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“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve.

A pessoa humana constitui o único ser existente


no universo que busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua
especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente
e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. A produção de conhecimento
assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. Este distingue-se pelo seu carácter
sistemático, pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise,
individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um
conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da
necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no
seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que
anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho
científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos

Sísifo
deuses a que foi sujeito de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.”

revista de ciências da educação


Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa
Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó

n.º 11 · Jan | Fev | Mar | Abr · 2010


> A História da Profissão Docente
no Brasil e em Portugal:
aproximações e distanciamentos
coordenação de Jorge Ramos do Ó e Ana Waleska Mendonça

issn 1646-4990
http://sisifo.fpce.ul.pt
Índice
SÍSIFO
REVISTA DE CIÊNCIAS
Editorial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1-2 DA EDUCAÇÃO
Nota de apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3-4
N.º 11
DOSSIER
A História da Profissão
Docente no Brasil e em
A fragmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre o processo Portugal: aproximações e
de profissionalização dos professores distanciamentos
Ana Waleska Pollo Campos Mendonça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5-14
Edição
O vínculo pedagógico ao regime de classes Responsável Editorial deste número:
Jorge Ramos do Ó . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15-24 Jorge Ramos do Ó e
Ana Waleska Mendonça
O ofício docente na voz de suas lideranças sindicais Director: Rui Canário
Isabel Lélis, Libânia Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25-34 Director Adjunto: Jorge Ramos do Ó
Conselho Editorial: Rui Canário,
Os professores e o ensino industrial
Luís Miguel Carvalho, Fernando
Luís Alberto Marques Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35-44 Albuquerque Costa, Helena Peralta,
Jorge Ramos do Ó
Normalistas e meninas de asilo
Maria João Mogarro, Silvia Alicia Martínez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45-54 Colabor adores deste número:

Autoria dos artigos: Luís Alberto


Imagens sobre a profissão docente no mundo luso-brasileiro Marques Alves, Vera Lucia Alves
Tereza Fachada Levy Cardos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55-64 Breglia, Tereza Fachada Levy
Cardoso, Inês Félix, Ana Lúcia
O professor “operário” e “apóstolo” Fernandes, Isabel Lélis, Sonia de
Ana Isabel Madeira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65-74 Castro Lopes, Ana Isabel Madeira,
Ana Maria Magaldi, Silvia Alicia
Martinez, Ana Waleska Mendonça,
(In) Sucessos da Escola Normal da Corte Maria João Mogarro, Jorge Ramos
Sonia de Castro Lopes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75-84 do Ó, Albertina L. Oliveira, Helena
Peralta, Libânia Xavier e Maria
Universidade brasileira e formação docente na trama dos discursos Adelina Villas-Boas.
Vera Lucia Alves Breglia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85-94 Traduções: Mark Ayton, Thomas
Kundert e Tânia Lopes da Silva
Páginas do professorado Secretariado de Direcção: Gabriela
Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95-104 Lourenço e Mónica Raleiras

“Estabelecer a unidade moral e intelectual do professorado” Logotipo Sísifo


Ana Lúcia Cunha Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105-114 Desenho de Pedro Proença

Arr anjo Gr áfico


RECENSÕES Pedro Serpa

Recensão da obra Emergência e circulação do conhecimento psicopedagógico Informação Institucional


moderno (1880-1960): estudos comparados Portugal-Brasil, de Jorge Ramos Propriedade: Unidade de I&D
do Ó e Luís Miguel Carvalho de Ciências da Educação
Inês Félix . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115-116 issn: 1646-4990

Apoios: Fundação para a Ciência


OUTROS ARTIGOS e a Tecnologia

O envolvimento parental no desenvolvimento da literacia Contactos


Maria Adelina Villas-Boas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117-126 Morada: Instituto de Educação
da Universidade de Lisboa
Um olhar de dentro Alameda da Universidade,
Albertina L. Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127-138 1649-013 Lisboa
Telefone: 21 794 36 51
Sísifo, revista de ciências de educação: Fax: 21 793 34 08
Instruções para os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139-140 e -mail: sisifo@fpce.ul.pt
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Editorial

Se o curso da história fosse linear, estaria agora, a toda a sua obra – escrita, falada, agida – nem ao seu
aqui, a discutir a questão central que nos coloca Gi- perfil multifacetado, onde avultam o longo percurso
meno Sacristán¹, em obra recente – A educação que de académico, de professor, também o de político, de
ainda é possível: a da (im)possibilidade da educação jornalista e de sindicalista… O importante é que vi-
num mundo de desescolarização em que, apesar da veu com um propósito, de acordo com o seu ideal e
retórica do discurso corrente, ela deixou de ser uma com aquilo em que acreditava até ao fim.
prioridade prática. Passando, no entanto, em revisão a sua biblio-
Mas, no passado dia quatro de Março, morreu o grafia e as referências ao vasto campo da sua acção
nosso colega e querido amigo Rogério Fernandes. em educação, constata-se que Rogério Fernandes
Impunha-se a atenção da nossa revista. é provavelmente um dos académicos com o maior
Rogério Fernandes era Professor Catedrático do número de áreas de intervenção e de interesse: da
IEUL, membro activo da Unidade de I&D de Ciên- História da Educação à formação de professores, ao
cias da Educação e autor da revista Sísifo. Tinha 78 currículo, à investigação educacional, entre outras.
anos e era professor jubilado. No entanto, na página Essa revisão mostra-nos, por um lado, um homem
que lhe é dedicada no sítio da unidade de investiga- de cultura, de conhecimento amplo, não limitado
ção regista-se, como seu contributo mais recente, a pelo estrito conhecimento disciplinar e, por ou-
referência a 55 publicações e a coordenação de dois tro, uma preocupação de ligação coerente entre a
projectos de investigação, cujos resultados já não experiência pessoal e as actividades académicas.
partilhará connosco: Pensamento pedagógico, cultura Mas, sempre um homem curioso, resistente, num
e actividades educativas em Portugal e no Ultramar percurso seguro, mas crítico, sério, mas cheio de
– 1700-1823, com início em Janeiro de 2008 e conclu- sentido de humor. Como um Sísifo que, condenado
são em Dezembro de 2010 e Pensamento pedagógico, a eternamente repetir a inútil tarefa de carregar, co-
Cultura letrada e actividades educativas em Portugal lina acima, a rocha que dela acabara de rolar, troca
e no Ultramar – 1700-1850, com início em Janeiro de as voltas a Zeus e, de cada vez, carrega, sorrindo,
2009 e conclusão prevista para Dezembro de 2011. montanha acima, uma pedra diferente, mostrando
Vimo-lo, nos dois dias que precederam a sua morte, que, mesmo sabendo que nada nunca está comple-
a preparar a sua participação numa videoconferên- tamente acabado, tem de se continuar a tentar e a
cia, a comentar com o seu fino sentido de humor os redescobrir novas formas de o fazer.
últimos desconchavos da política nacional e a contar Retomando, deste modo, Gimeno Sacristán “Si
mais uma das suas saborosas histórias vividas. la educación es aún posible, en un mundo en el que
Não é este o momento nem o local para a homena- tanto se espera de ella y cuando tantos desconten-
gem merecida. Não caberia neste editorial a referência tos se concitan haciéndonos visible su deterioro, es

1
porque creemos en la posibilidad de redescubrirla” Notas
(2009, p. 1)². Parece ter sido este sentido da redes-
coberta, da reinvenção da educação que norteou o 1. Gimeno Sacristán, J. (2007, 2009). La educa-
percurso de Rogério Fernandes nos caminhos da ción que aún es posible. Madrid: Morata.
educação, fazendo-nos crer que ela sempre foi, e é, 2. “Se a educação ainda é possível, num mundo
possível. que tanto espera dela, e quando há tantos desconten-
tes que se esforçam para nos mostrarem a sua dete-
Com a morte do Professor Rogério Fernandes, as rioração, é porque acreditamos na possibilidade de
Ciências da Educação e a História da Educação a redescobrirmos” (tradução retirada da edição em
perderam um dos seus mais respeitados e activos português – José Gimeno Sacristán, 2008, A educa-
membros. ção que ainda é possível. Ensaios sobre a cultura para
a educação. Porto: Porto Editora).
E ficaram tantas histórias por contar…

Helena Peralta
26 de Abril de 2010

2 sísifo 11 | editorial
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Nota de apresentação
A História da Profissão Docente no Brasil
e em Portugal: aproximações e distanciamentos
Ana Walesk a Mendonça

O conjunto de artigos que compõe este número da (Nóvoa, 1998), enquanto uma história dos sentidos,
revista Sísifo é o resultado do trabalho conjunto de e não um arranjo sistematizado de fatos. Nesse mo-
investigadores portugueses e brasileiros, vincula- vimento de passar de uma análise dos fatos para a
dos ao projeto CAPES/FCT “História da Profissão análise do sentido histórico dos mesmos, pretende-
Docente no Brasil e em Portugal: aproximações e mos situar-nos no âmbito de uma nova epistemo-
distanciamentos”, que se desenvolveu ao longo dos logia do conhecimento, que define as perspectivas
anos de 2007 a 2010. de pesquisa centradas não só na materialidade dos
O referido projeto pretendeu debruçar-se so- fatos, mas também nas comunidades discursivas
bre a história da profissão docente no mundo luso- que os descrevem, interpretam e localizam em um
-brasileiro, numa perspectiva de longa duração, espaço-tempo determinado.
tentando entendê-la em um duplo contexto carac- A escolha do termo história da profissão docente
terizado, por um lado, pelo processo de formação foi intencional, considerando o que essa expressão
dos Estados modernos, do qual a constituição dos possui de mais elucidativo, enquanto uma “no-
sistemas nacionais de ensino — que, por sua vez, ção unificadora das várias dimensões do exercício
se viabiliza com a universalização da forma ou mo- profissional do magistério, cuja concepção exige a
delo escolar (Vincent, 1980) — é, sem dúvida, uma análise simultânea e integrada dessas mesmas di-
das dimensões mais significativas; e, por outro, pelo mensões” (Catani, 2000, p. 587).
processo de institucionalização das ciências da edu- Desse ponto de vista, o programa de pesquisa
cação, que se articula por uma via de mão dupla ao que desenvolvemos abrangeu a análise de um con-
próprio processo de profissionalização do professor. junto de fatores associados à história dessa profis-
Dessa perspectiva, tomou-se como referência são, incluindo a consideração das políticas oficiais
central o modelo de interpretação construído por dirigidas ao magistério, o estudo da circulação de
Nóvoa (1987), em seu estudo sobre a profissão do- saberes e da apropriação de produtos culturais por
cente em Portugal, considerando que, se por um esses agentes históricos, a observação de diferen-
lado, é preciso levar em conta, no caso, as especifici- tes formas de manifestação dessa categoria profis-
dades de cada um dos dois países (e, mesmo as dife- sional diante das exigências postas ao exercício de
renças internas, particularmente no caso do Brasil), seu ofício, bem como as representações sociais que
por outro, não se pode deixar de reconhecer, como interferiram e ainda interferem na constituição de
afirma este mesmo autor (Nóvoa, 1994), o caráter uma identidade docente específica (ou de múltiplas
transnacional das questões a ela atinentes. identidades docentes).
Buscou-se, igualmente, entender a história com- A diversidade dos artigos reunidos nesse núme-
parada na perspectiva proposta por esse autor ro da revista dá conta dessas distintas dimensões

3
e é indicativa da fertilidade desse tipo de aborda- Referências bibliográficas
gem. Usando de diferentes fontes documentais,
que incluem documentos oficiais, revistas pedagó- Catani, Denice Bárbara (2000). Estudos de His-
gicas, depoimentos orais, os artigos apontam para tória da Profissão Docente. In E. M. T. Lopes;
aspectos ainda pouco explorados da trajetória da L. M. Faria Filho & C. G. Veiga, 500 Anos de
profissão, considerando os seus distintos segmen- Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
tos (professores primários, secundários, do ensino pp. 585-599.
profissional), questões referentes à formação dos Nóvoa, António (1987). Le temps des professeurs.
professores, à organização da categoria docente, às Analyse sócio-historique de la profession enseig-
imagens que se vão atribuindo a esses profissionais, nante au Portugal (XVIII-XX). 2 volumes. Lis-
ao longo da história, em diferentes recortes tempo- boa: Instituto Nacional de Investigação Científica.
rais, em Portugal, no Brasil e também Moçambique, Nóvoa, António (1994). Historia da Educação. Lis-
em um dos textos, ampliando-se dessa forma a aná- boa: Faculdade de Psicologia e Ciências da Edu-
lise para mais um dos espaços que integram o que cação da Universidade de Lisboa.
estamos chamando de mundo lusófono. Nóvoa, António (1998). La profession enseignante
Convidamos os leitores a se embrenharem co- en Europe: analyse historique et sociologique.
nosco por essas análises, buscando identificar as In António Nóvoa, Histoire et comparaison: es-
aproximações e os distanciamentos entre as diversas sais sur l’ éducation. Lisboa: Educa, pp. 147-185.
realidades nacionais e percebendo por trás desses Vincent, Guy (1980). L’ école primaire française.
elementos as idéias, projetos e modelos em circulação Étude sociologique. Lyon/Paris: P.U.F./Éditions
nos distintos contextos e momentos históricos, bem de la Maison des Sciences de L’Homme.
com as suas diferenciadas formas de apropriação.

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A fragmentação dos estudos secundários


e seus efeitos sobre o processo de profissionalização
dos professores

Ana Waleska Pollo Campos Mendonça


awm@puc-rio.br
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio, Brasil

Resumo:
O artigo se propõe a estudar o impacto das Reformas Pombalinas dos Estudos Menores so-
bre o processo de profissionalização docente, particularmente, dos professores dos estudos
secundários. Parte-se do pressuposto de que a fragmentação dos estudos introduzida com
a Reforma Pombalina gerou um efeito de fragmentação da profissão, com repercussões na
forma como a profissão docente foi se constituindo historicamente. No caso específico dos
professores dos estudos secundários, a estrita vinculação a uma disciplina teria reforçado
esse efeito, levando-os a construir uma identidade diferenciada dos mestres de ler, escrever
e contar.

Palavras-chave:
Reformas Pombalinas dos Estudos Menores, Fragmentação dos estudos, Estudos secun-
dários, Profissão docente.

Mendonça, Ana Waleska (2010). A fragmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre o pro-
cesso de profissionalização dos professores. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 5-14.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

5
Este artigo se remete à pesquisa: “A Reforma Pom- o modelo do “colégio” e o das “aulas”. E, na perspec-
balina dos Estudos Secundários e seu impacto na tiva de Ó:
profissionalização do professor”, vinculada ao
projeto “História da Profissão Docente no Brasil o princípio de que as disciplinas podiam ser ensinadas
e em Portugal: aproximações e distanciamentos” independentemente umas das outras, sem relação en-
(CAPES/FCT) e se configura como um desdobra- tre si, (…), vingaria depois de 1772, acabando na ver-
mento direto das análises desenvolvidas sobre a dade com o regime de classes que, embora de origem
sua base documental. protestante, fora entre nós desenvolvido pelos jesuítas
Uma das questões norteadoras se constituiu, e com eles passou a ser identificado (2003, p.  181).
desde o início, no impacto da fragmentação dos
estudos¹ sobre o processo de profissionalização do- Para ambos os autores, esse princípio de que
cente, particularmente, dos professores dos estudos as disciplinas podiam ser ensinadas independente-
secundários². mente umas das outras se contrapunha ao regime de
Com o desenvolvimento da pesquisa e, princi- classes e sua influência se prolongou, em Portugal,
palmente, com a possibilidade aberta de intercâm- para além da criação dos primeiros liceus, a partir
bio com investigadores portugueses, tal questão de 1836. Na percepção de ambos, esse teria sido o
acabou assumindo uma ainda maior centralidade, paradigma organizacional do ensino secundário,
face à percepção que se foi construindo do seu im- que prevaleceu na cena educativa em Portugal até
pacto efetivo sobre a institucionalização do ensino finais do século XIX.
secundário³ no Brasil e em Portugal. No Brasil, tanto as Reformas Pombalinas, quan-
No caso específico da historiografia da educa- to o ensino secundário, não têm sido um objeto
ção portuguesa, os trabalhos de Barroso (1995) e de privilegiado da pesquisa historiográfica. No que se
Ó (2003) sobre a institucionalização dos liceus em refere às reformas, prevalece a interpretação cons-
Portugal, chamam atenção para tal impacto, ao ad- truída por Fernando de Azevedo (1943)5, de que es-
mitirem ambos que a forma como se organizaram as tas representaram a simples destruição do sistema
aulas régias implicou numa ruptura com o modelo jesuítico, não deixando marcas na posterior estrutu-
dos colégios, substituído pelo modelo alternativo ração dos sistemas de ensino.
das aulas isoladas e regido por uma lógica diferen- Quanto ao ensino secundário, em um trabalho
ciada da anterior. já clássico, Silva (1969) chama a atenção para a difi-
Para esses autores, particularmente após o relan- culdade da sua institucionalização como uma forma
çamento da Reforma, em 17724, instala-se um con- regular de ensino, mesmo após a criação do Colé-
fronto entre dois modelos de organização pedagógica: gio de Pedro II (1837), proposto como instituição

6 sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre…
modelar e padronizadora desse nível de ensino aulas régias se distinguem do ponto de vista dos gru-
para todo o país. Essa dificuldade se expressou, por pos a que se destinam. Admite-se que, para a gran-
exemplo, na longa permanência dos exames de pre- de maioria, bastaria o aprendizado do ler, escrever e
paratórios, exames parcelados das disciplinas do contar, para outros, a precisa instrução da Língua
ensino secundário, para a realização dos quais não Latina, e apenas aos que pretendessem seguir os
se exigia a comprovação de nenhum tipo de esco- estudos superiores se destinariam as aulas de grego,
larização regular anterior e que habilitavam para os retórica e filosofia. Essa hierarquização se refletia
estudos superiores. Esses exames, no Brasil, só vão tanto no respectivo número de cadeiras oferecidas,
ser definitivamente extintos com a Reforma Francis- quanto nos salários diferenciados dos mestres e pro-
co Campos, em 1930. fessores (tanto mais elevados quanto mais próximos
Silva relaciona tal dificuldade à inexistência de dos estudos superiores) e na própria diferenciação
um lastro de tradição pedagógica que atribuísse ao que se estabelecia entre as duas denominações.
ensino secundário uma finalidade em si mesmo, de Referindo-se especificamente às aulas régias de
caráter mais formativo, sendo este percebido como ler, escrever e contar, criadas por essa Carta, Adão
uma preparação imediata e sumária para o ensino (1997) questiona aqueles autores que confundiram a
superior. No entanto, não estabelece qualquer vín- iniciativa de Pombal de “criação de uma rede de es-
culo com a situação anterior, até porque o autor colas régias, gratuitas, com o desejo que lhe atribuí-
incorpora a tese de Azevedo, de que as Reformas am de estabelecer um sistema de educação popular”
Pombalinas fracassaram inteiramente no Brasil. (p. 59). Não só a autora critica a identificação que se
Minha hipótese é que, como no caso de Portu- estabelece freqüentemente entre as expressões ins-
gal, pode-se articular esse tipo de resistência com trução popular e ensino de primeiras letras, como
os efeitos da fragmentação dos estudos, introduzi- afirma peremptoriamente que, com a criação dessas
da pela Reforma Pombalina. Desse ponto de vista, escolas, “o Marquês de Pombal não tinha em vista
é que me aproprio dessa categoria, originalmente alfabetizar as classes populares mas tão somente a
formulada pelo próprio Azevedo, ressignificando-a nobreza de toga, os proprietários fundiários e a bur-
na direção do que a historiografia portuguesa ca- guesia em geral” (p. 60).
racteriza como dispersão ou descontinuidade dos A esse respeito, Fernandes (1994) assinala a cor-
estudos. A minha preocupação central é avaliar o respondência que se estabelecia entre o destino pro-
impacto dessa fragmentação no processo de profis- fissional e o destino escolar dos candidatos às escolas
sionalização dos professores secundários e, particu- régias. Dessa perspectiva, não só a maior parte da
larmente, na forma como foi se constituindo a sua população portuguesa permaneceria excluída des-
identidade profissional. sas escolas, como o próprio plano da sua instalação
levava em conta os destinos diversos e desiguais.
Outras formas de diferenciação interna eram
O PONTO DE PARTIDA: UMA ainda acrescidas às acima citadas e passavam pelo
PROFISSÃO FRAGMENTADA6 tamanho e importância das cidades e vilas onde as
aulas se instalavam, pela condição que se atribuía ao
A opção da Reforma Pombalina pelo modelo das professor de proprietário ou substituto da cadeira,
aulas avulsas determinou uma série de clivagens in- pelo caráter permanente ou temporário da licença
ternas ao quadro de professores. As diferenciações concedida.
se justificavam em função de uma série de critérios Cumpre destacar que, embora seja nessa Carta de
que se apoiavam na correspondência entre a manei- Lei que as justificativas para essa diferenciação apare-
ra como os estudos se organizavam e a forma hierar- cem claramente evidenciadas, algumas das distinções
quizada como se percebia — e se pretendia — que a remontam a 1759. Embora o Alvará desse ano e as
própria sociedade se organizasse. respectivas Instrucçoens não apontem para nenhuma
É significativo, por exemplo, a esse respeito, a distinção de importância entre as cadeiras previstas, a
Carta de Lei de 1772. Nesse documento, fica claro não ser no que se refere ao seu número7, o salário dos
que as diferentes cadeiras em que se subdividem as professores régios é diferenciado, remunerando-se

sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre… 7
melhor os professores de grego, retórica e filosofia8, explicaria, ao menos em parte, as dificuldades de
do que os de gramática latina. Essa diferenciação apa- uma atuação mais integrada dos professores secun-
rece nas cartas de nomeação em que os ordenados dários no âmbito das instituições escolares, bem
são estipulados e é constante, embora os valores não como a relativa fragilidade das associações de clas-
sejam sempre exatamente os mesmos. se docentes, atravessadas por essa fragmentação.
Outras diferenciações surgem também, desde o
início, como é o caso dos professores substitutos,
previstos nas Instrucçoens. Mas a principal distin- O REFERENCIAL
ção que se estabelece, nesse primeiro momento de TEÓRICO -METODOLÓGICO
implantação da Reforma, é entre os professores ré-
gios e os mestres credenciados9, distinção marcada A pesquisa tem como ponto de partida o modelo de
por uma forte ambigüidade decorrente das próprias interpretação construído por Nóvoa (1987), em seu
condições em que ocorre a sua implementação. estudo sobre a profissão docente em Portugal.
O relançamento da Reforma em 1772, através da Utilizando-se de uma abordagem sócio-histórica,
criação do Subsídio Literário e da Carta de Lei a esse autor aponta para uma chave de leitura da pro-
que se fez referência acima, se, por um lado, viria a fissão docente, que se faz a partir de uma dupla di-
ampliar significativamente o quadro de professores mensão (a dimensão epistemológica e a dimensão
régios, por outro, não só manteria, como reforçaria ética ou deontológica) e da percepção da existência
as clivagens internas já estabelecidas em 1759. de quatro etapas ou momentos do processo de pro-
Do meu ponto de vista, é particularmente ex- fissionalização dessa atividade, que podem ser es-
pressivo o fato de que, com a criação das aulas ré- tudados tanto numa perspectiva diacrônica quanto
gias de ler, escrever e contar, as denominações de numa perspectiva sincrônica.
mestre e professor ficavam claramente diferenciadas, Servindo-se desse modelo de análise, Nóvoa
numa direção distinta do primeiro momento da re- (1987) considera que as Reformas Pombalinas con-
forma, passando a primeira a aplicar-se aos mestres figuram o momento de uma primeira intervenção do
de ler, escrever e contar, e a segunda, aos professores Estado português no sentido de criação de um su-
das demais matérias que configuravam os estudos porte legal para o exercício da profissão docente. Na
secundários. sua perspectiva, esse momento é particularmente im-
Esse quadro de uma profissão atravessada por portante no caso específico do magistério. Para esse
múltiplas formas de fragmentação gerava uma enor- autor, é o controle do Estado e não uma concepção
me insatisfação entre os professores, sendo objeto corporativa do ofício, como no caso das profissões
de um número bastante significativo de consultas liberais, que constitui os professores em corpo pro-
e petições encaminhadas à Real Mesa Censória¹0. fissional, processo esse que caracteriza em termos de
Minha hipótese é que a fragmentação dos estu- uma funcionarização da profissão docente.
dos gerou um efeito de fragmentação da profissão, Uma outra abordagem proposta por Escolano
que se refletiu não só na forma como a categoria (1999) pode oferecer um referencial de análise alter-
docente como um todo foi se constituindo histo- nativo, permitindo um olhar diferenciado para o pro-
ricamente, mas que teve conseqüências específicas cesso histórico de constituição da categoria docente.
no caso particular dos professores secundários. No O foco dessa abordagem é o ofício de profes-
caso desses professores, essa fragmentação, que se sor, entendido como uma tradição inventada. Para
reproduziu na institucionalização da sua formação Escolano:
inicial¹¹, fez com que tal segmento da categoria do-
cente construísse uma identidade profissional dis- El oficio de maestro se ha ido configurando históri-
tinta dos professores primários, configurando uma camente en el juego interactivo entre las prácticas en
cultura docente diferenciada e interferindo nas prá- que se ha materializado el ejercicio de la profesión y
ticas por eles desenvolvidas, tanto do ponto de vis- las atribuciones que le han conferido a esta una iden-
ta do seu trabalho especificamente docente, quanto tidad y la han socializado en el imaginario colectivo.
das suas práticas associativas. Essa constatação Porque, en efecto, el oficio de enseñante — tal como

8 sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre…
lo conocemos — constituye una tradición inventa- ao primeiro momento da Reforma (1759-1772), re-
da en buena medida por los propios actores que lo colhida por Banha de Andrade (1981 e 1984), bem
representan y por las imágenes de identidad que ha como as biografias traçadas por ele de alguns desses
creado la misma sociedad que lo reconoce y legitima primeiros professores, comprova tal afirmativa. Tal
(1999, p. 16). disposição se justificava não só pela preocupação
em afastar os antigos mestres jesuítas, como tam-
Dessa perspectiva, não há identidades apenas bém pela tendência anti-congregacionista do Dire-
atribuídas ao professor, mas todas são “construídas tor Geral dos Estudos¹4 que o levava, por exemplo,
ou ao menos negociadas entre as propostas ‘virtu- a rejeitar genericamente os Frades, alegando não só
ais’ dos que as definem e as propostas ‘reais’ dos a precariedade da sua instrução, mas a impossibili-
que as encarnam” (Escolano, 1999, p. 16). dade de sujeição direta à sua autoridade¹5.
Chamando atenção para a necessidade de se Por outro lado, a preocupação em recrutar para
considerar na pesquisa historiográfica a memória da as aulas régias os melhores professores, aliada à
corporação, objetivada nas suas práticas e transmiti- idéia de que a experiência prévia bem sucedida¹6 é
da de geração a geração, o autor propõe dar um giro um indicativo da competência do professor, fazia
na história dos professores, por meio de uma maior com que fossem preferidos os mestres mais expe-
atenção às tradições empíricas do seu ofício, que rimentados. É dentre estes que se vão escolher, por
constituem o cerne da cultura que lhe dá identidade. exemplo, os primeiros professores régios nomea-
Pretende-se combinar a abordagem mais ex- dos para se constituírem em examinadores, na for-
ternalista, de Nóvoa, com essa perspectiva, mais ma do Alvará e das Instruções de 1759.
internalista. Essa última pode ajudar no sentido Na Carta de Offício que o Diretor geral dos
de relativizar o papel do Estado na constituição da Estudos remeteu aos Comissários, com as ins-
categoria docente como tal, enfatizando o processo truções sobre como deveriam proceder nas suas
de apropriação¹² das regras e normas que lhe são respectivas áreas de jurisdição, estabelecia-se que
impostas e entendendo de forma menos vertical a estes começassem por convocar para exame todos
sua relação com o poder público. os professores (no caso, de gramática latina) “que
actualmente estejam exercitando o magistério, ou
o queiram exercitar”, bem como que levantassem
O IMPACTO DA FRAGMENTAÇÃO o número de “estudantes que ordinariamente cos-
DOS ESTUDOS NA CONSTRUÇÃO tumam applicar-se à Gramatica Latina” (Andrade,
DA IDENTIDADE DO PROFESSOR 1981, p.  214) na respectiva localidade, como base
SECUNDÁRIO: UMA PRIMEIRA inicial para o estabelecimento do número de cadei-
ABORDAGEM ras a serem criadas. E se recomendava que:

Em trabalho recente (Mendonça & Ó, 2008), cha- Ainda que para todas as aulas se deve buscar Mestres
mei atenção para dois aspectos específicos da imple- muito capazes, tanto em ciência quanto em procedi-
mentação das Reformas Pombalinas que tiveram um mento, cujas qualidades se devem provar com a maior
impacto significativo e ainda pouco estudado sobre circunspecçam, muito especialmente devem ser esco-
o que veio a se configurar como uma tradição no que lhidos entre os milhores, aquelles que se andem (sic)
se refere a esse segmento da categoria docente. occupar em a cidade (Banha de Andrade, 1981, p. 215).
O primeiro deles se remete à base de recruta-
mento dos professores régios, ao menos no primei- Aliás, pode-se, facilmente, constatar, pelos edi-
ro momento de implementação das reformas. Em tais de concurso encaminhados pelos Comissários
artigo anterior (Mendonça, 2005), ressaltei o fato ao Diretor Geral, que a experiência docente ante-
de que foi entre os professores particulares que mi- rior configurou-se, de fato, como um dos indicado-
nistravam aulas públicas¹³ por todo o Reino, que res da sciencia e erudição conhecida dos opositores,
se procurou, de início, recrutar tais professores. atendendo, a esse respeito, os Comissários às ins-
Uma análise preliminar da documentação referente truções do Diretor, inclusive no caso de além-mar.

sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre… 9
Referindo-se especificamente a Portugal, Ba- dos estudos, que reivindicavam a necessidade de
nha de Andrade (1984) chama a atenção para o fato um plano mais orgânico para os estudos menores,
de que a documentação referente a esse primeiro configurou-se posteriormente como um elemento
momento de implantação da reforma aponta para dificultador de uma visão integrada do papel for-
a existência de um número impressionante de mes- mativo do ensino secundário e, ao mesmo tempo,
tres que se ocupavam de um ensino público não ofi- como uma espécie de distintivo do professor desse
cial em todo o Reino. E é exatamente entre esses nível de ensino.
mestres particulares que se vão recrutar os primei-
ros professores régios.
O que gostaria de destacar aqui é que o peso À GUISA DE CONCLUSÃO
que se tem atribuído à ação do Estado na organiza-
ção da categoria docente tem levado a historiogra- Para reforçar o que se afirmou acima, gostaria de
fia da educação a desconsiderar a influência dessa trazer aqui, para concluir o texto, a Memória sobre
tradição mais artesanal ou liberal, na forma como a Reforma dos Estudos na Capitania de São Paulo,
os próprios professores foram configurando histo- elaborada em 1816 por Martim Francisco Ribeiro
ricamente o seu ofício. d’Andrade Machado¹7 (Machado, 1945).
Tal consideração obriga a relativizar ou, ao me- Essa memória não se remete diretamente às
nos, qualificar o processo de funcionarização da Reformas Pombalinas, cujo efeito tardou na referi-
profissão docente, já que se pode entender essa tra- da capitania¹8. Apela, entretanto, insistentemente,
dição como uma força de resistência à intervenção para a necessidade de se “esboçar o plano de uma
do Estado. Além do mais, a ela se vincula a idéia (ou instrução comum a todos os povos desta capitania”
ideologia) de que é a prática o espaço por excelên- (Machado, 1945, p. 467).
cia de formação do professor — sendo a experiência Esse documento, que propõe uma divisão da
acumulada o melhor indicador da sua competência instrução pública em três partes, estabelece uma
— que vai se constituir, mais à frente, num fator de nítida distinção entre o primeiro grau de instrução
resistência à institucionalização da formação. comum e o segundo grau de instrução, que tem uma
No caso específico do professor secundário, tal fundamentação de natureza claramente pedagógica.
tradição vai se fortalecer com a estrita vinculação Tal distinção se apoia em “considerações sobre as
que se estabelece entre o professor e a respectiva diferentes idades do homem, sua capacidade natural,
matéria que se habilita a lecionar, presente desde e tempo que ele pode empregar em instruir-se, e sô-
o primeiro momento de implantação da Reforma bre os serviços de diverso grau que a sociedade exi-
Pombalina. ge de seus membros” (Machado, 1945, p. 467). São
Essa vinculação que decorre da própria forma essas diferenças que obrigam a organizar a “instru-
como se organizaram as aulas régias, acha-se clara- ção dos moços em diversos graus” (Machado, 1945,
mente explicitada, por exemplo, em correspondência p.  468), aos quais se atribuem diferentes objetivos.
que o Diretor Geral dos Estudos dirige respectiva- No caso específico do segundo grau de instru-
mente ao Bispo do Pará, em 18/04/1761, ao Ouvidor ção, este teria “por fim os estudos elementares de
Geral do Pará, em 19/04/1761, e ao Professor Régio tôdas as matérias relativas a diversas profissões da
Euzébio Luis Pereira Ludon, no mesmo dia. A ques- vida, cuja perfeição redunda em vantagem, ou da
tão em pauta diz respeito a que o professor régio de sociedade ou dos particulares” (Machado, 1945,
Gramática Latina, enviado de Lisboa para a referida p. 468). Essas finalidades demandariam desse grau
capitania, achava-se também lecionando a Retórica. de ensino o recorte disciplinar, que Machado de-
Nessa correspondência, o Diretor Geral se fende enfaticamente, apoiando-se em argumentos
posiciona de maneira totalmente desfavorável à de ordem pedagógica:
acumulação das duas cadeiras, que considera fron-
talmente contrária ao Alvará e Instrucções de 1759. No primeiro grau de instrução deram-se de mistura
Essa vinculação tão estreita, naturalizada até os elementos de todos os conhecimentos, necessá-
pelos primeiros críticos da dispersão/fragmentação rios ao uso da vida; no segundo grau que já acha as

10 sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre…
faculdades de discípulo, mais desenvolvidas, e robo- A meu ver, essa organização disciplinar, que per-
radas, exige-se que se tirem linhas de demarcação en- manece até hoje como a forma mais comum de se
tre êstes elementos, que se separem as matérias, e se organizar o ensino equivalente aos estudos secun-
acrescentem outros e se dê maior extensão ao estudo dários, acabou por configurar-se como uma força
delas. Por este modo os moços de inteligência mais de resistência à percepção desse nível de ensino
ordinária recebem instrução, que lhes é suficiente: como um todo orgânico e articulado e teve efeitos
(…) e os de disposições mais felizes, apaixonando- duradouros sobre o processo de profissionalização
-se, e sentindo uma inclinação, ou gôsto decidido por dos professores secundários e sobre a própria cul-
esta, ou aquela ciência em particular, habilitam-se tura docente desse segmento do magistério.
desde então para fazer progressos nela, quando pas-
sarem ao estudo de qualquer das ciências do terceiro
grau de instrução (Machado, 1945, p. 475).

sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre… 11
Notas 7. Prevê-se que em cada uma das vilas das Provín-
cias se estabeleçam um ou dois professores de Gra-
1. Refiro
Refiro-me ao modelo de organização pedagó- mática Latina; dois professores de Grego em Coim-
gica adotado para as aulas régias, em oposição ao bra, Évora e Porto, e um nas demais cidades e vilas
dos colégios jesuítas, que foi o das aulas avulsas de que sejam cabeças de Comarca; e o mesmo para as
matérias que não guardavam entre si nenhum tipo de cadeiras de Retórica.
articulação. 8. Embora o Alvará e as Instrucçoens não se refiram
2. Entendo o termo com o sentido que lhe é atri- aos professores de Filosofia, algumas cadeiras vão
buído por Banha de Andrade (1981 e 1984), compre- ser criadas ainda no primeiro momento da reforma.
endendo especificamente os professores de gramá- 9. Conforme Banha de Andrade (1981, 1984).
tica latina, grego, retórica e filosofia e excluindo-se 10. A partir de 1772, a Real Mesa Censória assume
os mestres de ler e escrever e contar, apesar da desig- a direção dos estudos menores.
nação genérica de estudos menores. 11. No Brasil, essa formação se institucionalizou
3. Embora essa denominação não se encontre mais tardiamente que no caso dos professores pri-
mais em curso no Brasil, desde a Lei 5692/ 71 que mários e com certa resistência por parte das próprias
propôs a integração do antigo ensino primário com associações de docentes.
o ciclo ginasial do ensino secundário, existe uma 12. Ver Chartier (1990) e, particularmente, Cer-
nítida separação no interior do ensino fundamental, teau (1994).
de nove anos contínuos, entre as séries iniciais e as 13. O significado de público, nesse contexto, é
séries finais, que passa por uma organização curri- de aberto ao público, em contraposição à educação
cular diferenciada e pela existência de dois quadros doméstica (Mendonça & Vasconcelos, 2005).
de professores que se distinguem não só pelo tipo de 14. A Reforma de 1759 criou o cargo de Diretor
formação inicial recebida, mas, que configuram duas dos Estudos, ao qual competiam quatro funções
culturas docentes bastante diferenciadas. essenciais: a coordenação dos estudos, a elabora-
4. A Reforma Pombalina dos Estudos Menores ção de um relatório anual sobre a situação das aulas
foi implementada em dois momentos diferenciados. régias, a inspeção dos professores e a administração
As Instruçoens para os Professores de Grammatica das aulas. Esse cargo foi ocupado por D. Tomás de
Latina, Grega, Hebraica, e de Rhetorica,ordenadas Almeida, Principal da Igreja de Lisboa. Este, por sua
e mandadas publicar, por El Rey Nosso Senhor para vez, estabeleceu uma rede de comissários, escolhi-
o uso das Escolas novamente fundadas nestes Reinos, dos no meio judicial e eclesiástico, aos quais dele-
e seus Dominios, de 28/06/1759, constituiram, com o gava uma série de atribuições, entre elas a responsa-
Alvará régio que lhes deu força de decreto, os diplo- bilidade pela organização dos exames públicos para
mas fundamentais da primeira fase da Reforma Pom- a seleção dos professores régios e o credenciamento
balina. A Carta de Lei em q. Sua Mage creou as Escollas dos mestres particulares.
Publicas, e deu o methodo pª a Selecção dos Mestres, de 15. É exemplar a esse respeito, a instrução nº 8 da
6/11/1772, relançou a reforma, ampliando o seu alcance. Carta de Ofício remetida pelo Diretor Geral aos seus
5. Fernando de Azevedo foi um dos mais impor- Comissários em 6/01/1760 (Banha de Andrade, 1981,
tantes intelectuais vinculados ao Movimento da pp. 216-217).
Escola Nova no Brasil. Na sua obra A Cultura 16. Importa, a esse respeito, destacar os indicado-
Brasileira, publicada pela primeira vez em 1943, res recorrentemente assinalados do bom desempe-
“cristalizam-se representações sobre a educação no nho do professor: o destino dos seus muitos estudan-
Brasil e sua história, que têm sido atuantes na con- tes: a carreira eclesiástica ou os estudos universitários.
figuração da historiografia educacional” (Carva- 17. O conselheiro Martim Francisco (1775-1844)
lho, 1998, p. 331). Em trabalho posterior, Carvalho graduou-se em Filosofia e Matemática pela Univer-
(2000) chega a referir-se à existência de uma matriz sidade de Coimbra, em 1798, e ingressou na carreira
azevediana dessa produção historiográfica. política e parlamentar em 1820, quando foi criada
6. Ver Mendonça, 2007 e Mendonça & Cardoso, a Junta Governativa da Capitania de São Paulo, da
2007. qual foi o Secretário. Teve um importante papel na

12 sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre…
vida política brasileira antes e depois da indepen- Escolano Benito (orgs.), Os Professores na His-
dência (ver Ribeiro, 1945 e Varela & Lopes, 2007). tória. Porto: Sociedade Portuguesa de Ciências
18. A esse respeito, ver Banha de Andrade, 1978. da Educação, pp. 15-27.
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14 sísifo 11 | ana walesk a mendonça | a fr agmentação dos estudos secundários e seus efeitos sobre…
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

O vínculo pedagógico ao regime de classes:


Discursos sobre as práticas e a formação
de professores do ensino secundário em Portugal
na primeira metade do século XX

Jorge Ramos do Ó
jorge.o@ie.ul.pt
Universidade de Lisboa, Portugal

Resumo:
A estruturação do discurso acerca da formação pedagógica do professor do ensino secun-
dário, na primeira metade do século XX em Portugal, deixa perceber um objectivo central
— o da estruturação do regime de classe. À semelhança com o que sucedeu noutros domí-
nios, as orientações acerca do trabalho docente e seu controlo, bem como as competências
e os deveres dos professores, foram nesse período em larguíssima medida subsidiários da
Reforma de Jaime Moniz (1894-95). Este texto visa compreender a génese e o desenvolvi-
mento de tal operacionalização, que marca o início da modernização do sistema público
de ensino português, e ocupa-se do trabalho e da formação dos docentes.

Palavras-chave:
Ensino Liceal, Formação de Professores, Reformas Educativas, Regime de Classes.

Ó, Jorge Ramos (2010). O vínculo pedagógico ao regime de classes: Discursos sobre as práticas e a
formação de professores do ensino secundário em Portugal na primeira metade do século XX. Sísifo.
Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 15-24.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

15
A REFORMA DE JAIME MONIZ “à desordem sucedia a desordem”, superava-se
se fosse rigorosamente determinado, e muito bem
A alternativa ao atomismo do regime das disciplinas, justificado, tanto o lugar como o papel de cada
criado por Pombal na segunda metade do século província disciplinar. A história do currículo — e a
XVIII e mantida quase sem interrupções até ao ter- história da construção da verdade científica a que
mo de Oitocentos, passava por conceber um quadro depois sempre esteve associado — começava, por-
de distribuição dos saberes, graduado por anos ou tanto, como sendo um problema de poder e um
classes, e em que cada ramo disciplinar fosse disse- problema de resolução eminentemente discursiva.
cado, tanto na sua própria particularidade quanto Cunhar-se-iam novas terminologias para mostrar
na contribuição que efectivamente dava para o valor como a repartição das matérias se materializava
absoluto do ensino liceal. O reformador de finais do num sistema complexo ou num corpo animado de
século XIX tomava como sua tarefa essencial a al- elementos vivos e articulados entre si. O roteiro do
quimia curricular, num dos sentidos em que é apre- ensino liceal proposto em 1894-95 começava por
sentada por Popkwevitz (1998, pp.  99-116): como resultar assim de jogos de linguagem que procu-
uma operação que, transformando os vários campos ravam substituir a “desconexão” ou a “desunião
disciplinares — as matemáticas, a literatura ou as ci- tumultuária” por uma “viva coesão” e “unidade
ências, etc. — em assuntos ou programas do ensino de pensamento” (Decreto de 22/12/1894). Falar de
liceal, vai enfatizar a transmissão de informação por currículo como uma construção social da verdade
pequenos bocados, tendo essa administração como implicava, pois, um raciocínio de permanente bus-
moeda de troca um mesmo texto para alunos e pro- ca da melhor articulação da parte com o todo.
fessores. Pela primeira vez na história do ensino lice- O ensino secundário, nesta sua primeira versão
al português se sentiu a necessidade de pensar como moderna implicava: (1º) que os programas das di-
um todo as peças que outro autor, Ivor Goodson ferentes disciplinas fossem redigidos de modo que
(1997, p. 20), vê comporem o que chama de currícu- em cada classe elas correspondessem, quanto fosse
lo estrito: o plano de estudos, as orientações progra- possível, ao mesmo grau de desenvolvimento mental
máticas e os manuais das várias disciplinas. do aluno; (2º) que os factos fossem sempre conden-
O currículo moderno nascia assim, em 1894- sados em generalizações cada vez mais largas e nos
-95, como mais um produto social a que as autori- limites compatíveis com o desenvolvimento intelec-
dades escolares se socorreram para repor a ordem tual dos alunos e os conhecimentos que houvessem
perdida e, sobretudo, repovoar os liceus do Esta- entretanto adquiridos; (3º) que toda esta apropria-
do, então quase desertos. A fase negra dos “derra- ção de conteúdos disciplinares se fizesse de acor-
deiros trinta anos”, continuava o decreto, em que do com os métodos lógicos do positivismo, quer

16 sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas…
dizer, consoante os processos de descoberta e prova; tanto marcaria amiúde “sessão” na qual promoveria
(4º) que as relações se estabelecessem não apenas a “execução ajustada dos programas”. Além disso
com os conhecimentos trazidos de trás mas igual- regularia o esforço que cada professor exigia aos
mente entre as ciências vizinhas. seus alunos respeitando sempre o seu “desenvol-
vimento físico e psíquico”, evitando o “gravame de
os sobrecarregar”. No âmbito das atribuições do di-
A ARTS PEDAGOGICA rector de classe estava ainda “promover a ordem e
a disciplina nas aulas da classe”, cabendo-lhe aqui
Também pela primeira vez os governantes se preo- “fiscalizar a execução das disposições legais” que
cuparam com as técnicas de gestão da sala de aula e diziam respeito “aos alunos e professores e deliberar
imaginaram que seria no decurso da sua actividade convenientemente acerca da prática das mesmas”
quotidiana, que o professor iria garantir os fins do (Decreto de 14/8/1895). Várias iniciativas posterio-
ensino secundário caracterizados desde 1894-95. res foram tornando habituais estas e outras ideias
As autoridades insistiam em imaginar um actor so- da Reforma de 1894-95, apesar de nem sempre a
cial sempre em busca de equilíbrios e de uma acção paternidade ter sido assumida e até, de quando em
sensata sobre os escolares, estabelecendo a lei que vez, as medidas se anunciarem como novidades do
o professor: (i) cumpriria os “programas” e prati- Executivo que nessa altura estava em exercício ou
caria para a sua execução todos os “preceitos” que até chegarem num caso a negar o regime de classe.
lhes dissessem respeito; (ii) prestaria “os exercícios Neste plano da realidade não é exagero que falemos
escolares” atendendo sempre ao peso das diversas de um bloco doutrinário.
aulas da sua classe e equiparando “quanto possível Mas nem tudo era fácil. As primeiras recomenda-
a distribuição dos mesmos exercícios entre todos os ções denotavam alguma crispação dos responsáveis
alunos (sem prejuízo da insistência junto dos menos governamentais com os professores, recalcitrantes
hábeis)”; (iii) não incorreria “em diminuição ou ex- em executar e aceitar as novidades pedagógicas da
cesso” nos trabalhos de ensino; (iv) manteria “quan- Reforma. Em Janeiro de 1898, Agostinho de Cam-
to possível a concentração e o laço entre a disciplina pos assinava uma Circular aos reitores na qual afir-
ou disciplinas”; (v) corrigiria “a tempo competente mava conhecer que alguns docentes persistiam “no
os exercícios escritos pelos alunos”; (vi) sustentaria inveterado hábito” de marcar aos alunos lições cujo
nas aulas a disciplina “com firmeza”, podendo para estudo tinha de ser feito fora da aula “sem prévia
isso participar aos seus superiores “qualquer facto preparação”. A inobservância e mesmo a “contra-
ocorrido” ou utilizar “os meios essenciais” que o venção” desta prescrição regulamentar — determi-
Governo lhe atribuía e que iam desde o “registo” nando como vimos que o trabalho doméstico devia
das ocorrências até às “admoestações”, à “ordem de ser reservado apenas para complemento do estudo
saída das aulas ou a pena de repreensão” (Decreto que houvesse sido feito no liceu sob a direcção do
de 14/8/1895). mestre — só era possível porque “persistiam velhos
Vinha em seguida a necessária troca de posi- hábitos de educação profissional e ainda o desco-
ções. Se a lei atribuía estes deveres e mesmo um nhecimento dos métodos pedagógicos” (Circular
poder disciplinar ao professor, o “sistema de clas- de 13/1/1898).
se” colocava-o, igualmente, pelas mesmas razões, Não tenho mais notícias referentes a desvios, in-
na dependência directa de um novo actor pedagó- cumprimentos ou conflitos. O que posteriormente
gico: o director de classe. Este professor principal se intentou foi justificar que era preciso fazer mais
surgia com efeito como a “principal autoridade”, e melhor em ordem a unificar os meios e processos
competindo-lhe “guardar e fazer guardar” o es- de ensino. Qualquer coisa como isto: que o regime
sencial, ou seja, “a conexão interna ou a unidade de classes não estava ainda totalmente edificado
científica e a disciplinar na classe confiada ao seu sendo por isso necessário desenvolverem-se novas
cuidado”. Devia pois “entender-se” com os seus co- formas de trabalho que o reforçassem. A peça dis-
legas subordinados, a fim de todos “manterem jun- cursiva que melhor exemplificou este insistente pe-
tos acção combinada no exercício do ensino”. Para dido de maior eficácia remonta a Setembro de 1914,

sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas… 17
e foi mandada publicar pelo ministro da Instrução dos alunos, resolvendo-lhes todas as dificuldades e
Pública de então, Sobral Cid. Trata-se de uma Por- facilitando-lhes o estudo”. O “ensino das crianças e
taria praticamente circunscrita à performance que o os modernos processos pedagógicos” demandavam,
professor deveria ter na sala de aula e intitulada não pois, em simultâneo, uma “paciente diligência” e a
por acaso “Instruções para o ensino em classe”. Se pormenorizada “preparação em casa da lição do dia”
vista de relance ela repetia as indicações fornecidas (Portaria 230, de 21/9/1914).
pela equipa de Jaime Moniz, mas uma análise mais As autoridades começavam a imaginar os profes-
cuidada descobrirá o desígnio de aprofundar, subli- sores como garante, em primeira instância, da coesão
nhar e clarificar objectivos sobre o modo como cada e uniformidade do conjunto populacional. Importa-
professor podia contribuir para a contínua circula- va que tudo fizessem para que na avaliação da pres-
ção dos conteúdos curriculares e para a homoge- tação dos seus discípulos se não registassem grandes
neidade grupal dos seus educandos. Este actor foi divergências ou variações. Todas as classificações
essencialmente pensado como mais um promotor seriam “acordadas em conferência” dos docentes da
da regulação social. Não creio exista outro docu- classe. E cada um dos professores investidos de car-
mento, jurídico ou não, produzido na primeira me- gos de direcção do liceu deveria “tomar nota”, caso
tade de Novecentos, em que tal objectivo surja com a caso, de todos os alunos que revelassem “aplicação
tanta definição como aqui. Atentem-se desde logo desigual nas diversas disciplinas”, a fim de diligen-
nestas considerações genéricas: “a capacidade geral ciarem fazê-los “aproveitar mais” naquelas em que se
dos discípulos e as exigências das demais discipli- mostrassem “atrasados”. Mas esta responsabilidade
nas da classe são as duas condições que o profes- não se ficava por ali, estendendo-se a todos os do-
sor deve ter, a todo o instante, presentes no espírito centes. É a linguagem normalizadora na sua expres-
para regular a marcha da instrução” (Portaria 230, são pura que aqui de novo irrompia. Era obrigação
de 21/9/1914). do docente diligenciar para que a classe progredisse
A arts pedagogica tomava a dianteira na regula- “compacta e homogénea no ensino, sem deixar após
mentação do trabalho docente. A “norma inflexí- de si retardatários”. Logo que um desses fosse “nota-
vel” ou o “dever mais proeminente” do mestre, aos do”, deveria “investigar qual a natureza da deficiên-
quais se subordinariam totalmente “as condições cia” que dominava nesse aluno, para que pudesse ser
de ensino”, consistiria agora em “diligenciar para “utilmente aplicado” o processo de combate. É neste
ser compreendido” e “verificar a todo o instante” ponto, neste exacto instante de descoberta do que
se efectivamente o fora. Teria de caminhar em pas- se afastava da norma, que novas formas de registo
sos lentos todavia seguros, não olvidando, por um documental surgiram, implicando todas as cadeias
instante sequer, que a “qualidade” do ensino prima- hierárquicas da instituição. Não era permitido apli-
ria sempre sobre a “quantidade”. Importava sobre- car uma nota de inferior aproveitamento “inferior a
maneira ser claro. Além disso, todos os métodos e suficiente”, sem que o docente da disciplina tivesse
processos de ensino se deveriam submeter ao incon- “informado por escrito” o professor nomeado res-
tornável da modernidade, isto é, que o fim do ensino ponsável pela classe dos motivos — “não em termos
secundário está menos na “soma e variedade de co- indefinidos e vagos, mas com especificação da cau-
nhecimentos adquiridos” que no “desenvolvimento sa suposta, ou seja, falta de atenção e aplicação, má
das faculdades do espírito”. Desta maneira, “a eleva- compreensão e aplicação” — da falta de rendimento.
ção e proveito do ensino” dependeriam da “forma” Por sua vez, esta segunda figura deveria transmitir
por que ele era ministrado e não tanto da “sua pró- a informação “num boletim” à reitoria, documento
pria essência”. Dito de outra maneira: mais “dos mé- esse em que relataria todos os meios e métodos que
todos adoptados e seguidos” que da “perfeição dos haviam sido accionados para combater a “deficiên-
programas e excelência dos livros”. O saber técnico- cia”, bem como o balanço da sua “eficácia ou ine-
-pedagógico sobrepujava definitivamente todas as ficácia”. Nesta última situação o reitor informaria a
competências académicas do professor. Se a aula era família do aluno, “devendo ficar registada esta co-
o “lugar por excelência dos estudos”, o mestre deve- municação”. Da mesma maneira se procederia quan-
ria para esse fim “preparar convenientemente a lição do um estudante recebesse uma “nota inferior a bom

18 sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas…
em comportamento”. Para que as informações refe- Todavia as referências a esta figura institucional
rentes a esse aluno-problema fossem efectivamente desapareceram nos anos seguintes. Pelo Decreto
“completas” importava que o professor conferen- 3.091, de 17 de Abril de 1917, as suas competências
ciasse “também com os professores da classe”, pro- foram de novo endereçadas ao director de classe. A
curando “na opinião” que estes tivessem do mesmo Reforma de 1918 (Decreto 4799, de 8 de Setembro)
discípulo “completar o seu próprio conceito”. Tudo outorgou-lhe mais atribuições, mas desta feita expli-
porque na “moderna orientação do ensino” os sim- citando sobretudo a manutenção “da boa disciplina
ples esforços isolados eram “deficientes” (Portaria e da boa ordem na classe”. Nesses termos o director
230, de 21/9/1914). de classe deveria então (i) conviver com os alunos
Neste ano de 1914 a questão do governo da po- “nas aulas e nos intervalos destas e nas suas associa-
pulação escolar, no patamar em que decorria a inter- ções”; (ii) “aconselhá-los paternalmente” em tudo
venção dos professores, estava mesmo na ordem do quanto dissesse respeito “à sua apresentação, asseio
dia, preocupando sobremaneira as autoridades cen- e compostura e à boa convivência com os professo-
trais. Escrevia-se noutro Decreto que, volvidos vinte res, empregados e colegas”; (iii) atender “ao estado
anos da Reforma de Jaime Moniz e da afirmação do de asseio e conservação dos livros, cadernos e de-
regime de classes — essa “pedra angular” em que mais utensílios utilizados”; (iv) tomar conhecimento
assentava o ensino secundário de “todos os países de “todos os factos” que perturbassem a disciplina
cultos” —, o sistema não tinha sido “completamente nas aulas ou fora delas”, corrigir por “meios suasó-
executado entre nós, por falta de verdadeiros direc- rios” os alunos que os praticassem e promover a apli-
tores de classe”. Para isso tinha contribuído a maior cação das “penalidades regulamentares”. Em 1930
frequência dos alunos que desviara estes professo- tanto a supervisão do trabalho dos professores quan-
res principais das suas tarefas propriamente educa- to estas atribuições de tipo disciplinar foram reitera-
tivas. A retoma da supervisão pedagógica impunha das (cf. Decreto 18827, de 6 de Setembro). Dois anos
então que se fizesse uma “divisões da população depois, o ministro Cordeiro Ramos assinava outro
escolar” e a consequente introdução nos liceus das Decreto no qual se defendia que “a educação moral
três maiores cidades do país de “directores de di- dos alunos” era a “função primacial do director de
visão”, funcionários que auxiliariam os reitores na classe”. Fossem quais fossem as circunstâncias, esta
“direcção pedagógica, administrativa e disciplinar”. missão respeitaria sempre a “personalidade do alu-
As suas funções confundiam-se em muitos aspectos no”, que seria “guiado suavemente na correcção dos
com as dos anteriores directores de classe — deve- seus defeitos e no desenvolvimento das suas quali-
riam acordar com os professores o plano, a unidade, dades”, em ordem a que nele se formasse “o homem
a coordenação e a marcha graduada do ensino, além consciente dos seus deveres e dos seus direitos”. Sobre a
de ajudarem a calibrar a distribuição dos conteúdos questão do “castigo” a lei também não deixava mar-
programáticos ao longo da semana com a apresen- gem para dúvidas. Era o “último recurso para obter
tação de matéria nova, revisões e exercícios escritos a disciplina dos alunos e melhorar a sua educação”;
—, mas especificava-se que o director de divisão seria sempre “graduado e valorizado”, a fim de que
curaria “com especial interesse dos alunos retarda- não houvesse de aplicar-se com “rigor e frequência”:
tários, chamando para eles a atenção do professor, a admoestação dada pelo director de classe, “fora da
da família e do médico escolar, e quando não fosse presença dos outros alunos”, era “muitas vezes mais
possível “aproximá-los da média da classe constituir eficaz do que o castigo mais duro” (Decreto 21963,
com eles uma turma especial”. Cá está novamente a de 9/12/1932; itálico no original). A Reforma de Car-
média a dar visibilidade aos sujeitos, a identificá-los neiro Pacheco (Decreto 27084, de 14/10/1936) subs-
através do rendimento e a recolocá-los em novos tituiu esta figura pelo “director de ciclo” mas não
grupos de menor status mas também de mais fra- lhe regulamentou as atribuições, o mesmo suceden-
ca variabilidade. A este director de divisão cabiam, do com a Reforma subsequente, de 1947 (Decreto
ainda, as funções de “centralizar as informações dos 36508, 17 de Setembro).
professores acerca do aproveitamento e comporta- Há mais uma sequência temporal que deve
mento dos alunos” (Decreto 858, de 11/9/1914). ser estabelecida. Tem que ver com os deveres dos

sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas… 19
professores. O que há pouco retirei da Reforma de de Habilitação para o Magistério Secundário. As au-
1894-95, relativamente a este particular, não sofreu las decorreriam no Curso Superior de Letras de Lis-
alterações significativas no meio século seguinte. boa ao longo de quatro anos. O primeiro triénio era
Em 1918 o Governo sentiu que era necessário inven- constituído pela “preparação científica” — embora
tariar de forma exaustiva as diferentes incumbências no final já surgisse uma cadeira intitulada Pedagogia
dos docentes, listagem essa que mais tarde seria ou e História da Pedagogia e em Especial da Metodo-
integralmente reproduzida nos principais diplomas logia do Ensino a partir do século XVI — enquanto
seguintes — Decretos 6675, de 12/6/1920 e Decre- que o último ano se consagrava inteiramente à “prá-
to 7558, de 18/9/1921 — ou sistematizada nos seus tica pedagógica”, fosse porque os alunos assistissem
pontos nucleares (cf. Decreto 15948, de 12/9/1928). a uma série de conferências por secções de discipli-
O objectivo era submeter os professores o mais nas ou porque se iniciassem no exercício do ensino.
possível à lógica de funcionamento do regime de No preâmbulo do segundo diploma referia-se que
classe e aos complexos mecanismos de calibragem importava muito às autoridades “regular” e “tornar
e controlo que o seu funcionamento implicava. No- proveitoso” o exercício do ensino secundário tanto
vidades mesmo só se encontram a partir de 1936, pelo estudo das diferentes disciplinas que constituí-
altura em que passou a ser “obrigatório para todos am então o currículo dos liceus como também pelos
os professores o serviço circum-escolar”, designa- “correlativos conhecimentos pedagógicos”. A justi-
damente sob “a forma de conferências e excursões ficação parecia óbvia: era “incalculável o número de
educativas” (Decreto 27084, de 14/10/1936). A par- horas” que se podiam “malbaratar nas classes liceais
ticipação nas actividades fora do plano de estudo por falta de conhecimentos de Pedagogia, sem em-
traduzia, também a este nível, a institucionalização bargo da diligência dos professores”. Não carecia
da formação do carácter do aluno e a sua centrali- igualmente de discussão o facto de que essa falta era
dade adentro dos objectivos do ensino secundário. “uma das causas mais eficientes, senão a principal,
A Reforma de 1947 apresentou uma nova versão de excesso de fadiga intelectual” que atingia então
dos deveres dos professores na qual as dimensões uma boa parte dos estudantes liceais. Para os futu-
morais, religiosas e nacionalistas foram muito su- ros professores de Matemática, Ciências Físicas e
blinhadas, tendo em vista uma integração social Naturais e Desenho seria igualmente, e logo no ano
completa dos jovens escolares. A lei reflectia então de 1902, criado um curso preparatório de três anos,
a velha fantasia do espírito de missão, da dedicação que deveria funcionar em Lisboa e Porto, ao qual se
sacerdotal à causa da educação e do ensino. acrescentava também um quarto — ficando os candi-
datos obrigados a deslocar-se ao Curso Superior de
Letras de Lisboa —, consagrado ao estudo das ma-
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES térias professadas na cadeira de Pedagogia e História
da Pedagogia e em Especial da Metodologia do Ensi-
Era fatal que a questão da preparação profissional no a partir do século XVI. Nos anos seguintes foram-
do professorado se pusesse na ordem do dia, para -se registando ligeiras transformações neste modelo
dar resposta a esta crescente tendência que valori- (Gomes, 2001; Rodrigues, 1908).
zava sobremaneira as capacidades e competências Era evidente o propósito de desenvolver um sa-
pedagógicas. Então, e em paralelo com esta que se ber sobre a prática docente que se aproximasse o
acabou de fazer, é preciso que se conte uma outra melhor possível do que as correntes renovadoras
história, a da construção de institutos responsáveis vinham afirmando e investigando no estrangeiro
pela formação dos futuros professores liceais. e no campo emergente das Ciências da Educação.
A sua origem remonta logo a 1901. Nos Decre- Se já em 1901 se podia notar a influência da razão
tos 4 e 5, de 24 de Dezembro desse ano fixou-se pela higiénica, designadamente no afloramento do pro-
primeira vez entre nós a obrigatoriedade de uma pre- blema do surmenage, aqui era o próprio campo da
paração especial para o exercício da função docente. psicopedagogia moderna que se pretendia repro-
Para os futuros professores do chamado grupo de duzir, absorvendo inclusive a dimensão positivis-
Letras determinava que era necessário ter o Curso ta e experimental que então marcava a Psicologia.

