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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

MESTRADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

BRUNO DUTRA

O USO DOS PRINCÍPIOS NA INTERPRETAÇÃO


JURÍDICA: A PROPOSTA NORMATIVISTA

NITERÓI

2004
2

BRUNO DUTRA

O USO DOS PRINCÍPIOS NA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA:


A PROPOSTA NORMATIVISTA

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-


Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais,
da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre.

Orientador: Professor Doutor MARCELO PEREIRA DE MELLO

Niterói
2003
3

BRUNO DUTRA

O USO DOS PRINCÍPIOS NA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA:


A PROPOSTA NORMATIVISTA

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-


Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais,
da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre.

Aprovada em de 2003.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Pereira de Mello - Orientador
Universidade Federal Fluminense - UFF

___________________________________________________________________
Prof.ª Drª. Maria Arair Pinto Paiva
Universidade Federal Fluminense - UFF

____________________________________________________________________
Prof. Dr. Nagib Slaibi Filho
Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO
4

À minha pequena Amanda, que com tantas


alegrias tem me brindado desde o seu nascimento.
5

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais.

À minha amada esposa Beatriz.

Aos amigos Dalmir Lopes Junior e Clóvis Silva de


Souza.
6

“Contra o positivismo, que pára diante dos fenômenos e diz:


“Há apenas fatos”, eu digo: “Ao contrário, fatos é o que não
há, há apenas interpretações”

Nietzsche
7

SUMÁRIO

1.Introdução.................................................................................................................p. 01

2. O positivismo..........................................................................................................p. 08
a) Panorama...................................................................................................p. 08
b) Noções científicas, epistemológicas e metodológicas do positivismo......p. 13
c) A oposição entre direito natural e direito positivo....................................p. 27
d) A jurisprudência........................................................................................p. 30
e) O estado constitucional contemporâneo....................................................p. 38
f) As correntes ou escolas jurídicas de pensamento positivista....................p. 42

3. O normativismo......................................................................................................p. 54
a) A teoria pura do direito.............................................................................p. 54
b) O fundamento de validade de uma ordem jurídica....................................p. 57
c) A estrutura escalonada da ordem jurídica..................................................p. 60
d) Os desdobramentos e as implicações da doutrina kelseniana....................p. 62
e) As críticas e seu devido equacionamento..................................................p. 65

4. A interpretação e o uso dos princípios......................................................................p.71


a) A norma jurídica como esquema de interpretação.....................................p. 71
b) As recentes categorias normativas: regras e princípios.............................p. 74
c) A interpretação em Kelsen: autêntica e não-autentica...............................p. 78
d) A aplicação do direito................................................................................p. 84

5. Conclusão................................................................................................................p. 88

6. Referências bibliográficas.......................................................................................p. 90
8

RESUMO

A presente apresentação visa mostrar a total compatibilidade entre o positivismo e o


uso dos princípios na seara da interpretação jurídica. De fato, partimos de uma concepção
científica do Direito, afastando este campo do saber humano de outras classificações não-
científicas. Posteriormente, delimitamos o objeto de uma tal ciência. Abordamos alguns
aspectos relevantes para o estudo das idéias aqui desenvolvidas, como a metodologia, a
racionalidade e a sistematicidade. Em seguida, analisamos a infindável polêmica entre o
jusnaturalismo e o juspositivismo. A partir deste gancho, estudamos as diversas escolas de
pensamento à luz dos critérios adotados ordinariamente pela jurisprudência (Ciência do
Direito) alemã. A inseparabilidade entre Estado e Direito nos levou a dedicar àquele todo
um item, onde esclarecemos questões importantes de dogmática jurídica. Desse ponto,
comum a todas as vertentes positivistas, passamos a estudar cada uma delas em separado.
Desse ponto em diante, nos dedicamos ao normativismo, abordando alguns aspectos que
guardassem relação com a problemática da interpretação jurídica. No último capítulo que
antecede a conclusão, retomamos o tema ‘norma’ a partir de uma ótica kelseniana. Em
seguida, vimos uma nova classificação doutrinária que biparte as normas em princípios e
regras jurídicas. A necessidade de uma melhor compreensão do fenômeno interpretativo
nos levou a adotar a classificação kelseniana que divide a interpretação em autêntica e não-
autêntica. Por fim, analisamos os diversos processos intelectivos necessários à obtenção do
direito aplicável. Enfim, acreditamos ter conseguido concatenar as idéias positivistas com a
ampliação do conteúdo normativo dos princípios, demonstrando que, como normas que
são, a eles se aplicam os ensinamentos do filósofo Hans Kelsen.
9

I – INTRODUÇÃO

O tema escolhido envolve um tormentoso e inquietante problema. Estamos a nos


referir da questão da interpretação das normas jurídicas, atividade intelectiva necessária à
aplicação do Direito à resolução dos problemas práticos da vida. Assim, esta noção vem
sendo tratada como pomo da discórdia entre aqueles que mais diretamente, seja por
profissão seja em razão da Academia, têm contato com o Direito.

Assunto demasiado vasto, a interpretação deve ser tratada sob um enfoque


específico que justifique este trabalho. Assim, gostaríamos de apresentar e defender o uso
dos princípios pelo positivismo jurídico, ou mais especificadamente, pelo normativismo.
Como sabido, tal doutrina filosófica foi (e é) alvo de variadas críticas, como se verá no
momento oportuno1. Dentre as mais freqüentes, pudemos constatar que a mais interessante
a ser abordada é a mencionada acima. E isto por três razões.

A primeira é que o debate em torno dos princípios evoluiu muito nos últimos trinta
anos, momento este que coincide com o falecimento de Hans Kelsen (1881-1973),
fundador do normativismo. De fato, os estudos acerca dos princípios resultaram numa nova
dicotomia normativa, que opõe os princípios jurídicos às regras. Ocorre, porém, que as
noções que permeiam o positivismo jurídico não foram sequer utilizadas. Lacuna esta que
se pretende esclarecer neste trabalho.

A segunda é o refluxo das idéias positivistas em virtude da eclosão do nazismo e de


suas barbáries, que provocaram uma crítica exacerbada contra o positivismo, enviando-o
para o ostracismo. Com efeito, todos os cientistas procuravam se afastar do positivismo,
evitando uma ‘desagradável contaminação’.

A última foi a pioneira positivação de princípios e valores na Carta de Declaração


Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da ONU, que ampliou a abrangência e a
complexidade da atividade interpretativa ao positivar normas cujos conteúdos eram

1
Sobre as críticas ao positivismo, em geral, e ao normativismo, em particular, consulte-se o item e) do
capítulo III.
10

redigidas numa linguagem fluida e com alcance global. A compatibilização destas normas,
imbuídas de valores universais, exigia uma maior dedicação ao tema da hermenêutica.

Nesse contexto histórico, a preferência dada ao positivismo visa reparar uma


‘injustiça’ histórica na medida em que os estudos e as discussões a partir desta orientação
filosófico-metodológica foram praticamente banidos do cenário mundial. Com o
deplorável evento racial exposto com o fim da 2ª guerra mundial e a derrocada alemã, a
doutrina positivista foi abominada, execrada mesmo. As contribuições do normativismo,
outrora tão celebradas, foram, por preconceito ou por desatenção, ignoradas pela maioria
dos doutrinadores do pós-guerra.

De fato, o nazismo asfixiou esta corrente de pensamento, impregnando-a de marcas


duradouras, mas a proclamação da Carta dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão
pela ONU, em 1948, iria albergar diversos princípios no intuito de assegurar que tal
barbárie nunca mais se repetisse. As conseqüências teóricas deste fato permitiram novos
horizontes para o desenvolvimento de outras discussões jurídicas sobre o tema da
interpretação.

De qualquer sorte, a inclusão dos princípios dentre as normas jurídicas2 amplia


significativamente o campo da interpretação jurídica. E mesmo que as idéias positivistas
não fossem adotadas, a teoria da interpretação proposta pelo normativismo poderia ser
utilizada, o que, por si só, justificaria o presente estudo.

Não obstante, faz-se necessário aclarar um ponto fundamental, qual seja, a oposição
entre a multiplicidade de decisões judiciais, calcadas em um mesmo Direito, e uma
desejada uniformidade jurídica, proposta por este, para regular a vida social3. De fato, o
resultado da atividade interpretativa desenvolvida pelos órgãos aplicadores do direito não
raro causa indignação, com suas decisões contraditórias. Essa perplexidade deve ser

2
Para este tema remetemos o leitor para o item b) do capítulo IV, inclusive com farta indicação bibliográfica.
3
Esta uniformidade de resolução dos conflitos é decorrente da projeção jurídica do princípio da unidade do
ordenamento jurídico. Assim, Claus-Wilhelm Canaris, in Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na
Ciência do Direito, 2002, p. 14: "Por conseqüência, também a metodologia jurídica parte, nos seus
postulados, da existência fundamental da unidade do Direito". Também Daniel Sarmento, A Ponderação de
Interesses na Constituição Federal, 2000, p. 27, escreve peremptoriamente: "Um dos postulados essenciais
em que se funda o Direito moderno é o da unidade do ordenamento jurídico".
11

explicada cientificamente para avaliarmos se a multiplicidade é inerente ao sistema


jurídico adotado pelos Estados Constitucionais Contemporâneos4, ou se é possível um
aperfeiçoamento teórico que evite resultados interpretativos tão díspares. Ou seja, existem
critérios jurídicos que norteiem a atividade interpretativa de Juízes e Tribunais? A questão
se revela complexa na medida em que é necessário explicar como a diversidade de
soluções – todas igualmente jurídicas – se compatibiliza com o ordenamento jurídico
objetivo.

Nesse ponto, chega-se a uma encruzilhada, com a oposição5 entre o


convencionalismo e o jusnaturalismo: é preciso adotar uma linha de raciocínio que
satisfaça às exigências democráticas das sociedades ocidentais, modelo paradigmático para
a compreensão da amplitude do fenômeno jurídico-interpretativo.

Ora, antes deste Documento Universal, umas poucas Constituições6 se arriscaram a


acolher normas de caráter programático. Efetivamente, porém, só com a Carta das Nações
Unidas, datada de 1948, é que disposições jurídicas foram redigidas sistematicamente
visando primacialmente a contemplação de princípios e valores de alta fluidez conceitual.
As implicações jurídicas somente mais tarde seriam sentidas, como a reivindicação
crescente por democracia e respeito aos direitos humanos. A pressão política exercida
externamente sobre os governantes provocou um movimento em escala global que
culminou numa onda democratizante sem precedentes, com a emancipação e a
independência de variados territórios e ex-colônias.

Por outro lado, a doutrina estrangeira do pós-guerra, sobretudo, a alemã e a


americana, que mais tarde influenciariam a brasileira, não tardaram a estipular uma
dicotomia classificatória quanto às normas7. Nessa esteira, o tratamento doutrinário mais

4
Para maiores considerações sobre este modelo estatal, remetemos o leitor para tópico específico, no item c)
do cap. II.
5
Conforme Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 16.
6
Como as Constituições Mexicana e a de Weimar (1919).
7
Retornaremos a este ponto ao longo deste estudo, especialmente no cap. IV. Por ora, podemos citar, como
partidários desta nova dicotomia classificatória, no Brasil, Luis Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação
da Constituição, 1996; Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 1997; Daniel
Sarmento, A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, 2000; no exterior, Ronald Dworkin,
Levando os Direitos a Sério, 2002; Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema
na Ciência do Direito, 2002; Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 1989; Robert Alexy, Teoria
da Argumentação Jurídica, 2001.
12

recente do fenômeno normativo é no sentido de sua bipartição em duas categorias: 1)


regras e 2) princípios.

Todavia, mesmo tendo havido um substancial aumento do campo material do


direito objetivo (positivo, portanto), todas – e foram muitas – as contribuições do
positivismo foram ignoradas, sem que a comunidade científica se desse ao trabalho de
reestudar o tema sob uma nova ótica, um novo enfoque. Ora, a noção de norma, pedra
angular da doutrina normativista proposta por Kelsen, se encaixa, à perfeição, a este novo
prisma do fenômeno jurídico, inclusive no que se refere ao alargamento do campo de
atuação da atividade interpretativa desenvolvida pelo julgador. Assim, diante desta
ampliação do conteúdo normativo objetivo, com a positivação de valores e princípios ao
lado das regras jurídicas, afigura-se perfeitamente possível a adoção do já clássico modelo
normativista para, numa tentativa de equacionar a milenar disputa entre jusnaturalismo e
positivismo, promover a elucidação das indagações e perplexidades ainda hoje existentes
acerca deste fenômeno cuja complexidade aumentou assustadoramente por dois principais
motivos. Primeiro, o elevado número de relações sociais, decorrentes de um crescente
processo de urbanização, proporcionou uma explosão de demandas jurisdicionais num
duplo aspecto: a) quantitativo, ou seja, o número de ações (ou feitos); e b) qualitativo: o
grau de complexidade das mesmas. O segundo motivo é que a globalização permite uma
maior troca de valores e aproximação de culturas diferentes, o que aumenta a
complexidade da tarefa do julgador: solucionar o caso apresentado em juízo.

Assim, nesta oportunidade, gostaríamos de apresentar uma inovadora abordagem


acerca da interpretação. De fato, assim como o Direito cresceu em volume e complexidade,
também a interpretação acompanhou esta mudança do paradigma jurídico-normativo,
marcada pela evolução, integração, interdependência e especialização da sociedade
contemporânea.

A problemática a ser abordada se refere à aplicação do direito ao caso concreto, ou


seja, o modo como ocorre a fixação da decisão judicial. Mais especificadamente, o
presente trabalho visa a lançar luzes sobre o processo que permite obter o conteúdo desta
13

norma individual8 chamada sentença a partir de normas gerais e abstratas através de uma
atividade intelectiva (interpretação) que, embora possuindo diversas soluções possíveis,
apresenta uma única solução. Não bastasse a possibilidade de uma multiplicidade de
decisões, também a adoção de diversos métodos, conquanto seja extremamente fecunda
para a consecução de uma decisão satisfatória, revelou-se ser uma dificuldade a mais para
equacionar a relação caso controvertido / decisão judicial.

Os subsídios para esta empreitada foram encontrados na obra de Kelsen que, após
ter tido um contato mais intenso com os realistas norte-americanos 9, passou a se dedicar à
problemática de um modo mais sistemático, inserindo-a no contexto da sua Teoria Pura do
Direito. Embora esta noção seja bem desenvolvida na obra do autor austríaco,
especialmente quando associada à, também inovadora, noção de norma10, os ecos do
holocausto ainda impediam uma maior aproximação do normativismo com os problemas
jurídicos.

A razão da escolha ter recaído sobre autor do passado reside no fato de que o
problema da interpretação sempre se revelou essencial para a compreensão do Direito. Por
outro lado, a importância de Kelsen para a compreensão do fenômeno hermenêutico não
pode ser ignorada, especialmente dentro de uma concepção jurídica que se estruturou sob
ideais positivistas e absorveu outros conteúdos que lhe eram, até então, estranhos. Ou seja,
após a Segunda Guerra Mundial, os textos constitucionais de diversos países11, na esteira
do precedente da Declaração Universal dos Direitos do Homem, se esforçaram para
incorporar princípios e valores, numa tentativa de impedir o ressurgimento de novas
barbáries. Ora, com esta sistemática houve uma ampliação do campo material do Direito
positivo. Não por acaso, essa dinâmica é exatamente idêntica à proposta kelseniana
segundo a qual qualquer conteúdo enunciativo pode ser direito12.
8
Conforme Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 269: “O ato através do qual é posta a norma
individual da decisão judicial é – como já foi notado – quase sempre predeterminado por normas gerais
tanto do direito formal como do direito material”.
9
Sobre a vertente americana do realismo, consulte-se o item f) do Capítulo II, onde resumidamente relatamos
as principais idéias de diversas correntes doutrinárias.
10
O filósofo austríaco propôs que a norma fosse estudada como um esquema de interpretação na medida em
que o significado de seu conteúdo deveria necessariamente ser fixado para ser aplicado ao caso concreto.
11
Para ficarmos nos exemplos mais conhecidos, temos Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Espanha,
Portugal e Brasil.
12
Conforme Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 221: “Por isso, todo e qualquer conteúdo pode
ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de
ser conteúdo de uma norma jurídica”.
14

Ao lado de incontáveis contribuições trazidas à dogmática jurídica pelo


normativismo13, pensamos que a interpretação, proposta por esta doutrina, como um
processo contínuo de concretização do direito, igualmente se revelou ser uma fecunda
fonte para a compreensão do fenômeno normativo. Ela merece, assim, um novo ‘sopro de
juventude’, que lhe renove todo o seu vigor e a reconduza a um lugar de destaque, do qual
nunca deveria de ter saído.

Num primeiro momento (cap. II), cabe fixar as noções, os pressupostos e as


premissas que informam a preferência pela adoção do chamado método positivista da
ciência do direito. Em seguida, abordaremos alguns aspectos e elementos relevantes para a
doutrina positivista, com especial destaque para a polêmica entre direito natural e
positivismo, bem como alguns esclarecimentos sobre a noção do vocábulo Estado. Além
disso, dedicaremos todo um item à jurisprudência, com a classificação proposta pela
filosofia alemã. Por fim, discorreremos brevemente sobre as nove correntes agrupadas sob
a rubrica positivismo, mostrando as afinidades e diferenças entre elas.

No capítulo seguinte, abandonaremos as discussões acerca do método empregado, e


estudaremos uma das escolas positivistas: o normativismo14. Seu contexto histórico e suas
principais idéias serão abordados, como a questão do fundamento de validade do sistema
normativo e o escalonamento da ordem jurídica por meio de normas gerais 15, aos quais
serão dedicados itens próprios. Também as críticas formuladas, em especial aquela que se
refere à impossibilidade do uso de princípios jurídicos pelo positivismo, serão respondidas
bem como as contribuições, os desdobramentos e as implicações atuais da doutrina
kelseniana.

13
Remete- se o leitor, nesta oportunidade, para o item d) do capítulo III, onde uma síntese foi por nós
redigida.
14
Conforme denominação Michel Troper, Le Positivisme Juridique, LGDJ, pg. 56. A doutrina kelseniana
encontra seu grau máximo de sistematização na Teoria Pura do Direito, obra-referência do jurista e filósofo
austríaco Hans Kelsen, indispensável para a elaboração deste trabalho.
15
Não estamos querendo dizer, com isso, que um sistema normativo apenas é composto de normas desta
categoria, mas tão somente que elas gozam de uma primazia em relação àqueloutras normas individuais.
Como veremos no desenvolvimento do cap. IV, para Kelsen, as sentenças são igualmente normas jurídicas.
15

Por fim, antes da conclusão deste trabalho, dedicaremos todo um capítulo à questão
da interpretação e do uso dos princípios jurídicos. Este fenômeno é tratado em uma das
obras de Hans Kelsen, razão pela qual nosso interesse em revisitar algumas linhas desta
figura paradigmática16, ímpar para o estudo do Direito. Suas idéias revolucionárias
romperam com as idéias da, então dominante, teoria tradicional da interpretação que,
amparada na doutrina do Direito Natural, preconizava uma única solução “justa”,
“correta”, “acertada” para um determinado caso judicial17. Dentre os aspectos a serem
estudados, elencamos a questão da norma como um esquema de interpretação, as
categorias normativas, o processo de aplicação do direito e a classificação kelseniana da
interpretação.

Assim, é com especial satisfação que realizamos este trabalho cujo tema foi
recorrentemente abordado ao longo das aulas ministradas neste curso de pós-graduação.
Todavia, como não poderia deixar de ser, a vastidão do tema tratado no decorrer do curso
permite sejam expendidos mais alguns esclarecimentos, formulando idéias e conclusões
através dos ensinamentos kelsenianos. Embora o positivismo e mais especificadamente, o
normativismo, não tenham sido especificamente enfocados durante o curso, o pensamento
do autor austríaco pode e deve ser utilizado como subsídio para esclarecimento deste
intrigante fenômeno chamado interpretação, pelas razões já expostas.

16
José Florentino Duarte, tradutor da obra póstuma de Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, 1986, p. XII,
assim se manifestou sobre a importância do escritor austríaco: “Em verdade, Hans Kelsen fez uma
verdadeira revolução no vastíssimo campo do Direito, contrariando os pontos de vistas dos tradicionários
da Teoria e da praxis do versar jurídico ao tempo corrente. Assim, a posição científica kelseniana é um
legítimo divisor do pensamento jurídico universal: o que existe hoje em Teoria do Direito situa-se antes e
depois de Kelsen”.
17
Esta doutrina, como veremos, pressupõe que o Direito seja algo inerente e inalienável de todo ser humano.
Ora, para eles a ordem jurídica só encontra respaldo (validade) na medida em que se apresenta consentânea
com estes ditames fundamentais, proposições estas que se situam num plano de Justiça ideal. Logo, ao se
deparar com uma sistuação que reclame a atuação da lei, deve o julgador aplicar estes princípios justos, que
conduzem necessariamente a uma única solução (justa) já que é logicamente impossível que duas soluções
aplicadas a casos idênticos possam ser igualmente justas.
16

II – O POSITIVISMO

a) Panorama:

A denominação positivista apresenta, no atual estágio da ciência jurídica, uma


significação deveras imprecisa18. De fato, o esclarecimento do sentido desta expressão deve
ser dissipado através de sucessivos estudos, que serão desenvolvidos em três planos
distintos: a) científico; b) conceitual; c) analítico. O primeiro plano será abordado em um
único item, enquanto os dois últimos serão expostos em dois itens cada, sem que isto
impeça que alguns temas sejam abordados mais de uma vez.

No plano científico, notamos que o positivismo apresenta-se como um peculiar


modo de fazer ciência, afastando-se, desde logo, de outras categorias, como a técnica, a
arte, a história e o divino. Por outro lado, estuda um objeto conceitual objetivo, utiliza uma
metodologia própria e adota como pressuposto a racionalidade humana, que é tida como
um elemento indissociável do saber científico-jurídico ao encarar o ordenamento
legislativo como um sistema artificial e racionalmente criado pela vontade humana. Assim,
antes de adentrarmos no “admirável mundo novo”19 revelado pelo filósofo austríaco,
devemos abordar as chamadas noções científicas, epistemológicas e metodológicas
adotadas pelo positivismo, em geral, e por Kelsen, em particular, para a correta
compreensão de sua Teoria Pura do Direito. Ainda que não expressamente, o austríaco
aceitou pontos de vista de outros autores bem como adotou alguns de seus pressupostos
científicos e metodológicos. Ao longo destas linhas, tentaremos reconstruir o
desenvolvimento das idéias positivistas. Devemos ressaltar que estes fundamentos iniciais
são comuns a todas as escolas jurídicas que, orientadas a partir de uma filosofia positivista,
se debruçaram sobre o estudo do direito, vendo neste uma criação humana.

Em seguida, no plano conceitual, este estudo não poderia se furtar em abordar a


polêmica entre o positivismo e o jusnaturalismo, inclusive esclarecendo historicamente a
evolução de ambos os posicionamentos filosófico-dogmáticos e suas recíprocas críticas.
Este interminável dilema, que perdura por mais de dois milênios, permitiu um refinamento
18
Nesse sentido se manifesta Michel Troper: “Il n’existe en effet aucune essence du positivisme et par
conséquent aucune définition objective” (ob. cit., p. 25).
19
A expressão é o título do famoso livro do escritor Aldous Huxley.
17

lingüístico e terminológico que proporcionou um debate bastante criativo, intenso e


fecundo. Merece destaque, ainda, a jurisprudência que goza de grande prestígio, sobretudo
entre os germânicos, por se orientar segundo critérios facilmente reconhecíveis. Claro que
a cada critério adotado corresponde uma ‘linha de pensamento’ distinta.

Por outro lado, no plano analítico, é imprescindível o estudo do elemento Estado,


erigido à posição de instituição originária da qual derivam as normas jurídicas, sendo certo
que estas normas o conformam num constante processo dialético que lhe confere a sua
autenticidade. Neste capítulo, merecem destaque, ainda, as diversas escolas que compõem
o denominado grupo positivista, sendo certo cada uma delas corresponde a uma teoria
distinta. Assim, resta claro que uma expressão demasiadamente ampla e de sentido dúbio
perde, por assim dizer, uma de suas funções básicas, qual seja, a de expressar com clareza
a relação entre o nome e a coisa, quando a partir desta mesma idéia comum cada uma das
várias teorias positivistas reivindica para si o modo correto de aplicação da metodologia
positivista. Na esteira desse raciocínio, o nosso objetivo é simplesmente demonstrar que o
grupo positivista não se apresenta como algo uniforme, mas, ao contrário, permite uma
gama de teorias que não raro possuem ligações muito tênues entre si. Com isso, o emprego
indiscriminado do vocábulo ‘positivismo’ revela-se no mínimo deselegante por não
expressar corretamente o significado de tal ou qual escola de pensamento, uma sutileza que
somente pode ser captada com o auxílio de expressões diferentes.

