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Sales, Germana Araújo / Guimarães, Mayara / Leal, Izabela / Pantoja, Tânia (orgs.)
Fronteiras Literárias Na América Latina/ Germana Araújo Sales / Mayara
Guimarães /Izabela Leal /Tânia Pantoja (orgs.)

Campinas, SP : Pontes Editores, 2016.

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-679-3

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2016 - Impresso no Brasil


sumário

APRESENTAÇÃO................................................................................................7
Por Márcia Cabral da Silva

(Des)apegos identitarios Literatura, nación y


género-sexual en la narrativa de mujeres
sudamericanas de mediados del siglo XIX.........................11
Alicia Salomone y Carol Arcos

A HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA BRASILEIRA:


EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS.....................................................31
Carlos Alexandre Baumgarten

Os folhetins de Bernardo Guimarães no Diário


de Minas (1867).................................................................................................51
Cilza Bignotto

O CONCEITO DE “LITERATURA NACIONAL” E A CONSTRUÇÃO


DE HISTÓRIAS LITERÁRIAS NA AMÉRICA LATINA........................63
Eduardo F. Coutinho

O JOVEM E A LEITURA LITERÁRIA.........................................................77


Márcia Cabral da Silva

IMAGENS SOCIAIS DE LEITURA E ENSINO DE


LITERATURA NO NÍVEL MÉDIO...............................................................93
Mirian Hisae Yaegashi Zappone

ensino da literatura uma disciplina


em extinção?..................................................................................................117
Regina Zilberman

Contribuições hispano-americanas para a constituição


da historiografia literária do Brasil:
Santiago Nunes Ribeiro e Eduardo Perié.............................141
Roberto Acízelo de Souza
Fronteiras Literárias na América Latina

APRESENTAÇÃO

Por Márcia Cabral da Silva

O Congresso de Estudos Linguísticos e Literários na Ama-


zônia teve início no ano de 2006. A primeira edição colocava em
relevo os discursos acerca da linguagem e da identidade cultural.
Nessa quarta edição, de 2013, o evento toma como temática as
questões literárias e linguísticas na América Latina.
Fronteiras Literárias na América Latina pretende, pois, uma
síntese, ao reunir uma coletânea de textos da área de estudos
literários apresentados naquele fórum. Trata-se de contribuições
derivadas de estudos desenvolvidos por parte de professores
pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande, da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Federal
de Ouro Preto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade
Estadual de Maringá. Integra ainda a coletânea exposição de
professoras pesquisadoras da Universidad de Chile.
Em“(Des)apegos identitarios: Literatura, nación y género-
sexual en la narrativa de mujeres sudamericanas de mediados
del siglo XIX”, Alicia Salomone e Carol Castro (Universidad
de Chile) refletem sobre o vínculo entre literatura, nação e
gênero-sexual através da análise da narrativa de três escritoras
latino-americanas, de orientação liberal, a chilena Rosario Or-
rego de Uribe (1834-1879), a argentino-brasileira Juana Manso
de Noronha (1819-1875), e a argentino-peruana Juana Manuela
Gorriti (1818-1896). Acentuam, em particular, o lugar ocupado
pelos discursos amorosos e pelo erotismo, na medida em que

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Fronteiras Literárias na América Latina

podem funcionar alegoricamente em contextos políticos alta-


mente conflitivos.
O ensaio de Carlos Alexandre Baumgartem (Universidade
Federal do Rio Grande) “A historiografia literária brasileira: ex-
periências contemporâneas” ressalta, em particular, o estudo da
historiografia literária brasileira contemporânea em algumas de
suas manifestações, como é o caso de Uma história do romance de 30
(2006), de Luís Bueno, e de Como e por que ler o romance brasileiro
(2004), de Marisa Lajolo. Ademais, examina duas antologias, que
igualmente revelam intenção historiográfica: Antologia da poesia
afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil (2011),
organizada por Zilá Bernd, e Antologia comentada da poesia brasi-
leira do século XXI (2006), de Manuel da Costa Pinto. Contribui,
desse modo, para a ampliação da escrita da historiografia literária
brasileira.
Os folhetins-variedades escritos por Bernardo Guimarães
(1825-1884) para o Diário de Minas, aos 41 anos de idade, são
estudados pela pesquisadora Cilza Bignotto (Universidade Fede-
ral de Ouro Preto), em “Os folhetins de Bernardo Guimarães no
Diário de Minas (1867)”. Observa-se, ali, alinhamento original
aos trabalhos de outros jornalistas-escritores do século XIX. Do
exame realizado, emergem, sobretudo, a figura do leitor, a lingua-
gem cotidiana, além de exercícios próprios de metalinguagem,
característicos daquele tipo de crônica.
O texto do professor Eduardo F. Coutinho (Universidade
Federal do Rio de Janeiro) traz à baila reflexões em torno de
literatura nacional e histórias literárias na América Latina, com
o título de “O conceito de ‘literatura nacional’ e a construção de
histórias literárias na América Latina”. O objetivo do estudo,
nas palavras do pesquisador, “é discutir a relação entre literatura
e nação no contexto latino-americano e investigar o desafio por
que vêm passando os historiadores atuais da literatura na busca
de um relato democrático, inclusivo, que contemple as diversas
vozes que compõem o cenário em questão”.

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Fronteiras Literárias na América Latina

A leitura do jovem no cenário da cidade do Rio de Janeiro


compõe o ensaio “O jovem e a leitura literária”, de Márcia Cabral
da Silva (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Trata-se de
resultados de pesquisa de campo desenvolvida em duas escolas da
rede: uma pública, de formação de professores de nível médio; outra
particular, de anos finais do Ensino Fundamental. A pesquisadora
salienta tanto o cuidado com a valorização dos acervos literários
quanto a relevância das formas de mediação entre o texto e o leitor.
No estudo “Imagens sociais de leitura e ensino de literatura
no nível médio”, a professora Mirian Hisae Yaegashi Zappone
(Universidade Estadual de Maringá) põe em relevo imagens que
circulam em mídias sociais e impressas. A partir das concepções
de leitura que delas emergem, realiza um contraponto com a si-
tuação do ensino de literatura, de modo específico, com relação à
leitura literária pressuposta como objetivo de ensino no nível de
escolaridade examinado.
Em “Ensino da literatura – uma disciplina em extinção?”,
a pesquisadora Regina Zilberman (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul) reflete sobre a concepção de literatura e de docên-
cia dessa disciplina por meio da análise de questões veiculadas em
provas nacionais voltadas à avaliação no Ensino Médio e superior:
o ENEM e o ENADE. A hipótese levantada por ela é a de que o
impacto dessas provas determina uma concepção de literatura e de
docência dessa disciplina que caminha na direção de sua extinção.
Roberto Acízelo de Souza (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro), por meio do ensaio, “Contribuições hispano-americanas
para a constituição da historiografia literária do Brasil: Santiago
Nunes Ribeiro e Eduardo Perié”, lança luz sobre a instituição da
literatura nacional do Brasil e da sua história. Destaca contribui-
ções de dois autores pouco estudados da América Hispânica: o
provavelmente chileno Santiago Nunes Ribeiro e Eduardo Perié.
Com esta coletânea, os organizadores buscam, de algum
modo, contribuir com novas questões para os estudos literários,
por extensão, para as pesquisas e a docência na área de Letras.

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Fronteiras Literárias na América Latina

(Des)apegos identitarios.
Literatura, nación y género-sexual en la
narrativa de mujeres sudamericanas
de mediados del siglo XIX1
Alicia Salomone y Carol Arcos2

Resumen

Este trabajo tiene por objetivo explorar cómo se problematiza


el vínculo entre literatura, nación y género-sexual a través del
análisis de la narrativa de tres escritoras latinoamericanas, todas
ellas de orientación liberal, como son la chilena Rosario Orrego
de Uribe (1834-1879), la argentino-brasileña Juana Manso de
Noronha (1819-1875), y la argentino-peruana Juana Manuela
Gorriti (1818-1896). El corpus textual de análisis está conforma-
do por dos novelas y algunos cuentos de estas escritoras, donde
queremos pesquisar, particularmente, el lugar que ocupan los
discursos amorosos y el erotismo, dando cuenta de cómo estos
relatos funcionan alegóricamente en contextos políticos altamente
conflictivos. Postulamos, asimismo, que estas narraciones estable-
cen concordancias, inflexiones y desplazamientos respecto de los
discursos románticos canónicos en Sudamérica, trabajando desde
una textualidad habitada por el lenguaje del amor y poniendo su
atención en ciertas zonas que los discursos canónicos suelen ex-
cluir, en particular, el rol de las mujeres y los sectores populares,
así como el papel potencialmente desestabilizador del deseo dentro
de las narraciones.
1 Trabajo realizado en el marco del Proy. Fondecyt 1110108, que dirige la Dra. Darcie Doll (U.
de Chile).
2 Centro de Estudios Culturales Latinoamericanos, Universidad de Chile.

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Fronteiras Literárias na América Latina

Palabras clave: literatura de mujeres; romances nacionales;


romanticismo latinoamericano; nacionalismo; discurso amoroso

Abstract

This paper aims to explore the relationship between lite-


rature, nation and gender through the analysis of the narrative
produced by three Latin American female writers, all liberal orien-
tation, such as the Chilean Rosario Orrego de Uribe (1834-1879),
the Argentine-Brazilian Juana Manso de Noronha (1819-1875),
and the Argentine-Peruvian Juana Manuela Gorriti (1818-1896).
The textual corpus of this analysis consists of two novels and
some stories by these female writers, where we want to investigate
specially the role of erotic discourses, observing how the loving
stories work allegorically in highly conflict political contexts.
We postulate also that these narratives establish concordances,
inflections and movements in respect to canonical romantic dis-
courses in South America, using a language of love and putting
attention on some aspects excluded by canonical discourses; in
particular, the social relevance of women and popular classes as
well as the disrupting potencies of desire both in these stories
and in national narratives.

Keywords: Women’s Literature; National Romances; Latin Ameri-


can Romanticism; Nationalism; Discourse of love.

1. Introducción

Desde hace más de dos décadas, la crítica feminista viene


reflexionando acerca de la relación conflictiva que tienen las
mujeres letradas latinoamericanas con los debates nacionalistas
en el período post-independentista. Reducidas al papel doméstico
de madres republicanas, como nos advierte Mary Louise Pratt
(1990), las mujeres no fueron convocadas a imaginar la comunidad
nacional naciente, ni a pensarse a sí mismas como sujetos activos

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Fronteiras Literárias na América Latina

en dicho proceso. No obstante, su inevitable involucramiento en


las guerras por la independencia, así como diversas iniciativas
impulsadas por mujeres ilustradas, tales como la organización de
tertulias y salones, así como la lectura de libros y la escritura de
cartas, diarios u otros textos, abrieron espacios para la constitu-
ción de autorías que eclosionarían en distintas regiones durante
el período romántico. Así, entre las décadas de 1830 y 1870, un
número significativo de escritoras, apelando a distintos géneros
discursivos, ficcionales y no ficcionales, íntimos y públicos, desa-
fiaron los códigos que limitaban la participación de mujeres en
el espacio público e intervinieron con su escritura en los debates
sobre la consolidación de los Estados nacionales.
Desde estos ejes se sitúa el trabajo que proponemos, el que
tiene por objetivo observar cómo se problematiza el vínculo entre
literatura, nación y género-sexual en la narrativa de tres escrito-
ras latinoamericanas del romanticismo, todas ellas de orientación
liberal, como son la chilena Rosario Orrego de Uribe, la argentino-
brasileña Juana Manso de Noronha y la argentino-peruana Juana
Manuela Gorriti. Nos interesa, en particular, pesquisar el lugar que
ocupan los discursos amorosos y el erotismo en sus relatos, dando
cuenta de cómo funcionan alegóricamente en contextos políticos
altamente conflictivos. Así, postulamos que estas narraciones
establecen concordancias, inflexiones y desplazamientos respecto
de los discursos románticos canónicos en Sudamérica, trabajando
desde una textualidad habitada por el lenguaje del amor.3

2. Romanticismo liberal en aguas conservadoras:


Chile y el Río de la Plata, 1830-1860

La coyuntura en que se produjo la irrupción de las escritoras


románticas fue especialmente compleja, y es probable que esa
misma condición brindara oportunidades para una imprevista
enunciante femenina, justificando o tolerando su presencia desde
argumentos relacionados con la necesidad de armonizar y/o mo-
3 Cfr. Doris Sommer (2004, 2007, 2010) respecto de sus análisis sobre la relación entre la novela
romántica y la construcción de nación en el siglo XIX latinoamericano.

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Fronteiras Literárias na América Latina

ralizar a sociedades en crisis. Lo cierto es que, una vez concluida


la lucha independentista, el escenario hispanoamericano no podía
ser más desalentador (Halperín, 1970). No solo las expectativas
de prosperidad económica que auguraban las políticas librecam-
bistas de los nuevos gobiernos se vieron postergadas, dado el
escaso interés internacional en los productos locales, sino que
la sustitución del antiguo régimen colonial por un nuevo orden
político legitimado se revelaba más difícil de lo imaginado por
los líderes revolucionarios. Agotadas por la contienda, las élites
ilustradas perdieron poder ante las oligarquías de la tierra, y a
su vez los nuevos sectores dominantes no solo se mostraron in-
capaces de unificar los territorios de las antiguas colonias, sino
que se enfrentaron por sus disímiles visiones políticas e intereses
regionales. Tampoco estuvieron ausentes los conflictos entre pa-
íses, sean entre las nuevas naciones o entre ellas y otras potencias
que eventualmente buscaron intervenir en la región.
Al igual que Brasil, Chile escapó un poco a este panorama,
no solo porque la generalizada decadencia económica afectó a esta
región menos que a otras, sino porque la fracción conservadora de
la élite logró conformar una alianza exitosa que, tras imponerse
por las armas a los sectores liberales (Batalla de Lircay, 1830),
estableció un sistema político estable que fue dirigido de manera
férrea por el ministro Diego Portales. El proceso que se inauguró
entonces, respaldado por la Constitución de 1833 y llamado más
tarde como la República Conservadora, se extendió sin mayores
cambios hasta comienzos de la década de 1860, si bien presentó
fuertes contrastes en su interior. Pues, si por un lado se afirmaba
una institucionalidad conservadora que resistía toda expresión
de disidencia política tanto al interior de la élite como desde los
grupos subalternos, por otro, este mismo régimen incorporaba
ciertas innovaciones liberalizadoras en el plano cultural que se
sostuvieron fundamentalmente en la labor del intelectual liberal
Andrés Bello. Entre ellas, destacan la elaboración de una Gramática
de la lengua castellana destinada al uso de los americanos (1847), la
aprobación del Código Civil (1855) y la creación de la Universi-
dad de Chile (1842), ideada como la institución que debía regir de

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Fronteiras Literárias na América Latina

ahí en más el rumbo educativo y cultural del país. Así, desde esta
articulación particular entre conservadurismo y liberalismo que
fue propia del régimen portaliano, el autoritarismo estatal pudo
compatibilizarse, hasta cierto punto, con la aparición de periódicos
y la llegada de viajeros y de libros. Asimismo, con la creación de
ámbitos que, como la Universidad de Chile o la Sociedad Literaria
de 1842, gestaron un incipiente campo cultural donde los escri-
tores transitaron desde una estética neoclásica a otra romántica,
asumiendo una conciencia de libertad política y de la necesidad de
afirmar una independencia cultural frente a la antigua metrópoli.
Una orientación que, como sugiere Vanni Blengino (2010), tomó
forma en la plasmación de un programa de americanismo literario.
Frente a la rígida estabilidad de Chile, que era alabada por
los liberales argentinos exiliados, como Domingo F. Sarmiento,
Juan B. Alberdi y Vicente F. López, la situación del Río de la Pla-
ta contrastaba por la intensa tensión política. Por una parte, las
élites locales nunca llegaron a acuerdos sobre el sistema político
que debía adoptar el país; por otra, subyacían tensiones originadas
en intereses materiales difíciles de compatibilizar. En este marco,
a partir de 1820 se fueron conformando los bandos que prota-
gonizarían el conflicto en las décadas siguientes: de un lado, los
unitarios, partidarios de un sistema liberal centralizado; y del otro,
los federales, que defendían la autonomía de las provincias y su
injerencia en el manejo del Estado, pero que divergían en lo econó-
mico (proteccionistas/librecambistas). Luego del fracasado intento
del presidente B. Rivadavia por organizar un Estado centralizado,
el país volvió a fragmentarse y el vacío de poder fue aprovechado
por el Gobernador de la Provincia de Buenos Aires, Juan Manuel
de Rosas, quien desde 1830 articuló una estrategia que le daría
preeminencia nacional hasta su caída en 1852. Apoyado por un
“Partido del Orden” tras el cual se alinearon los terratenientes
porteños, su régimen se caracterizó no solo por ser políticamente
conservador, sino por el apoyo que tuvo de los sectores populares,
los que constituyeron una útil masa de maniobra en sus acciones
contra los opositores. Así, amparado en poderes extraordinarios,
Rosas desplegó una campaña represiva que alcanzó su momento

15
Fronteiras Literárias na América Latina

culminante en 1840, cuando gran parte de los unitarios debieron


emprender el rumbo del exilio. Entre estos emigrados se contaban
no pocos miembros de la joven intelectualidad romántica (Gene-
ración del 37), quienes, al igual que sus pares chilenos, buscaban
delinear una nueva cultura nacional desde una literatura que tenía
como base los modelos del romanticismo europeo y, en particular,
del francés.
Fue en este contexto convulsionado por intensos debates
políticos y estéticos que ciertas escritoras decidieron asumir un
papel activo en el campo cultural, creado relatos que entregaban
sus propias perspectivas sobre los conflictos que atravesaban
sus países. El discurso que, en su calidad de “ángeles del hogar”,
asignaba a las mujeres un papel de moralizadoras y conciliadoras
amorosas de las tensiones privadas y públicas hizo admisible la
circulación de sus textos, pero ello no significó que las escritoras,
ni los sujetos textuales que construyeron en sus obras, se adap-
taran pasivamente a dicho mandato. Como intentaremos mostrar
en los análisis que siguen, estas narraciones no solo instalan dis-
cursos públicos, transgrediendo el mandato femenino del encierro
doméstico, sino que buscaron intervenir en los debates políticos,
tensionando las visiones hegemónicas desde una experiencia
genérico-sexual diferenciada.

3. El vicio o la virtud como opciones para la


construcción nacional: Alberto el Jugador, de
Rosario Orrego de Uribe

“Era una noche del mes de setiembre, de ese mes primaveral


de brisa tibia y aromática, de cielo puro y despejado; de ese mes
que aparece a nuestra vista coronado de flores y cruzando por
sobre una alfombra de verdura”. Así leían los lectores de la Revista
del Pacífico, en 1860, la primera entrega del folletín: “Alberto el
jugador, novela que parece historia”, publicada por Una Madre,
seudónimo con el que Rosario Orrego firmaba sus textos en la
prensa de Santiago y Valparaíso, por lo menos hasta la aparición
de ésta, su primera novela. Luego de aparecer por entregas, el

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Fronteiras Literárias na América Latina

texto fue publicado como libro en 1861 con un prólogo del escritor
peruano Ricardo Palma, quien lo definió como una novela realista,
halagando el estilo de la autora.4
Como sello general, la novela adopta el típico carácter ejem-
plarizante de las narrativas ilustradas. Su inicio y desenlace se
enmarcan en la celebración de Fiestas Patrias en un año indeter-
minado de la década de 1850, lo que convoca un haz de elementos
neoclásicos y románticos que ensalzan la formación republicana.
Ese tono que la ficción romántico-realista de Orrego comparte
con textos de autores coetáneos, en especial de Alberto Blest
Gana, deriva sin embargo hacia otro rumbo al iluminar el lugar
productivo, tanto en un sentido doméstico como ético-político,
que tienen las mujeres dentro de ese escenario social. Ello se ma-
nifiesta en la organización del relato, el que está habitado por un
conjunto de personajes femeninos que buscan y logran modelar
las costumbres de sus familias, desde lo cual apuntan a reedificar
no solo el ámbito privado sino también el nacional.
Alberto, el jugador cuenta la historia de un personaje ludó-
pata que ha implicado a varias familias de la élite santiaguina
en juegos de azar, atrayendo a diversos hombres hacia una vida
licenciosa que los apartaba de su doble misión como cabezas
de familia y ciudadanos respetables. Frente a ello, surge una
agencia femenina que se manifiesta en acciones de fuerte senti-
do moral, tramadas en torno a las historias de tres personajes:
Luisa Álvarez, Valentina Aramayo y, sobre todo, de Carmen
de Aramayo, en quien se concentra el grueso del conflicto
narrado. Lo particular de la novela es que los obstáculos que
se presentan para las personajes en relación con sus esposos,
novios y familia, no necesariamente son íntimos o individuales,
sino que responden más bien a un contexto social y público. En
la historia, ello se asocia con los vicios inducidos por Alberto,
los que encuentran eco en la corrupción de una sociedad san-
tiaguina que, adormilada bajo el modelo autoritario impuesto
por los gobernantes conservadores, ha olvidado los valores
4 El texto fue reeditado en 2001 por Patricia Rubio y, así, ha vuelto a estar en circulación para el
público contemporáneo.

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Fronteiras Literárias na América Latina

republicanos soñados por líderes de la Independencia y se ve


carcomida por el vicio privado y la corrupción pública.
Así, la abnegada Luisa debe salvar a su marido Enrique Mal-
donado cuando éste pierde toda su fortuna en casa de Alberto.
Por su parte, Valentina y Hermógenes ven frustrados sus planes
de matrimonio debido a que el padre de la joven la compromete
con Alberto para saldar sus deudas; una entrega a la cual ella se
resiste con ayuda de su madre Carmen. En cuanto a Carmen y
Alberto, el conflicto se desata por la venganza de éste ante un
amor no correspondido, la que lo induce a cometer actos altamente
reprochables que, sin embargo, no llegan a buen puerto, dada la
inteligencia y rectitud de Carmen. Al final del relato, por otra parte,
se revela que ella y Alberto son medio-hermanos, al aparecer éste
como el hijo guacho del padre de Carmen. Desde este condición,
entonces, sus actitudes pueden ser asociadas a esa ilegitimidad,
que es muy descalificada entre la élite chilena, y desde la cual
también se explican los hábitos de nuevo rico y el mal gusto del
acaudalado Alberto.
La novela se estructura en dos partes, la primera, centrada
en la desdicha de las familias atrapadas en las redes del jugador; y
la segunda, marcada por la aparición en escena de Rudecindo San
Román, personaje que fue engañado por Alberto en México, quien
pone en movimiento las acciones que lo descubren y lo llevan con
destino a Lima, donde acabará sus días (“blasfemado contra el cielo,
se ocultó en la oscuridad, arrastrándose hasta en las más inmundas
tabernas”). En términos simbólicos, y desde la perspectiva abur-
guesada y productivista que se expone en la novela, Alberto es el
villano que personifica esa sociedad oligárquica que se ha vuelto
inoperante para el progreso nacional. Pues, lo que la narración le
reprocha a esa élite es, sobre todo, su relajamiento moral, expre-
sado en los vicios que desde el interior doméstico atentan contra
la ética republicana. En ese contexto, serán personajes femeninos
los que, poniendo en juego el amor maternal y familiar, recupera-
rán los ideales y la virtud cívica, redirigiendo a los hombres hacia
un destino nacional productivo. De modo consecuente, solo los
personajes masculinos que tienen a su lado a mujeres virtuosas

18
Fronteiras Literárias na América Latina

logran ser redimidos, lo que no ocurre con Alberto, quien no solo


carece de esa contraparte sino que, además, ha experimentado una
pasión inadmisible al enamorarse de su hermana Carmen.
En el desenlace de la novela, Alberto es condenado por las
leyes civiles y divinas, lo que, desde un discurso donde confluyen
el liberalismo y una cosmovisión católica, enlaza la historia de las
parejas con un relato sobre el deber-ser ciudadano. De este modo,
una narración que inicialmente parece ajustarse a una trama senti-
mental, evoluciona hacia el intento de ordenar la ética y la política
republicana en el sentido que se aspira para la nación. A través de
ella, es posible dar curso al discurso de una elite liberal, deseosa de
modernizarse y progresar, pero que también intenta conservar su
hegemonía frente a advenedizos de dudoso origen y cuestionable
moral. Así, temas como la sexualidad, el amor y los sentimientos
se vuelven, entonces, un suelo fértil para configurar didácticamente
discursos sobre la patria y para referir alegóricamente las tensiones
que conflictúan a la élite chilena post-portaliana.

4. Una armonía nacional imaginada: elites,


mujeres y pueblo en Los misterios del Plata, de
Juana Manso de Noronha5

Los misterios del Plata. Episodios históricos de la época de Rosas,


de Juana Manso de Noronha, escritora argentina exiliada en Rio
de Janeiro, apareció por entregas en 1846 en el folletín de O Jor-
nal das Senhoras, del cual Manso era directora. Fue editado como
libro en Buenos Aires en 1855 y solo recientemente ha vuelto a
ser accesible al público a través de una publicación electrónica y
de la reedición del libro en 2012. Como sugiere su título, y ex-
plícita la introducción autorial, se trata de un relato que se liga
intertextualmente con el folletín popular Los misterios de París,
que Eugène Sue había publicado pocos años antes. Sin embargo,
a diferencia de éste, el texto no se centra en la resolución de enig-

5 Juana Manso (1819-1875) emigró con su familia desde Buenos Aires a Montevideo en 1839 y
de allí a Río de Janeiro en 1842, donde permaneció por diez años. Tras la muerte de su padre y
el abandono de su marido, y una vez que caído el régimen rosista, ella retornó a Buenos Aires
donde continuó sus labores como escritora, periodista y educadora.

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Fronteiras Literárias na América Latina

mas familiares o la descripción de miserias sociales, sino que se


encamina hacia la búsqueda de una explicación racional para el
enigma de un país desgarrado por luchas civiles, cuya dinámica se
juzga incomprensible desde parámetros civilizados. Casi al mismo
tiempo en que Sarmiento reclamaba desde su Facundo (1845) el
retorno del fantasma del caudillo muerto para dilucidar los dramas
argentinos, Manso intenta develar esos mismos misterios a través
de su novela. Para ello reconstruye ficcionalizadamente ciertos
hechos verídicos (la captura y fuga de un opositor a Rosas, ocur-
rida en 1842) y complementa el relato con diversas digresiones de
carácter autorial que refuerzan la perspectiva ideológica del texto.
Los misterios… es una novela programada para intervenir
discursivamente en el enfrentamiento contra Rosas y en la elabo-
ración de un programa de reconstrucción nacional de signo liberal,
al igual que las producciones de Domingo F. Sarmiento, José Már-
mol o E. Echeverría. La novela de Manso, sin embargo, establece
diferencias con estos otros textos, al menos, en dos aspectos. Por
un lado, en el cuestionamiento del papel subalterno asignado a
las mujeres en el discurso nacionalista; lo que se traduce en la
construcción del personaje femenino (Adelaida), cuyas acciones
logran alterar el curso de la trama y el destino al que parecían
dirigirse los hechos narrados. Por otro lado, también difiere en
el tratamiento de los sujetos populares, cuyas costumbres e ideas
tradicionales son interpretadas de forma más comprensiva de cómo
se muestran en las proposiciones sarmientinas, y cuya capacidad
o potencialidad raciocinante aparece destacada en el relato, lo que
generalmente no ocurre en los discursos liberales de la época.
La novela se estructura en dos partes, la primera de las cuales
centra su acción en la zona rural, donde los gauchos reproducen
costumbres ancestrales en un aislamiento que les impide entender
la complejidad de los eventos políticos. En este espacio, los habi-
tantes se encuentran subordinados al Juez de Paz, quien a su vez
está bajo las órdenes del Gobernador Juan Manuel de Rosas, y en
virtud de esos poderes materiales y simbólicos, los hombres de la
campaña se harán cómplices de la traición y captura del unitario
Valentín de Avellaneda. Dentro de esta escena, donde los gauchos

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Fronteiras Literárias na América Latina

son descritos de un modo genérico se recorta, sin embargo, un


individuo: el joven gaucho Miguel, huérfano y criado en el desierto,
quien en un comienzo colabora con el Juez de Paz, pero que, en
virtud de su integridad moral e inteligencia, progresivamente se
va distanciando de él hasta convertirse en aliado de los fugitivos.
Se trata de un personaje clave, no solo por su importancia en la
trama sino también por su capacidad para transformarse a sí mismo
a partir de los diálogos que mantiene con Simón, un veterano de
las guerras de la Independencia y decidido unitario, quien logra
convencerlo de oponerse al poder despótico de Rosas. La conver-
sión de Miguel es un hito dentro de la novela, pues expone una
alternativa que no parecía disponible en la realidad, pero que se
hace verosímil en el relato, al posibilitar el alumbramiento de un
nuevo pacto nacional, dirigido por las élites modernizantes, en el
que el pueblo podría ser incorporado.
La segunda parte de la novela tiene por escenario la ciudad
de Buenos Aires, lugar al que Valentín Avellaneda es llevado y
donde lo aguarda una muerte previsible, la que, sin embargo, logra
evitarse mediante la intervención decidida y lúcida de su abnegada
esposa, quien plantea y ejecuta una fuga exitosa con la ayuda de
sus redes familiares. La ciudad se muestra aquí como un escenario
heterogéneo y conflictivo, en el que Rosas tiene un poder abso-
luto que ejerce con la ayuda de sus cómplices: su hija Manuela6,
los miembros de Sociedad Popular Restauradora (la Mashorca),
los bufones tras los cuales se encubre, e incluso el pueblo, que es
representado como una plebe adulada, desenfrenada y ciegamente
adicta. En el esquema dualista que propone el relato, frente a este
conglomerado barbárico, contrastan los unitarios, personajes que
se muestran como sujetos que no encajan con el entorno, dada
su actitud altiva frente a Rosas y sus seguidores, y porque sus
actuaciones responden a patrones morales superiores que no tie-
nen legitimidad en ese contexto. Definidos desde el modelo del
héroe romántico, personajes como Valentín de Avellaneda y otros
semejantes, son retratados como héroes trágicos que afrontan
6 Es significativo que, en esta novela, la figura de Manuela Rosas no aparece retratada con los
rasgos de heroína romántica (la hija sometida a un padre cruel) que suele adoptar en los relatos
de José Mármol u otros escritores.

21
Fronteiras Literárias na América Latina

su destino, anteponiendo la libertad de la patria a la propia vida.


Frente a este tipo de hombre entregado, sin embargo, contrasta
la figura de Adelaida, esa mujer que, si bien articula poco discurso
en el relato, es caracterizada como una persona de temple activo
y pensamiento estratégico, cuyas acciones logran eludir las ma-
quinaciones del dictador. Así, no solo logra salvar a su esposo
sino también al hijo de ambos, Adolfo, quien es designado en el
relato como el sujeto destinado a llevar a la práctica, cuando las
condiciones lo permitan, los ideales que su padre representa y que
su madre debe inculcarle.
En definitiva, esta novela establece los parámetros para ima-
ginar una nueva armonía social, señalando la necesidad de definir
nuevas alianzas nacionales desde las zonas de exclusión: a saber,
las mujeres y los sectores populares. Pues, como parece sugerirnos
la novela, si las élites liberales no logran disputar al rosismo la
hegemonía sobre el bajo pueblo, la única alternativa que quedará
será el enfrentamiento, no solo político sino también social, o peor
aun, el exterminio de amplias poblaciones. Esta no parece ser, sin
embargo, la opción que propone el relato de Manso, empeñado en
evidenciar el potencial modernizante de las mujeres y las masas
populares. Pues, como expone la narración a través de las vivencias
del gaucho Miguel, estos sectores podían ser conducidos, por la
vía de la educación y el diálogo racional, hacia un nuevo contrato
social basado en los principios de la libertad, en el que no resulten
conculcados ciertos valores positivos que subyacen en la identidad
de la cultura popular tradicional:

[Miguel] Era un hombre de campo, sin instrucción ni


trato alguno con la gente;
[…] Un hombre de esta clase, no podía comprender de
un golpe que las
opiniones políticas de un individuo no pueden jamás ser
delitos de muerte. No
podía comprender que el hombre tiene derechos sagrados
de propiedad y de
seguridad individual, que solo son atropellados por los
tiranos. Prefiriendo ser

22
Fronteiras Literárias na América Latina

un pobre gaucho sin acomodo, a ser un buen y prevenido


peón, Miguel
posponía los bienes transitorios de la existencia a la so-
beranía absoluta de sus
acciones. Esta libertad de sí mismo, esta materialidad de
la idea libertad él la
comprendía y amaba con pasión, pero había aún alguna
distancia para que
llegase a comprender la libertad intelectual, y lo que vale
el albedrío de cada
hombre. Habiendo visto solo de lejos la sociedad, tampoco
podía saber qué
pactos son los que la ligan, ni lo que los hombres se deben
entre sí
recíprocamente. Por vez primera confusas ideas de todo
esto se agolpaban en
su mente que él no podía ni descifrar ni ver con su verda-
dera luz (Cap. XI, 4-5).

5. El deseo del Otro en los cuentos antirrosistas


de Juana Manuela Gorriti7

Como afirma Graciela Batticuore (2005, 288 y ss.), gran parte


de la narrativa de Juana Manuela Gorriti se mueve dentro de una
“zona patria” de ímpetu romántico, desplegándose primero como
una reescritura de experiencias autobiográficas de la infancia y
la adultez en el exilio, para adoptar luego una modalidad más fic-
cional. Por nuestra parte, nos interesa detenernos en esta última
sección de su obra, particularmente en sus ficciones antirrosistas,
para observar cómo algunas de estas narraciones, desde una es-
tética tenebrista que juega con lo fantástico, onírico y noctural,
hacen ingresar en la escritura un deseo erótico que tensiona las

7 Juana Manuela Gorriti tempranamente se vio involucrada en las luchas civiles argentinas. En
1831 debió partir a Bolivia, exiliada junto a su familia, huyendo de la persecución de Juan
Facundo Quiroga. Luego de un matrimonio fracasado con Manuel Isidoro Belzú, y habiendo
iniciado ya una carrera literaria, se trasladó a Lima donde fundó escuelas y tuvo un salón en
el que se formaron figuras relevantes de las letras, como Ricardo Palma y Mercedes Cabello
de Carbonera. Desde mediados de la década de 1850, Gorriti escribió para revistas peruanas y
argentinas, tanto cuentos como novelas que fueron publicadas por entregas, y en 1865 apareció
en Buenos Aires el volumen Sueños y realidades, que contiene diversas narraciones de carácter
histórico, entre las que se cuentan cuya temática se centra en el enfrentamiento entre unitarios
y federales.

