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DISCURSO SOBRE AS

CIÊNCIAS E AS ARTES
DISCURSO
QUE RECEBEU O PRÊMIO
DA ACADEMIA DE DI]ON
No ano de 1750

Sobre a seguinte Questão proposta


pela mesma Academia:

Se o restabelecimento das ciências e das artes


contribuiu para aperfeiçoar os costumes.

Barbarus bic ego sum quia non intelligor illis·.


Ovídio

• Citação extraída dos Tristes. "Eu é que sou o bárbaro aqui, porque es-
sas pessoas não me compreendem." (N. da T.)
Advertência

o que é a celebridade? Eis a obra insignificante a que


devo a minha. Certo é que esta peça, que me valeu um
prêmio e tomou conhecido meu nome, é quando muito
medíocre, e atrevo-me a acrescentar que é uma das me-
nores de toda esta coletânea. Que abismo de misérias não
teria evitado o autor, se este primeiro livro houvesse sido
recebido apenas como o merecia! Porém, era preciso que
um favor, antes de mais nada injusto, atraísse paulatina-
mente sobre mim um rigor que o é ainda mais.
Prefácio

Eis uma das maiores e mais belas questões jamais


ventiladas. Não se trata, neste Discurso, dessas sutilezas
metafísicas que invadiram todas as partes da literatura, e
das quais nem sempre estão isentos os programas acadê-
micos, mas de uma dessas verdades vinculadas à felici-
dade do gênero humano.
Prevejo que dificilmente me perdoarão a decisão que
ousei tomar. Contrariando tudo o que hoje provoca a
admiração dos homens, não posso esperar senão uma
censura universal; e não é por ter sido honrado com a
aprovação de alguns sábios que devo contar com a do
público; por isso já me decidi, não me preocupo em agra-
dar nem aos eruditos pedantes, nem às pessoas em mo-
da. Haverá em todos os tempos homens destinados a se-
rem .subjugados pelas opiniões de seu século, de seu
país, de sua sociedade: faz-se hoje de espírito forte e de
filósofo quem, pela mesma razão, não passaria de um
fanático no tempo da Liga. Não se deve escrever para tais
leitores, quando se quer viver mais além de seu século.
Mais uma palavra e terminarei. Pouco contando com
a honra que recebi, depois de enviar este Discurso, mo-
difiquei-o e aumentei-o a ponto de transformá-lo, de cer-

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to modo, noutra obra; hoje, senti-me obrigado a restabe- Discurso


lecê-lo no estado em que foi laureado. Acrescentei-lhe
somente algumas notas e deixei duas adições fáceis de
serem reconhecidas e que a Academia talvez não aprovas- Decipimur specie recti·.
se. Achei que a eqüidade, o respeito e o reconhecimen-
to exigiam de mim esta advertência.

o restabelecimento das ciências e das artes terá con-


tribuído para aperfeiçoar ou para corromper os costu-
mes? Eis o que se trata de examinar. Que partido devo
tomar nesta questão? Aquele, senhores, que convém a
um homem de bem que nada sabe e que nem por isso
deixa de estimar-se.
Sinto que será difícil adequar o que tenho para dizer
ao tribunal a que compareço. Como ousar censurar as
ciências perante uma das mais sábias sociedades da Eu-
ropa, louvar a ignorância numa célebre Academia e con-
ciliar o desprezo pelo estudo com o respeito pelos ver-
dadeiros sábios? Percebi essas contradições, e elas não
me demoveram. Não é a ciência que maltrato, disse co-
migo mesmo, é a virtude que defendo perante homens
virtuosos. A probidade é ainda mais cara às pessoas de
bem do que a erudição aos doutos. O que tenho então a
temer? As luzes da assembléia que me ouve? Confesso
que sim; mas é pela constituição do discurso, e não pela
opinião do orador. Os soberanos eqüitativos nunca hesi-

• "Somos enganados pela aparência do bem." Arle poética, Horácio.


(N. da T.)

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taram em condenar a si mesmos em discussões duvido- Primeira Parte


sas; e a posição mais vantajosa ao justo direito é a de ter
de defender-se contra uma parte íntegra e esclarecida,
juiz em causa própria.
A esse motivo que me encoraja, junta-se outro que
me determina: é que, depois de ter sustentado, segundo
minha luz natural, o partido da verdade, seja qual for
meu sucesso, há um prêmio que não me há de faltar e
que encontrarei no fundo de meu coração.

É um espetáculo grande e belo ver o homem sair a


bem dizer do nada por seus próprios esforços; dissipar,
pelas luzes de sua razão, as trevas em que o envolvera a
natureza; elevar-se acima de si mesmo; alçar-se pelo es-
pírito até as regiões celestes; percorrer a passos de gi-
gante, assim como o Sol, a vasta extensão do universo;
e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mes-
mo para aí estudar o homem e conhecer-lhe a natureza,
os deveres e o fim. Todas essas maravilhas se renovaram
há poucas gerações.
A Europa recaíra na barbárie dos primeiros tempos.
Os povos desta parte do mundo, hoje tão esclarecida,
viviam há alguns séculos num estado pior do que a igno-
rância. Não sei que jargão científico, ainda mais despre-
zível do que a ignorância, havia usurpado o nome do
saber e opunha à sua volta um obstáculo quase invencí-
vel. Era preciso uma revolução para reconduzir os ho-
mens ao senso comum; ela veio afinal de onde menos
seria esperada. Foi o estúpido muçulmano, foi o eterno
flagelo das letras que as fez renascer entre nós. A queda
do trono de Constantino trouxe à Itália os escombros da
Grécia antiga. A França, por sua vez, enriqueceu-se com

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esses preciosos despojos. Logo as ciências seguiram as le- distanciadas da rusticidade tedesca e da pantomima ul-
tras; à arte de escrever juntou-se a arte de pensar; progres- tramontana: eis os frutos do gosto adquirido mediante
são que parece estranha e que talvez não seja mais que bons estudos e aperfeiçoado no trato com o mundo.
muitíssimo natural; e começou-se a sentir a principal van- Como seria agradável viver entre nós, se a continên-
tagem do trato com as musas, a de tomar os homens mais cia exterior fosse sempre a imagem das disposições do
sociáveis ao inspirar-lhes o desejo de se deleitarem uns coração, se a decência fosse a virtude, se nossas máximas
aos outros com obras dignas de sua aprovação mútua. nos servissem de regras, se a verdadeira filosofia fosse
O espírito, como o corpo, tem suas necessidades. inseparável do título de filósofo! Mas tantas qualidades
Estas são os fundamentos da sociedade, as demais são raramente caminham juntas, e a virtude não é muito com-
seu ornamento. Enquanto o governo e as leis suprem à patível com tão grande· pompa. A riqueza dos adereços
segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as ciên- pode anunciar um homem opulento, e sua elegância,
cias, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais um homem de gosto; o homem sadio e robusto é reco-
poderosas, estendem guirlandas de flores nas correntes nhecido por outros sinais; é sob a roupa rústica de. um
de ferro que eles carregam, sufocam-lhes o sentimento lavrador e não sob os enfeites dourados de um cortesão
dessa liberdade original para a qual pareciam ter nasci- que se encontrarão a força e o vigor do corpo. Os ade-
do, fazem-nos amar sua escravidão e formam o que cha- reços não são menos estranhos à virtude, que é a força e
mamos de povos policiados. A necessidade ergueu os o vigor da alma. O homem de bem é um atleta que. se
tronos, as ciências e as artes os consolidaram. Poderosos compraz em combater nu: despreza todos esses vis orna-
da terra, amai os talentos, e protegei aqueles que os cul- mentos que atrapalhariam o uso de suas forças, a maio-
tivam!. Povos policiados, cultivai-os; felizes escravos, vós ria dos quais só foi inventada para ocultar alguma defor-
lhes deveis esse gosto delicado e fino de que vos vanglo- midade.
riais, essa mansidão de caráter e essa urbanidade de cos- Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras
tumes que tornam tão ameno e tão fácil o trato entre vós; e ensinado nossas paixões a falar uma linguagem rebus-
em suma, as aparências de todas as virtudes, sem possuir cada, nossos costumes eram rústicos, mas naturais; e a
nenhuma delas. diferança dos procedimentos anunciava, ao primeiro lan-
Foi por essa espécie de polidez, tanto mais amável ce de olhos, a dos caracteres. No fundo, a natureza hu-
quanto menos afeta mostrar-se, que se distinguiram ou- mana não era melhor, mas os homens encontravam se-
trora Atenas e Roma nos dias tão exaltados de sua mag- gurança na facilidade de penetrar-se reciprocamente, e
nificência e de seu esplendor; é por ela, decerto, que tal vantagem, cujo valor já não percebemos, poupava-
nosso século e nossa nação sobrepujarão todos os tem- lhes muitos vícios.
pos e todos os povos. Um tom filosófico sem pedantis- Hoje, quando pesquisas mais sutis e um gosto mais
mo, maneiras naturais e contudo atenciosas, igualmente refinado reduziram a princípios a arte de agradar, reina

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em nossos costumes uma vil e enganosa uniformidade, e sábios de hoje, quanto a mim, não vejo nisso mais que
todos os espíritos parecem ter sido lançados numa mes- um refinamento de intemperança tão indigno de meu
ma fôrma: incessantemente a polidez exige, o decoro elogio quanto a artificiosa simplicidade deles 2 •
ordena; incessantemente seguem-se os hábitos tradicio- Tal é a pureza que nossos costumes adquiriram. Foi
nais, jamais a própria índole. Já não se ousa parecer o assim que nos tornamos pessoas de bem. Compete às
que se é; e, nessa coerção perpétua, os homens, que for- letras, às ciências e às artes reivindicar o que lhes perten-
mam esse rebanho a que se chama sociedade, postos nas ce numa obra tão salutar. Acrescentarei somente uma
mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas, se reflexão: se um habitante de alguma terra distante, que
motivos mais fortes não os desviarem. Portanto, nunca procurasse formar para si uma idéia dos costumes euro-
se saberá com quem se está lidando: será preciso, pois, peus baseando-se no estado das ciências entre nós, na
para conhecer o amigo, esperar as grandes ocasiões, ou perfeição de nossas artes, na decência de nossos espetá-
seja, esperar que já não haja tempo para tanto, uma vez culos, na polidez de nossas maneiras, na afabilidade de
que é para essas mesmas ocasiões que seria essencial co- nossos discursos, nas nossas perpétuas demonstrações
de benevolência e nesse tumultuoso concurso de ho-
nhecê-lo.
mens de todas as idades e de todos os estados que pare-
Que cortejo de vícios não acompanhará essa incer-
cem pressurosos, desde o raiar da aurora até o cair da
teza! Acabaram-se as amizades sinceras; acabou-se a esti-
tarde, em obsequiar-se reciprocamente; esse estrangeiro,
ma real; acabou-se a confiança fundamentada. As sus-
digo eu, adivinharia em nossos costumes exatamente o
peitas, as desconfianças, os temores, a frieza, a reserva,
contrário do que eles são.
o ódio, a traição se ocultarão continuamente sob esse Onde não há nenhum efeito, não há causa que pro-
véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade curar; porém aqui o efeito é certo, a depravação real, e
tão louvada que devemos às luzes do nosso século. Não nossas almas foram se corrompendo à medida que nos-
mais profanarão com juramentos o nome do senhor do sas ciências e nossas artes avançaram para a perfeição.
universo, mas o insultarão com blasfêmias, sem que nos- Dir-se-á que é uma infelicidade peculiar à nossa época?
sos escrupulosos ouvidos se ofendam com isso. Não elo- Não, senhores; os males causados por nossa vã curiosi-
giarão o mérito próprio, mas rebaixarão o alheio. Não ul- dade-são tão velhos quanto o mundo. A elevação e o
trajarão grosseiramente o inimigo, mas o caluniarão com rebaixamento diários das águas do oceano não estiveram
habilidade. Extinguir-se-ão os ódios nacionais, mas o com mais regularidade sujeitos ao curso do astro que nos
mesmo acontecerá com o amor à pátria. A ignorância me- ilumina durante a noite do que a sorte dos costumes e da
nosprezada será substituída por um perigoso pirronismo. probidade ao progresso das ciências e das artes. Viu-se a
Haverá excessos proscritos, vícios desonrados, mas ou- virtude desaparecer à medida que a luz das duas ia se
tros serão ornados com o nome de virtudes; cumprirá tê- elevando em nosso horizonte, e observou-se o mesmo
los ou fingi-los. Elogiará quem quiser a sobriedade dos fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares.

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Vede o Egito, essa primeira escola do universo, esse barbárie? Tudo quanto a devassidão e a corrupção têm
clima tão fértil sob um céu implacável, essa terra célebre, de mais vergonhoso; as traições, os assassinatos e os ve-
de onde Sesóstris partiu outrora para conquistar o mun- nenos têm de mais negro; o concurso de todos os crimes
do. Torna-se ela a mãe da filosofta e das belas-artes e, tem de mais atroz: eis o que forma o tecido da história
logo depois, vem a conquista de Cambises, depois a dos de Constantinopla; eis a fonte pura de onde nos emana-
gregos, dos romanos, dos árabes, e por ftm a dos turcos. ram as luzes de que se ufana o nosso século.
Vede a Grécia, outrora povoada de heróis que duas Mas por que procurar nos tempos recuados provas
vezes venceram a Ásia, uma diante de Tróia e a outra em de uma verdade cujos testemunhos subsistentes temos
seus próprios lares. As letras nascentes ainda não haviam ante os olhos? Há na Ásia uma região imensa onde as
levado a corrupção aos corações de seus habitantes; po- veneradas letras conduzem às primeiras dignidades do
rêm o progresso das artes, a dissolução dos costumes e Estado. Se as ciências aprimorassem os costumes, se en-
o jugo do macedônio seguiram-se de perto; e a Grécia, sinassem os homens a derramar seu sangue pela pátria,
sempre sábia, sempre voluptuosa e sempre escrava, não se animassem a coragem, os povos da China deveriam
conheceu em suas revoluções senão uma mudança de ser sábios, livres e invencíveis. Porém, se não há um ví-
senhores. Toda a eloqüência de Demóstenes nunca con- cio que não os domine, um crime que não lhes seja fami-
seguiu reanimar um corpo que o luxo e as artes haviam liar, se nem as luzes dos ministros, nem a pretensa sabe-
desftbrado. doria das leis, nem a multidão dos habitantes desse vasto
É no tempo dos Ênios e dos Terêncios que Roma, império puderam resguardá-lo do jugo do tártaro igno-
fundada por um pastor e ilustrada por lavradores, come- rante e grosseiro, de que lhe serviram todos os seus sá-
ça a degenerar. Mas, depois dos Ovídios, dos Catulos, bios? Que fruto retirou das honras com que estes são
dos Marciais e dessa multidão de autores obscenos, cujos cumulados? Acaso o de ser povoada de escravos e de
meros nomes alarmam o pudor, Roma, outrora o templo malvados?
da virtude, torna-se o teatro do crime, o opróbrio das Oponhamos a esses quadros o dos costumes do pe-
nações e o joguete dos bárbaros. Essa capital do mundo queno número de povos que, preservados desse contá-
cai aftnal sob o jugo que impusera a tantos povos, e o gio dos vãos conhecimentos, através de suas virtudes
dia de sua queda foi a véspera daquele em que se con- construíram a própria felicidade e tornaram-se exemplo
cedeu a um de seus cidadãos o título de árbitro do bom das outras nações. Assim foram os primeiros persas, na-
gosto. ção singular na qual se aprendia a virtude como entre
O que direi eu dessa metrópole do império do Orien- nós se aprende a ciência; que subjugou a Ásia com tanta
te que, por sua posição, parecia dever ser a do mundo facilidade e que foi a única a ter a glória de a história de
inteiro, desse asilo das ciências e das artes proscritas do suas instituições ser considerada um romance de filoso-
resto da Europa, talvez mais por sabedoria do que por fia. Assim foram os citas, de quem nos foram deixados

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tão magníficos elogios. Assim foram os germanos, dos respondia à da linguagem. Lá se viam em toda a parte o
quais uma pena, cansada de traçar os crimes e as perver- mármore e a tela animados pelas mãos dos mestres mais
sidades de um povo instruído, opulento e voluptuoso, hábeis. Foi de Atenas que saíram essas obras surpreen-
aliviava-se ao descrever-lhes a simplicidade, a inocência dentes que servirão de modelos em todas as épocas cor-
e as virtudes. Assim fora a própria Roma nos tempos de rompidas. O quadro de Lacedemônia é menos brilhante.
sua pobreza e de sua ignorância. Enfim, assim se mos- Lá, diziam os outros povos, os homens nascem virtuosos,
trou até nossos dias essa nação rústica, tão enaltecida por e o próprio ar do país parece inspirar a virtude. De seus
sua coragem, que a adversidade não pôde abater, e por habitanteS' ficou-nos apenas a memória de suas ações
sua fidelidade, que o exemplo não pôde corromper3• heróicas. Tais monumentos valeriam menos para nós do
Não foi por estupidez que estes preferiram outros que os mármores curiosos que Atenas nos deixou?
exercícios aos do espírito. Não ignoravam que em outras Alguns sábios, é verdade, resistiram à torrente geral
terras homens ociosos passavam a vida discutindo sobre e se resguardaram do vício na morada das Musas. Ou-
o bem soberano, sobre o vício e sobre a virtude, e que, çamos, porém, o juízo que o primeiro e o mais infeliz
orgulhosos argumentadores, creditando a si mesmos os dentre eles fazia dos sábios e dos artistas de seu tempo.
maiores elogios, confundiam os outros povos, denomi- "Examinei", disse ele, "os poetas e vejo-os como
nando-os com desprezo bárbaros; mas eles considera- pessoas cujo talento ilude a eles mesmos e aos outros,
ram seus costumes e aprenderam a desdenhar sua dou- que se arvoram de sábios, que por tal são tomados e de
trina4• modo algum o são."
Poderia eu esquecer-me de que foi no próprio seio "Dos poetas", continua Sócrates, "passei aos artistas.
da Grécia que se viu erguer-se essa cidade célebre tanto Ninguém ignorava mais as artes do que eu, ninguém
por sua feliz ignorância quanto pela sabedoria de suas estava mais convencido de que os artistas possuíam be-
leis, essa República antes de semideuses do que de ho- líssimos segredos. Entretanto, percebi que a· condição
mens, tanto suas virtudes pareciam superiores à humani- deles não era melhor que a dos poetas e que uns e ou-
dade? Oh, Esparta! opróbrio eterno de uma doutrina vã! tros têm a mesma opinião infundada. Porque os mais há-
Enquanto os vícios conduzidos pelas belas-artes se intro- beis dentre eles sobressaem em sua especialidade, vêem-
duziam juntos em Atenas, enquanto um tirano ali reunia se como os mais sábios dos homens. Essa presunção
com tanto cuidado as obras do príncipe dos poetas, tu empanou completamente seu saber aos meus olhos. De
expulsavas de teus muros as artes e os artistas, as ciên- modo que, colocando-me no lugar do oráculo e pergun-
cias e os sábios. tando-me o que preferiria ser, o que sou ou o que eles
O acontecimento marcou essa diferença. Atenas tor- são, saber o que eles aprenderam ou saber que nada sei,
nou-se a morada da polidez e do bom gosto, o país dos respondi a mim mesmo e ao deus: quero continuar a ser
oradores e dos filósofos. A elegância dos edifícios cor- o que sou.

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Não sabemos, nem os sofistas, nem os poetas, nem filósofos, eclipsaram-se as pessoas de bem. Até então os
os oradores, nem os artistas, nem eu, o que é a verdade, romanos haviam se contentado em praticar a virtude; tudo
o bom, o belo. Mas há entre nós uma diferença: é que, se perdeu quando começaram a estudá-la.
conquanto essas pessoas nada saibam, todas elas acredi- Oh, Fabrício·' que pensaria vossa grande alma, se,
tam saber algo. Ao passo que eu, se nada sei, não tenho para vossa infelicidade de volta à vida, vísseis a face
dúvida disso. De modo que toda essa superioridade de pomposa dessa Roma salva por vossos braços e que vos-
sabedoria, que me é concedida pelo oráculo, reduz-se so nome respeitável ilustrara mais do que todas as suas
somente a estar bem convencido de que ignoro o que conquistas? "Deuses!", diríeis, "em que se transformaram
não sei." aquelas choupanas e aqueles lares rústicos em que ou-
Aí está, portanto, o mais sábio dos homens no juízo trora moravam a moderação e a virtude? Que funesto es-
dos deuses e o mais sábio dos atenienses na opinião da plendor sucedeu à simplicidade romana? Que linguagem
Grécia inteira, Sócrates, fazendo o elogio da ignorância! estranha é essa? Que costumes efeminados são esses? O
Seria de se supor que, se ele ressuscitasse entre nós, nos- que significam essas estátuas, esses quadros, esses edifí-
sos sábios e nossos artistas o fariam mudar de opinião? cios? Insensatos, o que fizestes? Vós, os senhores das
Não, senhores, esse homem justo continuaria a menos- nações, vós vos tornastes os escravos dos homens frívo-
prezar nossas ciências vãs; não ajudaria a engrossar essa los que vencestes? São os retóricos que vos governam?
profusão de livros com que nos inundam de todas as Foi para enriquecer arquitetos, pintores, escultores e his-
partes, e só deixaria, como o fez, como único preceito triões que regastes com vosso sangue a Grécia e a Ásia?
aos seus discípulos e aos nossos descendentes, apenas o Os despojos de Cartago são a presa de um tocador de
exemplo e a memória da sua virtude. É assim que é belo flauta? Romanos, apressai-vos em derrubar esses anfitea-
instruir os homens! tros; quebrai esses mármores; queimai esses quadros;
Sócrates começara em Atenas; o velho Catão conti- expulsai esses escravos que vos subjugam e cujas funes-
nuou em Roma a exprobrar aqueles gregos artificiosos e tas artes vos corrompem. Que outras mãos se ilustrem
sutis que seduziam a virtude e entibiavam a coragem de com vãos talentos; o único talento digno de Roma é o de
seus concidadãos. Mas as ciências, as artes e a dialética conquistar o mundo e de nele fazer reinar a virtude.
continuaram a prevalecer; Roma encheu-se de filósofos Quando Cíneas·· tomou nosso Senado por uma assem-
e de oradores; negligenciou-se a disciplina militar, me-
nosprezou-se a agricultura, abraçaram-se seitas e esque-
• Fabricio Luscino, cônsul romano do século III a.C., era um paradigma
ceu-se a pátria. As sagradas palavras liberdade, desinte- de honestidade e de austeridade da Roma republicana. (N. da T.)
resse, obediência às leis, foram sucedidas pelos nomes •• C'meas (século III ·a.C.), ministro de Pirro, foi enviado por este a Roma
de Epicuro, de Zenão, de Arcesilau. Desde que os sábios depois da batalha de Heracléia para propor a paz ao senado romano. Segundo
Plutarco (Vida de Pirro), impressionou-se com a imponente majestade do se-
começaram a aparecer entre nós, diziam seus próprios nado. (N. da T.)

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bléia de reis, não ficou deslumbrado por uma pompa vã, resguarda e que a dificuldade que encontrais em vos ins-
nem por uma elegância rebuscada. Ali não ouviu essa truir não é o menor de seus benefícios. Os homens são
eloqüência frívola, o estudo e o encanto dos homens fú- perversos; seriam piores ainda se tivessem tido a infelici-
teis. O que viu então Cíneas de tão majestoso? Oh, cida- dade de nascer sábios.
dãos! Viu um espetáculo que nunca hão de oferecer vos- Quão humilhantes são tais reflexões para a humani-
sas riquezas ou todas as vossas artes; o mais belo espe- dade! Como nosso orgulho deve mortificar-se com elas!
táculo que jamais surgira sob o céu, a assembléia de du- Como? A probidade seria filha da ignorância? Seriam in-
zentos homens virtuosos, dignos de comandar em Roma compatíveis a ciência e a virtude? Que conseqüências
e de governar a terra." nãó se tirariam desses preconceitos? Mas, para conciliar
Transponhamos, porém, a distância dos lugares e essas aparentes contradições, basta examinar de perto a
dos tempos, e vejamos o que se passou em nossas terras vaidade e o nada desses títulos orgulhosos que nos des-
e ante os nossos olhos, ou melhor, afastemos as pinturas lumbram e que tão gratuitamente conferimos aos conhe-
odiosas que feririam nossa delicadeza e poupemo-nos o cimentos humanos. Consideremos, portanto, as ciências
e as artes em si mesmas. Vejamos o que deve resultar de
trabalho de repetir as mesmas coisas sob outros nomes.
seu progresso e não mais hesitemos em concordar em
Não foi em vão que evoquei os manes de Fabrício; e o
todos os pontos em que nossos raciocínios estiverem de
que fiz esse grande homem dizer que não pudesse pôr
acordo com as induções históricas.
na boca de Luís XII ou de Henrique IV? Entre nós, é ver-
dade, Sócrates não teria bebido a cicuta, mas teria bebi-
do, numa taça ainda mais amarga, a zombaria insultante
e o desprezo, cem vezes pior que a morte.
Eis como o luxo, a dissolução e a escravidão foram
em todos os tempos o castigo dos orgulhosos esforços
que fizemos para sair da feliz ignorância em que nos pu-
sera a sabedoria eterna. O véu espesso com que ela co-
briu todas as suas operações parecia advertir-nos o sufi-
ciente de que não nos destinou a buscas vãs. Mas have-
rá, entre suas lições, alguma que tenhamos sabido apro-
veitar, ou que tenhamos negligenciado impunemente?
Povos, sabei pois, de uma vez por todas, que a natureza
quis preservar-vos da ciência, como a mãe arranca uma
arma perigosa das mãos do filho; que todos os segredos
que ela vos oculta são outros tantos males de que vos

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Segunda Parte

, Era uma antiga tradição, transmitida do Egito para a


Grécia, que um deus inimigo do repouso do homem era
o inventor das ciências 5 • Que opinião deveriam, pois, ter
delas os próprios egípcios, entre os quais elas nasceram?
É que eles viam de perto as fontes que as haviam produ-
zido. Com efeito, seja folheando os anais do mundo, seja
suprindo crônicas incertas com investigaçôes filosóficas,
não se encontrará uma origem para os conhecimentos
humanos que corresponda à idéia que se gosta de for-
mar a esse respeito. A astronomia nasceu da superstição;
a eloqüência, da ambição, do ódio, da lisonja, da menti-
ra; a geometria, da avareza; a física, de uma vã curiosida-
de; todas, até mesmo a moral, do orgulho humano. As
ciências e as artes devem, pois, seu nascimento a nossos
vícios: teríamos menos dúvidas sobre as suas vantagens
se o devessem a nossas virtudes.
O defeito de sua origem se nos patenteia nitidamen-
te em seus objetivos. O que faríamos nós das artes sem
o luxo que as nutre? Sem as injustiças dos homens, para
que serviria a jurisprudência? O que seria da história se
não houvesse tiranos, nem guerras, nem conspiradores?
Quem, em suma, desejaria passar a vida em estéreis con-

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- - - - _ Discurso sobre as ciências e as artes

templações, se cada qual, consultando apenas os deve- como o homem vê tudo em Deus; como a alma e o cor-
res do homem e as necessidades da natureza, só tivesse po se correspondem sem comunicação, assim como fa-
tempo para a pátria, para os infelizes e para os amigos? riam dois relógios; quais astros podem ser habitados;
Então fomos feitos para morrer atados às bordas do poço quais insetos se reproduzem de uma maneira extraordi-
para onde se retirou a verdade? Essa simples reflexão de- nária? Respondei-me, repito, vós, de quem recebemos
veria demover, já nos primeiros passos, qualquer homem tantos sublimes conhecimentos; ainda que nunca nos
que procurasse instruir-se seriamente pelo estudo da houvésseis ensinado nada dessas coisas, seríamos com
filosofia. isso menos numerosos, menos bem governados, menos
Quantos perigos! Quantas estradas erradas na inves- temíveis, menos florescentes ou mais perversos? Recon-
tigação das ciências! Por quantos erros, mil vezes mais siderai, pois, a importância de vossas produções; e, se os
perigosos do que é útil a verdade, não é preciso passar trab'alhos dos mais esclarecidos de nossos sábios e de
para chegar a ela! A desvantagem é visível, pois o falso nossos melhores cidadãos nos propiciam tão parca utili-
é suscetível de uma infinidade de combinações; mas a dade, dizei-nos o que devemos pensar dessa multidão
verdade tem apenas uma maneira de ser. Quem, aliás, a de escritores obscuros e de letrados ociosos, que em pura
procura com toda a sinceridade? Mesmo com a melhor perda devoram a substância do Estado.
boa vontade, por que sinais fica-se certo de reconhecê- O que estou dizendo? Ociosos? Quisera Deus que o
la? Nessa profusão de sentimentos diferentes, qual será o fossem realmente! Os costumes então seriam mais sadios
nosso critério para bem julgá-Ios6? E, o que é mais difícil, e a sociedade mais tranqüila. Mas esses declamadores
se por felicidade finalmente o encontramos, quem de vãos e fúteis andam por toda a parte, armados com seus
nós saberá dar-lhe um uso adequado? funestos paradoxos; solapam os fundamentos da lei e
Se nossas ciências são vãs no objetivo a que se pro- aniquilam a virtude. Sorriem com desdém das antigas pa-
põem, são mais perigosas ainda pelos efeitos que produ- lavras pátria e religião e consagram seus talentos e sua
zem. Nascidas na ociosidade, elas por sua vez a nutrem; filosofia a destruir e aviltar tudo quanto há de sagrado
e a perda irreparável do tempo é o primeiro prejuízo que entre os homens. Não que no fundo odeiem a virtude e
causam fatalmente à sociedade. Na política, como na nossos dogmas; é da opinião pública que são inimigos;
moral, é um grande mal não se fazer o bem, e todo cida- e, para trazê-los de volta ao pé dos altares, bastaria rele-
dão inútil pode ser olhado como um homem pernicioso. gá-los para o meio dos ateus. Oh, gana de distinguir-se,
Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós, por quem sa- de que não sois capaz?
bemos em que proporções os corpos se atraem no vá- É um grande maIo abuso do tempo. Outros males,
cuo; quais são, nas revoluções dos planetas, as relações ainda piores, acompanham as letras e as artes. Assim é o
das áreas percorridas em tempos iguais; quais curvas têm luxo , como elas nascido da ociosidade e da vaidade dos
pontos conjugados, pontos de inflexão e de reversão; homens. O luxo raramente vive sem as ciências e as

