes no futuro, estamos no domínio da prevenção geral, que será
agora analisada na sua vertente de prevenção geral negativa ou de intimidação.

Teorias da prevenção geral

i) Teoria da prevenção geral negativa ou intimidação

Para a teoria da prevenção geral negativa ou intimidação, a pena funciona como exemplo
que pretende dissuadir (intimidando) os potenciais criminosos, relativamente à violação da lei
penal – linha de pensamento desenvolvida por Anselm von Feurbach (finais do século XVIII,
inícios do século XIX), sendo o qual, a pena serviria para impedir (psicologicamente) quem
tivesse tendências contrárias ao Direito de se determinar por elas.

Tal como as doutrinas retributivas assentam em pressupostos antropológicos (a conceção


da pessoa humana como agente livre, responsável, eticamente motivado e fim em si mesmo,
como vimos), também a doutrina da prevenção geral negativa ou intimidação assenta numa
conceção do Homem: o ser humano é motivado pelo prazer que possa retirar de determinada
ação e contra motivado pelo “desprazer” (ou sofrimento) que a essa ação possa estar
associado. Antes de decidir pela prática de determinada ação, ponderará, pois, como dois
pratos de uma balança, as vantagens e desvantagens (o prazer ou o “desprazer”) que dela
possam derivar.

A oportunidade de aplicação de cada uma das penas e a medida destas hão de, pois, ser
vistas à luz da sua capacidade de dissuadir o potencial criminoso, que pondera as vantagens e
inconvenientes decorrentes da sua ação. Também encontramos facilmente reflexos, mais ou
menos conscientes, desta teoria em reações espontâneas do cidadão comum diante da prática
de crimes e da aplicação de penas. Sempre que – como é frequente – se proclama a
necessidade de aplicação de penas severas para dissuadir da prática futura de crimes por parte
de potenciais criminosos, ou se advogam alterações legislativas nesse sentido para combater a
criminalidade, é a ideia de intimidação como finalidade da pena que subjaz a tais posições.

A prevenção geral justifica-se:

 Pela intimidação dos criminosos  prevenção geral negativa.


 Fortalecimento dos juízos de valor social dos cidadãos, que consiste no
fortalecimento das expetativas sobre a eficácia da justiça penal  prevenção geral
positiva.

Numa apreciação crítica desta teoria, impõe-se começar por reconhecer que tem algum
fundamento e que a visão algo pessimista da natureza humana que lhe subjaz (claramente
redutora é certo) não deixa de ser dotada de algum realismo.

Assim, se pensarmos, por exemplo, no aumento generalizado da criminalidade que se


verifica em momentos de crise da autoridade do Estado (de revolução ou de guerra civil, por
exemplo). Também não podemos ignorar como é, tão só, o medo das sanções (não
certamente um súbito acesso de consciência cívica) que leva muitos automobilistas a reduzir a
velocidade quando, alertados por “solidários” sinais de luzes, avistam agentes policiais em
missão de fiscalização, para voltarem a acelerar logo que tais agentes deixam de os avistar 12.

Mas, de qualquer modo, são várias e relevantes as críticas que podem ser endereçadas a
esta teoria:

 De um ponto de vista pragmático e de eficácia, contrariando a ideia de que a


criminalidade aumenta ou diminui em função da maior, ou menor, severidade das

12
É por isso que, no Japão, se colocam, ao longo de estradas, manequins que simulam a presença desses
agentes.
penas, tem sido demonstrado que os destinatários das normas penais não se guiam,
normalmente, pelo conhecimento que possam ter dessas normas (até as
desconhecerão, na maior parte dos casos), mas, antes, pela maior, ou menor,
probabilidade de os seus atos virem a ser efetivamente detetados e perseguidos
criminalmente. É intuitivo que o fator que pode demover, nesta perspetiva, um
potencial homicida, não será tanto a probabilidade de a sua condenação ser de oito ou
dezasseis anos (porventura, qualquer delas poderia demovê-lo, ou não) mas de ser, ou
não, efetivamente condenado. Nesta perspetiva, o maior ou menor incremento da
criminalidade não dependerá, tanto, da severidade das penas, como, sobretudo, dos
mecanismos fiscalizadores que reforçam a probabilidade de efetiva aplicação da pena.
Também é errado pensar que à decisão de prática do crime está sempre subjacente
uma ponderação racional. Muitas vezes, trata-se de uma decisão fruto de um impulso
momentâneo, alheio a qualquer ponderação racional de vantagens e inconvenientes
futuros. E isso sucede, frequentemente, em crimes graves, como o de homicídio. Para
não falar nos casos de terroristas dispostos a tudo perder (até a própria vida) em nome
da causa que os move. Não será certamente o medo da pena (por mais severa que
seja) a demovê-los…
Assim, será de pensar o que será mais eficaz: a severidade da pena ou a
efetividade e prontidão da sua aplicação (que em termos de investigação, quer em
termos de aplicação).
 Crítica: porque é que são tão indissociáveis a gravidade da pena e a sua efetiva
aplicação? Não podemos ter os dois?
 Por outro lado, mesmo sem discutirmos, ainda, os redutores pressupostos
antropológicos de que parte esta teoria, sem nos afastarmos, ainda, de uma
perspetiva pragmática, impõe-se reconhecer que não será nunca viável um qualquer
sistema jurídico alicerçado, fundamentalmente, na intimidação. Para isso, seria
necessário ter um agente policial sempre ao lado de cada cidadão (também outro
agente policial ao lado desse agente policial para «guardar o guardião», e assim
sucessivamente). A generalidade dos cidadãos respeita as leis, não por medo das
sanções a que possa vir a estar sujeita, mas por razões éticas e educacionais. E tem de
ser assim, independentemente de quaisquer pressupostos filosóficos, por razões de
“sobrevivência” do sistema. Talvez o exemplo evocado anteriormente (relativo ao
controlo dos limites de velocidade na estrada) pareça contrariar esta ideia. No
entanto, a “ressonância ética” é muito mais marcante no domínio penal, onde
situamos esta nossa reflexão sobre os fins das penas (em crimes contra bens jurídicos
como a vida, a integridade física, a liberdade, a honra, a propriedade, etc., onde mais
claramente se pode dizer que a generalidade das pessoas se abstém da sua prática por
razões éticas e não pelo medo das sanções), do que no domínio das infrações
contraordenacionais (como são a generalidade das infrações rodoviárias), a que não
são aplicáveis penas, mas outro tipo de sanções. Afirma-se geralmente que reside aí,
na presença ou ausência dessa “ressonância ética”, ou no grau dessa “ressonância”, a
distinção entre crimes e contraordenações. Mas, mesmo no domínio das infrações
contraordenacionais, deve dizer-se que é na modificação das mentalidades e hábitos
cívicos que deve apostar-se para diminuir a frequência dessas infrações, mais do que
na severidade das sanções ou na intensidade da fiscalização policial (precisamente
porque não pode estar um agente em cada curva de uma qualquer estrada).
 Crítica: acreditar na bondade humana e fundamentar um sistema inteiro nela, é só
irreal.
Em Portugal: população envelhecida. Há mais jovens, sobretudo na faixa até aos
25 anos que, comprovado cientificamente, é a idade onde se atinge o último
estagio intelectual – o estagio dos princípios e valores sociais. Assim, não vale de
nada apostar um sistema penal em valores morais e éticos quando a percentagem
maioritária de possíveis criminosos ainda não os tem e poderá nunca vir a ter.
 Já quanto aos pressupostos filosóficos desta teoria, dir-se-á que atribuir à pena uma
função utilitária e intimidatória que é independente de considerações éticas e de
justiça, se levado às últimas consequências (as quais são decorrência direta dos
pressupostos de que se parte), põe em causa a dignidade da pessoa humana em que
assenta o Estado de Direito. Já atrás foi invocada a objeção kantiana à
instrumentalização da pessoa em função de interesses sociais de combate à
criminalidade. Numa perspetiva puramente utilitária, a intimidação até poderia fazer-
se à custa da condenação de inocentes (a experiência dos totalitarismos do século XX
demonstra-o), ou poderia justificar a aplicação de penas para “servir de exemplo”,
numa medida desproporcional em relação à culpa do agente em concreto – na
verdade, este pensamento não consegue justificar a atribuição da pena ao criminoso
por algo que ele tenha feiro e com base na medida da gravidade do facto, fazendo com
que a pena deixasse de ser vista como consequência do crime. Fala-se, a este
propósito, em terrorismo penal (que pode traduzir-se em terrorismo legislativo
quando, para tal, se privilegia a função legislativa, ou em terrorismo judiciário, quando,
para tal, se privilegia a função judicial).
Não deixa de ser significativo que a reação a esta teoria se tenha evidenciado de modo
particular na doutrina e jurisprudência alemãs no período imediatamente posterior à II
Guerra Mundial e à queda do regime nacional-socialista. Nos Estados Unidos, diante
do pretenso insucesso dos programas de ressocialização, tem-se acentuado a
severidade das penas em nome de exigências utilitaristas de prevenção geral, em
termos que poderão ser considerados desproporcionais (a população prisional foi
multiplicada por cinco nos últimos trinta anos).
Contra esta tendência, em nome do primado de critérios éticos de justiça, que impõem
a proporcionalidade objetiva entre a pena e a gravidade do crime, sobre critérios
utilitaristas, reage Andrew Von Hirsh, expoente da doutrina do “justo merecimento”.
Tal proposta seria mais justa e igualitária e conduziria a penas menos severas, desde
logo porque qualquer pretensão de redução da criminalidade não caberia no âmbito
das funções da pena, mas de medidas políticas situadas noutros âmbitos. O Direito não
pode afirmar-se fundamentalmente através da intimidação e da superioridade própria
do monopólio estadual do uso da força. A afirmação, a força e a superioridade do
Direito hão de assentar na ética e na justiça. Por isso, nunca os seus instrumentos
poderão contrariar, por razões pragmáticas e utilitárias (como se os “fins”
justificassem os “meios”), as bases éticas do sistema, sob pena de este se desmoronar
a partir da erosão dos seus próprios alicerces. Tal não ocorrerá, porventura, de
imediato, mas certamente ocorrerá numa perspetiva de, mais ou menos, longo prazo.
Este é um princípio que importa não esquecer hoje, quando, em nome da luta contra o
“inimigo” (que poderá ser o terrorismo internacional) se sugere o sacrifício de
princípios adquiridos (autênticas conquistas civilizacionais) de direito processual penal
que decorrem do primado da dignidade da pessoa humana (a começar pela proibição
da tortura, por exemplo). Quando se fazem estas cedências, é a autoridade e a
superioridade ética do Direito que é posta em causa, são o Estado e o Direito que
começam a descer ao nível do “inimigo”, começam a deixar de se distinguir desse
“inimigo” no plano ético e começam (para além de qualquer eficácia imediata) a dar-se
por vencidos13.
13
Há outros domínios onde se jogam conflitos entre exigências pragmáticas de combate à criminalidade
e considerações de justiça. Penso, por exemplo, no tratamento dos chamados “arrependidos”, agentes
da prática de crimes que, pelo facto de colaborarem com a justiça, beneficiam de um tratamento penal
mais benévolo, ou podem ser, mesmo, isentos de pena (ver o artigo 299º, nº 4, do Código Penal). É
indubitável a utilidade prática deste procedimento (que permitiu, em Itália, por exemplo, desmantelar
organizações criminosas como a Máfia). Mas não será justo que quem, às vezes durante largos anos,
participou na atividade criminosa e dela beneficiou, por vezes tanto ou mais do que outros agentes
condenados, veja “apagado” todo esse seu passado por ter colaborado com a justiça e por razões
pragmáticas de combate à criminalidade. É certo que também será justo compensar os graves riscos que
Assim, o artigo 1º da CRP – defende a professora Fernanda Palma -, «ao consagrar a
essencial e igual dignidade da pessoa, inibir-nos-ia de adotar esta posição sobre os fins
das penas, se uma tal perspetiva não fosse já cultural e eticamente indefensável».

ii) Teoria da prevenção geral positiva ou da integração

Como analisado, a função da pena enquanto instrumento de prevenção geral negativa tem
como destinatários os potenciais criminosos. Ora, estes são sempre (como também vimos)
uma minoria. A generalidade dos cidadãos adere espontaneamente à pauta de valores
tutelada pelo direito penal. É a estes cidadãos, que confiam na validade da ordem jurídica,
que se dirige a função da pena como instrumento de prevenção geral positiva.

Essa função traduzir-se-á, assim, no reforço dessa confiança, no reforço da consciência


comunitária quanto à validade da ordem jurídica. Diante da violação da ordem jurídica, a
consciência jurídica comunitária poderá ficar abalada e, se o sistema jurídico-penal não reagir,
fechar os olhos a tal violação, tal confiança será posta em causa. A pena serve, pois, de
interpelação social que chama a atenção (como sinal dirigido a todos) para a relevância do
bem jurídico atingido pela prática do crime (a vida, a integridade física, a liberdade, o
património, a autoridade pública, etc.). Sem essa reação, e sem essa interpelação, poderiam
surgir na consciência jurídica comunitária dúvidas quanto a essa relevância. A pena exerce,
pois, uma função pedagógica, dirigida à interiorização dos bens jurídico-penais pela
consciência jurídica comunitária e, por isso, de integração e de tutela desses bens.

Como instrumento de reforço da confiança da consciência comunitária na validade da


ordem jurídica, consciência que havia sido abalada pela prática do crime, a pena exerce,
também, uma função de pacificação social. A reação que a consciência comunitária espera do
sistema jurídico-penal diante da prática do crime traduz-se na aplicação de uma pena justa e
adequada à culpa, pois é esta pena que vai de encontro ao sentimento jurídico coletivo e é
esta pena que corresponde, em coerência, à referida função pedagógica.

Deste modo, a esta teoria não poderá ser dirigida a crítica dirigida à teoria da prevenção
geral negativa ou da intimidação, segundo a qual esta permitiria a instrumentalização da

para o “arrependido” decorrem do facto de colaborar com a justiça, como será justo considerar o
próprio arrependimento (quando é autêntico e não fruto de um juízo de conveniência, como muitas
vezes sucede). E também pode optar-se por soluções de conciliação entre as exigências pragmáticas e as
considerações de justiça em jogo, afastando a pura e simples isenção de pena. Mas, esta “entorse” ética,
esta cedência às razões pragmáticas com sacrifício de princípios de justiça e igualdade, não deixa de
afetar a credibilidade e autoridade do próprio sistema.
pessoa em nome de interesses sociais e punir segundo critérios utilitários sacrificando
considerações de justiça e de adequação à culpa concreta do agente.

Esta teoria encontra significativo eco na doutrina portuguesa contemporânea 14.

Há quem veja nesta doutrina uma versão disfarçada da doutrina retributiva e a critique
por isso. É certo que a recção que satisfaz a consciência jurídica comunitária, que impede o
“abalo” dessa consciência e que reforça a confiança dessa consciência na validade da ordem
jurídica é, inegavelmente, uma reação de tipo retributivo (embora também haja situações em
que tal função pedagógica se cumpre com reações apenas simbólicas). Quem adira às
doutrinas retributivas, ou não as rejeite liminarmente, encontrará neste facto um significativo
apoio em favor das suas posições. No entanto, há que assinalar duas importantes diferenças
entre a doutrina retributiva e a doutrina da prevenção geral positiva:

 Uma primeira é a de que a doutrina da prevenção geral positiva se situa claramente,


ao contrário da doutrina da retribuição, no âmbito das teorias relativas, e não das
teorias absolutas. As exigências de reforço da consciência comunitária na validade da
ordem jurídica são situadas no tempo e no espaço, variarão de acordo com os
diferentes contextos sociais, culturais e históricos. Serão maiores ou menores de
acordo com esse contexto. A frequência de crimes de tráfico de estupefacientes,
incêndio ou abuso sexual de crianças, por exemplo, numa determinada sociedade e
num determinado momento, e o despertar da opinião pública para a particular
gravidade das consequências desses crimes, tornarão mais fortes as exigências da
prevenção geral positiva. As exigências de punição de acordo com a justiça são, nesta
perspetiva, relativizadas e despidas de qualquer conotação metafísica.
 Por outro lado, que a pena deva ser adequada à culpa não significa que a culpa seja
(como é na perspetiva retribucionista) fundamento da pena, mas, antes, que a culpa é
pressuposto e limite da pena. A culpa é condição necessária da aplicação da pena,
mas não sua condição suficiente – não basta que haja culpa para haver pena, mas sem
culpa não há pena. Fala-se, assim, em princípio unilateral da culpa, por contraposição
ao princípio bilateral da culpa.
Há situações em que a comunidade tolera um certo grau de renúncia à pena que seria
adequada à culpa do agente, porque a consciência jurídica coletiva não se sente, com
isso, abalada (dada a pequena gravidade do crime, ou porque essa consciência é
sensível à necessidade de evitar os efeitos nocivos e dessocializadores da pena de

14
Figueiredo Dias, Anabela Miranda Rodrigues e Américo Taipa de Carvalho.
prisão). E é assim porque a pena só poderá justificar-se por necessidades de
prevenção, não por uma exigência absoluta de adequação à culpa do agente (uma vez
que não é esta o fundamento da pena). Refletem estes princípios alguns aspetos do
regime jurídico-penal vigente entre nós. A pena de prisão, que poderia ser adequada e
proporcional à culpa do agente (atendendo à gravidade do crime), observados
determinados requisitos e dentro de determinados limites, será substituída por multa
se a execução da pena de prisão não for exigida pela necessidade de evitar a prática de
futuros crimes (artigo 44º, nº 1, do Código Penal), ou por prestação de trabalho a favor
da comunidade, se desta forma se realizarem de forma adequada e suficiente as
finalidades da punição (artigo 58º, nº 1, do Código Penal), sendo estas finalidades
encaradas na perspetiva preventiva indicada. A pena de prisão, que também poderia
ser adequada e proporcional à culpa do agente, será, se observados determinados
requisitos e dentro de determinados limites, suspensa na sua execução, também se
desta forma se realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
(artigo 50º, nº 1, do Código Penal). Também reflete esta ideia o critério geral de
escolha da pena decorrente do artigo 70º do Código Penal: se ao crime forem
aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal
dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as
finalidades da punição. E será, até, possível, observados determinados requisitos e
dentro de determinados limites, dispensar a própria pena se a esta não se opuserem
razões de prevenção (artigo 74º, nº 1, c), do Código Penal).