Não obstante as dificuldades acima relatadas, diversas empreitadas foram tentadas


no sentido de agrupar os positivistas em torno de características comuns, sendo certo que a
tentativa mais elaborada teve em Herbert L. A. Hart sua expressão máxima. Este autor
inglês formulou cinco diferentes critérios20 para classificar uma corrente ou doutrina como

20
As cinco teses são as seguintes: a) as leis são comandos que emanam de seres humanos; b) não existe uma
necessária relação entre o Direito e a Moral, ou entre o Direito como ele é e o Direito que deveria ser; c) a
análise (ou estudo da significação) dos conceitos jurídicos (i) vale a pena ser feita e (ii) deve ser distinguida
dos estudos históricos das causas e das origens das leis, dos estudos sociológicos das relações entre o Direito
e os outros fenômenos sociais e de toda crítica ou aprovação do Direito, seja pela Moral, por adequação aos
fins sociais, em razão de uma “função” desempenhada ou por qualquer outra forma; d) o sistema jurídico é
um ‘sistema lógico fechado’, no qual as decisões jurídicas corretas podem ser deduzidas, por meios lógicos,
de regras jurídicas predeterminadas, sem nenhuma referência aos fins sociais, políticos ou a standards
morais; e) os julgamentos morais não podem ser estabelecidos ou defendidos, ao contrário dos julgamentos
de fatos, por meio de argumentos racionais ou de provas (apud Michel Troper, ob. cit., p. 26).
18

positivista. Todavia, como bem adverte Michel Troper, nenhuma das teorias positivistas
conhecidas satisfaz a todos eles simultaneamente21. Assim, para os objetivos deste estudo,
preferimos seguir a orientação traçada por Troper, com a fixação de critério único que,
embora vago, seja capaz de aglutinar essas doutrinas ligadas por um ou mais pontos em
comum22, preenchendo de conteúdo o vocábulo positivismo. Doravante, serão consideradas
positivistas as escolas de pensamento que considerem o Direito como produto decorrente
da criação humana, isto é, o homem como o verdadeiro autor do Direito23. Oito dessas
doutrinas serão apreciadas nesta oportunidade, além de todo um capítulo que será dedicado
ao normativismo. A abordagem se dará seguindo-se a ordem de surgimento histórico-
temporal de cada uma delas24.

Embora encontremos, na literatura, referência ao vocábulo positivismo, neste


trabalho, doravante, não mais o utilizaremos como sinônimo do anterior, pois o termo está,
como demonstraremos, relacionado ao método25 adotado pelas diversas escolas de
pensamento e a um conteúdo específico.

A importância do estudo dessas premissas filosóficas, científicas e metodológicas,


bem como o estudo das diversas escolas de pensamento, sejam positivistas ou não,
inclusive com suas polêmicas e principais elementos, se reflete, como não poderia deixar
de ser, no fenômeno da interpretação, ponto de interesse maior deste trabalho. De fato, na
medida em que esta terá seu campo de atuação mais ou menos restrito, mais ou menos útil
e mais ou menos adequado de acordo com a concepção científica subjacente à noção de
Direito, faz-se necessário delimitar em que medida a interpretação jurídica poderá
subsidiar o julgador na decisão judicial. Do mesmo modo, a classificação do princípio
como uma categoria normativa também é importante para fixar os limites daquela decisão.

21
Assim, se manifestou o autor francês: “Cette démarche présente un inconvénient, en dehors du fait qu’on
ne troverait aucun théoricien du droit qui adhèrerait à toutes ces thèses et même qu’on aurait du mal à
trouver un seul théoricien qui adhère pleinement à la thèse (4):” (Troper, ob. cit., p. 26). A tese 4 é a que
admite o direito como um ‘sistema lógico fechado’; ver, para tanto, as considerações constantes do tópico
sistema.
22
Troper, ob. cit., p. 27.
23
Quanto à explicitação do critério, assim se manifestou o francês: “nous n’avons analysé que des courants
qui considèrent le droit comme étant le fruit de la création humaine, (...)”. Mais adiante conclui: “Cette
optique est solidaire de notre conviction initiale que le positivisme juridique est une démarche qui considère
l´homme comme le véritable auter du droit”. (grifo do original). Troper, ob. cit., p. 33/34.
24
Conforme Troper, ob. cit., p. 34.
25
Para maiores considerações sobre o método positivista, ver tópico próprio no item seguinte.
19

Assim, por exemplo, a concepção do Direito como ciência faz com que a
interpretação também adquira contornos científicos. Isto significa que o fenômeno
hermenêutico ganha contornos mais rígidos, que tendem a limitar a arbitrariedade e a
subjetividade do julgador na pesquisa da decisão mais satisfatória, seja ela a mais justa,
correta, útil ou adequada. Por outro lado, as demais categorias não-científicas, como a
divindade, a arte e a técnica, concebem o direito ora como algo inatingível nos limites
deste mundo, ora com um grau de subjetivação incompatível com o moderno postulado da
segurança jurídica, ora como algo irracional, assistemático, imprevisível e, portanto,
inapreensível.

O mesmo ocorre com a metodologia utilizada. A preferência pelo positivismo nasce


da constatação de que o Estado Constitucional Contemporâneo exige, para a resolução dos
inúmeros conflitos sociais, que a solução adotada seja calcada em uma metodologia
pautada por uma coerência, racionalidade ou razoabilidade que possa ser objetivamente
compreendida, demonstrada e explicada à Sociedade / comunidade. Nesse sentido, para
que uma decisão judicial cumpra este desiderato, deve ela vir acompanhada de uma
fundamentação clara e precisa, que evidencie o ‘percurso intelectivo’ trilhado pelo julgador
e que culminou com tal ou qual decisão. Ganha-se em segurança jurídica, transparência e
censurabilidade para com a Sociedade, principal interessado na aplicação do direito, que
sempre estará apta a exercer um legítimo controle social da conduta dos agentes públicos
integrantes do Poder Judiciário. Sem a observância dos postulados preconizados pelo
positivismo jurídico, a demonstração de que a solução adotada é legítima fica grandemente
comprometida.

O mesmo ocorre com o objeto da ciência do Direito, isto é, a própria indagação de


saber que objeto é este que condiciona o processo de interpretação. De fato, a adequação
interpretativa depende de se saber que tipo de objeto está sendo interpretado. Por exemplo,
no caso da tópica (que concebe o direito como uma técnica de resolução de problemas,
recusando, em linhas gerais, a sua sistematicidade) várias soluções são possíveis, mas não
há qualquer referência ou limitação estabelecida onde quer que seja que permita saber qual
a solução mais indicada. De fato, as várias soluções possíveis adquirem um caráter
meramente indicativo, sem que se possa exercer satisfatoriamente um controle sobre uma
decisão que, negando o caráter sistemático do ordenamento jurídico, não possui uma
20

relação de subordinação entre a sentença judicial e a legislação. Por outras palavras, as leis
não são vinculativas para os juízes, mas meras formulações abstratas.

Ou seja, em linhas gerais, a tópica recusa a noção de norma, isto é, não reconhece
nesta um parâmetro de validade para a aplicação do Direito, atribuindo-lhe um caráter
simplesmente indicativo / não-vinculativo. Adotando-se, por conseguinte, a postura tópica,
o arbítrio do julgador é que decidirá qual das soluções apresentadas deve prevalecer no
caso concreto. Modernamente, no entanto, a submissão à lei de todos os partícipes do
processo social, especialmente daqueles que atuam por delegação estatal, ou que se
utilizam do poder estatal no exercício de suas funções, é uma conquista de segurança
jurídica que não admite exceções. O positivismo, ao contrário, se calca na noção
fundamental de norma jurídica, que é claramente reconhecível no Direito estatal.
21

b) Noções científicas, epistemológicas e metodológicas do positivismo:

Ciência. De imediato, cabe assentar, como premissa, que o Direito é uma ciência 26.
Embora tal afirmação pareça óbvia, nem sempre houve consenso sobre tal aspecto. De fato,
ao longo do tempo o Direito foi sucessivamente posto, inserido em categorias não-
científicas27. Para confirmarmos o enquadramento do Direito dentre os ramos científicos do
conhecimento humano, faz-se necessário saber se ele apresenta elementos comuns às
demais Ciências e se goza de uma autonomia em relação a elas. Assim, quando se indaga
se o Direito é uma ciência quer-se saber duas coisas bem distintas: 1) se o Direito pode ser
classificado como uma ciência; 2) se o Direito é uma ciência dotada de autonomia, isto é,
diferente das demais ciências. Assim, surge a necessidade de bem esclarecermos o sentido
do vocábulo ciência:
“Conhecimento que, em constante interrogação de seu método,
suas origens e seus fins, procura obedecer a princípios válidos e
rigorosos, almejando especialmente coerência interna e
sistematicidade; na metafísica grega ou no hegelianismo moderno,
conhecimento filosófico racional, absoluto e sistemático a respeito
da essência do real, culminância de todos os saberes particulares
e específicos; cada um dos inúmeros ramos particulares e
específicos do conhecimento, caracterizados por sua natureza
empírica, lógica e sistemática, baseada em provas, princípios,
argumentações e demonstrações que garantam ou legitimem a sua
validade”28.

26
Nesse sentido, se manifestam, já nos títulos de suas respectivas obras (Metodologia da Ciência do Direito e
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito), Karl Larenz e Claus-Wilhelm
Canaris. Desse último, extrai-se a seguinte passagem: " Isso resulta, desde logo, de se considerar o Direito
como Ciência; pois como diz Coing: 'Em última análise, o sistema jurídico é a tentativa de reconduzir o
conjunto da justiça, com referência a uma determinada de vida social, a uma soma de princípios racionais.
A hipótese fundamental de toda a Ciência é a de que uma estrutura racional, acessível ao pensamento,
domine o mundo material e espiritual' ".
27
Assim, em nossas pesquisas pudemos notar que o Direito fora enquadrado em, pelo menos, quatro
categorias não-científicas distintas, das quais deve ser afastado. São elas: a) o divino; b) a história; c) a arte;
d) a técnica.
28
Dicionário HOUAISS de Língua Portuguesa, 1ª edição, 2001, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, p. 715. As
três acepções acima enunciadas se referem ao seu uso no campo da filosofia.
22

De todas estas definições filosóficas, recorrentemente, emergem três principais


noções, associadas à idéia de ciência e que merecem ser devidamente analisadas, cada qual
a seu tempo. São elas: a) a metodologia; b) a racionalidade; e c) a sistematicidade. Estas
três características serão devidamente esclarecidas em tópicos específicos, onde se
procurará evidenciar a relação entre elas e o positivismo.

Por outro lado, a interpretação calcada no positivismo também deverá obedecer aos
postulados anteriormente mencionados, ou seja, esta tríplice caracterização de ciência atua
como condicionante do processo hermenêutico que será desenvolvido a partir dos
postulados normativos. Isto significa que o desenvolvimento da atividade interpretativa
deverá ser obtido segundo parâmetros metodológicos racionais e sistemáticos. O mesmo
ocorre com o aproveitamento dos princípios jurídicos, que deverá se pautar pelos mesmos
critérios. Sem isso, o discurso jurídico se torna a-científico. Retornaremos a este ponto
mais adiante. Por ora, é suficiente ter-se uma idéia do seja ciência: é um conjunto de
enunciados29 que permite, de modo lógico e racional, estudar e compreender um
determinado fenômeno ou objeto.

Nota-se que toda ciência requer uma epistemologia como parâmetro elucidativo do
conhecimento, mas aquela não se esgota nesta. De fato, toda ciência recai sobre um dado
objeto. Este pode ser conceituado como todo e qualquer fenômeno apreensível pelos
sentidos humanos que, sendo suscetível de ser estudado objetivamente30 e por ter, de
acordo com a concepção benthamiana, uma utilidade ao ser humano, merece uma análise
rigorosa31. Nesse sentido, ciência é a soma de uma epistemologia com um objeto de estudo.

29
O uso do termo enunciado não é fruto de nossa idéia nem é aleatório; foi colhido em Luís Alberto Warat,
O Direito e sua Linguagem, 2ª versão, 2ª edição, 1995, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, p. 52,
nota 26, que sobre o tema assim se manifestou, in verbis: “O enunciado,(...), é a oração dotada de sentido
em alguma linguagem”. Enunciados são instrumentos ou artifícios teóricos utilizados pelos cientistas para
melhor compreender os fenômenos mundanos. Eles constituem um gênero cujas espécies podem ser
agrupadas em: a) teorias (v.g. Hipótese Gaia, segundo a qual o próprio planeta auto-regula as condições
favoráveis e desfavoráveis à existência da vida); b) teoremas (como o de Pitágoras, segundo o qual a soma
dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa); c) proposições (v.g. Leis de Lavoisier; uma
delas diz que na natureza nada se perde nada se cria, tudo se transforma); d) concepções; etc. A grande
característica dos enunciados é o fato de sua aceitação ser fruto do consenso da comunidade científica.
30
De fato, a objetividade é um imperativo lógico para qualquer processo explicativo que deseje receber o
rótulo científico. Assim, qualquer inclinação subjetivista deve ser afastada.
31
Quanto ao rigor que impregna o saber científico, manifestou-se Kelsen quando discorre, logo no início da
obra que o consagrou, sobre o princípio metodológico fundamental de sua Teoria Pura do Direito.
23

Diante dessa síntese, temos que a autonomia de uma ciência em relação às demais –
sua especificidade, portanto - é conseguida quando seu campo de estudo se diferencia do
das outras ciências, não em virtude de sua epistemologia, que pode ser comum a várias
ciências, mas em razão do seu objeto, que deve ser próprio, peculiar, único, diferente. Esta
questão será retomada no próximo tópico já que a diferenciação entre o objeto da ciência
do direito (as normas jurídicas) e os das demais ciências é que permitirá delimitar o suporte
sobre o qual será desenvolvida a atividade hermenêutica, bem como a extensão do uso dos
princípios jurídicos.

Contudo, para respondermos à primeira indagação, anteriormente formulada,


devemos afastar a categoria ciência de diversas outras, como a arte, o divino, a técnica e,
em certa medida, a história. Esta diferenciação, que não tem caráter de exaustividade, se
justifica na medida em que o Direito foi, ao longo de seu desenvolvimento histórico,
principalmente enquadrado nestas categorias por Autores e Escolas de renome. Sendo
assim, este trabalho não poderia se furtar a esclarecer esta importante questão preliminar.

Com o divino ele não se confunde, pois o crescente processo de racionalização nos
faz crer “que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que
interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por
meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo”32. Assim, a doutrina do
teocentrismo jurídico ou do voluntarismo teocêntrico preconizou a subserviência da lei
humana à lei divina. Ora, ao adotar-se tal postulado, teríamos uma confusão conceitual
entre os ensinamentos religiosos e o Direito, que seria tão somente oriundo da revelação de
uma vontade divina preexistente, absoluta e universal. A noção fundamental de que a lei
humana derivava de uma vontade superior – que não mais pode ser aceita – se expressava
em duas principais correntes. Na primeira, Deus era considerado como o único legislador e
se manifestava à Humanidade diretamente, ou através de seus profetas33. Na segunda, Deus
delegava a um representante terráqueo a incumbência de legislar em seu nome e segundo a
Sua vontade34. Assim, nota-se que a referência central deste tipo de concepção é uma
32
WEBER, Max. Ciência e Política – Duas Vocações, pág. 30 - grifos do autor.
33
Esta versão pode, por exemplo, ser encontrada na Bíblia, onde a doutrina católica sustentou que a Lei dos
Homens devia obediência à Lei de Deus, ou no Corão, onde o profeta Maomé teria deixado os ensinamentos
divinos ao alcance de seus seguidores.
34
Esta vertente pode ser vista no Código de Hamurabi. Também nos brocardos The King can do no wrong e
Le Roi ne peut mal faire, muito em voga durante a vigência do Absolutismo, servem de exemplo desta
24

divindade, o que não mais pode ser aceito no mundo moderno. Percebe-se, todavia, uma
clara aproximação desta doutrina teocêntrica com a da doutrina do Direito Natural35 (em
sua acepção clássica) que, com os intensos e revolucionários acontecimentos que se
iniciaram no séc. XVII e se consolidaram no séc. XVIIL capitulou e reconheceu no homem
a medida para compreender a ordem jurídica36. O debate travado entre o jusnaturalismo e o
positivismo será apreciado em momento oportuno já que sua compreensão demanda uma
minuciosa análise de ambas as doutrinas cujas argumentações foram significativamente se
alterando, desde seu surgimento na Grécia Antiga. De fato, a efervescência dos
acontecimentos37 ocorridos no sec. XVIII orientaram a formação de Estados e Sociedades
que demandavam a intervenção do Homem de um modo incompatível com a doutrina
teocêntrico-religiosa.

Por outro lado, da técnica o Direito também se diferencia, pois esta é a utilização
do conhecimento científico, consolidado em um dado momento, para solucionar um caso
concreto. De fato, este assunto é bem conhecido a partir da crítica levantada pela tópica,
técnica de resolução de conflitos, que embora bastante antiga, foi ressuscitada, em 1953,
por Theodor Viehweg38. Esta doutrina se negava a aceitar o caráter sistemático do Direito,
numa recusa que o afastava de sua classificação científica39. Assim, coube ao alemão,
retomando o tema dos topoi, sustentar que o Direito permaneceria como uma técnica de
resolução de problemas, não se apresentando como um sistema40.

versão.
35
Conforme Troper, ob. cit., p. 34. Aliás, na elaboração deste parágrafo foram encontrados fartos subsídios
na obra deste autor.
36
Conforme Simone Goyard-Fabre, ob. cit., p. 50 que assim se manifestou sobre o filósofo de Malmesbury:
“O convencionalismo jurídico de Hobbes é inimigo mortal do direito natural clássico”.
37
Uma rápida retrospectiva histórica destes acontecimentos pode ser vista no item e) deste capítulo, que trata
da formação do estado Constitucional Contemporâneo.
38
A obra clássica do autor alemão foi traduzida para o vernáculo, em 1979, por Tércio Sampaio Ferraz Jr. e
recebeu o expressivo título de Tópica e Jurisprudência, sendo editada pelo Departamento de Imprensa
Nacional (Brasília).
39
Segundo Claus-Wilhelm Canaris, ob; cit., pp. 243/244: “No seu escrito ‘Topik und Jurisprudenz’, Theodor
Viehweg apresentou a tese de que a estrutura da Ciência do Direito não poderia ser captada com o auxílio
do pensamento sistemático, mas apenas com base na doutrina da tópica”.
40
Como já vimos, en passant, a sistematicidade é um dos requisitos de qualquer ciência. A este tema será
dedicado todo um tópico.
25

Esta tese é, hoje em dia, minoritária porque a argumentação tópica somente se opõe
a dois peculiares tipos de sistema: a) o axiomático-dedutivo41; b) o fechado42.Contudo, tais
modelos de sistema jurídico não são defendidos por mais ninguém há muito tempo43. Um
outro argumento, porém, nos parece igualmente convincente no sentido do equívoco
propalado pela tópica. Estamos nos referindo ao caráter não obrigatório do Direito, ou seja,
para esta doutrina a lei ‘ofereceria’ uma solução para o caso concreto, solução esta que
poderia ser afastada se o ‘senso comum’ fosse dissonante44. Isto representaria um aumento
brutal de arbitrariedade (discricionariedade) do julgador, que teria poder para decidir qual
das soluções se apresenta como a mais adequada. Portanto, a explicação tópica proposta
por Viehweg é insuficiente para caracterizar o Direito como uma técnica.

Com a arte, a ciência também não se confunde porque esta é uma aplicação
subjetiva de um conjunto de meios e procedimentos para a obtenção de finalidades práticas
ou para a produção de objetos, segundo o aristotelismo; ou, a habilidade ou disposição
dirigida para a execução de uma finalidade prática ou teórica, segundo o platonismo. Nota-
se que o campo de atuação artístico, além de não preencher o imperativo da objetividade, é
mais restrito que o científico, pois não se propõe a estudar uma série de aspectos, como a
sistematicidade, a metodologia e a epistemologia do seu objeto. De fato, a ciência se
preocupa com a explicação, a compreensão e a significação objetiva do fato ou fenômeno
jurídico. Assim, alguns jusnaturalistas reconhecem no primeiro caracteres artísticos45.
Também parte da doutrina alemã, negando o caráter científico da jurisprudência46, a
concebe ora como arte, ora como técnica47.

41
Assim, se manifestou Antônio Menezes Cordeiro, na introdução à edição brasileira da obra de Canaris
(citada): “A pretexto de adesões tópicas, redobrou-se na crítica ao pensamento sistemático, sem atentar no
facto de os argumentos de VIEHWEG – conhecidos, aliás, há muito – atingirem, tão só, um certo tipo de
sistema: o axiomático-dedutivo” (p. XLVIII).
42
De fato, a argumentação tópica, se valendo da concepção hartmanniana, que diferencia entre os modos de
pensar aporético e sistemático, rebate de modo satisfatório este tipo de sistema jurídico. Ocorre, porém, que a
aporia, para Nicolai Hartmann, não se desvincula da noção de sistema. Assim, se manifestou Canaris, ob. cit.,
p. 248: “O pensamento aporético não conduz assim, de modo algum, necessariamente à tópica mas sim,
apenas, à ‘abertura’ do sistema”.
43
No caso do sistema axiomático-dedutivo, a crítica de Diederichsen foi implacável (Canaris, ob. cit., p. 7), e
com relação ao sistema fechado, foi o próprio Canaris quem exemplarmente o criticou, à p. 247 de sua obra.
44
Canaris, ob. cit., p. 253.
45
Troper, ob. cit., p. 20: “Cette distinction est refusée par certains jusnaturalistes, qui estiment qu’il s’agit
simplement de deux dimensions du même art juridique, mais elle est acceptée par d’autres” (grifo nosso).
46
Na filosofia tradicional alemã, o termo jurisprudência é equiparável a Ciência do Direito.
47
Conforme Canaris, ob. cit., p. 15/16: “(...); assim, os adversários do pensamento sistemático, em parte na
seqüência desse seu princípio básico, têm negado o caráter científico da jurisprudência, reconhecendo-lhe
apenas a categoria de uma espécie de ‘arte ou de técnica’ ”.
26

Também não se pode confundir ciência com história haja vista que esta faz uma
análise regressiva (sobre fatos pretéritos, já ocorridos e imodificáveis) enquanto a ciência
faz uma análise prospectiva, sobre as conseqüências, efeitos e / ou desdobramentos
fenomênicos decorrentes de tal ou qual fato. No caso do Direito, torna-se evidente que,
pelo menos nas democracias ocidentais, a adoção do princípio da segurança jurídica, em
maior ou menor grau, confere à ordem jurídica um caráter normativo principalmente ex
nunc48. Por outro lado, a história somente surge com a documentação de fatos já ocorridos
e, portanto, imodificáveis, permitindo tão somente uma análise retrospectiva. A idéia de se
conceber o Direito como um processo histórico ou algo equivalente já teve (tem ainda)
alguns adeptos. Assim, os originalistas americanos49 adotam a tese central de que, para se
perquirir o verdadeiro sentido das expressões utilizadas na Constituição Americana, deve-
se buscar a vontade inicial dos fundadores dos Estados Unidos da América. Também
Savigny, com seu historicismo, procurou colocar o Direito ao abrigo de iniciativas
arbitrárias dos legisladores, sendo aquele considerado como o ‘espírito do povo’ 50. Isto sem
falar em Karl Marx que, com o seu materialismo histórico, reconheceu no Direito uma
superestrutura de dominação de classes, podendo este ser considerado uma técnica ou a
própria história (registrada) da dominação. Embora pesquisas históricas possam auxiliar na
compreensão dos fenômenos jurídico-normativos, elas apresentam a já citada limitação
temporal, ou seja, a inovação da ordem jurídica exige uma conformação futura entre a
conduta humana e a prescrição normativa de modo que não existe nenhuma relação entre o
que foi (passado) e o que deve vir a ser (futuro).

Objeto. Quanto à segunda indagação, a de saber se o Direito goza de autonomia em


relação às demais ciências, temos que pesquisar se a norma jurídica é dotada de
características singulares que justifiquem seu estudo em separado, constituindo o Direito
um ramo científico diferente. Como já dito, a especificidade de uma ciência é dada pelo
48
Esta expressão latina é utilizada com freqüência no discurso jurídico e significa que a inovação normativa
deve ser aplicada aos fatos ou situações jurídicas consumadas após o início da vigência da norma.
49
Esta doutrina reúne os estudiosos americanos que preconizam a busca do sentido das expressões
constitucionais de acordo com o pensamento popular do tempo em que a Constituição Americana foi
elaborada, ou seja, em 1787. Naturalmente que esta corrente é pouco numerosa seja porque não é possível
saber o real significado das expressões, seja porque isto acarretaria uma cláusula implícita de vedação ao
progresso ante a ausência de adequada regulamentação constitucional. Assim, por exemplo, como a internet
não existia naqueles tempos, a garantia constitucional da liberdade de informação não a alcançaria, o que
permitiria uma maior “censura” da rede digital pelo governo americano.
50
Canaris, ob. cit., p. LXXXII. A informação é dada por Antônio Menezes Cordeiro na Introdução à edição
de língua portuguesa.
27

seu objeto de estudo. Embora o vocábulo norma tenha um sentido todo especial para o
positivismo, e fundamental para o normativismo, pensamos ser de bom alvitre expormos os
variados significados que, ao longo do tempo, a filosofia do Direito lhe reservou.

Pois bem. Dentro da Teoria Geral do Direito, o vocábulo norma51 adquire diversas
acepções: a) preceito de direito; b) padrão de comportamento; c) fórmula abstrata do que
deve ser; d) modelo; e) ação que se dirige a fim previsto. Nenhum destes significados
satisfaz plenamente ao conceito jurídico de norma proposto por Kelsen, mas servem como
indicativo para se compreender o que o termo significa, apartando-o de outros objetos
pesquisados pelas suas respectivas ciências52.

Uma norma se apresenta, portanto, como um mandamento que determina, impõe ou


exige uma conduta humana53. Esta é sua principal finalidade. Assim, tal aspecto deve servir
de critério para distinguir o Direito das demais ciências.