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--- - Discurso sobre as ciências e as artes ~ _ _ _ _.____

artes, e estas jamais vivem sem ele. Sei que a nossa filo- por sua vez, depois de haver tragado todas as riquezas
sofia, sempre fecunda em máximas singulares, pretende, do universo, tornou-se a presa de homens que nem
contra a experiência de todos os séculos, que o luxo sequer sabiam o que era a riqueza. Os francos conquis-
ocasiona o esplendor dos Estados; mas, após haver es- taram a Gália, os saxões a Inglaterra, sem outros tesou-
quecido a necessidade das leis suntuárias, ousará ela ne- ros além de sua bravura e de sua pobreza. Um bando de
gar também que os bons costumes sejam essenciais para pobres montanheses, cuja avidez toda se limitava a algu-
a duração dos impérios e que o luxo seja diametralmen- mas peles de carneiros, depois de haver domado a arro-
te oposto aos bons costumes? O luxo pode ser um sinal gância austríaca, esmagou a opulenta e temível Casa de
certo de riquezas, pode até mesmo servir, caso se quei- Borgonha, que fazia tremer os potentados da Europa.
ra, para multiplicá-las; mas que se deverá concluir desse Enfim, todo o poderio e toda a sabedoria do herdeiro de
paradoxo tão digno de haver nascido em nossos dias? E Carlos v, sustentados por todos os tesouros das Índias,
o que será da virtude, quando for preciso enriquecer a vieram despedaçar-se contra um punhado de pescadores
qualquer preço? Os antigos políticos falavam incessante- de arenque. Que nossos políticos se dignem suspender
mente de costumes e de virtude; os nossos só falam de seus cálculos para refletir nesses exemplos e que apren-
comércio e de dinheiro. Um vos dirá que em tal região dam de uma vez por todas que com o dinheiro se tem
um homem vale a soma pela qual o venderiam em Argel; tudo, exceto costumes e cidadãos.
outro, seguindo esse cálculo, encontrará países em que De que se trata então, precisamente, nessa questão
um homem nada vale e outros em que ele vale menos do luxo? De saber o que mais importa aos impérios, se-
do que nada. Avaliam os homens como rebanhos de ga- rem brilhantes e momentâneos, ou virtuosos e duradou-
do. Segundo eles, um homem vale para o Estado apenas ros. Digo brilhantes, mas com que esplendor? O gosto
o consumo que nele efetua. Assim, um sibarita valeria do fausto não se associa muito nas mesmas almas ao da
bem trinta lacedemônios. Adivinhe-se, portanto, qual des- honestidade. Não, não é possível que espíritos degrada-
sas duas repúblicas, a de Esparta ou a de Síbaris, foi sub- dos por uma profusão de cuidados fúteis elevem-se ja-
jugada por um punhado de camponeses e qual fez tre- mais a algo grandioso; e, ainda que tivessem força para
mer a Ásia. tanto', faltar-lhes-ia coragem.
A monarquia de Ciro foi conquistada com trinta mil
homens por um príncipe mais pobre do que o menor
r Todo artista quer ser aplaudido. Os elogios de seus
contemporâneos são a parte mais preciosa de sua recom-
dos sátrapas da Pérsia; e os citas, o mais miserável de to- pensa. O que não fará ele então para obtê-los, se teve a
dos os povos, resistiram aos mais poderosos monarcas infelicidade de ter nascido entre um povo e numa época
do universo. Duas famosas repúblicas disputaram entre em que os sábios da moda prepararam uma juventude frí-
si o império do mundo; uma era muito rica, a outra nada vola para dar o tom; em que os homens sacrificaram seu
tinha, e foi esta que destruiu a outra. O império romano, gosto aos tiranos de sua liberdade; em que, não ousando

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Rousseau - - - - - - -~- Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ _ __

um dos sexos aprovar o que é proporcional à pusilanimi- mão se resolverá a desbastar o ventre de um boneco, ou
dade do outro, não se faz caso de obras-primas de poesia terá de ficar ociosa.
dramática e se rejeitam prodígios de harmonia? O que fará Não se pode refletir sobre os costumes sem se com-
ele, senhores? Rebaixará seu gênio ao nível de seu século, prazer em recordar a imagem da simplicidade dos pri-
e preferirá compor obras comuns, que serão admiradas ~u­ meiros tempos. É uma bela praia, ornamentada apenas
rante sua vida, a maravilhas que só seriam admiradas mUlto pelas mãos da natureza, para a qual se voltam incessan-
tempo depois de sua morte. Dizei-nos, célebre Arouet*, temente os olhos e da qual todos sentem afastar-se com
quantas belezas másculas e fortes sacrificastes à nossa falsa tristeza. Quando os homens inocentes e virtuosos gosta-
delicadeza e quanto o espírito de galanteria, tão fértil em vam de ter os deuses como testemunhas de suas ações,
pequenas coisas, vos custou em grandes. .. A eles moravam juntos nas mesmas cabanas; mas, logo
É assim que a dissolução dos costumes, consequen- que se tornaram maus, cansaram-se desses incômodos
cia inevitável do luxo, acarreta por sua vez a corrupção espectadores e relegaram-nos a seus templos magníficos.
do gosto. Se porventura houver, entre os homen~ ex- Expulsaram-nos afinal para neles se estabelecerem eles
traordinários por seus talentos, algum que tenha fIrme- mesmos, ou, pelo menos, os templos dos deuses já não
za de alma e se recuse a acomodar-se à índole de seu mais se distinguiram das casas dos cidadãos. Atingiu-se
século e a aviltar-se com produções pueris, ai dele! então o auge da depravação, e os vícios nunca foram le-
Morrerá na indigência e no esquecimento. Não se trata vados mais longe do que quando foram vistos, por assim
de um prognóstico que faço, mas de uma experiência dizer, mantidos à entrada dos palácios dos grandes em
que relato! CarIe, Pierre**, chegou o momento em que colunas de mármore e gravados sobre capitéis coríntios.
esse 'pincel, destinado a aumentar a majestade de nos- Enquanto se multiplicam as comodidades da vida,
sos templos com imagens sublimes e santas, cairá de
aperfeiçoam-se as artes e alastra-se o luxo, a verdadeira
vossas mãos, ou será prostituído em ornar de pinturas
coragem se debilita, as virtudes militares se esvaem; e é
lascivas os painéis de uma carruagem. E tu, rival de Pra-
ainda a obra das ciências e de todas essas artes exercidas
xíteles e dos Fídias, tu, cujo cinzel os antigos teriam em-
na sombra dos gabinetes. Quando os godos devastaram
pregado para fazer deuses capazes de desculpar aos
nossos olhos a sua idolatria; inimitável Pigalle***, tua a Grécia, todas as bibliotecas só foram salvas do fogo
por causa da opinião, espalhada por um deles, de que se
devia deixar aos inimigos móveis tão apropriados para
• Até 1750, muitas obras de Voltaire eram publicadas com o nome de desviá-los do exercício militar e para distraí-los com ocu-
"Monsieur Arouet de Voltaire". (N. da T.)
•• Trata-se de Charles-André, ou Charle, Van Loo (1705-1765), pintor, e pações ociosas e sedentárias. Carlos VIII viu-se senhor
de Jean-Baptiste-Marie Pierre (1813-1789), pintor e gravador. Ambos, célebres da Toscana e do reino de Nápoles quase sem ter desem-
na época, pintaram várias obras sacras. (N. da T.) bainhado a espada, e toda a sua corte atribuiu essa faci-
... Jean-Baptiste Pigalle (1714-1785), escultor francês, distinguiu-se tanto
por obras monumentais como por bustos, entre eles o de Diderot. (N. da T) lidade inesperada ao fato de que os príncipes e a nobre-

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau -----~ Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ __

za da Itália se divertiam mais em se tornar engenhosos e eles suportam o excesso do trabalho, como resistem ao
sábios do que em se exercitar para se tornarem vigoro- rigor das estações e às intempéries do clima. Basta ape-
sos e guerreiros. Com efeito, diz o homem de senso que nas um pouco de solou de neve, basta apenas a priva-
relata esses dois fatos, todos os exemplos nos ensinam ção de algumas superfluidades para abater e destruir em
que, nessa polícia marcial e em todas as que lhe são se- poucos dias o melhor dos nossos exércitos. Intrépidos
melhantes o estudo das ciências é muito mais apropria- guerreiros, aceitai uma vez a verdade que vos é tão raro
do para e~tibiar e efeminar as coragens do que para for- ouvir. Sois bravos, eu o sei; teríeis triunfado com Aníbal
talecê-las e animá-las. em Canas e em Trasimeno; César convosco teria atraves-
Os romanos confessaram que a virtude militar se ex- sado o Rubicão e subjugado seu país; mas não seria con-
tinguira entre eles à medida que começaram a entender vosco que o primeiro teria atravessado os Alpes e o
de quadros, de gravuras, de vasos de ourivesaria, e a cul- outro teria vencido vossos ancestrais.
tivar as belas-artes; e, como se essa terra famosa fosse Os combates nem sempre ocasionam o sucesso da
destinada a servir continuamente de exemplo aos outros guerra e há para os generais uma arte superior àquela de
povos, a elevação dos Médicis e o restabelecimento das ganhar batalhas. O que corre para o fogo com intrepidez
letras fizeram cair outra vez, e talvez para sempre, a re- não deixa de ser um péssimo oficial; no próprio soldado,
putação guerreira que a Itália parecia haver recobrado um pouco mais de força e de vigor talvez fosse mais
há alguns séculos. necessário do que tanta bravura, que não o resguarda da
As antigas repúblicas da Grécia, com aquela sabedo- morte. E que importa ao Estado que suas tropas pereçam
ria que brilhava na maioria de suas instituições, haviam de febre e de frio, ou pela espada do inimigo?
proibido aos seus cidadãos todos esses ofícios tranqüilos Se a cultura das ciências é nociva às qualidades guer-
e sedentários que, enfraquecendo e corrompendo o cor- reiras, ainda o é mais às qualidades morais. É logo nos
po, logo debilitam o vigor da alma. De fato, com que primeiros anos que uma educação insensata nos orna o
olhos se pensa que poderão encarar a fome, a sede, as espírito e nos corrompe o juízo. Vejo em todos os luga-
fadigas, os perigos e a morte, homens que a menor ne- res estabelecimentos imensos nos quais, com grandes
cessidade abate e que a menor dificuldade desalenta? despesas, se educa a juventude, para ensinar-lhe todas
Com que coragem suportarão os soldados trabalhos ex- as coisas, exceto os seus deveres. Vossos filhos ignorarão
cessivos a que não estão habituados? Com que ardor fa- a própria língua, mas falarão outras que não são usadas
rão marchas forçadas, comandados por oficiais que não em parte alguma; saberão compor versos que mal con-
têm força sequer de viajar a cavalo? Que não me objetem seguirão compreender; sem saber distinguir o erro da
com o celebrado valor de todos esses modernos guerrei- verdade, possuirão a arte de torná-los, mediante argu-
ros tào habilmente disciplinados. Elogiam-me realmente mentos especiosos, irreconhecíveis aos outros; mas as pa-
sua bravura num dia de batalha, mas não me dizem como lavras magnanimidade, eqüidade, temperança, humani-

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dade, coragem, eles não saberão o que são; a doce pala- cursos que serão laureados nesta Academia é comparável
vra pátria nunca lhes atingirá os ouvidos; e se ouvirem ao mérito de haver instituído o prêmio.
falar de Deus será menos para reverenciá-lo do que para O sábio não corre atrás da fortuna, mas não é insen-
temê-loBo Gostaria tanto, dizia um sábio, que meu aluno sível à glória; e quando a vê tão mal distribuída sua vir-
tivesse passado o tempo num jogo de péla, pelo menos tude, que um pouco de emulação teria animado e torna-
seu corpo estaria mais disposto. Sei que é preciso dar do proveitosa para a sociedade, cai no langor e se extin-
ocupação às crianças e que a ociosidade é o perigo que gue na miséria e no esquecimento. Eis o que, com o
mais se deve recear para elas. O que então deverão apren- tempo, deve produzir em toda a parte a preferência dos
der? Aí está por certo uma bela pergunta! Que aprendam talentos agradáveis aos talentos úteis e o que a expe-
o que devem fazer quando homens9 , e não o que devem riência vem confirmando largamente desde o renasci-
esquecer. mento das ciências e das artes. Temos físicos , geômetras ,
Nossos jardins são ornados de estátuas e nossas ga- químicos, astrônomos, poetas, músicos, pintores; não
lerias de quadros. Em vossa opinião, o que representam temos mais cidadãos, ou, se ainda nos restam alguns,
essas obras-primas da arte expostas à admiração pública? dispersos pelos nossos campos abandonados, lá pere-
Os defensores da pátria? Ou esses homens maiores ainda cem indigentes e menosprezados. Este é o estado a que
que a enriqueceram com suas virtudes? Não. São ima- estão reduzidos, estes são os sentimentos que obtêm de
gens de todos os desvarios do coração e da razão, tira- nós aqueles que nos dão o pão e que dão o leite aos
das cuidadosamente da mitologia antiga e apresentadas nossos filhos.
prematuramente à curiosidade dos nossos filhos, decer- Confesso, entretanto, o mal não é tão grande quan-
to para que tenham diante dos olhos modelos de más to poderia ter-se tornado. A previdência eterna, colocan-
ações, antes mesmo de saberem ler. do plantas medicinais salutares ao lado de diversas plan-
De onde nascem todos esses abusos senão da funes- tas nocivas e na substância de vários animais daninhos o
ta desigualdade, introduzida entre os homens pela distin- remédio para seus ferimentos, ensinou aos soberanos,
ção dos talentos e pelo aviltamento das virtudes? Eis o que são seus ministros, a imitar-lhe a sabedoria. Foi se-
efeito mais evidente de todos os nossos estudos e a mais guindo seu exemplo que, do próprio seio das ciências e
perigosa de todas as suas conseqüências. Já não se per- das artes, fontes de mil desregramentos, esse grande mo-
gunta sobre um homem se ele tem probidade, mas se tem narca, cuja glória não cessará de adquirir esplendor maior
talentos; nem sobre um livro se é útil, mas se é bem escri- com o passar das épocas, tirou essas sociedades célebres
to. As recompensas são prodigalizadas à erudição amável encarregadas a um só tempo da perigosa custódia dos
e fica sem honrarias a virtude. Há milhares de prêmios conhecimentos humanos e da custódia sagrada dos cos-
para os belos discursos, nenhum para as belas ações. Que tumes, pelo zelo que elas têm em manter em si toda a
me digam, porém, se a glória atribuída ao melhor dos dis- pureza deles e em exigi-la nos membros que recebem.

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Essas sábias instituições, consolidadas por seu au- corpo e que tudo é uma representação dele. O outro,
gusto sucessor e imitadas por todos os reis da Europa, que não há outra substância além da matéria, nem outro
servirão pelo menos de freio para os homens de letras deus além do mundo. Este afirma que não há virtudes
que, aspirando todos à honra de serem admitidos nas nem vícios e que o bem e o mal moral são quimeras.
academias, velarão por si mesmos e tratarão de tornar-se Aquele, que os homens são lobos e podem devorar-se
dignos delas mediante obras úteis e costumes irrepreen- entre si com a consciência tranqüila. Oh, grandes filóso-
síveis. Aquelas dentre essas companhias que, para os fos! Por que não reservais para vossos amigos e filhos
prêmios com que homenageiam o mérito literário, fize- essas lições proveitosas? Receberíeis logo a recompensa
rem uma escolha de temas apropriados para reanimar o delas, e não temeríamos encontrar entre os nossos al-
amor à virtude nos corações dos cidadãos mostrarão que gum de vossos sectários.
esse amor reina entre elas e darão aos povos o prazer Eis, portanto, os homens maravilhosos a quem foi
tão raro e doce de ver sociedades eruditas devotarem-se prodigalizada a estima de seus contemporâneos durante
a verter sobre o gênero humano não só luzes agradáveis, a sua vida e reservada a imortalidade depois de seu tres-
mas também instruções salutares. passe! Eis as sábias máximas que deles recebemos e
Que não me oponham, portanto, uma objeção que transmitimos de geração em geração aos nossos descen-
para mim não passa de uma nova prova. Tantos cuida- dentes. O paganismo, entregue a todos os desvarios da
dos só deixam mais do que clara a necessidade de tomá- razão humana, deixou à posteridade algo que possamos
los, e não se procuram remédios para males que não exis- comparar com os vergonhosos monumentos que lhe
tem. Por que terão estes de trazer ainda, pela sua insufi- preparou a imprensa sob o reinado do Evangelho? Os
ciência , o caráter de remédios comuns? Tantas demons- escritos ímpios dos Leucipos e dos Diágoras pereceram
trações feitas em favor dos sábios só servem para iludir com eles. Ainda não se havia inventado a arte de eterni-
a respeito dos objetos das ciências e para orientar os es- zar as extravagâncias do espírito humano. Mas, graças
píritos para a sua cultura. Parece, pelas precauções que aos caracteres tipográficos 10 e ao uso que fazemos deles,
se tomam, haver lavradores de sobejo e temer-se a falta os perigoso~ devaneios dos Hobbes e dos Spinozas per-
de filósofos. Não quero arriscar aqui uma comparação manecerão para sempre. Ide, célebres escritos, dos quais
entre a agricultura e a filosofia: não a tolerariam. Per- a ignorância e a rusticidade de nossos pais não teriam
guntarei apenas: o que é a filosofia? O que contêm os es- sido capazes; acompanhai entre nossos descendentes es-
critos dos filósofos mais conhecidos? Quais são as lições sas obras mais perigosas ainda das quais exala a corrup-
desses amigos da sabedoria? Ouvindo-os, não os toma- ção dos costumes do nosso século e levai junto aos sécu-
ríamos por um bando de charlatões apregoando, cada los vindouros uma história fiel do progresso e das vanta-
qual de seu lado, numa praça pública: "Vinde a mim, sou gens das nossas ciências e das nossas artes. Se eles vos
o único que não engano"? Um pretende que não há lerem, não lhes deixareis nenhuma incerteza sobre a

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- - - - - Discurso sobre as ciências e as at1es _ _ _ _ _ __

questão que hoje ventilamos; e, a menos que sejam mais se exercitaram para transpor o espaço imenso que trilha-
insensatos do que nós, eles erguerão as mãos ao céu e ram. Se é preciso permitir a alguns homens dedicarem-
dirão com o coração amargurado: "Deus todo-poderoso, se ao estudo das ciências e das artes, isso só será conce-
tu, que tens nas mãos os espíritos, livra-nos das luzes e dido àqueles que sentirem a força de caminhar sozinhos
das funestas artes de nossos pais e devolve-nos a igno- por seus próprios passos e de ultrapassá-los. A esse pe-
rância, a inocência e a pobreza, os únicos bens que po- queno número é que compete erguer monumentos à
dem fazer nossa felicidade e são preciosos perante ti." glória do espírito humano. Mas, se quisermos que nada
Porém, se o progresso das ciências e das artes nada esteja acima de seu gênio, cumpre que nada esteja acima
acrescentou à nossa verdadeira felicidade, se corrompeu de suas esperanças. Eis o único encorajamento de que
nossos costumes e se a corrupção dos costumes trouxe necessitam. A alma se proporciona insensivelmente com
prejuízos à pureza do gosto, o que pensaremos nós des- os objetos que a ocupam, e são as grandes ocasiões que
sa multidão de autores elementares que afastou do tem- fazem os grandes homens. O príncipe da eloqüência* foi
plo das Musas as dificuldades que lhe barravam o aces- cônsul de Roma, e o maior, talvez, dos filósofos**, chan-
so, e que a natureza aí espalhara como uma prova das celer da Inglaterra. Acreditar-se-ia que se um não tivesse
forças de quem ficasse tentado a saber? O que pensare- ocupado senão uma cátedra em alguma universidade, e
mos nós desses compiladores de obras que indiscreta- que o outro não tivesse obtido senão uma módica pen-
mente rebentaram a porta das ciências e introduziram são acadêmica, acreditar-se-ia, pergunto eu, que suas
em seu santuário um populacho indigno de aproximar- obras não se ressentiriam de sua condição? Que os reis
se delas? Ao contrário, seria de desejar que todos aque- não desdenhem, portanto, de admitir em seus conselhos
les que não pudessem ir muito longe na carreira das as pessoas mais capazes de bem aconselhá-los; que re-
letras fossem repelidos logo à entrada e se lançassem nas nunciem a esse velho preconceito inventado pelo orgu-
artes úteis à sociedade. Alguém que será a vida toda um lho dos grandes, segundo o qual a arte de conduzir os
mau versificador, um geômetra subalterno, talvez viesse povos é mais difícil do que a de os esclarecer, como se
a ser um grande fabricante de tecidos. Não precisaram fosse mais fácil motivar os homens a agir com acerto por
de mestres aqueles que a natureza destinava a fazer dis- sua própria vontade do que coagi-los a tanto pela força.
cípulos. Os Bacons, os Descartes e os Newtons, esses Que os sábios de primeira ordem encontrem em suas
preceptores do gênero humano, não tiveram outros mes- cortes honrados asilos. Que nelas obtenham a única re-
tres além de si mesmos, e que guias os teriam conduzi- compensa digna deles: a de contribuir com sua reputa-
do até onde os levou seu imenso gênio? Mestres comuns ção para a felicidade dos povos a quem terão ensinado
só poderiam ter encolhido seu entendimento compri-
mindo-o na estreita capacidade do deles. Foi com seus
• Cícero. (N. da T.)
primeiros obstáculos que aprenderam a fazer esforços e •• Francis Bacon. (N. da T.)

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_____________________ Rom~au ________________

a sabedoria. Somente então é que se verá quanto podem


a virtude, a ciência e a autoridade animadas de uma no-
Carta de J. -J. Rousseau
bre emulação e trabalhando em comum para a felicida-
de do gênero humano. Mas, enquanto o poder estiver
sobre a refutação de seu Discurso pelo Sr. Gautier.
sozinho de um lado, as luzes e a sabedoria sozinhas do
professor de Matemática e de História e membro da '
outro, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os
Academia Real de Letras de Nancy
príncipes mais raramente farão coisas belas, e os povos
continuarão a ser vis, corruptos e infelizes.
Quanto a nós, homens comuns, que o céu não aqui-
nhoou com talentos tão grandes e que não destina a tan-
ta glória, fiquemos em nossa obscuridade. Não corramos . Devolvo-vos, senhor*, o Mercun!"· de outubro que
atrás de uma reputação que nos escaparia e que, no esta- tIvestes a bondade de emprestar-me. Nele li, com muito
do atual das coisas, jamais nos renderia o que nos terá prazer, a refutação de meu Discursou que o Sr. Gautier
custado, mesmo que tivéssemos todos os títulos para ob- se de~ ao trabalho de fazer, mas não creio ter, como pre-
tê-la. Para que procurar nossa felicidade na 'opinião alheia, ~en~els, a obrigação de responder-lhe. Eis as minhas ob-
se podemos encontrá-la em nós mesmos? Deixemos a Jeçoes:
outros o cuidado de instruir os povos sobre os seus deve- . 1. ~ão. consigo persuadir-me de que, por ter razão,
res e limitemo-nos a bem cumprir os nossos; não temos seja-se mdlspensavelmente obrigado a ser o último a
necessidade de saber mais nada. falar.
Oh, virtude! Ciência sublime das almas simples, serão . 2. Quanto mais releio a refutação, mais convencido
necessários tantas labutas e tanto aparato para conhecer- fICO de que. não tenho necessidade de dar ao Sr. Gautier
te? Teus princípios não estão gravados em todos os cora- outra réplica além do próprio Discurso a que ele respon-
ções? E não basta, para aprender tuas leis, voltar-se para deu. Lede, peço-vos, num e noutro escrito, os artigos so-
si mesmo e escutar a voz da consciência no silêncio das bre o l~~o, a gu~rra, as academias, a educação; lede a pro-
paixões? Eis a verdadeira filosofia, saibamos contentar- sopopeIa de LUIS, o Grande, e a de Fabrício· enfim lede
nos com ela; e, sem invejar a glória desses homens céle- a conclusão do Sr. Gautier e a minha, e co~preendereis
bres que se imortalizam na república das letras, tratemos o que estou querendo dizer.
de instituir entre eles e nós essa gloriosa distinção que ~. Penso em tudo de um modo tão diferente do Sr.
outrora se observava entre dois grandes povos: um sabia GautIer que, se eu precisasse assinalar todos os lugares
dizer bem, e o outro, bem fazer.
. • Esta carta dirige-se ao escritor e crítico alemão Frederico Melchior
Gnm~ 0723-1807) e foi publicada em novembro de 1851. (N. da T.)
O Mercure de France, jornal semanal fundado em 1672. (N. da T.)

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em que não temos a mesma opinião, ver-me-ia obrigado que nossos soldados não são Réaumurs nem Fontenelles*,
a combatê-lo, mesmo nas coisas que teria dito como ele, o que é pior para eles, para nós, e sobretudo para os ini-
e isso me daria um ar contraditor que gostaria muito de migos. Sei que eles nada sabem, são brutais e grosseiros,
poder evitar. Por exemplo, ao falar da polidez, ele dá a e todavia disse, e repito-o ainda, que são debilitados
entender muito claramente que, para tomar-se homem pelas ciências que menosprezam e pelas belas-artes que
de bem, é bom começar por ser hipócrita e que a falsida-
ignoram. Um dos grandes inconvenientes da cultura das
de é um caminho seguro para chegar à virtude. Diz ain-
letras é que, para alguns homens que esclarecem, cor-
da que os vícios ornados com a polidez não são conta-
rompem em pura perda uma nação inteira. Ora, bem
giosos como o seriam caso se apresentassem abertamen-
vedes, senhor, que isso não passaria de outro paradoxo
te com rusticidade; que a arte de penetrar os homens fez
inexplicável para o Sr. Gautier; para esse Sr. Gautier que
o mesmo progresso que a de dissimular-se; que estamos
convencidos de que não devemos contar com eles, a não me pergunta com arrogância o que as tropas têm em
ser que lhes agrademos ou lhes sejamos úteis; que sabe- comum com as academias; se os soldados terão mais
mos avaliar os oferecimentos especiosos da polidez, ou bravura por estarem mal vestidos e mal nutridos; o que
seja, decerto, que quando dois homens se elogiam, e um quero dizer ao afirmar, que à força de reverenciar os
diz ao outro no fundo do coração: Trato-vos como um talentos, negligenciam-se as virtudes, e outras perguntas
tolo, e zombo de vós, o outro lhe responde do fundo do semelhantes, que demonstram todas que é impossível
seu: Sei que mentis descaradamente, mas faço o possível responder-lhes de modo inteligível na opinião de quem
para vos dar o troco. Se acaso eu quisesse empregar a as faz. Creio que concordaríeis que não vale a pena ex-
mais amarga ironia, poderia dizer quase o mesmo. plicar-me uma segunda vez para não ser mais bem en-
4. Vê-se a cada página da refutação que o autor não tendido do que na primeira.
entende, ou não quer entender, a obra que refuta, o que 5. Se eu qui:5esse responder à primeira parte da refu-
lhe é certamente muito cômodo, porque, respondendo tação, essa seria a maneira de jamais terminar. O Sr. Gau-
continuamente ao seu pensamento e jamais ao meu, tier julga oportuno prescrever-me os autores que posso
tem a melhor oportunidade do mundo para dizer tudo o citar, e os que devo rejeitar. Sua seleção é inteiramente
que lhe apraz. Por outro lado, se com isso minha répli- natural, recusa a autoridade dos que depõem em meu fa-
ca se toma mais difícil, toma-se também menos necessá- vor e quer que me refira aos que ele crê serem-me con-
ria, pois nunca se ouviu dizer que um pintor, que expõe
um quadro ao público, é obrigado a visitar os olhos dos • René-Antoine Ferchault de Réaumur, físico e naturalista francês 0683-
espectadores e a fornecer óculos a todos os que deles 1757), além de vários trabalhos em diferentes áreas deptíficas, inventou o ter-
necessitam. mômetro que tem seu nome. Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757),
escritor francês, é célebre por sua obra Colóquios sobre a pluralidade dos
Aliás, não é muito certo que me faça entender mes-
mundos, em que explica o sistema de Copérnico numa linguagem acessível.
mo ao replicar; por exemplo, sei, diria eu ao Sr. Gautier, (N. da T.)

