Processo de Desenvolvimento Motor

Processo de
Desenvolvimento
Motor
Professora Ms. Priscilla Ferronato

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 Processo de Desenvolvimento Motor

Desenvolvimento 3
Sumário Desenvolvimento da ação 36

O futuro dos estudos em desenvolvimento 42

Referências bibliográficas 44

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 Processo de Desenvolvimento Motor

Desenvolvimento “Mudanças no comportamento motor relacionadas

com a idade” (WILLIAMS, 1989).
O desenvolvimento, definido como um processo
de mudança ao longo de um período de tempo, “Processo de aumento de idade ao longo da
trata-se de um fenômeno popularmente conhecido vida relacionado com mudanças no comportamento
e comentado, mas, ao mesmo tempo, nebuloso. motor” (VANSANT, 1989).
Nebuloso porque se trata de uma definição ampla,
“Desenvolvimento motor representa as mudanças
que não apresenta de forma clara e precisa o
no comportamento motor reflexo da interação entre
fenômeno abordado.
maturação, organismo e ambiente” (THOMAS;
As mudanças estão presentes no dia a dia de THOMAS, 1989).
todos os seres. Tratando dos humanos, é possivel
“Contínua alteração no comportamento ao longo
observá-las desde fetos, bebês e crianças até adultos
do ciclo da vida, realizada pela interação entre as
e idosos por profissionais de diversas áreas, como
necessidades da tarefa, a biologia do indivíduo e as
educadores físicos, fisioterapeutas, médicos etc.
condições do ambiente” (GALLAHUE; OZMUN, 2001).
Onde sua presença fica mais evidente e onde ele é
mais popular, claramente, é durante a infância. Desde
Essas poucas definições estão longe de
a concepção, os pais e familiares acompanham passo
exemplificar de maneira completa todas as formas
a passo o processo de desenvolvimento pelo qual a
pelas quais esse termo foi apresentado. Muitos
criança passa. Essa atenção fica tão evidente durante
foram os pesquisadores que produziram trabalhos
a gestação, quando o tamanho e o peso do feto são
de relevância para a área em diferentes momentos
minuciosamente acompanhados, quanto depois do
da história desses estudos. Cada autor que ousou
nascimento, quando cada nova habilidade que o bebê
cunhar uma definição para desenvolvimento fê-lo
é capaz de fazer é vista como mais uma conquista ao
baseado em sua perspectiva teórica da época, mas,
longo do ciclo da vida. E, assim, pouco a pouco, cada
essencialmente, todas elas tocam no ponto principal:
indivíduo transforma-se em um ser social, com uma
as mudanças.
vida em conjunto que se torna cada vez mais ativa.
As mudanças, alteração de um estado para outro,
Talvez devido à importância que o comportamento
são uma constante na vida dos seres vivos. Elas
tem sobre os eventos ao longo da vida de um indivíduo,
foram estudadas de muitas formas, sob perspectivas
tempos atrás, a psicologia voltou seu interesse para o
diferentes, métodos diferentes, com sujeitos distintos,
estudo do desenvolvimento.
mas, ainda assim, com todos os olhares votados seu
desenvolvimento.
O termo desenvolvimento e suas variações serão
tratados adiante, bem como a evolução acadêmica
Área de pesquisa
da área, as abordagens utilizadas nos estudos e as
novas perspectivas. Toda a confusão em classificar o campo de
pesquisa do desenvolvimento motor está vinculada
As definições
ao uso de diferentes abordagens para a interpretação
dos estudos.
Muitas são as definições para o termo
desenvolvimento. Também diversas são as definições
Ao longo da história, vários conceitos foram
do que é desenvolvimento motor. Alguns exemplos
cunhados para esse campo de pesquisa, que já foi
são:
classificado como sinônimo de educação física quando

