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BRUNO DUTRA
NITERÓI
2004
2
BRUNO DUTRA
Niterói
2003
3
BRUNO DUTRA
Aprovada em de 2003.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Pereira de Mello - Orientador
Universidade Federal Fluminense - UFF
___________________________________________________________________
Prof.ª Drª. Maria Arair Pinto Paiva
Universidade Federal Fluminense - UFF
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Nagib Slaibi Filho
Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO
4
AGRADECIMENTOS
Nietzsche
7
SUMÁRIO
1.Introdução.................................................................................................................p. 01
2. O positivismo..........................................................................................................p. 08
a) Panorama...................................................................................................p. 08
b) Noções científicas, epistemológicas e metodológicas do positivismo......p. 13
c) A oposição entre direito natural e direito positivo....................................p. 27
d) A jurisprudência........................................................................................p. 30
e) O estado constitucional contemporâneo....................................................p. 38
f) As correntes ou escolas jurídicas de pensamento positivista....................p. 42
3. O normativismo......................................................................................................p. 54
a) A teoria pura do direito.............................................................................p. 54
b) O fundamento de validade de uma ordem jurídica....................................p. 57
c) A estrutura escalonada da ordem jurídica..................................................p. 60
d) Os desdobramentos e as implicações da doutrina kelseniana....................p. 62
e) As críticas e seu devido equacionamento..................................................p. 65
5. Conclusão................................................................................................................p. 88
6. Referências bibliográficas.......................................................................................p. 90
8
RESUMO
I – INTRODUÇÃO
A primeira é que o debate em torno dos princípios evoluiu muito nos últimos trinta
anos, momento este que coincide com o falecimento de Hans Kelsen (1881-1973),
fundador do normativismo. De fato, os estudos acerca dos princípios resultaram numa nova
dicotomia normativa, que opõe os princípios jurídicos às regras. Ocorre, porém, que as
noções que permeiam o positivismo jurídico não foram sequer utilizadas. Lacuna esta que
se pretende esclarecer neste trabalho.
1
Sobre as críticas ao positivismo, em geral, e ao normativismo, em particular, consulte-se o item e) do
capítulo III.
10
redigidas numa linguagem fluida e com alcance global. A compatibilização destas normas,
imbuídas de valores universais, exigia uma maior dedicação ao tema da hermenêutica.
Não obstante, faz-se necessário aclarar um ponto fundamental, qual seja, a oposição
entre a multiplicidade de decisões judiciais, calcadas em um mesmo Direito, e uma
desejada uniformidade jurídica, proposta por este, para regular a vida social3. De fato, o
resultado da atividade interpretativa desenvolvida pelos órgãos aplicadores do direito não
raro causa indignação, com suas decisões contraditórias. Essa perplexidade deve ser
2
Para este tema remetemos o leitor para o item b) do capítulo IV, inclusive com farta indicação bibliográfica.
3
Esta uniformidade de resolução dos conflitos é decorrente da projeção jurídica do princípio da unidade do
ordenamento jurídico. Assim, Claus-Wilhelm Canaris, in Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na
Ciência do Direito, 2002, p. 14: "Por conseqüência, também a metodologia jurídica parte, nos seus
postulados, da existência fundamental da unidade do Direito". Também Daniel Sarmento, A Ponderação de
Interesses na Constituição Federal, 2000, p. 27, escreve peremptoriamente: "Um dos postulados essenciais
em que se funda o Direito moderno é o da unidade do ordenamento jurídico".
11
4
Para maiores considerações sobre este modelo estatal, remetemos o leitor para tópico específico, no item c)
do cap. II.
5
Conforme Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 16.
6
Como as Constituições Mexicana e a de Weimar (1919).
7
Retornaremos a este ponto ao longo deste estudo, especialmente no cap. IV. Por ora, podemos citar, como
partidários desta nova dicotomia classificatória, no Brasil, Luis Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação
da Constituição, 1996; Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 1997; Daniel
Sarmento, A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, 2000; no exterior, Ronald Dworkin,
Levando os Direitos a Sério, 2002; Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema
na Ciência do Direito, 2002; Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 1989; Robert Alexy, Teoria
da Argumentação Jurídica, 2001.
12
norma individual8 chamada sentença a partir de normas gerais e abstratas através de uma
atividade intelectiva (interpretação) que, embora possuindo diversas soluções possíveis,
apresenta uma única solução. Não bastasse a possibilidade de uma multiplicidade de
decisões, também a adoção de diversos métodos, conquanto seja extremamente fecunda
para a consecução de uma decisão satisfatória, revelou-se ser uma dificuldade a mais para
equacionar a relação caso controvertido / decisão judicial.
Os subsídios para esta empreitada foram encontrados na obra de Kelsen que, após
ter tido um contato mais intenso com os realistas norte-americanos 9, passou a se dedicar à
problemática de um modo mais sistemático, inserindo-a no contexto da sua Teoria Pura do
Direito. Embora esta noção seja bem desenvolvida na obra do autor austríaco,
especialmente quando associada à, também inovadora, noção de norma10, os ecos do
holocausto ainda impediam uma maior aproximação do normativismo com os problemas
jurídicos.
A razão da escolha ter recaído sobre autor do passado reside no fato de que o
problema da interpretação sempre se revelou essencial para a compreensão do Direito. Por
outro lado, a importância de Kelsen para a compreensão do fenômeno hermenêutico não
pode ser ignorada, especialmente dentro de uma concepção jurídica que se estruturou sob
ideais positivistas e absorveu outros conteúdos que lhe eram, até então, estranhos. Ou seja,
após a Segunda Guerra Mundial, os textos constitucionais de diversos países11, na esteira
do precedente da Declaração Universal dos Direitos do Homem, se esforçaram para
incorporar princípios e valores, numa tentativa de impedir o ressurgimento de novas
barbáries. Ora, com esta sistemática houve uma ampliação do campo material do Direito
positivo. Não por acaso, essa dinâmica é exatamente idêntica à proposta kelseniana
segundo a qual qualquer conteúdo enunciativo pode ser direito12.
8
Conforme Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 269: “O ato através do qual é posta a norma
individual da decisão judicial é – como já foi notado – quase sempre predeterminado por normas gerais
tanto do direito formal como do direito material”.
9
Sobre a vertente americana do realismo, consulte-se o item f) do Capítulo II, onde resumidamente relatamos
as principais idéias de diversas correntes doutrinárias.
10
O filósofo austríaco propôs que a norma fosse estudada como um esquema de interpretação na medida em
que o significado de seu conteúdo deveria necessariamente ser fixado para ser aplicado ao caso concreto.
11
Para ficarmos nos exemplos mais conhecidos, temos Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Espanha,
Portugal e Brasil.
12
Conforme Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 221: “Por isso, todo e qualquer conteúdo pode
ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de
ser conteúdo de uma norma jurídica”.
14
13
Remete- se o leitor, nesta oportunidade, para o item d) do capítulo III, onde uma síntese foi por nós
redigida.
14
Conforme denominação Michel Troper, Le Positivisme Juridique, LGDJ, pg. 56. A doutrina kelseniana
encontra seu grau máximo de sistematização na Teoria Pura do Direito, obra-referência do jurista e filósofo
austríaco Hans Kelsen, indispensável para a elaboração deste trabalho.
15
Não estamos querendo dizer, com isso, que um sistema normativo apenas é composto de normas desta
categoria, mas tão somente que elas gozam de uma primazia em relação àqueloutras normas individuais.
Como veremos no desenvolvimento do cap. IV, para Kelsen, as sentenças são igualmente normas jurídicas.
15
Por fim, antes da conclusão deste trabalho, dedicaremos todo um capítulo à questão
da interpretação e do uso dos princípios jurídicos. Este fenômeno é tratado em uma das
obras de Hans Kelsen, razão pela qual nosso interesse em revisitar algumas linhas desta
figura paradigmática16, ímpar para o estudo do Direito. Suas idéias revolucionárias
romperam com as idéias da, então dominante, teoria tradicional da interpretação que,
amparada na doutrina do Direito Natural, preconizava uma única solução “justa”,
“correta”, “acertada” para um determinado caso judicial17. Dentre os aspectos a serem
estudados, elencamos a questão da norma como um esquema de interpretação, as
categorias normativas, o processo de aplicação do direito e a classificação kelseniana da
interpretação.
Assim, é com especial satisfação que realizamos este trabalho cujo tema foi
recorrentemente abordado ao longo das aulas ministradas neste curso de pós-graduação.
Todavia, como não poderia deixar de ser, a vastidão do tema tratado no decorrer do curso
permite sejam expendidos mais alguns esclarecimentos, formulando idéias e conclusões
através dos ensinamentos kelsenianos. Embora o positivismo e mais especificadamente, o
normativismo, não tenham sido especificamente enfocados durante o curso, o pensamento
do autor austríaco pode e deve ser utilizado como subsídio para esclarecimento deste
intrigante fenômeno chamado interpretação, pelas razões já expostas.
16
José Florentino Duarte, tradutor da obra póstuma de Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, 1986, p. XII,
assim se manifestou sobre a importância do escritor austríaco: “Em verdade, Hans Kelsen fez uma
verdadeira revolução no vastíssimo campo do Direito, contrariando os pontos de vistas dos tradicionários
da Teoria e da praxis do versar jurídico ao tempo corrente. Assim, a posição científica kelseniana é um
legítimo divisor do pensamento jurídico universal: o que existe hoje em Teoria do Direito situa-se antes e
depois de Kelsen”.
17
Esta doutrina, como veremos, pressupõe que o Direito seja algo inerente e inalienável de todo ser humano.
Ora, para eles a ordem jurídica só encontra respaldo (validade) na medida em que se apresenta consentânea
com estes ditames fundamentais, proposições estas que se situam num plano de Justiça ideal. Logo, ao se
deparar com uma sistuação que reclame a atuação da lei, deve o julgador aplicar estes princípios justos, que
conduzem necessariamente a uma única solução (justa) já que é logicamente impossível que duas soluções
aplicadas a casos idênticos possam ser igualmente justas.
16
II – O POSITIVISMO
a) Panorama:
20
As cinco teses são as seguintes: a) as leis são comandos que emanam de seres humanos; b) não existe uma
necessária relação entre o Direito e a Moral, ou entre o Direito como ele é e o Direito que deveria ser; c) a
análise (ou estudo da significação) dos conceitos jurídicos (i) vale a pena ser feita e (ii) deve ser distinguida
dos estudos históricos das causas e das origens das leis, dos estudos sociológicos das relações entre o Direito
e os outros fenômenos sociais e de toda crítica ou aprovação do Direito, seja pela Moral, por adequação aos
fins sociais, em razão de uma “função” desempenhada ou por qualquer outra forma; d) o sistema jurídico é
um ‘sistema lógico fechado’, no qual as decisões jurídicas corretas podem ser deduzidas, por meios lógicos,
de regras jurídicas predeterminadas, sem nenhuma referência aos fins sociais, políticos ou a standards
morais; e) os julgamentos morais não podem ser estabelecidos ou defendidos, ao contrário dos julgamentos
de fatos, por meio de argumentos racionais ou de provas (apud Michel Troper, ob. cit., p. 26).
18
positivista. Todavia, como bem adverte Michel Troper, nenhuma das teorias positivistas
conhecidas satisfaz a todos eles simultaneamente21. Assim, para os objetivos deste estudo,
preferimos seguir a orientação traçada por Troper, com a fixação de critério único que,
embora vago, seja capaz de aglutinar essas doutrinas ligadas por um ou mais pontos em
comum22, preenchendo de conteúdo o vocábulo positivismo. Doravante, serão consideradas
positivistas as escolas de pensamento que considerem o Direito como produto decorrente
da criação humana, isto é, o homem como o verdadeiro autor do Direito23. Oito dessas
doutrinas serão apreciadas nesta oportunidade, além de todo um capítulo que será dedicado
ao normativismo. A abordagem se dará seguindo-se a ordem de surgimento histórico-
temporal de cada uma delas24.
21
Assim, se manifestou o autor francês: “Cette démarche présente un inconvénient, en dehors du fait qu’on
ne troverait aucun théoricien du droit qui adhèrerait à toutes ces thèses et même qu’on aurait du mal à
trouver un seul théoricien qui adhère pleinement à la thèse (4):” (Troper, ob. cit., p. 26). A tese 4 é a que
admite o direito como um ‘sistema lógico fechado’; ver, para tanto, as considerações constantes do tópico
sistema.
22
Troper, ob. cit., p. 27.
23
Quanto à explicitação do critério, assim se manifestou o francês: “nous n’avons analysé que des courants
qui considèrent le droit comme étant le fruit de la création humaine, (...)”. Mais adiante conclui: “Cette
optique est solidaire de notre conviction initiale que le positivisme juridique est une démarche qui considère
l´homme comme le véritable auter du droit”. (grifo do original). Troper, ob. cit., p. 33/34.
24
Conforme Troper, ob. cit., p. 34.
25
Para maiores considerações sobre o método positivista, ver tópico próprio no item seguinte.
19
Assim, por exemplo, a concepção do Direito como ciência faz com que a
interpretação também adquira contornos científicos. Isto significa que o fenômeno
hermenêutico ganha contornos mais rígidos, que tendem a limitar a arbitrariedade e a
subjetividade do julgador na pesquisa da decisão mais satisfatória, seja ela a mais justa,
correta, útil ou adequada. Por outro lado, as demais categorias não-científicas, como a
divindade, a arte e a técnica, concebem o direito ora como algo inatingível nos limites
deste mundo, ora com um grau de subjetivação incompatível com o moderno postulado da
segurança jurídica, ora como algo irracional, assistemático, imprevisível e, portanto,
inapreensível.
relação de subordinação entre a sentença judicial e a legislação. Por outras palavras, as leis
não são vinculativas para os juízes, mas meras formulações abstratas.
