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FRANÇA: MÍDIA E VIOLÊNCIA

Os jogos
multidimensionais
das ritualizações
sociais na
expressão das
violências políticas Apresentação

RESUMO A sociologia da violência tem como obriga-


O presente artigo faz uma reflexão acerca da sociologia da ção essencial compreender e explicar, de
violência, trazendo exemplos da contemporaneidade, como maneira sincrônica, como uma situação de
o genocídio de Ruanda, na África, e o Plano Condor, na violência pode existir em um dado mo-
América Latina. mento, e como, a partir da revelação de um
certo tipo de estratégia social, essa forma
ABSTRACT de violência pode se manifestar1 . A com-
This article proposes some reflections on the sociology of preensão e a explicação da violência na so-
violence, using as examples some contemporaneous facts ciologia dependem essencialmente de um
like the Ruanda’s genocide, in Africa, and the Plano discurso metasociológico que se apóia fre-
Condor, in Latin America. qüentemente sobre trabalhos empíricos es-
pecíficos. Por exemplo, os estudos sobre a
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) delinqüência (a agressividade grupal, as
- Política (politcs) gangues, as violências urbanas, etc.); os es-
- Representação (representation) tudos sobre a relação entre instituição e vi-
- Rituais (rituals) olência (polícia, milícia, justiça, prisão,
etc.), ou ainda os estudos pontuados sobre
a família (veiolência conjugal, maltrato de
crianças, etc.). Na falta de uma definição
exaustiva, é possível orientar a pesquisa a
partir de um axioma epistemológico míni-
mo: a violência é a dominação e a relação
de força exercidas por um indivíduo ou
grupo social sobre um outro indivíduo ou
outro grupo social. Implicitamente, isso
obriga a pensar o fenômeno a partir dessa
relação social assimétrica, que consiste em
definir um agressor e um agredido, um
opressor e um oprimido, um dominador e
um dominado. Essa relação social tão parti-
cular que qualificamos de agressão define
o estatuto social da vítima. Dominação, re-
lação de força, relação social assimétrica e
estatuto social de vítima inserem-se em um
Denis Fleurdorge* vasto campo de estudo. É preciso apenas
IRSA-CRI/ Montpellier III restringir o campo à violência política, par-

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tindo de uma dimensão macrosociológica trangeiro confirma, para todo grupo dado,
(a violência do Estado), para chegar a uma a convicção de sua identidade como um
escala microsociológica: a violência simbó- Nós autônomo. Isso significa que o estado
lica institucional. Os atores do político pre- de guerra é permanente porque, com os es-
sos nesse tipo de relação serão estudados trangeiros, existe unicamente uma relação
nas diferentes redes de troca, nos múltiplos de hostilidade, efetivamente colocada em
estatutos. Trata-se de considerar o conjunto prática, ou não, em uma guerra real. Não é
dos atores políticos que se inscrevem dire- a realidade pontual do conflito armado que
ta ou indiretamente numa produção de “vi- é essencial, mas a permanência de sua
olência simbólica” e de identificar as víti- possibilidade, o estado de guerra perma-
mas reais e simbólicas na construção desta nente, de maneira que ele mantenha na sua
“alteridade de transferência” que requalifi- respectiva diferença todas as comunida-
ca a capacidade de obter-se uma troca igua- des 4 ”. Mesmo que a reflexão de Pierre
litária, por falta, impotência ou até mesmo Clastres seja sobre as “sociedades locais”,
uma certa inferioridade. Essa alteridade de não é absurdo transpor esse estado às
transferência é comum em todas as formas nossas sociedades modernas. Em uma
de constituição de uma organização social. realidade contemporânea é, por exemplo, o
Assim, a violência do Estado é concebida equilíbrio pela ameaça nuclear que traduz
como uma violência dirigida a este outro, em filigrana um “estado de guerra perma-
que é representado pelos indivíduos ou nente”, permitindo o equilíbrio de diferen-
grupos sociais constituídos, no momento tes perspectivas entre os países soberanos.
em que o ato violento encontra um modo
de expressão favorecendo a transferência
das suas próprias faltas, de sua própria in- Violência e política, uma história
capacidade e de sua inferioridade2 . A isto, indissociável da administração
é conveniente acrescentar a importância de dos homens
uma dimensão cultural original, até mesmo
transhistórica: aquela da violência sob a A invenção paradoxal de uma violência po-
sua forma guerreira. Para o etnólogo Pierre lítica se explica pelo fato de que não existe
Clastres, a dimensão guerreira das socieda- uma violência natural, que antecederia
des “primitivas” revela um caráter funcio- uma cultura que seria ideal e puramente
nal: “O exame dos fatos etnográficos de- pacífica. É impossível descrever organiza-
monstra a dimensão propriamente política ções sociais que possuem naturalmente
da atividade guerreira. Ela não se refere uma cultura violenta ou pacífica. A voca-
nem à especificidade zoológica da humani- ção violenta das sociedades está sempre na
dade, nem à concorrência vital das comuni- ordem e na conjugação de uma construção
dades, tampouco a um movimento cons- social e histórica onde o político pode ser
tante de troca rumo à supressão da violên- um dos meios de expressão.
cia. A guerra se articula na sociedade pri- As pesquisas sóciohistóricas de Nor-
mitiva (ela é também universal), ela é um bert Elias5 mostram que mesmo a dinâmica
modo de funcionamento. É a própria natu- da invenção da modernidade ocidental
reza desta sociedade que determina a exis- passa pela construção inédita de uma certa
tência e o sentido da guerra (…), ela já está concepção do político, ou seja, o recuo da
presente como possibilidade no ser primi- violência, como um verdadeiro “processo
tivo3 ”. Ele acrescenta que a violência guer- de civilização”. Ele sublinha que, a partir
reira pode ser um meio de afirmar sua de formas sutis de autocontrole social, uma
identidade construindo uma figura de ritualização e uma codificação sofisticada
estrangeiro: “Para todo grupo local, todos das relações humanas (regras de cortesia,
os Outros são estrangeiros: a figura de es- de comportamento em público, de etique-