Assim, de plano, cabe afirmar que o Direito54, como sinônimo de ciência jurídica, é
um ramo que pertence ao grupo das ciências sociais, ou seja, se situa dentre aquelas que
visam compreender a conduta recíproca dos homens55. Este grupo se diferencia do das
chamadas ciências naturais56 (como a Química, a Física e a Biologia) porque, nestas, os
eventos e fenômenos estudados independem de qualquer interferência do Homem, ou seja,

51
Ver DINIZ, Maria Helena, in Vocabulário Jurídico, vol. 3, 1998, editora Saraiva, pg. 366.
52
A este ponto retornaremos no item a) do capítulo IV.
53
Nesse sentido, Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, 1986, p. 1: “Mandamento não é, todavia, a única
função de uma norma. Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas”.
54
Na filosofia germânica, como já dito, a ciência jurídica recebe usualmente a denominação jurisprudência,
que possui significado diverso no Brasil e em outros países que adotaram o sistema do roman law. Por isso,
preferimos utilizar o vocábulo direito ora como indicativo do objeto, ora como designativo da ciência.
55
Kelsen, ob. cit., p. 95. Sobre a dicotomia entre estes dois grupos de ciências, assim se manifestou o autor,
nas páginas 84/85: “Somente por esta via se alcança um critério seguro que nos permitirá distinguir
univocamente a sociedade da natureza e a ciência social da ciência natural” (grifos nossos).
56
Observe-se, porém, que, para o autor austríaco, a distinção entre ciência natural e ciência social é, além de
arbitrária, inútil, pois não serve de critério apto a classificar de modo satisfatório os diversos ramos
científicos existentes. De fato, o princípio da causalidade é insuficiente para explicar porque a conduta
humana não pode ser objeto de estudo científico com base numa relação de causa e efeito. Pede-se vênia para
transcrever elucidativa passagem da obra do autor: “Mas não há uma razão suficiente para não conceber a
conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da
causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito. (...) Na medida
em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a
conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, tal ciência social não pode ser
essencialmente distinta das ciências naturais” (Kelsen, ob. cit., p. 85). Mais adiante, na p. 96, conclui: “A
distinção que, sob este aspecto, existe entre as mencionadas ciências sociais e as ciências naturais é, em
todo o caso, uma distinção apenas de grau e não de princípio”.
28

eles existem por si só. Isto significa dizer que nessas ciências vige o chamado princípio da
causalidade, que estabelece entre os seus diversos elementos uma relação de causa e
efeito57. Ora, segundo Kelsen, a conduta jurídica do homem só pode ser explicada por um
outro princípio que, não obedecendo à lógica da causa e efeito, possui um caráter muito
mais convencional58, incompatível com os imperativos das ciências naturais59.

Por outro lado, uma outra classificação60 diferencia as ciências normativas61 das
causais62 em razão do princípio da imputação63, que estabelece uma relação entre dois
elementos segundo a vontade humana64. Ou seja, ao invés de uma relação do tipo causa /
efeito, temos uma do tipo pressuposto / conseqüência65. Como já visto acima, algum
aspecto da natureza, ou mesmo da conduta humana, é o objeto a ser estudado, sendo certo
que o princípio da imputação lhes é estranho. É o caso da Psicologia, da Sociologia, da

57
Sobre esse ponto assim se manifestou Kelsen: “A natureza é, (...), uma determinada ordem das coisas ou
um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, portanto segundo
um princípio que designamos por causalidade. As chamadas leis naturais, com as quais a ciência descreve
este objeto – como, v. g., esta proposição: quando um metal é aquecido, ele dilata-se – são aplicações desse
princípio. A relação que intercede entre o calor e a dilatação é a de causa e efeito” (Kelsen, ob. cit., p. 85).
58
Desde Hobbes, nota-se o caráter convencional do Estado, a maior estrutural social, onde os Homens em sua
busca por segurança se unem para criar o Estado-Leviatã, cuja função é assegurar a harmonia social.
59
Kelsen, ob. cit., p. 85: “Se há uma ciência social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever o
seu objeto segundo um princípio diferente do da causalidade”.
60
A insuficiência da classificação anterior levou Kelsen a utilizar um novo critério, um novo princípio que
servisse de parâmetro elucidativo da peculiaridade do direito dentre as demais ciências. E ele fê-lo com a
adoção do princípio da imputação; ver nota 39 adiante.
61
Chama-se normativa a ciência (social) que, adotando o princípio da imputação, estuda a conduta recíproca
dos homens que deve ser externada em conformidade com normas sociais, ou seja, normas positivas e
reconhecíveis pela sociedade. Assim, por exemplo, o Direito e a Ética são ciências normativas.
62
Toda a ciência natural é uma ciência causal. Embora teoricamente a utilização de critérios distintos para a
elaboração de diferentes classificações pudesse permitir uma combinação de ambas, não existe nenhuma
ciência que, simultaneamente, seja natural e normativa, de modo que somente as ciências sociais podem ser
bipartidas em causais e normativas.
63
Sobre a diferença entre este princípio e o da causalidade, assim se manifestou o autor: “O ser o significado
da cópula ou ligação dos elementos na proposição jurídica diferente do da ligação dos elementos na lei
natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através de uma norma
estabelecida pela autoridade jurídica – através de um ato de vontade, portanto –, enquanto que a ligação de
causa e efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção dessa espécie” (Kelsen,
ob. cit., p. 87).
64
De fato, a lei natural obedece a uma ‘vontade’ independente da humana. Todavia, a cientificidade do
estudo de um objeto deve ser dada segundo critérios de metodologia, racionalidade e sistematicidade,
conforme será visto mais adiante. Por ora, cabe citar a seguinte e esclarecedora passagem: “Esta distinção
(entre o princípio da causalidade e o da imputação – acréscimo nosso) desaparece nos quadros de uma
mundividência metafísico-religiosa. Com efeito, por força dessa mundividência, a ligação de causa e efeito é
produzida pela vontade do divino Criador” (idem, nota anterior).
65
Kelsen, ob. cit., p. 87: “Quando a proposição jurídica é aqui formulada com o sentido de que, sob
determinados pressupostos, deve realizar-se uma determinada conseqüência, isto é, quando a ligação,
produzida por uma norma jurídica, dos fatos estabelecidos como pressposto e conseqüência é expressa na
proposição jurídica pela cópula ‘deve (-ser)’ (Sollen), esta palavra não é empregada no seu sentido usual –
como já notamos acima e deve ser uma vez mais ser bem acentuado” (grifo do original).
29

Etnologia, da Antropologia, dentre outras, que embora sejam sociais se pautam unicamente
pelo princípio da causalidade. Já nas chamadas ciências normativas, a conduta recíproca
dos homens passa a ser enfocada sob a ótica do princípio da imputação. Temos, então, que
os fenômenos estudados por estas duas categorias de ciências (causais e normativas) são
completamente distintos. Com isso, resta claro que o Direito, como ciência (social)
normativa que é, não se confunde com qualquer ciência (social) causal. Podemos concluir,
então, que as chamadas ciências causais – sejam sociais ou naturais – estudam fatos,
fenômenos e acontecimentos que se manifestam no mundo do ser independentemente da
existência humana enquanto que as ciências sociais normativas se ocupam com o mundo
do dever-ser, que é fruto da vontade humana.

Por último, cabe ainda distinguir o objeto do Direito daquele da Ética. De fato, a
Ética também elege as normas positivas66 como seu objeto de estudo. Ocorre, porém, que
este vocábulo possui acepção distinta para ambas as disciplinas científicas. De fato, como
nos diz Kelsen:
“O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral
quando – (...) – se concebe como uma ordem de coação, isto é,
como uma ordem normativa que procura obter uma determinada
conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção
socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social
que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas
sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às
normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela
não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da
força física”67.

66
Kelsen, ob. cit., p. 70: “Neste sentido a Moral é, como o Direito positiva, e só uma Moral positiva tem
interesse para uma Ética científica, tal como apenas o Direito positivo interessa a uma teoria científica do
Direito”.
67
Kelsen, ob. cit., p. 71.
30

Segundo Kelsen, a afirmação de que a Moral se ocuparia das normas intrínsecas e o


Direito das extrínsecas não é acertada68. Assim, a idéia de coação institucionalizada sob a
forma do Estado69 permitiu uma clara separação entre a Moral e o Direito.

Metodologia. Toda a construção científica exige a utilização de um método que


possa ser demonstrado, reconhecido e reproduzido perante a comunidade científica. Isto,
claro, também ocorreu com o que se convencionou chamar de método positivista,
positivismo científico ou simplesmente epistemologia positivista. De fato, desde sua
origem tal método gozou de grande prestígio, seja em razão da magnitude de seu
formulador70 e epígonos, seja por satisfazer aos postulados científicos71 mais elementares.
Esta doutrina se caracteriza pelo seu cientificismo, pela metodologia quantitativa e pela
hostilidade ao idealismo72.

Assim, a epistemologia positivista, enquanto metodologia adequada para explicar o


mundo fenomênico, foi adotada por cientistas de várias nacionalidades, sendo certo,
ademais, que tal método foi decisiva e exitosamente aplicado em diversos campos do
conhecimento científico, a saber: a) na Filosofia, por Immanuel Kant (alemão); b) na
Lógica, por Charles Sanders Peirce (americano); c) na Linguagem, por Ferdinand de
Saussure (suíço) e Rudolf Carnap (argentino); d) na Sociologia, Auguste Conte e Emile
Durkheim (ambos franceses); e) no Direito, por Hans Kelsen (austríaco) e John L. A. Hart
(inglês). Nota-se, especialmente, o caráter universal do citado método.

O positivismo jurídico, como já vimos, reconhece no Homem o criador do Direito,


atribuindo-lhe um caráter convencional73, ou seja, o surgimento do Direito está associado a
um acordo de vontades entre os indivíduos. Cabe salientar, ainda, que seu princípio
metodológico fundamental significa a submissão do julgador às normas jurídicas. Este

68
Ele fê-lo, v. g., na seguinte passagem: “E também a concepção, freqüentemente seguida, de que o Direito
prescreve uma conduta externa e a Moral uma conduta interna não é acertada. As normas das duas ordens
determinam ambas as espécies de conduta” (Kelsen, ob. cit., p. 68.).
69
A este termo, dada sua importância para o positivismo, será dedicado o item e), mais adiante.
70
A metodologia positivista criada por Auguste Comte (1798-1857) foi por este utilizada para ordenar as
ciências experimentais. Posteriormente, sua utilização expandiu-se rumo a outros campos do conhecimento
científico.
71
Segundo Max Weber, dois são os pressupostos básicos de toda e qualquer ciência: a) conceituação; b)
experimentação racional.
72
Conforme Dicionário HOUAISS de Língua Portuguesa, ob. cit., p. 2269.
73
O convencionalismo é a base remota do positivismo, conforme veremos no próximo item.
31

ponto pode ser claramente visualizado quando nos debruçamos sobre as idéias e teorias da
Escola da Exegese, que distingue, por exemplo, a ‘vontade do legislador’ da ‘vontade da
lei’74. De fato, no que se refere à metodologia empregada pelo positivismo, a submissão à
lei se revela da mais alta importância porque este é o parâmetro pelo qual se conhece a
vontade do povo75.

Racionalidade. Esta segunda característica se refere íntima e diretamente ao


cientista, que é sempre uma pessoa. Diversas filosofias76 adotaram a razão como elemento
primordial do conhecimento científico, que é um diferenciador entre homens e animais na
exata medida em que esta faculdade intelectual e lingüística permite uma apreensão
cognitiva da realidade, em complementação à função desempenhada pelos sentidos,
responsáveis pela captação das manifestações fenomênicas do mundo externo.

Desde que Hobbes, no pressuposto de uma insociabilidade inerente à condição


humana, formulou sua concepção do Estado-Leviatã, dotado de um poder coercitivo que se
origina num pacto estabelecido entre os cidadãos, a organização da vida em sociedade
passou a ser concebida em bases racionais77, com o exato propósito de limitar os excessos
humanos e instaurar uma paz social perpétua.

Na filosofia ocidental, sobretudo, após as grandes transformações que culminaram


no Estado moderno78, grau máximo de racionalização institucional e social, o racionalismo
conseguiu se firmar como um dos grandes legados teóricos do séc. XVII, cuja influência
perdura até os dias de hoje.

74
Conforme Troper, ob. cit., pp. 39/41.
75
Os textos constitucionais promulgados depois da Tríade Revolucionária contêm dispositivos no sentido de
que o poder emana do povo, que o exerce diretamente (democracia direta) ou por meio de representantes
(democracia indireta).
76
Assim, temos, o aristotelismo, o hegelianismo, o cartesianismo, o heraclitismo e o estoicismo.
77
Sobre tal faculdade, assim se manifestou o autor inglês: “Disse no segundo capítulo que o homem na
verdade supera todos os outros animais nesta faculdade, que quando ele concebe seja o que for é capaz de
inquirir as conseqüências disso e que efeitos pode obter com isso. Agora acrescento este outro grau da
mesma faculdade, que ele sabe com as palavras reduzir as conseqüências que descobre a regras gerais,
chamadas teoremas ou aforismos, isto é, sabe raciocinar, ou calcular, não apenas com números , mas com
todas as outras coisas que se possam adicionar ou subtrair umas às outras” (Thomas Hobbes, Leviatã,
editora Martin Claret, São Paulo, 2002, p. 41).
78
Sobre a formação do Estado moderno será dedicado todo um item, mais adiante.
32

Para o positivismo jurídico, especificamente, a racionalidade exige a construção de


uma fundamentação (de um decisão) que seja compreensível e inteligível pelos
destinatários imediatos (autor / réu) e mediatos (sociedade civil), como forma de assegurar
um eventual questionamento por parte destes atores sociais. Por outras palavras, o
‘raciocínio’ do julgador deve ser exteriorizado, para que se possa verificar a adequação
entre a decisão judicial e o caso submetido à apreciação do Estado-Juiz.

Sistematicidade79. A sistematicidade é, talvez, a mais importante das noções


científicas do positivismo, pois, diferentemente da metodologia e da racionalidade que
servem de suporte exclusivamente teórico80 para o julgador, ela possui uma dimensão
prática na medida em se presta a solucionar os conflitos jurídico-sociais. Por outro lado, ela
está expressa no ordenamento jurídico, sendo acessível ao público. O sistema, portanto, é
uma idéia central do pensamento jurídico, em geral, e do positivista, em particular, que
merece ter seu conceito bem esclarecido seja porque a compreensão global do fenômeno
jurídico assim o exige, seja porque ele desempenha duas funções cruciais81.

Desde Immanuel Kant, o conceito de sistema não sofreu substanciais


modificações82, mesmo dentre aqueles que negam a presença desta característica na ciência
do Direito83 ou que vêem na sua busca um desvio comprometedor84. O grande filósofo
alemão assim o definiu: “a unidade, sob uma idéia, de conhecimentos variados” ou “um
conjunto de conhecimentos ordenado segundo princípios”.

79
Para este tópico, encontramos fartos subsídios na obra de Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático
e conceito de sistema na ciência do direito, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal,
2002, inclusive com uma panorâmica sobre os diversos tipos de sistema.
80
De fato, a metodologia e a racionalidade não elementos sensíveis, presentes na realidade, mas antes
constituem, respectivamente, uma opção voluntária de comportamento científico e uma qualidade inerente à
espécie humana. Elas não são, por assim dizer, ‘encontráveis’ no objeto a ser estudado, mas no sujeito,
associadas à vocação científica de cada indivíduo.
81
Conforme Canaris, ob. cit., p. 23: “O papel do conceito de sistema é, no entanto, como se volta a frisar, o
de ‘traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica’”.
82
Extensa relação de definições pode ser encontrada em Canaris, ob. cit., às pp. 10/11.
83
Nesse sentido, “Theodor Viehweg apresentou a tese de que a estrutura da Ciência do Direito não poderia
ser captada com o auxílio do pensamento sistemático” (Canaris, ob. cit., p. 243).
84
Como é o caso de Emge ou de Nietzsche, citados por Canaris, ob. cit., p. 5.
33

Conforme assegura Canaris, todas as definições por ele pesquisadas apresentam


duas características85, que, embora entre si relacionadas, devem ser separadas: a)
ordenação; b) unidade. Assim:
“No que respeita, em primeiro lugar, à ordenação pretende-se,
com ela – quando se recorra a uma formulação muito geral, para
evitar qualquer restrição precipitada – exprimir um estado de
coisas intrínseco racionalmente apreensível, isto é, fundado na
realidade. No que toca à unidade, verifica-se que este fator
modifica o que resulta já da ordenação, por não permitir uma
dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes
devendo deixá-las reconduzir-se a uns quantos princípios
fundamentais”86.

Por outro lado, quanto às funções jurídicas desempenhadas pelo sistema, devem ser
lembradas as seguintes passagens:
“É pressuposto da praticabilidade do pensamento sistemático na
Ciência do Direito e do desenvolvimento de um conceito de
sistema especificamente jurídico, que o sistema possa cumprir uma
função significativa na Ciência jurídica. Isso depende de as
características do conceito geral de sistema se poderem ordenar
em correspondência com os fenômenos jurídicos”.87
“As características do conceito geral do sistema são a ordem e a
unidade. Eles encontram a sua correspondência jurídica nas idéias
da adequação valorativa e da unidade interior do Direito; (...)”88.

85
Duas outras características foram constatadas pelo citado autor: a plenitude, referida por Stammler, e a
hierarquia, presente em Wilburg. A primeira não pode ser aceita seja porque a plenitude é um grau máximo
(ideal) de ordenação, ou seja, aquela está contida nesta, seja porque no sistema jurídico objetivo sempre há a
possibilidade de ‘abertura’ (ampliação) seja porque entre ambas existe apenas uma diferença de grau e não de
substância. Por outro lado, para o normativismo, a hierarquia emerge como uma noção fundamentalmente
associada à noção de sistema e será estudada no próximo capitulo, embora não seja defendida por muitos
doutrinadores que se debruçaram sobre o estudo do tema.
86
Canaris, ob. cit., pp. 12/13.
87
Idem, p. 279.
88
Idem nota anterior.
34

Para o positivismo jurídico, a noção de sistema determina que a solução seja


encontrável no ordenamento jurídico, ou seja, a partir de normas existentes, conhecidas e
válidas. A organização do direito como um sistema permite alcançar um relativo grau de
previsibilidade das decisões judiciais, consentâneo com a segurança jurídica e com paz
social. A presença da sistematicidade no ordenamento jurídico permite o reconhecimento
de uma direção cultural determinada89.

89
Segundo leciona Gustav Radbruch, Introdução à Ciência do Direito, editora Martins Fontes, São Paulo,
1999, p. 10: “Juntamente com ciência, arte e religião, a moral, direito e o Estado formam a cultura”. A estes
seis elementos, acrescentaríamos a linguagem.
35

c) A oposição entre direito natural e direito positivo:

A importância do estudo desta controvérsia milenária, surgida na Grécia Antiga


com a oposição do jusnaturalismo ao convencionalismo, foi certeiramente percebida por
Simone Goyard-Fabre: “O fato de que Sócrates, opondo-se aos sofistas, tenha iniciado o
exame do problema mostra que o confronto entre jusnaturalismo e convencionalismo,
longe de ser um dado contingente, é, ao contrário, política e filosoficamente essencial”90.
Além disso, “o debate que sempre ressurge entre jusnaturalismo e juspositivismo só
mostrará seu sentido filosófico profundo sob a condição expressa de não fechar as glosas
argumentativas na prisão de um dualismo simplista. Para apreender e apreciar o alcance
dessa eterna discussão, é preciso não ignorar as formas diversificadas e as hesitações
conceituais do pensamento jusnaturalista e não ocultar as ambigüidades e as vertigens
das teorias positivistas”91.

Por outro lado, parece que, na sociedade grega, o Direito encontra seu caminho
através da lei escrita. Ora, a escrita é um modo de ‘positivar’ uma norma de conduta
humana desejável. Nesse particular, cabe transcrever elucidativa passagem da obra de
Goyard-Fabre, sobre a importância deste invento:
“Simultaneamente, a invenção da escrita foi um trunfo para a
elaboração e estabilização dessas normas comuns. A escrita, com
regras de contornos mais nítidos que lhe fixavam o conteúdo,
suplantou regras tradicionais e consuetudinárias, imprecisas e
lábeis”92.

Mais adiante, conclui que “para os gregos, a lei sem dúvida se afirmou a princípio
como lei escrita”93. Ainda assim, tanto do ponto de vista axiológico94 como do lingüístico95
parece haver uma impossibilidade ‘lógica’, melhor seria dizer natural, do Direito surgir

90
In Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 7.
91
Idem, p. 3.
92
Idem, p. 8.
93
Idem, p. 9.
94
Conforme Simone Goyard-Fabre, ob. cit., p. 15: “A rigor, a anomia é impossível e o respeito das
convenções e decisões destinadas a regular a vida das Cidades vai ao encontro tanto do interesse comum
como do interesse de cada qual”.
95
Idem nota anterior: “Os ‘nomoi’ são portanto desprovidos de qualquer base axiológica ou ontológica”.
36

sem alguma conformação positivista no sentido de dar estabilidade às normas obrigatórias


e exigíveis da população, em geral.

De qualquer forma, nesse contexto surgem as críticas de Sócrates e Platão aos


ensinamentos divulgados por Sófocles e Protágoras e, com elas, essa primeira acepção do
direito natural, classificada de ‘clássica’ ou ‘objetivista’, no sentido de que o Direito pode
ser ‘descoberto’ na natureza das coisas96. Isto é, o direito se apresenta como um conjunto
de princípios morais imutáveis, consagrados ou não, na legislação, pois resultam da
natureza das coisas, conforme a concepção de Santo Tomás de Aquino.

Num segundo momento, temos a ‘desnaturalização do direito natural’97 que ocorre


em duas vertentes: com a ‘antropologização do direito’98 e com a ‘racionalização do
direito’99. De fato, a modernidade que tentava se impor (ou ser imposta) caminha no
sentido de fazer prevalecer a positividade da vontade humana100. Surgia o conceito
‘moderno’ ou ‘subjetivista’ do direito natural segundo o qual a racionalidade humana é o
paradigma do Direito. Assim:
“A teoria jusnaturalista da tradição clássica será subvertida pela
compreensão ‘moderna’ do conceito de direito natural que,
doravante instalado numa filosofia que descobriu o homem como
tema, se construirá em torno de três noções-chave: o ‘humanismo’,
o ‘individualismo’ e o ‘racionalismo’ ”101.

96
Conforme Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 5. A autora esclarece,
ainda, que Michel Villey chega mesmo a estabelecer uma oposição entre esta ‘versão’ clássica do conceito do
direito natural e uma outra, que surgiria, com alguma intensidade, já no século XIII, com a obra de Duns
Scot, e, posteriormente, com Guilherme de Occam.
97
Idem, p. 40. A expressão designa o movimento, iniciado no séc. XVI e consolidado nos sécs. XVII e
XVIII, que simplesmente revela a mudança do paradigma divino para o antropocêntrico, na esteira da
filosofia cartesiana do ‘penso, logo existo’.
98
A antropologização ocorre no momento em que se concebe o Direito como um instrumento necessário à
vida social, seja a partir de um ponto de vista individualista (Hobbes, Spinoza e Rousseau), seja de um outro
genuinamente social (Grotius, Pufendorf e Locke).
99
A racionalização do direito surge com a necessidade de se erguer o Estado, constituído por homens
naturais, que passa a ser o ‘único’ legislador mortal (por oposição ao Deus ‘imortal’) para todos.
100
Conforme Simone Goyard-Fabre, idem, p. 41.
101
Idem, p. 43.
37

O positivismo jurídico aparece no séc. XIX como uma resposta a uma oscilante 102
doutrina que, há muito, havia abandonado suas origens103. Nesse contexto, o pressuposto
fundamental do positivismo é ser o Direito uma criação racional do Homem, ou seja, o
direito é um conjunto ordenado de normas criadas como um instrumento para organizar, e
manter organizada, a Sociedade. Com esta premissa, nota-se uma oposição ao jus-
naturalismo, doutrina que preconiza a existência de direitos inerentes ao gênero humano,
ou seja, o simples fato de ser homem determina a existência de certos direitos fundamentais
que devem ser observados pela legislação, pelo Estado e pelos demais Indivíduos. Dentre
os partidários desta doutrina, podemos citar Giorgio del Vecchio, Rudolf Stammler, São
Tomás de Aquino.

Para Kelsen, no plano filosófico, o positivismo jurídico de jusnaturalismo,


sobretudo, no que se refere ao conteúdo das normas jurídicas. Enquanto que para este as
positivas se espelham em premissas naturais104, para aqueles elas são livremente criadas
pelos homens105.

102
Conforme Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 71: “É preciso ser menos
taxativo, pois o direito natural da ‘escola do direito da natureza e das gentes’ ficou dividido entre sua
vontade de inovação e sua submissão à continuidade da tradição. Essas cisões permanentes da doutrina
muitas vezes introduziram nela, com a equivocidade de sua postulação, uma indecisão metodológica e uma
incerteza conceitual”.
103
Idem, p. 72: “Nesse contexto filosófico, o novo jusnaturalismo perdeu o sentido do realismo que as
antigas teorias do direito natural extraíam do aristotelismo”.
104
Elucidativa é a seguinte passagem: “Uma doutrina conseqüente do Direito natural distingue-se de uma
teoria jurídica positivista pelo fato de aquela procurar o fundamento da validade do Direito positivo, isto é,
de uma ordem coercitiva globalmente eficaz, num Direito natural diferente do Direito positivo e , portanto,
numa norma ou ordem normativa a que o Direito positivo, quanto ao seu conteúdo, pode corresponder mas
também pode não corresponder; por tal forma que, quando não corresponda a esta norma ou ordem
normativa, deve ser considerado como não válido” (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, 243).
105
Por outro lado, o positivismo jurídico se assenta sobre premissas diferentes: “Toda ordem coercitiva
globalmente eficaz pode ser pensada como ordem normativa objetivamente válida. A nenhuma ordem
jurídica positiva pode recusar-se a validade por causa do conteúdo de suas normas. É este um elemento
essencial do positivismo jurídico” (idem, p. 242). Em outro trecho da citada obra, o autor austríaco afirma:
“Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por
força de seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma normas jurídica. A validade desta não pode
ser negada pelo fato de o seu conteúdo contrariar o de uma outra norma que não pertença à ordem jurídica
cuja norma fundamental é o fundamento de validade da norma em questão” (idem, p. 221)..
38

d) A jurisprudência:

Os alemães, com seu inesgotável gosto pela classificação e seu indiscutível talento
para a análise, possuem uma relação ímpar com a jurisprudência, reconhecendo nesta a
abordagem científica por excelência. De fato, para os povos germânicos existe uma relação
de sinonímia entre o termo Jurisprudência e Ciência do Direito106. Desse modo, as escolas
germânicas de pensamento são nomeadas a partir do critério jurisprudencial predominante
para sua formação e desenvolvimento. Assim, dentro desta ótica, podemos ter tantas
espécies de jurisprudência quanto forem os critérios utilizados.