Ou seja, em linhas gerais, a tópica recusa a noção de norma, isto é, não reconhece
nesta um parâmetro de validade para a aplicação do Direito, atribuindo-lhe um caráter
simplesmente indicativo / não-vinculativo. Adotando-se, por conseguinte, a postura tópica,
o arbítrio do julgador é que decidirá qual das soluções apresentadas deve prevalecer no
caso concreto. Modernamente, no entanto, a submissão à lei de todos os partícipes do
processo social, especialmente daqueles que atuam por delegação estatal, ou que se
utilizam do poder estatal no exercício de suas funções, é uma conquista de segurança
jurídica que não admite exceções. O positivismo, ao contrário, se calca na noção
fundamental de norma jurídica, que é claramente reconhecível no Direito estatal.
21
Ciência. De imediato, cabe assentar, como premissa, que o Direito é uma ciência 26.
Embora tal afirmação pareça óbvia, nem sempre houve consenso sobre tal aspecto. De fato,
ao longo do tempo o Direito foi sucessivamente posto, inserido em categorias não-
científicas27. Para confirmarmos o enquadramento do Direito dentre os ramos científicos do
conhecimento humano, faz-se necessário saber se ele apresenta elementos comuns às
demais Ciências e se goza de uma autonomia em relação a elas. Assim, quando se indaga
se o Direito é uma ciência quer-se saber duas coisas bem distintas: 1) se o Direito pode ser
classificado como uma ciência; 2) se o Direito é uma ciência dotada de autonomia, isto é,
diferente das demais ciências. Assim, surge a necessidade de bem esclarecermos o sentido
do vocábulo ciência:
“Conhecimento que, em constante interrogação de seu método,
suas origens e seus fins, procura obedecer a princípios válidos e
rigorosos, almejando especialmente coerência interna e
sistematicidade; na metafísica grega ou no hegelianismo moderno,
conhecimento filosófico racional, absoluto e sistemático a respeito
da essência do real, culminância de todos os saberes particulares
e específicos; cada um dos inúmeros ramos particulares e
específicos do conhecimento, caracterizados por sua natureza
empírica, lógica e sistemática, baseada em provas, princípios,
argumentações e demonstrações que garantam ou legitimem a sua
validade”28.
26
Nesse sentido, se manifestam, já nos títulos de suas respectivas obras (Metodologia da Ciência do Direito e
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito), Karl Larenz e Claus-Wilhelm
Canaris. Desse último, extrai-se a seguinte passagem: " Isso resulta, desde logo, de se considerar o Direito
como Ciência; pois como diz Coing: 'Em última análise, o sistema jurídico é a tentativa de reconduzir o
conjunto da justiça, com referência a uma determinada de vida social, a uma soma de princípios racionais.
A hipótese fundamental de toda a Ciência é a de que uma estrutura racional, acessível ao pensamento,
domine o mundo material e espiritual' ".
27
Assim, em nossas pesquisas pudemos notar que o Direito fora enquadrado em, pelo menos, quatro
categorias não-científicas distintas, das quais deve ser afastado. São elas: a) o divino; b) a história; c) a arte;
d) a técnica.
28
Dicionário HOUAISS de Língua Portuguesa, 1ª edição, 2001, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, p. 715. As
três acepções acima enunciadas se referem ao seu uso no campo da filosofia.
22
Por outro lado, a interpretação calcada no positivismo também deverá obedecer aos
postulados anteriormente mencionados, ou seja, esta tríplice caracterização de ciência atua
como condicionante do processo hermenêutico que será desenvolvido a partir dos
postulados normativos. Isto significa que o desenvolvimento da atividade interpretativa
deverá ser obtido segundo parâmetros metodológicos racionais e sistemáticos. O mesmo
ocorre com o aproveitamento dos princípios jurídicos, que deverá se pautar pelos mesmos
critérios. Sem isso, o discurso jurídico se torna a-científico. Retornaremos a este ponto
mais adiante. Por ora, é suficiente ter-se uma idéia do seja ciência: é um conjunto de
enunciados29 que permite, de modo lógico e racional, estudar e compreender um
determinado fenômeno ou objeto.
Nota-se que toda ciência requer uma epistemologia como parâmetro elucidativo do
conhecimento, mas aquela não se esgota nesta. De fato, toda ciência recai sobre um dado
objeto. Este pode ser conceituado como todo e qualquer fenômeno apreensível pelos
sentidos humanos que, sendo suscetível de ser estudado objetivamente30 e por ter, de
acordo com a concepção benthamiana, uma utilidade ao ser humano, merece uma análise
rigorosa31. Nesse sentido, ciência é a soma de uma epistemologia com um objeto de estudo.
29
O uso do termo enunciado não é fruto de nossa idéia nem é aleatório; foi colhido em Luís Alberto Warat,
O Direito e sua Linguagem, 2ª versão, 2ª edição, 1995, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, p. 52,
nota 26, que sobre o tema assim se manifestou, in verbis: “O enunciado,(...), é a oração dotada de sentido
em alguma linguagem”. Enunciados são instrumentos ou artifícios teóricos utilizados pelos cientistas para
melhor compreender os fenômenos mundanos. Eles constituem um gênero cujas espécies podem ser
agrupadas em: a) teorias (v.g. Hipótese Gaia, segundo a qual o próprio planeta auto-regula as condições
favoráveis e desfavoráveis à existência da vida); b) teoremas (como o de Pitágoras, segundo o qual a soma
dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa); c) proposições (v.g. Leis de Lavoisier; uma
delas diz que na natureza nada se perde nada se cria, tudo se transforma); d) concepções; etc. A grande
característica dos enunciados é o fato de sua aceitação ser fruto do consenso da comunidade científica.
30
De fato, a objetividade é um imperativo lógico para qualquer processo explicativo que deseje receber o
rótulo científico. Assim, qualquer inclinação subjetivista deve ser afastada.
31
Quanto ao rigor que impregna o saber científico, manifestou-se Kelsen quando discorre, logo no início da
obra que o consagrou, sobre o princípio metodológico fundamental de sua Teoria Pura do Direito.
23
Diante dessa síntese, temos que a autonomia de uma ciência em relação às demais –
sua especificidade, portanto - é conseguida quando seu campo de estudo se diferencia do
das outras ciências, não em virtude de sua epistemologia, que pode ser comum a várias
ciências, mas em razão do seu objeto, que deve ser próprio, peculiar, único, diferente. Esta
questão será retomada no próximo tópico já que a diferenciação entre o objeto da ciência
do direito (as normas jurídicas) e os das demais ciências é que permitirá delimitar o suporte
sobre o qual será desenvolvida a atividade hermenêutica, bem como a extensão do uso dos
princípios jurídicos.
Com o divino ele não se confunde, pois o crescente processo de racionalização nos
faz crer “que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que
interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por
meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo”32. Assim, a doutrina do
teocentrismo jurídico ou do voluntarismo teocêntrico preconizou a subserviência da lei
humana à lei divina. Ora, ao adotar-se tal postulado, teríamos uma confusão conceitual
entre os ensinamentos religiosos e o Direito, que seria tão somente oriundo da revelação de
uma vontade divina preexistente, absoluta e universal. A noção fundamental de que a lei
humana derivava de uma vontade superior – que não mais pode ser aceita – se expressava
em duas principais correntes. Na primeira, Deus era considerado como o único legislador e
se manifestava à Humanidade diretamente, ou através de seus profetas33. Na segunda, Deus
delegava a um representante terráqueo a incumbência de legislar em seu nome e segundo a
Sua vontade34. Assim, nota-se que a referência central deste tipo de concepção é uma
32
WEBER, Max. Ciência e Política – Duas Vocações, pág. 30 - grifos do autor.
33
Esta versão pode, por exemplo, ser encontrada na Bíblia, onde a doutrina católica sustentou que a Lei dos
Homens devia obediência à Lei de Deus, ou no Corão, onde o profeta Maomé teria deixado os ensinamentos
divinos ao alcance de seus seguidores.
34
Esta vertente pode ser vista no Código de Hamurabi. Também nos brocardos The King can do no wrong e
Le Roi ne peut mal faire, muito em voga durante a vigência do Absolutismo, servem de exemplo desta
24
divindade, o que não mais pode ser aceito no mundo moderno. Percebe-se, todavia, uma
clara aproximação desta doutrina teocêntrica com a da doutrina do Direito Natural35 (em
sua acepção clássica) que, com os intensos e revolucionários acontecimentos que se
iniciaram no séc. XVII e se consolidaram no séc. XVIIL capitulou e reconheceu no homem
a medida para compreender a ordem jurídica36. O debate travado entre o jusnaturalismo e o
positivismo será apreciado em momento oportuno já que sua compreensão demanda uma
minuciosa análise de ambas as doutrinas cujas argumentações foram significativamente se
alterando, desde seu surgimento na Grécia Antiga. De fato, a efervescência dos
acontecimentos37 ocorridos no sec. XVIII orientaram a formação de Estados e Sociedades
que demandavam a intervenção do Homem de um modo incompatível com a doutrina
teocêntrico-religiosa.
Por outro lado, da técnica o Direito também se diferencia, pois esta é a utilização
do conhecimento científico, consolidado em um dado momento, para solucionar um caso
concreto. De fato, este assunto é bem conhecido a partir da crítica levantada pela tópica,
técnica de resolução de conflitos, que embora bastante antiga, foi ressuscitada, em 1953,
por Theodor Viehweg38. Esta doutrina se negava a aceitar o caráter sistemático do Direito,
numa recusa que o afastava de sua classificação científica39. Assim, coube ao alemão,
retomando o tema dos topoi, sustentar que o Direito permaneceria como uma técnica de
resolução de problemas, não se apresentando como um sistema40.
versão.
35
Conforme Troper, ob. cit., p. 34. Aliás, na elaboração deste parágrafo foram encontrados fartos subsídios
na obra deste autor.
36
Conforme Simone Goyard-Fabre, ob. cit., p. 50 que assim se manifestou sobre o filósofo de Malmesbury:
“O convencionalismo jurídico de Hobbes é inimigo mortal do direito natural clássico”.
37
Uma rápida retrospectiva histórica destes acontecimentos pode ser vista no item e) deste capítulo, que trata
da formação do estado Constitucional Contemporâneo.
38
A obra clássica do autor alemão foi traduzida para o vernáculo, em 1979, por Tércio Sampaio Ferraz Jr. e
recebeu o expressivo título de Tópica e Jurisprudência, sendo editada pelo Departamento de Imprensa
Nacional (Brasília).
39
Segundo Claus-Wilhelm Canaris, ob; cit., pp. 243/244: “No seu escrito ‘Topik und Jurisprudenz’, Theodor
Viehweg apresentou a tese de que a estrutura da Ciência do Direito não poderia ser captada com o auxílio
do pensamento sistemático, mas apenas com base na doutrina da tópica”.
40
Como já vimos, en passant, a sistematicidade é um dos requisitos de qualquer ciência. A este tema será
dedicado todo um tópico.
25
Esta tese é, hoje em dia, minoritária porque a argumentação tópica somente se opõe
a dois peculiares tipos de sistema: a) o axiomático-dedutivo41; b) o fechado42.Contudo, tais
modelos de sistema jurídico não são defendidos por mais ninguém há muito tempo43. Um
outro argumento, porém, nos parece igualmente convincente no sentido do equívoco
propalado pela tópica. Estamos nos referindo ao caráter não obrigatório do Direito, ou seja,
para esta doutrina a lei ‘ofereceria’ uma solução para o caso concreto, solução esta que
poderia ser afastada se o ‘senso comum’ fosse dissonante44. Isto representaria um aumento
brutal de arbitrariedade (discricionariedade) do julgador, que teria poder para decidir qual
das soluções se apresenta como a mais adequada. Portanto, a explicação tópica proposta
por Viehweg é insuficiente para caracterizar o Direito como uma técnica.
Com a arte, a ciência também não se confunde porque esta é uma aplicação
subjetiva de um conjunto de meios e procedimentos para a obtenção de finalidades práticas
ou para a produção de objetos, segundo o aristotelismo; ou, a habilidade ou disposição
dirigida para a execução de uma finalidade prática ou teórica, segundo o platonismo. Nota-
se que o campo de atuação artístico, além de não preencher o imperativo da objetividade, é
mais restrito que o científico, pois não se propõe a estudar uma série de aspectos, como a
sistematicidade, a metodologia e a epistemologia do seu objeto. De fato, a ciência se
preocupa com a explicação, a compreensão e a significação objetiva do fato ou fenômeno
jurídico. Assim, alguns jusnaturalistas reconhecem no primeiro caracteres artísticos45.
Também parte da doutrina alemã, negando o caráter científico da jurisprudência46, a
concebe ora como arte, ora como técnica47.
41
Assim, se manifestou Antônio Menezes Cordeiro, na introdução à edição brasileira da obra de Canaris
(citada): “A pretexto de adesões tópicas, redobrou-se na crítica ao pensamento sistemático, sem atentar no
facto de os argumentos de VIEHWEG – conhecidos, aliás, há muito – atingirem, tão só, um certo tipo de
sistema: o axiomático-dedutivo” (p. XLVIII).