20 sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas…
A própria designação da instituição era de inspira- de “pontos tirados à sorte” que versavam matérias
ção francesa. O Decreto de 1911 determinava igual- de ensino, devendo um deles respeitar às “classes in-
mente que no primeiro ano de preparação e, além feriores” e o outro “às classes superiores dos liceus”.
das “lições magistrais”, fossem programadas em A segunda era já uma lição dada a uma classe tam-
cada semana várias “conferências”, às quais se segui- bém sobre matéria sorteada, e à qual se seguia a “res-
ria sempre o debate e a discussão livre “quer sobre pectiva discussão pedagógica durante uma hora”.
a obra dos grandes educadores, a partir do século Por fim, a terceira prova consistia na apresentação de
XVI em diante, quer sobre livros ou artigos pedagó- uma “dissertação, impressa ou dactilografada, sobre
gicos, recentemente publicados em Portugal ou no um ponto de didáctica do ensino secundário, à esco-
estrangeiro, quer sobre questões de método, higiene lha do candidato” (Decreto de 21/5/1911).
e disciplina escolar”. Ainda nesse ano existiria um Na chamada Reforma Camoesas — nome do ti-
conjunto alargado de “trabalhos práticos”, a saber: tular da pasta da Instrução Pública e que teve em
(i) “exercícios escritos nas aulas, sobre pontos esco- Faria de Vasconcelos o seu redactor principal —,
lhidos pelos professores”; (ii) “preparação de lições datada de 1923, notava-se que, relativamente ao
modelos, feitas perante os professores de pedagogia “pessoal docente”, tínhamos era certo “matéria-
ou de história da pedagogia, e sempre seguidas de -prima excelente”, mas faltavam “meios e órgãos
uma crítica raciocinada”; (iii) “exercícios de peda- adequados para valorizar as aptidões e seleccionar
gogia experimental”; (iv) “estudos de psicologia in- os homens”. A “eficiência e o rendimento” do pro-
fantil” feitos, como os anteriores, nos “Laboratórios fessor não estavam à altura do que era capaz “de
de Psicologia das Faculdades de Letras”. O segundo fornecer o seu zelo, o seu patriotismo e a sua boa
ano escolar, que correspondia à iniciação do nor- vontade”. Entre as causas que inibiam os docentes
malista no exercício da prática docente, tinha dois de “levarem a cabo, como eles desejariam, a sua mis-
períodos. Num primeiro, que se estendia até final são” figurava, à cabeça, a “preparação profissional
de Dezembro, assistia às aulas dos professores dos realizada nas diferentes escolas normais”. Era “in-
liceus, e aí iria receber as “noções indispensáveis suficiente e defeituosa”. Na verdade, parecia aos re-
sobre a metodologia especial das respectivas disci- formadores que estas instituições não eram, “como
plinas”. Mas cada candidato deveria “ensinar, pelo deveriam, escolas exclusivamente técnicas”; os seus
menos, uma vez por semana, preparando as lições programas não giravam “activa e essencialmente em
por escrito, sob as indicações do professor dirigen- volta de disciplinas fundamentais (didáctica, peda-
te”. No resto do ano lectivo o ensino seria “exclusiva- gogia científica, psicologia e higiene)” e não esta-
mente” realizado pelo candidato, “sob a fiscalização beleciam, da mesma forma, o “verdadeiro trabalho
dos professores dirigentes”, que examinariam as pessoal criador” dos seus alunos; não dispunham
“suas correcções nos exercícios feitos pelos alunos”, de “autênticas escolas de aplicação”, onde a prática
e assistiriam “sempre às suas lições, esclarecendo-os profissional se realizasse “em condições de treino
com as necessárias advertências e guiando-os com efectivo” com crianças (Proposta de lei sobre a reor-
os seus conselhos”. Os normalistas estavam ainda ganização da educação nacional, de 21/6/1923).
obrigados a assistir a todas as “reuniões de turma A rotura defendida pela dupla Camoesas-Faria
ou classe” em que decorria o seu tirocínio, bem de Vasconcelos não passou do papel, como é ampla-
como àqueles “conselhos escolares” em que se tra- mente sabido (Fernandes, 1979, pp. 119-121; Nóvoa,
tasse da classificação dos alunos e até aos exames. 1987, II, pp. 542-549). O mesmo não se terá passado
Terminado este ano de prática, a habilitação peda- no entanto com muitas das ideias nela apresentadas.
gógica seria avaliada através dos chamados “exames Sete anos depois, um novo diploma legal abordaria
de Estado” que constavam de três diferentes provas a questão da formação de professores, vindo a esta-
realizadas perante um júri nomeado pelo Governo e belecer alterações nos mesmos termos da abortada
constituído por três professores dos liceus e quatro iniciativa de 1923. Um dos governos da Ditadura
professores das Faculdades de Letras ou Ciências. Militar veio a reconhecer que as Escolas Normais
Na primeira prova era necessário desenvolverem-se Superiores, assim como o Curso de Habilitação
dois “argumentos”, de meia hora cada um, a partir para o Magistério Secundário, que as precedera, não

sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas… 21
haviam produzido “o que delas havia a esperar no metodólogo e por todos os estagiários” que estives-
sentido do aperfeiçoamento do ensino liceal”. Ter- sem a fazer prática na mesma disciplina. No 2º ano
-lhes-á faltado “a unidade de vistas, um pensamento cada formando tomava já conta do ensino que lhe era
e uma acção comum”: em vez da “obra homogénea destinado, igualmente “sob a direcção do professor
duma corporação comum” o que se podia verificar metodólogo e sob a fiscalização deste professor e de
ao longo dos tempos era o “trabalho desconcertado outros do liceu, além do reitor”. A habilitação para
de muitos”. Se o princípio continuava a ser “o da o magistério secundário continuava a ser obtida me-
divisão entre a cultura pedagógica e a prática peda- diante Exame de Estado, constituídos “por provas
gógica”, era fundamental proceder-se a alterações: de cultura e provas pedagógicas” (Decreto 18973, de
a primeira seria novamente confiada às Universida- 16/10/1930).
des e as segundas totalmente entregues a escolas do No ano seguinte, novo diploma determinou que
grau a que o futuro professor se destinava. Quanto os reitores — a lei permitia que fosse criado um
aos aspectos da formação teórica havia que restringir segundo Liceu Normal em Coimbra, daí o plural
o número de cadeiras e estabelecer com rigor quais — promovessem também eles a realização de “con-
eram as nucleares. Ora, não havia grandes dúvidas ferências pedagógicas” e as tornassem “obrigatórias
acerca disso, sendo o novo plano de estudos cons- para os estagiários e para todos os professores em
tituído pelas seguintes disciplinas: “a pedagogia e exercício no liceu normal” não só a assistência como
didáctica, a história da educação, organização e ad- ainda a participação nestes eventos. A qualidade de
ministração escolares, a psicologia geral, a psicolo- liceu-modelo e a vocação experimentalista do Liceu
gia escolar e medidas mentais, e a higiene escolar”. Normal de Lisboa (Pedro Nunes) conferiam-lhe um
Além do aparecimento da administração, como se lugar de destaque no conjunto: todos os reitores
verifica a grande novidade era mesmo o predomínio dos liceus do país prestariam ao do Pedro Nunes
do saber psi na cultura pedagógica. Estas cadeiras as informações que este lhes requisitasse, “pesso-
— todas anuais, menos a última, de duração semes- almente ou por escrito”, sobretudo as respeitantes
tral — constituiriam a “3ª Secção das Faculdades de aos “melhoramentos introduzidos”. Como que em
Letras, sob a designação de Ciências Pedagógicas”. troca, o estabelecimento da capital publicaria tri-
Vinha em seguida a questão da prática. Tentando mestralmente um Boletim em que se arquivariam
proporcionar “ambientes de trabalho apropriados”, os relatos dos vários ensaios práticos levados a cabo
o Governo autorizava a criação, em Lisboa e Coim- no seu interior, devendo a distribuição da publi-
bra, “de escolas de preparação prática dos profes- cação periódica ser feita “a escolas, professores e
sores do ensino secundário — os Liceus Normais”, demais pessoas” que se interessassem pelas ques-
começando a funcionar imediatamente um deles tões do ensino secundário, “e considerada oficial
“pela conversão do Liceu de Pedro Nunes”. Seria a para todos os efeitos legais”. Estipulava-se, ainda,
instituição modular, de referência: o Liceu Normal que o Pedro Nunes funcionaria sob o “regime de
de Lisboa (Pedro Nunes) ficava assim “constituindo semi-internato”, cuja administração pertenceria ao
um meio de aperfeiçoamento de toda a organização reitor, na parte pedagógica, e à associação escolar,
e da melhor execução dos serviços do ensino lice- na parte económica (Decreto 20741, de 18/12/1931).
al”, visto que seria, ao mesmo tempo, “escola prática Tanto nos deve bastar para compreendermos que
do magistério”, de “aperfeiçoamento profissional” a chamada procura da inovação educacional não
e de “ensaios pedagógicos”. Dito de outra forma: corria lado a lado ou sequer se opunha ao modelo
não lhe competia apenas “cumprir determinações de ensino público defendido. O Pedro Nunes não
superiores”, como os restantes liceus, mas igual- se apresentava como um epifenómeno mas, exac-
mente “tomar iniciativas”. A preparação profissional tamente ao contrário, uma realidade que deveria
dos candidatos ao magistério secundário no Liceu contaminar e informar toda a estrutura do ensino
Normal era constituída por dois anos de estágio. O médio português da época. Não é também por aca-
1º destinava-se especialmente à “assistência a lições so que só nesta altura é que se institucionalizou o
modelos”, algumas delas a cargo do próprio esta- velho princípio, tantas vezes requerido, dos alunos
giário, discutidas, “em conferência, pelo professor poderem ficar no interior do liceu após o termo das

22 sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas…
aulas. O experimentalismo de métodos e técnicas critério de verdade disponível no mercado educati-
pedagógicas e o internato pareciam implicar-se mu- vo que propriamente uma divergência programática
tuamente. O Pedro Nunes era a expressão concreta ou de fundo. As manifestações de afirmação de uma
do liceu como casa de educação. cultura profissional ou de desacordo com as auto-
ridades centrais foram, tenho para mim, momentos
históricos em que os professores incorporaram as
FECHO: O BLOCO MONOLÍTICO categorias, divisões, classificações, relações pre-
DO ENSINO MODERNO sentes no regime de inteligibilidade que, sabemos,
estava na ordem do dia desde finais de Oitocentos.
Não há aqui espaço para debater a história do as- Portanto, nas suas posições específicas eles reitera-
sociativismo docente. Ela pode ser vista noutra vam a evidência de que só havia uma forma de ima-
discussão que empreendi (Ó, 2003, pp. 383-399) e ginar o liceu e de governar os respectivos alunos.
onde notei uma coincidência de posições entre polí- A agenda dos responsáveis pelo Ministério teve
ticos e professores no que respeitou aos postulados sempre inscrita a tópica da imperfeita institucionali-
da Reforma de Jaime Moniz, a saber, a defesa da ma- zação do regime de classe, assim como o esteve nas
triz pedagógica do regime de classes e formas acti- dos professores. Nestes termos, a questão clássica, e
vas de aprendizagem, conduzindo à higiene da alma que por uma razão ou outra nos assalta no decurso
do aluno. A unidade orgânica do plano de estudos e de qualquer análise histórica, de tentar distinguir
o ideal de um aluno saudável e activo caracterizaram o que terá sido do domínio das intenções e o que,
de facto o discurso da classe, aprofundando nessa de facto, passara para a realidade dos homens e das
medida a busca de consenso. coisas, penso que se esclarece em boa medida por
Ora, ante a fantástica saturação de um mes- aqui. Não é que a dicotomia teoria-prática me inte-
mo tipo de discurso, brotando de todos os lados, resse ou veja nela alguma força explicativa. O ponto
o investigador tem evidentemente de concluir que é efectivamente outro e de grande significado para o
a realidade ou sistema existiram porque eram ali- meu argumento: a reivindicação permanente tradu-
mentados, continuadamente e de muitas diferen- zia de facto que o poder não se exercia de fora, por
tes formas, pelo mesmo modelo de enunciação. decreto, pela força da espada ou em consequência
Deverá assinalar essa confluência, não se deixando de uma política de medo. A crítica ao sistema cor-
surpreender pela dinâmica de conflito que por ve- respondia na verdade, e tão apenas, a um desenrolar
zes caracterizou o palco dos acontecimentos. Este de argumentos cujo propósito era o de o conseguir
parece-me reflectir mais a luta pela posse do único melhorar e o tornar mais eficiente.

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Fontes e referências bibliográficas Popkewitz, Thomas S. (1998). Struggling for the
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24 sísifo 11 | jorge r amos do ó | o vínculo pedagógico ao regime de classes: discursos sobre as pr áticas…
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

O ofício docente na voz


de suas lideranças sindicais

Isabel Lélis
isabell@puc-rio.br
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio, Brasil

Libânia Xavier
libaniaxavier@hotmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, Brasil

Resumo:
O artigo analisa as percepções partilhadas pelos professores que exercem liderança sin-
dical nas duas maiores Associações Docentes do Rio de Janeiro: o Sindicato dos Profes-
sores do Rio de Janeiro (Sinpro-Rio) e o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educa-
ção (SEPE). O primeiro reúne os professores das escolas privadas, enquanto o segundo
abrange os professores da rede pública de ensino. No escopo da análise desenvolvida,
destaca questões tais como: a intensificação e complexificação do trabalho docente face às
novas demandas do público escolar; a mobilização para uma maior qualificação profissio-
nal em que pesem as precárias condições de trabalho; a circulação por entre as redes de
ensino, públicas e privadas, colocando em questão a propalada evasão da profissão. Todo
esse conjunto de questões remete para a necessidade de reflexão sobre as relações entre o
estatuto sócio-profissional do magistério e o exercício efetivo do ofício do professor.

Palavras-chave:
História da profissão docente, Associativismo docente.

Lélis, Isabel & Xavier, Libânia (2010). O ofício docente na voz de suas lideranças sindicais. Sísifo.
Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 25-34.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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O artigo tem como motivação principal analisar as escolarização de massas e a conformação da carreira
percepções partilhadas por um grupo específico docente constituem dispositivos cruciais para sua le-
de professores brasileiros sobre o seu próprio ofí- gitimação (Ó & Mendonça, 2007). Por outro lado,
cio, tendo em vista a perspectiva de levantar dados chamamos a atenção para a grande diversidade exis-
e interpretações que nos auxiliem a compreender a tente entre esses profissionais, procurando demons-
história da profissão docente no Brasil e em Portu- trar a complexidade que caracteriza uma categoria
gal. Tal perspectiva se justifica por considerarmos profissional marcada pela heterogeneidade, porém,
que existem tendências relativas às transformações submetida a contextos institucionais, políticos e
operadas na carreira docente que correspondem a sociais que, em certos aspectos, guardam surpreen-
processos de caráter global que interferem na con- dente semelhança, na medida em que carregam as
figuração das instituições escolares, assim como na marcas de seu tempo.
organização da carreira docente. É nossa intenção, ainda, romper com o tom pres-
Buscando atender ao objetivo de reter uma visão critivo, bem como com um certo discurso homoge-
positiva desse grupo profissional extremamente hete- neizador que, em alguns casos, tem caracterizado as
rogêneo, optamos por ouvir as vozes dos professores narrativas sobre a profissão docente, particularmen-
que exerceram liderança sindical nas duas maiores te aquelas provenientes da imprensa jornalística e
associações docentes do Rio de Janeiro: o Sindicato das agências governamentais. Da mesma forma, é im-
dos Professores do Rio de Janeiro (Sinpro-Rio) e o portante superar as visões do senso comum que, via
Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação de regra, culpam os professores pelo fraco desempe-
do Rio de Janeiro (SEPE). O primeiro reúne os pro- nho de nossas escolas. Do ponto de vista da produ-
fessores das escolas privadas, enquanto o segundo ção acadêmica, consideramos ser necessário adotar
abrange os professores da rede pública de ensino. A uma perspectiva de análise que articule a observação
interpretação dos dados selecionados leva em con- empírica às explicações de caráter mais geral sobre
ta o diálogo com pesquisadores de nacionalidades as ações e representações relativas aos professores.
diversas que se debruçaram sobre o tema, a fim de Enfrentar esse desafio implica em considerar a
obter uma análise mais abrangente das questões interação entre diversos elementos que interferem
abordadas. Concluímos que alguns dos problemas na construção das identidades profissionais dos do-
identificados podem ser enquadrados em processos centes (Dubar, 2005), tais como inserção institucio-
que extrapolam as análises pautadas exclusivamente nal; posição na hierarquia profissional e concepções
no ponto de vista nacional. Tal conclusão se apóia na políticas, dentre outros. Assim, ao decidirmos ob-
percepção de que o Estado-nação é, ele mesmo, um servar as visões partilhadas sobre o ofício docente,
modelo cultural transnacional no interior do qual a estamos optando por destacar o protagonismo dos

26 sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais
professores em suas escolhas e recusas, assim como que ela está por fazer, exceto em aspectos pontuais
perceber as suas atitudes e possíveis omissões como e em períodos muito curtos, inserida em obras gerais
processos ativos e dinâmicos (e por isso, positivos) sobre o ensino liceal (Valente,1973; Adão, 1982). Em
de afirmação de sua autonomia individual e profis- contrapartida, a formação desses docentes e o seu as-
sional, com todas as contradições e ambigüidades sociativismo foram objeto de estudos desenvolvidos
que porventura acompanhem esses processos. por Ferreira Gomes (1974) e Gomes Bento (1972-3-8).

De forma abreviada, é possível identificar al-


A PROFISSÃO E O ASSOCIATIVISMO gumas experiências relevantes na história do as-
DOCENTE NO BRASIL E EM sociativismo docente português. No século XIX,
PORTUGAL: NOTAS PRELIMINARES destaca-se a Associação dos Professores, criada em
1854, reunindo docentes de todos os níveis de ensi-
Com base em um levantamento preliminar, nós no e com características marcadamente mutualistas.
constatamos algumas características comuns ao A partir do século XX, surgem as associações repre-
conjunto de estudos acadêmicos sobre a profissão sentativas dos professores por grau de ensino, com
docente desenvolvidos no Brasil e em Portugal. Em destaque para a Associação do Magistério Secundá-
ambos os países, chama a atenção a grande quanti- rio Oficial, criada em 1904 para representar os in-
dade de trabalhos que se voltam para o tema da pro- teresses dos professores do ensino liceal (com uma
fissão docente, tanto no que se refere à sua história, trajetória marcada por muitas transformações) e a
quanto no que se refere à sua condição nos dias atu- União do Professorado Primário Português, criada
ais. Na produção acadêmica brasileira, verifica-se em 1918 e dissolvida em 1927, em razão da repressão
uma maior incidência de estudos sobre a formação promovida pelo regime salazarista. Em 1939, é cria-
docente, em detrimento de estudos que se voltam do o Sindicato Nacional dos Professores do Ensi-
para a carreira profissional, condições de trabalho e no Particular, submetido à política corporativa do
para as estratégias de associativismo docente¹. Estado Novo salazarista, porém, podendo ser visto
Também em Portugal, balanço realizado por como uma expressão da busca de autonomia pelos
Áurea Adão (1993) registra que a preocupação com docentes ali congregados, em meio às limitações im-
a formação suplanta o interesse pelo estudo do as- postas pelo regime político em vigor à época (Pin-
sociativismo docente, embora este último tema se tassilgo, 2007, pp. 12-13). Por fim, cabe salientar que
faça presente em estudos de natureza mais abran- a mobilização dos docentes do ensino liceal teve nos
gente, mas que, no escopo de suas análises, acabam Grupos de Estudos do Pessoal Docente do Ensino
atribuindo atenção especial às experiências de as- Secundário e Preparatório (GEPDES)² um espaço
sociativismo, tal como o demonstram os estudos que propiciou a sua organização coletiva, se esten-
de Fernandes (1987); Nóvoa (1987) e Adão (1984), dendo pelo processo de transição marcado pela su-
dentre outros. cessão de Governos Provisórios até a promulgação
Outro aspecto comum da produção sobre pro- da Constituição Republicana, em 2 de abril de 1976.
fissão docente é a preponderância de estudos que Na sequência, se dá organização de vários sindica-
se voltam para o primeiro segmento do ensino fun- tos de professores no país.
damental (conduzido pelos chamados professores No Brasil, os estudos sobre associativismo
primários), relegando o estudo sobre o ensino mé- docente recaem, sobretudo, sobre as décadas de
dio (conduzido pelos professores secundários), a um 1930-40 e 1970-80. Isto porque os anos de 1930
segundo plano. No caso português —, em que pe- marcam o esforço de fundação e controle sobre as
sem os avanços no campo da pesquisa educacional organizações sindicais promovido pelo Governo
de 1993 até os dias atuais — verificamos com Adão Vargas, enquanto a década de 1970 traz à cena o
(1993, p. 124) que chamado novo sindicalismo brasileiro orientado
pela busca de autonomia em relação ao governo
(…) no que diz respeito à história do estatuto pro- e de maior representatividade junto à categoria e
fissional do professor secundário, se pode afirmar à sociedade em geral. A organização do Sindicato

sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais 27
dos Professores da rede privada (SINPRO-RIO), ofício do professor (Dubet, 2002), tal como procu-
assim como da União dos Professores Públicos do raremos demonstrar com base na análise das entre-
Rio de Janeiro (UPPE) datam dos anos de 1930- vistas realizadas.
-40, enquanto o processo de institucionalização do Consideramos que a experiência associativa
Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação reforça o sentimento de pertencimento coletivo e
(SEPE), ocorreu na década de 1970, ainda na vi- apura a capacidade de formular concepções e ex-
gência do regime militar. A perspectiva de forma- plicações relativas ao ofício docente, bem como
ção de uma entidade sindical em nível nacional se estimula a abertura de canais funcionais e eficazes
fez presente nos movimentos de organização sin- de comunicação coletiva. A esse respeito, os es-
dical de diversas categorias profissionais, estando critos de alguns professores que participaram de
ligada, ainda, aos movimentos de oposição ao regi- movimentos associativos nos informam sobre a
me autoritário instaurado no Brasil em decorrên- importância desse tipo de experiência em suas tra-
cia do movimento político-militar de 1964³. jetórias profissionais, sem falar no impacto sobre
Esse último aspecto guarda relação com um a carreira coletiva. É o que demonstra a leitura do
movimento mais geral — ocorrido tanto no Brasil livro do professor português Gomes Bento (1973),
como em Portugal, durante a década de 1970 — que esteve entre os participantes dos Grupos de
de contestação ao controle do Estado frente a um Estudos. Logo na Apresentação o autor conclama
regime extremamente centralizado e autoritário e os professores a “se apropriarem de suas memórias
paralelo a um movimento de expansão das reivin- comuns (…)” de modo a evitar que, “desintegra-
dicações sociais pela ampliação das oportunidades dos da solidariedade comum apenas devolvam aos
de escolarização4. outros a imagem do seu nada” (Bento, 1973, p. 6).
O desenvolvimento de estudos comparados no Com essas palavras, o autor enfatiza a importância
âmbito da história do associativismo docente no da preservação memória, bem como dos esforços
Brasil e em Portugal (Xavier, 2008) nos permitiu para garantir sua visibilidade de modo a promover
formular a hipótese de que os momentos de ruptura a construção de uma imagem positiva da profissão
política — particularmente os processos de restabe- docente. Destaca, ainda, o valor da disseminação
lecimento da vida democrática ocorridos no Brasil da memória das lutas da categoria, associada à
e em Portugal durante a década de 1970 — propicia- idéia de que a partilha de uma auto-representação
ram avanços no processo de organização associativa coletiva do exercício do ofício docente interfere
entre os docentes de diferentes níveis e instituições nas relações de poder, fortalecendo a autonomia e
de ensino, propiciando, dessa forma, a construção a relevância social de toda a categoria.
de novas dinâmicas no campo das relações de po- Como se pode observar, a dimensão coletiva da
der, expressas na mobilização em prol da abertura profissão docente ocupa um lugar de grande im-
de canais de comunicação, de circulação de infor- portância na construção de traços identitários que
mações e de debate de idéias sobre a conjuntura po- se aproximam da autonomia e da solidariedade,
lítica e profissional entre os professores. da partilha e da luta comum, da união e da ade-
Entrevistas mais recentes com professores sin- são a projetos ativos de conformação da carreira,
dicalistas brasileiros revelaram, ainda, aspectos das condições de trabalho e de convivência social.
relevantes da percepção do ofício de ensinar parti- Nesse sentido, chamamos atenção para o potencial
lhada por essas lideranças. As falas dos entrevista- que a análise das entrevistas com os atores envol-
dos expressam a busca por uma maior qualificação vidos pode oferecer ao pesquisador, tendo em vis-
profissional, em que pesem as precárias condições ta a perspectiva de captar o que dizem os próprios
de trabalho; pela circulação por entre as redes de professores a respeito do ofício que desempenham.
ensino, públicas e privadas, colocando em questão Afinal de contas, quem melhor do que eles poderia
a propalada evasão da profissão. Todo esse con- descrever os percalços e o campo de possibilidades
junto de questões remete para a necessidade de que fazem parte de seu ofício?
reflexão sobre as relações entre o estatuto sócio-
-profissional do magistério e o exercício efetivo do

28 sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais
O OFÍCIO DOCENTE NA VOZ Mais do que evasão ou abandono da profissão o
DE SUAS LIDERANÇAS SINDICAIS que se observa é um vaivém dos docentes entre re-
des de ensino (municipais, estaduais e/ou privadas)
Do conjunto das entrevistas realizadas com mem- na busca por melhores salários e condições de tra-
bros da diretoria do SEPE e SINPRO-Rio5, um balho. Para um dirigente do SEPE “os professores
dado chama a atenção: os desafios que o magistério não abandonam o magistério por falta de vocação,
enfrenta não são os mesmos para o conjunto des- mas sim quando percebem que o trabalho deixou
sa categoria profissional e passam por condições de ter relação com suas necessidades, expectativas
diferenciadas de atualização profissional, de plano e interesses”. Esse dado vem contrariar estudos que
de carreira, de recursos e infra-estrutura material e apontam para o lento processo de abandono da pro-
pedagógica das escolas. fissão iniciado com o afastamento dos professores
Sob condições hostis, os docentes trabalham da sala de aula8. Nas entrevistas realizadas, os pro-
como horistas, revelando a ausência de um plano fessores apontaram, ainda, a escassez de recursos
de carreira em termos de promoção por mérito ou materiais, a falta de apoio técnico-pedagógico nas
tempo de serviço. Essa situação tem provocado uma escolas, o número excessivo de alunos por turma e
rotatividade de professores no interior desse tipo de a falta de incentivo ao aprimoramento profissional.
rede de ensino. Para um dos entrevistados, falta uma A esses fatores, devem-se acrescentar o nível de vio-
maior regulamentação sobre o exercício da profis- lência crescente em determinados lugares e a falta
são, sendo frágil o controle do poder público mu- de segurança nos estabelecimentos de ensino próxi-
nicipal e/ou estadual sobre o funcionamento dessas mos aos locais de tráfico de drogas.
escolas, assim como na efetivação de ações que con- Todo esse quadro ajuda a entender porque pes-
tribuam para a qualificação dos professores em ser- quisadores europeus e americanos, dentre outros,
viço. Esse quadro, levou o SINPRO a oferecer um têm voltado a atenção para a proletarização do ma-
conjunto de ações endereçadas àqueles professores gistério, caracterizada pela perda de controle sobre
sem condição de participarem da vida cultural da seu processo de trabalho, contrapondo-se à profis-
cidade. Além de cursos de qualificação, a realização sionalização como “condição de preservação e ga-
de shows, peças teatrais e outras atividades de lazer rantia de um estatuto profissional que leve em conta
como recitais, saraus, convênios com teatros e sho- a auto-regulação, a competência específica, rendi-
ws teria o papel de aproximar e socializar os profes- mentos, licença para atuação, vantagens e benefícios
sores — sindicalizados ou não — criando laços de próprios, independência”(Oliveira, 2004, p.  1138).
identidade que transcendem a luta política, mas po- A análise dos dados levantados em questionários
dem contribuir, de maneira direta ou indireta, para aplicados a cinqüenta e um professores de cinco es-
o fortalecimento da mesma. colas municipais localizadas em diferentes regiões
Esses canais de comunicação parecem ganhar re- da cidade do Rio de Janeiro com alto desempenho
levância frente à diversidade de condições em que na Prova Brasil9 evidenciou que, entre os principais
trabalham os professores da rede privada do Rio de conflitos enfrentados pelos docentes na gestão da
Janeiro. Esta inclui desde as escolinhas de fundo de classe estão a falta de respeito do aluno e a dificulda-
quintal — que funcionam, geralmente, sem qualquer de de envolvimento das famílias com a escolarização
registro e, portanto, às margens da legislação perti- dos seu filhos (Oliveira, 2004). Ou seja, dificuldades
nente — até as escolas católicas, que oferecem ensino que remetem, em última análise, a transformações
aos filhos das elites econômicas e culturais da cidade. sociais como a incorporação crescente da mulher ao
Quando passamos às falas de membros da dire- mercado de trabalho, as mudanças dos modelos de
toria do SEPE, outras dificuldades são destacadas, autoridade, as novas configurações familiares que
como a falta de motivação profissional dos professo- colocam o professor em um quadro de relações de
res, planos de carreira diferenciados6, aparecimento grande complexidade.
de um conjunto de doenças e, por conseqüência, Se a questão acima apontada é típica da realidade
aumento de licenças médicas como nunca antes se brasileira, pesquisa desenvolvida por Dubet (2002)
viu no Rio de Janeiro7. sobre o professorado francês confirma esta tendência

sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais 29
global e conclui que não é apenas o estatuto profissio- categoria docente? Ou seria mais prudente conce-
nal que define o papel desempenhado pelo professor, ber a profissão como um campo no sentido atri-
mas, cada vez mais, é o seu modo pessoal e a sua per- buído por Pierre Bourdieu (1976), constituído por
sonalidade que contribuem para delinear a situação indivíduos que ocupam posições desiguais no espa-
escolar. De facto, ainda que estejam presos às regras ço da profissão? Com essa pergunta, queremos re-
burocráticas que os enquadram, os professores defi- fletir, também, sobre os enunciados presentes tanto
nem o seu ofício como uma construção individual, na mídia quanto nas burocracias do estado que, ora
realizada a partir de princípios profissionais e éticos, julgam os resultados escolares como produto dire-
com destaque para: o respeito ao programa, a preo- to da (in)competência dos professores, ora dizem
cupação com os alunos, a busca dos desempenhos e como os professores devem agir, definem políticas
da justiça. A gestão da sala de aula apresenta-se, as- de formação e certificação profissional e ignoram
sim, como tarefa primordial, visto que os alunos não suas inserções profissionais, condições de trabalho
são os mesmos e possuem características sociocultu- e modos de agir no exercício de suas funções.
rais novas, enquanto sujeitos de direitos (Tedesco & Como observou Canário (2001), as situações
Fanfani, 2004). profissionais vividas pelos professores ocorrem no
Considerando que a diversificação dos papéis quadro de sistemas coletivos de ação (organizações
do professor é uma realidade em vários países, Nó- escolares), cujas regras são produzidas e aprendidas
voa (1992, p. 36) sugere que eles definam um terri- pelos próprios atores sociais. Devem ser compreen-
tório ou campo de ação como forma de controle da didas não apenas por fatores individuais (dimensão
profissão em sintonia com uma política de melho- biográfica), mas também por fatores organizacionais
ria do funcionamento das escolas. No nosso caso, e contextuais. Com isso, o autor chama a atenção
como vimos acima, há uma série de condições ne- para o fato de que os professores aprendem a sua
cessárias para uma prática que se quer eficaz, dentre profissão dentro da escola, sendo o contexto de
as quais destacamos a institucionalização de uma trabalho, o espaço onde se desencadeia o processo
política de formação continuada, salários dignos e de socialização profissional, muitas vezes de forma
serviços de apoio ao professor (como, por exemplo, espontânea e, em menor intensidade, de forma pla-
uma supervisão pedagógica eficaz), combinados na nejada, isto é, como tempo e espaço de reflexão in-
formulação de políticas públicas e do comprometi- dividual e coletiva previstos na própria organização
mento dos gestores. do trabalho escolar.
Uma terceira questão relaciona-se à tendên-
cia — verificada globalmente — ao esvaziamento
À GUISA DE CONCLUSÃO da dimensão coletiva do trabalho docente em de-
corrência dos novos papéis a que os professores
A partir do que foi destacado até o presente mo- têm sido chamados a desempenhar, como assina-
mento, algumas questões merecem ser refletidas. lado anteriormente.A esse respeito, concordamos
A primeira delas refere-se ao esforço de trazer com Nóvoa (2008, p.  231), quando ele afirma que
as representações dos professores sobre o ofício é importante “que se caminhe para a promoção de
que desenvolvem aos seus próprios termos com espaços entre pares, de trocas de partilhas como
o objetivo de escapar de análises que abstraem as possibilidade de potencializar os princípios do co-
condições efetivas de trabalho dos docentes, des- letivo e da colegialidade na cultura profissional dos
considerando a heterogeneidade que caracteriza professores”. Esta perspectiva se apresenta como
essa categoria profissional. uma estratégia de fortalecimento da autonomia
Constatando que os professores exercem seu dos professores da conseqüente valorização pro-
ofício em instituições e sistemas de ensino diferen- fissional, ao lado das ações já promovidas pelos
ciados por nível e jurisdição, possuem condições de sindicatos. Torná-la realidade implica, também, a
trabalho muito diversificadas, além de receberem reorganização do trabalho escolar — ao que cabe
formação e qualificação distintas, somos levadas reservar tempo necessário para a reflexão sobre as
a perguntar: Pode-se falar em uma identidade da dimensões da prática docente e o intercâmbio de

30 sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais
idéias — assim como a abertura de espaço para o de gerações de professores possam ser socializados,
registro de experiências profissionais significati- apropriados e re-contextualizados por todos aque-
vas de modo a preservar o patrimônio pedagógico les que desempenham papéis profissionais em co-
produzido em cada escola, criando condições para mum no exercício do ofício docente.
que os conhecimentos acumulados pelo trabalho

sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais 31
Notas gratificação por lotação prioritária — para aqueles
docentes que trabalham em áreas de difícil acesso.
1. Em pesquisa recente, foram levantados 26 7. Pesquisa da FIOCRUZ sobre a saúde dos
artigos publicados nas três principais revistas bra- professores na cidade e estado do Rio de Janeiro,
sileiras da área da Educação (segundo avaliação informa que há um percentual expressivo de docen-
da CAPES), entre 2000 e 2006. Nessa amostra, tes de séries iniciais que se afastam da função com
foi possível observar uma acentuada preocupação 14 anos de docência por síndrome de burnout. Cf:
com o problema da formação profissional (70%), Encarte SEPE (21/03/2004).
em detrimento dos estudos que analisavam ques- 8. Em pesquisa sobre a carreira profissional de
tões relacionadas com a carreira e as experiências docentes de São Paulo (Br), Lapo e Bueno (2003)
associativas (30%) (Xavier, 2008). avaliam que o “mal estar” que antecede o abandono
2. Os Grupos de Estudos do Pessoal Docente da profissão é provocado por uma série de razões,
do Ensino Secundário e Preparatório (GEPDES) tais como sobrecarga de trabalho, baixos salários,
representam a forma adotada por professores de concorrência com outros meios de transmissão da
vários pontos da sociedade portuguesa que se movi- informação e má qualidade das relações no ambiente
mentaram no ano de 1970/71, lutando pela estabi- de trabalho. Mas apontam, também, aspectos que
lidade de emprego, pela melhoria do estatuto pro- decorrem da própria organização do sistema de
fissional e pela liberdade de reunião e associação, ensino: a burocracia institucional e o controle sobre
dentre outras reivindicações (Ricardo, 2004, p. 133). o trabalho do professor, a escassez de recursos mate-
3. Sobre o assunto, consultar o catálogo de teses e riais, a falta de apoio técnico-pedagógico e a falta de
dissertações do PPGE da UFF e da UFRJ, com espe- incentivo ao aprimoramento profissional.
cial atenção para as seguintes referências: Coelho 9. Como avaliação que compõe o Sistema Nacio-
(1988); Sobreira (1989) e Andrade (2001). nal de Avaliação da Educação Básica (Saeb), a
4. Enquanto a história política portuguesa foi Prova Brasil é desenvolvida e realizada pelo Ins-
marcada pela luta contra o regime autoritário do tituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio-
Estado Novo, que culminou com 25 de abril de 1974, nais Anísio Teixeira (Inep), autarquia do Ministério
no Brasil, a luta pela derrubada do ditadura militar da Educação (MEC). Foi idealizada para produzir
teve seu auge no ano de 1979, com a Lei da Anistia informações sobre o ensino com o objetivo auxiliar
aos presos e exilados políticos. os governantes nas decisões em termos de políticas
5. As entrevistas realizadas com membros da educacionais e direcionamento de recursos técni-
diretoria do SEPE e SINPRO-Rio tiveram como cos e financeiros. Cf: www.inep.gov.br/basica/saeb/
objetivo mapear as representações sobre o traba- prova_brasil/ (consultado em abril de 2008).
lho docente, as mudanças na composição social do
professorado, os maiores desafios e necessidades
dos professores das séries iniciais do ensino funda- Referências bibliográficas
mental. Constituem o recorte de uma pesquisa mais
ampla desenvolvida atualmente na PUC-Rio sob o Adão, Áurea (1984). O Estatuto Socio-Profissional
título “Profissão docente: entre o estatuto profissio- do Professor Primário em Portugal (1901-1951).
nal e o exercício do ofício”, sob a coordenação de Oeiras: Instituto Gulbenkian da Ciência.
Isabel Lélis (2005-2008). Adão, Áurea (1993). A História da Profissão docen-
6. Conforme relato de uma liderança do SEPE, te em Portugal: balanço da investigação realizada
há três tipos de contratos de trabalho de professo- nas últimas décadas. In A. Nóvoa & J. Ruiz Ber-
res na rede estadual. O primeiro é o que estabelece rio (eds.), História da Educação em Espanha e
uma carga horária de 40 horas semanais; o segundo Portugal: investigações e actividades. Sociedade
prevê uma carga horária de 16 horas — doze em sala Portuguesa de Ciências da Educação / Fundação
de aula e quatro horas em atividade extraclasse, e o Calouste Gulbekian, pp. 126-136.
terceiro propõe uma carga horária de 30 horas sema- Andrade, Teresa Ventura de (2001). A União dos
nais. Merece registro, ainda, a gratificação GLT — Professores do Rio de Janeiro: um capítulo à

32 sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais
parte na história da organização docente (1948- & Claude Lessard (orgs.), O ofício de professor.
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34 sísifo 11 | isabel lélis, libânia x avier | o ofício docente na voz de suas lider anças sindicais
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

Os professores e o ensino industrial


(último quartel do século XIX
a meados do século XX)
Luís Alberto Marques Alves
aalves@letras.up.pt
Universidade do Porto, Portugal

Resumo:
A partir da segunda metade do século XIX, no ensino técnico, era urgente implementar
um conjunto de condições que garantissem a formação de profissionais habilitados aptos
a fornecer ao sector económico um trabalho qualificado tendo em vista um desenvolvi-
mento económico do país. Inicialmente a dificuldade no recrutamento de professores só
muito dificilmente foi sendo ultrapassada. Desde a pouca selectividade, à oferta de condi-
ções atractivas, até ao recrutamento no estrangeiro, tudo se procurou fazer para garantir
docentes devidamente habilitados.
Nos inícios do século XX foi criada uma Associação dos Professores das Escolas In-
dustriais e Comerciais (APEIC) que passou a ser um interlocutor com múltiplas interven-
ções e influências junto do poder e da classe. O seu “Boletim” passou a ser um espaço de
reflexão sobre recrutamento, pedagogia, paradigma de professor do ensino técnico e asso-
ciativismo. A partir daí nota-se uma maior preocupação com o processo de recrutamento,
de formação inicial e contínua. Sintoma disso é a criação da Escola Normal para o Ensino
de Desenho (decreto 5 029 de 1 de Dezembro de 1918 e 6 414 de 23 de Fevereiro de 1920).
O Estado Novo deu passos no sentido de melhorar a formação e estatuto (legislação
de 1926, 1930, 1931 e 1948, sobretudo) sem nunca conseguir tornar equivalente o ensino
técnico ao liceal.

Palavras-chave:
Profissão Docente, Formação de Professores, Ensino Técnico, Associação de Professores
das Escolas Industriais e Comerciais.

Alves, Luís Alberto Marques (2010). Os professores e o ensino industrial (último quartel do século
XIX a meados do século XX). Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 35-44.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

35
INTRODUÇÃO No século XIX, as preocupações de natureza política
sobrepuseram-se às iniciativas económicas ou educa-
O ensino industrial e comercial, nos nossos estabe- tivas. Sem se resolver o problema da instauração do
lecimentos oficiais, não corresponde, a despeito das liberalismo e sem se limarem as últimas arestas das
sucessivas reformas por que tem passado, às necessi- correntes mais extremistas, não foi possível fazer uma
dades do país. Refiro-me principalmente, ao ensino aposta séria no campo educativo. Adquirida alguma
elementar das nossas escolas industriais e comerciais, estabilidade em 1851, a educação passou a poder ser
que, não tendo obedecido até hoje a um critério se- olhada de uma outra maneira, não só porque era fun-
guro e uniforme, não entrou ainda com um regimen damental o esclarecimento ideológico em termos de
definitivo e útil à economia nacional. escolhas políticas, como se tornava urgente dotar o
Fundadas apenas por iniciativa e acção do go- país de produtores devidamente habilitados. Encur-
verno, quer no intuito de desenvolver as indústrias, tar os atrasos nos diversos sectores económicos pas-
quer no de facilitar as relações comerciais, as nos- sava pela formação de mão obra capaz de associar a
sas escolas têm-se conservado em campo mais ou qualidade à quantidade. Progresso económico pas-
menos abstracto e desligadas dos respectivos factos sou a andar intimamente associado à escola técnica,
de fomento, porque se não foi buscar, como haveria industrial, comercial ou agrícola.
sido mister, aos elementos da vida nacional o crité- Dos princípios e dos objectivos à efectiva cria-
rio utilitarista, que as relacionasse, intima e logica- ção de uma rede nacional de escolas demorou mais
mente com as necessidades e legítimas aspirações de um quarto de século (1851 a 1884) e, para além
das nossas indústrias. das questões financeiras relacionadas com o inves-
(…) Em Portugal não tratamos de formar pesso- timento no parque escolar, uma das dificuldades
al docente: não fundamos o ensino normal. Vieram prendeu-se com a dificuldade de recrutamento de
do estrangeiro professores de diferentes proveniên- professores para áreas tão específicas.
cias e de escolas diversas, mas não estabeleceram É um olhar pelos agentes de ensino no ensino in-
a escola normal, donde pudessem sair os futuros dustrial na segunda metade do século XIX que aqui
professores portugueses. Foram colocados em va- se propõe.
zias escolas industriais, onde professam o ensino
que trouxeram do seu país, numa completa e quase
OS PROFESSORES NAS REFORMAS
geral arbitrariedade e falta de conexão, pedagógica
DE 1852, 1864 E 1869
e utilitariamente considerada (…) (Relatório do
Decreto de 24 de Novembro de 1898). A formação precisava de técnicos competentes
para os conteúdos profissionais dos currículos mas

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também, face às reduzidas habilitações de entrada documental e da regulamentação das provas públi-
dos alunos, de professores capazes de ultrapassar a cas que poderão preceder a primeira colocação:
vertente estritamente técnica. A associar a esta du-
pla competência, teriam ainda de conviver com as (…) O Governo fará o primeiro provimento das ca-
limitações próprias de um sistema de ensino que deiras do ensino industrial (…) (Decreto de 30 de
começava agora a dar os primeiros passos. Dezembro de 1852).
Para os legisladores de 1852, “(…) o pessoal do
ensino compõe-se dos Professores e dos Mestres das (…) Os professores empregados no ensino indus-
oficinas” (Decreto de 30 de Dezembro de 1852), ads- trial, quer nos institutos, quer nas escolas, serão no-
tritos a cada um dos institutos industriais de Lisboa meados pelo Governo, em virtude de concurso do-
e Porto. Em 1864, a categorização docente aparece cumental (…) (Decreto de 20 de Dezembro de 1864).
mais hierarquizada em função dos conteúdos e das
funções: O concurso para o provimento dos lugares de profes-
sores será por provas públicas (…) (Decreto de 30 de
(…) O ensino de 1º e 2º grau será dado em cada um Dezembro de 1869).
dos institutos industriais por professores de 1ª classe
ou ordinários, e de 2ª classe ou auxiliares. Esta intervenção visualiza-se ainda nas situa-
Os professores de 1ª classe serão empregados na ções, normais nestas primeiras iniciativas, onde
regência dos cursos que forem designados pelos re- não existiam recursos humanos docentes a nível
gulamentos. interno para satisfazer as necessidades de provi-
Os professores de 2ª classe coadjuvarão os de 1ª mento de lugares:
classe, regendo, no impedimento legítimo destes, os
cursos de que eles estiverem encarregados; e profes- (…) O governo, se o julgar indispensável, nomeará
sarão os cursos mais elementares, executando igual- temporariamente Professores e Mestres estrangeiros
mente qualquer outro serviço escolar que lhes for in- para constituir o ensino normal da indústria (…)
cumbido (…) (Decreto de 20 de Dezembro de 1864). (Decreto de 30 de Dezembro de 1852).