O estudo das diversas vertentes jurisprudenciais se apresenta como relevante na


medida em que os contornos da atividade interpretativa serão delimitados de acordo com o
critério orientador determinante. Nesse contexto, diversas escolas surgiram ao longo do
tempo, umas criticando as outras. Vejamos algumas delas107.

Jurisprudência dos conceitos108. É a doutrina alemã pela qual o jurista tem a


função de desvendar no sistema jurídico a solução dos problemas suscitados pelas
situações fáticas, apontando as normas a elas aplicáveis. Surgida a partir dos ensinamentos
savignyanos e do pandectismo109 do séc. XIX, ela afirma que a solução deve ser ‘revelada’
através da adaptação do conceito ao problema concreto, ou seja, uma interpretação apenas
científica estaria apta a solucionar uma questão jurídica. Não por acaso, a jurisprudência
dos conceitos foi veementemente combatida por Kelsen, como se nota, por exemplo, na
seguinte passagem: “A idéia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente
cognoscitiva, obter direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos
conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito”.110 Antes dele, também Heck se
mostrou cético em relação a tal abordagem metodológica: “Os conceitos não poderiam ser

106
Embora esse sentido também tenha sido registrado no Brasil, a prática jurídica nacional consagrou o uso
do vocábulo no sentido de ser esta um conjunto de decisões judiciais num mesmo sentido.
107
A jurisprudência analítica será estudada no tópico destinado à Teoria Analítica do Direito, no item f),
referente às doutrinas jurídicas, mais adiante.
108
Adotaram esta vertente, autores como Puchta, Brinz, Glück e, também, Windscheid, presidente da
comissão que elaborou o código civil alemão de 1900, expoente máximo desta corrente.
109
Na filosofia alemã, é a escola de pensamento que almejou incorporar o direito romano ao ordenamento
jurídico daquele país, através de uma metodologia sistemática com ênfase num rigoroso processo silogístico
baseado na indução. Nota-se a sua evolução a partir do historicismo savignyano, com a importância atribuída
às fontes e à história do direito romano, compiladas por Justiniano no Corpus Júris.
110
In Teoria Pura do Direito, editora Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 395.
39

causais em relação às soluções que, pretensamente, lhes são imputadas: a causalidade


das saídas jurídicas deveria ser procurada nos interesses em presença”111. Nota-se,
especialmente, o caráter dedutivista e lógico-sistemático subjacente a este tipo de
concepção jurisprudencial, que ainda hoje pode ser encontrado e aplicado através da
subsunção112.

Jurisprudência dos interesses. Surgida como uma crítica ao conceitualismo


anterior, que, fundado num racionalismo, ainda incipiente, esperava encontrar todas as
soluções no sistema legal por meio de um subsunção lógico-dedutivista, foi desenvolvida
na Alemanha, por diversos autores (Ihering, Heck), uma nova doutrina que concebia a
ordem jurídica como um conjunto de leis que produzem efeitos no mundo real bem como
fixava princípios a serem seguidos pelos juízes na elaboração de suas decisões. Para tornar
as normas jurídicas e os interesses da vida mais compreensíveis, aparece a ciência jurídica
(jurisprudência) com o escopo de formular conceitos gerais. A função jurisdicional a ser
desempenhada surge como uma necessidade de ajustar e proteger os interesses envolvidos
ante a incapacidade do legislador em faze-lo. A jurisprudência dos interesses, portanto, não
confina a atividade jurisdicional a uma mera função cognoscitiva, permitindo que ela
construa (crie) normas para situações não previstas pelo emprego da analogia, levando em
conta os interesses da comunidade contidos no dispositivo normativo. Por outro lado,
“procurando prevenir a intromissão de qualquer metajuridicismo, a jurisprudência dos
interesses acabou por procurar os juízos que, sobre os interesses, fossem formulados pelo
próprio legislador”113. Esta concepção foi exaustivamente combatida por Hegler, Oertmann
e Coing ao argumento de que nela não há espaço para o princípio sistêmico da unidade da
ordem jurídica, ou seja, “a força da jurisprudência dos interesses localizou-se na
discussão do problema singular e não na elaboração das ‘grandes concatenações’ ”114.
Nota-se que a ausência de um posicionamento sistemático mais desenvolvido não assegura
a unidade da ordem jurídica em toda a sua plenitude, o que torna o Direito excessivamente
fragmentário, permitindo um alto grau de subjetividade do julgador na apreciação dos
casos a ele apresentados.

111
Apud Canaris, ob. cit., p. XIV.
112
Sobre este tipo de aplicação do direito, consulte-se o item d) do capítulo IV.
113
Conforme Heck, apud Canaris, ob. cit., pp. XIV/XV.
114
Canaris, ob. cit., p. 61.
40

Cabe salientar a proximidade teórica entre a jurisprudência dos interesses e a


tópica115, muito embora tenham matrizes históricas bastante diferentes116. De qualquer
sorte, ambas sobreviveram até os dias presentes, sendo certo que possuem utilidade
residual para a solução de problemas jurídicos concretos. Com relação à jurisprudência dos
interesses, temos a aplicação das valorações adotadas pelo legislador nos casos em que o
Direito, em cláusulas gerais, permite a sua adoção. Também o fato desta escola admitir a
criação do Direito por meio do uso da analogia continua bastante atual.

Jurisprudência sociológica117. É a orientação doutrinária desenvolvida desde o


séc. XIX pelos juristas norte-americanos que, reconhecendo as limitações da common law
para a resolução dos problemas surgidos nos novos tempos, determinava, além de uma
interpretação mais consentânea com o momento presente, a elaboração, pelo juiz, de outras
normas através de uma prévia análise compreensiva da realidade social bem como a
ponderação dos valores predominantes. Ou seja, o conhecimento social da realidade atual
era a base para a formulação de normas gerais e individuais realmente inspiradas num
critério de justiça. Dessa forma, o trabalho do jurista não deveria se limitar a um processo
lógico, calcado na indução, mas deveria conter um conhecimento sociológico da realidade
social. Nota-se um forte caráter instrumental do direito seja no sentido dele permitir uma
ação social mais eficaz118, seja propondo uma teoria prescritiva119, mais consentânea com a
atividade política do que com a jurídica. Embora se possa vislumbrar uma maior
possibilidade de se adequar a solução jurídica aos anseios sociais, a segurança jurídica fica
115
Para maiores considerações sobre a tópica, consulte-se o tópico jurisprudência problemática, mais
adiante.
116
Enquanto a jurisprudência dos interesses surge como uma crítica à jurisprudência dos conceitos, que se
origina do pandectismo, a tópica já era conhecida desde a Grécia Antiga.
117
A expressão possui duas acepções: a) empregada na sociologia jurídica, pela qual designa a ciência
empírica que descreve tipos de comportamento real (Kelsen); b) utilizada no campo da filosofia do direito,
num sentido muito apreciado pelos autores norte-americanos e que será desenvolvido neste tópico.
118
Michel Troper (ob. cit., p. 48), comentando a diferença entre a corrente sociológica positivista e outras,
assim se manifestou: “En revanche, il peut être résolument orienté vers une doctrine – qui n’a rien de
positiviste – de l’action sociale menée par des moyens juridiques. Une de ses versions connues, nommées
‘sociological jurisprudence’, a été inaugurée au XIXª siècle aux USA par O. W. Holmes (avec sa fameuse
définition du droit comme prévision des décisions futures des tribunaux), puis continuée par toute une
pléiade de grands juristes américains dont L. D. Brandeis, B. N. Cardozo, F. Frankfurter et jusqu’à R.
Pound, probablement le plus célèbre. Tous décrivaient les comportements ou les pratiques réelles qui
contribuent à l’élaboration des règles juridiques, en mettant l’accent sur le rôle du droit comme un
instrument de la régulation des relations sociales (le fameux social engineering de Pound)”.
119
Conforme Troper, idem: “C’est surtout dans cette dernière version que le sociologisme américain
s’éloignait le plus du positivisme juridique: en fait, ce n’était plus une description du droit positif
quelconque, mais une théorie prescriptive, assignant au droit la réalisation de stratégies au service de buts
sociaux qui lui étaient extérieurs”.
41

grandemente prejudicada, pois, além do que fora mencionado acerca da jurisprudência dos
interesses, pairaria uma incerteza quanto ao Direito a ser proferido pelos tribunais, na
medida em que a previsibilidade das decisões desapareceria. De fato, ninguém conheceria
– nem mesmo o Tribunal – de antemão quais seriam os critérios aplicáveis porque as
mudanças sociais ocorrem numa velocidade muito superior às transformações legislativas.
De qualquer sorte, sendo o conceito de ‘adequação social’ é eminentemente metajurídico e
não podendo ele ser encontrado a partir do direito objetivamente válido, os limites
estabelecidos pelo sistema jurídico-normativo não mais podem ser invocados para balizar a
atividade jurisdicional, de tal modo que o controle da hermenêutica jurídica escapa à
apreciação da sociedade. Ainda assim, o uso da sociologia é de grande valia para
solucionar aquelas questões que a legislação atribui ao Magistrado a decisão do concreto.
Neste caso, o Juiz pode e deve socorrer-se de ensinamentos sociológicos.

Jurisprudência valorativa. Surge a partir dos postulados da fase tardia da


jurisprudência dos interesses120, com a substituição dos ‘juízos do legislador’ por
ponderações valorativas121. É uma tentativa, mal-sucedida, de renovação de uma
jurisprudência envelhecida, afastando-a de sua origem positivista122. Somente com os
estudos de Bihler, na década de 1980, é que o vocábulo ‘valoração’ adquiriria um
significado jurídico mais preciso123, o que levou, todavia, a um modo de pensamento
jurídico bem diverso do original124. Uma interpretação com base em ensinamento
exclusivamente valorativo, sem apoio num Direito positivo, em muito se aproxima da
arbitrariedade judicial, afastando-a do postulado democrático de submissão ao princípio da
legalidade.

120
Sobre a fase tardia da jurisprudência dos interesses, assim se manifestou o português António Menezes
Cordeiro: “Só bastante mais tarde, num esforço constante, se procedeu a um alargamento paulatino dos
elementos relevantes para o decidir jurídico. Três notas podem, nesse particular, ser salientadas: os apelos
ao racionalismo, à Moral e à Política” (Canaris, ob., cit., p. XXXII).
121
Conforme Larenz, Kronstein, Fikentscher e Westermann, apud Canaris, ob. cit., p. XXXV: “O influxo da
Filosofia dos valores, presente, aliás, no neo-kantismo, permitiu uma transposição: a uma ponderação de
interesses causalmente considerados pelo legislador contrapõe-se um sopesar de valores; a solução final
não poderia, numa clara tradição heckiana, ser o produto de qualificações conceptuais, antes advindo do
peso relativo dos valores subjacentes”.
122
A feliz constatação é de António M. Cordeiro, in Canaris, ob. cit., p. XXXVI: “No fundo, jogou-se uma
reconversão lingüística de grandes dimensões que, à custa da precisão das palavras, intentou compor uma
imagem não positivista de uma jurisprudência envelhecida”.
123
Segundo Bihler, apud Canaris, ob. cit., pp. XXXVI/XXXVII, a valoração é “um processo tendente ao
aparecimento dum sentimento jurídico o qual, por seu turno, traduz um esquema de identificação
espontâneo, num conflito jurídico, com uma das posições em presença”.
124
Conforme Meyer, apud Canaris, ob. cit., p. XXXVII.
42

Por outro lado, o uso dos valores para a solução de controvérsias jurídicas,
inclusive no que se refere à hermenêutica e ao uso de princípios jurídicos, não pode ser
negado, tanto mais que, no mundo moderno, a globalização e a diversidade cultural 125
desembocam constantemente num conflito de valores. De fato, estes estão, direta, indireta,
explícita ou implicitamente, presentes no ordenamento jurídico, sendo certo, todavia, que
no mais das vezes, encontram-se nos textos constitucionais e são, por sua própria natureza,
antagônicos.

Jurisprudência ética. Ressurge com base nos estudos da Antropologia e na esteira


do hegelianismo, com a superação da dicotomia, proposta por Kant, entre a Moral e o
Direito126, uma nova jurisprudência calcada nos aspectos culturais127, organizacionais128 e
sociais129 da Moral, reconhecendo-se a integração do Direito com outros elementos
suprapositivos130.

Ainda que o modelo kantiano seja considerado inexato, a tese de que o Direito se
confunde com a Moral não pode ser aceita porque isto implicaria em que o conteúdo de
toda e qualquer norma jurídica seria necessariamente uma norma moral. Ora, isto contraria
a realidade atual na qual se nota que o legislador é incapaz de acompanhar, registrar e
disciplinar todas as práticas moralmente aceitas. Por outro lado, o uso do aparato estatal
para fazer valer preceitos éticos não condiz com o atual estágio das Sociedades, sendo
certo que este poder estatal chamado coerção é destinado exclusivamente a assegurar o
cumprimento de normas jurídicas. Um último argumento nos parece, todavia, o mais
convincente. Existem normas jurídicas que não possuem um conteúdo moral. Por exemplo,
o dogma, adotado na maioria das constituições modernas, que estabelece a Separação entre

125
Conforme Radbruch, ob. cit., p. 10.
126
Sobre a falência do paradigma kantiano, assim se manifestou Pohlmann, apud Canaris, ob. cit., p.
XXXVIII: “As regras de conduta – jurídicas ou morais – com os competentes de ‘permitido’, ‘proibido’ ou
‘obrigatório’ são ministradas aos sujeitos sem uma particular diferenciação”. Mais adiante António M.
Cordeiro conclui: “A superação de Kant – e de novo os quadros hegelianos têm aqui um papel – permite
reponderar, agora com o apontado reforço antropológico, novas equações para o problema”.
127
Conforme Sauer, in Canaris, ob. cit., p. XXXVIII.
128
Segundo Fechner, idem.
129
Habermas, idem, p. XXXIX.
130
Nesse sentido, Podlech, Schreiber, Tammelo, Aarnio, idem. Por outro lado merece destaque a posição de
Philipps, in Canaris, ob. cit., p. XXXIX: “ À necessidade de elementos suprapositivos soma-se o realismo no
estabelecer das soluções: estas, fatalmente influenciadas pelos cenários culturais que presidem ao seu
encontrar, apresentam sempre níveis éticos que não devem ser ignorados”.
43

os Poderes de uma democracia. A ausência ou a presença de uma tal cláusula no


ordenamento jurídico não encerra, em si, um conteúdo imoral ou moral, respectivamente.

De qualquer sorte, é inegável que a Ética mantém com o Direito sempre uma
estreita ligação131, mas o não se pode admitir é a redução deste àquela. Até onde pode ser
admitida a Ética pelo Direito? Novamente, a norma exsurge como o parâmetro destinado a
demarcar o uso da Moral na solução de conflitos jurídicos.

Nesse sentido, a interpretação ética, fundada em juízos pessoais de conduta, quando


não autorizada pelo ordenamento jurídico, contraria a necessária objetividade e
impessoalidade, exigidas pelo Estado Constitucional Contemporâneo132. Todavia, seu uso
pontual é admissível nos limites fixados pelo ordenamento jurídico-positivo, sendo certo
que seu uso indiscriminado conduziria a uma elevada dose de arbitrariedade do julgador.

Jurisprudência normativa. Designa a proposta de Hans Kelsen e será estudada


mais pormenorizadamente no capítulo III. Por ora, como noção geral cabe conceituá-la
como a que, descrevendo seu objeto particular como qualquer outra ciência empírica,
possui as normas como objeto de estudo, e não tipos de comportamento real133. Também é
conhecida como dogmática jurídica.

Jurisprudência problemática134. Também conhecida como tópica (do grego,


topos). É a ciência do Direito que, se insurgindo contra o caráter sistemático do
pensamento jurídico, propõe uma abordagem metodológica referenciada no problema135.
Ocorre, porém, que também o pensamento científico sistemático é problemático136, ou seja,
gravita em torno da solução de problemas. De qualquer forma, coube a Theodor Viehweg,

131
Afinal de contas, ambas são espécies do gênero ciências sociais normativas.
132
Sobre este conceito, remetemos o leitor para o próximo item.
133
Kelsen, ob. cit., pp. 95/100.
134
São partidários da tópica, dentre outros: Theodor Viehweg, Coing, Würtenberger, Bäumlin, Arndt, P.
Schneider, Ehmke, Wieacker; E. Schneider, Horn, todos citados por Canaris, ob. cit., p.244, cuja obra serviu
de guia para elaboração da apreciação crítica deste tópico, especialmente o capítulo 7, pp.243/277.
135
Sobre o conceito de problema, concordam tanto Viehweg quanto Canaris. Para aquele, o problema é cada
questão que, aparentemente, permita mais de uma resposta, enquanto que para este, o problema surge como
uma questão cuja resposta não é, de antemão, clara (Canaris, ob. cit., p. 246).
136
Nesse sentido Flume, citado Canaris, ob. cit., p. 246.
44

em 1953, retomar a noção grega dos topoi137, presente já em Aristóteles, num novo
contexto, proposto por Hartmann. Desse autor, Viehweg adotou a distinção entre os modos
de pensar ‘aporético’ e ‘sistemático’. Todavia, a associação entre o pensamento aporético e
a tópica não resultou de modo algum em uma definição satisfatória 138. Ademais, como
asseverado por Kriele, citado por Canaris, “o pensamento aporético não conduz assim, de
modo algum, necessariamente à tópica mas sim, apenas, à ‘abertura’ do sistema”139.
Apesar de todas as dificuldades acima elencadas, o conceito da tópica foi fixado por
Viehweg como a técnica do pensamento problemático140.

Todavia, a recusa em aceitar a sistematicidade afasta, como já vimos141, a própria


concepção científica do Direito. Seja porque a tópica, em sua versão clássica, sempre
esteve associada à retórica142, seja porque ela é sempre uma ‘proposta de decisão’, não
havendo qualquer critério que indique qual dos topoi deve prevalecer na solução do caso
concreto143, o seu aproveitamento somente será possível de forma residual 144
. Assim, uma
interpretação que se pautasse em ‘pontos de vista’ estaria mais próxima de uma ‘loteria’,
sem que houvesse um critério seguro que permitisse um controle da decisão tomada no
caso concreto.

137
De difícil conceituação, encontramos uma síntese deveras bem formulada por Daniel Sarmento, A
Ponderação de Interesses na Constituição Federal, editora Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2000, p. 129: “Os
topoi configuram lugares comunsna argumentação discursiva, que não vinculam o juiz, mas apenas
apresentam-lhe alternativas possíveis para a solução de determinado problema. São, em suma, diretrizes
retóricas que reveladas pela experiência, que objetivam servir de fio condutor para a descoberta de uma
resposta razoável para o caso concreto”.
138
Conforme Canaris, ob. cit., pp. 248/249.
139
Idem nota anterior.
140
Em momento posterior (1968), o próprio Viehweg teria admitido que sua crítica se limitaria aos sistemas
dedutivos e que não haveria nenhuma oposição fundamental entre o pensamento tópico e o sistemático,
ocasião em que cunhou a expressão ‘sistema tópico’, no que recebeu severa crítica de Canaris, ob. cit.,
pp.243/244.
141
Remetemos o leitor para o tópico ‘ciência’, onde afastamos o direito da categoria ‘técnica’ e fizemos
especial menção à tópica
142
Sobre este contato, assim se manifestou Canaris, ob. cit., pp. 253/254: “(...); até agora, ficou
propositadamente de fora uma característica essencial: ‘a relação da tópica com a retórica’. Num prisma
histórico, tal relação fica-lhe de antemão imanente e joga, de Aristóteles, através a Cícero e até Vico um
papel considerável”.
143
Nesse sentido Canaris, ob. cit. p. 258: “ Só a partir de agora se levanta a questão decisiva de porque
devem ser competentes os ‘pontos de vista’ casualmente captados e qual de estes tópicos, com freqüência
contraditórios entre si, recebe a primazia perante os restantes”. Mais, adiante, à p. 259, concluir que “um
tópico é portanto, apenas e sempre uma ‘proposta’ de decisão e, assim, ele precisa de um critério
complementar ‘para proporcionar a sua adstringibilidade e para possibilitar a escolha entre os diversos
pontos de vista, consoante as circunstâncias, para a solução de um determinado problema”.
144
Ver Canaris, p. 277.
45

Por outro lado, a afirmação de que a legitimação das premissas tópicas ocorre
apenas com o ‘aplauso da multidão’145, segundo um sensus communis146 ou ‘através da
aceitação do parceiro na conversa’147, “pode, na verdade, ajustar-se a determinadas
formas de discussão, mas é, dentro da Ciência do Direito, puramente inaceitável: as
premissas são fundamentalmente determinadas para os juristas através do Direito
objectivo, em especial através da lei e não são susceptíveis de uma ‘legitimação’ por via
do parceiro na conversa (qual?!), nem disso carecem”148.

Conclui-se, assim, com Canaris que “torna-se, com isso, claro que a tópica
desconhece, no fundamental, a essência da Ciência do Direito. Pois não se determina qual
seja o Direito vigente ou qual o ponto de vista vinculativo, em regra, através do ‘common
sense’ ou da ‘opinião de todos ou da maioria dos sábios’, mas antes através do Direito
objectivo”149.

145
Canaris, ob. cit., p. 254.
146
Vico, citado por Canaris, idem, p. 253.
147
Viehweg, citado por Canaris, idem, p. 256.
148
Canaris, idem.
149
Idem, p. 260.
46

e) O Estado Constitucional Contemporâneo:

As concepções acerca deste intrigante fenômeno ganharam novo impulso com


Kelsen, a começar pela negação da tradicional dicotomia entre Estado e Direito 150. De fato,
tinha-se a idéia de era possível existir Estado151 sem ordem jurídica152, ou como se ele
tivesse uma existência independente da sua ordem jurídica153, ou, ainda, como se ele,
autonomamente, pudesse ser sujeito de direitos e deveres154.

Para além do conceito155, dos elementos156 e das funções157 do Estado, a identidade


formal e material entre Direito e Estado se revela como a pedra angular da criação,

150
Tal dicotomia não passou desapercebida ao autor austríaco: “Assim como a teoria do Direito privado
pressupõe originariamente que a personalidade jurídica do indivíduo precede lógica e cronologicamente o
Direito objetivo, isto é, a ordem jurídica, assim também a teoria do Estado pressupõe que o Estado,
enquanto unidade coletiva que aparece como sujeito de uma vontade e de uma atuação, é independente do
Direito e até preexistente ao mesmo” (Kelsen, ob. cit., p. 315).
151
A polissemia do termo não deve impedir que se parta da definição proposta por Paulo Bonavides, Ciência
Política, editora Malheiros, no sentido de que o Estado é a ‘nação politicamente organizada’.
152
Esta afirmação não impede o contrário seja possível. De fato, “como organização política, o Estado é uma
ordem jurídica. Mas nem toda ordem jurídica é um Estado. Nem a ordem jurídica pré-estadual da sociedade
primitiva, nem a ordem jurídica internacional supra-estadual (ou interestadual) representam um Estado”.
Mais adiante, sintetiza: “O Estado é uma ordem jurídica relativamente centralizada” (Kelsen, ob. cit., p.
317). Por outro lado, Simone Goyard-Fabre, in Os Fundamentos da Ordem Jurídica, Martins Fontes, São
Paulo, 2002, p. 7, externa pensamento, pelo qual nutrimos a mais alta simpatia, no sentido da necessária
vinculação e correlação entre Direito e Estado: “Sabemos hoje que, embora as primeiras sociedades
obedecessem a regras que lhe regiam o comportamento, essas regras, de natureza religiosa ou familiar, não
eram leis nem máximas jurídicas. A lei só apareceu, na verdade, com a formação das Cidades (isto é, com o
nascimento da política): por volta do séc. VIII a. C. – provável época de Homero –, com o regime monarco-
feudal das velhas sociedades tendendo a desaparecer, formaram-se regras comuns que determinavam as
funções de cada um na vida da Polis: (...)”.
153
Sobre esta impossibilidade, Kelsen foi enfático: “A asserção de que o Estado não é apenas uma entidade
jurídica, mas uma entidade sociológica, uma realidade social que existe independentemente de sua ordem
jurídica, só pode ser comprovada demonstrando-se que os indivíduos que pertencem ao mesmo Estado
formam uma unidade e que essa unidade não é constituída pela ordem jurídica, mas por um elemento que
nada tem a ver com o Direito. Contudo, tal elemento, que constitui o ‘uno entre os muitos’ não pode ser
encontrado” (Kelsen, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 264).
154
Nesse particular, o pensamento kelseniano exsurge cristalino: “Apenas seres humanos, ou – mais
corretamente – apenas a conduta humana pode ser objeto de regulamentação jurídica; (...)” (Kelsen, idem
nota anterior, p. 285).
155
A definição de estado proposta por Kelsen é a seguinte: “Dessa forma, o Estado, cujos elementos
essenciais são a população, o território e o poder, define-se como uma ordem jurídica relativamente
centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de vigência, soberana ou imediata relativamente
ao Direito internacional e que é, globalmente ou de modo geral, eficaz” (Teoria Pura do Direito, ob. cit., p.
321).
156
Tradicionalmente, os elementos são o povo, o território e o poder (soberania). Kelsen acrescenta a
dimensão temporal.
157
“As funções atribuídas ao Estado dividem-se, segundo a tradicional teoria do Estado, em três Categorias:
legiferação, administração (incluindo a governação) e jurisdição. Todas três são – como se mostrou –
funções jurídicas, quer sejam funções jurídicas no sentido estrito de funções de criação e aplicação do
Direito, quer sejam funções jurídicas num sentido mais amplo que também inclui a função de observância
do Direito” (Kelsen, ob. cit., p. 325).
47

aplicação, observância e autoregulamentação158 da atividade jurídico-normativa,


especialmente no que se refere à unidade da ordem jurídica e ao fundamento de validade
do Direito (objetivo). O Estado aparece, assim, como um filtro necessário ao exercício
deste peculiar poder social chamado soberania, ou seja, ele é o grau máximo de
institucionalização e racionalização do poder.