42
De fato, a argumentação tópica, se valendo da concepção hartmanniana, que diferencia entre os modos de
pensar aporético e sistemático, rebate de modo satisfatório este tipo de sistema jurídico. Ocorre, porém, que a
aporia, para Nicolai Hartmann, não se desvincula da noção de sistema. Assim, se manifestou Canaris, ob. cit.,
p. 248: “O pensamento aporético não conduz assim, de modo algum, necessariamente à tópica mas sim,
apenas, à ‘abertura’ do sistema”.
43
No caso do sistema axiomático-dedutivo, a crítica de Diederichsen foi implacável (Canaris, ob. cit., p. 7), e
com relação ao sistema fechado, foi o próprio Canaris quem exemplarmente o criticou, à p. 247 de sua obra.
44
Canaris, ob. cit., p. 253.
45
Troper, ob. cit., p. 20: “Cette distinction est refusée par certains jusnaturalistes, qui estiment qu’il s’agit
simplement de deux dimensions du même art juridique, mais elle est acceptée par d’autres” (grifo nosso).
46
Na filosofia tradicional alemã, o termo jurisprudência é equiparável a Ciência do Direito.
47
Conforme Canaris, ob. cit., p. 15/16: “(...); assim, os adversários do pensamento sistemático, em parte na
seqüência desse seu princípio básico, têm negado o caráter científico da jurisprudência, reconhecendo-lhe
apenas a categoria de uma espécie de ‘arte ou de técnica’ ”.
26
Também não se pode confundir ciência com história haja vista que esta faz uma
análise regressiva (sobre fatos pretéritos, já ocorridos e imodificáveis) enquanto a ciência
faz uma análise prospectiva, sobre as conseqüências, efeitos e / ou desdobramentos
fenomênicos decorrentes de tal ou qual fato. No caso do Direito, torna-se evidente que,
pelo menos nas democracias ocidentais, a adoção do princípio da segurança jurídica, em
maior ou menor grau, confere à ordem jurídica um caráter normativo principalmente ex
nunc48. Por outro lado, a história somente surge com a documentação de fatos já ocorridos
e, portanto, imodificáveis, permitindo tão somente uma análise retrospectiva. A idéia de se
conceber o Direito como um processo histórico ou algo equivalente já teve (tem ainda)
alguns adeptos. Assim, os originalistas americanos49 adotam a tese central de que, para se
perquirir o verdadeiro sentido das expressões utilizadas na Constituição Americana, deve-
se buscar a vontade inicial dos fundadores dos Estados Unidos da América. Também
Savigny, com seu historicismo, procurou colocar o Direito ao abrigo de iniciativas
arbitrárias dos legisladores, sendo aquele considerado como o ‘espírito do povo’ 50. Isto sem
falar em Karl Marx que, com o seu materialismo histórico, reconheceu no Direito uma
superestrutura de dominação de classes, podendo este ser considerado uma técnica ou a
própria história (registrada) da dominação. Embora pesquisas históricas possam auxiliar na
compreensão dos fenômenos jurídico-normativos, elas apresentam a já citada limitação
temporal, ou seja, a inovação da ordem jurídica exige uma conformação futura entre a
conduta humana e a prescrição normativa de modo que não existe nenhuma relação entre o
que foi (passado) e o que deve vir a ser (futuro).
seu objeto de estudo. Embora o vocábulo norma tenha um sentido todo especial para o
positivismo, e fundamental para o normativismo, pensamos ser de bom alvitre expormos os
variados significados que, ao longo do tempo, a filosofia do Direito lhe reservou.
Pois bem. Dentro da Teoria Geral do Direito, o vocábulo norma51 adquire diversas
acepções: a) preceito de direito; b) padrão de comportamento; c) fórmula abstrata do que
deve ser; d) modelo; e) ação que se dirige a fim previsto. Nenhum destes significados
satisfaz plenamente ao conceito jurídico de norma proposto por Kelsen, mas servem como
indicativo para se compreender o que o termo significa, apartando-o de outros objetos
pesquisados pelas suas respectivas ciências52.
Assim, de plano, cabe afirmar que o Direito54, como sinônimo de ciência jurídica, é
um ramo que pertence ao grupo das ciências sociais, ou seja, se situa dentre aquelas que
visam compreender a conduta recíproca dos homens55. Este grupo se diferencia do das
chamadas ciências naturais56 (como a Química, a Física e a Biologia) porque, nestas, os
eventos e fenômenos estudados independem de qualquer interferência do Homem, ou seja,
51
Ver DINIZ, Maria Helena, in Vocabulário Jurídico, vol. 3, 1998, editora Saraiva, pg. 366.
52
A este ponto retornaremos no item a) do capítulo IV.
53
Nesse sentido, Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, 1986, p. 1: “Mandamento não é, todavia, a única
função de uma norma. Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas”.
54
Na filosofia germânica, como já dito, a ciência jurídica recebe usualmente a denominação jurisprudência,
que possui significado diverso no Brasil e em outros países que adotaram o sistema do roman law. Por isso,
preferimos utilizar o vocábulo direito ora como indicativo do objeto, ora como designativo da ciência.
55
Kelsen, ob. cit., p. 95. Sobre a dicotomia entre estes dois grupos de ciências, assim se manifestou o autor,
nas páginas 84/85: “Somente por esta via se alcança um critério seguro que nos permitirá distinguir
univocamente a sociedade da natureza e a ciência social da ciência natural” (grifos nossos).
56
Observe-se, porém, que, para o autor austríaco, a distinção entre ciência natural e ciência social é, além de
arbitrária, inútil, pois não serve de critério apto a classificar de modo satisfatório os diversos ramos
científicos existentes. De fato, o princípio da causalidade é insuficiente para explicar porque a conduta
humana não pode ser objeto de estudo científico com base numa relação de causa e efeito. Pede-se vênia para
transcrever elucidativa passagem da obra do autor: “Mas não há uma razão suficiente para não conceber a
conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da
causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito. (...) Na medida
em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a
conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, tal ciência social não pode ser
essencialmente distinta das ciências naturais” (Kelsen, ob. cit., p. 85). Mais adiante, na p. 96, conclui: “A
distinção que, sob este aspecto, existe entre as mencionadas ciências sociais e as ciências naturais é, em
todo o caso, uma distinção apenas de grau e não de princípio”.
28
eles existem por si só. Isto significa dizer que nessas ciências vige o chamado princípio da
causalidade, que estabelece entre os seus diversos elementos uma relação de causa e
efeito57. Ora, segundo Kelsen, a conduta jurídica do homem só pode ser explicada por um
outro princípio que, não obedecendo à lógica da causa e efeito, possui um caráter muito
mais convencional58, incompatível com os imperativos das ciências naturais59.
Por outro lado, uma outra classificação60 diferencia as ciências normativas61 das
causais62 em razão do princípio da imputação63, que estabelece uma relação entre dois
elementos segundo a vontade humana64. Ou seja, ao invés de uma relação do tipo causa /
efeito, temos uma do tipo pressuposto / conseqüência65. Como já visto acima, algum
aspecto da natureza, ou mesmo da conduta humana, é o objeto a ser estudado, sendo certo
que o princípio da imputação lhes é estranho. É o caso da Psicologia, da Sociologia, da
57
Sobre esse ponto assim se manifestou Kelsen: “A natureza é, (...), uma determinada ordem das coisas ou
um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, portanto segundo
um princípio que designamos por causalidade. As chamadas leis naturais, com as quais a ciência descreve
este objeto – como, v. g., esta proposição: quando um metal é aquecido, ele dilata-se – são aplicações desse
princípio. A relação que intercede entre o calor e a dilatação é a de causa e efeito” (Kelsen, ob. cit., p. 85).
58
Desde Hobbes, nota-se o caráter convencional do Estado, a maior estrutural social, onde os Homens em sua
busca por segurança se unem para criar o Estado-Leviatã, cuja função é assegurar a harmonia social.
59
Kelsen, ob. cit., p. 85: “Se há uma ciência social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever o
seu objeto segundo um princípio diferente do da causalidade”.
60
A insuficiência da classificação anterior levou Kelsen a utilizar um novo critério, um novo princípio que
servisse de parâmetro elucidativo da peculiaridade do direito dentre as demais ciências. E ele fê-lo com a
adoção do princípio da imputação; ver nota 39 adiante.
61
Chama-se normativa a ciência (social) que, adotando o princípio da imputação, estuda a conduta recíproca
dos homens que deve ser externada em conformidade com normas sociais, ou seja, normas positivas e
reconhecíveis pela sociedade. Assim, por exemplo, o Direito e a Ética são ciências normativas.
62
Toda a ciência natural é uma ciência causal. Embora teoricamente a utilização de critérios distintos para a
elaboração de diferentes classificações pudesse permitir uma combinação de ambas, não existe nenhuma
ciência que, simultaneamente, seja natural e normativa, de modo que somente as ciências sociais podem ser
bipartidas em causais e normativas.
63
Sobre a diferença entre este princípio e o da causalidade, assim se manifestou o autor: “O ser o significado
da cópula ou ligação dos elementos na proposição jurídica diferente do da ligação dos elementos na lei
natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através de uma norma
estabelecida pela autoridade jurídica – através de um ato de vontade, portanto –, enquanto que a ligação de
causa e efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção dessa espécie” (Kelsen,
ob. cit., p. 87).
64
De fato, a lei natural obedece a uma ‘vontade’ independente da humana. Todavia, a cientificidade do
estudo de um objeto deve ser dada segundo critérios de metodologia, racionalidade e sistematicidade,
conforme será visto mais adiante. Por ora, cabe citar a seguinte e esclarecedora passagem: “Esta distinção
(entre o princípio da causalidade e o da imputação – acréscimo nosso) desaparece nos quadros de uma
mundividência metafísico-religiosa. Com efeito, por força dessa mundividência, a ligação de causa e efeito é
produzida pela vontade do divino Criador” (idem, nota anterior).
65
Kelsen, ob. cit., p. 87: “Quando a proposição jurídica é aqui formulada com o sentido de que, sob
determinados pressupostos, deve realizar-se uma determinada conseqüência, isto é, quando a ligação,
produzida por uma norma jurídica, dos fatos estabelecidos como pressposto e conseqüência é expressa na
proposição jurídica pela cópula ‘deve (-ser)’ (Sollen), esta palavra não é empregada no seu sentido usual –
como já notamos acima e deve ser uma vez mais ser bem acentuado” (grifo do original).
29
Etnologia, da Antropologia, dentre outras, que embora sejam sociais se pautam unicamente
pelo princípio da causalidade. Já nas chamadas ciências normativas, a conduta recíproca
dos homens passa a ser enfocada sob a ótica do princípio da imputação. Temos, então, que
os fenômenos estudados por estas duas categorias de ciências (causais e normativas) são
completamente distintos. Com isso, resta claro que o Direito, como ciência (social)
normativa que é, não se confunde com qualquer ciência (social) causal. Podemos concluir,
então, que as chamadas ciências causais – sejam sociais ou naturais – estudam fatos,
fenômenos e acontecimentos que se manifestam no mundo do ser independentemente da
existência humana enquanto que as ciências sociais normativas se ocupam com o mundo
do dever-ser, que é fruto da vontade humana.
Por último, cabe ainda distinguir o objeto do Direito daquele da Ética. De fato, a
Ética também elege as normas positivas66 como seu objeto de estudo. Ocorre, porém, que
este vocábulo possui acepção distinta para ambas as disciplinas científicas. De fato, como
nos diz Kelsen:
“O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral
quando – (...) – se concebe como uma ordem de coação, isto é,
como uma ordem normativa que procura obter uma determinada
conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção
socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social
que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas
sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às
normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela
não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da
força física”67.
66
Kelsen, ob. cit., p. 70: “Neste sentido a Moral é, como o Direito positiva, e só uma Moral positiva tem
interesse para uma Ética científica, tal como apenas o Direito positivo interessa a uma teoria científica do
Direito”.
67
Kelsen, ob. cit., p. 71.
30
68
Ele fê-lo, v. g., na seguinte passagem: “E também a concepção, freqüentemente seguida, de que o Direito
prescreve uma conduta externa e a Moral uma conduta interna não é acertada. As normas das duas ordens
determinam ambas as espécies de conduta” (Kelsen, ob. cit., p. 68.).
69
A este termo, dada sua importância para o positivismo, será dedicado o item e), mais adiante.
70
A metodologia positivista criada por Auguste Comte (1798-1857) foi por este utilizada para ordenar as
ciências experimentais. Posteriormente, sua utilização expandiu-se rumo a outros campos do conhecimento
científico.
71
Segundo Max Weber, dois são os pressupostos básicos de toda e qualquer ciência: a) conceituação; b)
experimentação racional.
72
Conforme Dicionário HOUAISS de Língua Portuguesa, ob. cit., p. 2269.
73
O convencionalismo é a base remota do positivismo, conforme veremos no próximo item.
31
ponto pode ser claramente visualizado quando nos debruçamos sobre as idéias e teorias da
Escola da Exegese, que distingue, por exemplo, a ‘vontade do legislador’ da ‘vontade da
lei’74. De fato, no que se refere à metodologia empregada pelo positivismo, a submissão à
lei se revela da mais alta importância porque este é o parâmetro pelo qual se conhece a
vontade do povo75.
74
Conforme Troper, ob. cit., pp. 39/41.
75
Os textos constitucionais promulgados depois da Tríade Revolucionária contêm dispositivos no sentido de
que o poder emana do povo, que o exerce diretamente (democracia direta) ou por meio de representantes
(democracia indireta).