23
Fronteiras Literárias na América Latina

oposiciones ideológicas propias de la narrativa de la época (unita-


rismo/rosismo; civilización/ barbarie; Bien/Mal). Desde nuestra
perspectiva, a través de esas estrategias, la narrativa de Gorriti
desestabiliza es convergencia entre deseo erótico y deseo nacional
que, como explica D. Sommer, se produce en la mayoría de los
romances nacionales latinoamericanos (2010:647).
Esta operación es la que observamos en los cuentos ti-
tulados “El guante negro” y “El lucero del manantial”, que
Gorriti publica en la prensa de Lima a mediados de la década
de 1850 (Berg) y recoge en el libro Sueños y realidades, apa-
recido en Buenos Aires en 1865. Estos textos, como sugiere
Batticuore, establecen un diálogo intertextual con Amalia, el
romance canónico de José Mármol, pero difieren en tanto las
parejas románticas que presentan, por pertenecer a bandos
enfrentados, no constituyen parejas políticas. Ahora bien, sobre
esta diferencia inconciliable entre amor y lealtad se sobrepone,
asimismo, la presencia de un deseo que está atravesado por la
sombra de la perversidad y/o lo moralmente inaceptable, lo
que hace a estas relaciones inviables e improductivas, tanto en
el sentido conyugal como nacional.
Para dar forma a este universo ficcional, Gorriti no solo recur-
re a una estética que traspasa el registro representacional realista,
sino que construye personajes psicológicamente complejos que
traslucen contradicciones morales y emocionales que difuminan los
límites establecidos, sea entre unitarios y federales, entre lo civili-
zado y lo bárbaro o, en última instancia, entre lo bueno y lo malo.
Por otra parte, esos personajes tampoco subliman el erotismo,
enmascarándolo mediante lágrimas o gestos simbólicos, sino que
lo expresan de forma más humanizada, poniendo en juego cuerpos
y deseos, y evidenciando, asimismo, la relación que se anuda entre
el deseo y el poder. De este modo, la problemática del erotismo
también se extiende hacia el ejercicio del poder político, el que,
en estos textos, no solo opera mediante la fuerza sino también a
través de una seducción que lo torna atractivo y se entrama con
la vida de los personajes.

24
Fronteiras Literárias na América Latina

En los cuentos analizados, esa seducción erótico-política se


proyecta en la ficcionalización de las figuras de Juan Manuel Ro-
sas y su hija Manuela, quienes se convierten en objetos y sujetos
de un deseo perverso al corporizar una barbarie que se ha vuelto
apetecible en el mundo narrado. Esto es lo que ocurre, por ejemplo,
con María, la protagonista del cuento “El lucero del manantial”,
hija de un militar unitario que custodia la frontera contra los in-
dios, quien en un sueño anticipa su encuentro con un hombre que
la atrae intensamente y la seduce de un modo cruel y perverso
(“sonriendo diabólicamente rasgola el pecho y la arrancó el cora-
zón, que arrojó palpitante en tierra para partirlo con su puñal”, p.
170). Así, frente a un joven y hermoso Juan Manuel, ella no puede
resistirse a esta experiencia que resulta impropia tanto por su
connotación moral como política, y de la que se derivará un hijo
ilegítimo como el posterior abandono de que es objeto la joven.
A pesar de que, con los años, ella logra rearmar su vida junto a
su hijo y un esposo honorable, sin embargo, el sino tanático que
porta aquel deseo juvenil vuelve a arrastrarla hacia la fatalidad,
cuando Rosas mata con sus propias manos al hijo de ambos en
una escena que confirma la anticipación trágica que María había
tenido en su sueño.
En “El guante negro”, por su parte, es Manuela Rosas quien
se configura en objeto de deseo para Wenceslao, un joven federal
que además ama a Isabel, la hija de un veterano militar unitario.
La seducción que se pone en juego al inicio del relato circula por
medio de coqueteos y palabras, materializándose en un objeto que
Manuela le regala a Wenceslao y que él parece conservar consigo:
un guante negro que lleva el nombre de la hija del Restaurador. De
todas formas, esta relación que pareciera tan adecuada entre dos
jóvenes de la élite rosista, no logra fructiferar pues se ve interferida
por el amor genuino que Wenceslao siente por Isabel. No obstante,
pese a los esfuerzos de ambos, esta relación amorosa tampoco
puede afirmarse al quedar atrapada en las redes de un conflicto
político inescapable, que termina por separar a los amantes. Lo
particular de este relato, sin embargo, es que su desenlace está
marcado por la reaparición de la figura de Manuela Rosas, quien

25
Fronteiras Literárias na América Latina

vuelve a la escena, no por sí misma sino metonímicamente repre-


sentada en su guante, para ejercer un poder fatal en lo que parece
ser una venganza tardía contra el joven que la había abandonado.
Así, en el final del relato, tras la batalla contra los unitarios en
la que muere Wenceslao, una Isabel enloquecida por el dolor de
tanta muerte encuentra el guante de Manuela, sugerentemente,
en el lugar del corazón del corazón que alguien le ha arrancado
a su amado. Un gesto que cita la figura del cuento anterior, en el
que Juan Manuel arrancaba el corazón de María.
A partir de lo dicho, podemos concluir que en estos relatos
de Gorriti el amor socialmente aceptable aparece desafiado por
un deseo ingobernable que conduce a la deslealtad y a la muerte,
resultando un terreno infecundo para forjar proyectos produc-
tivos en el sentido sexual, familiar y/o nacional. De este modo,
su tratamiento de la materia narrativa rosista no solo se aleja de
la escritura de sus pares contemporáneos, en la que de diversos
modos se busca la conciliación de los opuestos, sino que se ubica
en una zona donde la ficción (aparentemente) nacionalista termina
por desestabilizar las certezas depositadas en un futuro nacional
donde la felicidad de los amantes y la prosperidad nacional lograrí-
an converger. Abandonada esta confianza, los lectores se ven ante
una propuesta que no ofrece un modelo dicotómico acomodado a
sus expectativas, lo que necesariamente lleva a considerar la com-
plejidad de vínculo imaginario entre el amor romántico y la nación.

6. Conclusiones

A través de este texto quisimos explorar los desplazamien-


tos semánticos que las escritoras proponen frente a los relatos
hegemónicos de construcción nacional, configurados desde la
generación de escritores románticos sudamericanos. En este
sentido, nos pareció relevante destacar el modo en que estas nar-
rativas de hacen cargo de ciertas zonas de exclusión, que remiten
a sectores sociales que han sido excluidos del proyecto nacional
post-independensita y que, ya sea por motivos auténticos o es-
tratégicos, debieran ser considerados en la reformulación liberal

26
Fronteiras Literárias na América Latina

de dichos diseños. Con sus diferencias, Orrego de Uribe, Manso


y Gorriti problematizan esta exclusión, destacando la primera el
papel que las mujeres pueden ejercer dentro de la república, ope-
rando activamente desde los hogares en el mantenimiento de la
ética republicana y los valores domésticos y públicos asociados a
ella. Es lo que expresa claramente el relato de Orrego, en el que
la estabilidad conservadora chilena, promovida desde el Estado
portaliano, lejos de representar un modo ideal de construir la
nación, parece el caldo de cultivo para una corrupción pública y
privada que atenta contra las bases de la república, y frente a la
cual se levanta una acción femenina que es idóneas para la rege-
neración hogareña y nacional. En el caso de Manso, junto con
iluminar, al igual que Orrego, el rol que les cabe a las mujeres en
dentro del proyecto nacional post-rosista, es significativo el modo
en que ella advierte la necesidad de producir una religación entre
las élites modernizantes y las masas populares; las que se habían
mostrado remisas a establecer compromisos con aquéllas y que,
por el contrario, habían volcado su apoyo a un caudillo conservador
y bárbaro como Juan Manuel de Rosas. Finalmente, en Gorriti,
quien produce sus ficciones desde una estética romántica más mar-
cada, no solo encontramos figuras femeninas que, en el contexto
de una sociedad desgarrada por crueles enfrentamientos, se ven
forzadas a dejar atrás la domesticidad canónica. En su caso, ello se
complejiza con la puesta en escena de un deseo que, cuestionando
las dicotomías que dieron sostén a aquellos conflictos, obligan a
repensar el diseño nacional desde otras bases.
A partir de estas lecturas, la pregunta que queda irresuelta
tiene que ver con el polo de la recepción y con la capacidad de los
respectivos contextos para permitir y asimilar los discursos que
estas escritoras emiten. Como explica, Graciela Batticuore en
relación a la Argentina, pero ello también es aplicable a Chile, a
partir de la década de 1860 los intelectuales liberales comienzan a
abrirse a la incorporación de las mujeres y sus discursos dentro del
espacio público, y ello explicaría, por ejemplo, la buena acogida de
que fue objeto la obra de autoras como Orrego de Uribe y Gorriti
(la de Manso lo fue en menor medida). Otra cosa, sin embargo,

27
Fronteiras Literárias na América Latina

es que existieran las condiciones sociales requeridas para que sus


discursos contaran efectivamente dentro de los círculos de poder
que iniciarían la consolidación de los estados nacionales a partir
de dicha década, lo que efectivamente no ocurrió. En este marco,
no puede extrañar que estas producciones escriturales fueran le-
ída dominantemente en clave autobiográfica o anecdótica, por la
rareza que representaba su presencia en el espacio público, cuando
no descalificada (lo que en buena medida le sucede a Juana Man-
so), descartándose los aportes que aquellas pudieran representar
para el debate político en esa etapa crucial para los procesos de
consolidación nacional en las nuevas repúblicas sudamericanas.

Bibliografía

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Batticuore, Barcelona: AGEA, 2001.

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1830-1870, Buenos Aires: Edhasa, 2005.
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BLENGINO, Vanni, “Los umbrales del romanticismo: el cambio de
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México: Fondo de Cultura Económica, 2010, p. 593-619.
HALPERIN DONGUI, Tulio, Historia contemporánea de América Latina,
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28
Fronteiras Literárias na América Latina

PRATT, Mary Louise, “Women, Literature, and National Brotherhod”,


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SOMMER, Doris, Ficciones fundacionales: las novelas nacionales de América
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Latina”, en Ramón Máiz (editor), Nación y literatura en América Latina,
Buenos Aires: Prometeo, 2007, p. 195-215.

29
Fronteiras Literárias na América Latina

A HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA BRASILEIRA:


EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS
Carlos Alexandre Baumgarten1

RESUMO

O trabalho “A historiografia literária brasileira: experiências


contemporâneas”, apresentado durante o “IV CIELLA”, realiza
o estudo da historiografia literária brasileira contemporânea em
algumas de suas manifestações, como é o caso de Uma história
do romance de 30 (2006), de Luís Bueno, e de Como e por que ler o
romance brasileiro (2004), de Marisa Lajolo. Além disso, analisa
duas antologias, que igualmente revelam intenção historiográfica:
Antologia da poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra
no Brasil (2011), organizada por Zilá Bernd, e Antologia comentada
da poesia brasileira do século XXI (2006), de Manuel da Costa Pin-
to. O exame desse corpus, desenvolvido a partir dos pressupostos
estabelecidos pela Teoria da História da Literatura, não só aponta
para a necessidade do desenvolvimento de estudo sobre material
significativo para a compreensão do processo de escrita da história
da literatura brasileira hoje, como também revela que as experi-
ências referidas têm se caracterizado, de um lado, pelo abandono
das antigas pretensões totalizadoras das histórias da literatura de
feitio tradicional; e, por outro, pela opção por recortes de ordem
pontual, em que explicitamente se manifesta a importância das
escolhas subjetivas do historiador no exame e na organização do
inventário de nossa produção literária.

1 Professor Titular de Teoria da Literatura, na Universidade Federal do Rio Grande. Pesquisador


do CNPq.

31
Fronteiras Literárias na América Latina

Palavras-chave: Historiografia literária; Antologias; Subjetivi-


dade.

ABSTRACT

“A historiografia literária brasileira: experiências contem-


porâneas” [“Brazilian literary historiography: contemporary
experiences”], a study presented at the IV CIELLA [Fourth
International Conference on Linguistic and Literary Studies in
Amazonia], is an approach on some Brazilian literary historio-
graphic works, such as Uma história do romance de 30 (2006) [“A
history of 30’s novel”], by Luís Bueno, and Como e por que ler o
romance brasileiro (2004) [“How and why to read the Brazilian
novel”], by Marisa Lajolo. Moreover, two antologies are analyzed,
which also revealed historiographic purposes: Antologia da poesia
afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil (2011)
[“Anthology of Afro-Brazilian poetry: 150 years of black iden-
tity in Brazil”], edited by Zilá Bernd, and Antologia comentada da
poesia brasileira do século XXI (2006) [“Commented anthology of
21st Century Brazilian poetry”], by Manuel da Costa Pinto. The
study of this corpus, drawing on the concepts of the Theory of
History of Literature, not only addresses that further studies are
needed to understand the Brazilian literary history writing pro-
cess nowadays, but also reveals that such experiences, on the one
hand, discard old totalizing aspirations of traditionally-shaped
literary histories; on the other hand, the importance of subjective
choices by the authors arise in the study and organization of the
inventory of our literary production.

Keywords: Literary historiography; Anthologies; Subjectivity.

A História da Literatura desenvolveu-se e afirmou-se no


curso do século XIX, a partir da influência do Positivismo que via
na História a ciência capaz de resgatar o passado, recuperando os
eventos tal como haviam verdadeiramente ocorrido. Tal crença
não só proporcionou um rápido crescimento da ciência histórica,

32
Fronteiras Literárias na América Latina

como também determinou que sua influência se disseminasse por


todos os campos do saber oitocentista. Esse prestígio alcançado
pela História transferiu-se para a História da Literatura que, em
boa parte do século XIX, estabeleceu-se como a principal disciplina
e referência do campo dos estudos literários. A centralidade então
alcançada pela História da Literatura deveu-se, também, à coinci-
dência de sua ascensão com a consolidação dos estados nacionais
que, tanto na América quanto na Europa, necessitavam de um
discurso que os legitimasse e confirmasse em sua singularidade.
Nesse contexto, a História da Literatura assume relevante papel
social, pois cabia a ela não apenas a recuperação do acervo literário
das comunidades nacionais, como a elaboração de um discurso
que, construído a partir desse acervo, comprovasse a existência
de uma unidade cultural no âmbito dessas mesmas comunidades.
Contudo, se a História e a própria História da Literatura
adquiriram prestígio graças aos postulados positivistas, foi devi-
do a esses mesmos postulados que entraram em declínio e viram
sua metodologia no trato da matéria histórica e literária ser posta
em questão. No campo da História, essa situação configurou uma
espécie de “crise”, já que o questionamento da atitude positivista
tornou evidente que a crença na objetividade dos dados históricos
era traída pela sua seleção e ordenação, inescapavelmente afetadas
pela subjetividade do historiador ao estabelecer suas hipóteses.
A História da Literatura, por seu turno, a partir de uma pre-
tensa objetividade a ser alcançada, organizava o acervo literário
segundo conceitos como os de período e grupos, desconsiderando
a natureza estética das obras literárias, ficando restrita ao que
poderíamos chamar de uma estética da produção. Essa direção
assumida pela História da Literatura foi determinante para sua
crescente marginalidade no âmbito dos estudos literários, condição
a que ficou relegada pelo menos até meados da segunda metade
do século XX. Nesse sentido, a História da Literatura, havendo
surgido no ambiente intelectual que produziu e promoveu o
historicismo, viu-se igualmente atingida pela chamada “crise da
história”, iniciada ainda no fim do século XIX e aprofundada no
início do século XX.

33
Fronteiras Literárias na América Latina

Com um novo quadro intelectual de inclinação anti-historicista


estabelecido, os estudos literários passaram a sofrer a influência de
correntes cuja característica principal era a contestação dos métodos
da História da Literatura. Situam-se, nesse âmbito, as propostas
formuladas notadamente pela Estilística e pela Nova Crítica e, em
menor extensão, por aquelas contidas no pensamento dos forma-
listas russos, todas elas adeptas de uma abordagem imanente das
obras literárias. Tal quadro abriu espaço para a ascensão da Teoria
da Literatura que, gradativamente, vai assumindo um protagonismo
acadêmico antes desfrutado pela História da Literatura. É interes-
sante ressaltar que, no Brasil, são desse período duas publicações
que, a despeito de sua natureza e orientação diversa, apresentam
títulos que revelam a tentativa de se desvincularem da historiografia
literária tradicional: de um lado, A formação da literatura brasileira –
momentos decisivos, de Antonio Candido; de outro, A literatura no
Brasil, organizada por Afrânio Coutinho. Em ambos os casos, o que
se tem é a escrita de uma história da literatura brasileira, embora
com abrangência e orientação distintas.
Somente em meados da segunda metade do século passado,
é que a história da literatura, em virtude da emergência de novas
orientações teóricas surgidas no campo dos estudos históricos,
volta a ocupar posição relevante nos debates que então se pro-
cessam. Tais debates, vinculados especialmente à reflexão sobre
as relações entre o discurso histórico e o discurso literário, têm
origem nas sugestões primeiras constantes das propostas dos
historiadores franceses da Escola dos Anais. A estas se seguem, no
final da década de 1960, as formulações de Hans Robert Jauss, com
o seu A história de literatura como provocação à teoria literária, texto
inaugurador da Estética da Recepção. Nele, o teórico alemão busca
superar a distância existente entre o conhecimento histórico e o
conhecimento estético das obras literárias, que se harmonizariam
pela consideração de uma instância que é a da recepção a que as
obras são submetidas ao longo de sua trajetória. Cabe registrar,
ainda, que, no curso dos anos 1980, a reflexão envolvendo as rela-
ções entre História e Literatura foi enriquecida pelas contribuições
do movimento que ficou conhecido como Nova História.

34
Fronteiras Literárias na América Latina

Todas essas tentativas, aqui sumariamente enunciadas, ao


pensarem a relação entre literatura e história, e ao reafirmarem
a importância da História da Literatura, esbarram em diversos
problemas estruturais, como os relacionados aos conceitos que
o historiador tem de literatura, de história, de sociedade, de ide-
ologia. Além disso, devem elas enfrentar a questão do momento
histórico em que determinada historia literária é produzida, pois
forças sociais, culturais e ideológicas interferem na visão que uma
determinada sociedade tem em relação ao seu passado, sua história
e sua identidade. Na busca por soluções para esses impasses, vários
têm sido os teóricos a proporem alternativas, como as apontadas
por Siegfried Schmidt, David Perkins, Niklas Luhmann, Harro
Müller, Hans Ulrich Gumbrecht, Franco Moreti, entre tantos
outros.
Enfim, especialmente a partir dos anos 70 do século passado,
observa-se o surgimento e a afirmação de um forte movimento,
cujo objetivo é repensar a escrita da história da literatura, segun-
do novos parâmetros, sejam aqueles apontados por correntes do
pensamento historiográfico vinculado aos caminhos abertos pela
Teoria da História da Literatura e pela Teoria da Literatura, sejam
aqueles concebidos no âmbito da reflexão histórica produzida nas
décadas finais do século XX. Tal movimento não apenas recoloca
a História da Literatura como objeto de reflexão constante no
âmbito da academia, como proporciona o aparecimento de uma
historiografia literária que, no seu conjunto, abdica do perfil to-
talizador apresentado pelas histórias da literatura de feitio tradi-
cional, determinando o surgimento de novas formas no historiar
a literatura.
No Brasil, a repercussão alcançada pelos novos caminhos
apontados pelo pensamento histórico e, particularmente, por
aqueles abertos pela Teoria da História da Literatura, ganha re-
levância, especialmente a partir dos anos 80 do século passado,
através da divulgação dos trabalhos realizados pelos integrantes
do grupo inicialmente vinculado às teses estabelecidas pela estética
da recepção e também por aqueles desenvolvidos por historiado-
res alinhados com as propostas renovadoras surgidas no âmbito

35
Fronteiras Literárias na América Latina

da ciência histórica. Nesse sentido, surgem publicações como A


literatura e o leitor (Textos de estética da recepção), 1979, Teoria
da literatura em suas fontes (1983), ambas organizadas por Luiz
Costa Lima, Estética da recepção e história da literatura (1989), de
Regina Zilberman, História da literatura: ensaios (1994), de Letícia
Mallard e outros, Histórias de literatura: as novas teorias alemãs
(1996), organização de Heidrun Krieger Olinto, que, entre muitos
outras, atestam a preocupação com o repensar a escrita e o lugar
da História da Literatura no plano dos estudos literários.
Essa preocupação tem como uma de suas consequências mais
significativas a revisão da historiografia literária brasileira que,
além de ser estudada minuciosamente, tem seus textos fundamen-
tais resgatados e postos em circulação. Nesse sentido, é importante
registrar trabalhos como os desenvolvidos por Regina Zilberman
e Maria Eunice Moreira, com a publicação de O berço do cânone
(1998), reunião de textos fundadores da história da literatura bra-
sileira, e por Roberto Acízelo de Souza que, entre outros tantos
trabalhos, recolocou em circulação História da literatura brasileira
e outros ensaios (2002), de Joaquim Norberto de Sousa Silva, e
Historiografia da literatura brasileira: textos inaugurais (2007), de
Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro.
A ampla discussão sobre a História da Literatura é também
responsável por um conjunto de ações que comprovam sua reper-
cussão no meio acadêmico brasileiro: de um lado, a realização de
continuados seminários e congressos, nacionais e internacionais,
que se ocupam da reflexão sobre a História da Literatura; de outro,
a constituição, no âmbito da Anpoll, de um Grupo de Trabalho
voltado para o seu estudo. Além disso, assiste-se, igualmente,
ao surgimento de programas de pós-graduação stricto sensu que
elegem a História da Literatura como uma de suas áreas de con-
centração.
Nesse cenário construído pelos caminhos assumidos pela
ciência histórica e pela própria Teoria da História da Literatura,
abrem-se, igualmente, novas possibilidades para a escrita da his-
tória da literatura brasileira que, via de regra, tem abandonado as

36
Fronteiras Literárias na América Latina

antigas pretensões de natureza totalizadora, optando por recortes


de ordem pontual, como é o caso de Uma história do romance de
30, de Luís Bueno. O autor, ao eleger uma categoria de gênero
(o romance) e um período de tempo específico (década de 1930),
realiza uma ampla pesquisa da produção contida no referido pe-
ríodo, promovendo a revisão de importante capítulo da história
da literatura brasileira e do cânone estabelecido.
A obra de Luiz Bueno está organizada em três partes dis-
tintas: “Dois problemas gerais”, “Três tempos de 30” e “Quatro
autores”. Num primeiro momento, focaliza os problemas de ordem
teórica referentes ao chamado romance de 30 para, a partir daí,
definir o lugar por ele ocupado na série romanesca brasileira. A
segunda etapa do trabalho ocupa-se de um número significativo
de obras identificadas pelo Autor como importantes para a com-
preensão do romance brasileiro, produzido no âmbito da década
investigada, aspecto que revela o critério utilizado por Bueno no
sentido de realizar “uma leitura extensiva – em princípio, qualquer
romance publicado entre 1930 e 1939 interessou ao trabalho e,
desde que se localizasse um exemplar, foi lido”. (BUENO, 2006,
p. 15) As obras elencadas, a despeito de seu grande número, são
analisadas a partir da constatação de que a década foi marcada por
um embate entre duas grandes linhas: a do romance social, quan-
titativamente superior, e a do romance psicológico. No confronto
entre uma tendência e outra, abre-se espaço para a afirmação de
um tema dominante: o da “configuração do outro”, materializada
através da ascensão de figuras até então marginalizadas ou mesmo
ausentes da ficção brasileira anterior, como é o caso do proletário,
do homossexual e da mulher. A última etapa do trabalho, “Quatro
autores”, contempla a análise de quatro autores cujas obras, se-
gundo o Autor, sintetizam as principais diretrizes assumidas pelo
romance produzido na década de 1930: Cornélio Penna, Graciliano
Ramos, Cyro dos Anjos e Dionélio Machado.
Uma leitura, mesmo que ligeira, da obra de Luís Bueno
permite a constatação de alguns aspectos decorrentes do posi-
cionamento assumido pelo historiador: em primeiro lugar, cabe
destacar a presença do indefinido “uma” constante do título, a

37
Fronteiras Literárias na América Latina

sinalizar que o autor tem plena consciência de que seu trabalho


constitui apenas uma das possibilidades de se abordar, no plano de
uma perspectiva historiográfica, o romance brasileiro produzido
na década de 1930, restando possíveis outros tantos caminhos a
serem trilhados pelos historiadores de nossa literatura, pois, como
bem apontou David Perkins, recorrendo a Fredric Jameson, todo
relato histórico é sempre marcado por um certo grau de partida-
rismo, intimamente vinculado às escolhas e ao próprio desejo do
historiador. Em suma, a subjetividade do historiador, ao conceber
e organizar o seu relato, interfere nas opções por ele assumidas e,
não raramente, no lugar mais ou menos importante que concede
a autores e obras. (PERKINS, 1999, p. 4-5)
Um segundo aspecto importante de Uma história do romance
de 30 é o vinculado ao período investigado: os romances brasi-
leiros publicados unicamente na década de 1930. A concisão do
recorte estabelecido pelo historiador garante o levantamento
exaustivo das obras publicadas no período, sendo o responsável
pelo resgate de produções praticamente ausentes da historiogra-
fia literária brasileira, como é caso de Sob o olhar malicioso dos
trópicos, de Barreto Filho, que é cuidadosamente analisado e que
tem redimensionada sua posição para a compreensão do conjunto
dos romances então produzidos. Além da obra de Barreto Filho,
é importante mencionar o exame da obra de outros romancistas,
como Lúcia Miguel-Pereira, Lúcio Cardoso, entre outros, até há
pouco tempo raramente analisadas e valorizadas pela crítica e
historiografia literária brasileira. Com tal estratégia, Bueno con-
tribui, também, para a ampliação do cânone literário brasileiro,
ao incorporar um conjunto de produções não contemplado pelas
histórias da literatura precedentes.
Igualmente significativa é a opção de Luís Bueno por pensar
a produção da década de 1930 a partir de uma relação que se dá
no âmbito do próprio sistema literário brasileiro, aspecto que o faz
abandonar a perspectiva comparatista que, normalmente, marca a
escrita da história da literatura brasileira. Nesse sentido, as obras
são analisadas em sua relação com aquelas que as antecederam ou
as sucederam no plano da produção literária do País, num proce-

38
Fronteiras Literárias na América Latina

dimento que aproxima seu trabalho do conceito de autopoiesis, tal


como concebido por Maturana no âmbito da Biologia, e utilizado
por Gebhard Rusch, ao pensar, na contemporaneidade, a escrita
da história da literatura. A consequência de tal escolha, que é um
dos aspectos que torna singular seu trabalho, é a consideração
do sistema literário brasileiro como um sistema autônomo, capaz
de, no curso dos anos 1930, revelar maturidade para, a partir de
elementos (obras) já existentes em seu interior, gerar novos ele-
mentos (obras).
Por último, nessa breve síntese dos aspectos caracterizado-
res do trabalho de Bueno, cabe ressaltar que, para além de uma
grande lista de autores e obras, Uma história do romance de 30
constrói-se, como bem disse seu autor, no enfrentamento dos textos
(BUENO, 2006, p. 11), atitude que faz dela, também, um grande
exercício de crítica literária, materializado, não apenas nos capí-
tulos iniciais, mas, sobretudo, na última parte dedicada à leitura
das obras de Cornélio Penna, Graciliano Ramos, Cyro dos Anjos
e Dionélio Machado.
Outra experiência significativa, no âmbito da historiografia
literária brasileira contemporânea, é o trabalho realizado por Ma-
risa Lajolo, em Como e por que ler o romance brasileiro. Publicado no
ano de 2004, o volume integra a Coleção “Como e por que ler”, da
Editora Objetiva e, como os restantes da referida série, tem por
objetivo contribuir para a formação de leitores, no caso, de leito-
res do romance brasileiro. Contudo, bem mais do que isso, a obra
acaba por se constituir num exercício de escrita historiográfica
que, a partir da recuperação da trajetória de leitura de um leitor
específico – a própria autora –, reconstitui o percurso do romance
brasileiro, desde seus textos iniciais até obras contemporâneas.
No primeiro capítulo, já se estabelece o tom confessional
assumido pelo discurso de Lajolo desde o início do texto, que se
abre do seguinte modo: “Quem é que assina este livro que promete
discutir o romance brasileiro? Sou eu, Marisa Lajolo, professora
titular de literatura na Unicamp. Antes de mais nada, porém, leito-
ra fiel de romances.” (LAJOLO, 2004, p. 13) O restante do capítulo

39
Fronteiras Literárias na América Latina

é dedicado à recuperação do período de formação da leitora, que


apresenta um conjunto de obras, “sem cronologia, na sequência
da memória.” (LAJOLO, 2004, p. 17). Assim, o leitor fica sabendo
da primeira experiência de leitura do romance brasileiro vivida
pela autora/narradora: trata-se de Inocência, de Taunay. A seguir,
sem nenhuma ordem senão aquela ditada pela memória, surgem
As meninas e As horas nuas, de Lygia Fagundes Teles, Zero, de
Ignácio de Loyola Brandão, As alegres memórias de um cadáver, de
Roberto Gomes, A margem imóvel do rio, de Luís Antônio de Assis
Brasil, entre muitos outros. O que se observa na leitura desse
primeiro capítulo é que Lajolo realiza, em verdade, um exercício
de ego-história, nos termos estabelecidos por Pierre Nora (1989),
especialmente pela consideração dos aspectos subjetivos do próprio
discurso e pelo fato de o historiador ser, simultaneamente, sujeito
e objeto de seu discurso. Assim, ao contrário da impessoalidade
(fingida) das histórias da literatura de perfil tradicional, o que se
tem é a presença de um narrador que assume, em seu discurso,
um tom propositadamente subjetivo, em que os apelos explícitos
ao leitor constituem uma marca constante.
O capítulo subsequente, “O romance e a leitura sob suspeita”,
se encarrega de focalizar o gênero romance em sua história e, par-
ticularmente, sua importância na formação de leitores no Brasil
do século XIX, especialmente a partir da divulgação de folhetins,
de autoria de nacionais e estrangeiros. É também o momento
para afirmar a importância social do gênero, notadamente no que
diz respeito às repercussões alcançadas por ele na formação dos
sujeitos leitores.
É, contudo, a partir do terceiro capítulo, que o trabalho de
Lajolo assume contornos de uma história do romance brasileiro,
que é organizada segundo recortes que não observam uma ordem
cronológica, mas observam critérios outros estabelecidos pela
autora. Assim, em “Ler e escrever no feminino”, título do terceiro
capítulo, Lajolo se ocupa com o papel desempenhado pela mulher,
seja como personagem, seja como autora, no desenvolvimento do
gênero no Brasil. Nesse âmbito, destaca A moreninha, de Joaquim
Manuel de Macedo, pois “será que uma protagonista moreninha,

40
Fronteiras Literárias na América Latina

em substituição às tradicionais pálidas e loiras, não falava mais alto


ao coração do leitorado brasileiro? É possível que sim, que pele
morena e cabelo escuro fossem um bem-vindo abrasileiramento da
beleza feminina.” (LAJOLO, 2004, p. 49) Na sequência, é destacada
uma série de autoras que, com suas obras, fizeram da mulher não
mais apenas consumidoras de romances, mas produtoras, como os
casos de Alina Paim, com A hora próxima (1950); de Ana Luiza de
Azevedo Castro, com Dona Narcisa de Villar; de Clarice Lispector,
com A hora da estrela; de Rachel de Queiroz, com Memorial de Maria
Moura, todas elas obras que estabelecem rupturas no que diz res-
peito ao papel e ao lugar ocupado pela mulher, tanto na produção
de literatura, quanto na atuação direta no universo social.
Em “O Brasil no mapa do romance”, capítulo quarto de seu
trabalho, Lajolo focaliza o surgimento do romance urbano bra-
sileiro. Nesse sentido, valendo-se de um critério que é histórico,
mas também geográfico, começa pelo Rio de Janeiro, destacando
as contribuições de Macedo, de Alencar, de Machado de Assis,
de Manuel Antônio de Almeida, de Aluísio Azevedo, de Raul
Pompéia, de Lima Barreto, de Júlia Lopes de Almeida, até atingir
Cidade de Deus, de Paulo Lins. São Paulo só vai figurar no “mapa
do romance” após as décadas iniciais do século XX, quando entram
em cena as produções de Mário e Oswald de Andrade, com Amar,
verbo intransitivo e Memórias sentimentais de João Miramar. A partir
de então, a prosa urbana se espalharia pelo Brasil, com Cyro dos
Anjos e Autran Dourado, em Minas Gerais; com Erico Verissimo,
no Rio Grande do Sul; com Milton Hatoun, em Manaus... Esse ma-
peamento da prosa urbana brasileira é encerrado com o exame de
duas obras contemporâneas, também ambientadas em São Paulo:
Eles eram muito cavalos, de Luiz Ruffato, e Capão pecado, de Ferréz.
Em “O romance viaja pelo Brasil”, quinto capítulo, Lajolo
se encarrega de reunir obras que “a crítica chama – às vezes com
nariz empinado, mau humor e sobrolho franzido – de romance re-
gionalista.” (LAJOLO, 2004, p. 90) O périplo, aqui, começa com o
Alencar, de Iracema; segue com Taunay, de Inocência; com Franklin
Távora de O cabeleira; com Euclides da Cunha de Os sertõe; com
Graciliano de Vidas secas; com Jorge Amado de Gabriela, cravo e