A definição do que seja Estado sempre intrigou os pensadores e foi sucessivamente


estudada sob diversos prismas. Ultrapassa os singelos limites deste estudo, analisá-la à luz
das diversas teorias e, ao mesmo tempo, respeitar os diversos pontos de vista de tão ilustres
personagens159. Cabe-nos tão somente registrar a controvérsia, que em nada atrapalhará a
compreensão deste trabalho.

Do ponto de vista da Ciência Política, ou da Teoria Geral do Estado,160 o importante


é que o conceito de estado contenha os elementos constitutivos próprios desta categoria.
Nesse ponto, a definição formulada por Jellinek revela-se ser, ao mesmo tempo, sintética e
completa: “é a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de
um poder originário de mando”161.

A partir da conceituação acima, evidenciam-se duas ordens de elementos. A


primeira, formal, pode ser notada nos dizeres poder originário de mando, que remete a
poder político, ou soberania. A segunda, material, consubstanciada tanto na expressão
corporação de um povo, numa clara alusão ao elemento humano, quanto na frase
assentada num determinado território, que revela o elemento espacial. Por outras palavras,
o Estado seria a Nação política e juridicamente organizada162, definição já tantas vezes
divulgada. Nessa linha de raciocínio, podemos considerar que um Estado é dotado de três

158
Conforme Kelsen, ob. cit., pp. 309, 316/353.
159
Assim, as três acepções mais importantes foram: a) a filosófica, com Hegel; b) a jurídica, com Kant,
Kelsen, Del Vecchio e Burdeau; c) a sociológica, com Oppenheimer, Duguit, Marx e Weber.
160
Pela sinonímia dos termos, se manifesta Bonavides: “No Brasil, vingam irmãmente os termos Ciência
Política e Teoria Geral do Estado”.Mais adiante, conclui: “A simpatia na escolha, para os que raciocinam
dessa forma, recai naturalmente sobre a Teoria Geral do Estado, cujas raízes, a despeito da origem, se
aprofundaram com mais força que as da Ciência Política. O nome desta, soprado ultimamente com
intensidade, através da leitura e influência de autores americanos e ingleses, ganha todavia larguíssimo
terreno” (BONAVIDES, Paulo, ob. cit., pp. 44/45).
161
Citado por BONAVIDES, Paulo, ob. cit., p. 67.
162
BONAVIDES, Paulo, ob. cit., p. 86. Modernamente, tem-se entendido que o conceito de soberania se liga
à noção de povo, de modo que o Estado passa a contar com apenas dois elementos: a) soberania (do povo); b)
território.
48

elementos163: a) soberania164; b) território165; c) povo166. Não cabe, nesta oportunidade, um


estudo mais detido sobre tais elementos, mas apenas o registro de que eles estão presentes
em todo e qualquer tipo de organização estatal moderna.

Ora, a inseparabilidade167 entre Direito e Estado, proposta pelo autor austríaco,


conduz, no entanto, à seguinte indagação: qual é a forma de Estado presente nas sociedades
democráticas ocidentais?

De fato, a exponencial complexidade da sociedade168 e o rápido crescimento


demográfico da população determinaram a criação de um novo modelo estatal, diferente
de todos os outros que o antecederam. Todavia, esta transformação não invalidou os
postulados do positivismo, especialmente no que se refere à relação umbilical entre o
Direito e a organização do Estado por meio de normas jurídicas.

A forma, o conteúdo e as atribuições desta pessoa moral169 sofreram inúmeras


transformações ao longo dos tempos, sendo certo que muitos dos conceitos aqui abordados

163
Embora não seja propriamente um elemento, deve-se ressaltar a dimensão temporal, inerente a toda e
qualquer organização estatal, conforme os ensinamentos kelsenianos.
164
A soberania aqui referida é a interna, vista como um conceito sócio-jurídico em que o poder exercido pelo
Estado se reveste de superioridade, supremacia e incontrastabilidade em relação a todos os demais poderes
sociais. Opõe-se à Soberania externa (ou internacional), aquela que, após os estudos de Jellinek, constatou-se
ser um elemento acidental para a caracterização de um Estado. (conforme, BONAVIDES, Paulo, ob. cit., pg.
122.)
165
A conceituação do termo território não varia significativamente entre os tratadistas, sendo satisfatório
aquele que o define como a base geográfica do poder, conforme BONAVIDES, Paulo, ob. cit., pg. 87.
166
O elemento povo não deve ser confundido com o termo população, categoria esta expressa um dado
quantitativo-demográfico de contagem de todos os habitantes, situados num determinado território, sob o
poder de um dado Estado. Por outro lado, o vocábulo povo expressa a situação jurídica daquela parcela da
população ligada ao Estado pelo vínculo da cidadania – conceito que será explicitado adiante.
167
Sobre a unicidade de ambos, transcrevemos elucidativa passagem: “Como não temos nenhum motivo para
supor que existam duas ordens normativas diferentes, a ordem do Estado e a sua ordem jurídica, devemos
admitir que a comunidade a que chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’ ordem jurídica” (Kelsen, Teoria Geral do
Direito é do Estado, ob. cit., p. 263).
168
O termo sociedade não é de fácil conceituação. Tivemos conceitos mecanicistas (com Toennies, Seidler) e
organicistas (com Del Vecchio, Platão, Aristóteles). No presente caso, sem entrarmos na polêmica, podemos
adotar o conceito de Talcott Parsons segundo o qual se deve entender por sociedade “todo o complexo de
relações do homem com seus semelhantes”. Ademais, “o conceito de Sociedade tomou sucessivamente três
colorações no curso de sua caminhada histórica. Foi primeiro jurídico (privatista e publicístico) com
Rousseau, conforme vimos; depois econômico, com Ferguson, Smith, Saint-Simon e Marx, e enfim,
sociológico, desde Comte, Spencer e Toennies”. (apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, 10ª edição,
1995, pp. 54/55 e 60/61).
169
Esta locução é a preferida dos autores franceses que trataram das questões relativas ao Estado. O
insuspeito Hegel já a utilizava, in verbis: “O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva”. (HEGEL,
G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito, Martins Fontes, 2000, item 257, pg. 216).
49

nem sequer eram cogitados na Antiguidade, ou sofreram profundas transformações. O


modelo estatal paradigmático para o estudo do positivismo será denominado como Estado
Constitucional Contemporâneo, ou seja, é aquela entidade organizacional surgida a partir
do século XVIII, que incorporou, dentre outras, as seguintes características: a) foi
teorizado com apoio nas doutrinas de Locke, Montesquieu e Sieyès; b) teve influência da
tríade revolucionária – Inglesa (1688), Americana (1787) e Francesa (1789); c) considera a
Constituição como o documento criador do Estado; d) sofreu a influência dos ideais
iluministas e antropocentristas, das teorias contratualistas (Rousseau, Hobbes), do
racionalismo científico, da laicidade do Estado e da teoria da representação do exercício do
poder político (democracia indireta). Estas qualidades aparecem, portanto, como
indissociáveis do Estado, impregnando o direito (positivo) produzido.
50

f) Correntes ou escolas jurídicas de pensamento positivista170:

Voluntarismo jurídico171. Esta corrente surgiu na Antiguidade, com a oposição


entre o jusnaturalismo e o convencionalismo, polêmica esta que já foi analisada
anteriormente. Claro está que somente será abordada a vertente positivista172, que adota o
Direito como expressão da vontade humana. Isto significa que o voluntarismo não induz
necessariamente à adoção do positivismo. Mesmo nesse caso, cabe ainda um
esclarecimento. De fato, é de se registrar que existem abordagens jurídico-filosóficas no
sentido de conceber o Direito positivo como obra do legislador humano e admitir que este
mesmo Direito somente serve para traduzir e validar um conjunto de regras
preexistentes173. Assim, é possível ser, a um só tempo, positivista e voluntarista, como John
Austin, Carré de Malberg e Alf Ross, voluntarista e utilitarista, como Jeremy Bentham, e
outros serão positivistas muito embora não aceitem o voluntarismo, como MacCormick174.

Para esta doutrina, a vontade possui um papel fundamental na formação do Direito


vigente. Ela goza de primazia em relação a todos os outros elementos associados ao
Direito. Claro que os doutrinadores não são uniformes quanto as características desta
escola de pensamento, mas seus partidários se agregam em torno de quatro idéias
principais175: a) o direito é definido por sua origem e não pelo seu conteúdo, o que significa
dizer, que nenhuma regra é dotada de uma juridicidade imanente e que somente a vontade
está apta a criar regras de direito; b) o conceito vontade é imbuído de um caráter
axiomático, sendo por este motivo o ponto de partida da análise do que seja ou não direito,
ela é o próprio fundamento deste sistema e não se justifica por nenhum outro elemento,
sendo, assim, auto fundadora do sistema jurídico; c) como conseqüência, a racionalidade
possui um papel secundário neste tipo de sistema, sendo certo que alguns autores mais

170
Para a elaboração da abordagem resumida deste item, aproveitamos as sínteses formuladas por Michel
Troper, juntamente com Christophe Grzegorczyk e Françoise Michaut na obra intitulada Le positivisme
juridique, LGDJ, e, ainda, no livro de Simone Goyard-Fabre, Os fundamentos da ordem jurídica, editora
Martins Fontes, São Paulo, 2002, especialmente partes I e II.
171
São voluntaristas assumidos: John Austin, Carré de Malberg, Alf Ross, Jeremy Bentham, MacCormick,
René Capitant, G. Jellinek.
172
De fato, o voluntarismo não é em si mesmo positivista, sendo certo que algumas de suas divisões
pertencem ao jusnaturalismo. Não cabe nesta oportunidade analisá-las.
173
Este tipo de pensamento, que em si mesmo não é contraditório, embora se afaste da doutrina positivista,
foi acolhido por Duns Scot, Grotius e Hobbes, conforme Troper, ob. cit., p. 35.
174
Troper, ob. cit., p. 35.
175
Idem, pp. 35/36.
51

radicais negam qualquer caráter jurídico à racionalidade176; d) uma ligação entre o direito e
o fenômeno de um poder, seja ele político ou social.

O ápice teórico desta doutrina se deu na época do Renascimento, com a


consolidação dos trabalhos iniciados por Duns Scot e Guilherme de Occam, que culminou
com o triunfo do individualismo político e jurídico. Posteriormente, o surgimento do
Estado moderno não fez mais do que substituir a vontade do príncipe pela vontade do
legislador ou da vontade da lei, como quer Rousseau.

Além disso faz sucesso entre os voluntaristas, a distinção entre Is e Ought,


teorizada por David Hume, retomada por Kant (sein e sollen) e consagrada no meio
jurídico por Kelsen.

Por outro lado, segundo o critério da simples vontade individual, quanto à fonte
direta da geração da norma, os voluntaristas se subdividem em objetivistas e subjetivistas.
No primeiro caso, o elemento gerador das regras de direito depende da intervenção de um
elemento exterior, diferente da vontade em si177. No extremo oposto, concepção
inteiramente diversa permeia os subjetivistas, para os quais o Direito é a vontade coletiva
(soma das vontades individuais) de obedecer às normas postas. Isto significa que a vontade
individual não é uma simples decisão de validade do Direito objetivamente posto, antes é
um fato psico-sociológico criador da norma jurídica que, então, se torna válida.

Escola da Exegese178. Doutrina desenvolvida inicialmente na França após o Código


napoleônico de 1804, e posteriormente expandida para todos os países que se espelharam
na codificação civil francesa. Durante praticamente todo o século XIX manteve seu
prestígio pela sucessiva adesão de diversos e renomados autores179. Tal corrente

176
Sobre o tema do irracionalismo, ver os trabalhos de O. Weinberger, apud Troper, ob. cit., p. 36, nota 7 e
também a crítica de MacCormick, para quem até um certo ponto os imperativos decorrentes da vontade se
justificam, sendo certo que em algum momento a vontade deve ela mesma ser justificada sob pena de um
regressus ad infinitum; idem, nota 6.
177
Assim, para Kelsen a norma fundamental tem esse papel enquanto que para Carré de Malberg, é a figura
do Estado que o desempenha.
178
O termo exegese é emprestado à tradição de interpretar os livros sagrados no sentido de ser a arte pela qual
se revela o profundo conteúdo do texto. Na idade média, desenvolveu-se um método puramente literal dos
textos bíblicos. Posteriormente, os glosadores do direito romano da Escola de Bolonha (séc. XI a XIV) já se
orientavam por esta limitada metodologia. (Troper, ob. cit., p. 39).
179
São exegéticos: Demolombe, Aubry, Rau, Blondeau, Baudry-Lacantinière, Laurent.
52

metodológica foi frutífera na Alemanha, com influência no pandectismo e na


jurisprudência dos conceitos, e na Inglaterra, com especial destaque para a formação da
jurisprudência analítica.

Cabe notar que esta escola se revelou ser essencialmente metodológica, o que
permite sua combinação com correntes positivistas e jusnaturalistas. O desenvolvimento da
exegese surge a partir da vontade legislada180, ou seja, com o texto legal que foi
estabelecido. Com o envelhecimento do Código, ou melhor, com o avanço da
complexidade das relações sociais – numa palavra, com o progresso –, esta escola entrou
em declínio seja porque uma parte dos autores negava a existência de lacunas normativas
com o argumento de que haveria uma intenção reguladora negativa, seja porque uma outra
parte dos autores, desejosos de salvar a qualquer preço o citado monumento legislativo,
adotando técnicas de interpretação pretensamente científicas, desvirtuou completamente o
sentido original das disposições legislativas. Seu declínio se iniciou com a crítica de
Saleilles e, sobretudo, com a de François Gény, até desaparecer por completo no séc. XX.
Não sem antes, porém, deixar como legado a noção de que o direito deve ser visto como
um sistema e difundir o uso do método lógico-linguístico de interpretação do texto legal,
largamente conhecido e utilizado. Também deve ser ressaltado o avanço do conceito de
eficácia e de política do direito que esta escola nos agraciou.

Teoria Analítica do Direito. No campo jurídico, os antecedentes históricos desta


escola de pensamento devem ser buscados nos trabalhos desenvolvidos por John Austin
(séc. XIX) enquanto que suas origens metodológicas podem ser sentidas em David Hume,
pioneiro no uso do método analítico à filosofia moral. Depois dele, os utilitaristas ingleses
(John Stuart Mill, Jeremy Bentham) se esforçaram para transportar tal método para o
campo jurídico, o que revelou, no mais das vezes, uma indevida utilização dos conceitos
jurídicos. Mas somente com os escritos de Austin as bases da ‘analytical jurisprudence’
seriam definitivamente constituídas. A originalidade desta corrente jurídica consiste em
fazer um exame minucioso da significação dos principais termos e conceitos utilizados
pelos juristas, ou seja, os estudos recaem sobre o uso da linguagem e os problemas que lhe
são correlatos: imprecisão e polissemia.
180
Mens legis, que se opõe à mens legislatoris (vontade do legislador). De fato, a intenção do legislador é o
fundamento do método teleológico de interpretação enquanto que o texto legal fixado serve de subsídio para
o método gramatical ou literal de interpretação.
53

A semelhança entre esta escola inglesa, a exegética francesa e a pandectista alemã,


embora evidente, não impediu que elas mantivessem suas peculiaridades em razão de um
ambiente jurídico nacional próprio. Enquanto a escola francesa centralizava sua análise a
partir do texto legal codificado, as outras escolas se desenvolviam em ambientes em que
uma tal codificação era desconhecida. Assim, na Alemanha a fragmentação do País,
composto de numerosos organismos políticos independentes, com ordens jurídicas
distintas, onde elementos de direito romano se imbricavam com inúmeras particularidades
locais, havia uma incessante busca por uma unidade nacional, expressa na formação de um
estado prussiano. Ora, o desenvolvimento de uma ciência jurídica deveria se assentar sob o
imperativo da sistematicidade, que permitiria o estabelecimento de uma unidade político-
jurídica. Por outro lado, este imperativo circunstancial atuou como condicionante para a
aplicação do método analítico em sua pureza conceitual.

Diferentemente, na Inglaterra, a aspiração sitemática do Direito nunca teve muito


fôlego numa comunidade jurídica em que a distinção entre Direito e Ciência jurídica não é
muito clara. Ademais, a existência da common law não permite uma reconstrução lógico-
sistemática dos precedentes. Assim, a especificidade da escola inglesa, por oposição
àquelas do continente europeu, foi ter dirigido sua análise para a linguagem jurídica.

Com a influência dos trabalhos de Hart, nos anos 1950, o método analítico
conheceu um grande desenvolvimento. De fato, o teórico inglês reformulou as principais e
tormentosas questões jurídicas, tal qual havia sido feito pelos seus colegas filósofos a
propósito das questões éticas. Desse modo, a teoria analítica anglo-saxão, modificando o
próprio objeto de estudo da ciência do direito, adicionou uma nova abordagem, até então
inusitada: a lingüística. Com o desenvolvimento dos estudos entabulados, neste campo, por
Carnap, Saussure e Wittgenstein, foi possível não só eleger a linguagem de primeiro grau,
que descreve a realidade, como a unidade básica de análise jurídica, como também a
metalinguagem (ou linguagem de segundo grau), onde as expressões se referem ao
discurso jurídico que descreve a realidade.

Com as contribuições inglesas, a teoria analítica do direito se tornou uma disciplina


complexa que passou a ser empregada em três acepções bem distintas, podendo significar:
54

ora a) uma teoria geral do direito (stricto sensu), oposta à teoria da justiça e à sociologia
jurídica; ora b) uma teoria positivista, oposta a toda e qualquer concepção jusnaturalista;
ora c) um método da ciência jurídica destinado a estudar e a analisar os conceitos
pressupostos pelo discurso jurídico. Como teoria geral, ela se situa no plano filosófico sem
que haja um caráter normativo de suas proposições e conclusões. Como método, pode ser
utilizada também pelas doutrinas jusnaturalistas. Como positivismo analítico, esta corrente
biparte-se181, ainda, em: (i) extremada, segundo a qual somente as questões da linguagem
são objeto desta teoria; (ii) moderada, para a qual a linguagem não é o objeto exclusivo
desta teoria, mas sua análise é necessária para a resolução dos problemas discutidos.

Esta complexa aproximação teórica, inovadora em muitos aspectos, não impediu


sua expansão rumo à Polônia182, à Itália183 e Escandinávia184, mas afastou a teoria analítica
de seus propósitos iniciais. De fato, a análise da linguagem do direito no seu contexto real,
inclusive quanto às características de seus interlocutores, impede uma aproximação
puramente lógico-semântica, que seria mais compatível com a ótica positivista.

Corrente sociológica185. Os três antecedentes históricos186 desta peculiar escola de


pensamento conduziram a uma definição do direito como sendo um fenômeno social,
relacionado e ligado a outros mecanismos de regulação da vida coletiva, numa perspectiva
científica que nega uma especificidade da norma jurídica enquanto instrumento de
regulação social. Assim, a originalidade da metodologia sociológica repousa na

181
Esta oposição é remanescente da discussão anglo-saxônica, no âmbito da filosofia lingüística, entre o
reconstrutivismo lógico, de Bertrand Russell, e a chamada Filosofia da Linguagem Ordinária, baseada nos
ensinamentos de Wittgenstein (1º período).
182
Neste País, sua exitosa implantação ocorreu desde logo ante à tradição da escola lógica na filosofia e no
direito.
183
A notável influência do jurista Norberto Bobbio, adepto de primeira hora desta corrente, consolidou uma
verdadeira escola, concentrada em Gênova.
184
Na Escandinávia, é de se destacar a adesão de Alf Ross e de Von Wright às teses analíticas, que se
firmaram na escola de Uppsala (Suécia).
185
Assumiram uma preferência por este tipo de aproximação metodológica alguns poucos autores, como E.
Ehrlich e Rudolf von Ihering, na Alemanha, e Léon Duguit, na França.
186
Assim, desde a Grécia Antiga, com a concepção aristotélica do homem como um ser político (zoon
politikon), nunca houve pretensão de afastar o Direito do campo dos fenômenos sociais, o que não significa
que o direito não possua uma especificidade que o diferencie destes. Por outro lado, a escola histórica alemã
fundada por F. K. von Savigny no início do séc. XIX, insurgindo-se contra o racionalismo da escola
(moderna) do direito natural e também contra o voluntarismo legalista do séc. XVIII, sobretudo na França
com a codificação napoleônica, também contribui decididamente para a formação do pensamento sociológico
do direito. Por último, o surgimento de uma nova ciência – a sociologia – foi possível com a relativização do
papel desenvolvido pela história, sem abandonar a importância das práticas coletivas na formação das regras
sociais.
55

importância atribuída ao aspecto social, que é decisiva para a compreensão dos fatos
jurídicos187.

Todavia, cabe não confundir a sociologia jurídica e esta vertente jurídico-


sociológica. Enquanto aquela estuda os efeitos sociais causados pelos fenômenos jurídicos,
constituindo-se em uma ciência que faz parte da sociologia geral, esta parece se apresentar
como uma aberração teórica188.

O traço distintivo desta corrente de estudo do direito em relação às demais é a sua


orientação antiestatal, ou seja, é a sua insistência em recusar que o direito é um simples
fruto da ação estatal. Não há direito legal autônomo, mas como parte de um sistema
jurídico social, produzido pelos mais diversos grupos sociais, no que se pode notar a
presença do pensamento historicista.

No sentido estritamente jurídico, conforme já visto, somente a jurisprudência dos


interesses, defendida por Ihering, alcançou merecido destaque por criticar as idéias
defendidas por Savigny. Por outro lado, a corrente sociológica pode ser orientada para a
obtenção de uma doutrina (que não possui nada de positivista) de ação social a ser
efetivada por meio de decisões jurídicas189.

Marxismo jurídico. Esta escola se origina a partir do pensamento desenvolvido


por Karl Marx segundo o qual o direito seria uma das superestruturas destinadas a encobrir
a cruel realidade econômica (a ‘base’) e a exploração humana presente no antagonismo
187
Comentando a dialética entre o indivíduo e a sociedade com relação à participação de cada qual na gênese
e no funcionamento das ordens normativas, Troper (ob. cit., p. 45) se expressou, in verbis: “sont-ils plutôt les
fruits de décisions volontaires et conscientes, ou au contraire, issus d’une interaction constante d’une
multitude de facteurs sociaux dont il est difficile, voire impossible, d’individualiser les auters concrets?
L’approche sociologique opte naturellement pour la séconde hypothèse, en y ajoutant souvent une optique
déterministe dont l’intensité peut varier, mais qui insistesur l’importance dês facteurs extérieurs à la purê
volonté dans la structuration de l’action sociale, et refuse d’envisager celle-ci comme totalement
indéterminée, relevant du libre-arbitre d’individus autonomes”.
188
Cabe neste particular mencionar a advertência feita por Troper, ob. cit., p. 47: “Toutefois, il est important
de ne pas confondre ici deux perspectives fort différentes, bien qu’utilisant parfois des méthodes similaires:
d’un côté le courant sociologisant dans la théorie du droit, et – de l’autre – la sociologique juridique. Si celle-
ci est une véritable science, faisant partie de la sociologie générale, et traitant des origines, des mécanismes
de fonctionnement ainsi que des effets sociaux du droit, celui-là se presente plutôt comme um
réductionnisme, une distorsion et une exagération de la perspective théorique. Il tend, en effet, à ramener la
totalité du juridique à son côté sociologique, et nie ainsi la spécificité du droit par rapport à d’autres
phénomènes humains”.
189
Esta concepção é a base da jurisprudência sociológica de origem americana.
56

entre duas classes sociais distintas. O direito ficaria, desse modo, reduzido a um
instrumento legitimador a serviço de uma elite dominante, que monopolizaria o uso da
força para impor sua ideologia e seus interesses econômicos.

As relações entre o marxismo e o direito positivo são complexas190, mas podem ser
notadas pelo menos três variantes. A primeira, essencialmente crítica, foi concebida pelo
próprio Marx que, demonstrando a farsa do direito positivo (estatal) e rejeitando toda e
qualquer proposição jusnaturalista, por incompatível com as teses materialistas
fundamentais, reconhece o ‘verdadeiro’ direito na realidade econômico-social. Nesse
sentido, nota-se mutatis mutandis a convergência de idéias entre esta escola e a anterior,
desde que se substituam as relações sociais desta pelas relações econômicas daquela para
que o direito adquira uma dimensão puramente econômica.