76
Assim, temos, o aristotelismo, o hegelianismo, o cartesianismo, o heraclitismo e o estoicismo.
77
Sobre tal faculdade, assim se manifestou o autor inglês: “Disse no segundo capítulo que o homem na
verdade supera todos os outros animais nesta faculdade, que quando ele concebe seja o que for é capaz de
inquirir as conseqüências disso e que efeitos pode obter com isso. Agora acrescento este outro grau da
mesma faculdade, que ele sabe com as palavras reduzir as conseqüências que descobre a regras gerais,
chamadas teoremas ou aforismos, isto é, sabe raciocinar, ou calcular, não apenas com números , mas com
todas as outras coisas que se possam adicionar ou subtrair umas às outras” (Thomas Hobbes, Leviatã,
editora Martin Claret, São Paulo, 2002, p. 41).
78
Sobre a formação do Estado moderno será dedicado todo um item, mais adiante.
32
79
Para este tópico, encontramos fartos subsídios na obra de Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático
e conceito de sistema na ciência do direito, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal,
2002, inclusive com uma panorâmica sobre os diversos tipos de sistema.
80
De fato, a metodologia e a racionalidade não elementos sensíveis, presentes na realidade, mas antes
constituem, respectivamente, uma opção voluntária de comportamento científico e uma qualidade inerente à
espécie humana. Elas não são, por assim dizer, ‘encontráveis’ no objeto a ser estudado, mas no sujeito,
associadas à vocação científica de cada indivíduo.
81
Conforme Canaris, ob. cit., p. 23: “O papel do conceito de sistema é, no entanto, como se volta a frisar, o
de ‘traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica’”.
82
Extensa relação de definições pode ser encontrada em Canaris, ob. cit., às pp. 10/11.
83
Nesse sentido, “Theodor Viehweg apresentou a tese de que a estrutura da Ciência do Direito não poderia
ser captada com o auxílio do pensamento sistemático” (Canaris, ob. cit., p. 243).
84
Como é o caso de Emge ou de Nietzsche, citados por Canaris, ob. cit., p. 5.
33
Por outro lado, quanto às funções jurídicas desempenhadas pelo sistema, devem ser
lembradas as seguintes passagens:
“É pressuposto da praticabilidade do pensamento sistemático na
Ciência do Direito e do desenvolvimento de um conceito de
sistema especificamente jurídico, que o sistema possa cumprir uma
função significativa na Ciência jurídica. Isso depende de as
características do conceito geral de sistema se poderem ordenar
em correspondência com os fenômenos jurídicos”.87
“As características do conceito geral do sistema são a ordem e a
unidade. Eles encontram a sua correspondência jurídica nas idéias
da adequação valorativa e da unidade interior do Direito; (...)”88.
85
Duas outras características foram constatadas pelo citado autor: a plenitude, referida por Stammler, e a
hierarquia, presente em Wilburg. A primeira não pode ser aceita seja porque a plenitude é um grau máximo
(ideal) de ordenação, ou seja, aquela está contida nesta, seja porque no sistema jurídico objetivo sempre há a
possibilidade de ‘abertura’ (ampliação) seja porque entre ambas existe apenas uma diferença de grau e não de
substância. Por outro lado, para o normativismo, a hierarquia emerge como uma noção fundamentalmente
associada à noção de sistema e será estudada no próximo capitulo, embora não seja defendida por muitos
doutrinadores que se debruçaram sobre o estudo do tema.
86
Canaris, ob. cit., pp. 12/13.
87
Idem, p. 279.
88
Idem nota anterior.
34
89
Segundo leciona Gustav Radbruch, Introdução à Ciência do Direito, editora Martins Fontes, São Paulo,
1999, p. 10: “Juntamente com ciência, arte e religião, a moral, direito e o Estado formam a cultura”. A estes
seis elementos, acrescentaríamos a linguagem.
35
Por outro lado, parece que, na sociedade grega, o Direito encontra seu caminho
através da lei escrita. Ora, a escrita é um modo de ‘positivar’ uma norma de conduta
humana desejável. Nesse particular, cabe transcrever elucidativa passagem da obra de
Goyard-Fabre, sobre a importância deste invento:
“Simultaneamente, a invenção da escrita foi um trunfo para a
elaboração e estabilização dessas normas comuns. A escrita, com
regras de contornos mais nítidos que lhe fixavam o conteúdo,
suplantou regras tradicionais e consuetudinárias, imprecisas e
lábeis”92.
Mais adiante, conclui que “para os gregos, a lei sem dúvida se afirmou a princípio
como lei escrita”93. Ainda assim, tanto do ponto de vista axiológico94 como do lingüístico95
parece haver uma impossibilidade ‘lógica’, melhor seria dizer natural, do Direito surgir
90
In Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 7.
91
Idem, p. 3.
92
Idem, p. 8.
93
Idem, p. 9.
94
Conforme Simone Goyard-Fabre, ob. cit., p. 15: “A rigor, a anomia é impossível e o respeito das
convenções e decisões destinadas a regular a vida das Cidades vai ao encontro tanto do interesse comum
como do interesse de cada qual”.
95
Idem nota anterior: “Os ‘nomoi’ são portanto desprovidos de qualquer base axiológica ou ontológica”.
36
96
Conforme Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 5. A autora esclarece,
ainda, que Michel Villey chega mesmo a estabelecer uma oposição entre esta ‘versão’ clássica do conceito do
direito natural e uma outra, que surgiria, com alguma intensidade, já no século XIII, com a obra de Duns
Scot, e, posteriormente, com Guilherme de Occam.
97
Idem, p. 40. A expressão designa o movimento, iniciado no séc. XVI e consolidado nos sécs. XVII e
XVIII, que simplesmente revela a mudança do paradigma divino para o antropocêntrico, na esteira da
filosofia cartesiana do ‘penso, logo existo’.
98
A antropologização ocorre no momento em que se concebe o Direito como um instrumento necessário à
vida social, seja a partir de um ponto de vista individualista (Hobbes, Spinoza e Rousseau), seja de um outro
genuinamente social (Grotius, Pufendorf e Locke).
99
A racionalização do direito surge com a necessidade de se erguer o Estado, constituído por homens
naturais, que passa a ser o ‘único’ legislador mortal (por oposição ao Deus ‘imortal’) para todos.
100
Conforme Simone Goyard-Fabre, idem, p. 41.
101
Idem, p. 43.
37
O positivismo jurídico aparece no séc. XIX como uma resposta a uma oscilante 102
doutrina que, há muito, havia abandonado suas origens103. Nesse contexto, o pressuposto
fundamental do positivismo é ser o Direito uma criação racional do Homem, ou seja, o
direito é um conjunto ordenado de normas criadas como um instrumento para organizar, e
manter organizada, a Sociedade. Com esta premissa, nota-se uma oposição ao jus-
naturalismo, doutrina que preconiza a existência de direitos inerentes ao gênero humano,
ou seja, o simples fato de ser homem determina a existência de certos direitos fundamentais
que devem ser observados pela legislação, pelo Estado e pelos demais Indivíduos. Dentre
os partidários desta doutrina, podemos citar Giorgio del Vecchio, Rudolf Stammler, São
Tomás de Aquino.
102
Conforme Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, p. 71: “É preciso ser menos
taxativo, pois o direito natural da ‘escola do direito da natureza e das gentes’ ficou dividido entre sua
vontade de inovação e sua submissão à continuidade da tradição. Essas cisões permanentes da doutrina
muitas vezes introduziram nela, com a equivocidade de sua postulação, uma indecisão metodológica e uma
incerteza conceitual”.
103
Idem, p. 72: “Nesse contexto filosófico, o novo jusnaturalismo perdeu o sentido do realismo que as
antigas teorias do direito natural extraíam do aristotelismo”.
104
Elucidativa é a seguinte passagem: “Uma doutrina conseqüente do Direito natural distingue-se de uma
teoria jurídica positivista pelo fato de aquela procurar o fundamento da validade do Direito positivo, isto é,
de uma ordem coercitiva globalmente eficaz, num Direito natural diferente do Direito positivo e , portanto,
numa norma ou ordem normativa a que o Direito positivo, quanto ao seu conteúdo, pode corresponder mas
também pode não corresponder; por tal forma que, quando não corresponda a esta norma ou ordem
normativa, deve ser considerado como não válido” (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, 243).
105
Por outro lado, o positivismo jurídico se assenta sobre premissas diferentes: “Toda ordem coercitiva
globalmente eficaz pode ser pensada como ordem normativa objetivamente válida. A nenhuma ordem
jurídica positiva pode recusar-se a validade por causa do conteúdo de suas normas. É este um elemento
essencial do positivismo jurídico” (idem, p. 242). Em outro trecho da citada obra, o autor austríaco afirma:
“Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por
força de seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma normas jurídica. A validade desta não pode
ser negada pelo fato de o seu conteúdo contrariar o de uma outra norma que não pertença à ordem jurídica
cuja norma fundamental é o fundamento de validade da norma em questão” (idem, p. 221)..
38
d) A jurisprudência:
Os alemães, com seu inesgotável gosto pela classificação e seu indiscutível talento
para a análise, possuem uma relação ímpar com a jurisprudência, reconhecendo nesta a
abordagem científica por excelência. De fato, para os povos germânicos existe uma relação
de sinonímia entre o termo Jurisprudência e Ciência do Direito106. Desse modo, as escolas
germânicas de pensamento são nomeadas a partir do critério jurisprudencial predominante
para sua formação e desenvolvimento. Assim, dentro desta ótica, podemos ter tantas
espécies de jurisprudência quanto forem os critérios utilizados.
106
Embora esse sentido também tenha sido registrado no Brasil, a prática jurídica nacional consagrou o uso
do vocábulo no sentido de ser esta um conjunto de decisões judiciais num mesmo sentido.
107
A jurisprudência analítica será estudada no tópico destinado à Teoria Analítica do Direito, no item f),
referente às doutrinas jurídicas, mais adiante.
108
Adotaram esta vertente, autores como Puchta, Brinz, Glück e, também, Windscheid, presidente da
comissão que elaborou o código civil alemão de 1900, expoente máximo desta corrente.
109
Na filosofia alemã, é a escola de pensamento que almejou incorporar o direito romano ao ordenamento
jurídico daquele país, através de uma metodologia sistemática com ênfase num rigoroso processo silogístico
baseado na indução. Nota-se a sua evolução a partir do historicismo savignyano, com a importância atribuída
às fontes e à história do direito romano, compiladas por Justiniano no Corpus Júris.
110
In Teoria Pura do Direito, editora Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 395.
39
111
Apud Canaris, ob. cit., p. XIV.
112
Sobre este tipo de aplicação do direito, consulte-se o item d) do capítulo IV.
113
Conforme Heck, apud Canaris, ob. cit., pp. XIV/XV.
114
Canaris, ob. cit., p. 61.
40
grandemente prejudicada, pois, além do que fora mencionado acerca da jurisprudência dos
interesses, pairaria uma incerteza quanto ao Direito a ser proferido pelos tribunais, na
medida em que a previsibilidade das decisões desapareceria. De fato, ninguém conheceria
– nem mesmo o Tribunal – de antemão quais seriam os critérios aplicáveis porque as
mudanças sociais ocorrem numa velocidade muito superior às transformações legislativas.
De qualquer sorte, sendo o conceito de ‘adequação social’ é eminentemente metajurídico e
não podendo ele ser encontrado a partir do direito objetivamente válido, os limites
estabelecidos pelo sistema jurídico-normativo não mais podem ser invocados para balizar a
atividade jurisdicional, de tal modo que o controle da hermenêutica jurídica escapa à
apreciação da sociedade. Ainda assim, o uso da sociologia é de grande valia para
solucionar aquelas questões que a legislação atribui ao Magistrado a decisão do concreto.
Neste caso, o Juiz pode e deve socorrer-se de ensinamentos sociológicos.
120
Sobre a fase tardia da jurisprudência dos interesses, assim se manifestou o português António Menezes
Cordeiro: “Só bastante mais tarde, num esforço constante, se procedeu a um alargamento paulatino dos
elementos relevantes para o decidir jurídico. Três notas podem, nesse particular, ser salientadas: os apelos
ao racionalismo, à Moral e à Política” (Canaris, ob., cit., p. XXXII).
121
Conforme Larenz, Kronstein, Fikentscher e Westermann, apud Canaris, ob. cit., p. XXXV: “O influxo da
Filosofia dos valores, presente, aliás, no neo-kantismo, permitiu uma transposição: a uma ponderação de
interesses causalmente considerados pelo legislador contrapõe-se um sopesar de valores; a solução final
não poderia, numa clara tradição heckiana, ser o produto de qualificações conceptuais, antes advindo do
peso relativo dos valores subjacentes”.
122
A feliz constatação é de António M. Cordeiro, in Canaris, ob. cit., p. XXXVI: “No fundo, jogou-se uma
reconversão lingüística de grandes dimensões que, à custa da precisão das palavras, intentou compor uma
imagem não positivista de uma jurisprudência envelhecida”.
123
Segundo Bihler, apud Canaris, ob. cit., pp. XXXVI/XXXVII, a valoração é “um processo tendente ao
aparecimento dum sentimento jurídico o qual, por seu turno, traduz um esquema de identificação
espontâneo, num conflito jurídico, com uma das posições em presença”.
124
Conforme Meyer, apud Canaris, ob. cit., p. XXXVII.