No tocante a uma apreciação crítica desta teoria, poderá salientar-se o seguinte:

 É de louvar que à pena sejam atribuídas funções positivas de cariz pedagógico,


dirigidas à generalidade dos cidadãos, que, como vimos, adere espontaneamente, por
razões éticas e educacionais, ao quadro de valores tutelados pelo direito penal. E que
se acentue como o direito penal não pode afirmar-se pela força, mas pela coerência
com tais valores, na linha do que acima salientei. A este respeito, virá a propósito
salientar como contraria abertamente tal função pedagógica a pena de morte: como
poderá afirmar o valor da vida humana, e reforçar a consciência comunitária relativa a
esse valor, a aplicação de uma pena que, numa lógica taliónica de vingança, nega, em
si mesma, esse valor? Não é supérfluo repetir: o Direito não se afirma pela força, mas
pela coerência ética.
 Há que reconhecer que as versões desta teoria que têm tido acolhimento na doutrina
portuguesa salvaguardam, como vimos, o respeito pelo princípio da culpa, corolário do
princípio da dignidade da pessoa humana. Mas não está excluído que dos
pressupostos utilitaristas e relativistas de que parte esta teoria se não possam retirar
conclusões contrárias a tais princípios, que levem até às últimas consequências tais
pressupostos. Para Jakobs, numa perspetiva sistémico-funcional que tende a afastar
limites liberais e materiais à intervenção penal, o papel da culpa na determinação da
pena estaria reduzido à maior ou menor necessidade social de «estabilização contra
fáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada», o que, segundo
Américo Taipa de Carvalho, seria uma forma de a desvirtuar totalmente.
 É certo que as expectativas comunitárias e o sentimento jurídico coletivo apontam,
normalmente, no sentido da aplicação de uma pena justa e adequada à culpa. Mas
também verificamos como a opinião pública tantas vezes reage de forma emotiva e
nem sempre racional, ou está sujeita a flutuações constantes (tão depressa é sensível
à gravidade de determinados crimes e exige condenações desproporcionalmente
severas, como passa a ser sensível aos excessos repressivos da atuação policial e
judicial, facto que abala a segurança jurídica). A maior ou menor sensibilidade perante
a gravidade de cada um dos crimes também nem sempre reflete padrões objetivos. No
âmbito da criminalidade fiscal, por exemplo, haverá uma frequente tendência
desculpabilizadora pouco conforme a padrões objetivos de danosidade social 15.

Assim, deverá o juiz guiar-se por esta tão volátil e incerta conceção do sentimento jurídico
coletivo? Neste desvio relativista não haverá sempre perigos de sacrifício de princípios
racionais e objetivos de igualdade e proporcionalidade? 16

A frequência e visibilidade (hoje cada vez mais frequentemente mediatizada) dos vários
tipos de crime podem acentuar as exigências de prevenção geral positiva, assim entendidas,
sem correspondência a esses critérios racionais e objetivos de igualdade e proporcionalidade.

E com isto, estamos a “descer à terra”, ao nosso quotidiano… E, sem aludir a algum caso
em concreto (“qualquer semelhança com personagens da vida real será pura coincidência”), é
de se lançar um pequeno desafio à nossa reflexão: não serão hoje os juízes, à luz das
exigências de prevenção geral positiva assim concebidas, tentados a tratar de forma
15
Saliente-se, porém, que também há quem acentue que, pelo contrário, em obediência à função
pedagógica das penas, as exigências de prevenção geral positiva serão tanto maiores quanto mais
acentuada for a ausência de sensibilidade da consciência jurídica comunitária (malformada) perante a
lesão de determinados bens jurídicos, como poderão ser os que são atingidos pela criminalidade
económica, fiscal ou ambiental (assim, Américo Taipa de Carvalho, op. cit., pg. 327). Mas os perigos de
sacrifício de princípios objetivos de igualdade e proporcionalidade manter-se-ão.
16
Será oportuno evocar, a propósito das reações emotivas populares diante da prática de crimes, os
perigos associados ao mecanismo do bode expiatório, a necessidade de encontrar uma qualquer vítima,
como instrumento de catarse coletiva e pacificação social.
diferenciada os casos mediáticos? Ou seja, a punir mais gravemente apenas e tão só por causa
da repercussão inerente à mediatização do caso (puniriam de forma mais branda se não se
verificasse tal mediatização, porque não se trata, verdadeiramente, de um caso distinto e mais
grave do que muitos outros que enchem os tribunais), porque o impacte no plano pedagógico
e de pacificação social é muito maior devido a essa mediatização? Mas não poderemos cair,
assim, na instrumentalização da pessoa como bode expiatório para além da proporcionalidade
com a medida da culpa e com desprezo das exigências de ressocialização do agente do crime,
que não deixam de colocar-se nestes casos com a mesma acuidade do que nos outros? E
também com desprezo de elementares exigências de igualdade e objetividade (tratando de
forma desigual o que é substancialmente igual), com sobreposição das exigências utilitárias a
critérios de coerência ética? Por outro lado, como aferir as expectativas da consciência jurídica
comunitária, sem cair no subjetivismo, na ausência de dados empíricos objetivos? Como
interpretar essa consciência? Quem a representa, quando as valorações socialmente vigentes
são heterogéneas e contraditórias? Será que a comunicação social a espelha de forma fiel?
Terá o juiz (para além do legislador, que opera no âmbito da generalidade e tem legitimidade
democrática) legitimidade para se fazer intérprete dessas exigências (que serão, normalmente,
genéricas e não específicas do caso concreto sujeito à sua apreciação, campo em que a sua
legitimidade já não seria questionável)?17 Poderá questionar-se, por outro lado, até onde é que
se poderá dizer, com critérios seguros e objetivos, que a consciência jurídica comunitária é, ou
não, abalada pela renúncia à pena ajustada à culpa. Não haverá sempre alguma forma de
“abalo”, ou, pelo menos, de frustrante incompreensão face à injustiça da impunidade, por
exemplo, em muitas situações de suspensão, pura e simples, da execução da pena (situações
que reclamariam, segundo critérios de justiça, talvez não a execução da pena de prisão, mas a
imposição de deveres (ao abrigo do artigo 51º do Código Penal) de alcance efetivamente
sancionatório, como condição dessa suspensão? Também já se tem dito, em crítica a esta
teoria, que aos crimes mais graves (como os do regime nacional-socialista, por exemplo), por
serem objeto de uma condenação unânime e indiscutível, não chegam a causar a necessidade
de reforçar a confiança da consciência jurídica comunitária na validade da ordem jurídica. Se

17
A. Lourenço Martins faz-se eco deste tipo de preocupações (op. cit., pgs. 156 a 160 e 256 a 258).
Salienta a carência de índices relevantes para auscultar ou sentir o pulsar da comunidade sobre o
quantum necessário à preservação da confiança na validade das normas e no ordenamento geral para
protecção dos bens jurídicos («como se o abalo das expectativas fosse passível de ser medido por uma
espécie de sismógrafo de que o Julgador estivesse munido quando ditasse a sentença). Adverte para o
facto de nem sempre os receios da população se basearem em informação rigorosa, mas mais em
estereótipos alimentados pela imprensa popular. E para o facto de apenas uma percentagem de crimes
praticados ser objecto de condenação, de onde resulta que os poucos condenados são transformados
em instrumento da reafirmação da validade do sistema, mas essa instrumentalização acaba por ser
inútil, pois continuará fora do sistema a maioria dos que cometem crimes e não são condenados.
esses crimes mais graves não forem punidos, não será por isso que surgirão dúvidas ou
hesitações na consciência jurídica comunitária quanto à relevância dos bens jurídicos em jogo.
E a punição não deixa, nestes casos, de se justificar por simples exigências de justiça. Mas estas
são simples reflexões pessoais, que não podem fazer esquecer o acolhimento que esta teoria
tem tido (em termos que analisarei melhor de seguida, e que, como veremos, a fazem escapar
a algumas destas críticas) na doutrina portuguesa mais autorizada e na própria legislação
vigente.

As exigências da prevenção geral e a medida da pena

Não é raro invocar em sentenças tais exigências (ligadas à frequência de determinado tipo
de crime e a necessidade de combater a sua prática) como circunstâncias agravantes (a
propósito de crimes como os rodoviários, de tráfico de estupefacientes, roubo, furto, e muitos
outros). Pensa-se que esta tendência é suscetível de crítica e aqui se deixa, por isso, outro
desafio à nossa reflexão.

Exigências de ordem geral são cons ideradas pelo legislador ao determinar a moldura
abstrata da pena, não deverão sê-lo pelo juiz ao aplicar a Lei ao caso concreto. O que é geral e
independente das circunstâncias específicas, únicas e particulares do caso concreto cabe ao
legislador. Ao juiz cabe considerar, precisamente, o que o caso concreto tem de específico,
único e particular, não aquilo que poderia ser dito desse caso concreto como de qualquer
outro caso de prática do mesmo tipo de crime. Se as exigências da prevenção geral são
particularmente acentuadas, isso há de se refletir em molduras abstratas particularmente
severas (é o que sucede com o crime de tráfico de estupefacientes, por exemplo), não tem que
refletir-se de novo, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, na
medida concreta da pena. Dir-se-á que pode distinguir-se entre a consideração das exigências
da prevenção geral pelo legislador e a consideração dessas exigências pelo juiz, que atua num
contexto histórico eventualmente diferente do do legislador. Podem tais exigências ter-se
acentuado desde o momento da publicação da Lei. Ou pode o legislador não ter considerado
certas circunstâncias da prática de determinado crime (o uso de uma seringa pretensamente
infetada, por exemplo) que só a prática judiciária vem a revelar ser de verificação frequente e
que, precisamente por ser frequente, suscitam particulares exigências de prevenção geral.

Nesta perspetiva, não estaríamos perante uma violação do princípio da proibição da dupla
valoração. Mas o juiz estaria a substituir-se ao legislador, a suprir as suas supostas lacunas,
extravasando do seu papel de aplicador da Lei ao caso concreto. Violar-se-ia, assim, o princípio
da separação de poderes.
Poderá, ainda assim, dizer-se que deveria distinguir-se entre a consideração das exigências
de prevenção geral pelo legislador e a consideração dessas exigências pelo juiz, que atua num
contexto, já não histórico, mas espacial (ou territorial) próprio. Na verdade, não é raro
encontrar alusões em sentenças às exigências da prevenção geral e a frequência da prática de
determinado tipo de crimes com referência à realidade da comarca. A este respeito, o que
pode questionar-se é se, à luz de um princípio de unidade do sistema jurídico, por um lado, e
considerando a realidade de uma mediatização que cada vez mais assume dimensões
nacionais, por outro lado, é legítimo e razoável considerar uma dimensão regional ou comarcã
das exigências de prevenção geral. Deixo a questão à nossa reflexão. Devo salientar, de
qualquer modo, que, também quanto a este aspeto, a perceção pelo juiz das exigências de
prevenção geral se baseia normalmente em dados pouco precisos e rigorosos (raramente se
citam estatísticas, que por vezes não existem, mas de outras vezes existem). Sobre esta
questão, e a propósito da análise das circunstâncias elencadas no artigo 71º, nº 2, do Código
Penal como circunstâncias de que depende a medida da pena, pronunciou-se José de Sousa
Brito nestes termos: «É de notar que na enumeração das circunstâncias que graduam a pena
dentro da sua moldura dentro da sua moldura legal (assim o nº 2 do artigo 71º) não há
nenhuma que faça variar as exigências preventivas gerais independentemente das
circunstâncias que fundamentam a ilicitude material do caso concreto e são abrangidas pela
culpa. Não são, portanto, de admitir considerações relativas ao aumento geral da
criminalidade ou à frequência de certo tipo de crimes (acidentes de trânsito mortais, por
exemplo) para justificar a irrelevância total ou parcial da prevenção especial. A solução
contrária é uma constante tentação da prática judicial, mas deverá entender-se que o
legislador, ao fazer intervir a prevenção geral como mera exceção à prevalência da prevenção
especial para graduar a pena dentro da medida da culpa ou abaixo dela, quis evitar os perigos
daquela tentação. Tais perigos são, como é sabido: a parcialidade e a emocionalidade da
decisão sob o impacto do caso concreto, a inconstitucional instrumentalização do indivíduo
criminoso como meio de atemorizar os outros em nome da utilidade geral, o desrespeito pela
separação de competências entre o legislador penal e os juiz, e a reduzida racionalidade da
opção por uma alternativa de prevenção geral, em face da falta de base empírica para afirmar
que uma certa medida da pena – e não a simples descoberta e punição do crime – tem um
efeito intimidante geral diferenciado do de uma pena alternativa».

É de salientar que Sousa Brito entende que o regime do Código Penal vigente exclui a
consideração das exigências de prevenção geral na determinação da medida da pena, mas já
não da escolha da pena ou da opção por uma pena de substituição (é nestes âmbitos que o
legislador faz intervir a prevenção geral como «exceção à prevalência da prevenção especial
para graduar a pena dentro da medida da culpa ou abaixo dela»).

Mas, diante do que se vem afirmando e da tese de Sousa Brito, é natural que se pergunte:
«que sentido dar, então, à referência genérica, no nº 1, do artigo 71º do Código Penal às
“exigências da prevenção” como circunstâncias a considerar na determinação da medida da
pena? “Exigências de prevenção” poderão ser, para este efeito, indubitavelmente as exigências
de prevenção especial. Por definição, as exigências de prevenção especial dependem das
particularidades do caso concreto e cabem, por isso, no âmbito de competência próprio do
juiz.

Por outro lado, pode considerar-se as exigências da prevenção geral de um modo indireto,
tornando-as dependentes dos graus de ilicitude e culpa do crime em concreto: essas
exigências serão tanto mais acentuadas quanto mais acentuados esses graus de ilicitude e
culpa. Nesta perspetiva, tais exigências deixarão de ser uma variável independente das
particularidades do caso concreto e poderão ser consideradas na determinação da medida da
pena.

Teorias da prevenção especial

A prevenção especial considera que o fim das penas é a intervenção sobre o cidadão
delinquente, através da coação psicológica, inibindo-o da prática de crimes ou eliminando nele
a disposição para delinquir.

O pensamento preventivo-especial tem a sua sede no entendimento filosófico de que


a virtude se aprende e se ensina (Platão, O Protágoras). Porém, o desenvolvimento global e
coerente desta conceção só foi possível a partir do século XVII, com uma nova visão da pena
privativa de liberdade e com a fundamentação do Direito no contrato social, que levou a que
se considerasse como sentido da pena a sua necessidade. Já no século XIX, Von Liszt, no seu
programa de Direito Penal, distingue, conforme a personalidade do agente, três funções
preventivas-especiais da pena:

 A intimidação;
 O melhoramento;
 A eliminação do criminoso.

Desde já, algumas críticas (na síntese de Fernanda Palma):


 Em primeiro lugar, esta teoria conduz a consequências difíceis de aceitar, tanto no
plano ético como ao nível jurídico-constitucional, quando não seja moderada por
outros critérios. Crimes muito graves poderiam ficar impunes se não existisse perigo
de reincidência e crimes menos graves poderiam justificar a prisão perpétua ou a
morte.
 Em segundo lugar, a investigação empírica não permite apoiar em dados
absolutamente seguros a prognose sobre a delinquência futura. Por outro lado, a pena
é criminógena, de modo que as próprias condenações aumentam as probabilidades de
reincidência.
 Por outro lado, a prevenção especial tende a menosprezar o principio da necessidade
da pena (18º/2 CRP). A prevenção especial tem uma lógica paralela à do princípio da
necessidade da pena, que carece de uma limitação e articulação por este princípio.

É, no entanto, discutível que se justifique a criminalização de condutas. Se a recuperação


ou a intimidação do delinquente são falíveis, a legitimidade de utilizar meios tão graves para a
realização incerta desses fins pode estar efetivamente em causa.

i) Teorias da prevenção especial negativa

A prevenção especial, enquanto fim da pena, traduz-se na tentativa de evitar a prática de


futuros crimes por parte do próprio agente. Na sua vertente negativa, visa-se a proteção da
sociedade perante um agente que se considera perigoso. Fala-se, então, em separação ou
segregação, neutralização ou inocuização desse agente.

Numa versão radical, esta teoria parte de um pressuposto determinista, que nega o livre
arbítrio. Para a escola clássica do positivismo (Lombroso, Ferri, Garofolo), o criminoso (o homo
criminalis) é levado à prática do crime por fatores (para uns, antropológicos, para outros,
psíquicos ou sociais) que escapam à sua vontade. Situamo-nos, assim, nos antípodas das
teorias que assentam numa conceção de pessoa humana como ser livre e responsável.

A apreciação crítica desta doutrina há de centrar-se na própria conceção determinista que


lhe subjaz (pelo menos, na sua versão radical). O princípio da dignidade da pessoa humana em
que assenta um Estado de Direito (artigo 1º da Constituição portuguesa) não pode deixar de
supor uma conceção da pessoa humana como ser livre e responsável. A pena, por definição,
distingue-se das medidas de segurança.

Do princípio da dignidade da pessoa humana decorre, também, como seu corolário, e


como se vem salientando, o princípio da culpa. Este funciona, pelo menos, como pressuposto e
limite da aplicação das penas (se assim não for, a pessoa é reduzida a instrumento e objeto,
contra o que impõe o respeito pela sua dignidade). Atribuir à pena uma função de simples
prevenção especial negativa, se deste princípio se retirarem todas as suas consequências,
levará a sacrificar o princípio da culpa. A pena seria, assim, medida em função da perigosidade
do agente, e não em função da sua culpa. Se (para usar um exemplo muito próximo da
experiência quotidiana dos tribunais) um toxicodependente pratica sucessivos furtos de
pequena gravidade para satisfazer as suas exigências de consumo de estupefacientes,
enquanto ele não se libertar da toxicodependência, manter-se-á a sua perigosidade e o perigo
de prática de futuros crimes. Mas a pena deixará de ser justa se for desproporcional em
relação à objetivamente reduzida gravidade desses crimes 18. E também a pena aplicada a um
agente que nunca logrou (seja qual for o motivo) ser socialmente reinserido no decurso da sua
execução, e, por isso, nunca chegou a afastar o perigo de prática de futuros crimes, não pode
deixar de estar limitada por uma relação de proporcionalidade com a culpa e gravidade
objetiva do crime efetivamente cometido.

