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ENCONtRO! INtERlIgAR! tAí! AH!

Dezembro de 2010.
#5

- Menina, não esqueça de pentear a revista! Encontro! Taí!


- Menino, vai levar a Eita! para passear na esquina!
- Menina, não deixe de ler seu travesseiro! E1 Carnaval & Arte Urbana T1 Periódicos Independentes
Raul Córdula Paulo Floro
Em sua quinta edição, a Eita! chega bem estranhinha,
com novos modos de usar e abusar e cheia de histórias pg. 08 pg. 42
cabeludas. Nas matérias do primeiro caderno, por exemplo,
é possível fazer um passeio pelas cidades contemporâneas E2 Arte Pública & Cidades T2 Escrita & Simulação: Autoria
através dos artistas que repensam e reescrevem os Contemporâneas & Contemporaneidade
traçados urbanos. Se viver nas cidades e transformá- Betânia Corrêa de Araújo Fábio Andrade
las são um grande desafio nos tempos atuais, pensar a
criação textual, em suas mais diversas modalidades, é outra pg. 12 pg. 46
questão abordada: como ficam a poesia, a dramaturgia,
a ideia de autoria e as publicações independentes, hoje? E3 Dramaturgia como Encontro T3 Poesia no Tubo de Ensaio
É o que indagam os textos de Conrado Falbo, Fábio Juliene Codognotto Conrado Falbo
Andrade, Juliene Codognotto e Paulo Floro. Além desses
temas, reflexões sobre música, cinema e a fotografia estão pg. 16 pg. 50
presentes neste número, que conta ainda com um poema
ilustrado de Julia Panadés, um conto de Sidney Rocha e um E4 Ensaio Visual T4 Armstrong
ensaio visual de Vitor César. Victor Cesar Sidney Rocha

Editada pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, a pg. 20 pg. 54


Revista Eita! é uma publicação da Gerência de Literatura e
Editoração e do Centro de Design do Recife. Formada a partir
de um trabalho colaborativo dos diversos equipamentos
e gerências que compõem a Secretaria de Cultura e a Interligar! Ah!
Fundação de Cultura, procura contemplar as mais variadas
linguagens criativas da cultura contemporânea. I1 Uma teia que, felizmente, A1 HQ
não acaba Victor Zalma
EITA!: Encontro! Interligar! Taí! Ah! Luiz Otávio Pereira
pg. 58
Boa leitura, pg. 26
Os editores. A2 Cidade vistosa é cidade vestida
I2 Cantores Rafael Cardoso
Recife, 2010. Eita!, ano 3, número 5. Débora Nascimento
pg. 60
Nenhum pente foi utilizado na confecção desta revista. pg. 32
A3 O Fantasma sobe ao palco
I3 Por que enxergamos as fotografias? Astier Basílio
Georgia Quintas
pg. 66
pg. 36
A4 Poesia Empoeirada
I4 Olho no Rio Julia Panadés
Wladimir Quirino
pg. 70
pg. 38
A5 Pergunta da Edição
Cristhiano Aguiar

pg. 72
Jornalista responsável Ilustrações
Copyright © 2010 Fundação de Débora Nascimento Julia Panadés
Cultura Cidade do Recife Raul Luna
Revisão Victor Zalma
Prefeito do Recife Karol Ferreira e Cristhiano Aguiar Vitor César
João da Costa
Projeto gráfico e capa Fotografia
Vice-prefeito do Recife Raul Luna Vitor César
Milton Coelho
Conselho editorial
Secretária de Comunicação | Especial de Arnaldo Siqueira
Relações com a Imprensa Célio Pontes
Ceça Britto Cristhiano Aguiar ISSN 1983-1846
Débora Nascimento Direitos exclusivos desta edição reservados
Secretário de Cultura Heloísa Arcoverde de Morais pela Fundação de Cultura Cidade do Recife.
Renato L Márcio Almeida
Mateus Sá Cais do Apolo, 925, 15º Andar, 50030-230,
Presidente da Fundação de Cultura Cidade Raul Kawamura Recife-PE.
do Recife Renata Gamelo + 55 81 33553144 / 33556892
Luciana Félix
Colaboradores / Texto gole@recife.pe.gov.br
Diretora Administrativo-Financeira Astier Basílio
Sandra Simone Bruno Betânia Correa de Araújo
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Diretora de Desenvolvimento e Cristhiano Aguiar EITA! Online
Descentralização Cultural Débora Nascimento http://issuu.com/revistaeita
Luciana Veras Fábio Andrade revistaeita.revistaeita@gmail.com
Geórgia Quintas
Diretor de Gestão e Equipamentos Culturais Julia Panadés
Fábio Cavalcante Juliene Codognotto
Luiz Otávio Pereira
Gerente Operacional de Literatura e Editoração Paulo Floro
Heloísa Arcoverde de Morais Rafael Cardoso
Raul Córdula
Coordenador editorial Sidney Rocha
Cristhiano Aguiar Wladimir Quirino