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- - - - - - - - -_ _ Rousseau _ _ _ _ __ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes ________

trários. Debalde gostaria de fazer-lhe entender que um da refutação sem estender-me demasiado e sem me ex-
único testemunho em meu favor é decisivo, ao passo que plicar bem: ora, gostaria muito de não fazer uma coisa
cem testemunhos nada provam contra minha opinião, nem outra.
porque as testemunhas são partes no processo; debalde 6. Poderia seguir outro método, e examinar separa-
pedir-lhe-ia que distinguisse entre os exemplos que damente os raciocínios do Sr. Gautier e o estilo da refu-
alega; debalde observar-lhe-ia que ser bárbaro ou crimi- tação.
noso são duas coisas totalmente diferentes, e que os po- Se examinasse seus raciocínios, ser-me-ia fácil mos-
vos verdadeiramente corrompidos não são tanto aqueles trar que todos eles nào tinham fundamento, que o autor
que têm más leis quanto aqueles que menosprezam as não entendeu o espírito da questão e não me com-
leis. Sua réplica é fácil de prever: "Como é possível dar preendeu.
crédito a escritores escandalosos, que se atrevem a elo- Por exemplo, o Sr. Gautier se dá ao trabalho de infor-
giar bárbaros que não sabem ler nem escrever! Como mar-me que há povos viciosos que não são eruditos, e eu
será possível supor-se pudor em homens que vivem bem que já imaginava que os calmucos, os beduínos, os
inteiramente nus e virtude nos que comem carne crua?" cafres não eram prodígios de virtude nem de erudição. Se
Logo, cumprirá discutir. Eis portanto Heródoto, Estrabão, o Sr. Gautier houvesse tido os mesmos cuidados para
Pompônio Mela às voltas com Xenofonte, Justino, Quin- mostrar-me algum povo erudito que não fosse vicioso,
to Cúrcio, Tácito. Eis-nos envolvidos nas pesquisas de ter-me-ia surpreendido mais. Em toda parte faz-me racio-
críticos, nos textos antigos, na erudiçào. As brochuras se cinar como se eu houvesse dito que a ciência é a única
transformam em volumes, os livros se multiplicam, e a fonte de corrupção entre os homens. Se julgou isso de
questão é esquecida: o forte das discussões de literatura boa-fé, admiro a bondade que teve de responder-me.
é que, depois dos infólios de esclarecimentos, acaba-se Diz que basta o trato com o mundo para adquirir es-
sempre por já não se saber em que ponto se está. Não sa polidez de que se vangloria um homem distinto; daí
vale a pena começar. conclui que não há razão para imputar isso às ciências.
Se eu quisesse replicar à segunda parte, num instan- Mas ao que então nos permitirá ele imputar tal fato? Des-
te o faria, mas não ensinaria nada a ninguém. O Sr. Gau- de q.ue os homens vivem em sociedade, houve povos
tier nela se contenta, para me refutar, em dizer sim em polidos, e outros que não o eram. O Sr. Gautier esque-
todo lugar em que eu disse não, e não em todo lugar em ceu de explicar-nos o motivo dessa diferença.
que eu disse sim; logo, eu só teria de continuar a dizer O Sr. Gautier admira em toda a parte a pureza de
não em todo lugar em que dissera não, sim em todo lu- nossos costumes atuais. Essa boa ~inião que tem deles
gar em que dissera sim e suprimir as provas, teria res- assegura muita honra aos seus, mas 'não denota grande
pondido com toda a exatidão. Portanto, segundo o mé- experiência. Dir-se-ia pelo tom em que fala que estudou
todo do Sr. Gautier, não posso responder às duas partes os homens como os peripatéticos estudavam a física,

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sem sair de seu gabinete. Quanto a mim, fechei os livros E de outro: oh, bom homem! Não será preciso desviar os
e, depois de ouvir os homens falarem, olhei-os agir. Não olhos e o respeito dele para o primeiro. Seria preciso uma
é de espantar que, tendo seguido métodos tão diferen- terceira exclamação: Oh, cabeças estúpidas!"
tes, tenhamos tão pouca semelhança em nossos juízos. Disse eu que a natureza quis proteger-nos da ciên-
Vejo que não se poderia empregar uma linguagem mais cia, como a mãe arranca uma arma perigosa das mãos do
correta do que a do nosso século, sendo isso que im- filho, e que a dificuldade que encontramos em nos ins-
pressiona o Sr. Gautier. Mas vejo também que não se po- truir não é o menor de seus benefícios. O Sr. Gautier pre-
deriam ter costumes mais corrompidos, sendo isso que feriria que eu houvesse dito: "Povos, sabei pois, de uma
me escandaliza. Pensamos então ter-nos tornado pessoas vez por todas, que a natureza não quer que vos alimen-
de bem, porque, à força de dar nomes decentes aos nos- teis com as produções da terra; a dificuldade que ela as-
sos vícios, aprendemos a não mais nos envergonhar sociou à sua cultura é uma advertência para a deixardes
deles? inculta." O Sr. Gautier não pensou que, com um pouco
Diz ainda que, mesmo que se pudesse provar com de trabalho, está-se certo de fazer o pão, mas que, com
fatos que a dissolução dos costumes sempre reinou com muito estudo, é muito duvidoso que se consiga fazer um
as ciências, daí não se seguiria que a sorte da probida- homem sensato. Não pensou também que isso não pas-
de dependesse dos progressos delas. Depois de ter em- sa, precisamente, de mais uma observação em meu fa-
pregado a primeira parte de meu Discurso para provar vor; pois, por que a natureza nos impôs trabalhos neces-
que essas coisas sempre andaram juntas, destinei a se- sários senão para nos afastar das ocupações inúteis?
gunda a mostrar que, de fato, uma dependia da outra. A Porém, no desprezo que ele mostra pela agricultura, vê-
quem então posso imaginar que o Sr. Gautier quer res- se facilmente que, se dependesse apenas dele, todos os
ponder aqui? lavradores desertariam logo dos campos para irem argu-
Ele me parece sobretudo muito escandalizado com o mentar nas escolas, ocupação essa, segundo o Sr. Gau-
modo com que falei da educação dos colégios. Informa- tier, e, creio eu, segundo muitos professores, muito im-
me que neles ensinam aos jovens sei lá quantas coisas portante para a felicidade do Estado.
belas que podem ser de muita utilidade para seu diverti- Raciocinando sobre uma passagem de Platão, eu pre-
mento quando forem grandes, mas confesso que não sumira que talvez os antigos egípcios não dessem às
vejo qual a relação delas com os deveres dos cidadãos, ciências toda a importância que poderíamos acreditar. O
pelos quais deve começar sua instrução. "Costumamos autor da refutação me pergunta como é possível conci-
nos indagar, saberá ele grego e latim? Escreverá em verso liar essa opinião com a inscrição que Osimandias* puse-
ou em prosa? Tornou-se ele, porém, melhor ou mais in- ~
formado, era o principal, e é isso que fica para trás. Ex-
• Forma corrompida do prenome de Ramsés II, em torno da qual se
clamai de um passante ao nosso povo: oh, homem douto! agrupou um ciclo de lendas recolhidas no tempo dos Ptolomeus por Hecateu

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ _ __

ra em sua Biblioteca. Essa dificuldade poderia ser válida Eu disse que Sócrates era o mais sábio dos atenien-
enquanto esse príncipe era vivo. Agora que está morto, ses, sendo daí que tiro a autoridade de seu testemunho.
pergunto por minha vez qual é a necessidade de conci- Tudo isso não impede o Sr. Gautier de ensinar-me que
liar a opinião do rei Osimandias com a dos sábios do Sócrates era sábio.
Egito. Se ele tivesse contado, e sobretudo pesado os vo- Critica-me por haver afirmado que Catão menospre-
tos, quem me responderá se a palavra venenos não teria zava os filósofos gregos, fundamentando-se no fato de
substituído a palavra remédios? Deixemos de lado, po- Carnéades sentir prazer em estabelecer e derrubar as
rém, essa faustosa inscrição. Tais remédios são excelen- mesmas proposições; o que predispõe infundadamente
tes, concordo, e já o repeti muitas vezes. Mas será esta Catão contra a literatura dos gregos. O Sr. Gautier bem
uma razão para administrá-los levianamente, e sem levar deveria dizer-nos qual era o país e a profissão desse
em conta os temperamentos dos doentes? Há alimentos Carnéades.
muito bons em si, que num estômago enfermo só provo- Decerto Carnéades é o único filósofo, ou o único
cam indigestões e humores nefastos. O que se diria de sábio, que se empenhou em sustentar o pró e o contra,
um médico que, depois de elogiar algumas carnes sucu- senão tudo quanto disse aqui o Sr. Gautier não significa-
lentas, concluísse que todos os doentes deveriam fartar-se ria absolutamente nada. Confio, nesse ponto, em sua
delas? erudição.
Demonstrei que as ciências e as artes debilitam a co- Se a refutação não é abundante em bons raciocínios,
ragem. O Sr. Gautier chama a isso uma maneira singular em compensação o é muito em belas declamações. O
de raciocinar e não vê a ligação existente entre a cora- autor substitui em toda parte a solidez das provas, que
gem e a virtude. Isso não é, porém, ao que me parece, prometia ao começar, pelos ornamentos da arte; e é pro-
algo tão difícil de compreender. Aquele que se acostu- digalizando a pompa oratória numa refutação que cen-
mou, de uma vez por todas, a preferir sua vida ao seu sura a mim tê-la empregado num Discurso acadêmico.
dever não tardará muito a preferir também as coisas que Ao que tendem então, diz o Sr. Gautier, as eloqüen-
tornam a vida fácil e agradável. tes declamações do Sr. Rousseau? A abolir, se possível
Eu disse que a ciência convém a alguns grandes gê- fosse, -as vãs declamações dos colégios. Quem não fica-
nios, mas que é sempre nociva aos povos que a culti- ria indignado ao ouvi-lo assegurar que temos as aparên-
vam. O Sr. Gautier diz que Sócrates e Catão, que clama- cias de todas as virtudes sem ter nenhuma delas. Confes-
vam contra a ciência, eram entretanto, por sua vez, ho- so que há uma certa lisonja em dizer que temos as apa-
mens muito sábios; e chama isso ter-me refutado. rências de todas as virtudes, mas o Sr. Gautier deveria,
mais que ninguém, perdoar-me isso. Ah! Por que não te-
de Abdera, do qual passaram para Diodoro de Sicília. A inscrição era: "Te- mos mais virtudes? É porque cultivamos as belas-letras,
souro dos remédios da alma." (N. da T.) as ciências e as arte~recisamente por isso. Se fôssemos

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- - - - - - - - - _ R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __
_ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes _ _ __

descorteses, 1ÚSticos, ignorantes, godos, hunos ou vânda- moral, ajísica, as matemáticas elementares. Se já o sou-
los, seríamos dignos dos elogios do Sr. Rousseau. Por que be, havia esquecido, como fazemos todos ao tornarmo-
não? Haverá algum desses termos que exclua a virtude? nos sensatos. Tratam-se pois, segundo vós, de estéreis
Não se cansará de invectivar os homens? Não se cansa- especulações! Estéreis segundo a opinião comum, mas,
rão eles de serem maldosos? Crer-se-á sempre torná-los na minha, muito férteis em coisas más. As universidades
mais virtuosos, dizendo-lhes que não têm virtude? Crer- vos devem uma grande obrigação por lhes terdes ensina-
se-á torná-los melhores, persuadindo-os de que são bons do que a verdade das ciências retirou-se ao fundo de um
o bastante? Com o pretexto de aprimorar os costumes, será poço. Não creio ter ensinado isso a ninguém. Tal senten-
permitido derrubar-lhes os apoios? Com o pretexto de es- ça não é de minha lavra, é tão antiga quanto a filosofia.
clarecer os espíritos, será preciso perverter as almas? Oh, De resto, sei que as universidades não me devem ser
doces laços da sociedade! Encanto dos verdadeiros filóso- reconhecidas e não ignorava, tomando da pena, que não
fos, amáveis virtudes! É por vossos próprios atrativos que podia fazer a corte aos homens e prestar homenagem à
reinais nos corações; não deveis vosso império nem à verdade a um só tempo. Os grandes filósofos que as pos-
aspereza estóica nem aos clamores bárbaros, nem aos suem num grau eminente sem dÚVida estão muito sur-
conselhos de uma orgulhosa rusticidade. presos de saber que nada sabem. Com efeito, creio que
Observarei em primeiro lugar um fato bastante di- esses grandes filósofos que possuem todas essas grandes
vertido: é que de todas as seitas dos antigos filósofos que ciências num grau eminente ficariam muito surpresos de
ataquei como inúteis à virtude, os estóicos são os únicos saber que nada sabem. Mas eu mesmo ficaria muito mais
que o Sr. Gautier me lega, e que parece mesmo querer surpreso se esses homens que sabem tantas coisas sou-
pôr de meu lado. Tem razão, não ficarei muito mais or- bessem porventura esta.
gulhoso por isso. Noto que o Sr. Gautier, que me trata sempre com a
Vejamos um pouco, porém, se eu poderia expressar maior polidez, não perde nenhuma oportunidade de
exatamente em outros termos o sentido desta exclama- suscitar-me inimigos; desdobra seus cuidados a esse res-
ção: Oh, amáveis virtudes! É por vossos próprios atrativos peito desde os professores de colégio até o poder sobe-
que reinais nas almas. Não tendes necessidade de todo rano. O Sr. Gautier faz muito bem de justificar os hábitos
esse grande aparato de ignorância e de rusticidade. Sa- da sociedade; vê-se que estes não lhe são estranhos. Mas
beis alcançar o coração por caminhos mais simples e voltemos à refutação.
mais naturais. Basta saber a retórica, a lógica, a física, a Todas essas maneiras de escrever e de raciocinar, que
metafísica e as matemáticas para adquirir o direito de não combinam com um homem de tanto espírito como o
vos possuir. Sr. Gautier parece ter, me levaram a fazer uma conjetura
Outro exemplo do estilo do Sr. Gautier. que achareis ousada, e que creio sensata. Acusa-me ele,
Sabeis que as ciências que ministramos aos jovens fi- com toda a certeza sem acreditar nisso, de não estar per-
lósofos nas universidades são a lógica, a metafísica, a suadido da opinião que suste~. Quanto a mim, descon-

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~~~~~~~~~_Rousseau ~~~- Discurso sobre as ciências e as artes ~~~~~~

fio, com mais fundamentos, que secretamente ele é de pelo prazer sufoca-lhes a bravura, as mais dignas fun-
minha opinião. Os cargos que ocupa, as circunstâncias em ções são aviltadas, a impunidade multiplica os maus ci-
que se encontra o terão deixado numa espécie de neces- dadãos, os fundos destinados à guerra são destinados a
sidade de tomar partido contra mim. O decoro de nosso alimentar a indolência e a ociosidade; que relação terão
século é bom para muitas coisas; logo, ele me terá refuta- todas essas causas de corrupção com as ciências?
do por decoro, mas terá tomado todos os tipos de precau- O que faz aqui o Sr. Gautier, senão lembrar toda a
ções e empregado todo o engenho possível para fazê-lo segunda parte de meu Discurso onde mostrei essa rela-
de modo que não persuadisse ninguém. ção? Observai o engenho com que ele nos apresenta
É com essa finalidade que começa por declarar, como causas os efeitos da corrupção, a fim de motivar
muito fora de propósito, que a causa que defende inte- qualquer homem de bom senso a remontar por si só à
ressa à felicidade do público perante o qual fala e à gló- primeira causa dessas pretensas causas. Observai tam-
ria do grande príncipe sob cujas leis tem a satisfação de bém como, para deixar o leitor fazer a reflexão, finge
viver. É precisamente como se dissesse: "Não podeis, ignorar o que não se pode supor que ignore de fato, e o
senhores, sem ingratidão para com o vosso respeitável que todos os historiadores dizem unanimemente, que a
protetor, eximir-vos de dar-me razão; e, ademais, é vossa depravação dos costumes e do governo dos atenienses
própria causa que advogo hoje perante vós; assim, de foram obra dos oradores. Não há dúvida, pois, que ata-
qualquer ângulo que considereis minhas provas, tenho o car-me dessa maneira é indicar-me com toda a clareza as
direito de contar com que não vos tornareis exigentes respostas que devo dar.
quanto à solidez delas." Digo que todo homem que fala Isso, porém, não é mais que uma conjetura que não
assim está mais atento em fechar a boca das pessoas do pretendo garantir. O Sr. Gautier não aprovaria talvez que
que deseja convencê-las. eu quisesse justificar seu saber à custa de sua boa-fé; mas,
Se lerdes atentamente a refutação, nela não encon- se ele realmente falou com sinceridade ao refutar meu
trareis quase uma linha que pareça estar lá para esperar Discurso, como o Sr. Gautier, professor de História, pro-
e indicar sua resposta. Um único exemplo bastará para fessor de Matemática, membro da Academia de Nancy,
explicar-me. nào teve certa desconfiança de todos os títulos que tem?
As vitórias que os atenienses obtiveram sobre os per- Portanto, não replicarei ao Sr. Gautier, é um ponto
sas e mesmo sobre os lacedemônios nos mostram que as resolvido. Jamais poderia responder seriamente e acom-
artes podem associar-se à virtude militar. Pergunto se aí panhar a refutaçào passo a passo; entendeis a razão dis-
não se trata de uma artimanha para lembrar o que eu so; e seria reconhecer maIos elogios com que o Sr. Gau-
disse da derrota de Xerxes e para fazer-me pensar no tier me honra empregar o ridículum acri, a ironia e o
desfecho da guerra do Peloponeso. Seu governo, que se gracejo acerbo. Já receio que ele tenha muito do que se
tornou venal sob Péricles, assume novo aspecto; o amor queixar do tom desta carta; ao menos ele não ignorava,

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes - - - -

ao escrever sua refutação, que atacava um homem que que, sem as injustiças dos homens, a jurisprudência seria
não dá tanta importância à polidez para querer aprendê- inútil. Um autor tão erudito confundiria a jurisprudência
la a fim de disfarçar seu sentimento. e as leis?
Ainda assim, estou pronto para fazer ao Sr. Gautier Eu poderia ainda deixar de lado as provas de racio-
toda a justiça que lhe é devida. Sua obra me pareceu a cínio e, para colocar o Sr. Gautier em seu terreno, citar-
de um homem culto que tem muitos conhecimentos. Ou- lhe fatos.
tros talvez encontrem nela a filosofia. Quanto a mim, Os lacedemônios não tinham jurisconsultos nem
encontro muita erudição. advogados, suas leis nem sequer eram escritas, contudo
Sou de todo o meu coração, senhor, etc. tinham leis. Confio na erudição do Sr. Gautier para saber
se as leis eram menos observadas na Lacedemônia do
P.S. Acabo de ler na Gazette d'Utrechtde 22 de outu- que nos países onde pululam os jurisconsultos.
bro uma pomposa explanação sobre a obra do Sr. Gau- Não me deterei em todas as minúcias que servem de
tier, e essa explanação parece feita de propósito para texto ao Sr. Gautier e que ele exibe na Gazette; mas ter-
confirmar minhas suspeitas. Um autor que tem certa con- minarei com a seguinte observação, que submeto ao
fiança em sua obra deixa aos outros o cuidado de elogiá- vosso exame.
la e atém-se a fazer-lhe um bom resumo. O da refutação Podemos dar razão em tudo ao Sr. Gautier e cortar
foi composto com tanta habilidade que, embora critique de meu Discurso todas as coisas que ataca, miphas pro-
vas quase nada terão perdido de sua força. Eliminemos
somente ninharias que eu só utilizara para servir de tran-
do texto do Sr. Gautier tudo o que não toca o fundo da
sição, não há uma única sobre a qual um leitor judicioso
questão, dele não restará absolutamente nada.
possa ser da mesma opinião do Sr. Gautier.
Continuo a concluir que não cumpre responder ao
Não é verdade, segundo ele, que seja dos vícios dos
Sr. Gautier.
homens que a História obtém seu principal interesse.
Eu poderia deixar de lado as provas de raciocínio e,
Paris, 1º de novembro de 1751.
para colocar o Sr. Gautier em seu terreno, citar-lhe auto-
ridades.
Felizes os povos cujos reis deram pouco o que falar
na História.
Se um dia os homens se tornarem sensatos, sua his-
tória não será muito interessante.
O Sr. Gautier diz com razão que uma sociedade, ain-
da que composta inteiramente de homens justos, não po-
deria subsistir sem leis; e daí conclui que não é verdade

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RESPOSTA
AO REI DA POLÔNIA,
DUQUE DE LORENA
Observações de J.-J. Rousseau,
de Genebra,

sobre a respostd' que foi dada ao seu Discurso

Eu deveria antes um agradecimento do que uma ré-


plica ao autor anônimo 12 que acaba de honrar meu Dis-
curso com uma resposta. Mas o que devo ao reconheci-
mento não me fará esquecer o que devo à verdade; tam-
pouco esquecerei que, todas as vezes que se trata da ra-
zão, os homens voltam ao direito da natureza e reco-
bram sua primitiva igualdade.
O Discurso a que devo replicar está repleto de coi-
sas muito verazes e muito bem provadas, para as quais
não vejo nenhuma resposta, pois, conquanto nele eu
seja qualificado de doutor, ficaria muito aborrecido de
ser incluído entre aqueles que têm resposta para tudo.
Nem por isso minha defesa deixará de ser fácil. Li-
mitar-se-á a comparar com minha opinião as verdades

• A Resposta ao Discurso que recebeu o prêmio da Academia de Dijon foi


publicada no Mercure de France de setembro de 1751. O rei Estanislau I
Leszczynski (1677-1766), autor da resposta, foi eleito rei da Polônia em 1704
e deposto poucos anos depois. Em 17,25 casou a filha Maria com Luís XV e,
apoiado pela França, recebeu pelo ~tado de Viena (1735) o ducado de
Lorena e de Bar em troca de seu reino. Muito culto, governou sabiamente a
Lorena durante 28 anos, onde fundou a Academia de Nancy e inúmeros colé-
gios, hospitais e entidades filantrópicas. (N. da T)

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau __ - - - - ------ - - - - _ _ Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ __

que me objetam, pois, se eu provar que estas não a deni- de alguma maneira da inteligência suprema. Nesse senti-
grem, já será, creio eu, tê-la muito bem defendido. do louvei o saber, e nesse sentido é que louvo meu ad-
Posso reduzir a dois pontos principais todas as pro- versário. Ele estende-se ainda sobre os diversos gêneros
posições estabelecidas por meu adversário: um encerra de utilidade que o homem pode retirar das artes e das
o elogio das ciências, o outro trata de seus abusos. Exa- ciências, e de bom grado eu teria dito o mesmo, se isso
miná-Ios-ei separadamente. pertencesse a meu assunto. Assim estamos perfeitamen-
Parece, pelo tom da resposta, que ficariam muito sa- te de acordo nesse ponto.
tisfeitos se eu tivesse dito das ciências muito mais mal do Mas como pode ser possível que as ciências, cuja
que de fato disse. Supõe-se que seu elogio, que se en- fonte é tão pura e a finalidade tão louvável, engendrem
contra no inicio do meu Discurso, deva ter-me custado tantas impiedades, tantas heresias, tantos erros, tantos
muito; é, segundo o autor, uma confissão arrancada ã sistemas absurdos, tantas contradições, tantas inépcias,
verdade e que não tardei em retratar. tantas sátiras amargas, tantos romances insignificantes, tan-
Se tal confissão é um elogio arrancado pela verdade, tos versos licenciosos, tantos livros obscenos; e, naque-
cumpre portanto crer que eu pensava das ciências o bem les que as cultivam, tanto orgulho, tanta avareza, tanta
que delas disse; o bem que o próprio autor da resposta maldade, tantas cabalas, tantas invejas, tantas mentiras,
diz delas não é, pois, contrário à minha opinião. Essa tantas perfídias, tantas calúnias, tantas adulações covar-
confissão, dizem, é arrancada à força; tanto melhor para des e vergonhosas? Eu dizia que é porque a ciência, por
a minha causa, pois isso mostra que em mim a verdade mais bela e sublime que seja, não é feita para o homem;
é mais forte do que a predisposição. Mas com que base que ele tem o espírito tacanho demais para fazer grandes
pode-se julgar que esse elogio é forçado? Seria por estar progressos nela, e paixões demais no coração para dei-
mal feito? Seria intentar um processo bem terrível à sin- xar de fazer mau uso dela; que lhe basta estudar bem
ceridade dos autores julgá-los com base nesse novo prin- seus deveres, e que cada qual recebeu todas as luzes ne-
cípio. Seria por ser demasiado curto? Parece-me que eu cessárias para esse estudo. Meu adversário confessa, por
poderia facilmente ter dito menos coisas em mais pági- sua vez, que as ciências se tornam prejudiciais quando
nas. É, dizem, porque me retratei. Ignoro em que lugar delas .se abusa, e que muitos realmente abusam delas.
cometi esse erro, e tudo quanto posso responder é que Nisso, creio que não dizemos coisas muito diferentes;
essa não foi a minha intenção. . acrescento, é verdade, que delas se abusa muito, e que
A ciência é muito boa em si, isso é evidente, e seria delas se abusa sempre, e não me parece que se sustente
preciso renunciar ao bom senso para dizer o contrário. o contrário na resposta.
O autor de todas as coisas é a fonte da verdade; tudo co- Portanto, posso ~ssegurar que nossos princípios, e
nhecer é um dos seus atributos divinos. Logo, adquirir por conseguinte todas as proposições que deles se po-
conhecimentos e estender as luzes próprias é participar dem deduzir, nada têm de opostos, sendo isso o que eu

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tinha de provar. Entretanto, quando concluímos, as nos- doutrina; censuram-me ter eu próprio cultivado os estu-
sas duas conclusões mostram-se contrárias. A minha era dos que condenol5 • Uma vez que a ciência e a virtude são
que, já que as ciências fazem mais mal aos costumes do incompatíveis, como pretendem que eu me esforço por
que bem à sociedade, seria desejável que os homens se prová-lo, perguntam-me num tom assaz imperativo como
dedicassem a elas com menos ardor. A de meu adversá- ouso empregar uma declarando-me em favor da outra.
rio é que, conquanto as ciências produzam muito mal, Há muita habilidade em envolverem-me assim pes-
não se deve deixar de cultivá-las por causa do bem que soalmente na questão; essa mordacidade não pode dei-
trazem. Confio, não no público, mas no pequeno núme- xar de causar embaraço em minha resposta, ou melhor,
ro dos verdadeiros filósofos, para saber qual das duas em minhas respostas, pois infelizmente tenho de dar
conclusões deve ser preferida. mais de uma. Tentemos pelo menos que nelas a exatidão
Resta-me fazer algumas breves observações sobre al- remedie a falta de atrativo.
guns trechos dessa resposta, que me pareceram um tan- 1. Que o cultivo das ciências corrompe os costumes
to falhos na justeza que admiro de bom grado nos ou- de uma nação é o que ousei sustentar, é o que ouso
tros, e que por isso puderam contribuir para o erro da acreditar haver provado. Mas como poderia eu ter dito
conseqüência que o autor lhes tira. que em cada homem em particular a ciência e a virtude
A obra começa com algumas mordacidades que só são incompatíveis, eu que exortei os príncipes a chama-
salientarei na medida em que contribuírem para resolver rem para sua corte os verdadeiros sábios e a conceder-
a questão. O autor me honra com vários elogios e, sem lhes sua confiança, a fim de que se veja de uma vez por
dúvida, isso é abrir-me uma bela carreira. Mas há muito todas o que podem a ciência e a virtude reunidas fazer
pouca proporção entre essas coisas; um silêncio respei- para a felicidade do gênero humano? Esses verdadeiros
toso sobre os objetos de nossa admiração é, em geral, sábios são poucos, confesso, pois para fazer bom uso da
mais conveniente do que louvores indiscretos 13 • ciência cumpre reunir grandes talentos e grandes virtu-
Meu Discurso, dizem, tem com que surpreenderl4 • Pa- des. Ora, isso é o que podemos esperar apenas de algu-
rece-me que isso exigiria um esclarecimento. Ainda estão mas almas privilegiadas, mas que não devemos esperar
surpresos de vê-lo laureado; porém não é um prodígio de um povo inteiro. Portanto, não se poderia concluir de
ver laurear-se obras medíocres. Num sentido totalmente meus princípios que um homem não possa ser sábio e
diferente, essa surpresa seria tão honrosa para a Aca- virtuoso ao mesmo tempo.
demia de Dijon quanto injuriosa para a integridade das 2. Ainda que essa pretensa contradição realmente
academias em geral, sendo fácil perceber quanto provei- existisse, menos ainda poderiam pressionar-me pessoal-
to eu tiraria disso para a minha causa. mente por sua causa. Adoro a virtude, meu coração mo
Acusam-me, com frases bem agradavelmente dispos- testemunha; dizem-m~também claramente quão grande
tas, de contradição entre meu procedimento e minha é a distância entre esse amor e a prática que torna o ho-