E há que considerar, também, que um juízo sobre a probabilidade de o agente vir a


cometer crimes no futuro é sempre incerto. A pena não pode basear a sua legitimidade num
juízo desse tipo. Como princípio, pode dizer-se que é legítimo punir por causa do crime
cometido, não por aqueles que possam vir a ser cometidos. É certo que um juízo de
perigosidade decorre, muitas vezes, dos antecedentes criminais e estes conduzem,
naturalmente, a uma maior severidade da pena. Mas esta maior severidade não se justifica
tanto por essa perigosidade, como, sobretudo, pelo facto de tais antecedentes agravarem o
próprio crime cometido (na medida em que este se traduz num desrespeito pela advertência
que deveriam representar as condenações anteriores).

Também se me afigura desconforme com o princípio da dignidade da pessoa humana


conceber alguma forma de “irrecuperabilidade” do criminoso. Trata-se de um axioma
indiscutível para quem parta desse princípio: mesmo diante dos crimes mais graves, ou da
personalidade pior formada, porque a pessoa é livre, a capacidade de mudança (de metanóia)
por parte do agente nunca poderá ser posta em causa. A sua dignidade como pessoa nunca se
perde, por mais indignos que sejam os atos que possa ter praticado. Será, porventura, utópico
e irrealista raciocinar nestes termos. Mas é o que impõe o princípio da dignidade da pessoa
humana. Também esta visão concorre no sentido da rejeição da legitimidade da pena de
morte. Tal como concorre no sentido da rejeição da legitimidade da prisão perpétua. Nunca
18
É interessante, a este respeito, o acórdão da Relação de Coimbra de 17 de janeiro de 1996, relativo à
medida da pena adequada a um agente com graves antecedentes criminais e condenado por crimes de
pequena gravidade.
podem ser totalmente fechadas as portas da regeneração ou reinserção social do agente do
crime, deve permanecer sempre “uma luz ao fundo do túnel”.

ii) A teoria da prevenção especial positiva

As doutrinas da prevenção especial positiva assumem, a este respeito, uma postura


radicalmente diferente da das doutrinas da prevenção especial negativa. A pena não visa,
fundamentalmente, a proteção da sociedade diante da perigosidade do agente do crime, mas
a sua regeneração, reeducação, ressocialização ou reinserção social (cada um destes termos
corresponderá a matizes diferentes, correspondentes às diferentes versões destas doutrinas).
Dela está afastada qualquer ideia de “irrecuperabilidade” do agente do crime. Pelo contrário, o
que com a pena se pretende é a sua “recuperação” (concebida de formas diferentes, de
acordo com as várias doutrinas).

Doutrinas clássicas com particular expressão nos finais do século XIX, como a doutrina
correcionalista (que exerceu influência na Península Ibérica) e a teoria da emenda acentuaram
o papel da pena como instrumento dirigido à reforma interior do condenado, procurando
influenciar os seus critérios e opções no plano ético. Nesta vertente, as doutrinas da prevenção
especial positiva atribuem à pena objetivos ligados à regeneração moral ou reeducação
(expressão utilizada no artigo da Constituição italiana que enuncia explicitamente os fins das
penas) dos agentes do crime.

Outra é a postura das doutrinas mais influentes nos tempos mais recentes, como a da
Nouvelle Defense Sociale, que, nalguma medida, inspirou o Código Penal português vigente.
Acentua-se, como função da pena, um objetivo de reinserção social ou ressocialização 19. Trata-
se, tão só, de prevenir a reincidência. Haverá que respeitar, também em nome da neutralidade
axiológica do Estado, as conceções de vida e juízos de valor próprios do condenado, sem
pretender qualquer forma de doutrinamento ou “lavagem ao cérebro”. Estatui, nesta linha, o
artigo 43º, nº 1, do Código Penal: «A execução da pena de prisão (…) deve orientar-se no
sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo
socialmente responsável, sem cometer crimes».

Estas doutrinas tenderão a dar outro relevo, que não é dado pelas doutrinas anteriores,
aos fatores sociais que estão na génese do crime. Afirma Marc Ancel que «não se trata de

19
Muitas vezes, trata-se, antes, de inserção social ou socialização, porque o agente, verdadeiramente,
nunca chegou a estar socialmente inserido ou socializado. De outras vezes, trata-se, antes, de evitar a
“desinserção” social, porque o agente nem chega a estar, à partida, socialmente desinserido. O que
poderá suceder é que uma pena de prisão seja, nesta perspetiva, contraproducente. Haverá que buscar,
então, a aplicação de penas alternativas à pena de prisão.
defender a sociedade contra os delinquentes porque são perigosos, mas de defender estes,
porque estão em perigo, socializando-os».

O objetivo da reinserção social decorre de um dever de solidariedade próprio de um


Estado de Direito social. Porque a desestruturação social contribui, nalguma medida, para a
prática do crime e a facilita, é dever da sociedade criar condições que contribuam para a
reinserção social e a facilitem.

Porque a pena de prisão se tem demonstrado nociva e contraproducente na perspetiva da


reinserção social (ao contrário do que vaticinavam as doutrinas oitocentistas que lhe atribuíam
benéficos efeitos pedagógicos), propugnam-se penas alternativas à pena de prisão, que, pelo
contrário, facilitem e estimulem a reinserção social (ou, pelo menos, evitem a “desinserção”
social associada à pena de prisão). Este princípio está presente no já citado artigo 70º do
Código Penal, que estabelece, como critério de escolha da pena, a preferência por pena não
privativa da liberdade sempre que esta «realizar de forma adequada e suficiente as finalidades
da punição».

Assim e como se tem feito em relação às outras teorias, cabe agora tecer alguns
comentários a respeito das teorias da prevenção especial positiva.:

 Em primeiro lugar, importará realçar como esta dimensão positiva se coaduna com o
(sempre presente nos meus comentários, por compreensíveis e constitucionalmente
fundamentadas razões) princípio da dignidade da pessoa humana. Esta dignidade
mantém-se para além da prática do crime, por muito grave que este seja. O agente do
crime (o “criminoso”) não deixa, por ser agente do crime, de ser pessoa, com as
virtualidades (eventualmente escondidas devido múltiplos fatores) que daí decorrem.
E não deixa de ser membro da comunidade. É, pois, também uma visão solidarista 20
que, de certa maneira, subjaz a estas doutrinas. O agente do crime não se torna um
excluído que deva ser ostracizado, mas é chamado a reatar os laços que o unem à
comunidade e que a prática do crime, de algum modo, quebrou. Uma cultura marcada
por raízes cristãs (para além dos limites estritamente confessionais) descobrirá nas
imagens evangélicas do regresso do filho pródigo e da ovelha perdida que se
reencontra algum eco desta dimensão positiva de reconciliação entre o agente do
crime e a sociedade, ou mesmo, mais modestamente, de ressocialização e reinserção

20
Ou que, mais ambiciosamente, dê relevo ao valor da fraternidade, o terceiro do mote da Revolução
Francesa, até agora mais esquecido.
social. E também esse eco torna espontaneamente aceitável nas nossas sociedades,
apesar de algumas aparências em contrário, esta vertente do sistema jurídico-penal.
 A prevenção especial positiva permite, por outro lado, encarar de forma mais radical
a própria proteção da sociedade e das vítimas. É a reeducação, ou a ressocialização,
que permitem atingir, na sua raiz, os fatores que estão na génese do crime, mais do
que a sanção em si mesma. E evitar, mais do que a severidade das penas, a
reincidência, como o demonstra a aplicação de penas de prisão. Voltando a evocar um
exemplo do quotidiano dos tribunais, quando é a toxicodependência a contribuir para
a prática do crime, mais do que qualquer pena (que também se justificará por outros
motivos), só o tratamento da toxicodependência permitirá afastar o perigo de
continuação da atividade criminosa. Olhar a todos os fatores que contribuem para a
prática do crime ou a facilitam, sem que essa prática deixe de ser encarada como um
ato livre e sem que se desresponsabilize o agente (como “vítima da sociedade”), é,
além do mais, uma forma realista de combater a criminalidade.
 Há que reconhecer que o entusiasmo com que estas doutrinas foram acolhidas a
partir dos anos sessenta do século XX foi, progressivamente, esmorecendo. E, nos
Estados Unidos, vem-se acentuando, até, um movimento constante de recurso cada
vez mais frequente à pena de prisão (multiplicado por cinco nos últimos trinta anos).
O balanço das experiências de aplicação de penas alternativas à pena de prisão, que
não contribuíram para a diminuição da reincidência, desiludiu, falou-se em “efeito-
zero” desses programas e tornou-se célebre, a este respeito, o adágio: What works?
Nothing works. No entanto, o balanço de aplicação de penas alternativas à pena de
prisão não é assim tão unívoco. Há dados que revelam algum sucesso na perspectiva
da diminuição da reincidência21. E não pode dizer-se que o regresso à aplicação
sistemática da pena de prisão se tenha traduzido numa consequente diminuição
minimamente relevante dos índices de reincidência ou da criminalidade em geral.
Entre nós, nunca a aplicação de penas alternativas à pena de prisão, como a
suspensão de execução da pena com regime de prova ou de prestação de trabalho a
favor da comunidade encontrou uma expressão minimamente significativa que

21
Anabela Miranda Rodrigues, in A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa da
Liberdade, Seu Fundamento e Âmbito, Coimbra, 1982, págs. 142 a 144, contesta a validade de tais
conclusões. Jean-Hervé Syr, (op. cit., pags. 122 e segs.) faz referência e estudos donde se retira que o
sucesso ou insucesso dependerá da atitude de maior ou menor acolhimento e colaboração por parte do
agente. O estudo de Carolina Estarte, Núria Rosell e Maria Eulália Reina, «Penas Alternativas a la Prisón
y Reincidência: um Estúdio Empírico», monografia da Revista Arazandi de Derecho y Proceso Penal, nº
16, demonstra o sucesso da aplicação dessas penas, em relação à pena de prisão, na perspetiva da
diminuição da reincidência.
permita fazer qualquer tipo de balanço. Antes de cruzar os braços e desistir, importa
saber se foi feito (pelo sistema judicial e pela sociedade) tudo o que está ao nosso
alcance22.

Importa, da mesma forma, assinalar alguns limites destas doutrinas.

Uma primeira questão tem a ver com o sentido da ressocialização.

Como vimos, há quem afirme que o sistema jurídico-penal não pode pretender do agente
do crime a adesão a qualquer pauta de valores, bastando-se com a conformação externa à lei
vigente e a abstenção da prática de crimes 23. Ao Estado democrático e pluralista faleceria, até,
legitimidade para optar por uma qualquer pauta de valores e impô-la 24. Mas será possível
conduzir um agente à observância dos ditames do sistema jurídico-penal sem apostar na sua
motivação interior? E essa motivação não terá de ser mais sólida do que a que decorre do
temor das sanções e das desvantagens que, no plano puramente utilitarista, lhe possam estar
associadas?25

Um Estado democrático não é – já se o disse – um Estado “agnóstico” no plano dos


valores, ou assente no relativismo ético, porque a própria democracia não se reduz a um
22
Afirma a propósito A. Lourenço Martins (op. cit.. pg. 452): «Ainda que tenha esmaecido, de algum
modo, a ilusão de que a reabilitação do delinquente, a sua reinserção (ou inserção, para muitos), era
sempre possível, não se pode instalar a crença derrotista sobra a sua inviabilidade: aqui o êxito não tem
uma dimensão quantitativa pois a solidariedade é um ideal sem limite.»
23
Ver, neste sentido, de forma aprofundada, Anabela Miranda Rodigues, A Posição ..., cit., pgs. 97 e
segs. Aí se afirma (pag. 121): «Ao pretender alcançar o objectivo de reinserção social não se quer
portanto que o indivíduo assuma como próprio o modelo social e os valores. O que se tem em vista é
apenas torná-lo capaz – criando-lhe disposição interior nesse sentido -, em qualquer caso, de não
cometer crimes. Trata-se, assim, em último termo, da afirmação de que basta alcançar o respeito
externo pela legalidade, enquanto a reinserção social que pretende fazer o indivíduo assumir ou
interiorizar os valores sociais ou morais se aproxima perigosamente dos métodos próprios de um
qualquer sistema totalitário.» Mas, também, de seguida (pg. 122): «Se o indivíduo deve, por um lado,
pura obediência à lei jurídico-penal - é a adaptação externa ou o momento imperativo tout court -,
deve, por outro lado, aderir aos valores que lhe estão subjacentes, esperando-se que se corrija, que se
adeque no sentido de se tornar capaz de os respeitar. Desta forma se salvaguarda a necessária
interiorização – agora não apenas no sentido mecânico - que, não se nega, sempre será pressuposto real
de uma verdadeira socialização». Essa interiorização não pode, porém, ser pretendida ou imposta. Deve
ser salvaguardada a liberdade do homem «a quem compete, em último termo, decidir sobre a adesão,
ou não aos valores que a ordem jurídico-penal defende» (pg. 123).
24
Para a criminologia crítica ou radical, o próprio ideal ressocializado seria ilegítimo por representar o
conformismo diante do modelo social que, com as suas disfunções e injustiças, gera o próprio crime.
Situamo-nos, aqui, já no domínio da abolição do direito penal e de uma qualquer função da pena.
25
Afirma, a este respeito, Manuel Cavaleiro de Ferreira (in apontamentos policopiados, Universidade
Católica Portuguesa, Lisboa, 1982-3, págs. 70 e 71): «O homem como delinquente não seria o homem,
mas tão só o cidadão. Uma caricatura deformada, exangue, do homem. Se a iminente dignidade da
pessoa humana é alicerce dos seus direitos, não o será o seu dever de se perfazer ou refazer como
homem? E sem esta perspetiva total, toda a influência regeneradora é destinada ao insucesso (...). A
finalidade recuperadora do homem deve ter por fim o próprio homem. Desde que se considere ilegítima
toda a finalidade moral no conceito de ressocialização, destrói-se necessariamente a verdadeira
possibilidade de reforma de cada um.»
conjunto de regras processuais e terá de assentar num forte suporte ético (que parte do
princípio da dignidade da pessoa humana). E o sistema jurídico-penal há de espelhar a pauta
de valores própria da democracia. Estes valores não podem, por coerência interna, ser
impostos (numa qualquer espécie de “lavagem ao cérebro”) 26, mas podem, e devem ser
propostos. A adesão a esses valores não pode ser imposta aos agentes de crimes, mas tal não
significa que não seja pretendida ou almejada pelo próprio sistema jurídico-penal 27.

Qualquer forma de assimilação dos esforços de reeducação ou ressocialização a uma


terapia segundo um modelo médico não pode ignorar que a prática do crime é fruto de uma
decisão livre.

As expectativas a respeito de uma qualquer forma de reeducação ou reinserção social


também nunca podem ignorar que estão em causa propostas que podem ser livremente
rejeitadas. O insucesso dessa reeducação ou ressocialização não retira sentido ao esforço que
é realizado, pois estamos perante simples propostas 28 (haverá, sim, que apurar se tudo foi feito
no sentido da mais correta formulação dessa proposta, se o Estado e a sociedade fizeram
“toda a sua parte”). Mas, se essas propostas forem rejeitadas, também a pena não deixa de ter
sentido, seja na sua dimensão puramente retributiva, seja numa dimensão de prevenção geral,
positiva ou negativa, seja no plano da prevenção especial negativa. Aqui reside, pois, um limite
das doutrinas da prevenção especial positiva: qualquer proposta de reeducação ou
ressocialização pode ser rejeitada, sem que, com isso, a pena perca sentido.

E, por outro lado, a pena também não perde sentido em várias situações em que não se
colocam particulares exigências de reeducação ou ressocialização: os crimes ocasionais (como
são quase todos os crimes de homicídio) ou os crimes negligentes. Não se colocarão exigências
de ressocialização (pelo menos, na forma como esta é tradicionalmente encarada) nos
26
Sufragamos inteiramente a afirmação de Anabela Miranda Rodrigues já acima citada, segundo a qual
deve ser salvaguardada a liberdade do homem, «a quem compete, em último termo, decidir sobre a
adesão, ou não, os valores que a ordem jurídico-penal defende.»
27
Deve assinalar-se que – di-lo a modesta experiência de um juiz - a generalidade dos agentes da prática
de crimes não contesta ou rejeita a pauta de valores tutelada pelo direito penal vigente. Tal como, por
exemplo, a generalidade dos toxicodependentes que pratica crimes ligados a essa toxicodependência
não rejeita deliberadamente, por uma qualquer postura “contestatária”, a vontade de dela se libertar.
Mas é nítido que qualquer deles precisa de alguma ajuda para assumir com perseverança qualquer
propósito de mudança. Afirma C. Roxin (apud Anabela Miranda Rodrigues, A Posição..., cit., pág. 125):
«O criminoso não é, como muitas vezes julga o leigo, um homem forte cuja vontade tem de ser
quebrada, antes, em grande número de casos, um ser diminuído, inconstante e pouco dotado, por vezes
com traços psicopáticos e que procura compensar através de crimes o seu complexo de inferioridade
provocado por uma deficiente preparação para a vida. Para o ajudar é necessário a cooperação de
juristas, médicos, psicólogos e pedagogos contribuindo para o aperfeiçoamento de um programa de
ressocialização».
28
Como já tem sido salientado, a reinserção social não depende apenas do sistema jurídico-penal,
depende do próprio agente e da sociedade
chamados “crimes de colarinho branco”, praticados por pessoas sem problemas de inserção
social. E a pena não deixa de ter sentido em relação a qualquer deste tipo de crimes.

Também os chamados “crimes por convicção” (como os de terrorismo) tornam, à partida,


ilusório um qualquer esforço de reeducação, precisamente porque qualquer adesão aos
valores tutelados pelo direito penal não pode ser imposta e, nestes casos de forma particular,
o respeito externo da legalidade sem essa adesão é muito pouco provável. E a pena também
não deixa de ter sentido em relação a este tipo de crimes.