Gerente operacional de Artes visuais e Design /


Centro de Design do Recife
Renata Gamelo

Realização Apoio
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E4 • ENSAIO VISUAL por vitor césar

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ENSAIO VISUAL por vitor césar • E4

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E4 • ENSAIO VISUAL por vitor césar

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VITOR CÉSAR é artista visual e designer ritin@uol.com.br


ENSAIO VISUAL por vitor césar • E4

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A
{T4}

ARMSTRONG
Aquele conto de SIDNEY ROCHA

Ele já não suportava mais. A mãe zelosa, entretanto, queria o nenê a bolinha cor-de-rosa que ela vira na capa da revista, o bebê Jonhson
1969, os dentinhos sorrindo para as leitoras. Ela o banhava todas as tardes e, se aquilo não o desagradava por completo, achava um
excesso, já o incomodavam os talcos, os pompons, o cheiro de lavanda, mas ia levando. Aguardava-o um mundo de verdade, ele sabia, o
quarto azul era uma metáfora, sentia-se um pouco Armstrong nos seus pequenos passos sem o mó- dulo lunar do anda-já, as pessoas o
achavam grave e talvez sério demais nos aniversários, ahhh, as pessoas eram uma nuvem para ele, reconhecia as bocarras, eles pareciam
perus glugluzando quando se aproximavam da sua cara de romã, mas de longe estavam sempre precisando de foco, os seus olhos já não
se esforçavam mais em reconhecê-los pelas manchas, apurara os ouvidos como um cão, só restava isto a fazer por enquanto, as retinas
com o tempo o presenteariam com um mundo em tecnicolor, mas agora tinha a rotina de um cego, sem ser cego; de um bêbado, sem
ser um, mas precisava de ajuda para ir tomar sol, para limpar-se, para mudarem o canal da TV pra ele, as mais simples vontades se
transformavam num cataclismo de gestos sempre perdidos, não podia ir sozinho por exemplo à esquina tomar uma coca-cola. Isto,
porém, sustentava com paciência e profissionalismo.

Não sabia como os outros se viravam, cada um vem ao mundo para se virar como pode, mas não suportava mesmo era quando a 55
mãezelosa lhe enfiava o mamilo marrom na boca três vezes ao dia. Ele regurgitava na hora. À tarde, vomitava o leite da manhã, pela
manhã o da noite, mas a mãezelosa não conhecia descanso e empurrava a santa pelanca, a meleca branca de volta, aquilo criava uma
gosma pegajosa no céu da boca, as pilhas de cueiros azedando por toda parte, e ele pensava em fugir – mas como, se parecia um bebum
quando tentava um passo qualquer? –, pensava em se matar, em se deixar asfixiar pela bolona, o bico cor de terra, a nitidez que a vida
até ali lhe dera, com promessas de um mundo todo em panavision, enquanto lá fora o astronauta via a aurora do novo mundo, a Terra
de fato azul. Não suportava mais. De qualquer forma, levaram-no junto com a mãe naquele dia.

O médico saberia retirar do seu estomagozinho o mamilo da mulher, ela berrava como uma louca pela janela do outro carro, “Me
deixem matá-lo”, “Me deixem matá-lo”, “Me devolva”, “Me devolva”, talvez pudessem, sim, devolvê-la a luazinha marrom por direito e
plástica. Se não, o doutor saberia como desfazer do rosto dele aquele sorrisozinho de felicidade, tipo capa de revista, toda mãezelosa
tem ou quer uma fotozinha assim do seu homenzinho.

Sidney Rocha é novelista e editor nascido no Ceará. É autor, entre outros, do romance Sofia, vencedor do Prêmio Osman Lins de
Literatura, com edição pela Cepe (1994), Ateliê Editorial (2005) e Editora Iluminuras (2010). Publicou o livro de contos Matriuska,
também pela Iluminuras, em 2009, com o qual é semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2010, ainda em curso. Outras informações
sobre sua obra podem ser lidas em matriuskando.blogspot.com/.

sidneyrocha1@gmail.com

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A1 • HQ por viCtor ZALMA

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A1 • HQ por viCtor ZALMA

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viCtor ZALMA é ilustrador. victorzalma@gmail.com


O debate sobre as “cidades limpas” revela o delicado limite entre

ordenamento urbano e descaracterização cultural.

