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DOI: 10.1590/0103-11042019S712
RESUMO O campo complexo da saúde pública pode ser visto como sendo atravessado pela seguinte
polaridade: a) uma tendência totalizante de controle da sociedade tanto do ponto de vista biológico como
econômico; b) uma tendência à individualização das práticas da medicina e da saúde pública baseada na
liberdade e na responsabilização dos indivíduos pela sua saúde. Ademais, devido ao fato de o campo da
saúde corresponder às atividades da biotecnociência e da biopolítica, e ser, portanto, atravessado por
conflitos de interesses e de valores, entra em campo a bioética, cujo escopo principal no campo da saúde
e do bem-estar individual e coletivo consiste em detectar, analisar e avaliar tais conflitos, propondo so-
luções que impliquem alguma forma de convergência entre agentes e pacientes morais envolvidos, e que
vise, em última instância, à qualidade de vida dos afetados pelas políticas públicas e pela incorporação
das ferramentas da biotecnociência.
ABSTRACT The complex field of public health can be seen as crossed by the following polarity: a) a totalizing
tendency to control society, both biologically and economically; b) a tendency towards individualization of
medical and public health practices, based on individuals’ freedom and accountability for their own health.
Furthermore, since the field of health has to do with biotechnoscientific and biopolitical activities, and is thus
permeated by conflicts of interests and values, bioethics enters the scene because its main scope in the field
of health and individual and collective welfare consists of detecting, analyzing, and assessing such conflicts,
proposing solutions that involve some form of convergence between moral agents and patients, ultimately
aiming at quality of life of those affected by public policies and the incorporation of the tools of biotechnoscience.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 43, N. ESPECIAL 7, P. 152-164, DEZ 2019 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Saúde pública: biotecnociência, biopolítica e bioética 153
cenários que coloquem em risco a saúde e Todavia, isso pode ser visto como proble-
o bem-estar das populações, e cabendo, em mático porque “uma subjetivação fundada
princípio, ao Estado que se queira legítimo numa imagem positiva da saúde” que motive
assegurar serviços e políticas que promovam os indivíduos a se tornarem “os managers de si
a saúde e o bem-estar de seus cidadãos. Nesse mesmos adotando um estilo de vida que faça a
sentido, a saúde pública pode ser vista como economia dos comportamentos de risco” pode
uma disciplina dinâmica cujo objeto é, em tese, estar acompanhada de uma “desresponsabi-
a melhora permanente da saúde da população, lização do Estado em matéria de assistência
mas que implica se dar conta que social”, o que seria, por certo, substituído por
uma “progressiva responsabilização ética dos
definir o que é a saúde pública não é tarefa indivíduos na gestão de seu patrimônio bioló-
fácil [pois] não possuímos uma ideia clara do gico e de sua saúde”, podendo-se, por isso, falar
que é a saúde das populações [visto que] o em “faces contraditórias e complementares de
conceito de saúde só se aplica, em todo rigor, um novo ‘direito à saúde’”1(276).
a pessoas, [ademais, não sabemos responder É nesse contexto complexo e dinâmico que
à pergunta] a saúde de um grupo ou de uma podemos inscrever a biotecnociência, a biopolí-
população é boa ou má?6(1330-31). tica e a bioética, a respeito das quais propomos
uma análise dos significados contidos nelas,
Esta pergunta remete àquilo que o sanita- e relacionando-as entre si para tentar ver se
rista Giovanni Berlinguer7(19-24) chamou de é possível chegar a algum tipo de síntese que
“duas utopias”: a primeira referida à definição explique o sentido do conjunto. Em particular,
de saúde dada pela OMS, em 1948, quando a em nossa abordagem destacamos inicialmente
saúde foi pensada como “um estado de com- as características pertinentes da biotecnoci-
pleto bem-estar físico, mental e social”, e que ência, entendida como uma forma de ciência
pretendia superar a ideia de saúde como mera entrelaçada com a técnica e aplicada aos seres
ausência de doença; a segunda formulada em e sistemas vivos, e tendo em vista a criação e
1978 também pela OMS, que defendia “a saúde produção de bens e serviços que dizem respeito,
para todos no ano 2000”, mas que, em 1991, em especial, à saúde e ao bem-estar de indiví-
reconheceu “um substancial falimento deste duos e populações de humanos. Entretanto,
objetivo” porque a efetiva “distribuição da no campo da saúde pública, as ferramentas da