41
Fronteiras Literárias na América Latina

canela; para encerrar com Guimarães Rosa de Grande sertão veredas


e Ariano Suassuna com o Romance da pedra do reino.
O penúltimo capítulo – “Histórias da história invadem o ro-
mance” – ocupa-se da apropriação da história por parte do romance
brasileiro, ou seja, focaliza o que comumente é identificado como
romance histórico. Após breve alusão a Xangô de Baker Street, de Jô
Soares, são comentados O guarani, de Alencar, o Rei negro, de Coelho
Neto, A marquesa de Santos, de Paulo Setúbal, O tempo e o vento, de
Erico Verissimo, Romance sem palavras, de Cony, Viva o povo brasilei-
ro, de João Ubaldo Ribeiro, e, por fim, Desmundo, de Ana Miranda.
O trabalho se encerra com – “Romances e leitores: queda de
braço sempre recomeçada” – em que são focalizados dois tópicos
específicos: de um lado, o recurso utilizado pelo narrador para
alcançar a cumplicidade do leitor, casos de Manuel Antônio de
Almeida e de Machado de Assis; de outro, os romances que se
fazem a partir do diálogo que estabelecem com outros romances,
como é o caso de Silviano Santiago com Em liberdade, e de Ana
Maria Machado, com A audácia dessa mulher.
A renovação do discurso historiográfico brasileiro manifesta-
se, igualmente, através da publicação de uma série de antologias,
organizadas a partir de critérios os mais distintos, cujo objetivo
e intenção se revelam claramente historiográficos. Esse é o caso,
por exemplo, de duas publicações que são objeto, a seguir, de breve
exame: Antologia da poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência
negra no Brasil (2011), organizada por Zilá Bernd, e Antologia
comentada da poesia brasileira do século XXI (2006), organizada por
Manuel da Costa Pinto.
A Antologia da poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência
negra no Brasil (2011), de Zilá Bernd, configura-se como uma
edição revista e aumentada de publicação originalmente divulgada
no ano de 1992. Organizada a partir de um critério de natureza
étnica, a antologia objetiva o resgate da produção de autores
brasileiros afrodescendentes e, por extensão, uma ampliação do
cânone literário brasileiro. Tal intenção é evidenciada no prefácio à
segunda edição, assinado por Eduardo de Assis Duarte, que afirma:

42
Fronteiras Literárias na América Latina

A presente antologia cumpre, desde sua primeira edição,


em 1992, papel de relevo junto a pesquisadores e estu-
dantes de nossas letras interessados em ultrapassar os
limites da literatura oficialmente estabelecida nos manuais
e currículos escolares. Sua aparição soou como canto de
esperança para uma pletora de textos e escritores conde-
nados ao esquecimento. (BERND, 2011, p. VII)

Na “Apresentação da edição de 2011”, Zilá Bernd recupera
o objetivo que a motivara a lançar a primeira edição da obra: o de-
sejo de promover o “resgate da memória social do negro no Brasil
através das manifestações poéticas publicadas a partir de 1859”
(BERND, 2011, p. 20) No mesmo texto, a autora elenca, entre
outras justificativas para a reedição ampliada da obra, o objetivo
da Lei 10.639/03, que estabelece o estímulo ao ensino da história
e da literatura afro-brasileiras na Educação Básica. Além disso,
justifica também a opção por “poesia afro-brasileira”, ao invés de
“literatura negra”: de um lado, pelo fato de a primeira expressão
remeter apenas à origem étnica da maioria dos autores; de outro,
em virtude de “literatura negra” poder remeter à existência de uma
essência negra. Na defesa de sua escolha, Zilá Bernd não apenas
aponta para a tendência do uso da expressão “afro-brasileira”,
constante de publicações recentes, como recorre a um conjunto
de estudiosos, como Sueli Meira Liebig, Luiza Lobo e Eduardo de
Assis Duarte que, em seus escritos, assumem idêntica posição.
A Antologia da poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência
negra no Brasil contempla vinte e sete autores e cento e vinte e
seis poemas que, segundo a autora, apresentam duas grandes ten-
dências: a primeira, a do “enraizamento identitário”, se ocuparia da
recuperação da memória, como forma de unir a comunidade negra
em sua luta contra o preconceito ainda hoje existente na sociedade
brasileira; a segunda, a do “enraizamento dinâmico e relacional”,
conceito buscado em Michel Maffesoli, buscaria a afirmação da
identidade como algo a ser construído no respeito à diversidade
e na abertura para a relação com o outro . (BERND, 2011, p. 24)

43
Fronteiras Literárias na América Latina

O texto da “Apresentação” traz, ainda, um último subtítulo –


“Como a antologia pode ser utilizada” – que oferece uma série de
sugestões de atividades que podem ser desenvolvidas em sala de
aula, evidenciando seu caráter que, para além de historiográfico,
é também didático. Assim, sugere-se o estudo dos símbolos, da
menção das figuras históricas e míticas, da enunciação feminina,
do vocabulário da senzala, entre outros.
Na “Apresentação da edição de 1992”, constante do volume
reeditado, a organizadora apresenta outros critérios que norte-
aram a escolha dos autores e textos. Tais critérios, para além de
seu viés quantitativo, revelam igualmente uma preocupação de
ordem estética, como se pode depreender da afirmativa seguinte:

A seleção de textos obedeceu rigorosamente ao critério da


representatividade dos autores (autores com no mínimo
duas ou três obras publicadas), do grau de literariedade
de suas produções e pautou-se por uma classificação esta-
belecida por mim em Negritude e literatura na América
Latina (1987). (BERND, 2011, p. 26)

A organização da antologia observa um critério essencialmen-


te cronológico, uma vez que é ordenada em três grandes períodos:
o Pré-Abolicionista, o Pós-Abolicionista e o Contemporâneo, cada
um deles subdividido em vários itens nominados a partir de uma
característica identificada na produção de cada autor selecionado.
É importante registrar que os dois primeiros períodos abarcam
apenas trinta e uma páginas, enquanto o último, duzentos e treze.
Sendo assim, constam dos primeiros unicamente três autores: Luís
Gama, Cruz e Sousa e Lino Guedes. O período contemporâneo
conta com os outros vinte e quatro autores constantes da anto-
logia. Este último, por mais extenso, é organizado, em seu início,
a partir do tópico “consciência”. Assim, os poetas são agrupados
em virtude de sua poesia expressar uma “consciência resistente”,
uma “consciência dilacerada”, ou uma “consciência trágica”. A
seguir, evidenciando uma mudança de critério, apresenta-se a
“A poesia afro-brasileira no feminino”, quando são destacadas as
poetas Conceição Evaristo, Miriam Alves, Leda Maria Martins,

44
Fronteiras Literárias na América Latina

Esmeralda Ribeiro, Jussara Santos e Ana Cruz. Por fim, há dois


outros grandes blocos, constituído por aqueles autores cuja po-
esia evidenciaria a presença das duas grandes tendências antes
referidas: a do “enraizamento identitário”, e a do “enraizamento
dinâmico e relacional”.
Os poemas de cada autor são precedidos por uma breve
“Biografia”, por sua “Bibliografia” e por um sucinto comentário
crítico, a cargo da organizadora Zilá Bernd, ou dos coorganizado-
res, Emilene Corrêa Souza e Plínio Carlos Corrêa Souza Jr. Cada
poeta tem, no mínimo, um texto selecionado, caso de Abdias do
Nascimento, ou, no máximo, oito textos, caso de Cuti, pseudôni-
mo de Luiz Silva. Os comentários críticos não estão, via de regra,
diretamente vinculados aos textos selecionados, mas assumem
um caráter geral que busca caracterizar o conjunto da produção
poética de cada autor. Veja-se, a título de exemplo, parte da apre-
ciação crítica da obra de Solano Trindade:

Solano Trindade vincula-se à vertente de poetas da


Negritude antilhana, como Nicolás Guillén e Aimé
Césaire, caracterizada pelo engajamento ao marxismo e
por um forte sentimento de pertença ao solo americano.
O eu-lírico emerge no poema para evocar com orgulho
suas raízes africanas e afirmar sua vinculação à América.
(BERND, 2011, p. 62)

Concebida da forma como foi apresentada, a Antologia da


poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil,
de Zilá Bernd, cumpre integralmente seus objetivos: de um
lado, caracteriza-se como uma história da poesia brasileira de
autoria de afrodescendentes, sem, contudo, assumir um perfil
de natureza totalizadora, já que estabelece critérios de seleção,
quantitativos e qualitativos, que estão claramente formulados
em sua introdução; de outro, promove o resgate de um conjunto
de autores que, em sua quase totalidade, estão ausentes das his-
tórias da literatura brasileira. Com tal procedimento, a autora
não apenas disponibiliza aos pesquisadores material significativo
para a compreensão do sistema literário nacional, como também

45
Fronteiras Literárias na América Latina

promove um alargamento do cânone literário brasileiro, intenção


que compartilha com aqueles trabalhos que vêm sendo realizados
no âmbito dos discursos situados à margem da historiografia
literária brasileira tradicional.
O desejo de mapear e, em certa medida, historiar a literatura
brasileira, particularmente através da organização de antologias,
tem seu exemplo mais radical em Antologia comentada da poesia
brasileira do século XXI (2006), de Manuel da Costa Pinto. Divul-
gado pela Publifolha de S. Paulo, o trabalho de Manuel da Costa
Pinto reúne setenta poetas em atividade nos primeiros anos do
atual século. Na “Apresentação”, o autor aponta o desafio que teve
de enfrentar pelo fato de reunir, “num mesmo volume, autores
já consagrados, com vários livros publicados e extensa fortuna
crítica, ao lado de poetas que editaram apenas uma ou duas co-
letâneas praticamente desconhecidas do público e com recepção
incipiente nos jornais e nas revistas especializadas”. (PINTO,
2006, p. 9) Nesse sentido, a antologia reúne poetas com extensa
produção como Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Mário
Chamie, Francisco Alvim, e poetas com produção que data dos
anos 1990 em diante, como Sérgio Alcides e Manuel Ricardo de
Lima, entre outros.
O exame do trabalho de Manuel da Costa Pinto revela que
o mesmo, a exemplo dos anteriores, reveste-se de uma intenção
historiográfica, porquanto traça um amplo painel da produção
poética brasileira do século XXI, reunindo textos de setenta po-
etas, “número que pareceu suficiente para apresentar um quadro
amplo da produção contemporânea”. (PINTO, 2006, p. 10). As-
sim, embora o organizador afirme que a antologia “atende menos
aos interessados na história da literatura brasileira – [...] – do
que àquele leitor que vê na poesia um organismo vivo” (PINTO,
2006, p. 9), o trabalho, na sua forma final, assume um caráter
claramente historiográfico, uma vez que tem entre seus objetivos
construir um quadro que revele as marcas assumidas pela dicção
poética brasileira do presente, seja aquela formulada por autores
já consagrados, seja aquela proposta por poetas estreantes.

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Fronteiras Literárias na América Latina

A Antologia comentada da poesia brasileira do século XXI apre-


senta seus capítulos organizados por ordem alfabética, segundo o
sobrenome dos autores. Além disso, o número de textos selecio-
nados varia de autor para autor, uma vez que observada a neces-
sidade de fornecer uma amostragem representativa da produção
de cada poeta. Entre os critérios adotados na organização da obra,
encontram-se também o privilégio concedido à produção recente
dos poetas e a inclusão de poemas ainda inéditos cedidos pelos
autores. Em nota de rodapé, o organizador justifica as ausências
de Hilda Hilst e Bruno Tolentino; a primeira, por não haver pro-
duzido poesia no século XXI; o segundo, por não ter autorizado
a publicação de seus poemas.
Cada capítulo abre-se com o nome do autor, acompanhado
de seu local e data de nascimento. Após, vem a seleção de poemas,
que é acompanhada de uma leitura crítica que leva em considera-
ção não apenas os temas abordados, mas também os recursos de
natureza estética utilizados pelo poeta. Nesse exercício crítico,
Manuel da Costa Pinto estabelece, na maior parte dos casos, uma
relação entre os elementos detectados nos poemas selecionados e
o conjunto da produção poética de cada autor.
Ao mapear, nos termos antes referidos, a produção poética
brasileira do século XXI, Marcos da Costa Pinto promove a
divulgação de um número significativo de poetas, cujas obras
permanecem desconhecidas da maioria dos leitores brasileiros,
mesmo daqueles que se dedicam ao exercício da crítica e à escri-
ta da história da literatura brasileira. Sua antologia, a exemplo
da anterior aqui examinada, abandona a pretensão totalizadora
própria das histórias da literatura de feitio tradicional e amplia
os caminhos a serem trilhados por uma historiografia brasileira
do presente que se pretenda em consonância com as perspectivas
abertas pela ciência histórica e pela Teoria da História da Litera-
tura, em suas propostas contemporâneas.
Esse mesmo caminho é trilhado por Luís Bueno em Uma história
do romance de 30, uma vez que, por suas escolhas singulares, contribui
para a renovação do discurso historiográfico e, significativamente, para

47
Fronteiras Literárias na América Latina

o redimensionamento do cânone literário brasileiro. Nesse sentido,


como já foi observado, afirmam-se igualmente formas alternativas
de escrita historiográfica, como aquelas situadas no campo da ego-
história, ou mesmo no âmbito de uma história dos afetos (OLINTO,
2008), como é o caso de boa parte das obras que integram a coleção
“Como e por que ler...”, divulgadas através de editora Objetiva. Há
que registrar, ainda, as experiências que sinalizam para o surgimento
de uma nova consciência por parte dos historiadores da literatura, que
assumem explicitamente a subjetividade e a consequente parcialidade
de seus relatos.
Por fim, mas não menos importante, cabe registrar que
não há aqui nenhuma intenção no sentido de desqualificar as
histórias da literatura brasileira de perfil tradicional, pois foram
elas responsáveis pelo inestimável trabalho de resgate de nosso
passado literário, constituindo-se, ainda hoje, em importantes e
incontornáveis fontes de pesquisa para aqueles que se dedicam
ao estudo da literatura brasileira. O intuito do presente ensaio foi
tão somente assinalar a emergência de novas formas no historiar
a literatura, surgidas a partir de pressupostos estabelecidos, na
contemporaneidade, pela Teoria da História da Literatura.

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62 – 85.

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Fronteiras Literárias na América Latina

Os folhetins de Bernardo Guimarães


no Diário de Minas (1867)
Cilza Bignotto1

Em 22 de janeiro de 1867, o escritor Bernardo Guimarães


(1825-1884) estreou como folhetinista do Diário de Minas, fundado
no ano anterior em Ouro Preto, então a capital da Província de
Minas Gerais. Guimarães tinha, então, 41 anos, cinco livros de
poemas publicados e alguma experiência como jornalista e crítico
literário no Rio de Janeiro, onde colaborara no jornal A Atualidade
(1836-1871).2 De volta a sua cidade natal, para a qual retornara no
ano anterior, estabeleceu-se como professor de retórica e poética
do Liceu Mineiro e vinha colaborando, eventualmente, em jornais
locais. Para quantos periódicos trabalhou, e em qual extensão, é
assunto ainda a ser mapeado.3
O Diário de Minas, que circulou de 1866 a 1878, é considerado
o primeiro diário informativo e empresarial da província – embora
sua sobrevivência estivesse atrelada a contratos com órgãos vin-
culados ao governo mineiro.4 Além de notícias, anúncios e matéria
paga, o Diário publicava folhetins.
1 Professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
2 Cantos da Solidão (1852), Inspirações da Tarde (1858), Poesias Diversas (1865), Evocações
(1865), Poesias (1865), todos publicados pela editora Garnier.
3 Já há bons estudos sobre a crítica literária de B.G. publicada no jornal A Actualidade. Cf.
BOECHAT, Maria Cecília. Uma notícia sobre a crítica de Bernardo Guimarães. In: CAM-
BRAIA, César Nardelli; MIRANDA, José Américo. Crítica Textual: Reflexões e práticas.
Belo Horizonte: FALE, 2004, pp. 143-149; GOMES, Ednaldo Cândido Moreira. “A contri-
buição da imprensa na revisitação da obra de Bernardo Guimarães”. In: Anais do SILEL.
Volume 1. Uberlândia: EDUFU, 2009. Disponível em: <www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/
arquivos/gt_lt13_artigo_1.pdf> Acesso em: 17 ago. 2013.
4 Cf. MENDES, Jairo Farias. O Silêncio das Gerais: o nascimento tardio e a lenta consolidação
dos jornais mineiros. Tese de Doutorado [Comunicação Social]. Universidade Metodista de
São Paulo, 2007.p. 82-90. Disponível em: [http://ibict.metodista.br/] Acesso em: 20 ago.
2013.

51
Fronteiras Literárias na América Latina

Desde o primeiro número, os leitores do jornal podiam acom-


panhar, em rodapés na primeira ou na segunda página, romances
franceses em capítulos. O primeiro folhetim estampado pelo jor-
nal foi Madame Nailhac, de Louis Amedée Achard (1814-1875).
Como inúmeros outros jornais brasileiros, o Diário apostava
no sucesso do feuilleton, nome com que empresários franceses
haviam denominado, na década de 1830, o espaço destinado ao
divertimento de leitores, geralmente publicado no rodapé das
primeiras páginas dos periódicos.5 A novidade logo seria adotada
pelos jornais brasileiros, que a princípio publicavam traduções de
folhetins franceses de sucesso – quase sempre sem dar o crédito
aos tradutores, como fazia o Diário de Minas. Em pouco tempo,
o espaço do folhetim seria encampado por escritores brasileiros,
que nele puderam exercitar estilo, fazer nome e obra conhecidos,
além de obter alguma renda.6
Numerosos autores românticos publicaram as duas espécies
de folhetim que se desenvolveram no oitocentos: o folhetim-
romance e o folhetim-variedades, que, em meados do século, co-
meçaria a ser designado crônica.7 José de Alencar, Joaquim Manuel
de Macedo, Machado de Assis, Aluísio Azevedo são apenas alguns
dos muitos escritores que produziram romances e crônicas para
jornais e revistas.8 Os romances, quando faziam sucesso, eram
publicados em livro; já os textos dedicados a comentar variedades,
talvez por se ancorarem na efemeridade dos assuntos cotidianos,
raramente deixavam as páginas dos periódicos.
Provavelmente, é por essa razão que os folhetins-variedades
publicados por Bernardo Guimarães no Diário de Minas e em
outros jornais brasileiros permanecem inéditos. Já romances
como O Ermitão de Muquém, publicado em folhetim no jornal O
5 Cf. MEYER, Marlise. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.pp.57-64.
6 Idem, pp.281-336.
7 Segundo Lúcia Granja, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, teria sido o primeiro
periódico a fixar a rubrica “crônica”, para a coluna “A semana”, de Francisco Otaviano, a
partir de 1852. Cf. GRANJA, Lúcia. Folhetins d’aquém e d’além mar: a formação da crônica
no Brasil. In: MOTTA, SV., e BUSATO, S. (Org.). Figurações contemporâneas do espaço
na literatura. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. Disponível
em: <http://books.scielo.org>. Acesso em: 20 mai 2013.
8 Cf. BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione,
1993.pp.15-21.

52
Fronteiras Literárias na América Latina

Constitucional, de Ouro Preto, entre 1866 e 1867, foi lançado em


volume no ano seguinte pela editora Garnier, do Rio de Janeiro,
então a mais importante do País.
Os folhetins-variedades de Guimarães eram publicados nas
primeiras e segundas páginas do jornal, em coluna intitulada
“Quinzena”. No entanto, até onde foi possível averiguar, os textos
da coluna foram estampados em intervalos bem maiores de tem-
po, até serem interrompidos, ao que parece definitivamente, em
sete de novembro daquele ano. Ao todo, teriam sido publicados
oito folhetins pelo escritor naquele ano. Neles, Guimarães desfia
variedades de diferentes naturezas: os comentários relacionados a
acontecimentos como a Guerra do Paraguai ou as festas religiosas
em Ouro Preto são entremeados a narrativas ficcionais.
Essa labilidade entre a ficção e o comentário sobre fatos co-
tidianos, característica do folhetim-variedades, levou muitos dos
autores que se dedicavam ao gênero a analisá-lo. José de Alencar,
que estreou como folhetinista do jornal carioca Correio Mercantil,
em 1854, discutiu as dificuldades enfrentadas por quem se pro-
punha a cultivá-lo:

Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos,


a passar do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer
às misérias e às chagas da sociedade; e isto com a mesma
graça e a mesma nonchalance com que uma senhora volta
as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e
delicadeza com que uma mocinha loureira dá sota e basto
a três dúzias de adoradores! Fazerem do escritor uma
espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar,
como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve
necessariamente descobrir no fato o mais comezinho!9

Alencar mapeia com ironia e humor, nesse folhetim publicado


na coluna “Ao correr da pena”, em 1854, alguns aspectos que ainda
hoje desafiam tanto quem se dispõe a escrever textos desse gênero,
como quem pretende estudá-lo. Em primeiro lugar, trata-se de

9 ALENCAR, José de. “Ao correr da pena”. In: Obra Completa. v.4. Rio de Janeiro: José
Aguilar, 1965.p.647-649.

53
Fronteiras Literárias na América Latina

texto metalinguístico, o que viria a se tornar um lugar-comum na


produção de folhetins, dos quais as crônicas atuais são herdeiras.
Como bem apontaram Flora Bender e Ilka Laurito, um dos temas
mais antigos e frequentes de cronistas é a própria crônica, esqua-
drinhada em textos que discutem “suas propostas, suas finalidades,
seus assuntos ou falta de assuntos, as especificidades do gênero e
suas relações com o público leitor”.10 O desafio de produzir gênero
tão multiforme levou Alencar a chamar a crônica de “Proteu” e
de “monstro de Horácio”: a falta de regras claras e a flutuação de
forma fariam dela uma aberração literária.
As especificidades do gênero talvez devam muito de sua
nebulosidade às relações da crônica com o público leitor. Alencar
expõe, na crônica mencionada, a preocupação constante em tratar
de assuntos os mais variados de modo a despertar o interesse de
um público exigente e heterogêneo. Essa necessidade obrigava – e
ainda obriga – o cronista a usar tom ameno, superficial, que lembre
o de uma conversa sem maior consequência.
Outros cronistas do XIX esboçaram reflexões críticas sobre
o folhetim-variedades, conforme o gênero se consolidava nos
periódicos e assumia a etiqueta de crônica. Machado de Assis foi
um deles; em texto de 1959, ele retoma a mesma metáfora usada
por Alencar:

O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na


esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e
espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre to-
das as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até
mesmo a política. Assim aquinhoado pode dizer-se que
não há entidade mais feliz neste mundo, exceções feitas.
Tem a sociedade diante de sua pena, o público para lê-lo,
os ociosos para admirá-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo.11

Segundo o autor, essas circunstâncias estariam longe de fa-


zer do folhetinista uma “entidade feliz”; pelo contrário: “os olhos
10 Cf. BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crônica, op. cit., p.22.
11 ASSIS, Machado de. “O folhetinista”. Aquarelas, publicadas em O Espelho, entre 11 de
setembro e 30 de outubro de 1859. In: ____. Obra Completa. v. III. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.

54
Fronteiras Literárias na América Latina

negros que saboreiam essas páginas coruscantes de lirismo e de


imagens, mal sabem às vezes o que custa escrevê-las”.12 Assim
como Alencar fizera, Machado de Assis também sugere que os
olhos apreciadores de crônicas são femininos. Observações se-
melhantes são encontradas nos folhetins-variedades escritos por
Bernardo Guimarães para o Diário de Minas. É o que se nota, por
exemplo, no texto com que o autor estreou como colunista do
jornal, em 22 de janeiro de 1867:

Como vai triste e carregado o aspecto destas montanhas


envoltas em seos eternos nevoeiros!... [...]
O leitor por certo está estranhando horrivelmente que
o folhetinista, que hoje estréa sua carreira neste jornal,
comece por exclamações de semelhante natureza.
A razão é fácil de explicar: foi a primeira impressão que
me veio ao espírito ao pegar na penna. Quando dous in-
dividuos se encontrão, começão por fallar do tempo para
travarem conversação. – Está fresco! – que calor! – quando
cessará esta chuva!... estas e outras quejandas phrases
constituem o preludio de quase todas as palestras.
Assim faço eu para travar conversação com o leitor, e dar
um começo qualquer a este folhetim, visto que elle não
pode apparecer sem principio.
Alem disso essas exclamações devem servir-me de escu-
sa, e querem dizer que na falta de assumptos agradáveis
para entreter a curiosidade publica este folhetim não pode
correr festival e alegre, como o leitor desejaria, porem
merencorio e grave, como a situação que atravessamos,
pallido e sombrio como os horisontes que nos rodeão.13

A longa citação é justificada pelas importantes informações


que reúne, de maneira condensada e concentrada, a respeito do
horizonte de expectativas que autor e leitores deveriam apresentar
em relação ao gênero.14 Em primeiro lugar, destaque-se o fato de

12 Idem.
13 GUIMARÃES, Bernardo. Quinzena. In: Diário de Minas, 22 de janeiro de 1967, p. 1.
Disponível em: <memoria.bn.br> Acesso em: 20 mai. 2013. A ortografia original do texto
foi mantida.
14 O conceito de horizonte de expectativa é aqui usado conforme JAUSS, Hans Robert. A
história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. De Sérgio Tellaroli. São
Paulo: Ática, 1994.

55
Fronteiras Literárias na América Latina

que o folhetim de Guimarães é publicado no mesmo espaço que,


até então, o Diário de Minas reservara para romances franceses
traduzidos. Nesse sentido, as descrições iniciais do clima e da
geografia de Ouro Preto eram familiares aos leitores da cidade
e região, por meio da experiência da realidade vivida; ao mesmo
tempo, eram completamente destoantes das paisagens europeias
que as experiências de leitura haviam tornado conhecidas.
Porém, a descrição da natureza e do clima, apresentada por
meio de personificações carregadas de melancolia, é muito seme-
lhante às descrições de paisagem encontradas em tantos autores
românticos europeus. Como apontou Hélio de Seixas Guimarães,
é “quase exemplar” o modo como o autor mineiro “aplica às suas
histórias esquemas e procedimentos do romantismo”.15 Dentre
esses esquemas e procedimentos, está a “valorização extrema do
universo popular”, que parece estar presente não só nos romances
do escritor, mas também nos folhetins-variedades que criou para
o Diário de Minas. O mapeamento dos esquemas e dos procedi-
mentos românticos usados por Bernardo Guimarães nos folhetins
que escreveu ainda está apenas começando a ser realizado por
pesquisadores.16 Já é possível verificar, porém, que essa valorização
emerge nos folhetins-variedades por meio de comentários sobre
costumes locais e de trechos ficcionais baseados em histórias que
circulavam oralmente na região, como se verá adiante.
Voltando ao excerto reproduzido acima, vale destacar a im-
portância dada ao leitor, com quem o autor pretende estabelecer
“conversação”, usando, para tanto, o recurso de simular diálogo
sobre o clima. A linguagem e o tom do folhetim seriam, portan-
to, informais, próximos do registro coloquial. Nesse aspecto,
Guimarães mostra-se sintonizado com o que se esperava de um
folhetinista, naquele período, tanto no âmbito da forma como no
do conteúdo. Acrescente-se que a preocupação em agradar ao
leitor é recorrente em toda a obra do autor, como sugere Hélio
15 GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Entre lendas e romances, o conto de Bernardo Guimarães.
In: GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e romances. Edição preparada por Hélio de Seixas
Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2006.p.XII.
16 Esse é um dos objetivos de pesquisa de Iniciação Científica realizada atualmente pelo aluno
de graduação em Letras Ramon Henrique de Carvalho Nascimento, com bolsa PIP/UFOP.

56
Fronteiras Literárias na América Latina

Guimarães, para quem o escritor mineiro “parece nunca ter tido


vergonha de lançar mão de todos os recursos, mesmo os mais
previsíveis, desde que fosse para atingir e agradar ao público”.17
Finalmente, o folhetim de estreia de Bernardo Guimarães no
Diário é metalinguístico, pois tematiza o próprio fazer literário: o
narrador reflete a respeito da forma que deve assumir o folhetim,
dos assuntos a tratar, da necessidade de entreter o leitor. Esses
aspectos fazem desse e dos demais textos escritos para a coluna
“Quinzena” um corpus de singular interesse para estudar o desen-
volvimento do gênero crônica no País.
Esse primeiro folhetim de Guimarães termina do seguinte
modo:

O folhetim, segundo a opinião de todos os folhetinistas, é


ou deve ser como uma cesta de puras e fragrantes rozas,
que o folhetinista desfolha aos pés das leitoras de semana
em semana.
Mas o tempo tem corrido mal; as rozas não vicejam, ou
morrem em botão por entre essas montanhas maltratadas
por um inverno desabrido e desapiedado.

Num texto em que há comentários sobre o mau tempo em


Ouro Preto, as probabilidades de vitória do partido Liberal nas
eleições próximas e a participação de soldados mineiros na Guerra
do Paraguai, a metáfora escolhida por Bernardo Guimarães para
definir o gênero folhetim chega a parecer deslocada. O fato de o
autor permear o texto com definições do folhetim e de seu público,
as mulheres, enquanto justifica a abordagem de temas sérios e
masculinos (pelo menos na época), como a política, sugere algu-
mas hipóteses sobre o desenvolvimento do gênero. No folhetim-
variedade de Guimarães, delineia-se uma tendência semelhante à
observada em folhetins de Machado de Assis por Lúcia Granja:

A política, que faz parte do mundo das coisas sérias e


graves, passa a ser apenas uma das seivas experimentadas
pelo folhetinista, e ambos, folhetim e política no folhetim,
17 Idem, p. XI.

57
Fronteiras Literárias na América Latina

precisam amaneirar-se. É difícil imaginar que a crônica


política da Revue des Deux Mondes, por exemplo, tivesse
podido constituir-se dessa mesma maneira. Ao sul do
Equador, foi preciso refletir diferentemente a respeito da
natureza do espaço do rodapé e da rubrica chronique, e ali
se foi criando, a nosso modo, a “crônica de variedades”.18

Nos textos da “Quinzena”, a política é seiva sempre experi-


mentada por Bernardo Guimarães. O modo como o escritor comen-
ta as eleições mineiras, no folhetim de estreia, é digno de análise:

Se tem cabimento em um folhetim fallar-se em eleições,


conversemos um pouco a respeito dellas.
Mas que diremos?
Uma simples verdade; que as eleições correrão tranquilla-
mente, e que o resultado será... aquelle que for. Quase
todos os prophetas políticos anuncião, que a situação
actual triumphará nas urnas, mas que terá de sustentar no
parlamento uma lucta renhida provocada por uma oppo-
sição, que empregará todos os meios para subir ao poder.

O assunto política se acomoda entre notícias de festas e ou-


tros temas variados nos folhetins subsequentes, que confirmam
a vitória anunciada dos deputados do Partido Liberal, ao qual o
Diário de Minas estava ligado. O mesmo procedimento de “conta-
minação” do espaço destinado a variedades por assuntos do “alto
da página”, ou seja, das notícias, que Lúcia Granja cartografou
nos textos de Machado de Assis, parece ocorrer nos textos de
Bernardo Guimarães. Para tornar a política tão leve quando os
demais assuntos folhetinescos, ambos os escritores embrulham-
na no tom ameno de conversa simulada com os leitores. Por meio
desse recurso retórico, a política é convenientemente disposta na
“cesta de puras e fragrantes rosas” do folhetinista.
Bernardo Guimarães, portanto, também teria contribuído
para o desenvolvimento, no Brasil, da “crônica de variedades”.
18 GRANJA, Lúcia. Folhetins d’aquém e d’além mar: a formação da crônica no Brasil. In:
MOTTA, SV., e BUSATO, S. (Org.). Figurações contemporâneas do espaço na literatura.
São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.p.117-118. Disponível
em: <http://books.scielo.org>. Acesso em: 20 mai 2013.

58
Fronteiras Literárias na América Latina

Talvez, ele tenha adotado como modelo os folhetins de Machado


de Assis, com quem convivera no Rio de Janeiro justamente em
1859, quando Machado publicara “O folhetinista” n’O Espelho. É
possível, ainda que a “crônica de variedades” tenha sido desenvol-
vida conjuntamente por um grupo de escritores, do qual faziam
parte Machado e Guimarães. Futuras pesquisas sobre a inserção
de temas políticos em folhetins de diferentes autores podem trazer
mais dados que ajudem a confirmar essas hipóteses.
Outra característica que indica a sintonia entre os folhetins
de Bernardo Guimarães com os de outros jornalistas-escritores
do XIX é a inserção de trechos de ficção entre os comentários
realizados ao longo dos textos. O folhetim de 1º de maio de 1867,
que saíra com quinze dias de atraso, devido à doença do autor,
termina com a seguinte declaração: “Prometo não adoecer mais
para dar conta aos leitores de tudo quanto por aqui acontecer, e
até mesmo, se quiserem, do que não acontecer.”. 19 A promessa é
cumprida no folhetim de 28 de maio de 1867, no qual o escritor
entremeia a comentários sobre a Guerra do Paraguai uma lenda
que, posteriormente, transformará em conto, intitulado “A cabeça
de Tiradentes”. Com algumas modificações e acréscimos, esse
conto veio a integrar o volume História e tradições de Minas Gerais,
publicado em 1872, também pela editora Garnier.
A valorização das narrativas de origem popular, tão carac-
terística nos romances de Guimarães, já se mostra presente nos
folhetins que escreve para o periódico de Ouro Preto. Ao preen-
cher a coluna “Quinzena” com textos que articulavam narrativas
inspiradas pela tradição oral e comentários sobre assuntos da
província, embrulhados em linguagem próxima do registro co-
loquial, ele estava pondo em prática a ideia de arte nacional que
delineara em texto crítico:

Outra causa que retarda a época da emancipação de nosso


espírito, é que inda as luzes das ciências e artes não se der-
ramaram pelo império, e as que existem estão inteiramente
19 GUIMARÃES, Bernardo. Quinzena. In: Diário de Minas, 01 de maio de 1967, p. 2. Dis-
ponível em: <memoria.bn.br> Acesso em: 20 mai. 2013. A ortografia original do texto foi
mantida.