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ta, protocolo, etc.), foi possível estabelecer será definitivamente interditado aos senho-
uma transição entre a sociedade feudal, res, notadamente pela interdição dos due-
inscrita em um certo regime de violência, e los, e, apesar de fortes resistências, transfe-
a sociedade civilizada; a passagem de uma rido ao estado7. Assim, para Norbert Elias,
sociedade de cavaleiros guerreiros e bru- o Estado-nação constitui-se, passo a passo,
tais a uma sociedade de homens gentis pa- com um processo de “monopolização do
cíficos e refinados. O autocontrole social poder”.
permitiu conter e desfazer os instintos e os Com o fim do feudalismo e sua corte
afetos, para substitui-los progressivamente de mutações, o que pode ser concretamente
pelas modalidades de relações sociais mais retido é, antes de tudo, o fim das guerras
sofisticadas, como o controle de si e o do- privadas, feudo contra feudo, como tam-
mínio dos códigos sociais complexos. As- bém o fim de uma polícia e de um exército
sim, é a integração das regras de urbanida- dependente do senhor. Em seguida é o fim
de e de civilidade que instaura formas de da uma justiça feudal, quer dizer local e de
vida em sociedade fortemente codificadas, exceção. Lentamente um estado se institui
até mesmo ritualizadas. e com ele o fim da regulação da violência
A partir desta histórica mutação da por meios de exceção. O que vai instituir o
sociedade, a concepção do político modifi- Estado-nação é a monopolização do poder
ca-se. Lá onde reinava uma quantidade de contra todas as formas de feudalismo atra-
entidades conflituosas como feudos e vés da substituição de uma justiça, de uma
senhorias, surge uma forma de rarefação polícia e de um exército; um poder ao qual
dos dirigentes políticos. O sistema monár- se atribui o monopólio das formas de ex-
quico permite apenas a algumas famílias pressão e do exercício do poder e da vio-
visarem a um papel político: Bourbon, lência.
Valois, Orleáns, Guise, etc. O apogeu desse Mas o contragolpe desta mutação so-
sistema situa-se entre os séculos XVI e ciopolítica é que o Estado vem a ser um
XVIII, na medida em que os conflitos entre instrumento racional ou que racionaliza
um senhor e seu vassalo desaparecem e seus meios de enquadramento, de domina-
circunscrevem-se a territórios limitados ção e de coação sobre os indivíduos. O Es-
geograficamente. Da guerra conduzida tado oferece, como Janus, uma dupla face.
sobre vastos territórios por uma nobreza da Ele não somente é a garantia legítima de
espada, escorregamos insensivelmente aos uma certa ordem social e de uma certa paz
combates de salão da Corte. O desapareci- social, mas também é instrumento de do-
mento da multiplicidade de autoridades, minação dos indivíduos. O Estado passa a
que antes praticavam curtas solidarieda- ser a garantia exclusiva de uma nova or-
des, permite à violência eufemizar-se, de dem social e do único exercício do poder.
uma certa maneira, já que ela tende a não A característica das democracias oci-
mais se exprimir fisicamente. A sociedade dentais e desenvolvidas não é mais exercer
é, então, pacificada por uma espécie de a violência ou tender para um exercício li-
“frustração organizada” com o único pro- mitado e medido da violência. Opomos
veito do Estado com esta “sacristanização” hoje de maneira pouco ativa duas esferas:
da figura do guerreiro6. O poder de violên- esta do Estado, um governo e uma organi-
cia é transferido a uma instituição abstrata zação administrativa e aquela bem mais
e não é mais um perigo para o tecido soci- larga da sociedade civil, o conjunto dos
al. Porém, se as solidariedades são mais grupos, das associações, das instituições
largas, outras formas de violência podem privadas que estruturam a sociedade. Nes-
nascer entre dirigentes políticos, arriscando sa oposição formal, acusa-se o Estado de
abalar o conjunto desse sistema de equilí- não conseguir realizar a “violência zero”,
brio precário. Este exercício da violência apesar dos pedidos insistentes e crescentes