saúde (e das possibilidades de vida) não res- biotecnociência (também conhecidas como
ponde ao objetivo para todos”. biotecnologias) possuem vínculos estreitos com
Em particular, a saúde pública pode ser vista a biopolítica, entendida, a partir de Foucault5,
atualmente como uma “tecnologia científico- como a dimensão de exercício do poder
-política em perene tensão entre uma mecânica (chamado biopoder) que transforma a espécie
totalizante e uma mecânica individualizan- dos seres humanos em objetos de uma estratégia
te”1(275), podendo ser caracterizada pelo se- política geral (ou biopolítica) e consistente na
guinte movimento: aplicação das disciplinas ao corpo-organismo
e na regulação do corpo-espécie da popula-
mais ela se torna uma prática de condução de ção. Por fim, devido ao fato do campo da saúde
si mesmos através de si mesmos e uma tec- ter a ver com as práticas da biotecnociência e
nologia de subjetivação, mais sua dimensão com os dispositivos da biopolítica, e podendo
política tende a coincidir com o dado biológi- ser atravessado por conflitos de interesses e
co sobre o qual ela insiste. Em outros termos, de valores entre os atores envolvidos, entra
a saúde pública se dissolve na saúde dos indi- em campo a forma de saber-fazer conhecida
víduos viventes1(275). como bioética, cujo escopo principal consiste
em detectar, analisar e avaliar tais conflitos,
propondo – quando for possível – soluções que fazendo-a perder a sua bondade ou a sua inocên-
impliquem alguma forma de convergência entre cia essenciais”, visto que a “aplicação técnica da
agentes e pacientes morais envolvidos, e que ciência será, com efeito, boa ou má”10(461), razão
vise, em última instância, à qualidade de vida pela qual poderá ser avaliada pela bioética.
dos afetados pelas políticas públicas e pela in- Assim, a biotecnociência pode ser vista
corporação das ferramentas da biotecnociência. como um novo paradigma que consiste em um
No entanto, tais ‘rupturas’ se dão num con- creator [...] transformando a si mesmo em ma-
texto de incerteza, pois são imprevisíveis e só téria prima, isto é em homo matéria.
podemos constatar seus efeitos a posteriori, e
seus riscos só podem ser calculados probabi- Particularmente, a ‘reprogramação’ da ‘na-
listicamente em cada novo caso de inovação tureza humana’ indicada pelo termo homo
e desenvolvimento tecnológico específico. creator pode ser vista como sendo uma das
Em particular, um dos aspectos problemáticos tarefas implicadas pela utilização das ferra-
da vigência do paradigma biotecnocientífico se mentas e dos dispositivos da biotecnociência;
refere à transformação do humano, indicada fato que pode ser visto como implicando a
pelos termos transhumanismo e posthumanis- necessidade de uma avaliação bioética dos
mo, e referidos às transformações do humano aspectos morais envolvidos. Com efeito, de
graças ao uso, inter alia, da biotecnociência, acordo com John Harris16(1)
particularmente da biomedicina. Trata-se, de
fato, de uma ‘utopia’ que visa à melhora ou ao [...] a rapidez do progresso tecnológico, em
aumento das capacidades (ou competências) do particular biotecnológico, tem confundido
ser humano e que foi definida como ‘progressis- nossas categorias morais [e] hoje podemos
mo prometeico de melhora da natureza humana’, transcender os limites de espécies particula-
criticado pelos ‘bioconservadores’ como Jürgen res e combinar virtudes (e vícios) de espécies
Habermas e preocupados com ‘os riscos para a diferentes, programando novos atributos nun-
saúde e das consequências para a justiça social’; ca antes encontrados em nenhuma espécie.
mas que é defendida pelos ‘pensadores liberais’
como John Harris, que consideram que a decisão Por isso, para o autor não seria exagerado
de utilizar as tecnologias de melhora dizer que a humanidade se encontra atual-
mente em uma encruzilhada onde
pertence amplamente à liberdade humana;
[e os] transhumanistas [que são] tecnofílicos [...] pela primeira vez [ela] pode formar seu
[por defender a] transformação do ser huma- próprio destino, decidindo não só que tipo de
no pela tecnociência, [ou seja, por defender] mundo deseja criar e habitar, mas também de
um uso racional das biotecnologias14(7-8). como queremos ser, [mudando] a natureza
dos seres humanos; e [Harris termina per-
Tal competência biotecnocientífica de apri- guntando] devemos celebrar a ingenuidade
moramento do ser humano é abordada, em e a imaginação dos biotecnologistas que tor-
particular, por Günther Anders15(3-14), que a naram isso possível ou, ao contrário, limitar e
considera, corretamente, como uma caracterís- controlar suas atividades?17(2).