59
Fronteiras Literárias na América Latina

concentradas na capital: as províncias participam mui


francamente do reflexo dessa civilização; é lá onde todas
as atenções convergem continuamente para a Europa, que
se resume quase exclusivamente todo o nosso mundo lite-
rário, não sendo essa cidade mais que uma cidade européia
encravada no território brasileiro: – por tanto só quando o
luzeiro da civilização difundir suas luzes pelas províncias,
e desenvolver-se – aclimatada – igualmente por toda a
extensão do império, o espírito nacional se despertará,
e comunicará sua seiva às suas produções, e o caráter
nacional refletir-se-á mais saliente na nossa literatura. 20

Nesse trecho, Guimarães esboça algumas diretrizes para


a literatura nacional que previam aspectos formadores do que,
muito mais tarde, Antonio Candido chamaria de sistema literário.
Para que o “espírito nacional” despertasse, era preciso haver obras
circulando por todas as províncias brasileiras, tarefa para a qual
periódicos como A Actualidade e o Diário de Minas certamente
contribuíram. Também era necessário que houvesse o que ele
chama de “aclimatação” das luzes, ideia que faz lembrar o processo
de desenvolvimento do folhetim-variedades em solo brasileiro.
A construção e a manutenção de uma tradição literária nacio-
nal parecem ter se dado, ao longo do século XIX, por meio de um
longo processo de aclimatação de modelos europeus, acompanhado
de reflexões como as que Bernardo Guimarães, José de Alencar,
Machado de Assis apresentaram em seus folhetins metalinguísti-
cos. Nesse processo, os jornais tiveram importância fundamental,
como bem assinalaram Regina Zilberman e Socorro de Fátima
Pacífico Barbosa, para mencionar apenas duas pesquisadoras
dentre os muito estudiosos que se dedicam a estudar o papel da
imprensa na história da literatura brasileira.
O modo como Bernardo Guimarães se insere no grupo de
escritores que se apropriaram do folhetim francês, para aclimatá-lo,
modificá-lo, utilizá-lo para esboçar outros gêneros ou para refletir
sobre o fazer literário no Brasil ainda está apenas começando a

20 GUIMARÃES, Bernardo. Reflexões sobre a poesia brasileira.In: A Actualidade, 1º de outubro


de 1959, p.2. Disponivel em: <memoria.br.br> Acesso em: 20 ago. 2013.

60
Fronteiras Literárias na América Latina

ser conhecido. Certamente, a investigação de textos ainda inédi-


tos do autor, pulverizados em periódicos como o Diário de Minas,
iluminará aspectos não só de sua obra, mas do cânone nacional.

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Fronteiras Literárias na América Latina

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ZILBERMAN, Regina. Literatura de rodapé (ou) o jornal como suporte
literário. In: Idéias, Jornal do Brasil, 8 de novembro de 2003.
Disponível em: <www.jb.com.br> Acesso em:

62
Fronteiras Literárias na América Latina

O CONCEITO DE “LITERATURA NACIONAL”


E A CONSTRUÇÃO DE HISTÓRIAS LITERÁRIAS
NA AMÉRICA LATINA
Eduardo F. Coutinho1

RESUMO

O questionamento que vem sendo empreendido em torno dos


conceitos de “nação” e “nacionalismo”, principalmente a partir da
publicação de Comunidades imaginadas, de Benedict Anderson, e de
Nação e narração, de Homi Bhabha, sem falar nas inovações por que
vêm passando os estudos de História desde meados do século XX,
ocasionou grandes transformações no âmbito da Literatura Compara-
da, em especial na esfera da Historiografia, até recentemente calcada
de modo dominante sobre a ideia de “estado-nação”. Reagindo contra
o discurso tradicional que tomava a nação como referencial único
na constituição de histórias literárias e a identificava ao conceito de
“estado-nação”, a nova historiografia literária vem buscando formular
um discurso fundamentalmente plural, heterogêneo, representado
por múltiplos sujeitos, que dê conta da diversidade dos universos
representados. Nosso propósito neste trabalho é discutir a relação
entre literatura e nação no contexto latino-americano e investigar o
desafio por que vêm passando os historiadores atuais da literatura na
busca de um relato democrático, inclusivo, que contemple as diversas
vozes que compõem o cenário em questão.

Palavras-chave: Literatura nacional; Histórias literárias; América


Latina
1 Eduardo de Faria Coutinho, Professor Titular de Literatura Comparada da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

63
Fronteiras Literárias na América Latina

ABSTRACT

The questioning that has been taking place about the concepts
of “nation” and “nationalism”, especially after the publication of
Benedict Anderson’s Imagined Communities and Homi Bhabha’s
Nation and Narration, as well as the innovations that the studies of
History have been undergoing since the middle of the twentieth
century, have brought about significant transformations in the area
of Comparative Literature. Literary Historiography, for example,
has abandoned its traditional discourse, based on the concept of
nation-state as the only referent in the constitution of literary
histories and has been seeking a plural and heterogeneous type
of discourse, represented by multiple subjects, that may be able
to express the diversity of the contexts in question. Our purpose
in this paper is to discuss the relationship between literature and
nation in the Latin American continent and to investigate the
challenge which contemporary literary historiographers have
been facing in their attempt to find an embracing and democratic
kind of narrative that may contemplate the different voices which
form their universe.

Keywords: National Literature; Literary History; Latin America

O questionamento que vem sendo empreendido em torno dos


conceitos de “nação” e “nacionalismo”, principalmente a partir da
publicação de Imagined Communities, de Benedict Anderson (1982)
e de Nation and Narration, de Homi Bhabha2, sem falar nas inova-
ções por que vêm passando os estudos de História desde meados
do século XX, ocasionou grandes transformações no âmbito da
Literatura Comparada, máxime na esfera da Historiografia, até
recentemente calcada de modo dominante sobre a ideia de Estado-
Nação. Reagindo contra o discurso totalitário tradicional que
2 Acrescentem-se neste sentido estudos como os de Eric Hobsbawm, Nations and Nationa-
lisms since 1870: Programme, Myth, Reality (1990), Partha Chatterjee, The Nation and its
Fragments (1993), Monserat Guibernau, Nationalisms: The Nation-State and Nationalism
in Twentieth Century (1996), entre outros, sem falar na revisão a que se procedeu do clássico
texto de Renan Qu’est-ce qu’une nation? (1882).

64
Fronteiras Literárias na América Latina

tomava a nação como referencial único na constituição de histórias


literárias e a identificava ao conceito de “estado-nação”, a nova
historiografia literária vem buscando formular um discurso fun-
damentalmente plural, heterogêneo, representado por múltiplos
sujeitos, que dê conta da diversidade dos universos representados.
Este é o grande desafio por que têm passado os historiadores atuais
da literatura: a busca de constituição de um relato democrático da
produção literária nacional, de um relato inclusivo, que contemple
as diversas vozes que compõem o cenário em questão.
Se a nação, ao contrário de uma construção marcada pela
homogeneidade, é agora vista como o lugar da negociação por
parte de uma multiplicidade de sujeitos e de discursos, o debate
sobre o discurso nacional contemporâneo, e consequentemente
sobre a produção que se faz neste espaço, deve ser um produto da
conversação, um debate entre os múltiplos atores ou enunciadores
da memória nacional. Isso implica o abandono das regras do jogo
que eram tidas até bem pouco tempo como incontestáveis e o de-
safio de construir múltiplos cenários da memória nacional como
um lugar onde, nas palavras de Duara, “diferentes concepções da
nação disputam e negociam entre si” (DUARA, 1995), ou, melhor,
para onde os múltiplos cenários da memória presente na nação
convergem. A ideia é a construção de uma história que não tenha
um ponto de vista que silencie ou esqueça os outros, mas que seja
democrática, inclusiva, e que, ao mesmo tempo implique, como
não poderia deixar de ser, pela sua própria condição de relato, uma
escolha. Trata-se, como afirma Hugo Achugar, em seu Planetas
sem boca, da construção de um projeto nacional alternativo que
atenda à diversidade, pondo em xeque a homogeneização autori-
tária, ou, ainda, servindo-se da imagem de Deleuze, da construção
rizomática de uma nação (ACHUGAR, 2006, p.162).
A palavra “historiador” deriva, segundo Michel de Certeau
(CERTEAU, 1995), de histor, que significa “aquele que sabe”. Mas
porta também, segundo Achugar, o sentido de “aquele que escolhe”,
ou “que tem o poder de contar a história”, poder esse de decisão
entre a memória e o esquecimento. Ora, se o ato de contar uma
história ou um conto pressupõe sempre uma escolha – a opção

65
Fronteiras Literárias na América Latina

realizada por quem conta ou por quem tem o poder de contar –,


a conclusão óbvia é que nunca se conta tudo. Para contar uma
história, alguém tem que realizar uma escolha e essa opção supõe
privilegiar, esquecer, silenciar. Além disso, aquele que conta tem
que escolher quando começa e quando termina sua história. Há
uma espécie de lógica discursiva que torna impossível eliminar
a escolha, e, consequentemente, o silêncio ou o esquecimento.
Como quem conta a história de uma nação é sempre o porta-voz
de um grupo ou classe que detém o poder, a tensão entre memó-
ria e esquecimento fica determinada pelos interesses deste grupo
ou classe, e seu relato adquire foros de verdade incontestável,
tornando-se oficial. No entanto, ao surgirem outras versões dos
mesmos fatos, da parte de outros sujeitos sociais, a autoridade da
versão oficial começa a ser posta em dúvida, sendo então relati-
vizada. No caso da história literária, a versão oficial é a que se
consagrou como cânone; daí a busca de construção de uma história
democrática da produção literária de uma nação passar necessa-
riamente pelo questionamento desse cânone, sobretudo em seus
vieses excludente e elitista.
A noção de um momento fundacional, de uma origem, sempre
constituiu uma obsessão para aquele que narra uma história, e
sempre esteve presente na construção da nação, como atestam os
mitos fundadores que se disseminaram através dos tempos. En-
tretanto, a ideia da fundação da nação, seja pelo ato performativo
da palavra, seja por um ato militar, deixa claro que esse momento
fundacional foi produzido pelo homem através do discurso e não
como resultado de um fato astrofísico ou da vontade divina. Do
mesmo modo, os fatos históricos chegam a nós através do relato;
eles são atos de fala, e que se mantêm, ao longo dos tempos, por
intermédio do discurso, repetidos por rituais levados a cabo pela
memória. Esses rituais tendem a naturalizar os fatos, fenômenos
ou acontecimentos relatados, mas levam também, por outro lado,
a uma reavaliação, pois toda memória, toda recuperação da memó-
ria, ou toda comemoração, tem como contrapartida a avaliação do
passado. A memória reside em várias instâncias; ela é memória
oficial, memória popular, memória coletiva, e, como tal, memória

66
Fronteiras Literárias na América Latina

de diversos sujeitos sociais em circunstâncias distintas. Assim, não


pode ater-se ao legado de um único relato da história, tornando-
se, portanto, múltipla e diversa. É nessa diversidade que reside a
construção de uma história democrática, narrada por diferentes
sujeitos sociais e num espaço de negociação.
Além disso, se os fatos, fenômenos ou acontecimentos relata-
dos pela história só chegam até nós através de textos, escritos ou
orais, eles só podem ser lidos e recontados a partir de uma óptica
do presente, o que indica que os historiadores são indivíduos
comprometidos com o seu tempo e lugar de enunciação. Assim,
a noção de progressão histórica ou evolucionismo sobre a qual se
erigiu a historiografia tradicional, sobretudo na era do Positivismo,
cede lugar ao que Fernand Braudel designou de “diálogo entre o
passado e o presente” (BRAUDEL, 1981, p. 25), e a linearidade
excludente até então dominante passa a ser substituída por uma
gama de linhas que correm paralelas ou em sucessão, muitas vezes
sobrepondo-se, mas sem se excluírem umas às outras. Como o
discurso se acha sempre comprometido com interesses do emissor,
e como é no presente que o historiador organiza e dá forma a sua
obra, atribuindo significado aos eventos passados, tanto a seleção
quanto a leitura que ele realiza desses eventos passam a constituir
elementos fundamentais. A história literária deixa, assim, de ser o
mero registro acumulativo do que se produziu ou a simples com-
pilação de temas ou formas, tornando-se a reescritura constante
de textos anteriores com o olhar do presente; ela passa a ser a
história da produção e recepção de textos, e para o historiador
esses textos constituem ao mesmo tempo documentos do passado
e experiências do presente (VALDÉS; HUTCHEON, 1994).
Como texto produzido por diversos sujeitos sociais e cons-
tantemente reescrito, a historiografia literária adquire uma outra
dimensão que amplia significativamente sua esfera. Mas nesse
processo de transformação desempenharam um papel crucial os
chamados Estudos Culturais, com a indagação que desencadearam
sobre a noção de “literariedade”. Não mais restrita ao que se en-
tendia por obra literária, definida por critérios de ordem estética
pouco ou nada mensuráveis, a história literária passou a abarcar

67
Fronteiras Literárias na América Latina

também textos da ordem da cultura em geral, aumentando consi-


deravelmente o seu objeto de estudo. Assim como os estudos de
história tout court deixaram de restringir-se aos eventos políticos
e diplomáticos, passando a incluir as circunstâncias mais amplas
que os condicionaram, e enveredaram também por searas antes
reservadas a outros saberes, como a Geografia, a Sociologia, a
Antropologia, a Política e a própria Filosofia, a Historiografia
Literária rompeu os limites do cânone e, além de mostrar-se
menos interessada em registrar a ocorrência de certos fatos ou
eventos do que em determinar o significado que eles tiveram para
um determinado grupo ou sociedade, passou a abarcar categorias
do discurso, como a referencial e a ficcional, a oral e a escrita, a
popular e a erudita, ultrapassando as antigas fronteiras do até
então considerado literário, e tornando-se, em consequência, uma
matéria interdisciplinar. Agora, ao lado do exame do texto, bem
como dos gêneros, estilos e topos, que por tanto tempo alicerçaram
as obras de História da Literatura, torna-se relevante também a
análise do campo em que se produziu a experiência literária, e o
contexto de recepção da obra é tratado com a mesma importância
do de produção.
Essa dialética entre passado e presente, que leva o historiador
a oscilar da observação concreta à consciência da heterogeneidade
da vida, somada à ampliação do escopo desses estudos, que passam
a abarcar outras esferas do conhecimento, são aspectos do que
poderíamos chamar de caráter comparatista da historiografia
literária contemporânea. Nessa rede complexa de relações são
lançadas em conflito duas instâncias temporais e espaciais distintas,
e é na dialética estabelecida entre estas instâncias de produção e
recepção de textos que se tece o discurso da história literária, não
mais como um relato pretensamente objetivo de fatos, mas como
discurso, construção. A narração empreendida pelo historiador
literário é uma seleção de textos e acontecimentos, que traduz
sempre a óptica de seu porta-voz e as marcas da comunidade a
que ele pertence. E como estes traços são sempre fluidos e mul-
tifacetados, é sobre as variantes que incide o interesse do relato.
Lembrem-se aqui das diferentes leituras de um mesmo episódio

68
Fronteiras Literárias na América Latina

histórico feitas em momentos ou locais distintos, ou o interesse


maior ou menor despertado por certo texto em momentos diver-
sos da história literária. Lembre-se ainda o caso, aliás bastante
ilustrativo, das histórias não oficiais, que vêm hoje conquistando
espaços cada vez maiores, narrados por grupos minoritários até
há pouco tempo marginalizados.
Como são muitos os sujeitos sociais que passam a narrar a
história, e esses sujeitos procedem de origens distintas, o idioma
canônico deixa de ser a única forma de expressão de uma deter-
minada comunidade, passando-se a aceitar outras linguagens, e
rompendo-se, assim, com toda sorte de visão monolítica do real.
Estas linguagens, que vão desde idiomas realmente distintos,
como as línguas autóctones, no caso de povos que passaram por
processos de colonização, até registros marginalizados, como o
chamado “popular”, passam agora a figurar das histórias literárias,
enriquecendo significativamente o seu âmbito, e clamando por uma
reformulação do corpus até então identificado com a “produção
literária nacional” e organizado pela historiografia tradicional em
uma série coesa e unânime. Se não se pode mais pensar a história
em termos de um esquema linear e monocultural, mas apenas
como a articulação de sistemas que se imbricam, superpõem e
transformam constantemente; se não se pode mais restringir a
produção de um povo a um espaço arbitrariamente construído
por razões de hegemonia político-econômica, mas, ao contrário,
encarar esse espaço como um locus móvel e plural; se finalmente
não se pode mais limitar o âmbito da literatura à produção escrita
e ficcional ou poética, os corpora que serviram de base às histórias
literárias tradicionais perdem sua fixidez, tornando-se múltiplos
e dinâmicos, e dão margem à coexistência de cânones distintos
dentro de um mesmo contexto.
Na América Latina, o sujeito enunciador do discurso fundador
do Estado-Nação, durante o século XIX tomou como base um pro-
jeto patriarcal e elitista, que excluiu não só a mulher, mas índios,
negros, analfabetos e, em muitos casos, aqueles que não possuíam
nenhum tipo de propriedade. A preocupação dominante era marcar
a diferença da nova nação com relação à matriz colonizadora, mas o

69
Fronteiras Literárias na América Latina

modelo era óbvia e paradoxalmente a metrópole; daí a necessidade


de forjar-se uma homogeneidade que excluísse todas as diferen-
ças. Os atores da empreitada eram os descendentes mestiços dos
colonizadores e as armas empregadas as mesmas da metrópole – a
palavra e o aparato militar. O privilégio dado à palavra conferia
legitimação à função social de letrados e sacerdotes, e o aparato
militar assegurava-lhes o poder, ratificando suas decisões. Os
demais eram silenciados e identificados como massa informe, e sua
produção, em decorrência do papel desprestigiado que exerciam
na sociedade, era relegada, quando não apenas ignorada, a plano
absolutamente secundário. O cânone constituiu-se, assim, de
acordo com os interesses desses letrados, e, sobretudo, com base
em obras voltadas para a ideia de construção da nacionalidade.
Como a nação e o idioma canônico constituíam até recente-
mente as grandes referências na construção de histórias literárias,
a historiografia tradicional da América Latina, ainda que tenha
sofrido várias evoluções relacionadas aos avanços por que passou
a própria disciplina ao longo desse tempo, manteve, de maneira
geral, seu caráter excludente, atendo-se quase sempre ao viés
erudito da produção e às obras consagradas pelo meio intelectual
dominante, deixando à margem todas aquelas vozes não adequadas
ao padrão. Atualmente, porém, graças em grande parte à episteme
pós-moderna, que vem pondo em xeque todo tipo de relato de
cunho totalitário, bem como todo e qualquer modelo de cartografia
rígida, a historiografia literária vem adquirindo uma nova face no
continente, que pode ser aqui representada por um eixo duplo, ao
mesmo tempo temporal e espacial. Trata-se de um novo tipo de
historiografia, que pode ser visto, conforme o faz Hugo Achugar,
como uma espécie de “palimpsesto em constante processo de
escrita, de planejamento, de configuração, no qual as fronteiras
não só são porosas, corroídas e passíveis de serem corroídas, mas,
além disso, estão em constante movimento” (ACHUGAR, 2006,
p. 218-19).
Do ponto de vista temporal, a transformação mais expressiva
consiste na relativização do sentido de progressão ou evolucionis-
mo e em sua complementação por uma noção de simultaneidade

70
Fronteiras Literárias na América Latina

ou de confluência de linhas que podem correr paralelas ou em


sucessão, mas sem recorrerem a um percurso uniforme. A noção
de progressão, que se encontrava antes na base de qualquer his-
tória literária do continente, tinha como referência a produção
dos grupos social ou economicamente privilegiados, sempre de
origem européia, e deixava de lado qualquer outro tipo de ma-
nifestação que não estivesse de acordo com os padrões desses
grupos. O resultado era a exclusão de uma ampla produção, de
grande relevância, proveniente das comunidades indígenas, dos
ex-escravos africanos ou de qualquer outro grupo desfavorecido.
Ao deixar de lado a noção de progressão linear e substituí-la pela
ideia de simultaneidade ou de confluência de linhas, a produção
desses grupos passa a ser levada em conta e o caráter monolítico
das histórias anteriores dá lugar a um quadro heterogêneo da
produção literária do continente.
Do ponto de vista espacial, a opção é por uma noção de car-
tografia que se afasta de qualquer fronteira instituída arbitraria-
mente ou com um caráter hegemônico, substituindo-se, sempre que
necessário, conceitos como o de “nação” por outros mais flexíveis,
como o de “regiões culturais”. O modelo que tomava a nação como
referencial básico não levava em conta as diferenças regionais
dentro de uma mesma nação nem a existência, tão comum no
continente, de uma região cultural que transcende as fronteiras de
diversas nações, como é o caso da região amazônica ou da andina,
ou ainda de uma região como a constituída por um povo como o
Aimara, que ocupava um território mais tarde distribuído por
razões políticas em quatro países distintos. Nesse caso, é preciso
que se levem em conta todos os processos de imbricamento, sin-
cretismo ou apropriação por que passam as formas estudadas e as
variações verificadas em cada contexto, como também a oscilação
dos pólos de atração centrípetos e centrífugos em escala local ou
continental. Observe-se que aí desempenha um papel de relevo
a noção de “centros culturais”, isto é, os núcleos urbanos onde se
produziu, cultivou e disseminou a cultura no continente.
Finalmente, no que concerne ao estudo das formas mesmas,
é necessário chamar atenção para a importância do abandono

71
Fronteiras Literárias na América Latina

de qualquer visão monolítica, em favor de um olhar que busque


sempre contemplar a heterogeneidade do continente. Assim,
passam a integrar a historiografia literária latino-americana não
só a produção de grupos étnicos até então excluídos pela vertente
canônica, dentre os quais indígenas com línguas ainda vivas e um
repertório de textos tanto escritos quanto orais, como também ou-
tros registros, como o “popular”, sempre contraposto ao “erudito”,
presente em expressões como o corrido mexicano ou a literatura
de cordel brasileira. Frise-se ainda que, com a ampliação, se as-
sim se pode dizer, do conceito de “literariedade”, passam também
a figurar dessas novas histórias outras espécies de discurso, que
transcendem a chamada “escritura artística” ou “imaginativa”,
e situam-se na esfera da cultura em geral, e o cânone perde seu
sentido unívoco e autoritário, tornando-se, se isto é possível, uma
estrutura aberta, passível de constante reformulação.
Levando em consideração essas questões, tomaremos como
exemplo um elemento fundamental na elaboração de qualquer
história literária da América Latina, a noção de “centros culturais”,
e procuraremos mostrar como este conceito se articula com as co-
ordenadas da historiografia para fornecer uma visão o mais ampla
possível da produção literária do continente. O “centro cultural” é
o ponto de articulação entre a geografia e a história, entre o espaço
e o tempo; daí sua importância como parâmetro ou paradigma na
cartografia cultural da América Latina. É uma espécie de encru-
zilhada, de ponto de convergência de ideias, imagens e conceitos,
o pólo de apropriação e ao mesmo tempo de difusão dessas ideias.
Nesses centros, acham-se presentes as condições e os produtos
da dinâmica das relações sociais, o jogo das forças políticas e eco-
nômicas, a trama das produções culturais. Eles são, em suma, ao
mesmo tempo mercados, fábricas, centros de poder político, postos
de decisões econômicas, viveiros de ideias científicas e filosóficas e
laboratórios de experimentações artísticas, onde germinam ideias
e movimentos, tensões e tendências, possibilidades e fabulações,
ideologias e utopias (IANNI, 1966).
No nível predominantemente espacial, geográfico, o “cen-
tro cultural” se constitui na América Latina em torno do que se

72
Fronteiras Literárias na América Latina

poderia chamar de “cidade-eixo”, ou, melhor, de uma cidade que


tem a função de pólo estratégico de influência simbólico-cultural,
exercida por um movimento duplo – ao mesmo tempo centrífugo
e centrípeto – no interior de uma região, mais ou menos ampla,
de determinado país. Como toda a economia da América Latina
se desenvolveu em torno de ciclos econômicos voltados para pro-
dutos específicos, minerais ou agrícolas, criaram-se ao longo do
período colonial centros de controle, que se foram desenvolvendo
até adquirir, séculos mais tarde, o estatuto de postos dinâmicos
de intercâmbio cultural. Eram povoados habitados por um con-
junto de letrados enviados pela metrópole (RAMA, 1985), que
controlavam o circuito do produto e asseguravam o poderio da
coroa, e que mais tarde se tornaram o palco onde se formaram as
diversas nações latino-americanas e onde se promulgaram suas
diferentes constituições, tendo muitos deles se transformado na
capital dessas nações. Esses centros sempre constituíram uma
espécie de ponte entre o exterior e o interior da região ou país, e
desse modo funcionaram como um foco disseminador de cultura.
No nível predominantemente temporal, histórico, cada cen-
tro cultural, visto como um círculo de influência e atuação em
torno de uma cidade-eixo, constitui-se por um “recorte” baseado
em um momento ou momentos paradigmáticos de sua formação,
em que este locus realmente atuou como uma espécie de pólo
magnético, marcado pela confluência de fatores que desenca-
dearam um verdadeiro intercâmbio. Assim, eles são o lugar da
produção de imagens e representações, o circuito da pluralidade
discursiva na constituição da tradição e de seu refuncionamento
por meio da absorção de aportes diferenciados, como também
o espaço onde se desenvolve a transculturação, envolvendo os
mais diversos e distintos signos culturais, desde as instituições
e valores religiosos e morais, até a ética do trabalho e o sistema
de relações familiares, desde o culto às tradições até o interes-
se pelas inovações. São ainda o local onde tanto se afirmam e
reforçam quanto se debilitam e apagam convenções e barreiras,
realidades e ilusões, gerando tensões extremamente complexas,
e onde se produzem, em consequência desses mesmos processos,

73
Fronteiras Literárias na América Latina

os discursos mais expressivos de busca de identidade e de reco-


nhecimento da alteridade e das diferenças.
A partir dessas reflexões, podemos dizer que a constelação
de centros culturais de uma região ou país irá corresponder,
portanto, ao cruzamento de coordenadas espaço-temporais que
confluem para aquele contexto. Essas coordenadas são eviden-
temente variáveis e mutantes, conforme a conjunção de fatores
econômicos, políticos e culturais que atuaram na transformação
de cada região em uma área magnética ou pólo de atração, mais
ou menos estável, de acordo com o maior ou menor rendimento
de tal dinâmica. Assim, vistos em conjunto, os centros culturais
da América Latina nos oferecem o panorama dos processos de
desenvolvimento dos múltiplos aspectos da cultura literária do
continente desde as instituições que difundem a cultura até as
agrupações que constantemente direcionam e reconfiguram o
quadro das manifestações culturais. Aqui, dadas as diferenças que
se vislumbram na dinâmica formadora desses centros, a relação
espaço/tempo mencionada será peculiar a cada um deles, do mesmo
modo que o “recorte” adotado. Os exemplos dessas diferenças são
muitos e devem levar em conta variantes significativas, como a
posição de porto de alguns deles, o componente de imigração, os
ciclos econômicos marcados pela importância de certos produtos
no mercado internacional, e a política de homogeneização do
idioma europeu e da implantação a todo custo da religião católica,
seguida da exclusão de todo e qualquer tipo de prática religiosa,
o que ocasionou reações distintas, sob a forma de tipos diferentes
de sincretismo.
Finalmente, no que concerne à relação entre a América His-
pânica e o Brasil, é necessário que se observem também algumas
diferenças fundamentais na constituição desses centros, como a
ênfase sobre a vida rural brasileira, relacionada ao processo de
exportação de produtos agrícolas, que leva à fundação de cidades
portuárias, como centros catalisadores do esforço civilizador e
da defesa territorial, em oposição à preocupação urbanizatória da
América Espanhola, marcada pela criação de grandes núcleos de
povoação estáveis e bem ordenados, que visavam a assegurar o pre-

74
Fronteiras Literárias na América Latina

domínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras


conquistadas. Assinale-se também o perfil peculiar das cidades
brasileiras, nascidas e criadas de modo espontâneo, ao sabor dos
caprichos cotidianos e da premência das necessidades, em oposição
ao traçado regular e retificador das cidades hispano-americanas,
que correspondem a um esforço planejado e a um ideal planificador
e controlador da coroa de Castela, como bem assinalou Sérgio
Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil (HOLANDA, 1971).
E finalmente, a fundação de universidades na América Hispânica
desde o início da colonização, e a criação de centros editoriais, o
que contribui para o privilégio da palavra escrita na constituição
do que Angel Rama designou de “cidade letrada”, em oposição à
criação tardia no Brasil tanto de universidades quanto de casas
de imprensa.
Resultados da confluência de aspectos de ordem diversa –
históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, étnicos,
linguísticos, demográficos, culturais, etc., -- os “centros culturais”
da América Latina têm atualmente, como bem afirmou Carpen-
tier, “o estilo das coisas que não têm estilo”3, ou, melhor, daquilo
que não corresponde a uma perspectiva homogênea, com traços
específicos claramente delineados; ao contrário, caracterizam-se
exatamente pela mistura, pela confluência de identidades em
constante tensão. É esta convivência de elementos distintos que
constitui talvez o seu maior e mais singular denominador comum.
Mas se nesse conjunto sem um perfil definido se pode observar
um elemento constante, é necessário assinalar também as dife-
renças que distinguem esses centros uns dos outros, resultantes
dos mesmos elementos que lhes conferiram traços de identidade.
Os aspectos assinalados evidentemente não se verificam de modo
igual em todos os pontos do continente nem tampouco na mesma
proporção, e a consequência dessa disparidade é a existência de
uma pluralidade de centros distintos, cada um com elementos
próprios e ao mesmo tempo comuns a todos eles. É por esta pers-
pectiva múltipla, como uma espécie de “unidade diversa” que eles

3 CARPENTIER, Alejo. Literatura e consciência política na América Latina. Trad. Manuel


J. Palmeirim. São Paulo: Global, s.d.

75
Fronteiras Literárias na América Latina

constituem marcos referenciais importantes, sobretudo quando se


considera o ponto paradigmático de articulação entre sua geografia
e sua história, ou, melhor ainda, o ponto para onde convergem os
anseios e diferenças entre os diversos sujeitos sociais.

REFERÊNCIAS

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Escritos efêmeros sobre arte, cultura
e literatura. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
p. 162.
ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. Reflections on the Origin
and Spread of Nationalism. Londres: Verso, 1983.
BHABHA, Homi (Org.). Nation and Narration. Londres: Routledge, 1990.
BRAUDEL, Fernand. Civilisation and Capitalism 15-18 Century, v. 1, The
Structures of Everyday Life: the Limits of the Possible. Trad. Sian Reynolds.
Collins, 1981. p. 25.
CARPENTIER, Alejo. Literatura e consciência política na América Latina.
Trad. Manuel J. Palmeirim. São Paulo: Global, s.d.
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.
CHATTERJEE, Partha. The Nation and its Fragments: Colonial and
Postcolonial Histories. Princeton: Princeton Univ. Press, 1994.
DUARA, P. Rescuing History from the Nation Questioning Narratives of Modern
China. Chicago: The Univ. of Chicago Press, 1995.
GUIBERNAU, Montserrat. Nationalisms: The Nation-State and Nationalism
in the XXth Century. Cambridge: Polity Press, 1996.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 6a ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1971; 1ª ed.: 1936.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito
e realidade. 2a ed. Trad. Maria Célia Paoli; Anna Maria Quirino. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
IANNI, Octavio. A era do globalismo. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.
RAMA, Angel. A cidade das letras. Trad. Emir Sader. São Paulo: Brasiliense,
1985.
RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation?/What is a Nation? Toronto: Tapir
Press, 1996.
VALDÉS, Mario; HUTCHEON, Linda, Rethinking Literary History –
Comparatively. American Council of Learned Societies Occasional
papers, n. 27, 1994.

76
Fronteiras Literárias na América Latina

O JOVEM E A LEITURA LITERÁRIA

Márcia Cabral da Silva1

Introdução

Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não


acreditar [...] mas a verdade é que, aos doze anos, eu já
tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior
parte da obra traduzida de Shakespeare, O Elogio da Lou-
cura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote [...], adaptações
especiais do Fausto e da Divina Comédia, a Ilíada, a Odisséia
(...) Machado de Assis e mais não sei quantos outros clás-
sicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente
lembrados em conversas inflamadas, dos quais nunca me
esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima de
minha vida. (RIBEIRO, 2006, p.159 -160).

No trecho acima, é curioso acompanhar as primeiras expe-


riências de leitura do jovem João Ubaldo Ribeiro, na cidade de
Aracaju, há cerca de cinquenta anos. Um leitor que se formava em
meio às leituras clássicas, conversas inflamadas em família e que
aos doze anos já havia lido parte expressiva da literatura universal.
Se observarmos hoje o repertório de leitura dos jovens oriundos
das diversas camadas sociais, é possível que alguns desses textos
permaneçam e muitos outros precisem ser considerados. Não se
pode esquecer, afinal, que uma das questões que move o professor
no campo das letras hoje diz respeito à mediação relativa a um

1 Professora adjunta do Curso de Graduação e de Pós-graduação da Faculdade de Educação da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Insere-se na linha de pesquisa: Instituições, Práticas
Educativas e História e coordena o grupo de pesquisa: Infância, Juventude, Leitura, Escrita e
Educação.

77
Fronteiras Literárias na América Latina

diversificado repertório de leitura: a leitura de domínio dos alu-


nos, a leitura relativa ao cânone literário, para ficarmos em duas
questões recorrentes nos debates contemporâneos.
Observem-se, no entanto, alguns dados divulgados em es-
tudos por órgãos governamentais e por institutos de pesquisa
sobre proficiência e habilidades em leitura, em leitura literária,
relacionadas à juventude brasileira, que contribuem para uma
primeira percepção do tema em análise.
Os estudos recentes sobre níveis de letramento e formação
de leitores, em especial, entre os jovens e a população adulta, têm
apontado dados que influenciam consideravelmente os indicadores
sociais de qualidade de vida. Por um lado, conforme o censo 2010 do
IBGE, em 2008, ainda existiam no Brasil 14,1 milhões de analfabetos
(o que corresponde a 9,7% da população na faixa etária de 15 anos
ou mais) (IBGE, PNAD, 2010). A PNAD estimou também a taxa
de analfabetismo funcional (percentual de pessoas de 15 anos ou
mais de idade com menos de 4 anos de estudo) em 20,3%. No que
diz respeito às habilidades e à proficiência em leitura, resultados de
pesquisa divulgados pelo INEP/MEC, em abril de 2003, aparecem
veiculados em matéria com o seguinte conteúdo “nível de leitura
e matemática da maioria dos alunos é crítico. A maioria dos estu-
dantes não aprende a ser leitor para realizar atividades básicas do
cotidiano, inserir-se na complexa sociedade globalizada e exercer
plenamente a cidadania. Esta é a conclusão de estudo sobre a quarta
série do Ensino Fundamental”. Passados treze anos da divulgação
do estudo, o quadro recente é ainda pouco promissor.
Acresça-se que a pesquisa Retrato da Leitura no Brasil (2011)
aponta questões interessantes sobre leitura, como, por exemplo, o
fato de que adolescentes e jovens gostam de ler contos, romance,
dentre outros gêneros.2 Por que se afirma, então, que o jovem

2 Realizada por Instituto Pró-livro (IPL) e lançada em 2011. O instituto foi criado no final de
2006 pelas entidades do livro: Associação Brasileira de Livros Escolares (Abrelivos), Câmara
Brasileira de Livros (CBL) e Sindicato dos Editores de Livros (SNEL). A 1[ edição foi lançada
em 2001; a 2ª edição em 2008 e a 3ª edição em 2011. Ao se mapear os gêneros que costumam
ler, foram considerados os entrevistados na faixa etária entre 11 a 13 anos; registra-se que 20%
costumam ler romance e 30% contos; na faixa etária entre 14 a 17 anos, 41% costumam ler
romances e 30% contos.