A segunda versão pode ser encontrada em alguns juristas soviéticos que,


escrevendo no pós-revolução bolchevique, tentaram preencher um relativo vazio jurídico
da teoria marxista com a elaboração de uma doutrina ‘realista’ centrada no conceito de
relação social objetiva que se situa na esfera da troca de mercadorias.

Por último, a partir dos anos 30, na Rússia, e após a 2ª guerra mundial, nos países
do leste europeu, uma terceira versão, calcada numa ‘tendência’ normativista (formulada
por Kelsen) e adotando o conceito central de poder estatal, formulado por Jellinek, tornou-
se dominante, sobretudo, por ter a simpatia de Stalin191.

Realismo jurídico. Sob esta denominação duas escolas de pensamento bem


diferentes192 podem ser agrupadas. O termo ‘realismo’, reivindicado por ambas as
doutrinas, corresponde à noção empírica do Direito, ou seja, a de que o Direito é uma
realidade sensível em si. De fato, ambas tendem a defini-lo como um fato social específico

190
Tal complexidade se deve a dois fatores: a) a grande evolução desta teoria após o séc. XIX em função dos
eventos históricos que ela tentava explicar; b) suas diferentes formulações, que variavam conforme o
contexto sócio-econômico e o papel a ser desempenhado.
191
O arguto comentário é de Troper, ob. cit., p. 51, na nota 22: “Il convient d’ajouter que le rejet de la
théorie révolutionnaire au profit de la nouvelle version a été le fruit des luttes politiques entre les différentes
tendances communistes, et le triomphe de Vyshinski fut en réalité celui de Staline, avec sa conception de
l’État omnipuissant, bien que rhétoriquement qualifié de ‘prolétarien’ ”.
192
Essas diferenças conceituais remotam à dicotomia existente entre a common law e a roman law.
57

e rejeitam toda e qualquer ‘especulação’ filosófica do Direito, que é reputada ‘metafísica’ e


sem sentido (sem utilidade).

O movimento realista americano, iniciado nos anos 1920 do século passado,


demonstra a influência da sociological jurisprudence de O.W. Holmes. No plano
filosófico, merecem ser lembradas as contribuições de Charles Sanders Peirce, fundador do
pragmatismo, para quem ‘a coisa é o que ela faz’, ou seja, o Direito deve ser definido pelos
seus resultados e não a partir de premissas especulativas e formalistas. Mesmo com ilustres
partidários, muito se questionou sobre a dimensão positivista193 desta doutrina que se
pautava pela análise das decisões judiciais. De fato, este conjunto de decisões judiciais não
reflete necessariamente o direito objetivamente vigente já que possui uma dimensão
histórica construída a partir de casos regidos por leis distintas, sem que entre uns e outros
haja uma uniformidade legislativa objetiva.

Em geral, a denominação ‘realista’ significa recusar a teoria dominante (‘oficial’)


da common law segundo a qual o juiz não cria o direito, mas encontrando este na cultura
jurídica194 de um povo, ele o aplica com base em regras pré-existentes. Deve-se, portanto,
reconhecer o papel central desempenhado pelos juízes no funcionamento de tal sistema.
Por outro lado, a especial atenção dada aos fatos, desde muito cedo, afastou o realismo da
corrente sociológica (proposta por Pound) cujas teses já foram devidamente analisada.

De modo totalmente diverso, o realismo escandinavo, calcado nos ensinamentos


filosóficos da Escola de Uppsala, é orientado pelo método estritamente analítico que
combate qualquer tipo de metafísica, entendida esta como a proposição que não possa ser
afirmada com certeza, ou que se relaciona com qualidades não-empíricas das coisas195.
193
Tal crítica foi registrada por Troper, ob. cit., p. 54, na seguinte passagem: “L’on peut dire même que le
réalisme américain n’a pas érigé une véritable théorie juridique, mais seulment une certaine théorie de la
décision judiciaire, qui a durablement influencé la science du droit de ce pays, après s’être débarrassée de
son radicalisme initial. Mais ce fait ne facilite pas le classement de ce mouvement sous l’angle des
dimensions positivistes. D’un côté, il est vrai que la description fidèle de la pratique réelle des tribunaux
n’est pas la même chose que la description du droit positif en vigueur – ce qui constitue le noyau dur de la
position positiviste. Mais de l’autre, les réalistes soutiennent que c’est le juge qui crée le droit, lequel est
donc une création humaine et volontaire. Notre réponse à la question du caractère positiviste de ce courant
serait, en conséquence, ‘globalement affirmative’ ”.
194
Sobre este instigante tema, ainda que em escala reduzida, consulte-se a tese do Mestrando Clóvis Silva de
Souza, A ‘Cultura Legal’ dos Usuários de Justiça Gratuita, já defendida para a obtenção do Título de Mestre
neste Curso de Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais / UFF.
195
É interessante notar a semelhança deste tipo de abordagem científica com a teoria analítica do direito, seja
em virtude da adoção do método analítico proposto por Austin, seja em razão da afinidade com as idéias
58

Se a natureza positivista desta corrente não pode ser posta em dúvida 196, sua forte
inclinação científica não lhe permite aceitar de modo pacífico e ingênuo a equiparação
feita entre ‘direito positivo’ e ‘direito válido’, alardeada pela maioria dos ramos
positivistas. Os partidários da vertente escandinava, com razão, argumentam que o
conceito de validade não é empiricamente verificável e, portanto, não pode servir de
critério caracterizador do que seja o ‘direito’. A solução proposta é no sentido de que a
validade do direito decorre de sua efetiva aplicação, ou seja, de sua eficácia. Outras noções
tradicionais da dogmática jurídica serão também questionadas, como a noção de ‘dever’197
e de ‘direito subjetivo’198. Por outro lado, a análise escandinava visa insistentemente
demonstrar que o direito positivo é um sistema de constrição de fato, formulado com a
ajuda de comandos normativos que exercem uma pressão puramente psicológica nos
destinatários199.

Teorias Institucionalistas do Direito200. Sob esta rubrica, estão reunidas as


diversas tendências jurídicas que, se recusando a ver no fenômeno jurídico uma simples
soma de vontades particulares, livres e autônomas, lhe reconhecem um caráter
institucional, autônomo, portanto, em relação aos sujeitos participantes deste complexo
pacto social. De fato, o contratualismo jurídico (cujo grau máximo de exacerbação pode
ser percebido no ‘contrato social’ de Rousseau, por exemplo) não mais apresentava
respostas satisfatórias às crescentes perplexidades jurídicas, impostas pelo crescente
progresso das sociedades contemporâneas.

dominantes do Circulo de Viena e seu positivismo lógico. Embora existam muitos pontos em comum entre a
corrente escandinava e o pensamento austríaco dos anos 1920, aquela deste se afasta em razão dos trabalhos
de Hägerström, tido como o pioneiro desta nova abordagem metodológica, desde a década de 1910, cuja
maior preocupação era construir uma axiologia radicalmente não-cognitivista e, para alguns, até mesmo
emotivista. Por outro lado, nota-se uma maior ligação dos realistas escandinavos com a filosofia analítica
inglesa de Cambridge.
196
Pelas razões já explicadas em relação à teoria analítica do direito inglesa.
197
Criticado por Olivecrona, que salientou sua dimensão puramente psicológica.
198
Conceito que não foi poupado nem por Hägerström, que o taxou de pseudoconceito por não corresponder
à nenhuma realidade, nem por Lundstedt que o considerava como um fenômeno empírico de sanção em caso
de não-execução voluntária do dever jurídico imposto a outrem.
199
Sobre este particular, Troper, ob. cit., p. 55, citando Alf Ross, que na juventude foi influenciado pelo
normativismo de Kelsen, assim se manifestou: “Selon Ross, l’approche scientifique du droit est ‘réaliste’ en
ce sens que l’existence d’une règle juridique est fonction du degré de probabilité avec lequel on peut prédire
qu’elle sera effectivement appliquée”.
200
Serão analisados os caracteres mais gerais da concepção institucionalista proposta por Maurice Hauriou e
seguida, mais recentemente, pelos neo-institucionalistas, como MacCormick e Weinberger nos anos 1980.
Outros institucionalistas: Santi Romano, T. Delos, G. Renard.
59

Além disso, a influência do elemento temporal nos mais variados contratos e a


permanência de seus efeitos jurídicos que decorrem de atos instantâneos também foi
determinante para que, no início do séc. XX, o francês Maurice Hauriou lançasse as bases
de um novo movimento alternativo à concepção puramente individualista do Direito.
Influenciado pelo pensamento durkheimiano, o publicista francês se recusava a aceitar uma
definição estritamente nominalista de grupo social, tido como uma simples soma de
indivíduos201.

O postulado holístico, segundo o qual não há relação de identidades entre o todo e a


soma de suas partes induz o publicista francês a elaborar uma concepção realista202 dos
grupos sociais e o conduz em direção a uma teoria corporativa do Estado, de influência
marcadamente neo-tomista.

A mais marcante característica deste tipo de abordagem, no entanto, seria a


retomada da utilização de conceitos ontológicos que, de há muito, haviam sido
abandonados pelo pensamento jurídico, num novo contexto institucional203, mesmo que a
este conceito falte, por vezes, clareza ou uniformidade204.

Se do ponto de vista filosófico, o autor não esconde suas preferências


jusnaturalistas, no campo jurídico ele se auto-proclamou um ‘positivista cristão’, expressão
no mínimo ambígua, para não dizer contraditória. De qualquer forma, nota-se neste novo
modelo teórico um tripé fundamental: ontologia, antivoluntarismo e objetivismo205.

201
Interessante notar a semelhança entre a dicotomia nominalismo/institucionalismo e a classificação
durkheimiana da sociedade em mecânica ou orgânica, respectivamente.
202
Tal concepção propugna uma autonomia existencial dos grupos em relação aos sujeitos dele participantes.
203
Nesse sentido, a elucidativa conclusão de Troper, ob. cit., p. 60/61 que, citando Hauriou, assim asseverou:
“C’est cette approche que Hauriou privilégiat lorqu’il traitait l’instituition d’une ‘véritable réalité sociale
séparable des individus’ ”.
204
A falta de precisão contratual não passou desapercebida a Troper, ob. cit., p. 61. Pedimos para transcreve-
la, inclusive com conceituações do próprio Hauriou: “Toutefois, la définition de l’ ‘institution’ n´était pás
toujours uniforme ni claire. Au sens plus large, elle recouvrait ‘ toute organisation créée par la coutume ou
la loi positive, fût-elle un simple moyen de la technique juridique ’, mais Hauriou en précisait d’autres
acceptions et faisait souvent appel à des notions assez confuses, comme ‘ l’idée de l’entreprise à réaliser ’,
ou celle de ‘ la manifestation de communion parmi les membres du groupe ’ ”.
205
Nesse sentido, Troper, ob. cit., p. 61: “A nos yeux, c’est la visée ontologique, anti-volontariste, et
objectiviste qui caractérise lê mieux la théorie institutionnelle du droit”.
60

Pós-positivismo. A mais recente das tendências positivistas, surgida faz poucos


anos, tenta superar o conflito existente entre as três grandes correntes teóricas: a)
jusnaturalismo; b) positivismo; c) realismo.206 As recíprocas críticas indicam a necessidade
de se repensar os próprios fundamentos da ciência jurídica bem como os ‘mecanismos de
raciocínio’ utilizados pelos juristas na sua prática cotidiana. Esta empreitada é o ponto de
partida dos pós-positivistas207, que diagnosticaram a supressão das fronteiras entre as
grandes correntes do pensamento jurídico bem como o crescimento de interesse por uma
teoria do raciocínio jurídico calcada em bases filosóficas autênticas208.

As principais características desta vertente são: a) o estudo da linguagem 209, como


sendo um modo de apreensão da realidade, substituindo a filosofia da representação pela
da significação210; b) a análise se situa no contexto da justificação, com a submissão dos
enunciados da linguagem do direito ou da ciência jurídica ao crivo da fundamentação, sob
a ótica de uma teoria da racionalidade discursiva211 que muito deve aos trabalhos
desenvolvidos Perelman212; c) a importância do estudo hermenêutico para a compreensão
dos ‘pressupostos profundos’ ou ‘pré-teóricos’ presentes nas categorias conceituais do
discurso jurídico213; d) a simultânea construção de uma teoria do direito e uma metateoria
206
A tripartição teórica é mencionada por Troper (ob. cit., p. 63). Não nos parece, todavia, que o realismo
seja autônomo em relação ao positivismo e / ou ao jusnaturalismo. De fato, o realismo, como a maioria das
outras correntes positivistas abordadas, pode ter uma dimensão positivista ou jusnaturalista. Como foi por
nós explicado anteriormente, o positivismo se refere ao método empregado para a análise do fenômeno
jurídico, ao qual devem ser acrescidos a epistemologia e o objeto de estudo, estes sim determinantes para o
enquadramento de uma corrente jurídica no positivismo, no jusnaturalismo ou em outro ‘gênero’.
207
Tal denominação tem por base as referências epistemológicas colhidas em Wittgenstein (2º período),
Popper, Kuhn e Lakatos, autores que formam a ‘2ª geração’ de estudiosos ligados ao positivismo filosófico
do Círculo de Viena. Foi pioneiramente empregada na obra de Villa, segundo Troper, ob. cit., p. 64.
208
Estamos nos referindo aos pioneiros trabalhos de Aarnio, Alexy e Peczenik.
209
A adoção da linguagem como referência remete de imediato aos trabalhos desenvolvidos por Wittgenstein
sobre as ‘formas de vida’ (dados irredutíveis da experiência humana) e os ‘jogos de linguagem’ (limites
lingüísticos em que se pode desenvolver a criação-apreensão dos fatos).
210
Neste particular, os autores que mais se destacaram foram Popper, com sua ‘metodologia de falsificação’,
e Kuhn, com sua ‘teoria dos paradigmas’, cujas análises culminam na noção de ‘comunidade científica dos
juristas’, cuja linguagem específica é a origem da construção dos fatos jurídicos onde, numa concepção
wittgensteiniana, os fatos não possuem existência independente das teorias lingüísticas formuladas.
211
Para Alexy, que retoma o conceito clássico ‘razão prática’, o tema central e paradigmático do pensamento
jurídico deve se pautar pela análise da problemática do julgamento judiciário, à luz de sua motivação e de sua
justificação racional. Para tanto, desenvolve uma teoria ‘procedimental’ da argumentação racional do Direito,
num esforço de continuar os trabalhos teóricos de Wiehweg, Habermans, Apel e da ‘escola de Erlangen’.
212
Perelman, Chaïm, Lógica Jurídica, editora Martins Fontes, São Paulo, 2000, pp. 183/243. Citamos a
elucidativa conclusão do autor: “A lógica jurídica, especialmente a judiciária, que procuramos discenir com
análise do raciocínio dos juristas, (...), apresenta-se, em conclusão, não como uma lógica formal, mas como
uma argumentação que depende do modo como os legisladores e os juízes concebem sua missão e da idéia
que têm do direito e de seu funcionamento na sociedade”.
213
Neste item, merece destaque os escritos de Peczenik que, estudando as transformações ‘não-equivalentes’
das proposições jurídicas, detectou ‘saltos’ lógicos que escapam à sua forma clássica.
61

(uma teoria da ciência do direito), em que ambas possuem metodologia e hermenêutica


próprias. Por fim, a ligação com o positivismo tende a ser tênue, especialmente no caso de
Alexy e sua filosofia da razão prática.
62

III – O NORMATIVISMO

a) A teoria pura do direito:

A teoria proposta por Kelsen pretende purificar a ciência do Direito, submetendo-a


a uma dupla depuração. A primeira procura afastá-la de quaisquer influências sociológicas,
liberando-a da análise de aspectos fáticos (que porventura estivessem ligados ao Direito),
remetendo o estudo desses elementos a outras ciências sociais (sociologia, economia,
psicologia, por exemplo) vez que a explicação causal das instituições, institutos e normas
jurídicas não pertencem ao mundo do Direito. A segunda depuração retira do âmbito da
apreciação da ciência jurídica a ideologia e os aspectos valorativos, ou seja, toda e
qualquer investigação moral e política, relegando o estudo dos mesmos à Ética, à Política,
à Religião e à Filosofia da Justiça. Feitas as purificações anti-sociológicas e
antiideológicas, Kelsen elege a norma como objeto específico da ciência jurídica, o que
torna-se seu maior mérito na Teoria Geral do Direito. Como desdobramento deste
raciocínio, temos que o único objeto passível de ser estudado pela ciência jurídica é o
Direito posto, aquele expresso pelo Estado através de normas jurídicas.

Como o próprio Kelsen deixou registrado, “quando a si própria se designa como


‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas
dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto,
tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que
ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse
é o seu princípio metodológico fundamental”214. Note-se, especialmente, a referência ao
‘rigor’ da linguagem científica, a que já nos referimos precedentemente.

Assim, a teoria pura do direito se apóia em três vertentes: a) os valores não têm, por
si sós, existência objetiva; b) a causa de um objeto é diferente dele; c) a existência de um
Poder supremo, soberano, absoluto, incontrastável. Com esta apresentação, emerge de
modo cristalino a necessária objetividade do Direito. Com relação ao Estado, expoente
máximo, desse poder social já falamos no capítulo anterior.

214
Kelsen, ob. cit., p. 1.
63

Por outro lado, convém, desde logo, não confundirmos o objeto de estudo da
ciência jurídica, que é a norma, com o objetivo do Direito, que é a paz social (= ausência
de conflitos entre os Indivíduos dentro de uma dada comunidade social).215 De fato, resta
evidente que o Direito, como toda criação ou invenção humana, possui uma finalidade,
uma missão a ser desempenhada para com a Sociedade. O fato dele, Direito, cumpri-la a
contento ou não, e também em que medida a cumpre, é algo que deve ser buscado por uma
ciência diversa, a saber, a Sociologia.

De qualquer sorte, temos que a Teoria Pura do Direito consiste numa purificação,
que diferencia as normas de suas causas e despe a ciência normativa de qualquer
valoração. Assim, o grande mérito de Kelsen foi ter delimitado o objeto da ciência do
Direito, conferindo-lhe sua autonomia. Isto não significa que o Direito não contenha
valores nem que faça valorações. Ao contrário, a idéia de norma exprime, em sua
ontologia, uma objetivação de um valor que foi considerado relevante pelo Estado que,
diante de sua importância, lhe confere um novo status, uma nova condição, uma nova
função social: a de disciplinar o comportamento das pessoas.

Os valores que se opõem ao Direito são os subjetivos, ou seja, são aqueles que, se
aproximando muito da ideologia, e, por isso mesmo, perigosos, devem ser evitados já que
não podem ser cientificamente demonstrados, o que causa bastante insegurança na
comunidade. Com isso, também não é possível substituir o ‘valor’ originariamente adotado
pelo legislador por um outro que pareça mais adequado. Um exemplo esclarecerá o que se
disse. No Brasil, a pena para o crime de roubo varia de 4 a 10 anos de prisão; os crimes
financeiros têm penas que variam de 1 a 5 anos. Qual a razão de uma tamanha disparidade
entre os dois grupos de crimes, sendo certo que os últimos afetam um número muito maior
de pessoas enquanto que as vítimas do roubo são, em geral, um número reduzido? A
explicação é que a violência, sempre presente no crime de roubo, justificou uma pena mais
severa. Por mais absurdo que possa parecer, não há nada que se possa fazer para condenar
uma pessoa por roubo aquém do mínimo legal, nem condenar uma outra, por crime
financeiro, além do máximo legal. Nesse sentido, o filósofo austríaco escreveu:

215
Rudolf von Ihering, A Luta pelo Direito, 14ª edição, 1994, Forense, Rio de Janeiro, pg. 1.
64

“Uma norma objetivamente válida, que fixa uma conduta como


devida, constitui um valor positivo ou negativo. A conduta que
corresponde à norma tem um valor positivo, a conduta que
contraria a norma tem um valor negativo. A norma considerada
como objetivamente válida funciona como medida de valor
relativamente à conduta real”. Mais adiante registra que “a
conduta real a que se refere o juízo de valor e que constitui o
objeto da valoração, que tem um valor positivo ou negativo, é um
fato da ordem do ser, existente no tempo e no espaço, um elemento
ou parte da realidade. Apenas um fato da ordem do ser pode,
quando comparado com uma norma, ser julgado valioso ou
desvalioso, ter um valor positivo ou negativo. É a realidade que
avalia”216.

Por outro lado, como já dissemos anteriormente, a tese que Kelsen quer provar é a
de que o Direito é um sistema de normas jurídicas, ou seja, ele agrupa aquelas normas
dotadas de coercibilidade. Desse modo, a racionalidade permeia todo e qualquer
ordenamento jurídico estatal.

Nos dois itens seguintes, vamos estudar, de um modo condensado, como o


ordenamento jurídico lato sensu é estruturado e, também, como tal ordenamento se
mantém coeso, unido, harmônico e único, não obstante a infinidade de normas existentes
dentro do mesmo. Este fenômeno de organização dos sistemas normativos sempre intrigou
os juristas, mas Kelsen foi provavelmente o primeiro que chegou a uma explicação
convincente e difundida universalmente acerca da concepção unitária do ordenamento
jurídico.

216
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 19.
65

b) O fundamento de validade de uma ordem jurídica:

Nesse item, devemos apresentar ao leitor um dos dois pilares do sistema jurídico217
proposto pelo normativismo. De fato, a validade (ou validez) é um conceito imprescindível
à compreensão, do ponto de vista jurídico, do fenômeno ordem. Por validade de uma dada
norma devemos entender a específica existência de uma norma jurídica no plano do dever-
ser. A validade de uma norma, portanto, depende de sua compatibilidade com as outras que
lhe são hierarquicamente superiores e que servem de fundamento para sua edição. Dizer
que uma norma é válida, pois, significa dizer que ela se incorporou ao ordenamento
jurídico de um determinado Estado, depois de ter cumprido todos os pressupostos,
requisitos e condições para a sua regular edição.

Todavia, este processo de busca regressiva conduz a uma norma jurídica inaugural.
Além dessa norma, estamos fora do Direito e este só é válido se adotarmos uma norma
pressuposta – a chamada norma fundamental ou Grundnorm -, que não pertence ao mundo
jurídico mas lhe confere sua validade objetiva. Reproduzindo o pensamento kelseniano,
temos que:
“A indagação do fundamento de validade de uma norma não pode,
tal como a investigação da causa de um determinado efeito,
perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se
pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais
elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta
por uma autoridade, cuja autoridade teria de se fundar numa
norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser
derivada de uma norma mais elevada, o fundamento de sua
validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma,
pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como
norma fundamental (Grundnorm)”218.

217
O sistema jurídico, ou, simplesmente, a ordem jurídica, pode ser estudado sob dois prismas distintos: a)
estático; b) dinâmico. O plano estático, ou estática jurídica, é uma relação de hierarquia que se estabelece
entre o conteúdo material de duas normas de categorias distintas. Por outro lado, a dinâmica jurídica é uma
relação hierárquica em que uma norma jurídica é produzida nos limites da indeterminação deixada pela
norma hierarquicamente anterior.
218
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 217.
66

Mais adiante, conclui com lapidar clareza que:


“Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e
mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma
ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da
validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem
normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma
norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se
em que o seu último fundamento de validade é a norma
fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a
unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o
fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa
ordem normativa”219.

Nesse contexto, “a função desta norma fundamental é: fundamentar a validade


objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é, das normas, postas através de atos de
vontade humanos, de uma ordem coercitiva globalmente eficaz, quer dizer: interpretar o
sentido subjetivo destes atos como seu sentido objetivo”220. Tal fundamento é um
pressuposto lógico-transcendental cujo conteúdo é: cumpra-se a ordem jurídica criada pela
Constituição (elaborada a partir da Soberania). Assim, o surgimento de um ordenamento
jurídico deriva, portanto, de um Poder Soberano – inicial, ilimitado e incondicionado, na
formulação do Abade Sièyes em sua clássica obra Qu’est-ce que le Tiers Etat?. Dentro
dessa perspectiva, o Autor da “ordem jurídica” seria o Povo e seu fundamento de validade
(metajurídico) seria a Soberania.

A conseqüência desta constatação é que “dado que – (...) – a norma fundamental,


como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito positivo, é apenas uma
condição lógico-transcendental desta interpretação normativa, ela não exerce qualquer
função ético-política mas tão-só uma função teorético-gnoseológica”221. Assim, cabe, em
conclusão e ante tudo o que foi exposto, citar a seguinte e bastante elucidativa passagem:

219
Idem.
220
Idem, p. 225/226.
221
Idem, p. 243.
67

“Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado


conteúdo, quer dizer, porque seu conteúdo pode ser deduzido pela
vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental
pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada –
em última análise, por uma forma fixada por uma norma
fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence
ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade
com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo
pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal,
por seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma
jurídica”222.

222
Idem, p. 221.
68

c) A estrutura escalonada da ordem jurídica:

Desta forma, podemos concluir que a ordem jurídica inaugura-se com uma
Constituição, documento que rege a organização político-jurídica de um País. Por outro
lado, o fundamento de validade da Constituição não pertence ao mundo jurídico, pois este
só é criado com um Pacto Constitucional inicial.