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~~~~~~~~_~_Rousseau - - - - Discurso sobre as ciências e as artes _ _ __

mem virtuoso. Aliás, estou bem longe de possuir a ciên- tão fácil praticar não o é para o meu adversário, e esta é
cia, e mais ainda de afetar possuí-la. Acreditava que a uma diferença que não beneficia a minha réplica.
confissão ingênua que fiz no começo de meu Discurso O autor, observando que ataco as ciências e as artes
me resguardaria dessa imputação, temia bem mai~ que em razão de seus efeitos sobre os costumes, utiliza, para
me acusassem de julgar coisas que não conhecia. E fácil me responder, a enumeração das utilidades que se lhes
perceber como me era impossível evitar a um só tempo retiram em todos os Estados. É como se, para justificar
essas duas censuras. Quem sabe se não chegariam até a um acusado, se contentassem em provar que ele está
reuni-las, se eu me apressasse em dar a mão à palmató- bem de saúde, tem muita habilidade ou é muito rico.
ria nesse ponto, por pouco merecido que tal possa ser? Contanto que convenham comigo que as artes e as ciên-
3. Poderia contar, a esse respeito, o que diziam os cias nos tornam pessoas indignas, não discordarei que
Padres da Igreja sobre as ciências mundanas que despre- estas nos sejam aliás muito cômodas; é uma conformida-
zavam e às quais todavia recorriam para combater os de a mais que terão com a maioria dos vícios.
filósofos pagãos. Poderia citar a comparação que faziam O autor vai mais longe, e pretende ainda que o estu-
delas com os vasos dos egípcios roubados pelos israeli- do nos é necessário para admirar as belezas do universo,
tas. Mas irei me contentar, como derradeira resposta, em e que o próprio espetáculo da natureza, exposto, ao que
formular esta pergunta: se alguém viesse para matar-me parece, aos olhos de todos para a instrução dos simples,
e eu tivesse a felicidade de apoderar-me da sua arma, requer muita instrução nos observadores para ser perce-
ser-me-ia proibido, antes de jogá-la fora, utilizá-la para bido. Confesso que tal proposição me surpreende. Será
escorraçá-lo de minha casa? que se ordenou a todos os homens serem filósofos, ou
Se a contradição que me reprovam não existe, é des- ordenou-se apenas aos filósofos crerem em Deus? Em
necessário supor que quis apenas divertir-me com um frí- milhares de passagens, a Escritura nos exorta a adorar a
volo paradoxo, e isso me parece ainda mais desnecessá- grandeza e a bondade de Deus nas maravilhas de suas
rio porque o tom que usei, por pior que possa ser, pelo obras; não penso que em nenhum passo nos tenha pres-
menos não é aquele empregado nos ditos espirituosos. crevido estudar a física, nem que o autor da natureza
Está na hora de terminar de falar sobre o que me diz não seja tão adorado por mim que nada sei como por
respeito; jamais se ganha nada falando de si mesmo, aquele que conhece o cedro e o hissopo, a tromba da
sendo essa uma indiscrição que o público dificilmente mosca e a do elefante. Non enim nos Deus ista scire, sed
perdoa, mesmo quando se é forçado a tanto. A verdade tantum modo uti voluit.
é tão independente daqueles que a atacam e daqueles Acredita-se sempre dizer o que as ciências fazem
que a defendem, que os autores que discutem a seu res- quando se diz o ~ deveriam fazer. No entanto, isso me
peito bem deveriam esquecer-se reciprocamente; isso parece bem diferente. O estudo do universo deveria ele-
pouparia muito papel e tinta. Mas essa regra que me é var o homem ao seu criador, bem o sei, mas só eleva a

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vaidade humana. O filósofo, que se vangloria de pene- de sua ignorância se desenvolve ao aprender, e somente
trar nos segredos de Deus, ousa associar sua pretensa sa- para eles é que o estudo pode ser bom. Os espíritos ta-
bedoria à sabedoria eterna: aprova, censura, corrige, pres- canhos, mal aprendem alguma coisa, crêem tudo saber,
creve leis à natureza e limites à divindade; e, enquanto, não havendo espécie de tolice que essa persuasão não
ocupado com seus vãos sistemas, tem um trabalho imen- os faça dizer e fazer. Quanto mais conhecimentos adqui-
so para arranjar a máquina do mundo, o lavrador que vê re o homem, maisjacílidade tem para proceder bem. Vê-
a chuva e o sol fertilizarem alternadamente seu campo, se que, falando assim, o autor consultou bem mais seu
admira, louva e bendiz a mão que lhe propicia essas gra- coração do que observou os homens.
ças, sem se preocupar com a maneira pela qual estas lhe Ele afirma ainda que é bom conhecer o mal para
chegam. Não procura justificar sua ignorância ou seus aprender a fugir dele, e dá a entender que só se pode ter
vícios por sua incredulidade. Não censura as obras de certeza da virtude própria depois de tê-la posto à prova.
Deus e não se declara contra seu senhor para fazer bri- Essas máximas são pelo menos duvidosas e sujeitas a
lhar sua presunção. Jamais o dito ímpio de Alfonso X irá muitas discussões. Não é certo que, para aprender a pro-
parar no espírito de um homem comum; era a uma boca ceder com acerto, seja-se obrigado a saber de quantas
erudita que tal blasfêmia estava reservada. maneiras se pode fazer o mal. Temos um guia interior
A curiosidade natural ao homem, continuam, inspi- bem mais infalível do que todos os livros e que nunca
ra-lhe a vontade de aprender. Ele deveria então trabalhar nos abandona no momento de necessidade. Bastaria ele
para contê-la, como a todas as suas inclinações naturais. para nos conduzir inocentemente, se quiséssemos sem-
Suas carências jazem-no sentir a sua necessidade. Em pre escutá-lo. E como seríamos obrigados a experimen-
muitos aspectos os conhecimentos são úteis, no entanto tar nossas forças para nos assegurar de nossa virtude se
os selvagens são homens e não sentem essa necessida- um dos exercícios da virtude é fugir das ocasiões do
de. Suas utilizações impõem-lhe essa obrigação. Impõem- vício?
lhe, com muito mais freqüência, a de renunciar ao estudo O homem sábio está continuamente alerta e sempre
para aplicar-se aos seus deveres 16 . Seus progressos jazem- desconfia das próprias forças, reserva toda a sua cora-
no sentir o prazer deles. É por isso mesmo que deveria gem para quando for necessário e nunca se expõe inde-
desconfiar deles. Suas primeiras descobertas aumen- vidamente. O fanfarrão é aquele que se vangloria inces-
tam a avidez que tem de saber. Com efeito, isso aconte- santemente de mais do que pode fazer e que, depois de
ce aos que têm talento. Quanto mais ele conhece, mais ter ameaçado e insultado todo o mundo, apanha na pri-
sente que tem conhecimentos por adquirir. Ou seja, a meira refrega. Pergunto qual dos dois retratos se parece
única serventia de todo o tempo que perde é estimulá-lo mais com um filósofo às voltas com suas paixões.
a perder mais ainda; mas não há muito mais que um pe- Criticam-me de ter pretendido tomar os meus exem-
queno número de homens de talento em quem a noção plos de virtude aos antigos. É bem provável que teria
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-----~-- Discurso sobre as ciências e as artes

encontrado ainda mais se pudesse ter remontado a mais


mos, pois é importante apresentá-la fielmente aos ólhos
longe no tempo. Citei também um povo moderno, e não do leitor.
tenho culpa de ter encontrado apenas um. Criticam-me
Quanto mais o cristão examina a autenticidade de
ainda, numa máxima geral, de paralelos odiosos, nos
seus títulos, mais se tranqüiliza na posse de sua crença;
quais entram, dizem, menos zelo e eqüidade do que in-
veja de meus compatriotas e irritação contra meus con- quanto mais estuda a revelação, mais se fonalece na fé.
É nas divinas Escrituras que descobre sua origem e ex-
temporâneos. Contudo, ninguém, talvez, ame tanto quan-
to eu seu país e seus compatriotas. Além do mais, só celência; é nas doutas obras dos Padres da Igreja que
tenho uma palavra de resposta. Expus minhas razões e segue, de século em século, seu desenvolvimento; é nos
são elas que se devem pesar. Quanto às minhas inten- livros de moral e nos anais santos que encontra seus
ções, deve-se deixar o seu julgamento somente a quem exemplos e tira sua aplicação.
ele compete. Como? A ignorância arrebatará da religião e da vir-
Aqui não posso deixar passar em silêncio uma obje- tude apoios tão poderosos? E ensinará abenamente um
ção considerável que já me foi feita por um filósofo 17: doutor de Genebra que é a ela que se deve a irregularida-
Não será, dizem-me a esse respeito, ao temperamento, à de dos costumes? Ficaríamos mais espantados ainda de
falta de ocasião, à míngua de objeto, à economia do ouvir tão estranho paradoxo se não soubéssemos que a
governo, aos costumes, às leis, a qualquer outra causa singularidade de um sistema, por mais perigoso que seja,
que não às ciências que se deve atribuir essa diferen- é apenas uma razão a mais para quem só tem como
ça que por vezes se observa nos costumes em diferentes regra o espírito panicular.
países e em diferentes épocas? Atrevo-me a perguntar ao autor: Como pôde dar se-
Essa questão encerra grandes concepções e exigiria melhante interpretação aos princípios que estabeleci?
esclarecimentos extensos demais para convirem a este Como pôde acusar-me de censurar o estudo da religião,
escrito. Aliás, tratar-se-ia de examinar as relações muito eu que censuro sobretudo o estudo de nossas vãs ciên-
ocultas, mas muito reais, que se encontram entre a natu- cias, porque ele nos desvia do estudo de nossos deveres?
reza do governo e a índole, os costumes e os conheci- E o que é o estudo dos deveres do cristão, senão o de
mentos dos cidadãos, e isso me lançaria em discussões sua própria religião?
delicadas, que poderiam levar-me longe demais. Ade- Decerto eu deveria ter censurado expressamente to-
mais, ser-me-ia bem difícil falar de governo sem dar óti- das essas sutilidades pueris da escolástica, com as quais,
mos trunfos ao meu adversário, e, tudo bem pesado, es- com o pretexto de esclarecer os princípios da religião,
tas são pesquisas adequadas para se fazer em Genebra e aniquila-se-Ihe o espírito ao substituir a humildade cristã
em outras circunstâncias. pelo orgulho científico. Deveria ter me levantado com
Passo a uma acusação muito mais grave do que a
mais força contra esses ministros indiscretos que foram
objeção anterior. Vou transcrevê-la em seus próprios ter-
os primeiros a ousar levar as mãos à arca, para apoiar
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com seu fraco saber um edifício sustentado pela mão de bém com imenso cuidado todas as práticas da religião,
Deus. Deveria ter-me indignado contra esses homens frí- mas o Evangelho nos ensina o espírito dessa exatidão, e
volos que, com suas míseras questiúnculas, aviltaram a a importância que se lhe deve dar. Em suma, tinham to-
sublime simplicidade do Evangelho e reduziram a silo- dos eles muito pouca ciência e muito orgulho, não sen-
gismos a doutrina de Jesus Cristo. Mas trata-se, hoje, de do nisso que mais diferiam de nossos doutores de hoje.
defender-me e não de atacar. No estabelecimento da nova fé, não foi a sábios que
Vejo que é pela história e pelos fatos que deverá ter- Jesus Cristo quis confiar sua doutrina e seu ministério.
minar esta discussão. Se eu soubesse expor com poucas Seguiu em sua escolha a predileção que demonstrou em
palavras o que as ciências e a religião têm em comum todas as ocasiões pelos pequenos e simples. E nas instru-
desde o começo, talvez isso servisse para decidir a ques- ções que dava aos seus discípulos não se vê uma pala-
tão sobre esse ponto. vra de estudo nem de ciência, a não ser para assinalar o
O povo que Deus escolhera para si nunca cultivou desprezo que tinha por tudo isso.
as ciências e nunca lhe foi aconselhado seu estudo; en- Depois da morte de Jesus Cristo, doze pobres pesca-
tretanto, se esse estudo fosse útil para alguma coisa, teria dores e artesãos empreenderam instruir e converter o
sido mais necessário para ele do que qualquer outro. Ao mundo. Seu método era simples; pregavam sem arte,
contrário, seus chefes sempre fizeram esforços para man- mas com o coração convicto, e, de todos os milagres
tê-lo, tanto quanto possível, separado das nações idóla- com que Deus honrava sua fé, o mais impressionante era
tras e sábias que o circundavam. Precaução menos ne- a santidade da vida deles; seus discípulos seguiram esse
cessária no que diz respeito a um vizinho do que ao ou- exemplo e o sucesso foi prodigioso. Os sacerdotes pa-
tro, pois esse povo fraco e grosseiro era bem mais fácil gãos, alarmados, deram a entender aos príncipes que o
de seduzir pelos embustes dos sacerdotes de Baal do Estado estava perdido porque diminuíam as oferendas.
que pelos sofismas dos filósofos. Surgiram as perseguições, e os perseguidores limitaram-
Depois das dispersões freqüentes entre os egípcios e se a acelerar os progressos dessa religião que queriam
os gregos, a ciência teve ainda mil dificuldades para ger- sufocar. Todos os cristãos corriam para o martírio, todos
minar nas cabeças dos hebreus. Josefo e Filão, que em os p0VOS corriam para o batismo; a história desses pri-
qualquer outro lugar não teriam passado de dois homens meiros tempos é um prodígio contínuo.
medíocres, foram prodígios entre eles. Os saduceus, re- Os sacerdotes dos ídolos, porém, não contentes em
conhecíveis por sua irreligião, foram os filósofos de Jeru- perseguir os cristãos, puseram-se a caluniá-los; os filóso-
salém; os fariseus, grandes hipócritas, foram seus douto- fos, que não levavam proveito numa religião que prega
res 18 • Estes, conquanto restringissem quase que toda a sua a humildade, juntaram-se aos sacerdotes. Os simples se
ciência ao estudo da Lei, faziam tal estudo com todo o tornavam cristãos, é verdade, mas os sábios zombavam
fausto e toda a suficiência dogmática. Observavam tam- deles, e sabe-se com que desprezo o próprio São Paulo

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foi recebido pelos atenienses. Choviam de todos os la- A Igreja, mais de uma vez, ergueu-se contra tais abu-
dos os motejos e as injúrias sobre a nova seita. Foi pre- sos. Seus mais ilustres defensores os deploraram com fre-
ciso tomar da pena para se defender. São Justino, o Már- qüência em termos cheios de força e de energia; com
tirl9 , escreveu a primeira apologia da sua fé. Atacaram-se freqüência tentaram banir dela toda essa ciência munda-
os pagãos por sua vez; atacá-los era vencê-los. Os pri- na, que lhe maculava a pureza. Um dos papas mais ilus-
meiros sucessos encorajaram outros escritores; com o pre- tres chegou mesmo ao excesso de zelo de sustentar que
texto de expor a torpeza do paganismo, lançaram-se na era algo vergonhoso sujeitar a palavra de Deus às regras
mitologia e na erudiçã0 20 ; quiseram mostrar ciência e cul- da gramática.
tura, os livros apareceram em profusão, e os costumes Clamaram, porém, em vão; arrastados pela torrente,
começaram a relaxar-se. foram eles mesmos obrigados a conformar-se com a prá-
Logo não mais se contentaram com a simplicidade do tica que condenavam, sendo de uma maneira muito eru-
Evangelho e da fé dos apóstolos; impunha-se ter cada vez dita que a maior parte deles invectivou contra o progres-
mais espírito do que seus antecessores. Discorreram com so das ciências.
sutileza sobre todos os dogmas; cada qual quis sustentar Depois de longas agitações, as coisas adquiriram uma
sua opinião, ninguém quis ceder. Surgiu a ambição de ser situação mais estável. Por volta do século X, a chama das
chefe de seita, em toda parte pulularam as heresias. ciências deixou de iluminar a terra; o clero permaneceu
A exaltação e a violência não tardaram a juntar-se à imerso numa ignorância que não quero justificar, já que
disputa. Aqueles cristãos tão doces, que só sabiam es- esta abrangia tanto as coisas que ele deve saber quanto
tender a garganta aos cutelos, tornaram-se entre si per- aquelas que lhe são inúteis, mas na qual a Igreja ganhou
seguidores furiosos, piores do que os idólatras; todos pelo menos um pouco mais de tranqüilidade do que até
mergulharam nos mesmos excessos, e o partido da ver- então experimentara.
dade não foi sustentado com mais moderação do que o Depois do renascimento das letras, não tardaram a
do erro. recomeçar as divisões, mais terríveis do que nunca. Ho-
Outro mal, ainda mais perigoso, nasceu da mesma mens sábios desencadearam a discussão, homens sábios
fonte. Foi a introdução da antiga filosofia na doutrina a sustentaram, e os mais capazes mostraram-se sempre
cristã. À força de estudar os filósofos gregos, acreditaram os mais obstinados. Foi em vão que se organizaram con-
ver neles relações com o cristianismo. Ousaram acreditar ferências entre os doutores dos diferentes partidos; ne-
que assim a religião ficaria mais respeitável, revestida da nhum deles lhes levava o amor da reconciliação, nem
autoridade da filosofia. Houve um tempo em que cum- talvez o da verdade; todos eles lhes levavam apenas o
pria ser platônico para ser ortodoxo, e pouco faltou para desejo de brilhar à custa do adversário, cada qual queria
que, primeiro Platão, e depois Aristóteles, fossem colo- vencer, ninguém queria instruir-se, o mais forte impunha
cados no altar ao lado de Jesus Cristo. silêncio ao mais fraco; a discussão terminava sempre por

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_____________________ Rom~au _____________________ _________ Discurso sobre as ciências e as arfes ____________

injúrias e a perseguição sempre foi o seu fruto. Só Deus me. Não tendes necessidade de conhecê-la, nem de en-
sabe quando findarão todos esses males. siná-la a mim, e vosso ministério está concluído. Em tudo
As ciências estão florescentes hoje, a literatura e as isso não se trata de literatura, nem de filosofia. É assim
artes brilham entre nós. Que proveito tirou disso a reli- que convém seguir e pregar o Evangelho, e foi assim
gião? Perguntemo-lo a essa multidão de filósofos que se que seus primeiros defensores o fizeram triunfar sobre
vangloriam de não a ter. Nossas bibliotecas regurgitam de todas as nações, non aristotelico more, diziam os Padres
livros de teologia, e os casuístas formigam entre nós. Ou- da Igreja, sed piscatori0 21 •
trora tínhamos santos e não casuístas. A ciência se ex- Percebo que estou sendo interminável, mas acreditei
pande e a fé se extingue. Todo o mundo quer ensinar a não poder dispensar-me de estender-me um pouco so-
bem proceder, e ninguém quer aprendê-lo; tornamo-nos bre um ponto da importância deste. Ademais, os leitores
todos doutores, e deixamos de ser cristãos. impacientes devem refletir quão cómoda é a crítica, pois,
Não, não foi com tanta arte e aparato que o Evange- onde se ataca com uma palavra, são necessárias páginas
lho se espraiou por todo o universo e que sua beleza para se defender.
arrebatadora penetrou nos corações. Esse livro divino, o Passo à segunda parte da resposta, na qual me em-
único necessário a um cristão, e o mais útil de todos, mes- penharei em ser mais breve, conquanto nela não encon-
mo para quem não o for, só precisa ser meditado para tre muito menos observações para fazer.
levar à alma o amor de seu autor e a vontade de cumprir Não é das ciências, dizem-me, é do seio das riquezas
os seus preceitos. Jamais a virtude falou tão doce lingua- que em todos os tempos nasceram a indolência e o luxo.
gem; jamais a mais profunda sabedoria se expressou com Eu não disse tampouco que o luxo tinha nascido das
tanta energia e simplicidade. Não se larga sua leitura sem ciências, mas que nasceram junto e quase nunca um vive
se sentir melhor do que antes. Oh! vós, ministros da Lei sem o outro. Eis como ordenaria essa genealogia. A pri-
que nele me é anunciada, empenhai-vos menos em ins- meira fonte do mal é a desigualdade; da desigualdade
truir-me em tantas coisas inúteis. Deixai de lado todos vieram as riquezas, pois as palavras pobre e rico são re-
esses livros eruditos, que não podem convencer-me, nem lativas e, em toda parte em que os homens forem iguais,
me tocar. Prosternai-vos aos pés desse Deus de miseri- não haverá ricos nem pobres. Das riquezas nasceram o
córdia que vos encarregastes de fazer-me conhecer e luxo e a ociosidade; do luxo vieram as belas-artes e, da
amar; pedi-lhe para vós essa humildade profunda que ociosidade, as ciências. Em tempo algum as riquezas fo-
deveis pregar-me. Não ostentai aos meus olhos essa ciên- ram o apanágio dos sábios. É nisso mesmo que reside o
cia orgulhosa, nem esse fausto indecente que vos deson- mal maior; os ricos e os sábios só servem para corrom-
ram e me revoltam; sede vós mesmos tocados se quiser- per-se mutuamente. Se os ricos fossem mais sábios, ou
des que eu o seja, e, sobretudo, mostrai-me em vossa se os sábios fossem mais ricos, uns não seriam tão covar-
conduta a prática dessa lei em que pretendeis instruir- des aduladores, os outros não gostariam tanto da abjeta

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adulação, e com isso todos valeriam mais. É isso que se te, muito lucrativas, têm mais condições de conseguir
pode ver pelo pequeno número dos que têm a felicida- tudo quanto desejam. Trabalham apenas para os ricos.
de de ser sábios e ricos ao mesmo tempo. Para um Pla- No rumo que tomam as coisas, não ficaria espantado de
tão na opulência, para um Aristipo com crédito na corte, ver um dia os ricos trabalharem para eles. E são os ricos
quantos filósofos reduzidos ao manto e ao alforje, envol- ociosos que se aproveitam e abusam dos frutos de seu
vidos em sua própria virtude e ignorados em sua solidão? engenho. Mais uma vez, não creio que nossos artistas
Não discordo de que haja grande número de filósofos sejam pessoas tão simples e tão modestas. O luxo não
muito pobres e certamente muito aborrecidos de o se- poderia reinar numa classe de cidadãos sem logo intro-
rem; não duvido tampouco que seja somente ã sua po- duzir-se em todas as outras, com diferentes modificações,
breza que a maioria deles deve sua filosofia; porém, e em todas elas faz a mesma devastação.
mesmo que eu admitisse supô-los virtuosos, seria basea- O luxo tudo corrompe, tanto o rico que o desfruta
do em seus costumes, que o povo não vê, que este apren- como o miserável que o cobiça. Não se poderia dizer
deria a reformar os seus? Os sábios não têm nem o gosto, que seja um mal em si usar punhos de renda, um traje
nem o tempo de amealhar grandes bens. Consinto em crer bordado e uma caixa de rapé esmaltada. Mas é um gran-
que não têm tempo para tanto. Amam o estudo. Aquele de mal dar importância a essas ninharias, julgar feliz o
que não amasse o seu ofício seria um homem muito povo que as usa e consagrar o tempo e os cuidados, que
louco, ou então muito miserável. Vivem na mediocrida- todo homem deve a objetivos mais nobres, a preparar-se
de. Cumpre estar extremamente inclinado em favor deles para adquirir semelhantes. Não tenho necessidade de
para conceder-lhes mérito por isso. Uma vida laboriosa saber qual é o ofício de quem se ocupa com tais idéias
e moderada, passada no silêncio da solidão, ocupada para saber o juízo que devo fazer dele.
pela leitura e pelo trabalho, certamente não é uma vida Apresentei o belo retrato que nos fazem aqui dos sá-
voluptuosa e criminosa. Não, pelo menos aos olhos dos bios e creio poder converter em mérito meu essa com-
homens; tudo depende do íntimo. Um homem pode ser placência. Meu adversário é menos indulgente, não só
obrigado a levar uma vida assim e ter, no entanto, a alma não me concede nada que possa me recusar, mas em vez
muito corrompida. Aliás, o que importa que ele próprio de dar a mão ã palmatória no que toca ao mal que penso
seja virtuoso e modesto, se os trabalhos com que se de nossa vã e falsa polidez prefere desculpar a hipocri-
ocupa alimentam a ociosidade e degeneram o espírito de sia. Pergunta-me se eu gostaria que o vício se mostrasse
seus concidadãos? As comodidades da vida, ainda que a descoberto. Claro que eu gostaria. A confiança e a esti-
amiúde sejam o fruto das artes, nem por isso são o qui- ma renasceriam entre os bons, aprenderíamos a descon-
nhão dos artistas. Não me parece muito que eles sejam fiar dos maus e com isso a sociedade ficaria mais segura.
pessoas que as rejeitem, mormente aqueles que, ocu- Prefiro que meu inimigo me ataque de armas na mão a
pando-se com artes totalmente inúteis e, por conseguin- que venha traiçoeiramente ferir-me por trás. Como! Cum-

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pnna juntar o escândalo ao crime? Não sei, mas bem guém jamais viu foi um hipócrita tornar-se homem de
gostaria que não lhe juntassem a falsidade. São muito cô- bem. Poder-se-ia, sensatamente, ter-se tentado a conver-
modas para os corruptos todas essas máximas que nos são de Cartouche*, jamais um homem prudente teria
impingem há muito tempo sobre o escândalo; se as qui- empreendido a de Cromwell.
séssemos seguir rigorosamente, seria preciso deixar-se Atribuí ao estabelecimento das letras e das artes a
pilhar, trair, matar impunemente e jamais punir ninguém, elegância e a polidez que reinam em nossas maneiras. O
pois é um objeto muito escandaloso um celerado sofren- autor da resposta mo contradiz, o que me espanta, pois,
do o suplício da roda. Mas será a hipocrisia uma home- uma vez que ele dá tanta importância à polidez e dá
nagem que o vício presta à virtude? Sim, como aquela tanta importância às ciências, não percebo em que van-
dos assassinos de César, que se prosternavam aos seus tagem reverterá privar uma dessas coisas da honra de
pés para degolá-lo com mais precisão. Por mais brilhan- haver produzido a outra. Mas examinemos as suas pro-
te que seja esse pensamento, por mais autoridade que vas, que se reduzem ao seguinte: Não se nota que os sá-
lhe dê o nome de seu autor22 , nem por isso é mais justo. bios sejam mais polidos do que os outros homens; ao con-
Acaso dir-se-á de um larápio, que veste a libré de uma trário, amiúde o são muito menos; logo, nossa polidez
casa para dar seu golpe com mais comodidade, que pres- não é obra das ciências.
ta homenagem ao dono da casa que rouba? Não, cobrir Observarei, primeiramente, que nesse caso se trata
sua maldade com o perigoso manto da hipocrisia não é menos de ciências do que de literatura, de belas-artes e
honrar a virtude, é ultrajá-la profanando-lhe as insígnias; de obras de gosto; e nossos letrados, por menos sábios
é acrescentar a covardia e a trapaça a todos os outros que sejam, mas tão polidos, tão conhecidos, tão brilhan-
vícios, é impedir em definitivo a si próprio qualquer vol- tes, tão pernósticos, dificilmente se reconhecerão no ar
ta à probidade. Há temperamentos elevados que man-
rabugento e pedantesco que o autor da resposta quer
têm até no crime algo de altivo e de generoso, que ainda
atribuir-lhes. Concedamos-lhe, porém, esse antecedente,
deixa ver no íntimo uma centelha desse fogo celeste fei-
concordemos, se preciso for, que os eruditos, os poetas
to para animar as belas almas. Mas a alma vil e rastejan-
e os letrados são todos igualmente ridículos; que os se-
te do hipócrita é semelhante a um cadáver, em que já
nhores da Academia de Belas-Letras, os senhores da
não se encontra nem fogo, nem calor, nem possibilidade
Academia de Ciências, os senhores da Academia France-
de vida. Recorro à experiência. Viram-se grandes celera-
sa são homens grosseiros, que não conhecem as boas
dos recolher-se em si mesmos, terminar santamente* sua
maneiras nem os costumes da sociedade, e são excluí-
carreira e morrer como predestinados. Mas o que nin-

• Louis-Dominique Bourguignon, célebre bandido francês 0693-1721), a


• Algumas edições trazem "saudavelmente" em vez de santamente. quem se atribuíam aventuras de toda espécie. Morreu no suplício da roda .
(N. da T.) (N. da T.)