78
Fronteiras Literárias na América Latina

não lê, lê pouco ou que raramente se interessa por Literatura e


que as formas de acesso ao livro são bem restritas em nosso país?
Acreditamos que este quadro não possa ser analisado de forma
isolada, uma vez que, no Brasil, relaciona-se com altos índices de
exclusão social: renda, saúde, alimentação e acesso aos bens cultu-
rais produzidos coletivamente, mas ainda usufruídos por poucos.
Verificamos, portanto, a necessidade de um estudo específico sobre
as concepções e as práticas de leitura relacionadas aos jovens,
com especial ênfase na leitura literária, que pudesse fundamentar
diagnósticos de políticas públicas e sociais para assunto relevante
como a apropriação da leitura em nosso país. 3
Conforme pesquisa na área desenvolvida no contexto con-
temporâneo francês pela antropóloga Michèle Petit (2006), muitos
jovens de comunidades rurais e da periferia referem-se à leitura
literária como fonte de aprendizagem, modo de aceder à cultura
letrada, oportunidade de domínio de modos de expressão mais
complexos do que aqueles aprendidos nas comunidades de origem,
dentre outros aspectos relevantes.
No Brasil, pudemos reconstituir parte significativa da his-
tória da leitura e dos leitores, por meio da observação de relatos
autobiográficos, dentre outras fontes históricas. De acordo com
o resultado da pesquisa realizada ao longo de quatro anos4, foi
possível concluir, dentre outros aspectos, que a leitura literária
na formação do jovem, no interior de Alagoas, na passagem do
século XIX ao XX, conferia-lhe prestígio e mudanças na forma
de se expressar e de se comportar. É o que rememora Graciliano
Ramos, ao longo do seu romance autobiográfico:

3 O recorte da pesquisa entre a população de jovens justifica-se por, além de considerá-los um


segmento representativo da população brasileira, segundo censo do IBGE 2000, a idade média
do brasileiro é de 24,2 anos, já termos levantado dados preliminares significativos em pesquisa
desenvolvida nos anos de 2004 a 2006 com alunos de graduação da Uerj tais como a frequên-
cia a bibliotecas públicas, a relação com a leitura literária, as suas concepções sobre leitura. A
pesquisa intitula-se A rede de Bibliotecas Populares na Cidade do Rio de Janeiro e a Formação de Leitores e
constituiu a base do componente curricular Pesquisa e Prática Pedagógica ministrada por mim.
4 Trata-se da tese do doutorado Infância de Graciliano Ramos: uma história da formação do leitor
no Brasil, desenvolvida junto ao Projeto Memória de Leitura – IEL, Unicamp e defendida em
março de 2004. O texto foi publicado em 2009. Conferir em: SILVA, Márcia Cabral da. Uma
história da formação do leitor no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

79
Fronteiras Literárias na América Latina

Em poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto.


Mudei hábitos e linguagem. Minha mãe notou as mo-
dificações com impaciência. E Jovino Xavier também se
impacientou [...].

Minha mãe, Jovino Xavier e os caixeiros evaporavam-se.


A única pessoa real era Jerônimo Barreto, que me fornecia
a provisão de sonhos, me falava na poeira de Ajácio, no
trono de S. Luís, em Robespierre, em Marat. (RAMOS,
1993, p.216)

O repertório de leitura rememorado pelo autor mereceu da


mesma maneira observação acurada: comparecem ao longo da
narrativa o romance O Guarani, de José de Alencar, Casa de Pen-
são, de Aluísio de Azevedo, obras de Eugène de Sue, romances
de Dostoievsky e obras de Tolstoi, considerado por Graciliano
Ramos, em entrevista, o maior escritor da humanidade. Em que
pese o afastamento da escola aos 9 anos “ para não ser devorado
por moscas”, folheamos páginas emblemáticas das primeiras expe-
riências com a leitura literária que contribuíram para a formação
do narrador descrito nas páginas do romance.
Contudo em pesquisa que realizamos ao longo de dois anos
em bibliotecas populares na cidade do Rio de Janeiro,5 constatamos
outros dados curiosos: a face pragmática da leitura, a utilização
do acervo das bibliotecas apenas para a pesquisa escolar, a conco-
mitância da leitura literária com outros materiais impressos, sem
qualquer indicação de hierarquização para os materiais lidos, o que
nos levou a levantar a hipótese da dessacralização atual do texto
literário quando considerada a sua recepção, conforme pesquisas
recentes já indicaram. (LIMA, 1983 E ZILBERMAN, 1989)
Portanto, ao eleger para estudo o jovem brasileiro, em con-
texto contemporâneo, importou compreender que as habilidades
e as práticas de leitura associadas a ele não se resumem aos dados
numéricos ou produto de abstrações. Fosse pela percepção de es-
tudos em contexto rural europeu, fosse por estudo previamente
5 Trata-se da pesquisa que desenvolvemos com os alunos de graduação da UERJ - A rede de
bibliotecas populares e a formação de leitores, no período de 2005 a 2007 – que pode ser considerada
etapa exploratória deste projeto mais amplo, conforme indica Minayo (1994)

80
Fronteiras Literárias na América Latina

realizado em contexto carioca, já levantáramos algumas hipóteses


que poderiam subsidiar a pesquisa recente. As principais hipóteses
definiam-se como ponto de partida para a investigação, conforme as
seguintes percepções. Os jovens fazem parte de uma cultura e de
uma história que precisam ser mais bem compreendidas. Quando
se afirma que eles não leem ou não se interessam por literatura,
incorre-se no sério risco de se perpetuar reduções, uma vez que
não se estão levando em conta as formas de leitura relacionadas
às suas preferências, o tipo de literatura que circula em seu grupo
social, o nível de escolarização, as condições socioeconômicas, os
locais de acesso à leitura, a qualidade das formas de mediação,
dentre outros aspectos relevantes.
Assim, no âmbito do grupo de pesquisa Infância, Juventude,
Leitura, Escrita e Educação temos realizado algumas investigações,
cujo mapeamento pode ser descrito segundo os núcleos que se
seguem: 1- Modos e funcionamento das bibliotecas populares na
cidade do Rio de Janeiro (2004 -2006); 2- A leitura do Jovem: con-
cepções e práticas (2006-2009); 3- Leitura para meninas e moças
nas coleções da Livraria José Olympio Editora – 1930/1950 Fase
I (2009-2012) e 4- Leitura para meninas e moças nas coleções da
Livraria José Olympio Editora – 1930/1960 Fase 2 (2012-2015)
Para fins deste estudo, no entanto, indicamos algumas refle-
xões derivadas da pesquisa sobre a leitura do jovem. De início,
buscamos examinar o interesse do jovem em relação à leitura
literária em meio a outros objetos de leitura recorrentes. A inves-
tigação direcionou-se ao jovem que vive hoje na cidade do Rio de
Janeiro, por meio da abordagem teórico-metodológica que toma a
leitura como fenômeno histórico e cultural. A percepção da leitura
é pensada, pois, em uma chave em que comparecem rupturas e
continuidades. Práticas de leituras as mais diversas circunscritas
no âmbito de comunidades de leitores têm nos estudos de Roger
Chartier (1996, 2003, 2004) campo fértil para o diálogo. Do mes-
mo modo, a metodologia que privilegia a micro- história, com
ênfase na história dos indivíduos, de grupos de menor prestígio
social, favorece a perspectiva de apreensão das práticas e história
de leitores a partir de experiências locais. As pesquisas de Carlo

81
Fronteiras Literárias na América Latina

Ginzburg (1993) sobre os estudos de caso em contexto italiano,


assim como o método que designou como paradigma indiciário, a
investigação por meio do levantamento de rastros, a descoberta
de pistas, são referências relevantes para o desenvolvimento da
nossa pesquisa.
De outra parte, considerou-se a leitura literária como produ-
ção cultural capaz de promover o acesso aos sistemas simbólicos
produzidos pela humanidade, além de confirmar no homem condi-
ções de sua humanização, como indicam Candido e Lajolo. Afinal,
perguntávamos àquela época, o que conhecíamos sobre a leitura
literária que o jovem realizava na escola, na vida em família e na
vida em sociedade na cidade do Rio de Janeiro? O que lia, como se
relacionava com a leitura literária e como se apropriava da leitura
em cada um desses espaços sociais?
Com a finalidade de melhor investigar essas práticas, sele-
cionamos, inicialmente, dois espaços geográficos que compõem
a cidade do Rio de Janeiro: zona norte e zona sul, partindo da
hipótese da existência de diversidade cultural e socioeconômica
entre essas áreas. Do ponto de vista da seleção da instituição
escolar, foram privilegiadas uma instituição pública e uma insti-
tuição particular, segundo ainda a hipótese da diversidade cultural
e socioeconômica relativa aos alunos que a frequentam. Como
visávamos à leitura literária do jovem, selecionamos alunos de
12 a 18 anos (adolescentes, conforme designação registrada no
Estatuto do Jovem e do Adolescente), cursando a segunda fase do
Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e aqueles que se encontravam
cursando o Ensino Médio/ formação de professores (para além
desta faixa etária possivelmente, visto que no Brasil a defasagem
série/idade costuma ser acentuada, especialmente entre os jovens).
No que diz respeito à metodologia, adotamos a pesquisa qua-
litativa de abordagem etnográfica, por intermédio da observação
de campo, questionário e a metodologia do grupo focal. Essa
metodologia tem sido utilizada com frequência nas pesquisas em
Ciências Humanas por seu caráter menos diretivo. De maneira
diferente da entrevista, propõe-se um debate, de maneira que o

82
Fronteiras Literárias na América Latina

depoente sinta-se mais livre para expor sua opinião. (GATTI,


2005; MINAYO, 1996; PÁDUA, 2004).
É preciso considerar ainda que, conforme historiadores e so-
ciólogos da leitura apontam, as formas de relação com o material
impresso e os modos de se ler têm uma história e uma sociologia
(CHARTIER, 1996; CERTEAU, 1994, BOURDIEU, 1996). Na
França, durante o Antigo Regime, por exemplo, a circulação do
livro era bastante restrita e predominava a leitura intensiva, em
voz alta. Com o surgimento da imprensa, no século XV, esse quadro
tende aos poucos a se alterar, abrindo espaço para a circulação do
material impresso e da leitura silenciosa, concomitantemente com
as antigas formas já conhecidas (CHARTIER, 1996). Não obstante,
não se pode esquecer que, em meio às mudanças, variava bastante
o acesso aos materiais escritos, conforme se considerasse a classe
social, o sexo, a idade ou a região. Em que pese o afastamento
geográfico e temporal, cremos que aquelas categorias de análise
auxiliam-nos a operar no presente com o fenômeno das práticas de
leitura contemporâneas pela possibilidade metodológica em não se
considerar os fenômenos por oposições reduzidas. Em acréscimo,
Michel de Certeau (1994) amplia o quando teórico descrito, ao
refletir sobre as profundas transformações ocorridas no âmbito
das práticas de leitura nas sociedades ocidentais, sublinhando uma
atitude inventiva por parte do leitor que, no presente, se move
com bastante autonomia diante do texto, gesto que se desconhecia
séculos atrás:

[...] a leitura se tornou há três séculos uma obra da vista.


Ela não é mais acompanhada, como antigamente, pelo
ruído de uma articulação vocal nem pelo movimento de
uma mastigação muscular. Ler sem pronunciar em voz alta
ou a meia-voz é uma experiência moderna, desconhecida
durante milênios. Antigamente, o leitor interiorizava o
texto: fazia da própria voz o corpo do outro, era seu ator.
Hoje o texto não impõe mais o seu ritmo ao assunto, não
se manifesta mais pela voz do leitor. Esse recuo, condição
de sua autonomia, é um distanciar-se do texto. É para o
leitor o seu hábeas corpus. (CERTEAU, 1994, p. 271-272).

83
Fronteiras Literárias na América Latina

Do ponto de vista da abordagem sociológica, é interessante


observar o fato de que a importância que se atribuiu à leitura em
geral, à leitura literária ao longo da história consiste em uma
construção social (BOURDIEU, 1996) e pode ser associada à noção
de capital simbólico, cujo status varia conforme o valor de troca
em uma sociedade regulada pelo mercado de bens de consumo e
de bens simbólicos.
Ilustrações interessantes a respeito desse tipo de construção
podem ser identificadas nas páginas do catálogo da Livraria José
Olympio Editora, de 1949. (SILVA, 2004a, p.29-34). No âmbito
da pesquisa recente, temos examinado fontes documentais tais
como romances destinados a meninas e moças e catálogos. Nas
195 páginas do catálogo, encontramos máximas sobre os benefí-
cios da leitura, advertências sobre o nível moral e instrutivo dos
romances e indicações bastante sugestivas da sabedoria contida
nos livros. Observe-se:

“Uma casa sem livros é como um corpo sem alma”. (Cícero)


“Um país se faz com homens e livros”. (Monteiro Lobato)
“A leitura agradável é mais útil à saúde do que o exercício
físico”. (Kant)

OS LIVROS E A HUMANIDADE

Os livros são para a humanidade o que a memória é para o


indivíduo. Contém a história da raça, suas descobertas, a sabedo-
ria e a experiência acumuladas secularmente; são o espelho das
maravilhas e das belezas da natureza, amparam-nos na desgraça;
consolam-nos na tristeza e nos sofrimentos; fazem de nossas horas
de tédio horas de delícia; enchem nossos espíritos de idéias, de
pensamentos sábios e benfazejos; fazem-nos sair de nós mesmos
e de nossas misérias. (Catálogo da Livraria José Olympio Editora,
1949, p. 78).
Alceu Amoroso Lima comparece nessa função, conferindo
legitimidade à Coleção Menina e Moça, primeiro material ficcional

84
Fronteiras Literárias na América Latina

e educativo pensado pela Livraria José Olympio Editora para a


“difícil fase que vai dos 9 aos 16 anos”:

Os romances da Juventude Feminina


Coleção Menina e Moça
As mais lindas histórias para a mais difícil quadra da vida
feminina. Pequeninos romances de 200 páginas por todos
os títulos dignos de estar em todas as mãos: 1- por seu
fundo moral e instrutivo, 2- seu excelente acabamento
gráfico, 3- suas qualidades literárias, 4- suas traduções
vivas e corretas. O grande escritor e líder católico Tristão
de Athayde assim se manifestou sobre esses deliciosos
romances: “Dei-os a ler à minha filha de 13 anos. Ficou
encantada. Creio que é a melhor prova de que a iniciativa
da Livraria José Olympio Editora, com mais essa coleção,
é altamente louvável. São raros os bons livros para moças,
em português. Uma coleção como essa, em que a qualidade
literária não perturba o nível moral e vice-versa, é um
grande serviço prestado à mocidade feminina”. (Catálogo
da Livraria José Olympio Editora, 1946, p.41).

As ilustrações citadas acima permitem-nos identificar alguns


aspectos sobre a leitura como construção social. Fica evidente,
por exemplo, que a representação da leitura como um bem in-
substituível pode ser legitimada pelas malhas do sistema editorial,
como atestam os discursos veiculados pelo influente editor José
Olympio nos anos 1940.6 Contudo, no âmbito da pesquisa sobre
o jovem carioca, convinha indagar: esses discursos sobre a leitura
ainda permanecem? Como eles se direcionam ao jovem que vive
na cidade do Rio de Janeiro contemporaneamente? De que modo
o jovem se apropria dos discursos sobre a leitura, sobre a leitura
literária, em circulação? Tais indagações indicam-nos, sobretudo,
que é preciso conhecer melhor as concepções sobre a leitura do
jovem que circulam hoje, assim como as diferentes instâncias le-
gitimadoras de suas práticas, como a escola, a família, e os demais
espaços de produção cultural.
6 Conferir em SILVA, 2004 b. Ao longo da pesquisa, pudemos acompanhar o grande prestígio
gozado pelo escritor José Olympio na consolidação do sistema editorial brasileiro nos anos 1930
e 40, em particular, acolhendo e legitimando o grupo de escritores nordestinos que migrou para
o Rio de Janeiro – Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado.

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Fronteiras Literárias na América Latina

Vejamos alguns aspectos desses espaços educativos e algumas


possíveis respostas para essas perguntas.

Escola pública de Formação de professor


(Ensino Médio)7

A escola possui salas amplas e ventiladas, espaços conside-


rados de incentivo à pesquisa e à leitura, como o laboratório de
ciências e informática, além da biblioteca. No entanto, parece que
esses espaços não são utilizados. Quando utilizados, são desloca-
dos de suas funções oficiais: utilizados como depósitos e, outras
vezes, estão em reforma. Segue-se um relato de um das alunas
normalistas entrevistadas:

Poxa aqui tem laboratório de ciências, laboratório de informá-


tica, biblioteca e eu nunca fui em nenhum desses três lugares.
Abiblioteca está fechada desde que cheguei nesta escola. Dizem
que a funcionária se aposentou e não conseguiram uma subs-
tituta. (vermelho)

A pesquisa nacional do PNBE (2008), cujo objetivo consistia


em examinar a recepção dos livros ficcionais comprados pelo go-
verno e distribuídos para as escolas brasileiras, corrobora a visão
da normalista, indicando casos semelhantes a este:

Uma característica tristemente representativa desses va-


riados espaços e desenhos de ambientes de leitura esteve
simbolizada pela chave — a síntese do inacessível, do
inatingível —, que vedava inúmeros espaços e acessos:
de salas de leitura, de bibliotecas, de armários, todos eles
fechados, com portas escondendo o enigma atrás de mu-
ralhas intransponíveis ao acesso e fruição dos usuários —
estudantes, professores, comunidade. (PNBE, 2008, p.86).

7 Grupo focal aplicado em uma escola de Formação de Professores, situada na zona sul da cidade
do Rio de Janeiro, no primeiro semestre de 2008. Contou com a participação de cinco jovens
(três jovens moças e dois jovens rapazes, cursando o 1º e 2º ano do curso médio). Participaram
também os bolsistas de IC, que fazem parte da pesquisa por mim coordenada A Leitura do Jovem:
Concepções e Práticas e em fase de finalização: Rodrigo Moreno, Gisele Isaias, Ana Carolina Veloso,
Déborah Areias. Conferir em SILVA, 2013.

86
Fronteiras Literárias na América Latina

Ao falarem de suas práticas de leitura, os alunos raramente


lembraram-se da influência dos professores. Os professores, prin-
cipalmente os de português, não eram vistos como incentivadores
de leitura. O discurso recorrente marcava-os como proprietários
do saber. Eles forneciam suportes didáticos e forçavam leituras
difíceis, conforme o relato de grande parte dos alunos. Todavia,
por curioso que pareça, um professor foi citado positivamente, o
professor de Biologia:

O professor de biologia não tem comparação. Na verdade,


ele é bem eclético nas suas leituras: romances, revistas
científicas, jornais. Se a gente tiver dúvida, a gente vai
direto pra ele! Às vezes ele não tem resposta, ninguém
tem resposta pra tudo! Assim que ele pode, dá dica de um
livro, tira a nossa dúvida. É o professor que mais influencia
a gente na leitura. Cada história linda! Ele sempre está
dando dica de livro. Sempre, sempre! (Vermelho)

Um dos alunos nos contou uma proposta de aproximação com


a obra literária por parte da professora de literatura: “Café com
autores”. Seria uma maneira mais informal e agradável de conhe-
cer escritores canônicos. Não obstante a criatividade da proposta,
a avaliação por parte dos alunos expressa ironia e desaprovação:

As meninas fizeram um trabalho [...] (Verde)


Elas não fizeram trabalho. Elas botaram um café em cima da
mesa, com xícara, e falaram: “Vamos tomar um cafezinho com
Machado de Assis?”. Isso é contato com ele? (Lilás)
Espalharam um monte de cartaz na aula [...] (Rosa)
Ah, que isso? Passaram informação sobre Machado de Assis!
[tom irônico] (Verde)
Qual? Fala alguma coisa sobre Machado de Assis?!? Duvido.
(Lilás)
Você sabe muito sobre o café! (risos de todos) (Rosa)

Em resumo, os resultados da pesquisa realizada na escola


de formação professores indicaram: ausência de espaço adequado
para a formação de leitores e o não reconhecimento de professores
em geral como mediadores de leitura. Quanto à leitura literária,

87
Fronteiras Literárias na América Latina

enfatizou-se a importância das sugestões e interessantes narra-


tivas de um dos professores, o de Biologia. No que diz respeito
à atividade recreativa motivada pela introdução à leitura de um
autor canônico, os alunos consideram-na pouco relevante, o que
nos levou a cogitar a importância da formulação de conceitos no
âmbito do ensino de literatura e conhecimento mais amplo sobre
o autor canônico e sua obra.

Escola particular segundo segmento do Ensino


Fundamental (5º ao 9º ano)8

A escola particular selecionada para a pesquisa contava à


época com biblioteca em funcionamento, com acervo organizado
composto por jornais, revistas, literatura e obras de referência.
Outro aspecto importante diz respeito à formação da professora
bibliotecária. Formada em Letras com curso de especialização na
área da educação. Os alunos visitavam a biblioteca com frequência
e uma vez por semana para atividade específica de leitura. Em
um dos grupos focais realizados, ocorreu o seguinte diálogo entre
alunos e o moderador:

Menina 2: Eu gosto muito de comprar livros que eu já vi


o filme. Vi que quando o filme é bom o livro também é bom.
Porque o filme só existe por causa do livro. Então, eu comprei
Crepúsculo, aí eu adorei, aí, eu li Lua Nova, Eclipse, e tô
esperando lançar o Amanhecer. Vai lançar dia 27. Mas, eu
também gosto de livros mais finos, quando eles não interessam
tanto, porque eles são rápidos de acabar, sabe. E aí, às vezes, a
gente até gosta da história no final.

Menino 1: Às vezes, irrita ficar lendo durante quatro meses


a mesma história.

Moderador: E, então, o que é que vocês usam pra escolher


um livro quando vão à livraria. Como é que vocês escolhem
um livro?

8 O segundo grupo focal foi realizado no espaço da biblioteca da escola. Além dos pesquisadores
já mencionados, tomaram parte três meninas e dois meninos cursando a 8ª e 9ª séries. O grupo
focal durou cerca de 1 hora. Conferir em SILVA, 2013.

88
Fronteiras Literárias na América Latina

Menina 2: É... na verdade, eu não posso falar que não é verdade


que a gente sempre olha para o título. Se for um título chato,
tipo os livros que a minha mãe lê. Tipo, Quando Nietzsche
chorou, Anatomia do corpo humano um livro que tem umas
três mil páginas. Eu enjoo.

Risos.

Destaca-se o interesse pelos romances contemporâneos de


aventuras e a relação entre diferentes mídias: livro e adaptação
das obras para o cinema. As avaliações inclinavam-se, sobretudo,
para a comparação entre os modos de narrar segundo os dife-
rentes meios. Observou-se motivação especial para os romances
de aventura organizados em séries, de modo a se acompanhar a
sequência das histórias.
Outro elemento importante diz respeito à autonomia de es-
colha desses leitores. Em que pese a referência à família leitora,
os alunos consideravam o repertório de leitura segundo suas
próprias escolhas.
Em nenhum momento, houve a referência à literatura canôni-
ca, visto que os alunos entrevistados procuravam conduzir o debate
para os temas de seu interesse, como se lê no exemplo abaixo

Moderador: E você se considera um leitor? (se dirigindo


ao menino 2)

Menino 2: Mais ou menos. Depende. Bom, eu não gosto de


ler muito; eu leio um livro e se alguém me der um livro eu
começo a ler e leio. E eu não ligo muito. Mas se o livro não me
acrescenta em nada eu não leio. Depende muito do conteúdo.
Se ele tiver alguma coisa que me acrescente, aí tudo bem. Mas
eu gosto de ler por prazer também, por exemplo, uma série de
livros. Eu li esse livro aqui Sortilégio e a Dama da Magia
e ainda tem um terceiro.

Menina 3: O que é sortilégio?

Menino 2: É um livro.

89
Fronteiras Literárias na América Latina

Menina 3: Não. Mas o que significa?

Menino 2: Ah, fala aí. Eu quero falar da história. Aí, tipo,


o livro é pequenininho e acho que o terceiro também. E eu não
quero terminar de ler hoje. Porque eu não gosto que uma série
acabe, e se eu tivesse mais tempo eu ficaria um dia pra ler uma
série inteira de três livros.

Em síntese, identificou-se espaço propício à formação de


leitores e a presença de mediadora com formação adequada para
exercer a função. Em relação ao acervo, pareceu bem diversifica-
do. Todavia, prevaleceu a referência aos romances de aventuras,
organizados em série. Do mesmo modo, literatura e adaptação
de obras para o cinema guardaram significativa proximidade na
apreciação dos jovens leitores entrevistados.
De tal modo, dando continuidade à investigação na área da
leitura, com especial ênfase na leitura literária, pudemos constatar
algumas evidências sobre as práticas que envolvem a leitura tanto
quanto apontar possibilidades de formação por meio da literatura
e de outras mídias. Ademais, é necessário sublinhar que a formula-
ção de políticas públicas na área do livro e da leitura ainda requer
pesquisas mais amplas nessas e em outras esferas educativas.
Por último, convém lembrar que os gestos e as maneiras de
se ler não se deixam captar com facilidade, trata-se de material
literário ou de tantos outros que circulam na vida em sociedade.
Talvez, exatamente nos intervalos dessas práticas ainda a serem
recuperadas, possamos entender melhor o leitor, a leitura, a leitura
literária e os modos singulares de apropriação. Elementos que
apontem para contribuições específicas para a área de conheci-
mento, tais como o cuidado e a valorização dos acervos literários
e a relevância das formas de mediação entre o texto e o leitor.
Perspectiva que constitui um grande estímulo para darmos con-
tinuidade à investigação na área da leitura, na compreensão de
formulações teóricas e práticas que envolvem a leitura, a leitura
literária.

90
Fronteiras Literárias na América Latina

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92
Fronteiras Literárias na América Latina

IMAGENS SOCIAIS DE LEITURA E ENSINO DE


LITERATURA NO NÍVEL MÉDIO
Mirian Hisae Yaegashi Zappone1

RESUMO

Este texto apresenta algumas imagens que circulam em


mídias sociais e impressas e, a partir das concepções de leitura
que delas se pode inferir, realiza-se um contraponto com a si-
tuação do ensino de literatura, sobretudo com relação à leitura
literária pressuposta como objetivo de ensino neste nível de
escolaridade. As imagens analisadas são entendidas como prá-
ticas discursivas que circulam socialmente e que refletem um
imaginário relativo a leitores e à leitura. A discussão articula
estudos sobre a gênese do ensino secundário no Brasil, pro-
gramas de exames vestibulares ao lado de uma argumentação
sobre leitura literária. A análise efetuada revela que as imagens
sobre a leitura de textos ficcionais presentes nos discursos
sociais pouco se alinham às perspectivas de leitura propostas
para o ensino de literatura no nível médio, uma vez que aquelas
relacionam a leitura à evasão e prazer ao passo que, na escola,
a leitura de textos literários é concebida a partir de objetivos
pragmáticos norteados pelo exame vestibular.

Palavras-chave: Imagens de leitura; Literatura; Ensino Médio.

1 Professora associada do Departamento de Teorias linguísticas e literárias e do Programa de


Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. Contato: mirianzappone@
gmail.com

93
Fronteiras Literárias na América Latina

Abstract

This text presents some images that circulating in social


and printed media. Considering the conceptions of reading that
can be inferred from these images, the text does a counterpoint
with the teaching of literature, especially in relation to literary
reading, that is assumed as an objective of teaching at this level
of education. The images analyzed are understood as discursive
practices that circulate socially and reflect on an imaginary related
to readers and to reading. The discussion articulates studies about
the genesis of secondary education in Brazil, the entrance exams
programs besides an argumentation about literary reading. The
analysis reveals that the images about the reading of fictional
texts, present in social discourses, don’t align themselves with the
perspectives of reading proposed for the teaching of literature
at secondary education, because the images relate the reading
as escape and pleasure. In contradiction, at school, the reading
of literary texts is conceived to pragmatic goals guided by the
entrance exams.

Keywords: Images of reading; Literature; Secondary Education.

Para se pensar na relevância das imagens de leitura no contex-


to em que as abordamos, a escola, uma pergunta se faz relevante:
por que imagens de leitura são importantes na discussão sobre
literatura ou sobre seu ensino? Para responder a essa questão,
valho-me das considerações das professoras Marisa Lajolo e Regi-
na Zilbeman (1999) que, na introdução do livro A leitura rarefeita,
propõem que a literatura seja compreendida enquanto prática
social de uso da escrita que, em seus vínculos com a sociedade,
pressupõe relações que vão além dos procedimentos de ordem
estritamente textuais, abrangendo várias instâncias a partir das
quais se constrói o literário:

94
Fronteiras Literárias na América Latina

Na tentativa de superar a estreiteza de tais categorias,


cabe fazer um viés, que veja a literatura enquanto prática
social específica de escrita e leitura. Prática que, se supõe
a existência de um texto que recebe o atributo de lite-
rário, supõe, aquém e além dele, uma rede cujas malhas,
menos ou mais cerradas, proporcionam intercâmbio entre
diferentes esferas, instâncias, que integram e delimitam
o campo onde um texto se literariza ou desliterariza.
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 9)

As autoras abordam a partir desta premissa, cinco instân-


cias constitutivas desta “rede de malhas” que podemos entender
como uma expansão ou detalhamento do que professor Antonio
Candido (1988) chamou de sistema literário e que complementa-
riam os vértices do triângulo proposto por nosso crítico maior,
formado por três elementos: autores, obras e públicos. Ora, as
instâncias das quais falam Lajolo e Zilberman abarcariam: 1) a
tecnologia de produção e distribuição de objetos de leitura, já que
a literatura só pôde se constituir enquanto prática social a partir
da descoberta da imprensa, fato que ampliou sua circulação e
seus modos de produção; 2) o desenvolvimento de legislação que
regule o funcionamento das várias etapas do processo de produ-
ção, comercialização e circulação do impresso; 3) a formulação
de políticas educacionais que promovam o letramento necessário
para o consumo dos textos literários e sua valorização enquanto
bem cultural; 4) o desenvolvimento de práticas discursivas (nem
sempre unívocas, é preciso assinalar) que possam legitimar o valor
da literatura (e, por consequência, da leitura), por meio da difusão
de suas marcas, de sua historicização ou desistoricização e que,
enfim, possam torná-la foco de discursos que a institucionalizem
socialmente.
Dado este quadro no qual a literatura é compreendida enquan-
to prática social de leitura e de escrita, interessa-nos, particular-
mente, para a discussão que pretendemos realizar, a questão das
práticas discursivas existentes sobre ela, nas quais, propomos, as
imagens de leitura – tema deste texto – estariam contempladas.
Ou seja, se a literatura se constrói enquanto tal a partir de um

95
Fronteiras Literárias na América Latina

conjunto de instâncias, entre elas, as práticas discursivas efetuadas


a seu respeito, as representações de leitura e de leitura da literatura
presentes em imagens que circulam na mídia podem nos iluminar
sobre o imaginário social relativo à literatura. Tendo em vista
essas considerações, abordaremos neste texto algumas imagens
presentes nas mídias sociais que, a nosso ver, tendem a representar
a leitura da literatura, com menor ou maior intensidade.
A imagem, a seguir, retirada de uma página do Facebook,
intitulada “Depósito de tirinhas”, com aproximadamente 1,2
milhão de compartilhamentos, portanto, uma importante mídia
social da atualidade, nos apresenta uma imagem bastante recor-
rente: a leitura é nela representada como uma prática que levaria
o indivíduo das Trevas para a Luz, metaforizadas pela imagem
da lua (noite) e do sol (dia); uma prática que tornaria o leitor um
indivíduo maior em vários sentidos (intelectualmente, cognitiva-
mente, culturalmente, socialmente, economicamente e todas as
outras metáforas possíveis de serem construídas pela passagem
do homem pequeno para o grande):

Fonte: Facebook -Perfil “Depósito de tirinhas”. Disponível em: <http://www.face-


book.com/DepositoDeTirinhas?fref=ts>. Acesso em: 02 abr.2013.

96
Fronteiras Literárias na América Latina

O objeto que possibilita esta mudança ou transformação é


o livro, no qual duas portas de passagem são apresentadas (uma
pequena e outra grande). Esta imagem corrobora aquilo que Graff
(1979) e (Kleiman, 2004) denominaram como “mito do letramen-
to”, ou seja, uma ideologia que confere ao letramento (às práticas
sociais de leitura e escrita) uma enorme gama de efeitos positivos
e desejáveis tanto no âmbito da cognição, levando os indivíduos
a formas de pensamento mais desenvolvidas, como no âmbito
social, levando a mudanças econômicas e à mobilidade social. A
ideia de mobilidade econômica está presente na imagem por meio
das figuras de prédios ou de uma cidade, alocados ao fundo dos
dois personagens (uma pequena e outra grande), acompanhando
o mesmo movimento Lua, sol/homem pequeno, homem grande).
A mesma representação de leitura é também observada na
imagem do Blog Estadão, do jornal O Estado de S. Paulo: quanto
mais leituras, maior a ascensão, que pode ser interpretada nos
mesmos termos da imagem anterior: ascensão social, cultural,
econômica, cognitiva e outras patrocinadas sempre pela prática
da leitura. Nesta imagem, a quantidade de livros lidos compõe,
metaforicamente, os degraus ou etapas percorridos no processo
de ascensão. Este, só tornado possível graças à leitura praticada
pelo homem que atentamente segura um livro nas mãos:

Fonte: Blog Estadão.com.br <http://blogs.estadao.com.br/daniel-piza/melhores-do-


ano/>. Acesso em: 14 dez. 2008

97
Fronteiras Literárias na América Latina

No tocante à leitura de textos literários, compreendidos aqui


a partir de sua natureza ficcional e estética, as imagens que le-
vantamos na mídia parecem representar tal leitura a partir de sua
capacidade de levar os indivíduos ao prazer por meio da viagem
patrocinada pelo ficcional. Assim, ler literatura seria o exercício
da ludicidade, da brincadeira, do prazer veiculado por meio da
fantasia. É o que se pode notar nas duas imagens que analisamos
a seguir:

Fonte: Facebook - Perfil “Eu amo ler”. Disponível em: <http://www.facebook.com/


pages/Eu-amo-Ler/389742681051228?fref=ts>. Acesso em: 05 abr.2013.