Em 1869 assumia-se uma maior elasticidade na Quando se não encontrarem pessoas com os requi-
dotação de docentes para os institutos prevendo-se sitos necessários para o ensino teórico e prático, é o
apenas que “(…) cada cadeira será regida por um governo autorizado a procurar nos países estrangei-
professor vitalício (…)” (Decreto de 30 de Dezem- ros indivíduos com as necessárias habilitações (…)
bro de 1869), embora este termo possa induzir em (Decreto de 30 de Dezembro de 1869).
erro uma vez que “(…) o primeiro provimento dos
lugares dos referidos professores será temporário e O Governo procurava credibilizar o sistema de
de tirocínio, devendo este durar dois anos de exer- ensino industrial e garantir uma significativa taxa
cício(…)”. Para garantir um normal funcionamento de adesão. Apesar deste esforço, era notório o dis-
do sistema, previa-se que “(…) no impedimento de tanciamento relativamente a esta formação: por um
qualquer dos professores, ou quando as circunstân- lado a rede de escolas estava ainda restrita aos Ins-
cias do ensino o exigirem, o governo, por proposta titutos de Lisboa e Porto; por outro a mensagem da
do conselho escolar, nomeará pessoa suficientemen- necessidade de formação ainda não tinha chegado
te habilitada para o exercício do ensino, de que for aos seus verdadeiros destinatários. Para tentar ob-
encarregado (…)”. viar a este duplo problema, é curioso referir um as-
Esta presença sistemática do governo está pre- pecto inovatório previsto na legislação de 1869:
sente em todos os diplomas da segunda metade do
século XIX e está intimamente relacionada com a (…) Além do serviço escolar os professores da 4ª e
estatização do ensino no período oitocentista. É a 5ª cadeira [“Noções elementares de química e física”
ele que cabe o primeiro provimento das cadeiras do e “ Desenho de modelos e máquinas”] de um ou ou-
ensino industrial, através do controle do concurso tro instituto serão obrigados, durante os dois meses

sísifo 11 | luís alberto marques alves | os professores e o ensino industrial (último quartel do século xix… 37
de férias, a missões industriais pelo país, fazendo pre- equiparados em categoria, prerrogativas e vantagens,
lecções públicas sobre matérias das suas respectivas aos professores dos liceus.
cadeiras nos centros industriais, que pelo conselho O primeiro provimento será feito pelo governo,
escolar lhes forem designados (…) (Decreto de 30 de independentemente de concurso, em indivíduos que
Dezembro de 1869). possuam as habilitações e dotes indispensáveis para
o bom desempenho dos respectivos cargos, podendo
Nos espaços educativos ou nas missões indus- o governo, se não encontrar no país pessoas nestas
triais, esperava-se dos professores uma efectiva condições, contratá-las no estrangeiro (…) (Decreto
capacidade de formação e de mobilização dos po- de 3 de Janeiro de 1884).
tenciais alunos do ensino industrial. Da sua acção
muito dependia o sucesso do impacto deste nível Este quadro alargado de recrutamento, só pos-
de ensino. Contraditória com a importância desta sível pelo carácter embrionário do sistema, vai sen-
missão estava a persistência da temporalidade da do restringido à medida que a disponibilidade de
sua nomeação e a ausência de uma efectiva política candidatos e a credibilização do cargo permite o
governamental de difusão da rede escolar. aumento do rigor dos concursos:

(…) O provimento dos lugares de professores das


OS PROFESSORES NAS escolas industriais e de desenho industrial será feito
REFORMAS DE FINAIS DO SÉCULO XIX em concurso de provas públicas e documentais (…).
E INÍCIOS DO XX Para concorrer aos lugares de professores (…)
são precisos os seguintes requisitos:
No período anterior, sobretudo durante os anos 60, 1º Ser cidadão português, natural ou naturalizado;
os governos assentavam a docência das escolas em 2º Ter boa saúde e a robustez necessária para o ser-
professores ordinários, por vezes apoiados por um viço escolar (…); 3º Ter bom comportamento moral
auxiliar destinado ao ensino prático. A impossibi- e civil (…); 4º Haver satisfeito a lei do recrutamento;
lidade de criação das escolas previstas, impediram 5º Ter aprovação em disciplinas iguais ou análogas
que pudéssemos analisar da operacionalidade desta às da cadeira a que concorre (…) (Decreto de 23 de
estrutura docente. Fevereiro de 1888).
Nas escolas de desenho industrial e escolas indus-
triais criadas na década de 80, a legislação vai incluir Quando em 1888 se regulamenta de uma forma
articulado específico relativamente aos concursos, mais global todo o ensino industrial, para além de
provimentos e vencimentos dos professores. Do seu se garantir a manutenção de regalias idênticas aos
conteúdo ressaltam alguns aspectos que vão marcar a dos liceus, especifica-se de uma forma mais visível
legislação deste período: a preocupação em assegu- as suas competências:
rar professores competentes nacionais ou estrangei-
ros; a intervenção do governo no seu recrutamento; (…) Em cada escola de desenho industrial haverá
a equiparação das regalias destes professores aos dos um professor equiparado em categoria e honras aos
liceus; a crescente participação dos docentes na ges- professores dos liceus centrais.
tão do sistema; e a preocupação em assegurar uma (…) Compete aos professores:
formação de professores para este tipo de ensino. 1º Reger a respectiva cadeira e dirigir o ensino
Logo no decreto de criação da escola da Covi- prático das aplicações de desenho (…); 2º Dirigir os
lhã, há uma clara preocupação em assegurar a efec- estabelecimentos anexos que lhes forem confiados
tividade da docência: (…); 3º Proceder aos exames (…); 4º Desempenhar
as comissões de serviço escolar para que forem no-
(…) Cada uma das disciplinas criadas (…) será re- meados (…); 5º Informar (…) o inspector da cir-
gida por um professor vitalício, de nomeação do go- cunscrição e propor tudo o que julgar conveniente
verno, precedendo concurso. Estes professores terão para melhorar o ensino (…) (Decreto de 23 de Feve-
o vencimento de 500$00 reis anuais cada um, e são reiro de 1888).

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Neste quadro de competências, releva a preocu- gratificação anual de 100$000 réis. Para a maioria
pação de o governo assegurar uma crescente parti- dos docentes o vencimento oscila entre a verba anu-
cipação dos professores na gestão das escolas. Este al única de 500$000 réis estipulada em 1884 (De-
novo foco de intervenção docente aparece criterio- creto de 3 de Janeiro de 1884) e um valor entre os
samente explicitado no quadro legislativo que de- 600$000 e os 400$000 réis definida em 1886.
termina a criação das escolas industriais: Estas quantias podem ainda ser entendidas à luz
de um dos aspectos que, no nosso entender, mere-
(…) Cada escola terá um director livremente esco- cem um destaque especial. Desde 1884, procura-se
lhido pelo governo de entre os respectivos profes- não só garantir uma formação de professores que
sores. (…). evite o recrutamento no estrangeiro, como se pro-
Compete ao director: cura incentivar a dedicação ao ensino conferindo
1º Cumprir e fazer cumprir as leis (…); 2º Dirigir prémios aos professores que “derem melhores pro-
superiormente a escola e os estabelecimentos a ela vas de aptidão e zelo”:
anexos; dirigir o ensino teórico e prático, a adminis-
tração e a policia da escola e dos estabelecimentos (…) As duas escolas de desenho criadas junto aos
anexos; vigiar que os professores e mais empregados museus de Lisboa e Porto, e nas quais se professam
cumpram rigorosamente os seus deveres; vigiar pela por completo todos os ramos do ensino de desenho
conservação do material e fazer organizar o respec- industrial, tornar-se-ão (…) em escolas normais de
tivo inventário; 3º Corresponder-se sobre todos os ensino de desenho e artes industriais (…). Estas duas
assuntos com o inspector da circunscrição; 4º Con- escolas serão destinadas a criar o pessoal de profes-
vocar o conselho escolhido e presidi-lo; 5º Providen- sores que de futuro há-de exercer por todo o reino o
ciar, na parte não prevista nas leis e regulamentos, em ensino de desenho e artes industriais (…) (Decreto
tudo o que disser respeito ao regime escolar (…); 6º de 6 de Maio de 1884).
Fiscalizar a arrecadação da receita e a boa aplicação
das verbas (…) (Decreto de 23 de Fevereiro de 1888). (…) O governo instituirá dois prémios anuais de
100$000 réis, um na região do norte, outro na região
(…) Haverá na escola um conselho composto do do sul, para os professores que derem melhores pro-
director, que presidirá, e dos professores em serviço vas de aptidão e zelo pelo ensino do desenho.
efectivo. Além disso o governo instituirá (…) um prémio
Compete ao conselho escolar: quinquenal de 500$000 réis para o melhor compên-
1º Formular e discutir os projectos dos programas dio de desenho, que for elaborado pelos professores
das diversas cadeiras (…); 2º Propor as condições das escolas instituídas (…) (Decreto de 30 de De-
de admissão, frequência e exame dos alunos (…); zembro de 1886).
3º Propor (…) os alunos a quem deva ser conferido
prémio; 4º Dar parecer sobre todos os assuntos ácer- Em 1888 mantinha-se o prémio explicitando-se
ca dos quais for mandado ouvir pelo director, pelo apenas que os prémios seriam “(…) conferidos pelo
inspector ou pela direcção geral do comércio e in- governo por proposta fundamentada do inspector”
dústria; 5º Desempenhar (…) as funções de fiscaliza- (Decreto de 23 de Fevereiro de 1888).
ção e administração que lhe forem incumbidas supe- Embora de recrutamento difícil face à novidade
riormente; 6º Aplicar as penalidades (…); 7º Propor do sistema, o professor do ensino industrial aparece
ao inspector tudo o que julgar a bem do ensino (…) dignificado à luz da legislação da década de 80 não
(Decreto de 23 de Fevereiro de 1888). só pela sua crescente intervenção mas também pelo
reconhecimento material da sua disponibilidade,
Este quadro que determina uma maior participa- dedicação e competência.
ção dos professores, tanto ao nível de escola como
de definição da política educativa em geral, não traz
para a maioria dos professores benefícios económi-
cos, embora o director seja contemplado com uma

sísifo 11 | luís alberto marques alves | os professores e o ensino industrial (último quartel do século xix… 39
OS PROFESSORES NAS REFORMAS DE nas escolas com boas informações (Decreto de 14 de
1891, 1893 E 1901 Dezembro de 1897).

A preocupação em garantir a credibilização do Estas condições evidenciam uma dificuldade de


sistema vai passar necessariamente por um cuida- recrutamento, evidente na possibilidade de aparece-
doso processo de dignificação da função docente, rem associados a tarefas docentes “alunos mais adian-
tanto ao nível de recrutamento como de equipara- tados”, mas complementarmente a outras medidas
ção a outros níveis de ensino, nomeadamente o li- que visavam garantir a qualidade do ensino oficinal:
ceal que continua a surgir como referência. Apesar
disso, convirá desde já explicitar que as inovações (…) O ensino oficinal será confiado a mestres sob a
relativamente à legislação da década de 1880 são direcção dos professores das disciplinas respectivas,
menores porque já aí se tinha procurado garantir a ou aos próprios professores dessas disciplinas; e o
competência dos agentes educativos. Há, no entan- ensino dos trabalhos manuais educativos ficará sob a
to, aspectos relativos às habilitações, às nomeações, direcção do professor de desenho geral, sendo tam-
ao recrutamento, ao vencimento e até à novidade da bém confiado a mestres, excepto nas escolas onde
existência de um estágio, que será conveniente ex- esses trabalhos se limitem ao curso elementar, para
plicitar para garantir a análise evolutiva da condição as quais bastará contratar operários hábeis (Decreto
dos professores e mestres do ensino industrial. de 14 de Dezembro de 1897).
Desde logo na sua nomeação procura-se salva-
guardar a sua credibilidade social, com a novidade Paralelamente a estas soluções internas, e falha-
de aparecerem associados tanto os professores das das as tentativas de dotar as escolas com um corpo
disciplinas como os mestres das oficinas: docente nacional, salvaguardava-se a possibilidade
de contratar no estrangeiro os professores e mestres
(…) O pessoal docente das escolas de desenho in- em falta:
dustrial, industriais, preparatórias e elementares de
comércio, é constituído por professores de nomea- (…) O Governo poderá contratar para o ensino pro-
ção régia, providos por concurso de provas públicas fessores e mestres estrangeiros, pelo tempo que jul-
e documentais, e equiparados em categoria e honras gar conveniente, quando esses indivíduos possuam
aos professores dos liceus centrais. as necessárias habilitações (Decreto de 14 de Dezem-
(…) O ensino manual será dado nas oficinas por bro de 1897).
mestres providos por concurso, cujas condições se-
rão determinadas pelo Governo (…) (Decreto de 24 Tentando obviar a uma eternização destas difi-
de Dezembro de 1901). culdades, o poder político procura começar a apos-
tar na formação de professores, que dará resultados
Merece uma particular referência, até para refle- mas apenas a médio prazo, e na institucionalização
xão, os requisitos considerados mínimos para que de um estágio, sobretudo nas escolas onde se enten-
o governo garantisse provimento aos mestres em dia existirem melhores condições, que antecederia
exercício: o provimento nos respectivos lugares:

(…) Os actuais mestres, que à data do presente de- (…) O primeiro provimento dos lugares de profes-
creto se achem ao serviço das escolas, poderão ser sores será temporário e de tirocínio, devendo este
providos na efectividade, quando provem: durar dois anos de exercício (…).
1º — Que sabem ler e escrever correctamente, e as Para o provimento definitivo dos professores de
quatro operações sobre números inteiros e fracções; desenho das escolas industriais e de desenho indus-
2º — Que exerceram a profissão em oficina do trial, poderá o Governo ordenar que todo ou parte
estado ou particular, com a categoria de oficial de ofí- do tirocinio (…) seja feito em uma das escolas —
cio, contramestre ou mestre; Marquês de Pombal, Infante D. Henrique ou Brotero
3º — Que têm, pelo menos, dois anos de serviço (Decreto de 24 de Dezembro de 1901).

40 sísifo 11 | luís alberto marques alves | os professores e o ensino industrial (último quartel do século xix…
No que se refere aos vencimentos assegurava-se, Nesta base a equiparação não envolvia a igualdade
nos inícios do século, um rendimento anual à volta de vencimentos. Por outro lado, esta flutuação não
dos 600$000 réis para os professores e 360$000 réis tornou tão premente a formação pedagógica, adqui-
ou 300$000 réis para, respectivamente, os mestres e rindo apenas relevância à medida que foi aumentado
as mestras. Relativamente a outros incentivos deve- a frequência diurna e a actividade docente passou
mos registar a instituição do subsídio de deslocação a ser exercida em regime exclusivo. Paralelamente
e de um prémio para o melhor trabalho elaborado desenvolveu-se uma política de recrutamento de
pelos professores: professores técnicos estrangeiros ou enviar para ou-
tros países, como bolseiros, jovens portugueses que
(…) Ao inspector e cada um dos professores que sa- ingressavam no professorado do ensino técnico.
írem a mais de 10 km da sua residência oficial, além Apenas em 1918 (Decreto 5 029 de 1 de Dezem-
da despesa de transporte em caminho de ferro ou em bro) se tomam providências consistentes no âmbito
vapor, será abonado o subsídio de 35 réis por km per- da formação de professores para este grau de ensi-
corrido em estrada ordinária. no. Inicialmente priorizou-se a necessidade relativa
(…) É estabelecido um prémio anual de 300$00 ao Desenho nas diferentes modalidades. Foi criada
réis para o melhor trabalho elaborado pelos profes- em Lisboa a Escola Normal para o ensino do Dese-
sores das escolas, e que seja de reconhecida utilidade nho que assegurava durante dois anos estudos teó-
para o ensino (Decreto de 24 de Dezembro de 1901). ricos e práticos de pedagogia, didáctica, tecnologia,
artes industriais e, em simultâneo, o exercício do-
Convirá esclarecer que aquilo que estava so- cente numa das Escolas de Lisboa, sob orientação
bretudo presente na institucionalização deste pré- de um professor efectivo. Havia a secção de Dese-
mio era a ausência quase absoluta de materiais nho de Máquinas cujos candidatos tinham de pos-
pedagógico-didácticos que facilitassem a aprendi- suir o curso geral do Instituto Superior Técnico ou
zagem dos alunos e o seu sucesso escolar. Mas tam- de outra escola superior de engenharia e, se tinham
bém nesta iniciativa visava-se em última análise que como objectivo reger o Desenho de Construção Ar-
o sistema se revelasse eficaz, credível e produtivo na quitectónica, o curso completo de Arquitectura de
formação de quadros. uma Escola de Belas Artes. Para a secção de Dese-
Melhorando as suas condições, alargando a base nho Livre (desenho elementar, decorativo, modela-
de recrutamento, ensaiando as primeiras tentativas ção e pintura) podiam candidatar-se com o curso
de formação nas Escolas com melhores condições completo de Pintura ou de Escultura de uma Escola
ou, como último recurso, recrutando no estrangei- de Belas Artes. A sede deste serviço de formação,
ro, procurava-se, em inícios do século XX, reunir bem como as aulas das disciplinas teóricas, foi esta-
condições nas escolas industriais que garantissem a belecida na Escola Industrial Marquês de Pombal,
efectiva e competente formação de produtores para na altura dirigida por Marques Leitão. Os trabalhos
o almejado desenvolvimento económico. das disciplinas práticas realizavam-se na Escola
Afonso Domingues onde exercia, em Desenho de
Máquinas, o professor Tomás Bordalo Pinheiro que
OS PROFESSORES E A SUA acumulava com funções docentes no Instituto Su-
FORMAÇÃO (FINAIS DO SÉCULO XIX perior Técnico.
A MEADOS DO XX) Para as restantes disciplinas a preparação dos
professores passava pelo tirocínio de dois anos,
Pela legislação de 1884 os professores do ensino devidamente supervisionado. Esta exigência vinha
profissional foram “equiparados em categoria, prer- desde o regulamento de 23 de Fevereiro de 1888
rogativas e vantagens aos professores dos liceus” que determinava a escolha em concurso de provas
(Decreto de 3 de Janeiro de 1884). A frequência das a realizar em Lisboa e Porto, com a supervisão dos
escolas era predominantemente nocturna e era na- inspectores das duas circunscrições (norte e sul).
tural que a prestação de serviço ocorresse em regi- Este concurso de provas veio a ser substituído por
me de acumulação com outros cargos e actividades. concurso documental a que podiam candidatar-se

sísifo 11 | luís alberto marques alves | os professores e o ensino industrial (último quartel do século xix… 41
os que tivessem como habilitação mínima o curso de Estado. Prudentemente dispunha-se que, quan-
dos institutos industriais ou comerciais, ou o dos li- do não existissem candidatos com esse exame, con-
ceus. Após a regência da disciplina a que respeitava tinuavam a realizar-se concursos de provas.
o tirocínio, a apresentação do programa e da respec- Um outro aspecto que merece destaque é a ins-
tiva orientação pedagógica e de um relatório do de- tituição da formação de professores através da ha-
sempenho do estágio, o director da escola, ouvido o bilitação das disciplinas universitárias de Ciências
professor responsável pela supervisão, era logo no- Pedagógicas e do estágio profissional em Março de
meado efectivo. Este processo realizava-se em fun- 1931 (Decreto 19 565).
ção das vagas existentes, ao contrário da habilitação Contraditório com este processo de uma cres-
da Escola Normal que dotava o futuro docente das cente exigência relativamente aos professores do en-
condições para poder concorrer. sino técnico surge, em Novembro de 1935 (Decreto
Embora criticado, este processo manteve-se até 26 115), uma diferenciação que nunca tinha existido:
ao início do Estado Novo, altura em que, através de os professores do ensino técnico profissional foram
legislação saída em Agosto e Outubro de 1926, se colocados, segundo as diuturnidades, nos grupos
criam as categorias de professores efectivos, agrega- O, N e M, enquanto os do liceu ficaram nos K, J e
dos, provisórios e contratados. A grande novidade H. O grande erro desta decisão consistiu na divisão
está na categoria de professores agregados sujei- dos dois graus por uma linha vertical, separando
tos a concurso de provas públicas a que podiam posições com idêntica altitude, em vez de separar
apresentar-se (conforme a disciplina) diplomados por linha horizontal e comum os níveis diferentes de
com os cursos de Belas Artes ou qualquer curso su- cada um. A injustiça ficou instalada e prolongar-se-á
perior de engenharia, incluindo os de Agronomia e durante praticamente todo o Estado Novo.
Silvicultura, ou com qualquer dos cursos dos Insti- Merece ainda referência o Decreto de 29 de
tutos Superiores de Comércio, licenciados em Di- Março de 1967 (nº 47 662) que institucionalizou os
reito ou secções das Faculdade de Ciências e Letras. cursos de preparação para mestres, aproveitando a
Os cursos superiores de Indústria e de Comércio experiência dos cursos de actualização e aperfeiço-
dos antigos institutos industriais e comerciais foram amento que se foram realizando, embora não com
equiparados aos cursos superiores de Engenharia e a frequência desejada. Estes cursos, quando orga-
aos cursos dos Institutos Superiores de Comércio. nizados para mestres de oficina incluíam lições de
As provas destes concursos eram de cultura (teó- Português, Matemática, Tecnologia e Didáctica,
ricas e práticas) e pedagógicas (lições leccionadas sessões de Desenho e de Trabalho oficinal, e prática
aos alunos). A habilitação da Escola Normal para o docente, exercida na regência.
ensino do Desenho permitia o ingresso, mediante Em síntese, houve sempre uma preocupação de o
concurso documental, no quadro de professores poder central assumir o controle do enquadramento
agregados. Estes podiam ser providos nos lugares legal relativo ao tipo de professores e mestres a ad-
de professor efectivo, desde que não houvesse ou- mitir pelo ensino técnico. Segundo, só muito tempo
tros dessa categoria a concorrer. depois (cerca de meio século) se procurou melhorar
Embora tivesse ficado previsto que o sistema de a qualidade de formação desses profissionais de ensi-
recrutamento dos professores agregados seria subs- no. Terceiro, mesmo melhorando a formação, houve
tituído, logo que possível, pela habilitação de um sempre uma clivagem entre o estatuto social, econó-
curso de preparação para o magistério do ensino mico e profissional destes docentes do ensino técni-
industrial e comercial, a organizar nas Escolas Nor- co relativamente aos do liceal. Eis mais um factor de
mais Superiores, curso que terminava com Exame marginalidade deste subsistema de ensino!

42 sísifo 11 | luís alberto marques alves | os professores e o ensino industrial (último quartel do século xix…
Fontes Decreto de 14 de Dezembro de 1897
Decreto de 24 de Novembro de 1898
Decreto de 30 de Dezembro de 1852 Decreto de 24 de Dezembro de 1901
Decreto de 20 de Dezembro de 1864 Decreto de 1 de Dezembro de 1918
Decreto de 30 de Dezembro de 1869 Decreto 19 565 de Março de 1931
Decreto de 3 de Janeiro de 1884 Decreto 26 115 de Novembro de 1935
Decreto de 30 de Dezembro de 1886 Decreto de 29 de Março de 1967
Decreto de 23 de Fevereiro de 1888

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Normalistas e meninas de asilo:


Origens sociais e percursos de vida no século XIX
em Portugal e no Brasil
Maria João Mogarro
mariamogarro@gmail.com
Instituto Politécnico de Portalegre, Portugal

Silvia Alicia Martínez


silvia-martinez@hotmail.com
Universidade Estadual do Norte Fluminense, Brasil

Resumo:
O debate educativo, quer em Portugal, quer no Brasil, na segunda metade do século XIX,
construiu-se com um leque alargado de temas que tinham o objectivo de desenvolver a ins-
trução e a educação nos respectivos países, mas dois segmentos desse debate interessam-
-nos particularmente: i) a necessidade de dotar cada um dos países de professores pri-
mários verdadeiramente qualificados, criando para o efeito estabelecimentos que asse-
gurassem uma formação especializada, de natureza pedagógica e prática e relativamente
longa; ii) a atenção dada a instituições de protecção a crianças e jovens em risco (asilos,
orfanatos, casas de recolhimento), no contexto das políticas de protecção social da época,
que se fundavam nas ideias de regeneração social e no papel que a educação desempe-
nhava para o progresso e desenvolvimento do país. Na intersecção destes dois segmentos
construímos o objecto deste trabalho, ao analisar a origem social das normalistas e o desti-
no profissional das meninas oriundas de asilos, em ambos os países. Metodologicamente,
privilegiaram-se fontes educativas primárias, localizadas no Arquivo Nacional Torre do
Tombo, para o caso português, e no Arquivo Histórico do Liceu de Humanidades de
Campos, para o caso brasileiro.

Palavras-chave:
Modelos de formação, Internato, Género, Educação comparada.

Mogarro, Maria João & Martínez, Silvia Alicia (2010). Normalistas e meninas de asilo: Origens sociais
e percursos de vida no século XIX em Portugal e no Brasil. Sísifo. Revista de Ciências da Educação,
11, pp. 45-54.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

45
A EDUCAÇÃO DOS POBRES fundamental de acolhimento, protecção e educação
E DESAMPARADOS NA SOCIEDADE ao longo de décadas. Maioritariamente femininos,
PORTUGUESA OITOCENTISTA estes asilos insistiam na execução de tarefas domésti-
cas pelas alunas e no desenvolvimento de competên-
A preocupação com a infância desvalida encontra cias para bordar e costurar. Em geral, promoviam a
as suas raízes na prática da caridade e nas primei- produção de artigos, num verdadeiro ensino profis-
ras instituições de assistência fundadas em Portu- sional para rapazes e raparigas, que depois eram ven-
gal, como é o caso das misericórdias. Contudo, a didos, ajudando à manutenção dos estabelecimentos
preocupação em organizar de forma mais sistemá- e dos seus asilados. Preparavam-se os alunos para a
tica a institucionalização das crianças e jovens de- vida futura no mundo exterior, havendo uma preo-
samparados e, consequentemente, em risco — pois cupação pelo destino que seguiriam. No caso das ra-
não tinham família, pai ou adulto que assumisse a parigas, geralmente criadas domésticas, costureiras
responsabilidade da sua guarda, protecção e sobre- e bordadeiras, as que se tinham salientado nos es-
vivência — conduziu, no final do século XVIII, à tudos aspiravam ao exercício de funções educativas.
criação de uma instituição de referência neste cam-
po, em Portugal, a Casa Pia.
Mas será o regime liberal oitocentista a conhecer AS PRIMEIRAS ALUNAS DA ESCOLA
um movimento profundo pela beneficência relativa- NORMAL DO CALVÁRIO, LISBOA
mente aos pobres, fracos e desamparados, criando,
por iniciativa de associações ou por iniciativa indi- A primeira Escola Normal para o ensino feminino
vidual, estabelecimentos escolares (asilos, recolhi- surge em Lisboa, em 1866 e foi instalada no Calvário
mentos, escolas) que albergavam e davam instrução em edifício que apresentava boas condições higié-
elementar, assim como formação profissional, às nicas. Aí continuou a funcionar até 1881, em regime
crianças e jovens pobres e desamparadas. Na segun- de internato, sem grandes problemas, mas também
da metade do séc. XIX, havia 41 instituições desta sem grande brio (Nóvoa, 1987, p. 448). Durante es-
natureza em Lisboa e arredores, assim como outras tes anos, 250 alunas frequentaram a escola, tendo
espalhadas pelo país. Todas tinham sido criadas 141 obtido habilitação para o exercício do magisté-
após 1834, excepto os recolhimentos e a Casa Pia rio primário (Leite, 1892, p. 19).
(Costa, 1870, pp. 67-73). Foi possível analisar 225 processos de candida-
Já na República, Alfredo Alves (1912, pp.  143- tura para a admissão à Escola Normal do Calvário,
-144) penitenciar-se-á do preconceito que tinha de entre as duas centenas e meia referenciadas por
alimentado contra os asilos, realçando a sua função Luiz Filipe Leite. Neste conjunto de documentos,

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sobressai o número significativo de jovens rapari- riam a viver sob a tutela e protecção do Estado, que
gas que eram originárias dos asilos, recolhimentos as alimentava e preparava adequadamente para o
e instituições similares e que solicitavam a sua ad- exercício de uma profissão prestigiada e muito mais
missão ao curso normal, como pensionistas do Es- considerada que outras que lhes estavam destina-
tado (Mogarro & Martinez, 2009a, 2009b). Assim das. Para as jovens pobres, nomeadamente para as
se concretizavam as palavras de Mariano Ghira, Co- jovens institucionalizadas em asilos, a Escola Nor-
missário dos Estudos do Distrito de Lisboa (Nóvoa, mal representava uma das reduzidas possibilidades
2003, pp. 627-628), quando defendia a abertura ur- de mobilidade social.
gente da escola normal para colmatar as deficiências As palavras que uma candidata à Escola do Cal-
do ensino feminino e identificava as instituições de vário escreve no seu requerimento vão para além
onde sairiam preferencialmente as normalistas. do formalismo habitual e evidenciam a consciência
desta sua posição específica:
Nos recolhimentos do Calvário e da rua da Rosa,
no asylo dos orphãos da febre amarella da Ajuda, na Maria da Conceição Martins, que recebeu sua edu-
casa Pia e ainda em outros asylos, se poderá recrutar cação no Asylo de D. Maria Pia, achando-se habili-
bastante pessoal, com vocação e desejo de seguir o tada (…) para ser admittida na Eschola Normal do
curso da escola normal (Ghira, 1866, p. 266). Calvário, vem implorar a V.ª Magestade a graça de
assim a consentir, concorrendo para que a menina que
Uma perspectiva partilhada por D. António da foi educada à custa da caridade pública possa ter, na
Costa (Costa, 1870, p.  209; Nóvoa, 2003, pp.  418- sociedade, uma posição honrosa. Lisboa, 24 de Agos-
-421). A fase inicial da Escola Normal feminina de to de 1880 (ANTT. M.Reino — DGI Pública. Maço
Lisboa revela como foi seguida a orientação dos res- 4221. 1880. Destaque nosso).
ponsáveis pela política educativa: entre 1866 e 1881,
mais de metade das alunas que se candidataram à A Escola Normal constituía, pois, uma perspec-
sua frequência tinham passado por instituições de tiva profissional interessante para estas jovens. Ela
natureza asilar, pois 118 das 250 alunas vinham des- também configurava uma continuidade e esse as-
sas instituições. pecto reforçava o conforto com que era encarada: a
Interessa-nos neste estudo apenas a população sobrevivência assegurada pela entidade estatal; o re-
feminina originária dos asilos, mas da análise dos gime de pensionato que isolava as alunas do mundo
processos sobressai o argumento de pobreza utiliza- exterior, numa clausura que as protegia dos perigos
do por muitas outras candidatas para apresentarem e as colocava imersas numa comunidade reduzida e
a sua pretensão ao lugar de pensionistas. Muitas re- fortemente controlada, mas onde facilmente se mo-
ferem ser órfãs de pai (não tendo a mãe meios para viam, pois tinha muitas semelhanças com a vida de
sustentar os estudos) ou de ambos os progenitores, internato que já tinham conhecido no asilo; a forma-
referindo situações de verdadeira miséria. Duran- ção profissional, não só do ponto de vista literário,
te estes anos, apenas dez das alunas foram porcio- científico, pedagógico e profissional, mas também
nistas, isto é, pagaram a sua formação na escola. na sua dimensão moral e que implicava um grande
As origens sociais da grande maioria das alunas domínio das atitudes e dos comportamentos.
situavam-se nos estratos mais baixos e claramente
a frequência da Escola Normal tinha o objectivo de
adquirir formação para exercer a profissão de pro- ITINERÁRIOS FEMININOS EM
fessora. Esta finalidade sobrepunha-se a uma outra PORTUGAL: EDUCAÇÃO DOMÉSTICA
— a aquisição de uma “educação doméstica” esme- E FORMAÇÃO PROFISSIONAL PARA
rada, que ensinasse as alunas a serem boas donas de SER PROFESSORA
casa e boas mães.
Há uma clara orientação para que as alunas dos As alunas da Escola Normal são marcadas pela sua
asilos que se distinguiram nos estudos transitem condição social, assim como pela formação que
para a escola normal. Nesta instituição continua- vão receber no curso normal, entre a preparação

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profissional, a formação moral e religiosa e a edu- a mesma profissão da mãe adoptiva, que aliás já auxi-
cação doméstica. liava durante as aulas.
A análise dos processos de candidatura fornece-
-nos elementos sobre os critérios exigidos para Não tendo meios alguns de subsistência para o futu-
cursar a Escola Normal. Além do requerimento da ro, se sua mãe adoptiva lhe chegar a faltar, pretende
aluna ou do seu representante, tinham de apresen- seguir a carreira que a dita ama adoptou, e para isso
tar atestados de bom comportamento moral e cívico deseja entrar como pensionista do estado na escola
(pela autoridade local), assim como religioso (por normal de Lisboa. Ass: Carolina d’ Assumpção Lima.
um padre, que atestava também a prática dos rituais Rio Maior, 30 de Julho de 1880 (Maço 3221.1880).
católicos). As habilitações eram declaradas pelo rei-
tor do liceu onde a aluna realizara exames, e/ou pelos No restrito universo da Escola do Calvário va-
professores que a tinham ensinado ao longo do seu mos encontrar duas visões diferentes do mundo
percurso escolar até chegar ao exame de admissão — uma marcada pela vida de internato nos asilos e
à Escola Normal; em consequência, encontram-se pelos constrangimentos da pobreza, que constitui
com frequência declarações das mestras e docen- um modelo estruturado e que a própria institui-
tes dos asilos. No caso em que já eram professoras, ção seguirá. Outro, minoritário e subsidiário, que é
apresentavam o respectivo título de capacidade para transportado por alunas que têm referências familia-
o magistério. Era também indispensável o atestado res diferentes e formas de educação mais maleáveis,
médico e a certidão de nascimento. de cariz burguês. O confronto destas duas formas
As alunas eram ordenadas pela sua classifica- de vida penalizará as segundas, que não se adapta-
ção, nas provas de admissão, destacando-se no seu ram à vida de normalistas e abandonaram a escola.
perfil características como a inteligência, interesse,
capacidades demonstradas, aplicação e experiência Catharina Rita e Maria Carlota (…) pediram ao go-
anterior, que tivessem adquirido como ajudantes, verno de Sua Magestade ser lhes permitido sair da-
mestras ou monitoras, muitas vezes nos asilos. quela escola por não se poderem conformar com o
A condição de pobreza é revelada pela situação regimento interno aí seguido. Maria Carlota (…) dis-
de asiladas, mas também pela orfandade que deixa se que não tinha motivo algum de queixa do modo
a família “reduzida à miséria”, vendo-se as candi- porque era tratada pela Regente, professoras e alu-
datas “na necessidade de trabalhar sem cessar para nas, e que desejara sair por se achar com falta de saú-
adquirir os meios de subsistência” (ANTT. Maço de e com saudades de sua família; que se queixava só
4212.1867). O falecimento do pai leva Maria da Gló- da alimentação, a qual achava muito diferente da que
ria Almada a explicar “que vai ajudar a mãe no fu- tinha habitualmente em casa da sua família e sendo
turo no tratamento e educação de mais 6 órfãos que pouco o pão que lhe davam (…) A segunda aluna
lhe ficaram” (Maço 4213.1869). (…) Catarina (…) via que não tinha forças para estu-
Apesar da condição de pobreza, destacam-se ca- dar tanto quanto dela se exigia.
sos em que as alunas superam os constrangimentos Maria do Rosário (…) [ouvida] sobre os motivos
e atingem níveis elevados de desempenho. Carolina pelos quais ela requerera para sair (…) respondeu
Adelaide Lacerda, do Recolhimento do Calvário, que não lhe agradara a alimentação; que lhe repugna-
deu provas no exame que revelavam “superioridade va o trabalho de varrer o dormitório, a que a obriga-
sobre algumas professoras do Distrito”, assim como vam de três em três semanas; e que finalmente era pe-
exibiu “capacidade (…) e novíssimo desejo de se noso estar muito tempo nas aulas (Maço 4215. 1873).
instruir” (Maço 4213.1869). Em sentido contrário,
algumas alunas apresentam deficiente preparação Saudades da família, repúdio do trabalho domésti-
na realização das provas, mas a vocação impôs-se, co (e da educação doméstica no sentido mais manu-
sendo admitidas. al que a disciplina impunha aos pobres), desagrado
Outro caso significativo é o de Carolina A. Lima, com a alimentação e total recusa das tarefas conside-
adoptada por uma professora pública de Rio Maior, e radas mais baixas, aliavam-se ao desinteresse pelos
que pretende ingressar na Escola Normal para seguir estudos. Era a recusa burguesa de um modelo de

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formação que a Escola do Calvário tinha em curso e mesma cidade do Rio de Janeiro. Na Província de
em que pretendia formar profissionais com um per- Rio de Janeiro observa-se que dentro da listagem de
fil específico. Estabelecimentos de Ensino subvencionados pelo
Estado no ano de 1895 (ERJ, 1895), encontrava-se
o Collegio dos Salesianos, localizado em Santa Rosa,
ACOLHER, MORALIZAR, INSTRUIR Niterói, cujo alunado era composto, preferencial-
E EDUCAR NO AMOR AO TRABALHO mente, por meninos órfãos de pai e mãe e que se
NO BRASIL OITOCENTISTA achavam em extrema indigência. No referido ano
contava com 200 internos, dos quais só 40 eram
No início do século XIX, a infância abandonada subvencionados. A instituição compreendia duas
— constituída por crianças órfãs, abandonadas, in- divisões, uma de estudantes e outra de artistas.
fractoras e filhos de pais pobres — representava um Outro asilo para meninos existente à época era
sério problema para a sociedade brasileira, para a o Asylo Agrícola de Santa Isabel, em Valença, criado
qual “providenciaram-se asilos e reformatórios, ins- pela Associação Protectora da Infância Desampara-
tituições moralizadoras, onde o trabalho se consti- da. Inaugurado em 1886, atendia 50 asilados e o curso
tuía em importante recurso pedagógico” (Moraes, estava composto pelo programa de ensino primário.
2000, p. 73). Já para a educação das meninas existia o Asylo
A assistência social da época ficava reduzida de Santa Leopoldina, em Icaraí, Niterói, que man-
àquelas de orientação católica, como a Santa Casa tinha, no ano de 1895, 125 asiladas. Conduzida
da Misericórdia e as Casas da Roda ou Casas dos por nove irmãs de caridade, seguiam um progra-
Expostos que existiam ao longo das Províncias e ma de instrução organizado em três níveis: curso
que recolhiam as crianças abandonadas. Por outro elementar, médio e superior. A instituição contava
lado, funcionavam as associações que se mantinham também com duas salas de costura: a primeira, à
graças à iniciativa de particulares. qual assistiam 70 asiladas, ensinava a coser, cortar
Na capital paulista se destacam o Seminário de e bordar, tricot, crochet e flores. A segunda sala
Sant´Anna, asilo para meninos órfãos fundado em de costura era frequentada por 50 asiladas, às que
1824, que serviu de modelo para dez outras institui- lhes ensinavam a marcar, coser, bordar, crochet e
ções criadas entre 1840 e 1865 em diferentes capitais crivo. A presença de disciplinas como pedagogia,
das províncias. Extinto em 1868, foi substituído pelo lições de coisas e caligrafia no curso de nível supe-
Instituto de Educandos Artífices destinado priorita- rior nos faz supor, sobre o destino destas asiladas,
riamente aos filhos de militares, voluntários da pá- que pudessem encaminhar-se para o magistério,
tria ou soldados que tivessem lutado na guerra do público ou particular.
Paraguai. Já para as meninas órfãs, em 1825 criou-se Existia na mesma época outra instituição similar,
o Seminário da Glória, único mantido pelo gover- a Escola Domestica de N. S. do Amparo, em Petrópo-
no da Província de São Paulo, apesar de existirem lis, escola feminina fundada pelo padre João Fran-
outros asilos dedicados ao cuidado de meninas ór- cisco de Siqueira Andrade, esta, sim, explicitamente
fãs e abandonadas, mantidos por particulares. Até destinada — conforme os estatutos — a educar e
1870 foi uma instituição leiga, passando a partir de instruir a infância desvalida, com a especial caracte-
1871 a uma congregação religiosa, apesar de conti- rística que, além de iniciar as meninas na prática do
nuar subvencionada integralmente pelo governo. serviço doméstico, as habilitava para o exercício do
A maior parte das meninas eram filhas de militares e magistério particular.
empregados públicos falecidos. Já em 1876 criou-se,
na Escola Normal, uma secção para o sexo feminino No ano de 1895 havia 97 alunas, das quais 37 manda-
que se instalou no pavimento inferior do Seminá- das admitir pelo governo. As matérias do programa
rio da Gloria, que apenas funcionou durante quatro de ensino constavam de história sagrada e doutrina
anos, para reabrir em 1880 como instituição mista. cristã, gramática portuguesa, caligrafia, leitura, arit-
Já o asilo da Mendicidade da Corte foi criado em mética elementar, regras de civilidade, economia
1884 e o Asilo de Menores Desvalidos, em 1890, na domestica, musica vocal, desenho linear, costura e

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exercícios culinários, de cofeitaria, de lavanderia, de novamente, irrompendo com sucesso, por fim, no
engommagem e de padaria (ERJ, 1895, p. 24). período republicano. Situação similar atravessaram
as escolas normais criadas nas diversas províncias
Por último, dentre as instituições particulares ao longo das décadas seguintes, sendo submetidas
registadas no ano de 1895 encontramos o Asylo de a um processo de criação e extinção, para só terem
Santa Izabel, no Rio de Janeiro, cuja matrícula se êxito a partir de 1870, quando se afirmaram as ideias
elevava a 75 pensionistas, 80 externas, 150 externas de democratização, obrigatoriedade da instrução
da escola gratuita e 75 órfãs. A directora era a “vir- primária e de liberdade de ensino (Tanuri, 2000).
tuosa” irmã Fagaldi e as alunas se exercitavam em Muitas dessas instituições tinham carácter precário,
trabalhos de lavandaria, costura e demais prendas limitações financeiras, e muitas vezes funcionando
próprias do trabalho feminino. anexas aos liceus, acrescentando apenas ao plano de
Fica bastante evidente, dadas as características estudo a disciplina de Pedagogia, o que impedia seu
destas instituições que, no contexto social brasileiro bom funcionamento e uma boa formação aos futu-
da época, a instrução era indicada como o caminho ros mestres.
para combater a criminalidade. Através da instrução Segundo Tanuri (2000), em 1867 havia somente
da população poderiam se obter algumas melhorias quatro instituições de ensino normal no país. Em
quanto aos níveis de civilização e criminalidade 1883, o número de escolas tinha aumentado para
existentes. “Esse discurso exprime claramente um 22. Já após a proclamação da República, em 1889, as
dos slogans oitocentistas utilizado na defesa da es- escolas normais brasileiras conseguiram se multipli-
cola e da escolarização: o de que abrir escolas era car e manter, visto que a formação dos professores
fechar prisões” (Villela, 2003, p. 104). primários em instituições específicas era uma reali-
Tirar o povo da ignorância e elevar o nível intelec- dade desejada.
tual e moral da população era uma meta para a qual Nesse contexto republicano foi criada em 1894 a
eram necessárias escolas e professores capacitados. Escola Normal de Campos, na província de Rio de Ja-
neiro, pela Lei Nº. 164, durante a presidência de José
Thomaz Porciúncula. Instalada em Março de 1895,
DOS ASILOS PARA O MAGISTÉRIO, ocupou-se da formação de professoras primárias no
DAS FAMÍLIAS PARA A ESCOLA norte do Estado do Rio de Janeiro (ERJ) por quase
NORMAL NO ESTADO DO RIO DE sessenta anos, formando centenas de professoras.
JANEIRO DE FINAIS DO SÉCULO XIX Ao mesmo tempo, instituição similar foi fun-
dada no sul do Estado, a Escola Normal de Barra
No Brasil, a criação de escolas com o objectivo de Mansa, que teve curta duração, sendo extinta no
formar professores está ligada à institucionalização ano de 1900. A Escola Normal de Niterói sofreu al-
da instrução pública, ou seja, à implementação das gumas mudanças na época de criação da de Cam-
ideias liberais de expansão do ensino primário a pos, sendo ambas as instituições públicas e oficiais
todas as camadas da população. A lei de 15/10/1827 de formação de professores da Província do Rio de
manda criar escolas normais em todas as vilas, cida- Janeiro por longas décadas. É bom frisar que a assis-
des e lugares mais populosos do Império. Porém, tência à classe não era obrigatória por aqueles anos
as primeiras escolas brasileiras para a formação de iniciais, sendo que os alunos podiam se submeter a
professores só seriam estabelecidas após a reforma exames livres.
de 1834, por iniciativa das Províncias. A análise de 28 processos de alunas aprovadas
A primeira Escola Normal a ser criada foi a de Ni- no exame de admissão para o ano de 1898, obser-
terói (Rio de Janeiro), no ano de 1835. Seu currícu- vando idade, origem e responsável pela matrícula
lo compreendia as quatro operações e proporções; de cada aluna revela que eram do sexo feminino, e
língua nacional; ler e escrever pelo método lancas- a maioria tinha entre 14 e 15 anos. Observa-se que
teriano; elementos de geografia e princípios de mo- a maioria das solicitações era feita pelo pai, sendo
ral cristã. Essa escola teve curta duração, fechando que duas foram feitas pela mãe, outra pelo irmão e
em 1849 (Villela, 1992), para logo reabrir e fechar duas pela avó, uma das quais através da letra do seu

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filho, o posteriormente professor do Liceu de Hu- de alunos na escola que dirigia, no ano de 1895 —
manidades de Campos, Viveiros de Vasconcellos, que com essa decisão acabava-se “substituindo o
que alegava que sua mãe não poderia redigir o pe- tirocínio (aprendizagem), geralmente reputado in-
dido para a admissão à instituição da sobrinha por dispensável, por provas esparsas de capacidade”
ser analfabeta. (ERJ, 1895, p. 13). O Director da Instrução Pública,
Por aqueles anos a matrícula nas instituições do citando e concordando com as apreciações do di-
Estado do RJ era gratuita, o que impede observar o rector, critica a possibilidade de, com esta medida,
número de candidatas que pediam isenção de taxa “admitir o falso principio de que para a formação
e que poderia reflectir o nível sócio-econômico das do professor é dispensável o tirocínio das Escolas
aspirantes. Entretanto, dos pedidos de matrícula Normais, podendo-se abrir mão da graduação lógi-
analisados, observa-se que havia dentre eles profes- ca dos estudos que aí se fazem” (ERJ, 1895, p. 13).
sores e profissionais liberais, e que alguns usavam o Como conclusão, pode-se afirmar que a profis-
tratamento de Doutor. são de professora era, no contexto analisado, dese-
A partir destes dados, reafirmados pela trajec- jável para mulheres de determinada classe social,
tória familiar de algumas professoras formadas pela no caso, mulheres pobres e sem família, com uma
escola em questão, como o caso de Antonia Ribei- perspectiva de ascender socialmente ou não decair
ro de Castro Lopes, pertencente às elites agrárias, para um meio de vida não decente (Pessanha, 1997).
que solicitou pedido para prestar exame vago das Para um número importante das normalistas
matérias dos primeiro e segundo anos em 21 de no- oitocentistas, diferentemente, a instrução na escola
vembro de 1898 (vide Verbete Antonia Lopes, em normal representava um modelo possível de educa-
Mignot & Martínez, 2002), e, ainda, seguindo a aná- ção feminina, a introdução no mundo da cultura ge-
lise de Pessanha (1997), podemos afirmar que as alu- ral necessária à formação e à distinção da sociedade
nas da Escola Normal de Campos deviam provir de tradicional.
famílias de proprietários rurais empobrecidos que
mudaram para as cidades para ocupar cargos na
burocracia do Estado, de famílias de profissionais CONSIDERAÇÕES FINAIS
liberais ou dos que trabalhavam na administração
privada; e, por outro lado, poderiam ser filhas de Observa-se em ambos os países processos diferen-
antigos trabalhadores rurais que tinham fugido do ciados de formação e de ingresso no magistério na
trabalho manual — simbolicamente ligado à escravi- segunda metade do século XIX.
dão — e que atraídos pela e para a cidade trabalha- Em Portugal, as alunas da primeira escola nor-
vam no pequeno emprego como bancos, escritórios mal feminina eram, na sua maior parte, oriundas
ou como funcionários do Estado. de meios sociais desfavorecidos, tendo muitas sido
Por outro lado, em relação às alunas órfãs que es- acolhidas anteriormente em asilos, orfanatos e reco-
tudavam nas instituições de caridade, observa-se, à lhimentos. As professoras deviam dominar os sabe-
época, um claro encaminhamento para o magistério, res específicos da sua profissão, e neles se incluíam
dispensando os estudos na Escola Normal, como no os fazeres próprios da mulher. Este perfil era enqua-
exemplo da Escola Domestica de N. S. do Amparo, drado por um forte sentido moral, religioso e ético,
em Petrópolis, RJ, apresentada acima. exigido à entrada da Escola e que devia ter continui-
Na província do Rio de Janeiro, a finais de sécu- dade no seu interior. Ser professora implicava a ca-
lo XIX, a entrada directa no magistério era possível pacidade para dominar todas estas dimensões, num
graças à ambiguidade da legislação. A mesma lei processo de formação marcado pelo projecto total
que criou a Escola Normal de Campos e a de Barra da escola para socializar as suas alunas segundo es-
Mansa, paradoxalmente, veio permitir “a investidu- tes parâmetros fortemente disciplinares (Foucault,
ra da função pedagógica independentemente da fre- 1996). O regime de internato colocava-as na com-
qüência da Escola Normal”, o que levou o director pleta dependência da instituição (Goffman, 1968)
da Escola Normal de Niterói a reclamar perante os e, tendo sido transportado do mesmo modelo que
superiores — ao tentar explicar a drástica redução vigorava em muitos asilos, adequava-se facilmente

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ao perfil das jovens que já tinham vivido e estudado normal, mas directamente para o magistério primá-
em ambientes similares. rio, público ou particular, representando da mesma
No Brasil existia certa heterogeneidade, tanto forma uma possibilidade digna de exercer uma pro-
de modelos de formação nas escolas normais como fissão, ascender socialmente e não correr riscos de
de alunado. As normalistas vão paulatinamente cair na vida, ao assegurar uma posição social, inde-
tornando-se a maioria, o trabalho docente não se pendente e honrosa.
constitui no objectivo primordial das alunas: a for- Em ambos os países observa-se que as Escolas
mação para o magistério possibilitava dar continui- Normais representavam a continuidade do contro-
dade aos estudos que as tornaria melhores “mães” lo social sobre as jovens, reforçando a sua formação
e “esposas”, ao lhes possibilitar aceder a conheci- moral, assim como atitudes e condutas correctas, a
mentos até então reservados aos homens, apesar de par do sentido de missão e dos conhecimentos pró-
muitos dos cursos normais apresentarem progra- prios da profissão.
mas aligeirados de cultura geral.
No caso brasileiro, as alunas dos asilos conside-
radas mais aptas não eram orientadas para a escola

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Imagens sobre a profissão docente


no mundo luso-brasileiro
Tereza Fachada Levy Cardoso
tereza@levycardoso.com.br
Centro Federal de Educação Tecnológica — CEFET-RJ, Brasil

Resumo:
Sobre a história da profissão docente no mundo luso-brasileiro, apresenta-se uma pesquisa
no campo da história comparada, para investigar como a profissão docente foi percebida
pelas diferentes partes envolvidas no processo educacional: os professores, a sociedade, as
autoridades governamentais. Afinal, o que era ser professor naquele contexto? O recorte
temporal, de 1759 até 1822, abrangeu o período em que o Brasil passou de América Portu-
guesa a Reino Unido e país independente. O recorte temático limitou-se aos professores
régios, funcionários do Estado e investigou como os docentes assim intitulados se percebiam
ou não como profissionais e como percebiam a sua prática docente. O recorte geográfico
envolveu tanto os docentes da América Portuguesa quanto os do Reino, ao indagar se havia
diferenças na percepção que tinham sobre si mesmos os professores que atuavam na porção
européia e americana do mesmo Império. Observou-se que os professores régios tinham
uma consciência profissional, se percebiam como exercendo uma atividade altamente rele-
vante, útil ao Estado, ao Rei, à pátria.

Palavras-chave:
Profissão docente, Aulas régias, História da educação.