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dos por sua profissão da sociedade de escol. O autor multiplica os vícios, que degrada a razão, avilta a alma e
pouco ganhará com esse fato, e nem por isso terá mais torna os homens semelhantes aos animais: é essa a igno-
direito de negar que a polidez e a urbanidade reinantes rância que o autor ataca e da qual pinta um retrato muito
entre nós sejam a conseqüência do bom gosto, a princí- odioso e muito parecido. Há outra espécie de ignorância
pio extraído dos antigos e difundido entre os povos da razoável, que consiste em limitar sua curiosidade à ex-
Europa pelos livros agradáveis que se publicam em toda tensão das faculdades que se recebeu; uma ignorância
a parte 23 • Como os melhores professores de dança nem modesta, que nasce de um vivo amor pela virtude e só
sempre são as pessoas que melhor se apresentam, é pos- inspira indiferença por todas as coisas que não são dig-
sível dar ótimas lições de polidez sem querer ou poder nas de encher o coração do homem e não contribuem
ser em pessoa muito polido. Esses enfadonhos comenta- para torná-lo melhor; uma doce e preciosa ignorância,
dores que, dizem-nos, conheciam tudo dos antigos, afo- tesouro de uma alma pura e contente consigo mesma,
ra a graça e a delicadeza, não deixaram, com suas obras que põe toda a sua felicidade em ensimesmar-se, em tes-
úteis, embora menosprezadas, de nos ensinar a perceber temunhar sua inocência e que não tem necessidade de
essas belezas que não percebiam. Ocorre o mesmo com buscar uma falsa e vã felicidade na opinião que os ou-
esse encanto do trato e com essa elegância dos costumes tros poderiam ter de suas luzes. Eis a ignorância que elo-
que se substituem à sua pureza e que se fizeram notar giei e a que peço ao céu como punição do escândalo
em todos os povos entre os quais as letras eram admira- que causei aos doutos com meu desprezo declarado pe-
das; em Atenas, em Roma, na China, em todos os luga- las ciências humanas.
res viu-se a polidez, da linguagem e das maneiras, acom- Que se comparem, diz o autor, com aqueles tempos
panhar sempre, não os sábios e os artistas, mas as ciên- de ignorância e de barbárie estes séculos felizes em que
cias e as belas-artes. as ciências difundiram por toda a parte o espírito de or-
O autor ataca em seguida os elogios que fiz à igno- dem e de justiça. Estes séculos felizes serão difíceis de
rância e, censurando-me por ter falado mais como ora- encontrar; porém encontraremos com mais facilidade
dor do que como filósofo, descreve por sua vez a igno- outros em que, graças às ciências, ordem e justiça não
rância; e bem se pode desconfiar que não lhe atribui be- serão mais do que palavras vãs, feitas para ludibriar o
las cores. povo, e em que a aparência delas terá sido conservada
Não nego que tenha razão, mas não creio estar erra- com cuidado para destruí-las de fato mais impunemente.
do. Basta uma distinção muito justa e verdadeira para que Vemos em nossos dias guerras menos freqüentes, porém
entremos em acordo. mais justas. Em qualquer tempo que seja, como poderá
Há uma ignorância feroz 24 e brutal que nasce de um a guerra ser mais justa num dos partidos, sem ser injusta
mau coração e de um espírito falso; uma ignorância cri- no outro? Eu não poderia conceber isso! Ações menos
minosa que se estende aos deveres da humanidade, que surpreendentes, porém mais heróicas. Decerto ninguém

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negará ao meu adversário o direito de julgar o heroísmo, Detenhamo-nos um instante nesta última conse-
mas pensará ele que o que não é surpreendente para ele qüência, e evitemos a concluir daí que hoje seja preciso
o seja para nós? Vitórias menos sangrentas, porém mais queimar todas as bibliotecas e destruir as universidades
gloriosas; conquistas menos rápidas, porém mais segu- e as academias. Apenas tornaríamos a mergulhar a Euro-
ras; guerreiros menos violentos, porém mais temíveis, que pa na barbárie e os costumes nada ganhariam com iss025 •
sabem vencer com moderação, tratar os vencidos com É com pesar que vou pronunciar uma grande e fatal ver-
humanidade; a honra é seu guia, a glória sua recompen- dade. Não há mais do que um passo do saber à ignorân-
sa. Não nego ao autor que haja grandes homens entre cia, e a alternância de um para a outra é freqüente entre
nós, ser-lhe-ia muito fácil fornecer a prova; o que não as naçôes; mas nunca se viu um povo, uma vez corrom-
impede que os povos sejam muito corrompidos. De mais pido, voltar à virtude. Em vão pretendereis destruir as
a mais, essas coisas são tão vagas que se poderiam dizer fontes do mal; em vão suprimiríeis os alimentos da vai-
de quase todas as épocas, sendo impossível responder a dade, da ociosidade e do luxo; em vão, também, traríeis
elas, porque seria preciso folhear bibliotecas e fazer infó- os homens de volta a essa primeira igualdade, conserva-
lios para estabelecer provas pró ou contra. dora da inocência e fonte de todas as virtudes: seus cora-
Quando Sócrates criticou as ciências, não poderia, ções, uma vez estragados, assim permanecerão; não há
ao que me parece, ter em vista nem o orgulho dos estói- mais remédio, a não ser uma grande revolução quase tão
cos, nem a indolência dos epicuristas, nem o absurdo temível como o mal que poderia curar, e que é condená-
jargão dos pirrônicos, porque nenhuma dessas pessoas vel desejar e impossível prever.
existia em seu tempo. Mas esse leve anacronismo não é Deixemos, portanto, as ciências e as artes ameniza-
desdouro para meu adversário; ele encontrou melhor rem de algum modo a ferocidade dos homens que elas
emprego para a sua vida do que verificar datas, e não é corromperam; tentemos fazer delas um derivativo sen-
mais obrigado a saber de cor seu Diógenes Laércio do sato, empenhemo-nos em mudar o objeto de suas pai-
que eu a ter visto de perto o que sucede nos combates. xões. Ofereçamos alguns alimentos a esses tigres, a fim
Convenho, pois, que Sócrates só pensou em enfati- de que não devorem nossos filhos. As luzes do mau são
zar os vícios dos filósofos de seu tempo; mas não sei o tambêm menos temíveis do que a sua brutal estupidez;
que concluir daí, senão que desde aquele tempo os vícios pelo menos elas o tornam mais cauteloso quanto ao mal
pululavam com os filósofos. Respondem-me que isso que poderia fazer por conhecer aquele que ele próprio
provém do abuso da filosofia, e não penso ter dito o con- receberia.
trário. Como! Cumprirá então suprimir todas as coisas de Elogiei as academias e seus ilustres fundadores, e de
que se abusa? Sim, sem dúvida, responderei eu sem hesi- bom grado repetirei o elogio. Quando o mal é incurável,
tar; todas aquelas que são inúteis; todas aquelas cujo abu- o médico aplica paliativos e proporciona os remédios me-
so traz mais mal do que o bem que traz o seu uso. nos conforme as necessidades do que conforme o tem-

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peramento do doente. Cabe aos sábios legisladores lhe


imitarem a prudência e, não mais podendo adaptar aos
povos doentes a melhor das polícias, dar-lhes ao menos,
como Sólon, a melhor que possam suportar.
Há na Europa um grande príncipe e, o que importa
muito mais, um virtuoso cidadão que, na pátria que ado-
tou e faz feliz, acaba de fundar várias instituições em
prol das letras. Fez com isso algo muito digno de sua sa-
bedoria e de sua virtude. Quando se trata de estabeleci-
mentos políticos, são o tempo e o lugar que tudo deci-
dem. Urge, em seus próprios interesses, que os príncipes ÚLTIMA RESPOSTA DE J.-J. ROUSSEAU
sempre favoreçam as ciências e as artes; já disse a razão
Ne, dum tacemus, non verecundiae
disso e, no estado atual de coisas, urge também que hoje
sed dijJidentiae causa tacere videamur*
as favoreçam para o próprio interesse dos povos. Se hou-
vesse atualmente entre nós algum monarca tacanho o Cypriano, contra Demet.
bastante para pensar e agir de outro modo, seus súditos
permaneceriam pobres e ignorantes, e nem por isso se-
riam menos corruptos. Meu adversário descuidou de ti-
rar vantagem de um exemplo tão convincente e, aparen-
temente, tão favorável à sua causa; talvez seja o único
que o ignora, ou que nele não tenha pensado. Que per-
mita, pois, que lho lembre; que não recuse às grandes
coisas os elogios que lhes são devidos; que as admire,
assim como nós, e não se obstine mais contra as verda-
des que ataca.

• "Para que nào se pense que a causa de nosso silêncio seja o temor, mas
a desconfiança." Sào Cipriano, um dos mais ilustres padres da Igreja latina, foi
bispo de Cartago no século III d.e. (N. da T)

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Última resposta* deJ.-J. Rousseau,
de Genebra 26

É com extrema repugnância que entretenho com


meus debates leitores ociosos que se preocupam muito
pouco com a verdade; porém, a maneira pela qual aca-
bam de atacá-la força-me a tomar sua defesa mais uma
vez, a fim de que meu silêncio não seja considerado pelo
vulgo como uma confissão, nem pelos filósofos como um
desdém.
Cumpre repetir-me, bem o reconheço, e o público
não mo perdoará. Os sábios, porém, dirão: Este homem
não carece de procurar incessantemente novas razões, é
uma prova da solidez das suas 27 •
Como aqueles que me atacam nunca deixam de des-
viar-se da questão e de suprimir as distinções essenciais
que nela coloquei, cumpre sempre começar por trazê-los
de volta a ela. Eis portanto um sumário das proposições
que sustentei e sustentarei por todo o tempo em que não
consultar outro interesse senão o da verdade.

• Publicada em abril de 1752, esta resposta se refere ao Discurso sobre


\ as vantagens das ciências e das artes, pronunciado em 22 de junho de 1751
por Charles Borde (e não Bordes, como escrevia Rousseau) diante da Acade-
mia de Lyon. Poeta e literato, Charles Borde (1711-1781), antigo amigo de
Rousseau, passa a combatê-lo de um modo irreverente e sarcástico. (N. da T)

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ __ _ Discurso sobre as ciências e as artes - - - - - - -

As ciências são a obra-prima do gênio e da razão. O bons costumes, desde que se é dispensado de ser ho-
espírito de imitação produziu as belas-artes, e a expe- mem de bem contanto que se seja um homem agradável.
riência as aperfeiçoou. Devemos às artes mecânicas gran- Quanto mais o interior se corrompe, mais compostu-
de número de invenções úteis que contribuíram para os ra adquire o exterior30 ; é assim que a cultura das letras en-
encantos e as comodidades da vida. Estas são verdades gendra insensivelmente a polidez. O gosto também nas-
com as quais concordo seguramente de bom grado. Mas ce da mesma fonte. Sendo a aprovação pública o primei-
consideremos agora todos esses conhecimentos com re- ro prêmio dos trabalhos literários, é natural que os que
deles se ocupam reflitam sobre os meios de agradar; e são
lação aos costumes28 .
essas reflexões que com o tempo formam o estilo, apri-
Se inteligências celestiais cultivassem as ciências, dis-
moram o gosto e espalham por toda parte a gentileza e
so só resultaria o bem; digo o mesmo dos grandes ho-
a urbanidade. Todas essas coisas serão, se preferirem, o
mens, que são feitos para guiar os demais. Sócrates, sá-
suplemento da virtude, mas jamais se poderá dizer que
bio e virtuoso, foi uma honra para a humanidade, mas os
sejam a virtude, e raramente se associarão a ela. Haverá
vícios dos homens comuns envenenam os conhecimen-
sempre esta diferença: aquele que se torna útil trabalha
tos mais sublimes e os tornam perniciosos às nações; os para os outros, e aquele que só pensa em tornar-se agra-
maus tiram deles muitas coisas nocivas; os bons pouco dável trabalha apenas para si. O adulador, por exemplo,
proveito tiram. Se ninguém mais além de Sócrates tives- não poupa nenhum cuidado para agradar e, no entanto,
se pretensões filosóficas em Atenas, o sangue de um jus- só faz o mal.
to não teria clamado vingança contra a pátria das ciên- A vaidade e a ociosidade, que engendraram nossas
cias e das artes 29 • ciências, também engendraram o luxo. O gosto do luxo
É uma questão para ser examinada, se seria provei- sempre acompanha o das letras, e o gosto das letras
toso aos homens possuírem a ciência, supondo-se que acompanha amiúde o do lux031 • Todas essas coisas fazem
aquilo que chamam por esse nome o merecesse de fato; assaz fiel companhia umas às outras, porque são obra dos
mas é uma loucura pretender que as quimeras da filoso- mesmos vícios.
fia, os erros e as mentiras dos filósofos possam um dia ter Se a experiência não se adaptasse a essas proposi-
alguma serventia. Seremos nós sempre logrados pelas ções demonstradas, seria preciso procurar as causas par-
palavras? E compreenderemos um dia que estudos, co- ticulares dessa contradição. Mas a primeira idéia dessas
nhecimentos, saber e filosofia não passam de vãos simu- proposições nasceu, ela mesma, de uma longa meditação
lacros erguidos pelo orgulho humano, e muito indignos sobre a experiência, e, para se ver a que ponto as con-
dos pomposos nomes que ele lhes dá? firma, basta abrir os anais do mundo.
À medida que o gosto dessas parvoíces se difunde ) Os primeiros homens foram muito ignorantes. Como
numa nação, esta perde o gosto das virtudes sólidas, pois se ousaria dizer que eram corrompidos nos tempos em
custa menos distinguir-se pela tagarelice do que pelos que as fontes da corrupção ainda não estavam abertas?

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_____________________ Ro~eau ______________________ Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ _ _.

Através da obscuridade dos antigos tempos e da rus- prezá-la. É quando uma nação atingiu por fim este ponto
ticidade dos antigos povos, percebem-se em vários deles que se pode dizer que a corrupção está no auge e já não
imensas virtudes, sobretudo uma severidade de costu- se devem esperar remédios.
mes que é um sinal infalível de sua pureza, a boa-fé, a Tal é o sumário das coisas que afirmei e cujas pro-
hospitalidade, a justiça e, o que é muito importante, um vas creio ter apresentado. Vejamos agora o da doutrina
grande horror pela devassidã0 32 , mãe fecunda de todos que me opõem.
os outros vícios. Logo, a virtude não é incompatível com "Os homens são naturalmente maus; assim o foram
a ignorância. antes da formação das sociedades e, em todos os lugares
Tampouco é sempre sua companheira, pois vários aos quais as ciências não levaram sua chama, os povos,
povos muito ignorantes eram muito depravados. A igno- abandonados apenas às faculdades do instinto, reduzi-
rância não é um obstáculo nem para o bem nem para o dos, com os leões e os ursos, a uma vida puramente ani-
mal, é somente o estado natural do homem33 • mal, ficaram mergulhados na barbárie e na miséria.
Não se poderá dizer o mesmo da ciência. Todos os Apenas a Grécia, nos tempos antigos, pensou e ele-
povos sábios foram corrompidos, o que já é um terrível vou-se pelo espírito a tudo quanto pode tornar um povo
juízo antecipado contra ela. Mas, como são difíceis as recomendável. Filósofos formaram seus costumes e de-
comparações de um povo com outro povo, como nelas ram-lhe leis.
é preciso incluir um número muito grande de objetos, e Esparta, é verdade, foi pobre e ignorante por insti-
como sempre lhes falta exatidão em todos os aspectos, tuição e por escolha, mas suas leis tinham grandes defei-
fica-se muito mais seguro do que se faz seguindo a his- tos, seus cidadãos uma grande propensão para se deixar
tória de um mesmo povo e comparando os progressos corromper; sua glória foi pouco sólida, e logo ela perdeu
de seus conhecimentos com as revoluções de seus cos- suas instituições, suas leis e seus costumes.
tumes. Ora, o resultado desse exame é que a grande épo- Atenas e Roma também degeneraram. Uma cedeu à
ca, a época da virtude de cada povo, foi a de sua igno- fortuna da Macedônia, a outra sucumbiu à sua própria
rância e que, à medida que se foi tornando sábio, artista grandeza, porque as leis de uma pequena cidade não
e filósofo, perdeu seus costumes e sua probidade; tornou eram ~propriadas para governar o mundo. Se algumas
a descer, a esse respeito, à categoria das nações ignoran- vezes a glória dos grandes impérios não perdurou tanto
tes e corruptas que são a vergonha da humanidade. Se tempo junto com a das letras, tal aconteceu por ela estar
quiserem teimar em procurar diferenças, posso reconhe- no auge quando as letras neles foram cultivadas e por
cer uma: é que todos os povos bárbaros, mesmo aqueles ser o forte das coisas humanas não perdurar muito tem-
que não têm virtude, sempre reverenciam entretanto a po no mesmo estado. Admitindo-se, pois, que a alteração
virtude, ao passo que, à força de progredirem, os povos das leis e dos costumes tenha influído sobre esses gran-
sábios e filósofos chegam enfim a ridicularizá-la e a des- ) des acontecimentos, não se será forçado a convir que as

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~ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes _ ~ _ _ __

ciências e as artes tenham contribuído para isso; e pode- com uma declaração adequada para prevenir muito pa-
se observar, pelo contrário, que o progresso e a deca- lavreado, afirmo de uma vez por todas que, se algo pode
dência das letras são sempre proporcionais à fortuna e compensar a ruína dos costumes, estou pronto para con-
ao declínio dos impérios. vir que as ciências trazem mais bem do que mal. Volte-
Essa verdade é confirmada pela experiência dos últi- mos agora ao restante.
mos tempos, nos quais se vêem, numa monarquia vasta Eu poderia sem muito risco supor tudo isso prova-
e poderosa, a prosperidade do Estado, a cultura das ciên- do, uma vez que, de tantas asserções tão afoitamente
cias e das artes e a virtude guerreira concorrerem con- aventadas, há muito poucas que atinjam o âmago da
juntamente para a glória e a grandeza do império. questão, menos ainda outras das quais se possa tirar al-
Nossos costumes são os melhores que se possam ter; guma conclusão válida contra a minha opinião, e que a
vários vícios foram proscritos de nosso meio; aqueles maioria delas, se minha causa disso necessitasse, até for-
que nos restam pertencem à humanidade, e as ciências neceriam novos argumentos em meu favor.
para nada disso contribuem. De fato: 1. Se os homens são maus por natureza, po-
Também o luxo nada tem em comum com elas; as- de acontecer, caso se queira, que as ciências produzam
sim, as desordens que ele pode causar não lhes devem algum bem em suas mãos; mas é muito certo que causa-
ser atribuídas. Aliás, o luxo é necessário nos grandes Es- rão muito mais mal, pois nào se devem dar armas a
tados, aos quais traz mais bem do que mal; é útil para furiosos.
ocupar os cidadãos ociosos e para dar pão aos pobres. 2. Se as ciências raramente atingem seu objetivo,
A polidez deve ser incluída antes no número das vir- sempre haverá mais tempo perdido do que tempo bem
tudes do que no número dos vícios, pois impede os ho- empregado. E, ainda que fosse verdade que tivéssemos
mens de mostrarem-se tais como são; precaução muito encontrado os melhores métodos, a maioria dos nossos
necessária para torná-los suportáveis uns aos outros. trabalhos ainda seriam tão ridículos como os de um
As ciências raramente atingiram o objetivo que se homem que, muito certo de seguir exatamente o fio de
propõem, mas pelo menos visam a ele. Avança-se com prumo, quisesse levar um poço até o centro da terra.
passos lentos no conhecimento da verdade, o que não 3. Não devemos ter tanto medo da vida puramente
impede que se faça algum progresso nessa direção. animal, nem a considerar como o pior estado em que
Enfim, mesmo que fosse verdade que as ciências e pudéssemos cair, pois ainda seria melhor parecer com
as artes enfraquecem a coragem, ainda não seriam pre- uma ovelha do que com um anjo mau.
feríveis os bens infinitos que nos proporcionam a essa 4. A Grécia deveu seus costumes e suas leis a filóso-
virtude bárbara e selvagem que faz estremecer a huma- fos e legisladores. Concordo. Já disse cem vezes que é
nidade?" Deixo de lado o inútil e pomposo exame des- bom haver filósofos, contanto que o povo não se meta a
ses bens e, para começar, a respeito desse último ponto, sê-lo.

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5. Não ousando afirmar que Esparta não tinha boas rém, para falar com franqueza, não as acho suficiente-
leis, condenam as leis de Esparta por ter tido grandes de- mente provadas para ter a coragem de prevalecer-me
feitos, de sorte que, para retorquir às censuras que faço delas.
aos povos sábios de sempre terem sido corrompidos, Afirmam que os primeiros homens foram maus, daí
censuram aos povos ignorantes não terem atingido a se segue que o homem é naturalmente mau 35 • Esta não é
perfeição. uma asserção de pouca importância; parece-me que me-
6. O progresso das letras é sempre proporcional à recia ter sido provada. Os anais de todos os povos que
grandeza dos impérios. Seja. Vejo que sempre me falam ousam citar-me como prova são muito mais favoráveis à
de fortuna e de grandeza. Quanto a mim, falava de cos- suposição contrária e seriam necessários muitos testemu-
tumes e de virtude. nhos para obrigar-me a crer num absurdo. Antes que as
7. Nossos costumes são os melhores que homens horríveis palavras teu e meu fossem inventadas, antes
maus, como nós, podem ter. Pode ser. Proscrevemos vá- que houvesse essa espécie de homens cruéis e brutais
rios vícios, não discordo. Não acuso os homens deste sé-
chamados senhores e essa outra espécie de homens ve-
culo de terem todos os vícios; eles só têm aqueles das
lhacos e mentirosos chamados escravos, antes que hou-
almas covardes, são apenas velhacos e tratantes. Quanto
vesse homens bastante abomináveis para ousar ter o su-
aos vícios que pressupõem coragem e firmeza, conside-
pérfluo enquanto outros homens morrem de fome, antes
ro-os incapazes deles.
que uma dependência mútua os houvesse forçado a to-
8. O luxo pode ser necessário para dar pão aos po-
bres, mas, se não houvesse luxo, não haveria pobres34 • dos tornarem-se hipócritas, invejosos e traidores, eu gos-
Ele ocupa os cidadãos ociosos. E por que há cidadãos taria muito que me explicassem em que podiam consistir
ociosos? Quando a agricultura era admirada, não havia esses vícios, esses crimes que lhes condenam com tanta
miséria nem ociosidade e havia muito menos vícios. ênfase. Asseguram-me que há muito tempo se desiludi-
9. Vejo que se empenham muito pela causa do luxo, ram da quimera da idade de ouro. Por que não acrescen-
a qual fingem, porém, querer separar da causa das ciên- tam também que há muito tempo se desiludiram da qui-
cias e das artes. Concordarei, portanto, já que o querem mera da virtude?
tanto, que o luxo serve para a sustentação dos Estados, Eu disse que os primeiros gregos foram virtuosos an-
como as cariátides servem para sustentar os palácios que tes que a ciência os houvesse corrompido e não quero
decoram; ou melhor, como as vigas com as quais se es- retratar-me acerca desse ponto, conquanto, examinan-
coram construções deterioradas e que amiúde acabam do-os mais de perto, não deixo de desconfiar da solidez
por derrubá-las. Homens sábios e prudentes, saí de qual- das virtudes de um povo tão tagarela, nem da justiça dos
quer casa que esteja escorada. elogios que tanto gostava de se prodigalizar e que não
Isso pode mostrar quão fácil me seria virar em meu vejo confirmados por nenhum outro depoimento. O que
favor a maioria das coisas que pretendem opor-me. Po- me opõem a isso? Que os primeiros gregos, cuja virtude
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louvei, eram esclarecidos e sábios, porquanto foram filó- leis e aos costumes. Peço perdão aos meus adversários,
sofos que lhes formaram os costumes e lhes deram leis. mas não há meio de admitir esses seus sofismas.
Mas, com essa maneira de raciocinar, quem me impedi- Examinemos ainda um momento essa preferência
rá de dizer o mesmo de todas as outras nações? Os per- que se pretende dar à Grécia sobre todos os outros po-
sas não tiveram seus magos, os assírios seus caldeus, os vos e da qual parece que se fez um ponto capital. Ad-
hindus seus ginosofistas, os celtas seus druidas? Oco· não mirarei, se quiserem, povos que passam a vida na guerra
brilhou entre os fenícios, Atlas entre os líbios, Zoroastro ou nos bosques, que dormem deitados na terra e vivem
entre os persas, Zámolxis·· entre os trácios? E muitos até de legumes. Tal admiração é, de fato, muito digna de um
não pretenderam que a filosofia havia nascido entre os verdadeiro filósofo; só a um povo cego e estúpido cabe
bárbaros? Será que todos esses povos seriam sábios por admirar pessoas que passam a vida, não defendendo sua
esse motivo? Ao lado dos Milcíades e dos Temístocles, liberdade, mas roubando-se e traindo-se mutuamente
encontravam-se, dizem-me, os Aristides e os Sócrates. Ao para satisfazer sua indolência ou sua ambição e que ou-
lado, se preferirem, pois o que importa? Entretanto, Mil- sam alimentar sua ociosidade com o suor, o sangue e os
cíades, Aristides, Temístocles, que eram heróis, viveram trabalhos de um milhão de infelizes. Mas será entre esses
numa época, Sócrates e Platão, que eram filósofos, vive- homens grosseiros que se irá procurar a felicidade? Com
ram noutra; e quando se começaram a abrir escolas pú- muito mais razão seria ela procurada entre eles do que a
blicas de filosofia a Grécia, aviltada e degenerada, já ha- virtude entre os outros. Que espetáculo nos apresentaria
via renunciado à sua virtude e vendido a sua liberdade. o gênero humano, composto unicamente de lavradores,
A soberba Ásia viu suasforças inumeráveis quebran- de soldados, de caçadores e de pastores? Um espetáculo
tadas por um punhado de homens que a filosofia condu- infinitamente mais bonito do que o do gênero humano
zia à glória. É verdade, a filosofia da alma conduz à ver- composto de cozinheiros, de poetas, de impressores, de
dadeira glória, mas ela não se aprende nos livros. Tal é o ourives, de pintores e de músicos. Do primeiro quadro
efeito infalível dos conhecimentos do espírito. Peço ao lei- só se deve excluir a palavra soldado. A guerra por vezes
tor ficar atento a esta conclusão. Os costumes e as leis são é um dever, não sendo feita para ser um ofício. Todo
a única fonte do verdadeiro heroísmo. As ciências não homem deve ser soldado para a defesa de sua liberdade,
têm, portanto, o que fazer aí. Em suma, a Grécia deveu nenhum deve sê-lo para invadir a liberdade alheia, e
tudo às ciências, e o resto do mundo deveu tudo à Gré- morrer servindo à pátria é um encargo belo demais para
cia. Assim, nem a Grécia nem o mundo deveram nada às ser confiado a mercenários. Será preciso então, para ser
digno do nome de homem, viver como os leões e os ursos?
Se acaso tenho a felicidade de encontrar um único leitor
• Cognome de Artaxerxes III e Dario II, reis da Pérsia. (N. da T.)
•• Legislador mítico das tribos géticas da Trácia às quais, segundo Heró- imparcial e amigo da verdade, peço-lhe que lance um
doto, eie teria ensinado o dogma da imortalidade da alma. (N. da T.) olhar à sociedade atual, e observe quem são os que con-

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vivem como os leões e os ursos, como os tigres e os cro- riam eles para que essa fatal Esparta nunca houvesse
codilos. Erigir-se-á em virtude as faculdades do instinto existido! E eles, que pretendem que as grandes ações
para alimentar-se, perpetuar-se e defender-se? São virtu- servem apenas para ser celebradas, a que preço não gos-
des disso não tenhamos dúvidas, quando guiadas pela tariam que as dela nunca o tivessem sido! É algo terrível
raz~o e sabiamente dirigidas; e são, sobretudo, virtudes que, no meio da famosa Grécia que não devia, dizem,
quando empregadas na assistência aos nossos semelhan- sua virtude senão à filosofia, o Estado onde a virtude foi
tes. Não vejo nisso senão virtudes animais, pouco confor- mais pura e perdurou mais tempo tenha sido precisa-
mes à dignidade do nosso ser. O corpo é exercitado, mas mente aquele onde não havia filósofos. Os costumes de
a alma escrava apenas rasteja e fenece. Diria de bom Esparta sempre foram propostos como exemplo a toda a
grado, ao percorrer as pomposas investigações de todas Grécia; a Grécia inteira estava corrompida, e ainda havia
as nossas academias: "Não vejo aí senão engenhosas virtude em Esparta; a Grécia inteira era escrava, somen-
sutilezas, pouco conformes à dignidade do nosso ser. O te Esparta ainda era livre; é desolador. Mas, por fim, a
espírito é exercitado, mas a alma escrava só rasteja e altiva Esparta perdeu seus costumes e sua liberdade,
fenece." Retirai as artes do mundo, dizem-nos noutro como os havia perdido a sábia Atenas; Esparta acabou.
trecho, o que restará? Os exercícios do corpo e as paixões. O que posso responder a isso?
Vede, peço-vos, como a razão e a virtude sempre são Ainda duas observações sobre Esparta e passo para
esquecidas! As artes deram origem aos prazeres da al- outro assunto. Eis a primeira: Depois de ter estado várias
ma, os únicos que são dignos de nós. Quer dizer que vezes a ponto de vencer, Atenas foi vencida, é verdade e é
puseram outros no lugar daquele de bem proceder, surpreendente que não o tenha sido mais cedo, pois a
muito mais digno ainda de nós. Acompanhando-se o Ática era um país totalmente aberto e só podia defender-
espírito de tudo isso, ver-se-á, como nos raciocínios da se pela superioridade ocasional. Atenas deveria ter ven-
maioria dos meus adversários, um entusiasmo tão acen- cido por todas as espécies de razão. Era maior e muito
tuado pelas maravilhas do entendimento que aquela mais povoada do que a Lacedemônia; tinha grandes ren-
outra faculdade, infinitamente mais sublime e mais capaz das e vários povos eram seus tributários. Esparta nada
de elevar e enobrecer a alma, nunca é levada em conta. tinha' de tudo isso. Atenas, sobretudo por sua posição, ti-
Eis o efeito sempre certo da cultura das letras. Tenho nha uma vantagem, de que Esparta carecia, que a deixa-
certeza de que atualmente não há um sábio que não esti- va em condições de devastar várias vezes o Peloponeso
me muito mais a eloqüência de Cícero do que seu zelo e que sozinha lhe deveria assegurar o império da Grécia.
e que não preferisse ter composto as Catilinárias a ter Era um porto vasto e cômodo, era uma marinha formidá-
salvado seu país. vel que ela devia à previdência do rústico Temístocles,
Fica visível o embaraço de meus adversários todas que não sabia tocar flauta. Logo, poder-se-ia ficar surpre-
as vezes que é preciso falar de Esparta. O que não da- so de que Atenas, com tantas vantagens, tenha afinal