Depois do estudo deste instituto chamado norma, podemos estabelecer entre ela e o
direito uma importante relação. Inicialmente, porém, devemos dizer que o termo direito (=
ordenamento jurídico stricto sensu) é aqui empregado com o seu sentido técnico, isto é,
como conjunto ordenado de normas. Assim, o direito é o aspecto macro de uma ordem
normativa enquanto que a norma é o aspecto micro do ordenamento jurídico. Por outras
palavras, podemos dizer que o direito é o resultado da reunião de normas. Em realidade,
direito e norma são aspectos de um mesmo fenômeno, que pode ser estudado do ponto de
vista macro (direito) ou micro (norma). Poderíamos mesmo, juntamente com Weber,
afirmar que a norma constitui a unidade básica para a compreensão do direito, mas a
recíproca também é verdadeira se nos valermos dos ensinamentos kantianos acerca do
estudo do particular a partir do geral.

Devemos esclarecer, pois, desde logo, o que significa o vocábulo ordem dentro da
concepção kelseniana ante a magnitude deste conceito dentro da Teoria Pura do Direito. A
implementação de um ordenamento jurídico pressupõe uma variedade de normas que
mantenham entre si relações de dependência e subordinação, dentro de um padrão de
racionalidade, conhecimento e previsibilidade pelos seus destinatários. Estas relações são
explicadas através dos vínculos da hierarquia, ou seja, normas de formas diferentes se
subordinam umas às outras de acordo com um modelo previamente estabelecido.

A este modelo, comum a qualquer ordenamento jurídico, Kelsen chamou de


“construção escalonada da ordem jurídica”223, também conhecida como a Pirâmide de
Kelsen. Dentro desta concepção, as diversas espécies normativas retiram seu fundamento
de validade das normas que lhes são hierarquicamente superiores. Exemplificando,

223
Kelsen, ob. cit., p. 309.
69

podemos dizer que a dinâmica lógica da Teoria de Kelsen se manifesta do seguinte modo:
se a lei não contraria a Constituição e o decreto não contraria a lei; então, o decreto não
contraria a Constituição. E assim sucessivamente, com todas as categorias normativas.

No vértice da pirâmide temos a Constituição como o ato inaugural de toda a ordem


jurídica, condicionando todas as demais normas; em seguida, as leis e assim
sucessivamente de modo que nenhuma delas contrarie as precedentes.

Ordem é, na concepção kelseniana, um conjunto racional de normas que


determinam, restringem e disciplinam o comportamento dos indivíduos numa sociedade.
Assim, temos que o elemento essencial da teoria kelseniana se apóia primordialmente no
conceito de norma. Este é o elemento básico de análise de um processo social mais amplo
e complexo, que é a regulamentação jurídica da vida em sociedade e que constitui seu
Direito.

Num sistema jurídico, que apresenta primordialmente um caráter dinâmico224, “as


normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma
fundamental não são – (...) – um complexo de normas válidas colocadas umas ao lado das
outras, mas uma construção escalonada de normas supra-infra-ordenadas”225.

224
O sistema dinâmico se opõe ao estático. Sobre eles, escreveu Kelsen: “Esta norma, pressuposta como
norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela
deduzidas através de uma operação lógica. Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo
de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de
normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um
princípio estático” (Teoria Pura do Direito, 2000, p. 218). Por outro lado, “o tipo dinâmico é caracterizado
pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor
de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra
que determina como devem ser criadas as normas gerais e normas individuais do ordenamento fundado
sobre esta norma fundamental” (idem, p. 219). Para concluir que “o sistema de normas que se apresenta
como uma ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico” (idem, p. 221).
225
Idem, p. 224.
70

d) Desdobramentos e implicações da doutrina kelseniana:

Neste item, dissertaremos sobre algumas das inúmeras contribuições, ainda atuais,
que decorrem do pensamento kelseniano. Com isso, não estamos dizendo que Kelsen as
criou, mas tão somente que, com ele, estes desdobramentos tomaram um novo impulso,
notadamente em razão de suporte científico mais robusto. O elenco é exemplificativo:

1 - A afirmação de que o Direito é uma ciência ganhou em Kelsen um novo aliado


que, adotando uma marcante metodologia cuja clareza epistemológica é o principal ponto,
foi um combativo defensor.

2 - A delimitação do objeto de estudo da ciência jurídica – a norma – serviu de


inspiração para novos estudos acerca das relações do Direito com outros ramos científicos,
permitiu uma visualização mais efetiva dos comandos jurídicos e facilitou sobremaneira a
compreensão de diversos institutos relacionados ao fenômeno normativo.

3 - A fixação do conteúdo normativo como um enunciado geral e abstrato dotado


de coercibilidade que exprime um dever-ser possibilitou um novo enfoque sobre as funções
deste elemento indispensável à organização social moderna.

4 - A afirmação da autonomia da ciência jurídica, ao afastar o objeto de estudo


desta em relação àquele das demais ciências, permitiu o surgimento de um modo de pensar
o Direito muito mais técnico e preciso, atento às peculiaridades deste fenômeno.

5 - A idéia de completude do ordenamento jurídico, assim entendida, nas palavras


de Tércio Sampaio Ferraz, como a “propriedade formal de um sistema de proposições,
para que este seja completo, no sentido de proporcionar uma explicação para todos os
fenômenos que recaem sobre o seu âmbito”, pode servir de fundamentação satisfatória para
explicar o universal dogma da inafastabilidade de tutela jurisdicional226.
6 - A noção de unidade lógica do ordenamento jurídico, a partir da Constituição,
prova que é possível o uso de critérios científicos (hierárquico, temporal e de
226
A este tema retornaremos no capítulo seguinte, quando tratarmos da atividade interpretativa dos juízes.
Por ora, cabe dizer que, no Brasil, ele está previsto no art. 5º, inc. XXXV da Constituição Federal de 1988 e
impõe ao Magistrado o dever de solucionar o caso posto sub judice.
71

especialidade) para a resolução das aparentes antinomias existentes num dado sistema
jurídico. Também a diversidade de soluções judiciais, dentro desta ordem única, foi bem
explicada, ponto este que será desenvolvido mais adiante.

7 - A unicidade estatal na formulação de normas jurídicas determina sua


observância compulsória (coercibilidade). Assim, por este princípio, o modo como as
pessoas devem comportar-se somente pode ser determinado pelo Estado. Mesmo quando
as pessoas, físicas e jurídicas, são constrangidas a fazer ou a não fazer algo por um órgão
paraestatal, isto somente é possível por uma delegação estatal prévia. Situação em tudo
idêntica ocorre quando dois particulares celebram um contrato e exigem, por exemplo, seu
cumprimento obrigatório (pacta sunt servanda), que só é possível em virtude da
coercibilidade emprestada pelo Estado a tais manifestações da vontade.

8 - A teoria das ordens jurídicas é muito importante para a explicação e a


compreensão do fenômeno do federalismo e do ordenamento jurídico dos Estados
Federativos (Brasil, EUA, Alemanha, Suíça, por exemplo). A distinção entre ordem local
(de competência dos Estados-Membros), ordem federal ou central (atuação da União
Federal ou do Poder Central, em relação a atribuições que lhes são exclusivas) e ordem
nacional (atuação do Poder Central que interfere tanto na organização de sua ordem
normativa quanto naquela dos Estados-Membros) ajuda o intérprete a encontrar a solução
mais adequada para o caso obscuro.

9 - A criação do modelo de controle de constitucionalidade europeu continental (ou


austríaco ou kelseniano) guarda íntima relação como o princípio da supremacia da
constituição. Nesse particular a idéia de controle já existia desde o famoso caso Marbury
X Madison (1803), onde o célebre Juiz Marshall, Chief Justice da Suprema Corte dos
Estados Unidos, decidiu que caberia ao Poder Judiciário, antes da aplicação das leis,
verificar sua compatibilidade com as normas com o estatuído na Constituição. Kelsen
trouxe uma fundamentação inteiramente nova, no que o controle de constitucionalidade foi
inexoravelmente difundido nos países de tradição jurídica romano-germânica.

10 - A afirmação de não-cabimento doe controle de constitucionalidade das normas


constitucionais estabelecidas pelo Poder Constituinte Originário, muito embora tal idéia já
72

estivesse presente nos escritos de Sièyes, foi Kelsen quem, cientificamente, explicou este
fenômeno (metajurídico), pois as opções políticas eleitas pelo Constituinte são
insindicáveis juridicamente.

11 - A formulação do conceito de hierarquia normativa permitiu, ainda, uma


minuciosa análise comparativa entre os diversos ordenamentos jurídicos, de acordo com as
peculiaridades de cada Estado.

Além dessas e de outras contribuições para o desenvolvimento da ciência do


Direito, somos levados a crer que também no que se refere às pesquisas do autor austríaco
no campo da interpretação das normas jurídicas podemos encontrar esclarecedores
subsídios sobre o sempre atual problema de aplicação do direito. Sendo o uso dos
princípios também um problema da mesma natureza, julgamos acertado analisá-los, em
conjunto, no quarto capítulo do presente trabalho.
73

e) As críticas e seu devido equacionamento:

Neste item, transcreveremos algumas das críticas formuladas à doutrina positivista.


O objetivo não é exauri-las nem disseca-las por completo, mas mostrar que elas são fruto
de uma visão equivocada seja do positivismo, seja do normativismo. De fato, algumas das
críticas levantadas contra positivismo não se aplicam integralmente ao normativismo ou
porque foram feitas antes do surgimento deste ou porque seu uso indiscriminado não leva
em consideração aspectos específicos da doutrina kelseniana. Para facilitar a visualização
da crítica, iremos transcrever a passagem da obra do autor que, mesmo não a tendo
formulado, com ela concorda ou concordou; para, então, tecermos alguns comentários no
sentido de sua improcedência, insuficiência ou equivocidade.

Lacunas. “Em primeiro lugar, um positivismo cabal não admite – não pode
admitir – a presença de lacunas. E quando, levado pela evidência, acabe por aceita-las,
não apresenta, para elas, qualquer solução material: a integração da lacuna – operação
que, por excelência, exige o contributo máximo da Ciência do Direito – realizar-se-á,
pois, à margem do pensamento jurídico”227.

Este argumento não pode ser seriamente aceito na medida em que, modernamente,
a adoção da cláusula que assegura a indenegabilidade de jurisdição (no Brasil, é o art. 5º,
XXXV da CF/88) impede que o julgador se furte ao seu dever de pronunciar o direito
concretamente aplicável. Por outro lado, o relativo grau de indeterminação da norma
jurídica, em seus sucessivos planos hierárquicos, sempre permite uma ‘adaptação’ por
meio da atividade interpretativa. Assim:
“Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do
escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob
todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre
de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação,
de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em
relação ao ato de produção normativa ou de execução que a

227
Conforme Antonio Menezes Cordeiro, in Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de
Sistema na Ciência do Direito, 2002, pp. XX/XXII.
74

aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este


ato”228.

Ademais, a ausência de uma norma jurídica específica nunca poderia impedir a


aplicação sistemática da ordem jurídica válida. Nesse sentido, Kelsen nos diz que:
“A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a
teoria tradicional admite a existência de lacuna, logicamente
impossível. Na verdade, não é possível, neste caso, a aplicação de
uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da ordem
jurídica – e isso também é aplicação do Direito”229.

Conceitos indeterminados. “Um tanto na mesma linha, verifica-se, depois, que o


positivismo não tem meios para lidar com conceitos indeterminados, com normas em
branco e, em geral, com proposições carecidas de preenchimento com valorações: estas
realidades, cada vez mais difundidas e utilizadas nos diversos sectores do ordenamento,
carecem, na verdade, de um tratamento que, por vezes, tem muito em comum com a
integração das lacunas. E tal como nesta, também naquelas o ‘jus positum’ pode não
oferecer soluções operativas: o positivismo cairá, então, no arbítrio do julgador”230.

Com muito mais razão do que no caso das lacunas, quando o julgador se depara
com conceitos (jurídicos) indeterminados, sempre é possível uma solução à luz dos
ensinamentos normativistas. De fato, tais conceitos, sendo incorporados pelo legislador, de
qualquer grau hierárquico que seja, sem possuir uma definição precisa (o que é óbvio,
senão deixaria de ser um conceito), sempre permitem seu uso jurídico sem maiores
dificuldades. De fato, é da própria natureza de um conceito encerrar uma idéia que se
revela ser mais fluida do que a contida numa regra jurídica, mas uma vez positivado – e
sua positivação, embora não seja desejável, é juridicamente possível, se o legislador
entender que somente com ele se poderá estabelecer a conduta a ser seguida. Teremos,
neste caso, um maior grau de liberdade do julgador. Nota-se que, de um certo modo, os
conceitos jurídicos indeterminados se situam a meio caminho entre as regras e os
princípios.
228
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 388.
229
Idem, p. 273.
230
Idem, p. XXII.
75

Injustiça das normas. “Finalmente, o juspositivismo detém-se perante a questão


complexa mas inevitável das normas injustas. Desde logo, a idéia de ‘injustiça’ duma
norma regularmente produzida é de difícil – quiçá impossível – representação para as
orientações que, do ‘ius positum’, tenham uma concepção auto-suficiente: falece uma
bitola que viabilize o juízo de ‘injustiça’. De seguida, falta, ao positivismo, a capacidade
para, perante injustiças ou inconveniências graves no Direito vigente, apontar soluções
alternativas”231.

O argumento de que uma norma pode ser injusta só é admissível por aqueles que
adotam uma concepção jusnaturalista do direito. Este fato, no entanto, o retira do campo
científico e o remete ora para o campo da divindade (caso seja considerado como um
espelho de um direito superior, absoluto e imutável, como na concepção socrática, em que
a lei positiva deve obediência à lei cósmica (ou natural)) 232, ora para o campo da arte233, ou,
ainda, para o da técnica. Nestes últimos dois casos, porém, afigura-se difícil o
equacionamento com a injustiça já que tanto a técnica como a arte não alcançam um grau
de questionamento que permita indagações éticas, valorativas ou morais.

Validade e Eficácia. “Realmente, para que uma norma jurídica seja válida, é
preciso que ela também seja eficaz: ou seja, não basta o respeito a certas formalidades no
estabelecimento da norma, mas é preciso que, de fato, a norma assim estabelecida seja
também efetivamente aplicada. Kelsen é obrigado a admitir que ‘tanto uma ordenação
jurídica como um todo quanto uma norma jurídica isolada perdem a validade, quando
deixam de ser eficazes’. Em outras palavras, para responder à questão em torno da qual
constrói toda a sua doutrina (ou seja, quais são os pressupostos formais para a validade
de uma norma jurídica), Hans Kelsen precisa renunciar à rigorosa separação entre
mundo natural e mundo normativo, entre ‘ser’ e ‘dever-ser’ ”234.
De fato, existe uma separação entre as categorias ser e dever-ser, sendo certo que a
validade pertence à segunda e a eficácia pertence à primeira. Por validade se deve entender

231
Idem, pp. XXII/XXIII.
232
Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, pp. 16/17.
233
Sobre estas categorias não-científicas, leia-se o tópico ciência, no item b) do cap. II.
234
Conforme Mário G. Losano, apud Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz, in Reflexões sobre a Teoria
Pura do Direito.
76

a específica existência do Direito235 enquanto que a eficácia é a ocorrência da conseqüência


normativamente prevista no mundo real. Comentando a conexão entre os dois institutos, o
autor austríaco assim se manifestou:
“Uma teoria jurídica positivista é posta perante a tarefa de
encontrar entre os dois extremos, ambos insustentáveis, o meio-
termo correto. Um dos extremos é representado pela tese de que,
entre validade como um dever-ser e eficácia como um ser, não
existe conexão de espécie alguma, que a validade do Direito é
completamente independente da sua eficácia. O outro extremo é a
tese de que a validade do Direito se identifica com a sua eficácia.
A primeira solução do problema tende para uma teoria idealista, a
segunda para uma teoria realista. A primeira é falsa, pois, por um
lado, não pode negar-se que uma ordem jurídica como um todo,
tal como uma norma jurídica singular, perde a sua validade
quando deixa de ser eficaz; (...). A segunda solução é falsa, pois
não pode ser negado que há – (...) – numerosos casos nos quais as
normas jurídicas são consideradas como válidas se bem que não
sejam, ou não sejam ainda, eficazes”236.

Assim, diferentemente do que consta da crítica, não há uma hermeticidade absoluta


entre validade e eficácia. Ao contrário, há uma constante conexão que une estes dois
universos. Nem poderia ser diferente já que ambos os institutos possuem a mesma matriz:
a norma fundamental lógico-transcendental a que nos referimos em item anterior. Por isso,
afirma Kelsen que o “fundamento de validade, isto é, a resposta à questão de saber por que
devem as normas desta ordem jurídica ser observadas e aplicadas, é a norma fundamental
pressuposta segundo a qual devemos agir de harmonia com uma Constituição efetivamente
posta, globalmente eficaz, e, portanto, de harmonia com as normas efetivamente postas de
conformidade com esta Constituição e globalmente eficazes. A fixação positiva e a eficácia
são pela norma fundamental tornadas condição da validade”237. Mais adiante, conclui com
sua invulgar sapiência que:

235
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 238.
236
Idem, p. 236.
237
Idem nota anterior.
77

“As normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas)


porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua
produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes;
mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer,
enquanto esta ordem jurídica for eficaz” (grifos do autor)238.

Critério jurídico específico. “No capítulo 2, argumentei que as proposições


centrais da teoria que determinei de positivismo estavam equivocadas e deviam ser
abandonadas. Afirmei especialmente que é errado supor, com esta teoria supõe, que em
todo sistema jurídico existe algum teste fundamental, normalmente reconhecido como
válido, para determinar quais padrões contam como direito e quais não contam. Afirmei
que nenhum teste fundamental como esse pode ser encontrado em sistemas jurídicos
complexos, como os que vigoram nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, e que nesses
países nenhuma distinção definitiva pode ser feita entre padrões jurídicos e morais, como
insiste o positivismo”239.

Este argumento somente pode ser seguido por alguém que, além de não admitir a
separação entre normas morais e normas jurídicas, também não aceite uma diferença entre
o Direito e a ciência que o estuda. De fato, mesmo nos países da common law existe pelo
menos uma diferença de grau entre as normas das duas espécies, que se não é determinante
para a separação, ao menos é indicativo de algo. A obrigatoriedade do cumprimento das
normas jurídicas como necessária para a convivência social já era teorizada desde o séc.
XVIII por Hobbes. Em seguida, Bentham, Stuart Mill e Austin também se aprofundavam
nos estudos jurídicos para demonstrar a especificidade do direito em relação à moral. Por
outro lado, especialmente no caso dos Estados Unidos, a existência de leis escritas (e
sobretudo, da Constituição Americana) permite uma averiguação indiscutível acerca do
que seja direito e do que seja moral. Claro está que procurar completamente o Direito da
Moral é impossível, e o próprio Kelsen admitia o uso das normas morais que foram
incorporadas ao ordenamento jurídico.

238
Idem, p. 237.
239
Conforme Ronald Dworkin, in Levando os Direitos a Sério, 2002, p. 73.
78

Contradições entre princípios. “Muito importante na crítica ao positivismo é a


sua inoperacionabilidade em situações de contradições de princípios. A possibilidade de
tais contradições, há muito presente em ENGISCH, por exemplo, encontra-se
equacionada na presente obra, por CANARIS, numa esquematização que não oferece
dúvidas ou dificuldades. Ora, a postura metodológica juspositiva não pode, perante o
fenômeno, senão nega-lo, ignora-lo ou remeter a sua solução para os acasos das decisões
subjectivas”240.

Como já antecipado no tópico precedente, também os princípios podem ser


positivados, desde que o legislador assim o entenda. A fluidez conceitual desta categoria
normativa, maior que a dos conceitos jurídicos indeterminados, e bem superior a das
regras, não constitui óbice a sua positivação atende aos requisitos da generalidade e da
objetividade, próprios das normas jurídicas. Na verdade, nota-se que quanto maior o grau
hierárquico, maior é o uso desta categoria normativa.

De fato, é possível que a resolução de tais conflitos tenham de ser resolvidos pelo
julgador, mas a técnica da ponderação de interesses surge como conciliável com o
positivismo, em gral, e com o normativismo, em particular, já que sendo o princípio uma
norma jurídica, diferente da regra jurídica, é claro que as contradições entre estes não
poderão obedecer à mesma lógica (jurídica) que permitem a solução dos conflitos oriundos
da aplicação daquelas.

240
Idem, p. XXII.
79

IV – A INTERPRETAÇÃO E O USO DOS PRINCÍPIOS

a) A norma jurídica como esquema de interpretação:

Depois deste panorama geral sobre as idéias do autor austríaco, vamos aprofundar
as considerações a respeito deste conceito que é um dos pilares fundamentais de Kelsen.
De fato, a caracterização da norma jurídica como um esquema de interpretação permitiu a
ampliação dos horizontes no que se refere à compreensão deste instituto que sempre
mereceu a atenção dos juristas.

Por outro lado, ao iniciar seus estudos teóricos sobre uma teoria da interpretação,
Kelsen foi criticado por diversos autores que diziam ter ele se preocupado com o objeto da
interpretação e não com a construção de um instrumental hermenêutico. As críticas são, em
certa medida, procedentes já que na primeira parte de sua obra241 (antes de ter contato com
os realistas americanos) o autor não dava muita importância a tal tema.

Ao se mudar para os Estados Unidos e absorver os conhecimentos locais,


conhecimentos estes que ele tanto havia combatido, Kelsen evoluiu seu ponto de vista
estritamente normativista para um outro, próximo daquele do realismo norte-americano no
que se refere à problemática da interpretação, sem que isto significasse um abandono de
suas idéias originais242.

A originalidade do conceito kelseniano de norma não se subsume às categorias


tradicionais243, mas permite se debruçar sobre ela a partir de um outro prisma, até então
desconhecido. Assim:

241
A 1ª edição de sua Teoria Pura do Direito data de 1934 enquanto que a 2ª é de 1960, quando Kelsen já se
encontrava radicado nos Estados Unidos.
242
Não cabe nesta presente fase do trabalho tratar da doutrina do realismo já que suas raízes históricas deitam
raízes no sistema da common law. Basta sabermos que a importância da interpretação nesta doutrina forçou
Kelsen a rever muitos de seus conceitos e, especialmente, fez com que o autor austríaco, na 2ª edição de sua
obra maior, destinasse todo um capítulo ao fenômeno da interpretação. Esta mudança de perspectiva resultou
numa teoria da interpretação sólida, consistente, que perdura até os dias de hoje.
243
Em regra, os autores abordam a norma ora do ponto de vista formal ora do material. Também Kelsen não
poderia deixar de se manifestar sobre estas dimensões normativas. Formalmente, uma norma se apresenta
como um esquema de interpretação, uma ‘moldura, dentro da qual há espaço para variadas soluções jurídicas.
Materialmente, ela é um comando, dotado de coercibilidade que determina um comportamento específico, ou
seja, é um conteúdo que prescreve uma conduta humana.
80

“O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não
é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal
como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema
da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a
significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua
particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por
intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo,
que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode
ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como um
esquema de interpretação”244.

Um exemplo esclarecerá o que se escreveu. Qual a diferença ‘fática’ entre um


homicídio e um assassinato? Nenhuma. Todavia, existe uma diferença ‘significativa’ (do
ponto de vista jurídico) que somente pode ser estabelecida quando se faz referência a uma
norma jurídica, indispensável para a adstringência da conseqüência juridicamente prevista
nela.

De fato, o esquema normativo-interpretativo referido por Kelsen, no sentido de


aplicação do Direito vigente, somente se refere à interpretação autêntica245, pois somente
órgãos jurisdicionais podem optar (realizar um ato de vontade, portanto) por uma dentre
várias possibilidades de aplicação de uma norma. Em outras palavras, uma norma
apresenta não apenas uma, mas várias soluções judiciais possíveis para um mesmo caso
concreto; assim, dentro desta “moldura” contida na norma, qualquer solução será jurídica,
não se podendo dizer que exista uma única solução justa ou correta.

Citando o filósofo austríaco: “Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei,
não significa, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa
– não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas
individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral”.246 (grifos do
autor).

244
Kelsen, ob. cit., p. 4.
245
A distinção entre os dois tipos de interpretação será vista em item próprio, mais adiante.
246
Kelsen, ob. cit., p. 391.
81

Assim, a norma jurídica é uma moldura que somente pode ser preenchida por um
ato de vontade do órgão aplicador do Direito. Nas palavras de Kelsen: “Através deste ato
de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de
toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela
ciência jurídica”247.

247
Idem, p. 394.
82

b) As recentes categorias normativas: regras e princípios248:

O momento que se seguiu à Segunda Guerra Mundial foi especialmente importante


para o desenvolvimento de novos estudos normativos. De fato, a visualização do Direito
como um sistema constituído de ‘regras’ não logrou êxito em explicar o fenômeno
normativo em toda a sua amplitude. Nesse contexto histórico, a doutrina se orientou no
sentido de procurar afinidades entre estas e os princípios. Se não é impossível encontrar
quem sustente a incompatibilidade entre o positivismo e o constitucionalismo249, a maioria
dos autores modernos admite que o Direito seja ou possa ser constituído de regras e
princípios250.

Por outro lado, coube a Robert Alexy, sistematizando este novo movimento,
batizado com algum grau de imprecisão como pós-positivismo, identificar dois grandes
grupos de distinções entre regras e princípios: a) fortes, lógicas, ou qualitativas; b) fracas,
de grau, ou quantitativas.