Quando eu era moleque, lá pelos nove, dez anos, perguntava para minha mãe, “Mãe,
eu sou bonito?”. A resposta dela estava sempre pronta, na ponta da língua: “Homem não
tem que ser bonito, tem que ser limpo e arrumado.” Aquilo me deixava contrariado. Limpo
e arrumado? Ora bolas, eu queria é ser bonito! Limpo e arrumado era ambição digna para
as crianças mais feinhas da turma: aquela dentuça enjoada da primeira fileira, o cara de
fuinha com cabelo oleoso, o gordão malvado que comia minhoca. Não para mim! Àquela
época, eu ainda nutria certas esperanças.

De modo geral, limpeza é boa coisa. Quem não gosta de um bebê limpinho, perfumado, de
chuquinha no cabelo e cheirando a alfazema? Mas, nem sempre é o caso. Limpeza é, muitas vezes, um
conceito superestimado. Vejam só a tal da limpeza étnica, no que deu. Ultimamente, entrou para a
moda falar em ‘cidade limpa’. Sou a favor. Moro no Rio de Janeiro, que é uma cidade porca – conforme
acusou seu próprio prefeito, não faz muito tempo – onde as pessoas jogam lixo nas calçadas e fazem
xixi nas ruas, mesmo sabendo que é uma baita falta de educação. Haja companhia de limpeza urbana
para ficar catando a sujeira de gente que não está nem aí para nada, nem para seus vizinhos e muito
menos para o meio ambiente! Porém, temos que tomar cuidado para não jogar fora o bebê com a água
de banho... Até porque a chuquinha e a alfazema vão junto.

Nem tudo que os proponentes de ‘cidade limpa’ chamam de sujeira é sujeira. Vejam o caso da
pichação. Tem pichação que não acrescenta nada à paisagem. Existem outras que não, que alegram e
encantam e fazem pensar. Para distinguir umas das outras, o pessoal mais arrumadinho passou até
a chamar as boas de graffiti. Mas, quem é que decide qual é qual? Na verdade, pichação é tudo uma
coisa só. Muitos grafiteiros conceituados, que hoje expõem em galerias de arte, começaram a vida como
humildes pichadores, ‘emporcalhando’ paredes com seus garranchos incompreensíveis. Quer dizer,
incompreensíveis para quem não é do ramo, visto que se trata justamente de uma conversa cifrada.
Pichação costuma ser uma atividade de gente que se conhece entre si e se sente marginal ao mundo das
pessoas que leem textos como este – tipicamente, jovens de periferias urbanas. Você acha feios aqueles
sinais nas fachadas dos edifícios? A ideia é essa, meu caro leitor! Querer barrar a expressão visual dos
outros porque achamos feia e suja é equivalente a querer proibir funk ou rap ou axé ou sertanejo porque
eu e você achamos esses estilos pobres e repetitivos.
O xis da questão é um conceito bastante
duvidoso chamado ‘poluição visual’. Todos já
Muito do que chamamos, ouviram falar no termo. Muitos o empregam
com naturalidade, impensadamente. Ainda não
nas cidades, de “poluição encontrei ninguém capaz de defini-lo de modo
convincente, muito menos de comprovar sua
visual”, pode na verdade ser
existência. Poluição é aquilo que fere ou agride o
considerado como patrimônio meio ambiente: resíduos químicos, dejetos tóxicos.
Por analogia, poluição sonora é aquilo que fere os
histórico ouvidos: barulhos e ruídos de intensidade tamanha
que prejudicam a audição. Os efeitos nocivos da
poluição sonora podem ser demonstrados por
uma simples audiometria. ‘Poluição visual’ é o
Para quem quiser um exemplo quê, exatamente? Existe algum caso nos anais da
menos polêmico, tem o caso das propagandas medicina de pessoa que ficou cega ou apoplética de
em outdoor. Existem peças publicitárias tanto ver imagens? Se for este o caso, crítico de cinema
de todos os níveis, desde as mais toscas e precisa ganhar um adicional por insalubridade! Se
imbecis até umas que são primorosas. Tem não é a saúde que está sendo prejudicada, é o quê?
campanha que cria polêmica, lança moda Por dedução, só pode ser o senso estético de quem
e marca época. Ninguém ignora o quanto reclama. Ah, então está explicado! ‘Poluição visual’
a publicidade se tornou matéria-prima do é aquilo que alguém, entendido em estética, acha
discurso cultural no Brasil, e o outdoor é feio. Mas, peraí! Será que existe algum consenso
uma mídia prezada pelos publicitários. Sem entre os especialistas sobre o que é bonito ou feio?
dúvida, há excessos. Dizem os especialistas Que eu saiba, nenhum! Ao contrário, a filosofia da
que os outdoors mal colocados podem até arte discute o assunto há duzentos anos, sem chegar
causar perigo para motoristas. Não sou a uma conclusão. Sendo assim, a opinião de cada
maluco de brigar com especialista, mas será um a esse respeito, por mais que possa soar erudita,
que a solução para melhorar esse problema não passa disto: uma opinião entre outras.
passa por proibir o outdoor? Será que não
existe um critério técnico que permita coibir Para quem ainda não se convenceu, há um
os abusos sem se privar de algo proveitoso exemplo incontrovertível do valor da comunicação
quando bem-utilizado? Afinal, no que tange visual supostamente poluidora: os letreiros e placas
ao perigo para os motoristas, creio que seja de estabelecimentos comerciais. Caso se aprovasse
bem mais perigoso falar ao celular e dirigir hoje, no Rio de Janeiro, uma legislação parecida
ao mesmo tempo. Nem por isso, cogita-se com aquela que foi aplicada em São Paulo alguns
proibir o celular. anos atrás, perderíamos de noite para dia uma
rica profusão de sinalização informal que inclui
preciosidades de época, muitas cultuadas por
designers e historiadores.