Cardoso, Tereza Fachada Levy (2010). Imagens sobre a profissão docente no mundo luso-brasileiro.
Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 55-64.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

55
INTRODUÇÃO desvalorização social, falta de prestígio, reivindica-
ções de melhores condições de trabalho, mas tam-
As Aulas Régias, criadas em 1759, caracterizaram-se bém exaltação da figura do professor, da sua prática,
por um sistema de aulas avulsas, com diferentes ní- de sua importância para a sociedade.
veis de hierarquização, tanto das disciplinas quanto O recorte geográfico envolveu os docentes da
dos professores, uma ambigüidade frente aos docen- América Portuguesa e os do Reino, porque é funda-
tes particulares, levando à hipótese de que a gênese mental indagar se havia diferenças na percepção que
da profissão docente foi a responsável pela imagem tinham sobre si mesmos os professores que atuavam
fragmentada que se observa nessa nova categoria — na porção européia e americana do mesmo Império.
o professor público (Mendonça & Cardoso, 2007).
Essa tese foi seguida na pesquisa aqui apresen-
tada, desenvolvida no âmbito de uma história com- O PROFESSOR PÚBLICO, UMA NOVA
parada, sobre a história da profissão docente no CATEGORIA PROFISSIONAL
mundo luso-brasileiro, que investigou como a pro-
fissão docente era percebida pelas diferentes partes É lugar-comum dizer que a transmissão de saberes
envolvidas no processo educacional: os professores, numa sociedade não se dá apenas pela intermedia-
a sociedade, as autoridades governamentais. Afinal, ção da escola. A história do ensino coincide com a
o que era ser professor naquele contexto? história da humanidade e permanece como um as-
Para este trabalho elegeram-se alguns recortes: o pecto cada vez mais discutido do processo de cons-
primeiro, temporal, vai de 1759 até 1822, período em trução das sociedades humanas.
que o Brasil passa de América Portuguesa a Reino Mas se a atividade de ensinar é tão antiga, o mes-
Unido e país independente. O objetivo é recuperar mo não se pode dizer do professor enquanto pro-
as imagens que os docentes da segunda metade do fissional e, mais ainda, da educação pública. Há um
século XVIII e primeiras décadas do XIX produzi- momento na história em que ser professor público,
ram sobre si mesmos. no sentido de exercer uma profissão, surge como
O segundo recorte, temático, limita-se aos pro- novidade. De acordo com Fernandes (1994), estu-
fessores régios, ou seja, os públicos, funcionários dos sobre o tema tem apontado a vanguarda de Por-
do Estado. As principais questões foram: como os tugal nesse aspecto.
docentes intitulados de professores régios se perce- De fato, a Reforma dos Estudos efetivada pelo
biam ou não como profissionais? Como percebiam a alvará de 28 de junho de 1759 e pela carta de lei de
sua prática docente? Partindo dos testemunhos dos 6 de Novembro de 1772, implantou a educação pú-
próprios protagonistas, apareceram elementos como blica em todo o Reino português e seus domínios

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ultramarinos, ainda que precariamente. Tornava-se categoria, embora estivesse ciente dos seus direitos,
obrigação do Estado garantir a educação gratuita, inclusive dos privilégios que recebiam com o cargo,
estabelecer suas diretrizes, escolher por concurso ou que podiam obter por meio da mercê do rei. Essa
os professores, fiscalizá-los, pagá-los e mantê-los percepção parece fundamental para explicar a ima-
subordinados a uma política fortemente centrali- gem fragmentada que a profissão docente apresenta
zadora. A partir de então a educação passava a ser no seu início.
leiga, ou seja, conduzida por organismos burocráti- Em relação ao perfil profissional, não havia dife-
cos governamentais e não mais sob a diretriz de uma rença do que era exigido para professor público ou
ordem religiosa, como fora até então pelos jesuítas para o particular, que também precisava ser apro-
(Cardoso, 2002). vado em concurso. Em vários requerimentos envia-
O sistema de ensino das Aulas Régias inaugura- dos, por exemplo, à Real Mesa Censória, de pessoas
do com a Reforma dos Estudos Menores de 1759, pedindo para lecionar entre fins do século XVIII
baseou-se nas Aulas de humanidades, que inicial- e início do XIX, a resposta era sempre de recusa,
mente eram formadas pelas cadeiras de gramática afirmando-se a exigência do concurso.
latina, língua grega, língua hebraica, retórica e po- Mas como será que esses pioneiros da profissão
ética, mas foram acrescidas ao longo dos anos com se percebiam ou eram percebidos na sua época?
outras cadeiras e nas Aulas de primeiras letras, con- A documentação consultada, de maneira geral, nos
templadas na segunda fase da reforma, ocorrida em fornece tanto argumentos favoráveis a uma imagem
1772, que também ocupou-se dos Estudos Maiores, positiva que o professor, ou as instâncias adminis-
oferecidos pela Universidade de Coimbra e para os trativas a eles ligados tinham da sua profissão, como
quais o estudante habilitava-se a cursar depois de também nos mostra que havia muitas tensões.
concluídos os Estudos Menores.
O concurso para admissão ao cargo de profes-
sor público foi logo instituído em 1759. É pertinente OS DEPOIMENTOS
observar que embora existisse um contrato entre o
professor e o Estado e o primeiro estivesse obrigado Depoimentos pessoais de professores sobre o seu
a submeter-se a uma avaliação periódica, os profes- ofício podem ser consultados em diferentes fontes,
sores não formavam ainda uma classe profissional. como cartas, publicações, requerimentos enviados
De acordo com Nóvoa (1991, pp. 13-14): a Real Mesa Censória, ao Rei, entre outros que são
fundamentais para se responder ao desafio da ques-
hoje em dia, sabemos que no início do século XVIII tão proposta neste texto: afinal, como se viam os
havia já uma diversidade de grupos que encaravam protagonistas desta história?
o ensino como ocupação principal, exercendo-a por De acordo com Nóvoa (1992, p.14), a “identida-
vezes a tempo inteiro. A intervenção do Estado vai de não é um dado adquirido”, mas antes, “um lugar
provocar uma homogeneização bem como uma uni- de lutas e de conflitos, é um espaço de construção
ficação e uma hierarquização à escala nacional, de to- de maneiras de ser e de estar na profissão”. Por isso
dos estes grupos: é o enquadramento estatal que eri- ele propõe “falar em processo identitário”, desta-
ge os professores em corpo profissional, e não uma cando “a mescla dinâmica que caracteriza a maneira
concepção corporativa do ofício. como cada um se sente e se diz professor”.
De fato, é nessa dinâmica que encontramos
Apesar do governo manifestar inicialmente a exemplos da construção desse processo identitário,
intenção de distinguir a todos com o mesmo orde- ou seja, ao mesmo tempo em que os professores se
nado e privilégios, conforme as Instruções de 1759, mostram insatisfeitos pelas condições precárias de
acabou reproduzindo a estrutura hierarquizada do vida que seu trabalho lhes proporciona, continuam
Estado absolutista em vigor. O grupo de docentes a exercer sua profissão e mesmo se orgulham dela.
alçado a funcionário do Estado não tinha um espíri- No caso da América Portuguesa, há um importan-
to de corpo, não foi constituído num processo his- te registro deixado pelo professor régio Luís dos San-
tórico de conquista de espaço por uma determinada tos Vilhena, que aportou em Salvador no fim de 1787,

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vindo da corte, para assumir uma Aula de Grego, e professores se beneficiava da atenção que recebiam
dá notícia do estado em que se encontravam as Aulas das autoridades, ou seja, de uma política pública
nas suas Cartas Soteropolitanas e Brasílicas (Vilhena, mais favorável à educação.
s. d.), de 1802, principalmente na Carta VIII. Além da falta de reconhecimento e de apoio do
Em tom crítico e pessimista, a imagem que nos chefe político local, lamenta ainda o preconceito que
deixa dos professores, especialmente aqueles que existiria em relação aos professores que atuavam em
atuavam na Bahia, era sem dúvida dramática: “indi- terras brasileiras, “vieram de todo a confundir-se os
zível é, meu caro Amigo, a aversão que nesta cidade bons com os maus Professores, conhecidos sem dis-
há a corporação dos Professores, gente de nenhu- tinção pelo abjeto nome de Professores da América,
ma entidade na Bahia, membros da sociedade para sobre quem indistintamente caem as ímpias calú-
quem se olha com a maior indiferença e displicência nias de que alguns são merecedores”.
suma”. Vilhena se queixa de desprestígio dos pro- Essa denominação de Professores da América,
fessores régios, demonstrando indignação diante no sentido por ele usado, como sinônimo de despre-
das arbitrariedades cometidas pelos responsáveis zíveis, ainda não encontramos registrada em outro
pelo recrutamento militar, que não teriam nenhum documento. Nesse caso, podia referir-se a alguma
respeito pelos professores, ou pela escola, em parti- situação observada na Bahia em particular, mas ain-
cular, uma vez que: da a ser confirmada com outros estudos. De qual-
quer modo, reforça a idéia de que havia uma tensão
se bloqueiam e invadem as Aulas Régias e que, sem presente nessa nova categoria profissional, entre os
atenção a coisa alguma, se arrancam delas para sol- professores do Reino e os do Brasil, já sinalizada em
dados os Estudantes mais hábeis e aplicados, sendo estudo anterior (Mendonça & Cardoso, 2007).
ignominiosamente tratados pelos executores daque- Por outro lado, também revela um comportamen-
las diligências os Professores respectivos, que em to que não é raro encontrar na documentação, a des-
serviço do soberano e da Pátria se tem empenhado qualificação de outros professores, a denúncia de que
em instruí-los, em aproveitá-los… há os que recebem e não trabalham, ou trabalham
menos do que deviam, ou aceitam alunos de outros
Percebe-se que o professor régio Vilhena acredi- professores sem autorização, enfim, a lista é grande.
ta que seu trabalho é um serviço relevante prestado O autor das Cartas faz ainda muitas outras re-
ao soberano e à pátria e se mostra profundamente clamações, por muitos outros motivos, mas talvez
descontente com o recrutamento. Há um descon- a que seja mais frequentemente compartilhada por
forto do professor, que relembra em tom saudosista, seus colegas de profissão refere-se aos salários, por
o tempo em que tinham maior reconhecimento: serem insuficientes, por serem pagos atrasados ou
porque o professor precisasse apresentar um atesta-
Quando no fim do ano de 1787 aportei nesta cidade do para recebê-lo.
não havia tanta relaxação porque logo que constava Rogério Fernandes (1994, p.  510) já assinalou
que pelo Professor que o estudante o desatendera, que no início do século XIX, em Portugal, ao nível
era mandado para o Forte do Mar, e se na indagação dos Estudos Menores, “a profissão docente não po-
que dela se fazia, se vinha na certeza de que era pou- dia blasonar de nenhum título socialmente presti-
co aplicado, mandrião ou vadio, então se lhe sentava giante”. Investigando especialmente os professores
praça de soldado para ensinar-lhe a conhecer a su- de Primeiras Letras, refere que os documentos com
bordinação. pedidos de aumento são relativamente abundantes
e que entre 1812 e 1820 eles vinham de todo o país,
E faz uma crítica, ainda que indireta, ao gover- mostrando uma situação generalizada. Devemos
nador local quando elogia o modo de agir de seu acrescentar que não era diferente na América Por-
predecessor, “que de quando em quando ia honrar tuguesa, de acordo com a grande quantidade de do-
algumas Aulas com a sua assistência e muito princi- cumentos com o mesmo teor.
palmente a da casa de educação pública que insti- Portanto, o salário foi alvo de reclamações cons-
tuiu”, indicando que o prestígio social dos mestres e tantes durante todo o período aqui pesquisado, em

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ambas as partes do Império português, segundo a onde o fato foi apreciado, que começa rebatendo o
vasta documentação que mostra as tentativas isoladas argumento apresentado pelo mestre quanto à exten-
desses professores de melhorarem suas condições de são da Vila, que “só por si é inferior na extensão, e
vida e trabalho. Por vezes, os requerimentos ao Rei povoação a muitas outras, que tem igual ordenado”,
são assinados por dois e até três professores, mas não o que, de acordo com a Junta, “provaria mais a ne-
existe um movimento dos membros dessa nova cate- cessidade de se criar outra Escola no Termo, do que
goria profissional, no sentido de uma reivindicação a de se aumentar o ordenado da Vila”.
de grupo. Só em 1816 é que se registra a primeira ten- Na seqüência, a Junta avalia que é justo o segun-
tativa de congregar os professores em algum tipo de do pedido, referente ao aumento de ordenado, e
associação, no caso o Montepio Literário, em Lisboa, recomenda que seja pago noventa mil reis ao profes-
que tinha um caráter mais de previdência, de auxí- sor, o mesmo que competia aos Mestres da Cabeça
lio mútuo, do que propriamente reivindicatório, o da Comarca, citando vários casos precedentes que
que não é de se estranhar, já que estamos ainda no haviam sido atendidos por El-rei, para justificar sua
período do Antigo Regime (Fernandes, 1994, p. 522). concordância. E aproveita para defender, mais uma
Isso só reforça a idéia de que o salário era um vez, que o aumento de ordenado deveria ser geral,
dos mais importantes elementos para a construção porque os professores estavam passando por várias
de uma distinção social dos docentes profissionais, dificuldades em se manter com dignidade na profis-
ao mesmo tempo em que era um componente fun- são e também porque “não he possível (…) que hum
damental de divisão entre eles. No fim do século tal Ordenado atraia pessoas hábeis a sugeitarem-se a
XVIII e início do século XIX, havia professores que este penoso ensino”.
recebiam de 30 a 460 reis por ano, dependendo da É o reconhecimento oficial de que os baixos sa-
localidade, da disciplina que lecionavam ou da situ- lários eram responsáveis diretos não só por perma-
ação funcional de titulares ou substitutos. necerem muitas Aulas sem professores, mas também
Foi esse o caso de José Theodózio da Cunha, na- por não atraírem bons candidatos ao magistério.
tural da Vila de Seia, que se tornou, em1814, profes- Na América Portuguesa há o mesmo problema,
sor substituto do Mestre Régio de Primeiras Letras inclusive para o Rio de Janeiro, capital e depois de
da mesma Vila e seu termo, que pretendia melhorar 1808 sede da Corte portuguesa. A documentação
suas condições de vida e trabalho. Ao seu requeri- demonstra como os ordenados, que deveriam ser
mento anexou um documento fornecido pela Câ- pagos adiantados, a cada quatro meses, sofreram
mara, que atesta “que por ser grande a caristia de atrasos que chegavam a dois anos, mas também esta
Cazas, e de vivendas nesta Villa, muito tenue orde- não era uma situação que atingia todos ao mesmo
nado, que goza o dito Professor, este se faz digno de tempo, havendo os que recebiam em dia e os que
que S.M. o attenda como for servido”¹. não, o que era outra fonte geradora de diferenças
Esse episódio é particularmente interessante (Cardoso, 2002, pp. 252-264).
por dois motivos: o primeiro, confirma essa sepa- A redução do número de bons candidatos à pro-
ração interna que havia entre os docentes. O José fissão foi, sem dúvida, um dos motivos que levaram
Theodózio dividia um ordenado de 60$r com o Vilhena a denunciar a baixa qualidade dos profes-
proprietário da cadeira, que se encontrava doente sores que chegavam ao Brasil:
e sem condições de lecionar, ou seja, recebia 30$r
por ano, ou 6$500r para manter-se por três meses, Não há dúvida que na aluvião de indivíduos, que sem
após os descontos que ele denunciou como ilegais. selecção se enviarão há poucos annos para a Améri-
Eram dois mestres dividindo um baixo vencimento ca revestidos com a capa de mestres, quando nem o
e sem condições dignas de sobreviver: o velho mes- nome de discipullos lhes convinha vierão alguns que
tre régio, que não tinha garantido o privilégio da bem merecião mandallos outra vez servir seus annos,
aposentadoria e o mestre substituto, que esperava a ou para outros empregos semilhantes, privados ou
vacância do cargo para ser promovido. destituídos inteiramente de sciencia, e morigeração,
O segundo motivo, porque chama atenção o a desgraça porem he tal que todos, bons, e maos são
despacho da Junta da Diretoria Geral dos Estudos, avaliados pelo mesmo, são a abominação de todos os

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que se podem arrogar alguma autoridade sobre el- tinham direito ao Privilégio de Homenagem, em
les, renegando-se-lhes toda e qualquer immunidade, razão da nobreza do seu emprego (Cardoso, 2002).
Privilegio ou izenção com que S. Alteza Real os tiver Não resta dúvida que os professores fizeram
condecorado, de forma que com propriedade se lhes valer seu direito, quando necessário. É ilustrativo
pode chamar a corporação dos enteados. o exemplo do Professor Régio de Retórica em Lis-
boa, Adrião dos Santos, que protestou indignado
O professor Vilhena expõe seu sentimento de porque um Juiz do crime expediu contra ele uma
revolta com as autoridades por não selecionarem ordem de prisão, por supostos crimes de defloração
criteriosamente os docentes, por julgar a todos da e aleivosia, “a qual fora indecorozamente executa-
mesma forma, mas também deixa claro a aversão da, preterindo-se toda a atenção, que V.M. manda
que sentia por muitos dos seus colegas de profissão. praticar com as pessoas, que gozam de privilegio de
No entanto, já se vê como membro de uma corpora- Nobreza, como são os Professores”4.
ção, mesmo que a chame dos enteados. O caso foi enviado com incomum rapidez a Sua
É evidente que se os professores não mudavam Majestade pela Real Mesa Censória, que entendeu
de profissão, era porque havia outras razões a se- o professor ter razão na sua reclamação e a situação
rem consideradas. Uma delas era, sem dúvida, o se prolongar já há um mês. E apela para “a utilidade
direito à aposentadoria ativa, concedido pelo de- pública, que resulta da liberdade do Professor para
creto de 3 de setembro de 1759 aos professores de bem exercer o seu magistério”, a qual deveria estar
humanidades, que podiam requisitar uma casa, acima do interesse da queixosa que, no entanto, te-
desde que sem impedimentos legais, para estabe- ria seu direito preservado.
lecerem sua moradia e classe. Lembra ainda a Mesa, que havia um caso idên-
Entretanto, novas cadeiras foram sendo criadas, tico, de um processo de 26 de janeiro de 1764, em
aumentando o universo dos professores régios que que foi beneficiado o Professor de Gramática Latina
não tinham acesso a esse direito, gerando um qua- de Pernambuco Manoel da Silva Coelho, que obte-
dro de insatisfação que não passou despercebido, ve a graça real de ser solto da prisão em que estava
como um documento de 1788 da Real Mesa Cen- demonstrando que mesmo na América Portuguesa
sória comprova, porque reconhece que esse privilé- esse privilégio era exigido5. Aliás, o texto é uma có-
gio também deveria ser estendido a todos os outros pia do processo do professor pernambucano, dando
professores régios, incluindo os das novas discipli- indícios de ter sido esse o pioneiro nesse aspecto.
nas, criadas após a reforma de 1772². Como os privilégios e honras não eram gerais,
Havia ainda o privilégio da nobreza, outorgado concedidos a todos, restava aos que não os tinham
desde o início da reforma, já com o Alvará de 1759, tentar consegui-los. Foi o que fizeram em 1771 os
quando El-rei estabelece que os professores “terão mestres lisboetas Joaquim Manuel de Sequeira e
o privilégio de nobres, incorporados em direito co- José dos Santos Patto, na representação que envia-
mum, e especialmente no Código Título de profes- ram ao rei D. José, onde trataram da situação dos
soribus et medicis”³. estudos, sugeriram medidas para melhorá-los, e
Isto significava ganhar um título de distinção aproveitaram para requererem que Sua Majestade
social e política, que trazia vantagens na ascensão “se digne conceder-lhes a mesma nobreza, e privi-
social, além de garantir certos privilégios, como a légios, que foi servido facultar aos de Gramática la-
isenção de determinados impostos, a possibilidade tina, e que da mesma sorte estes se possam intitular
de ocupar postos destinados à nobreza, a exclusão Professores Régios de Primeiras Letras”. O pleito
de penas infames, ou ainda o privilégio de não ir dos dois mestres foi contemplado no ano seguinte,
para a prisão. Na relação das honras concedidas aos quando a Reforma de 1772 alcançou as Aulas de pri-
súditos, cabia à categoria dos letrados, constituída meiras letras6.
por doutores, licenciados e bacharéis formados, o É importante também observar o que os ocu-
grau de nobreza ordinária, que era o mais baixo. pantes de cargos administrativos, em órgãos liga-
O decreto de 14 de julho de 1775 reforçou essa dis- dos diretamente aos professores, pensavam sobre
tinção, ao estabelecer que os professores régios os mesmos. No primeiro exemplo, temos o aviso de

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3/8/1770, quando Sua Majestade consultou a Real as Aulas no Reino. Desse modo, relata ao soberano
Mesa Censória e pediu parecer sobre o livro A Nova “o grave inconveniente, que a experiência lhe tem
Gramática da Língua Portuguesa, que o Bacharel mostrado seguir-se de serem eleitos os mesmos Pro-
Antonio Joseph dos Reys Lobatto escreveu para a fessores para servirem os Oficios de Juizes, Verea-
instrução da mocidade. No seu parecer, o Deputado dores, Almotacés, e procuradores dos Conselhos,
frei Joaquim de Santa Anna elogiou a iniciativa do que costumam escolher-se para a governança”9.
professor, mas observa que seu uso não poderia ser Sem dúvida, era um sinal de reconhecimento
generalizado, porque: social da profissão a escolha de professores régios
para cargos de destaque da administração pública.
Não julga porém a Mesa que esta se deve ensinar aos No entender da Junta, porém, essa deferência era
Meninos nas Escolas de ler, e escrever, não só por um foco de problemas, não só para o progresso das
defeito de capacidade nos mestres, que pela maior Aulas, mas para os próprios professores. É que eles
parte são pouco hábeis para entenderem a anatomia
da língua por mais clara que se lhes exponha, e para mal podem conciliar este assíduo e laborioso exer-
compreenderem as partes da Gramática, que é feita cício com as obrigações dos Oficios da Governança,
sobre o Plano da latina, por forma que cientificamen- em que são sujeitos a Sessões para escolherem De-
te porfiasse instruir os seus discípulos7. positários da Real Fazenda, a das Correições, Au-
diências, e Varejos, a consultar Assessores, e a fazer
O autor do parecer considera que os professores vistorias, e outros Atos em Juízo e fora dele, os quais
de primeiras letras têm uma limitação intelectual, requerem assistência pessoal.
não estando preparados para ensinar pela referida
Gramática. E nos lembra que ainda nos dias de hoje, Os tais cargos que os professores eram convo-
pelo menos no Brasil, é impossível não notar o pre- cados a exercer não podiam ser recusados, porque
conceito que acompanha o professor primário den- de acordo com o §10 da sobredita Ordenação, “nin-
tro da própria corporação docente. guém he isento de servir estes Empregos da Gover-
Mas havia entre eles certamente alguma solida- nança, salvo havendo Privilegio expresso, que os
riedade, porque essa tendência foi apontada como Professores não tem”. Conseqüentemente,
negativa, no Despacho encaminhado a 6 de Feverei-
ro de 1821, quando a Junta declara confiar mais nas O que tudo os conduz ou a fazer faltas no Ensino
qualificações realizadas pelo seu Comissário, “que com grande detrimento da Educação Publica; ou a
por apurada experiência conhece, que é tão exato, sofrer o abatimento de Réus e Culpados; ou adquirir
e justo, como inteligente, e isento das obsequiosas ódios e inimizades, que os inquietam; e ou finalmen-
contemplações, que os mesmos Professores tem uns te a passar por todos estes inconvenientes juntos, que
com outros nos seus respectivos Discípulos, e com os degradam da reputação e dignidade, que o Magis-
quem os patrocina” 8. tério exige para ser bem desempenhado.
O que o autor desse texto insinua é que haveria
um certo corporativismo entre eles, mesmo incipien- Além desse inconveniente, que a Junta da Dire-
te, ou apenas pontual, e especialmente entre os que toria dos Estudos era instada a resolver, outro mo-
exerciam a profissão particularmente, pelas relações tivo a preocupava: o fato da fiscalização do Serviço
com quem patrocinava seu sustento. É possível tam- dos professores estar a cargo das Câmaras e se “eles
bém se concluir que essa atitude tenha relação com entram nos Oficios desta, fica nula a mesma fisca-
tentativas de congregar os professores, como no caso lização nos anos, em que servem, e nos seguintes
já citado do Montepio Literário. não pode ser exata, visto que admitidos à roda dos
Em outro despacho, de 29 de maio de 1821, a que costumam andar na governança, podem sempre
Junta da Diretoria Geral dos Estudos pretende evi- contar com uma atestação de serviço mais oficiosa
tar “todo e qualquer impedimento, que se oponha do que verdadeira”.
à constante atividade, que os Professores Públicos Essa justificativa é quase uma confissão de que
devem empregar no Ensino”, para não prejudicar havia um esquema de vantagens e favores entre os

sísifo 11 | tereza fachada lev y cardoso | imagens sobre a profissão docente no mundo luso -brasileiro 61
que andavam “na governança”, dos quais eviden- dignamente do seu ofício, o que implicava recebe-
temente os docentes também podiam usufruir, por rem salários pagos em dia e suficientes para o seu
isso a Junta recomenda, “pelos motivos, que ficam sustento e manutenção da casa-escola.
ponderados”, devem os Professores Régios ser ex- Outro ponto a ressaltar é que não havia, em ge-
cluídos das pautas de Eleição, “não por prerrogati- ral, diferenças entre os professores do Reino e da
va, mas sim por incompatibilidade de funções”, e América Portuguesa quanto aos seus direitos ou
que se avise a “todas as Autoridades, que costumam aos problemas que enfrentavam no exercício da
assistir às Eleições dos Oficiais das Câmaras, ou sua profissão, embora não pareça que tivessem essa
confirma-las”, para assim procederem. consciência. No entanto, sendo o Brasil tão extenso,
era muito mais fácil burlar as rígidas determinações
vindas de Lisboa, ou de Coimbra, principalmente
CONCLUSÃO quanto aos professores particulares.
Finalmente, passados 250 anos da criação dos
A forma hierarquizada com que a profissão de pro- professores régios e guardando as devidas ressal-
fessor régio foi estruturada pelo Estado absolutista vas quanto a momentos históricos tão diferentes, é
comportava muita desigualdade, em todos os níveis, impossível ignorar ou não considerar reveladora a
que os professores reconheciam, tanto que busca- notícia veiculada pelo jornal A Folha de São Paulo,
vam mudar sua situação recorrendo à mercê do so- de 09 de junho de 2008, que tem o seguinte título:
berano. Eram comuns os requerimentos pedindo “Carreira de professor atrai menos preparados”. A
equiparação salarial com algum outro professor, ou reportagem apresenta um levantamento encomen-
alguma outra localidade com vencimentos maiores, dado pela Fundação Lemann e pelo Instituto Futuro
o que nem sempre era concedido. Brasil, com base nos questionários do Exame Na-
Embora as imagens sobre o seu ofício fossem cional de Desempenho dos Estudantes (ENADE),
variadas, desde o pessimismo e desencanto de Vi- onde apenas 5% dos melhores alunos formados no
lhena até o orgulho em participar e contribuir de ensino médio querem atuar como docentes do en-
um Reys Lobatto, em todos os documentos consul- sino básico. Baixo retorno financeiro e desprestígio
tados observou-se que os professores régios tinham social da carreira docente foram citados entre os
uma consciência profissional, se percebiam como principais fatores para essa rejeição. De acordo ain-
exercendo uma atividade altamente relevante, útil da com esse estudo, o Brasil atrai para o magistério
ao Estado, ao Rei, à pátria. Em comum, encontra- básico os profissionais que possuem mais dificulda-
mos nos seus discursos um desejo de sobreviver des acadêmicas e sociais.

62 sísifo 11 | tereza fachada lev y cardoso | imagens sobre a profissão docente no mundo luso -brasileiro
Notas Folha de São Paulo (2008). Carreira de professor
atrai menos preparados. Consultado em junho
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9. A.N.T.T., Consultas da Junta da Diretoria jeto da investigação educacional? In A. Nóvoa
Geral dos Estudos: mç 1001. (org.), Vidas de Professores. Porto: Porto Editora,
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sísifo 11 | tereza fachada lev y cardoso | imagens sobre a profissão docente no mundo luso -brasileiro 63
64 sísifo 11 | tereza fachada lev y cardoso | imagens sobre a profissão docente no mundo luso -brasileiro
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

O professor “operário” e “apóstolo”: Contributos


para a história da profissão docente em contexto
colonial durante a I República (1910-1926)
Ana Isabel Madeira
ana.madeira@puc-rio.br
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio, Brasil

Resumo:
O texto aborda a questão da formação docente em contexto colonial sublinhando a ambi-
guidade dos discursos republicanos que defendiam, num contexto de laicização do ensino,
a sacralização do ofício docente nas colónias. Tratando-se de uma questão pouco explorada
na historiografia da educação portuguesa defende-se que as iniciativas republicanas empre-
endidas na organização da instrução pública em Moçambique, comparando os discursos
com as realizações, não produziram resultados substancialmente diferentes daqueles que
vinham sendo alcançados desde o final da Monarquia. Contudo, os governadores republica-
nos modificaram profundamente o estatuto profissional dos professores primários coloniais,
sobretudo no plano da sua consagração como profissionais equiparados aos docentes me-
tropolitanos assim como na importância atribuída aos professores na cruzada pela civilização
do indígena. Identificam-se ainda algumas linhas de continuidade entre os discursos sobre a
formação de professores durante a I República e o início do Estado Novo, em particular na
definição de um currículo de habilitação adaptado à sua função ultramarina.

Palavras-chave:
História da educação colonial, Educação comparada, Formação de professores, Lusofonia.

Madeira, Ana Isabel (2010). O professor “operário” e “apóstolo”: Contributos para a história da
profissão docente em contexto colonial durante a I República (1910-1926). Sísifo. Revista de Ciências
da Educação, 11, pp. 65-74.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

65
A ESCOLA REPUBLICANA Sociedade de Instrução e Beneficência 1º de Janei-
E A INSTRUÇÃO PÚBLICA ro, uma instituição que abrira a primeira escola par-
EM MOÇAMBIQUE ticular na cidade de Lourenço Marques, em 1898, e
que era frequentada por crianças e jovens de ambos
No dia 8 de Outubro de 1910, o Governador-Geral os sexos, filhos de membros da Maçonaria (Neves,
de Moçambique, Freire de Andrade, informava ter 2001). Porém, quando é nomeado inspector, Norte
sido proclamada a República em Lourenço Mar- constata que, uma década após a implantação da
ques; e no dia 9, o Governador Alberto Celestino República, está quase tudo por fazer pela causa da
Pinto Basto, na qualidade de representante da so- instrução. Este facto terá contribuído para a mode-
berania nacional, proclamava solenemente a Repú- ração do seu discurso e para se centrar na tarefa “in-
blica Portuguesa. Se, na metrópole a regeneração dispensável e urgente” de “desenvolver a instrução
nacional passava pela substituição da Monarquia primária na província”: organizar os serviços e os
constitucional pela República laica o que, implici- registos da secretaria da Instrução Pública; recen-
tamente, acarretava a destruição do poder da Igreja sear os alunos e as escolas públicas e privadas; criar
em todos os aspectos da vida social, em Moçambi- escolas primárias; fiscalizar o funcionamento das
que, a regeneração colonial, o nacionalismo patrió- que existiam; imprimir outro sentido aos programas
tico e o projecto colonial, estavam profundamente de ensino; melhorar a formação dos professores,
articulados com a função nacionalizadora que de- etc. O relatório que fez publicar no ano imediato à
veria ser desempenhada pelas missões portuguesas. sua tomada de posse expunha um conjunto de con-
O acolhimento em Moçambique da Lei de Sepa- cepções acerca da reorganização do ensino colonial,
ração de 1911, sentido em Moçambique a partir de fonte que constitui um dos raros documentos sobre
1913, não foi consensual e suscitou reacções con- a ideologia pedagógica republicana em Moçambi-
traditórias entre a elite governativa local (Madeira, que até aos finais dos anos 30¹.
2007, pp. 378-387). Em última análise a Lei de Se- É necessário lembrar que, entre a reforma de 1911
paração terá mesmo colocado em causa a proclama e 1919, data em que o inspector redigiu o relatório
da cruzada republicana pela nacionalização e pela da inspecção, se viveu um período de enorme insta-
instrução dos indígenas. bilidade política e de crise financeira, agravada pela
Solipa Norte terá eventualmente tido em con- participação de Portugal nos últimos anos da Gran-
sideração este labirinto de posições contraditórias de Guerra (1916-1918) vivida intensamente em Mo-
como um aviso sério à sua actuação quando foi no- çambique dada a vizinhança com a colónia alemã de
meado Inspector da Instrução Primária na Provín- Tanganika. Se, por um lado, a entrada na Guerra ao
cia, em 1919. O inspector tinha estado à frente da lado dos aliados, garantia a participação de Portugal

66 sísifo 11 | ana isabel madeir a | o professor “oper ário” e “apóstolo”: contributos par a a história…
nas negociações de paz e a afirmação diplomática do Moçambique — se utilizou a representação simbólica
novo regime, por outro, as dificuldades financeiras para construir uma “nova” identidade colectiva as-
iriam enfraquecer as estruturas do Estado e fragili- sente no culto da Pátria (Pintassilgo, 1998). De facto,
zar o seu funcionamento². Por essa razão, a situação ela constituiu, no pós-Guerra, a pedra de toque da
a que se chegara reclamava lançar “as bases duma filosofia e da pedagogia educativa colonial até 1926.
grande obra de nacionalização e progresso”, sendo A outra trave-mestra da política educativa colo-
necessário, para tanto, definir uma estratégia ajus- nial assentou, até aos finais da I República, na cria-
tada às condições particulares da província. Não é ção de um sistema organizado segundo as leis em
pois de estranhar que, chegados a esta fase, existis- vigor e à imagem do conceito de Escola na metró-
se outra consciência do vazio criado pelos excessos pole. As primeiras tentativas iniciais nesse sentido
republicanos no plano da perseguição religiosa ao começaram por reorganizar os serviços de instru-
nível da província, com consequências pesadas so- ção pública na colónia, ainda no governo de Álvaro
bre o processo de nacionalização e civilização das Xavier de Castro, seguidas de uma política de uni-
populações. Esta razão contribuiu para justificar formização das disposições em vigor no continente
um reforço do investimento do Estado no sentido com as da província, quer em termos curriculares,
de compensar a oferta que tinha ajudado a desman- quer no domínio organizativo — regime de funcio-
telar. O regresso à pedagogia da “educação pelo tra- namento das escolas, provimento dos lugares de
balho”, à defesa de uma educação eminentemente professores de instrução primária, direcção, admi-
cívica e profissionalizante, de carácter prático e ade- nistração e fiscalização dos serviços de ensino, etc.
quada às realidades locais ganhava, assim, um novo Esta opção, que contrariava a tendência dos gover-
élan no discurso educativo colonial. Esta tomada de nos liberais na defesa de um ensino “adaptado” às
consciência terá contribuído para fazer deslocar a populações e às circunstâncias coloniais, também
propaganda republicana do combate pela laicização não coincidia com a tendência descentralizadora
do ensino, retórica adoptada no início da década, através da qual a República procurava conceder,
para outro discurso, centrado na transformação do pelo menos do ponto de vista administrativo e fi-
conteúdo dos programas escolares e, sobretudo, nanceiro, maior autonomia aos governadores locais,
para a importância do professor na cruzada pela ci- política que atingiu efectivamente o seu auge du-
vilização do indígena. A ênfase atribuída à educação rante o regime dos alto-comissariados. De facto, a
moral e cívica iria, a partir de então, apostar na cons- deriva da “uniformização” e da “harmonização” da
trução de uma identificação forte com a Pátria e com instrução pública iniciada com o governo de Álvaro
a República, com os seus símbolos e heróis, procu- de Castro (Outubro 1915/Maio de 1918), percorreu
rando, ao mesmo tempo, manter acesa a chama da os dois governos de Manuel Moreira da Fonseca
ameaça à soberania: “A Escola” necessitava levantar, (Governador interino entre Abril 1919/Março 1921
através dos seus programas “a figura majestosa da e Setembro de 1923/Novembro de 1924), o dos
Pátria Portuguesa, aureolada pelo sol da liberdade alto-comissários Brito Camacho (Março 1921/Se-
e pela chama criadora e honesta da democracia e da tembro 1923) e Hugo de Azevedo Coutinho (que
República” (Norte, 1920, p. 73). dirigiu a colónia entre Novembro de 1924 e Maio de
De notar que a combinação da instrução com a 1926), consolidando-se, já no Estado Novo, com o
educação cívica e moral apontavam claramente para Governador-Geral Ricardo Pereira Cabral (Novem-
uma aposta estratégica na exploração, em toda a sua bro de 1926/Abril de 1938).
amplitude, da adesão dos africanos a manifestações
rituais. É facto que não se tratou de uma estratégia
exclusivamente seguida em Moçambique, sendo O PROFESSOR “OPERÁRIO”
amplamente conhecida a importância dos cultos cí- E “APÓSTOLO”
vicos na escola primária portuguesa. O que me pa-
rece interessante sublinhar, concordando com o que Sabe-se o compromisso que o regime republicano
Joaquim Pintassilgo designou como a “religiosidade estabeleceu com os professores no sentido de alte-
cívica republicana”, foi o modo como — também em rar o seu estatuto profissional e a sua imagem social

sísifo 11 | ana isabel madeir a | o professor “oper ário” e “apóstolo”: contributos par a a história… 67
(Adão, 1984; Fernandes, 1994; Nóvoa, 1987, 1988). central do professor primário na transformação da
Em Moçambique, este combate teve, pela mão do instrução nas escolas públicas da província. O ins-
inspector da Instrução Pública, repercussões sig- pector era particularmente crítico do tipo de esco-
nificativas acarretando uma melhoria efectiva das la e dos métodos de ensino utilizados nas escolas
condições de exercício da profissão docente. Nor- da colónia, considerando que essas deficiências se
te considerava que os professores tinham um papel deviam, principalmente, à falta de habilitações dos
central na civilização e nacionalização dos indígenas, professores primários. Por essa razão, os programas
protagonismo que o levava a classificá-los como uma eram “impraticáveis, devido à falta de posse plena
força simultaneamente de “operários” e “apóstolos”. do objecto de ensino da parte de mais de 80 por
“Aos professores só há uma coisa a dizer”, escrevia o cento dos agentes educadores da província” já que
inspector: “(…) a vossa vida precisa ser um espelho as escolas estavam “cheias de professores interinos”
cristalino onde se reflictam e donde irradiem todas (Norte, 1920, pp. 11 e 17). A constatação não vinha
as virtudes possíveis e imagináveis. Instruí, mas edu- apenas do inspector. Já depois da sua destituição,
cai — educai principalmente” (Norte, 1920, p.  74). Brito Camacho confirmava que a falta de professo-
De facto, a intervenção republicana acarretou res diplomados na província obrigara o governo a
uma alteração importante para os professores e pro- recorrer a professores interinos, sem habilitação le-
fessoras primárias na colónia, cujas condições de gal, para prover o quadro de várias escolas no distri-
trabalho, regalias e vencimentos eram muito dife- to de Lourenço Marques9. Se isto sucedia na capital
rentes das dos professores da metrópole. A requali- da província não será difícil imaginar o que seria o
ficação começou por equiparar os vencimentos dos cenário fora da região mais urbanizada da colónia.
professores das escolas oficiais (1250$00 anuais), aos
das escolas municipais e das edilidades com rega-
lias, direitos e deveres iguais³. Atribuiu-lhes depois, O PROJECTO REPUBLICANO
o governo da província, subsídios de transporte de PARA A CONSTRUÇÃO DO ENSINO
1ª classe, equiparando-os ao que era atribuído aos NORMAL COLONIAL
missionários religiosos4. Os serviços prestados pe-
los professores e professoras passaram a ser objecto Foi, sem dúvida, a preocupação com a qualidade
de qualificação5, sendo essa classificação importan- do serviço docente nas escolas do interior que le-
te para as permutas de lugares entre escolas6 e para o vou Solipa Norte a elaborar o primeiro projecto
provimento dos lugares de professorado na colónia; de criação de uma escola para habilitação para o
os concursos passaram a dar preferência aos profes- magistério primário¹0. Nessa proposta, o inspector
sores de ambos os sexos, naturais ou residentes em defendia que a formação para o ensino primário de-
Moçambique, e àqueles que tivessem mais tempo de veria ser dada na colónia e não na metrópole, opi-
serviço na colónia7; as professoras parturientes pas- nião que muitos governadores e eclesiásticos tinham
saram a dispor das mesmas regalias das suas colegas já manifestado, desde finais do século XIX, e que
na metrópole, podendo ser dispensadas dos servi- só encontrará realização plena já no Estado Novo.
ços escolares durante dois meses, antes e depois do Nesse estabelecimento Solipa Norte pretendia for-
parto, sem perder os vencimentos e subsídios a que mar o “professor-operário-agricultor-enfermeiro”
tinham direito8, etc. tendo por objectivo chamar à escola os alunos do
Estas disposições em muito se ficaram a dever à interior, “profundamente conhecedores dos meios
intervenção de Solipa Norte cujo mandato permitiu mais atrasados e da psicologia e da língua das suas
igualmente pôr de pé um conjunto de dispositivos populações”, para depois os devolver às origens
de controlo destinados a fiscalizar e a regularizar constituídos numa força de “professores-operários,
a actividade dos professores nas escolas primárias encarregues de tratar do corpo e do espírito de uma
da província. Enquanto elemento da classe docen- raça valorosa”. Só assim se conseguiria dotar a pro-
te, Norte era particularmente sensível à questão do víncia de “um importante instrumento de progresso,
estatuto profissional, como também o era relativa- (…) organizar a escola prática, a escola sã, a escola
mente à qualidade do ensino, insistindo no papel do futuro, a escola metodicamente ordenada desde

68 sísifo 11 | ana isabel madeir a | o professor “oper ário” e “apóstolo”: contributos par a a história…
a sua escrita à execução dos seus programas” (Nor- sido seguida em Moçambique, mas as referências à
te, 1920, p. 17). Foi, de resto, esta a filosofia que sus- sua aplicação são praticamente nulas. Quanto à refor-
tentou a constituição das escolas de habilitação de ma de 1919, que conservou grande parte do articu-
professores indígenas promovidas pelo Governador- lado anterior, foi promulgada na província em 1920,
-Geral José Cabral, alguns anos mais tarde. pelo Governador interino Manuel Moreira da Fon-
Mas a sua aposta na qualificação e na fiscaliza- seca¹². A grande novidade desta reforma foi, como
ção do serviço docente não se bastou em projectos se sabe, o alargamento da obrigatoriedade escolar,
e discursos normativos. Numa circular enviada a que passou de três para cinco anos (entre os 7 e os
todas as escolas da província a propósito das passa- 12 anos de idade), passando a designar-se “ensino
gens de classe dos alunos da escola primária, Solipa primário geral”. Tudo leva a crer que algumas dispo-
Norte tentou incutir nos professores uma consciên- sições incluídas na reforma de 1911 só tivessem sido
cia patriótica responsabilizando-os pela confiança introduzidas em Moçambique em 1920 uma vez que
que neles depositava o Estado¹¹. A circular fazia-se a adopção do regime coeducativo obrigou à criação
acompanhar de uma ordem de serviço, pela qual de novas escolas, com novas designações, e à fusão de
a secretaria do Conselho Inspector da Instrução algumas das existentes¹³. Contudo, na aplicação do
Pública “obrigava” a que os exames dos alunos se decreto nº 6137, de 29 de Setembro de 1919, à coló-
verificassem em todas as matérias dos respectivos nia de Moçambique a obrigatoriedade escolar ficou
programas (e não apenas na leitura, na escrita e nas indefinida, referindo-se apenas que começaria aos 7
contas) incluindo desenho, caligrafia, trabalhos ma- anos e terminaria com a obtenção do diploma de es-
nuais, música, canto coral, higiene individual e edu- tudos da escola primária, consistindo isto em “fazer
cação física, e que as provas de caligrafia, desenho apresentar as crianças à matrícula nas escolas oficiais
e trabalhos manuais fossem enviadas, juntamente ou particulares e em fazer com que estas as frequen-
com as restantes provas escritas, à secretaria da ins- tassem regularmente”¹4. Esta indefinição, conjugada
pecção. Não fora as reacções a esta ordem de serviço com a falta de escolas de ensino público primário e
e pouco se saberia sobre o mau funcionamento das as distâncias que havia a vencer para frequentar as
escolas na província. De resto, situação que o ins- escolas situadas nas localidades principais, não tor-
pector tivera ocasião de constatar, pelos seus pró- nava credíveis taxas de frequência muito elevadas. De
prios olhos, durante as inspecções que efectuara: novo, é o relatório da inspecção que possibilita traçar
o pano de fundo da obrigatoriedade escolar, aferida
Nas visitas que fiz às escolas, encontrei, em algumas, pelo número de alunos apresentados a exame do 1º e
vinte minutos depois da hora de abertura, os alunos 2º grau das escolas da província, em 1919¹5.
jogando à pedrada na rua, outros subindo às árvo- Sabe-se que, nesta data, o parque escolar estava
res, e os professores em amena cavaqueira; e no dia reduzido a 74 escolas públicas (do Estado, munici-
30, por ocasião da visita sanitária, encontrámos aulas pais e das edilidades), a 71 escolas missionárias e a
sem professores e sem alunos. (…) Quando se pro- 8 particulares (Norte, 1920, p. 66). Recorde-se que,
curaram alguns professores, nas suas próprias esco- nestas escolas, 70% do corpo docente era formado
las, depois de devidamente avisados, não se encon- por missionários católicos portugueses e estrangei-
traram (Norte, 1920, pp. 9-10). ros e uma terça parte apenas por professores nacio-
nais legalmente habilitados (Norte, 1920, p. 13). Na
totalidade, tinham-se apresentado a exame, oriun-
A HARMONIZAÇÃO CURRICULAR dos de toda a província, 260 alunos (202 de Louren-
ço Marques; 32 de Inhambane; 10 de Quelimane;
As reformas da instrução pública primária durante a 8 de Tete; 5 de Gaza e 3 de Moçambique). Destes,
República assentaram, essencialmente, na tentativa apenas tinham sido apurados 178. Menos de duas
de uniformizar e harmonizar a escola colonial com as centenas de alunos, na esmagadora maioria formada
disposições em vigor na metrópole. As reformas dos por brancos e mestiços, para uma população esti-
programas de ensino não fugiram à regra. A refor- mada, em 1921, em 1,5 milhões de europeus e 5, 5
ma do ensino primário de 1911 terá, eventualmente, milhões de indígenas¹6.

sísifo 11 | ana isabel madeir a | o professor “oper ário” e “apóstolo”: contributos par a a história… 69
MANUAIS ESCOLARES Editados pela Livraria Figueirinhas; e de História —
por Chagas Franco (Norte, 1920, p. 68).
A percentagem baixíssima de alunos propostos
a exame tinha por contraponto elevadas taxas de Duas breves observações sobre esta listagem
aprovação nos exames de instrução primária. Quer para sublinhar, de permeio com a inexactidão de
isto dizer que os professores só arriscavam sujeitar algumas referências, a adopção de uma combina-
às provas de exame os alunos que considerassem ção de livros que vinham já sendo utilizados desde
devidamente preparados e que lhes garantissem, a Monarquia e que atravessam as recomendações
segundo o que havia sido estipulado para efeitos de para a instrução primária de acordo com as refor-
qualificação, uma boa folha de serviços¹7. Esta não mas de 1911 e 1919. De facto, ao basear-se nos conte-
era todavia a única explicação, nem para a percen- údos curriculares que eram utilizados na metrópole,
tagem de alunos propostos, nem para a de alunos sem qualquer relação com a realidade cultural e so-
aprovados nos exames de instrução primária. Das cial da colónia, compreende-se a relutância de sub-
escolas paroquiais ou das edilidades, frequenta- meter a exame alunos que raramente tinham tido
das na sua maioria por alunos indígenas, poucos acesso a qualquer destes materiais. No entender
ou nenhuns professores ousavam submeter os alu- do inspector Solipa Norte, este desajuste acumu-
nos a exame de 1º ou 2º grau. Muitos professores lava com dificuldades pedagógicas e de aprendiza-
consideravam os programas e os manuais de en- gem dificilmente superáveis no curto prazo (Norte,
sino “exigentíssimos” e desajustados da realidade 1920, p. 9). Assim, no plano curricular, e apesar da
das escolas da Província. De facto, a adopção dos propaganda republicana tentar construir um novo
manuais de ensino em Moçambique estava ainda imaginário fazendo apelo a um conjunto de factos,
dependente do decreto monárquico de 12-6-1907 símbolos e heróis nacionais-coloniais, os conteúdos
(B. O. nº 32, de 1907), do governo de Freire de An- dos manuais escolares metropolitanos pouco ti-
drade, estipulando a utilização dos compêndios nham a ver com a vida dos africanos ou mesmo dos
utilizados nas escolas primárias e normais da me- filhos dos colonos e dos mestiços que frequentavam
trópole. Apesar da reforma do ensino primário de as escolas de Moçambique. Nesse campo, as únicas
1911 ter estipulado novos manuais, só em 1920, pela estratégias que tinham por objecto ligar a história da
Portaria nº 1527, o Governador-Geral interino Ma- colónia e as experiências dos alunos às aprendiza-
nuel Moreira da Fonseca considerava vigorarem, gens escolares operavam preferencialmente por in-
nas escolas do ensino primário geral, os manuais termédio de actividades extra-escolares (através das
de ensino aprovados pelo Decreto nº 6203, de 7 de festividades e comemorações) e menos através dos
Novembro, de 1919. conteúdos ensinados na sala de aula. No cômputo
Quanto a livros de leitura, adoptava-se, para a 1ª global, a escola primária registava um conjunto de
classe a Cartilha Maternal de João de Deus, e para a dificuldades, que não tinham unicamente a ver com
2ª, 3ª e 4ª classes o Livro de Leitura de João da Câ- questões pedagógicas ou dependentes da qualidade
mara, M. de Azevedo e Raul Brandão. Para as res- do serviço docente, mas com razões socioculturais
tantes disciplinas a lista de livros adoptados incluía: e com a própria cultura escolar da instrução pública
em Moçambique. As condições de funcionamento
História — Chagas Franco; Agricultura — Mota Pre- das escolas, os edifícios escolares, a falta de condi-
go; Educação Cívica e Ciências Naturais — A. A. ções de higiene e de salubridade de alguns estabe-
Barros de Almeida; Desenho — J. V. Freitas e Antu- lecimentos, acusavam décadas de negligência e de
nes Amor; Aritmética, Sistema Métrico e Geometria incapacidade em acertar uma estratégia de política
— Ulisses Machado; Gramática — Ulisses Machado, pública de ensino, descobrindo uma realidade, em
Albino Pereira Magno e Relvas; Corografia — Almei- bom rigor, diametralmente oposta às intenções mais
da de Eça; Cadernos de problemas — Ulisses Macha- generosas do discurso político e pedagógico repu-
do; Cadernos caligráficos — Escrita direita, Lopes do blicano acerca da nova igreja cívica do povo.
Amaral; e os Mapas de Portugal — Nunes Júnior; Das
Colónias — Ligorne; De Zoologia e Agricultura —

70 sísifo 11 | ana isabel madeir a | o professor “oper ário” e “apóstolo”: contributos par a a história…
NOTAS FINAIS A preparação destes professores indígenas ti-
nha sido feita nas escolas missionárias, portuguesas
Somos levados a concluir que a instituição da Re- e estrangeiras, mas a sua função não se encontrava
pública em Moçambique não terá trazido, no plano regulamentada nem era reconhecida pelo Estado.
da concretização dos discursos educativos e peda- Entretanto, os professores missionários, que conti-
gógicos, uma modificação substancial no plano do nuavam a assegurar o serviço docente das escolas
investimento na instrução pública relativamente ao “públicas”, faziam-no a expensas das gratificações
período monárquico. Se tivermos em conta que a que a administração local entendia providenciar
diminuição de escolas de ensino primário público pelo serviço prestado, à margem da lei, até a sua ac-
se ficou a dever, em parte, ao regime de coeducação e tividade ter sido formalmente regularizada pelo Es-
à contracção num único estabelecimento de ensino tatuto Missionário, em 1941. A situação era caótica
da oferta pública do Estado, teríamos a manutenção e o resultado desta política ao nível da oferta de en-
do mesmo padrão que havíamos verificado durante sino primário foi profundo: não apenas diminuiu o
a vigência da Monarquia. Efectivamente, o que se número de escolas, como se alterou profundamente
verifica é que, entre 1909 e 1919, apenas se puderam a composição do corpo docente e, sem dúvida, essa
contabilizar mais dez estabelecimentos de ensino transformação teve repercussões ao nível da quali-
primário “oficial”, estabelecendo uma continuidade dade do ensino, reflectindo-se no número de alunos
com o ritmo de crescimento que se tinha verifica- apresentados a exame e na percentagem das passa-
do já durante as últimas décadas da Monarquia. Se gens de classe. Se acrescentarmos a este quadro a
considerarmos que este movimento conviveu com o diminuição para cerca de metade, em relação aos
cancelamento dos subsídios às escolas privadas, das dados de 1909, do número de escolas das missões
missões religiosas, e com o seu substancial decrés- sob a direcção do pessoal missionário católico por-
cimo, pelo menos até ao pós-Guerra, teremos uma tuguês, o retrato da oferta pública de ensino primá-
imagem mais fiável da quebra da oferta de escolari- rio completa-se, acumulando com a crise financeira
zação “nacional” entre 1910 e 1919. e política do pós-Guerra.
Se não, vejamos. A primeira fase da República, Por outro lado, como tivemos ocasião de de-
entre 1910 e 1919, é um período caracterizado pela monstrar noutro trabalho (Madeira, 2008), a cria-
tentativa de laicização do ensino, resultando num ção das missões civilizadoras laicas não conseguiu
abrandamento do número de escolas de instrução compensar o decréscimo das escolas missionárias
primária que eram asseguradas tanto pela prelazia católicas, cifrando-se, ao fim e ao cabo, num investi-
(padres seculares e missionários das missões cató- mento que não teve, do ponto de vista da educação
licas portuguesas), como directamente pelo Estado e da instrução do indígena, expressão digna de nota.
(escolas oficiais, dos municípios, e das edilida- O número de escolas públicas chegou a diminuir re-
des)¹8. A comparação da composição do pessoal lativamente a 1915, apesar de se notar uma lenta re-
docente (directores, regentes e professores) em cuperação do número de escolas asseguradas pelas
1908 e em 1916¹9 mostra que, em 1908, à excepção missões, que passou de 34 (em 1915), para 46 (em
da Escola distrital do sexo masculino e da Escola 1919). Entretanto, a década de 1920-30 assinala uma
1º de Janeiro, em Lourenço Marques, e da Escola tendência evolutiva que irá consolidar-se nos anos
para praças indígenas de Ibo (no Niassa), todas as 40 e 50: o desinvestimento progressivo no ensino
restantes eram regidas por párocos, irmãs ou mis- público sob a administração directa do Estado e a
sionários das missões católicas portuguesas. Em entrega do ensino primário elementar e, sobretudo,
1916, a situação é totalmente diversa, senão mesmo rudimentar à Igreja católica portuguesa (quer aos
inversa, à de 1908: o ensino nas escolas da edili- sacerdotes designados pela prelazia, quer às mis-
dade, à falta de professores legalmente habilitados, sões nacionais).
passou a ser assegurado por professores indígenas; Efectivamente, para o melhor e para o pior, a data
das 86 escolas de instrução pública “oficial”, ape- de 1926 assinala uma etapa decisiva para a história
nas 20 estavam sob a regência de párocos subsidia- da educação colonial em Moçambique. No plano do
dos pela prelazia. governo local, a portaria nº 312, do Alto-Comissário

sísifo 11 | ana isabel madeir a | o professor “oper ário” e “apóstolo”: contributos par a a história… 71
Hugo de Azevedo Coutinho (1924-26), ao criar for- A estratégia era, para todos os efeitos, bastante
malmente a escola de Habilitação de Professores clara. Definia-se um tipo de ensino bem caracteri-
Indígenas e a Escola Distrital de Artes e Ofícios, dá zado para os africanos, um ensino aliviado da car-
início, já no final da I República, a uma política de ga literária dos programas destinados à população
educação centrada no ensino indígena na colónia. “civilizada”, merecendo a introdução oportuna das
Mas é com o diploma legislativo nº 238, promulgado práticas oficinais, agrícolas e do serviço doméstico
pelo Governador-Geral José Ricardo Pereira Cabral como uma espécie de instrução primária para uso
(1926-1938), que aprovava a organização do ensino próprio. A aposta era globalmente restritiva, já que a
indígena na Colónia de Moçambique, que se en- uniformização do ensino, tanto no que dizia respeito
tra, em definitivo numa fase destinada ao ensino de aos programas como aos diplomas atribuídos, con-
massas. A Portaria nº 1044 de 18 de Janeiro de 1930, sagrava a unidade progressiva dos princípios relacio-
completava o desenho da organização do ensino nados com o plano educativo nacional, circunstância
indígena, regulamentando o ensino normal. A sua que excluía a maioria negra da população. Cumpre
finalidade consistia na preparação de professores fazer notar que a segmentação da oferta de ensino
para ministrar o ensino primário rudimentar, tanto em duas vias, uma literária, a outra prática e profis-
nas escolas oficiais como nas particulares, incluindo sionalizante, se preparou durante a República para se
as das missões religiosas nacionais ou estrangeiras. concretizar na política educativa do Estado Novo²0.

72 sísifo 11 | ana isabel madeir a | o professor “oper ário” e “apóstolo”: contributos par a a história…
Notas Referências bibliográficas

1. O cargo de inspector de instrução primária Adão, Áurea (1984). O Estatuto sócio-profissional do


foi extinto pelo decreto nº 23, B.O. nº 18, de 1921, professor primário em Portugal (1901-1951). Oei-
um ano após a publicação do relatório de S. Norte. ras: Fundação Calouste Gulbenkian — Instituto
A actividade de inspecção só foi retomada em 1928 Gulbenkian de Ciência.
(Diploma legislativo nº 80, B.O. nº 29, de 1928). Fernandes, Rogério (1994). Os caminhos do abc. So-
2. Veja-se, sobre este assunto, as considerações ciedade portuguesa e ensino das primeiras letras.
acerca da debilidade do acervo estatístico até mea- Porto: Porto Editora.
dos dos anos 40 do século XX e a identificação das Madeira, Ana Isabel (2007). Ler, Escrever e Orar:
fontes utilizadas para este estudo (Madeira, 2007, Uma análise histórica e comparada dos discur-
pp. 373-377). sos sobre a educação, o ensino e a escola em Mo-
3. Portaria nº 1194, de 31 de Maio de 1919. çambique, 1850-1950. Tese de Doutoramento em
4. Portaria nº 1222, de 14 de Junho de 1919. Ciências da Educação (Educação Comparada).
5. Portaria nº 1401, de 17 de Janeiro de 1920. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Edu-
6. Portaria nº 1689, de 30 Outubro de 1920. cação da Universidade de Lisboa.
7. Portaria nº 23, de 14 de Maio de 1921. Madeira, Ana Isabel (2008). As Missões Laicas Re-
8. Portaria nº 1669, de 9 de Outubro de 1920. publicanas: História de um equívoco em diálogo
9. Portaria nº 23, 14 de Maio de 1921. epistolar. Actas do VII Congresso Luso-Brasileiro
10. A extinção, em Janeiro de 1921, da Inspecção de História da Educação. Porto: Faculdade de
da Instrução Primária ditou o afastamento do pro- Psicologia e de Ciências da Educação da Univer-
fessor e fez cair o projecto no esquecimento (Norte, sidade do Porto, Junho. Consultado em Janeiro
1920). de 2009 em http://web.letras.up.pt/7clbheporto/
11. AHM. Fundo Administração Civil Instru- trabalhos_finais/eixo8/IH967.pdf.
ção e Cultos, Cx. 15 [26/10/1920 — Circular nº 389, Neves, Olga Iglésias (2001). Moçambique. In Joel
da Secretaria do Conselho Inspector da Instrução Serrão & A. H. Oliveira Marques (dirs.), Nova
Pública e da Inspecção Primária da Província de História da Expansão Portuguesa. Vol XI —
Moçambique]. O Império Africano, 1890-1930. Lisboa: Edito-
12. Portaria nº 1527, de 5 de Junho de 1920. rial Estampa, p. 564.
13. Artº 11, Portaria nº 1527, de 5 de Junho de 1920. Norte, Solipa (1920). Relatório do Inspector da Ins-
14. Artº 3, Portaria nº 1527, de 5 de Junho de 1920. trução Primária da Província de Moçambique.
15. Cf. Madeira (2007), em especial Anexos Lourenço Marques: Imprensa Nacional.
XXXIII a XXXVII. Nóvoa, António (1987). Le temps des professeurs.
16. Boletim Económico e Estatístico, nº 6, Série Analyse sócio-historique de la profession enseig-
Especial (1929, p. 15). nante au Portugal (XVIII-XX). 2 volumes. Lisboa:
17. Portaria nº 1401 de 17 de Janeiro de 1920. Instituto Nacional de Investigação Científica.
18. Ver Madeira (2007, pp. 528-577). Nóvoa, António (1988). A República e a Escola:
19. Ver Madeira (2007), Anexos XXIII e XXXIX. das intenções generosas ao desengano das re-
20. Já em 1924, o inspector da Instrução Pública, alidades. Revista Portuguesa de Educação, 1, 3,
Mário Teixeira Malheiros, defendia inequivoca- pp. 29-60.
mente esta opção. Cf. Boletim Económico e Estatís- Pintassilgo, Joaquim (1998). República e Forma-
tico, nº 5, Série Especial (1928, p. 88). ção de Cidadãos: a educação cívica nas escolas
primárias da primeira república portuguesa.
Lisboa: Edições Colibri.