3

Gallahue (1989) disse que as crianças precisam
participar de “programas de desenvolvimento motor”.
Também é descrito como uma das três subáreas
que compõem o campo comportamento motor,
juntamento com o controle motor e a aprendizagem
motora (SEEFELDT, 1989); uma subárea dentro de
aprendizagem e controle motor (SCHMIDT, 1988);
uma subdisciplina própria (ROBERTON, 1989; SMOLL,
1982); ou, ainda, uma subdisciplina única que abarca
todas as outras áreas, como fisiologia, educação,
biomecânica etc. (THOMAS, 1989).
Enquanto cada grupo de pesquisadores adota
sua abordagem, cada vez mais, há uma dicotomia
entre as áreas. É preciso ter em vista que a definição
de desenvolvimento motor tem sido praticamente a
mesma para todas as áreas desde que o conceito
passou a ser visto como um processo ao longo da
vida, ou seja, a da Academia de Desenvolvimento
Motor em 1980: “Desenvolvimento motor são as
mudanças no comportamento motor ao longo do
ciclo da vida e os processos que delineiam essas
mudanças”. Ela foi adotada pela grande maioria
da comunidade acadêmica. Porém quais são as
disciplinas ou subdisciplinas que cuidam de estudar
esse fenômeno?
Para responder a essa pergunta, podemos
começar olhando para as áreas em que essas
pesquisas surgiram: a psicologia e a educação física.
Inicialmente, a psicologia contribuiu imensamente
para o avanço nas pesquisas; depois disso, houve
um afastamento dos psicólogos nos estudos do
desenvolvimento, e a educação física foi quem
apresentou maior contribuição para o crescimento do
conhecimento na área nesse período.
Fazendo uma comparação simplificada entre
esses dois grupos, a educação física parece
ter oferecido uma contribuição maior, pois vem
ofecerendo graduação e pós-graduação nessa
área por muitos anos. No entanto, desde que os
psicólogos retomaram o interesse pelos estudos do
desenvolvimento, uma certa confusão começa a
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Processo de Desenvolvimento Motor
crescer entre os pesquisadores da educação física no
que cerca o debate sobre “o que o desenvolvimento
motor realmente é”: uma subdisciplina, uma área
de especialização única ou, ainda, sob um outra
perspectiva, juntamente com outras subdisciplinas,
um campo de estudo. Entender e responder às
questões sobre o que é realmente essa área é
fundamental para entender o que significa e para que
estudar o desenvolvimento motor.
Para compreender o processo de desenvolvimento,
é essencial o conhecimento sobre os processos de
aprendizagem e controle. O conhecimento sobre o
controle é fundamental, pois diz respeito ao papel do
sistema neuromuscular na produção do movimento,
aspecto básico do comportamento. A aprendizagem
é outro aspecto que faz parte do processo de
desenvolvimento, portanto, não pode ser tratada
isoladamente.
Sendo assim, as mudanças observadas no
comportamento motor são fruto da interação entre os
fatores biológicos (sendo estes a maturação de todos
os sistemas, e não somente do sistema nervoso central)
e ambientais (como a aprendizagem). A maturação
dos sistemas e a aprendizagem são os dois lados que
compõem a moeda: ambos são responsáveis pelas
mudanças e pela adaptação que cada indivíduo sofre
ao longo da vida. Por isso, o comportamento, ou as
ações produzidas, é mutuamente dependente desses
fatores A aprendizagem não cabe em um sistema
que ainda não esteja preparado para aprender, e,
ao mesmo tempo, a maturação sofre influências de
várias experiências de aprendizagem do indivíduo.
Na realidade, as pesquisas mais efetivas para o
desenvolvimento deveriam alinhavar o conhecimento
e as abordagens tanto da aprendizagem quanto do
controle sob uma perspectiva desenvolvimental.
Um dos conceitos mais coerentes sobre o
desenvolvimento aponta que desenvolvimento motor
não é nem uma disciplina, nem subdisciplina de alguma
grande área de conhecimento. É uma perspectiva,