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da sociedade civil. Assim, mesmo demo- O genocídio de Ruanda ou uma violên-
crático, o regime não substitui a violência, cia da emoção
já que esta continua a existir sob forma su-
blimada. Por exemplo, nas atitudes de re- A violência da emoção é fruto de uma exa-
jeição do político: não votar ou votar nulo cerbação das paixões. É uma violência pas-
manifesta ou pode manifestar a rejeição de sional impulsiva e imprevisível. Essa vio-
formas de violência como a incompreensão lência situa-se no domínio do imediato,
ou a inadequação dos discursos políticos, a ocultando a distância e a reflexão. A
utilização corrupta do dinheiro público, a melhor ilustração dessa manifestação da
mentira eleitoral, etc.; e isso em um contex- violência é o genocídio de Ruanda. Tudo
to de expressão do político que favorece a começa no 6 de abril de 1994, com a explo-
superioridade do número e não dá conta são em vôo do avião do presidente de Ruan-
do minoritário, do marginal. Em outros ter- da, Juvenal Habyrimana (da etnia Hutu).
mos, o que é rejeitado é uma violência de A partir deste acontecimento desenca-
cifras e percentagem que tende a unificar deador, tem lugar um vasto programa de
de maneira errônea a realidade política, ou urgência cujo propósito é massacrar os
o que acreditamos ser esta realidade. Existe Tutsis. Os camponeses arregimentados por
sempre uma violência residual inerente ao algumas milícias (Interahamwes) e por pes-
sistema, limiar incompreensível da violência. soas poderosas transformam-se em uma
Max Weber não tem ilusão sobre a implacável e sistemática máquina de ma-
questão, uma vez que insiste sobre a idéia tar. Calcula-se o número de vítimas do
de que “a ligação entre o Estado e a vio- massacre entre 800 mil e um milhão de
lência é particularmente íntima8 ”. E acres- homens, mulheres e crianças pertencentes à
centa que “o Estado é uma relação de domi- etnia Tutsis, que serão exterminados em
nação exercida por homens sobre outros ho- apenas cem dias. O desaparecimento brutal
mens, e apoiada por meio da violência le- do presidente de Ruanda, nunca elucidado
gítima (o que significa: considerada como quanto a mandatários e cúmplices, aparece
legítima )9 ”. como fator desencadeador. É conveniente
Sob um ponto de vista fenomenológi- acrescentar que uma campanha ideológica
co, a violência política do Estado conside- (por rádio), cujo objetivo era o convenci-
ra-se uma realidade violenta fenomenal mento sobre a necessidade imperiosa de
que exclui não somente todas as formas de exterminar todos os Tutsis,10 havia começa-
violência que teriam uma suposta origem do antes e durou vários meses.
natural, mas também todas as formas de vi- Jean Hatzfeld, no seu livro Dans le nu
olência que reivindicariam-se como um de la vie. Récits des marais rwandais 11 , esboça
meio de defesa frente a uma ameaça ou pe- um perfil comum da docilidade e da extre-
rigo exterior. ma simplicidade de todos os carrascos:
A violência é, então, compreendida bom pai de família, bom católico, bem inte-
como o resultado de uma ação nociva ou grado socialmente e incapaz mesmo de ma-
de uma ação deliberada. De uma maneira tar uma galinha. Esses homens simples,
prática, a violência é dirigida contra o Ou- inscritos na normalidade banal de uma so-
tro, sendo ele percebido como nocivo, ciedade pacífica e essencialmente rural,
como alteridade negada (ação nociva), ou transformariam-se em uma força cega e sur-
então dirigida contra o Outro enquanto da cujo sentimento exterminador será con-
vontade individual que não deve exprimir- tagioso e mobilizador. Progressivamente,
se (ação deliberada). A violência torna-se estabelece-se um ritmo do genocídio. Jean
multiforme em torno de duas possibilida- Hatzfeld relata que a exterminação instala-
des: uma violência emocional e uma vio- se como um trabalho normal, planificado e
lência racional. pontual como uma jornada de trabalho no

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campo. Corta-se, destrincha-se, estupra-se e ritual de inversão, como refere Jean Hat-
rouba-se do amanhecer ao anoitecer, como zfeld: “os pobres tornam-se ricos13 ” real e
se as atividades agrícolas fossem traduzi- metaforicamente.
das em atividades genocidas. Nada, nem
ninguém, é poupado em qualquer lugar,
nas casas, nos campos, nas escolas, nas ma- A violência racional, o paradigma do
ternidades, nas igrejas. Não fazer exceção “Plano Condor” na América Lati-
parece ser a senha. na a partir da generalização de
Em uma explosão desta violência, o sistemas fortemente ritualizados
caráter do genocídio vem da conjunção de
um número importante de elementos que A violência racional é simultaneamente da
encontraram o princípio de uma lógica ordem da medida e da desmedida. Medida
própria no evento de origem, isto é, o ato pelo cálculo da sua realização e desmedida
inesperado de um assassinato presidencial. pelos seus efeitos. Na origem desta forma
O caminho de uma destruição sistemática, de violência, existe um sentimento passio-
levando a um verdadeiro genocídio, forma- nal, mas esse sentimento é controlado pelo
se, aos poucos, a partir de elementos recurso à razão e ao cálculo, que permitem
disparatados, com uma propaganda trama- racionalizar a ação violenta. Essa violência
da anteriormente, as injunções repetitivas se apóia sobre um sistema instituído e or-
ao massacre, o recrutamento forçado, a ne- ganizado. Sistema fortemente hierarquiza-
cessidade de um rendimento e eficácia do, que sustenta um conjunto de regras du-
(que será controlada e sancionada por pu- ras, fonte de práticas inflexíveis e sem dis-
nições ou recompensas). cussão. Essas práticas inflexíveis podem
A primeira característica essencial ser descritas como todas as formas da ritua-
dessa forma de violência da emoção é uma lização das ações militares. Com efeito,
dupla despersonalização. Esta, por sua como sublinham precisamente Théodore
vez, refere-se às vítimas. O outro não tem Caplow e Pascal Vennesson: “Se a organi-
mais valor, não existe mais como ser zação burocrática é uma das maiores carac-
humano: é a ruptura brutal da coexistência terísticas dos exércitos, a identidade, os
entre duas comunidades étnicas. Da mes- símbolos e os rituais representam também
ma maneira se opera uma despersonaliza- um papel importante. Evitando exagerar a
ção individual do carrasco que pode se influência ou, inversamente, de não ver
identificar em seu discurso quando este uma espécie de folclore derrisório, pode-
narra sua compreensão do acontecimento. mos assinalar os principais elementos de
Com efeito, Jean Hatzfeld sublinha que, no uma cultura militar que contribuem para
momento das conversas individuais com singularizar as forças armadas e marcar por
os torturadores12 , o que aparecia era uma ritos a passagem do civil ao soldado14 ”. De
forma de destreza pessoal, concedendo a outra maneira, a partir de um sistema
primazia ao “nós” sobre o “eu”. Existe uma organizado, hierarquizado, ritualizado ao
percepção e uma restituição unicamente extremo e estabelecendo uma separação
coletiva do horror cometido. A segunda impermeável entre um mundo dito “mili-
característica reside na fascinação pela tar” e um mundo dito “civil”, no contexto
facilidade e eficácia dos massacres frente à do devotamento das finalidades tradicio-
docilidade das vítimas, o que instaura um nais de todo exército, que é de proteger
tipo de movimento autotélico: quanto mais uma nação fazendo a guerra, colocou-se em
se massacra mais é simples e justificável a movimento uma máquina autônoma capaz
execução desse tipo de ato. A despropor- de controlar o conjunto de uma sociedade
ção do ato em relação ao objetivo persegui- através da violência15 .
do parece inscrever-se num tipo de grande O exemplo mais significativo encon-