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

(In)Sucessos da Escola Normal da Corte:


Dos relatos oficiais às crônicas estudantis (1880-1881)
Sonia de Castro Lopes
sm.lopes@globo.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, Brasil

Resumo:
Este artigo¹ procura recuperar a história do primeiro núcleo escolarizado para formar
professores na cidade do Rio de Janeiro: a Escola Normal da Corte (1880-1889). Busca-se
aqui focalizar o momento da criação e o início das atividades dessa escola (1880-1881) por
meio das notícias veiculadas no jornal estudantil Pharol. Por entender que a maioria das
pesquisas sobre essa temática tem concentrado suas análises prioritariamente sobre os re-
gistros oficiais, este trabalho propõe deslocar o foco de análise para o pólo receptor dessas
iniciativas, procurando entender de que forma as estratégias de ação do poder instituído
eram apropriadas por seus destinatários — os alunos normalistas. Inferiu-se, pelo cruza-
mento das fontes que houve resistência dos estudantes à cultura escolar que se impunha
como estratégia do Estado para promover a instrução do povo e superar a situação de
atraso do país.

Palavras-chave:
Profissão docente, Formação de professores, Escola Normal da Corte, Jornal Pharol.

Lopes, Sonia de Castro (2010). (In) Sucessos da Escola Normal da Corte: Dos relatos oficiais às crô-
nicas estudantis (1880-1881). Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 75-84.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

75
O processo de modernização que caracterizou o vem despertando o interesse de pesquisadores que
Brasil no último quartel do século XIX demandou se dedicam a investigar instituições de ensino des-
esforços no sentido de se construir uma nação civi- tinadas à formação docente. Entretanto, na maior
lizada, condição que só seria alcançada se houvesse parte dos trabalhos sobre a história do magistério
um investimento prioritário na instrução do povo. carioca, este primeiro modelo escolarizado é quase
Na ânsia de perseguir a passos largos a concretiza- sempre retratado em linhas gerais, servindo de pre-
ção desse ideal, adquire centralidade a preocupação âmbulo a análises sobre períodos mais prestigiados,
com a formação do magistério. É nesse contexto que especialmente quando se dá a transformação da Es-
se verifica a emergência de uma instituição destinada cola Normal em Instituto de Educação, sob a ação
à formação de professores para atuar nas escolas pri- dos educadores ligados ao movimento da Educação
márias da cidade do Rio de Janeiro: a Escola Normal Nova (Accácio, 1993; Castro, 1986).
da Corte, solenemente inaugurada em abril de 1880. De outro lado, as recentes pesquisas que se de-
Por entender que o aspecto formativo é parte bruçam sobre a Escola Normal da Corte (Mancini,
integrante da temática profissão docente, adota-se 2005; Uekane, 2004) têm concentrado suas análises,
como um dos pressupostos teóricos a matriz in- prioritariamente, sobre os registros oficiais: decre-
terpretativa construída por António Nóvoa (1987), tos, regulamentos, relatórios e programas de ensino.
para quem a demanda social por educação acaba Minha proposta, nos limites deste artigo, será
impondo, no século XIX, um modelo escolarizado focalizar o momento inicial das atividades desta
para essa formação. Para este autor, o processo de escola, demarcado cronologicamente pelo biênio
profissionalização do magistério envolve o domínio 1880-1881, na tentativa de discutir uma questão já
de um corpo de saberes adquirido através de uma for- levantada em trabalhos anteriores (Lopes, 2008;
mação específica, especializada e longa que deve ser Lopes & Martínez, 2007). Por que uma escola re-
oferecida no interior de um quadro acadêmico e ins- conhecidamente necessária, propagada de forma re-
titucionalizado. As escolas normais transformam-se corrente nos discursos parlamentares e que acabou
em espaços de produção e reprodução de saberes e por se estabelecer tardiamente na capital do país,
de sistemas de normas próprias à profissão docen- apresentou resultados iniciais tão desanimadores?
te e acabarão por favorecer o desenvolvimento do Se levarmos em conta o impacto causado por sua
campo profissional do magistério, que será cada vez inauguração, que atraiu quase trezentos candidatos
mais controlado por parte do Estado, impulsiona- à matrícula questiona-se por que tão poucos alunos
dor da obra civilizadora. prestaram exames e prosseguiram seus estudos com
Por muito tempo secundarizada pela produção o intento de concluir o curso. Ao examinar a relação
acadêmica, a história do ensino normal no Brasil de alunos aprovados até o ano letivo 1883, em pelo

76 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
menos três matérias da primeira série, constam os capazes de explicar as escolhas realizadas no inte-
nomes de apenas 43 estudantes, dos quais 42 eram rior do campo de possibilidades de uma determina-
moças e um único rapaz². da configuração social.
Para alcançar o objetivo proposto, optei por tra- Nesse sentido, tomamos por objeto de análise
balhar com duas espécies de fontes: a primeira, de a produção discursiva de um professor, legitima-
caráter oficial, refere-se ao “relatório dos sucessos mente autorizado pela Congregação da Escola, bem
notáveis da Escola Normal no ano de 1880” do pro- como de um aluno que transita por esse espaço ins-
fessor Carlos Pimenta de Laet, encarregado desta titucional e cujas normas critica através de um jornal
tarefa pela Congregação da Escola Normal. Num onde desenvolve suas práticas, tece suas relações e
segundo momento, tento deslocar o foco de análise faz circular informações às quais confere sentido e
para o pólo receptor da iniciativa, procurando en- lógica particulares.
tender de que forma as estratégias de ação do poder O exame deste documento permitiu levantar
instituído eram apropriadas (Chartier, 1990) por questões relevantes que dizem respeito à profissão
seus destinatários — os alunos normalistas. docente no final do século XIX. Uma delas refere-
Nesse sentido, foram selecionados alguns núme- -se ao processo de feminização do magistério, já
ros do jornal Pharol publicado por alunos da Escola em franca ascensão; outra se relaciona ao impacto
Normal. Por meio desse impresso, o redator Militi- provocado pela implantação de um modelo esco-
no Pinto tece comentários e registra, quase sempre larizado que busca suplantar a forma usual de re-
com críticas ácidas, suas impressões sobre a insti- crutamento de docentes para a rede escolar pública.
tuição. Evidentemente, a representação estudantil A emergência e valorização das escolas normais nes-
acerca da escola contrastava com o tom otimista te momento têm como características marcantes o
dos relatórios oficiais encaminhados ao Ministro enriquecimento de seu currículo, especialmente no
dos Negócios do Império, nos quais se procurava que se refere ao incremento de disciplinas científi-
destacar os “sucessos” da Escola Normal, ainda que cas, além de uma prática mais sistemática e exigente
reconhecessem as dificuldades iniciais do empreen- em relação às formas de avaliação. Em função dessa
dimento. O cruzamento destas fontes permitiu in- realidade, repleta de prescrições emanadas do poder
ferir que houve resistência dos estudantes à cultura legalmente instituído, os estudantes se posicionam,
escolar (Julià, 2001) que se impunha como estraté- construindo um contradiscurso que se materializa
gia do Estado para promover a instrução do povo e por meio de crônicas publicadas no Pharol.
superar a situação de atraso do país.
As referências teóricas do presente estudo incor-
poram as categorias de estratégia e tática, segundo DOS RELATOS OFICIAIS
visão de Michel de Certeau (1994). Em seu entender,
a estratégia seria o resultado das relações de forças É oportuno observar que a consulta às fontes ofi-
que se estruturam a partir do momento em que um ciais, especialmente os relatórios produzidos por
indivíduo ou grupo detém o poder e passa a ocu- autoridades escolares, nem sempre foram suficien-
par um espaço próprio. Já a tática configura a ação tes para responder às questões colocadas. Após exa-
de quem não pode contar com esse espaço próprio, minar a legislação e boa parte das obras consagradas
mas se insinua através das brechas, “jogando com sobre o assunto, selecionei o relatório do professor
os acontecimentos para transformá-los em situações Carlos de Laet, que narra os “sucessos notáveis” da
de oportunidade” (De Certeau, 1994, pp. 46-47). Escola Normal em seu primeiro ano de funciona-
A perspectiva da micro-análise proposta por Ja- mento (1880-1881)³.
cques Revel (1998) também nos ajuda a compreen- Neste documento destaca-se a preocupação do
der a complexidade e as contradições da realidade autor com o fato de até aquela data não haver na
social examinada, pela tentativa de perceber o com- capital do país uma escola na qual “fossem conve-
portamento dos indivíduos nas relações com seus nientemente doutrinados (…) os professores pri-
semelhantes, as experiências vividas e as práticas mários”, responsáveis pelas bases sólidas nas quais
culturais por eles desenvolvidas como situações deveria “firmar-se a instrucção popular” (p.  1).

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 77
Acima de tudo, defendia a responsabilidade do go- iniciais, Laet aponta para a necessidade de mudan-
verno em formar bons professores como a única solu- ças no currículo, como por exemplo, o encurtamen-
ção para elevar o nível da instrução primária no país. to do curso de seis para quatro séries, a supressão de
Em razão da demanda reprimida por uma escola algumas disciplinas e a transformação de outras em
desta natureza na capital, houve enorme afluência matérias facultativas, bem como um maior destaque
de candidatos ao curso. Inscreveram-se 282 candi- para aquelas de teor científico8. Segundo o parecer,
datos para o ano letivo de 1880, dos quais 105 ra-
pazes e 177 moças. Destes, cerca de 200 obtiveram um curso por demais longo, pouco a pouco despo-
dispensa das provas de admissão; alguns por já ocu- voará a Escola, à medida que se for patenteando a
parem cargos de professores adjuntos nas escolas desigualdade entre os sacrifícios para a obtenção
primárias da cidade, outros por exibirem atestados do diploma e as vantagens, tão poucas e minguadas
que comprovavam a escolaridade mínima exigida4. (…) de uma profissão tão modesta e mal remunerada
De acordo com o relator, os exames foram bran- como é entre nós o magistério primário (p. 9).
dos e a escola acabou sendo franqueada a todos com
o objetivo de “apanhar as inteligências menos cul- Para se ter uma ideia do mau resultado das pro-
tivadas” (p. 4). Assim, matricularam-se 281 alunos5 vas, dos 25 alunos inscritos para o exame de por-
nas matérias da primeira série e devido à grande de- tuguês, apenas três tiveram êxito e dos 19 inscritos
manda foi impossível reuni-los nas salas que o Ex- em aritmética, somente cinco lograram aprovação.
ternato Pedro II cedera à Escola Normal. Em pouco Contudo, na visão oficial “professores e mestres
menos de um mês a nova instituição foi transferida desempenharam suas funções com o máximo de
para o edifício da Escola Politécnica, no Largo de dedicação e assiduidade” (p. 11) sugerindo que a
São Francisco6. falta de compromisso dos estudantes e a fragilidade
Na opinião do professor Laet diversas razões do sistema de instrução pública da capital foram as
justificariam tamanha procura. Em primeiro lugar, principais razões do insucesso.
o “louvável desejo de aprender” por parte dos as- A Escola Normal, como outros estabelecimentos
pirantes ao magistério, além da adequação do ho- de instrução secundária, eram regidos pelos estatu-
rário noturno que facilitaria o estudo aos alunos tos da reforma Leôncio de Carvalho (1879), que de-
trabalhadores. De outra parte, o renomado profes- fendia a livre frequência às aulas. Para o relator, essa
sor atribuía o grande movimento à novidade que tal seria uma das prováveis causas do insucesso de seus
empreitada despertava entre os jovens por ser esta a alunos. Acrescentava a esse fato o mau preparo inte-
primeira escola mista da capital, além da curiosida- lectual destes, viciados em decorar as lições, hábito
de do público para “ver como se desempenhariam inculcado desde cedo pelas escolas primárias que
do seu encargo os professores interinos, recém no- frequentaram. Assim, em nome da Congregação da
meados pelo governo”7. Na opinião do autor: Escola, por quem fora incumbido de relatar os “su-
cessos notáveis do ano de 1880”, o professor Laet
(…) a Escola Normal saiu-se bem desta prova, pois eximia a instituição de qualquer responsabilidade
a quase totalidade dos alunos e assistentes demons- e reafirmava o profissionalismo do corpo docente,
trou educação esmerada; manteve-se o professorado verdadeiros “operários” que haviam colaborado
na altura de sua missão e mui sensatamente se houve para “elevar, formando bons professores, o nível da
o Sr. Diretor, sabendo aliar, em certas emergências, instrução primária no município da Corte, e talvez,
a maior prudência e energia (…) Firmou-se então a em todo o Império” (p. 13).
mais severa disciplina e a experiência demonstra a Percebe-se neste discurso a retórica dos discur-
possibilidade de uma escola normal mista, noturna e sos institucionais, ou seja, a fala autorizada que se
tão concorrida (p. 6). exprime em situação solene e que dispõe da legiti-
midade que lhe foi conferida pela própria institui-
Mas diante do pífio resultado apresentado pelos ção. De acordo com Bourdieu (1996), o porta-voz
alunos nos exames de final de ano e do esvaziamento assume relevância em relação a outros agentes e age
que já se fazia sentir após cessarem as “novidades” com palavras “na medida em que sua fala concentra

78 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe família. Nesse sentido, o ideário positivista defendia
conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o ensino das moças para que estas incorporassem as
o procurador” (p. 89). O discurso da autoridade não contribuições da ciência às funções de mãe, esposa e
precisa ser claro e compreensível, bastando o reco- dona de casa (Louro, 1997).
nhecimento de seus receptores para que se torne le- O debate em torno da questão não passaria des-
gítimo. Em contrapartida, qualquer outro discurso percebido aos estudantes. A edição de setembro
estará condenado ao fracasso se pronunciado por al- (1880) reproduz declaração feita pelo ministro do
guém que não disponha de poder para pronunciá-lo. Império, Barão Homem de Mello, de que a Escola
Normal estaria prestando “bons serviços a muitas
moças” (Pharol, nº 7, p. 2). Ao comentar a baixa fre-
A LÓGICA ESTUDANTIL quência dos alunos às lições, devido ao escasso nú-
mero de aulas semanais ou mesmo pelo expressivo
Na contramão desse discurso há outro, de nature- número de estudantes que desistiam da empreitada,
za diversa, produzido pelos alunos9. Trata-se do a pena ferina do editor atinge mais uma vez as cole-
jornal estudantil Pharol, um pequeno tablóide de gas: “a aula de maior frequência é a da 1ª turma, por-
quatro páginas, cuja redação cabia ao jovem nor- que é somente do sexo feminino”. Mais adiante, ao
malista Militino Pinto, com a colaboração de outros comentar o grande número de inscrições femininas
dois colegas¹0. Em meio a uma produção literária para os primeiros exames, volta à carga: “vê-se que
de qualidade duvidosa, destaca-se uma coluna fixa, as nossas colegas querem ter o gosto da maioria en-
cujo objetivo era registrar notícias da recém-criada tre os alunos (…) elas que se emendem e não sirvam
Escola Normal (Pharol, nº 1, p. 4). de pretexto a que os professores digam das suas,
Os comentários sobre a instituição despertariam ofendendo a uns e a outros” (Pharol, nº 9, p. 2).
preocupações na Congregação da Escola. Em ofício A revolta crescia e os rapazes, visivelmente deslo-
ao Ministro e Secretário de Estado, o diretor Ben- cados no espaço escolar, passaram a queixar-se que
jamin Constant reconhece o mau procedimento do os professores “lhes davam as costas”. Levando-se
aluno ao fazer circular o jornal dentro da escola e em conta o contexto e a época dos fatos acima men-
indaga sobre a possibilidade de aplicar-lhe a respec- cionados, que outras vozes, além das masculinas,
tiva pena disciplinar¹¹. teriam condições de se erguer para criticar a ordem
As crônicas irreverentes de Militino eram espe- instituída? Em tempos de maior controle do Esta-
cialmente dirigidas às colegas que, apesar de mais do sobre a atividade docente, fato que por si só já
assíduas às aulas, entretinham-se em conversas “ab- justificaria a resistência dos alunos em relação às in-
solutamente fúteis”, ao contrário dos rapazes que tervenções do novo modelo formativo, arriscamos a
circulavam em grupos, dedicando-se a debater as- hipótese de que dificilmente as vozes femininas se
suntos “reconhecidamente úteis” (Pharol, nº 2, p. 1). fariam ouvir, porque mesmo majoritárias, respeita-
Vale observar que o momento de criação da Esco- vam os limites que lhes eram impostos. Talvez por
la Normal coincidiu com a deflagração do processo isso, as jovens, apesar de “fúteis e faladeiras”, ame-
de feminização do magistério, fenômeno atribuído ao açassem os rapazes, por se mostrarem predispostas
alargamento do setor industrial e à conseqüente urba- a acatar as normas escolares, correspondendo as-
nização que, por ampliar a oportunidade de trabalho sim ao investimento nelas depositado pelo Estado.
para os homens, deixaria às mulheres os ofícios menos Dessa forma, pode-se entender o apelo à educação
rentáveis. Erguiam-se também muitas vozes a promo- feminina e os “bons serviços” prestados às moças
ver a identificação da mulher com a atividade docen- naquele estabelecimento, enquanto os rapazes, por
te, defendendo a ideia de que elas possuíam “por sua maior capacidade de mobilização, não passa-
natureza” uma inclinação para o ofício, pela maior vam de “perturbadores da ordem”.
delicadeza no trato com crianças e por entenderem Em maio de 1880 foram publicadas as Instru-
o magistério como “extensão da maternidade”. Além ções que regulamentavam a realização dos exames.
disso, a necessidade da educação feminina vinculava- O documento dispunha sobre a organização das
-se à modernização da sociedade e higienização da bancas examinadoras, horários, modalidade das

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 79
provas (escritas, orais e práticas), bem como as pelos livros de sua autoria, indicando, inclusive, a
providências a serem tomadas para a inscrição e loja onde estariam à venda (Pharol, nº 14, p. 2).
para o caso de faltas justificadas. Além disso, de- As irregularidades apontadas, naturalmente, não
terminava os critérios de avaliação das provas, que eram confirmadas pelos dados oficiais encontrados
seriam expressos pelos conceitos “ótima, boa, so- no relatório já examinado. O cotejo entre os dois
frível ou mᔹ². documentos pode sugerir que a estratégia traçada
Após a correção dos trabalhos, os três membros pelo governo para impor um modelo escolarizado
da banca pronunciavam o resultado final, conside- de formação aos futuros docentes provocava uma
rando aprovado simplesmente o aluno que obtivesse resistência entre os estudantes, captada pelos críti-
pelo menos a aprovação de dois examinadores e re- cos do Pharol. Se levarmos em conta as reprovações
provado em caso contrário. Quando a aprovação era que, inclusive, excediam as aprovações, somos leva-
unânime e o candidato tivesse obtido maior núme- dos a supor que os métodos de ensino e as formas
ro de notas boas, o aluno era considerado aprova- de avaliação tenham, de fato, deixado a desejar, o
do plenamente. Finalmente, seriam aprovados com que justificaria outra observação que não escapou
distinção os que além da unanimidade recebessem ao perspicaz cronista:
notas máximas de todos os examinadores.
Na verdade, todo esse rigor parece justificar-se Não compreendemos a atitude tomada pelos pro-
pelas prerrogativas que os estudos na Escola Nor- fessores em formular programas d’esta natureza,
mal conferiam aos futuros professores, muitos dos quando exigem somente, para matrícula na 1ª serie
quais já eram, na realidade, adjuntos das escolas as quatro operações praticas de aritmética, ler e
primárias da Corte, pois desde a Reforma Couto escrever, atestado de moralidade (coitado do vi-
Ferraz (17/2/1854) os professores adjuntos efetivos gário!), para depois querer, no fim do ano, que o
tinham garantida a sua nomeação sem concurso¹³. aluno responda em que lugar foi que Judas perdeu
Entretanto, corria o mês de agosto e muitas ques- as botas! (Pharol, nº 14, p. 3).
tões relacionadas aos exames ainda não tinham sido
decididas como, por exemplo, os pontos do progra- Ainda que rotulados de vadios por alguns pro-
ma ou a bibliografia a ser consultada. Este fato ense- fessores, os responsáveis pelo Pharol insistiam nas
jou uma série de críticas estampadas no Pharol, das denúncias sobre “a instituição que teve um resulta-
quais retiro alguns trechos: do infeliz e contrario ás aspirações do governo, tan-
to que já precisou de reforma”. Numa das últimas
Os livros não são pela maior parte a contento do edições, Militino Pinto deseja “pêsames ao profes-
programa de ensino, os próprios professores decla- sorado da escola a ao governo na pessoa do Sr. Mi-
ram. Porém, não se apresenta uma medida que mais nistro do Império” e encerra a questão utilizando-se
garantia ofereça senão aquela restrita obrigação de o do célebre provérbio: “quem semeia ventos, colhe
aluno tomar nota de tudo quanto o professor disser a tempestades” (Pharol, nº 14, p.1).
fim de seguir o seu intento. O aluno tem que se apre-
sentar por esta forma pronto a ser examinado no que
o professor souber e quiser perguntar (…) É assim CONSIDERAÇÕES FINAIS
que há liberdade de ensino? (Pharol, nº 5, p. 1).
Sem desconsiderar a contribuição da Escola Nor-
À medida que o tempo passava, o editor tornava- mal em sua missão de transmitir conhecimentos e
-se mais ousado, denunciando a desorganização da prescrever um repertório de normas que constitui-
escola e a falta de concursos para preencher as vagas riam o saber-fazer distintivo da categoria, este tra-
para docentes. Ainda em relação aos professores, as balho buscou ultrapassar essa perspectiva, ao tentar
acusações se dirigiam tanto aos que “davam poucas demonstrar o jogo de forças presente nos embates
aulas e faltam outras tantas”, deixando os alunos travados entre as ações desempenhadas pelo poder
em completo abandono, quanto aos que obrigavam instituído e as formas de resistência esboçadas por
seus alunos a acompanhar as aulas exclusivamente nossos protagonistas.

80 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
Sabe-se que a Escola Normal recém-criada ain- os alunos. O que aconteceu pode-se imaginar, mas
da teria muitos desafios a enfrentar. Basta examinar ouçamos a voz do cronista:
o relatório oficial sobre o ano letivo de 1880, no
qual o redator, apesar de reconhecer que não havia Repelidos pelos vigilantes da escola, (…) resultou
motivos para “sedutoras esperanças”, tampouco que um dos alunos fosse chamado à secretaria, e re-
via motivos para “tristonhos desalentos” e atribuía ceando os seus colegas que as autoridades o quises-
o desempenho sofrível dos estudantes à crise pela sem responsabilizar isoladamente pelo delito em que
qual a escola passava, justificando ser aquele um di- incorreram, (…) dirigiram-se á secretaria para darem
fícil “momento de transição”. as explicações necessárias. Os alunos, porém, foram
Ao confrontar os dados desse primeiro relatório mal recebidos pelo Sr. Secretário da escola, que lhes
com documentos relativos ao período de 1882-83, dirigiu palavras severas. Ao ilustrado e prudente di-
conclui-se que muitas dificuldades iniciais perma- retor da Escola Normal e ao Governo Imperial pedi-
neciam sem solução e que a escola apresentava, mos as providencias que os fatos reclamam (O Paiz,
desde sua origem, problemas estruturais, como por 22/05/1886, p. 1).
exemplo, a falta de concurso para docentes e a ma-
nutenção do horário noturno que prejudicava as au- Ao que parece, as marolas provocadas pelo reda-
las práticas¹4. A evidência que mais se destaca diz tor do Pharol transformaram-se em ondas de maior
respeito ao rendimento dos alunos, ainda que pese a impacto. Nada se conseguiu apurar sobre a trajetó-
inadequação dos critérios de avaliação ou a exagera- ria de Militino Pinto, seja como professor ou jor-
da quantidade de pontos a serem estudados. nalista. De concreto, só confirmamos seu nome no
Alguns anos depois, o jornal de maior circula- registro de matrículas da Escola Normal em 1880,
ção na Corte — O Paiz — trazia na primeira página 1881 e 1882, sempre na primeira série¹5. Entretanto,
uma crítica à Escola Normal. Em meio às denúncias, os vestígios dessa experiência, recuperados por in-
uma, em especial, chama a atenção: devido às fre- termédio dessa “poeira de acontecimentos” (Revel,
quentes faltas de um determinado professor — que, 1998, p. 31), permanecem como indícios da resistên-
na verdade, já era substituto — um grupo de rapazes cia dos normalistas no embate travado com o Esta-
tentou assistir aula na turma feminina, esta sim re- do para que se cumprissem as normas destinadas
gida por professores efetivos, segundo informaram a instruir e civilizar o povo da capital do Império.

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 81
Notas foi localizado na seção de Periódicos Raros da Biblio-
teca Nacional.
1. Este artigo resulta de uma pesquisa sobre a 10. Pharol, ano I, n. 1, p.2. O jornal era publicado
história da profissão docente na cidade do Rio de quinzenalmente e as assinaturas custavam 500 réis
Janeiro (1880-1920) que realizo junto ao Programa por mês ou 1$000 (um conto de réis) por trimestre.
de Estudos e Documentação Educação e Sociedade A redação ficava na Rua General Camara, nº 361 e os
(PROEDES/ UFRJ). O referido estudo integra o serviços de impressão eram realizados na Typogra-
projeto História da Profissão Docente em Portugal e phia do Brazil Catholico, à rua Sete de Setembro, 65.
no Brasil: aproximações e distanciamentos. 11. Pelo disposto no artigo 34 do Regulamento
2. Relatório de José M. Garcia ao Ministro dos anexo ao decreto n. 7.684, o aluno que procedesse mal
Negócios do Império, Conselheiro Pedro Leão Velloso, nas aulas ou no recinto do estabelecimento seria adver-
em 17/03/1883 (Arquivo Nacional, Pasta IE5 30). tido pelo respectivo professor ou pelo diretor, e, em
3. Documento redigido pelo professor Carlos de caso de reincidência, ficaria sujeito a ser por este repre-
Laet ao Ministro dos Negócios do Império, Barão endido publicamente (Arquivo Nacional, pasta IE5 28).
Homem de Mello (Arquivo Nacional, Pasta IE5 29). 12. Artigo 17 das Instruções para a Escola Normal de
4. Conforme artigo 6º do Decreto nº. 7.684 de 12 de maio de 1880 (Arquivo Nacional, pasta IE5 28).
6/3/1880 que cria a Escola Normal da Corte. Coleção 13. Em termos de acesso à carreira, o artigo 86
de Leis do Império Brasileiro. Rio de Janeiro: Typo- do decreto de criação da Escola Normal assegurava
graphia Nacional, 1874. que, aos indivíduos aprovados em todas as matérias
5. Além dos alunos regularmente matriculados do curso, seriam conferidos diplomas de habilitação
frequentavam a Escola cerca de 700 ouvintes e 150 que lhes dariam preferência para ocupar os lugares
pessoas a quem se concedia entrada franca (respon- do magistério primário. Já os que, havendo obtido
sáveis pelas alunas). Relatório dos sucessos mais notá- aprovações plenas em todas as séries, fossem julga-
veis da Escola Normal em 1880, p. 6. dos pela Congregação “distintos por suas habilita-
6. Ofício do Diretor da Escola Normal ao Minis- ções e procedimento moral” teriam direito à nomea-
tro dos Negócios do Império, em 30/04/1880. ção para professores adjuntos efetivos, por ordem de
Arquivo Nacional, pasta IE5 28. Em 1888, houve classificação, independentemente de concurso (art.
nova transferência para a Escola Rivadávia Correia e 87 do decreto n. 7.684/1880).
daí para a Escola Estácio de Sá, onde se manteve até 14. Relatório apresentado ao Congresso de Ins-
1930, quando foi inaugurado o prédio da Rua Mariz trução pelo Dr. Antonio Herculano de Souza Ban-
e Barros, feito especialmente para abrigá-la. deira, Inspetor Geral da Instrução Pública da Capi-
7. O primeiro problema enfrentado pela nova tal do Império, em 1883 (Arquivo Geral da Cidade
instituição foi a carência de pessoal docente espe- do Rio de Janeiro — Inspetoria Geral da Instrução
cializado, sendo então nomeados, em caráter inte- (1874-1893). Códice: 11— 4-22).
rino, professores que se encontravam em disponi- 15. Documento localizado no Centro de Memória
bilidade devido à extinção de várias cadeiras no do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro
Imperial Colégio de Pedro II e no Instituto Comer- (ISERJ). Livro da Porta, n. 55.
cial. Relatório dos sucessos mais notáveis da escola
Normal em 1880, p. 2.
8. Tornam-se disciplinas facultativas Francês e Referências bibliográficas
Instrução Religiosa, esta devido ao Decreto n. 7.247
de 19/04/1879 (reforma Leôncio de Carvalho) que já Accácio, L. (1993). Instituto de Educação do Rio
dispusera sobre a não obrigatoriedade dessa maté- de Janeiro: a história da formação do professor
ria aos “acatholicos”. Sobre um currículo mais primário (1927-37). Dissertação de Mestrado.
científico, proposto pelo Regulamento de 1881, ver Faculdade de Educação, UFRJ.
Uekane (2004). Bourdieu, P.  (1996). A linguagem autorizada. In
9. Há no Arquivo Nacional apenas os três primei- P. Bourdieu, A economia das trocas lingüísticas: o
ros números do citado jornal. O conjunto completo que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, pp. 85-96.

82 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
Castro, L. V. de (1986). Uma escola de professores: Louro, G. L. (1997). Mulheres na sala de aula. In M.
formação de docentes na reforma Anísio Teixeira D. Priore, História das mulheres no Brasil. São
(1931-35). Dissertação de Mestrado. Departa- Paulo: Contexto, pp. 441-463.
mento de Educação, PUC-Rio. Mancini, A. P. G. (2005). Escola Normal da Corte
Chartier, R. (1990). A história cultural entre práti- (1876-89): um estudo por meio de fontes docu-
cas e representações. Lisboa: Difel. mentais. Tese de Doutorado. Marília, SP: Facul-
De Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano dade de Educação, UNESP.
(Artes de fazer). Petrópolis, RJ: Vozes. Nóvoa, António (1987). Le temps des professeurs.
Julià, D. (2001). A cultura escolar como objeto his- Analyse sócio-historique de la profession enseig-
tórico. Revista Brasileira de História da Edu- nante au Portugal (XVIII-XX). 2 volumes. Lisboa:
cação (Campinas: Autores Associados), I, 1, Instituto Nacional de Investigação Científica.
pp. 9-44. Revel, J. (1998). Microanálise e construção do so-
Lopes, S. de C. (2008). Registros sobre a Escola cial. In J. Revel, Jogos de escalas: A experiência
Normal da Corte no jornal estudantil Pharol. In da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de Ja-
Anais do VII Congresso Luso-Brasileiro de Histó- neiro: FGV, pp. 15-38.
ria da Educação. Universidade do Porto. Uekane, M. (2004). Saberes prescritos e a profis-
Lopes, S. de C. & Martínez, S. (2007). A emergên- sionalização dos professores — um estudo acer-
cia das escolas normais no século XIX: a Escola ca da episteme da Escola Normal da Corte. In
Normal de Campos e a Escola Normal da Corte. Anais do III Congresso Brasileiro de História da
Revista Brasileira de História da Educação 15 Educação, Curitiba, PR, pp. 1-14.
(set./dez.), pp. 53-78.

sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais… 83
84 sísifo 11 | sonia de castro lopes | (in)sucessos da escola normal da corte: dos relatos oficiais…
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

Universidade brasileira e formação docente na trama


dos discursos: Das idéias aos conceitos matrizes
Vera Lucia Alves Breglia
vbreglia@domain.com.br
Universidade Federal Fluminense — UFF, Brasil

Resumo:
Trabalha as primeiras iniciativas da universidade brasileira na formação de professores
na década de 1930, à luz de modelos representados pela Universidade do Distrito Federal
(UDF), criada em 1935, e pela Universidade do Brasil (UB), fundada em 1937. Identifica a
partir das idéias veiculadas nos “discursos instituidores” ou “discursos seminais”, quais
os conceitos matrizes que informaram a construção dos dois modelos. No período do
Estado Novo os projetos da UDF e da UB foram colocados em campos opostos: não cabia
no cenário político, uma universidade que se pautava pela autonomia e pela liberdade, o
que levou à extinção da UDF. O texto teve como suporte teórico os fundamentos forneci-
dos por Fávero (1989), Gomes (2003), Lopes (2007) e Mendonça (2002). A metodologia
adotada na análise documental teve como base a história dos conceitos tal como formula-
da por Koselleck (1992) e explorada por Jasmim e Feres Jr. (2006).

Palavras-chave:
Universidade brasileira e formação de professores secundários, Universidade do Distrito
Federal, Universidade do Brasil, História dos conceitos.

Breglia, Vera Lucia Alves (2010). Universidade brasileira e formação docente na trama dos discursos:
Das idéias aos conceitos matrizes. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 85-94
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

85
NO INÍCIO: DESAFIOS, IMPASSES Capanema (1942) complementa o quadro que se
E A TRAJETÓRIA POSSÍVEL tinha à época, porque ambas tiveram inegável re-
percussão nas políticas educacionais formuladas no
Este texto configura-se como um ensaio metodo- período mencionado, com interferências específicas
lógico, com vistas à aproximação do objeto da pes- nas duas universidades e no processo de formação
quisa que desenvolvo: a formação de professores docente. Outro eixo indispensável para completar
secundários pela Faculdade Nacional de Filosofia o quadro a ser desenhado é o surgimento da Facul-
(FNFi), a partir de 1939. A unidade de análise são os dade Nacional de Filosofia (FNFi), da Universidade
“discursos instituidores” ou “discursos seminais”; do Brasil, onde se instalou o curso de formação de
o pressuposto é que por meio das idéias neles vei- professores secundários, depois do desmonte da
culadas seja possível ter claros os conceitos matrizes Universidade do Distrito Federal, responsável pelos
que informaram a construção dos dois modelos que primeiros cursos de formação de professores em ní-
instituíram, no Brasil, a formação docente em nível vel superior, extensivo a todos os níveis de ensino.
superior. Para trabalhar os discursos, utilizei parte O cenário em que se deu o embate dos dois
das formulações de Koselleck (1992) para o campo projetos distintos de universidade (desafios) e seus
de investigação da história dos conceitos. desdobramentos (impasses) fez com que este tex-
As leituras que fiz deixaram claro que trabalhar to apresente a seguinte estrutura: em um primeiro
a formação de professores secundários pela univer- momento a questão foi contextualizada por meio do
sidade brasileira, entre 1930 e 1945, apontava para diálogo entre autores; a seguir, foram analisados os
um duplo desafio: a localização em um período discursos, e por fim, feitas as considerações finais.
histórico complexo, contraditório, paradoxal, a Era
Vargas, e mais, lidar com um significativo volume
de estudos acadêmicos refletidos pela historiogra- NO CAMINHO: O ESTADO NACIONAL
fia. Assim, foi necessário fazer um outro recorte: de E A ESCOLA BRASILEIRA
dentro do período “isolar” as questões pertinentes NACIONALIZADORA. AS POLÍTICAS,
e relevantes ao objeto, que remetem a dois modelos AS REFORMAS E AS HERANÇAS
de universidade, a Universidade do Distrito Federal PARA A EDUCAÇÃO
(UDF), criada por Anísio Teixeira, em 1935, e a Uni-
versidade do Brasil (UB), criada por Gustavo Ca- A síntese das questões que aqui serão trabalhadas
panema¹ em 1937, ambas situadas na cidade do Rio tem como objetivo subsidiar e dar consistência ao
de Janeiro, então capital federal. A menção à Refor- exercício proposto: a análise dos “discursos institui-
ma Francisco Campos (1931) e à Reforma Gustavo dores”. Isso porque as ações que tomaram corpo no

86 sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade brasileira e formação docente na trama dos discursos…
período de 1930-1945 foram responsáveis por alterar um espaço no projeto de construção do Estado Na-
os rumos da educação no país, apesar dos tempos cional; ao Estado caberia tutelá-la, “modelando seu
sombrios, repressivos, autoritários, representados pensamento, ajustando-o ao novo ambiente político,
por um modelo antiliberal de organização social. preparando-a, enfim, para a convivência a ser estimu-
Talvez por isso, Pandolfi (1999, pp.  9-11) consi- lada no Estado totalitário”. A autora observa que o
dere que analisar aquele período em todas as suas teor essencialmente político impregnou o projeto da
dimensões “significa apreender paradoxos e afastar Organização Nacional da Juventude com repercus-
tentações maniqueístas”, porque, a despeito da au- sões na reforma do ensino secundário, visto que ca-
sência dos direitos políticos e da precariedade das bia a este nível de ensino a formação da mentalidade,
liberdades civis, do Parlamento dissolvido e dos par- ou seja, forjar um homem novo que se adequasse às
tidos políticos extintos, foram adotadas uma série exigências do novo regime. A constatação da onipre-
de medidas que iriam provocar modificações subs- sença do Estado na formulação das políticas educa-
tantivas no país no setor econômico, principalmente cionais, em especial na reforma do ensino secundário,
pelos processos que deram início à industrialização e fornece uma excelente chave de leitura para trabalhar
à ocupação do espaço urbano. De acordo com a au- a formação de professores para o ensino secundário.
tora citada, no que se refere à educação, buscava-se Nas leituras que fiz de Bomeny (1999), Gomes
forjar “um forte sentimento de identidade nacional, (2003), Fávero (1989), Mendonça (2002) e Lopes
condição essencial para o fortalecimento do Estado (2007) foi possível identificar que, apesar de muito
Nacional; o país investiu na cultura e na educação”. trabalhado, quer pela via da literatura, quer pela via
A instituição do Governo Provisório, em1930, e dos acervos documentais, a questão das mudanças
do Estado Novo, em 1937, trouxe nova configura- no campo educacional na década de 1930, ainda se
ção para o campo educacional e o tornou alvo de oferece a algumas reflexões. Pelo entremeio de olha-
muitas disputas. A partir desse momento o apare- res diferenciados e várias perspectivas, percebi que
lho de Estado foi reforçado no campo educacional as autoras citadas têm “um comum”: os “conflitos”
o que permitiu inculcar ideologias que tendiam a e os “confrontos” são marcas que identificam o pe-
impedir que grupos diferenciados se organizassem ríodo e dão significado às mudanças.
politicamente e se constituíssem em um impedi- Apropriei-me de três pontos da reflexão feita por
mento à ordem e à disciplina que identificavam o Fávero (1989) para pensar na esteira deixada pelo
regime imposto. O fato é que o projeto político não pensamento das demais autoras e, a partir das refle-
podia prescindir da implantação de políticas sociais xões por elas feitas, fazer a minha própria. O primei-
relevantes para o Estado, e, por mais contraditório ro ponto é entender o surgimento das instituições,
que possa parecer, o investimento estava posto no das reformas, dos fundadores e dirigentes dentro do
discurso de legitimação centrado na promoção da contexto de uma realidade concreta e, portanto, em
justiça social e devia se materializar pela aplicação íntima relação com valores, ideologias e/ou demais
de uma legislação destinada a instaurar os direitos instituições da sociedade de onde emerge. O outro
sociais no Brasil. De acordo com Gomes (2003) era ponto é o entendimento de que a análise atenta dos
em nome do ideal de justiça social que o Estado rea- acontecimentos de 1930 e 1937 leva a pensar os dois
lizaria uma política de amparo ao homem brasileiro, momentos como etapas de um mesmo processo, o
reconhecimento de que a civilização e o progresso que vale dizer que, “o espírito da revolução de 1930
do país seriam produtos do trabalho e da educação. só se concretiza com a deflagração do Estado Novo”
É a articulação das políticas sociais em geral e das (Lopes, 2007, s.p.). O último ponto são “contratos
políticas educacionais, que conforma um conceito de poder”, entendidos como articulações entre gru-
de educação pensada em sentido amplo, excedendo pos que se unem para dividir entre si o poder.
o ensino formal, como a via de construção do povo Os apontamentos de Gomes (2003, pp. 452-453)
integralmente adaptado à realidade social de seu concentram-se nas duas grandes reformas educa-
país, e preparado para servi-lo. cionais que marcam o período do primeiro governo
Nesse contexto, a atenção estava voltada para a Vargas: a Reforma Francisco Campos (1931) e a Lei
juventude que, para Bomeny (1999, p. 147), ocupava Orgânica do Ensino Secundário (1942), da lavra de

sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade br asileir a e formação docente na tr ama dos discursos… 87
Gustavo Capanema, ambas voltadas para a estrutu- Os escritos de Lopes (2007) e Mendonça (2002)
ração do ensino secundário no país e com a “preocu- privilegiam os confrontos e os conflitos entre grupos
pação crescente nos debates que ocorreram durante e ideologias que acabaram por aportar mudanças
os anos 1920 e que tem na organização do IV Con- definitivas no modelo de formação de professores.
gresso Brasileiro de Instrução Superior e Secundá- A primeira autora citada recupera a experiência de
ria (1922), no Rio de Janeiro, uma evidência clara”. formação docente desenvolvida pela Universidade
A autora sob citação entende que a reforma de 1931 do Distrito Federal (UDF) e pontua as condições po-
se beneficiou pelo clima de idéias renovadoras e que líticas locais que permitiram a criação de uma univer-
“já havia uma forte convicção de que mudanças nos sidade dotada de autonomia na parte administrativa
níveis de ensino secundário e superior seriam inevi- e, sobretudo, pedagógica por conta dos intelectuais
táveis, após os esforços transformadores encaminha- cujos diversos matizes ideológicos propiciavam um
dos no ensino primário, durante os anos de 1920”. clima democrático, fato gerador de acirrados de-
Gomes (2003) aponta claramente que a refor- bates, com o projeto centralizador defendido pelo
ma Capanema segue muito do já encaminhado por governo federal. Cabe destacar que à característica
Francisco Campos em 1931, o que vai ao encontro integradora do modelo formativo pensado por Aní-
do observado por Fávero (1989) sobre pensar os sio Teixeira, é que Lopes atribui o compromisso
dois momentos como etapas do mesmo processo. com a difusão do saber, o incentivo às atividades de
A maior inovação da Lei Orgânica do Ensino Se- pesquisa e o contato estrito com a prática profissio-
cundário na opinião de Gomes é a obrigatoriedade nal. É evidente que esse modelo não se alinhava ao
de freqüência às escolas secundárias, e a ênfase no pensamento dos formuladores das políticas educa-
ensino humanístico em relação ao técnico. Também cionais já na vigência do Governo Provisório, uma
faziam parte do conjunto de medidas os cursos pro- vez que, a universidade contrariamente ao idealizado
fissionalizantes, voltados para aqueles que não fos- pelos intelectuais dos anos 1920, — propagadora de
sem ou não podiam seguir carreira universitária; o uma cultura desinteressada — foi colocada a serviço
ensino profissional era destinado aos jovens menos do aprimoramento do ensino secundário, “nível de
abastados e os estabelecimentos que os ministravam ensino ao qual se atribuía maior importância pelo
estavam proibidos de usar as denominações de gi- fato de objetivar a formação das individualidades”
násios e colégios. condutoras do país (Lopes, 2007, s.p.).
A reforma do ensino secundário é vista por Para Fávero (1989, p. 22), o projeto da UDF era
Bomeny (1999) como um dos pontos de honra do um ente natimorto, porque desafiava “em muito a
ministério Capanema; ela comenta que as linhas capacidade de ser assimilado pela maior porção do
mestras da reforma ilustram a matriz que vencia na grupo detentor da hegemonia político-social e eco-
definição do que e como ensinar à juventude em um nômica de sua época”. Porém, Mendonça (2002,
momento crucial de sua formação na qualidade de p. 174) observa a questão por outro ângulo e diz que
futuros profissionais e cidadãos de uma sociedade a UDF “continua viva entre nós enquanto idéia,
diferenciada. Na exposição de motivos encaminha- projeto e utopia” e a coloca na condição de “uma
da ao presidente da República, Capanema advertia tradição ‘desafortunada’, sem dúvida, mas que pode
que cada programa de disciplina seria marcado tan- e deve se constituir em ‘solo’ para nossa reflexão e
to quanto possível pelo sentido patriótico e pela pre- ação”. A partir dessas considerações cabe pergun-
ocupação moral. Era esse o perfil da formação dos tar: estaria o modelo de formação docente desenvol-
indivíduos em uma sociedade chamada a espelhar vido pela UDF “fora de lugar”, “fora da ordem”?
o Estado. O confronto já mencionado, educação Em outro momento, Mendonça (2002, p. 154)
humanista versus educação técnica, ensino genera- aponta claramente as diferenças entre as duas expe-
lizante e clássico versus ensino profissionalizante é riências de formação de professores na década de
entendido pela autora sob citação, como “pares de 1930: expressão de distintos projetos de reconstrução
oposição (falsa oposição?) que até hoje permane- nacional e que por isso mesmo guardavam uma rela-
cem como desafios à reforma do ensino secundário” ção de confronto porque representavam “as concep-
(Bomeny, 1999, p. 138). ções diversas acerca da preparação das elites, do seu

88 sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade brasileira e formação docente na trama dos discursos…
papel e constituição, bem como da relação educa- docente em nível superior, que, com algumas modi-
ção do povo ou das massas/ educação das elites e ficações, é o que temos até hoje.
da importância atribuída a cada um desses pólos no
processo de reconstrução do país”. De novo, tem-
-se o confronto como um “termo guia” da discussão ENFIM, O EXERCÍCIO DE ANÁLISE
que no caso da autora citada está referido a duas ex-
periências, articuladas a duas concepções diferentes Entendo necessário determinar de forma clara as
do papel e da destinação do ensino secundário. Ao etapas a serem percorridas no exercício da análise,
final da análise há um reforço da relação de oposi- para não perder o rumo. Na primeira etapa, estabe-
ção entre a “Universidade Formadora” de Anísio leci uma distinção entre “idéias” — categorias de
Teixeira e “a Universidade Nacional de Gustavo uso recorrente nos textos dos discursos; e, “concei-
Capanema”, uma vez que as concepções diferen- tos matrizes” — idéias trabalhadas e significadas no
ciadas que deram origem às duas universidades e contexto dos discursos, ou seja, os princípios nor-
as modelaram “condicionaram distintas formas de teadores das ações colocadas em prática. Na etapa
se conceber o papel que a destinação dos ensinos seguinte — leitura dos discursos — identifiquei as
primário e secundário e consequentemente as for- categorias e passei à análise.
mas igualmente distintas de se conceber o lugar e as Na posse como titular do Ministério da Educa-
características do processo de formação dos respec- ção e Saúde Pública (1934), Gustavo Capanema fa-
tivos professores” (Mendonça, 2002, p. 154). lou de improviso e só foi possível trabalhar a partir
Penso que a questão da formação de professores de uma síntese publicada no Jornal do Comércio,
secundários geradora de tantos conflitos e confron- sem desconsiderar a limitação que isso implicou.
tos foi mais do que uma oposição entre os dois pro- De qualquer forma, foi possível identificar no tom
jetos diferenciados de reconstrução nacional; havia do discurso um ufanismo próprio da época e um
um “terceiro” projeto: o projeto político-ideológico sentido de missão contido na frase em que declara-
de Gustavo Capanema, na realidade, um projeto de va a justa emoção de ser convocado para o serviço
construção da nacionalidade em que o Estado tinha de sua terra. Em plena vigência da Constituição de
papel central. Há um trecho da carta² em que Ca- 1934, não causou estranheza a declaração de que o
panema encaminha a Getúlio Vargas o projeto do Brasil havia optado com sabedoria “por um regime
Ministério de Educação e Saúde, de especial signi- de liberdade, ou seja, por um regime de democra-
ficado: em um tom bastante afirmativo diz que “é cia”, e “na base de uma pura democracia vamos en-
imprescindível que a União faça de sua universida- contrar a educação, problema essencial”.
de um vigoroso instrumento de ordem e equilíbrio, Ao longo do discurso, Capanema refere-se a
uma instituição cheia de autoridade que, pelo poder outras questões que pautaram o seu projeto para a
de seus elementos, seduza a juventude e seja capaz educação: a preparação das elites que conduziriam o
de orientar os espíritos para rumos claros e segu- país, a preparação das massas que atuavam vigorosa-
ros”. Sem dúvida, estas idéias estavam na raiz do mente e também precisavam ser preparadas para que
projeto universitário de Capanema considerado por sua atuação tivesse um sentido construtivo e uma
alguns autores, o mais ambicioso segmento de seu orientação espiritual. Era esse o duplo pacto da edu-
projeto educacional e claro, as bases sobre as quais cação no mundo moderno: a formação das elites e a
foi instituída a Universidade do Brasil. preparação das massas. Ao final, Capanema decla-
A implantação da Faculdade Nacional de Filo- ra que se dispõe a trabalhar “com a consciência de
sofia é considerada por Fávero (1989) parte de um seu próprio limite”, que não vai promover inovações
projeto político universitário, pensado em 1931 e grandiosas, pois vai trabalhar dentro da realidade em
consolidado no Estado Novo. Em que pesem os um grande centro de elaboração intelectual. Apesar
confrontos e os conflitos representados nos textos das limitações da análise, percebe-se a centralidade
trabalhados, a Faculdade Nacional de Filosofia foi da educação para o projeto de nacionalização.
o lócus de instalação do “modelo possível” ou “mo- O discurso de Capanema por ocasião do Cente-
delo lógico”, como prefiro chamar, de formação nário do Colégio Pedro II, feito em plena vigência

sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade br asileir a e formação docente na tr ama dos discursos… 89
do Estado Novo (2/12/1937) não deixa dúvidas sobre nível, no aperfeiçoamento das diretrizes pedagógi-
que rumo seria dado à educação. Após uma crítica cas das demais instituições de ensino superior da
dura aos Pioneiros da Escola Nova e as suas ideias República”.
diz que a “educação, no Brasil, tem que collocar-se As idéias e conceitos veiculados pelos dois dis-
agora definitivamente a serviço da Nação (…) assim cursos levam-me a algumas considerações feitas por
quando dizemos que a educação ficará ao serviço Jasmin e Feres Junior (2006) quando se referem ao
da Nação queremos significar que ella, longe de ser “duplo impulso crítico” que deu início à História
neutra, deve tomar partido, ou melhor, deve adoptar dos Conceitos. O primeiro deles, sobre a proprie-
uma philosofia e seguir uma tábua de valores, deve dade de estabelecer uma relação texto/contexto e
reger-se pelo systema de diretrizes moraes, políticas o segundo sobre tratar as idéias como constantes,
e econômicas que formam a base ideológica da na- articuladas a figuras históricas diferentes, mas elas
ção, que, por isso, estão sob a guarda, o controle ou mesmas fundamentalmente imutáveis.
a defesa do Estado”. A educação deveria preparar o Sobre o primeiro (relação texto/contexto) o co-
homem não para uma ação qualquer na sociedade, mentário vai ao encontro da mudança no posicio-
mas para uma “acção necessária e definida de modo namento de Capanema nos dois momentos que
que elle entre a construir uma unidade moral, políti- marcaram os discursos: Em 1934, o Estado respon-
ca e econômica, que integre e engrandeça a Nação”. sável por estabelecer uma ordem liberal e moderna,
Esse preceito/conceito atravessa todo o discur- e fortalecido na condução da esfera econômico-
so e a repetição das categorias “Nação”, “Estado”, -social. Em 1937, tempos de plena repressão
“ideologia”, “moral” tece uma rede de significados político-ideológica. Só assim se entende o uso das
que não deixa dúvidas sobre o direcionamento a expressões, “opção com sabedoria”, “pelo regime
ser dado à educação, que sob um esquema hierár- de liberdade”, ou seja, “por um regime de democra-
quico tinha um molde claro: sob a regência do Es- cia”. Outro aspecto a anotar é no discurso de 1934,
tado, todos deveriam estar aptos a servir à Nação. Capanema se dizer “convocado para o serviço de
Em uma perspectiva que me animo a classificar de sua terra”, e em 1937, a utilização da categoria “Na-
“coerente”, a grande aposta era na juventude. Por ção” à exaustão; mudado o tom do discurso, estava
isso, caberia ao ensino secundário ser o “formador construído um dos “conceitos matrizes” que deram
da personalidade, physica, moral e intelectual do os rumos à educação até 1945.
adolescente” e “accentuar o caracter cultural do en- Sobre o segundo ponto, permito-me fazer uma
sino secundário, de modo que elle se torne verda- “interferência” no proposto por Koselleck: nos dis-
deiramente o ensino preparador da elite intelectual cursos analisados as idéias têm nuances que não as
do paiz”. Prescindia-se do ensino enciclopédico, de identificam como constantes, a figura histórica era
natureza estéril, e se privilegiava “os sólidos estudos a mesma; as ideias não se mostraram fundamental-
das humanidades clássicas”. mente diferentes. O que as diferenciou foi o modo
No mesmo discurso, Capanema reforça a forma- de expressá-las, que não deixou dúvidas quanto ao
ção de professores para o ensino secundário como sentido, que lhes foi atribuído.
uma necessidade imperiosa. Caberia ao Governo Em 1935, Afrânio Peixoto e Anísio Teixeira dis-
Federal fundar e manter os estabelecimentos espe- cursaram na solenidade de instalação dos cursos da
ciais para esse fim, materializado na organização UDF. Afrânio Peixoto, reitor da universidade, deixou
da “Faculdade Nacional de Philosofia, Sciencias e entrever o embate que se travaria mais à frente entre
Letras, que entre suas funções teria a de formar os as duas universidades e negou que existisse uma re-
professores secundários, integrada à Universida- lação de contraposição à UB, na criação da UDF. Ao
de do Brasil, instituição magna, ‘comprehensiva proclamar, “agora e já o ensino: é o pragmatismo im-
do ensino superior’”. Nas palavras de seu mentor mediato. Mas ha mais e melhor: haverá, mediatamen-
a universidade era “destinada a ser o maior centro te, a pesquiza”, faz presentes algumas das ideias que
de estudos e pesquisas do nosso paiz, para o fim estavam na base conceitual da criação da UDF, que
de construir um verdadeiro padrão, que influa per- se pretendia que fosse “não mais um esforço indivi-
manentemente na fixação do typo, na elevação do dual de alguns auto-didactas, senão extensão popular