42
Por outro lado, o uso dos valores para a solução de controvérsias jurídicas,
inclusive no que se refere à hermenêutica e ao uso de princípios jurídicos, não pode ser
negado, tanto mais que, no mundo moderno, a globalização e a diversidade cultural 125
desembocam constantemente num conflito de valores. De fato, estes estão, direta, indireta,
explícita ou implicitamente, presentes no ordenamento jurídico, sendo certo, todavia, que
no mais das vezes, encontram-se nos textos constitucionais e são, por sua própria natureza,
antagônicos.
Ainda que o modelo kantiano seja considerado inexato, a tese de que o Direito se
confunde com a Moral não pode ser aceita porque isto implicaria em que o conteúdo de
toda e qualquer norma jurídica seria necessariamente uma norma moral. Ora, isto contraria
a realidade atual na qual se nota que o legislador é incapaz de acompanhar, registrar e
disciplinar todas as práticas moralmente aceitas. Por outro lado, o uso do aparato estatal
para fazer valer preceitos éticos não condiz com o atual estágio das Sociedades, sendo
certo que este poder estatal chamado coerção é destinado exclusivamente a assegurar o
cumprimento de normas jurídicas. Um último argumento nos parece, todavia, o mais
convincente. Existem normas jurídicas que não possuem um conteúdo moral. Por exemplo,
o dogma, adotado na maioria das constituições modernas, que estabelece a Separação entre
125
Conforme Radbruch, ob. cit., p. 10.
126
Sobre a falência do paradigma kantiano, assim se manifestou Pohlmann, apud Canaris, ob. cit., p.
XXXVIII: “As regras de conduta – jurídicas ou morais – com os competentes de ‘permitido’, ‘proibido’ ou
‘obrigatório’ são ministradas aos sujeitos sem uma particular diferenciação”. Mais adiante António M.
Cordeiro conclui: “A superação de Kant – e de novo os quadros hegelianos têm aqui um papel – permite
reponderar, agora com o apontado reforço antropológico, novas equações para o problema”.
127
Conforme Sauer, in Canaris, ob. cit., p. XXXVIII.
128
Segundo Fechner, idem.
129
Habermas, idem, p. XXXIX.
130
Nesse sentido, Podlech, Schreiber, Tammelo, Aarnio, idem. Por outro lado merece destaque a posição de
Philipps, in Canaris, ob. cit., p. XXXIX: “ À necessidade de elementos suprapositivos soma-se o realismo no
estabelecer das soluções: estas, fatalmente influenciadas pelos cenários culturais que presidem ao seu
encontrar, apresentam sempre níveis éticos que não devem ser ignorados”.
43
De qualquer sorte, é inegável que a Ética mantém com o Direito sempre uma
estreita ligação131, mas o não se pode admitir é a redução deste àquela. Até onde pode ser
admitida a Ética pelo Direito? Novamente, a norma exsurge como o parâmetro destinado a
demarcar o uso da Moral na solução de conflitos jurídicos.
131
Afinal de contas, ambas são espécies do gênero ciências sociais normativas.
132
Sobre este conceito, remetemos o leitor para o próximo item.
133
Kelsen, ob. cit., pp. 95/100.
134
São partidários da tópica, dentre outros: Theodor Viehweg, Coing, Würtenberger, Bäumlin, Arndt, P.
Schneider, Ehmke, Wieacker; E. Schneider, Horn, todos citados por Canaris, ob. cit., p.244, cuja obra serviu
de guia para elaboração da apreciação crítica deste tópico, especialmente o capítulo 7, pp.243/277.
135
Sobre o conceito de problema, concordam tanto Viehweg quanto Canaris. Para aquele, o problema é cada
questão que, aparentemente, permita mais de uma resposta, enquanto que para este, o problema surge como
uma questão cuja resposta não é, de antemão, clara (Canaris, ob. cit., p. 246).
136
Nesse sentido Flume, citado Canaris, ob. cit., p. 246.
44
em 1953, retomar a noção grega dos topoi137, presente já em Aristóteles, num novo
contexto, proposto por Hartmann. Desse autor, Viehweg adotou a distinção entre os modos
de pensar ‘aporético’ e ‘sistemático’. Todavia, a associação entre o pensamento aporético e
a tópica não resultou de modo algum em uma definição satisfatória 138. Ademais, como
asseverado por Kriele, citado por Canaris, “o pensamento aporético não conduz assim, de
modo algum, necessariamente à tópica mas sim, apenas, à ‘abertura’ do sistema”139.
Apesar de todas as dificuldades acima elencadas, o conceito da tópica foi fixado por
Viehweg como a técnica do pensamento problemático140.
137
De difícil conceituação, encontramos uma síntese deveras bem formulada por Daniel Sarmento, A
Ponderação de Interesses na Constituição Federal, editora Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2000, p. 129: “Os
topoi configuram lugares comunsna argumentação discursiva, que não vinculam o juiz, mas apenas
apresentam-lhe alternativas possíveis para a solução de determinado problema. São, em suma, diretrizes
retóricas que reveladas pela experiência, que objetivam servir de fio condutor para a descoberta de uma
resposta razoável para o caso concreto”.
138
Conforme Canaris, ob. cit., pp. 248/249.
139
Idem nota anterior.
140
Em momento posterior (1968), o próprio Viehweg teria admitido que sua crítica se limitaria aos sistemas
dedutivos e que não haveria nenhuma oposição fundamental entre o pensamento tópico e o sistemático,
ocasião em que cunhou a expressão ‘sistema tópico’, no que recebeu severa crítica de Canaris, ob. cit.,
pp.243/244.
141
Remetemos o leitor para o tópico ‘ciência’, onde afastamos o direito da categoria ‘técnica’ e fizemos
especial menção à tópica
142
Sobre este contato, assim se manifestou Canaris, ob. cit., pp. 253/254: “(...); até agora, ficou
propositadamente de fora uma característica essencial: ‘a relação da tópica com a retórica’. Num prisma
histórico, tal relação fica-lhe de antemão imanente e joga, de Aristóteles, através a Cícero e até Vico um
papel considerável”.
143
Nesse sentido Canaris, ob. cit. p. 258: “ Só a partir de agora se levanta a questão decisiva de porque
devem ser competentes os ‘pontos de vista’ casualmente captados e qual de estes tópicos, com freqüência
contraditórios entre si, recebe a primazia perante os restantes”. Mais, adiante, à p. 259, concluir que “um
tópico é portanto, apenas e sempre uma ‘proposta’ de decisão e, assim, ele precisa de um critério
complementar ‘para proporcionar a sua adstringibilidade e para possibilitar a escolha entre os diversos
pontos de vista, consoante as circunstâncias, para a solução de um determinado problema”.
144
Ver Canaris, p. 277.
45
Por outro lado, a afirmação de que a legitimação das premissas tópicas ocorre
apenas com o ‘aplauso da multidão’145, segundo um sensus communis146 ou ‘através da
aceitação do parceiro na conversa’147, “pode, na verdade, ajustar-se a determinadas
formas de discussão, mas é, dentro da Ciência do Direito, puramente inaceitável: as
premissas são fundamentalmente determinadas para os juristas através do Direito
objectivo, em especial através da lei e não são susceptíveis de uma ‘legitimação’ por via
do parceiro na conversa (qual?!), nem disso carecem”148.
Conclui-se, assim, com Canaris que “torna-se, com isso, claro que a tópica
desconhece, no fundamental, a essência da Ciência do Direito. Pois não se determina qual
seja o Direito vigente ou qual o ponto de vista vinculativo, em regra, através do ‘common
sense’ ou da ‘opinião de todos ou da maioria dos sábios’, mas antes através do Direito
objectivo”149.
145
Canaris, ob. cit., p. 254.
146
Vico, citado por Canaris, idem, p. 253.
147
Viehweg, citado por Canaris, idem, p. 256.
148
Canaris, idem.
149
Idem, p. 260.
46
150
Tal dicotomia não passou desapercebida ao autor austríaco: “Assim como a teoria do Direito privado
pressupõe originariamente que a personalidade jurídica do indivíduo precede lógica e cronologicamente o
Direito objetivo, isto é, a ordem jurídica, assim também a teoria do Estado pressupõe que o Estado,
enquanto unidade coletiva que aparece como sujeito de uma vontade e de uma atuação, é independente do
Direito e até preexistente ao mesmo” (Kelsen, ob. cit., p. 315).
151
A polissemia do termo não deve impedir que se parta da definição proposta por Paulo Bonavides, Ciência
Política, editora Malheiros, no sentido de que o Estado é a ‘nação politicamente organizada’.
152
Esta afirmação não impede o contrário seja possível. De fato, “como organização política, o Estado é uma
ordem jurídica. Mas nem toda ordem jurídica é um Estado. Nem a ordem jurídica pré-estadual da sociedade
primitiva, nem a ordem jurídica internacional supra-estadual (ou interestadual) representam um Estado”.
Mais adiante, sintetiza: “O Estado é uma ordem jurídica relativamente centralizada” (Kelsen, ob. cit., p.
317). Por outro lado, Simone Goyard-Fabre, in Os Fundamentos da Ordem Jurídica, Martins Fontes, São
Paulo, 2002, p. 7, externa pensamento, pelo qual nutrimos a mais alta simpatia, no sentido da necessária
vinculação e correlação entre Direito e Estado: “Sabemos hoje que, embora as primeiras sociedades
obedecessem a regras que lhe regiam o comportamento, essas regras, de natureza religiosa ou familiar, não
eram leis nem máximas jurídicas. A lei só apareceu, na verdade, com a formação das Cidades (isto é, com o
nascimento da política): por volta do séc. VIII a. C. – provável época de Homero –, com o regime monarco-
feudal das velhas sociedades tendendo a desaparecer, formaram-se regras comuns que determinavam as
funções de cada um na vida da Polis: (...)”.
153
Sobre esta impossibilidade, Kelsen foi enfático: “A asserção de que o Estado não é apenas uma entidade
jurídica, mas uma entidade sociológica, uma realidade social que existe independentemente de sua ordem
jurídica, só pode ser comprovada demonstrando-se que os indivíduos que pertencem ao mesmo Estado
formam uma unidade e que essa unidade não é constituída pela ordem jurídica, mas por um elemento que
nada tem a ver com o Direito. Contudo, tal elemento, que constitui o ‘uno entre os muitos’ não pode ser
encontrado” (Kelsen, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 264).
154
Nesse particular, o pensamento kelseniano exsurge cristalino: “Apenas seres humanos, ou – mais
corretamente – apenas a conduta humana pode ser objeto de regulamentação jurídica; (...)” (Kelsen, idem
nota anterior, p. 285).
155
A definição de estado proposta por Kelsen é a seguinte: “Dessa forma, o Estado, cujos elementos
essenciais são a população, o território e o poder, define-se como uma ordem jurídica relativamente
centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de vigência, soberana ou imediata relativamente
ao Direito internacional e que é, globalmente ou de modo geral, eficaz” (Teoria Pura do Direito, ob. cit., p.
321).
156
Tradicionalmente, os elementos são o povo, o território e o poder (soberania). Kelsen acrescenta a
dimensão temporal.
157
“As funções atribuídas ao Estado dividem-se, segundo a tradicional teoria do Estado, em três Categorias:
legiferação, administração (incluindo a governação) e jurisdição. Todas três são – como se mostrou –
funções jurídicas, quer sejam funções jurídicas no sentido estrito de funções de criação e aplicação do
Direito, quer sejam funções jurídicas num sentido mais amplo que também inclui a função de observância
do Direito” (Kelsen, ob. cit., p. 325).
47
158
Conforme Kelsen, ob. cit., pp. 309, 316/353.
159
Assim, as três acepções mais importantes foram: a) a filosófica, com Hegel; b) a jurídica, com Kant,
Kelsen, Del Vecchio e Burdeau; c) a sociológica, com Oppenheimer, Duguit, Marx e Weber.
160
Pela sinonímia dos termos, se manifesta Bonavides: “No Brasil, vingam irmãmente os termos Ciência
Política e Teoria Geral do Estado”.Mais adiante, conclui: “A simpatia na escolha, para os que raciocinam
dessa forma, recai naturalmente sobre a Teoria Geral do Estado, cujas raízes, a despeito da origem, se
aprofundaram com mais força que as da Ciência Política. O nome desta, soprado ultimamente com
intensidade, através da leitura e influência de autores americanos e ingleses, ganha todavia larguíssimo
terreno” (BONAVIDES, Paulo, ob. cit., pp. 44/45).
161
Citado por BONAVIDES, Paulo, ob. cit., p. 67.
162
BONAVIDES, Paulo, ob. cit., p. 86. Modernamente, tem-se entendido que o conceito de soberania se liga
à noção de povo, de modo que o Estado passa a contar com apenas dois elementos: a) soberania (do povo); b)
território.
48
163
Embora não seja propriamente um elemento, deve-se ressaltar a dimensão temporal, inerente a toda e
qualquer organização estatal, conforme os ensinamentos kelsenianos.
164
A soberania aqui referida é a interna, vista como um conceito sócio-jurídico em que o poder exercido pelo
Estado se reveste de superioridade, supremacia e incontrastabilidade em relação a todos os demais poderes
sociais. Opõe-se à Soberania externa (ou internacional), aquela que, após os estudos de Jellinek, constatou-se
ser um elemento acidental para a caracterização de um Estado. (conforme, BONAVIDES, Paulo, ob. cit., pg.
122.)
165
A conceituação do termo território não varia significativamente entre os tratadistas, sendo satisfatório
aquele que o define como a base geográfica do poder, conforme BONAVIDES, Paulo, ob. cit., pg. 87.