Um dos meus letreiros prediletos é o da
“Musculação Atlas”, no bairro de Copacabana, que ostenta
um boneco pintado com rosto de adolescente espinhento
Não é de hoje
dos anos 1960 e um braço musculoso em neon verde, cujas
flexões de bíceps em três tempos já foram fonte inesgotável o conflito entre quem
de fascínio para mim. Alguns técnicos, de mente estreita,
avaliariam tais manifestações da memória gráfica como busca ordenar o espaço
‘sujeira’. Para quem tem horizontes um pouco mais amplos,
isto também se chama patrimônio histórico. Ninguém
urbano e quem busca dar
menos do que João do Rio dedicou uma crônica famosa vida à ele
às tabuletas de lojas, em A alma encantadora das ruas,
descrevendo-as como “brasões da democracia, escudos
bizarros da cidade”. Se o grande escritor já era capaz de
enxergar o valor cultural desses artefatos em 1908, por
que há ainda quem insista em desprezar essa forma de Hoje em dia, o lambe-lambe
expressão, tachando-a de poluição? é uma prática ameaçada de extinção,
que sobrevive apenas pela teimosia
de quem faz e pelo gosto evidente
Não é de hoje o conflito entre quem busca ordenar com que o público o acolhe. Esse
o espaço urbano e quem busca dar vida e vibração a ele. objeto maltratado, perseguido, faz
Os códigos e posturas municipais são necessários, mas parte de nossa cultura. É coisa nossa
costumam conter muito resquício de ideias ultrapassadas. – ‘a pintura das ruas’, aproveitando
Inclusive, preconceitos estéticos hoje inadmissíveis no outro dizer de João do Rio – que
mundo das artes, as quais desistiram de ser ‘belas-artes’ há conta a história da nossa vida como
muito tempo. Um bom exemplo é o cartaz lambe-lambe, ela é, mas talvez não como alguns
humilde e heróico representante da resistência de uma gostassem que fosse. Como se vê, uma
tradição tipográfica que data, entre nós, de quase dois praga a ser combatida. Do mesmo
séculos. É inacreditável que a prática de colar lambe-lambe modo que já foram perseguidas, neste
seja proibida em muitas cidades brasileiras. Em meados admirável país de contradições, outras
do século 19, o profissional que colava esses cartazes era manifestações da cultura popular
chamado de ‘casa-linda’, singelo apelido que parece como capoeira, samba e candomblé.
misturar uma admiração sincera pelo ofício do sujeito com Hoje, o acarajé é reconhecido como
uma boa dose da mais fina malícia carioca. Com o devido patrimônio histórico imaterial; mas
progresso dos séculos, conseguimos reduzir essa figura o lambe-lambe continua a ser caso de
simpática – o casa-linda, ou embelezador de ruas – a um polícia, passível de multa para quem
mero ‘emporcalhador’, praticamente um fora-da-lei. faz e quem manda pregar.