Nesta imagem, retirada do perfil “Eu amo ler”, também do


Facebook, e que registra 250 mil acessos, a leitura parece sugerir
que o livro em tela se refira ao texto de natureza ficcional, uma vez
que o livro aparece numa atmosfera de diafaneidade: ele é um portal
que leva ao mundo de sonhos. Tal leitura é corroborada pela figura
da leitora mirim que chega ao livro por meio de uma escadaria
que, por sua vez, a leva a um portal (enquadrado na página de um
livro que está no céu). Na página em que a leitora está prestes a
entrar, há uma floresta diáfana que conduz, muito provavelmente,
a um universo desconhecido no qual predominam os sonhos, as

98
Fronteiras Literárias na América Latina

fantasias, a aventura, os personagens e ou seres desconhecidos. É


possível, portanto, construirmos uma representação da leitura de
ficção segundo a qual o(a) leitor(a) é levado(a) a outros mundos e
à evasão. Deve-se notar que a imagem está construída no espaço
celeste e vale lembrar, a este propósito, que o céu é, como lembram
Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 227), em seu Dicionário de Sím-
bolos, “uma manifestação direta da transcendência, do poder, da
perenidade, da sacralidade: aquilo que nenhum vivente da terra é
capaz de alcançar.” Assim, a leitura de ficção levaria, também, ao
transcendente, àquilo que na vida real não se consegue alcançar,
às vivências, ainda que ficcionais, de outras realidades e situações
e, talvez, a um mundo mais elevado, mais prazeroso do que aquele
que nos proporciona a vivência cotidiana.
Representação semelhante já era encontrada em outra ima-
gem, retirada do suplemento literário de O Globo, veiculado em
18/05/2001, por ocasião da divulgação da Bienal do Livro do Rio
de Janeiro:

Fonte: Suplemento de O Globo, 18/05/2001.

99
Fronteiras Literárias na América Latina

Também situada nos limites do céu, esta imagem de leitura


deixa ainda mais evidente a relação entre leitura e fantasia, uma
vez que a personagem, agora um leitor mirim, aparece sentado
em um livro aberto metaforizado enquanto objeto voador que
o conduz, possivelmente, a uma viagem em torno do globo ter-
restre (que aparece logo abaixo em sua amplitude de globo, nas
coordenadas geográficas precisas que permitem a visualização
do Cristo redentor e da Morro da Urca e do Pão de Açúcar,
respectivamente em baixo, à esquerda e à direita ). A expressão
de contentamento e a felicidade somada aos braços abertos do
garoto conferem à personagem a ideia de satisfação, de evasão
proporcionada necessariamente pelas páginas dos livros de
ficção e, por extensão, da literatura. O texto verbal presente na
imagem ratifica este conjunto de proposições: trata-se de uma
“farra literária”, ou seja, da folia, da brincadeira, da diversão
proporcionada pela aventura e pela imaginação presentes na
literatura.
Outra imagem contemporânea repete às mesmas representa-
ções, agora presentes no Facebook, no perfil intitulado “Profissão
professor”. Nela, os livros são apresentados como pássaros que
permitem ao leitor as asas necessárias para a aventura e para a
viagem que a personagem – outra leitora mirim – faz, também, no
céu, sobre um objeto voador construído com o Globo terrestre em
relação ao qual ela ocupa uma posição de exterioridade, permitindo
que se leia que a leitura de textos ficcionais permite o acesso a
“outros mundos” que não o terrestre, o real.

100
Fronteiras Literárias na América Latina

Fonte: Facebook - Perfil “Profissão professor”. Disponível em: <https://www.


facebook.com/pages/Profiss%C3%A3o-Professor/329222423788535>. Acesso em: 01
abr.2013.

Frequentemente associada à leitura de textos ficcionais, essa


imagem de leitura da literatura enquanto viagem ao mundo da
fantasia e da evasão é bastante recorrente e há tempos permeia o
imaginário social em nosso país, sobretudo quando pensamos a
leitura de adolescentes, como é o caso das personagens represen-
tadas nas imagens de leitura que acabamos de observar. O Catá-
logo de livros juvenis da Editora Ática (2000)2 apresentava vários
depoimentos de autores nos quais se ilustra essa forma de ver a
leitura de textos ficcionais. Chamo atenção para o depoimento da
escritora Fernanda Lopes de Almeida, pois ele se baseia na mesma
representação de leitura levantada nas imagens anteriores:
2 Ao inserir a imagem de leitura veiculada no Catálogo da Editora Ática do ano 2000, cha-
mamos atenção para o fato de esta imagem ter sido veiculada há mais de 12 anos, indicando
sua permanência.

101
Fronteiras Literárias na América Latina

A leitura, quando feita com gosto e por vontade própria,


é, para a criança, uma aventura que a leva a descobrir
mundos novos, uma terapia que a ajuda a resolver ques-
tionamentos íntimos, uma companhia garantida para
quando está sozinha e, acima de tudo, um enorme prazer.
Ajudá-la a conquistar essa fonte de prazer, é a nossa tarefa.
(ALMEIDA, 2000, p.80, grifamos)

Essas imagens de leitura são apresentadas na mídia de


modo bastante homogêneo, repetindo representações da leitura,
tornando-a quase que uma prática uniforme, independentemen-
te dos contextos sociais onde ela possa ser praticada e como se
todos os indivíduos a praticassem do mesmo modo, como se a
leitura não implicasse em diferentes apropriações por parte de
leitores distintos. Enfim, como se fosse uma prática cultural sem-
pre idêntica. Contra essa crença, os estudos de Chartier (1999,
2004), bem como os Novos Estudos de Letramento (KLEIMAN,
2004; STREET, 1999) parecem formular tese bem oposta: a
leitura não se constitui como uma prática social invariável. Os
letramentos, como postulam Barton e Hamilton (2000), Kleiman
(2004) e outros, estão associados aos diferentes domínios da vida,
sendo, portanto, histórica e socialmente determinados. Assim, a
leitura, como prática social, não pode ser pensada isoladamente
dos contextos onde é praticada, dos indivíduos que a utilizam e
dos objetivos com que é realizada. Ao mesmo tempo, tais auto-
res asseveram que as práticas de letramento (nas quais se inclui
a leitura e a leitura de textos literários) são padronizadas pelas
instituições sociais e pelas relações de poder, tornando algumas
práticas mais dominantes do que outras e alguns objetos de leitura
mais valorizados do que outros. É por esta razão que as leituras
efetuadas na escola, instituição fundamental em nossa sociedade,
se tornam modelos da leitura assim como os textos nela lidos se
tornam mais valorizados.
Pensando nesta perspectiva, a de que a leitura é praticada em
lugares e espaços sociais distintos a partir dos objetivos que se
tem para ela, e que os padrões de letramento a partir dos quais a
leitura é feita dependem das relações de poder e das instituições

102
Fronteiras Literárias na América Latina

onde é praticada. Passamos a discutir algumas características da


leitura de textos literários realizada num espaço específico, a escola
brasileira de nível médio.
Muito embora haja as Diretrizes Curriculares para o Ensino
Médio, nas quais são apresentadas algumas orientações para o
ensino de literatura, e os Parâmetros Curriculares Nacionais - EM,
perspectiva mais genérica sobre o ensino da linguagem na escola, o
que observamos,– por meio do contato frequente com professores
de Ensino Médio e das frequentes idas às escolas onde trabalha-
mos Estágio Supervisionado, além do projeto PIBID-Letras de
minha universidade que trabalha especificamente com escolas de
nível médio, – é que esses documentos são lidos de modo muito
rarefeito: os professores sabem de sua existência, mas não conhe-
cem de forma aprofundada seus conteúdos, muito embora eles
apareçam sumarizados e recortados nas Propostas Pedagógicas
das escolas. Considerando esse fato, nossa hipótese é a de que,
embora haja esses documentos normativos sobre o ensino de
literatura, o elemento efetivamente norteador dos programas de
Ensino Médio, não só em relação à literatura, mas também em
outras áreas, continua sendo o vestibular.
Essa hipótese ancora-se em base histórica, pois se anali-
sarmos a gênese da escola secundária no Brasil, veremos que
ela nasce profundamente ligada a uma visão propedêutica, vi-
sando ao ingresso ao ensino superior. Neste sentido, a tese de
Márcia Razzini (2000) – O espelho da nação: a Antologia nacional
e ensino de português e de literatura (1838-1971) apresenta dados
significativos sobre como se desenvolveu o ensino de literatura
e de língua materna em nosso país no período referido. Além de
mostrar que a literatura nacional substituiu vagarosamente as
disciplinas clássicas (latim, retórica e poética), Razzini (2000)
também evidencia que o ensino secundário não foi planejado
enquanto uma etapa da escolarização em nosso país. Ele surge
atrelado às demandas de acesso ao ensino superior, como forma
de os candidatos atestarem conhecimentos mínimos exigidos
pelas poucas faculdades que havia no Brasil no final do século
XIX. Esse conhecimento era certificado através dos chamados

103
Fronteiras Literárias na América Latina

“Exames preparatórios” que garantiam o acesso ao Ensino Su-


perior, mesmo que os alunos não tivessem frequentado a escola
secundária. A obrigatoriedade deste nível de ensino só foi insti-
tuída tardiamente com a Reforma Francisco Campos, em 1931,
que deu maior organicidade para o ensino secundário, além de
torná-lo uma exigência para o ingresso ao ensino superior.
Estes fatos de natureza histórica geraram algumas consequ-
ências para o Ensino Médio brasileiro: 1) seu caráter propedêutico
e 2) a subordinação dos currículos das escolas aos programas
exigidos pelas faculdades e universidades, consequências que,
cremos, podem ser observadas até os dias de hoje, muito embora
as diretrizes governamentais procurem apagar a existência dos
vestibulares como o grande vetor dos conteúdos trabalhados no
Ensino Médio.
Considerando estes dados, proponho que pensemos no
ensino de literatura no nível médio a partir dos programas pro-
postos pelas universidades, já que parecem ser eles que, menos
ou mais enfaticamente, situam-se no horizonte das escolas como
objetos de ensino e aprendizagem. Como seria difícil esgotar a
pesquisa sobre esses programas foram selecionadas para o de-
senvolvimento deste texto algumas universidades, considerando
sua importância no cenário nacional e algumas de caráter mais
regional, além das matrizes de referência do ENEM – Exame
Nacional do Ensino Médio3, inclusive porque, cremos, não ha-
veria grandes variações em tais programas, exceto em relação
às obras indicadas para leitura.
Neste levantamento não exaustivo, mas representativo, ob-
servamos que, de modo menos ou mais enfático, as universidades
requerem dos alunos, em relação ao programa de literatura, que
tenham conhecimento das obras literárias da tradição portuguesa
e/ou brasileira (em alguns casos também a africana), sabendo lhes
reconhecer as marcas histórico-estéticas, além das convenções
particulares que regem a construção do texto literário, a saber,
3 Ao todo, foram consultadas 15 universidades, a saber: UEL, UEM, UFMG, Unesp, Unicamp,
Unioeste, Unicentro, PUC-RS, UFG, UEPG, Udesc, UFPR, UFSC, UFPR-Litoral, USP, além
das indicações do MEC para o ENEM.

104
Fronteiras Literárias na América Latina

os diferentes modos de representação ou as diferentes técnicas


de construção literária, segundo a própria teoria literária, como
se pode notar nos destaques feitos em algumas dos programas
ou matrizes apresentadas a seguir. Elas são extensas, mas muito
exemplificativas das ideias aqui formuladas:

Matriz de Referência de Linguagens, Códigos e suas


Tecnologias
Competência de área 5 - Analisar, interpretar e aplicar
recursos expressivos das linguagens, relacionando textos
com seus contextos, mediante a natureza, função, orga-
nização, estrutura das manifestações, de acordo com as
condições de produção e recepção.
H15 - Estabelecer relações entre o texto literário e
o momento de sua produção, situando aspectos do
contexto histórico, social e político.
H16 - Relacionar informações sobre concepções artísti-
cas e procedimentos de construção do texto literário.
H17 - Reconhecer a presença de valores sociais e huma-
nos atualizáveis e permanentes no patrimônio literário
nacional. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Matrizes
curriculares para o ENEM – INEP, 2012, grifamos)

Além das obras literárias indicadas para a leitura, o candi-


dato deverá conhecer algumas noções fundamentais, como:
- o que é e quais são os gêneros literários;
- reconhecer figuras de linguagem (especialmente metá-
fora), simbologia, tensão, criação de expectativa e ironia;
- na narrativa: elementos como tempo, espaço, persona-
gem, narrador, foco narrativo, intriga, clímax, desfecho,
caracterização;
- na poesia: versificação, metrificação, rima, ritmo, sono-
ridade;
-  periodização literária: principais autores e caracte-
rísticas de cada escola e/ou período na Literatura
Brasileira;
-  Literatura como manifestação da Cultura Brasileira.”
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, CVU,
2013, grifamos)

105
Fronteiras Literárias na América Latina

II- CONHECIMENTOS DE LITERATURA


1. Noções de Teoria da Literatura:
1.1. A literatura como arte da palavra e a obra literária
como objeto estético e semiológico.
1.2. Os gêneros literários: poesia, narrativa e teatro.
1.2.1. Elementos da narrativa e da poesia:
• personagem, ponto de vista, espaço, tempo, enredo;
• aspectos sonoros e visuais;
• processos metafóricos e metonímicos.
1.2.2. A intertextualidade e a metalinguagem na compo-
sição do texto literário:
• paródia, paráfrase, citação e outras formas de apropria-
ção textual;
• processos metalinguísticos no texto literário.
(UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS.
COPEVE, 2013, grifamos)

LITERATURA
Orientações gerais
......................................................................................................
b) Conhecimentos
• A formação da Literatura Brasileira: da condição colonial
à contemporaneidade.
• Tendências e características dos movimentos literá-
rios na produção brasileira.
• Os gêneros literários lírico, dramático e épico e a re-
lação intergêneros.
• Aspectos do romance, do conto, do poema e do texto
teatral.
• Recursos expressivos e estilísticos de constituição
de sentido dos textos literários.
c) Obras literárias indicadas” (UNIVERSIDADE FE-
DERAL DE GOIÁS, Centro de Seleção da UFG, 2013,
grifamos)

Como é possível notar, há uma ênfase no tratamento do texto


literário, enquanto arte, que não pode prescindir de uma leitura
especializada na qual se conjuguem aspectos relacionados aos
conhecimentos dos gêneros literários e às modalidades expres-
sivas da literatura, além do conhecimento dos vários regimes de
escrita que constituem os diferentes estilos de época. Se assim

106
Fronteiras Literárias na América Latina

consideramos, a leitura exigida nos exames vestibulares pode ser


caracterizada como uma “leitura literária”, como a tem chamado
o professor João Adolfo Hansen (2005). O autor afirma que esta
leitura se caracteriza pela necessidade de conhecimento dos códi-
gos que regem a escrita literária (convenções dos gêneros e dos
estilos de época), conhecimento que permitiria ao leitor refazer as
“convenções simbólicas” que determinam o modo de fingimento
do texto ou seu artifício de ficcionalização:

Para que uma leitura se especifique como leitura literária,


é consensual que o leitor deva ser capaz de ocupar a
posição semiótica do destinatário do texto, refazendo
os processos autorais de invenção que produzem o efeito
de fingimento. Idealmente, o leitor deve coincidir com o
destinatário [intratextual] para receber a informação
de modo adequado. Essa coincidência é prescrita pelos
modelos dos gêneros e pelos estilos, que funcionam como
reguladores sociais da recepção, compondo destinatários
específicos dotados de competências diversificadas; mas
a coincidência é apenas teórica, quando observamos o
intervalo temporal e semântico existente entre desti-
natário e leitor. Assim, a leitura literária é uma poética
parcial ou uma produção assimétrica de sentido. (HASEN,
2005, p.20)

A leitura literária é uma experiência do imaginário figurado


nos textos feita em liberdade condicional. Para fazê-la, o leitor
deve refazer – e insisto no “deve” – as convenções simbólicas do
texto, entendendo-as como procedimentos técnicos de um ato de
fingir. (Idem, p.26)
A fala de Hansen é bastante enfática (uso do verbo “dever” na
acepção de “ter de”, “precisar de”), ao reforçar o fato de que é uma
necessidade ou condição para a leitura literária que o leitor ocupe
a posição de destinatário intratextual, o que só é possível a partir
da prescrição dos modelos dos gêneros e dos estilos, considerados
“reguladores sociais da recepção”.
Aguiar (2000) defende posição semelhante, ao afirmar que
a leitura do texto literário implica a observação de suas particu-

107
Fronteiras Literárias na América Latina

laridades, ou seja, a leitura literária tem como condição básica o


conhecimento das normativas que regem o decoro particular das
composições literárias. Assim, ler literariamente implica conhecer
tais regras e interpretá-las:

Toda obra de arte impõe um decoro particular. No nível


mais simples, diríamos: de personagens cômicos, espe-
ramos gestos cômicos; de trágicos, trágicos; e assim por
diante. Mas há questões mais complexas. Ao lermos um
romance, veremos seres – [...] – os personagens – muito
parecidos conosco, as pessoas, digamos, reais. Mas eles
não são nós. Não agem, no fundo, como nós. Pode-se dizer
que são melhores do que nós. Não padecem da incoerência
do nosso cotidiano. [... Na arte, o vilão mais vilão será
sempre mais virtuoso do que o mais virtuoso santo na
vida real. Há um comportamento, portanto, que é próprio
desse mundo, e que só a ele pertence. A esse conjunto de
expectativas geradas e de gestos que com elas estejam
de acordo, chamamos decoro. Um conceito fundamental
para entender o valor de uma obra literária, até porque
hoje muitos efeitos surpreendentes derivam de quebras
pertinentes do decoro, que geram ironias e despertam a
reflexão. (AGUIAR, 2000, p. 20-21).

Na fala desses dois importantes professores brasileiros,


explicita-se a maquinaria da leitura do texto literário que, dife-
rentemente do que muitos pensam, tem muito pouco a ver com
prazer e muito mais com aprendizado, com conhecimento, pois,
como lembra Chartier (1996, p.21), “mas ler aprende-se”, a leitura
é uma prática que não se realiza naturalmente como a fala, mas
necessita de uma aprendizagem formal. No caso da leitura do texto
literário, essa aprendizagem se torna condição sine qua non, sob o
perigo de se produzirem interpretações impertinentes ou comple-
tamente inapropriadas para os textos literários. Roger Chartier
(1996) também aborda a leitura, observando que todo texto (entre
eles o literário) solicita um uso adequado ou a observação de uma
ordem pré-existente a ele, a “ordem dos livros”:

108
Fronteiras Literárias na América Latina

Com efeito, todo autor, todo escrito impõe uma ordem,


uma postura, uma atitude de leitura. Que seja explicita-
mente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente
pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra como
também nos dispositivos de sua impressão, o protocolo
da leitura define quais devem ser a interpretação correta
e o uso adequado do texto, ao mesmo tempo que esboça
seu leitor ideal. (CHARTIER, 1996, p.21)

Ora, os textos dos autores em tela apontam também para o


fato de que o texto literário constrói, por meio de seus protocolos,
um destinatário ideal, ou seja, um leitor intratextual imaginado
pelo autor e a partir do qual são pensadas as estratégias textuais
de criação. No entanto, nem sempre os leitores de carne e osso
coincidem com os leitores imaginados pelos autores, o que supõe
um grande problema para a leitura e para a leitura literária. Como
salienta J. A. Hansen (2005), “há um intervalo temporal entre o
texto e o leitor” que gera uma distância de ordem semântica entre
ambos, sobretudo no caso dos textos que pertencem a formações
históricas diferentes daquela dos leitores reais. Neste sentido,
quanto maior for esta distância, maior a necessidade de ofertar
aos leitores (no caso, aos alunos e alunos adolescentes, no caso do
Ensino Médio) elementos e informações que possam preenchê-la.
Essa é a função da escola e do ensino de literatura no nível médio,
se queremos atender às solicitações dos programas de literatura
propostos pela universidade já que, em tese, eles pressupõem
que o leitor leia literariamente, como se pode inferir a partir dos
programas de literatura propostos por algumas universidades.
Observando, portanto, esses programas e o próprio contexto
de surgimento do Ensino Médio brasileiro, o que evidenciamos
é que a literatura, no nível secundário, é trabalhada em contexto
bastante particular, a partir de objetivos muito demarcados: os
alunos têm a finalidade de prestar um vestibular (ainda que muitos
deles nem venham a fazê-lo, caso da grande maioria dos jovens
brasileiros!) e, portanto, seus conteúdos trabalham, prioritaria-
mente, os programas desse exame. Ao mesmo tempo, a leitura
dos textos literários propostas em tais programas pressupõe uma

109
Fronteiras Literárias na América Latina

prática muito particular, denominada “leitura literária”, tal como


a apresentamos, sem que a escola tenha, no entanto, condições de
preparar o aluno para realizá-la, pois apenas três anos de poucas
horas em sala de aula não formam um leitor literário na concepção
aqui apresentada e pressuposta pelos elaboradores de provas de
vestibulares! Esta leitura, como qualquer outra, pressupõe um
aprendizado muito específico que, cremos, a escola tem muitas
dificuldades e precariedades que a impedem de atingi-la.
A professora Magda Soares (2001) fala-nos sobre a “escola-
rização” da literatura infantil e juvenil na escola, entendendo es-
colarização como sendo a “apropriação” desta literatura no espaço
escolar, de modo a escolarizá-la ou didatizá-la e aponta algumas
inadequações neste processo, no caso de livros destinados ao En-
sino Fundamental. O conceito de escolarização também pode ser
pensado no caso do Ensino Médio, e o que gostaríamos de destacar
sobre ele é que, primeiramente, ele apresenta para adolescentes
textos que não foram feitos pensando em públicos jovens, além
de a maioria desses textos se situarem histórica, social e cultural-
mente muito distantes dos leitores. Neste processo de escolari-
zação, a leitura pretendida ou objetivada é aquela que pressupõe
um leitor que conheça as convenções da escrita literária, aspectos
introduzidos de modo muito rarefeito nos textos didáticos. Além
disso, esta leitura é pontuada como uma leitura que deve levar ao
deleite, ao prazer propiciado pela literariedade, pela artisticidade
do texto literário, que pode ser alcançado, segundo as Orientações
Curriculares para o Ensino Médio, a partir do contato efetivo com
o texto, como se a leitura literária não implicasse esforço, conheci-
mento e aprendizagem do “decoro” particular deste tipo de texto:

POR QUE A LITERATURA NO ENSINO MÉDIO?


.........................................................................................................
Por isso, faz-se necessário e urgente o letramento literário:
empreender esforços no sentido de dotar o educando da
capacidade de se apropriar da literatura, tendo dela a expe-
riência literária. Estamos entendendo por experiência
literária o contato efetivo com o texto. Só assim será
possível experimentar a sensação de estranhamento

110
Fronteiras Literárias na América Latina

que a elaboração particular do texto literário, pelo uso


incomum da linguagem, consegue produzir no leitor, o
qual por sua vez, estimulado, contribui com sua própria
visão de mundo para a fruição estética (BRASIL, 2006,
p. 55)

Considerando que o excerto apresentado foi retirado de parte


das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCNEM) que
se intitula “Por que a literatura no Ensino Médio?”, indicando os
objetivos dessa disciplina, podemos depreender dele e de outras
partes deste documento, que uma das finalidades do ensino de
literatura seria o de possibilitar o prazer estético em oposição
à leitura de “escolhas anárquicas” – é este o termo utilizado no
documento - que os adolescentes fazem fora da escola e que não
possibilitariam o prazer de caráter estético.
Diante do exposto, podemos tentar ligar alguns pontos de
nossa exposição. Se, por um lado, as OCNEM enfocam uma pers-
pectiva do ensino de literatura na qual se deve privilegiar o contato
direto dos alunos com o texto, fato que levaria ao prazer estético
proporcionado pela elaboração particular do texto literário; por
outro lado, a escola vivencia, no plano de suas práticas efetivas, a
realidade imposta pelos exames vestibulares. Esses, como vimos,
partem da premissa de que a escola deve formar o leitor literário,
ou seja, um leitor que deve ser capaz de se apropriar adequada-
mente dos textos literários que têm como elementos reguladores
de sua recepção as convenções particulares do discurso literário.
No meio destas duas orientações, a realidade escolar se impõe:
nem prazer estético, nem leitura literária, uma vez que os textos
literários quase nunca são lidos integralmente (o que valem são
os resumos ou esquemas, pois não há tempo hábil para a leitura
de tantos textos) e a leitura adequada (a literária) se resume a
esquemas sobre períodos literários e características de época que
devem ser decorados, pois, como disse Hansen (2005), elas são
“as coisas que os estudantes precisam memorizar porque caem no
vestibular”. Assim, o aluno quase sempre fica destituído de uma
formação que possa lhe oferecer as ferramentas para que leitura
literariamente, no sentido aqui exposto.

111
Fronteiras Literárias na América Latina

Retornando para as imagens de leitura no início deste texto,


cremos que, enquanto representações do imaginário social da
leitura, elas nos falam muito bem sobre as relações de adolescen-
tes (incluindo os de Ensino Médio) não com a leitura dos textos
literários canônicos valorizados pela escola, mas com as leituras
de ficção que não pertencem ao cânone, nem aos livros didáticos,
enfim, à leitura denominada pelas Orientações Curriculares para
o Ensino Médio como leituras de “escolhas anárquicas”. Trata-
se das leituras feitas a partir do exercício do livre arbítrio do
adolescente, inclusive enquanto forma de resistência às leituras
impostas pela escola:

Observando as escolhas dos jovens fora do ambiente


escolar, podemos constatar uma desordem prpria da cons-
trução do repertório dos adolescentes. Estudos recentes
apontam as práticas de leitura dos jovens fundadas numa
recusa dos cânones da literatura, tornando-se livres de
sistemas de valores ou de controles externos. Essas leitu-
ras, por se darem de forma desordenada e quase aleatória
podem ser chamadas de escolhas anárquicas. (BRASIL,
OCNEM, 2006, p.61, grifos do próprio texto)

Anárquicas ou não, desordenadas ou não, tais leituras é que


parecem estar representadas nas imagens de leitura dos textos
de ficção: levam a sonhar, levam à diversão e cumprem o papel de
permitir a evasão aos leitores que delas se apropriam. Por essa
razão, não é sem motivo que as personagens dessas imagens, me-
ninos e meninas adolescentes, são apresentadas no espaço celeste,
num espaço aberto no qual são dirigidos por objetos voadores
representados pelo livro: este é o espaço próprio deles – o da
liberdade - e não espaço escolar, repleto de sistemas de valores
que lhes ditam o que deve ser arte e a literatura e o modo como
devem delas se apropriar.
Na escola, diferente do mundo e da vida, a liberdade do lei-
tor é condicional, pois se trata de um espaço muito específico de
produção da leitura e esta talvez seja nossa maior lição neste caso:
compreendermos que espaços sociais, contextos e culturas especí-

112
Fronteiras Literárias na América Latina

ficos levam a leituras particulares. Como os estudos de letramento


pontuam, letramentos são situados histórica e socialmente, gerando
práticas de leitura e escrita demarcadas. Ora, como ensina Soares,
“a escola é uma instituição em que o fluxo das tarefas e das ações
é ordenado através de procedimentos formalizados de ensino e
de organização dos alunos em categorias [...] processo inevitável
porque é da essência mesma da escola, é o processo que a institui
e que a constitui” (SOARES, 2001, p. 21). Sendo assim, antes de
enfatizar como objetivo do ensino de literatura o caráter estético
dos textos como elementos que se justificam pelo prazer que podem
proporcionar aos leitores, talvez a escola de nível médio devesse
tratar com mais clareza seus objetivos – formar um leitor literário,
este, sim, apto para fazer as provas de vestibular. Para isso, faz-se
necessário um esforço que, antes de tornar-se prazer, implica em
aprendizado – árduo, diga-se de passagem, se quisermos, e precisa-
mos, compreender as produções culturais valorizadas socialmente
até para que possamos nos posicionar em relação a ela.
Com regras mais claras e com objetivos que partam da re-
alidade dos estudantes – o vestibular e a própria gênese do En-
sino Médio brasileiro e seus desenvolvimentos -, talvez o aluno
compreenda melhor, nas aulas de literatura, o que está fazendo
e o porquê, ao invés de simplesmente fingir que lê e que aceita
passivamente os valores culturais veiculados pela escola. Sem es-
ses balizamentos, incorremos no perigo de fazer com que nossos
alunos pensem que a leitura, erroneamente, cumpre apenas uma
função pragmática (aquela presente nas primeiras imagens de
leitura que apresentamos no início desse texto), segunda a qual
ler é prática que leva à ascensão, ainda que esta seja uma imagem
distorcida, unívoca e que nem sempre corresponda à realidade.
Somada a essa consequência, incorreremos no erro de fazer com
que nossos alunos pensem que as leituras outras que fazem fora
da escola são mesmo anárquicas e devem ser, por isso, ocultadas,
pois eles, tanto quanto nós, sabem, como afirma Abreu (2006,
p.19), que “os livros que lemos (ou não lemos) e as opiniões que
expressamos sobre eles (tendo lido ou não) compõem parte de
nossa imagem social.”

113
Fronteiras Literárias na América Latina

Por fim, cremos ser fundamental pensar a leitura de ficção


enquanto prática social que, se tem na escola caminhos e des-
membramentos específicos relacionados aos objetivos culturais e
históricos da literatura na escola, não deixa de abarcar as leituras
feitas em outros espaços sociais que, certamente, implicam relações
diferentes entre textos e leitores: relações que abrangem desde
o aprendizado, o conhecimento, a formação do gosto estético até
evasão, fruição e outras relações muito mais amplas e complexas
do que aquelas restritas ao ambiente escolar, já que leitura não é
prática exclusiva da escola; é prática que se desenha e se desenvolve
na vida de leitores plurais.

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Fronteiras Literárias na América Latina

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115
Fronteiras Literárias na América Latina

ensino da literatura
uma disciplina em extinção?
Regina Zilberman1

Resumo

No Brasil contemporâneo, o ensino da literatura faz-se durante


o ensino básico, predominando a literatura infantil no fundamental,
no médio a literatura brasileira clássica e moderna. No ensino su-
perior, são os cursos de Letras encarregados não apenas de formar
professores para aquela disciplina, quanto também de desenvolver
pesquisas, visando ao aprofundamento do conhecimento da produção
literária. Ensino Médio e ensino superior, desde meados da década
de 1990, são objeto de avaliações por meio de provas nacionais: o
ENEM e o ENADE. Ao examinar os conteúdos aprendidos pelos
estudantes, eles acabam por incidir em um modo de entender e di-
fundir a literatura. Cabe, pois, observar que conteúdos são objetos
de avaliação, para verificar que conceito de literatura e de ensino de
literatura veiculam. A hipótese é a de que o impacto dessas provas
determina uma concepção de literatura e de docência dessa disciplina
que caminha na direção de sua extinção.

Palavras-chave: ENEM; ENADE; ensino da literatura

1. Pressupostos

Há poucos anos, Tzvetan Todorov publicou um pequeno


livro em que advertia para os riscos experimentados pela litera-
1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Enviado em 10/05/2013, para IV Ciella e
Germana Sales.