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tra-se nos anos 1970 e 1980 com as ditadu- cooperação visando à supressão de toda
ras militares no sul da América Latina (Ar- oposição, política, social ou cultural. Ma-
gentina, Brasil, Chile). Além da instalação rie-Monique Robin16 observa a existência
de regimes ditatoriais que combatem siste- de uma organização transnacional que ofe-
maticamente seus oponentes, instala-se um rece às diferentes ditaduras um meio de co-
método em grande escala e sem preceden- laboração estreito, mas ela também desco-
tes de luta contra todos questionamentos, bre, sobretudo, que a racionalização da vio-
reais ou supostos, da nova ordem política. lência encontra, de maneira impressionan-
Esta organização separatista e fortemente te, sua origem na história das guerras pós-
integrada pelo ritual pôde colocar em ação colonialistas francesas. Com efeito, milita-
práticas que ultrapassavam toda proporção res franceses (oficiosamente e/ou oficial-
e todo controle. Essas práticas são formas mente?) estão diretamente implicados na
violentas perfeitamente codificadas: se- formação e no enquadramento de seus ho-
qüestros, saques, torturas, desaparecimen- mólogos argentinos (ou mais largamente
tos e execuções, tudo isso no quadro do latino-americanos), graças às experiências
extrajudiciário. O primeiro elemento im- adquiridas durante a guerra da Indochina e
portante que convém sublinhar é o fato de da Algéria com a técnica de guerra dita
que esta violência ilegal e ilegítima torna- “anti-subversiva”. Segundo Marie-Moni-
se de fato legal e legítima no quadro de um que Robin17 , os franceses desenvolveram o
regime de exceção, onde a regra fundamen- conceito de “guerra revolucionária” ou ain-
tal é justamente a exceção em nome do es- da de “inimigo interior” a partir das expe-
tabelecimento de uma ordem social. É a riências adquiridas em guerras de um novo
chegada ao poder pelo golpe de Estado tipo. A particularidade das guerras coloni-
que funda esta “ilegalidade legal” e esta ais e, mais particularmente aquela da Algé-
“legitimidade ilegítima”. Tudo se torna ria, é abolir a tradicional linha de frente
excepcional e parece ser dominado pela (uma linha de frente tradicional, identifica-
necessidade de combater um “mal interi- da e identificável). Não existe mais o con-
or”. O segundo elemento importante reside fronto (ou quase) de grupo a grupo (um
ainda na racionalização do exercício de exército contra um outro), mas uma grande
uma violência política é o estabelecimento dispersão dos meios utilizados (atentados,
de um sistema internacional para perseguir assassinatos, ações de comando ou simbó-
o “inimigo interior” em colaboração com licas, utilizações de redes clandestinas,
outros países. O sistema leva o nome etc.). De maneira que o inimigo está em
codificado de “Plano Condor”. O “Plano todo lugar. De fato, existe a supressão das
Condor” é uma rede supranacional e barreiras sociais: todo mundo pode ser
criminosa, que permite coordenar as ativi- considerado como tal. A resposta a este
dades dos serviços secretos e da polícia tipo de situação é uma perseguição no pró-
entre Chile, Argentina, Bolívia, Brasil, Pa- prio seio da população civil, para além do
raguai, Uruguai. Trata-se de um verdadei- quadro militar estrito. Isso permite justifi-
ro terrorismo de Estado que tem por car práticas tanto novas quanto excepcio-
função perseguir e eliminar, numa escala nais (o quadro sendo extrajudiciário) como
internacional, os dissidentes políticos a extorsão da informação (torturas), o ras-
(oponentes, sindicalistas, jornalistas, inte- treamento do território (saques, raptos), o
lectuais, etc.). Esse sistema pôde instalar-se desaparecimento de indivíduos (execuções
na medida em que todos os países anterior- sumárias). Pode-se dizer que a eficácia das
mente citados, apoiavam-se sobre as mes- ditaduras sul-americanas, principalmente
mas estruturas militares. da Argentina e do Chile, deve-se à forma-
Assim, as ditaduras da América Lati- ção oferecida por franceses. A experiência
na dotam-se de um meio secreto e eficaz de adquirida se concretizará no estabeleci-