Os representantes251 do primeiro grupo sustentam que os princípios são mandados


de otimização, ou seja, são normas que podem ser cumpridas em diferentes graus252. Por
outro lado, as regras funcionam com base na lógica do ‘tudo’ ou ‘nada’, isto é, num
esquema em que a ocorrência da situação fática verificada induz à conseqüência jurídica
prevista na norma. Assim:
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de
natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para
decisões particulares acerca da obrigação jurídica em
circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza
da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira

248
Ver Canaris, ob. cit., pp. 86/88.
249
Nesse sentido, Gustavo Zagrebelsky, apud Jane Reis Gonçalves Pereira e Fernanda Duarte Lopes Lucas
da Silva, A Estrutura Normativa das Normas Constitucionais (in PEIXINHO, Manoel Messias, GUERRA,
Isabella Franco, NASCIMENTO FILHO, Firly (organizadores). Os Princípios da Constituição de 1988,
Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2001), pp. 5/6.
250
Assim, autores insuspeitos, como Ronald Dworkin, Chaïm Perelman, Gustavo Zagrebelsky, todos
contrários ao positivismo, bem como outros que adotam uma concepção positivista do Direito, como Luis
Prieto Sanchís, Gregório Peces-Barba Martinez, Genaro Carrió, se manifestam nesse sentido.
251
Com este perfil, temos Ronald Dworkin e o próprio Robert Alexy.
252
Conforme Jane Reis Gonçalves Pereira e Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva, ob. cit., p.11.
83

do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou


a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser
aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a
decisão”253.

A diferença entre ambas as categorias pode ser melhor compreendida no que se


refere à ‘dimensão de peso’, presente nos princípios, o que vem a ser uma segunda
distinção em relação às regras. De fato:
“Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a
dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se
intercruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em
conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo,
uma mensuração exata e o julgamento que determina que um
princípio ou uma política particular é mais importante que outra
freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa
dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de
modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão
importante ele é”254.
“As regras não têm essa dimensão. Podemos dizer que as regras
são funcionalmente importantes ou desimportantes (...). Nesse
sentido, uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra
porque desempenha um papel maior ou mais importante na
regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma
regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo
sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em
conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância
maior”255.

253
Ronald Dworkin, Levando os Direitos a Sério, 2002, p.39.
254
Idem, pp. 42/43.
255
Idem, p. 43.
84

Por outro lado, existe corrente doutrinária256 que enxerga apenas uma distinção
fraca entre princípios e regras, sendo certo que notaram naqueles um maior grau de
generalidade e abstração em relação a estas, negando que exista, todavia, entre as duas
classes normativas, uma diferença ontológica, lógica ou substancial.

Assim, conforme nos ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “princípio é, por
definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo
de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
harmônico”257, enquanto que as regras são normas que determinam condutas humanas de
um modo claro, direto, objetivo e específico258. Uma regra é uma norma que disciplina ou
rege algo; é a imposição de uma conduta que deve ser seguida.

De qualquer modo, independentemente do tipo de distinção, a diferença entre


regras e princípios reside no fato de que estes não admitem exceção, mas ponderação. Os
princípios são sempre aplicáveis, com maior ou menor densidade normativa. Quando eles
entram em conflito devemos nos valer da técnica da ponderação de interesses buscando
otimizar a incidência de ambos. As regras, ao contrário, podem ser excepcionadas por
outras regras. Quando isto ocorre, temos regras que limitam a incidência das regras
precedentes, surgindo um estado excepcionalmente não regulado pelas regras gerais259.

Conquanto os autores se esforcem para apartar as regras dos princípios, podemos


notar a esmagadora maioria deles está de acordo de que ambas as espécies se subsumem ao
gênero ‘norma’. Ora, tendo Kelsen proposto uma doutrina positivista calcada nesta noção
normativa, em nenhum momento foi o normativismo afetado ou invalidado em suas bases.
Ao contrário, o filósofo austríaco já advertia que qualquer conteúdo poderia ser
‘transplantado’ para o mundo jurídico, o que evidentemente também se aplica aos
princípios.

256
Assim se manifestaram, Norberto Bobbio, Riccardo Guastini, Luis Prieto Sanchís.
257
Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 1999, pp. 629/630.
258
Sobre as funções normativas, consulte-se Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, Sergio Antonio Fabris
Editor, Porto Alegre, 1986, pp. 1, 4, 25/27 e 120/145.
259
Daniel Sarmento, ob. cit., pp. 45/46.
85

De qualquer forma, a concepção kelseniana se apóia na noção de norma jurídica,


que, considerada como um esquema de interpretação, pode revestir seja a forma de uma
regra, seja a de um princípio. Os primeiros possuem um baixo conteúdo normativo e alto
grau de fluidez conceitual enquanto que as regras encerram um conteúdo normativo
elevado associado a um baixo grau de fluidez conceitual, ou seja, o limite interpretativo do
julgador é mais restrito neste caso do que no caso dos princípios. Esta distinção é
especialmente importante no que se refere à aplicação do Direito ao caso concreto, o que
veremos nas páginas seguintes.
86

c) A interpretação em Kelsen: autêntica e não-autêntica:

Umbilicalmente ligado ao tema do uso jurídico dos princípios, devemos esclarecer


desde logo o que seja este fenômeno chamado de interpretação. Como noção geral,
podemos adotar o conceito proposto por Michael S. Moore: “é a atividade a que nos
dedicamos ao tentar encontrar o significado de algo”260. Trazendo-nos um conceito mais
jurídico, Kelsen assim se manifestou sobre tal fenômeno: “a interpretação é, (...), uma
operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de
um escalão superior para um escalão inferior”.261 De fato, Kelsen conceitua a
interpretação como a atividade mental consistente em determinar a significação de uma
norma. Em realidade, a hermenêutica kelseniana gira em torno do problema básico da
produção da norma individual dentro de um quadro de múltiplas possibilidades extraídas
com base na norma geral.

Assim, a interpretação é um processo necessário porque toda norma jurídica, para


ser aplicada, precisa ter seu conteúdo fixado e seu alcance determinado. Dois são os tipos
de interpretação, segundo a classificação kelseniana: a) autêntica; b) não-autêntica.

A interpretação autêntica é aquela realizada por todos aqueles que estudam os


temas e institutos jurídicos tendo sido investidos, pela ordem jurídica, de jurisdição
(parcela do poder estatal consistente em aplicar o Direito na solução dos conflitos
concretos). No exercício desta função estatal a prolação da decisão pelo agente público se
reveste de definitividade (= reflexo do princípio da segurança jurídica, insculpido no art.
5º, XXXVI da CF/88, por exemplo).

Assim, a interpretação autêntica é aquela realizada pelos órgãos judiciários


(Tribunais e Juízes), os quais foram previamente investidos de jurisdição, ou seja, a eles a
ordem jurídica instituída atribui a específica função de determinar, de um modo definitivo

260
in Andrei Marmor, Direito e Interpretação, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 5. Este conceito é quase
igual àquele utilizado por Freud. O pai da psicanálise acrescenta à definição que o sentido é oculto, no que é
seguido por Andrei Marmor e Anette Barnes. Interessante notar que desta polêmica, Moore conclui que leis
claras não demandam interpretação enquanto Marmor, numa perspectiva comunicativa da interpretação, nos
diz que se o sentido é evidente estamos diante de um fenômeno semântico; e o que pertence à semântica,
conclui ele, não pertence à interpretação.
261
Kelsen, ob. cit., pg. 387.
87

e incontestável, a significação do Direito. A interpretação autêntica é, portanto, aquela que


emana de órgão jurisdicional habilitado pela ordem jurídica. Diferentemente da científica,
a interpretação autêntica é, além de um ato de conhecimento, também um ato de vontade.

Por outro lado, existe uma outra interpretação, realizada pelos professores,
doutrinadores e por toda pessoa que tem um ponto de vista sobre a significação do Direito,
mesmo aqueles que apenas cumprem as normas. A interpretação não-autêntica consiste em
determinar todos os significados possíveis do texto a ser aplicado. Ela é, portanto, um
simples ato de conhecimento.

Além disso, com relação à interpretação não-autêntica temos a transcrever, por sua
clareza, as lições do expoente austríaco:
“A interpretação cientifica é pura determinação cognoscitiva do
sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação
feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A idéia de
que é possível, através de uma interpretação simplesmente
cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada
jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do
Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência
jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas
lacunas do Direito. O preenchimento da chamada lacuna do
Direito é uma função criadora de Direito que somente pode ser
realizada por um órgão aplicador do mesmo”262.

Assim, a interpretação não-autêntica (ou científica) é tão somente um ato de


conhecimento, ou seja, é uma “pura determinação cognoscitiva do sentido das normas
jurídicas”263, incapaz de criar Direito novo.

Diferentemente da interpretação não-autêntica, na autêntica temos um ato de


vontade somado a um ato de conhecimento. Por ato de vontade devemos entender a
faculdade do aplicador do Direito escolher, dentro dos limites normativos impostos pela

262
KELSEN, ob. cit., 395.
263
KELSEN, ob. cit., pg. 395.
88

ordem jurídica, um ato dentre aqueles que foram revelados pelo processo cognoscitivo (ato
de conhecimento).

Os traços distintivos da interpretação autêntica, em relação a todas as demais, são:


a) definitividade; b) ato de vontade somado a um ato de conhecimento; b) aplicação de
uma norma individual ao caso concreto.

Por outro lado, a conceituação de norma como um esquema de interpretação


somente se refere à autêntica já que somente órgãos jurisdicionais podem optar (realizar
um ato de vontade, portanto) por uma dentre várias possibilidades de aplicação de uma
norma. Em outras palavras, uma norma apresenta não apenas uma, mas várias soluções
judiciais possíveis para um só caso concreto; assim, dentro desta “moldura” contida na
norma, qualquer solução será jurídica, não se podendo dizer que exista uma única solução
justa ou correta. Citando o filósofo austríaco:
“Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa,
senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei
representa – não significa que ela é a norma individual, mas
apenas que é uma das normas individuais que podem ser
produzidas dentro da moldura da norma geral” (grifos do autor)264.

A necessidade da atividade interpretativa reside no fato de que a cada passagem de


um escalão normativo superior para um outro inferior, a complexidade do ordenamento
jurídico aumenta, pois o julgador deverá realizar dois trabalhos intelectuais: a) verificar as
quais normas válidas; b) quais as normas aplicáveis, sendo certo que a validade condiciona
a aplicabilidade da norma no caso concreto.

As normas, como já dissemos anteriormente, servem para restringir e disciplinar o


comportamento das pessoas265. Ocorre, porém, que enquanto geral e abstrata ela permanece
inaplicável aos casos concretos e específicos; ela apenas possui a potencialidade de ser
aplicada. Justamente quando um juiz ou tribunal é provocado, temos um processo de
concretização e de especificação da norma aplicável ao caso submetido à apreciação

264
Kelsen, ob. cit., p. 391.
265
Sobre outras funções normativas, consulte-se Kelsen, Teoria Geral das Normas, 1986, pp. 1, 4, 120/145.
89

jurisdicional. O órgão judiciário produz, então, uma norma concreta, específica e restrita
àquele caso, necessária à resolução do conflito anteriormente existente.

Retornando a Kelsen, temos que a interpretação pode ser autêntica ou não-


autêntica, conforme promanem ou não de órgão legitimamente autorizado a exercer o
poder jurisdicional outorgado pelo Estado. Dessa forma, enquanto a interpretação autêntica
é realizada por um número restrito de sujeitos legítimos, a não-autêntica pode ser realizada
pelos demais indivíduos. Ela se subdivide, principalmente, em duas espécies: a) científica
– realizada pelos juristas; b) comum – realizada por todos os demais sujeitos.

Conclui-se com o ilustre vienense, que “a norma do escalão superior não pode
vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada”.266
Caso contrário, as normas de diversa hierarquia repetiriam sempre o mesmo conteúdo, sem
que isto ajudasse na solução dos problemas. Nem mesmo poderíamos dizer que se trata de
uma ordem jurídica escalonada em diversos níveis, pois todos os comandos normativos
reproduziriam aqueles textos previstos na Constituição!

Como nos diz o próprio Kelsen, a norma é um esquema de interpretação, uma


diretriz que serve para balizar a atividade a ser desenvolvida pelo juiz. Ora, na passagem
de um escalão normativo para outro temos um relativo grau de indeterminação do ato de
aplicação do Direito, o que demanda uma atividade interpretativa. Este relativo grau de
indeterminação pode ser intencional ou não-intencional, conforme tenha sido desejada ou
não pelo legislador. No primeiro caso, temos, em grande medida, as normas penais, que
fixam intervalos para a cominação de pena privativa de liberdade para diversas condutas,
pena esta que somente será individualizada na sentença – por exemplo, Homicídio doloso
(art. 121 do CP) cuja pena varia de seis a vinte anos. No caso da indeterminação não-
intencional, temos uma situação em que o sentido da norma não é unívoco ou então várias
podem ser aplicadas. É importante ressaltar que, tanto neste caso como no anterior, existem
várias possibilidades de aplicação do Direito. E a utilização de qualquer delas satisfaz o
Direito, não se podendo falar em uma decisão mais “acertada” ou mais “correta” do que
outra267.
266
Kelsen, ob. cit., p. 388.
267
O acerto dos ensinamentos kelsenianos pode ser verificado na atuação de Juízes e Tribunais, que proferem
decisões diferentes para um mesmo caso apreciado.Todavia, esta constante indefinição dos órgãos judiciários
90

Por outro lado, a atividade cognoscitiva realizada pelo juiz quando a norma ainda
permite uma apreciação subjetiva (interpretação) é um ato de vontade e não apenas de
conhecimento, ou seja, não se pode, diante das várias possibilidades que a norma apresenta
para solucionar o caso concreto, determinar-se uma que prevaleça em detrimento das
demais, com base em critério científico (ato de conhecimento, portanto) de direito positivo.
Em realidade, a “escolha” de qualquer delas somente depende da vontade do julgador.
Nesse sentido, transcrevemos a elucidativa passagem da obra de Kelsen:
“Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária
fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr,
possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão
aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do
Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da
criação jurídica, podem ter sua incidência: normas de Moral,
normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos
designar por expressões correntes como bem comum, interesse do
Estado, progresso, etc.(...) Relativamente a este, a produção do ato
jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre,
isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a
produzir o ato.”268

Feita a distinção acima, cabe salientar que a aplicação do Direito somente é


possível após a interpretação da(s) norma(s) aplicável(eis). A necessidade de interpretação
decorre da própria dinâmica do modelo conceitual proposto por Kelsen, qual seja, o
escalonamento da ordem jurídica em sucessivos planos normativos. Explica-se: se o
Direito se propõe a resolver conflitos e se esses conflitos são específicos, a solução destes
conflitos requer normas específicas. Como, porém, resolvê-los a partir das normas gerais e
abstratas? Ora, nos responde Kelsen, interpretando sucessivamente estas normas até um
grau máximo: é a sentença judicial, a norma estatal mais específica e a que exige maior
esforço de interpretação. Como na solução de um caso concreto, existem diversas e
no exercício de sua atividade própria não deve causar espanto, pois, sob um certo prisma, ela demonstra que
estamos vivendo em um regime democrático. Assim, é salutar que existam diferentes interpretações, ainda
que conflitantes, pois é isto que faz com que a ciência jurídica progrida, com a criação de novos institutos e
teorias, indispensáveis para a resolução dos novos problemas.
268
Kelsen, ob. cit., 393.
91

sucessivas normas aplicáveis, cabe ao julgador, antes de aplicá-la(s), realizar uma atividade
cognoscitiva do(s) sentido(s) da(s) mesma(s). Ora, atividade jurisdicional desenvolvida
pelo magistrado é muito complexa e variada. Assim, podemos afirmar que diversos tipos
de atividade intelectiva são realizados pelos juízes, a saber: interpretação; integração;
ponderação, etc. Somente o primeiro tipo é objeto de estudo destas linhas.
92

d) A aplicação do direito:

A atividade jurisdicional desenvolvida pelo magistrado é, como já dissemos, muito


complexa e variada. Como condição necessária para aplicação do Direito, deve-se buscar
fixar o significado do conteúdo jurídico contido na norma. Ora, tal determinação só pode
ser conseguida mediante um processo hermenêutico. Sem querermos propor uma nova
classificação ou coisa que o valha, pensamos que a hermenêutica, no seu sentido
clássico269, pode servir de gênero para albergar todos os demais processos intelectivos
utilizados pelos julgadores para aplicar o Direito. Assim, catalogamos, pelo menos, cinco
espécies de atividade intelectiva desenvolvidas pelos aplicadores do Direito, a saber: a)
subsunção; b) interpretação; c) integração; d) ponderação; e) equidade.

De fato, em todos estes processos existe uma ‘mensagem normativa’ que precisa
ser conhecida antes de ser aplicada. Por isso, todas podem ser utilizadas, em conjunto ou
separadamente, conforme as prescrições estabelecidas no ordenamento jurídico. Note-se o
cuidado em estabelecer a ordem a partir daquele processo que exige menor esforço para
aquele que exige um esforço maior.Vejamo-las.

Na filosofia kantiana, a subsunção significa o processo pelo qual se utiliza a


fórmula: ‘premissa maior + premissa menor = resultado’ através de uma relação de
subordinação imediata (dedução). No caso do Direito, teríamos a norma como premissa
maior, o fato como premissa menor e a conseqüência jurídica como resultado. Por
exemplo: norma – casas amarelas pagam imposto; fato – a casa de Tício é amarela;
resultado – Tício deve pagar imposto. A lógica formal (dedutivista) presente na presente
atividade faz com que a subsunção seja aplicada limitadamente pelo ordenamento jurídico,
mas ainda assim encontra-se esparsamente positivado no Direito pátrio, como se pode
notar no caso do art. 82 da Constituição Federal de 1988, que estabelece o prazo do
mandato presidencial. Sem o regular processo de impeachment, não há como encurtar o
prazo de permanência do inquilino do Palácio do Planalto270. Notamos com isso, a regra
estabelecida no citado dispositivo constitucional só pode ser afastada mediante uma
269
Na concepção grega, presente sobretudo na mitologia daquele povo, a palavra ‘hermenêutica’ deriva de
Hermes, o deus que habitava o Olimpo e era responsável pela entrega das mensagens de Zeus, aos humanos e
aos outros deuses. A mensagem é, portanto, o significado da vontade divina.
270
Verbis: “O mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do
ano seguinte ao da sua eleição”.
93

exceção normativa de mesma estatura hierárquica. É o mais simples e desejável dos


processos de obtenção do Direito aplicável, sendo conhecido desde os tempos romanos,
povo, aliás, que cunhou o brocardo in claris cessat interpretatio.

A interpretação tem lugar quando, na aplicação do Direito, o julgador se depara


com uma multiplicidade de normas, ou quando a partir de uma determinada norma
variados significados são possíveis. No pensamento kelseniano, significa a aplicação de
uma norma jurídica ao caso concreto realizando simultaneamente um ato de vontade e de
conhecimento, com escolha de uma dentre as várias possibilidades contidas na norma; é a
determinação do sentido concreto da norma. Este é o modo ordinário de solução dos
conflitos jurídicos, inclusive com a adoção de subcritérios que auxiliam o intérprete271.
Indiretamente, este processo encontra guarida no art. 5º, inc. XXXV da CF/88272 já que
como o juiz está adstrito ao dogma da inafastabilidade de prestação da tutela jurisdicional,
ele deve encontrar a solução jurídica para a resolução do conflito. Ademais, é no âmbito
deste processo que se nota uma maior utilidade da sistematicidade do Direito.

A integração do Direito tem lugar quando, constatada a insuficiência normativa, o


ordenamento jurídico prevê uma fórmula genérica de criação do Direito aplicável mediante
critérios legalmente estabelecidos. A doutrina propõe os seguintes: a) analogia; b)
princípios gerais de direito; c) costumes. Para se obter o Direito a partir deste processo, o
esforço intelectivo aumenta significativamente já que é preciso perquirir similitudes e
diferenças entre as normas existentes para um caso que originariamente não estava previsto
na legislação. Genericamente, encontra-se previsto no Direito brasileiro no art. 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil (LICC)273 e no art. 126 do Código de Processo Civil274, que
autoriza o emprego de todos os critérios acima mencionados.

271
Estes subcritérios são: especialidade, cronológico e hierárquico.
272
Verbis: “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
273
Verbis: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito”.
274
Verbis: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No
julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos
costumes e aos princípios gerais de direito”.
94

A ponderação é o processo utilizado para determinar em que medida os princípios


jurídicos, normas com baixa densidade regulamentar e alta fluidez conceitual, podem ser
aplicados aos problemas jurídicos. Nesse sentido, se manifesta o Prof. Daniel Sarmento:
“Neste caso, ele deve, à luz das circunstâncias concretas, impor
‘compressões’ recíprocas sobre os interesses protegidos pelos
princípios em disputa, objetivando lograr um ponto ótimo, onde a
restrição a cada interesse seja a mínima indispensável à sua
convivência com o outro”275.
“É certo que o operador do Direito deve pautar-se, nessa tarefa,
por parâmetros racionais e controláveis. Sem embargo, sua
atuação estará necessariamente condicionada por uma pré-
compreensão do problema – uma percepção inicial, ainda difusa e
sentimental, da sua solução ideal – da qual ele, como ser humano,
não consegue se libertar”276.

Obliquamente, podemos afirmar que onde um princípio estiver albergado no texto


legislativo, o uso da ponderação de interesses será possível. Nota-se claramente uma maior
utilidade deste tipo de processo intelectivo na resolução de conflitos constitucionais. Por
exemplo, nossa Carta Magna acolheu num mesmo dispositivo tanto o princípio da
liberdade de imprensa quanto o da preservação da intimidade, sendo certo que o conflito
entre estas duas normas é certamente inevitável277.

Por fim, a equidade se apresenta como o processo mais desgastante, pois, em sendo
a liberdade do julgador quase total, devem ser perquiridos todas as significações possíveis,
sem nenhum balizamento prévio. Por isso mesmo que só é permitido nos expressos casos
previstos em lei, conforme preceitua o art. 127 do Código de Processo Civil 278. Nota-se que
a utilização dos critérios puros e subjetivos do julgador (sua livre consciência) para aplicar
a norma ao caso concreto pode facilmente descambar para a arbitrariedade. Neste caso, o

275
Sarmento, ob. cit., p. 102.
276
Idem, pp. 102/103.
277
Art. 5º, incisos IX e X da CF/88, respectivamente: “IX – é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e “X – são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”.
278
Verbis: “O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”.
95

julgador se utiliza muito mais de valores do que de princípios e regras. De qualquer sorte, é
importante notar que em todos os processos intelectivos existem normas que determinam
ou indicam qual deles deve ser utilizado para se buscar a significação do seu conteúdo, o
que leva à conclusão de que todos os processos se desenvolvem à luz de uma doutrina
positivista.
96

V – CONCLUSÃO

Ante a apresentação do tema a que nos propusemos, partimos de pontos gerais e


fomos sucessivamente delimitando os conceitos úteis à tarefa de mostrar a pertinência
entre o positivismo e o uso dos princípios na seara da interpretação jurídica.

De fato, partimos de uma concepção científica do Direito, afastando este campo do


saber humano de outras classificações não-científicas, como a arte, a técnica, a história e o
divino. Posteriormente, delimitamos o objeto de uma tal ciência, sendo certo que a norma
jurídica se revelou preencher tal espaço. Ademais, abordamos os aspectos que nos
pareceram mais relevantes para o estudo das idéias aqui desenvolvidas, como a
metodologia, racionalidade e a sistematicidade.

Em seguida, analisamos a infindável polêmica entre o jusnaturalismo e o


juspositivismo. A partir deste gancho, estudamos as diversas escolas de pensamento à luz
dos critérios adotados ordinariamente pela jurisprudência (Ciência do Direito) alemã. A
inseparabilidade entre Estado e Direito nos levou a dedicar àquele todo um item, onde
esclarecemos questões importantes de dogmática jurídica. Desse ponto, comum a todas as
vertentes positivistas, passamos a estudá-las em separado, mostrando as peculiaridades
existentes entre as mesmas.

Desse ponto em diante, nos dedicamos tão somente ao normativismo, abordando


apenas os aspectos que guardassem relação com a problemática da interpretação jurídica.
Assim, foi necessário um detido estudo acerca do fundamento de validade do ordenamento
jurídico bem como da construção escalonada da ordem jurídica. Em breves linhas,
expusemos as principais contribuições de tal doutrina, bem como as principais críticas
formuladas, que esperamos ter feito as devidas ponderações.

No último capítulo que antecede esta conclusão, retomamos o tema da norma a


partir dos ensinamentos kelsenianos, isto é, numa teórica que a concebe como um esquema
de interpretação, muito mais complexo do que ordinariamente se supõe. Em seguida,
vimos uma nova classificação doutrinária que biparte as normas em princípios e regras
jurídicas.
97

A necessidade de uma melhor compreensão do fenômeno interpretativo nos levou a


adotar a classificação kelseniana que divide a interpretação em autêntica e não-autêntica.
Por fim, analisamos os diversos processos intelectivos necessários à obtenção do direito
aplicável, onde pudemos notar que existem alguns mais complexos do que outros.

Enfim, com a elaboração destas linhas acreditamos ter conseguido concatenar as


idéias positivistas com a ampliação do conteúdo normativo dos princípios, demonstrando
que, como normas que são, a eles se aplicam os ensinamentos do filósofo Hans Kelsen. O
positivismo, apesar de todos os seus percalços, ainda goza de uma certa primazia nas
sociedades contemporâneas em razão da segurança jurídica, algo tão necessário para que
uma Sociedade se desenvolva nos campos material, científico e espiritual.

Desse modo, a releitura da obra de Kelsen, como pensamos ter relembrado com
este recorte, aguça o espírito para a descoberta de novos horizontes e a redescoberta de
velhos, que são constantemente necessários ao avanço científico e ao contínuo
aperfeiçoamento deste universo chamado Direito, ou mais precisamente, do ordenamento
jurídico.
98

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