Está mais do que na hora de resolver esse conflito


hipócrita entre o que permitimos e o que gostamos. Se o
negócio existe há séculos, gera demanda e não faz mal a
ninguém, por que proibir?
Precisamos romper com a concepção da
vida das ruas e do crescimento da cidade como
algo a ser combatido, contido e controlado, como
Nossas cidades são grandes
se fosse um câncer a atacar um corpo saudável.
Ordenamento urbano, sim, claro! Porém, que se leve textos para serem lidos, escritos
em consideração que as cidades são organismos
em constante transformação. Não existe uma por muitas mãos e reescritos
configuração estável, ideal, permanente, um
momento quando se para e decreta: está pronta. diariamente por quem vive
Quando uma cidade atinge um grau de perfeição,
nelas
segundo determinada visão estética, e para de
mudar, é porque ela está morta. Vejam Paris, uma
cidade que todos acham linda (eu, inclusive), mas
que se transformou num grande museu ao ar livre
em algumas de suas partes mais turísticas. É uma Por outro lado, aquilo que é considerado
cidade pensada para ser admirada bovinamente feio, inútil ou poluidor das delicadas
por muitos, aproveitada plenamente por poucos e sensibilidades estéticas, pode vir a ser percebido
excludente para quem não pode pagar o preço do de outro modo. Nunca é demais lembrar que
ingresso. Será que é este o objetivo que queremos algumas opiniões abalizadas pediram que a
alcançar? Torre Eiffel fosse desmontada após a Exposição
Universal de 1889 porque, segundo os padrões
Nossas cidades são grandes textos para conservadores de sua época, ela enfeava a
serem lidos, escritos por muitas mãos e reescritos paisagem. Ou, para citar um exemplo mais
diariamente por quem vive nelas. O maior crime próximo, que foi arrasado em pleno século 20
que cometemos contra elas é de destruir seu tecido o Morro do Castelo, berço e núcleo fundador da
urbano por motivos torpes como nossa infindável cidade do Rio de Janeiro, por ser considerado
ganância especulativa. O segundo maior crime velho e insalubre. Esta vergonhosa destruição,
que cometemos contra elas é de mumificar seu crime contra o patrimônio histórico inédito no
tecido urbano por motivos fúteis como nossas resto do mundo, o Rio carregará como culpa
pequenas picuinhas estéticas. O gosto e a moda para todo o sempre.
são notoriamente instáveis; e o que hoje é
considerado uma linda ideia, amanhã pode ser
motivo de constrangimento e desprezo. Vejam os
muitos viadutos construídos a altíssimo custo nas
décadas de 1960 e 1970, inaugurados com alarde
por prefeitos e governadores, e que hoje se sonha
em derrubar.
A próxima vez que você se deparar com políticos querendo se eleger em cima da
ideia de ‘cidade limpa’, pare e pense sobre o que isto quer dizer, realmente. Pense um pouco
naquilo que se foi para sempre e naquilo que seria bom a gente preservar. Pare e pense no tipo
de cidade em que a gente quer viver. Ordem e limpeza são coisas ótimas, mas estão longe de
serem os valores mais elevados da humanidade. Muito do que eu e você consideramos arte,
já foi tachado de sujeira, decadência e imoralidade por autoridades e poderes passados. Se
dependesse da opinião estética de muita gente considerada esclarecida em outras épocas, nossa
herança cultural seria bem menos diversa e plural. Pense nos escritos do Profeta Gentileza,
maluco que ‘emporcalhava’ os lindos viadutos dos generais com crípticos dizeres pintados,
e que hoje é objeto de documentação e resgate, graças à visão de pesquisadores, cineastas e
instituições que reconheceram o valor cultural de seu trabalho. Quando as cidades estiverem
totalmente livres dessas sujeiras e inutilidades, haverá quem sinta a sua falta. Conto-me
entre estes. Vai ver, ainda tenho aspirações secretas a ser bonito e a viver numa cidade vistosa.
Deixa essa coisa de ‘limpa e arrumada’ para as mais feinhas.

Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte.


rafael105@oi.com.br


FAN
A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio

/A3 o

TAS
MA
P66

sobe ao pal-
co

por

Astier
Basílio
Quando li que Al Pacino havia comprado, ele

mesmo, os direitos de A humilhação, a nova obra de Philip

Roth, um prazer meu foi desmanchado:

o de escalar o elenco
dos romances que
leio.
Até tentei dar outro rosto ao protagonista do

romance, mas sempre o velho e bom Al interrompia minha

imaginação com a realidade de que, daqui a dois anos,

era ele que estaria dando vida àquilo. Sobrou escalar todo

Tecendo os escombros de
um teatro em ruínas
o restante do elenco. Aliás, imaginar quem interpretaria