tica da nossa época, a qual seria aquela do homo
creator, termo que o autor adotou em sua obra Uma questão bastante debatida nos últimos
‘O homem é antiquado’, na qual propõe uma tempos, que tem a ver com a junção (ou
aliança) entre ‘homem novo’, ‘pós-humano’,
[...] antropologia filosófica [para a] era da tec- ‘transumano’ e biotecnociência diz respeito à
nocracia, [a qual seria] definitiva e irrevogável, prática do ‘aprimoramento humano’ (human
[pois] a técnica se tornou o sujeito da história enhancement), que consiste em reforçar a com-
[ao passo que] nós somos somente co-históri- petência biológica (biological enhancement)
cos; [ou seja, possuímos uma nova identidade e moral (moral enhancement) humana para
que adquirimos] porque a capacidade de mu- poder sobreviver e se adaptar a um mundo
dar nosso mundo [e] a nós mesmos, pertence em rápida transformação.
paradoxalmente à nossa natureza, [o que teria Em uma avaliação recente, os transhu-
implicado em] transformar o homem em homo manistas representariam um “progressismo
prometeico” consistente em tentar “melhorar com o qual Michel Foucault indicou uma di-
a natureza humana pela tecnologia”, defen- mensão importante do exercício do poder, que
dendo, assim, uma “utopia tecnocientífica que o autor chamou de ‘biopoder’5 e que se refere
possui o objetivo de melhorar o ser humano” e às situações em que a espécie humana se torna
que se apoiaria nos “novos poderes da biomedi- objeto de uma estratégia política aplicada ao
cina” que emergem da “biomedicina do século governo dos homens, que Foucault considerou
XXI”, o que representaria uma “mudança de diferente da tradicional soberania3. Em parti-
paradigma na prática médica”13(8). cular, a biopolítica tem a ver com as práticas
Para Julian Savulescu e Ingmar Persson17, a governamentais que visam garantir a saúde
questão do “aprimoramento moral” é impor- das populações pelo controle da fecundidade,
tante se considerarmos os rápidos avanços de da longevidade e da mortalidade, e tentando
ciência e tecnologia, pois garantir tais atividades de controle tanto no
nível individual (ou ‘corpo organismo’) como
[...] o conhecimento da biologia humana, populacional (ou ‘corpo espécie’)18.
em especial da genética e da neurobiologia Nas palavras do próprio Foucault19(818):
[permite afetar] as bases fisiológicas da mo- devemos entender
tivação humana, quer por meio da aplicação
de drogas, por seleção genética ou engenha- [...] por ‘biopolítica’ a maneira pela qual, a
ria, ou pela utilização de dispositivos exter- partir do século XVIII, se buscou racionalizar
nos que afetem o cérebro ou o processo de os problemas colocados para a prática gover-
aprendizagem. namental pelos fenômenos próprios de um
conjunto de viventes enquanto população:
Em especial, para os dois autores, deveríamos saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça.
utilizar a prática do aprimoramento para superar
a incompetência psicológica e moral que colocam Ou seja, para Foucault19(213-216)
em perigo a espécie humana, visto que
[...] um dos fenômenos fundamentais do sécu-
[...] os riscos que enfrentamos são tão graves lo XIX tem sido [e] é que o poder tenha toma-
que é imperativo explorar todas as possibili- do a seu cargo a vida, numa perspectiva [que
dades de aprimoramento moral [...] não para podemos] chamar assistencial. Trata-se [de]
substituir a tradicional educação moral, mas, uma tomada de poder sobre o homem como
sim, para complementá-la [pois] temos trans- ser vivo, de uma espécie de estatização do bio-
formado radicalmente os nossos ambientes lógico, [...] algo que não é mais uma anátomo-
sociais e naturais pela tecnologia [mas] a -política do corpo humano, mas que chamaria
nossa competência moral manteve-se prati- uma ‘biopolítica’ da espécie humana.
camente inalterada17.