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sucumbido. Mas, se bem que a guerra do Peloponeso, lembrança confusa de sua existência; o mundo teria
que arruinou a Grécia, não tenha trazido honra a nenhu- envelhecido e os homens teriam permanecido numa in-
ma das duas repúblicas, e tenha sido, sobretudo por par- fância eterna.
te dos lacedemônios, uma infração das máximas de seu Suponhamos, por nossa vez, que um lacedemônio,
sábio legislador, não é de espantar que com o tempo a impregnado da força dessas razões, quisesse expô-las aos
verdadeira coragem tenha prevalecido sobre os recursos, seus compatriotas; e tentemos imaginar o discurso que
nem sequer que a reputação de Esparta lhe tenha dado poderia fazer na praça pública de Esparta.
vários que lhe facilitaram a vitória. Na verdade, envergo- "Cidadãos, abri os olhos e saí de vossa cegueira. Vejo
nho-me de saber essas coisas e de ser forçado a dizê-las. com dor que só trabalhais para adquirir virtude, para
A outra observação não será menos importante. Eis exercitar vossa coragem e manter vossa liberdade e, en-
o texto, que creio dever apresentar ao leitor. tretanto, esqueceis o dever mais importante de divertir
Supondo-se que todos os Estados que compunham a os ociosos das raças futuras. Dizei-me: para que serve a
Grécia houvessem seguido as mesmas leis de Esparta, o virtude, senão para dar o que falar no mundo? O que vos
que nos restaria dessa terra tão célebre? Apenas seu nome terá valido serdes pessoas de bem, quando ninguém
teria chegado até nós. Ela teria desdenhado formar histo- falará de vós? O que importará aos séculos vindouros que
riadores para transmitir sua glória à posteridade; o espe- vos tenhais devotado à morte nas Termópilas· para a sal-
táculo de suas exacerbadas virtudes estaria perdido para vação dos atenienses, se não deixais, como eles, nem
nós; por conseguinte, ser-nas-ia indiferente que houves- sistemas de filosofia, nem versos, nem comédias, nem
sem existido ou não. Os numerosos sistemas de filosofia estátuas36? Apressai-vos, pois, em abandonar leis que só
que esgotaram todas as combinações possíveis de nossas servem para vos tornar felizes; pensai apenas em fazer
idéias e que, se nào ampliaram muito os limites de nosso falar muito de vós quando não mais existirdes; e jamais
espírito, pelo menos nos ensinaram onde eles estavam fi- esqueçais que, se não se celebrassem os grandes ho-
xados; essas obras-primas de eloqüência e de poesia que mens, inútil seria sê-lo."
nos ensinaram todos os caminhos do coração; as artes Aí está, penso eu, aproximadamente o que poderia
úteis ou agradáveis que conservam ou embelezam a vi- ter cÍito esse homem, se os éforos o houvessem deixado
da; enfim, a inestimável tradição dos pensamentos e das terminar.
ações de todos os grandes homens, que fizeram a glória Não é somente nesse trecho que nos advertem que
ou a felicidade de seus semelhantes: todas essas preciosas a virtude só serve para fazer falar de si mesmo. Noutra
riquezas do espírito estariam perdidas para sempre. Os
séculos se teriam acumulado, as gerações dos homens se • Alusào à batalha das Termópilas, desfiladeiro da Tessália, quando o rei
teriam sucedido como as dos animais, sem fruto algum Leônidas (século V a.c.), com mais trezentos espartanos, morreu heroicamen-
para a posteridade, e só teriam deixado atrás de si uma te para tentar impedir a invasào dos persas. (N. da T.)

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passagem elogiam-nos ainda os pensamentos do filóso- grandes Estados voltarem às pequenas virtudes das pe-
fo, por serem eles imortais e consagrados à admiração quenas repúblicas. Esta é uma frase que não deve ser
de todos os séculos; enquanto os outros vêem desapare- nova nas cortes. Teria sido muito digna de Tibério ou de
cer suas idéias junto com o dia, com a circunstância e o Catarina de Médicis, e não duvido que ambos tenham
momento que as viu nascer. Para três quartos dos ho- amiúde empregado semelhantes.
mens, o dia seguinte apaga a véspera, sem que dela fique Seria difícil imaginar a necessidade de medir a moral
o menor vestígio. Ah! fica-lhe ao menos um vestígio no com um instrumento de agrimensor. No entanto, não se
testemunho de uma boa consciência, nos infelizes que poderia dizer que a extensão dos Estados seja totalmen-
se consolaram, nas boas ações que se praticaram, e na te indiferente aos costumes dos cidadãos. Há, sem dúvi-
memória desse Deus benfazejo que se terá servido em da, certa proporção entre essas coisas, mas não sei se
silêncio. Morto ou vivo, dizia o bom Sócrates, o homem essa proporção não seria inversa39 • Eis uma questão im-
de bem nunca é esquecido pelos deuses. Responder-me- portante para ser meditada; e creio que pode ser olhada
ão, talvez, que não foi dessas espécies de pensamento como ainda indecisa, apesar do tom mais desdenhoso
que quiseram falar, e digo eu que não vale a pena falar do que filosófico com que aqui é resolvida em poucas
palavras.
de todas as outras.
É fácil perceber que, fazendo tão pouco caso de Era esta, continuam, a loucura de Catão: com o hu-
Esparta, não mostram muito maior estima pelos antigos mor e os preconceitos hereditários em sua família, dis-
romanos. Admite-se acreditar que eram grandes homens, cursou a vida inteira, combateu e morreu sem nada de
útil ter feito para a sua pátria. Não sei se nada fez para
conquanto fizessem apenas pequenas coisas. Assim sen-
a sua pátria, mas sei que muito fez para o gênero huma-
do, confesso que há muito tempo já não se fazem senão
no, oferecendo-lhe o espetáculo e o modelo da virtude
grandes coisas. Censuram sua temperança e sua cora-
mais pura que jamais existiu. Ensinou aos que amam sin-
gem de não terem sido verdadeiras virtudes, mas sim
ceramente a verdadeira honra a saber resistir aos vícios
qualidades forçadas 37 • Contudo, algumas páginas depois,
de seu século e a detestar a horrível máxima das pessoas
confessam que Fabrício desprezava o ouro de Pirro, e é
da moda de que é preciso proceder como os outros; máxi-
impossível ignorar que a história romana está repleta de ma com a qual decerto iriam longe, se tivessem a infeli-
exemplos da facilidade de enriquecer que tinham esses cidade de cair em algum bando de salteadores. Nossos
magistrados, esses guerreiros veneráveis que faziam tan- descendentes ficarão sabendo um dia que, neste século
to caso de sua pobreza38 • Quanto à coragem, não se sabe de sábios e de filósofos, o mais virtuoso dos homens foi
que a covardia não poderia ser razoável? E que um pol- ridicularizado e tratado de louco por não ter querido ma-
trão não deixa de fugir, embora certo de ser morto ao fu- cular sua alma com crimes de seus contemporâneos, por
gir? Querer obrigar um homem forte e robusto a balbu- não ter querido ser um celerado como César e os outros
ciar num berço é, dizem, o mesmo que querer fazer os bandidos de sua época.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau - - Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ _ _

Acabamos de ver como os nossos filósofos falam de teria salvado todos os outros cúmplices, e a república
Catão. Vamos ver como falavam dele os antigos filósofos. estaria perdida. O que importa? dir-me-ão. Uma vez que
Ecce spectaculum dignum ad quod respiciat, intentus isso é tão indiferente, suponhamos então que ela hou-
operí suo, Deus. Ecce par Deo dignum, vir fortis cum vesse subsistido e que, tendo Bruto condenado à morte
mala fortuna composítus. Non video, inquam, quid ha- algum malfeitor, o culpado lhe falasse assim: "Cônsul,
beat in terrls jupiter pulchríus, si convertere animum por que me fazes morrer? Fiz algo pior do que trair mi-
velít, quam ut spectet Catonem, jam partibus non semel nha pátria? E não sou também teu filho?" Gostaria muito
fractis, nihilominus inter ruinas publicas erectum. [Sé- que tivessem a bondade de dizer-me o que Bruto teria
neca, Da Providência.] respondido.
Eis o que nos dizem, noutra passagem, dos primei- Bruto, dir-me-ão ainda, devia antes abdicar do con-
ros romanos. Admiro os Brutos, os Décios, as Lucrécias, os sulado do que fazer os filhos perecerem. Quanto a mim,
Virgínios e os Cévolas. Já é alguma coisa, no século em digo que todo magistrado que, numa circunstância tão
que estamos. Mas admirarei ainda mais um Estado po- periclitante, abandona o cuidado da pátria e abdica da
deroso e bem governado. Um Estado poderoso e bem magistratura, é um traidor que merece a morte.
governado! Eu também, realmente. Em que os cidadãos Não há meio-termo; impunha-se que Bruto fosse um
não estarão condenados a virtudes tão cruéis. Entendo; é infame ou que as cabeças de Tito e de Tiberiano tombas-
mais cômodo viver numa constituição de coisas em que sem por sua ordem sob o machado dos lictores. Nem
cada qual esteja dispensado de ser homem de bem. por isso digo que muita gente teria feito a mesma esco-
Porém, se os cidadãos desse Estado que se admira se vis- lha que ele.
sem obrigados por qualquer infelicidade a renunciar à Embora não se decidam abertamente pelos últimos
virtude, ou a praticar essas virtudes cruéis, e tivessem a tempos de Roma, dão a entender claramente que os pre-
força de cumprir seu dever, seria esta uma razão para ad- ferem aos primeiros e tém tanta dificuldade para distin-
mirá-los menos? guir os grandes homens através da simplicidade destes
Tomemos o exemplo que mais revolta o nosso sécu- quanto eu mesmo o tenho para distinguir pessoas de
lo e examinemos a conduta de Bruto·, magistrado sobe- bem através da pompa dos outros. Opô em Tito a Fabrí-
ra~o, ao mandar matar seus filhos que haviam conspira- cio, mas omitem a diferença de que no tempo de Pirro
do contra o Estado num momento crítico, em que não todos os romanos eram Fabrícios, ao passo que, sob o
faltava quase nada para derrubá-lo. É certo que, se lhes reinado de Tito, ele era o único homem de bem40 • Esque-
houvesse concedido o perdão, seu colega infalivelmente cerei, se quiserem, os atos heróicos dos primeiros roma-
nos e os crimes do últimos, mas o que não poderia es-
• Segundo a tradição, Lúcio Júnio Bruto, um dos primeiros cônsules ro- quecer é que a virtude era reverenciada por uns e des-
manos, executou os próprios filhos por traição. (N. da T.) prezada ~s outros, e que, quando havia coroas para

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__________ Rousseau----------- - - - - - - Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ __

os vencedores do circo, já não as havia para aquele que os olhos ao imenso continente da Atrica, no qual ne-
salvava a vida de um cidadão. Não se julgue, todavia, nhum mortal é bastante ousado para penetrar, ou bas-
que essa atitude seja peculiar a Roma. Houve um tempo tante feliz para tê-lo tentado impunemente. Assim, por
em que a república de Atenas era rica o suficiente para não termos podido penetrar no continente da África, por
gastar somas imensas com seus espetáculos e para pagar ignorarmos o que lá se passa, fazem-nos concluir que
muitíssimo bem os autores, os comediantes e até os es- seus povos são cheios de vícios; se houvéssemos encon-
pectadores; foi nesse mesmo tempo que não se encon- trado o meio de levar os nossos para lá é que devería-
trou dinheiro para defender o Estado contra os ataques mos tirar tal conclusão. Se eu fosse chefe de algum dos
povos da Nigrícia, declaro que mandaria levantar na
de Filipe.
Chegam afinal aos povos modernos e não tenciono fronteira do país um patíbulo onde mandaria enforcar
seguir os raciocínios que julgam cabível fazer a esse res- sem perdão o primeiro europeu que se atrevesse a pene-
peito. Observarei somente que é pouco honrosa a vanta- trar nele e o primeiro cidadão que dele tentasse sair42 • A
gem que se obtém não refutando as razões do adversá- América não nos oferece espetáculos menos vergonhosos
rio, mas impedindo-o de expressá-las. para a espécie humana. Sobretudo depois que os euro-
Também não seguirei todas as reflexões que se dão peus lá estão. Encontraremos cem povos bárbaros ou sel-
ao trabalho de fazer sobre o luxo, sobre a polidez, sobre vagens para um único virtuoso. Está certo; encontrare-
a admirável educação de nossas crianças41 , sobre os me- mos pelo menos um, mas povo virtuoso e cultor das
lhores métodos para ampliar nossos conhecimentos, so- ciências nunca se viu. A terra deixada inculta não é ocio-
bre a utilidade das ciências e o deleite das belas-artes e sa; produz peixes, alimenta monstros. Eis o que ela co-
sobre outros pontos, dos quais vários não me dizem res- meça a fazer nos lugares em que o gosto das artes frívo-
peito, alguns se refutam por si sós e outros já foram refu- las fez abandonar o gosto da agricultura. Nossa alma,
tados. Contentar-me-ei em citar ainda alguns trechos to- pode-se dizer também, não fica ociosa quando a virtude
mados ao acaso e que me pareceram necessitar de escla- a abandona. Produz ficções, romances, sátiras e versos;
recimento. Tenho de limitar-me a frases, na impossibilida- alimenta vícios.
de de seguir raciocínios cujo fio não consegui apreender. 'Se alguns bárbaros fizeram conquistas, é porque eram
Pretendem que as nações ignorantes que tiveram muito injustos. O que éramos nós então, ora essa, quan-
idéias da glória e da virtude são exceções singulares que do fizemos essa conquista da América que tanto se admi-
não podem produzir nenhum preconceito contra as ciên- ra? Mas quantos meios para que pessoas que têm ca-
cias. Muito bem; mas todas as nações sábias, com suas nhões, cartas marítimas e bússolas, possam cometer in-
belas idéias de glória e de virtude, sempre perderam o justiças! Dir-me-ão que o acontecimento indica o valor
amor por elas e a prática delas. Isso não tem exceções; dos conquistadores? Indica somente sua astúcia e habili-
passemos à prova. Para nos convencer disso, lancemos drde; indica que um homem esperto e sutil pode dever

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à sua engenhosidade os sucessos que um homem de A morte ruge sobre nossas cabeças, está oculta na relva
bem só espera de seu valor. Falemos sem parcialidade. que pisamos. Quando se teme tudo e se tem necessidade
Quem julgaríamos mais corajoso, o odioso Cortés subju- de tudo, que disposição mais sensata do que a de querer
gando o México à força de pólvora, de perfídia e de trai- tudo conhecer? Basta considerar as contínuas inquieta-
ções, ou o desafortunado Guatimozín, deitado sobre car- ções dos médicos e dos anatomistas com a vida e a saú-
vões ardentes por honestos europeus que queriam seus de deles, para saber se os conhecimentos servem para
tesouros, repreendendo um de seus oficiais de quem o nos tranqüilizar acerca de nossos perigos. Como eles nos
mesmo tratamento arrancava algumas queixas, e dizen- revelam muito mais perigos do que meios para nos res-
do-lhe altivamente: "E eu, estou sobre rosas?" guardar deles, não é de admirar que apenas aumentem
Dizer que as ciências nasceram da ociosidade é abu- nossos alarmas e nos tornem pusilânimes. Nesse ponto,
sar visivelmente dos termos; elas nascem do lazer, mas os animais vivem numa profunda segurança e não se
resguardam da ociosidade. Assim, um homem que, à bei- sentem pior por isso. Uma novilha não precisa estudar
ra de uma estrada, se divertisse em atirar nos passantes
botânica para aprender a selecionar seu feno, e o lobo
poderia dizer que emprega seu lazer resguardando-se da
devora a presa sem pensar em indigestão. Para respon-
ociosidade? Não entendo essa distinção entre ociosidade
der a isso, ousarão tomar o partido do instinto contra a
e lazer. Mas sei com toda a certeza que nenhum homem
razão? É precisamente isso que pergunto.
de bem jamais pode vangloriar-se de ter lazer enquanto
Parece, dizem-nos, que temos muitos lavradores e que
houver algum bem para praticar, uma pátria para servir,
infelizes para confortar; e desafio que me mostrem em tememos carecer de filósofos. Perguntarei, por minha
meus princípios algum sentido honesto que possa ser vez, se temem que as profissões lucrativas careçam de
aplicado à palavra lazer. O cidadão preso ao arado por indivíduos para exercê-las. Pensar assim é conhecer mal
suas necessidades não está mais ocupado do que o geó- o império da cupidez. Tudo, desde a nossa infância, nos
metra ou o anatomista. Tampouco do que a criança que impele a condições úteis. E que preconceitos não se há de
constrói um castelo de cartas, porém mais utilmente. A vencer, que coragem não se há de ter, para ousar não ser
pretexto de ser o pão necessário, cumprirá que todos se mais que um Descartes, um Newton, um Locke?
ponham a lavrar a terra? Por que não? Que comecem Leibniz e Newton morreram bafejados de bens e de
até, se preciso for. Prefiro ver os homens pastarem a rel- honras e mereceriam muitos mais ainda. Diremos que é
va a se entredevorarem nas cidades. É verdade que, tais por moderação que não se elevaram até o arado? Co-
como os quero, se pareceriam muito com os animais e, nheço bastante o império da cupidez para saber que tudo
tais como são, se parecem muito com os homens. nos leva às profissões lucrativas, sendo por isso que digo
O estado de ignorância é um estado de temor e de que tudo nos afasta das profissões úteis. Um Hebert, um
necessidade. Tudo é então perigo para nossa fragilidade. Lafrenaye, um Dulac, um Martin ganham mais dinheiro

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num dia do que todos os lavradores de uma província ções. A primeira: quem quer educar uma criança não co-
poderiam ganhar em um mês. Poderia propor um pro- meça por lhe dizer que se deve praticar a virtude, pois
blema bastante singular sobre a passagem de que agora não seria ouvido; mas ensina-a primeiramente a ser ver-
me ocupo. Seria o caso, eliminando-se as duas primeiras dadeira, depois a ser moderada, depois corajosa, etc. e,
linhas e lendo-a isolada, de adivinhar se foi tirada de meus por fim, ensina-lhe que o conjunto de todas essas coisas
escritos ou dos de meus adversários. chama-se virtude. A segunda: somos nós que nos con-
Os bons livros são a única defesa dos espíritos fracos, tentamos em demonstrar a teoria, mas os persas ensina-
ou seja, de três quartos dos homens, contra o contágio do vam a prática. Vede meu Discurso [p. 246, nota 9].
exemplo. Em primeiro lugar, os sábios jamais escreverão Todas as críticas que se fazem à filosofia atacam o
tantos bons livros quantos maus exemplos dão. Em se- espírito humano. Concordo. Ou melhor, o autor da natu-
gundo, haverá sempre mais livros ruins do que bons. Em reza, que nos fez tais como somos. Se ele nos fez filóso-
terceiro lugar, os melhores guias que as pessoas hones- fos, para que tanto trabalho para tornarmo-nos tal? Os fi-
tas podem ter são a razão e a consciência: Paucis est lósofos eram homens, enganaram-se; devemos espantar-
opus litteris ad mentem bonam. Quanto àqueles que têm nos com isso? Quando não se enganarem é que devemos
o espírito ambíguo ou a consciência empedernida, a lei- espantar-nos. Deploremo-los, aproveitemos seus erros e
tura nunca lhes pode servir para nada. Enfim, para qual- corrijamo-nos. Sim, corrijamo-nos, e não filosofemos
quer homem que seja, não há livros necessários além mais ... Mil caminhos conduzem ao erro, apenas um leva
dos da religião, os únicos que jamais condenei. à verdade! Era precisamente isso que eu dizia. É de sur-
Pretendem fazer-nos ter saudades da educação dos preender que se tenham enganado tão amiúde a respeito
persas. Notai que é Platão que pretende isso. Acreditei dela e que ela tenha sido descoberta tão tarde? Ah! então
salvaguardar-me com a autoridade desse filósofo, mas finalmente a encontramos!
vejo que nada pode proteger-me da animosidade de meus Opõem-nos um juízo de Sócrates que versa, não
adversários: Tros Rutulusve fuat. Eles preferem ferir-se sobre os sábios, mas sobre os sofistas, não sobre as ciên-
uns aos outros a dar-me a menor trégua, e prejudicam cias, mas sobre o abuso que se pode fazer dela. O que mais
mais a si mesmos do que a mim43 • Essa educação era, pode pedir aquele que sustenta que todas as nossas
dizem, fundamentada em princípios bárbaros; porque se ciências não passam de abusos e todos os nossos sábios
dava um professor para o exercício de cada virtude, em- de verdadeiros sofistas? Sócrates era chefe de uma seita
bora a virtude seja indivisível; porque se trata de inspirá- que ensinava a duvidar. Diminuiria bem minha venera-
la, e não de a ensinar, de fazer amar-lhe a prática, e não ção por Sócrates se eu acreditasse que teve a tola vaida-
de lhe demonstrar a teoria. Quantas coisas não teria eu de de querer ser chefe de seita. E ele censurava com jus-
para responder! Porém não se deve fazer ao leitor a injú- tiça o orgulho daqueles que pretendiam tudo saber. Ou
ria de tudo lhe dizer. Contentar-me-ei com duas observa- seja, o orgulho de todos os sábios. A verdadeira ciência

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está bem distante dessa pretensão. É verdade. Mas é da se precisa nem um pouco dele. Tudo que ultrapassa a ne-
nossa que falo. Sócrates nesse ponto testemunha contra si cessidade física é fonte do mal. A natureza já nos dá
mesmo. Isso parece-me difícil de entender. O mais sábio necessidades demais, sendo, no mínimo, uma imensa im-
dos gregos não se ruborizava de sua ignorância. O mais prudência multiplicá-las sem precisão, colocando assim
sábio dos gregos nada sabia, como o confessa; tirai a a alma numa maior dependência. Não é sem razão que
conclusão acerca dos outros. As ciências não têm, por- Sócrates, olhando as mercadorias de uma loja, felicitava-
tanto, origem em nossos vícios. Portanto, nossas ciências se de não ter nada que fazer com tudo aquilo. Pode-se
têm origem em nossos vícios. Nem todas elas nasceram apostar cem contra um que o primeiro a usar tamancos
do orgulho humano. Já dei minha opinião a esse respei- era um homem merecedor de punição, a menos que
to. Declamação vã, que só pode iludir espíritos predispos- sentisse dor nos pés. Quanto a nós, somos mais do que
tos. Não sei responder a isso. obrigados a usar sapatos para não sermos dispensados
Ao falar dos limites do luxo, pretendem que não se de ter virtude.
deve raciocinar sobre esse assunto vindo do passado ao
Já disse em outra parte que não me propunha a sub-
presente. Quando os homens andavam completamente
verter a sociedade atual, a queimar bibliotecas e todos os
nus, aquele que primeiro atinou em calçar tamancos pas-
livros, a destruir os colégios e as academias; e devo acres-
sou por voluptuoso; de século a século, não se cessou de
centar aqui que tampouco me proponho a forçar os
bradar contra a corrupção, sem compreender o que se
homens a contentarem-se com o meramente necessário.
queria dizer.
Bem sei que não se deve conceber o quimérico projeto
É verdade que até esta época o luxo, embora fre-
qüentemente em voga, foi ao menos considerado em de transformá-los em pessoas de bem, mas julguei-me
todos os tempos como a funesta fonte de uma infinida- obrigado a dizer francamente a verdade que me pedi-
de de males. Estava reservado ao Sr. Melon* publicar pela ram. Vi o mal e tratei de encontrar as suas causas. Ou-
primeira vez essa doutrina envenenada, cuja novidade, tros, mais ousados ou mais insensatos, poderão procurar
mais do que a solidez de suas razões, lhe granjeou sec- o remédio.
tários. Não temo ser o único de meu século a combater Estou cansado e largo a pena para não mais a reto-
essas máximas odiosas que só tendem a destruir e aviltar mar nessa discussão demasiado longa. Soube que um
a virtude e a fazer ricos e miseráveis, isto é, sempre pes- número muito grande de autores 44 se aplicaram a refutar-
soas más. me. Estou muito aborrecido por não poder responder a
Crêem embaraçar-me muito perguntando-me até que todos, mas creio ter mostrado, por aqueles que escolhi 4s
ponto deve-se limitar o luxo. Minha opinião é que não para tanto, que não é o receio que me detém com rela-
ção aos outros.
• Jean-François Melon, economista francês, autor de Ensaio político sobre Empenhei-me em erguer um monumento que não
o comércio. (N. da T.) devesse à arte sua força e sua solidez; apenas a verdade,

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~~~~~~~~~~_Rousseau~~~~~~~~~~-

a quem o consagrei, tem o direito de torná-lo inabalável. Carta ao abade Raynal~


E se rebato mais uma vez os golpes que lhe desferem é
mais para honrar a mim mesmo ao defendê-la do que
para prestar-lhe um socorro de que ela não precisa. autor do Mercure de France
Que me seja permitido, ao terminar, protestar que
apenas o amor pela humanidade e pela virtude fez-me
romper o silêncio; e que o amargor de minhas invectivas
contra os vícios dos quais sou testemunha só nasce da
dor que eles me inspiram e do ardente desejo que tenho
de ver os homens mais felizes e, sobretudo, mais dignos
de sê-lo. Devo, senhor, agradecer àqueles que vos passaram
as observações que tivestes a bondade de me comunicar,
e que me empenharei em aproveitar. Confessar-vos-ei,
porém, que acho meus censores um tanto severos com
minha lógica e desconfio que se teriam mostrado menos
escrupulosos se eu tivesse a opinião deles. Parece-me,
pelo menos, que se eles mesmos tivessem um pouco
dessa rigorosa exatidão que exigem de mim eu não teria
nenhuma necessidade dos esclarecimentos que lhes vou
pedir.
a autor parece, dizem eles, preferir a situação em
que estava a Europa antes do renascimento das ciências;
estado pior do que a ignorância, dado o falso saber ou o
jargão que estava em voga. O autor dessa observação
parec~ fazer-me dizer que o falso saber, ou o jargão esco-
lástico, seja preferível à ciência, quando eu mesmo disse

• Esta resposta de Rousseau foi publicada no Mercure de France de


junho de 1751, juntamente com as Observações sobre o Discurso laureado em
Dijon, provavelmente uma síntese, escrita por Raynal, das críticas enviadas
por leitores. O abade Raynal 0713-1796), historiador e filósofo, era redator do
Mercure de France e já escrevera um resumo do Discurso no número de
novembro de 1750. (N. da T.)