quem em romances de Roth tem uma espécie de felicidade

clandestina. É que o escritor dá de ombros para a sétima Em A humilhação alguns livros


arte. Disse que o romance estaria em extinção, que a conversam. Melhor, algumas peças de teatro
imagem venceria as palavras. Perguntaram se gostava contracenam. Como vem acontecendo
de Woody Allen, outro artista que partilha de obsessões nos últimos romances de Roth, em que os
P67
judaicas e neuroses sexuais, Roth disse que não: “Ele é protagonistas se deparam com a crueldade
simplista e idiota”. Já imaginei Woody Allen interpretando o do irremediável, Alex, protagonista da
atormentado protagonista de Complexo de Portnoy. história, se vê na iminência da perda de algo
Sempre achei que Philip Roth fosse uma espécie de Woody muito precioso: o seu talento de ator. E, para
Allen com ácido muriático. voltar a falar sobre as citações do romance, a
constatação da perda de talento do consagrado

e veterano ator se dá após a interpretação

em dois papéis shakespearianos: Próspero,

de A tempestade e, claro, a mais maldita das

peças,
Macbeth.

A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio


Talvez o que a forma como eles se relacionam com o

haja em destino (o rei usurpador Macbeth atropela e

{
ao duque usurpado Próspero se molda), algo

comum em que parece escapar às mãos de Alex, seguir Ter um filho, como? Após zanzar pelos círculos do
ambos seja rota própria como os cegos desígnios de uma inferno de uma clínica psiquiátrica, Al Pacino recebe a visita

tragédia na qual, sem poder representar, por de uma velha conhecida sua. Não tão velha assim. É que ele

não crer mais em sua arte, o ator não veja a pôs nos braços. Até ajudou a escolher seu nome: Pegeen

mais sentido em estar vivo. Mike. Da peça Prodígio do mundo ocidental, do dramaturgo
irlandês John M. Synge. A mãe da personagem, do romance
de Roth, fazia parte do elenco de uma montagem deste texto
quando estava grávida. Mas, no mesmo da atmosfera de
tédio, é ela, agora quarentona, Pegeen, quem lhe bate a porta.
É ela, a lésbica, quem o beija. É ela quem o leva pra cama.
Outro ponto em comum nas narrativas
É ela que, após apontar com uma perspectiva no horizonte
de Roth, lembro que isso também ocorre em
arruinado de Al Pacino, no dia seguinte em que ele estaria

A n i m a l na clínica de reprodução, nem sequer dá brechas para ele

agonizante
chegar e dizer, querida, sabe onde estive ontem? É ela quem
diz: não dá mais. Ela é quem diz: tchau.

(Ben Kingsley, Eu escalaria Scarlett Johansson.

eu nunca o
escolheria!),
é que temos o anúncio da desgraça, a Entre o
narrar e o viver
corrosiva constatação disso e a crueldade
P68
atinge o melhor de seus requintes aqui, uma

ou um final de um
espécie de trégua, de apaziguamento, como

se o horizonte fosse mudar de cor. É nesse

romance quase
ludíbrio que Roth escava o mais humano, e

o mais patético, dos seus personagens. Ver

perfeito.
Al Pacino na sala de espera de uma clínica

especializada em reprodução, ouvindo de

uma médica simpática os riscos de ter um

filho àquela altura da vida:

há coisas que o cinema não consegue,

que ficam restritas à literatura – o

solilóquio do velho imaginando que

agora, sim, sua humilhação teve fim.

A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio


}
Ninguém cita impunemente.
Um deles dá uma espécie de conferência
Intempestiva, Pegeen (a de Syng, não a de
sobre o ato de se matar. Para este papel, pequeno, eu
Roth), mesmo sendo prometida a outro, aceita
escalaria Robert Duvall. Sem vontade de se enturmar
se casar com um estrangeiro, Mahon, que
mais – pista do que virá a acontecer – Al Pacino se
nunca viu antes, isso logo nas primeiras cenas
imagina interpretando um papel. O papel de um
da peça. Pesa nos ombros dele a acusação de
internado clínico. É só assim, no papel de um outro,
ter matado o pai (sim, o povo irlandês é único
que o personagem encontra sentido na vida. Não só
do ocidente infenso à psicanálise). É com o
na vida. Na morte também.
mesmo ímpeto que, no fim do terceiro ato, ela