uma forma de analisar o desenvolvimento e suas
mudanças em qualquer área.
O desenvolvimento é na verdade uma forma de
analisar os processos de mudanças, sejam eles de
aprendizagem ou de coordenação e controle. Esse
é um argumento poderoso, porque a lacuna de
comunicação que existe entre os estudos dessas
áreas, aprendizagem e controle, tem contribuído
cada vez mais para aumentar a confusão sobre o que
se deve ainda estudar e sob quais perspectivas. O
estudo apenas sob a perspectiva do controle corre
o risco de perder a contribuição da maturação e da
aprendizagem para o processo. Da mesma forma,
apenas o estudo sobre os aspectos da aprendizagem
também se arrisca a ignorar as contribuições da
maturação e, consequentemente do controle, no
desenvolvimento como um todo.
Assim, o desenvolvimento per se é mais do
que uma mera comparação sobre o controle ou a
aprendizagem em diferentes idades. Na verdade, o
que cada uma dessas áreas tenta fazer é elucidar os
processos particulares que ocorrem ao longo da vida.
Assim como estudar apenas os processos perceptivos
ou cognitivos não é suficiente para entender o todo
dentro do processo de desenvolvimento, cada uma
dessas partes pode trazer muito mais contribuições
se ambas forem inter-relacionadas nos estudos, pois
essa associação é o processo de desenvolvimento em
si.
Há muitas formas de se organizar o conhecimento
em desenvolvimento motor: conhecimento
produzido, aplicação do conhecimento produzido,
organização de cursos de graduação e pós-graduação
e, possivelmente, outras. O que um pesquisador
do desenvolvimento motor precisa ter é o foco
desenvolvimental associado ao conhecimento sobre
o comportameto motor em geral (aprendizagem,
controle e maturação). Da mesma forma como
a psicologia desenvolvimental está separada da
experimental, ou a bioquímica está separada da
química, o desenvimento motor é separado do
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Processo de Desenvolvimento Motor
comportamento motor em virtude do foco. No
entanto, é preciso entender que alguns desses
aspectos são únicos e precisam ser estudados, nos
cursos de desenvolvimento motor (seja em educação
física, fisioterapia, terapia ocupacional, neurociência
ou medicina), separadamente, por uma questão
didática.
Por exemplo, é preciso que disciplinas como
controle motor, crescimento físico, neuroanatomia
e tantas outras sejam tratadas separadamente nos
cursos de graduação e pós-graduação. Porém é
importante que fique explicitamente clara a relação
de interdependência entre elas, pois, quando forem
ser analisadas as mudanças, e essa análise for adotar
uma perspectiva desenvolvimental, cada uma delas
deve trazer sua contribuição para o entendimento do
processo como um todo. Assim, um termo mais amplo
seria o desenvolvimento do comportamento motor, e
esse termo abarcaria tudo que é adjacente a esse
processo (aprendizagem, maturação, crescimento e
controle).
O estudo do desenvolvimento no Brasil
Os estudos sobre o comportamento motor no
Brasil tiveram um início mais acalorado com a volta de
muitos estudantes de doutorado que foram realizar
seus cursos fora do país na década de 1980. Nessa
época, aproximadamente 10 professores doutores
regressaram para o Brasil, e, a partir da década
seguinte, esse número vem crescendo cada vez mais.
O aumento é tão claro que o governo tem freado suas
agências de fomento de incentivarem os estudantes
de doutorado a fazer seus cursos integralmente
em outro país, uma vez que, hoje em dia, o Brasil
possui diversas universidades com programas de
pós-graduação em nível de doutorado. No entanto, o
incentivo continua no sentido de fomentar pequenos
estágios no exterior para aquisição de expertise em
pesquisa e na formação teórica dos estudantes de
doutorado e doutores interessados em seguir com
cursos de pós-doutorado.

Então, a partir da década de 1980, as pesquisas
em comportamento motor começaram a ser
realizadas no Brasil, ainda timidamente. Algumas
universidades tinham seus laboratórios de pesquisa
em comportamento motor, porém ainda não havia
algum evento nessa área específica que fosse
realizado no país. O primeiro evento oficial sobre
o tema foi organizado em 1998 para comemorar
os 10 anos de existência de um dos laboratórios
preocupados com as questões do comportamento.
Desde então, esse evento e outros tradicionalmente
acontecem, atraindo profissionais de várias
áreas, como educação física, fisioterapia e terapia
ocupacional. No entanto, é bem possivel que outras
áreas que não têm participado deles também tenham
seu foco no comportamento motor e apresentem
seus achados em eventos de outra natureza, como
psicologia, pediatria, gerontologia, neurociência etc.
O fato é que a área tem se esforçado para se
fortalecer no Brasil e para isso não tem medido
esforços em trazer pesquisadores de renome
para debates e palestras. Esses esforços têm se
refletido em um aumento no número de trabalhos
apresentados em congressos e de publicações, no
entanto, é preciso avaliar esses dados com cuidado,
pois números não são referencial de qualidade.
As pesquisas que começaram a se destacar na área
da aprendizagem motora hoje em dia apresentam
um domínio do controle motor e um crescimento nos
estudos sobre o desenvolvimento motor. Porém há
ainda um caminho longo a ser percorrido no sentido
de contribuir efetivamente para o desenvolvimento e
crescimento das pesquisas nesse campo.
Possivelmente, o ponto de partida deve ser
despertar o interesse dos estudantes de graduação
para a pesquisa acadêmica. Esse despertar é a
peça fundamental para a evolução da área e deve
ser certeiro e cuidadoso. Oferecer ao estudante a
oportunidade de fazer pesquisa em comportamento
motor não é entregar em suas mãos um projeto
de pesquisa e deixá-lo executar. É preciso mais do
6
Processo de Desenvolvimento Motor
que isso, é preciso que o estudante descubra por si
exatamente o que é a pesquisa científica, passando
por todas as etapas de maneira plena, desde a
formação e a solidificação do conhecimento teórico
até a elaboração do problema de pesquisa. A partir
de então é que a parte experimental entra em cena,
e os pensamentos e discussões devem se voltar
para o planejamento e aplicação dos procedimentos
metodológicos. Feito isso, a análise e a discussão dos
resultados, bem como a finalização do trabalho, são
consequências, pois, com a formação teórica sólida,
boa parte da pesquisa acadêmica está garantida.
A partir dos esforços em aumentar com qualidade
o número de pesquisadores na área, os frutos que
serão colhidos com certeza serão o crescimento
da área como um todo. O investimento em uma
formação sólida, com uma visão abrangente, na qual
todos os aspectos do comportamento são levados em
consideração, é um investimento promissor para os
estudos do comportamento motor no Brasil.
O fenômeno desenvolvimento motor
Os primeiros estudos sobre o desenvolvimento
motor começaram com a descrição do comportamento
das crianças, que foram chamados de “biografia dos
bebês”. Darwin, em 1877, depois do nascimento
de seus filhos, foi, talvez, um dos pioneros nessa
tarefa. Seus estudos eram relatos minuciosos que
descreviam o comportamento apresentado pelos
bebês em todas as situações possíveis. As descrições
comtemplavam atividades de alimentação, de
manipulação perceptiva, emocionais, entre tantas
outras.
Já no século XX, os pesquisadores que
trouxeram grandes contribuições para o estudo do
desenvolvimento foram os psicólogos infantis da
Clínica de Desenvolvimento Infantil de Yale, Arnold
Gessel e Henry Halverson. Na Universidade da
Califórnia, estava Nancy Bayley, na Universidade de
Columbia, Shirley McGraw, e, na Universidade de
Minnesota, Mary Shirley.