Também foram alvo de justificadas críticas tentativas de suplantar o critério tradicional de


determinação certa da pena, com a introdução de penas relativamente indeterminadas 29, cuja
duração seria variável não em função da gravidade do crime ou da culpa, mas em função da
evolução ou sucesso da própria socialização. Se levado às últimas consequências (a duração da
pena passaria a depender de fatores discricionários e alheios ao crime cometido), este sistema
entra em claro conflito com princípios jurídico-penais básicos, como o princípio da culpa, da
legalidade e da igualdade. Poderá, mesmo, ser socialmente injusto, precisamente porque a
duração da pena seria maior ou menor segundo o grau de inserção social dos agentes, o que
normalmente prejudicaria os mais pobres. Estes desvios serviram de fundamento, na
Escandinávia e nos Estados Unidos, ao abandono desse tipo de penas e ao regresso a sistemas
baseados na proporcionalidade objetiva entre a gravidade da pena e a gravidade do crime.
Andrew Von Hirsh, expoente da doutrina do “justo merecimento” faz-se eco desta exigência,
afirmando, como já vimos, que tal critério, se abstrair também de considerações de prevenção
geral (o que não tem, normalmente, sucedido nos Estados Unidos), além de ser mais justo e
igualitário, reduziria a severidade das penas55.

A estrutura e função da pena pode não se adequar inteiramente a um programa de


socialização. Trata-se, porém, de uma desadequação com que se terá de lidar
necessariamente, se não for desvirtuado o sentido da pena, substituindo-o pelo próprio
programa de socialização. Esta há de ser instrumental em relação à pena, e não se pode
substituir a ela.

Numa outra perspetiva, também há quem acentue a desadequação entre um programa


de “tratamento” segundo modelos terapêuticos e a estrutura necessariamente coerciva da
própria pena. Tal como a anterior, trata-se de uma desadequação com que se terá de lidar

29
Entre nós, a pena relativamente indeterminada, prevista nos artigos 83º a 85º do Código Penal, tem
uma expressão circunscrita e limitada.
necessariamente, se não for desvirtuado o próprio sentido da pena. O “tratamento” há de ser
instrumental em relação à pena e não pode substituir-se a ela.

Regressemos à nossa prática judiciária quotidiana.

Identificamos facilmente as exigências da prevenção especial positiva nos critérios que


guiam a escolha da pena com preferência pelas penas não privativas da liberdade e pelas
penas de substituição (artigos 44º, 45º, 46º, 50º, 58º e 70º do Código Penal).

Penso que são também, e tão só, as exigências da prevenção especial positiva que
justificam a aplicação do regime especial dos jovens (Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de
setembro), ou podem justificar, para além da aplicação desse regime, a consideração da idade
jovem como circunstância atenuante. Não se trata, em meu entender, de considera que a
imaturidade juvenil se traduz num menor grau de culpa («são novos, não pensam…». Não há
uma semi-maioridade penal. O jovem não é, por ser jovem, menos culpado ou responsável do
que o adulto30. O que se verifica é que a nocividade da pena de prisão, com o perigo dos seus
efeitos criminógenos e estigmatizantes, é particularmente acentuada quando aplicada numa
fase etária em que as opções de vida ainda estão por consolidar.

No outro extremo do espectro etário, na idade avançada, também se justificará a


consideração da idade como circunstância atenuante por outro tipo de razões de prevenção
especial positiva, e também não por razões de grau de culpa. Não se trata de considerar que a
diminuição das faculdades mentais e físicas na idade avançada pode toldar o raciocínio e a
vontade. A atenuação pode justificar-se independentemente dessa diminuição de faculdades.
E o que justifica a atenuação pode ser, para além da inexistência de alguma forma de
desinserção social, a necessidade de evitar, mesmo em crimes graves, que a idade avançada
transforme uma pena de prisão de longa duração numa efetiva “prisão perpétua” que
comprometa a possibilidade de regresso à normal vida familiar e comunitária. Há que não
apagar «a luz ao fundo do túnel”.

A consideração das condições sociais do condenado na escolha da pena e determinação da


sua medida

Como se viu, as correntes que foram analisadas, que acentuam a perspetiva da


prevenção especial positiva, levam a considerar o contexto familiar, social e económico do
agente do crime, para além de uma visão isolada do facto criminoso na sua objetividade.

30
A. Lourenço Martins (op. cit., pgs. 188 a 203) identifica nalguma jurisprudência o aflorar da ideia de
que «numa personalidade ainda em formação podem exacerbar-se as paixões, acicatar-se os impulsos e
as emoções, dizendo-se imatura a noção de responsabilidade».
Trata-se de seguir a célebre máxima de Ortega y Gasset: «Eu sou “eu” e a minha
circunstância». A consideração desse contexto não se destina a influenciar o juízo de culpa,
como se a adversidade dessas condições familiares, sociais e económicas, por si só, tornasse
desculpável, ou menos culpável, a prática de qualquer crime (pois agentes em condições
igualmente adversas fazem opções diferentes e abstêm-se de praticar crimes). Há, porém, que
atender à motivação do agente na determinação da medida da pena. E quando essa motivação
(em crimes contra o património) é a penúria económica e a necessidade de a ela obstar, é
óbvio que a condição social e económica do agente não pode ser ignorada na perspetiva do
juízo de culpa.

O contexto familiar, social e económico releva, sobretudo, para a escolha da pena mais
adequada à reinserção social (ou não desinserção social) do agente. Tal contexto deve ser
considerado na escolha dessa pena, na escolha dos deveres que podem condicionar a
suspensão da execução da pena (artigo 51º do Código Penal), ou na elaboração do plano de
reinserção social em que assenta o regime de prova (artigo 53º, nº 2, do mesmo Código).

A este respeito, gostaria de alertar para um risco que pode correr-se se seguirmos um
raciocínio que já vi aflorado (embora de forma ténue) em algumas sentenças. A adversidade
das condições familiares, sociais e económicas do agente não serve, por si só, como vimos, de
circunstância atenuante. Mas também não deve, obviamente, ser circunstância agravante.
Explico o porquê deste meu receio. Pode fazer-se este raciocínio: porque as perspetivas de
reinserção social são mais difíceis devido às condições adversas que rodeiam o arguido
(desemprego, falta de apoio familiar, residência num bairro dos que hoje se designam como
“problemáticos”), ele não beneficiará de um tratamento (suspensão da execução da pena, por
exemplo) de que poderia beneficiar se não se verificassem essas condições adversas (se
estivesse empregado ou tivesse apoio familiar ou residisse num bairro de classe média).
Estamos perante condições alheias à vontade do arguido (não perante antecedentes criminais,
que indiscutivelmente relevam negativamente na escolha da pena a aplicar como sinal da
dificuldade do objetivo de reinserção social do arguido). Fazer dessas condições motivo para
um tratamento mais desfavorável do arguido representa uma perversão dos objetivos
solidaristas das teses que acentuam as exigências da prevenção especial positiva. E conduz a
resultados manifestamente contrários ao princípio da igualdade. Na linha das críticas da
corrente do “justo merecimento” (“jsut deserts”) às teses que dão predomínio aos objetivos
da reinserção social do agente, podemos aqui identificar efeitos (perversos) da desvalorização,
em prol de objetivos utilitários, de critérios éticos objetivos de igualdade e proporcionalidade.
O Código Penal Português e os fins das penas

É chegado o momento de nos determos na análise do regime legal vigente em Portugal


a respeito dos fins das penas e da doutrina que, a partir desse regime, mais tem influenciado a
jurisprudência.

Para tal, há que partir da análise do artigo 40º do Código Penal, resultante da revisão
deste diploma operada em 1995 e que tem por epígrafe, precisamente, “Finalidades das penas
e das medidas de segurança”. É este o teor dos dois primeiros números deste artigo:

«1- A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos


e a reintegração do agente na sociedade.

2 – Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.»

Na referência deste nº 1 à proteção de bens jurídicos, descortinam a doutrina mais


influente e a jurisprudência corrente uma alusão à finalidade de prevenção geral positiva: é
através do reforço da consciência comunitária a respeita da validade desses bens jurídicos que
se concretiza tal proteção.

Na referência à reintegração do agente na sociedade, identificamos a finalidade da


prevenção especial positiva.

O nº 2 consagra o princípio da culpa na sua dimensão unilateral de limite: não há pena


sem culpa, a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa.

Pode discutir-se, e tem sido discutida, a questão de saber se deste artigo decorre a
consagração de uma opção clara e acabada por uma teoria a respeito dos fins das penas.

Afirma-se na exposição de motivos do diploma que procedeu à revisão do Código


Penal em 1995 (Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março) e formulou a redação atual do citado
artigo 40º, a respeito deste: «Sem pretender invadir um domínio que à doutrina pertence – a
questão dogmática dos fins das penas -, não prescinde o legislador de oferecer aos tribunais
critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria,
sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena
pode ultrapassar a culpa.».

O legislador não pretende encerrar o assunto, como se à doutrina nada restasse para
discutir, no âmbito do quadro legal em vigor, a respeito desta tão profunda e recorrente
questão dos fins das penas. Mas, mesmo assim, algumas opções a esse respeito são tomadas,
para orientar, e também vincular, o aplicador da lei penal.
Sobre a extensão e alcance dessas opções e dessa vinculação, algumas divergências
subsistem, porém.

Poderá considerar-se que a questão não está encerrada por via legislativa, nem o
artigo 40º representa a “dogmatização” de uma qualquer teoria sobre os fins das penas. Mas,
de qualquer modo, este artigo fornece ao aplicador do direito critérios seguros para proceder
a essa determinação. Assim, do nº 2 desse artigo decorre a consagração inequívoca do
princípio da culpa, na sua vertente unilateral de limite. A pena supõe a culpa e não pode
ultrapassar a medida da culpa. Mas, por outro lado, porque deliberadamente se rejeita a
consagração do princípio bilateral da culpa (segundo o qual, não há culpa sem pena), não será
possível, à luz desse artigo, invocar considerações de culpa para recusar a aplicação de uma
pena de substituição, de uma pena não privativa de liberdade em substituição da pena de
prisão. Não é a gravidade do crime, na perspetiva da culpa, por si só, que impõe a aplicação de
uma pena de prisão efetiva, independentemente das exigências de prevenção, geral ou
especial, positiva ou negativa.

Jorge de Figueiredo Dias vai um pouco mais longe e entende que do teor do citado
artigo 40º decorrem quatro postulados básicos que devem orientar de forma vinculativa o
aplicador da lei jurídico-penal.

O primeiro desses postulados é o de que a pena tem finalidades exclusivamente


preventivas (de prevenção geral ou especial, positiva ou negativa) e nunca puramente
retributivas. É o que impõem os princípios, de base constitucional, da necessidade, da
intervenção mínima e da subsidiariedade do direito penal. O direito penal é a ultima ratio, um
último recurso quando outras formas de intervenção social e legislativa não são suficientes
para atingir objetivos de proteção da comunidade. Estatui o artigo 18º, nº 2, da Constituição
portuguesa que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos nesse mesmo diploma, devendo as restrições limitar-se ao necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente previstos. A pena
representa sempre uma restrição de direitos (à liberdade, à honra ou de propriedade). Esses
direitos só podem ser restringidos na estrita medida do que é exigido pelas necessidades de
funcionamento da sociedade e de livre desenvolvimento dos seus membros. São as finalidades
preventivas (não um simples imperativo ético categórico, a simples exigência ético-retributiva
de resposta e um mal) que representam, no que à repressão penal se refere, esse tipo de
necessidades de funcionamento da sociedade e de livre desenvolvimento dos seus membros.
Partindo deste postulado, um segundo postulado a ter em conta é o de que o ponto de
partida para a determinação da medida da pena são as exigências de prevenção geral positiva
ou de integração. Estas exigências representam as necessidades de tutela dos bens jurídico-
penais no caso concreto, de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na
manutenção da vigência da norma violada. As exigências de prevenção geral positiva
estabelecem uma moldura situada entre um limiar máximo, que coincide com o ponto ótimo
de tutela dos bens jurídicos, e um ponto mínimo, que coincide com as exigências mínimas de
defesa do ordenamento jurídico.

Este tipo de moldura não se confunde com uma moldura de culpa, como a que era
proposta, como ponto de partida de determinação da medida da pena, pela doutrina
portuguesa mais antiga (Manuel Cavaleiro de Ferreira e Eduardo Correia) - e é, hoje, proposta
por José Sousa Brito. Mas tal não significa que, na prática, os resultados a que se possa chegar,
por uma ou outra via, sejam muito diferentes. É que, no entendimento de Jorge de Figueiredo
Dias (tal como o de Anabela Miranda Rodrigues), a pena adequada à tutela da confiança e às
expectativas da comunidade na manutenção da ordem violada é, em regra, a pena adequada à
gravidade objetiva e subjetiva de um crime em concreto. É a aplicação dessa pena justa que a
comunidade espera e reclama e é essa aplicação que reforça a confiança da comunidade na
vigência da ordem jurídica e na validade dos bens jurídicos em questão. Não será assim em
situações em que essa mesma consciência comunitária tolera a não aplicação da pena
adequada à culpa, em nome de outras exigências e valores (como podem ser a necessidade de
evitar a desinserção social do agente, que aconselha a não aplicação de uma pena de prisão
efetiva, mesmo que esta fosse a mais adequada ao grau de culpa), sem que essa não aplicação
coloque em causa a defesa do ordenamento jurídico, abalando os seus alicerces ao criar
perplexidades nessa consciência comunitária a respeito da validade dos bens jurídicos em
questão e da vigência desse ordenamento31.

A partir deste ponto de partida, funcionam como ponto de chegada (é este o terceiro
dos postulados apontados por Jorge de Figueiredo Dias) as exigências de prevenção especial,
nomeadamente as de prevenção especial positiva ou de socialização.

Assim, em regra, a medida da pena há de corresponder às necessidades de socialização


do condenado. Em situações em que não se verifiquem necessidades de socialização
(designadamente, porque a conduta criminosa é ocasional), a pena terá uma função de
31
Como exemplo de uma situação em que está em causa o traçar da fronteira entre o que é, ou não, tolerável na
perspetiva da defesa do ordenamento jurídico assim concebida, e se, em consequência, será, ou não, aceitável uma
suspensão de execução da pena de prisão, pode ver-se o acórdão do S.T.J. de 17 de maio de 2000 (in B.M.J. nº 467,
pg. 150), relativo à prática de ofensas à integridade física graves numa escola .
simples advertência e deverá aproximar-se do limite mínimo da moldura dada pela prevenção
geral positiva, coincidente, como vimos, com o limiar mínimo de defesa do ordenamento
jurídico.

Excecionalmente, no caso de delinquentes “incorrigíveis”, em que é improvável o


sucesso de qualquer tentativa de socialização, ficam em aberto as possibilidades de a pena ter
por finalidade primordial a de prevenção especial negativa, de “inocuização” ou de proteção
social contra a perigosidade do agente.

Como quarto postulado, está assente o princípio, claramente consagrado no nº 2 do


artigo 40º do Código Penal, de que a culpa é o limite inultrapassável da pena. Não há pena sem
culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa. A culpa é
condição necessária, embora não suficiente, da aplicação da pena (princípio unilateral, e não
bilateral, da culpa)32.

Não muito distante desta tese de Jorge de Figueiredo Dias, situa-se a de Américo Taipa
de Carvalho, para quem a medida da pena deve ser dada pelas exigências concretas de
prevenção especial positiva dentro de um quadro delimitado, no seu limite máximo, pela
medida da culpa (a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa) e, no seu limite
mínimo, pelas exigências da prevenção geral positiva, de defesa do ordenamento jurídico
encarada na perspetiva da prevenção geral positiva.

É dentro destes parâmetros, em particular os que são indicados por Jorge de


Figueiredo Dias, que se tem movido a jurisprudência. (nem sempre com a recomendável
profundidade no plano da fundamentação – há que reconhecê-lo).

Aos formandos auditores de justiça alerta-se para a necessidade de considerar o


sentido maioritário da jurisprudência na elaboração de sentenças, que não serão certamente a
sede mais adequada para discorrer sobre teorias dos fins das penas ponde em causa a posição
dominante.

Em todo o caso, e porque estamos noutra sede, permito-me ir para além desta posição
dominante e abrir os horizontes a outros modos de pensar, que também se têm manifestado
na doutrina portuguesa.

Mesmo dentro dos parâmetros do Código Penal vigente e do citado artigo 40º, há
quem considere que a pena é não apenas o pressuposto e limite da pena, mas também o seu

32
Em sentido próximo, no que se refere a estes critérios de determinação da medida da pena,
pronuncia-se Anabela Miranda Rodrigues in «O Modelo…», cit., págs. 177 e seguintes.
fundamento. É o que defendem José de Sousa Brito e José de Faria Costa. Para este autor, a
culpa é não apenas limite, mas fundamento da pena, pois só com base num juízo de culpa
pode encontrar legitimidade a pena enquanto intervenção estadual na esfera pessoalíssima do
delinquente. E daqui não decorre necessariamente que a pena deva ser aplicada sempre que
se formula um juízo de culpa (o princípio bilateral da culpa). O facto de a pena não ser
necessariamente aplicada quando se impõe um juízo de culpa (como se verifica em caso de
dispensa de pena, prevista no artigo 74º do Código Penal para situações de comprovada
prática de crimes) não invalida que a culpa seja o fundamento da pena sempre que esta é
aplicada. Os princípios da necessidade, da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito
penal impõem que se puna só na estrita medida da necessidade de proteção de bens jurídicos,
mas tal não invalida que, para intervir na esfera jurídica pessoal dos agentes, o direito penal
careça de uma base ética que vai para além do simples interesse social ou da sobreposição
deste aos direitos individuais. Esse fundamento há de assentar no princípio da culpa. Distinguir
o direito penal da ética, e conceber o direito penal como ultima ratio, não significa prescindir
de um sólido fundamento ético, não puramente utilitário, de qualquer intervenção penal.