decide não casar mais com o estranho. É que


Ninguém cita impunemente. Trepliov,
descobrem que o pai estava vivo. Desesperado
personagem de A gaivota, de Tchekhov, é um
de paixão, Mahon mata o pai a enxadadas na
fracassado. Trepliov queria ser um escritor de sucesso.
frente de todos, inclusive de Pegeen. Nem
Torna-se um. Al Pacino pega a espingarda que
assim ela o aceita e diz: “aprendi que tem um
apareceu no segundo ato. A atriz que Trepliov amava
abismo entre uma história de espantar e um
definitivamente não o quer, quando se reencontram.
crime sujo”. Está aí a chave para entender o
Al Pacino vai interpretar seu último papel, arma em
tormento do ator que décadas atrás, Roth é
punho. Trepliov constata: está sozinho, tudo o que
muito irônico, interpretou esse mesmo papel,
escreve é seco, nenhum afeto o conforta. Al Pacino
o de Mahon.
e Trepliov sincronizam as falas. Uma mesma sombra

atravessa a cena. Um tiro é disparado. Cai o pano. x x x x

X
Lá atrás, no começo do romance, há uma cena
xxxxx
em que se mostram os internos na clínica. O
xxxxx
contar as
passatempo deles é
xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx

xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx P69

xxxxx
tentativas xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx

xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx


xxxxx
de suicídio xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx

xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx


xxxxx
“ c o m o xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx

xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx


xxxxx
jovens que xxxxx
xxxxx
comentam Astier
jornalista.
Basílio é escritor e
xxxxx

esportes”. astierbasilio13@hotmail.com

A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio


70
A4 “Poesia Empoeirada” [ poema + ilustração por Julia Panadés ]

escrevo poesia

que

meu pensamento

empoeirada das

71

A poeira me fará refém do que passa.

assim serei simples

Amante

Amiga

paisagem

Inútil

Julia Panadés é poeta e artista visual - juliapanades@gmail.com


A5 > PERGUNTA DA EDIÇÃO por cristhiano Aguiar

§
PERGUNTA DA EDIÇÃO
QUE OBRA DE ARTE É O SEU SONÍFERO PREFERIDO?

Por mais que as pessoas discordem entre Há sete anos sou mãe, portanto, há sete anos
si e tenham opiniões diferentes sobre o mundo, o meu sono não é o mesmo. Desde que o Theo nasceu
tenho o costume de cantar para ele dormir (apesar de
universo e tudo mais, todos nós, em algum momento,
ter a impressão de que sempre durmo antes). A música
concordamos que dormir é uma coisa muito boa de
preferida para este momento até hoje é Coisas da vida
fazer. No entanto, mesmo o singelo “dormir nos braços da Rita Lee. Canto uma, duas, três vezes e de repente
de Morfeu” pode causar culpas e paranoias. Quem a canção vai perdendo o ritmo e o que era música
nunca se sentiu culpado por ter caído no sono quando se transforma em texto e as palavras se convertem
lia Aquele Clássico da Literatura Universal, ou Assistia em sono, até que não sei mais se estou cantando,
Àquele Filme que Todo Mundo Deve Achar Genial? falando ou dormindo. Esse estado de indefinição, de
não se saber mais lá ou cá, junto com uma letra que
Por isso, perguntamos aos nossos entrevistados: “Que
diz “eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho...” é
obra de arte é o seu sonífero preferido?” Confira abaixo
realmente o meu sonífero favorito. Letícia Bertagna
as respostas e veja se o que eles contam já aconteceu com
- artista visual e editora da revista Investigação nº 11
72 você..
A Bossa nova me faz dormir bem. A
Faço muito o uso da obra de arte como sofisticação harmônica elaborada pelos pais da Bossa
sonífero, sobretudo no sofá da sala com um bom nova como Tom Jobim e João Gilberto, renovaram o
edredom, pipoca e chocolate. No caso a obra de samba e projetaram o ritmo para as terras do Tio Sam,
arte (filme) serve apenas para compor o ambiente e dialogando principalmente com o jazz. Colocar Bossa
fortalecer o sonífero... É difícil escolher o preferido... nova no meu iPod é sinal que vou ter bons momentos
Mas acho que posso citar De olhos bem Fechados de relax e tranquilidade até alcançar o REM. Amigos
de Stanley Kubrick, todos do Buñuel e David Lynch, aqui da França do movimento Occitan (movimento
que amo e já vi-dormi várias vezes! Bebel Kastrup - que une os vários dialetos da língua occitan) dizem
que a Bossa Nova é a trilha perfeita pra empurrar
produtora cultural
carrinho de compras no Supermercado. Voilá! “O
pato, vinha cantando alegremente...quém, quém...”
This Time The Dream’s On Me, do Chet Baker
Merci! Silvério Pessoa - músico
Quartet. Não que a música maravilhosa deste disco
seja sonífera. Mas é que, na época em que eu morava
O que me dá muito sono artístico é quando
no estresse recifense, costumava me deitar ouvindo
um fotógrafo diz que a fotografia é o registro da
à cabeceira o sopro suave do trompetista e, deleitado,
realidade. Antes dele terminar a frase, já peguei no
terminava me embalando. Ouço a qualquer hora,
sono! Adelaide Ivánova - fotógrafa e cronista
mas é a coisa mais desestressante que conheço, junto
com certo ansiolítico, que deixei de usar como fazia
eventualmente desde que vim morar com Iracema
em Barra Grande! Homero Fonseca - escritor
A5 > PERGUNTA DA EDIÇÃO por cristhiano Aguiar