Os estudos dessa época eram em sua maioria
observações longitudinais com descrições cheias de
detalhes e ainda traziam alguma explicação sobre o
processo que estava por trás oferecendo condições
para que tais comportamentos se manifestassem.
Em suas explicações, cada um dos pesquisadores
defendia seus pontos de vista, normalmente baseados
em uma teoria ou outra, maturacional ou ambiental.
Historicamente, o estudo do desenvolvimento
motor por meio das observações e descrições focou-
se nas repostas periféricas para interpretar o estado
do sistema, em que o foco estava nas funções
cognitivas. Assim, a ideia principal era observar o
comportamento motor para verificar o quão intactas
estavam as funções cognitivas. Os estudos descritivos
dos pesquisadores pioneiros Gessel e McGraw foram
importantes para a elaboração, futuramente, da
proposta de Piaget sobre o desenvolvimento do
funcionamento cognitivo.
Esses relatos também incentivaram muitos outros
pesquisadores, hoje tidos como seminais, da área do
desenvolvimento, entre as décadas de 1960 e 1970,
como Eckert, com vários artigos nessas décadas e um
livro em 1976; Halverson e Roberton, com estudos
sobre habilidades fundamentais nos anos 1960,
1970 e 1980; Keogh, com estudos em performance
motora e aquisição de habilidades para deficientes no
mesmo período; Malina e seus estudos relacionando
crescimento e performance motora e livros sobre
o crescimento e desenvolvimento nas mesmas
décadas; Newel, nas décadas de 1970 e 1980, com
estudos sobre o desenvolvimento e a aquisição de
habilidades e controle motor; Seefeldt, no mesmo
período, com estudos de habilidades fundamentais;
Rarick, com seus livros de 1961 e 1973 e estudos
sobre performance motora e fitness nas décadas de
1950 a 1980; Thomas, com estudos sobre aquisição
de habilidades nas décadas de 1970 e 1980; e Wade
e seus estudos em aquisição de habilidades em
deficientes, também nessas décadas.
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Processo de Desenvolvimento Motor
Alguns desses pesquisadores ainda estão vivos
e academicamente ativos; outros, infelizmente,
faleceram, no entanto, deixaram seu legado, que
vem sendo bem aproveitado e replicado por novos
estudiosos do desenvolvimento. A formação destes
está baseada em alguns livros-texto que apresentavam
os estudos e as abordagens mais relevantes de cada
um em sua época. Alguns dos mais atuais a respeito
são Eckert (1987); Gallahue (1982); Haywood
(1986); Keogh e Sugden (1985); Wickstrom (1983);
Williams (1983); e Thomas (1984). Todos eles estão
de alguma maneira baseados nas ideias de grandes
nomes do desenvolvimento, como Connolly (1970),
Rarick (1973), Malina (1975) e Kelso e Clark (1982).
Dentro da psicologia desenvolvimental, os grandes
nomes foram Kevin Connolly, Herb Pick e Claes von
Hofsten, todos associados com pesquisas sobre o
desenvolvimento infantil e a aquisição de habilidades
sob uma perspectiva desenvolvimental.
Depois da Segunda Guerra Mundial (anos 1950 e
1960), foram realizados muitos estudos transversais
aplicados para a escola sem uma fundamentação
teórica de pano de fundo. Nessa época, Anna
Espenschade e G. Lawrence Rarick fizeram uma série
de estudos, tanto longitudinais como transversais,
investigando o desenvolvimento motor aplicado para
a área da educação física.
No começo dos anos 1960, os pesquisadores
começaram a notar que o comportamento apresentava
mudanças dramáticas depois da infância e passaram
então a estudar todo o ciclo da vida, importando-se
mais com a fase adulta e o envelhecimento. Assim, a
abordagem do ciclo vital teve início.
A teoria do ciclo da vida aborda as mudanças na
organização do sistema neuromotor acompanhadas
de mudanças dramáticas no tamanho e na forma do
corpo durante a infância e a adolescência. Também
passaram a ser consideradas súbitas mudanças
que começam e terminam durante a fase adulta e
a velhice, relacionadas ao estilo de vida, ao período
escolar, ao trabalho, à família e às responsabilidades