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que era pior do que a ignorância. Mas que entende ele das. Não terei, ainda aqui, motivo para me queixar? Es-
pela palavra situação? Aplica-a às luzes ou aos costumes, sas razões são as que me esforcei pocresponder. Bem ou
ou confunde essas coisas que tanto cuidado tive para dis- mal, respondi. Ora, é quase impossível dar a um autor
tinguir? De mais a mais, como esse ponto é o âmago da um maior sinal de desprezo do que lhe replicando com
questào, confesso que é muita inabilidade minha limitar- os mesmos argumentos que ele refutou. Mas será preci-
me a parecer que tomava partido a esse respeito. so indicar-lhes a dificuldade que têm para resolver? Ei-la:
Acrescentam que o autor prefere a rusticidade à po- o que será da virtude quando for preciso enriquecer a
lidez. qualquerpreçc/'6?Eis o que lhes perguntei e que lhes per-
É verdade que o autor prefere a rusticidade à orgu- gunto ainda.
lhosa e falsa polidez do nosso século, e disse a razào Quanto às duas seguintes observações, das quais a
disso. E que arrasa todos os sábios e artistas. Está certo, primeira começa com estas palavras: Enfim, eis o que se
já que querem assim, consinto em suprimir todas as dis- objeta, e a outra com estas: mas o que toca de mais perto;
tinções que havia colocado. suplico ao leitor poupar-me o trabalho de transcrevê-las.
Ele deveria, dizem ainda, ter assinalado o ponto de A academia havia me perguntado se o restabelecimento
que parte para designar a época da decadência. Fiz mais, das ciências e das artes havia contribuído para aprimorar
tornei minha proposição geral; situei esse primeiro grau os costumes. Tal era a questão que eu tinha de resolver;
da decadência dos costumes no primeiro momento da no entanto, eis que me acusam de não haver resolvido
cultura das letras em todos os países do mundo, e verifi- outra. Certamente essa crítica é no mínimo muito singu-
quei que o progresso desses dois fatos sempre é propor- lar. Entretanto, tenho quase de pedir perdão ao leitor por
cional. E, remontando a essa primeira época, comparar tê-la previsto, pois é o que poderia acreditar ao ler as
os costumes daquele tempo com os nossos. É o que teria cinco ou seis últimas páginas de meu discurso.
feito com mais vagar ao longo de um volume in-quarto. Ademais, se meus censores se obstinam em desejar
Sem isso não vemos a que época seria preciso remon- também conclusões práticas, prometo-lhes algumas cla-
tar, a menos que seja ao tempo dos apóstolos. Quanto a ramente enunciadas em minha primeira resposta.
mim, não vejo que inconveniente haveria nisso, se o fato Sobre a inutilidade das leis suntuárias para desenrai-
fosse verdadeiro. Mas peço justiça ao censor: gostaria ele zar o luxo já estabelecido, dizem que o autor não igno-
que eu dissesse que o tempo da mais profunda ignorân- ra o que há para dizer a esse respeito. Realmente, não.
cia era o dos apóstolos? Não ignoro que, quando um homem está morto, não é
Dizem também, acerca do luxo, que, em boa políti- preciso chamar médicos.
ca, sabe-se que ele deve ser proibido nos pequenos Esta- Não se deveria expor com demasiada clareza verda-
dos, mas que o caso de um reino como a França, por exem- des que contrariam tanto o gosto geral, e importa elimi-
plo, é totalmente diferente. As razôes disso sào conheci- nar qualquer ocasião da chicana. Não é bem essa a

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______________________ Rom~au ______________________

minha opinião e creio que se devem deixar alguns brin- Carta de J. -J. Rousseau,
quedos para as crianças. de Genebra,
Há também muitos leitores que as apreciarão mais
num estilo bem simples do que com esse traje de cerimô-
nia que exigem os discursos acadêmicos. Tenho o mes- sobre uma nova refutação de seu Discurso
mo gosto desses leitores. Logo, este é um ponto em que por um acadêmico de Dijort
posso conformar-me à opinião de meus censores, como
faço desde já.
Ignoro quem é o adversário com que me ameaçam
no post scriptum. Seja ele quem for, eu não poderia re-
solver-me a responder a uma obra antes de tê-la lido, Acabo de ver, senhor, uma brochura intitulada Dis-
nem a me considerar vencido antes de ter sido atacado. curso que ganhou o prêmio da Academia de Dijon em
Quanto ao mais, quer eu responda às críticas que me 1750, acompanhado da refutação desse Discurso, escrita
são anunciadas, quer me contente em publicar a obra por um acadêmico de Dijon que lhe recusou seu voto, e
aumentada que me pedem, aviso meus censores que é pensava, percorrendo esse escrito, que, em vez de rebai-
bem possível que nela não encontrem as modificações xar-se a ser o editor de meu Discurso, o acadêmico que
que esperam. Prevejo que, quando se tratar de defender- lhe recusou seu voto bem que deveria ter publicado a
me, seguirei sem escrúpulos todas as conseqüências de obra à qual o havia concedido; seria uma ótima maneira
meus princípios.
de refutar o meu.
Sei de antemão com que grandiosas palavras me ata-
Eis, portanto, um de meus juízes que não desdenha
carão. Luzes, conhecimentos, leis, moral, razão, decoro,
tornar-se um de meus adversários, e acha muito ruim
consideração, doçura, amenidade, polidez, educação,
que seus colegas me tenham honrado com o prêmio.
etc. A tudo isso só responderei com duas outras palavras,
Confesso que eu mesmo fiquei muito espantado de rece-
que soam ainda mais forte em meus ouvidos. Virtude,
verdade! exclamarei sem cessar; verdade, virtude! Se bê-lo; esforcei-me por merecê-lo, mas nada fizera para
alguém não perceber aí senão palavras, nada mais tenho obtê-lo. Aliás, conquanto soubesse que as academias não
a lhe dizer. adotam as opiniões dos autores que laureiam e que o
prêmio é concedido não àquele que se acredita ter sus-
tentado a melhor causa, mas àquele que melhor se ex-

• Trata-se de Claude-Nicolas Le Cat 0700-1768), cirurgião célebre, fun-


dador e secretário perpétuo da Academia de Ciências de Rouen, que se fazia
passar, em sua refutação, por um acadêmico de Dijon. (N. da T.)

118 119
___ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes --
Rousseau _ __

Ouso dizer que, em fazendo muito pela minha gló-


pressou, mesmo supondo-me nesse caso, estava bem lon-
ria, a Academia de Dijon muito fez pela sua; um dia virá
ge de esperar de uma academia essa imparcialidade, que
em que os adversários de minha causa tirarão proveito
os sábios absolutamente não professam todas as vezes
desse julgamento para provar que a cultura das letras
em que se trata de seus interesses.
pode associar-se à eqüidade e ao desinteresse. Então os
Mas, se fiquei surpreso com a eqüidade de meus
partidários da verdade lhes responderão: eis um exem-
juízes, confesso que não o fico menos com a indiscri- plo peculiar que parece depor contra vós; mas lembrai-
ção de meus adversários. Como ousam eles manifestar vos do escândalo que esse julgamento causou na época
tão de público seu mau humor para com a honra que entre a multidão dos letrados e da maneira pela qual o
recebi? Como não percebem o prejuízo irreparável que deploraram, e tirai daí uma conseqüência exata de suas
com isso fazem à sua própria causa? Que não se iludam máximas.
que alguém se deixe enganar sobre o motivo de sua Não é, em minha opinião, pequena imprudência de-
mágoa; não é por meu Discurso ser mal feito que estão plorar que a Academia tenha proposto seu tema como
aborrecidos de vê-lo laureado, pois todos os dias lau- problema; deixo de lado a pouca probabilidade que ha-
reiam-se outros tão maus quanto ele, e eles não dizem via de que, no entusiasmo universal hoje reinante, al-
uma palavra; é por outra razão que atinge mais de per- guém tivesse a coragem de renunciar voluntariamente ao
to a profissão deles, e que não é difícil de perceber. prêmio, declarando-se pela negativa; mas não sei como
Bem sabia que as ciências corrompiam os costumes, alguns filósofos ousam achar ruim que se lhes ofereçam
tornavam os homens injustos e invejosos e faziam-nos vias de discussão: belo amor à verdade, que estremece
sacrificar tudo ao seu interesse e à sua glória vã; acre- ao se examinarem o pró e o contra! Nas investigações de
ditei, porém, perceber que isso se fazia com um pouco filosofia, o melhor meio de tornar uma opinião suspeita
mais de decência e habilidade; via que os letrados fala- é excluir a opinião contrária: qualquer um que assim pro-
vam sem cessar de eqüidade, de moderação, de virtu- cede dá a impressão de um homem de má-fé, que des-
de, e que era sob a salvaguarda sagrada dessas belas confia da excelência de sua causa. A França inteira está
palavras que se entregavam impunemente às suas pai- na expectativa da peça que receberá este ano o prêmio
xões e aos seus vícios. Mas jamais teria acreditado que da AC,ademia Francesa; não só ela certamente fará esque-
tivessem o atrevimento de censurar publicamente a cer meu Discurso, o que não será muito difícil, mas não
imparcialidade de seus confrades. Em todos os outros se poderia mesmo duvidar de que será uma obra-prima.
lugares, a glória dos juízes está em se pronunciarem de Entretanto, o que contribuirá isso para a solução da
acordo com a eqüidade, contra seu próprio interesse; questão? Absolutamente nada, pois cada qual dirá, de-
pois de lê-la: Este discurso é belíssimo, mas se o autor ti-
cabe apenas às ciências converter, naqueles que as cul-
vesse tomado a liberdade de seguir a opinião contrária
tivam, a integridade em um crime: este é realmente um
belo privilégio que elas têm.
talvez tivesse Jeito um mais belo ainda.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
- - - - - - Discurso sobre as ciências e as artes - _ _ _ _ __

Percorri a nova refutação, pois trata-se de mais uma, cerrar-me no assunto de que trato, sem nele introduzir
e não sei por que fatalidade os escritos de meus adver- nada de pessoal: o verdadeiro respeito que se deve ao
sários, que trazem esse título tão decisivo, são sempre público está em poupar-lhe, não tristes verdades que lhe
aqueles em que sou mais mal refutado. Percorri portan- podem ser úteis, mas sim todas as mesquinhas penden-
to essa refutação, sem ter o menor arrependimento da gas entre autores48 , com as quais se enchem os escritos
resolução que tomei de não responder a mais ninguém; polêmicos e que só servem para satisfazer uma vergo-
contentar-me-ei em citar uma única passagem, pela qual nhosa animosidade. Querem que eu tenha tomado a Clé-
o leitor poderá julgar se tenho ou não razão. Aqui está: nard49 um dito de Cícero, seja; que tenha cometido sole-
Convirei que se pode ser homem de bem sem talentos, cismos, muito bem; que cultivo as belas-letras e a músi-
mas será nosso compromisso com a sociedade ser apenas ca, apesar do mal que penso delas; concordarei com isso
um homem de bem? E o que será um homem de bem igno- caso queiram, devo suportar numa idade mais sensata o
rante e sem talentos? Um fardo inútil, uma carga mesmo castigo dos divertimentos de minha juventude. Mas, afi-
para a terra, etc. Não responderei, por certo, a um autor nal, que importa tudo isso, tanto ao público como à
capaz de escrever dessa maneira, mas creio que ele pode causa das ciências? Rousseau pode falar maIo francês e
agradecer-me por isso. nem por isso a gramática será mais útil à virtude. Jean-
Tampouco haveria muitos meios, a menos que se Jacques pode ter má conduta, e a dos sábios não será
quisesse ser tão difuso como o autor, de responder à nu- melhor. Eis toda a resposta que darei e, creio, toda a que
merosa coleção de passagens latinas, dos versos de La devo dar a essa nova refutação.
Fontaine, de Boileau, de Moliere, de Voiture, de Regnard, Terminarei esta carta, e o que tenho a dizer sobre um
de Gresset, nem à história de Nemrod, nem àquela dos assunto debatido por tanto tempo, com um conselho aos
meus adversários, que sem dúvida o desprezarão, o qual
camponeses picardos, pois o que se poderá dizer a um
seria porém mais vantajoso do que pensam ao partido
filósofo que nos assegura querer mal aos ignorantes por-
que querem defender: é de não escutar tanto seu zelo a
que seu meeiro da Picardia, que não é um doutor, paga-o
ponto de esquecer de consultar suas forças e quid va-
na verdade exatamente, mas não lhe dá dinheiro suficien-
leant humeri. Dir-me-ão decerto que eu deveria ter ado-
te por sua terra? O autor está tão ocupado com suas ter-
tado esse conselho para mim mesmo, e isso pode ser
ras, que até me fala da minha. Uma terra minha! A terra verdade; mas, pelo menos, há a diferença de que eu era
de Jean-Jacques Rousseau! Realmente, aconselho-o a ca- o único de meu partido, ao passo que, sendo o deles o
luniar-me 47 com mais habilidade. da multidão, os recém-chegados pareciam dispensados
Se eu tivesse de responder a alguma parte da refuta- de entrar em suas fileiras, ou obrigados a fazer melhor
ção, seria às mordacidades que abundam nessa crítica; que os outros.
mas, como elas nada têm a ver com a questão, não me Temendo que essa opinião pareça temerária ou pre-
afastarei da máxima constante que sempre segui, de en- sunçosa, junto aqui uma amostra dos raciocínios de meus

122 123
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau
- - - - - - Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ __

adversários, pela qual se poderá julgar a exatidão e a estudo; que o Prometeu, que grita e os adverte do peri-
força de suas críticas. Os povos da Europa, disse eu, vi- go, é o cidadão de Genebra. Tal alegoria é justa, bela,
viam há alguns séculos num estado pior do que a igno- ouso achá-la sublime. O que se deve pensar de um escri-
rância; não sei que jargão científico, ainda mais despre- tor que a meditou e não conseguiu entendê-la? Pode-se
zível do que ela, havia usurpado o nome do saber e opu- crer que esse homem não teria sido um grande doutor
nha à sua volta um obstáculo quase invencível. Era pre- entre os seus amigos egípcios.
ciso uma revolução para trazer os homens de volta ao Tomo, pois, a liberdade de propor aos meus adver-
senso comum. Os povos haviam perdido o senso comum sários, sobretudo ao último, esta sábia lição de um filó-
não por serem ignorantes, mas por fazerem a tolice de sofo sobre outro assunto: sabei que não há objeções que
acreditar saber algo com os grandes ditos de Aristóteles possam ser tão prejudiciais ao vosso partido como as
e a impertinente doutrina de Raimundo Lúlio; era preci- más respostas; sabei que, se não tiverdes dito nada que
so uma revolução para lhes ensinar que nada sabiam, e valha, aviltarão vossa causa ao dar-vos a honra de crer
teríamos grande necessidade de outra para nos ensinar a que não havia nada de melhor para dizer.
mesma verdade. Eis o argumento de meus adversários a Sou, etc.
esse respeito: Essa revolução deve-se às letras; elas trou-
xeram de volta o senso comum, conforme a declaração
do autor; mas também, segundo ele, corromperam os cos-
tumes; logo, o povo deve renunciar ao senso comum para
ter bons costumes. Três escritores, um atrás do outro, re-
petiram esse belo raciocínio; pergunto-lhes agora o que
preferem que eu acuse, seu espírito, por não ter conse-
guido penetrar o sentido claríssimo desta passagem, ou
sua má-fé, por ter fingido não a entender? São letrados,
assim sua escolha não será duvidosa. O que diremos
nós, porém, das divertidas interpretações que este último
adversário se compraz em dar à figura do frontispício de
meu livro? Acreditaria ofender meus leitores, e tratá-los
como crianças, ao interpretar-lhes uma alegoria tão clara,
ao dizer-lhes que o archote de Prometeu é o das ciên-
cias, feito para animar os grandes gênios; que o sátiro
que, vendo o fogo pela primeira vez, corre a ele e quer
abraçá-lo representa os homens vulgares que, seduzidos
pelo brilho das letras, entregam-se sem discernimento ao

124 125
Prefácio de uma
Segunda carta a Bordes·

Forçado por novos ataques a romper o silêncio que


me impusera nesta longa discussão, retomo sem escrú-
pulo a pena que largara. Se posso, na opinião dos sábios,
lançar novas luzes sobre as importantes máximas que
estabeleci, pouco me importa que o público se entedie
em ver debater tanto tempo a mesma questão, pois, ain-
da que a culpa não coubesse aos agressores, não estou
disposto a sacrificar meu zelo pela verdade ao cuidado
de minha reputação, e não vejo por que temeria tanto
entediar leitores a quem tão pouco temo desagradar.
Creio ter descoberto grandes coisas e as expus com
uma franqueza bastante perigosa, sem que haja muito
mérito nisso, pois minha independência causou toda a
minha coragem e longas meditações me serviram de gê-
nio.· Um solitário que se compraz em viver ensimesmado
adquire naturalmente o gosto da reflexão, e um homem
que se interessa vivamente pela felicidade dos outros,
sem necessitar deles para fazer a sua, está dispensado de

• Em setembro de 1753, é publicada uma resposta de Bordes à resposta


de Rousseau, que tenciona uma Segunda carta a Bordes, da qual só escreveu
o prefácio. (N. da T)

127
~ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ __

poupar-lhes a falsa delicadeza no que tem de útil para di- é dizer-lhes a verdade ou o que tomo por verdade; com-
zer-lhes. Sendo essa uma situação tão rara, e tendo a feli- pete a uma voz mais possante fazer com que a amem.
cidade de nela me encontrar, creio-me obrigado a apro- Suportei pacientemente as invectivas de uma multi-
veitá-la em prol da verdade e a expressá-la sem escrúpu- dão de autores a quem não fiz outro mal senão exortá-
lo todas as vezes que ela me parecer interessar à inocên- los a tornarem-se gente de bem. Divertiram-se muito à
cia ou à felicidade dos homens. Se cometi um erro ao as- vontade à minha custa; tornaram-me tão ridículo quanto
sumir inoportunamente o compromisso de silenciar-me, quiseram; depreciaram publicamente os meus escritos e
não devo cometer outro maior ao pretender manter mi- mesmo a minha pessoa, sem que jamais eu tenha tenta-
nha palavra contra o meu dever, sendo para permanecer do repelir seus ultrajes a não ser com minha conduta. Se
constante em meus princípios que quero estar pronto a eu os mereci, só poderia ter-me vingado procurando
abandonar meus erros assim que os percebo. lhos devolver e, muito longe de comprazer-me nessa
Vou portanto retomar o fio de minhas idéias e conti- odiosa guerra, quanto mais verdades tivesse encontrado
nuar a escrever do mesmo modo que sempre fiz, como para dizer-lhes, mais meu coração se teria entristecido.
um ser isolado que não deseja e não teme nada de nin- Se não mereço suas injúrias, foi só a eles que as disse-
guém, que fala para os outros e não para si mesmo, ram; talvez até a sua animosidade dificilmente tenha no
como um homem que preza muito seus irmãos para não público o efeito que eles esperavam, com o qual não me
odiar seus vícios, e que gostaria que aprendessem de preocupo muito. A paixão extremada em geral é inábil e
uma vez por todas a verem-se tão maus quanto são, para aconselha a dela desconfiar-se. Talvez, com base em
desejarem ao menos tornarem-se tão bons quanto pode- seus próprios escritos, irão avaliar-me melhor do que o
riam ser. sou realmente, quando virem que, com tanta vontade de
Sei muito bem que o trabalho a que me dou é inútil me difamar, o maior crime que encontraram para censu-
e não tenho, em minhas exortações, o quimérico prazer rar-me foi ter admitido que um artista ilustre fizesse meu
de esperar a reforma dos homens. Sei que zombarão de retrato.
mim, porque os amo, e de minhas máximas, porque são Falta muito para que eu seja capaz do mesmo san-
proveitosas. Sei que não deixarão de ser menos ávidos gue-frio para com aqueles que, deixando minha pessoa
de glória e de dinheiro quando eu os tiver convencido de lado, atacam com certa habilidade as verdades que
que essas duas paixões são a origem de todos os seus estabeleci. Esse triste e grande sistema, fruto de um exa-
males, e que são maus por uma e infelizes pela outra. me sincero da natureza do homem, de suas faculdades e
Tenho toda a certeza de que considerarão extravagância de sua destinação, é-me caro, embora me humilhe, pois
meu desdém por esses objetos de sua admiração e de sinto quanto nos importa que o orgulho não nos faça ilu-
seus trabalhos, mas prefiro suportar suas zombarias a par- dirmo-nos a respeito do que produz nossa verdadeira
tilhar seus defeitos, e, seja qual for o dever deles, o meu grandeza, e quanto se deve temer que à força de querer-

128 129
_____________________ Rom~au _____________________ - - - - - - - Discurso sobre as ciências e as artes _____________

mos elevar-nos acima de nossa natureza não decaiamos nha para lhes dizer. Se apenas o Discurso de Dijon exci-
abaixo dela. De qualquer modo, é útil aos homens, se não tou tantos murmúrios e causou escândalo, o que teria
conhecerem a verdade, pelo menos não ficarem no erro, acontecido se eu houvesse desenvolvido desde o primei-
e um dos mais perigosos de todos é temer menos o erro ro momento toda a extensão de um sistema verdadeiro
do que a ignorância e preferir, numa alternativa forçada, mas doloroso, do qual a questão tratada nesse Discurso
ser depravados e miseráveis a pobres e grosseiros. não passa de um corolário? Inimigo declarado da violên-
Minha opinião foi combatida com ardor, como eu cia dos maldosos, eu seria no mínimo considerado inimi-
previra, por uma multidão de escritores. Respondi até go da tranqüilidade pública, e se os zelosos seguidores
agora a todos os que me pareceram valer a pena e estou do partido contrário não se houvessem empenhado cari-
bem determinado a proceder do mesmo modo no futu- dosamente em perder-me, para a grande glória da filoso-
ro, não para a minha própria glória, pois não é a J.-J. fia, não se pode duvidar pelo menos que, tendo à frente
Rousseau que quero defender, pois ele deve ter-se enga- um homem desconhecido, houvessem conseguido facil-
nado muitas vezes; todas as vezes que ele me parecer mente ridicularizar a obra e o autor e que, começando
nessa situação, vou abandoná-lo sem escrúpulo e sem por zombar de meu sistema, esse meio, posto em voga
pena, mesmo quando tiver razão, contanto que se trate por tantas experiências, tê-los-ia dispensado do incómo-
apenas dele. Assim, enquanto se ativerem a censurar-me do cuidado de examinar minhas provas.
por ter publicado obras ruins, ou por saber raciocinar Assim, foram-me necessárias algumas precauções ini-
mal ou cometer erros de linguagem, ou erros de história, ciais, e foi para poder dar a conhecer tudo que não quis
ou de escrever mal ou ter mau humor, pouco me irrita- dizer tudo. Apenas sucessivamente e sempre para pou-
rei com todas essas censuras, não me surpreenderei e cos leitores é que desenvolvi minhas idéias. Não foi a
nunca lhes responderei. Mas, quanto ao sistema que sus- mim que poupei, mas à verdade, a fim de transmiti-la com
tentei, vou denfendê-Io com toda a minha força por todo mais segurança e de torná-la útil. Muitas vezes tive muito
o tempo em que estiver convencido de que é o da ver- trabalho para procurar encerrar numa frase, numa linha,
dade e da virtude e que é por tê-lo abandonado intem- numa palavra lançada como que ao acaso, o resultado
pestivamente que a maioria dos homens, degenerados de uma longa seqüência de reflexões. Freqüentemente a
de sua bondade primitiva, caíram em todos os erros que maioria de meus leitores deve ter achado meus discursos
os cegam e em todas as misérias que os acabrunham. mal coordenados e quase inteiramente desconexos, por
Tendo tantos interesses para combater, tantos pre- não perceber o tronco do qual só lhe mostrava os ramos.
conceitos para vencer e tantas coisas duras para anun- Mas era o bastante para os que sabem entender e nunca
ciar, acreditei dever, para o próprio interesse de meus quis falar aos outros.
leitores, poupar de certo modo sua pusilanimidade e não Esse método obrigou-me a ter de replicar muitas ve-
lhes deixar perceber senão sucessivamente o que eu ti- zes aos meus adversários, quer para resolver objeções,

130
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __

quer para ampliar e esclarecer idéias que de tal necessi-


tavam, quer para acabar de desenvolver todas as partes
de meu sistema à medida que os votos dos sábios me as-
seguravam a atenção pública. Acreditava, é verdade, ter
provido a todas essas coisas com minhas respostas ante- DISCURSO SOBRE A ORIGEM
riores, ao menos para os leitores que eu tinha em vista. E OS FUNDAMENTOS
Porém, ao ver no segundo Discurso do acadêmico de DA DESIGUALDADE ENTRE
Lyon que ele ainda não me havia entendido, prefiro acu- OS HOMENS
sar a mim de inabilidade do que a ele de má vontade.
Portanto, vou tratar de explicar-me melhor e, já que é
hora de falar claramente, vou vencer afinal minha aver-
são e escrever de uma vez para o povo.
A obra que me proponho a examinar está repleta de
sofismas agradáveis que têm ainda mais brilho do que
sutileza e que, seduzindo por certo colorido de estilo e
pelas astúcias de uma Íógica hábil, são duplamente peri-
gosas para o vulgo. Vou adotar meios inteiramente con-
trários nesta análise e, seguindo passo a passo os racio-
cínios do autor com toda a exatidão que me for possível,
nesta discussão empregarei unicamente a simplicidade e
o zelo de um amigo da verdade e da humanidade, que
considera toda a sua glória prestar homenagem a uma e
toda a sua felicidade ser útil à outra.

132
NOTAS
1. Encontrar-se-ão na Cronologia as informações históricas so-
bre as duas obras.

DIscurso sobre as cihIdas e as artes

Discurso

1. Os príncipes vêem sempre com prazer o gosto das artes agra-


dáveis e das superfluidades, das quais não resulta exportação do
dinheiro, espraiar-se entre seus súditos, pois, além de nutri-los assim
nessa pequenez de alma tão própria para a servidão, sabem muito
bem que todas as necessidades que o povo se atribui são outras tan-
tas correntes que ele carrega. Querendo manter os ictiófagos em sua
dependência, Alexandre forçou-os a renunciar ã pesca e a nutrir-se
de alim~ntos comuns aos outros povos; e os selvagens da América,
que andam totalmente nus e vivem apenas do produto de sua caça,
jamais puderam ser subjugados. De fato, que jugo se poderia impor
a homens que de nada precisam?
2. Gosto, diz Montaigne, de contestar e de conversar, mas com
poucos homens e para meu proveito. Porque seroir de espetáculo aos
grandes e exibir à porfia seu espírito e sua loquacidade parece-me um
oficio muito indecoroso para um homem honrado. É este o ofício de
todos os nossos letrados, menos um.