166
O elemento povo não deve ser confundido com o termo população, categoria esta expressa um dado
quantitativo-demográfico de contagem de todos os habitantes, situados num determinado território, sob o
poder de um dado Estado. Por outro lado, o vocábulo povo expressa a situação jurídica daquela parcela da
população ligada ao Estado pelo vínculo da cidadania – conceito que será explicitado adiante.
167
Sobre a unicidade de ambos, transcrevemos elucidativa passagem: “Como não temos nenhum motivo para
supor que existam duas ordens normativas diferentes, a ordem do Estado e a sua ordem jurídica, devemos
admitir que a comunidade a que chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’ ordem jurídica” (Kelsen, Teoria Geral do
Direito é do Estado, ob. cit., p. 263).
168
O termo sociedade não é de fácil conceituação. Tivemos conceitos mecanicistas (com Toennies, Seidler) e
organicistas (com Del Vecchio, Platão, Aristóteles). No presente caso, sem entrarmos na polêmica, podemos
adotar o conceito de Talcott Parsons segundo o qual se deve entender por sociedade “todo o complexo de
relações do homem com seus semelhantes”. Ademais, “o conceito de Sociedade tomou sucessivamente três
colorações no curso de sua caminhada histórica. Foi primeiro jurídico (privatista e publicístico) com
Rousseau, conforme vimos; depois econômico, com Ferguson, Smith, Saint-Simon e Marx, e enfim,
sociológico, desde Comte, Spencer e Toennies”. (apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, 10ª edição,
1995, pp. 54/55 e 60/61).
169
Esta locução é a preferida dos autores franceses que trataram das questões relativas ao Estado. O
insuspeito Hegel já a utilizava, in verbis: “O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva”. (HEGEL,
G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito, Martins Fontes, 2000, item 257, pg. 216).
49
170
Para a elaboração da abordagem resumida deste item, aproveitamos as sínteses formuladas por Michel
Troper, juntamente com Christophe Grzegorczyk e Françoise Michaut na obra intitulada Le positivisme
juridique, LGDJ, e, ainda, no livro de Simone Goyard-Fabre, Os fundamentos da ordem jurídica, editora
Martins Fontes, São Paulo, 2002, especialmente partes I e II.
171
São voluntaristas assumidos: John Austin, Carré de Malberg, Alf Ross, Jeremy Bentham, MacCormick,
René Capitant, G. Jellinek.
172
De fato, o voluntarismo não é em si mesmo positivista, sendo certo que algumas de suas divisões
pertencem ao jusnaturalismo. Não cabe nesta oportunidade analisá-las.
173
Este tipo de pensamento, que em si mesmo não é contraditório, embora se afaste da doutrina positivista,
foi acolhido por Duns Scot, Grotius e Hobbes, conforme Troper, ob. cit., p. 35.
174
Troper, ob. cit., p. 35.
175
Idem, pp. 35/36.
51
radicais negam qualquer caráter jurídico à racionalidade176; d) uma ligação entre o direito e
o fenômeno de um poder, seja ele político ou social.
Por outro lado, segundo o critério da simples vontade individual, quanto à fonte
direta da geração da norma, os voluntaristas se subdividem em objetivistas e subjetivistas.
No primeiro caso, o elemento gerador das regras de direito depende da intervenção de um
elemento exterior, diferente da vontade em si177. No extremo oposto, concepção
inteiramente diversa permeia os subjetivistas, para os quais o Direito é a vontade coletiva
(soma das vontades individuais) de obedecer às normas postas. Isto significa que a vontade
individual não é uma simples decisão de validade do Direito objetivamente posto, antes é
um fato psico-sociológico criador da norma jurídica que, então, se torna válida.
176
Sobre o tema do irracionalismo, ver os trabalhos de O. Weinberger, apud Troper, ob. cit., p. 36, nota 7 e
também a crítica de MacCormick, para quem até um certo ponto os imperativos decorrentes da vontade se
justificam, sendo certo que em algum momento a vontade deve ela mesma ser justificada sob pena de um
regressus ad infinitum; idem, nota 6.
177
Assim, para Kelsen a norma fundamental tem esse papel enquanto que para Carré de Malberg, é a figura
do Estado que o desempenha.
178
O termo exegese é emprestado à tradição de interpretar os livros sagrados no sentido de ser a arte pela qual
se revela o profundo conteúdo do texto. Na idade média, desenvolveu-se um método puramente literal dos
textos bíblicos. Posteriormente, os glosadores do direito romano da Escola de Bolonha (séc. XI a XIV) já se
orientavam por esta limitada metodologia. (Troper, ob. cit., p. 39).
179
São exegéticos: Demolombe, Aubry, Rau, Blondeau, Baudry-Lacantinière, Laurent.
52
Cabe notar que esta escola se revelou ser essencialmente metodológica, o que
permite sua combinação com correntes positivistas e jusnaturalistas. O desenvolvimento da
exegese surge a partir da vontade legislada180, ou seja, com o texto legal que foi
estabelecido. Com o envelhecimento do Código, ou melhor, com o avanço da
complexidade das relações sociais – numa palavra, com o progresso –, esta escola entrou
em declínio seja porque uma parte dos autores negava a existência de lacunas normativas
com o argumento de que haveria uma intenção reguladora negativa, seja porque uma outra
parte dos autores, desejosos de salvar a qualquer preço o citado monumento legislativo,
adotando técnicas de interpretação pretensamente científicas, desvirtuou completamente o
sentido original das disposições legislativas. Seu declínio se iniciou com a crítica de
Saleilles e, sobretudo, com a de François Gény, até desaparecer por completo no séc. XX.
Não sem antes, porém, deixar como legado a noção de que o direito deve ser visto como
um sistema e difundir o uso do método lógico-linguístico de interpretação do texto legal,
largamente conhecido e utilizado. Também deve ser ressaltado o avanço do conceito de
eficácia e de política do direito que esta escola nos agraciou.
Com a influência dos trabalhos de Hart, nos anos 1950, o método analítico
conheceu um grande desenvolvimento. De fato, o teórico inglês reformulou as principais e
tormentosas questões jurídicas, tal qual havia sido feito pelos seus colegas filósofos a
propósito das questões éticas. Desse modo, a teoria analítica anglo-saxão, modificando o
próprio objeto de estudo da ciência do direito, adicionou uma nova abordagem, até então
inusitada: a lingüística. Com o desenvolvimento dos estudos entabulados, neste campo, por
Carnap, Saussure e Wittgenstein, foi possível não só eleger a linguagem de primeiro grau,
que descreve a realidade, como a unidade básica de análise jurídica, como também a
metalinguagem (ou linguagem de segundo grau), onde as expressões se referem ao
discurso jurídico que descreve a realidade.
ora a) uma teoria geral do direito (stricto sensu), oposta à teoria da justiça e à sociologia
jurídica; ora b) uma teoria positivista, oposta a toda e qualquer concepção jusnaturalista;
ora c) um método da ciência jurídica destinado a estudar e a analisar os conceitos
pressupostos pelo discurso jurídico. Como teoria geral, ela se situa no plano filosófico sem
que haja um caráter normativo de suas proposições e conclusões. Como método, pode ser
utilizada também pelas doutrinas jusnaturalistas. Como positivismo analítico, esta corrente
biparte-se181, ainda, em: (i) extremada, segundo a qual somente as questões da linguagem
são objeto desta teoria; (ii) moderada, para a qual a linguagem não é o objeto exclusivo
desta teoria, mas sua análise é necessária para a resolução dos problemas discutidos.
181
Esta oposição é remanescente da discussão anglo-saxônica, no âmbito da filosofia lingüística, entre o
reconstrutivismo lógico, de Bertrand Russell, e a chamada Filosofia da Linguagem Ordinária, baseada nos
ensinamentos de Wittgenstein (1º período).
182
Neste País, sua exitosa implantação ocorreu desde logo ante à tradição da escola lógica na filosofia e no
direito.
183
A notável influência do jurista Norberto Bobbio, adepto de primeira hora desta corrente, consolidou uma
verdadeira escola, concentrada em Gênova.
184
Na Escandinávia, é de se destacar a adesão de Alf Ross e de Von Wright às teses analíticas, que se
firmaram na escola de Uppsala (Suécia).
185
Assumiram uma preferência por este tipo de aproximação metodológica alguns poucos autores, como E.
Ehrlich e Rudolf von Ihering, na Alemanha, e Léon Duguit, na França.
186
Assim, desde a Grécia Antiga, com a concepção aristotélica do homem como um ser político (zoon
politikon), nunca houve pretensão de afastar o Direito do campo dos fenômenos sociais, o que não significa
que o direito não possua uma especificidade que o diferencie destes. Por outro lado, a escola histórica alemã
fundada por F. K. von Savigny no início do séc. XIX, insurgindo-se contra o racionalismo da escola
(moderna) do direito natural e também contra o voluntarismo legalista do séc. XVIII, sobretudo na França
com a codificação napoleônica, também contribui decididamente para a formação do pensamento sociológico
do direito. Por último, o surgimento de uma nova ciência – a sociologia – foi possível com a relativização do
papel desenvolvido pela história, sem abandonar a importância das práticas coletivas na formação das regras
sociais.
55
importância atribuída ao aspecto social, que é decisiva para a compreensão dos fatos
jurídicos187.
entre duas classes sociais distintas. O direito ficaria, desse modo, reduzido a um
instrumento legitimador a serviço de uma elite dominante, que monopolizaria o uso da
força para impor sua ideologia e seus interesses econômicos.
As relações entre o marxismo e o direito positivo são complexas190, mas podem ser
notadas pelo menos três variantes. A primeira, essencialmente crítica, foi concebida pelo
próprio Marx que, demonstrando a farsa do direito positivo (estatal) e rejeitando toda e
qualquer proposição jusnaturalista, por incompatível com as teses materialistas
fundamentais, reconhece o ‘verdadeiro’ direito na realidade econômico-social. Nesse
sentido, nota-se mutatis mutandis a convergência de idéias entre esta escola e a anterior,
desde que se substituam as relações sociais desta pelas relações econômicas daquela para
que o direito adquira uma dimensão puramente econômica.
Por último, a partir dos anos 30, na Rússia, e após a 2ª guerra mundial, nos países
do leste europeu, uma terceira versão, calcada numa ‘tendência’ normativista (formulada
por Kelsen) e adotando o conceito central de poder estatal, formulado por Jellinek, tornou-
se dominante, sobretudo, por ter a simpatia de Stalin191.
190
Tal complexidade se deve a dois fatores: a) a grande evolução desta teoria após o séc. XIX em função dos
eventos históricos que ela tentava explicar; b) suas diferentes formulações, que variavam conforme o
contexto sócio-econômico e o papel a ser desempenhado.
191
O arguto comentário é de Troper, ob. cit., p. 51, na nota 22: “Il convient d’ajouter que le rejet de la
théorie révolutionnaire au profit de la nouvelle version a été le fruit des luttes politiques entre les différentes
tendances communistes, et le triomphe de Vyshinski fut en réalité celui de Staline, avec sa conception de
l’État omnipuissant, bien que rhétoriquement qualifié de ‘prolétarien’ ”.
192
Essas diferenças conceituais remotam à dicotomia existente entre a common law e a roman law.
57
Se a natureza positivista desta corrente não pode ser posta em dúvida 196, sua forte
inclinação científica não lhe permite aceitar de modo pacífico e ingênuo a equiparação
feita entre ‘direito positivo’ e ‘direito válido’, alardeada pela maioria dos ramos
positivistas. Os partidários da vertente escandinava, com razão, argumentam que o
conceito de validade não é empiricamente verificável e, portanto, não pode servir de
critério caracterizador do que seja o ‘direito’. A solução proposta é no sentido de que a
validade do direito decorre de sua efetiva aplicação, ou seja, de sua eficácia. Outras noções
tradicionais da dogmática jurídica serão também questionadas, como a noção de ‘dever’197
e de ‘direito subjetivo’198. Por outro lado, a análise escandinava visa insistentemente
demonstrar que o direito positivo é um sistema de constrição de fato, formulado com a
ajuda de comandos normativos que exercem uma pressão puramente psicológica nos
destinatários199.
dominantes do Circulo de Viena e seu positivismo lógico. Embora existam muitos pontos em comum entre a
corrente escandinava e o pensamento austríaco dos anos 1920, aquela deste se afasta em razão dos trabalhos
de Hägerström, tido como o pioneiro desta nova abordagem metodológica, desde a década de 1910, cuja
maior preocupação era construir uma axiologia radicalmente não-cognitivista e, para alguns, até mesmo
emotivista. Por outro lado, nota-se uma maior ligação dos realistas escandinavos com a filosofia analítica
inglesa de Cambridge.
196
Pelas razões já explicadas em relação à teoria analítica do direito inglesa.
197
Criticado por Olivecrona, que salientou sua dimensão puramente psicológica.
198
Conceito que não foi poupado nem por Hägerström, que o taxou de pseudoconceito por não corresponder
à nenhuma realidade, nem por Lundstedt que o considerava como um fenômeno empírico de sanção em caso
de não-execução voluntária do dever jurídico imposto a outrem.
199
Sobre este particular, Troper, ob. cit., p. 55, citando Alf Ross, que na juventude foi influenciado pelo
normativismo de Kelsen, assim se manifestou: “Selon Ross, l’approche scientifique du droit est ‘réaliste’ en
ce sens que l’existence d’une règle juridique est fonction du degré de probabilité avec lequel on peut prédire
qu’elle sera effectivement appliquée”.
200
Serão analisados os caracteres mais gerais da concepção institucionalista proposta por Maurice Hauriou e
seguida, mais recentemente, pelos neo-institucionalistas, como MacCormick e Weinberger nos anos 1980.