De fato, para Foucault, a palavra ‘biopolítica’
Em suma, deveríamos “considerar a possibili- pode referir-se tanto às políticas contemporâ-
dade de aplicar a tecnologia à nossa própria natu- neas de assistência e welfare (como as políti-
reza [para] aprimorar nossa capacidade de criar cas de saúde) quanto àquelas que concebem
benefícios ou, pelo menos, para evitar danos”17. o Estado como um organismo. De acordo
com a filósofa Laura Bazzicalupo21(3-5), para
Foucault, a biopolítica tem a ver tanto com
O surgimento da biopolítica formas de dominação pelo biopoder como
com a própria democracia, que “desde sua
A saúde pública e a biotecnociência possuem origem incorpora um elemento biológico”,
também uma relação com a biopolítica, termo sendo que o “governo da vida” teria a ver com
“uma profunda mudança do poder, que agarra e que podemos chamar de momento ‘imu-
diretamente a vida, modificando-a”, o que nos nológico’23; e prossegue com a concepção da
introduziria no “reino da necessidade” onde política norteada pelas ciências da vida (que
se situa “aquele elemento biológico, corpóreo, podemos chamar de momento ‘biológico’24)
aquela vulnerabilidade que nos reúne” e que e que convive com as pesquisas de Foucault5;
pode “gerar possibilidades positivas de vida e continuará com a estratégia mais recente de
e/ou arriscadas dinâmicas de poder”. compatibilizar gênero humano e ambiente25.
Em sua avaliação do trabalho de Foucault, Entretanto, a história da biopolítica
a autora considera que a ‘intuição de Foucault’ propriamente dita começa, na prática, com
constitui um “ponto de partida” para a refle- Foucault26(50), quando o filósofo francês
xão atual sobre biopolítica e governança; ou “oferece ao pensamento crítico do nosso tempo
seja, sobre ‘uma série de práticas de gestão uma dimensão impreterível [intranscurabile]
das vidas humanas’ que implicam um ‘projeto do exercício do poder”, ou seja, quando o autor
de melhoria sócio-política, que se coloca na detecta uma extensão do campo de análise
perspectiva da biologia e da economia, des- com a política aplicada à vida (nascimento,
creve o homem para objetivá-lo, seja como saúde, morte) da população e que ele concebe
ser biológico vivente seja como ator produti- como uma ‘estatização do biológico’, isto é,
vo/consumidor’, e graças a ‘discursos’ como entendido como o poder político sobre a vida
aqueles da biologia e da economia, que devem humana (que ele chamará de ‘biopoder’) e que
ser encarados como se aplica tanto à vida individual (ou corpo)
como coletiva (ou espécie), podendo-se dizer
[...] regimes de saber-poder, [pois a biopolítica] que, graças às novas possibilidades de ma-
elege [tais formas de verdades-poder que, en- nipulação (trazidas pela biotecnociência), o
quanto científicas [possuem] a aura de indiscuti- biopoder se torna capaz de gerar, administrar,
bilidade e de certeza [e se referem à] gestão dos disciplinar e controlar os corpos, a vida e a
comportamentos, [sendo] o objetivo de Foucault morte. Como escreveu o próprio Foucault5(188):
[...] desvendar [seus] efeitos políticos20(33-34).
[É] preciso falar de ‘bio-política’ para designar
Historicamente, a reflexão sobre a biopo- aquilo que faz entrar a vida e os seus meca-
lítica aparece com Foucault, que utilizou o nismos no campo dos cálculos explícitos e faz
neologismo ‘bio-política’ pela primeira vez em do poder-saber um agente de transformação
uma palestra dada na Universidade do Estado da vida humana.