90 sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade brasileira e formação docente na trama dos discursos…
e collectiva de culturas, que serão a cultura brasileira, uma palavra seja usada com um significado especí-
dado o exemplo, sempre fértil em contágios e imita- fico e com referência a uma realidade, ela é única”,
ções”. Outras expressões usadas no discurso como ou seja, em termos empíricos, aos conceitos não se
“ensino desinteressado e profissional”, “espírito uni- deve atribuir significados que não estejam relacio-
versitário”, “unidade cultural”, “consciência esclare- nados às suas experiências. Nos discursos analisa-
cida pela cultura”, “espírito universal” se entrelaçam dos um exemplo é dado pelo uso que Capanema
e desenham o espaço que privilegiaria a formação fez de “Nação”, “Estado”, “Pátria, “Família”, “Mo-
“dos futuros e definitivos professores”, todos brasi- ral”, tomados como valores a seguir e postulados
leiros, os mestres, “os primeiros productos da Uni- pedagógicos fundamentais da educação nacionali-
versidade. Esses brasileiros, os mestres do Brasil”. zadora destinada à formação da consciência patrió-
A partir da visão da universidade como difusora tica. No discurso de Anísio, como já mencionado, o
da cultura humana, Anísio já antecipava o modelo significado atribuído à Família, ao Estado, à Igreja,
da UDF, “universidade cujas escolas visam o pre- e à Escola é de gérmen, de alicerce, estruturantes
paro do quadro intelectual do país”, “de fins cul- dos indivíduos.
turais, buscará desenvolver o saber em todos os O outro exemplo refere-se às bases estabelecidas
seus aspectos, aspirando a transformar-se num dos para as ações no campo educacional: Capanema en-
grandes centros de irradiação científica, literária e fatizava a idéia de que a educação estava a serviço
filosófica do País”, e “ciosa das conquistas feitas da Nação, apontava que a civilização e o progresso
de liberdade de pensamento e de crítica”. Enfim, a do país eram produtos do trabalho e da educação e,
UDF, dedicada à cultura e à liberdade, nascia “sob portanto, era necessário que o ensino formal fosse a
o signo do sagrado, o que a faria trabalhar e lutar via privilegiada para construir um povo adaptado à
por um Brasil de amanhã, fiel às grandes tradições realidade e pronto para servir ao país; tinha-se nas
liberais e humanas do Brasil de ontem”. ações propostas para a juventude, o melhor exem-
Os dois discursos têm como palavras-chave plo. No discurso de Anísio a liberdade, a autono-
alguns dos fundamentos sob os quais se ergueu a mia, o ensino com pesquisa, e a cultura eram eixos
UDF, já pontuados acima: “unidade cultural”, “en- sob os quais as escolas da UDF preparariam o qua-
sino mediante pesquisa”, “espírito universitário”, e dro intelectual do país, o que vale dizer que era a
mais especificamente no discurso de Anísio, “liber- Nação que se servia da educação.
dade”, “autonomia”, “cultura”. Para além do óbvio, Em síntese, embora ambos usem os mesmos ter-
na defesa que ambos fazem do modelo representado mos, eles se tornam únicos nos discursos de cada
pela UDF, há alguns aspectos a destacar: um deles é um, porque os significados que lhes são atribuídos
o sentido que Anísio atribuiu à Família, ao Estado, estão referenciados em realidades diferentes: os lu-
à Igreja, e à Escola — “quatro grandes instituições gares de onde Capanema e Anísio Teixeira pensa-
fundamentais que constroem e condicionam a vida vam a educação e a universidade.
em comum do povo” além de “manter, nutrir e or- Na inauguração dos cursos da Faculdade Nacio-
denar a vida em comum” formam uma amálgama de nal de Filosofia (FNFi), em 1939, falaram o Minis-
tal modo que “a história de qualquer uma delas é, tro Gustavo Capanema e Alceu de Amoroso Lima,
de algum modo, a história da humanidade”. Outro pelo corpo docente. O discurso de Capanema já se
aspecto é a conotação dada ao saber e à cultura, a anuncia pelo título: A Cultura e o Espírito, Bases
que o homem devia servir, de forma a não se aprisio- da Nação. O ministro reconheceu que a faculdade
nar, mas de se tornar capaz de formação intelectual começou a funcionar sem maiores preparativos,
de maneira autônoma, livre e dotada de crítica. e declarou que o Governo por meio dos esforços
Decidi ressaltar esses aspectos como possibili- necessários tinha esperança de ver “a grande casa
dade de fazer uma síntese das idéias veiculadas nos da Faculdade Nacional de Filosofia, aparelhada e
discursos de Capanema e dos discursos que mar- organizada pela forma mais conveniente, e dentro
cam a instalação dos cursos da UDF. Para tanto, dela, por entre os mestres experientes, a alegre ju-
valho-me de mais uma das formulações de Koselle- ventude atraída pela nobre vocação do magistério e
ck (1992, pp. 134-146) que considera “que tão logo pelo gosto da cultura”. Assim, nascia a FNFi, com

sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade br asileir a e formação docente na tr ama dos discursos… 91
o propósito de aprimorar, orientar, disciplinar, nas intelectual, moral e cívica, formar e fortalecer o caráter
suas bases gerais, a cultura do país; esperava-se que dos alunos, dar “à juventude o sentimento de pátria,
dela e de seu exemplo resultassem influências vitais a compreensão da pátria como terra dos antepassa-
para todo o organismo educacional, desde o setor dos”. Ao ensino secundário atribuía-se a vocação de
primário até às diversificações universitárias. ensino das humanidades.
O discurso de Alceu é recorrente nas menções à
cultura, ao nacional, à nacionalidade, categorias que
estão subjacentes à expectativa que se tinha em rela- POR FIM, AS DÚVIDAS, AS QUESTÕES
ção à FNFi. Na realidade, penso serem esses discur- E OS OUTROS CAMINHOS
sos, em que pese o tom ufanista de louvor à pátria, à
nação e à construção da nacionalidade, expressões Encerrado o exercício de análise, ressalto dois as-
reduzidas do texto da exposição de motivos apre- pectos da história dos conceitos que me foram úteis
sentada ao Presidente da República, que tratava da porque permitiram cumprir os objetivos a que me
organização da Faculdade Nacional de Filosofia. No propus.O primeiro é sobre a necessidade de es-
texto na parte dedicada ao ensino secundário fica tabelecer conceitos que constituem vocabulários
evidenciado que a FNFi era o braço mais forte de específicos — campos semânticos ou domínios
inculcação de ideologia do Estado autoritário e da lingüísticos — da linguagem política e social, rela-
manutenção do estado de coisas, propiciado pela cionando os conceitos usados na discussão entre
hegemonia do Poder Central. Aos professores e os grupos que os sustentam ou os contestam, o que
somente a eles que seria permitido “professar nas foi feito a partir da enunciação das categorias mais
escolas secundárias”, forma de o ensino das huma- constantes nos discursos. Observei que, embora
nidades desenvolver-se com método e primor, com aparecessem nos domínios lingüísticos dos discur-
excelentes qualidades, que devia possuir, para que sos de Anísio e de Capanema, as categorias foram
“propiciasse à juventude aquele fundamento espiri- pensadas em uma relação recíproca de mudanças
tual sólido e sério para que a torne apta de modo ge- nos significados.
ral para a vida, e, de modo especial, para o ingresso O outro aspecto complementa o anterior, são as
nas escolas superiores, destinadas à formação dos “camadas temporais” — uma única expressão com
grupos culturais mais altos e aprimorados”. Como muitos significados associados a ela. Nos discur-
era no ensino secundário que os futuros professores sos, “espírito universitário”, “espírito universal”,
eram recrutados, fechava-se o ciclo: era aos “jovens “consciência patriótica”, “consciência esclarecida
vertebrados” que caberia mais adiante, replicar o pela cultura”, prestam-se a essa operação, uma vez
modelo e modelar outros jovens. que são conceitos que independentemente de seu
Por ocasião da formatura da primeira turma da formato original, acumularam uma variedade de
Faculdade Nacional de Filosofia, em 1942, o discurso significados ao longo do tempo, como observado
de Capanema é todo voltado para a missão do pro- nos discursos.
fessor do ensino secundário. As categorias “missão” O que me chamou especial atenção no discurso
e “pátria” pontuam todo o discurso, e reforçam a que fecha a análise é o vigor com que Capanema vei-
proposta do Estado Nacional de que “os professores cula as idéias, as propostas, e os conceitos centrais, os
ensinassem, preparassem as gerações de adolescentes conceitos matrizes, que estiveram na base da constru-
do país, para o superior experimento de seu destino ção da Universidade do Brasil, na criação da Facul-
humano e patriótico”. A insistência em pontuar a dade Nacional de Filosofia e orientaram o curso de
missão dos professores, fez com que Capanema su- formação de professores secundários. A considerar
blinhasse a necessidade de aperfeiçoar o ofício, e “en- que a essa época já se cumpriam oito anos à frente
tregar vosso coração, dar todos os impulsos da alma do ministério, e que se aproximava a mudança do re-
à tarefa de educar as parcelas da juventude que forem gime, não se percebe o desgaste que costuma acom-
sendo entregues à vossa guarda e direção”. Essa era panhar longas permanências em cargos públicos.
a condição para que fossem alcançados os objetivos Atribuo o fato à imensa capacidade de articulação
do ensino secundário de formar a personalidade política de Capanema, aos contratos de poder que

92 sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade brasileira e formação docente na trama dos discursos…
davam “estabilidade” aos grupos que se mantinham centralizador e burocratizado”, aspecto que a leva
hegemônicos, aos instrumentos políticos fornecidos a reconhecer que “a redemocratização de 1945 e as
pelo Estado Novo. Contudo, penso que o projeto transformações ocorridas no país e em seu sistema
universitário de Capanema foi para além da marca educacional, desde então, não irão alterar algumas das
ideológica que até hoje o identifica: transformou-se características originais básicas de sua concepção”.
em bandeira, em ideal. Sem desconsiderar a distância São questões como essa e outras tantas dúvidas
evidente entre o sonho de Capanema e sua realização, que me levam a refazer a trajetória do modelo orgâni-
Gomes (2003, p. 456) diz que o sistema universitá- co ao modelo “lógico” e estudar as implicações que a
rio público no Brasil, ganhou menos para o bem do mudança operou no curso de formação de professo-
que para o mal, “as marcas de um projeto altamente res secundários da Faculdade Nacional de Filosofia.

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Notas Maria Magaldi; Claudia Alves & José Gondra
(orgs.), Educação no Brasil: História, Cultura e
1. Ministro da Educação e Saúde, de 1934 a 1945. Política. Bragança Paulista: EDUSF, pp. 445-462.
2. Todas as referências às cartas e discursos foram Jasmin, Marcelo G. & Feres Junior, João (orgs.)
retiradas dos fundos arquivisticos de Gustavo Capa- (2006). História dos conceitos: debates e perspec-
nema e Anísio Teixeira (FGV/CPDOC — Rio de tivas. Rio de Janeiro: PUC-Rio/IUPERJ.
Janeiro). Koselleck, Reinhardt (1992). Uma história dos
conceitos: problemas teóricos e práticos. Estu-
dos Históricos (Rio de Janeiro), 5, 10, pp. 134-146.
Referências bibliográficas Lopes, Sonia de C. (2007). Um modelo autônomo
e integrador de formação docente: a breve ex-
Bomeny, Helena M. B. (1999). Três decretos e um periência da Universidade do Distrito Federal
ministério: a propósito da educação no Estado (1935-39). In Anais do Congreso Ibero Americano
Novo. In Dulce Pandolfi (org.), Repensando de Historia de la Educación Latino Americana.
o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, Buenos Aires: Sociedad Argentina de Historia
pp. 137-166. de la Educación (CD-Rom).
Fávero, Maria de Lourdes (coord.) (1989). Facul- Mendonça, Ana Waleska P. C. (2002). Anísio Teixei-
dade Nacional de Filosofia: projeto ou trama uni- ra e a Universidade de Educação. Rio de Janeiro:
versitária? Rio de Janeiro: UFRJ. EdUERJ.
Gomes, Ângela de C. (2003). O primeiro governo Pandolfi, Dulce (org.) (1999). Repensando o Estado
Vargas: projeto político e educacional. In Ana Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV.

94 sísifo 11 | vera lucia alves breglia | universidade brasileira e formação docente na trama dos discursos…
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

Páginas do professorado: Um estudo sobre


profissão e formação docente em periódicos católicos
(anos 1930 — Brasil/Portugal)
Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi
anamagaldi@superig.com.br
Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ, Brasil

Resumo:
O presente texto pretende produzir um exercício de reflexão sobre estratégias de forma-
ção docente encaminhadas através da imprensa católica, considerada importante meio de
moldagem de almas. Em um esforço comparativo, estará sendo conferida atenção a seções
semanais publicadas em jornais católicos diários que circularam no Brasil e em Portugal,
nos anos 1930, e que elegem os professores como destinatários de suas mensagens.

Palavras-chave:
Imprensa católica, Formação docente, Catolicismo e educação, História da educação
comparada Brasil-Portugal.

Magaldi, Ana Maria Bandeira de Mello (2010). Páginas do professorado: Um estudo sobre profissão
e formação docente em periódicos católicos (anos 1930 — Brasil/Portugal). Sísifo. Revista de Ciências
da Educação, 11, pp. 95-104
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

95
IMPRENSA CATÓLICA blicas, abolidas por ocasião da implantação do regi-
E CENA EDUCACIONAL me republicano, em 1889. Nesse quadro político do
início da década de 1930, pautado pela indefinição,
A imprensa católica tem se mostrado como impor- intensos debates e disputas acirradas se desenvol-
tante fonte e objeto de pesquisa para a história da veram em torno da política educacional do novo
educação. O assumido viés doutrinário de que se regime, confrontando os educadores católicos com
reveste, ao procurar moldar consciências em sinto- outro grupo de educadores que compartilhavam,
nia com o projeto católico, traduz uma marca edu- em linhas gerais, o ideário da Escola Nova — co-
cativa expressiva, considerando-se aqui a noção de mumente identificados como “escolanovistas”²—,
educação em uma perspectiva ampliada. defensores de um modelo de escola pública laica
Nos anos 1930, a Igreja Católica esteve fortemen- e também desejosos de produzir interferência na
te envolvida na condução, em nível internacional, do vida educacional brasileira. Diante da instabilidade
movimento de Ação Católica. Estimulado por suas observada quanto aos rumos do país, a imprensa
instâncias hierárquicas de inúmeros países, como católica atuou nos debates no sentido de fomentar
Brasil e Portugal, esse movimento foi encaminhado a unidade em torno dos princípios da Igreja, con-
por meio de múltiplas organizações, congregando tribuindo para a obtenção de vitórias expressivas
setores sociais diferenciados. Nesse projeto de mo- junto ao regime de Getúlio Vargas, entre as quais se
bilização dos leigos sob a orientação da hierarquia situou com destaque o retorno do ensino religioso
da Igreja Católica, no sentido do combate ao que nas escolas públicas brasileiras, em 1931.
era representado como os males que assolavam a so- Também em Portugal, sob a égide do regime
ciedade da época, provocados pela disseminação do salazarista, cuja aproximação da Igreja é uma mar-
laicismo e de outros valores identificados com a mo- ca conhecida, inclusive no âmbito educacional,
dernidade, conferiu-se à imprensa um papel-chave. observa-se um investimento significativo no esta-
Na sociedade brasileira da época, as ações con- belecimento de consensos em torno de um credo
duzidas pela Igreja e em especial pelo movimento político e religioso, tarefa que será desenvolvida,
católico, organizado institucionalmente desde a do mesmo modo que no Brasil, entre outros meios,
década anterior, tiveram no campo educacional um pela imprensa católica. No contexto focalizado, o
alvo da maior importância. Com a chegada de Ge- regime já havia sido institucionalizado, vigorando,
túlio Vargas ao poder, em 1930, configurava-se um desde 1933, o Estado Novo. E, ainda que este não te-
novo campo de possibilidades¹ para aquele movi- nha se estabelecido como um Estado confessional,
mento, mobilizado, entre outros eixos, em prol do “apontou à hierarquia da Igreja a tarefa da ‘recris-
retorno das aulas de ensino religioso nas escolas pú- tianização’ do país, após décadas de secularização

96 sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão…
republicana e liberal, fechando-lhe, por desneces- Seções como “Filosofia e Psicologia Educacionais”
sária, a esfera política e abrindo-lhe a esfera social e “Sociologia Educacional”, dedicavam-se à publi-
e religiosa” (Pinto, 2007, p.  35). Nesse quadro, o cação de artigos diversos concernentes a essas áreas
“reforço da unidade dos católicos, a secundarização do conhecimento pedagógico, crescentemente va-
das divisões políticas e o desenvolvimento de um lorizadas em um quadro de constituição dos “es-
projeto de recristianização da sociedade implica- pecialistas em educação”. Nas páginas da revista
vam o desenvolvimento da imprensa católica” (Fon- podem ser encontradas também, constantemente,
tes, citado em Barreto & Mónica, 2000, p. 247). indicações de leitura úteis para educadores, estra-
Tanto no Brasil, quanto em Portugal, circula- tégia voltada para o embasamento de sua prática
ram, à época, periódicos católicos de tipos diversos, educacional. Num cenário marcado pela progres-
alguns dos quais dedicados mais particularmente siva cientificização dos saberes pedagógicos e das
ao tema educacional. No interior desse conjunto, práticas educativas, pode-se observar que os educa-
situam-se também, nos dois países, jornais diários, dores católicos, ainda que se confrontassem com os
dotados de um escopo abrangente e destinados a escolanovistas em vários aspectos, como o da defesa
um público diversificado, nos quais, em meio a pá- da escola laica e da co-educação, incorporavam ou-
ginas dedicadas a matérias e reportagens variadas, tras de suas formulações. Em especial, valorizavam
acompanhando o dia-a-dia de sua sociedade em aquelas relacionadas diretamente à prática pedagó-
seus múltiplos aspectos e também os acontecimen- gica, ao “como ensinar”, aspecto considerado valio-
tos internacionais, o caráter de formação de almas so na formação de um educador, pela aplicabilidade
católicas se evidencia com grande relevo. e eficácia que as proposições escolanovistas vinham
Se, no caso da imprensa católica, o perfil edu- demonstrando na época. Essa marca, observada na
cativo/doutrinário aparece como uma marca revista em questão, deu o tom, por exemplo, da se-
compartilhada, observa-se, entre as publicações as- ção, também publicada com regularidade e intitula-
sinaladas, algumas que tiveram como destinatários da “Debates sobre a Escola Nova”.
privilegiados os professores. Isso porque, para além O que se observa, no caso dessa revista, é um
da importância conferida, de longa data, pela Igreja forte investimento no sentido da transmissão de co-
e, em especial, pelas ordens religiosas, à formação nhecimentos considerados de importância para a
de docentes em espaços institucionais específicos, formação docente e para a atualização permanente
eram valorizadas outras iniciativas também dotadas dos educadores, tendo como apoio referências en-
de viés formativo. No caso da sociedade brasileira, tão valorizadas em termos pedagógicos. No caso da
merecem destaque as múltiplas estratégias edito- revista portuguesa Edificar (1935-1944), temas peda-
riais acionadas pelo movimento católico — assim gógicos e religiosos também eram tratados, como for-
como também o foram pelo movimento da Escola ma de fornecer apoio ao trabalho dos educadores4.
Nova (Carvalho, 1994, 1998a), muitas das quais ten-
do docentes ou futuros docentes como destinatá-
rios principais. FOLHEANDO AS PÁGINAS
Entre essas intervenções conduzidas no campo DO PROFESSORADO
editorial, situa-se, por exemplo, no campo católi-
co, a Revista Brasileira de Pedagogia, que possuía Não foram apenas as revistas voltadas para temas
como uma marca interessante a do diálogo estabe- educacionais que abriram espaço, em suas páginas,
lecido com as proposições escolanovistas³. Nessa para a questão da educação. Esta também compa-
publicação dirigida a professores e professoras, esse receu com destaque na imprensa diária brasileira,
viés de aproximação pode ser observado a partir do aspecto demonstrativo da força dos debates educa-
exame das seções voltadas para temáticas pedagógi- cionais em curso nos anos 19305. No campo católico,
cas, cujo tratamento apoiava-se em diversos campos assumiu importância o jornal mineiro O Diário, pu-
de saber que se afirmavam crescentemente então, blicação da Arquidiocese de Belo Horizonte, editada
em um tempo em que o próprio campo educacio- pela Associação da Boa Imprensa, órgão ligado ao
nal também se constituía, na sociedade brasileira. movimento de Ação Católica. Apesar de editado em

sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão… 97
Belo Horizonte, o jornal circulava para além dessa ci- A existência de seções dirigidas a professores nes-
dade e mesmo do estado de Minas Gerais, atingindo, se jornal, no entanto, não se resumiu a essa página.
por exemplo, o Rio de Janeiro, capital da república, Tanto num período anterior, quanto posterior à sua
que não possuía seu próprio diário católico. publicação, outras seções também compareceram
O jornal começou a ser editado em 1935, num nas páginas do jornal. Quando a Página do professo-
quadro político diferente daquele característico do rado passou a ser editada, o espaço dedicado a temá-
início da década, mas ainda pouco consolidado em ticas educacionais assumiu periodicidade semanal,
termos da política educacional. Apesar do retorno sendo ainda ampliado, ao passar a ocupar uma folha
do ensino religioso às escolas estatais, este ainda inteira do suplemento, que incluía matérias diversas,
era um aspecto duramente combatido pelos edu- artigos de autoria de educadores brasileiros, tradu-
cadores defensores da laicidade do ensino público, ções de textos de cunho educacional, resenhas de
num momento em que se encaminhavam discussões livros, sugestões de obras didáticas, cartas dos leito-
em torno da formulação de um Plano Nacional de res, estórias de cunho religioso, propagandas, notí-
Educação, que deveria definir um modelo único de cias sobre a carreira do professorado, além de textos
educação para o país, sendo por isso importante a opinativos de Pe. Boing. Nestes artigos, observa-se
reafirmação das posições da Igreja. No que se refe- que o responsável pela página dedicava-se a temas
re à feição do regime varguista, assistia-se, em 1935, variados que diziam respeito à vida dos professo-
a um processo crescente de fechamento dos canais res, como o da defesa dos interesses profissionais
de participação política da sociedade, com o regime do magistério, de seu prestígio e de sua preparação
adotando progressivamente um viés autoritário, o adequada, posição com base na qual exortava seus
qual, no entanto, somente se consolidaria de forma leitores a se agruparem em “congregações e associa-
definitiva com o golpe de novembro de 1937. Neste ções especiais para, cada vez melhor, cultivarem o
momento, seria instaurada oficialmente a ditadura espírito, as quais são bem dignas de serem louvadas
do Estado Novo, sendo, inclusive, digno de nota que e promovidas como poderosas e nobilíssimas auxi-
o novo regime fosse batizado com o mesmo nome liares da ‘Ação Católica’” (O Diário, 26/7/1936, p. 6).
dado ao regime português então vigente, tal como Desse modo, Pe. Boing também estimulava o engaja-
vêm assinalando outros estudos comparativos6. No mento de seus leitores ao Centro regional da CCBE,
contexto apresentado, a Igreja Católica e seus repre- que presidia. Tratava ainda da formação conduzida
sentantes se constituíram em parceiros destacados nas escolas normais, que considerava de qualidade
do regime varguista, aproximando-se, por exemplo, deficiente, defendendo por isso reformas, com vista
na defesa de posições de autoridade e no anticomu- a torná-la mais apropriada para o exercício daquela
nismo. Essa sintonia seria observada de forma parti- que considerava “‘a arte das artes’ (…), de dirigir e
cular no campo educacional, o que pode ser aferido, formar a juventude” (O Diário, 26/7/1936, p. 6).
por exemplo, pela presença constante de lideranças O funcionamento de outros aspectos do sistema
católicas no gabinete do ministro da Educação Gus- de ensino brasileiro também foi alvo de suas críti-
tavo Capanema. cas, assim como a pouca eficácia do ensino religio-
No jornal O Diário, passou a ser publicada, em so, a seu ver excessivamente intelectualista. Nessa
julho de 1936, uma seção dirigida a professores, a Pá- matéria, defendia ações voltadas para aproximar o
gina do professorado, sob a responsabilidade do Pa- ensino religioso da vivência dos alunos, de modo
dre Guilherme Boing, apresentado como presidente a que estes introjetassem as verdades essenciais
do Centro Regional de Minas Gerais de Professores da fé católica. Essa preocupação, indicando a ne-
Católicos, seção da Confederação Católica Brasileira cessidade de investimento na qualidade do ensino
de Educação (CCBE)7. A Página, semanal, foi pu- religioso já adotado no país, se constituiu no foco
blicada durante um período de sete meses, incluída principal do II Congresso Nacional de Educação
comumente num suplemento dominical que tra- Católica, evento de repercussão nacional, realizado
zia, ainda, outras seções destinadas a outros atores em outubro de 1937, em Belo Horizonte, sob a pre-
também considerados estratégicos na construção sidência de Pe. Boing e noticiado com destaque na
de uma “nação católica”: as mulheres e as crianças. Página do professorado8.

98 sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão…
Essa questão se relacionava, por sua vez, com a para os desafios enfrentados e a enfrentar. Buscava-
idéia de educação integral, constantemente defendi- -se atingir essa meta, tanto através da divulgação de
da na seção analisada, assim como o era no âmbito conhecimentos pedagógicos — por meio de artigos
dos posicionamentos escolanovistas — ainda que e da divulgação de livros —, quanto do reforço da
numa perspectiva bem distinta —, à medida que Pe. preparação espiritual, também considerada um ele-
Boing, assim como seus pares, não concebia a pos- mento crucial para a construção do bom professor
sibilidade de os professores educarem integralmente católico. Assim, ainda que representações de voca-
seus alunos, sem o concurso da formação religiosa ção e de eleição/missão divina pudessem se mostrar
de base católica. Educação, nesse caso, apresentada presentes na seção analisada, é dado destaque, nesse
num registro muito diferente do da instrução. E que mesmo espaço, à noção de um professor em cons-
deveria envolver a construção de um lugar de auto- trução, em preparação permanente, processo para o
ridade por parte do professor, compreendido não a qual a Página do professorado procurava contribuir.
partir da imposição, atitude vista como ineficaz e que Ainda sobre as imagens de professor que emer-
provocaria a reação contrária dos alunos, mas como gem das páginas focalizadas, observa-se que elas
um lugar construído e legitimado a partir do exemplo não valorizavam, de modo geral, um acento de gê-
a ser fornecido pelo educador, apoiado em valores nero. O autor dos artigos dirigia-se, por exemplo,
morais consistentes e aferido através de sua prática. a “professores”, a “professores e professoras”, a
Se o tema da autoridade era apresentado pelo “educadores”, a “mestres”, ao “professorado”, in-
editor da seção como um “dos mais difíceis pro- dicando uma referência genérica a um contingente
blemas (…) sobretudo no nosso tempo no qual rei- de atores envolvidos nas práticas educativas e que,
na o espírito e a tendência à liberdade” (O Diário, ao menos no nível do ensino primário, já se mostra-
8/11/1936), outros aspectos das “novidades pedagó- va, tanto no Brasil, quanto em Portugal, como ma-
gicas” da época, comumente identificadas ao escola- joritariamente feminino. Essa forma de abordagem
novismo, também eram objeto de questionamentos pode ser compreendida pelo fato de professores do
na Página do Professorado. Em artigo publicado ensino secundário e superior também serem cons-
na primeira edição da seção, Pe. Boing assinalava, tituídos como destinatários da seção, integrando o
defendendo a adesão a referências seguras frente à grande agrupamento do “professorado católico”, o
desorientação provocada pelas novidades trazidas à qual, independentemente do nível de ensino em que
tona no campo educacional: “também hoje em dia, atuasse, deveria desempenhar a mesma missão dou-
muitos se sentem surpreendidos e empolgados pe- trinária e civilizadora em nome da Igreja, inspirada,
las ‘novas’ ideias pedagógicas ou carecem de firme- por sua vez, pelo exemplo de Jesus Cristo.
za de caracteres e de convicção religiosa para não No caso das professoras, ainda que não tenham
sucumbir diante do espírito pedagógico de nossa sido constituídas como destinatárias especiais das
atualidade” (O Diário, 19/7/1936). Apesar dessa mensagens veiculadas, apareciam como objeto da
situação ameaçadora, a visão transmitida pelo edu- análise do autor dos artigos, em matérias referen-
cador, ao prosseguir em sua reflexão, era de que as tes a dois temas. Por um lado, Pe. Boing assumia-
novas ideias não deveriam absolutamente ser recha- -se a favor do celibato pedagógico, defendendo a
çadas automaticamente: “um afastamento egoísta conveniência de a mulher, ao se casar, afastar-se do
com respeito à intensa ação pedagógica do tempo magistério. Por outro lado, são apresentadas ainda,
atual nem é razoável, nem apologético, nem con- de forma pontual, críticas dirigidas às professoras
forme o espírito da encíclica pontifícia. Ao mesmo que não se portariam de forma condizente com os
tempo devemos ter a coragem de examinar a moder- padrões de moralidade considerados apropriados
na pedagogia segundo seu valor e combater sua par- para o exercício de sua função. Cabe lembrar que,
cialidade ou até mesmo seu espírito anti-cristão”. naquela ambiência, se a questão moral situava-se
O que se pode observar a partir do exame da Pá- como um aspecto fundamental na constituição de
gina do professorado, e em especial dos artigos de seu qualquer educador católico, sobre a mulher pro-
editor, é o intento de serem produzidos consensos fessora as exigências de moralidade e virtude eram
no seio do magistério católico, de modo a prepará-lo definidas, em ambas as sociedades focalizadas, com

sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão… 99
base em parâmetros muito mais rigorosos, o que se diz e do que se faz e filtrar todos os conhecimentos
deve compreender a partir de uma perspectiva de pelo seu critério próprio, esclarecido pelas verdades
gênero, indicativa da definição dos lugares e dos fundamentais da sua fé” (Novidades, 19/1/1937)
papéis sociais atribuídos aos sujeitos e deles e de- A ciência é valorizada em sua aplicação edu-
mandados na vida social. Numa nota intitulada “Lá cacional — relativa à psicologia experimental, por
em Portugal” — demonstrativa das aproximações exemplo —, sendo assinalado, no entanto, que a
estabelecidas com a sociedade portuguesa —, por “educação apoiada só nos dados das ciências po-
exemplo, são apresentadas referências elogiosas a sitivas, (…) é a mais perigosa (…)” (Novidades,
uma regulamentação estabelecida naquele país, por 19/5/1936) Por isso, a dimensão doutrinária do pa-
meio da qual se impedia que a professora pintasse pel do professor, definida em nome de Deus e da
seu rosto, ou se vestisse com roupas pouco recata- Pátria, era enfatizada na seção.
das (O Diário, 26/7/1936). Nessa direção, o professor era assinalado no
No mesmo período de publicação da Página do exercício de uma ação educativa ilimitada, sendo
professorado brasileira, o jornal católico português a relevância de sua função referendada pelo mi-
Novidades publicava também uma página de forma- nistro da Educação Nacional, Carneiro Pacheco,
to bastante semelhante. Também o título fazia lem- cujo comparecimento frequente na Página escolar
brar a congênere brasileira: Página escolar. No caso é digno de nota. Nas páginas da publicação portu-
da seção portuguesa, sua edição se deu durante um guesa, a presença direta de uma voz representante
período muito mais longo, situando-se desde 1927 do núcleo de poder estatal apresenta-se como um
até 1937, quando foi substituída por um suplemento importante indício da forte parceria entre a Igreja
chamado Ação Escolar, que seria editado por muitos e o regime salazarista, divulgada para os professo-
anos. A responsabilidade sobre a mesma esteve nas res, de modo a engajá-los na mesma. Esse foi o caso,
mãos de Antônio Leal, educador, colaborador de por exemplo, da reforma educacional encaminhada
diversos outros periódicos católicos e presidente, à pelo mesmo ministro, muito elogiada na seção e que
época, da Liga Escolar Católica (Remédios, 2003, possuía como uma de suas decisões a da colocação
p. 13). A Página incluía, por exemplo, artigos opina- obrigatória de crucifixos nas escolas primárias. Essa
tivos não assinados, o que sugeria serem de respon- decisão, por sua vez, foi noticiada e comentada po-
sabilidade da editoria, além de artigos assinados por sitivamente em várias edições da Página escolar,
outros autores, respostas a consultas de professores de modo a reforçar a adesão e o engajamento dos
e informações sobre revistas recebidas, de interesse educadores, estimulando-os a servir tanto a Deus,
para professores. como à Pátria, que assumia o catolicismo como reli-
No caso dessa seção portuguesa, no período fo- gião oficial. Ainda de modo a completar a tríade do
calizado de modo particular, que é o que coincide regime, a Família foi também uma instituição que se
com a publicação da seção brasileira, situada entre constituiu em alvo de muitos artigos da seção, cuja
1936 e 1937, e considerando-se em especial os arti- abordagem situava-se no sentido de marcar seu pa-
gos opinativos da editoria, observa-se a existência pel essencial na formação dos indivíduos, de cuja
de pontos de contato em relação à Página brasileira, colaboração a escola não poderia prescindir.
quanto aos temas tratados, relativos à vida educa- O viés espiritual e doutrinário como marca fun-
cional e ao papel social do professor. damental da educação e do papel docente, enfatizado
Do mesmo modo, é defendida a ideia da educa- na seção, justificava-se, em grande medida, devido às
ção integral, incluindo necessariamente a dimensão ameaças representadas pelo comunismo — e o caso
da educação religiosa. Os leitores educadores são, da Espanha, em guerra civil, era apresentado como
ainda, orientados no sentido da conveniência de es- exemplo da suposta realidade do perigo — e à neces-
tabelecer contato com as novidades pedagógicas en- sidade de combatê-las. E, segundo era assinalado na
tão apresentadas, como se observa das palavras: “ao seção, “tem de ser cristã a pedagogia anti-comunista”
escol pedagógico católico não pode ser estranho o (Novidades, 15/6/1936). No que se refere ao antico-
movimento intelectual que vai pelo mundo no do- munismo, as aproximações em relação à Página
mínio da pedagogia. Precisa de estar a par do que se brasileira são evidentes, sendo observável, também

100 sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão…
nesta última, a referência recorrente ao caso espanhol, e Portugal, devem ser observadas ainda, na análise
apresentado como exemplo negativo, em um cenário dessas páginas, a sua inscrição em um projeto dou-
internacional pontuado pelos radicalismos políticos. trinário e político bem mais abrangente, definido a
Com base na reflexão desenvolvida, pode-se partir das instâncias hierárquicas da Igreja Católica,
considerar que as seções dos jornais diários, bra- cujas diretrizes eram — como ainda são — dissemi-
sileiro e português, dirigiam-se aos professores, nadas universalmente9. Deve-se considerar, portan-
com a intenção de cimentar sua unidade em torno to, a configuração de uma extensa rede institucional
dos princípios católicos, fazendo com que estes se de caráter transnacional, dotada de um grau signi-
constituíssem, mais e mais, em elementos confor- ficativo de coesão, ainda que se deva assinalar, por
madores da identidade nacional de seus países. As outro lado, a expressão de singularidades nas for-
palavras do ministro português já citado, em um mas de apropriação e de condução dessas diretrizes
artigo publicado na Página escolar, sublinhavam a por parte das instâncias hierárquicas de cada país,
importância da missão atribuída aos professores: “o dos diferentes setores do movimento de Ação Ca-
mestre não é um burocrata, mas um modelador de tólica desses países, assim como dos órgãos da im-
almas e de portugueses” (Novidades, 23/6/1936). As prensa católica. A ideia de uma conexão “pelo alto”,
mesmas seções buscavam, ainda, fornecer aos mes- conduzida a partir de um núcleo de poder definido,
tres preparo acerca das questões pedagógicas e pro- torna-se útil, então, para a análise das seções dos
fissionais, apresentadas em articulação indissociável jornais católicos, contanto que não seja considerada
com a dimensão religiosa. como um ponto de vista fixo. Assim, o recurso a di-
E ainda que pudessem ser observados, nos arti- ferentes “escalas de observação” (Revel, 1998), com
gos publicados nas duas seções, elementos próprios a ampliação ou a diminuição do foco dirigido ao ob-
a cada uma das sociedades em particular, em ambas jeto — passível de ser pensado, tanto na perspectiva
as Páginas observam-se referências mais gerais ao mais ampliada da imprensa católica, quanto naque-
papel do professor relacionado à efetivação de um la que envolve a atenção a publicações específicas
projeto de nação católica. Merece ainda destaque a editadas em sociedades diferentes —, pode mostrar-
presença, tanto na Página do professorado, quanto -se interessante para a reflexão sobre as diversas ca-
na Página escolar, de elementos indicativos de for- madas de significados que emergem da leitura das
mas de conexão entre os países, envolvendo a circu- Páginas católicas dirigidas ao professorado.
lação de idéias católicas.
Mas, para além do foco nos cenários nacionais,
e na circulação de ideias estabelecida entre Brasil

sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão… 101
Notas Fontes documentais

1. Sobre a noção de campo de possibilidades, cf. Revista Brasileira de Pedagogia. Rio de Janeiro:
Velho, 1994. Confederação Católica Brasileira de Educação
2. Cabe assinalar que ambos os rótulos com que se (1934/1938).
nomeiam os grupos em questão envolvem uma forte O Diário. Belo Horizonte: Associação da Boa Im-
imprecisão, sendo conveniente considerar a existên- prensa (1936/1937).
cia de inúmeros matizes no interior de cada um. Novidades. Lisboa: União Gráfica (1936/1937).
3. Estudos relevantes no âmbito da historiogra- Edificar. Lisboa: Liga Escolar Católica (1935/1944).
fia da educação brasileira vêm problematizando a
noção de que o grupo católico e o escolanovista se
encontrariam em posições estanques, marcadas Referências bibliográficas
pela polaridade. Trabalhos como os de Marta Car-
valho, entre outros, têm chamado a atenção para as Barreto, António & Mónica, Maria Filomena.
interfaces entre os grupos, sublinhando a existên- (2000). Dicionário de história de Portugal. Lis-
cia de apropriações — ainda que fortemente seleti- boa: Figueirinhas.
vas — de proposições escolanovistas por educadores Carvalho, Marta M. Chagas de (1994). Uso do im-
católicos, configurando o que aquela autora concei- presso nas estratégias católicas de conformação
tua como escolanovismo católico (Cf. Carvalho, 1994, do campo doutrinário da pedagogia (1931-1935).
1998b e 2003; Magaldi, 2007 e Sgarbi, 1997). Cadernos ANPED (Belo Horizonte), 7, pp. 41-60.
4. Não foi possível, até o momento, realizar uma Carvalho, Marta M. Chagas de (1998a). A Escola
análise criteriosa desta revista, de modo a investigar, Nova e o impresso: um estudo sobre estratégias
por exemplo, se também seria observado diálogo, editoriais de difusão do escolanovismo no Bra-
como na revista brasileira, com as idéias escolano- sil. In Luciano Mendes Faria Filho (org.), Mo-
vistas. Cabe assinalar que Edificar teve outras publi- dos de ler, formas de escrever: estudos de história
cações que a sucederam, o Boletim Mensal da LEC da leitura e escrita no Brasil. Belo Horizonte:
(1945) e A Nossa Escola (1946/1974), também fontes Autêntica, pp. 65-86.
de pesquisa valiosas para a investigação sobre nossa Carvalho, Marta M. Chagas de (1998b). Molde
temática em outras temporalidades. nacional e fôrma cívica. Bragança Paulista, SP:
5. Cf., por exemplo, a Página da Educação, EDUSF.
publicada diariamente no jornal carioca Diário de Carvalho, Marta M. Chagas de (2003). A escola e
Notícias, no período de 1930 a 1933, sob a respon- a república e outros ensaios. Bragança Paulista:
sabilidade da poetisa e educadora Cecília Meire- EDUSF.
les, defensora das proposições da Escola Nova (Cf. Magaldi, Ana Maria Bandeira de Mello (2007). Li-
Magaldi, 2007, Cap. 2). ções de casa: discursos pedagógicos destinados à
6. Cf., por exemplo, Martinho e Pinto, 2007. família no Brasil. Belo Horizonte: Argvmentvm.
7. A CCBE, fundada em 1933, foi uma instituição Martinho, Francisco Carlos Palomanes & Pinto,
que emergiu na cena educacional brasileira, a par- Antônio Costa (2007). O corporativismo em por-
tir do afastamento dos educadores católicos em rela- tuguês. Estado, política e sociedade no salazaris-
ção aos escolanovistas, antes situados lado a lado nas mo e no varguismo. Rio de Janeiro: Civilização
fileiras da Associação Brasileira de Educação (ABE), Brasileira.
criada em 1924. Narcizo, Rodrigo Mota (2008). Ministro de Deus,
8. Sobre este evento, cf. Narcizo, 2008. portador da luz: ações e discursos católicos de mo-
9. Cf., no caso da educação católica, a encíclica delação docente na década de 1930. Dissertação
Divini Illius Magistri, de Pio XI, de 1929. de Mestrado. Rio de Janeiro: Programa de Pós-
-graduação em Educação — ProPEd — UERJ.
Pinto, Antônio Costa (2007). O Estado Novo por-
tuguês e a vaga autoritária dos anos 1930 do

102 sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão…
século XX. In Francisco Carlos Palomanes Sgarbi, Antônio D. (1997). Igreja, educação e mo-
Martinho & Antônio Costa Pinto, O corporati- dernidade na década de 30. Escolanovismo católi-
vismo em português. Estado, política e sociedade co: Construído na CCBE, divulgado pela Revista
no salazarismo e no varguismo. Rio de Janeiro: Brasileira de Pedagogia. Dissertação de Mestra-
Civilização Brasileira, pp. 17-43. do. São Paulo: PUC/SP.
Remédios, Maria José (2003). O jornal católico No- Velho, Gilberto (1994). Memória, identidade e pro-
vidades. Revista Brasileira de História da Edu- jeto. In Gilberto Velho, Projeto e metamorfose:
cação (Campinas: Autores Associados), 6 (jul./ antropologia das sociedades complexas. Rio de
dez.), pp. 9-27. Janeiro: Jorge Zahar, pp. 97-105.
Revel, Jacques (org.) (1998). Jogos de escalas: a
experiência da microanálise. Rio de Janeiro:
EdFGV.

sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão… 103
104 sísifo 11 | ana maria bandeir a de mello magaldi | páginas do professor ado: um estudo sobre profissão…
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“Estabelecer a unidade moral e intelectual


do professorado”: A construção da profissão docente
em revistas pedagógicas do Brasil e de Portugal
no final do século XIX
Ana Lúcia Cunha Fernandes
analucia@ie.ul.pt
Universidade de Lisboa, Portugal

Resumo:
O texto apresenta aspectos relativos à profissão docente presentes no discurso produzido
e veiculado por revistas pedagógicas do Brasil e de Portugal publicadas no final do século
XIX. Procura evidenciar a génese e o desenvolvimento de um conhecimento especializado
sobre a educação e a profissão docente naquele período, numa perspectiva comparada,
por meio da análise de publicações periódicas dos dois países.
Analisa-se a produção desse discurso com base num corpo de conhecimentos especia-
lizados e numa identidade de práticas e saberes, no contexto da consolidação das ciências
sociais e humanas e da emergência do modelo da escola de massas. Percebeu-se tal conhe-
cimento como fundamentação teórica, afirmação de um corpo de conhecimentos essen-
ciais necessários ao desempenho da profissão docente, e também como um conjunto de
formulações sobre os diversos aspectos ligados ao universo educativo: alunos, programas,
métodos, edifícios escolares, práticas pedagógicas, currículo, etc.
Procura-se demonstrar que tais Revistas desempenharam um papel fundamental na
circulação e na produção de saberes ligados à educação e, consequentemente, na progres-
siva constituição do campo pedagógico e da profissão docente, por meio da veiculação de
um discurso educacional cada vez mais especializado.

Palavras-chave:
História da educação, Profissão docente, Imprensa pedagógica, Conhecimento peda-
gógico

Fernandes, Ana Lúcia Cunha (2010). “Estabelecer a unidade moral e intelectual do professorado”:
A construção da profissão docente em revistas pedagógicas do Brasil e de Portugal no final do século
XIX. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 105-114.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

105
IMPRENSA EDUCACIONAL de aluno, professor, e do próprio conhecimento no
E REVISTAS PEDAGÓGICAS interior dos espaços escolares, por meio da cons-
trução, transmissão e recepção das ideias através do
Muitos têm sido os estudos que têm privilegiado a tempo e do espaço.
Imprensa Periódica Educacional como objecto e/ A análise do conteúdo das Revistas foi realiza-
ou como fonte primordial de investigação, na me- da com base num processo de recolha de dados
dida em que tais publicações permitem apreender utilizando-se o Programa Access, indexando as
a multidimensionalidade do campo educacional e referências mais citadas nos artigos publicados
compreender as dificuldades de articulação teoria- em termos de autores, periódicos, organismos e
-prática, além de possibilitar também a identificação organizações internacionais, países, comunida-
dos principais grupos e personagens de uma deter- des transnacionais e áreas de conhecimento, além
minada época histórica. Além disso, constituem uma das referências a livros e a outros artigos. Este
instância original para a compreensão das formas de procedimento de recolha e de classificação visou
funcionamento desse campo, já que fazem circular contextualizar a forma como tais referentes foram
informações sobre o trabalho pedagógico e o aper- mobilizados, permitindo, de um lado, evidenciar
feiçoamento das práticas educativas, a organização as relações entre o campo da educação e os ou-
dos sistemas, as reivindicações dos professores, além tros campos e, de outro, estudar as relações entre
de outros temas relativos ao universo educativo. o campo nacional e o de outros países. Este foi o
No caso específico deste trabalho, optou-se procedimento de análise comum aos dois conjun-
por analisar revistas pedagógicas (aquelas que ma- tos de fontes (todos os volumes que constituem o
nifestamente se dirigiam aos professores) devido período de existência das duas Revistas) que per-
à percepção desse material como particularmente mitiu estabelecer critérios de classificação que, por
interessante no que diz respeito ao fornecimento sua vez, possibilitaram estabelecer comparações
de indicações sobre a produção e a circulação de quanto às temáticas predominantes, assuntos mais
um discurso educacional especializado ou eminen- recorrentes etc. Além disso, em função de suas ca-
temente pedagógico, partindo da premissa de que racterísticas peculiares, cada uma das Revistas foi
todo campo disciplinar resulta de um projecto co- alvo de um trabalho minucioso de análise específi-
lectivo, mais ou menos conscientemente construído ca e diferenciada, no que diz respeito ao conteúdo
e colectivamente dirigido¹. dos artigos e aos aspectos materiais de cada publi-
Nessa perspectiva, busca-se compreender como cação, de modo a estabelecer as continuidades e
os discursos pedagógicos foram definindo as sub- descontinuidades que pudessem dar corpo à aná-
jectividades, as identidades (categorias, populações) lise das publicações.

106 sísifo 11 | ana lúcia cunha fernandes | “estabelecer a unidade mor al e intelectual do professor ado”…
A escolha dos periódicos recaiu sobre a Revis- ligados à educação, à progressiva institucionaliza-
ta Pedagógica (1890-1896), do Brasil, e a Revista de ção do campo pedagógico, bem como à profissão
Educação e Ensino (1886-1900), de Portugal. docente, por meio da veiculação de um discurso
A Revista Pedagógica inseria-se numa das fina- educacional cada vez mais especializado. Entende-
lidades (no caso, a publicação de uma revista) do -se que as Revistas, ao mesmo tempo que veicula-
Pedagogium — Museu Escolar do Distrito Federal, ram um discurso pedagógico, ajudaram, de forma
órgão criado em 1890, no âmbito da reforma edu- decisiva, a produzi-lo.
cacional realizada por Benjamin Constant à frente Na perspectiva de uma história social das ciên-
do então recém-criado Ministério da Instrução Pú- cias, a análise das referências veiculadas pelas Revis-
blica, Correios e Telégrafos. O periódico fazia parte tas pode evidenciar em que medida tais publicações
do projecto de implantação e desenvolvimento da contribuíram para o processo de configuração do
educação nacional posto em prática a partir da pro- campo pedagógico. Nesse sentido, tanto os con-
clamação da República, em 1889. Evocava o exem- teúdos quanto os contextos são considerados ele-
plo das “melhores publicações congêneres que mentos importantes e que mantêm relação entre si.
transmitem os resultados produtivos do estudo, da Desse modo, é possível perceber as Revistas como
observação e da experiência” (Editorial, n.1, 15 de espaços ao mesmo tempo de confluências e dispu-
Novembro de 1890) destacando, nesse aspecto, a tas e também como lugar onde estão em jogo dife-
existência de determinados procedimentos científi- rentes interesses, envolvendo processos nos quais
cos associados à modernidade para afirmar a impor- se realiza a produção discursiva. Compartilhando
tância do seu papel de divulgação e de contribuição a concepção desenvolvida por Peter Burke (1992)
na formação dos professores. de que a realidade é social e culturalmente consti-
A Revista de Educação e Ensino, por sua vez, publi- tuída, no caso da análise das revistas pedagógicas,
cada regularmente durante 15 anos, marcou, segundo a linguagem foi vista como um sistema que constrói
Manuel Ferreira Deusdado, um dos seus fundadores tanto quanto reflecte, que prescreve tanto quanto
e também o seu principal responsável, “uma época descreve, o que obriga a pensá-las como elemento
na história da pedagogia nacional”. De acordo com constituinte da realidade social.
o Repertório da Imprensa de Educação e Ensino (Nó- Ao realizar uma reflexão sobre o papel desem-
voa, 1993), foi a revista pedagógica de maior vulto no penhado pelas Revistas, a investigação propôs-se a
nível nacional no final do século XIX. Pode dizer-se olhá-las na confluência de dois níveis de realidade
que desempenhou um papel essencial no âmbito do concomitantes: um internacional e outro nacional,
próprio país já que constituía “um eco do movimento que têm sido vistos na maior parte das vezes de forma
intelectual da Europa e da América, particularmen- excludente ou em relação de subordinação. Na pers-
te em questões do ensino” preocupando-se com “as pectiva adoptada, as Revistas foram vistas como um
condições do desenvolvimento científico em Portu- espelho de dupla face, ou seja, reflectindo tanto uma
gal”, e, ao mesmo tempo, foi responsável pela divul- dimensão quanto a outra, constituindo, elas próprias,
gação no estrangeiro da evolução das ideias e práticas um espaço intermédio, entre o nacional e o interna-
pedagógicas em Portugal, à medida que ia sendo re- cional, registando as duas dimensões e, ao mesmo
conhecida externamente (citações retiradas do edito- tempo, contribuindo para a formação de um fluxo
rial do Vol XII, de 1897). de ideias, concepções, modelos, etc., bem como de
representações e pessoas, nos dois níveis menciona-
dos. Nesses termos, a progressiva institucionalização
AS REVISTAS E A PRODUÇÃO DE UM do campo pedagógico dar-se-ia nesse espaço entre-
DISCURSO PEDAGÓGICO -dois, por vezes totalizador, por vezes contraditório,
de tentar responder às necessidades imediatas de um
Um aspecto a destacar diz respeito ao papel que determinado contexto histórico e, ao mesmo tempo,
as Revistas desempenharam tanto na produção tentar acompanhar o que se passa “lá fora”.
como na circulação de saberes (teorias, mas tam- Contudo, tão importante quanto evidenciar o
bém ideias, modelos, práticas, experiências, etc.) lugar ocupado é também identificar o lugar de onde

sísifo 11 | ana lúcia cunha fernandes | “estabelecer a unidade mor al e intelectual do professor ado”… 107
se enuncia um determinado discurso. Além de indi- Na santa cruzada em que estamos empenhados
car o lugar que as Revistas Pedagógicas ocuparam dirigimo-nos ao público que lê, e particularmente
no contexto da institucionalização do campo peda- ao professor. O professor é a parte principal em todo
gógico, importa mencionar também de onde essas o ensino, é a alma directora de onde dimana o ver-
mesmas publicações procuraram enunciar os seus dadeiro impulso educativo, é o agente eficaz que faz
propósitos e objectivos: nos editoriais e em artigos desabrochar as faculdades nos cérebros juvenis, para
de opinião, vistos a seguir. elas se desentranharem em frutos que enriqueçam e
nobilitem os indivíduos e as nações (Revista de Edu-
cação e Ensino, ano IV, 1889, p. 4).
AS REVISTAS COMO “ELEMENTOS
DE PROPAGANDA CIENTÍFICA” A Revista Pedagógica, por sua vez, também aspi-
rava “contribuir pela educação recíproca dos mes-
Os editoriais mostraram-se uma fonte incontornável tres para o engrandecimento e felicidade da Pátria”,
para se perceber a maneira pela qual as Revistas se objectivo apresentado no editorial de seu primeiro
viam a si próprias e à forma como apresentavam as número, de 15 de Novembro de 1890, assinado por
suas intenções e os seus objectivos, ou seja, em rela- Menezes Vieira. Outro propósito divulgado no mes-
ção ao papel que pretenderam desempenhar e como mo editorial era publicar “todas as informações de
justificavam/legitimavam a importância da sua acção. reconhecida utilidade para o progresso do profes-
É possível estabelecer pontos de convergência re- sorado nacional”. Além disso, a Revista apresentava
lativamente ao que é enunciado nos editoriais entre as explicitamente o seu programa, claramente traçado
duas Revistas: ambas apresentam pretensões de di- na disposição regulamentar do Pedagogium:
vulgação científica destinada a um público mais alar-
gado, as duas evocam experiências de publicações A Revista Pedagógica publicará:
estrangeiras como modelo e, por fim, apresentam- os atos oficiais relativos à instrução primária e secun-
-se como publicações especialmente destinadas aos dária,
professores, cabendo-lhes a tarefa de contribuir para as conferências e lições dos cursos do Pedagogium,
melhorar a situação desses profissionais. memórias de Pedagogia, especialmente prática, de
Em relação aos seus propósitos, as duas Revistas autores nacionais e estrangeiros,
utilizaram o editorial do seu primeiro número para juízos críticos sobre métodos e processos de ensino,
explicitar os seus objectivos. Assim é que a Revista todas as informações de reconhecida utilidade para o
de Educação e Ensino, no seu número inicial, apre- progresso do professorado nacional (Revista Pedagó-
sentava como propósito abordar gica, Tomo 1o, n. 1, 15/11/1890, p. 1).

todas as questões importantes que dizem respeito à Foi ainda no editorial daquele primeiro número
educação e ensino, e ainda subsidiariamente outras que Menezes Vieira afirmou ser a sua distribuição
de elevado alcance filosófico, literário e científico, isto gratuita aos professores públicos de ensino primá-
é, tudo quanto seja necessário e útil ao progredimen- rio e aos estabelecimentos públicos de instrução,
to intelectual da humanidade, sendo especialmente nacionais e estrangeiros. Não foi possível ficar a
um auxiliar de inquestionável valor para a árdua e saber de que maneira tais propósitos foram postos
nobilíssima tarefa daqueles a quem está confiada a em prática. Contudo, interessa ressaltar a dimensão
instrução da sociedade futura (Revista de Educação e internacionalista que parece ter estado presente na
Ensino, ano I, n.1, Fevereiro de 1886, p. 5). linha de actuação dos responsáveis pelo periódico,
quando propõem a sua distribuição aos estabele-
Nesse sentido, os propósitos da Revista não cimentos estrangeiros. A atenção dedicada ao que
poderiam ser menos ambiciosos: participar de uma se passava em âmbito internacional também é evi-
“cruzada” que se entendia “santa”, a da instrução, denciada pela afirmação de que tal objectivo haveria
e na qual o professor desempenharia um papel fun- de ser cumprido, “inspirando-nos no exemplo das
damental. melhores publicações congêneres, que transmitem

108 sísifo 11 | ana lúcia cunha fernandes | “estabelecer a unidade mor al e intelectual do professor ado”…
os resultados produtivos do estudo, da observação esforços dos professores com o propósito de estabe-
e da experiência” (Revista Pedagógica, Tomo 1o, n. 1, lecer a unidade moral e intelectual do professorado
15/11/1890, p. 1). português, e conferir-lhe assim a nobre função que
Ainda em relação ao propósito de alcançar os desempenham em outros países revistas especiais,
professores, seis meses depois, em Abril de 1891, o como por exemplo em França (Revista de Educação e
editorial fazia um balanço e um relato do que fora pu- Ensino, ano IV, 1889, p. 3).
blicado no primeiro volume da Revista Pedagógica,
afirmando que esta possuía “um carácter de publi- Outro aspecto que importa mencionar refere-se
cação útil aos professores, feita por eles e para eles”. ao amplo espaço concedido pelas Revistas às notí-
O facto da Revista Pedagógica ser enviada gra- cias relativas às missões de professores a outros pa-
tuitamente aos professores do ensino público e aos íses com o intuito de observar o funcionamento de
estabelecimentos oficiais de ensino, bem como às di- seus sistemas de ensino, item visto a seguir.
rectorias de Instrução Pública dos Estados da União
para ser distribuída entre os professores, foi interpre-
tado como uma firme determinação em consolidar AS MISSÕES AO ESTRANGEIRO
um espaço entre o professorado. Já a sua distribui-
ção garantida às escolas normais, aos governadores No Brasil, atentos ao que se passava “lá fora”, os in-
ou presidentes dos Estados e às redacções de jornais tegrantes da recém-criada estrutura governamental
parece indicar um propósito de afirmar o periódico para as questões do ensino faziam publicar, já em
em outras instâncias. No caso das Escolas Normais, 1890, as Instruções para a comissão dos professores
a distribuição pode ser interpretada como um indí- do Instituto Nacional dos Cegos que têm de ir à Eu-
cio de que era preciso arregimentar simpatias nas ropa por conta do Ministério da Instrução Pública,
instâncias superiores e como uma tentativa de obter Correios e Telégrafos. À tal comissão, composta por
credibilidade a partir das autoridades — se se pen- dois professores, competia:
sar nessas instituições como detentoras de avaliação
abalizada sobre o que seria útil aos professores e res- 1o: Visitar os principais estabelecimentos de educação
ponsáveis pela formação dos futuros docentes. de cegos na Europa e estudar as suas organizações.
Por sua vez, a Revista de Educação e Ensino 2º: Estudar os métodos de ensino adotados nesses
assumiu-se, desde quase o seu início, como “ele- estabelecimentos, tanto para o curso científico e li-
mento de propaganda científica” (Ano IV, 1889), terário como para o prático e profissional, e todos os
evidenciando grande preocupação com a divulga- melhoramentos que têm tido e o progresso que tem
ção de “artigos de carácter especulativo ou de vul- feito o ensino dos cegos.
garização científica” (Ano VI, 1891), e continuou ao 3o: Propor ao Ministro da Instrução Pública, Cor-
longo de sua existência a reafirmar tal disposição: reios e Telégrafos todos os melhoramentos e todas as
“Encetando o novo ano de publicação, a Revista de medidas que tiver observado e estudado, e que julgar
Educação e Ensino continua cônscia da sua missão aplicáveis ao Instituto Nacional.
difundindo as modernas ideias pedagógicas e apre- 4o: Fazer aquisição de todo o material máquinas, apa-
sentando os novos facies das questões que se agitam relhos, utensílios, ferramentas e matérias-primas que
no mundo científico” (Ano X, 1895). forem de reconhecida vantagem para o ensino dos
A referência a publicações estrangeiras também cegos e de imprescindível necessidade para o melho-
esteve presente em algumas passagens dos editoriais ramento das oficinas já existentes (reparação e afina-
da Revista portuguesa, podendo a comparação ser ção de piano, órgão e harmonica) e para outras que
entendida aqui como uma justificativa para a sua se querem montar (Revista Pedagógica, Tomo 1o, no 1,
própria existência. 15/11/1890, pp. 13-14).