Nesta linha, merece toda atenção a obra recentemente publicada de A. Lourenço


Martins Medida da Pena – Finalidades- Escolha – Abordagem Crítica de Doutrina e
Jurisprudência (Coimbra Editora, 2011), onde, em síntese, se sustenta o seguinte:

Na culpabilidade do agente reside o fundamento e o limite do direito de punir do


Estado, vinculado à censura ética do próprio e da comunidade, sobre a conduta que é a sua e
pela qual haverá que responder. A ideia de retribuição (ou “pena merecida”), no sentido de
censura, de reprovabilidade, tem cabimento porque o sujeito podia ter-se guiado pelo Direito
e podendo fazê-lo, não o fez. O Direito Penal não pode ficar-se pela superficialidade,
esquecendo o âmago de cada ser humano, onde reside a sua liberdade e responsabilidade.
Nesta ótica, a medida da pena não poderá deixar de ancorar-se na medida da culpa. É
impossível obedecer à proibição de a pena ultrapassar a medida da culpa sem medir a pena
pela culpa. E medir a pena pela culpa constitui o conteúdo essencial da ideia de retribuição.

Encontrar a “justa retribuição”, a “pena merecida” constitui a finalidade primeira da


sanção, embora logo seguida das finalidades preventivas, especial e geral. O julgador esforçar-
se-á por conseguir a concordância prática das três finalidades. Não sendo possível obter tal
concordância prática, a prevalência de uma ou outra das modalidades da prevenção, dentro
dos limites da culpa, dependerá do que se mostrar mais adequado a conseguir o êxito do
sistema penal no seu conjunto, no qual a pacificação social e a contenção da criminalidade, em
limites razoáveis, são objetivos essenciais, dentro dos critérios de Justiça. E aceita-se que, por
razões de reinserção ou reintegração social do delinquente, a pena possa ficar aquém do limite
mínimo de culpabilidade, salvaguardando que tal posição não se mostre desconforme ao
senso comum e não potencie a personalidade defeituosa que o infrator tenha revelado nos
factos.

Esta visão não seria incompatível com o direito constituído. O artigo 18º, nº 2, da
Constituição contém um limite à restrição de direitos, não um critério de fundamentação da
responsabilidade penal. O enfoque do artigo 71º do Código Penal é bem expresso no sentido
de que a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da
culpa do agente e das exigências de prevenção. Do artigo 40º, nº 1, do Código Penal não
resulta que tenha de ser afastado um “modelo de culpa” e retribuição que se preconiza como
integrador dos diversos fins das penas.

As considerações que teci inicialmente sobre a fundamentação da punição levam-me a


aproximar-me desta tese, contrária ao sentido prevalente da jurisprudência atual.

Mas, apesar das notórias diferenças de pressupostos, talvez não sejam muito
diferentes os resultados a que se pode chegar ainda que partindo desses diferentes
pressupostos.

O princípio da culpa

Para além das divergências, num ponto há unanimidade doutrinal e perfeita


clarificação constitucional e legislativa: a culpa é um limite inultrapassável da pena. Estamos,
como venho repetindo, perante um corolário do princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana. Este princípio tem notórias implicações no tratamento de casos frequentes
que preenchem o quotidiano dos tribunais e em que particulares exigências de prevenção
geral (originadas pela dimensão que atinge a prática desses crimes e pela necessidade de
combater essa prática) se fazem sentir com especial acuidade e encontram eco na opinião
pública, sem que, de qualquer modo, tais exigências se possam sobrepor ao princípio da culpa.

Alguns exemplos podem ajudar a compreender o alcance deste princípio: podemos


pensar em crime de incêndio praticados (o que não é raro) por agentes de imputabilidade
diminuída; crimes de tráfico de estupefacientes praticados por agentes consumidores para
satisfazer as suas necessidades de consumo ou por agentes que ocupam na “cadeia” da
atividade um lugar de pequena relevância mas mais facilmente detetável; crimes de furto
praticados por toxicodependentes para satisfazer as suas exigências de consumo,
considerando que as sua faculdades volitivas estão, devido a essa dependência, limitadas (não
excluídas, porém)33; crimes praticados em estado de embriaguez, também num estado de
limitação das faculdades intelectuais e volitivas do agente; ou crimes rodoviários de
consequências graves quando o grau de negligência (de culpa, portanto) não tem uma
gravidade proporcional a essas consequências (pode haver colisão de culpas, ou concorrência
de culpa da própria vítima, por exemplo) 34. Em todos estes exemplos, de uma ou de outra
forma, entram em conflito, por um lado, exigências de prevenção geral ou especial
(naturalmente a considerar) que apontariam para uma maior severidade da pena e, por outro
lado, um juízo de culpa atenuado que apontaria para uma menor severidade da pena. Neste
conflito, a prevalência há de ser dada a esse juízo de culpa, porque, como vimos, em caso
algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa. O princípio da dignidade da
pessoa humana, e o princípio da culpa impedem que o agente sirva de instrumento, numa
lógica de bode expiatório, para intimidar e combater a criminalidade através de penas
exemplares e desproporcionais em relação à sua culpa em concreto, como se ele tivesse de
“pagar” não só pelo que fez, mas também pelo que muitos outros impunemente fizeram e
fazem.

A. Lourenço Martins questiona se para chegar a estes resultados não será necessário
considerar a pena não apenas limite, mas também medida da pena. Não estaríamos, pois,
perante um simples “jogo de palavras” sem consequências práticas. A mim, parece-me que
podermos chegar a estes resultados quer se considere que a medida da culpa se deve traduzir
na medida da pena, quer se considere que a medida da culpa é limite da medida da pena. Que
a culpa seja limite da medida da pena não significa apenas que não há pena sem culpa (nulla
poena sine culpa), mas também que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da
culpa.

Sobre o princípio da culpa, parece oportuna ainda a consideração seguinte.

33
Entendo, pois, que a toxicodependência há de considerar-se circunstância atenuante, e não agravante
(sobre a questão, pode ver-se a aprofundada análise jurisprudencial de A. Lourenço Martins in op. cit.,
páginas. 259 a 292).
34
Aos formandos auditores de justiça costumavam-se a salientar as virtualidades da pena de prestação
de trabalho a favor da comunidade no caso de condenações por crimes rodoviários de consequências
graves (vg. homicídio), por ser uma pena mais adequada ao grau de culpa e às exigências de prevenção
geral e de prevenção especial positiva do que a pena de prisão efetiva (esta eventualmente
desproporcional à culpa e desadequada às exigências da prevenção especial positiva, embora
eventualmente adequada à exigências de prevenção geral) e do que a pena de prisão suspensa na sua
execução sem imposição de deveres (esta eventualmente desadequada às exigências da prevenção
geral). Uma aprofundada análise jurisprudencial da penologia relativa a este género de criminalidade
rodoviária, pode ver-se em A. Lourenço Martins, op. cit., pgs. 341 a 353)
O juízo de culpa há de referir-se ao crime em concreto, não à personalidade do agente.
O agente deverá ser punido pelo que fez, não pelo que é como pessoa, ou aquilo em que se
tornou por sua culpa. É de rejeitar a conceção da culpa na formação da personalidade ou da
culpa na condução da vida. O facto criminoso não é um simples pretexto para formular um
juízo sobre o carácter ou a personalidade do agente. Considerar o contrário exigiria do juiz, em
rigor, um esforço de indagação sobre a biografia do agente, sobre a génese (mais ou menos
influenciada pelo seu contexto familiar e social, ou mais ou menos adquirida e imputável às
suas opções e à sua culpa), da sua propensão para a prática do crime. Um esforço
eventualmente inglório que ultrapassa os limites do conhecimento judiciário. E, sobretudo,
que entra em domínios de conhecimento pessoal e intimidade incompatíveis com a separação
entre o direito e a moral, entre o juízo jurídico de factos e o juízo moral de personalidades.

É a esta luz que deve interpretar-se a referência, como circunstância a considerar na


determinação da medida concreta da pena, da alínea f) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal
à «falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa
falta deva ser censurada através da aplicação da pena». O que pode relevar é a «falta de
preparação para manter uma conduta lícita” que se manifesta “no facto”, não essa falta de
preparação em si mesma, o que a facto pode revelar da personalidade do agente, não a
personalidade deste em si mesma.

Esta visão não deixa de ter reflexos práticos importantes em questões que dominam o
nosso quotidiano judiciário. Dou alguns exemplos.

A respeito dos crimes praticados por toxicodependentes, poderia considerar-se a


toxicodependência uma circunstância agravante na base de uma conceção de “culpa na
formação da personalidade”: a própria toxicodependência seria devida à culpa do agente Deve
rejeitar-se esta visão, pois exigiria do juiz um esforço de indagação sobre todo o percurso
biográfico e a génese da toxicodependência do agente incompatível com as limitações do
conhecimento judiciário distinção entre um juízo jurídico de factos e um juízo moral de
personalidades. Também por este motivo, deve considerar-se a toxicodependência uma
circunstância que pode atenuar a culpa referida ao crime em concreto.

O relevo que deve ser dado aos antecedentes criminais há de depender deste
pressuposto: os antecedentes criminais relevam não tanto como elementos de um juízo de
culpa sobre a personalidade independente do crime em concreto, mas como elementos que
tornam mais grave esse crime em concreto, pois a sua prática traduz o desrespeito da
advertência que representaram as condenações anteriores. Isto significa que a agravação
decorrente dos antecedentes criminais há de estar sempre limitada pela gravidade do crime
em concreto. Por muito graves que sejam os antecedentes criminais em causa, a agravação da
pena correspondente a um crime de pequena gravidade objetiva há de estar sempre limitada
por uma relação de proporcionalidade com esta pequena gravidade 3536.

Uma última questão diz respeito ao relevo de fatores de apreciação da personalidade


na escolha da pena e na determinação da respetiva medida.

É frequente atender a fatores como a confissão e o arrependimento, ou ausência


desse arrependimento (ou insensibilidade diante da gravidade e consequências do crime), na
escolha da pena e na determinação da respetiva medida. Tais circunstâncias dizem respeito à
personalidade do agente, e não ao facto criminoso em si (não se trata de apreciar os
sentimentos manifestados na prática desse facto, mas os sentimentos manifestados
posteriormente e na própria audiência, como reflexo da personalidade).

Não se questiona, obviamente, a legitimidade da consideração da confissão e do


arrependimento como circunstâncias que podem levar a optar por uma pena mais benévola,
ou a fixar uma medida da pena mais benévola. Mas o relevo dessas circunstâncias não decorre
de um juízo sobre a personalidade. Decorre da inexistência, ou do menor relevo, de exigências
de prevenção especial, negativa (inexistência de perigo de continuação da atividade criminosa)
ou positiva (inexistência de necessidades de socialização). A confissão e o arrependimento são
sintomas da inexistência, ou do menor relevo, dessas exigências. Mas já me parece difícil de
aceitar que a ausência de confissão e de arrependimento sejam circunstâncias que possam
agravar a escolha e a determinação da medida da pena. Por um lado, porque se o arguido não
é obrigado a prestar declarações e o seu silêncio não pode desfavorecê-lo, também não pode
dizer-se que a ausência de confissão e de arrependimento (preste ou não declarações) o
podem desfavorecer37. Mas sobretudo porque o relevo dessas circunstâncias traduzirá um
juízo negativo sobre a personalidade que, pelas razões que indiquei, sai fora do âmbito de
legitimidade da atividade judicial.

35
É exemplar, a este respeito, o caso (já acima referido) decidido no acórdão da Relação de Coimbra de
17/1/1996 (in C.J., 1996, I, pg. 38) de um furto de pequena gravidade praticado por um agente com
antecedentes criminais de gravidade acentuada.

36
O mesmo raciocínio se aplicará a um juízo de perigosidade do agente. O perigo de continuação da
atividade criminosa que inequivocamente representa a toxicodependência do agente não permite a
condenação numa pena desproporcional em relação à culpa referida ao crime em concreto. Se este é de
pequena gravidade, a pena há de refletir esta pequena gravidade, por muito elevado que seja o perigo
de continuação da atividade criminosa e as exigências de prevenção especial negativa.
37
Em sentido contrário a este pronuncia-se A. Lourenço Martins.
Dir-se-á que não é diferente afirmar que o arguido não beneficia das circunstâncias
atenuantes da confissão e do arrependimento (o que será sempre possível afirmar) ou afirmar
que agrava a sua responsabilidade a ausência dessa confissão e desse arrependimento (o que
me parece de rejeitar, pelas razões que indiquei). Penso, porém, que é diferente, e tem
consequências diferentes, não fazer operar uma circunstância atenuante e fazer operar uma
circunstância agravante.

Raciocínio análogo poderá fazer-se a respeito do comportamento do arguido em


âmbitos socialmente relevante, mas sem relevo criminal. Pode dar-se relevo ao seu bom
comportamento, como circunstância atenuante, enquanto sintomas da inexistência de
exigências de prevenção especial. Não pode dar-se relevo ao seu mau comportamento, como
circunstância agravante a considerar num juízo sobre a sua personalidade.

4. Fins das penas e princípios constitucionais do Direito Penal

Nenhuma das teorias dos fins das penas consegue dar uma resposta satisfatória ao
problema da legitimidade da pena. Facto é que as teorias filosóficas e jurídicas sobre os fins
das penas tratam de um problema mal colocado: o dos fins “ideais” das penas.

A esses fins ideais contrapõe-se, porém, a amarga necessidade de punir, devendo toda a
discussão sobre os fins das penas estar condicionada pelo seu conteúdo histórico e pela sua
função social. Assim, o ponto de partida nesta discussão não é o idealismo das penas, mas
antes a sua realidade: aquilo que é, e não aquilo que deveria idealmente ser.

Não terá cabimento, consequentemente, proclamar que a pena não deve ser retributiva
quando a primeira necessidade humana que a pena pública satisfaz é a da substituição
psicológica – e física - da vingança privada. O problema fundamental será, então, o de saber se
a pena poderá cumprir aquele destino racionalmente e de forma juridicamente aceitável e ser
instrumento de efeitos sociais úteis.

Quando se fala em racionalidade da pena, não se pretende o apelo a uma pura


racionalidade dos fins – que nunca permitiria a opção pela retribuição, pelas razões
supramencionadas, mas a uma racionalidade ditada pelas razões da organização social. É por
isso que se conclui que há uma ligação imprescindível entre a reflexão sobre os fins das penas
e as teorias sobre o fundamento e legitimidade do Estado.
Esta ligação tem sido estabelecida através da doutrina contratualista, desde os teóricos do
jus-naturalismo, e expressou-se na ideia iluminista da necessidade da pena – note-se que, até
mais tarde, tanto Beccaria (representante do Iluminismo Penal, cujas obras são consideradas
as bases do Direito Penal moderno – século XVIII) como Feuerbach (século XIX), proclamaram
como premissa fundamental de todo o pensamento sobre a pena, a ideia de que “só a pena
necessária é legítima”. A legitimidade era, para os autores que tomaram como referencia o
contrato social, referida à necessidade, na perspetiva da proteção da liberdade de cada
cidadão – relembre-se que esta era a base racional do contrato social: a liberdade.

A existência da comunidade social tem, porém, uma sedimentação mais profunda do que a
lógica contratualista supõe. As necessidades que justificam a comunidade estatal não se
reduzem à liberdade de cada um e não são livre e renovadamente discutíveis por cada
indivíduo, sempre a todo o tempo, dependendo antes de consensos temporários ou de
maiorias contingentes.

Recorde-se que o contratualismo apela ao mito de um estado original – mito este que é
somente um argumento racional e não um facto histórico -, anterior à formação do Estado,
permanentemente invocável, abafando a integração dos indivíduos na comunidade como
facto histórico e o reconhecimento de que a máxima realização individual pode ser realização
de fins coletivos pelo indivíduo.

Mesmo a ideia da máxima realização individual como fim social não está vinculada a uma
lógica contratualista. Ela é tão só o produto da história que gerou comunidades igualitárias e
democráticas que prezam a sua identidade e os seus valores. As razões da organização social
são, assim, ideias culturais em que se baseia a comunidade social – estas ideias são o cimento
da validade do sistema jurídico e adquirem a sua expressão formal na Constituição.

A substituição psicológica da vingança privada que a pena assegura enquanto retribuição


racionaliza-se através de dois princípios constitucionais:

 Princípio da culpa (artigo 1º CRP);


 Princípio da necessidade da pena (artigo 18º/2 da CRP).

A verdade é que a retribuição se justifica racionalmente, por basear a pena no significado


ético-jurídico do facto praticado. Porém, a retribuição excederá a legitimidade do jus puniendi
do Estado quando prosseguir como um fim em si a expiação moral do delinquente,
ultrapassando a medida necessária para a reafirmação do Direito.

Neste sentido, a retribuição ancora-se na necessidade social em dois planos:


 Ao nível do controlo das emoções geradas pelo crime – pacificação social
 Ao nível da proteção perante o delinquente.

A pena retributiva só é, desta forma, legítima, se for necessária preventivamente – quer a


nível geral, quer a nível especial.

Por outro lado, quer a prevenção geral, quer a prevenção especial, só se legitimam, como
fins das penas, através da culpa. Também a culpa funciona como fundamento ou, pelo menos,
como alguns autores defendem, limite da pena preventiva.

Assim, tanto a retribuição como a prevenção se articulam obrigatoriamente com os


princípios constitucionais (da culpa e da necessidade da pena, nomeadamente), acabando por
conduzir a soluções práticas frequentemente coincidentes. Essa articulação permite, porém,
diferentes soluções de política criminal – que serão adiante analisados quer em teoria, quer
em faco do Código Penal e da Constituição, quanto aos critérios e limites das penas.

Como ficou dito, o problema dos fins das penas deve ser colocado como problema do
fundamento da legitimidade das penas estatais em face da legitimidade do poder punitivo do
Estado e não como mera escolha de modelos ideologicamente suportados ou puros modelos
normativos assentes em construções ferais sobre os fins dos seres humanos.

Numa outra perspetiva, porém, tem havido uma deslocação do problema dos fins das
penas para uma discussão sobre modelos de política criminal em termos sobretudo
pragmáticos. Esta discussão vale por si mesma, mas saber qual é a sua importância para o
problema do conceito material de crime é o que se pretende, no fundo, obter.

5. As antinomias entre os fins das penas e os modelos de política criminal


5.1.Os vários modelos de política criminal: uma introdução. A crença e a descrença.

À controvérsia clássica entre as teorias dos fins das penas sucedeu, mais recentemente, o
confronto entre os modelos de política criminal.

A política criminal, na definição de Kaiser, é o conjunto das soluções normativas


puramente estratégicas que tendem a uma otimização do controlo do crime.