117
Fronteiras Literárias na América Latina

tura, capazes de levá-la ao desaparecimento. Literatura em perigo


fez algum sucesso por advertir que o emprego de metodologias
inadequadas de abordagem de textos artísticos poderia conduzir
o estudante a afastar-se deles, não se completando sua formação
enquanto leitor consciente e maduro. (TODOROV, 2009)
Todorov, assim, puxa as orelhas do magistério francês, atacan-
do, sobretudo, os que aderiram a estudos estruturalistas, bastante
eficientes na descrição de obras literárias, mas pouco apropriados
para conduzir os leitores a apreciar a matéria lida.
Ao discutir se o Ensino da Literatura enquanto disciplina
do currículo escolar se apresenta em vias de extinção, sobretudo
enquanto parte da prática docente de professores do nível básico
ou superior, estamos de certo modo emulando o título do livro de
Todorov. Porém, o objetivo não é propriamente acusar os profes-
sores de malpraticing – ou de negligência – no exercício de suas
funções profissionais, mas verificar como procedimentos emanados
das agências federais encarregadas de avaliar os resultados da
aprendizagem por estudantes conduzem na direção do apagamento
da literatura na escola, favorecendo a extinção, pois, da disciplina
encarregada de conhecê-la e difundi-la.
Logo, não se examina o ensino da literatura desde a perspec-
tiva da metodologia adotada pelo professor, que pode ser menos
ou mais adequada; nem se propõem alternativas de ação didática,
indicando como essa “deve”/”não deve” ou “pode”/”não pode”
acontecer em sala de aula. O foco dirige-se ao modo como seus
resultados estão – ou não estão – sendo avaliados, decorrendo
desse processo o destino da disciplina em questão.
Como sabemos, a Literatura, ao lado da Matemática, da
Música e da Educação Física, é matéria da formação educacional
de crianças e jovens desde a Antiguidade, tendo sido os gregos,
a partir do século IV a. C., os primeiros a redigir os manuais de
Retórica e Poética que pautaram a ação dos professores daque-
les tempos. A transmissão e a permanência das obras canônicas
deveram-se, sobretudo, à existência dessa disciplina, que, ao longo
do tempo, adotou perspectivas distintas. Aos antigos estudos de

118
Fronteiras Literárias na América Latina

retórica e poética, que sobreviveram até o final do século XVIII


da era cristã, sucedeu, no oitocentos, a História da Literatura,
que, no novecentos, passou a dividir o espaço da sala de aula com
a Teoria da Literatura.
No Brasil, nação independente a partir das primeiras décadas
do século XIX, os acontecimentos não foram muito distintos. À
época da monarquia, predominaram os estudos retóricos, mas
a História da Literatura conquistou seu espaço, mantendo-se
soberana até meados de 1970, quando as reformas educacionais
reestruturaram não apenas a organização das séries e níveis de
aprendizagem, mas também o conteúdo das disciplinas. A Lite-
ratura Infantil mostrou-se relevante no Ensino Fundamental, a
produção de textos tornou-se hegemônica, e a História da Litera-
tura refugiou-se no Ensino Médio, quando os alunos supostamente
tomam ciência da tradição literária nacional e dos nomes mais
representativos da prosa e da poesia em língua portuguesa, com
ênfase especial nos escritores nascidos no Brasil.
Competiu aos cursos de Letras a transmissão da massa de
conhecimentos abrigada pela história da literatura brasileira e
portuguesa (em disciplinas separadas ou mistas), assim como
a transferência de bases teóricas e metodológicas para leitura
e compreensão de obras literárias. Disciplinas como Teoria da
Literatura, Crítica Literária, Literatura Comparada ou equiva-
lentes ocupam-se da formação do profissional das Letras como
um indivíduo capacitado a descrever, interpretar e valorar textos
escritos, atribuindo-lhes, ou não, a distinção de artístico ou não,
integrando-os a uma tradição histórica nacional, estabelecendo
suas redes intertextuais, verificando suas relações com o contexto
social, étnico, geográfico ou de gênero, opções, todas, oferecidas
pelas variadas tendências dos estudos literários e culturais em
nosso tempo.
Cabe também aos cursos de Letras a formação de professores
para as disciplinas que constituem seu próprio currículo. Desse
ponto de vista, os cursos de Letras reduplicam-se por colocar no
mercado de trabalho profissionais habilitados a fazer o que os

119
Fronteiras Literárias na América Latina

cursos de Letras já fazem. Graças a esse procedimento, a sociedade


dispõe de docentes capacitados a ensinar literatura, não apenas do
modo como aprenderam, mas também de forma inovadora, em vez
de unicamente reprodutora, já que são também proporcionadas
disciplinas de ordem teórica e metodológica sobre práticas trans-
formadoras de ação pedagógica em sala de aula.
A atuação dos profissionais oriundos dos cursos de Letras – e
referimo-nos às licenciaturas em língua materna ou estrangeira –
dá-se na escola, dividindo-se entre os níveis básico (fundamental e
médio) e superior. Desde meados da década de 1990, os dois níveis
têm sido objeto de avaliações por meio de provas nacionais – o
ENEM [Exame Nacional do Ensino Médio] e o ENADE [Exame
Nacional de Desempenho dos Estudantes], sucessor do “provão”
[Exame Nacional de Cursos].
Constituindo matéria das disciplinas associadas à Língua
Portuguesa, no caso do Ensino Médio, e apresentando-se como
disciplina independente, no caso dos cursos de Letras, de nível
superior, a Literatura supostamente comparece nas questões das
provas do ENEM e do ENADE, como antes comparecia no “pro-
vão”. Do modo como ela se apresenta, emana uma concepção não
apenas de Literatura, mas da maneira como se pode aprendê-la,
reproduzi-la ou utilizá-la, de uma parte, de outra, de transmiti-la.
Logo, as questões que têm a Literatura como assunto repercutem
sobre o ensino da disciplina.
Cabe, pois, observar que conteúdos são objetos de avaliação,
para verificar qual conceito de literatura e de ensino predomina.
A hipótese é a de que as provas incidem em uma concepção de
literatura e de docência dessa disciplina que caminha na direção
de sua extinção.

2. As provas e o Enem

A literatura dispôs, desde os primeiros tempos de institucio-


nalização da escola, de um espaço, preenchido desde as últimas
décadas do século XX, pela Literatura Infantil, no que diz respeito

120
Fronteiras Literárias na América Latina

ao Ensino Fundamental. O campo relativo à tradição literária,


representado pela História da Literatura, foi deslocado para o
Ensino Médio, embora, nesse nível, o pouco número de horas-
aula dedicadas à Literatura, somado a uma relativa flexibilidade
do currículo, tenha deixado ao arbítrio das escolas, e às vezes do
professor, a escolha dos conteúdos, autores e obras a serem estu-
dados pelos alunos.
Os acervos literários dividem-se em dois grupos guiados por
distintos pressupostos e objetivos: à Literatura Infantil compete
formar um leitor literário, fomentar sua fantasia e responder por
um conhecimento de mundo que extravase os limites do imedia-
tismo e do pragmatismo; à História da Literatura, representada
por vultos nacionais, difundidos por meio de suas obras integrais,
parciais ou adaptadas, cabe integrar o leitor a um passado e a uma
tradição, a que, de alguma maneira, pertence, seja por eleição pró-
pria, educação ou inculcação. Apenas aos estudantes dos cursos de
Letras é facultado acesso à integralidade dessa tradição, já que a
ele toca transmiti-la e transferi-la aos grupos humanos com que
interagir na condição de profissional em sala de aula.
O processo de aquisição e transmissão de conhecimento pas-
sou incólume por muitas décadas. Nas duas últimas, começou a
ter um preço, ao tornar-se objeto de medidas, pesos e avaliações
contínuas. Em 1996, o Ministério da Educação instituiu o Exame
Nacional de Cursos, o “provão”, substituído, em 2004, pelo Exame
Nacional de Desempenho dos Estudantes, que, conforme indica o
site do INEP, “integra o Sistema Nacional de Avaliação da Educa-
ção Superior (SINAES)”, com o “objetivo de aferir o rendimento
dos alunos dos cursos de graduação em relação aos conteúdos
programáticos, suas habilidades e competências.” (http://portal.
inep.gov.br/enade.)
Em 1998, implementou-se o Exame Nacional do Ensino
Médio, com o intuito de “avaliar anualmente o aprendizado dos
alunos do Ensino Médio em todo o país para auxiliar o ministério
na elaboração de políticas pontuais e estruturais de melhoria do
ensino brasileiro através dos Parâmetros Curriculares Nacionais

121
Fronteiras Literárias na América Latina

(PCN) do Ensino Médio e Fundamental, promovendo alterações


nos mesmos conforme indicasse o cruzamento de dados e pes-
quisas nos resultados do Enem.” (http://pt.wikipedia.org/wiki/
Exame_Nacional_do_Ensino_M%C3%A9dio.) Em 2009, esse
exame sofreu alterações: ainda que mantivesse a denominação
original, deixou de constituir ferramenta de avaliação do Ensino
Médio, para tornar-se instrumento de unificação dos concursos
vestibulares das universidades brasileiras, dando ensejo ao forta-
lecimento do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), hoje pratica-
mente hegemônico no país. Antes de 2009, o ENEM era já adotado
para selecionar estudantes para o nível superior, uma vez que, em
instituições públicas e também privadas, a nota obtida naquela
avaliação tinha algum peso quando da escolha dos classificados
às universidades.
O ENEM nasceu dos PCN. Esse vínculo pode não aparecer
com tanta ênfase nas discussões públicas sobre aquele exame, que,
como se sabe, apresenta um ou mais problemas a cada ano, desde
o vazamento das provas até o processo de correção das redações.
Porém, a ligação umbilical entre PCN e ENEM nunca feneceu,
mesmo porque os primeiros ainda vigoram enquanto pressuposto
da organização e dos conteúdos das disciplinas que formam os
currículos dos ensinos fundamental e médio.
As provas, anuais, realizam-se em dois dias. No primeiro
avaliam-se os conhecimentos nas áreas de Ciências Humanas e
suas Tecnologias e de Ciências da Natureza e suas Tecnologias.
Reserva-se o segundo dia à Redação, à Matemática e suas Tec-
nologias e a Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, área que
compreende Língua Portuguesa, Literatura, Língua Estrangeira
(Inglês ou Espanhol), Artes, Educação Física e Tecnologias da
Informação e Comunicação.
Na prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, em
2010, seis questões eram dedicadas à Literatura. Além dessas, duas
outras partiam de exemplos oriundos de autores brasileiros. Na
questão 102, a um trecho de crônica de Martha Medeiros competia
exemplificar o emprego da ironia; a questão 113 vale-se de excer-

122
Fronteiras Literárias na América Latina

to de “Amor”, conto de Clarice Lispector, publicado em Laços de


Família, para verificar um tópico de ordem discursivo-gramatical:2
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e suma-
renta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados,
instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa,
o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento
que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cor-
tinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia
parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um
lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras,
mas essas apenas [em negrito no original].
Ao excerto transcrito, seguem-se o enunciado e as alterna-
tivas de escolha:
A autora emprega por duas vezes o conectivo mas no frag-
mento apresentado. Observando aspectos da organização, estru-
turação e funcionalidade dos elementos que articulam o texto, o
conectivo mas

A) expressa o mesmo conteúdo nas duas situações em que aparece


no texto.

B) quebra a fluidez do texto e prejudica a compreensão, se usado no


início da frase.

C) ocupa posição fixa, sendo inadequado seu uso na abertura da frase.

D) contém uma ideia de sequência temporal que direciona a conclusão


do leitor.

E) assume funções discursivas distintas nos dois contextos de uso.

As seis questões de literatura remetem aos seguintes autores:


Álvares de Azevedo (questão 117), Jorge Amado e Dalton Trevisan
(118), Machado de Assis (128), Monteiro Lobato (129), e João do
Rio e Lima Barreto (134). Álvares de Azevedo comparece com um
2 As questões foram extraídas do Caderno Azul 2o dia, de 2010. Destacam-se em negrito as
respostas corretas às questões.

123
Fronteiras Literárias na América Latina

soneto, estando os demais escritores representados por trechos de


suas obras, a saber: Capitães da areia, de Jorge Amado; conto reti-
rado da coletânea 35 noites de paixão, de Dalton Trevisan; Quincas
Borba, de Machado de Assis; Negrinha, de Monteiro Lobato; “A
rua”, de A alma encantadora das ruas, de João do Rio; “Um e outro”,
um dos contos do livro Clara dos Anjos, de Lima Barreto.
A literatura corresponde, pois, a menos de 15% da prova de
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, representada em 2010
pela menção a oito autores, já que, em duas questões, eles apare-
cem em duplas.
Na prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, em
2011, repete-se o número de perguntas dedicadas a escritores bra-
sileiros. Mas a presença deles diminui, pois são citados João Cabral
de Melo Neto (questão 99), Guimarães Rosa (102), Manuel Ban-
deira (113), Gilka Machado (116 e 118) e Aluísio Azevedo (117),
inquiridos respectivamente a propósito de: Morte e vida severina
(não identificada nominalmente, já que a referência bibliográfica
remete à Obra completa), Grande sertão: veredas, “Estrada”, de O
ritmo dissoluto, “Lépida e leve”, proveniente da coletânea Os cem
melhores poemas brasileiros do século, e O cortiço, de Aluísio Azevedo.
Há ainda uma questão elaborada a partir do poema “Guardar”, de
Antônio Cícero, equivocadamente atribuído a Gilka Machado e à
publicação na antologia Os cem melhores poemas brasileiros do século,
organizada por Italo Moriconi.
É pouco? É muito?
Em matéria de 2011, a revista Veja apresentou os dados levan-
tados por uma equipe de estudantes de pós-graduação em Letras,
coordenada por Luís Augusto Fischer, da UFRGS. A pesquisa
constatou a presença inexpressiva de literatura nas sucessivas
provas do ENEM: a menção a autores brasileiros ou estrangeiros,
bem como a obras nacionais ou internacionais são fortuitas, per-
dendo em assiduidade para figuras fictícias da cultura pop, como
Mafalda, o gato Garfield ou Hagar.3

3 Cf. também FISCHER, Luís Augusto e outros, 2012, p. 111-126.

124
Fronteiras Literárias na América Latina

Além disso, a literatura comparece na prova por meio de tre-


chos nem sempre nomeados e muitas vezes oriundos de coletâneas,
que podem ter valor enquanto ferramenta de trabalho, mas que
não podem responder pelas obras literárias enquanto tais, sejam
essas consideradas criação artística ou objeto de leitura. Sob esse
aspecto, é expressiva a referência a uma narrativa de Lima Barreto,
representada por excerto de conto inserido aleatoriamente no livro
Clara dos Anjos, quando publicado há algumas décadas pela editora
Mérito e atualmente esgotado. Logo, na concepção do ENEM,
um trecho pode substituir, aparentemente sem prejuízos, o todo,
pois o objetivo não é a própria obra, mas a identificação de dado
conteúdo em determinado segmento. Pouco importa, porém, se
esse conteúdo desempenha função central no conjunto de onde
provém. A questão 134 exemplifica o problema:

Texto I:
Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria
revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que
este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos
vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cida-
des, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os
desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o
amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel,
o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas.
RIO, J. A rua. In: A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008 (fragmento).

Texto II
A rua dava-lhe uma forma de fisionomia, mais consciência dela. Como
se sentia feliz no seu reino, na região que era rainha e imperatriz. O
olhar cobiçoso dos homens e o de inveja das mulheres acabavam o
sentimento de sua personalidade, exaltavam-no até. Dirigiu-se para a
rua do Catete com o seu passo miúdo e sólido. [...] No caminho trocou
cumprimento com as raparigas pobres de uma casa de cômodos da
vizinhança.
[...] E debaixo dos olhares maravilhados das pobres raparigas, ela con-
tinuou o seu caminho, arrepanhando a saia, satisfeita que nem uma
duquesa atravessando os seus domínios.
BARRETO, L. Um e outro. In: Clara dos anjos. Rio de Janeiro: Editora
Mérito (fragmento).

125
Fronteiras Literárias na América Latina

A experiência urbana é um tema recorrente em crônicas,


contos e romances do final do século XIX e início do XX, mui-
tos dos quais elegem a rua para explorar essa experiência. Nos
fragmentos I e II, a rua é vista, respectivamente, como lugar que

a) desperta sensações contraditórias e desejo de reconhecimento.

b) favorece o cultivo da intimidade e a exposição dos dotes físicos.

c) possibilita vínculos pessoais duradouros e encontros casuais.

d) propicia o sentido de comunidade e a exibição pessoal.

e) promove o anonimato e a segregação social.

Pode-se verificar como as alternativas referem-se exclusiva-


mente ao que cada trecho – isolado – informa, remetendo apenas a
si mesmo. Os segmentos provêm de criações produzidas por João
do Rio e Lima Barreto, mas essa procedência é indiferente, podendo
se apresentar, em seu lugar, qualquer outro autor ou obra. Avalia-
se se o enunciado foi entendido, se o significado do fragmento foi
compreendido, se a comparação proposta foi efetuada. Constituir
ou não uma criação literária, integrar-se ou não a uma tradição
ou a uma cultura não parece importar; importa, antes, estimular
mecanicamente uma operação mental que só requer estímulo
externo, motivando uma ação imediata e fechada sobre si mesma.
As demais questões relativas à Literatura consolidam esse
método de trabalho, mudando unicamente o texto literário mo-
tivador, que pode provir da ficção ou da poesia, mas que redunda
em um procedimento que poderia ser considerado “interpretação”,
mas que não é, ao não alavancar a compreensão pessoal de um
dado fenômeno, e sim a reprodução do conteúdo da proposta. A
questão dedicada, em 2011, a Grande sertão: veredas, de Guimarães
Rosa, reitera o pendor da prova:

Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais,


que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: o Zé-Zim, o melhor
meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: - Zé-Zim, porque é

126
Fronteiras Literárias na América Latina

que você não cria galinhas d’angola, como todo mundo faz? – Quero
criar nada não... – me deu resposta: - Eu gosto muito de mudar... [...]
Belo um dia, ele tora. Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu
dou proteção. [...] Essa não faltou também à minha mãe, quando eu
era menino, no sertãozinho de minha terra. [...] Gente melhor do lugar
eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá,
nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficando existindo em território
baixio da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Fran-
cisco, o senhor sabe.
ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio (frag-
mento).

Na passagem citada, Riobaldo expõe uma situação decorrente


de uma desigualdade social típica das áreas rurais brasileiras mar-
cadas pela concentração de terras e pela relação de dependência
entre agregados e fazendeiros. No texto, destaca-se essa relação
porque o personagem-narrador

a) relata a seu interlocutor a história de Zé-Zim, demonstrando sua


pouca disposição em ajudar seus agregados, uma vez que superou essa
condição graças à sua força de trabalho.

b) descreve o processo de transformação de um meeiro — espécie de


agregado — em proprietário de terra.

c) denuncia a falta de compromisso e a desocupação dos moradores,


que pouco se envolvem no trabalho da terra.

d) mostra como a condição material da vida do sertanejo é dificul-


tada por sua dupla condição de homem livre e, ao mesmo tempo,
dependente.

e) mantém o distanciamento narrativo condizente com sua posição


social, de proprietário de terras.4

O ENEM nasceu dos PCN. Se um de seus objetivos iniciais


foi autoavaliativa, visando corrigir os rumos do projeto original,
ele nunca renunciou à meta de consolidar os princípios que pauta-
4 As questões foram extraídas do Caderno Azul 2o dia, de 2011.

127
Fronteiras Literárias na América Latina

ram a elaboração dos Parâmetros. Que, no âmbito das linguagens,


elegeram o texto como matéria-prima, termo e significado que
substitui o livro e a literatura (ZILBERMAN, 2003). Na primeira
versão dos PCN dirigidos ao Ensino Médio, não se localizava a
palavra literatura, que reapareceu, mas, modestamente, por ocasião
de sua revisão, no começo da última década.
Pode-se contra-argumentar que o ENEM, bem como os
PCN que o geraram, são avessos a classificações, razão por que se
descartam a literatura, enquanto manifestação da linguagem, e os
gêneros literários, enquanto desdobramentos daquela. Contudo,
a questão 116, de 2010, parece contradizer esse pressuposto, já
que visa reforçar um conceito muito caro aos PCN– o de “gêneros
textuais”, categoria fundamental de seu embasamento teórico:

Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo,
jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na
cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839. Filho de um operário
mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e de D. Maria
Leopoldina Machado de Assis, aquele que viria a tornar-se o maior
escritor do país e um mestre da língua, perde a mãe muito cedo e é
criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata, que se dedica ao
menino e o matricula na escola pública, única que frequentou o auto-
didata Machado de Assis. [em negrito no original]
Disponível em: http://www.passeiweb.com. Acesso em: 1 maio 2009.

Considerando os seus conhecimentos sobre os gêneros tex-


tuais, o texto citado constitui-se de:

a) Fatos ficcionais relacionados a outros de caráter realista, relativos à


vida de um renomado escritor.

b) representações generalizadas acerca da vida de membros da socie-


dade por seus trabalhos e vida cotidiana.

c) explicações da vida de um renomado escritor, com estrutura argu-


mentativa, destacando como tema seus principais feitos.

128
Fronteiras Literárias na América Latina

d) questões controversas e fatos diversos da vida de personalidade


histórica, ressaltando sua intimidade familiar em detrimento de seus
feitos públicos.

e) apresentação da vida de uma personalidade, organizada sobretu-


do pela ordem tipológica da narração, com um estilo marcado por
linguagem objetiva.

Preferindo o texto ao livro, e o fragmento à totalidade, os


PCN promovem a homogeneização dos produtos da linguagem,
anulando as especificidades que distinguem a história em quadri-
nhos e a notícia de jornal, a literatura e o tratado científico. Não
é preciso estabelecer valorações e hierarquias para reconhecer
essas identidades, como procedem teorias da literatura hoje em
desuso. Mas ignorá-las representa banalizá-las, ao mesmo tempo
em que se suprime a criatividade que predomina em muitas delas.
Além disso, as provas do ENEM, conforme sugerem as
perguntas aqui reproduzidas, parecem avessas a uma concepção
de conhecimento enquanto saber, já que supõem ser o raciocínio
suficiente para a solução de problemas, não uma ciência ou uma
cultura. Contudo, sem um conhecimento acumulado – que, em
tese, a escola conserva e transmite – o raciocínio será produzido
por uma mente vazia, inexperiente e, portanto, manipulável.
Essas constatações não ajudam a valorizar o ENEM enquanto
mecanismo de avaliação; mas colaboram para diminuir o papel da
escola na vida de uma pessoa e a encolher a importância do ensino
da literatura no âmbito de sua formação intelectual e emocional.

3. O Enade

O Enade sucedeu ao provão, visando ampliar o alcance da ava-


liação do ensino superior, que deixaria de depender exclusivamente
dos resultados obtidos pelos alunos por ocasião da realização das
provas. Desse intuito nasceu o Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior [SINAES], integrando antes dispersas mo-
dalidades de julgamentos promovidos pelo INEP.

129
Fronteiras Literárias na América Latina

O ENADE, ao contrário do provão, não acontece todos os


anos, nem é universal. Um sorteio escolhe os examinandos que
devem se submeter às provas em duas oportunidades: após cum-
prirem 7% a 22% da matriz curricular; e quando estiverem em
vias de concluir o curso. De todo modo, os resultados continuam
a pautar a qualificação e a categorização dos cursos superiores,
penalizando os que atingem escores muito baixos.
Em 2011, as 45 questões estavam assim distribuídas em ter-
mos de números e de pesos:

Número Peso
Partes
de questões das questões
Formação Geral – Questões Objetivas 1a8 60%
Formação Geral – Questões Discursivas 2 40%
Peso desses componentes 25%
Componente Específico Comum – Ques- 9 a 25 Objetivas – 85%
tões Objetivas D i s c u r s i va s –
Componente Específico Comum – Ques- 2 15%
tões Discursivas
Componente Específico – Licenciaturas – 26 a 35
Questões Objetivas
Componente Específico – Bacharelado – 36 a 45
Questões Objetivas
Peso dos componentes 75%

As dez primeiras questões, equivalendo a 25% do peso do


grau a ser obtido pelo estudante, avaliam sua “formação geral”,
supondo, em 2011, o conhecimento de tecnologias da informação,
história da educação, meio ambiente e desenvolvimento susten-
tável, desigualdades sociais e econômicas. Duas das tarefas são
discursivas e envolvem temas educacionais. Ainda que prevejam
posicionamento pessoal, a formulação induz o desdobramento do
assunto, já que, no primeiro caso, cabe ao aluno enumerar “três
vantagens de um curso a distância, justificando brevemente cada
uma delas”; e, no segundo, dissertar “acerca da importância de

130
Fronteiras Literárias na América Latina

políticas e programas educacionais para a erradicação do analfa-


betismo e para a empregabilidade, considerando as disparidades
sociais e as dificuldades de obtenção de emprego provocadas pelo
analfabetismo.”5
A primeira das oito questões objetivas propõe a interpretação
do poema “Retrato de uma princesa desconhecida”, de Sofia de
Mello Breyner Andresen, publicado em Dual, de 1972, em edição
de 2004. Como a questão não pertence ao “Componente Específico
Comum”, as respostas possíveis não preveem um saber literário.
Este aparecerá a partir da questão 9, ao lado das perguntas rela-
tivas à Língua Portuguesa e Linguística.
O “Componente Específico Comum” contém cinco questões
específicas da área de Literatura, sendo três de Literatura Brasileira,
e duas de Teoria da Literatura. Aquelas escolhem como perspectiva
a História da Literatura, entendida desde o prisma dos estilos de
época, objeto de duas perguntas. Os tópicos de Teoria da Literatura
valorizam a literaridade e a intertextualidade, sobretudo a primeira,
matéria da proposta discursiva, relativa às “especificidades da lin-
guagem literária”, quando o estudante é levado a “traçar um paralelo
entre ‘intenção do texto’ e ‘liberdade de interpretação’.”
O foco teórico-metodológico das questões relativas às obras
literárias não é propriamente inovador, já que não acompanha as
modernas vertentes dos estudos de gênero ou pós-coloniais, por
exemplo. As concepções sobre Modernismo e estilos de época não
ultrapassam os manuais de Afrânio Coutinho e de Alfredo Bosi,
publicados respectivamente nos anos 1950 e 1970, posicionamento
que reaparece nas questões específicas a que os bacharelandos
devem responder, quando abordam a poesia de Mário de Andrade
ou de Olavo Bilac. Eis como exemplo a questão 14:
Para estudar a história literária brasileira, em vez de um crité-
rio político, deve-se adotar uma filosofia estética compreendendo-a
como um valor literário. Para tal, a periodização correspondente
é de natureza estilística, isto é, em lugar da divisão em períodos
cronológicos ou políticos, a ordenação por estilos.
5 Extraído, assim como as questões a seguir reproduzidas, de ENADE 2011.

131
Fronteiras Literárias na América Latina

COUTINHO, A. (Org.) Literatura brasileira: (introdução). In:


A literatura no Brasil: introdução geral. 6. ed. São Paulo: Global,
2003, v.1, p. 132.
Nas sequências, está destacado um trecho da obra História
Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi. Avalie se tanto
o autor quanto o estilo literário indicados correspondem ao que
Bosi trata no respectivo trecho.

I. “Não se trata, aqui, de fechar os olhos aos evidentes defeitos de fatura


que mancham a prosa do romancista: repetições abusivas, incerteza na
concepção de protagonistas, uso convencional da linguagem...; trata-
se de compreender o nexo de intenção e forma que os seus romances
lograram estabelecer quando atingiram o social médio pelo psicológico
médio (...)” Érico Veríssimo. Pré-Modernismo.

II. “Sempre se salva, no foro íntimo, a dignidade última dos protagonis-


tas, e se redimem as transações vis repondo de pé herói e heroína. Daí
os enredos valerem como documento apenas indireto de um estado de
coisas, no caso, o tomar corpo de uma estética burguesa e ‘realista’ das
conveniências durante o Segundo Império” José de Alencar. Romantismo.

III. “Teve mão de artista bastante leve para não se perder nos deter-
minismos de raça ou de sangue que presidiriam aos enredos e estofa-
riam as digressões dos naturalistas de estreita observância [...]” Adolfo
Caminha. Naturalismo.

IV. “O seu equilíbrio não era o gotheano [sic] – dos fortes e dos felizes,
destinados a compor hinos de glória à natureza e ao tempo; mas o dos
homens que, sensíveis à mesquinhez humana e à sorte precária do indi-
víduo, aceitam por fim uma e outra como herança inalienável, e fazem
delas alimento de sua reflexão cotidiana” Machado de Assis. Realismo.

São corretas apenas as correspondências feitas em: A) I e II.


B) I e III. C) II e IV. D) I, III e IV. E) II, III e IV.
A prova contempla também o ensino da literatura, que aparece
primeiramente nas perguntas relativas ao “Componente Específico
Comum”. A questão 18 leva em conta práticas docentes adotadas
em sala de aula:

132
Fronteiras Literárias na América Latina

Texto I
[...] na leitura — e essa é a primeira reflexão que quero fazer — de
qualquer obra literária, de qualquer texto que tenha por base a intensi-
ficação de valores — daquilo que chamamos de uma ou outra maneira
aproximada de valores literários —, existe sempre, como dizia o grande
crítico canadense recentemente falecido, Northrop Frye, a necessidade
de conhecimento de duas linguagens. Segundo ele, na leitura de qual-
quer poema, “é preciso conhecer duas linguagens: a língua em que o
poeta está escrevendo e a linguagem da própria poesia”.
[...] a literatura nunca é apenas literatura; o que lemos como literatura
é sempre mais — é História, Psicologia, Sociologia. Há sempre mais
que literatura na literatura. No entanto, esses elementos ou níveis de
representação da realidade são dados na literatura pela literatura, pela
eficácia da linguagem literária.
BARBOSA, J. A. Literatura nunca é apenas literatura. In: Seminário lin-
guagem e linguagens: a fala, a escrita, a imagem. Disponível em: www.
crma rio covas.sp.gov.br/. Acesso em: 16 ago. 2011 (com adaptações)

Texto II
Fatores linguísticos, culturais, ideológicos, por exemplo, contribuem
para modular a relação do leitor com o texto, num arco extenso que
pode ir desde a rejeição ou incompreensão mais absoluta até a adesão
incondicional. Também conta a familiaridade que o leitor tem com o
gênero literário, que igualmente pode regular o grau de exigência e
de ingenuidade, de afastamento ou aproximação.
BRASIL. MEC/SEB. Orientações curriculares para o Ensino Médio: linguagens,
códigos e suas tecnologias. Brasília, 2006, v.1, p. 68.

Considerando os textos acima, é correto afirmar que os


professores

A) devem privilegiar, no Ensino Médio, o estudo de obras da literatura


brasileira e portuguesa, a fim de preparar os alunos para o ingresso
profissional na universidade.

B) devem adotar, no Ensino Médio, metodologias que privilegiam a


história da literatura, porque elas incorporam contextos socioculturais
que favorecem a compreensão da linguagem literária.

133
Fronteiras Literárias na América Latina

C) devem privilegiar o estudo de obras que se ajustam às necessidades


programáticas tanto da Língua Portuguesa quanto das demais discipli-
nas da estrutura curricular, enfatizando a função didático-pedagógica
da literatura e de outros códigos e linguagens.

D) devem buscar a adequação de obras literárias a serem lidas, tomando


como referência a idade dos alunos, a motivação e, ainda, o conteúdo
programático a ser ministrado, favorecendo a interação entre língua
e literatura.

E) devem adotar metodologias que privilegiam o contato direto com


o texto literário e reflexões acerca das relações que o texto estabelece
com outras áreas do conhecimento e com outros códigos e linguagens.

Por sua vez, a questão 22, embora também suponha a ação


pedagógica, espera que o estudante interprete o texto de abertura,
para “depreender” a resposta correta:
Para se formar e poder exercer bem sua profissão, um médico
precisa dominar os saberes científicos, obtidos no curso univer-
sitário, e os saberes da ação, aprendidos durante o trabalho em
hospitais, onde ele compartilha com médicos e enfermeiros o aten-
dimento a pacientes. Se ele tiver somente o saber científico, pode
até se tornar um bom conhecedor da medicina, mas jamais será
um bom médico. Com os professores, ocorre situação semelhante:
sem a prática, o educador não será eficiente em sala de aula.
CHARTIER, Anne-Marie. Nova Escola. São Paulo: Abril. n.
236, out./2010.
Estabelecendo a analogia entre as ideias manifestadas pela
especialista francesa no texto acima e a formação e prática do
professor de literatura em sala de aula, depreende-se que este deve

A) Relacionar os saberes científicos aos saberes da ação, o que lhe


permite fazer opções pedagógicas, e, ao aplicar domínios disponibi-
lizados pela teoria, interferir nos objetivos definidores do conheci-
mento literário.

B) atualizar sua competência, ao discutir, por exemplo, obras com as


quais não teve contato em sua formação, o que permite uma relação

134
Fronteiras Literárias na América Latina

simétrica entre professor e aluno, condição indispensável na análise


crítica de obras literárias.

C) reconhecer as diferenças entre o domínio das teorias e os métodos


de ensino de literatura, mas concebê-los como irrelevantes frente
ao acompanhamento do progresso e das dificuldades dos alunos em
leitura de obras literárias.

D) usar com competência, durante o ano, todo o livro didático, o qual


proporciona o domínio teórico necessário para abordar o historicismo
literário, indispensável ao entendimento de obras de quaisquer gênero
e época.

E) conceber a formação teórica como instância de abstrações, composta


de generalizações e conceitos obrigatórios nos curriculares universi-
tários, mas distanciada da prática escolar.
A questão 25, também focada na prática de ensino, tem
natureza doutrinária, ao condenar o emprego da literatura para
a transmissão de regras gramaticais e ao invocar os princípios
teóricos dos PCN:
Nos excertos I e II a seguir, encontram-se algumas atividades
propostas em livros didáticos de língua portuguesa.

Excerto I
Atividade com trecho do poema O operário em construção,
de Vinícius de Moraes.
Proposta:
(...)
2. Aponte todos os substantivos presentes no texto.
3. Aponte um substantivo abstrato presente no texto.
4. Aponte um substantivo concreto presente no texto.
5. Qual é o único substantivo presente no texto que admite
uma forma para o masculino e outra para o feminino?
6. Há, no texto, algum substantivo próprio? Em caso
afirmativo, aponte-o.

135
Fronteiras Literárias na América Latina

Excerto II
Atividade com o poema Os dias felizes, de Cecília Meireles.
Proposta:
1. Reescreva os versos substituindo as palavras destacadas
por suas formas plurais.
a) “A doçura maior da vida/flui na luz do sol”
b) “formigas ávidas devoram/ a albumina do pássaro
frustrado.”
AZEVEDO, D. G. Palavra e criação: língua portuguesa. São
Paulo: FTD, 1996. v.8, p. 102 (com adaptações).

As atividades em I e II

A) enfatizam a relação lúdica do leitor com o poema, o que permite o


aprofundamento da leitura.

B) usam os poemas como recurso e pretexto para trabalhar com os


alunos tópicos de gramática, ignorando aspectos mais relevantes.

C) são coerentes com os Parâmetros Curriculares Nacionais, principal-


mente por obedecerem o princípio de que não se formam bons leitores
oferecendo materiais de leitura empobrecidos.

D) exploram o sentido dos poemas, a partir de tópicos de gramática,


o que está em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais,
que propõem, para o Ensino Fundamental, o desenvolvimento das
habilidades linguísticas básicas.

E) permitem a aproximação do aluno com a linguagem de poema,


atendendo, assim, a um dos objetivos dos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental, o de conhecer e analisar criti-
camente os usos da língua como veículo de valores e preconceitos de
classe, credo, gênero ou etnia.

Na parte final da prova, futuros licenciados e futuros bacharéis


respondem igual número de questões, mas de conteúdo diverso. No
“Componente Específico” das Licenciaturas, predominam tópicos
relativos à didática, enquanto que no “Componente Específico” do
Bacharelado retornam perguntas relativas à língua, linguística e
literatura; mesmo assim, encontra-se nesse segmento a questão
39, relacionada às práticas de leitura e ensino.

136
Fronteiras Literárias na América Latina

Por sua vez, aos licenciandos são colocadas duas perguntas


sobre a ação do professor em sala de aula: as questões 31, relativa
ao papel das adaptações, e questão 35, que fecha a prova:
Na tradição escolar brasileira, havia um evento denominado
“dar lição”, em que se pedia ao aluno que se levantasse, lesse um
texto indicado e, em seguida, criasse uma paráfrase do que havia
lido, usando palavras próprias.
Segundo as atuais teorias e metodologias de ensino da língua,

A) a leitura silenciosa coletiva deve ceder lugar à leitura em voz alta.

B) a leitura em voz alta por um único aluno não traz benefícios aos
demais colegas.

C) o hábito de criar um texto parafrástico é nocivo porque favorece


interpretações equivocadas.

D) a referida tradição deve ser abandonada porque o ato de levantar-se


contribui fortemente para a insegurança linguística do aluno.

E) o professor poderá, na oportunidade de ouvir a paráfrase constru-


ída pelo aluno leitor, fazer mediações, para facilitar a compreensão
da leitura.