Outros institucionalistas: Santi Romano, T. Delos, G. Renard.
59
201
Interessante notar a semelhança entre a dicotomia nominalismo/institucionalismo e a classificação
durkheimiana da sociedade em mecânica ou orgânica, respectivamente.
202
Tal concepção propugna uma autonomia existencial dos grupos em relação aos sujeitos dele participantes.
203
Nesse sentido, a elucidativa conclusão de Troper, ob. cit., p. 60/61 que, citando Hauriou, assim asseverou:
“C’est cette approche que Hauriou privilégiat lorqu’il traitait l’instituition d’une ‘véritable réalité sociale
séparable des individus’ ”.
204
A falta de precisão contratual não passou desapercebida a Troper, ob. cit., p. 61. Pedimos para transcreve-
la, inclusive com conceituações do próprio Hauriou: “Toutefois, la définition de l’ ‘institution’ n´était pás
toujours uniforme ni claire. Au sens plus large, elle recouvrait ‘ toute organisation créée par la coutume ou
la loi positive, fût-elle un simple moyen de la technique juridique ’, mais Hauriou en précisait d’autres
acceptions et faisait souvent appel à des notions assez confuses, comme ‘ l’idée de l’entreprise à réaliser ’,
ou celle de ‘ la manifestation de communion parmi les membres du groupe ’ ”.
205
Nesse sentido, Troper, ob. cit., p. 61: “A nos yeux, c’est la visée ontologique, anti-volontariste, et
objectiviste qui caractérise lê mieux la théorie institutionnelle du droit”.
60
III – O NORMATIVISMO
Assim, a teoria pura do direito se apóia em três vertentes: a) os valores não têm, por
si sós, existência objetiva; b) a causa de um objeto é diferente dele; c) a existência de um
Poder supremo, soberano, absoluto, incontrastável. Com esta apresentação, emerge de
modo cristalino a necessária objetividade do Direito. Com relação ao Estado, expoente
máximo, desse poder social já falamos no capítulo anterior.
214
Kelsen, ob. cit., p. 1.
63
Por outro lado, convém, desde logo, não confundirmos o objeto de estudo da
ciência jurídica, que é a norma, com o objetivo do Direito, que é a paz social (= ausência
de conflitos entre os Indivíduos dentro de uma dada comunidade social).215 De fato, resta
evidente que o Direito, como toda criação ou invenção humana, possui uma finalidade,
uma missão a ser desempenhada para com a Sociedade. O fato dele, Direito, cumpri-la a
contento ou não, e também em que medida a cumpre, é algo que deve ser buscado por uma
ciência diversa, a saber, a Sociologia.
De qualquer sorte, temos que a Teoria Pura do Direito consiste numa purificação,
que diferencia as normas de suas causas e despe a ciência normativa de qualquer
valoração. Assim, o grande mérito de Kelsen foi ter delimitado o objeto da ciência do
Direito, conferindo-lhe sua autonomia. Isto não significa que o Direito não contenha
valores nem que faça valorações. Ao contrário, a idéia de norma exprime, em sua
ontologia, uma objetivação de um valor que foi considerado relevante pelo Estado que,
diante de sua importância, lhe confere um novo status, uma nova condição, uma nova
função social: a de disciplinar o comportamento das pessoas.
Os valores que se opõem ao Direito são os subjetivos, ou seja, são aqueles que, se
aproximando muito da ideologia, e, por isso mesmo, perigosos, devem ser evitados já que
não podem ser cientificamente demonstrados, o que causa bastante insegurança na
comunidade. Com isso, também não é possível substituir o ‘valor’ originariamente adotado
pelo legislador por um outro que pareça mais adequado. Um exemplo esclarecerá o que se
disse. No Brasil, a pena para o crime de roubo varia de 4 a 10 anos de prisão; os crimes
financeiros têm penas que variam de 1 a 5 anos. Qual a razão de uma tamanha disparidade
entre os dois grupos de crimes, sendo certo que os últimos afetam um número muito maior
de pessoas enquanto que as vítimas do roubo são, em geral, um número reduzido? A
explicação é que a violência, sempre presente no crime de roubo, justificou uma pena mais
severa. Por mais absurdo que possa parecer, não há nada que se possa fazer para condenar
uma pessoa por roubo aquém do mínimo legal, nem condenar uma outra, por crime
financeiro, além do máximo legal. Nesse sentido, o filósofo austríaco escreveu:
215
Rudolf von Ihering, A Luta pelo Direito, 14ª edição, 1994, Forense, Rio de Janeiro, pg. 1.
64
Por outro lado, como já dissemos anteriormente, a tese que Kelsen quer provar é a
de que o Direito é um sistema de normas jurídicas, ou seja, ele agrupa aquelas normas
dotadas de coercibilidade. Desse modo, a racionalidade permeia todo e qualquer
ordenamento jurídico estatal.
216
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 19.
65
Nesse item, devemos apresentar ao leitor um dos dois pilares do sistema jurídico217
proposto pelo normativismo. De fato, a validade (ou validez) é um conceito imprescindível
à compreensão, do ponto de vista jurídico, do fenômeno ordem. Por validade de uma dada
norma devemos entender a específica existência de uma norma jurídica no plano do dever-
ser. A validade de uma norma, portanto, depende de sua compatibilidade com as outras que
lhe são hierarquicamente superiores e que servem de fundamento para sua edição. Dizer
que uma norma é válida, pois, significa dizer que ela se incorporou ao ordenamento
jurídico de um determinado Estado, depois de ter cumprido todos os pressupostos,
requisitos e condições para a sua regular edição.
Todavia, este processo de busca regressiva conduz a uma norma jurídica inaugural.
Além dessa norma, estamos fora do Direito e este só é válido se adotarmos uma norma
pressuposta – a chamada norma fundamental ou Grundnorm -, que não pertence ao mundo
jurídico mas lhe confere sua validade objetiva. Reproduzindo o pensamento kelseniano,
temos que:
“A indagação do fundamento de validade de uma norma não pode,
tal como a investigação da causa de um determinado efeito,
perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se
pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais
elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta
por uma autoridade, cuja autoridade teria de se fundar numa
norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser
derivada de uma norma mais elevada, o fundamento de sua
validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma,
pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como
norma fundamental (Grundnorm)”218.
217
O sistema jurídico, ou, simplesmente, a ordem jurídica, pode ser estudado sob dois prismas distintos: a)
estático; b) dinâmico. O plano estático, ou estática jurídica, é uma relação de hierarquia que se estabelece
entre o conteúdo material de duas normas de categorias distintas. Por outro lado, a dinâmica jurídica é uma
relação hierárquica em que uma norma jurídica é produzida nos limites da indeterminação deixada pela
norma hierarquicamente anterior.
218
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 217.
66
219
Idem.
220
Idem, p. 225/226.
221
Idem, p. 243.
67
222
Idem, p. 221.
68
Desta forma, podemos concluir que a ordem jurídica inaugura-se com uma
Constituição, documento que rege a organização político-jurídica de um País. Por outro
lado, o fundamento de validade da Constituição não pertence ao mundo jurídico, pois este
só é criado com um Pacto Constitucional inicial.
Depois do estudo deste instituto chamado norma, podemos estabelecer entre ela e o
direito uma importante relação. Inicialmente, porém, devemos dizer que o termo direito (=
ordenamento jurídico stricto sensu) é aqui empregado com o seu sentido técnico, isto é,
como conjunto ordenado de normas. Assim, o direito é o aspecto macro de uma ordem
normativa enquanto que a norma é o aspecto micro do ordenamento jurídico. Por outras
palavras, podemos dizer que o direito é o resultado da reunião de normas. Em realidade,
direito e norma são aspectos de um mesmo fenômeno, que pode ser estudado do ponto de
vista macro (direito) ou micro (norma). Poderíamos mesmo, juntamente com Weber,
afirmar que a norma constitui a unidade básica para a compreensão do direito, mas a
recíproca também é verdadeira se nos valermos dos ensinamentos kantianos acerca do
estudo do particular a partir do geral.
Devemos esclarecer, pois, desde logo, o que significa o vocábulo ordem dentro da
concepção kelseniana ante a magnitude deste conceito dentro da Teoria Pura do Direito. A
implementação de um ordenamento jurídico pressupõe uma variedade de normas que
mantenham entre si relações de dependência e subordinação, dentro de um padrão de
racionalidade, conhecimento e previsibilidade pelos seus destinatários. Estas relações são
explicadas através dos vínculos da hierarquia, ou seja, normas de formas diferentes se
subordinam umas às outras de acordo com um modelo previamente estabelecido.
223
Kelsen, ob. cit., p. 309.
69
podemos dizer que a dinâmica lógica da Teoria de Kelsen se manifesta do seguinte modo:
se a lei não contraria a Constituição e o decreto não contraria a lei; então, o decreto não
contraria a Constituição. E assim sucessivamente, com todas as categorias normativas.
224
O sistema dinâmico se opõe ao estático. Sobre eles, escreveu Kelsen: “Esta norma, pressuposta como
norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela
deduzidas através de uma operação lógica. Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo
de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de
normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um
princípio estático” (Teoria Pura do Direito, 2000, p. 218). Por outro lado, “o tipo dinâmico é caracterizado
pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor
de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra
que determina como devem ser criadas as normas gerais e normas individuais do ordenamento fundado
sobre esta norma fundamental” (idem, p. 219). Para concluir que “o sistema de normas que se apresenta
como uma ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico” (idem, p. 221).
225
Idem, p. 224.
70
Neste item, dissertaremos sobre algumas das inúmeras contribuições, ainda atuais,
que decorrem do pensamento kelseniano. Com isso, não estamos dizendo que Kelsen as
criou, mas tão somente que, com ele, estes desdobramentos tomaram um novo impulso,
notadamente em razão de suporte científico mais robusto. O elenco é exemplificativo:
especialidade) para a resolução das aparentes antinomias existentes num dado sistema
jurídico. Também a diversidade de soluções judiciais, dentro desta ordem única, foi bem
explicada, ponto este que será desenvolvido mais adiante.
estivesse presente nos escritos de Sièyes, foi Kelsen quem, cientificamente, explicou este
fenômeno (metajurídico), pois as opções políticas eleitas pelo Constituinte são
insindicáveis juridicamente.
Lacunas. “Em primeiro lugar, um positivismo cabal não admite – não pode
admitir – a presença de lacunas. E quando, levado pela evidência, acabe por aceita-las,
não apresenta, para elas, qualquer solução material: a integração da lacuna – operação
que, por excelência, exige o contributo máximo da Ciência do Direito – realizar-se-á,
pois, à margem do pensamento jurídico”227.
Este argumento não pode ser seriamente aceito na medida em que, modernamente,
a adoção da cláusula que assegura a indenegabilidade de jurisdição (no Brasil, é o art. 5º,
XXXV da CF/88) impede que o julgador se furte ao seu dever de pronunciar o direito
concretamente aplicável. Por outro lado, o relativo grau de indeterminação da norma
jurídica, em seus sucessivos planos hierárquicos, sempre permite uma ‘adaptação’ por
meio da atividade interpretativa. Assim:
“Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do
escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob
todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre
de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação,
de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em
relação ao ato de produção normativa ou de execução que a
227
Conforme Antonio Menezes Cordeiro, in Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de
Sistema na Ciência do Direito, 2002, pp. XX/XXII.
74
Com muito mais razão do que no caso das lacunas, quando o julgador se depara
com conceitos (jurídicos) indeterminados, sempre é possível uma solução à luz dos
ensinamentos normativistas. De fato, tais conceitos, sendo incorporados pelo legislador, de
qualquer grau hierárquico que seja, sem possuir uma definição precisa (o que é óbvio,
senão deixaria de ser um conceito), sempre permitem seu uso jurídico sem maiores
dificuldades. De fato, é da própria natureza de um conceito encerrar uma idéia que se
revela ser mais fluida do que a contida numa regra jurídica, mas uma vez positivado – e
sua positivação, embora não seja desejável, é juridicamente possível, se o legislador
entender que somente com ele se poderá estabelecer a conduta a ser seguida. Teremos,
neste caso, um maior grau de liberdade do julgador. Nota-se que, de um certo modo, os
conceitos jurídicos indeterminados se situam a meio caminho entre as regras e os
princípios.
228
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 388.
229
Idem, p. 273.
230
Idem, p. XXII.
75
O argumento de que uma norma pode ser injusta só é admissível por aqueles que
adotam uma concepção jusnaturalista do direito. Este fato, no entanto, o retira do campo
científico e o remete ora para o campo da divindade (caso seja considerado como um
espelho de um direito superior, absoluto e imutável, como na concepção socrática, em que
a lei positiva deve obediência à lei cósmica (ou natural)) 232, ora para o campo da arte233, ou,
ainda, para o da técnica. Nestes últimos dois casos, porém, afigura-se difícil o
equacionamento com a injustiça já que tanto a técnica como a arte não alcançam um grau
de questionamento que permita indagações éticas, valorativas ou morais.
Validade e Eficácia. “Realmente, para que uma norma jurídica seja válida, é
preciso que ela também seja eficaz: ou seja, não basta o respeito a certas formalidades no
estabelecimento da norma, mas é preciso que, de fato, a norma assim estabelecida seja
também efetivamente aplicada. Kelsen é obrigado a admitir que ‘tanto uma ordenação
jurídica como um todo quanto uma norma jurídica isolada perdem a validade, quando
deixam de ser eficazes’. Em outras palavras, para responder à questão em torno da qual
constrói toda a sua doutrina (ou seja, quais são os pressupostos formais para a validade
de uma norma jurídica), Hans Kelsen precisa renunciar à rigorosa separação entre
mundo natural e mundo normativo, entre ‘ser’ e ‘dever-ser’ ”234.