Ora, são estes conjuntos de soluções que, na sua globalidade, se confrontam trazendo os
princípios diretores do Direito Penal e os conteúdos das normas penais para o centro de uma
discussão que, outrora, foi desenvolvida pelas teorias sobre os fins das penas.
A pena desapareceu como premissa do controlo do crime e a discussão sobre os seus fins
legítimos foi relativizada, por se reconhecer que a sua aplicação é absolutamente necessária.

A política criminal não é, porém, uma descoberta contemporânea, podendo já traçar-se


uma história dos seus modelos com a apresentada, entre nós, por Figueiredo Dias – começa
por apresentar um modelo fundamentalmente retributivo, que designa de “azul”, em que a
política criminal se ocultava sob a linguagem ética – esta conceção, assente numa conceção
metafísica da pena, foi contestada por ser inadequada aos fins legítimos da intervenção penal -
, tendo proposto depois um modelo preventivo-especial, o “modelo vermelho”- que também
se viu frustrado, na medida em que era simultaneamente inoperante e atentatório da
dignidade da pessoa humana -, sucedendo a estes dois modelos a própria crise, descrença e
desorganização dos modelos de política criminal38. Assim, Figueiredo Dias assoma ainda o
“modelo verde”, que organiza o controlo do crime a partir de uma teia de princípios
constitucionais (legalidade, culpa, necessidade da pena) e de uma estratégia
descriminalização, desjudicialização, socialização e diversificação (substituição da pena de
prisão por sanções alternativas).

Estes modelos são apenas tendências. No plano prático da política criminal real têm ainda
surgido, desde os finais do século XX, modelos de pura incapacitação (actuarial justice) do
delinquente, preocupados exclusivamente com técnicas de classificação, identificação e
controle de grupos de pessoas perigosas, como a chamada perspetiva das broken Windows, ou
as tendências para a privatização de instituições penais, que afastam claramente a política
criminal de princípios ético-jurídicos.

38
Dias, J. Figueiredo, Direito Penal Português – Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do crime, págs.
56 e seguintes.
Broken Windows theory

Esta é uma teoria norte-americana e assenta na seguinte premissa: Consider a building with a few
broken windows. If the windows are not repaired, the tendency is for vandals to break a few more windows.
Eventually, they may even break into the building, and if it's unoccupied, perhaps become squatters or light fires
inside.Or consider a pavement. Some litter accumulates. Soon, more litter accumulates. Eventually, people
even start leaving bags of refuse from take-out restaurants there or even break into cars.

Há alguns anos, a Universidade de Stanford (EUA), realizou uma interessante experiência de


psicologia social. Deixou dois carros idênticos, da mesma marca, modelo e cor, abandonados na rua. Um em
Bronx, zona pobre e conflituosa de Nova York e o outro em Palo Alto, zona rica e tranquila da Califórnia. Dois
carros idênticos abandonados, dois bairros com populações muito diferentes e uma equipa de especialistas em
psicologia social estudando as condutas das pessoas em cada local. Resultado: o carro abandonado em Bronx
começou a ser vandalizado em poucas horas. As rodas foram roubadas, depois o motor, os espelhos, o rádio,
etc. Levaram tudo o que fosse aproveitável e aquilo que não puderam levar, destruíram. Contrariamente, o
Broken Windows e a política de tolerância zero

Há três décadas, a criminalidade em várias áreas e cidades dos EUA – com Nova York no topo da lista -
atingia níveis alarmantes, preocupando a população e as autoridades americanas, principalmente os
responsáveis pela segurança pública. Nesta linha, foi implementada uma Política Criminal de Tolerância Zero,
que seguia os fundamentos da "Teoria das Janelas Partidas". As autoridades entendiam que, por exemplo, se os
parques e outros espaços públicos deteriorados forem progressivamente abandonados pela administração
pública e pela maioria dos moradores, esses mesmos espaços seriam progressivamente ocupados por
delinquentes.

A Teoria das Janelas Partidas foi então aplicada pela primeira vez em meados da década de 80 no
metro de Nova York, que se havia convertido no ponto mais perigoso da cidade. Começou-se por combater as
pequenas transgressões: lixo no chão das estações, alcoolismo entre o público, evasões ao pagamento da
passagem, pequenos roubos e desordens. Os resultados positivos foram rápidos e evidentes. Começando pelo
pequeno conseguiu-se fazer do metro um lugar seguro.

Posteriormente, em 1994, Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York, baseado na Teoria das Janelas
Partidas e na experiência do metro, deu impulso a uma política mais abrangente de "tolerância zero". A
estratégia consistiu em criar comunidades limpas e ordenadas, não permitindo transgressões à lei e às normas
de civilidade e convivência urbana. O resultado na prática foi uma enorme redução de todos os índices criminais
da cidade de Nova York.

A expressão "tolerância zero" soa, a priori, como uma espécie de solução autoritária e repressiva. Se
for aplicada de modo unilateral, pode facilmente ser usada como instrumento opressor pela autoridade
fascista, tal como um ditador ou uma força policial dura. Mas os seus defensores afirmam que o seu conceito
principal é muito mais a prevenção e a promoção de condições sociais de segurança. Não se trata de punir com
grande violência o pequeno delinquente, mas sim de impedir a eclosão de processos criminais incontroláveis. O
método preconiza claramente que aos abusos de autoridade da polícia e dos governantes também se deve
aplicar a tolerância zero. Ela não pode, em absoluto, restringir-se à massa popular. Não se trata, é preciso frisar,
de tolerância zero em relação à pessoa que comete o delito, mas tolerância zero em relação ao próprio delito.
Trata-se de criar comunidades limpas, ordenadas, respeitosas da lei e dos códigos básicos da convivência social
humana.

A tolerância zero e sua base filosófica, a Teoria das Janelas Quebradas, colocou Nova York na lista das
metrópoles mundiais mais seguras.

Porém, é de salientar que os modelos de política criminal suprarreferidos em primeiro


lugar têm relações antinómicas entre si, na medida em que as soluções que propugnam são,
em certos casos, necessariamente contraditórias. A ideia central a partir da qual se constroem
permitem, todavia, que os diversos fins das penas sirvam a lógica uns dos outros: a retribuição,
por exemplo, pode ser um meio de prevenção geral, pois a adequação da gravidade da pena à
do ilícito permitirá estabilizar as expetativas sociais de justiça e eficácia do sistema penal. Em
todo o caso, porém, não haverá uma harmonia absoluta entre as soluções dos modelos, pois
nem sempre a pena retributiva é justificada pela prevenção e nem sempre a pena preventiva é
justificada pela retribuição.

As antinomias entre os fins das penas permanecem, assim, nos modelos político criminais.
A própria emergência de um novo paradigma não supera por completo a discussão tradicional
sobre os fins das penas. Mesmo que o novo paradigma resulte de uma articulação harmoniosa
dos princípios constitucionais de Direito Penal, como a culpa e a necessidade da pena, não
deixa de existir discussão intra-sistemática, isto porque a discussão sobre a política criminal
não desemboca numa só direção, numa só alternativa, num só programa.

Ao modelo verde, fortemente apoiado na prevenção geral positiva, opõe-se a própria


renúncia à política criminal ou a politica criminal baseada na incapacitação e justificada por
uma lógica securitária e economicista.

O seio da discussão caracteriza-se atualmente por uma contraposição fundamental entre o


sim e o não à política criminal.

 Contra a política criminal como conjunto de estratégias de controlo do crime, que


tornam funcional o próprio Direito Penal, pronunciam-se aqueles que rejeitam
quaisquer soluções distintas da resposta ao crime pela pena da culpa 39, quer em nome
da ética e da dignidade da pessoa humana, quer em nome de um modelo realista e
operativo da própria prevenção geral.
 O sim à política criminal resulta da aceitação de modelos incapacitantes a que se
aludiu e que tiveram em certos casos efeitos na redução da criminalidade.

Também o modelo verde e a ideia de que só este conseguirá realizar os princípios


constitucionais da culpa e da necessidade da pena e assegurar a racionalidade do poder
punitivo do Estado democrático e social de direito torna-se discutível:

 A este único paradigma emergente deve opor-se a desconstrução dos velhos modelos
à luz do estado atual da discussão – isto é, a compreensão destes velhos modelos com
os novos instrumentos científicos de que dispomos atualmente
 Por outro lado, a própria emergência de um novo paradigma só se verifica no
confronto com a descrença global na política criminal, como já se referiu.

39
Na perspetiva dos neo-retribucionistas como Eusebi e Figueiredo Dias. O retorno à pena da culpa foi defendido na
Suécia pelo Conselho de Prevenção. A proposta do Conselho sueco foi a de um restabelecimento da relação entre
pena e crime. Entre outras razoes, fundamentou-se a proposta por não ser possível formular um prognóstico seguro
relativamente ao perigo que o individuo representa para a sociedade. O parecer do referido Conselho defendia
ainda que a ressocialização nunca seja imposta, mas apenas proposta ao delinquente.
5.2.O modelo verde

Este modelo baseia-se, como já foi antecipado, em premissas que exigem discussão.

Desde logo, a prevenção geral de integração utiliza, ao que parece, a função psicanalítica
da pena – a representação de estabilidade e segurança que ela gera -, função meramente
simbólica, como fundamento da pena, na perspetiva agora “objetivista” da necessidade.
Porém, a própria função psicanalítica da pena poderia justificar, através de uma abordagem
científica da mesma natureza (psicanalítica), a rejeição pura e simples do plano tradicional da
necessidade da pena. Onde a necessidade resultar somente da procura de uma terapia
simbólica contra a insegurança gerada pelo crime, a pena surgirá como resposta a várias
carências que, eticamente, não devem ser satisfeitas por esse meio (terapia simbólica).

Mesmo que se rejeite, como FD, uma fundamentação psicológica da prevenção geral de
integração, opondo-se-lhe a ideia de que “as expetativas geradas pelo crime não devem ser
praticamente conexionadas com o clamor (discurso feito normalmente aos gritos) social da
pena, mas normativamente implicadas com a incolumidade da crença social na validade e na
vigência da norma violada” – as expetativas geradas pelo crime vs. aquilo que a sociedade
discursa sobre a pena não devem ser conexionadas na prática, mas antes, normativamente
protegidas pela crença social na validade e na vigência da norma violada -, nada nos diz que a
representação dessa mesma incolumidade (circunstância em que se está segurado e/ou
salvaguardado; proteção; segurança) exige somente o funcionamento célere e eficaz da justiça
penal e não a dureza do castigo exemplar. Esta “incolumidade da crença” também resulta, com
toda a certeza, da prevenção de uma representação psicológica, que fundamentará a
intervenção penal.

O que é essencialmente criticável é que a privação da liberdade, embora confinada aos


limites da culpa, se justifique pela manutenção de uma crença. A prevenção geral só será
critério racional de definição dos fins das penas se se basear num efeito objetivo constatável,
que possa de alguma forma ser medido – a tradicional intimidação -, mesmo que ele seja
alcançado pelos mecanismos psicanalíticos da crença na validade da norma violada.

Na realidade, a prevenção geral positiva ou de integração, quando parece trilhar (seguir o


caminho) os caminhos da renuncia à investigação empírica e à análise do efeito dissuasor das
espécies particulares das penas, é um discurso evasivo (que se procura esquivar de respostas
diretas, que se esforça para iludir, utilizando-se de argumentos vagos ou pouco claros). A
prevenção geral positiva só pode corresponder a um meio de intimidação. E a possibilidade de
esta se operar nos diversos grupos de cidadãos é o único parâmetro objetivo e científico da
necessidade de punir. Um outro efeito abstrato, uma espécie de valor da coesão social, é algo
que terá de ser referido a efeitos concretos nos comportamentos sociais e em realidade
empiricamente constatáveis como, por exemplo, o grau de confiança na justiça penal e o seu
valor para as escolhas das pessoas.

5.3.A desjudicialização e a diversificação no modelo verde de Figueiredo Dias

As dúvidas que tais soluções suscitam são geradas pela duvidosa legitimidade de um
modelo anti-processual e pela substituição do poder dos juízes pelo poder dos grupos sociais.

Se o fracasso dos modelos de política criminal reintegradora a cargo de instituições


estatais desaguou na anulação organizada da pessoa do delinquente, a institucionalização do
poder dos grupos não promoverá, ainda em maior grau, tal anulação?

As expetativas de mediação penal já levadas a cabo sobretudo nos sistemas penais da


common law ainda necessitam de uma avaliação crítica, na medida em que, partindo da ideia
de uma superação de um conflito privado entre a vítima e o agente, tendem a utilizar
estratégias negociais que, por vezes, não se compatibilizam com a natureza estatal e pública
do Direito Penal.

5.4.Modelos garantistas, ressocializadores e de segurança cidadã

Proposta por José Luis Diez Rippoléz, numa perspetiva mais global e próxima do discurso
político.

Segundo este tipo de organização de modelos, é ainda a legitimação e os objetivos de


reconstrução social que justificam as diferentes propostas. Não será possível, assim, falar de
modelos de política criminal sem considerar a evolução dos modelos políticos de
fundamentação do Direito Penal.

À perspetiva liberal garantista e não intervencionista, sucedem a conceção de um Direito


Penal da sociedade de risco e, posteriormente, modelos de tipo securitário, orientados para
uma potenciação máxima do direito à segurança. Em alternativa, Rippoléz defende um modelo
que designa bienestarista, justificado por objetivos de inclusão e justiça social.
6. O estado atual dos modelos de política criminal em conexão com os modelos de
fundamentação do Direito Penal
6.1.O modelo liberal garantista

O modelo liberal-garantista é o ponto de partida para a compreensão do estado atual da


discussão sobre a fundamentação do Direito Penal.

Segundo este modelo, as restrições públicas da liberdade só podem ser justificadas pela
própria necessidade de garantir a liberdade. Há aqui uma lógica contratualista e universalista
quanto à rijeza dos interesses individuais. Neste sentido, a intervenção pública punitiva só
poderia ser justificada em função da proteção de direitos e interesses individuais, tornando-se
aceitável pelos próprios destinatários do direito penal.

Na verdade, a máxima kantiana de que o Direito é a suma essência da articulação do livre-


arbítrio de cada um com o dos outros segundo a lei geral de liberdade – isto é, o conjunto de
condições sob as quais o arbítrio de casa um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem
segundo uma lei universal de liberdade -, expõe bem a estrutura concetual deste modelo de
fundamentação. O Direito Penal e o Direito em si mesmo produzem liberdade mesmo quando
a restringe sancionatoriamente. Esta visão garantista pressupõe simultaneamente que o
interesse racional de cada pessoa é fundamentalmente idêntico ao das outras e que uma
comunidade é uma conjugação de vontades.

Concretiza-se em conceções individualistas de bem jurídico ou mesmo na predominância


da ofensa a direitos como objeto de proteção das normas penais, à maneira de Feuerbach. No
século XX, tem uma expressão significativa no pensamento de autores que acentuam a relação
entre bem jurídico e necessidades objetivas ou individuais como Hassemer.

A orientação deste modelo como um reduto, uma espécie de fortificação edificada dentro
de outra fortificação, invencível e inviolável, do Estado de Direito democrático, uma espécie de
modelo de defesa do mesmo Estado de Direito, tornou-o vulnerável devido à crescente
convicção, desde meados do século XX, de que o Direito Penal deveria ser um reforço das
várias políticas sociais do Estado, um braço direito do Estado nas suas dimensões económicas,
financeira, fiscal e ultimamente ambiental.

O tema dos desvios ao referido modelo tornou-se, assim, central no pensamento penal
contemporâneo.
6.2. O modelo expansionista

O modelo de fundamentação passa a referir-se, neste sentido, aos fins do Estado e aos
bens coletivos, à utilidade social e ao bem-estar geral.

Se no modelo garantista, a fundamentação pressupõe uma racionalidade universal, neste


ultimo modelo, a racionalidade é ditada pelo interesse geral, tanto numa visão democrática,
associada à perspetiva chamada por Dworkin de democracia estatística, como numa visão
autoritária de definição do interesse coletivo.

Segundo esta lógica, é posta em causa a universalidade (geral) dos bens jurídicos e o
Direito Penal é delimitado pelo interesse político e pela necessidade de utilização dos seus
instrumentos sancionatórios em cada momento histórico.

Em termos de fundamentação, é a amplitude de intervenção do Estado na sociedade que


delimita o Direito Penal, mas não há nenhuma razão fora desta estruturação do Estado e da
definição do interesse político que fundamente a legitimidade da intervenção expansionista
penal. Tudo é criminalizável, toda a política social é objeto possível do Direito Penal – não há
espaço livre de Direito Penal e da pena estatal e não há limites constitucionais para o âmbito
das normas incriminadoras.

Este modelo expansionista introduz alguns critérios de legitimação, procurando ancorar o


Direito Penal na pertença a uma comunidade e na responsabilidade coletiva. É um modelo
positivista, utilitarista, comunitarista, mas que, no entanto, serve diferentes intenções
políticas, dada a sua instrumentalidade social, isto é, a sua aptidão de servir de instrumento
interventor a vários níveis sociais.

6.3.Uma evolução do tipo securitário

Na trajetória desde desvio ao modelo liberal-garantista, introduz-se uma evolução de tipo


securitário:

 Primeiro, associada à ideia da sociedade de risco de Ulrich Beck.


 Depois, à ideia do direito penal do inimigo do Jacobs.

O Direito penal passa a ser um sistema de prevenção de danos sociais e de controle de


riscos em nome do valor da segurança e dos direitos dos cidadãos à mesma segurança.

A fundamentação pondera o peso do risco e do perigo para bens jurídicos em detrimento


– por vezes, dos direitos imediatos -, em sociedades que procuram a previsibilidade e a
segurança como bem e pretendem ancorar na própria Constituição (no referido direito à
segurança) essa vertente.

A segurança como valor objetivo e, por vezes, simbólico, passa a ser condição fundamental
da intervenção penal. Os crimes de perigo abstrato – em que não há sequer perigo efetivo
para os bens jurídicos – tornam-se o paradigma das normas incriminadoras.

Neste modelo integra-se, ainda, em parte, a nova realidade da prevenção contra o


terrorismo em que os tipos criminais são totalmente conformados a objetivos concretos de
controle policial da atividade de agentes perigosos como, por exemplo, a incriminação das
viagens para certos territórios para se juntar a uma organização terrorista – veja-se a Lei
52/2003 de 22 de agosto (artigos 4º/10, 11 e 12).