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mento de verdadeiros grupos especializa- por uma vontade de destruir certos tipos
dos: os “esquadrões da morte”. de relações sociais e fazer emergir um
Esta prática de uma violência racio- espaço político sobre o exercício real de
nal, quase científica, não tem conseqüênci- uma violência invisível, cuja existência
as unicamente para os países da América real, sempre suposta, deve bastar para
Latina, mas serve para desvendar os basti- dissuadir todas as formas de contestação
dores desconhecidos de uma democracia, a ou de oposição. É importante para o poder
França, na sua capacidade de desenvolver da situação confiar o exercício desta
no seu seio a tal concepção da violência do violência às instituições legítimas como a
Estado. As práticas políticas não são ape- polícia e/ou o exército, numa dimensão
nas sincrônicas, redutíveis a algumas exce- extrajudicial e secreta. Os efeitos políticos
ções locais, mas diacrônicas, inscritas em são importantes, já que isto permite elimi-
uma forma pervertida da concepção do Es- nar os oponentes políticos sem grandes
tado-nação. Marie-Monique18 Robin revela protestos dos outros países e, assim, man-
provas de todos esses fatos, apoiando-se ter relações internacionais satisfatórias.
sobre arquivos e depoimentos inéditos dos Quando alguns protestos internacionais
atores deste período, como os antigos ge- são feitos, é sempre possível alegar a práti-
nerais argentinos e chilenos, mas também ca de elementos isolados ou sem controle.
franceses e americanos. Ela mostra também Em última instância, é possível justificar
que, no fim dos anos 1950 (antes do fim da essas práticas como excepcionais e transitó-
guerra da Algéria), a experiência da “Bata- rias em nome da luta contra o comunismo, o
lha de Alger” serviu de objeto de reflexão terrorismo, o integralismo, o separatismo, etc.
entre os ensinamentos da Escola Superior
de Guerra em Paris. Algum tempo depois,
em 1959, um acordo foi assinado entre a A vestimenta como violência simbóli-
França e a Argentina instaurando em Bue- ca institucional
nos Aires uma “missão militar francesa
permanente”. Esta missão permanente per- A expressão social das violências simbóli-
durará até a chegada do General Videla cas institucionais é multiforme. Discretas
nos anos 1970. Mas essa colaboração técni- ou ostentatórias, conscientes ou inconscien-
ca não pára por aí, já que secretamente o tes, suas manifestações produzem necessa-
governo de Valéry Giscard d’Estaing man- riamente relações de subordinação e cons-
tém relações não apenas com a Argentina, trangimento, que têm por respostas a sub-
mas também com o Chile do general Pino- missão ou reações-respostas que podem
chet. Pode-se também sugerir a idéia de ser manifestações de uma violência real. Se
uma reciclagem individual de antigos mili- Pierre Bourdieu 21 deu uma orientação e
tares da Indochina, da Algéria, da O.A.S.19 , um quadro particular à noção de violência
dos fascistas20 , etc., que encontram ao mes- simbólica, enquanto limitava de fato o cam-
mo tempo o meio de se fazer esquecer e po de expressão desta noção, é interessante
partilhar uma competência particular, tudo desenvolver uma reflexão sobre a expres-
isso com o consentimento dos governos. são social da violência política a partir da
Nota-se, enfim, a benção implícita dos ame- origem da palavra: “symbolum” - símbolo
ricanos, na medida em que eles também de fé, do latim clássico symbolus, signo de
utilizam, a partir de 1960, o conhecimento reconhecimento, do grego sumbolon, clara-
do general Paul Aussaresses, especialista mente falando, objeto dividido em dois
na Algéria das técnicas anti-subversivas. O constituindo um sinal de reconhecimento
general formará oficiais americanos que quando os dois portadores podiam juntar
utilizam suas técnicas no sul do Vietnã. (sumballein) os dois pedaços” (Robert) - , o
A violência racional é sempre movida símbolo é destinado a representar uma rea-

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lidade mais ou menos ausente ou abstrata, rárquica e funcional, o reconhecimento
se não sobrenatural. O símbolo é a expres- identitário, ou seja, o fato de pertencer a
são visível de uma comparação entre dois um corpo específico, a ascensão a um “sta-
termos onde um é invisível e o outro não. tus de elite” (vestimenta de aparato dos
De maneira que o adjetivo “simbólico” se militares, por exemplo), a neutralização
aplica ao que serve de símbolo, ao que tem completa (ao contrário do “status de elite”).
a característica do símbolo. No domínio do Lucienne Bui Trong22, antigo comissá-
político, os exemplos são numerosos: com- rio das Informações gerais, ocupando-se da
paramos a pomba com a paz, a balança seção “Violências urbanas”, definiu uma
com a justiça, a bandeira com a pátria, etc. escala de oito graus de violência, a partir
Porém, existem símbolos mais discretos e da natureza dos atos cometidos e das pes-
também eficazes, como o uniforme da auto- soas que sofreram essas violências. No que
ridade (policial, militar, prefeito, etc.). As- caracteriza a violência contra as pessoas,
sim, trata-se de sublinhar a importância da convém notar que é a partir do terceiro
vestimenta nos processos que engendram grau desta escala que elas se manifestam
comportamentos de violência em reação a contra as vestidas com uniformes: “um
uma violência institucional representada terceiro grau é atingido assim que as
pelo uniforme da autoridade. A idéia de agressões físicas tocam aqueles que portam
uma contestação da vestimenta, concebida um uniforme (excluindo policiais ou guar-
como símbolo, obriga um certo desvio pela das): condutores de ônibus, vigilantes,
história de uma vestimenta particular a bombeiros, militares 23 ”. É preciso chegar
uma função social precisa. Primeiro utiliza- ao quarto grau para que as pessoas usando
do nas Legiões romanas, o uniforme tem uniformes de autoridades - policiais e
seu verdadeiro desenvolvimento a partir guardas - sejam diretamente visadas. A
do século XVII, época em que, essencial- evolução da graduação dessas violências
mente constituídos de mercenários, os segue um movimento de amplificação: “o
exércitos em guerra (Guerra dos Trinta quarto grau marca uma espécie de pata-
Anos) apresentavam a aparência de hordas mar: os apedrejamentos aos carros de polí-
desarmônicas. Progressivamente, as vesti- cia e os agrupamentos hostis à polícia24 ”.
mentas de guerra vão se uniformizar, con- No quinto grau, a violência é ainda mais no-
tribuindo para dar um aspecto mais homo- tável: “as invasões de delegacias soam como
gêneo às tropas. Elas vão permitir a uma reprimenda ainda mais ousada em rela-
afirmação simbólica de uma potência e, ção aos serviços de polícia e uma vontade
pela escolha das cores, dos signos distinti- mais firme de fazer pressão pelo número25 ”.
vos, dos atributos particulares, etc., a No sexto grau, entra-se em um aumento da
identificação de sua aparência a um prínci- gravidade dos fatos : “agora são os policiais
pe ou a um soberano. Hoje se relaciona ao que são deliberadamente feridos. A delega-
uniforme as noções de autoridade e respei- cia é atacada por pedras e coquetéis Molo-
to, assim como as de graduação e função. O tov26, quando as pessoas ainda estão presen-
uniforme é “de desfile” quando ele evoca tes”. Enfim, o sétimo e oitavo graus recobrem
uma mitologia histórica e cultural (vesti- os mesmos fatos, mas com uma duração mais
menta de aparato decorada e colorida); mas prolongada na expressão dessas violências
ele continua puramente técnico no seu uso (em horas e mesmo em dias) e em um estilo
estritamente profissional (roupa de comba- mais aproximado do mini-motin e do motim.
te, por exemplo). Em suma, podemos dizer Esta tipologia, fruto de uma observa-
que o uniforme é a “vestimenta litúrgica” ção de campo nas práticas das violências
por excelência. Em uma perspectiva socio- urbanas, afirma uma separação bem clara
lógica, o uniforme permite a separação ci- entre o que poderíamos chamar de violên-
vil-militar ou civil-policial, a distinção hie- cias urbanas ordinárias, despidas de