Comparando as duas situações em que a literatura se


apresenta na prova do ENADE, verifica-se ser ela presidida
por concepções distintas. A primeira diz respeito à perspectiva
histórico-literária ou teórico-literária autossuficiente e autocen-
trada, já que se refere a estilos de época sem contextualizá-los ou
a elementos de ordem poética. A segunda concepção privilegia a
leitura enquanto rede de relações – com outras obras literárias,
com a situação do leitor, com práticas de ensino. A literatura é
examinada enquanto recepção, focada na reação do leitor à per-
cepção da obra literária. Problemas de natureza histórica não se
mostram, assim como é indiferente se essa recepção reconhece ou
não traços distintivos de literaridade – a chamada especificidade
da linguagem artística.

137
Fronteiras Literárias na América Latina

Porém, essas concepções não são compatíveis: entender a


literatura enquanto singularização da linguagem verbal, mesmo
quando essa singularização assume características próprias a
cada período da história, determinando estilos distintos, significa
excluir a percepção do leitor, sobretudo quando esse é um aluno,
seja o do ensino básico (como supõem as questões 18, 31, 35 e 39),
seja o do ensino superior (questão 22), vale dizer, aquele que, no
presente da realização da prova, responde as questões formuladas.
Essas, por sua vez, parecem ter em vista reforçar os pressupos-
tos dos PCN, não por acaso citado na prova (questão 25; questão
33, não reproduzida). Estabelece-se, assim, um círculo vicioso:

• o estudante do curso de Letras precisa conhecer e aceitar os PCN,


para poder responder corretamente as interrogações relativas ao
ensino de literatura;
• ficará, pois, apto a seguir esses pressupostos, quando transformar
seu saber em ação pedagógica (teor da questão 22);
• os PCN fundamentam a prova do ENEM, que exclui a literatura;
• o professor, formado pelos PCN durante o curso de Letras, acaba
por ficar sem objeto de trabalho, ao atuar junto ao ensino básico.

Não apenas essas contradições são identificáveis na prova.


Vale destacar ainda que, nas duas questões relativas ao ensino
da literatura, nem todas as alternativas estão equivocadas, uma
vez que elas dizem respeito a práticas vigentes e legítimas, ainda
que discutíveis. Independentemente de sua validade teórica ou
aplicada, a resposta considerada correta na questão 18 – “devem
adotar metodologias que privilegiam o contato direto com o texto
literário e reflexões acerca das relações que o texto estabelece com
outras áreas do conhecimento e com outros códigos e linguagens”
–, corresponde acima de tudo ao que é preconizado pelos PCN.
A resposta reconhecida como acertada parece induzir a um
comportamento julgado ideal; não por outra razão o enunciado
de cada uma das alternativas é precedido pelo verbo “dever”, indi-
cando o teor normativo da formulação. Como, porém, essa prática
não é universal, nem pode ser obrigatória, a questão torna-se fala-

138
Fronteiras Literárias na América Latina

ciosa, instigando o candidato a mentir, se, ao lecionar, ele emprega


qualquer das outras metodologias. Problema similar constata-se
nos enunciados das alternativas de resposta na questão 22, presi-
didas também pelo verbo “dever”, deslocado agora para o topo da
formulação, assim como ocorre na questão 25, quando se critica o
uso de trechos literários para exercícios lexicais ou morfológicos
(aliás, aqueles que o ENEM, em 2010, valida, a julgar pelo teor
da questão 25 daquela prova).
Contudo, em nenhum momento, é discutido se utilizar ape-
nas fragmentos de obras literárias é a melhor maneira de ensinar
Literatura.
Considerando que a prova do ENADE não exclui a Literatu-
ra, e até propõe uma tomada de posição – ainda que previamente
prescrita – sobre sua docência, pode-se considerar que, no âmbito
dos cursos de Letras, o ensino da Literatura é uma disciplina em
extinção? De uma parte, a resposta é negativa, já que, na universi-
dade, o aluno aprende o conteúdo literário e a maneira de difundi-lo
em sala de aula. De outra parte, a resposta é positiva, já que, em
primeiro lugar, a literatura que ele ensina não é a que estuda no
curso de Letras, a se julgar pela diferença entre os conceitos que
presidem as questões. Além disso, perguntado a respeito, por meio
de questões relativas à ação em sala de aula, ele só responderá
corretamente se aceitar e, portanto, reiterar os pressupostos que
presidem os PCN, que pautam a prova do ENEM, onde a literatura
é uma ilustre ausente.
Assim, a prova do ENADE, aplicada ao ensino superior, com-
pleta, de certo modo, o processo iniciado no Ensino Médio. Resulta
a marginalização da literatura, logo, a diminuta necessidade de
aprendê-la e, por consequência, de ensiná-la.

139
Fronteiras Literárias na América Latina

REFERÊNCIAS

FISCHER, Luís Augusto e outros. A Literatura no Exame Nacional do


Ensino Médio (ENEM). Nonada Letras em Revista.Porto Alegre, ano
15, n. 18, p. 111-126, 2012.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Carlos Meira. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2009.
ZILBERMAN, Regina. Letramento literário: não ao texto, sim ao livro.
In: PAIVA, Aparecida; MARTINS, Aracy; PAULINO, Graça; VERSIANI,
Zélia. Literatura e letramento. Espaços, suportes e interfaces. O jogo
do livro. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

140
Fronteiras Literárias na América Latina

Contribuições hispano-americanas
para a constituição da historiografia
literária do Brasil: Santiago Nunes Ribeiro
e Eduardo Perié
Roberto Acízelo de Souza1

Resumo

Num período que se estende de 1825 – data de uma carta de


José Bonifácio, em que pela primeira vez aparece a expressão “his-
tória literária do Brasil” – a 1888 – data da publicação da História da
literatura brasileira, de Sílvio Romero –, sucedem-se várias iniciativas
visando à instituição correlativa de uma literatura autenticamente
brasileira e de sua história, esta concebida como dispositivo na-
turalmente apto a caracterizar e descrever os contornos daquela.
Trata-se de trabalhos de vária ordem, como prólogos de antologias,
declarações de princípios sobre a literatura nacional, projetos para
a elaboração da sua história, análises de obras específicas conside-
radas representativas do nacionalismo literário, histórias literárias
propriamente ditas. Nesses esforços inaugurais para a instituição da
literatura nacional do Brasil e sua história, figuram contribuições
de dois autores da América Hispânica: um deles é mais ou menos
conhecido, o provavelmente chileno Santiago Nunes Ribeiro; o
outro, contudo, um certo Eduardo Perié, permanece pouquíssimo
estudado, e as escassas suposições a respeito de sua identidade o
apontam como natural da Argentina. Considerando a pouca difusão
dos trabalhos desses autores, acreditamos justificar-se uma sumária
apresentação descritiva de seus estudos.

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) / CNPq / FAPERJ; acizelo@bighost.com.br

141
Fronteiras Literárias na América Latina

Palavras-chave: século XIX; romantismo; nacionalismo; relações


literárias Brasil / América Hispânica

Abstract

From 1825 – date of a letter by José Bonifácio in which the


expression “literary history of Brazil” turns up for the first time
– to 1888 – year of the publication of the History of Brazilian
Literature by Sílvio Romero –, a number of enterprises aiming at
the institution of an authentically Brazilian literature and its his-
tory came about, the latter conceived as a mean able to character-
ize and describe the former. We are talking about a great variety
of works, like prologues of anthologies, manifestos in favour of
the national literature, projects for the elaboration of its history,
analysis of specific works taken as representative of the literary
nacionalism, literary histories properly speaking. In these inau-
gural efforts in favour of the institution of the Brazil’s national
literature and its history, the contribution of two Hispanic authors
are included: one of them are more or less known, the probably
Chilian Santiago Nunes Ribeiro; the other, however, Eduardo
Perié, remains scarcely studied, and the few suppositions about
his identity points him as an Argentine. Taking into account the
limited diffusion of these author’s works, we think it is justified
a summary description of their studies.

Keywords: nineteenth century; romanticism; nationalism; literary


relations between Brazil and Hispanic America

Numa carta pessoal de 1825, José Bonifácio discorre sobre


as fontes que se deveriam considerar para a tarefa de escrever
a “história literária do Brasil”, expressão que, pelo menos à luz
do estado atual das pesquisas, ali se encontra empregada pela
primeira vez. A partir de então, sucedem-se várias iniciativas vi-
sando à instituição correlativa de uma literatura autenticamente

142
Fronteiras Literárias na América Latina

brasileira e de sua história, esta concebida como dispositivo tido


por naturalmente apto a caracterizar e descrever os contornos
daquela. Trata-se de trabalhos de vária ordem, como prólogos de
antologias, declarações de princípios sobre a literatura nacional,
projetos para a elaboração da sua história, análises de obras es-
pecíficas consideradas representativas do nacionalismo literário,
histórias literárias propriamente ditas, todas mais ou menos adver-
tidas de sua feição incipiente, donde a autoconsciência da própria
incompletude e imperfeição. Por fim, em 1888, com a publicação
da História da literatura brasileira de Sílvio Romero, pode-se con-
siderar consolidado o processo, tendo em vista a feição de modelo
– inclusive às vezes negativo – que a obra do crítico sergipano
assumiria para as diversas revisões da disciplina empreendidas no
curso do século XX. 2
Desse processo Guilhermino César se propôs a nos oferecer
uma imagem, mediante uma edição dos principais textos que o
perfizeram. Programou assim a organização de três volumes,
um consagrado a autores europeus e dois outros aos nacionais
que marcaram presença nesse ciclo de trabalhos, tendo chegado
a publicar, no entanto, apenas o primeiro dos livros da série, o
até hoje prestimoso Historiadores e críticos do romantismo: a con-
tribuição europeia – crítica e história literária, aparecido em 1978.3
A obra, aliás, acabou por estabelecer um corpus aparentemente
exaustivo, em que figuram Friedrich Bouterwek, Simonde de
Sismondi, Ferdinand Denis, Almeida Garrett, C. Schlichthorst,
José de Gama e Castro, Alexandre Herculano e Ferdinand Wolf.
2 Considerando-se a interveniência exclusiva de autores brasileiros, a data inaugural do processo
é, como vimos, 1825; no entanto, se tivermos em conta a contribuição de estrangeiros, deve
recuar-se seu marco zero para 1805, tendo em vista a ponta feita pela literatura brasileira, me-
diante menção a Antônio José da Silva e Cláudio Manuel da Costa, na obra História da poesia e da
eloquência portuguesa, de Friedrich Bouterwek, publicada naquele ano como v. 4 da obra coletiva
História da poesia e da eloquência desde o fim do século XIII (12 v., 1801-1819).
3 O módulo do projeto consagrado aos autores nacionais teria por título Historiadores e críticos
românticos, e corresponderia aos volumes 2 e 3 da série. De certo modo, a lacuna começaria a
ser preenchida com a publicação, 20 anos depois, em 1998, do volume O berço do cânone: textos
fundadores da história da literatura brasileira, organizado por Regina Zilberman e Maria Eunice
Moreira, em que figuram quase exclusivamente autores brasileiros, com exceção de Almeida
Garrett, Emílio Adet e Antônio Deodoro de Pascoal. No ano subsequente, as professoras
gaúchas estenderam o corpus dos textos, desta vez em publicação integrada apenas por autores
nacionais: trata-se do v. 5, nº 2 dos Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, que tem
por título “Crítica literária romântica no Brasil: primeiras manifestações”.

143
Fronteiras Literárias na América Latina

No entanto, havia omissões no inventário do professor mineiro,


entre as quais, de saída, para ficarmos no âmbito europeu, as de
dois nomes espanhóis: Juan Valera, que em 1855 havia publicado
o ensaio “De la poesía del Brasil”, e Antônio Deodoro de Pascoal,
autor de um “Estudo sobre a nacionalidade da literatura”, apare-
cido em 1862 e consagrado a uma afirmação romântica da feição
nacional e da originalidade das letras brasileiras.4 Se, contudo,
pensarmos em autores hispano-americanos, podemos aumentar
ainda mais o corpus estabelecido por Guilhermino César, e nesse
caso contemplaríamos também, conforme o que até o momento
pudemos constatar, as contribuições de Santiago Nunes Ribeiro,
Eduardo Perié e José Mármol. Como este último mal começa a
ser revelado mediante as pesquisas de Maria Eunice Moreira,5 por
ora trataremos tão somente dos dois primeiros, no pressuposto de
que a escassa difusão de seus trabalhos – caso sobretudo de Perié
– justifique uma sumária apresentação basicamente descritiva de
seus estudos.

Comecemos por Santiago Nunes Ribeiro.6


Segundo os poucos registros conhecidos acerca de sua vida,
seria natural do Chile,7 não se sabendo ao certo o ano de seu
nascimento. Tendo ficado órfão, um tio sacerdote, foragido por
questões políticas, o teria trazido para o Brasil ainda menino,
falecendo logo em seguida. Radicando-se na cidade de Paraíba
do Sul, província do Rio de Janeiro, trabalhou como comerciário,
transferindo-se depois para a capital do Império, onde sua juven-
tude e origem humilde não impediriam que logo lhe reconheces-
sem alta capacidade intelectual. Nessa mesma época, começou a
4 A autoria do texto vem atribuída a Adadus Calpe, pseudônimo do escritor.
5 Ver Moreira, 2012.
6 Neste parágrafo e no subsequente, aproveitamos, com modificações mínimas, o texto de
apresentação do autor elaborado para a obra Historiografia da literatura brasileira: textos fundadores,
programada para publicação em breve.
7 Joaquim Norberto, no entanto, lhe atribui nacionalidade peruana (SILVA, 2002, p. 73); e Wilson
Martins não se decidiu quanto a esse detalhe, ora acompanhando Norberto (MARTINS, 1977-
1979, v. 3, p. 115), ora apontando-o como chileno (MARTINS, 1983, v. 1, p. 29 e 136).

144
Fronteiras Literárias na América Latina

atuar no magistério – Ateneu Fluminense e Colégio Pedro II – e


na imprensa, publicando especialmente na revista romântica Mi-
nerva Brasiliense, do Rio de Janeiro, da qual foi colaborador desde
o início, chegando a tornar-se mais tarde seu redator. Integrou
ainda os quadros de duas importantes instituições do seu tempo,
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Conservatório
Dramático. De saúde frágil, morreu, segundo Antonio Candido,
“na quadra dos vinte anos”, na cidade mineira de Rio Preto, no
ano de 1847 (CANDIDO, 1971, v. 2, p. 337).
Sílvio Romero e José Veríssimo praticamente ignoram sua
contribuição à nossa historiografia literária, dedicando-lhe apenas
referências sumaríssimas, o que não deixa de surpreender, pois ele
assumiu posições coincidentes com as destes críticos: acentuou o
caráter nacional da literatura brasileira, ponto de vista, com se
sabe, comum a Romero e Veríssimo, e ressaltou a necessidade de
distinguir-se, no âmbito vasto da produção escrita em geral, o cír-
culo mais específico do que chama “literatura propriamente dita”,
preocupação nada comum ao longo de todo o século XIX, e que,
no entanto, décadas adiante, se revelaria tese especialmente cara
a José Veríssimo. Afrânio Coutinho e Antonio Candido, contudo,
revelam grande apreço por sua obra, não obstante sua pequena
extensão. Coutinho assinala que poucos teriam compreendido tão
bem quanto ele a questão do caráter nacional da literatura brasi-
leira (COUTINHO, 1980, v. 1, p. 42), e Candido, lamentando-lhe
a morte prematura, “[...] quando apenas começava a escrever e
ordenar as ideias” (CANDIDO, 1971, v. 2, p. 337), chega a afirmar
que Nunes Ribeiro – sem importância como poeta, autor que foi
de “poucas poesias [...] péssimas” (CANDIDO, v. 2, p. 390) – “[...]
morreu cedo demais para confirmar o que sugerem seus poucos
escritos, isto é, que seria talvez o melhor crítico de sua geração”
(CANDIDO, v. 2, p. 334).
No seu percurso de estudioso, façamos agora alguns desta-
ques.
Primeiramente, assinale-se que foi um dos primeiros profes-
sores da nossa área (se é que não foi mesmo o primeiro), tendo

145
Fronteiras Literárias na América Latina

lecionado retórica8 no prestigioso Colégio Pedro II, numa época


em que, não havendo ainda faculdades de letras no Brasil, era nos
grandes colégios que se obtinha formação superior em línguas e
literaturas. Nessa condição de ocupante da cadeira de retórica,
aliás, faria, em 1843, na presença do jovem imperador Pedro II, o
discurso de abertura na cerimônia de colação de grau da primeira
turma formada por aquele estabelecimento de ensino (DÓRIA,
1997, p. 55).
Foi igualmente pioneiro no empenho para a constituição de
uma historiografia da literatura brasileira. De fato, antes do seu
ensaio “Da nacionalidade da literatura brasileira”, publicado em
duas partes na Minerva Brasiliense, em 1843, pouco havia sido
feito nessa direção: entre os estrangeiros, apenas o Résumé de
Ferdinand Denis (1826), e mais passagens de Bouterwek (1805),
Sismondi (1813) e Garrett (1826); e entre os nacionais, com ex-
ceção do “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil” (1836),
de Gonçalves de Magalhães, e do “Bosquejo da história da poesia
brasileira” (1841), de Joaquim Norberto, aproximações mais ou
menos circunstanciais, devidas a autores diversos.9
Seu ensaio, contudo, não é relevante apenas pelo pioneirismo.
Inicialmente, vejamos sua importância histórica.
O texto na verdade, veiculado num periódico, acaba configu-
rando uma polêmica sobre tema privilegiado pela agenda cultural da
época: a questão do caráter nacional das literaturas, e em particular
o da brasileira. Assim, no ritmo lento de então, configura-se como
intervenção num debate que remontava a 1835, quando o publicista
pernambucano José Inácio de Abreu e Lima sustentara a ideia de
que o Brasil se reduziria à barbárie, caso rejeitasse a inscrição de
suas letras no âmbito da literatura portuguesa, por mais notório
que esta, por sua vez, fosse débil e pobre (LIMA, 1835, p. 69). Anos
8 A disciplina de retórica, no ensino brasileiro, figurou nos currículos até meados da década
de 1880. Já a partir dos anos de 1850, porém, começa a admitir no seu programa tópicos de
literatura brasileira, passando aos poucos, desde a década subsequente, a dividir espaço com
esta última nos currículos colegiais. Por fim, nos anos de 1890, a retórica como disciplina
é extinta, sendo substituída no sistema escolar por literatura nacional.
9 José Bonifácio (1825), Januário da Cunha Barbosa (1829), Justiniano José da Rocha (1833),
Gonçalves de Magalhães / Torres Homem / Araújo Porto Alegre (1834), Abreu e Lima (1835),
Pereira da Silva (1836), Gonçalves de Magalhães (1837).

146
Fronteiras Literárias na América Latina

mais tarde – dezembro de 1842 –, um refugiado político português


que vivia no Rio de Janeiro, José de Gama e Castro, em dois artigos
publicados no Jornal do Comércio, reivindica, sob o pseudônimo
“Um português”, como títulos de glória da nação portuguesa, entre
outros feitos, o da navegação aérea, creditado ao padre Bartolomeu
Lourenço de Gusmão, natural de Santos. Pouco depois – janeiro
de 1843 –, no mesmo jornal, publica-se carta assinada por “Um
brasileiro”, queixando-se de que o artigo de “Um português” teria
perpetrado “uma usurpação [...] aos Brasileiros” (in CÉSAR, 1978,
p. 121), pois seria absurdo considerar-se português um indivíduo
nascido em Santos. E reforça seu argumento, trazendo a literatura
para o âmbito da controvérsia:

Porventura diremos que Cláudio Manuel da Costa, ou Fr.


Francisco de S. Carlos são literatos portugueses, ou que
as obras de qualquer deles pertencem à literatura portu-
guesa? [...] Pois se os escritos destes dous homens [...]
fazem incontestavelmente parte da literatura brasileira,
claro está que os inventos do padre Bartolomeu Lourenço
de Gusmão fazem parte dos inventos dos Brasileiros (in
CÉSAR, 1978, p. 121).

Logo em seguida, porém, “Um português” replica, senten-


ciando, no que diz respeito ao aspecto literário da querela, que
“literatura brasileira é uma entidade que não só não tem existên-
cia real, mas que até não pode ter existência possível”, pois “[a]
literatura não toma o nome da terra, toma o nome da língua”
(in CÉSAR, 1978, p. 124), razão por que as letras produzidas no
Brasil integrariam a literatura portuguesa, e ponto final. Ora,
Nunes Ribeiro, com seu ensaio de novembro / dezembro de 1843,
reabre a questão, refutando as teses de Abreu e Lima e de Gama
e Castro, as quais, embora por caminhos diferentes e com moti-
vações distintas, tinham chegado à conclusão comum de negar
a possibilidade de uma literatura brasileira; empreende assim a
defesa do caráter nacional das letras do Brasil, aliás com razões
bem mais sólidas e ponderadas do que os argumentos ligeiros e
muitas vezes simplórios de seus adversários.

147
Fronteiras Literárias na América Latina

Desse modo, a defesa do nacionalismo literário que empre-


ende chega mesmo a dispensar certos lugares-comuns da crítica
do seu tempo. Conclui assim que a nacionalidade da literatura se
verificaria não como mera evidência exterior – a representação
da paisagem típica do País, por exemplo –, mas, nos termos do
próprio autor, como certo “sentido oculto” ou “intimidade”. A
tese – logo se vê –, numa época em que a figuração da natureza
do País era generalizadamente apontada como sinal inequívoco
de nacionalismo literário, apresentava-se então como um ponto de
vista arrojado e bastante pessoal. De resto, tratava-se de reflexão
coincidente com a justamente célebre ideia machadiana exposta no
ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de naciona-
lidade”, formulada, porém, apenas em 1873, como bem assinalou
Afrânio Coutinho (1968-1971, v. 2, p. 307; 1968, p. 43 e 187; 1980,
v. 1, p. 42), e – acrescentamos nós – num contexto pós-romântico,
e como tal já marcado pelo declínio do pensamento nacionalista
Para aferir-se a coincidência das formulações, não obstante as três
décadas que as separam, comparem-se as passagens:

No exame das poesias brasileiros cumpre não ver somente


a exterioridade da arte, que muitas vezes apresenta as
formas gregas e romanas; cumpre atender ao sentido oculto,
à intimidade [...] (RIBEIRO, 1843b, p.115; grifo nosso).

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma lite-


ratura nascente, deve principalmente alimentar-se dos
assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabele-
çamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que
se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento
íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país,
ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço (ASSIS, 1873, p. 107; grifo nosso).

A par da relevância histórica, o ensaio também se distingue


por seu vigor conceitual. Nesse sentido, além de sua refinada
caracterização do modo por que as obras literárias incorporam
o elemento nacional, deve-se destacar seu empenho em propor
um conceito de literatura stricto sensu, num momento em que isto

148
Fronteiras Literárias na América Latina

não configurava uma questão para os estudos literários, então


perfeitamente satisfeitos com a ideia segundo a qual se incluiriam
na literatura todo e qualquer texto escrito, e até manifestações
culturais não escritas. Para se avaliar sua singularidade nesse
quesito, contraste-se uma definição tipicamente oitocentista de
literatura com seu esforço de discernir, no vasto campo das letras,
um círculo mais estreito e propriamente literário:

A literatura é o desenvolvimento das forças intelectuais to-


das de um povo; é o complexo de suas luzes e civilização; é
a expressão do grau de ciências que ele possui; é a reunião
de tudo quanto exprimem a imaginação e o raciocínio pela
linguagem e pelos escritos (SILVA, 1843, p. 22).

Sem dúvida nenhuma a palavra literatura na sua mais


lata acepção significa a totalidade dos escritos literários
ou científicos, e é neste sentido que dizemos “literatura
teológica, médica, jurídica.”. Mas daqui se não segue que
devamos admitir tal acepção quando se trata da literatura
propriamente dita. Ninguém ainda procurou a literatura
italiana, inglesa ou francesa nas Memórias da Academia
del Cimento, nas Transações filosóficas ou no Journal des
Savants ou de Physique. Não é de Lancisi, Galileo, Volta e
Galvani que se nos fala na história literária, não de Boyle,
Cavendish, Davy, etc., mas de Dante, Petrarca, Ariosto,
Maquiavel, Tasso, Shakespeare, Milton, Bossuet, Corneil-
le (RIBEIRO, 1843a, p. 8).10

Ressalte-se, por fim, que, apesar de sua densidade e importân-


cia, o estudo de Santiago Nunes Ribeiro permaneceu praticamente
inacessível por quase 150 anos: somente em 1980 seria objeto de

10 A propósito, observa-se que, quase 50 anos depois, em 1888, Sílvio Romero continuava
guardando fidelidade à concepção dominante no século XIX, objeto da restrição de Nunes
Ribeiro: “[...] para mim a expressão literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e
historiadores alemães. Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo:
política, economia, arte, criações populares, ciências... e não, como era costume supor-se
no Brasil, somente as intituladas belas-letras, que afinal cifravam-se quase exclusivamente
na poesia!...” (ROMERO, 1953-1954, v. 1, p. 60). E não procede sua observação de que era
“costume” no Brasil circunscrever a literatura às chamadas belas-letras; ao contrário, como
está amplamente documentado, o ponto de vista hegemônico — e mesmo quase absoluto,
não fosse, por exemplo, um Nunes Ribeiro — coincide com o que se manifesta no citado
trecho de Pereira da Silva.

149
Fronteiras Literárias na América Latina

reedição, incluída que foi a sua primeira parte na antologia Cami-


nhos do pensamento crítico, então publicada por Afrânio Coutinho.
Bem, pelo menos para efeito deste texto, tomamos Nunes
Ribeiro como hispano-americano; a rigor, contudo, considerando
que de chileno – ou peruano – ele não teria mais do que o lugar
de nascimento, pois veio menino para o Brasil e aqui se criou
e passou toda a sua vida, seria preferível, como o faz Antonio
Candido, considerá-lo antes um “brasileiro adotivo” (CANDIDO,
1971, v. 2, p. 336).

Quanto a Eduardo Perié, sua vida é ainda menos conhecida do


que a de Nunes Ribeiro, e parece que seu caso é bem diferente. Que
não era brasileiro se infere de uma passagem do texto preambular
de seu livro, em que declara: “com [...] fidalga benevolência [...]
fui recebido desde que pisei terras brasileiras” (PERIÉ, 1885, p.
7). Pela informação sumária, como logo se vê, não é possível saber
quando veio para o Brasil e a duração de sua permanência, mas ao
mesmo tempo não se pode descartar que tenha sido longa, e até
talvez definitiva. Aliás, a julgar pela circunstância de ter escrito
sua obra em bom português, não seria despropositado pensar-se
numa estadia prolongada entre nós, sem o que dificilmente po-
deria ele alcançar tamanho domínio da nossa língua. Por outro
lado, quanto à sua nacionalidade, até onde nos foi possível apurar,
existe apenas um frágil indício de que era argentino: o fato de ter
sido o seu livro publicado em Buenos Aires, por um selo editorial
de sua propriedade: Eduardo Perié Editor. Fora isso, nenhuma
notícia mais circunstanciada, apenas referências ligeiríssimas,
quando não contraditórias ou simplesmente erradas;11 exceção
é o ensaio “Uma história singular: Eduardo Perié e a literatura
11 Nos seis volumes de A literatura no Brasil (1968-1971), encontram-se três menções: v. 1, p. 198 e
219; v. 6, p. 235; nos dois volumes de A crítica literária no Brasil (1983), Wilson Martins dedica-lhe
um parágrafo (v. 1, p. 259); e nos dois de Literatura brasileira (1999), José Aderaldo Castello o
refere por duas vezes: na primeira referência, o dá como “estrangeiro” (v. 1, p. 177); na segunda,
como brasileiro (v. 2, p. 510). Afrânio Coutinho, por seu turno, em A tradição afortunada (1968,
p. 23), qualifica como “pequeno manual” o livro de Perié, na verdade alentado volume de 442
páginas.

150
Fronteiras Literárias na América Latina

colonial brasileira”, de Maria Eunice Moreira, primeiro trabalho


analítico – e, que saibamos, até agora único – dedicado à obra do
autor. Enfim, dessa figura tão obscurecida pela história, talvez por
enquanto só seja possível dizer com segurança que foi, nos termos
da literatura comparada tradicional, um intermediário, na medida
em que se dedicou a tornar mais bem conhecida a literatura bra-
sileira por parte do público argentino.12
Seu único livro conhecido13 – A literatura brasileira nos tempos
coloniais do começo do século XVI ao começo do XIX: esboço histórico
seguido de uma bibliografia e trechos de poetas e prosadores daquele perí-
odo que fundaram no Brasil a cultura da língua portuguesa –, conforme
explicação algo confusa que fornece no texto introdutório, foi
concebido como parte de projeto mais extenso e ambicioso, consti-
tuindo assim o primeiro volume de uma “Biblioteca” (Coleção?), ao
que parece a ser integrada por diversos volumes que “pretend[ia]
escrever a respeito do Brasil e dos brasileiros, e com cujo produto
esper[ava] poder percorrer e estudar a vastíssima existência d[o]
império” (PERIÉ, 1885, p. 8). Ainda conforme suas explicações,
o trabalho teve no seu amigo Félix Ferreira14 um incentivador e
consultor, sendo-lhe devidas “todas as notas, indicações e grande
parte das obras [consultadas], todas as notícias bibliográficas, e
a recopilação dos estudos que outras penas [...] têm feito sobre a
literatura brasileira” (PERIÉ, 1885, p. 8-9).

12 Não dá para ter certeza, contudo, que tal tenha sido sua intenção, pois no prefácio (“Ao
leitor”) declara apenas que seu objetivo era estudar e conhecer o Brasil. Mas, se de fato
havia o objetivo tácito de difundir na Argentina a cultura literária brasileira, não deixa de ser
estranho que tivesse escrito sua obra em português. Pois não seria mais eficaz, considerando
que se destinava ao público argentino, escrevê-la em espanhol?
13 Deve-se creditar-lhe, no entanto, segundo informa Maria Eunice Moreira, além deste livro
de autoria própria, a tradução da obra Paris en América, de Eduardo Laboulayle, publicada
em Sevilha, no ano de 1870 (MOREIRA, 1999, p. 393).
14 Personagem obscuro, de que restaram poucas notícias. Sacramento Blake, contudo, dele
nos fornece um 3x4, seguido de extensa lista de obras de sua autoria, dos mais diversos
gêneros — de romances a livros didáticos e manuais práticos —, publicadas no período
que se estende de 1867 a 1892: “Natural do Rio de Janeiro, muito jovem foi empregado na
Biblioteca Nacional e dedicou-se às letras e ao jornalismo [...]. Estabeleceu-se em 1877 ou
1888 com comércio de livros [...]; pouco depois, porém, tornou ao jornalismo e às letras”
(BLAKE, 1893, p. 332). Começa, no entanto, a sair do esquecimento, valorizado como
pioneiro no estudo das belas artes no Brasil, com a reedição do que parece ter sido sua obra
principal, originalmente publicada em 1885: Belas arte: estudos e apreciações. Porto Alegre:
Zouk, 2013.

151
Fronteiras Literárias na América Latina

A obra, como explicita seu título, consiste num estudo – bas-


tante extenso e minucioso, por sinal – sobre as letras produzidas
no Brasil no período que se estende do século XVI ao início do
XIX. Além do prólogo já referido (“Ao leitor”), subdivide-se em
duas grandes partes.
A primeira se intitula “A literatura brasileira: do século XVI
ao começo do XIX; esboço histórico”, a qual, por sua vez, se sub-
divide em sete capítulos. No primeiro, discorre o autor sobre a
formação da monarquia portuguesa e sua literatura; no segundo,
sobre os condicionamentos culturais e étnicos da literatura brasi-
leira, e no terceiro, insiste em contribuições indígenas e populares
que teriam determinado a originalidade e o caráter essencialmente
nacional da literatura do Brasil. A partir do quarto capítulo, come-
ça a narrar o processo literário estritamente considerado: neste,
trata dos séculos XVI e XVII; no quinto, depois de considerações
gerais, analisa a épica do século XVIII; no subsequente, dedica-
se, sobretudo, à lírica do mesmo período; finalmente, no sétimo e
último capítulo, oferece um panorama das primeiras duas décadas
do século XIX, ocupando-se, pois, com o período preparatório e
imediatamente anterior à independência política do País.
A segunda parte tem por título “Ensaio bibliográfico da lite-
ratura brasileira nos tempos coloniais”. Divide-se em 29 capítulos,
cada um dos quais dedicado a estudo específico sobre determina-
do escritor, e muitas vezes constituídos por longas transcrições
de textos do autor estudado, o que confere a este segmento da
obra a feição complementar de antologia. Propõe assim um câ-
none de escritores nacionais, em geral coincidente com os que
encontramos nas nossas histórias literárias oitocentistas, cânone
em cujo âmbito, a exemplo dos seus congêneres do Oitocentos,
encontramos tanto personalidades literárias que resistiriam ao
crivo crítico-historiográfico do século XX – como, entre diver-
sas, Vieira, Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Tomás
Antônio Gonzaga –, quanto outras que parecem definitivamente
eclipsadas – casos de, entre muitos outros que ainda contaram
com a atenção de Perié, Manuel de Morais, João Mendes da Silva,
Gaspar da Madre de Deus.

152
Fronteiras Literárias na América Latina

Assinale-se, por fim, que, no quadro em que se inscreve, a


obra é verdadeiramente “singular”, fazendo assim jus ao modo
como a qualifica o título do mencionado ensaio de Maria Eunice
Moreira. De fato, se, até o momento de sua publicação, no elenco
de trabalhos dedicados à fundação de uma historiografia literária
nacional, que então já representava uma tradição de mais de meio
século, havia diversos ensaios panorâmicos, ao lado de outros
consagrados a autores ou obras particulares, não existia nenhum
estudo sobre períodos específicos; nesse sentido, a competente e
detalhada história de Perié sobre os “tempos coloniais” das nossas
letras configura contribuição verdadeiramente inaugural.

Bem, arrematemos este breve percurso. Como advertimos


no início, por ora limitamo-nos a uma ligeira apresentação des-
critiva da contribuição dos referidos dois autores no processo de
constituição da historiografia da literatura brasileira, situados
respectivamente nas origens do processo e no limiar do seu ponto
terminal. Pela importância de cada um deles, contudo, não temos
dúvidas de que estão ambos a merecer estudos analíticos mais
detidos e propriamente críticos.

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