A perigosidade associada, nos tradicionais crimes de perigo, como os crimes de perigo


comum – 272º a 294º do CP – a ações potenciadoras de risco oriundas da sociedade
tecnológica, torna-se, no âmbito do terrorismo, a perigosidade dos próprios agentes e não
diretamente a das suas ações. Generaliza-se um direito penal da proteção antecipada de bens
jurídicos, que opera como apoio a medidas policiais ou em substituição de puras medidas de
segurança.

Esta nova expansão do Direito Penal surge associada à excecionalidade e à tendencial


substituição do sujeito (motivável) destinatário das normas penais por um mero objeto de
regulação concebido como fonte de perigo.

6.4.Abandono das políticas de reintegração social

O desvio do modelo garantista foi acompanhado pelo abandono das politicas de


reintegração social, por se ter criado a convicção de que não seriam suficientemente eficazes e
rentáveis.

Este crescente ceticismo, fomentado por razões economicistas, tem levado a substituir
políticas ressocializadoras por políticas incapacitantes baseadas em modelos securitários. Tais
modelos são, por vezes, baseados numa logica preventiva como acontecia na já referida linha
das broken Windows.

As políticas incapacitantes reduzem a política criminal à produção de alívio temporário da


comunidade relativamente à perigosidade dos agentes de crimes, inserindo a política criminal
geralmente numa lógica economicista.
6.5.Direito Penal da vítima

Esta alteração de modelos penais tem tipo, desde o século XX, uma dimensão muito
significativa com a recentração do Direito Penal na relação do agente e da sociedade com a
vítima, a qual passará a influencia decisivamente o se e o como da pena.

O protagonismo da vítima altera, em ultima análise, as dimensões lesivas relevantes do


bem jurídico, relativizando a importância do desvalor da ação do agente ou standardizando
(uniformizando, padronizando) os momentos subjetivos do crime. Se o dano da vítima é ponto
fundamental do sistema incriminador-positivo, então não só a chamada imputação objetiva –
isto é, a atribuição de um resultado ao comportamento do agente – se tende a bastar com a
criação do risco do mesmo, como também a imputação subjetiva – isto é, a qualificação
jurídica da direção subjetiva da vontade perante o facto -, tenderá a equiparar dolo e
negligencia. Também a culpabilidade, enquanto censurabilidade pessoal do agente, será
dissociada de momentos de capacidade concreta de ação e decisão.

Por outro lado, a decisão punitiva, em vez de se orientar pela resposta a dar à
censurabilidade do agente vai deslocar-se para a satisfação das necessidades psicológicas da
vítima.

7. O conceito material de crime no pensamento jurídico e o impacto das ciências sociais

O pensamento jurídico tem procurado definir materialmente o crime ou, noutros termos,
o ilícito criminal, diferentemente da Criminologia, que aceita uma definição genérica de crime
que abrange a violação de regras morais ou até, como explica Becker, acentua que nada define
o crime como uma categoria especifica de comportamentos, antes de alguém ser
estigmatizado num processo de interação social como delinquente – assim, para esta teoria
criminológica, primeiro encontra-se e delimita-se o delinquente e, somente a partir daí se
constrói o conceito de crime.

A divergência teórica que mais se repercute, ainda hoje, na análise estritamente jurídica
do conceito material de crime é a que se configurou a partir do século XIX, acerca do objeto de
infração criminal. As grandes alternativas que surgiram neste conceito foram a definição do
objeto da infração criminal como:

 Violação de certos direitos subjetivos (Feuerbach);


 Violação de determinados bens jurídicos (Birnbaum).

O confronto entre estas duas perspetivas revela uma diferença quanto à conceção da
legitimação do direito penal. Assim:

 No primeiro caso, trata-se da estrutura liberal-constitucionalista que somente justifica


a intervenção penal onde os direitos básicos que o contrato social visa assegurar foram
violados.
 Já no segundo caso, a referencia legitimadora é já uma estrutura estatal não liberal: a
comunidade (sociedade) e os seus valores.

Assim:

 A perspetiva de Feuerbach, liberal-constitucionalista, assenta na proteção da liberdade


individual  conceção subjetiva dos fins da organização da sociedade como instancia
legitimadora.
 Já a perspetiva apoiada no bem jurídico de Birnbaum define a infração criminal pela
lesão objetiva de valores da comunidade  conceção subjetiva dos fins da organização
da sociedade como instancia legitimadora.
 No entanto, nenhuma das teorias prescinde da referencia à organização da
sociedade como instancia legitimadora.

A infração criminal como violação de determinados bens jurídicos

Conceções objetivistas

Birnbaum

Defende que o Direito se vincula a elementos objetivos e, simultaneamente, a


elementos pré-positivos (direito natural) – apesar de acentuar a objetividade, nunca deixa de
procurar uma fundamentação da proteção jurídica que certos bens merecem nos fins do
Estado.

Binding

Conceção de puro positivismo legalista: reduz o bem jurídico aos valores ou condições
de vida da comunidade jurídica, tal como definidos pelo legislador.

--
Nota: foi, porém, a conceção de Birnbaum, transsistemática e normativista, que tornou mais
proveitoso o conceito de bem jurídico para a ciência do Direito Penal, abrindo portas a uma
avaliação crítica dos interesses protegidos pelas normais penais.

Von Liszt

Este autor, desenvolveu esta mesma perspetiva de Birnbaum, definindo o bem jurídico
como interesse humano vital, expressão das condições básicas da vida em comunidade. No seu
entendimento, o bem jurídico é um conceito legitimador do Direito Penal (e do Direito em
geral), descomprometido com a norma legal.

Para este autor, o conceito de bem jurídico tem ainda um conteúdo individualista
liberal. A esta perspetiva contrapor-se-á uma outra, baseada igualmente numa delimitação
objetivista do fundamento da infração criminal, a associa a bens ou valores supra individuais
(como se verá em seguida)

--

Na verdade, a consideração do bem jurídico pode permanecer no quadro de referencia


do modelo de Estado:

 Liberal.
 Conceção de Estado e de Direito supra individualista ou mesmo transpersonalista. Ora,
esta última conceção é representada pelo Estado hegeliano (relativo a Georg Friedrich
Hegel) e, mais recentemente, pelas ideologias totalitárias, considerando que os valores
da personalidade e do indivíduo estão necessariamente ao serviço de valores
coletivos. Assim, os bens jurídicos são protegidos pelo interesse que representam para
a comunidade – o conceito de bem jurídico em geral torna-se uma abstração sem
substancia, designando fins do Estado e não as coisas de que os indivíduos ou a
sociedade carecem. P.e.: a vida de cada um como bem é substituída pelo bem da
preservação da vida em geral e o património dos indivíduos é substituída pela
preservação da propriedade privada como valor social básico. Assim, os bens
individuais adquirem valor em função dos coletivos e não o inverso.
As conceções sobre a finalidade do direito (dependente dos fins do próprio Estado) sob a visão de Gustav

Radbruch

 Conceção individualista: nesta visão, o indivíduo estaria acima de qualquer acontecimento, quer

produzido pelo Estado, quer pela cultura. O Estado e o direito produzido por ele serviriam apenas

como meio necessário de suprir todas as necessidades do sujeito, em obediência a ideia de

supremacia do indivíduo. Assim, os valores culturais e os coletivos encontram-se ao serviço dos

valores da personalidade. A cultura é apenas um meio para a formação e desenvolvimento da

personalidade. O Estado e o direito não passam de instituições para a segurança e promoção do

bem-estar dos indivíduos – são meros instrumentos. Pensamento liberal.

 Conceção supra individualista: para esta teoria, tanto os valores da personalidade como os da cultura

encontram-se subordinados e ao serviço dos valores coletivos. Moralidade e cultura ao serviço do

Estado e do direito. Esta teoria, denominada também por intervencionista, é uma exaltação aos

valores coletivistas, em oposição aos valores do individualismo.

 Conceção transpersonalista: nesta ótica, os valores culturais seriam o grau mais elevado da

humanidade. Seriam, pois, algo eterno. Para esta corrente, tanto o indivíduo como coletividade são

findáveis; o que não acaba, porém, é a cultura, as obras humanas. Nesta linha de pensamento, os

valores individuais e os coletivos acham-se colocados ao serviço da cultura e estão-lhe subordinados.

Esta doutrina pretende a síntese integradora entre as duas correntes opostas, aproveitando os

elementos conciliáveis existentes no individualismo e coletivismo. Tanto os valores individuais como

os coletivistas devem subordinar-se aos valores da cultura. A opção entre um valor e outro, quando

se revelam inconciliáveis, deve ser feita de acordo com a natureza do fatco concreto e em função dos

princípios de justiça, de tal sorte que o indivíduo não seja esmagado pelo todo, nem que a

coletividade seja esmagada pelos caprichos individualistas.

Assim, em suma, os fins ou finalidades últimas do Estado, de acordo com as várias conceções,

seriam:

 Para a conceção individualista: a Liberdade;

 Para a supra individualista: a Nação;

 Para a transpersonalista: a Cultura.

Já quanto à concretização destas finalidades, a depender de qual delas o Estado supervalorize,

tem-se a formação de três tipos de agrupamentos sociais:


Esta controvérsia entre diferentes conceções de bem jurídico não é solucionável
segundo critérios estritamente científicos, na medida em que o cerne da discórdia é uma
determinada conceção do Estado e dos seus fins. Assim, somente num plano jurídico-político é
possível atingir uma decisão sobre se o bem jurídico deve assumir uma ou outra natureza. É,
assim, um tópico que depende de uma opção normativa – embora todas as opções normativas
sejam avaliáveis.

Teoria de sociedade

Porém, o Direito Penal não se satisfaz com esta perspetiva meramente de preferência
normativa, procurando a perspetiva cientifica do conceito de bem jurídico. Nessa via, procura-
se situar na estrutura social – independentemente da instancia política ou da decisão política –
os critérios que tornam necessária a incriminação de determinadas condutas e a proteção de
certos bens – sendo que esta necessidade se prende com a mera sobrevivência ou
continuidade da estrutura social; assim, não se pretende uma discussão quanto às conceções
da sociedade ou do Estado, não sendo uma discussão ideológica e não autorizando um debate
exclusivamente ético. Basta uma pergunta: quais os bens jurídicos e as condutas que levam à
sobrevivência e continuidade da sociedade? Que é o mesmo que perguntar quais os fatores
sociológicos constantes que instituem certas realidades como bens jurídicos?

Estas questões não conduzem, porém à validade universal das condições de existência
– assim, não haveria um conceito universal e absoluto de bem jurídico, mudando em função da
sociedade, de acordo com os fins concretos que cada sociedade deverá realizar, segundo a sua
própria escolha.

Os sistemas sociais são auto referentes, construindo a sua própria legitimidade através
dos traços da sua identidade. E, por esta via, a teoria da sociedade chega ao ponto de partida
recusado, na medida em que subordina o conteúdo da norma penal à pura escolha normativa.
Assim, esta conceção social conduziria a um desfecho trágico do Direito Penal: a da
incapacidade de definir com universalidade condições de existência humanas e necessidades
sociais. Expressão deste desenlace é, como se verá adiante, uma cerca abordagem do
funcionalismo – sobretudo o funcionalismo sistémico.

No entanto, outras conceções como as do interacionismo simbólico e uma teoria


crítica da sociedade permitirão uma outra conclusão, criticando a metodologia de
fundamentação das opções normativas que ultrapassam uma autorreferência dos sistemas
sociais.
Funcionalismo sistémico

Começa-se por averiguar qual é o impacto do funcionalismo sistémico na definição de


crime, dadas as repercussões que tem tido – sobretudo através de Jakobs -, as perspetivas de
uma autorreferência dos sistemas sociais.

Note-se que o funcionalismo no pensamento penal partiu das conceções de Luhmann


(século XX) sobre a análise das sociedades humanas como sistemas sociais.

Eis o que diz, em breve, a teoria dos sistemas:

 A sociedade não é um fenómeno pura e simplesmente político, como a entendia a


tradição aristotélica e a filosofia política europeia, cuja expressão máxima se traduziu
na teoria do contrato social.
 A sociedade é antes um sistema social. Ou seja: a sociedade desempenha
determinadas funções, cuja análise permite concretizá-la como um sistema. Essas
funções consistem na instrucionalização da redução da complexidade.
 Esta redução de complexidade significa, aplicada às relações sociais, que o conjunto
destas relações se organiza em diversos níveis autónomos, de acordo com as
respetivas funções – progressivamente diferenciadas -, como, por exemplo, as relações
sexuais, as familiares, as ligadas à escola e à política, etc. Todos estes níveis
(subsistemas) inter-relacionam-se, gerando grande complexidade nas relações sociais.
 Por fim, a sociedade seria a ultima função social concebível, da qual resultaria que a
enorme complexidade da inter-relação dos agentes sociais – proveniente de as
condutas humanas se processarem em diversos níveis – fosse reduzida, assegurando-
se assim a própria interação social.

Explicação:

Um sistema pode ser chamado de complexo quando contém mais possibilidades do


que pode realizar num dado momento. As possibilidades são tantas que o sistema se vê
obrigado a selecionar apenas algumas delas para poder continuar a operar, na medida em
que não consegue dar conta de todas elas ao mesmo tempo.

Ora, quanto maior o número de elementos no seu interior, maior o número de


relações possíveis entre eles que crescem de modo exponencial. O sistema torna-se,
então, complexo quando não consegue responder imediatamente a todas as relações
entre os elementos, e nem todas as suas possibilidades podem realizar-se.
Essas relações entre os elementos não acontecem simultaneamente, mas, ao
contrário, uma após a outra, em sucessão. E cada vez que o sistema opera, acaba gerando
novas possibilidades de relações, tornando-se assim ainda mais complexo, mas não mais
que o seu ambiente, que é sempre mais complexo por conter um número maior de
elementos.

Outra razão para isso é o facto de o sistema ser capaz de fixar os seus próprios limites,
ao diferenciar-se do ambiente, limitando as possibilidades no seu interior. Todavia, a
tendência é de que num ambiente mais complexo o sistema também se torne mais
complexo, ainda que não na mesma proporção. Sob um outro ângulo, pode-se concluir
que o aumento da complexidade de um sistema estimula o aumento da complexidade de
outros sistemas que o observam, quando aquele estiver na condição de entorno destes.

É importante considerar que a complexidade do sistema é uma construção sua que,


em hipótese alguma, pode ser considerada um mero reflexo do ambiente, pois, se assim
fosse, haveria uma dissolução dos seus limites e, com isso, a morte do próprio sistema.
Todo o ambiente apresenta para o sistema inúmeras possibilidades. De cada uma delas
surgem várias outras, o que dá causa a um aumento de desordem e contingência. Então, o
sistema seleciona apenas algumas possibilidades que lhe fazem sentido de acordo com a
função que desempenha, tornando o ambiente menos complexo para ele. Se selecionasse
todas elas, não sobreviveria. Deve simplificar a complexidade para conseguir manter-se no
ambiente. Ao mesmo tempo em que a complexidade do ambiente diminui, a sua aumenta
internamente. Isso porque o número de possibilidades dentro dele passa a ser maior,
podendo, inclusive, chegar a ponto de provocar sua autodiferenciação em subsistemas.

Para dar conta da complexidade interna, o sistema auto diferencia-se. Por exemplo, o
sistema Direito diferenciou-se, primeiramente em público e privado, depois, em direito
constitucional, administrativo, penal... e civil, comercial..., e assim sucessivamente. Esse
processo revela a evolução. O sistema não tem uma estrutura imutável que enfrenta um
ambiente complexo. É condição para esse enfrentamento que o próprio sistema se
transforme internamente, criando subsistemas, deixando de ser simples e tornando-se
mais complexo, ou seja, evoluindo. Cada um desses subsistemas criados dentro do sistema
tem o seu próprio entorno. A diferenciação do sistema não significa, portanto, a
decomposição de um todo em partes, mas da diferenciação de diferenças
sistema/entorno. Não existe um agente externo que o modifica, é ele mesmo que o faz
para sobreviver no ambiente.
Mas a evolução do sistema não ocorre de forma isolada, ela depende das irritações do
ambiente. E, conforme a tolerância do sistema, as irritações podem levá-lo a mudar as
suas estruturas. Essa característica de produzir a si mesmo é chamada de autopoiese,
responsável por um aumento constante de possibilidades até que a complexidade atinja
limites não tolerados pela estrutura do sistema, levando-o a mudar a sua forma de
diferenciação. A evolução do sistema ocorre quando ele se auto diferencia e ainda quando
há uma passagem de um tipo de diferenciação para outro.

Segundo Luhmann a segmentação, a hierarquia, centro/periferia e a função são quatro


formas pelas quais o sistema pode diferenciar-se, sendo que, conforme evolui, passa de
sistema segmentado até chegar ao sistema funcional. Assim se deu com a passagem de
uma sociedade segmentada, na antiguidade, para uma sociedade funcional, na
modernidade. A razão do sistema evoluir é sobreviver à complexidade do ambiente que
cria constantemente novas possibilidades de forma inesperada. A nova estrutura é
impulsionada por essa contingência imprevisível.

Luhmann lembra que, na sociedade, muitas coisas são planejadas, como, por exemplo,
currículos escolares, sistemas de tráfego e campanhas eleitorais, mas isso não garante que
os efeitos ocorram conforme pretendidos, o que o leva a concluir que o sistema evolui
quando desvia do planejamento, quando não reage da mesma forma, quando não se
repete. A evolução não pode ser planejada, ela se nutre dos desvios da reprodução
normal.

O facto de o sistema ser responsável pela redução da sua complexidade e a do


ambiente não o eleva ao status de objeto na teoria luhmanniana. O objeto é a diferença
entre sistema e ambiente. Essa diferença é o objeto de estudo de Luhmann, não um
sistema ou um ambiente isoladamente - sendo o sistema o lado interno e o ambiente, o
lado externo.