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qualquer conotação contestatória, e as vio- se confunde com o eu mais profundo. Ela
lências urbanas, onde os alvos são delibe- é apreendida de maneira pessoal na me-
radamente institucionais. Assim, o policial dida em que diz respeito a elementos
e o guarda, identificáveis freqüentemente fundamentais da esfera privada e da inte-
por seus uniformes, encarnam esta figura gridade da pessoa. A urgência é sofri-
de autoridade. A partir do quarto grau, po- mento. Ela remete a situações de dor físi-
demos dizer que existe uma violência ca e/ou psíquica.
antiinstitucional focalizada sobre o que Se tomarmos, por exemplo, a reali-
representa a forma mais autoritária (repres- zação de políticas sociais na França que
siva) das instituições sociais. visam inicialmente aliviar os “sofrimen-
tos sociais” dos mais necessitados, cons-
tatamos na prática a existência de violên-
As violências políticas invertidas: a cias induzidas pelas instituições especi-
urgência e a vitimização alizadas encarregadas da realização des-
tas políticas. Já há alguns anos a palavra
O retorno às solidariedades curtas nas nos- mestra é a urgência social. É preciso intervir
sas sociedades modernas desenvolveu um com urgência nos casos mais flagrantes de
certo número de práticas, como a segmen- pobreza: abrigo, saúde, nutrição, etc.
tação da sociedade em setores de atividade Em tal contexto, podemos então fa-
e de competências nos domínios da econo- lar de violências institucionais no sentido
mia, e o princípio de subsídio na restaura- em que a dupla articulação da urgência
ção do elo social pelo político, etc. De ma- com o íntimo e com o sofrimento funda a
neira que, por repercussão, os grupos soci- disjunção essencial. Esta, por um lado,
ais constituídos em torno de suas reivindi- representa a incapacidade dessas institui-
cações específicas e exclusivas tendem a ções especializadas para oferecerem a
engendrar, frente a outros grupos sociais, possibilidade de verdadeiramente sair-se
violências supostamente compensatórias e da exclusão social em termos de integra-
legítimas. A isso se acrescenta uma separa- ção, de inserção, mesmo de ressocializa-
ção administrativa e formas de descentraliza- ção, e, por outro, a organização de uma
ção que favorecem o retorno às violências. forma de controle, até mesmo de “vigi-
lância” dos pobres.
A urgência, em apreciação de seu ca-
A ideologia da urgência ráter de acontecimento, inscreve-se no
domínio do imprevisível, mas um impre-
A urgência é sempre ligada a uma situação visível reconhecido (sinais precursores),
ameaçadora. A situação ameaçadora se por ter como característica provocar
manifesta por um certo número de sinais danos e apresentar riscos quanto à inte-
precursores. Trata-se de pessoas desabri- gridade das pessoas pobres. Além disso,
gadas que acumulam, além disso, um convém sublinhar que a natureza da ur-
certo número de desvantagens sociais: gência social, definida em termos de de-
ruptura dos laços familiares, desempre- manda social, serve de escala de avaliação.
go, ausência de qualificação; ou, ainda,
de desvantagens pessoais: idade (popula-
ção jovem ou muito idosa), saúde física e A vitimização ou a invenção da figura
psíquica sensível. De um ponto de vista vitimária
teórico, pode-se dizer que a urgência so-
cial articula não somente a urgência e a Uma vez passado o drama - desapareci-
intimidade, mas também a urgência e o mentos, torturas, deportação, genocídio, as-
sofrimento. Desta forma, a urgência social sassinato, etc. - frente a atores políticos ina-