Todos os países cultos possuem periódicos especiais Os professores estavam encarregues igualmente
para cada um dos diversos graus de ensino… A nos- de adquirir objectos necessários ao ensino das dis-
sa aspiração é reunir nesta revista todos os elevados ciplinas do curso literário e científico, instrumentos

sísifo 11 | ana lúcia cunha fernandes | “estabelecer a unidade mor al e intelectual do professor ado”… 109
de música e outros para o ensino da ginástica, bem que pudessem subsidiar o processo de consolida-
como de contratar dois ou três mestres para a inicia- ção do sistema educacional.
ção dos alunos nas novas oficinas a serem criadas. Não se pense porém que essas viagens tinham
Outro aspecto digno de nota é que os professo- sentido único. No número 3 da Revista Pedagógica,
res tinham ainda a missão de de Dezembro de 1890, na Chronica do Exterior, em
notícia sobre a França, há menção a uma visita ao
criar uma correspondência regular entre o Instituto México do Mr. Paul Rousseau, encarregado de estu-
e os mais importantes estabelecimentos de educação dar os estabelecimentos de instrução daquele país.
de cegos na Europa, de modo a estabelecer relações e Adiantava-se que seria muito provável a sua ida ao
comunicações recíprocas, com o fim de pôr o Institu- Brasil com o mesmo objectivo.
to a par de todos os melhoramentos e progressos que Além disso, a Revista concedeu amplo espaço aos
se forem operando na educação dos cegos (Revista relatórios daqueles três professores primários, publi-
Pedagógica, Tomo 1o, no 1, 15/11/1890, pp.13-14). cados integralmente ao longo de vários números do
periódico². Igualmente naquela mesma secção foram
A viagem ao exterior estava prevista para durar publicadas, em forma de notícias, partes das cartas
oito meses, período durante o qual os professores enviadas por aqueles professores em viagem pela Eu-
deveriam remeter mensalmente relatórios detalha- ropa. Uma delas reproduz trechos das missivas: visita
dos sobre tudo o que tivesse sido observado e estu- a Museus Pedagógicos, compra de diversos objectos;
dado, assim como sobre as compras realizadas e os visitas às escolas e especial atenção dispensada às
respectivos gastos. condições higiénicas, aos móveis, aos regulamentos
Outro exemplo de como tais missões tiveram e aos programas. Regista-se ali o método de ensino
amplo espaço na Revista Pedagógica refere-se à pu- adoptado, de modo geral, froebeliano ou intuitivo,
blicação dos termos da missão atribuída pelo Mi- bem como o “exemplo” de outros países.
nistério a três professores públicos primários e a um Importa destacar que o próprio Regulamento da
do próprio Ministério para visitar, na Europa e nos Instrução Primária e Secundária do Distrito Fede-
EUA, os estabelecimentos de instrução primária a ral, publicado logo no primeiro número da Revista
fim de estudar a organização, os métodos e os mate- Pedagógica, entre itens mais gerais que dizem res-
riais de ensino adoptados. Instruções que deveriam peito à natureza e à estrutura do ensino, às discipli-
servir de guia à missão: estudar a organização das nas, à formação do pessoal docente etc., apresenta
escolas primárias urbanas e suburbanas de Paris, um artigo que prevê a realização de viagens regula-
Londres, Bruxelas, Berna, Genebra, Zurich, Milão res e constantes ao exterior:
e Turim; conhecer o curso de trabalhos manuais da
escola de Naas, na Suécia, e visitar escolas de Nova Art. 22 De dois em dois anos o Conselho Diretor de-
York, Boston, Filadélfia e Washington. signará, com aprovação do governo, dois professo-
Os visitantes deveriam remeter à Inspectoria res, um do sexo masculino e outro do sexo feminino,
Geral de Instrução Primária e Secundária da Capi- que vão a países estrangeiros examinar miudamente
tal Federal os programas, livros escolares, plantas os progressos do ensino primário e aperfeiçoar suas
e fachadas de todas as boas escolas examinadas, habilitações profissionais.
além de relatórios trimestrais minuciosos de tudo Parágrafo único: Esta comissão, estipendiada pelo
quanto fosse observado. A previsão da viagem era Estado, durará no máximo dois anos, e para cada uma
de ano e meio para observar as escolas da Europa e delas o Conselho Diretor formulará instruções espe-
de quatro meses para as escolas dos EUA, estando ciais (Revista Pedagógica, Tomo 1o, no 1, 15/11/1890).
os professores obrigados a trabalharem por pelo
menos cinco anos no Brasil depois de seu regresso No tocante à Revista de Educação e Ensino, em
da viagem. Se tais viagens chegaram a realizar-se função da própria natureza constitutiva da publica-
com a frequência e com a periodicidade pretendi- ção, composta em grande parte por textos de cariz
das não foi possível saber, mas a letra da lei sugere teórico, não foi comum encontrar referências tão
um firme propósito de buscar “lá fora” referências explícitas às missões de professores ao estrangeiro

110 sísifo 11 | ana lúcia cunha fernandes | “estabelecer a unidade mor al e intelectual do professor ado”…
como aconteceu com a Revista Pedagógica. Contu- em 1889, que nas questões da instrução “se encer-
do, ainda assim foi possível identificar referências ra a esperança redentora do nosso destino social”.
a viagens de estudo, empreendidas pelos próprios Afirmava-se então o discurso da “decadência” do
autores dos artigos, com o intuito de conhecer a si- país, que profundas raízes fincou na mentalidade
tuação educativa de outros países. portuguesa4.
Convém ressaltar que apesar de Portugal e Bra-
sil viverem contextos tão diferentes à época, os re-
O CONHECIMENTO PEDAGÓGICO ferentes que estiveram presentes na construção do
E OS PROFESSORES conhecimento pedagógico foram, em muitos aspec-
tos, semelhantes.
Importa referir a presença marcante, nos artigos de Naquilo que à segunda metade do século XIX
ambas as publicações, das correntes filosóficas do diz respeito, importa registar as semelhanças en-
positivismo e do cientismo, em inúmeras e variadas contradas quanto à questão da regeneração social,
passagens em que os autores manifestaram as suas dos ideais republicanos, positivistas e cientificistas,
convicções no poder da ciência para a promoção do da existência de movimentos de intelectuais que
bem-estar social, ao mesmo tempo que pretende- assumiram formas semelhantes — consubstancia-
ram uma atitude objectiva e de isenção no trato das dos na Geração de 70 dos dois países, sendo ambas
questões educativas. A primeira dessas correntes marcadas por ideais liberais e de transformação da
manifestou-se sobretudo na concepção da ciência ao estrutura social, política e económica —, da adesão
serviço da ordem e do progresso, bem como no dis- a um projecto de modernidade conotado com um
curso de exaltação da educação como alavanca para “mundo civilizado”, cujo modelo era a Europa, e à
o avanço da nação. Já o cientismo, também identifi- valorização de um saber técnico e científico conota-
cado nas Revistas na forma de afirmação da ciência do com o progresso.
como instrumento capaz de resolver os problemas Cumpre ressaltar a forte presença de um pensa-
da humanidade, consubstanciaria a ascendência de mento positivista em relação à educação como fac-
um discurso médico-higienista, ressaltando a neces- tor de progresso social, exemplificado pela presença
sidade de dotar o sistema de ensino de condições marcante de autores como Herbert Spencer e Au-
saudáveis segundo os mais recentes conhecimentos gust Comte. Igualmente relevante é a comparência
médicos e higiénicos de então. Também foi possível de autores como Rousseau, Froebel e Pestalozzi, os
perceber, a partir dessa tendência, a presença de um dois últimos associados à renovação de métodos de
saber que procurava regular e organizar os sistemas ensino e o primeiro tido como o ponto de viragem
de ensino não apenas do ponto de vista estrutural na forma como passaram a ser vistas as crianças.
e material, como também do ponto de vista da ins- Entre as referências em comum, os mais citados
tituição de saberes de carácter científico relativos a nas duas Revistas foram Herbert Spencer, August
esse funcionamento³. Comte e Rousseau, e a França foi o país de referên-
Em relação ao mecanismo de comparação, im- cia para os dois países no final do século XIX.
porta notar que em ambos os periódicos o paralelo Os conteúdos veiculados serviram para caracte-
com outros países parece constituir um dispositivo rizar a forma como o conhecimento pedagógico foi
para conferir legitimidade aos argumentos. Tal pro- abordado nas Revistas, na medida em que os assun-
cedimento parece indicar que o embrionário discur- tos tratados sob a forma de pedagogia abarcavam
so pedagógico só poderia estabelecer-se, na altura, questões relativas a métodos, sistemas de ensino,
numa dinâmica de afirmação a partir das referências questões teóricas, sociais, psicológicas, entre outras,
ao contexto externo. Em relação a esse aspecto, é fazendo notar o carácter bastante amplo do que era
importante referir que os artigos da revista lusa na publicado sob a rubrica Pedagogia. Por outro lado,
maior parte das vezes apresentaram a situação portu- a dimensão especializada do saber pedagógico ia
guesa como extremamente adversa, ao mesmo tem- sendo construída sobretudo com base nas categorias
po que depositavam na instrução a possibilidade de das novas ciências psicológicas. Além disso, uma das
“redenção”. O mesmo Ferreira-Deusdado afirmaria, abordagens mais frequentes foi a da pedagogia como

sísifo 11 | ana lúcia cunha fernandes | “estabelecer a unidade mor al e intelectual do professor ado”… 111
arte e ciência, revelando a procedência de um dos fazendo-lhes do mesmo modo ver as condições de
dilemas do campo pedagógico que se manifestaria aptidão intelectual e moral; de boa vontade, de eleva-
fortemente nas décadas de 20 e 30 do século XX. ção de coração e de caráter requeridas por uma car-
Sempre se pode dizer que nas Revistas estive- reira que não deve ser encarada somente como um
ram presentes manifestações sobre O que é ser pro- ganha-pão (Revista Pedagógica, Tomo IV n.19, 20 e
fessor, tanto no que diz respeito ao domínio do ser 21, 15/03/1893, p. 74).
(aspectos morais) quanto ao domínio do fazer (o
que é preciso saber), além de extensos debates so- A análise das Revistas evidenciou a emergên-
bre teoria versus prática. Um exemplo disso pode cia e a progressiva produção de um discurso sobre
ser visto em um dos números da Revista Pedagógica educação que viria a se tornar cada vez mais espe-
que daria destaque à discussão sobre a reforma da cializado e pedagógico. Nesse sentido, pode dizer-se
Escola Normal, empreendida no Conselho Director que tal formulação discursiva viria a extrapolar as
da Instrução Primária e Secundária da Capital Fe- orientações das Revistas que se apresentaram com
deral, cujas actas eram com frequência divulgadas o intuito de contribuir para melhorar a situação pro-
na Revista. O Plano de Ensino da Escola Normal, fissional dos professores permitindo-lhes o acesso
publicado integralmente, apresenta itens que aju- a informações que os editores e autores das Revis-
dam a perceber algumas das questões em causa na tas consideravam que eles não tinham. Contudo, o
transformação do ensino normal. Em busca de uma que se verifica é que a amálgama de informações e
progressiva mudança no estatuto profissional da formulações que vieram a constituir o conhecimen-
carreira docente, outro artigo preconizava que: to pedagógico viria, com o decorrer do tempo, a se
tornar objecto mais dos especialistas do que dos
O professor procurará inspirar aos seus alunos professores, mas tal suposição deverá ser melhor
o amor pela carreira do professorado primário, desenvolvida em futuros trabalhos.

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Notas Fontes

1.A reflexão aqui apresentada baseia-se na inves- Revista Pedagógica (1890-1896). Distrito Federal —
tigação realizada para o doutoramento defendido Rio de Janeiro. Tomos do I ao IX. Divisão de
na Universidade de Lisboa em Fevereiro de 2007 Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional —
e enfatiza um dos períodos analisados na tese (Fer- Brasil (Rio de Janeiro).
nandes, 2006). Revista de Educação e Ensino (1886-1900). Leça da
2. Os relatórios dos professores Amélia Fernandes Palmeira e Lisboa (desde 1886). Periodicidade
da Costa e Manoel J. Pereira Frazão foram publica- mensal (15 Volumes). Biblioteca Nacional de
dos no corpo principal da Revista, na secção Pedago- Portugal (Lisboa).
gia, em diferentes números. Já o relatório do professor
Luiz A. dos Reis foi publicado na mesma secção, de
uma só vez, ocupando cerca de 60 páginas. Este texto Referências bibliográficas
foi publicado em livro (ver Reis, 1892).
3. É possível, do mesmo modo, identificar-se uma Burke, Peter (1992). Abertura: a nova história, seu
nova modalidade de organização e de controlo da passado e seu futuro. In Peter Burke (org.), A es-
vida colectiva e individual, caracterizada sobretudo crita da história — novas perspectivas. São Pau-
pelo recurso ao saber científico como base de legi- lo: Unesp, pp. 7-37.
timação para as estratégias de organização e de con- Fernandes, Ana Lúcia C. (2006). A construção do
trolo e pela crença na educação como factor de pro- conhecimento pedagógico: análise comparada de
moção do progresso. revistas de educação e ensino. Brasil — Portugal
4. Um aspecto significativo refere-se à maneira de (1880 — 1930). Tese de Doutoramento. Faculda-
abordar a educação como “problema social”. A anti- de de Psicologia e de Ciências da Educação da
nomia entre atraso e progresso das nações, cujo dife- Universidade de Lisboa.
rencial é posto na instrução das suas populações, foi Nóvoa, António (dir.) (1993). A Imprensa de Educa-
um tema recorrente nas revistas analisadas. A educa- ção e Ensino — Repertório Analítico (séculos XIX-
ção era vista não apenas como condição para o pro- -XX). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional.
gresso, como também “como meio preventivo de Reis, Luiz Augusto dos (1892). O ensino público pri-
todas as calamidades”, conforme declararia o educa- mário em Portugal, Hespanha, França e Bélgica.
dor português Ferreira-Deusdado em 1886. Relatório apresentado à Inspetoria Geral de Ins-
trução Pública da Capital Federal. Rio de Janei-
ro: Imprensa Nacional.

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114 sísifo 11 | ana lúcia cunha fernandes | “estabelecer a unidade mor al e intelectual do professor ado”…
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

Recensões

Ó, Jorge Ramos do & Carvalho, Luís Miguel (2009). se definiu como “criança-problema”, a qual foi preferi-
Emergência e Circulação do Conhecimento Psicope- da em detrimento da dita “normal” para a compreensão
dagógico Moderno (1880-1960): Estudos Comparados e efectivação da acção educativa, na produção de jovens
Portugal-Brasil. Lisboa: Educa/Unidade de I&D de Ci- sadios e cidadãos participantes/activos.
ências da Educação O aparecimento, por seu turno, do movimento in-
ternacional da Escola Nova conduziu à expansão do
Pensar o discurso educativo moderno na sua génese e ideal por esta preconizado da “educação integral” que
consolidação às escalas nacional e mundial implica fazer possibilitou ao discurso psicopedagógico moderno a
a arqueologia de dispositivos discursivos vários que se “transferência da tónica da acção pedagógica do saber
articularam na problematização teórica sobre a prática para o ser”, isto é, da instrução dada pelo professor para
pedagógica, vinculada à afirmação de Estados-nação mo- a determinação e vontade por parte do aluno de se edu-
dernos. Neste sentido, a análise comparada de duas rea- car, deslocando o problema objectivo da liberdade deste
lidades de matriz linguístico-cultural comum devolve ao para um espaço subjectivo de conduta moral em que,
olhar histórico a discussão em torno da configuração de através da cultura de si e autodisciplina, o aluno conquis-
uma “internacionalidade educativa”, cujos paradigmas ta a autonomia e responsabilidade inerentes à primeira.
permitiram pensar a instituição escolar e a sua prática no O self government afigura-se, deste modo, sustentado
seio da construção de identidades colectivas e subjectivas. por um conjunto de tecnologias do eu, baseadas em pre-
A presente problemática, foi sistematizada na obra ceitos do saber científico-experimental de inteligibilida-
Emergência e Circulação do Conhecimento Psicope- de da realidade tidos como verdade, e tornado possível
dagógico Moderno (1880-1960): Estudos Comparados pela criação de organismos institucionais que legitima-
Portugal-Brasil, da autoria de Jorge Ramos do Ó e Luís ram e desenvolveram esta lógica operacional nos contex-
Miguel Carvalho, onde é perscrutada a paisagem escolar tos educativo e legislativo numa tentativa de regulação
moderna, quer do ponto de vista da relação entre o dis- da população, quer num plano micro, quer macro-social.
curso psicopedagógico e do governo da alma, quer no Através da convocação de um vasto número de experts
que respeita ao processo e efeitos do cruzamento de di- provenientes dos demais saberes que, sobretudo dentro
nâmicas de difusão e recepção activa deste conhecimen- arco histórico delineado, pensaram, escreveram e regu-
to, legitimado sob o signo da ciência psicológica. laram a prática pedagógica, e servindo-se da análise dos
De facto, para a assunção das Ciências da Educação, instrumentos por aqueles produzidos, Ramos do Ó tra-
a Psicologia apresenta-se como principal força motriz, ça uma visão perspectivada, sob conceitos cunhados por
entre a Filosofia, a Medicina e o Direito, na medida em Michel Foucault, sobre a edificação da racionalização do
que disponibilizou os aportes teóricos, as técnicas e os discurso pedagógico. Este, enquanto produto híbrido,
instrumentos para a apreensão, avaliação e condução, do torna-se, por sua vez, gerador de caracteres conformados
aluno e que, dir-se-ia de modo paradoxal, se apresenta no processo de modernização do Estado-nação que per-
como uma “escola por medida” no quadro de desenvolvi- mitem ao investigador mostrar a configuração homogénea,
mento de uma escola de massas. Neste contexto é gerada por parte dos países em análise, de uma economia de go-
toda uma arquitectura de estudo e governo daquilo que verno dentro de “um mesmo poder-saber sobre o aluno”.

115
Assim, a possibilidade de agregar linhas de pensa- No contexto da construção da escola, do indivíduo e
mento e de acção do discurso pedagógico moderno em do Estado, e a par da proliferação e enraizamento deste
Portugal e no Brasil resulta da ampla circulação e difusão, esperanto educacional, enquadra-se a problemática da
sobretudo através da imprensa, de suportes documentais emergência de tecnologias de governo da conduta do
teóricos de proveniências diversas que desencadearam aluno. Estas são corporizadas pela prescrição de compo-
naqueles dois países a apropriação de conceitos e mode- nentes pedagógicos no plano dos conteúdos e objectivos
los educativos passíveis de serem articulados e sistemati- programáticos que visavam, sobretudo, a dimensão cul-
zados empiricamente na procura de ferramentas eficazes tural e social do sujeito, a sua maturação física e espiritu-
para o pensar-fazer a escolarização. Estas são corrobora- al. A questão do desenvolvimento físico como promotor
das pela existência de percepções partilhadas e proble- da higiene moral, analisada por Ramos do Ó, é também
mas educativos comuns a realidades sociais e culturais retomada no capítulo subsequente por Carvalho aquan-
de diferentes, acabando por gerar modelos estandardi- do do exemplo da Ginástica de Ling, que no final da
zados de organização educacional e de formatação cul- década de 30 se apresentava como referente pedagógico
tural, que levam Luís Miguel Carvalho a afirmar “a razão completo, ou seja, como instrumento para o desenvolvi-
educacional moderna como parte e resultado da recípro- mento autodeterminado do aluno, que assim se conver-
ca penetração de discursos e organizações internacionais tia ele próprio num arquétipo de cidadão-modelo.
com a de discursos e agências nacionais implicadas no A construção de uma retórica escolar nacional no
sector educativo” (p. 159). seio da modernidade psicopedagógica atende, assim,
É neste sentido que Carvalho analisa a sagração de quer à incorporação de modelos estrangeiros do co-
uma ideologia educativa disseminada por via de discur- nhecimento científico-experimental emergente, quer às
sos e instituições de cariz científico e/ou político que dinâmicas de circulação das mesmas formações discur-
procuraram materializar a semântica da modernidade sivas que colocavam no centro das suas preocupações a
num plano internacional, simultaneamente indissociá- conduta do aluno e a cultura de si. Assim, a instituição
vel da edificação do Estado-nação que a foi absorvendo. escolar pôde conceber-se como uma “forma natural de
A relação entre um projecto global de mudança e a sua organização político-social” a partir do trabalho de sub-
recepção e adopção por poderes locais, é potenciada jectivação desenvolvido por ela com os seus actores.
pelos conceitos esperanto educacional, que contêm em
si a ideia de uma globalização do discurso pedagógico,
marcado pela apologia dos ideais da Educação Nova, e
indigenous foreigner, a partir de Tom Popkewitz, expres-
são que serve para explicitar a dinâmica da circulação de
categorias universais e a respectiva incorporação, rees-
crevendo os sistemas de significação no seio da criação
de um discurso local.
A comparação entre os discursos português e bra- Inês Félix
sileiro é produto da confluência de modelos a eles ex- inez.felix@gmail.com
trínsecos. Carvalho parte da análise comparada de dois Mestranda em Educação Artística
periódicos destes países — Revista Escolar e Educação, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa
respectivamente, considerados como veículos centrais
do conhecimento especializado do espaço educativo e
cujo mapa discursivo aponta para uma narrativa atinente Félix, Inês (2010). Recensão da obra “Emergência e Circulação do Conhe-
a problemas e soluções educativos, que inevitavelmente cimento Psicopedagógico Moderno (1880-1960): Estudos Comparados
se espelham nas decisões e acção políticas, sempre no Portugal-Brasil”, de Jorge Ramos do Ó e Luís Miguel Carvalho [2009]. Lis-
quadro da preconização dos ideais da “escola activa”, boa: Educa/Unidade de I&D de Ciências da Educação. Sísifo. Revista de Ci-
por oposição ao paradigma dito tradicional da escola ências da Educação, 11, pp. 115-116.
outrora sustentado pelo elitismo da cultura livresca. Consultado em [mês, ano], em: http://sisifo.fpce.ul.pt

116 sísifo 11 | recensões


s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

Outros artigos
O envolvimento parental
no desenvolvimento da literacia

Maria Adelina Villas -Boas


mariadelinavb@gmail.com
Universidade de Lisboa, Portugal

Resumo:
O tema deste artigo foi escolhido pela sua actualidade, na medida em que a aquisição da lite-
racia ocupa um lugar central no desenvolvimento do aluno e nas suas aprendizagens escolares,
tornando-se crucial em alunos imigrantes. Assim, o objectivo principal do artigo é relacionar a
compreensão da forma como ocorre o processo do desenvolvimento da literacia com o papel que
os adultos próximos da criança podem assumir nesse desenvolvimento.
Consequentemente, serão desenvolvidos dois aspectos cruciais. O primeiro consiste numa
análise teórica sobre os conceitos e as características da perspectiva da emergência da literacia na
criança, relacionando a identificação das chamadas raízes da literacia com a quantidade e quali-
dade das experiências com o escrito no ambiente familiar. O segundo descreve a aplicação das
teorias expostas, focando o envolvimento parental diferenciado nas práticas de literacia, em casa, e
as respectivas implicações pedagógicas na escola.

Palavras-chave:
Ações afirmativas, Anti-racismo, Racialização, Movimentos sociais negros.

Villas-Boas, Maria Adelina (2010). O envolvimento parental no desenvolvimento da literacia. Sísifo.


Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 117-126.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

117
INTRODUÇÃO procura combater o elevado nível de iliteracia com a cria-
O tema escolhido decorre da sua actualidade, na medida ção de um Plano Nacional de Leitura.
em que contributos científicos recentes sobre o desen- Consequentemente, a natureza essencial deste arti-
volvimento da literacia obrigam a encarar o ensino da lei- go é relacionar a compreensão da forma como ocorre o
tura segundo perspectivas diferentes e, de certo modo, processo do desenvolvimento da literacia com o papel
inovadoras. Com efeito, se a aquisição da literacia, aqui que os adultos próximos da criança, tanto em casa como
entendida como um continuum que envolve capacidades na escola, podem assumir nesse desenvolvimento. Esta
mínimas de ler e de escrever até uma leitura e escrita que problemática implica que o artigo seja constituído por
requerem altas capacidades cognitivas, ocupa um lugar duas partes. Numa primeira parte pretende-se explici-
central no desenvolvimento do aluno e nas suas apren- tar, de forma fundamentalmente teórica, o relativamente
dizagens escolares, ela torna-se crucial em alunos prove- novo conceito de literacia e as suas implicações na forma
nientes de minorias étnicas. Para além de factores como como o contexto pode contribuir para a sua emergência.
as capacidades cognitivas e os conhecimentos linguísti- Numa segunda parte, é feita a descricão de vários estu-
cos (Menyuk & Brisk, 2005) que podem afectar todas as dos realizados em Portugal com o objectivo de, através
crianças, o que é de grande importância para as crianças dos resultados obtidos, permitir demonstrar de que
imigrantes é o seu conhecimento da linguagem e da cul- forma o envolvimento parental em casa e determinadas
tura da escola (Heath, 1989). Daí que algumas disserta- práticas pedagógicas na escola podem contribuir para o
ções do mestrado em Ciências da Educação (Educação desenvolvimento da literacia.
Intercultural) se tenham debruçado sobre questões rela-
cionadas com a forma de incentivar o desenvolvimento A INCIDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO
da literacia. LINGUÍSTICO NA APRENDIZAGEM
Neste sentido, vários estudos, desde Durkin (1966), ESCOLAR E NA INSERÇÃO SOCIAL
passando por Barratt-Pugh (2000), Heath (1982), Teale DOS INDIVÍDUOS
e Sulzby (1987), Villas-Boas (2001), entre muitos outros,
vêm sublinhar o efeito positivo do envolvimento parental (…) as crianças participam em experiências que envolvem
no desenvolvimento da literacia. Tendo em conta esses literacia e vão gradualmente construindo o conhecimento,
resultados, considera-se que uma das duas formas mais as capacidades e a compreensão dum leque alargado de
generalizadas e aceitáveis de cooperação entre a escola e a literacias.
família é aquela em que os pais apoiam os filhos, em casa, Barratt-Pugh, 2000, p. 17.
no desenvolvimento linguístico inicial (oral e escrito).
Deste modo, o estudo do efeito que o envolvimento O domínio do código escrito e as vantagens sociais pare-
parental pode ter no desenvolvimento da literacia e a refle- cem caminhar de mão dada, interinfluenciando-se.
xão sobre as razões subjacentes a esse fenómeno, quer elas Sim-Sim, 1995, p. 203.
sejam inerentes à própria natureza do processo da leitura e
da escrita, quer estejam relacionadas com a forma como os A relação entre o desenvolvimento linguístico (nas suas
contactos com o escrito se desenvolvem em cada ambiente vertentes oral e escrita) e as aprendizagens escolares tem
familiar, parecem ser cruciais no momento em que o país sido evidenciada pela investigação científica e não parece

118 sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia
haver discordância sobre o papel fundamental que a lin- evidente como “a habilidade de ler e de escrever” (Mo-
guagem desempenha em todo o processo da educação. rais, 2002, p. 48). No entanto, outros preferem sublinhar
Para ilustrar os efeitos interactivos entre o desenvolvi- o seu carácter funcional ao definirem literacia como “as
mento linguístico e a aprendizagem escolar, Menyuk tem capacidades de processamento da informação escrita”
recorrido, de forma consistente (primeiro em 1995 e, recen- (Benavente et al., 1996, p. 3). Trata-se, pois, dum concei-
temente, em 2005), à mesma representação gráfica (Fig. 1), to que envolve competência e uso.
na medida em que esta mostra claramente como um maior De acordo com o objectivo deste artigo, centremo-
desenvolvimento linguístico contribui para a aprendiza- -nos no entendimento de uma literacia funcional para a
gem escolar, do mesmo modo que esta aprendizagem vai qual se torna necessário o domínio do processo de des-
contribuir para aumentar o desenvolvimento da linguagem. codificação, como se torna essencial a capacidade de ex-
trair significado dos materiais descodificados (Sim-Sim,
Fig. 1. A relação entre desenvolvimento da 1995). Um entendimento que, implicando uma constru-
linguagem, desenvolvimento da leitura e da ção activa do conhecimento, se baseia nas experiências
escrita e a aprendizagem escolar vividas, nos conhecimentos prévios e nos valores.
Centremo-nos, sobretudo, na perspectiva da emer-
linguagem leitura e escrita
maior desenvolvi- gência da literacia tal como foi caracterizada por Teale e
-mento linguístico
Sulzby (1987) porque decorre, exactamente, dessa noção
de vivência e porque os resultados da investigação, nos
Extraído de Menyuk, 1995, p. 47; Menyuk & Brisk, 2005, p. 82. últimos vinte anos, têm demonstrado que a “literacia co-
meça com as experiências da criança durante a sua infân-
Acresce que, quando existe défice de leitura, o aluno cia” (Menyuk & Brisk, 2005, p. 70).
ressentir-se-á, cada vez mais, à medida que a linguagem Esta perspectiva, fundamentada por estudos empí-
dos livros de estudo se tornar semântica e estruturalmen- ricos correlacionais e experimentais mas, sobretudo,
te mais complexa. Tem, pois, efeitos a curto, médio e lon- longitudinais e estudos de caso sobre jovens leitores
go prazo, desempenhando um papel catalizador em todo fluentes (Durkin, 1966), leitores precoces (Bissex, 1980)
o processo educativo: “facilmente se percebe o efeito de e crianças surdas (Soderberg, 1977), veio proporcionar
uma má mestria da leitura em termos de insucesso nas uma descrição mais adequada da forma como actuam as
outras disciplinas” (Sim-Sim, 1995, p. 97). crianças envolvidas no seu processo de desenvolvimento
Para além do insucesso escolar, um baixo nível de lite- da literacia. Gostaria, assim, de salientar três contributos
racia acarreta consequências sociais negativas e discrimi- importantes desta perspectiva.
natórias. Com efeito, os resultados do estudo A Literacia O primeiro é o de que o próprio termo “emergen-
em Portugal (Benavente et al., 1996), ao indicarem um te” sublinha o facto das crianças estarem inseridas num
perfil geral bastante fraco (10% da população no Nível 0 processo de desenvolvimento, neste caso o da literacia,
de literacia e 37% no Nível 1, entre os cinco níveis possí- cujo ponto inicial é impossível de determinar, sabendo-
veis), mostraram uma assimetria regional, uma distribui- -se, apenas, que, como os autores referidos sublinharam,
ção desigual em relação à classe social e ao género. começa muito cedo.
A importância da aquisição da literacia é expressa Um segundo contributo, trazido, entre outros, por
de forma significativa por Adams (1998, p. 13) ao afirmar Ferreiro (1987), através de estudos de caso em que seguiu
que o sucesso no ensino inicial da leitura “é a chave para uma abordagem segundo Piaget e, também, por Sulzby
a educação e a educação é a chave para o sucesso tanto (1987), através dum estudo longitudinal, é o de que a es-
dos indivíduos como da democracia”. Nesse sentido, a crita não se segue necessariamente à leitura, existindo,
busca da investigação na procura de soluções não tem sim, entre elas uma relação dinâmica que beneficia o de-
deixado de contribuir com novos conhecimentos. senvolvimento de ambas.
O terceiro vem salientar que a consciência linguísti-
ca, estimulada pelas experiências com o escrito, quer se
OS CONCEITOS E AS CARACTERÍSTICAS trate da leitura de histórias, quer se trate de qualquer ou-
DA EMERGÊNCIA DA LITERACIA tra actividade, se desenvolveria naturalmente (Strickland
& Culliman, 1998).
…uma nova perspectiva para se compreender a natureza Este último contributo pode considerar-se con-
e a importância do desenvolvimento da escrita e da leitura troverso na medida em que há autores (Adams, 1998;
durante os primeiros anos da criança. Cary, 1988; Morais, 2002) que salientam que a corres-
Teale & Sulzby, 1987, p. VII. pondência entre letras e fonemas surge em consequên-
cia da alfabetização. No entanto, outros estudos citados
A generalização do uso do termo literacia traduz um con- por Menyuk (1995) e Verhaeghe e Cary (s.d.) vieram
ceito que se pode definir, duma forma muito simples e mostrar que é possível estimular o desenvolvimento da

sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia 119
consciência linguística antes da escolaridade. Sem querer 3ª Raiz — Consciência da função e da forma da escrita
pôr em causa nenhum dos resultados dos estudos referi- Para a autora, a função precede a forma. Já Durkin (1966)
dos, o que parece emergir é uma noção de complemen- verificara que as crianças identificadas como leitores
taridade que permite concluir que, se a escolaridade tem precoces eram, simultaneamente, identificadas por sa-
um papel crucial, não tem a exclusividade desse papel. berem escrevinhar, tendo considerado que o interesse
Os contributos da emergência da literacia (uma acti- por aprender a escrever se desenvolvia antes, ou para-
vidade de interacção social que depende do contexto so- lelamente, com o de aprender a ler. Goodman verificou
cial e que é de domínio afectivo) vêm evidenciar o papel que as várias formas e funções da escrita se desenvolviam
fundamental desempenhado pelo ambiente familiar, pela de acordo com a quantidade e qualidade de experiências
comunidade e pelas práticas de ensino que a criança vai funcionais com a escrita que a criança tivesse vivenciado
encontrar na escola (Barratt-Pugh, 2000). e que a aprendizagem dos símbolos em situações familia-
Para Teale e Sulzby (1987), é a concepção de que a res aumentava a sua auto-confiança.
oralidade, a leitura e a escrita se desenvolvem concomi-
tantemente e interinfluenciando-se, de que o processo de 4ª Raiz — Uso da linguagem oral para falar da lingua-
desenvolvimento se inicia muito antes da idade escolar e gem escrita
da instrução formal e, ainda, de que a leitura e a escrita Muitos autores, entre os quais Heath (1982), Jacob
podem revestir formas muito diversas que justificam a (1984), Snow e Ninio (1987), consideram que este tipo
nova terminologia da emergência da literacia. de linguagem oral é um tipo de discurso específico que
pode variar de cultura para cultura.
Nesse sentido, foi Heath quem, no seu artigo What
DA METÁFORA DAS RAÍZES DA LITERACIA no bedtime story means, salientou o papel da leitura
À QUANTIDADE E QUALIDADE DAS de histórias, evidenciando a importância da prática de
EXPERIÊNCIAS COM O ESCRITO/ descontextualização e do tipo de perguntas que de-
IMPRESSO NO AMBIENTE FAMILIAR vem acompanhar essas sessões de leitura. Assim, o que
acontece durante a leitura de histórias, ou seja, o tipo da
À medida que a criança explora o ambiente escrito que a interacção linguística, social e afectiva que se pode es-
rodeia, desenvolve as suas raízes da literacia. tabelecer parece ser mais importante do que a simples
Goodman, 1987, p. 6. prática da leitura de histórias. Assim, o que acontece du-
rante a leitura de histórias e que tem a ver com o tipo
Consistentemente com os resultados dos cinco estudos da interacção linguística, social e afectiva que se pode
etnográficos que acompanhou sobre a natureza do pro- estabelecer parece ser mais importante do que a simples
cesso da emergência da literacia e em que participaram prática da leitura de histórias. De facto, segundo Kong,
78 crianças dos dois aos sete anos, Goodman (1987) iden- (2006) e Phan (2006) é o que a interacção acrescenta ao
tifica cinco factores de desenvolvimento, a que chamou texto, a linguagem para além do texto (conversas, comen-
raízes da literacia, que contribuiriam decisivamente para tários, questões), esse tipo de interacção entre linguagem
o domínio da linguagem escrita e que passo a descrever. escrita e linguagem falada que vai permitir à criança:

1ª Raiz — Consciência do escrito em contextos situacionais — interiorizar princípios e conceitos sobre a função da
Trata-se de um processo de recepção através do que a linguagem escrita;
criança vê escrito, na medida em que se considera que a — estabelecer relações entre esta, a linguagem oral e as
literacia tem a sua origem no contacto com o escrito. É este ideias;
mundo das letras e dos números que leva a criança a fazer — aperceber-se da estrutura do texto e organização do
três tipos de descobertas: o escrito tem um significado; é discurso;
possível saber-se como é que tem esse significado; é possí- — adquirir o hábito de formular hipóteses, e previsões;
vel fazer sentido do escrito através do próprio escrito. — aumentar o vocabulário;
— perceber o carácter lúdico e estético da linguagem;
2ª Raiz — Consciência do discurso organizado — desenvolver capacidades essenciais para a leitura
Este tipo de discurso diz respeito à linguagem escrita que como motivação, atenção e memória.
a criança pode encontrar em livros, jornais, revistas, car-
tas, etc. A questão é que, neste caso, a quantidade e varie- A importância da leitura de histórias reside no facto
dade destes materiais vai depender do ambiente familiar, desta experiência com o escrito proporcionar a transição
social e cultural em que a criança está inserida, não se tra- entre as estratégias linguísticas utilizadas para interpretar
tando, como na raiz anterior, de uma situação universal. a comunicação oral que se estabelece face a face e as es-
Nesta, tanto o acesso a livros como os hábitos de leitura tratégias linguísticas utilizadas para interpretar os textos
dos outros membros da família são determinantes. descontextualizados das histórias. Assim, a criança que

120 sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia
ouve ler história adquire experiências com uma linguagem envolvam práticas de literacia, sobretudo as que são con-
mais descontextualizada e aumenta o seu conhecimento sideradas como as suas raízes. É evidente que tanto o
sobre as características da linguagem escrita, aspectos que número e a variedade destas experiências, como a forma
tanto contribuem para a aquisição da literacia, como para como os pais (ou outro adulto próximo da criança) esti-
o aproveitamento escolar. Teale (1984, p.120) explica esse mularem a sua atenção ou responderem às suas questões
fenómeno salientando que ouvir ler histórias vai ajudar a irá condicionar o desenvolvimento desse processo.
criança “a dominar o pensamento reflexivo e desinserido As crianças que se sentam ao colo de um dos pais,
que é tão necessário para o sucesso escolar”. ou ao lado dum irmão mais velho, ouvem ler (ou contar)
Ora, muitas crianças só têm contacto com a lingua- uma história e conversam sobre essa história, ouvem e
gem descontextualizada, que é “independente da situa- compreendem palavras como ler, página, história, livro.
ção”, quando entram na escola, o que, segundo Heath, Aprendem a manusear esse livro (o que implica saber
contribui decisivamente para a situação de desvantagem que são livros, saber a direcção em que são lidos, saber
escolar verificada com essas crianças. virar as páginas, saber a função da parte escrita e a das
ilustrações). Estas crianças começam, assim, entre os
5ª Raiz — Consciência linguística acerca da linguagem três e cinco anos, a perceber que o escrito transmite uma
escrita mensagem, o que as leva a interrogarem-se sobre “o que
Pode dizer-se que a consciência linguística consiste no está escrito”. Para elas, a magia da leitura vai começar…
conhecimento que o indivíduo tem sobre a sua própria Além disso, a troca de correspondência e outras situ-
língua e na sua capacidade para a regular e avaliar. As- ações funcionais de escrita irão contribuir para o desen-
sim, à medida que a criança desenvolve a sua consciência volvimento simultâneo da compreensão da função e da
linguística torna-se cada vez mais capaz de julgar, ana- forma da escrita.
lisar e corrigir frases erradas. Pode, então, dizer-se que Delgado-Martins et al. (1991) dizem que, se os fami-
as evidências do processo metalinguístico se manifestam liares de crianças (com 5/6 anos) brincarem com elas com
de várias formas, evoluem de estádio para estádio e vão jogos de palavras, adivinhas, lengalengas, rimas, palavras
desde a sensibilidade ao erro até à sua correcção. com dois sentidos, histórias confusas, vão facilitar-lhes o
No entanto, se a consciência linguística se vai desen- desenvolvimento da consciência linguística a nível fono-
volvendo com o tempo, em relação a todos os domínios lógico, lexical e gramatical.
da linguagem, esse desenvolvimento não se faz de igual Depreende-se, pois, quão relevantes são para a crian-
modo para todas as crianças (Menyuk & Brisk, 2005). ça as condições exógenas que incluem, para além dos
Acresce que, sobretudo a consciência fonológica, tem materiais escritos que ela tem à disposição, o papel do
um papel determinante na aprendizagem da leitura adulto, o tempo de que esse adulto dispõe e as próprias
(Cary, 1988; Morais, 2002). A familiarização com o uso condições contextuais em que se desenvolve a interac-
de classes linguísticas como palavra, letra, frase, vai per- ção. A este respeito, Leichter (1984) identifica a impor-
mitir à criança dominar os conceitos com maior facilida- tância da existência de três climas: o clima físico, o clima
de e é o conhecimento desses conceitos que, por sua vez, interpessoal e o clima emocional.
lhe vai permitir conversar, pensar e começar a construir O papel do adulto tem sido citado como decisivo na
toda uma teoria sobre o sistema linguístico. mediação entre o escrito e o desenvolvimento da literacia
por inúmeros autores (Delgado-Martins et al., 1991; He-
ath, 1982; Teale & Sulzby, 1987), desde Vygotsky (1988).
O ENVOLVIMENTO PARENTAL Contudo, o tempo de que esse adulto dispõe para um di-
DIFERENCIADO NAS PRÁTICAS álogo individualizado leva a que a chamada “relação de
DE LITERACIA E AS RESPECTIVAS um-para-um” (Hawkins, 1984) seja, também, preconiza-
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS NA ESCOLA da por um grande número de especialistas. Com efeito,
é este tipo de relação que está subjacente ao modelo das
A exposição à leitura e à escrita pode ter lugar no ambiente famílias dos leitores precoces ou dos pequenos leitores
escolar independentemente das práticas do ambiente fa- fluentes, sobressaindo três aspectos essenciais: o mode-
miliar, contudo o encorajamento à leitura também pode lo, a interacção directa e a prática de scaffolding¹.
partir da família Ora, todas estas vivências favoráveis à emergência
Menyuk & Brisk, 2005, p. 27. da literacia não são, de modo nenhum, generalizadas
pelo que, para Menyuk e Brisk (2005), elas constituem
O envolvimento familiar tem de ser visto a uma nova luz, as principais causas de diferenças entre as crianças e,
quando se considera que o desenvolvimento da literacia obviamente, têm origem nas diferenças dos respectivos
começa muito antes da criança entrar na escola. E, ainda, ambientes familiares.
quando se sabe que esse desenvolvimento se faz através É nesse sentido que, nos anos noventa, se acentua a
da participação em experiências sociais e culturais que influência de perspectivas sócio-culturais na emergência

sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia 121
da literacia (Barratt-Pugh, 2000; Goldenberg, 2006). Es- famílias, dificilmente poderão complementar as experi-
tas perspectivas, decorrentes da noção de que a literacia ências vividas no ambiente familiar ou discutir formas
é uma forma de capital cultural, defendem que “o seu de colaboração (Schneider, 2006). Faz, ainda, parte
conhecimento e competência diferem de acordo com o dessas preocupações saber-se que as crianças cujo am-
contexto sócio-cultural em que são adquiridos” (Luke, biente familiar não é propício ao desenvolvimento das
1993, p. 7). raízes da literacia são provenientes de famílias desfa-
Com efeito, mesmo as práticas de literacia que se vorecidas económica e socialmente, com baixos níveis
apresentam como similares, nomeadamente a leitura de educacionais, imigrantes, pertencentes a minorias étni-
histórias, podem, de facto, realizar-se de forma muito cas, o que vai, obviamente, contribuir para que o ciclo
diferente, como tinha sido já demonstrado por Hea- de pobreza se mantenha.
th (1982). Pode, pois, concluir-se, como Barratt-Pugh Porém, as implicações não levam só a preocupações.
(2000, p. 7), que “as práticas de literacia não só são cons- Efectivamente, uma vez identificadas as raízes da lite-
truídas socialmente como são, também, culturalmente racia e reconhecida a natureza sócio-cultural do fenó-
específicas”². meno, parece possível intervir-se, com êxito, nos dois
Deste modo, para que o envolvimento familiar possa contextos referidos. É o caso de três estudos que acom-
ser um factor determinante no desenvolvimento da lite- panhei de perto realizados nos três contextos determi-
racia torna-se necessário, por um lado, que as famílias nantes para o desenvolvimento da literacia: a família,
tenham conhecimento da forma como as práticas contri- o jardim-escola e a escola.
buem, efectivamente, para esse desenvolvimento (Bales
et al., 2006) e, assim, aumentarem o seu capital cultural
(Lin, 2006). Por outro, torna-se urgente que quaisquer O CASO DA INFLUÊNCIA
que sejam os conhecimentos que as crianças adquiram no DO AMBIENTE FAMILIAR…
seu ambiente familiar, ou na comunidade em que estão
inseridas, eles sejam reconhecidos e valorizados noutros No 1ºcaso, tratou-se de um estudo por mim realiza-
contextos, nomeadamente, na escola (Schneider, 2006). do com duas amostras em tudo semelhantes (situação
Nesse sentido, Luke argumentara em 1993 que socio-económica desfavorecida, baixo nível educacional
quando as práticas pedagógicas, os textos e a própria dos pais, famílias imigrantes, deficiente domínio da lín-
avaliação não têm em conta as experiências da criança, gua de escolaridade) salvo na etnia, que era distinta (uma
torna-se-lhe muito difícil compreender as exigências da vez que uma era de origem africana e a outra de origem
instrução formal, o que irá, certamente, comprometer indiana), foi possível modificar a natureza e a quantidade
o seu futuro. Assim, a natureza das perspectivas sócio- das experiências com o escrito no seio do ambiente fami-
-culturais e da emergência da literacia leva a dois tipos liar (Villas-Boas, 2001).
de implicações que dizem respeito ao papel do contexto Cada uma das amostras foi seleccionada em duas
familiar e ao do contexto escolar. escolas diferentes e constituída pela totalidade dos
Uma delas está relacionada com o facto da discrimi- alunos que frequentavam as quatro classes do primei-
nação ao nível da aquisição da literacia poder começar ro ano da respectiva etnia. Em cada escola e de acor-
muito cedo. Com efeito, se as crianças aprendem a ler do com a conveniência dos professores, os alunos de
através da interacção com o escrito, aquelas cuja experi- duas classes e respectivas famílias constituíram o grupo
ência é mais limitada ou adquirida em contextos sócio- experimental, e os alunos das restantes constituíram o
-culturais diferenciados, vão, necessariamente enfrentar grupo de controlo. No início do estudo, o desenvolvi-
mais dificuldades quando, na escola, começarem a rece- mento da literacia de todos os alunos foi medido pelo
ber a instrução formal na leitura. Teste de Desenvolvimento da Literacia (TDL) (Villas-
Acresce que o défice, a existir, dificilmente será ul- -Boas, 2002) e os pais dos alunos do grupo experimen-
trapassado (Menyuk & Brisk, 2005) se as estratégias tal foram entrevistados.
pedagógicas da escola não forem suficientemente diver- O estudo demorou dois anos e a intervenção contou
sificadas para criarem condições para o desenvolvimento com quatro tipos de actividades: (a) reuniões com os pais
das raízes da literacia. na escola; (b) leitura de histórias no contexto familiar com
Igualmente preocupante é o que parece passar- oferta do respectivo livro, realizada por visitadores previa-
-se com a leitura de histórias na educação pré-escolar. mente preparados e cuja interacção procurou exemplifi-
Veloso (2002) verificou que, para além duma grande car o tipo de conversas sobre a história que incluíam tanto
escassez de livros, a hora do conto como ritual pratica- perguntas contextualizadas como descontextualizadas;
mente não existia num universo de 52 escolas. Quanto este tipo de interacção era, depois, incentivada a ser re-
às condições para construírem sobre conhecimentos petida pelos pais ou irmãos mais velhos; (c) actividades
culturais diferentes, a situação será, ainda, mais ne- específicas de trabalho de casa que contavam com o en-
gativa. Não sendo sensíveis aos valores e culturas das volvimento da família; e (d) pequenos passeios em que as

122 sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia
crianças eram acompanhadas pelos respectivos visitado- e pais, partilhando materiais escritos e discutindo as for-
res e, sempre que possível, por elementos familiares. mas de leitura que podem ter lugar no ambiente fami-
Deste modo, os encontros entre pais e professores liar” (p. 27). Concluem que uma exposição intensiva ao
permitiram (a) discutir formas de interacção com o es- escrito e práticas de leitura com textos com significado
crito/impresso em contextos situacionais (1ª raiz), (b) para a criança, em contextos familiares, encorajam o de-
revelar a função da escrita através de troca de corres- senvolvimento da literacia quer em casa, quer na escola.
pondência (3ª raiz), e (c) exemplificar formas de apoio
a actividades de trabalho de casa constituídas por rimas, O caso da “intencionalidade”
aliterações, jogos de palavras, adivinhas, complemento de das educadoras de infância…
frases, identificação e correcção de erros (5ª raiz), con- Situações semelhantes às do ambiente familiar para au-
templando respectivamente a 1ª, 3ª e 5ª raízes da literacia. mentar a quantidade e qualidade das experiências com o
As visitas domiciliárias para entrega e leitura de li- escrito podem também ser recriadas em contextos pré-
vros de histórias promoveram o desenvolvimento da 2ª e -escolares com vantagem para o desenvolvimento da li-
4ª raízes. Além disso, as visitas a museus e outros locais teracia, um processo que evolui continuamente, nunca é
culturais, ao mundo do trabalho e a locais de diversão demais salientar.
permitiram enriquecer o “conhecimento do mundo” Com esse objectivo, Espada (2004) desenvolveu um
destas crianças e das suas famílias. estudo, que orientei, e que comparou o desenvolvimento
Os resultados indicaram, ao fim de um primeiro ano da literacia de três grupos de crianças com as perspec-
de intervenção, diferenças significativas na evolução tivas das respectivas educadoras. Entrevistadas as três
positiva do desenvolvimento da literacia de crianças de educadoras foi possível concluir, através da análise de
seis/sete anos em comparação com os respectivos grupos conteúdo aos protocolos das entrevistas, a existência de
de controlo. diferenças essenciais nas preocupações que exprimiram
e nas actuações que descreveram.
Fig. 2 Com efeito, enquanto a Educadora A nunca mencio-
Progressão do desempenho da Amostra africana nou o desenvolvimento da literacia como um objectivo
a atingir, demonstrando apenas preocupação pelo “de-
30 senvolvimento global “ da criança, as Educadoras B e
exper.
média dos resultados

25 contr. C consideraram que o desenvolvimento da literacia era


claramente um objectivo a atingir. No entanto, enquanto
20
a Educadora B desenvolvia apenas e esporadicamente
15
actividades específicas nesse sentido, a Educadora C de-
10 clarou que tinha essa “intencionalidade”, não só desen-
5 volvendo actividades específicas, como tirando partido
0 de todas as outras actividades para estimular o desen-
pré-teste pós-teste volvimento da literacia. Desse modo, criava um contexto
muito mais favorável ao seu desenvolvimento.
Fig. 3 Com efeito, a aplicação do TDL (Villas-Boas, 2002)
Progressão do desempenho da Amostra Indiana aos três grupos de crianças demonstrou diferenças sig-
nificativas (p >.oo1) tanto na globalidade do teste, como
30 em cada uma das três dimensões do teste (consciência
exper.
média dos resultados

25 contr. grafofonética, consciência das convenções da escrita e


consciência da informação semântica), verificando-se
20
que as médias mais elevadas foram atingidas pelos alu-
15
nos da Educadora C e as menos elevadas pelos alunos
10 da Educadora A. Deste modo, os resultados indicaram
5 que o desenvolvimento da literacia pode ser positiva e
0 significativamente afectado nos casos em que existe essa
pré-teste pós-teste intencionalidade por parte da educadora.