Se a gente considerar ‘sonífero’ como o Se o Vik Muniz me faz dormir... a obra dele
bálsamo que nos alivia da insônia, nos acompanha na abertura da novela da globo então... Paris, Texas,
à cabeceira, nos relaxa e encanta, então, fico com do Wim Wenders é melhor que Rivotril... o Pedro
meus livros de contos e de poemas, qualquer um Mariano é um calmante fitoterápico, mas a música
que eu escolha naquela noite, como, por exemplo, o dele nem é obra de arte né. Emiliano Freitas -
primoroso Macau, de Paulo Henriques Britto, ou os Arquiteto, ator, palhaço e cenógrafo
contos de Raymond Carver, estupendos. Agora, se
‘sonífero’ quer dizer aquilo que é bolorento e tedioso, Os filmes de Fellini me dão muito sono! Sei
lembro imediatamente de qualquer obra afetada, que tem todo um conceito na parada, e admiro isso...
metida à besta, que teima em não se comunicar. Sobre Mas que dá um sono da porra, dá. China - músico
essas... Ih! Esqueci... Me deu um sono... Adriana Dória
Matos - jornalista & editora da Revista Continente “SONHOS” do Kurosawa me fez dormir
algumas vezes... tentei assistir inteiro, não rolou,
O filme O Ano Passado em Marienbad de depois me conformei quando entendi que era essa
Alain Resnais. Há anos tento vê-lo inteiro e em todas mesma a proposta da narrativa, te induzir ao sono, e
as inúmeras vezes durmo em alguma parte. É bem acabei vendo por partes. Marisa Bentivegna - Light
possível até que juntando os fragmentos assistidos Designer (SP)
chegue ao filme completo, mas não garanto que na
sequência correta. Mas um dia ainda consigo... Rico Por favor não me apedrejem em
Lins - Designer público, mas eu não gosto do Miró ( não o poeta
Pernambucano,mas o artista plástico Espanhol). Já 73
tive várias oportunidades de ver as obras dele, em
Geralmente tenho por perto literatura
vários locais e até no próprio museu do artista, mas
Clariceana, é como uma oração! Pesquiso a obra
a sua obra não me consegue suscitar qualquer tipo
dela mesmo antes de entrar na universidade, é algo
de sentimento a não ser indiferença, concretamente,
cumplice. Em artes visuais tenho pesquisado a obra
de Leonilson, atualmente preparo uma exposição
acho mesmo chato. Márcio Laranjeiras - Designer
dele, e assim como Clarice é um complemento vital. gráfico e produtor cultural
Sempre durmo com eles! Bitú Cassundé - Curador e
Eu tinha um problema incrível com as
crítico de arte
páginas 19 dos livros. Passar delas era uma luta
gigantesca. Não eram qualquer páginas, eram as
Um sonífero para mim é ir ao cinema assistir 19. Mas, hoje em dia, nada me dá mais sono que
a um filme e encontrar na verdade um programa aquela coisa obrigatória que separei justamente pra
de televisão, cheio daquelas regras “infalíveis” de noite. Pode ser qualquer coisa - mas se coloquei na
mercado, todas enfadonhamente previsíveis, e cabeceira, ferrou. Morre com um parágrafo por dia e
ainda com as mesmas caras de sempre. A gente olhe lá - vai competir com o que já mora ali e ficou
precisa se surpreender e a (boa) arte tem esta função. pelo caminho. Pode ser a Piauí, um livro dez sobre
O resto é sonífero e passatempo. Isabela Cribari - Rock, biografia de Clarice Lispector, o Livro Budista
Documentarista, produtora de cinema e diretora de do Nascer e do Morrer. Não adianta. Chegou ali,
cultura da Fundação Joaquim Nabuco virou sonífero. E nem vou lembrar nada do que li no
dia seguinte. Mariana Nepomuceno - Jornalista
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