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ceitáveis ou odiosos, não é chocante que se diretamente ligadas a questões de cor da
levante a voz das vítimas, quando elas so- pele ou de origem étnica, se encontram sob
brevivem, ou aquelas de seus familiares. os aspectos mais práticos da vida social:
Não se trata de caucionar e absorver esse entrevista de emprego, pedido de abrigo
ou aquele desvios políticos, mas, por social, abertura de conta bancária, entrada
vezes, a violência pode se inverter no em certos restaurantes ou casas noturnas,
sentido de uma certa expressão da domi- etc. Trata-se de um fenômeno social maior,
nação, mudar de campo, muitas vezes atra- que toma cada vez mais lugar no discurso
vés do discurso. e nas ações políticas.
“Uma certa expressão da dominação” Podemos falar de uma certa utilização
sublinha que a natureza da violência políti- política, institucional e associativa desta vi-
ca sofrida e a natureza da violência que po- olência feita a pessoas de origens étnicas
deria exercer o estatuto de vítima se situam diferentes. As ações e, sobretudo, os
sobre escalas de valores diferentes. Se a discursos emergiram para denunciar esta
primeira é condenável, a segunda respon- realidade inaceitável em uma democracia.
de a um processo identificável. Com efeito, Atores políticos se mobilizaram, associa-
a figura vitimária se constitui por um pro- ções foram criadas, e as instituições se
cedimento que consiste em tornar primeira- adaptaram a fim de evitar quaisquer des-
mente legítima uma reivindicação de con- criminações étnicas. Mas o fato de denunci-
dição vitimária; legitimidade que vai em ar, proteger, ou ainda implicar, induz a
seguida se modificar e adquirir uma nobre- uma relação de dominação no sentido onde
za, até mesmo tender a “heroificar” o esta- o mais forte (aquele que denuncia e que
tuto de vítima. Em seguida, constitui-se a luta) presta socorro ao mais fraco (aquele
designação dos responsáveis ou dos culpa- que é discriminado) em troca da sua sub-
dos para obter reparações, que a partir daí missão ou, ao menos, de alguma coisa que
são estigmatizados e, por sua vez, submeti- o mais fraco seja portador e que falte ao
dos a uma forma de dominação, acabam mais forte (o que em linguagem corrente
sendo vitimados por um outro grupo soci- chamamos de recuperação política ou ain-
al ou político. da de demagogia). Em outros termos, as ví-
A expressão dessa forma de violência timas, status em princípio transitório, exis-
inscreve-se, para os sistemas democráticos, tem como vítimas instrumentalizadas para
essencialmente no discurso. O discurso fins políticos e não somente por questões
elogia a vítima, o oprimido, em nome de de discriminação étnica. Podem-se amalga-
uma certa ética 27 . Assim, a vitimização mar então outras considerações ou preocu-
evidencia as relações de dominação que o pações como as práticas religiosas, vestir
discurso centrado sobre as vítimas tende a esta ou aquela roupa, etc., quer dizer, um
dissimular. Convém ainda sublinhar que distanciamento do objeto central que, longe
vitimizar um grupo social ou político pode de reconciliar o “discriminado” e o “discri-
inscrever-se numa estratégia de dominação minador”, contribuirá para alimentar as dis-
consciente ou inconsciente. O grupo social sensões e rejeições, considerações que pode-
ou político que vitimiza instaura uma rela- rão ser recuperadas como argumentos eleito-
ção igualitária entre dois parceiros, pois rais por certos grupos políticos extremistas.
cede progressivamente lugar a uma relação A constatação é trágica, já que a rela-
de dominação. O exemplo político mais ção de dominação simbólica foi invertida
significativo é aquele que concerne às for- pela ação política. Existe, em todas as for-
mas de discriminação (sociais, étnicas, se- mas de figuração da vítima, uma espécie
xuais, etc.), e entre essas, mais particular- de “condicionamento mútuo” pela ação
mente aquelas que assumem a forma de política voluntária ou associativa e pelo es-
discriminação étnica. Discriminações que, tatuto involuntariamente desviante que

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pode adquirir a vítima. De outra maneira desviante, mostrando uma “patologia soci-
ainda, mesmo se uma pessoa é discrimina- al”. Na história das idéias sociológicas, esta
da, ela vem a ser, contra ela mesma, atriz possibilidade de um social desviante foi
voluntária desta discriminação. A violência considerada. Auguste Comte, na sua 45e li-
discriminatória aparece como uma forma ção, qualifica “o patológico” como “um
de violência feita aos políticos e às institui- prolongamento dos fenômenos do estado
ções num sistema democrático, na medida normal, exagerados ou atenuados, para
em que ela é o sinal rudimentar e desesta- além de seus limites ordinários de varia-
bilizante de uma transgressão das regras ção29 ”. Em outros termos, trata-se de defi-
que regem uma ordem social. nir os “limites ordinários de variação”. As-
Para terminar, veremos até que ponto sim, ao lado das práticas que podemos cha-
de absurdo lógico pode ir a invenção desta mar “ordinárias”, existe, no domínio das
figura vitimária. No seio dos movimentos e representações políticas no sentido amplo
das ações que defendem essas formas de do termo, a teatralização, a ritualização, a
discriminação, existem dois tipos de luta: folclorização, etc., o que podemos chamar
um deles é uma luta orientada para um de formas patológicas dessas práticas,
mesmo fim, quer dizer, a melhoria das “exageradas” ou “atenuadas”. A história
condições de vida das pessoas que sofre- política recente nos fornece alguns mode-
ram uma discriminação. Neste caso, a luta los, particularmente interessantes 30: as
adota uma posição étnica: reconhecimento grandes representações e os rituais na Ale-
de uma minoria étnica que quer ser reco- manha nazista nos anos 1930 e 1940; a
nhecida e integrada como tal. O segundo rigidez e o peso das liturgias comunistas
tipo de luta só retém das pessoas relevan- nos regimes totalitários dos países do Les-
tes de uma etnia específica o fato de per- te; ou, ainda, as práticas marciais dos pode-
tencerem ao gênero humano e serem porta- res fascistas na Itália entre as duas guerras
doras de um Universal28, independente- ou, para um período mais contemporâneo,
mente de toda origem étnica real ou suposta. em certos regimes da América do Sul; en-
Na primeira posição, o risco é o de aprisionar fim, certos modelos africanos, que nos ofe-
as pessoas discriminadas numa visão de recem representações emprestadas, confi-
mundo do tipo comunitárias; na segunda po- nando por vezes ao sincretismo político e
sição, o risco é não levar em conta a situação associando à tradição cultural e étnica a
particular das pessoas discriminadas. utilização de modelos ocidentais. Para
além de suas diferenças, todos esses
exemplos ilustram, de maneira paradigmá-
Para concluir: a noção Comtiana de tica, a noção comtiana de exagero. As for-
“patologia social” ou os limites mas atenuadas concernem tanto às repre-
da violência política sentações e cerimônias das monarquias
contemporâneas - das mais faustosas, como
Podemos dizer que a ritualização da vio- aquelas que são usadas na corte da Ingla-
lência, elemento transversal da violência terra - às mais despojadas, por exemplo,
política que explora formas múltiplas, su- aquelas das monarquias escandinavas. En-
blinha a ilusão de uma eliminação total da fim, para terminar com esse curto inventá-
violência. É preciso domesticar, canalizar e rio tipológico, uma ilustração das práticas
ritualizar a violência, aceitando-se discutir “ordinárias” é fornecida pelas representa-
as condições de sua manifestação, até mes- ções em uso nos nossos regimes democráti-
mo seus valores quando ela provém de cos, como os Estados Unidos ou a Europa
práticas radicais (religiosas ou políticas). O ocidental. São eles os sistemas políticos nos
que revelam as realidades políticas violen- quais a pluralidade das concepções políti-
tas é também a existência de uma lógica cas é respeitada, onde a liberdade de pen-