do Rio de Janeiro (Uerj) na primeira metade
dos anos 1970. Com relação à medicina e ao controle da
No entanto, existe também uma espécie sociedade sobre os corpos, Foucault26(209-210)
de pré-história do conceito de ‘biopolítica’, considera que
que começa quando aparece a geopolítica do
‘espaço vital’ (Lebensraum) e o ‘Estado bio- [...] a medicina moderna é uma medicina so-
geográfico’21, e que poderíamos chamar de cial, cujo fundamento é uma certa tecnologia
momento ‘geográfico’; prossegue quando Von do corpo social; a medicina é uma prática so-
Uexküll22 concebe o Estado como um orga- cial, e somente um de seus aspectos é indivi-
nismo – com anatomia e fisiologia próprias dualista e valoriza as relações entre o médico
– a ser protegido (e que poderíamos chamar e o paciente. [...] Sustento a hipótese que,
de momento ‘orgânico’); continua com a bio- com o capitalismo, não passamos de uma
política entendida como estudo dos riscos e medicina coletiva para uma medicina privada,
das patologias do corpo social, associada à mas é o contrário que se produziu. [...] O con-
defesa imunológica assumida pela política, trole da sociedade sobre os indivíduos não se
efetua somente pela consciência ou pela ide- [...] no novo contexto do capitalismo cogniti-
ologia, mas também no corpo e pelo corpo. vo [que] produz ambíguas subjetivações, en-
tre persistências heterônomas e espaços de
E sobre o poder, julga que autonomia, [com] uma problemática retoma-
da do tema eugenético [e] uma abordagem
[...] tudo isto começou a ser descoberto [quan- incisiva a fenômenos globais [...] como o fluxo
do se percebeu] que a relação do poder [com] de migrantes e as guerras globais.
o indivíduo, não deve ser simplesmente essa
forma de sujeição que permite ao poder tomar Nesse sentido, temos o filósofo Giorgio
dos sujeitos bens, riquezas e, eventualmente, Agamben, que repensa a biopolítica associan-
seu corpo e seu sangue, mas que o poder deve do-a aos conceitos de ‘vida nua’, ‘homo sacer’,
exercer-se sobre os indivíduos, uma vez que ‘poder soberano’ e ‘estado de exceção’. Para
eles constituem uma espécie de entidade bio- o autor, “a implicação da vida nua na esfera
lógica que deve ser levada em consideração, política constitui o núcleo originário – ainda
se queremos [...] utilizar essa população como que encoberto – do poder soberano”29(14-16)
máquina para produzir [...] riquezas, bens, para e constituiria o autêntico significado da bio-
produzir outros indivíduos27(59). política, pois
E sobre o significado e a extensão do con- [a] biopolítica [é] pelo menos tão antiga
ceito de biopolítica, considera que, por bio- quanto a exceção soberana, [devendo-se
política, deve-se considerar que a] dupla categorial fundamen-
tal da política ocidental não é aquela amigo-
entender [a] maneira pela qual, a partir do sé- -inimigo, mas vida nua-existência política,
culo XVIII, se buscou racionalizar os proble- zoé-bíos, exclusão-inclusão29(14-16).
mas colocados para a prática governamental
pelos fenômenos próprios de um conjunto de Em suma, em Agamben29(85-86), “o totalitaris-
viventes enquanto população: saúde, higiene, mo se torna um terreno privilegiado de análise
natalidade, longevidade, raça27(59-60). da biopolítica”, pois existiria um “continuum
biopolítico [entre] democracia e totalitarismo”.
Por fim, sobre a estatização do biológico Entretanto, para o autor30, existiria também
como característica da biopolítica da espécie uma forma de resistência ao biopoder soberano,
humana, Foucault19(213-216) considera que que o autor chama de ‘biopolítica menor’, que
seria uma ‘outra política’ capaz de enfrentar o
[...] um dos fenômenos fundamentais do século poder onde ele se exerce; isto é, “entre público
XIX tem sido, [e] é que o poder tenha tomado e privado, corpo biológico e corpo político”; por
a seu cargo a vida, numa perspectiva [que po- isso, deveríamos focar “este ‘no man´s land’ [de]
demos] chamar assistencial. Trata-se [de] uma duplo movimento de subjetivação e dessubje-
tomada de poder sobre o homem como ser vivo, tivação” que é “aquele de uma nova política”,
de uma espécie de estatização do biológico, ou consistente em um “retorno à vida nua, não
pelo menos de uma tendência em direção àqui- mais como fundamento do poder, mas como
lo a que se poderia chamar a estatização do bio- forma de vida”28(90).
lógico [...] algo que não é mais uma anátomo- Nesse contexto de repensamento da
-política do corpo humano, mas que chamaria biopolítica, vale a pena lembrar Roberto
uma ‘biopolítica’ da espécie humana. Esposito31(29), que parte da constatação ( já
feita por Agamben) da “incerteza” que acom-
Contudo, a partir de Foucault28(15-16), o panharia “a categoria” de biopolítica e que
conceito de biopolítica vem sendo repensado a impediria de ter um significado estável,
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