279
----------------------___ Ro~eau _________________________ ------------------________ No~ __________________________

3. Não me atrevo a falar dessas nações felizes que não conhe- tão, muito mereceriam ser mais bem desenvolvidas por uma pena
cem sequer de nome os vícios que tanto nos custa reprimir, daqueles digna de escrever como esse mestre e de defender tão grande causa.
selvagens da América cuja simples e natural polícia Montaigne não 8. Pensées pbilosopbiques [Diderotl.
hesita em preferir, não só às leis de Platão, mas até mesmo a tudo o 9. Era essa a educação dos espartanos, segundo o maior de seus
que a filosofia poderá jamais imaginar de mais perfeito para o gover- reis. "É", diz Montaigne, "algo digno de imensa consideração que
no dos povos. Cita uma quantidade de exemplos deles impressionan- nessa excelente polícia de Licurgo, na verdade monstruosa por sua
tes para quem os soubesse admirar. "Mas como!" diz ele, "eles não perfeição, porém tão ciosa da criação das crianças como se fosse seu
usam calções!" principal encargo, e na própria morada das musas, se mencione tão
4. Que me digam, de boa-fé, que opinião os próprios atenienses pouco a doutrina: como se a essa generosa juventude, desdenhando
deviam ter da eloqüência, quando a afastaram com tanto cuidado qualquer outro jugo, se tivesse de fornecer, em vez de nossos mestres
desse íntegro tribunal de cujas sentenças os próprios deuses não ape- de ciência, somente mestres de valentia, de prudência e de justiça."
lavam? O que pensavam os romanos da medicina, quando a baniram Vejamos agora como o mesmo autor fala dos antigos persas.
de sua República? E quando um resto de humanidade levou os espa- "Platão", diz ele, "conta que o primogênito da sucessão real deles era
nhóis a proibir a seus jurisconsultos a entrada na América, que idéia assim criado. Depois de seu nascimento, entregavam-no não a mu-
deviam ter da jurisprudência? Não se poderia dizer que acreditaram lheres, mas a eunucos com muito prestígio junto ao rei, por causa de
estar reparando, com esse único ato, todos os males que haviam feito sua virtude. Estes se encarregavam de tomar-lhe o corpo belo e sadio
àqueles índios infelizes? e, depois dos sete anos, ensinavam-lhe montar a cavalo e caçar.
5. Vê-se facilmente a alegoria da fábula de Prometeu; e não pa- Quando chegava aos catorze anos, confiavam-no às mãos de quatro:
rece que os gregos, que o prenderam ao Cáucaso, o julgassem mais o mais sábio, o mais justo, o mais moderado e o mais valente da
favoravelmente do que os egípcios julgavam seu deus Teutus. "O sáti- nação. O primeiro ensinava-lhe religião; o segundo, a ser sempre ve-
ro", diz uma antiga fábula, "quis beijar e abraçar o fogo, ao vê-lo pela raz; o terceiro, a vencer a cupidez; o quarto, a nada temer." Todos,
primeira vez; mas Prometeu gritou-lhe: "Sátiro, tu chorarás a barba do acrescentarei eu, a tomarem-no bom, nenhum a tomá-lo sábio.
teu queixo, pois ele queima quando se toca nele. ", Astíages, em Xenofonte, pede a Ciro que lhe preste contas da
6. Quanto menos se sabe, mais se acredita saber. Os peripatéti- sua última aula: "É que em nossa escola", disse ele, "um menino gran-
cos duvidavam de alguma coisa? Descartes não construiu o universo de que tinha um saio pequeno deu-o a um de seus colegas de menor
com cubos e torvelinhos? E, hoje mesmo na Europa, haverá um físi- tamanho e tirou-lhe o saio que era maior. Tendo o nosso preceptor
co medíocre que não explique ousadamente esse profundo mistério feito de mim o juiz dessa contenda, julguei que devia deixar as coi-
da eletricidade, que causará, talvez para sempre, o desespero dos sas como estavam e que ambos pareciam mais bem acomodados
verdadeiros filósofos? nesse ponto. Diante disso, ele me fez ver que eu agira mal, pois ati-
7. Longe ~e mim pensar que essa ascendência das mulheres seja vera-me a considerar a conveniência; e, em primeiro lugar, era preci-
um mal em si. E um presente que a natureza lhes deu para a felicida- so assegurar a justiça, que exigia que ninguém fosse violentado no
de do gênero humano; mais bem dirigida, poderia produzir tanto que lhe pertencia." E diz que por isso foi punido, como nos punem
bem quanto hoje causa mal. Não se percebe bem quais vantagens em nossas aldeias por esquecer o primeiro aoristo de 'tÚ7ttOl. Meu
proporcionaria à sociedade uma melhor educação dada a essa meta- professor me faria uma bela arenga, in genere demonstrativo, antes
de do gênero humano que governa a outra. Os homens sempre farão de me persuadir de que sua escola vale essa.
o que agradar às mulheres; logo, se quiserdes que eles se tomem 10. Considerando-se as tremendas desordens que a imprensa já
grandes e virtuosos, ensinai às mulheres o que é grandeza de alma e causou na Europa, julgando-se o futuro pelo progresso que o mal fez
virtude. As reflexões que tal assunto fornece, feitas outrora por Pla- de um dia para o outro, pode-se facilmente prever que os soberanos

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não tardarão a ter tanto desvelo para banir essa arte terrível de seus fingia parecer, não teria pensado em seu retrato nem em sua estátua;
Estados quanto tiveram para introduzi-la. O sultão Achmet, cedendo porém, quanto ao seu panegírico, só teria permitido que um lacede-
às importunações de algumas pessoas de pretenso bom gosto, con- mônio o fizesse, arriscando-se a não o ter. O único elogio digno de
sentira em estabelecer um prelo em Constantinopla. Porém, mal o um rei é o que se faz ouvir, não pela boca mercenária de um orador,
prelo começou a funcionar, foram obrigados a destruí-lo e lançar seus mas pela voz de um povo livre. Para que eu sentisse prazer com vos-
instrumentos num poço. Dizem que o califa Omar, consultado sobre sos elogios, dizia o imperador Juliano a cortesãos que lhe gabavam a
o que se devia fazer com a biblioteca de Alexandria, respondeu nes- justiça, cumpriria que ousásseis dizer 9 contrário, se verdade fosse ..
tes termos: "Se os livros dessa biblioteca contêm coisas opostas ao 14. É da própria questão que se poderia surpreender-se; a maior
Alcorão, são nocivos e devem ser queimados. Se contêm apenas a e mais bela questão que já existiu, e que talvez não seja tão cedo re-
doutrina do Alcorão, queimai-os também: são supérfluos." Nossos sá- petida. A Academia Francesa acaba de propor para o prêmio de elo-
bios citaram esse raciocínio como o cúmulo do absurdo. Entretanto, qüência do ano de 1752 um tema muito semelhante a este. Trata-se
suponde Gregório, o Grande, no lugar de Omar e o Evangelho no de sustentar que o amor às letras inspira o amor à virtude. A Aca-
lugar do Alcorão; a biblioteca também teria sido queimada, e esse tal- demia não julgou oportuno deixar tal assunto sem solução; e, nessa
vez fosse o mais belo feito da vida desse ilustre pontífice. oportunidade, a douta sociedade dobrou o tempo que antes conce-
dia aos autores, mesmo para os temas mais difíceis.
15. Não poderia justificar-me, como muitos outros, no fato de
Carta deJ.-J. Rousseau que nossa educação não depende de nós e que não nos c?nsultam
para nos envenenar. Foi de muito bom grado que mergulhei no estu-
11. Esta refutação de Gautier será impressa no primeiro volume do, e foi com maior prazer ainda que o abandonei ao perceber a per-
do Suplemento. turbação que ele lançava em minha alma sem nenhum proveito para
a minha razão. Não quero mais uma ocupação enganadora, na qual
se acredita fazer muito pela sabedoria, fazendo tudo pela vaidade.
16. É um mau sinal para uma sociedade ser preciso tanta ciên-
ObseroaçÕ€s dej.-J. Rousseau, de Genebra
cia naqueles que a conduzem; se os homens fossem o que devem ser,
quase não precisariam estudar para aprender as coisas que têm de
12. Como a obra do rei da Polônia a princípio era anônima e
não reconhecida pelo autor, via-me obrigado a acatar o incógnito que fazer.
17. Prefácio da Enciclopédia.
adotara; porém, tendo depois esse príncipe reconhecido publicamen- 18. Viam-se reinar, entre esses dois partidos, esse ódio e esse
te essa mesma obra, senti-me dispensado de silenciar por mais tempo desdém recíproco que em todos os tempos reinaram entre os douto-
sobre a honra que me concedeu. res e os filósofos, ou seja, entre aqueles que fazem de sua cabeça um
A obra do rei da Polônia será impressa na primeira coletânea do repertório da ciência alheia e aqueles que se vangloriam de ter uma
Suplemento da coletânea dos escritos do Sr. Rousseau. própria. Jogai um contra o outro, o professor de música e o professor
13. Todos os príncipes, bons e maus, sempre serão baixa e indi- de dança do Burguês gentil-homem, tereis o historiador da Antiguida-
ferentemente louvados enquanto houver cortesãos e letrados. Quan- de e o cultor das letras, o químico e o literato, o jurisconsulto e o
to aos príncipes que são grandes homens, para eles é preciso elogios médico, o geômetra e o versificador, o teólogo e o filósofo. Para bem
mais moderados e mais bem escolhidos. A lisonja ofende-lhes a vir- julgar de todas essas pessoas, basta remeter a elas mesmas e ouvir o
tude, e o próprio louvor pode prejudicar-lhes a glória. Estou certo, que cada uma nos diz, não de si, mas das outras.
pelo menos, de que Trajano seria maior aos meus olhos se Plínio 19. Esses primeiros escritores que selavam com o próprio san-
nunca houvesse escrito. Se Alexandre tivesse sido realmente o que gue o testemunho de sua pena seriam hoje autores bem escandalo-

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sos, pois sustentavam precisamente a mesma opinião que eu. São sempre desafiará a razão, a verdade e o próprio tempo, porque se
Justino, em seu diálogo com Trifão, passa em revista as diversas sei- origina no orgulho humano, mais forte do que todas essas coisas.
tas de fllosofia que outrora havia experimentado e toma-as tão ridí- 20. Fizeram-se censuras justas a Clemente de Alexandria por ter
culas que se acreditaria estar lendo um diálogo de Luciano; vê-se tam- adotado em seus escritos uma erudição profana, pouco conveniente
bém na apologia de Tertuliano como os primeiros cristãos ficavam a um cristão. No entanto, parece que então era desculpável instruir-
ofendidos de serem tomados por fIlósofos. se sobre a doutrina contra a qual se tinha de defender-se. Mas quem
De fato, seria um detalhe muito desairoso para a fIlosofia a ex- poderia ver, sem rir, todos os trabalhos a que se dão hoje os nossos
posição das máximas perniciosas e dos dogmas ímpios dessas diver- sábios para esclarecer os devaneios da mitologia?
sas seitas. Os epicuristas negavam qualquer providência, os acadêmi- 21. "Nossa fé", diz Montaigne, "não é aquisição nossa, é um
cos duvidavam da existência da divindade e os estóicos, da imortali- puro presente da liberalidade de outrem. Não foi por nosso discurso
dade da alma. As seitas menos célebres não tinham melhores senti- ou por nosso entendimento que recebemos nossa religião, foi por
mentos. Eis uma amostra disso em Teodoro, chefe de um dos dois ra- autoridade e injunção alheia. Nesse caso, a fraqueza de nosso juízo
mos dos cirenaicos, relatada por Diógenes Laércio: SustuUt amicitiam nos ajuda mais do que a força, e nossa cegueira, mais do que nossa
quod ea neque insipientibus neque sapientibus adsit... Probabile dice- clarividência. É por intermédio de nossa ignorância que somos sá-
bat prudentem virum non seipsum pro patria periculis exponere, bios. Não é de admirar que nossos meios naturais e terrestres não
neque enim pro insipientium commodis amittendam esse pruden- possam conceber esse conhecimento sobrenatural e celeste. Leve-
tiam. Furto quoque et adulterio et sacrilegio cum tempestivum erit mos-lhes somente o que possuímos, a obediência e a sujeição, pois,
daturum operam sapientem. Nibil quippe borum turpe natura esse. como está escrito: 'Eu destruirei a sapiência dos sábios e abaterei a
Sed auferatur de bisce vulgaris opinio, quae e stultorum imperitorum- prudência dos prudentes.'"
que plebecuZa conflata est... sapientem publice absque ullo pudore ac 22. O duque de Rochefoucauld.
suspicione scortis congressurum. 23. Quando se trata de objetos tão gerais como os costumes e as
Essas opiniões são particulares, eu sei; mas haverá uma só entre maneiras de um povo, deve-se tomar cuidado para não se restringir a
todas as seitas que não tenha caído em algum erro perigoso? E o que visão sempre aos exemplos particulares. Seria um meio de nunca per-
diremos da distinção das duas doutrinas, recebidas com tanta avidez ceber as fontes das coisas. Para saber se tenho razão de atribuir a po-
por todos os fIlósofos, e pela qual eles professavam em segredo sen- lidez à cultura das letras, não é preciso investigar se este ou aquele
timentos contrários aos que ensinavam publicamente? Pitágoras foi o erudito são pessoas polidas; mas é preciso examinar as relações que
primeiro a fazer uso da doutrina interior; só a revelava aos seus dis- podem existir entre a literatura e a polidez e depois ver quais são os
cípulos depois de longas provas e com o maior mistério; dava-lhes povos entre os quais tais coisas estavam reunidas ou separadas. Digo
secretamente lições de ateísmo e oferecia solenemente hecatombes a o mesmo do luxo, da liberdade e de todas as outras coisas que in-
Júpiter. Os fllósofos deram-se tão bem com esse método que este se fluenciâm os costumes de uma nação e sobre as quais ouço, todos os
alastrou rapidamente pela Grécia, e daí passou para Roma, como se dias, tantos raciocínios deploráveis. Examinar tudo isso em detalhes
vê pelas obras de Cícero, que zombava com seus amigos dos deuses e acerca de alguns indivíduos não é filosofar, é perda de tempo e de
imortais, os quais tomava por testemunhas na tribuna e nas arengas. reflexões, pois pode-se conhecer a fundo Pierre ou Jacques e ter-se
A doutrina interior não foi levada da Europa para a China, mas feito muito pouco progresso no conhecimento dos homens.
lá também nasceu com a fllosofia, sendo a ela que os chineses devem 24. Ficarei muito espantado se um de meus críticos basear-se no
essa multidão de ateus ou de filósofos que têm entre si. A história elogio que fiz de vários povos ignorantes e virtuosos para opor-me a
dessa fatal doutrina, feita por um homem instruído e sincero, seria lista de todos os bandos de salteadores que infestaram a terra e que,
um golpe terrível dado à fIlosofia antiga e modema. Mas a filosofia em geral, não eram homens muito sábios. Exorto-os de antemão a

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não se esfalfarem nessa pesquisa, a não ser que a considerem neces- os homens afáveis. Mas a afabilidade, que é a mais amável das virtu-
sária para mostrar erudição. Se eu tivesse dito que basta ser ignoran- des, é também às vezes uma fraqueza da alma. A virtude nem sem-
te para ser virtuoso, não valeria a pena responder-me e, pela mesma pre é afável, sabe armar-se no momento oportuno de severidade con-
razão, eu me julgarei inteiramente dispensado de responder eu mes- tra o vício, inflama-se de indignação contra o crime.
mo aos que perderem seu tempo sustentando-me o contrário. Vede o
E o justo ao mau não sabe perdoar.
Timão de Voltaire.
25. Restariam-nos os vícios, diz o filósofo que já citei, e teriamos, Foi muito sábia esta resposta de um rei da Lacedemônia aos que
além disso, a ignorância. Nas poucas linhas que este autor escreveu louvavam em sua presença a extrema bondade de seu colega Carilo.
sobre esse grande tema, vê-se que voltou os olhos para esse lado e E como seria ele bom, disse-lhes ele, se não sabe ser terrível com os
enxergou longe. maus? - Quod malas boni oderint, bonos opartet esse. Bruto não era
um homem afável; quem teria coragem de dizer que não era virtuo-
so? Ao contrário, há almas covardes e pusilânimes que não têm ardor
Última resposta deJ.-J. Rousseau nem calor e que são afáveis apenas por indiferença pelo bem e pelo
mal. Assim é a afabilidade que o gosto das letras inspira aos povos.
26. Rousseau responde aqui ao discurso do Sr. Bordes, acadêmi- 29. Sócrates perdeu a vida por dizer precisamente as mesmas
co de Lyon, que será impresso no primeiro volume do suplemento. coisas que eu. No processo que lhe foi intentado, um dos seus acu-
27. Há verdades muito evidentes que à primeira vista parecem sadores advogava pelos artistas, o outro pelos oradores, o terceiro
absurdos, e que sempre passarão por tais para a maioria das pessoas. pelos poetas, todos pela pretensa causa dos deuses. Os poetas, os
Ide dizer a um homem do povo que o Sol está mais perto de nós no artistas, os fanáticos, os retóricos triunfaram, e Sócrates pereceu.
inverno do que no verão, ou que já se pôs antes que deixemos de ve- Temo muito ter dignificado demais meu século ao afirmar que nele
lo, e ele zombará de vós. O mesmo sucede com a opinião que sus- Sócrates não teria bebido a cicuta. Deve-se observar que eu dizia isso
tento. Os homens mais superficiais sempre foram os mais prontos a já no ano de 1752.
tomar partido contra mim; os verdadeiros filósofos são menos preci- 30. Não há uma vez que eu assista à representação de uma
pitados e, se tenho a glória de ter feito alguns prosélitos, foi apenas comédia de Moliere que não admire a delicadeza dos espectadores.
entre estes últimos. Antes de me explicar, meditei longa e profunda- Uma palavra um tanto livre, uma expressão antes grosseira do que
mente sobre meu assunto e empenhei-me em considerá-lo sob todos obscena, tudo lhes fere os castos ouvidos; e de modo algum duvido
os seus ângulos. Duvido que algum dos meus adversários possa dizer que os mais corrompidos sejam sempre os mais escandalizados.
o mesmo. Pelo menos não observo em seus escritos essas verdades Entretanto, se comparássemos os costumes do século de Moliere com
luminosas que impressionam tanto por sua evidência como por sua os do nosso, alguém acreditaria que o resultado seria vantajoso para
novidade e que sempre são o fruto e a prova de uma meditação sufi- este? Quando a imaginação é maculada uma vez, tudo se lhe toma
ciente. Ouso dizer que nunca me fizeram uma objeção razoável que um motivo de escândalo. Quando não se tem mais nada de bom
eu não houvesse previsto e à qual não tenha respondido de antemão. além do exterior, redobram-se todos os cuidados para conservá-lo.
É por isso que sou obrigado a repetir sempre as mesmas coisas. 31. Opuseram-me em certo trecho o luxo dos asiáticos, com
28. Os conhecimentos tornam os homens afáveis, diz esse filóso- essa mesma maneira de raciocinar que faz com que me oponham os
fo ilustre cuja obra sempre profunda e por vezes sublime exala em vícios dos povos ignorantes. Mas, por uma infelicidade que persegue
todas as passagens o amor à humanidade. Escreve nessas poucas meus adversários, eles se enganam até nos fatos, que nada provam
palavras, e, o que é raro, sem ênfase, o que jamais se escreveu de tão contra mim. Bem sei que os povos do Oriente não são menos igno-
sólido em proveito das letras. É verdade, os conhecimentos tomam rantes do que nós; mas isso não impede que também sejam vãos e

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escrevam quase o mesmo tanto de livros. Os turcos, de todos eles os vícios de uma multidão de povos ignorantes, como se isso tivesse
que menos cultivam as letras, contavam entre eles quinhentos e alguma importância para a questão. Por a ciência engendrar necessa-
oitenta poetas clássicos por volta do século passado. riamente o vício, conclui-se que a ignorância engendra necessaria-
32. Não tenho nenhum propósito de fazer a corte às mulheres; mente a virtude? Essas formas de argumentar podem ser boas para
consinto que elas me honrem com o epíteto de pedante, tão temido retóricos, ou para as crianças pelas quais me fizeram refutar em meu
por todos os nossos galantes filósofos. Sou grosseiro, rabugento, país. Os filósofos, porém, devem raciocinar de outro modo.
indelicado por princípios, e não quero aduladores. Assim, vou dizer 34. O luxo alimenta cem pobres em nossas cidades e faz pere-
a verdade totalmente à vontade. cer cem mil em nossos campos; o dinheiro que circula entre as mãos
O homem e a mulher são feitos para amar-se e unir-se; mas, dos ricos e dos artistas para atender às suas superfluidades está per-
afora essa união legítima, toda relação de amor entre eles é uma ter- dido para a subsistência do lavrador; e este não tem roupa precisa-
rível fonte de desordens na sociedade e nos costumes. Claro que ape- mente porque os outros precisam de galões. Só o desperdício dos
nas as mulheres poderiam trazer de volta a honra e a probidade à materiais que servem para a alimentação dos homens basta para tor-
nossa sociedade; mas rejeitam das mãos da virtude um domínio que nar o luxo odioso à humanidade. Meus adversários são muito felizes
só querem dever aos seus encantos. Assim elas só fazem o mal e, por a culpável delicadeza da nossa língua impedir-me de entrar,
com freqüência, recebem elas mesmas a punição de tal preferência. nesse ponto, em detalhes que os fariam envergonhar-se da causa que
É difícil conceber como, numa religião tão pura, a castidade pôde tor- ousam defender. São necessários sucos em nossa cozinha, e por isso
nar-se uma virtude baixa e monacal capaz de tornar ridículo qualquer tantos doentes carecem de caldo. São necessários licores em nossas
homem e, diria eu, quase toda mulher que se atrevesse a exibi-la, ao mesas, e por isso o camponês só bebe água. É necessário pó para as
passo que, entre os pagãos, essa mesma virtude era universalmente nossas perucas, e por isso tantos pobres não têm pão.
reverenciada, considerada como própria dos grandes homens e ad- 35. Esta nota é para os filósofos, aconselho aos outros a deixa-
mirada em seus mais ilustres heróis. Posso citar três que não ficarão rem de lado.
atrás de nenhum outro e que, sem a intromissão da religião, deram Se o homem é mau por natureza, é claro que as ciências apenas
todos exemplos memoráveis de continência: Ciro, Alexandre e o o tornarão pior; assim, só por essa suposição, eis a causa deles per-
jovem Cipião. De todas as raridades contidas no gabinete do rei, gos- dida. Mas é preciso prestar muita atenção porque, conquanto o ho-
taria de ver apenas o escudo de prata que lhe foi dado pelos povos mem seja naturalmente bom, como creio e como tenho a felicidade
da Espanha e no qual estava gravado o triunfo da virtude. Foi assim
de o sentir, daí não se segue que as ciências lhe sejam salutares, pois
que coube aos romanos submeter os povos, tanto pela veneração
qualquer conjuntura que põe um povo em situação de cultivá-las pre-
devida aos seus costumes quanto pelo esforço de suas armas. Foi
nuncia necessariamente um começo de corrupção que elas depressa
assim que a cidade dos faliscos foi subjugada e Pirro, vencedor, ex-
aceleram. Então o vício da constituição faz todo o mal que poderia
pulso da Itália.
fazer d da natureza, e os maus preconceitos substituem as más incli-
Lembro-me de ter lido em algum lugar uma boa resposta do
poeta Dryden a um jovem senhor inglês que lhe censurava porque, nações.
numa de suas tragédias, Cleômenes se divertia conversando na inti- 36. Péricles tinha grandes talentos, muita eloqüência, magnifi-
midade com sua amante ao invés de empreender algo digno de seu cência e gosto; embelezou Atenas com excelentes obras de escultura,
amor. "Quando estou junto de uma beldade", dizia-lhe o jovem lorde, com edifícios suntuosos e com obras-primas em todas as artes. Assim,
"sei aproveitar melhor o tempo." "Acredito", replicou-lhe Dryden, sabe Deus como foi gabado pela multidão dos escritores! Entretanto,
"mas também devereis confessar-me que não sois um herói." resta ainda saber se Péricles foi um bom magistrado, pois na condu-
33. Não posso deixar de rir ao ver nào sei quantos homens mui- ção dos Estados não se trata de erigir estátuas, mas de bem governar
to sábios, que me honram com suas críticas, oporem-me sempre os os homens. Não perderei meu tempo desenvolvendo os motivos

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secretos da guerra do Peloponeso, que foi a ruína da República; não 40. Se Tito não tivesse sido imperador, jamais teríamos ouvido
investigarei se o conselho de Alcibíades era bem ou mal fundado, se falar dele, pois teria continuado a viver como os outros; e só se tor-
Péric1es foi justa ou injustamente acusado de malversação; indagarei nou homem de bem quando, deixando de receber o exemplo de seu
somente se os atenienses se tornaram melhores ou piores sob o seu século, foi-lhe possível dar outro melhor. Privatus atque etíam sub
governo; pedirei que me nomeiem alguém entre os cidadãos, entre patre príncipe, ne adio quidem, nedum vituperatione publica caruit.
os escravos, mesmo entre seus próprios filhos, que seus cuidados te- At illi ea fama pro bano cessit, conversaque est in maximas laudes.
nham feito um homem de bem. Esta é, porém, parece-me, a primei- [Suetônio, Vida de Tito.)
ra função do magistrado e do soberano, pois o meio mais rápido e 41. Não é preciso perguntar se os pais e os professores estarão
seguro de tornar os homens felizes não é ornar suas cidades nem atentos em afastar meus perigosos escritos dos olhos dos filhos e dos
sequer enriquecê-los, mas sim torná-los bons. alunos. Com efeito, que horrível desordem, que indecência não seria
37. Vejo a maioria dos espíritos do meu tempo aplicarem todo se essas crianças tão bem educadas viessem a desdenhar tantas coi-
seu engenho para obscurecer a glória das belas e generosas ações sas tão bonitas e a preferir de fato a virtude ao saber? Isso lembra-me
antigas, dando-lhes alguma interpretação aviltante e inventando cir- a resposta de um preceptor lacedemônio, a quem perguntavam por
cunstâncias e causas vãs para as explicar. Grande sutileza! Dêem-me mofa o que ensinaria ao seu aluno. Eu lhe ensinarei, disse ele, a
a ação mais bela e pura, provavelmente posso atribuir-lhe cinqüenta amar as coisas honestas. Se eu encontrasse um homem assim entre
intenções viciosas. Deus sabe quanto a nossa vontade íntima pode nós, dir-Ihe-ia ao ouvido: "Tomai muito cuidado para não falar assim,
ser diversamente interpretada por quem quiser ampliá-la. Os enge- pois nunca tereis discípulos; mas dizei que lhes ensinareis a tagarelar
nhosos, com sua maledicência, não são tão maliciosos quanto estúpi- agradavelmente e responsabilizo-me por vossa fortuna."
dos e grosseiros. O mesmo trabalho que têm em detratar esses gran- 42. Perguntar-me-ão, talvez, que mal pode fazer ao Estado um
des nomes, e a mesma licença, eu o teria de bom grado para dar-lhes cidadão que sai para não mais voltar. Faz mal aos outros pelo mau
um empurrão para engrandecê-los. Não hesitaria em engrandecer exemplo que dá, o faz a si mesmo pelos vícios que vai procurar. De
ainda mais, o quanto pudesse minha imaginação, essas raras figuras, qualquer modo, cabe à lei prevenir isso, sendo preferível que seja
selecionadas pelos sábios para servirem de exemplo ao mundo. E enforcado a ser mau.
cumpre crer que os esforços de nossa imaginação ficam bem abaixo 43. Passa-me pela cabeça um novo projeto de defesa, e não ga-
do seu mérito. É dever dos homens de bem pintar a virtude a mais ranto que ainda não tenha a fraqueza de um dia executá-lo. Essa de-
bela possível. E não haveria inconveniente se a paixão nos induzisse fesa será composta apenas de razões tiradas dos filósofos; daí se
a exagerar os elogios a tão santas formas. Não é Rousseau que diz seguirá que, se acharem más suas razões, todos eles foram falastrões
tudo isso, é Montaigne. como pretendo, ou, se as acharem boas, tenho causa ganha.
38. Cúrio, ao recusar os presentes dos sarnnitas, dizia que prefe- 44. Há até pequenos resumos críticos feitos para o entreteni-
ria mandar naqueles que possuíam ouro do que o possuir pessoal- mento' dos jovens, em que me dão a honra de lembrar-se de mim. Não
mente. Cúrio tinha razão. Aqueles que amam as riquezas são feitos os li e com toda certeza não os lerei, mas nada me impede de dar-
para servir e aqueles que as desprezam, para mandar. Não é a força lhes a atenção que merecem, e não duvido que tudo isso seja muito
do ouro que sujeita os pobres aos ricos, mas é porque eles querem divertido.
enriquecer por sua vez; sem isso, seriam infalivelmente os senhores. 45. Garantem-me que o Sr. Gautier deu-me a honra de replicar-
39. Se eu continuasse a discutir com meus adversários, sua arro- me, embora eu não lhe houvesse respondido e houvesse mesmo
gância acabaria me levando à indiscrição. Acreditam impressionar-me exposto minhas razões para não o fazer. Parece que o Sr. Gautier não
com seu desprezo pelos pequenos Estados. Não temerão que alguma acha boas essas razões, já que se dá ao trabalho de refutá-las. Bem
vez eu lhes pergunte se é bom que haja grandes? vejo que devo ceder ao Sr. Gautier e concordo de todo o coração que

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errei em não lhe responder; assim, estamos de pleno acordo. Sinto é Ego cur, acquirere pauca
não poder reparar a minha falha. Pois, infelizmente, já passou da Si possum, invideor; cum língua Catonis et Enni
hora, e ninguém saberia do que quero falar. Sermonem Patrium ditaverit?
[Horácio, Arte poética)

Carta ao abade Raynal Quis, sobretudo, transmitir exatamente a minha idéia; sei, é ver-
dade, que a primeira regra de todos os nossos escritores é a de escre-
ver corretamente e, como dizem, falar em francês; é porque eles têm
46. Discurso, p. 49.
pretensões e querem mostrar ter correção e elegância. Minha primei-
ra regra, para mim que não me preocupo de modo algum com o que
pensarão de meu estilo, é a de fazer-me entender; todas as vezes que,
Carta dej.-j. Rousseau, de Genebra
com a ajuda de dez solecismos, puder expressar-me com mais força
e clareza, jamais hesitarei. Desde que seja bem compreendido pelos
47. Se o autor me der a honra de refutar esta carta, não há que
mósofos, de bom grado deixo os puristas correrem atrás das palavras.
se duvidar que me provará numa bela e douta demonstração, apoia-
da em autoridades muito sérias, que não é um crime possuir terras;
com efeito, é possível que não o seja para outros, mas seria um para
Discurso sobre a origem e os fundamentos
mim.
da desigualdade entre os homens
48. Pode-se ver no Discurso de Lyon um belíssimo modelo da
maneira pela qual convém aos filósofos atacar e combater sem alu- À República de Genebra
sões ofensivas e sem invectivas. Orgulho-me de que também encon-
trarão em minha resposta, que está no prelo, um exemplo de como 1. Heródoto conta que, depois do assassínio do falso Esmérdis,
se pode defender o que se crê verdadeiro, com a força de que se é estando reunidos os sete libertadores da Pérsia para deliberar sobre a
capaz, sem aspereza contra aqueles que atacam. forma do governo que dariam ao Estado, Otanes opinou vigorosa-
49. Se eu dissesse que uma citação tão extravagante vem sem mente a favor da república; parecer tanto mais extraordinário na boca
dúvida alguma de alguém a quem o método grego de Clénard é mais de um sátrapa quanto, além da pretensão que ele poderia ter ao
familiar do que os Oficias de Cícero e que, por conseguinte, parece império, os grandes temem mais do que a morte um tipo de governo
portar-se bem gratuitamente como defensor das boas letras; se acres- que os force a respeitar os homens. Otanes, como bem se pode ima-
centasse que há profissões como, por exemplo, a cirurgia, em que se ginar, não foi ouvido e, vendo que iam proceder à eleição de um
empregam tantos termos derivados do grego, que isso impõe aos monarca, ele, que não queria obedecer nem comandar, cedeu volun-
que as exercem a necessidade de ter algumas noções elementares tariamente aos outros concorrentes seu direito à coroa, pedindo
dessa língua; isso seria adotar o tom do novo adversário, e respon- como única compensação serem, ele e sua posteridade, livres e inde-
der como ele teria feito em meu lugar. Quanto a mim, posso responder pendentes, o que lhe foi concedido. Mesmo que Heródoto não nos
que, quando arrisquei a palavra Investigação, quis prestar um ser- informasse a restrição que foi imposta a esse privilégio, cumpriria
viço à língua, tentando introduzir-lhe um termo suave, harmonio- necessariamente pressupô-Ia; de outro modo Otanes, não reconhe-
so, cujo sentido já é conhecido, e não tem sinônimo em francês. cendo nenhuma espécie de lei e não tendo de prestar contas a nin-
Estas são, creio, todas as condições exigidas para autorizar essa guém, teria sido todo-poderoso no Estado e mais poderoso do que o
liberdade salutar: próprio rei. Porém não havia muita possibilidade de que um homem,
capaz de contentar-se num caso assim com tal privilégio, fosse capaz

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