Menyuk e Brisk (2005) citam este estudo, salientan- O CASO DO CONTEXTO ESCOLAR
do que ele “enriqueceu os conhecimentos prévios das DA LEITURA…
crianças e deu-lhes prática com a leitura e com a lingua-
gem” (p. 113) e, também, que resultados semelhantes po- O terceiro estudo, desta vez em contexto escolar, foi rea-
dem ser obtidos “através da interacção entre professores lizado por Leonardo, em 2005, numa escola do 1º Ciclo,

sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia 123
caracterizada por uma população multicultural de gran- entre os alunos, na medida em que os dados analisados
de heterogeneidade. Procurou-se facilitar a transição revelaram uma turma em que os alunos lusos continuam
entre culturas, utilizando uma estratégia pedagógica que a ser os mais escolhidos mas com menos escolhas do que
recorreu à leitura de histórias, seguida de actividades na primeira aplicação do teste sociométrico; evolução
exploratórias contextualizadas e descontextualizadas. A semelhante se verificou com as rejeições que, embora re-
amostra foi constituída por 34 alunos com uma média caindo maioritariamente sobre os alunos não lusos, o foi
etária de oito anos e seis meses integrados em duas tur- em número inferior à primeira aplicação do teste.
mas do 3º ano. Cada turma constituiu, respectivamente,
o grupo experimental e o de controlo. Além da finalidade No decurso desta reflexão, procurei pôr em evidência o
de se avaliar o desenvolvimento da leitura, pretendeu-se, processo complexo e multifacetado do desenvolvimento
ainda, verificar a existência, ou não, de alterações no rela- da literacia, abordando os aspectos relacionados com (a)
cionamento das crianças pelo que, para além dos testes³ a relação entre o desenvolvimento linguístico e a apren-
para avaliar o desenvolvimento da leitura, se recorreu à dizagem escolar, (b) as perspectivas teóricas da emer-
aplicação de testes sociométricos, tendo em ambos os gência da literacia e (c) as suas implicações no papel do
casos sido utilizados como pré e pós-testes. envolvimento parental/familiar, tendo feito, por fim, (d)
O período da intervenção decorreu num espaço de uma breve síntese sobre a variedade sócio-cultural das
tempo correspondente a dois períodos escolares. O práticas familiares e a sua incidência nas estratégias pe-
grupo experimental foi submetido a um programa sis- dagógicas nos contextos escolares e pré-escolares.
temático (semanal) de leitura de histórias, realizado pela
investigadora que procurou que as estratégias utilizadas Fig. 4
decorressem por num contexto específico que teve em Progressão do desempenho global dos grupos
conta os “três climas” já citados e preconizados por Lei-
chter (1984): o físico, o social e, também, o emocional. As- 25
sim, para corresponder ao primeiro “clima” foi criado um 24
exper.
cantinho acolhedor na biblioteca da escola com mantas e contr.
23
média dos resultados

almofadas; relativamente ao segundo, procurou-se que a


22
interacção fosse feita em pequenos grupos, dividindo a
turma em dois subgrupos variáveis e não foi esquecida a 21

dimensão cultural, estimulando uma maior proximidade 20


multicultural com recurso a 20 histórias provenientes das 19
várias culturas em presença (Soares & Tojal, 1997); final- 18
mente, deu-se resposta ao clima emocional procurando
17
tornar a actividade o mais aprazível possível.
16
Também neste caso, os resultados se revelaram al-
pré-teste pós-teste
tamente positivos, tendo os testes utilizados indicado
diferenças significativas na progressão tanto do de-
sempenho da oralidade (Fig. 4), o que constitui “um Para concluir, penso ter evidenciado, por um lado, a ne-
poderoso indicador sobre a maturidade linguística da cessidade e, por outro, a possibilidade duma intervenção
criança” (Sim-Sim, 2001, p. 16), como do da leitura en- pedagógica no contexto sócio-afectivo e nas práticas es-
tre este grupo de alunos e os que tinham constituído o colares e pré-escolares de modo a poderem contribuir
grupo de controlo. favoravelmente, tal como o ambiente familiar, para a
A influência destas estratégias parece ter contribu- aquisição da literacia.
ído, também, para uma evolução positiva nas relações

124 sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia
Notas Hawkins, E. (1984). Awareness of language: An introduc-
tion. Cambridge: Cambridge University Press.
1. Scaffold pode traduzir-se por andaime. Tal como na Heath, S. B. (1982). What no bedtime story means: Nar-
representação de um guião pré-estabelecido pelo adulto, rative skills at home and school. Language and Soci-
este começa por desempenhar todos os papéis, permi- ety, 11, pp. 49-77.
tindo à criança ir assumindo um papel cada vez maior nesse Heath, S. B. (1989). Ways with words: Language, life and
desempenho e daí a metáfora de “retirar os andaimes”. work in communities and classrooms. Cambridge:
2. Daí, a existência de cada vez mais estudos sobre as Cambridge University Press.
práticas de literacia em culturas diferentes, nos E.U.A. Jacob, E. (1984). Learning literacy through play: Puerto
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126 sísifo 11 | maria adelina villas -boas | o envolvimento parental no desenvolvimento da literacia
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

Outros artigos
Um olhar de dentro: Perspectivas de professores
acerca de necessidades de mudança na escola

Albertina L. Oliveira
aolima@fpce.uc.pt
Universidade de Coimbra, Portugal

Resumo:
Neste estudo¹ fez-se um levantamento das funções e papéis mais relevantes, que os professores
poderão desempenhar, de modo a contribuírem para a superação de diversos problemas com que
a escola se defronta, na actualidade. Participaram na investigação 13 professores dos níveis básico
e secundário, de diversos distritos da região Centro, com vasta experiência docente e tendo de-
sempenhado diversos cargos ao longo da sua carreira profissional. As ideias geradas resultaram
do envolvimento num processo em que se utilizou a técnica delphi com o objectivo de se chegar
a um consenso construído, após diversas reconsiderações e reavaliações das propostas expres-
sas. Em consequência, foi possível identificar e hierarquizar os aspectos que deveriam ser alvo de
mudanças prioritárias, bem como agrupá-los nas seguintes categorias ou dimensões de mudança:
reorganizar o funcionamento da escola, com vista a estar centrada no aluno; melhorar os métodos
de ensino; aumentar o interesse dos alunos pela escola; estreitar a cooperação escola-famílias-
-comunidade; dotar a escola de recursos materiais e humanos; promover a educação holística;
promover formação especializada para os professores; concentrar a actividade dos docentes nos
tempos lectivos e na direcção de turma; existir a figura do professor-investigador.

Palavras-chave:
Perspectivas de professores, Ensino básico e secundário, Insucesso escolar, Necessidades de mu-
dança.

Oliveira, Albertina L. (2010). Um olhar de dentro: Perspectivas de professores acerca de necessidades


de mudança na escola. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 11, pp. 127-138.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

127
INTRODUÇÃO que 25% destes não concluíram o 3º ciclo (Ministério do
Trabalho e da Solidariedade Social, 2006). O que tor-
Ainda que o insucesso escolar não seja um fenómeno na ainda mais preocupante esta situação é que, segun-
exclusivo da sociedade portuguesa, pois, num artigo do a mesma fonte, o fenómeno da retenção e desistência
de revisão sobre a problemática da desmotivação esco- dos alunos não entrou em processo de regressão, mas,
lar, no plano internacional, Hidi e Harackiewicz (2000) ao invés, mostrou tendência para aumentar, particular-
referem que se verifica uma tendência crescente para a mente no que respeita ao ensino secundário. Neste ní-
deterioração do interesse e das atitudes face à escola, à vel de estudos, as taxas de retenção, desde o ano lectivo
medida que os jovens avançam na educação formal, em de 1996/97 até 2005/06, mantiveram-se acima de 30%,
Portugal o problema tem sido muito mais acentuado e tendo-se verificado uma descida digna de registo apenas
preocupante. no ano lectivo de 2006/2007, em que a mesma se cifrou
Como refere Canavarro (2007), “é verdade que o em 24.8% (GEPE, 2008).
nosso país tem assistido de forma constante a uma redu- Estes indicadores não deixam qualquer dúvida de
ção das taxas de abandono escolar, de saída antecipada e que, pese embora os fortes investimentos da União Eu-
de saída precoce” (p. 9), decorrentes em grande medida ropeia para elevar o nível educativo dos portugueses e
de Portugal ter vindo a beneficiar de fundos estruturais as diversas reformas a que o sistema educativo tem sido
da União Europeia para elevar a escolarização da sua po- sujeito, os resultados alcançados traduzem a disfuncio-
pulação. Todavia, as melhorias e os ganhos conseguidos nalidade do nosso sistema educativo, legitimando e tor-
têm sido lentos e ficam muito aquém do que seria de- nando ainda mais pertinentes as três seguintes questões
sejável face à magnitude dos investimentos efectuados, levantadas por Carvalhal (citado por Abreu, 2002) na
mantendo Portugal numa posição de grande desvanta- conferência intitulada “Um novo Quadro para o Siste-
gem comparativamente à maioria dos estados da União ma de Educação em Portugal”, em 1998: “Que atavismo
Europeia. Segundo dados da OCDE (2005, cit. por Mi- social se abateu sobre o sistema educativo português que
nistério do Trabalho e da Solidariedade Social, 2006), a o impede de dar resposta satisfatória às necessidades e
média de escolarização da população adulta portuguesa exigências das pessoas e da sociedade?”; “O que é que é
cifra-se em 8,2 anos, ocupando uma posição de retaguar- preciso mudar — mudar e não apenas reformar — para
da em relação a diversos países, incluindo a Grécia, a que a educação (…) esteja sintonizada com o pulsar do
Espanha, a Turquia e o México, e distanciando-se bas- mundo contemporâneo?”; “O que é que é necessário
tante da média da OCDE, situada em 12 anos. A esta re- inovar, no pensamento e na acção, para que o sistema
alidade não é alheia a persistência de elevadas taxas de educativo produza os resultados que dele se esperam,
abandono e insucesso escolar, verificando-se milhares de tendo em conta, por um lado, as necessidades e as aspira-
jovens que completaram 16 anos sem terminarem o 9º ções individuais e colectivas e, por outro, os recursos nele
ano de escolaridade ou que abandonaram o sistema edu- aplicados?” (pp. 14-15).
cativo sem obterem o diploma de estudos secundários, Do ponto de vista dos especialistas da educação e
com idade inferior a 24 anos. Em 2001 a percentagem domínios afins, que se têm dedicado à análise, investi-
de jovens entre os 18 e 24 anos que não completaram os gação e reflexão profundas sobre as fontes do proble-
estudos secundários situou-se em 45%, constatando-se ma ou os factores de ineficácia da educação, é possível

128 sísifo 11 | albertina l. oliveir a | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades…
encontrar, com um grau de acordo bastante razoável, Guglielmino, 1977), a interacção controlada é suscitadora
o cerne ou o âmago das dificuldades sentidas, e que se do pensamento independente, por parte do participante,
prendem com a concepção de escola e educação que e ajuda-o a formar, gradualmente, uma opinião reflectida.
continua prisioneira do modelo industrial, o qual é
completamente desadequado para responder às ne- Selecção do painel DELPHI
cessidades e aspirações das pessoas e das organizações O painel ficou constituído por professores do ensino
sociais no mundo actual (e.g., Abreu, 1997, 2002; Am- básico e secundário, que se encontram a frequentar
brósio, 2001; Figueiredo, 2001; Marcelo, 2009; Olivei- cursos de mestrado em Ciências da Educação, nas es-
ra, 2005; Papert, 2001; Resnick, 2001; Simões, 1979, pecializações de Psicologia da Educação, Educação
1981; Veiga Simão et al., 2009). Porém, tendo em conta Especial, e Supervisão Pedagógica e Formação de For-
que esta é a perspectiva dos teóricos e investigadores madores, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da
da educação e que os agentes envolvidos directamente Educação da Universidade de Coimbra. A maioria dos
no acto educativo detêm um conhecimento experien- participantes havia já completado a componente cur-
cial que não se pode subestimar, considerámos útil, ricular dos mestrados referidos, o que lhes conferia, à
oportuno e importante auscultar os professores quanto partida, um estatuto de especialistas, ou seja, uma capa-
ao que, do seu ponto de vista, pode contribuir para su- cidade para pensar os fenómenos educativos de forma
perar a diversidade de problemas com que a escola se mais integrada e reflexiva, resultante da ponderação in-
defronta na actualidade. teractiva das perspectivas prática (proveniente da vasta
experiência profissional e do conhecimento directo do
quotidiano escolar, no exercício do seu papel de pro-
METODOLOGIA fessores) e teórica (decorrente de um conhecimento
mais vasto e profundo dos quadros de leitura concep-
A opção metodológica pela técnica delphi para a colheita tual das Ciências da Educação).
dos dados deve-se ao facto de ser particularmente indi-
cada quando se pretende alcançar opiniões consensuais Procedimento
válidas sobre assuntos em relação aos quais não existe A implementação da técnica delphi, para além da cons-
conhecimento certo ou exacto, a partir de um grupo res- tituição do painel de especialistas num determinado as-
trito de sujeitos, normalmente, conhecedores ou espe- sunto, requer que se elabore um questionário, a partir
cialistas no assunto abordado (Borg & Gall, 1983). dos contributos de todos os elementos do painel, e que
Esta técnica tem a virtualidade de conduzir à obten- o mesmo seja, posteriormente, enviado a todos os parti-
ção de resultados que reflectem, verdadeiramente, o que cipantes na discussão, para classificação dos seus itens,
as pessoas envolvidas pensam, dado permitir contornar reintrodução de novos itens ou exclusão de alguns deles,
os problemas ligados à persuasão de membros do grupo de acordo com as opiniões manifestadas. Ao longo deste
com maior autoridade ou estatuto, com melhores com- processo, os questionários são revistos e refeitos várias
petências de comunicação oral, à influência da opinião vezes, até se chegar a uma convergência de opiniões, sen-
maioritária, ou ainda à intenção dos membros do grupo do necessário habitualmente três voltas (Guglielmino,
de não mudarem as opiniões expressas anteriormente, 1977; Rothwell & Kazanas, 1992).
ou de resistirem à abertura a novas ideias.
O procedimento delphi consiste, então, numa discus- Questionário 1
são entre todos os membros do grupo, que decorre no Foi apresentada uma questão aberta aos membros do
anonimato e que permite obter feedback controlado, bem painel delphi, enviada por correio electrónico e formula-
como o tratamento estatístico descritivo das respostas da nos seguintes termos:
(Guglielmino, 1977). A salvaguarda do anonimato permite
evitar a influência de indivíduos socialmente dominantes, Que funções/tarefas/papéis poderiam ser realizadas pelos
deixando os elementos do grupo livres para reflectirem professores (ao nível do pré-escolar, 1º, 2º e 3º ciclos e ensi-
e expressarem, genuinamente, a sua opinião. O feedback no secundário) não sobrepostas às de outros técnicos/pro-
controlado reduz a possibilidade de se verificarem contri- fissionais que já aí desenvolvem o seu trabalho, de molde
buições irrelevantes ou repetitivas, distraindo a atenção a contribuir, significativamente, para a melhoria dos diver-
do assunto em discussão, ou obscurecendo-o. As estatís- sos problemas com que a escola se defronta na actualidade
ticas relativas às respostas dos participantes fornecem um (ex: insucesso escolar, problemas de comportamento, in-
índice relativo à posição do grupo, gerando a oportuni- disciplina, desmotivação para as aprendizagens escolares,
dade para cada membro repensar a sua opinião, compa- deficiente cooperação entre escolas e famílias, etc.)?
rativamente às opiniões de todos os elementos do grupo,
constituindo-se, assim, uma via potenciadora de consen- Partindo desta questão, foi solicitado a cada membro
sos. De acordo com Dalkey e Helmer (1963, citados por do grupo que redigisse uma lista de funções/tarefas/pa-

sísifo 11 | albertina l. oliveira | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades… 129
péis, com base na sua experiência e no seu conhecimento idêntica, e com a adição de 4 novos itens, propostos nas
da realidade escolar, bem como nas suas reflexões. respostas ao questionário 2. Neste terceiro questionário
pedia-se aos membros do painel que reconsiderassem as
Questionário 2 suas respostas mais divergentes, no sentido de as aproxi-
Com base nas respostas recebidas, elaborou-se uma mar das do grupo maioritário, ou, então, que justificassem
lista global, que resultou do elenco de todas as ideias di- as suas opiniões, caso decidissem manter as pontuações
ferentes que foi possível identificar, a qual deu origem a atribuídas aos itens do questionário 2, bem como se solici-
um questionário com 38 itens. Este questionário foi, se- tava a classificação dos 4 novos itens.
guidamente, reencaminhado para todos os participantes,
tendo em vista a classificação de cada item numa escala Caracterização da amostra
de importância de tipo Likert, variando de 0 (nada im- A amostra final ficou constituída por 13 professores que
portante) a 7 (extremamente importante). É de salientar exercem a sua actividade docente em diversos concelhos
que, nesta escala, o ponto mediano se situa em 3.5. da Região Centro ou limítrofe (Coimbra, Penela, Miranda
do Corvo, Lousã, Espinho, Ponte de Sor e Seia)², com
Questionário 3 idades compreendidas entre 27 e 51 anos, sendo a média
Compiladas as respostas ao questionário 2, calcularam- de 43 anos. Predominam professores do sexo feminino,
-se para cada item os valores do Q1 (primeiro quartil), do em número de 10 (77%), registando-se apenas 3 (23%)
Q2 (segundo quartil ou mediana) e do Q3 (terceiro quar- sujeitos masculinos. Relativamente aos anos de serviço
til) e reenviou-se um terceiro questionário a todos os docente, o valor mínimo é de 5 e o máximo de 30, sendo
participantes, com indicação das estatísticas acabadas de a mediana de 19. Através do gráfico 1, podemos ver que a
referir, com a sinalização (a cor de laranja) dos itens em maioria dos sujeitos da amostra tem uma longa experiên-
que menos de 25% de colegas haviam pontuado de forma cia de ensino, ou seja, 14 ou mais anos de serviço docente.

Gráfico 1 — Anos de serviço docente dos sujeitos da amostra

frequência

1.5

0.5

0
5 7 9 14 19 20 21 22 27 30

anos de serviço docente

Relativamente à categoria profissional dos profes- Centro do PNESST; e Coordenador(a) do Ensino Re-
sores, verificamos que 5 são do Quadro de Nomeação corrente Nocturno.
Definitiva (PQND), outros 5 pertencem ao Quadro de A maioria dos professores (8) desenvolvem a sua acti-
Educação Especial (PQEE) e 3 fazem parte do Qua- vidade nos 2º e 3º ciclos, 2 dão apoio, no âmbito das neces-
dro de Zona Pedagógica (PQZP). Todos os professores sidades educativas especiais, aos 1º, 2º e 3º ciclos, apenas 1
assumiram até ao presente ou exercem no actual ano lecciona só a nível do 1º ciclo, bem como só 1 desempenha
lectivo (2006/07) cargos de direcção, desempenhando a sua actividade nos níveis de 3º ciclo e secundário. Sig-
a maioria deles 2 ou mais desses cargos, tão diversos nifica isto que todos os professores leccionam no ensino
como: Coordenador(a) da Equipa de Educação Espe- básico, com predominância do 2º e 3º ciclos.
cial; Coordenador(a) da Equipa de Apoio Educativo; Considerando as disciplinas leccionadas, a distribui-
Presidente da Assembleia Constituinte; Presidente ção é a seguinte: 6 trabalham na Educação Especial, 2
da Assembleia de Escola; Coordenador(a) e/ou Sub- ensinam Ciências Naturais, 1 lecciona Matemática, 1 dá
-coordenador(a) de Departamento; Coordenador(a) de aulas de Inglês, 1 ensina Educação Visual/Tecnológica e
Directores de Turma; Delegada de Disciplina; Coorde- outro lecciona no 1º CEB.
nadora do Secretariado de Exames; Coordenador(a) do Com base na descrição da amostra que se acabou de
Conselho de Docentes; Coordenador(a) do Departa- fazer pode-se partir do princípio de que as opiniões dos
mento de Educação Especial; Coordenadora da Região sujeitos do painel delphi merecem a nossa consideração

130 sísifo 11 | albertina l. oliveir a | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades…
atenta, uma vez que provêm de pessoas com uma larga mediano da escala de resposta (3.5), e que a quase tota-
experiência profissional e com um vasto conhecimento lidade dos itens (34)4 obteve valores de Q1 bastante ele-
da realidade escolar, aferidos, quer pelos anos de servi- vados (escores de 5, 6 e 7). Para além destes aspectos, e
ço docente, quer pelo desempenho de diversos cargos ainda como indicador de convergência ou consenso nas
de gestão. opiniões dos professores, é de referir que a amplitude in-
terquartílica (Q3 — Q1) da maioria dos itens denota uma
baixa variabilidade nas respostas, constatando-se que
RESULTADOS somente em 3 deles foi superior a 25.
Seguidamente, apresentamos a hierarquização dos
Desde as primeiras análises quantitativas, as quais inci- itens do questionário 2, a partir das classificações dos su-
diram sobre as respostas ao questionário 2, foi possível jeitos da amostra, por ordem decrescente de importância
verificar um elevado consenso e uma grande valorização atribuída. Se tivermos em conta que as pontuações po-
de todos os itens que integraram o questionário. Efecti- deriam variar entre 0 e 91 e que as classificações efectiva-
vamente, verificou-se que todos os valores de Q1 (1º quar- mente obtidas oscilaram entre 58 e 90, podemos deduzir
til), excepto o de um item³, se situaram acima do ponto que todos os itens foram considerados importantes.

Respostas ao questionário 2, hierarquizadas por ordem de importância

itens com classificação entre 80 e 90


r 5PEBTBTFTDPMBTEFWFSJBNEJTQPSEFVN4FSWJÉPEF1TJDPMPHJBF0SJFOUBÉÈP EFVNQSPGFTTPSEF"QPJP&EVDBUJWP
Ensino Especial e, muito importante, um técnico de acção social.
r %PUBSBTFTDPMBTEFOPWBTUFDOPMPHJBT QBSBRVFQBTTFNBTFSVNBSFBMJEBEFFGFDUJWBFOÈPWJSUVBM
r 'B[FSPBDPNQBOIBNFOUPEPTBMVOPTRVFTFEFTUBDBNDPNSFTVMUBEPTBDJNBEBNÊEJB DPNQSPCMFNBTEFDPNQPSUB-
mento e de aprendizagem.
r 3FTQPOTBCJMJ[BSPTQBJTFPTBMVOPTOPQSPDFTTPEFFOTJOPBQSFOEJ[BHFN
r $PPSEFOBSPUSBCBMIPEFFRVJQBDPNPVUSPTEPDFOUFTEBUVSNB OPTFOUJEPEFTFDSJBSVNDVSSÎDVMPBEBQUBEPBPTBMV-
nos em questão.
r 1SPNPWFSJOUFSDÄNCJPTFTDPMBGBNÎMJBFGBNÎMJBFTDPMB
r 1MBOJêDBSFJNQMFNFOUBSQSPHSBNBTEFUVUPSJB QSJODJQBMNFOUFKVOUPEPTBMVOPTNBJTQSPCMFNÃUJDPT EBEPRVFSBSB-
mente é exercido.
r 7BMPSJ[BSBDPNQPOFOUFMFDUJWB NBJTUFNQPQBSBQSFQBSBSBTBVMBT QBQFMFTTFODJBMEPQSPGFTTPS PRVBMÊDPMPDBEPQBSB
plano secundário).
r (BSBOUJSPJOUFSFTTFEPTBMVOPTQFMBFTDPMB
r "KVEBSOBFMBCPSBÉÈPNBOVUFOÉÈPEFUÊDOJDBTEFFTUVEPFEFUSBCBMIP BEBQUBEBTÆTDBSBDUFSÎTUJDBTEPTEJTDFOUFT
r (BSBOUJSPUSBCBMIPEPTBMVOPT EFUPEPT
DSJBOEPVNBNCJFOUFRVFQSPNPWBBRVBMJEBEFEBTBQSFOEJ[BHFOT
r 1BSUJDJQBSFNFRVJQBTEFJOUFSWFOÉÈPKVOUPEBTGBNÎMJBTF&ODBSSFHBEPTEF&EVDBÉÈPTVHFSJOEPUÊDOJDBTEFBDPNQB-
nhamento do estudo para realizar com os seus educandos; realizando pequenas acções de formação/ esclarecimento
sobre problemáticas pertinentes; intervindo/cooperando num trabalho de reabilitação de situações graves de insuces-
so/ abandono escolar, carências sociais, etc.
r $POTUSVJSNBUFSJBJTEJEÃDUJDPTFTQFDÎêDPT

itens com classificação entre 70 e 79


r 1BSUJDJQBSFNHBCJOFUFTEFBQPJPBPBMVOP RVFQSPWJEFODJBTTFNVNBDPNQBOIBNFOUPNBJTPVNFOPTQBSUJDVMBSJ[BEP
prolongado (consoante os casos) em situações de: gestão de conflitos entre pares e com professores; informação/acon-
selhamento sobre questões emergentes (ex: educação sexual, distúrbios alimentares, dependências, etc.).
r 1SPNPWFSBJOUFSEJTDJQMJOBSJEBEF
r .BJTGPSNBÉÈPFTQFDJBMJ[BEB EFDBNQP QSÃUJDB DPNXPSLTIPQT

r 1SPNPWFSBFEVDBÉÈPQBSBPBNCJFOUF QBSBPEFTFOWPMWJNFOUPTVTUFOUÃWFM QBSBBTBÙEFw
r .FMIPSBSPTNÊUPEPTEFFOTJOP
r 4BMBTEFFTUVEPPSJFOUBEP
r "MJWJBSPTQSPGFTTPSFTEPFYDFTTPEFCVSPDSBDJBRVFMIFTÊBUSJCVÎEB
r *NQMFNFOUBSPVDPMBCPSBSOBJNQMFNFOUBÉÈPEFGPSNBTEFBQSFOEJ[BHFNBWBMJBÉÈPEJGFSFOUFTDPNPQPSFYFNQMPQPS
portfolio.

sísifo 11 | albertina l. oliveira | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades… 131
r 0SHBOJ[BSUBSFGBT UBJTDPNPEFCBUFTFBTTFNCMFJBT
EFGPSNBBEFTFOWPMWFSPTFOUJEPDSÎUJDPFSFTQPOTÃWFMEPTBMVOPT
r %FTFOWPMWFSPêDJOBTFDMVCFTEFUFBUSP EFFYQSFTT×FT FUD
r 0GFSFDFSNBJTBDUJWJEBEFTEFOBUVSF[BBSUÎTUJDB DPNPNFEJEBEFSFTPMVÉÈPEFQSPCMFNBTEFDPNQPSUBNFOUPFEFEFT-
coberta de talentos adormecidos.
r 0TQSPGFTTPSFT%JSFDUPSFTEF5VSNBEFWFSJBNUFSNBJTUFNQPQBSBEFEJDBSÆTVBUVSNBOPTFOUJEPEFEFTFOWPMWFS
actividades e projectos que contribuíssem para a formação global desses alunos.

itens com classificação entre 60 e 69


r %JOBNJ[BSVNBTBMBEFSFDVSTPT
r 'PNFOUBSBQBSUJDJQBÉÈPFNEFCBUFT USPDBEFFYQFSJËODJBT USPDBEFJEFJBTTPCSFPTQSPCMFNBTEBFTDPMBFEBTVBEJTDJ-
plina, tanto a nível interno (própria escola), como externo (outras escolas, universidades, museus, empresas).
r 'PSNBÉÈPEFBEVMUPT
r 0SJFOUBÉÈPEFBDUJWJEBEFTFYQFSJNFOUBJTOBFTDPMBFGPSBEBFTDPMB FOWPMWFOEP EFWF[FNRVBOEP PT&ODBSSFHBEPTEF
Educação, aproveitando o saber/conhecimento destes.
r 1FEBHPHJBEJGFSFODJBEBEFTFOWPMWJEBQPSEPJTQSPGFTTPSFTEBNFTNBEJTDJQMJOBTFHVJOEPJOEJWJEVBMNFOUFPTBMVOPTFN
algumas disciplinas (implementar um ensino cada vez mais centrado no aluno).
r 0QSPGFTTPSJOWFTUJHBEPSOBTFTDPMBTTFSJBVNBFYDFMFOUFPQPSUVOJEBEFQBSBTFFTUVEBSFNEFUFSNJOBEBTTJUVBÉ×FTF
experimentarem novas práticas.
r *OUSPEV[JSOBGPSNBÉÈPEFQSPGFTTPSFTUÊDOJDBTEFSFMBYBNFOUPQBSBNFMIPSBSBDPODFOUSBÉÈPFPBQSPWFJUBNFOUPFTDP-
lar dos alunos.
r 1SPNPWFSBVMBTEFBQPJP
r 1SPNPWFSFODPOUSPTEFQBJTQBSBQBSUJMIBEFWJWËODJBTFBOTFJPT FNQFRVFOPTHSVQPT

r 1SPNPWFSBDUJWJEBEFTMÙEJDBTOBFTDPMB GFTUBT DPNQFUJÉ×FTEFTQPSUJWBT FUD
EFNPEPBNPUJWBSPTBMVOPT

itens com classificação entre 50 e 59


r &MBCPSBSFHFSJSQSPKFDUPTEJWFSTPT
r .BJTSFDVSTPT GÎTJDPT IVNBOPTFêOBODFJSPT


Como atrás referimos, e apesar da convergência de opi- no questionário 2. Relativamente aos itens que se acres-
nião ser já muito elevada, enviámos o 3º questionário a centaram a este último questionário, 3 sujeitos não os
todos os membros do painel para reconsideração das pontuaram, pelo que não os viemos a considerar para
respostas que apresentaram maior variabilidade, em re- efeitos de análise e de reflexão.
lação à maioria das pontuações do grupo. Nesta terceira Como referimos anteriormente, considerando que
volta o retorno dos questionários foi reduzido (apenas todos os itens produzidos se revestem de pertinência,
7), por motivos que julgamos deverem-se, essencialmen- mesmo os que obtiveram menos cotação, e numa tenta-
te, a sobrecarga de trabalho dos professores, devido ao tiva de dar mais inteligibilidade aos dados, procurámos
facto de desempenharem vários cargos e se encontrarem enquadrá-los num número reduzido de categorias, de
em época de avaliações (final do 2º período). Aliás, este molde a podermos posteriormente tecer alguns comen-
problema havia já sido referido, aquando do questioná- tários, articulando as sugestões dos professores com as
rio 2. Todavia, analisadas as respostas, verificámos que ideias veiculadas na literatura da especialidade.
em nada alteravam as propostas e os consensos gerados

Categorias estabelecidas a partir dos diversos itens

reorganizar o funcionamento da escola, com vista a estar centrada no aluno


r $PPSEFOBSPUSBCBMIPEFFRVJQBDPNPVUSPTEPDFOUFTEBUVSNBOPTFOUJEPEFTFDSJBSVNDVSSÎDVMPBEBQUBEPBPTBMVOPT
em questão.
r "KVEBSOBFMBCPSBÉÈPNBOVUFOÉÈPEFUÊDOJDBTEFFTUVEPFEFUSBCBMIP BEBQUBEBTÆTDBSBDUFSÎTUJDBTEPTEJTDFOUFT
r 'B[FS P BDPNQBOIBNFOUP EPT BMVOPT RVF TF EFTUBDBN DPN SFTVMUBEPT BDJNB EB NÊEJB  DPN QSPCMFNBT EF
comportamento e de aprendizagem.
r 1MBOJêDBS F JNQMFNFOUBS QSPHSBNBT EF UVUÓSJB  QSJODJQBMNFOUF KVOUP EPT BMVOPT NBJT QSPCMFNÃUJDPT  EBEP RVF
raramente é exercido.

132 sísifo 11 | albertina l. oliveir a | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades…
r 1BSUJDJQBSFNHBCJOFUFTEFBQPJPBPBMVOP RVFQSPWJEFODJBTTFNVNBDPNQBOIBNFOUPNBJTPVNFOPTQBSUJDVMBSJ[BEP
prolongado (consoante os casos) em situações de gestão de conflitos entre pares e com professores; informação/
aconselhamento sobre questões emergentes (ex: educação sexual; distúrbios alimentares, dependências, etc.).
r 1FEBHPHJBEJGFSFODJBEBEFTFOWPMWJEBQPSEPJTQSPGFTTPSFTEBNFTNBEJTDJQMJOBTFHVJOEPJOEJWJEVBMNFOUFPTBMVOPTFN
algumas disciplinas (implementar um ensino cada vez mais centrado no aluno).
r %JOBNJ[BSVNBTBMBEFSFDVSTPT

melhorar os métodos de ensino


r 1MBOJêDBSBVMBTQSÃUJDBTEFDBNQPFEFMBCPSBUÓSJP
r .FMIPSBSPTNÊUPEPTEFFOTJOP
r 0SHBOJ[BSUBSFGBT UBJTDPNPEFCBUFTFBTTFNCMFJBT
EFGPSNBBEFTFOWPMWFSPTFOUJEPDSÎUJDPFSFTQPOTÃWFMEPTBMVOPT
r %FTFOWPMWFSPêDJOBTFDMVCFTEFUFBUSP EFFYQSFTT×FT FUD
r 'PNFOUBS B QBSUJDJQBÉÈP FN EFCBUFT  USPDB EF FYQFSJËODJBT  USPDB EF JEFJBT TPCSF PT QSPCMFNBT EB FTDPMB F EB TVB
disciplina, tanto a nível interno (própria escola), como externo (outras escolas, universidades, museus, empresas).
r 0SJFOUBÉÈPEFBDUJWJEBEFTFYQFSJNFOUBJTOBFTDPMBFGPSBEBFTDPMB FOWPMWFOEP EFWF[FNRVBOEP PT&ODBSSFHBEPTEF
Educação, aproveitando o saber/conhecimento destes.
r *NQMFNFOUBSPVDPMBCPSBSOBJNQMFNFOUBÉÈPEFGPSNBTEFBQSFOEJ[BHFNBWBMJBÉÈPEJGFSFOUFTDPNP QPSFYFNQMP QPS
portfolio.

aumentar o interesse dos alunos pela escola


r (BSBOUJSPJOUFSFTTFEPTBMVOPTQFMBFTDPMB
r 4BMBTEFFTUVEPPSJFOUBEP
r 1SPNPWFSBDUJWJEBEFTMÙEJDBTOBFTDPMB GFTUBT DPNQFUJÉ×FTEFTQPSUJWBT FUD
EFNPEPBNPUJWBSPTBMVOPT
r 1SPNPWFSBVMBTEFBQPJP
r (BSBOUJSPUSBCBMIPEPTBMVOPT EFUPEPT
DSJBOEPVNBNCJFOUFRVFQSPNPWBBRVBMJEBEFEBTBQSFOEJ[BHFOT

estreitar a cooperação escola-famílias-comunidade


r 1BSUJDJQBSFNFRVJQBTEFJOUFSWFOÉÈPKVOUPEBTGBNÎMJBTF&ODBSSFHBEPTEF&EVDBÉÈPTVHFSJOEPUÊDOJDBTEFBDPNQB-
nhamento de estudo para realizar com os seus educandos; realizando pequenas acções de formação/esclarecimento so-
bre problemáticas pertinentes; intervindo/cooperando num trabalho de reabilitação de situações graves de insucesso/
abandono escolar, carências sociais, etc.
r 1SPNPWFSJOUFSDÄNCJPTFTDPMBGBNÎMJBFGBNÎMJBFTDPMB
r 'PNFOUBSBQBSUJDJQBÉÈPFNEFCBUFT USPDBEFFYQFSJËODJBT USPDBEFJEFJBTTPCSFPTQSPCMFNBTEBFTDPMBFEBTVBEJTDJ-
plina, tanto a nível interno (própria escola), como externo (outras escolas, universidades, museus, empresas).
r 0SJFOUBÉÈPEFBDUJWJEBEFTFYQFSJNFOUBJTOBFTDPMBFGPSBEBFTDPMB FOWPMWFOEP EFWF[FNRVBOEP PT&ODBSSFHBEPTEF
Educação, aproveitando o saber/conhecimento destes.
r 1SPNPWFSFODPOUSPTEFQBJTQBSBQBSUJMIBEFWJWËODJBTFBOTFJPT FNQFRVFOPTHSVQPT

r 3FTQPOTBCJMJ[BSPTQBJTFPTBMVOPTOPQSPDFTTPEFFOTJOPBQSFOEJ[BHFN

dotar a escola de recursos materiais e humanos


r 5PEBTBTFTDPMBTEFWFSJBNEJTQPSEFVN4FSWJÉPEF1TJDPMPHJBF0SJFOUBÉÈP EFVNQSPGFTTPSEF"QPJP&EVDBUJWP
Ensino Especial e, muito importante, um técnico de acção social.
r %PUBSBTFTDPMBTEFOPWBTUFDOPMPHJBT QBSBRVFQBTTFNBTFSVNBSFBMJEBEFFGFDUJWBFOÈPWJSUVBM
r $POTUSVJSNBUFSJBJTEJEÃDUJDPTFTQFDÎêDPT
r .BJTSFDVSTPT GÎTJDPT IVNBOPTFêOBODFJSPT


promover a educação holística


r 1SPNPWFSBFEVDBÉÈPQBSBPBNCJFOUF QBSBPEFTFOWPMWJNFOUPTVTUFOUÃWFM QBSBBTBÙEFw
r 0GFSFDFSNBJTBDUJWJEBEFTEFOBUVSF[BBSUÎTUJDB DPNPNFEJEBEFSFTPMVÉÈPEFQSPCMFNBTEFDPNQPSUBNFOUPFEFEFT-
coberta de talentos adormecidos.
r 1SPNPWFSBDUJWJEBEFTMÙEJDBTOBFTDPMB GFTUBT DPNQFUJÉ×FTEFTQPSUJWBT FUD
EFNPEPBNPUJWBSPTBMVOPT
Promover formação especializada para os professores

sísifo 11 | albertina l. oliveira | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades… 133
r .BJTGPSNBÉÈPFTQFDJBMJ[BEB EFDBNQP QSÃUJDB DPNXPSLTIPQT

r *OUSPEV[JSOBGPSNBÉÈPEFQSPGFTTPSFTUÊDOJDBTEFSFMBYBNFOUPQBSBNFMIPSBSBDPODFOUSBÉÈPFPBQSPWFJUBNFOUPFTDP-
lar dos alunos.
r 'PSNBÉÈPEFBEVMUPT

concentrar a actividade dos docentes nos tempos lectivos e na direcção de turma


r "MJWJBSPTQSPGFTTPSFTEPFYDFTTPEFCVSPDSBDJBRVFMIFTÊBUSJCVÎEB
r 7BMPSJ[BSBDPNQPOFOUFMFDUJWB NBJTUFNQPQBSBQSFQBSBSBTBVMBT QBQFMFTTFODJBMEPQSPGFTTPS PRVBMÊDPMPDBEPQBSB
plano secundário).
r 0TQSPGFTTPSFT%JSFDUPSFTEF5VSNBEFWFSJBNUFSNBJTUFNQPQBSBEFEJDBSÆTVBUVSNBOPTFOUJEPEFEFTFOWPMWFS
actividades e projectos que contribuíssem para uma formação global desses alunos.

figura do professor-investigador
r 0QSPGFTTPSJOWFTUJHBEPSOBTFTDPMBTTFSJBVNBFYDFMFOUFPQPSUVOJEBEFQBSBTFFTUVEBSFNEFUFSNJOBEBTTJUVBÉ×FTF
experimentarem novas práticas.
r &MBCPSBSFHFSJSQSPKFDUPTEJWFSTPT

DISCUSSÃO/CONCLUSÃO concentrar esforços na formulação de metas formativas


em termos operacionais e direccionadas para o desenvol-
Os diversos aspectos propostos, consensualmente, pelos vimento da personalidade dos alunos (p. 18).
professores que participaram no painel delphi, e que se A existência da escola, enquanto organização social,
organizaram nas categorias atrás apresentadas, não pa- não se justifica a si mesma, antes, tem a sua razão de ser no
recem distanciar-se, efectivamente, do que os especia- serviço que presta em prol do desenvolvimento e forma-
listas e investigadores ligados à esfera da educação têm ção das pessoas, dos grupos e da sociedade, pelo que lhe
apontado como fundamental para melhorar a educação compete, primeiro que tudo, participar de forma activa,
escolar, e que podemos resumir em: garantir percursos consistente e continuada no desenvolvimento equilibra-
formativos mais diversificados e atraentes para os jovens do e saudável dos seus alunos. Estes têm necessaria-
e, como tal, potenciadores de sucesso; utilizar metodolo- mente que ser a figura e o elemento central do processo
gias de ensino e de suporte à aprendizagem susceptíveis educativo, ao qual deverá ser conferida toda a importân-
de operar mudanças na direcção desejada; fomentar um cia, tal como propuseram os professores inquiridos. É,
maior envolvimento da família e da comunidade na vida efectivamente, obrigação ética das sociedades conside-
escolar e vice-versa; promover formação especializada radas democráticas salvaguardar para todas as crianças
dos docentes e demais agentes educativos, tendo em vis- e jovens, independentemente da sua condição e das suas
ta melhorar a sua intervenção. dificuldades, as condições necessárias ao sucesso e à sua
Assim, perante os resultados obtidos algumas notas valorização enquanto pessoas, concretizando o lema re-
reflexivas se impõem. Os factores mais apontados pelos centemente adoptado pelos países anglo-saxónicos: “no
sujeitos do painel como susceptíveis de contribuir para child left behind” e “every child counts”. Alcançar esta
ultrapassar os problemas escolares, que se prendem com meta só será possível quando no processo educativo as
a reorganização do funcionamento da escola com vista a es- características e especificidades de cada educando forem
tar centrada no aluno, com a melhoria dos métodos de en- seriamente valorizadas.
sino, com o aumento do interesse dos alunos pela escola, e Numa mesma linha de pensamento, Ainscow (1998)
com a promoção de uma educação holística, apontam para considera que a reforma das escolas não pode deixar
um modelo de escola bastante diferente do que tem vigo- de passar pelo encontro de respostas positivas para a
rado, e requerem mudanças que não têm de facto acon- diversidade, desenvolvendo-se uma cultura de valoriza-
tecido. Daí ser fortemente contestada a resposta habitual ção das diferenças individuais e não de homogeneização
dos decisores políticos para enfrentar os graves proble- dos alunos, tal como tem prevalecido no nosso sistema
mas do sistema educativo, e que tem a ver com reformas educativo. Assim, a tónica não deve estar na aquisição de
que se ficam, basicamente, por revisões curriculares e conhecimentos, mas no desenvolvimento de competên-
actualizações de conteúdos programáticos, implicando cias que impliquem a realização de tarefas significativas
“a aterragem permanente e quase exclusiva no curriculis- e relevantes para o desenvolvimento das potencialidades
mo” (Azevedo, 2001, p. 157). Segundo Abreu (2002), “em de cada aluno e para o bem-estar social. Porém, organi-
vez de perder tempo nessa direcção infecunda, importa zar o funcionamento da escola de modo a estar centrado

134 sísifo 11 | albertina l. oliveir a | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades…
no aluno não significa que os educandos passem a traba- seio estratificações indesejáveis. Sem dúvida que o pres-
lhar sobretudo sozinhos. Tal representa uma visão limi- suposto é o de que “todos somos diferentes mas todos
tada e contrária aos benefícios que diversas investigações temos capacidade, todos temos aptidão para alguma coi-
têm salientado, quanto ao valor do trabalho colaborativo. sa na vida” (Abreu, 2002, p. 18).
Segundo Ainscow (1998), a maioria dos alunos aprende Tendo em conta a proposta dos professores, quanto
melhor quando participa em actividades que envolvem à necessidade de aumentar o interesse dos alunos pela
outras pessoas, potenciando-se dessa forma a estimula- escola, a nosso ver, uma importante forma de colocar o
ção intelectual, a confiança e o espírito de entreajuda. De problema é interrogarmo-nos sobre porque é que mui-
forma condizente, Isaac, Sansone e Smith (1999, citados tos alunos não aprendem e se desinteressam pelas apren-
por Hidi & Harackiewicz, 2000) verificaram, em alunos dizagens escolares. Do nosso ponto de vista, para além
com falta de motivação para as aprendizagens escolares, do que já foi dito, uma via de resposta a esta pergunta,
que o trabalho na presença de outros colegas aumentava o bastante profícua, implica a relativização da perspectiva
interesse situacional. No âmbito dos estudos sobre a resili- dominante que tende a situar o locus do problema em fac-
ência educacional, Waxman, Huang e Wang (1997, cit. por tores endógenos aos alunos, pressupondo que eles têm
Canavarro, 2007), ao compararem alunos resilientes e não características e atributos que impedem o curso normal
resilientes, apuraram também que quando o ensino era das aprendizagens. O problema principal, como defen-
orientado primeiramente para o aluno, e não para as acti- dem vários autores (e.g. Ainscow, 1998; Baptista, 1997),
vidades, e quando existia uma forte interacção professor- reside na escola, que ainda não foi capaz de se organizar
-aluno as diferenças entre os dois grupos esbatiam-se6. para assegurar formação bem sucedida a todos os seus
A optimização do funcionamento da escola passa alunos, continuando a sua organização e o seu currículo
também por uma liderança eficaz, empenhada em ir ao a não ser posto em causa, em termos de adequação para
encontro das necessidades de todos os alunos. Para isso a diversidade de alunos que a frequentam. Ao abuso de
é importante que, desde cedo, o aluno seja acompanha- metodologias transmissivas, juntam-se, frequentemente,
do de perto (podendo-se identificar atempadamente conteúdos que os alunos consideram aborrecidos e em
crianças e jovens de risco potencial e intervir em conso- relação aos quais não vêem qualquer relevância ou uti-
nância) e que esse acompanhamento seja continuado no lidade, que têm dificuldade em compreender, e que se
tempo e orientado para o apoio à construção progressiva multiplicam por numerosas disciplinas.
do seu projecto de vida. Estreitar a cooperação escola-famílias-comunidade,
Outro importante factor, apontado pelos professores no sentido de se tornarem contextos de apoio para as
como estando subjacente à ineficácia do sistema educati- crianças e os jovens, e de permitirem estabelecer um vín-
vo, que gostaríamos de salientar, tem a ver com a desade- culo mais forte e significativo entre as aprendizagens es-
quação das práticas pedagógicas dominantes. De acordo colares e os conhecimentos e competência requeridos no
com diversos autores (e.g., Abreu, 1997, 2002; Amado, mundo profissional, não pode também deixar de ser con-
2001; Dumazedier, 1995; Figueiredo, 2001; Oliveira, siderado um importante factor a melhorar para se comba-
1996, 2004, 2005; Papert, 2001), tem sido feita uma uti- ter o insucesso escolar, tal como sugeriram os professores
lização abusiva do método expositivo, privilegiando-se a do estudo.
transmissão de conteúdos. Contrariamente, a utilização Quanto à dotação das escolas de recursos humanos
de metodologias activas, pressupondo concepções teó- e materiais, convém salientar que todos os professores
ricas de raiz construtivista, bem mais em sintonia com consideraram de extrema importância a existência do
as exigências da vida na sociedade actual, deverão pre- Serviço de Psicologia e Orientação, de um professor de
valecer, como aliás é feito na educação de adultos. Estas Apoio Educativo/Ensino Especial e de um técnico de
apresentam, indubitavelmente, numerosas vantagens, Acção Social em todas as escolas, o que denota o papel
sendo de destacar o envolvimento activo dos alunos na imprescindível destes agentes no apoio à consecução
construção do conhecimento, o desenvolvimento da do projecto educativo de escola. Julgamos que, numa
percepção de que são agentes do seu próprio processo perspectiva de aumentar a qualidade dos serviços pres-
formativo, e o consequente aumento do interesse e da tados na escola, ela muito beneficiaria também com a
motivação para a realização das aprendizagens escolares, participação de Licenciados em Ciências da Educação,
a melhoria da capacidade de pesquisa de informações e os quais, para além de apoiarem os professores no de-
de resolução de problemas. senvolvimento de metodologias adequadas aos objecti-
Indissociável da utilização de metodologias de tra- vos formativos e na elaboração de recursos educativos,
balho activas está a necessidade de mudar as formas de desempenhariam um papel importante, a nível do que foi
avaliação, privilegiando-se a modalidade formativa, em proposto como a figura do professor-investigador e ao
que a avaliação deve ser feita com o intuito de potenciar nível da gestão e elaboração de projectos diversos.
o alcance das metas definidas e não com o objectivo de Deste estudo ressalta também que um importante
sancionar ou rotular os alunos, gerando a escola no seu obstáculo à melhoria da qualidade do ensino, percebido

sísifo 11 | albertina l. oliveira | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades… 135
pelos professores, diz respeito à ocupação excessiva do questões atrás levantadas, quanto ao que é preciso mudar
seu tempo em actividades não lectivas, com prejuízo para e ao que é necessário inovar no sistema educativo para se
a devida preparação de aulas e acompanhamento das tur- libertar do atavismo social que sobre ele se abateu. Não
mas. Tendo em conta o que temos vindo a referir para se podemos deixar de referir, ainda, nestas palavras finais,
conseguir um ensino de qualidade, este aspecto parece, que a metodologia de recolha de dados utilizada (técnica
com efeito, impedir um adequado acompanhamento e delphi) se revelou, efectivamente, muito adequada para
apoio aos alunos. os propósitos que tivemos em vista, sendo recomendá-
Para finalizar resta-nos realçar que os professores, vel o seu uso em situações em que seja importante gerar
conhecedores da realidade actual da escola, propuseram ideias e construir consensos sobre temas que carecem de
importantes pistas, a não negligenciar para responder às uma resposta certa.

136 sísifo 11 | albertina l. oliveir a | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades…
Notas Figueiredo, A. D. (2001). Novos media e nova aprendi-
zagem. In A. D. Carvalho et al., Novo conhecimento,
1. Investigação realizada no âmbito do Centro de Psi- nova aprendizagem. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
copedagogia da Universidade de Coimbra [FEDER/ benkian, pp. 71-81.
POCI2010-SFA-160-490]. GEPE — Gabinete de Estatística e Planeamento da Edu-
2. Uma das professoras do painel não lecciona no pre- cação/Ministério da Educação (2008). Educação em
sente ano lectivo, dado ter sido requisitada para exercer números: Portugal — 2008. Lisboa: Gabinete de Es-
um cargo de Coordenação na Região Centro. tatística e Planeamento da Educação/Ministério da
3. O Q1 do item em questão — Promover aulas de apoio Educação.
— coincidiu com o ponto mediano da escala de resposta. Guglielmino, L. M. (1977). Development of the self-
4. O questionário 2 continha 38 itens no total. -directed learning readiness scale. Dissertation Abs-
5. Esses 3 itens são: 1) O professor investigador nas tracts International, 38, 11A, p.  6467 (University
escolas seria uma excelente oportunidade para se estuda- Microfilms No. AAC78-06004).
rem determinadas situações e experimentarem novas prá- Hidi, S. & Harackiewicz, J. M. (2000). Motivating the
ticas (Q3 — Q1 = 2.5); 2) Mais recursos físicos, humanos e academically unmotivated: A critical issue for the
financeiros (Q3 — Q1 = 2.5); 3) Promover aulas de apoio 21st century. Review of Educational Research, 70, 2,
(Q3 — Q1 = 3.5). pp. 151-179.
6. Neste estudo os alunos resilientes foram definidos Marcelo, C. (2009). Desenvolvimento profissional do-
como os que revelavam sucesso nos testes e no trabalho cente: Passado e futuro. Sísifo. Revista de Ciências da
escolar diário, enquanto os não resilientes mostravam Educação, 8, pp. 7-22. Consultado em Maio de 2009
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138 sísifo 11 | albertina l. oliveir a | um olhar de dentro: perspectivas de professores acerca de necessidades…
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 1 1 · j a n / a b r 1 0 issn 1646-4990

Sísifo, revista de ciências de educação:


Instruções para os Autores

1. A Sísifo é uma revista universitária de Ciências da Educação, em formato electrónico, publicada pela Unidade
de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa;
2. A Sísifo é de consulta livre e está disponível no endereço http://sisifo.fpce.ul.pt.
3. A Sísifo é publicada em duas versões (portuguesa e inglesa). As traduções são da responsabilidade da revista;
4. Cada número da revista terá um responsável editorial que poderá solicitar o parecer de especialistas para, em
conjunto com o Conselho Editorial, assegurar a qualidade e o rigor científico dos textos;
5. O núcleo central de cada número da revista é constituído por um dossier temático. A revista aceita trabalhos
académicos sob a forma de artigos, notas e recensões de livros em Ciências da Educação. Pode aceitar artigos
já publicados em línguas estrangeiras desde que inéditos em português;
6. As colaborações devem ser submetidas através do e-mail sisifo@fpce.ul.pt;
7. Os artigos não devem exceder os 40. 000 caracteres, incluindo espaços, notas e bibliografia (excepto quadros
e gráficos); os estudos, notas e review articles não deverão ultrapassar os 30. 000 caracteres e as recensões
individuais 10. 000 caracteres;
8. Os artigos devem ser acompanhados de um resumo de 1. 200 caracteres, 4 palavras-chave e os dados de
identificação do autor (instituição, áreas de especialização, últimas publicações e elementos de contacto —
telefone e e-mail);
9. As citações e referências a autores no texto seguem as normas seguintes: (autor, data) ou (autor, data, página/s);
se houver referências a mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, elas serão diferenciadas por uma letra
minúscula a seguir à data: (Bastos, 2002a), (Bastos, 2002b). No caso de a referência se referir a mais de dois
autores: (Bastos et al., 2002).
10. As notas de rodapé deverão ser reduzidas ao estritamente indispensável e conter apenas informações
complementares de natureza substantiva; a bibliografia será colocada no final do artigo e conterá apenas a lista
das referências feitas no texto ordenadas alfabeticamente e por ordem cronológica crescente para as referências
do mesmo autor;
11. Critérios bibliográficos:
a. Livros: Bastos, C. (2002). Ciência, poder, acção. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
b. Colectâneas: Bastos, C.; Almeida, M. & Feldman-Blanco (orgs.) (2002). Trânsitos coloniais: diálogos
críticos luso-brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
c. Clássicos, nomeadamente em tradução, indicar data da 1. ª edição e nome do tradutor: Espinosa, B. (1988
[1670]). Tratado teológico-político. Tradução de D. P. Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

139
d. Artigos em revistas: Cabral, M. V. (2003). O exercício da cidadania política em perspectiva histórica
(Portugal e Brasil). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18 [indicar o número do volume anual], 51
[indicar o número da revista], pp. 31-60.
e. Artigos em colectâneas: Bastos, C. (2002). Um centro subalterno? A Escola Médica de Goa e o Império.
In C. Bastos; M. V. Almeida & B. Feldman-Blanco (orgs.), Trânsitos Coloniais: diálogos críticos luso-
-brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, pp. 133-149.
f. Artigos em Revistas on-line: Hidi, S. (2006). Interest: A unique motivational variable. Educational Research
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140 sísifo 11 | instruções par a os autores

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