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samento e a expressão dos indivíduos estão 2 Ver HAEUSSLER, Eric. Des figures de la violence. Paris:
organizadas, mas também nas quais a moder- L’Harmattan, 2005.
nidade política guarda um elo dialético com
uma história nacional viva. 3 CLASTRES, Pierre. Archéologie de la violence. Paris: Editions
Assim, entre coerção e liberdade, de l’Aube, 1997. pp. 78-79.
entre ruptura e tradição histórica, entre mu-
danças de regimes e alternância de maiori- 4 Ibid., p. 79.
as, é que se desenham os contornos de for-
mas “ordinárias” em função das quais se 5 ELIAS, Norbert. La civilisation des mœurs (Paris: Calmann-
mede, nos fenômenos de representação Lévy, 1973) e La société de cour (Paris: Flammarion, 1985).
política, toda uma gradação de estados
“exagerados” ou “atenuados”. Esta grada- 6 Para maiores informações, ver KENZ, David El (org). Le
ção de diferentes estados, que se atualizam massacre, objet de l’histoire. Paris: Gallimard, 2005.
em rituais ou em representações, pode ser
medida a partir de caracteres singulares, 7 A peça teatral de Corneille Le Cid testemunha esta realidade.
como as formas e os usos de suas práticas,
a simbólica colocada em prática, os jogos 8 WEBER, Max. Le savant et le politique. Paris: La Découverte,
dos atores e a segmentação dos espectado- 2003. p. 118.
res, até mesmo certas figuras estéticas. A
enumeração não termina aqui. O que pre- 9 Ibid., p. 119.
valece em todas essas representações insti-
tucionalmente ritualizadas, e seja qual for o 10 Consultar VIDAL, Claudine. Le génocide rwandais tutsi:
regime político considerado, é a emoção cruauté délibérée et logiques de haine. In HÉRITIER,
provocada que da à adesão seus caracteres Françoise. De la violence, tome 1. Paris: Odile Jacob, 2005.
distintivos. Lá onde as formas totalitárias, pp. 325-366.
em sentido amplo, requerem uma fusão ab-
soluta das massas atrizes ou espectadoras, 11 HATZFELD, Jean. Dans le nu de la vie. Récits des marais
as democracias sugerem mais formas de rwandais. Paris: Seuil, 2000.
adesões temporárias, por vezes transitóri-
as, mas onde uma das finalidades é manter, 12 HATZFELD, Jean. Une saison de machettes. Paris: Seuil, 2003.
de maneira individual, uma identidade na-
cional comum, e não de subjugar todo o 13 Ibidem.
espírito de discernimento e razão .
14 CAPLOW, Théodore; VENNESSON, Pascal. Sociologie
militaire. Paris: Armand Colin, 2000. p. 24.

Notas 15 Para maiores esclarecimentos, ver HEIMONET, Jean-


Michel. Les deux faces du terrorisme et l’autodestruction des sociétés
Texto traduzido do francês por Clélia Pinto ouvertes. Paris: Kimé, 2005.

* Professor de Sociologia na Universidade Paul Valéry – 16 ROBIN, Marie-Monique. Escadrons de la mort, l’école française.
Montpellier III. Doutor em Sociologia pela Universidade Paris: La Découverte, 2004.
Paris V – Sorbonne. Pesquisador no Institut de
Recherches Sociologiques & Anthopologiques e no 17 Ibidem.
Centre de Recherches sur l’Imaginaire (IRSA – CRI).
Contato: denis.fleurdorge@univ-montp3.fr 18 Ibidem.

1 Para uma aproximação mais geral sobre a violência, ver 19 OAS: Organisation Armée Secrète, movimento clandesti-
MICHAUD, Yves. La violence. Paris: PUF, 1986. no que tentou se opôr de maneira violenta à indepen-

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dência de Algéria entre 1961 e 1963.

20 Notamos que existe uma espécie de “tradição” sul-ame-


ricana que depois da Segunda Guerra Mundial consistiu
em recuperar o que a Europa produziu de pior em maté-
ria de torturadores e carrascos.

21 Ver BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques. Sur la théorie de


l’action (Paris: Seuil, 1994) e Choses dites (Paris: Minuit,
1987).

22 BUIT TRONG, Lucienne. Violences urbaines. Paris: Bayard,


2000. pp. 63-76.

23 Ibid., p. 67.

24 Ibid., p. 68.

25 Ibid., p. 69.

26 Ibid., p. 69.

27 Sobre este tema ver ATLAN, Henri. Du principe de


plaisir à la morale de l’indignation. In: HÉRITIER,
Françoise. De la violence, v. 1I, pp. 289-320.

28 Para complementar, ver PROCOLI, Angela . De la


violence symbolique à la réparation. In: HÉRITIER,
Françoise. De la violence, v. 1I, pp. 191-212.

29 COMTE, Auguste. Cours de philosophie positive. Leçon 1 à 45.


Paris: Hermann, 1997.

30 Ver: Les idéologies de la barbarie. In: HENRY, Michel. La


barbarie. Paris: PUF, 2004. pp. 131-164.

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