De fato, existe uma separação entre as categorias ser e dever-ser, sendo certo que a
validade pertence à segunda e a eficácia pertence à primeira. Por validade se deve entender
231
Idem, pp. XXII/XXIII.
232
Simone Goyard-Fabre, Os Fundamentos da Ordem Jurídica, 2002, pp. 16/17.
233
Sobre estas categorias não-científicas, leia-se o tópico ciência, no item b) do cap. II.
234
Conforme Mário G. Losano, apud Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz, in Reflexões sobre a Teoria
Pura do Direito.
76
235
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 2000, p. 238.
236
Idem, p. 236.
237
Idem nota anterior.
77
Este argumento somente pode ser seguido por alguém que, além de não admitir a
separação entre normas morais e normas jurídicas, também não aceite uma diferença entre
o Direito e a ciência que o estuda. De fato, mesmo nos países da common law existe pelo
menos uma diferença de grau entre as normas das duas espécies, que se não é determinante
para a separação, ao menos é indicativo de algo. A obrigatoriedade do cumprimento das
normas jurídicas como necessária para a convivência social já era teorizada desde o séc.
XVIII por Hobbes. Em seguida, Bentham, Stuart Mill e Austin também se aprofundavam
nos estudos jurídicos para demonstrar a especificidade do direito em relação à moral. Por
outro lado, especialmente no caso dos Estados Unidos, a existência de leis escritas (e
sobretudo, da Constituição Americana) permite uma averiguação indiscutível acerca do
que seja direito e do que seja moral. Claro está que procurar completamente o Direito da
Moral é impossível, e o próprio Kelsen admitia o uso das normas morais que foram
incorporadas ao ordenamento jurídico.
238
Idem, p. 237.
239
Conforme Ronald Dworkin, in Levando os Direitos a Sério, 2002, p. 73.
78
De fato, é possível que a resolução de tais conflitos tenham de ser resolvidos pelo
julgador, mas a técnica da ponderação de interesses surge como conciliável com o
positivismo, em gral, e com o normativismo, em particular, já que sendo o princípio uma
norma jurídica, diferente da regra jurídica, é claro que as contradições entre estes não
poderão obedecer à mesma lógica (jurídica) que permitem a solução dos conflitos oriundos
da aplicação daquelas.
240
Idem, p. XXII.
79
Depois deste panorama geral sobre as idéias do autor austríaco, vamos aprofundar
as considerações a respeito deste conceito que é um dos pilares fundamentais de Kelsen.
De fato, a caracterização da norma jurídica como um esquema de interpretação permitiu a
ampliação dos horizontes no que se refere à compreensão deste instituto que sempre
mereceu a atenção dos juristas.
Por outro lado, ao iniciar seus estudos teóricos sobre uma teoria da interpretação,
Kelsen foi criticado por diversos autores que diziam ter ele se preocupado com o objeto da
interpretação e não com a construção de um instrumental hermenêutico. As críticas são, em
certa medida, procedentes já que na primeira parte de sua obra241 (antes de ter contato com
os realistas americanos) o autor não dava muita importância a tal tema.
241
A 1ª edição de sua Teoria Pura do Direito data de 1934 enquanto que a 2ª é de 1960, quando Kelsen já se
encontrava radicado nos Estados Unidos.
242
Não cabe nesta presente fase do trabalho tratar da doutrina do realismo já que suas raízes históricas deitam
raízes no sistema da common law. Basta sabermos que a importância da interpretação nesta doutrina forçou
Kelsen a rever muitos de seus conceitos e, especialmente, fez com que o autor austríaco, na 2ª edição de sua
obra maior, destinasse todo um capítulo ao fenômeno da interpretação. Esta mudança de perspectiva resultou
numa teoria da interpretação sólida, consistente, que perdura até os dias de hoje.
243
Em regra, os autores abordam a norma ora do ponto de vista formal ora do material. Também Kelsen não
poderia deixar de se manifestar sobre estas dimensões normativas. Formalmente, uma norma se apresenta
como um esquema de interpretação, uma ‘moldura, dentro da qual há espaço para variadas soluções jurídicas.
Materialmente, ela é um comando, dotado de coercibilidade que determina um comportamento específico, ou
seja, é um conteúdo que prescreve uma conduta humana.
80
“O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não
é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal
como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema
da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a
significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua
particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por
intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo,
que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode
ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como um
esquema de interpretação”244.
Citando o filósofo austríaco: “Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei,
não significa, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa
– não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas
individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral”.246 (grifos do
autor).
244
Kelsen, ob. cit., p. 4.
245
A distinção entre os dois tipos de interpretação será vista em item próprio, mais adiante.
246
Kelsen, ob. cit., p. 391.
81
Assim, a norma jurídica é uma moldura que somente pode ser preenchida por um
ato de vontade do órgão aplicador do Direito. Nas palavras de Kelsen: “Através deste ato
de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de
toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela
ciência jurídica”247.
247
Idem, p. 394.
82
Por outro lado, coube a Robert Alexy, sistematizando este novo movimento,
batizado com algum grau de imprecisão como pós-positivismo, identificar dois grandes
grupos de distinções entre regras e princípios: a) fortes, lógicas, ou qualitativas; b) fracas,
de grau, ou quantitativas.
248
Ver Canaris, ob. cit., pp. 86/88.
249
Nesse sentido, Gustavo Zagrebelsky, apud Jane Reis Gonçalves Pereira e Fernanda Duarte Lopes Lucas
da Silva, A Estrutura Normativa das Normas Constitucionais (in PEIXINHO, Manoel Messias, GUERRA,
Isabella Franco, NASCIMENTO FILHO, Firly (organizadores). Os Princípios da Constituição de 1988,
Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2001), pp. 5/6.
250
Assim, autores insuspeitos, como Ronald Dworkin, Chaïm Perelman, Gustavo Zagrebelsky, todos
contrários ao positivismo, bem como outros que adotam uma concepção positivista do Direito, como Luis
Prieto Sanchís, Gregório Peces-Barba Martinez, Genaro Carrió, se manifestam nesse sentido.
251
Com este perfil, temos Ronald Dworkin e o próprio Robert Alexy.
252
Conforme Jane Reis Gonçalves Pereira e Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva, ob. cit., p.11.
83
253
Ronald Dworkin, Levando os Direitos a Sério, 2002, p.39.
254
Idem, pp. 42/43.
255
Idem, p. 43.
84
Por outro lado, existe corrente doutrinária256 que enxerga apenas uma distinção
fraca entre princípios e regras, sendo certo que notaram naqueles um maior grau de
generalidade e abstração em relação a estas, negando que exista, todavia, entre as duas
classes normativas, uma diferença ontológica, lógica ou substancial.
Assim, conforme nos ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “princípio é, por
definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo
de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
harmônico”257, enquanto que as regras são normas que determinam condutas humanas de
um modo claro, direto, objetivo e específico258. Uma regra é uma norma que disciplina ou
rege algo; é a imposição de uma conduta que deve ser seguida.
256
Assim se manifestaram, Norberto Bobbio, Riccardo Guastini, Luis Prieto Sanchís.
257
Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 1999, pp. 629/630.
258
Sobre as funções normativas, consulte-se Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, Sergio Antonio Fabris
Editor, Porto Alegre, 1986, pp. 1, 4, 25/27 e 120/145.
259
Daniel Sarmento, ob. cit., pp. 45/46.
85
260
in Andrei Marmor, Direito e Interpretação, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 5. Este conceito é quase
igual àquele utilizado por Freud. O pai da psicanálise acrescenta à definição que o sentido é oculto, no que é
seguido por Andrei Marmor e Anette Barnes. Interessante notar que desta polêmica, Moore conclui que leis
claras não demandam interpretação enquanto Marmor, numa perspectiva comunicativa da interpretação, nos
diz que se o sentido é evidente estamos diante de um fenômeno semântico; e o que pertence à semântica,
conclui ele, não pertence à interpretação.
261
Kelsen, ob. cit., pg. 387.
87
Por outro lado, existe uma outra interpretação, realizada pelos professores,
doutrinadores e por toda pessoa que tem um ponto de vista sobre a significação do Direito,
mesmo aqueles que apenas cumprem as normas. A interpretação não-autêntica consiste em
determinar todos os significados possíveis do texto a ser aplicado. Ela é, portanto, um
simples ato de conhecimento.
Além disso, com relação à interpretação não-autêntica temos a transcrever, por sua
clareza, as lições do expoente austríaco:
“A interpretação cientifica é pura determinação cognoscitiva do
sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação
feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A idéia de
que é possível, através de uma interpretação simplesmente
cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada
jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do
Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência
jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas
lacunas do Direito. O preenchimento da chamada lacuna do
Direito é uma função criadora de Direito que somente pode ser
realizada por um órgão aplicador do mesmo”262.
262
KELSEN, ob. cit., 395.
263
KELSEN, ob. cit., pg. 395.
88
ordem jurídica, um ato dentre aqueles que foram revelados pelo processo cognoscitivo (ato
de conhecimento).
264
Kelsen, ob. cit., p. 391.
265
Sobre outras funções normativas, consulte-se Kelsen, Teoria Geral das Normas, 1986, pp. 1, 4, 120/145.
89
jurisdicional. O órgão judiciário produz, então, uma norma concreta, específica e restrita
àquele caso, necessária à resolução do conflito anteriormente existente.
Conclui-se com o ilustre vienense, que “a norma do escalão superior não pode
vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada”.266
Caso contrário, as normas de diversa hierarquia repetiriam sempre o mesmo conteúdo, sem
que isto ajudasse na solução dos problemas. Nem mesmo poderíamos dizer que se trata de
uma ordem jurídica escalonada em diversos níveis, pois todos os comandos normativos
reproduziriam aqueles textos previstos na Constituição!
Por outro lado, a atividade cognoscitiva realizada pelo juiz quando a norma ainda
permite uma apreciação subjetiva (interpretação) é um ato de vontade e não apenas de
conhecimento, ou seja, não se pode, diante das várias possibilidades que a norma apresenta
para solucionar o caso concreto, determinar-se uma que prevaleça em detrimento das
demais, com base em critério científico (ato de conhecimento, portanto) de direito positivo.
Em realidade, a “escolha” de qualquer delas somente depende da vontade do julgador.
Nesse sentido, transcrevemos a elucidativa passagem da obra de Kelsen:
“Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária
fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr,
possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão
aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do
Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da
criação jurídica, podem ter sua incidência: normas de Moral,
normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos
designar por expressões correntes como bem comum, interesse do
Estado, progresso, etc.(...) Relativamente a este, a produção do ato
jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre,
isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a
produzir o ato.”268
sucessivas normas aplicáveis, cabe ao julgador, antes de aplicá-la(s), realizar uma atividade
cognoscitiva do(s) sentido(s) da(s) mesma(s). Ora, atividade jurisdicional desenvolvida
pelo magistrado é muito complexa e variada. Assim, podemos afirmar que diversos tipos
de atividade intelectiva são realizados pelos juízes, a saber: interpretação; integração;
ponderação, etc. Somente o primeiro tipo é objeto de estudo destas linhas.
92
d) A aplicação do direito:
De fato, em todos estes processos existe uma ‘mensagem normativa’ que precisa
ser conhecida antes de ser aplicada. Por isso, todas podem ser utilizadas, em conjunto ou
separadamente, conforme as prescrições estabelecidas no ordenamento jurídico. Note-se o
cuidado em estabelecer a ordem a partir daquele processo que exige menor esforço para
aquele que exige um esforço maior.Vejamo-las.
271
Estes subcritérios são: especialidade, cronológico e hierárquico.
272
Verbis: “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
273
Verbis: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito”.
274
Verbis: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No
julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos
costumes e aos princípios gerais de direito”.
94
Por fim, a equidade se apresenta como o processo mais desgastante, pois, em sendo
a liberdade do julgador quase total, devem ser perquiridos todas as significações possíveis,
sem nenhum balizamento prévio. Por isso mesmo que só é permitido nos expressos casos
previstos em lei, conforme preceitua o art. 127 do Código de Processo Civil 278. Nota-se que
a utilização dos critérios puros e subjetivos do julgador (sua livre consciência) para aplicar
a norma ao caso concreto pode facilmente descambar para a arbitrariedade. Neste caso, o
275
Sarmento, ob. cit., p. 102.
276
Idem, pp. 102/103.
277
Art. 5º, incisos IX e X da CF/88, respectivamente: “IX – é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e “X – são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”.
278
Verbis: “O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”.
95
julgador se utiliza muito mais de valores do que de princípios e regras. De qualquer sorte, é
importante notar que em todos os processos intelectivos existem normas que determinam
ou indicam qual deles deve ser utilizado para se buscar a significação do seu conteúdo, o
que leva à conclusão de que todos os processos se desenvolvem à luz de uma doutrina
positivista.
96
V – CONCLUSÃO
Desse modo, a releitura da obra de Kelsen, como pensamos ter relembrado com
este recorte, aguça o espírito para a descoberta de novos horizontes e a redescoberta de
velhos, que são constantemente necessários ao avanço científico e ao contínuo
aperfeiçoamento deste universo chamado Direito, ou mais precisamente, do ordenamento
jurídico.
98
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