Antes, porém, de aprofundar a análise dessa forma, é necessário superar três


obstáculos epistemológicos, que devem perder a conotação de premissas básicas.
Somente se o despirmos, conseguimos compreender a teoria de Luhmann:

 O primeiro deles é a premissa de que a sociedade é constituída de pessoas e de


relações entre pessoas. Segundo a teoria sistêmica, a sociedade é constituída
exclusivamente por comunicação. As pessoas estão, na verdade, no ambiente do
sistema social. Pessoas são um outro tipo distinto de sistema chamado de sistema
psíquico.
 O segundo obstáculo epistemológico diz que as sociedades têm fronteiras territoriais
e/ou políticas. Entretanto, como as sociedades são compostas apenas por
comunicação e esta não pode ser limitada no espaço; assim, conclui-se pela
inexistência de fronteiras separando diversas sociedades. Há um único sistema social
mundial.
 Finalmente, o terceiro obstáculo é a separação entre o sujeito e o objeto. Para
Luhmann não há nenhum observador externo ao sistema social que possa analisá-lo
com distância e imparcialidade. Ninguém detém um ponto de vista absoluto,
considerado como sendo o único correto. O conhecimento é resultado da observação
de segunda ordem, no qual um observador observa o que um outro observador
observou. Desta maneira há diversas descrições, sob pontos de vista diferentes, mas
todas com o mesmo valor. A possibilidade de múltiplas descrições na sociedade
moderna levou Günther (1979) a chamá-la de “policontextual”.

Para Luhmann há quatro tipos de sistemas:

o Os não vivos;
o Os vivos;
o Os psíquicos;
o Os sociais.

Os sistemas não vivos são incapazes de produzirem a si mesmos, por isso não podem
ser classificados como autopoiéticos. Para manterem-se, dependem do ambiente. Por
exemplo, uma máquina que estraga não é capaz de consertar-se sozinha, a partir de elementos
internos. Precisa que uma pessoa queira consertá-la. E será essa pessoa, não o sistema, quem
decidirá que peça irá repor para fazer com que a máquina volte a funcionar. São, portanto,
diferentes dos demais tipos de sistemas que se caracterizam como autopoiéticos.

Os sistemas vivos são, por exemplo, as células, os animais, o corpo humano. Eles são
compostos de operações vitais, responsáveis pela manutenção do sistema. Se uma célula está
com falta de ferro, por exemplo, ela não vai ficar esperando pela disposição do ambiente em
suprir-lhe a falta. A célula não depende de uma decisão do ambiente em relação a ela. Ao
contrário, seleciona o que considera importante no seu entorno.

O sistema psíquico é a consciência. Esse sistema é composto de pensamentos e, assim


como os outros sistemas autopoiéticos, ele mesmo reproduz o seu elemento. Pensamento
gera pensamento e nada mais.
O quarto tipo de sistema é o sistema social, composto por comunicação. A
comunicação é produzida somente através de comunicação.

Tudo que não pertence ao sistema encontra-se na condição de seu ambiente. Assim,
os sistemas psíquicos e físicos são ambiente de um sistema social qualquer, bem como todos
os outros sistemas sociais, e vice-versa. Por exemplo: a consciência de um médico e um
coração são ambiente do sistema medicina. Também o direito, a teologia e a psicologia são
seu entorno. O sistema medicina é um sistema social e como tal é composto somente por
comunicação. Todos os sistemas sociais formam a sociedade ou o sistema social global.

Torna-se claro este fenómeno de redução de complexidade, se se confrontar uma


sociedade arcaica – comportando formas tradicionais de interajuda como, por exemplo, a
interajuda familiar ou de vizinhança – com uma sociedade moderna. Nas sociedades
modernas, aquelas formas são substituídas, p.e., pelo crédito financeiro assegurado
juridicamente – que, por sua vez, torna possíveis novas espécies de combinações com riscos e
vantagens mais elevados. Cria-se, assim, um sistema diferenciado através da evolução, em
resposta ao ambiente. Porém, com uma tal diferenciação, tornam-se mais complexas as
relações sociais e mais difícil a previsão pelos agentes dos comportamentos de outros agentes.
É então importante reduzir esta complexidade, institucionalizando condutas que podem ser
geralmente aceites e assegurando juridicamente a sua prática. Com isto garante-se a interação
social.

Se se considerar que a multiplicação destes fenómenos de diferenciação produz outros


tantos sistemas diferenciados, conclui-se que a inter-relação social tem de tomar em conta, de
um modo geral, todos os dados provenientes dos diversos sistemas, pelo que se torna
necessário um nível superior de redução de complexidade: a sociedade através do seu Direito
(a tal institucionalização).

O Direito é a estrutura da sociedade que regula e assegura a institucionalização de


relações. A sua função é precisamente selecionar, entre as expetativas de ação aceites com
um certo grau de generalidade, aquelas cuja generalização deve ser institucionalizada.

Neste sentido, surge uma nova conceção da sociedade e, por consequência, uma nova
definição de Direito. O Direito não é, assim, um “dever moral” ou um “imperativo político”,
mas apenas a institucionalização de expetativas de ação – o que o liga, certamente, à
necessidade de estabilização de possíveis conflitos interiores ao sistema social e reduz o
problema da legitimação do direito à dimensão da funcionalidade. Em face disto, toda a
conduta “desviada” em relação à norma surge como uma frustração das expetativas de
comportamento asseguradas juridicamente.

Porém, ao contrário do que se possa pensar, esta frustração não é, em si, disfuncional
ou exterior ao sistema de interação social, na linha de Durkheim. Como conduta antissocial, ela
é antes uma consequência das decisões básicas variáveis do sistema social. Ela é produzida
através dos mesmos processos sociais que indicam a conduta conforme ao Direito – é,
portanto, uma reação “normal” ou mesmo em certo sentido funcional. Normal, porque quem
espera o melhor, tem de esperar o pior; a institucionalização de expetativas serve para as
positivas e negativas. Funcional, no sentido de mostrar a evolução do pensamento e
expetativas sociais sobre uma determinada conduta; o que hoje é considerado um crime pela
sociedade, amanha poderá não ser. Isto porque a conduta desviada busca o seu sentido na
ordem dominante, na medida em que é impossível uma subcultura criminosa (como um contra
direito), sem qualquer referencia a ordem dominante – não é contra direito sem direito;
mostra o que está de errado no Direito da sociedade, através dos comportamentos antissociais
(que, se forem em larga escala, frustram o que até aí eram expetativas sociais sobre alguma
coisa, mostrando a evolução das mesmas).

Interacionismo simbólico

Esta conceção da função do Direito conduz à função simbólica da pena e do Direito


Penal de Jakobs.

O ponto de vista de que o Direito Penal visa proteger bens jurídicos é substituído,
absolutamente, pela função de estabilização contra fática (contra facto jurídico) das
expetativas geradas pela violação de uma norma incriminadora. A função do Direito Penal
seria, assim, manter padrões de ação que organizam as expetativas sociais sobre o
comportamento alheio.

O crime deixa de ser visto como problema externo ou desafiante do sistema, para ser
encarado como dano social objetivo, para se tornar pretexto de afirmação de modelos de ação
– assim, o Direito serve para institucionalizar as expetativas jurídicas e o Direito Penal para
afirmar modelos de ação para que as expetativas jurídicas não sejam frustradas. A aplicação
da pena é vista, neste prisma, como oportunidade de controlar a interação social – fazer com
que as pessoas não fujam aos modelos de ação, para as expetativas não serem frustradas.
Assim, para Jakobs, o funcionalismo destrói a legitimação do Direito Penal num
conceito material de crime, porque destina os bens jurídicos aos fins definidos pelo sistema e
porque atribui ao Direito Penal uma função ideal ou simbólica de controlo social.

Não se poderá, porém, dizer que o funcionalismo permita uma racionalidade de


delimitação das normas incriminadoras, mas somente destinar essa racionalidade à
circunstancia de as normas incriminadoras se preocuparem com a promoção de padrões de
ação desejáveis para a coesão social.

Conceção funcionalista: considerações e críticas

É irrecusável afirmar que a visão funcionalista se baseia em dados objetivos, quando


reconhece que não há definição puramente naturalística das necessidades sociais ou
individuais e que os sistemas são auto referentes, na medida em que definem pelo seu modo
de organização e através dos seus fins quais os distúrbios ou as disfunções que podem sofrer.

Porém, esse reconhecimento permite ainda discutir, de forma crítica, as decisões


legislativas de incriminação de condutas na ótica dos fins do sistema. E, por isso, parece
viabilizar um controlo de adequação base do controlo de legitimidade do Direito Penal.
Permanece, por essa via, válido parte do significado e a função classicamente conferidos ao
bem jurídico, embora despida de uma conexão extra sistemática e de referencias ontológicas.

Dá-se assim o exemplo do ambiente que, enquanto meio de sobrevivência e


continuidade dos indivíduos, faz parte do núcleo de condições essenciais de existência que
merecem proteção perante ameaças graves em face de expetativas sociais sobre a relação
pessoa-natureza. Discutível é, porém, se a proteção do ambiente para além de uma direta
função humana, justifica igualmente a tutela penal apenas em nome de equilíbrio ecológico ou
se uma conceção não antropocêntrica justifica a proteção penal. O mesmo com o mau trato a
animais de companhia, hoje previstos no Código Penal, onde há uma dificuldade em encontrar
um bem que seja condição do sistema. Ainda a incriminação de condutas lesivas da moralidade
social, como a pornografia, também não reflete, a partida, uma expetativa sobre o núcleo de
condições essenciais de existência na nossa sociedade, definidas na perspetiva do pensamento
político-constitucional de cariz liberal, pois a coesão social não se define a partir da moral
sexual, mas sim a partir da liberdade individual– veja-se, pelo contrário, as teorias de
biopolítica, que consideram que também a política sexual seria fundamental para a construção
da autoridade do Estado (ver nota de rodapé da prof. Palma Ramalho, página 43 e 44). Neste
último campo, quando a pornografia contribuir para diminuir a capacidade de decisão no
domínio sexual (por atingir crianças ou incitar à violência, por exemplo), ameaça a auto
determinação da pessoa e o seu pleno desenvolvimento, já o Direito Penal poderá intervir
justificadamente, sem colidir com um quadro valorativo baseado na articulação das liberdades,
embora as fronteiras entre o espaço do Direito e o da pura moralidade sexual sejam algo
instáveis e, por vezes, haja um consenso quanto à incriminação destas condutas a partir de
lógicas distintas ou até opostas – as liberais e as protecionistas. Porém, em todas essas
situações há uma lógica do sistema que é determinante da legitimidade das soluções
normativas.

Em suma

 A visão funcionalista não anula absolutamente a crítica interna ao sistema do conceito


material de crime, pela referencia de toda a legitimidade da proteção jurídico-penal
aos fins sociais.
 E, na medida em que a definição destes fins não é produto de uma arbitrária decisão
normativa, mas surge apenas como efeito objetivo da ação dos indivíduos – enquanto
subsistemas, eles próprios, vocacionados para a auto realização -, o funcionalismo
como teoria, não exclui a discussão sobre o objeto da infração criminal, apenas
reduzindo a fundamentação da validade a uma adequação das decisões legislativas a
uma ideia de funcionalidade sistemática, racionalizando através desse parâmetro a
avaliação crítica – veja-se a observação de Manuel Costa Andrade quando refere que
os seres humanos são eles próprios sistemas autopoiéticos (sistema isolado,
construído pelos componentes que ele próprio cria, produzindo-se continuadamente a
si próprio), também todas as pessoas ao agirem, dentro daquele sistema, pretendendo
realizar os seus mundos individuais, realizam o mundo dos outros: o mundo de todos .
 Esta construção está relacionada com uma conceção do Direito como sistema
autopoiético – que adotou ao Direito, Maturana e o seu discípulo Varela -, tomando
como referencia o funcionamento dos organismos biológicos, que se organizam numa
lógica de autorreprodução, de continuidade e de sobrevivência a partir de uma auto
referencia de todas as ações ao seu padrão identificador fundamental.
 Subordinação a um modelo de descrição da realidade rígido – e que tende a confundir
metáforas explicativas de realidade com a própria realidade.
Teorias críticas ao funcionalismo

Num sentido diverso quanto à preocupação fundamental de legitimação das normas


incriminadoras, surgem:

 As visões que a partir da teoria da sociedade criticam esta perspetiva funcionalista


sistémica;
 As que, na linha da própria Criminologia, criticam, mais ou menos radicalmente, o
sistema de justiça criminal, propugnando até, como se referiu, a substituição do crime
como objeto cientifico primordial, pedra angolar do sistema de resposta à chamada
déviance, por outras categorias como o processo de definição e seleção social da
criminalidade.

Quanto à primeira orientação, embora pouco sistematizada, desenvolvida e assumida, na


área do Direito Penal:

 Tem algumas raízes teóricas na construção metodológica da chamada escola de


Frankfurt de Habermas, incluindo variações como a que resulta do pensamento de
Honneth, ou, nos campos da Filosofia do Direito e do Direito Penal, do pensamento de
Klaus Gunther.
 Por outro lado, também tem tido conexões com o pensamento político-criminal de
Hassemer, e têm sido referidos aspetos desta mesma linha metodológica, como
pressuposto teórico, por Stratenwerth e, entre nós, por Palma e Silva Dias. Não se
trata de uma discussão meramente europeia continental, manifestando-se ainda na
discussão anglo-saxónica no chamado harmprinciple, formulado por Feinberg
(https://iindabaezothusayo.wordpress.com/2014/11/12/feinbergs-offense-principle-
and-the-harm-principle/).

Sem pretender falar de uma corrente ou escola, divisa-se, porém, uma tendência de
análise, um modo de relacionar a fundamentação normativa com a teoria crítica da sociedade.

 O ponto de partida é, na linha de Habermas, a ideia de que a ação social é


necessariamente uma ação comunicativa, isto é, uma coordenação de padrões de
racionalidade subjacentes à linguagem, sobretudo uma racionalidade cooperativa (e
não tanto uma racionalidade de fins e de instrumentalização de meios a finalidades). A
influencia de Mead nesta base teórica é assumida pelo próprio Habermas e manifesta-
se na conceção da sociedade como uma interação e construção de significados.
 Já o segundo ponto consiste em que as razoes e opções normativas, embora histórica
e culturalmente produzidas, não deixam de, em si mesmas, conter uma abordagem
crítica destes padrões de racionalidade. Neste sentido, a compreensão da natureza da
ação social como ação comunicativa permite sustentar critérios sobre as melhores
opções normativas, segundo uma ética do discurso. Tornam-se relevantes aspetos tais
como:
o As iguais oportunidades de intervenção de todos os participantes nas
deliberações;
o O reconhecimento da subjetividade;
o A dignidade e direito de argumentação de todos;
o Em suma: o quadro racional da democracia política como base da
fundamentação da validade das decisões e normas.
 O terceiro aspeto é o reconhecimento crítico de uma distorção desta racionalidade,
associada ao chamado “mundo da vida”, pela interferência de uma racionalidade
utilitarista instrumentalizadora, germinada nos subsistemas sociais, que
menosprezaria os padrões elementares da vida nas sociedades humanas e as
aquisições culturais do processo histórico.

Nesta linha de orientação, os limites do DP, nomeadamente da criminalização, podem


estar destinados a desvios da ação e da racionalidade comunicativa ou à criticável
”colonização” do mundo da vida pelas logicas sistemáticas, como pode acontecer na
criminalização de comportamentos culturalmente diferentes, de certas práticas religiosas, ou
na proteção penal de interesses relacionados com uma certa organização política da
sociedade, como o funcionamento do mercado ou do sistema financeiro, por exemplo, que
não correspondem a um consenso social produzido segundo uma ética do discurso.

Já na linha de Hassemer, a necessidade social de proteger penalmente certos bens


jurídicos pode ser analisada criticamente em função da demonstração empírica sobre o
significado e efeito da criminalização – um pensamento orientado para as consequências.

Existiria também, ainda, uma suscetibilidade de encontrar valores inerentes à


racionalidade comunicativa construtiva da sociedade que mereciam ser especial protegidos
pelo DP. A ideia de que topos fundamental da justiça é o direito ao reconhecimento como
pessoa, atualizado por Honneth, é um elemento a ser trabalhado nas suas implicações em
novas perspetivas sobre os bens jurídicos e as funções do Direito Penal.
Finalmente, a ideia de que as decisões de criminalizar e os critérios de responsabilização
são questionáveis na sua validade, não meramente em função de uma consistência logico-
normativa, mas antes de condições e consequências empíricas, torna verificável, com uma
certa objetividade extra sistemática, a ultrapassagem dos limites de legitimidade do conceito
material de crime.

A discussão sobre o conceito material de crime poderá incorporar esta perspetiva de que
os comportamento incrimináveis são definíveis num modelo argumentativa de ética do
discurso, em que a legitimidade depende de não se contradizerem pela incriminação
condições básicas da subjetividade e do reconhecimento recíproco, como aconteceria, por
exemplo, com a incriminação de blasfémia ou de certos comportamentos sexuais em privado,
mas já não com a incriminação de condutas que revelem a exploração da necessidade como o
aproveitamento da prostituição.

A esta perspetiva acresce uma tendência para colocar o tema dos limites da criminalização
no contexto de fundamentos da democracia e do Estado de Direito, num nível referido ao
discurso político em torno de novas perceções do contrato social. Assim, por exemplo, para
Klaus Gunther, a atribuição de responsabilidade estaria associada a uma igualdade de
participação exterior à subjetividade de cada um, mas referida a uma legitimação democrática
das normas e à consideração da pessoa como cidadão e participante na deliberação
democrática. Este parâmetro não só interfere com o tipo de condutas criminalizáveis,
delimitando-as, como também interfere com os critérios de atribuição pessoal da
responsabilidade, em que a divergência censurável do agente para com a norma é aferida
pelos deveres de cidadão participante, nas condições de uma posição “deliberativa critica”.

Para além desta primeira via metodológica, poder-se-á ainda introduzir uma espécie de
argumento criminológico – que se verá mais adiante -, que integrará aspetos de uma teoria
mais ampla sobre a construção da realidade social, utilizando as interpretações criminológicas
dos comportamentos como critério de ponderação da adequação à realidade das opções
normativas de criminalização, mais próxima da segunda via referida. Não se trata de aplicações
normativas da Criminologia, mas de responder normativamente, com critérios de justiça
baseados no pensamento critico, à produção social do crime ou à construção da personalidade
delinquente. Esse tópico constituirá o argumento criminológico e será analisado mais adiante.

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