que acompanham essas etapas. Do ponto de vista de
VanSant (1989), a maturidade, que tradicionalmente
é vista como a finalidade do desenvolvimento, é
apenas um dos momentos (instantâneos) desse
processo.
Por todas essas diferenças, não faz sentido
comparar adultos e crianças, pois ambos estão em
momentos diferentes da vida, cada um dos quais
tem finalidades e funções diferentes. Em cada um
deles, há algo a se ensinar ou se aprender sobre o
desenvolvimento, e assim, apesar de muitos estudos
sobre o desenvolvimento focarem-se na infância,
todas as outras etapas da vida apresentam mudanças
importantes a ser analisadas sob a perspectiva
desenvolvimental.
Nessa época, os Institutos de Desenvolvimento
da Criança mudaram seus nomes para Institutos do
Desenvolvimento Humano. O artigo de Nancy Bayley
O ciclo da vida como um quadro de referência na
pesquisa psicológica foi rotulado como o precursor da
perspectiva do ciclo da vida, e muitos pesquisadores
de peso na área, como Clark (1982), Halverson,
Roberton e Harper (1973), Haywood (1986), Roberton
e Halverson (1977; 1984), passaram a adotar essa
visão.
Em resumo, a história do desenvolvimento motor
pode ser traçada da seguinte forma: o desenvolvimento
motor começou como o estudo da infância, depois,
do desenvolvimento infantil, e mais tarde passou a
fazer parte da psicologia desenvolvimental, que foi
definida como o estudo das mudanças ao longo do
ciclo da vida no comportamento motor.
Em suma, estudar a criança não é necessariamente
um estudo desenvolvimental, pois desenvolvimento
refere-se a um processo ao longo da vida, e a
infância é apenas uma parte desse processo, como
qualquer outra fase. Outra questão a se pensar é
para onde segue o desenvolvimento, pois é comum
dizer que ele segue para a maturidade, no entanto,
o curso da vida segue para a vida adulta e, por fim,
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Processo de Desenvolvimento Motor
para o envelhecimento e a morte. Será mesmo que
a finalidade do desenvolvimento é a maturidade?
Será que o comportamento maduro é aos 20 ou aos
80 anos de idade? Nessa perspectiva, ao longo da
vida, o quanto a maturação pode ser igualada ao
desenvolvimento?
Até então, os pesquisadores do desenvolvimento ou
se pautavam na causalidade, em que a maturação era
atribuída a forças internas que, guiadas pelos genes,
levavam ao desenvolvimento, ou então assumiam
a influência do ambiente sobre o desenvolvimento
humano, apontando a influência deste sobre os
genes, e até mesmo a de um grupo de genes sobre
outro. Nesse sentido, o objetivo do desenvolvimento
ainda seria a maturidade, porém o conceito do ciclo
da vida muda no bojo dessas concepções, pois força
o reconhecimento de múltiplos fatores causadores
das mudanças.
Abordagens metodológicas para o
estudo do desenvolvimento
Ao longo da história do desenvolvimento,
as pesquisas foram passando por modificações
importantes e, possivelmente, ainda passarão por
muitas mudanças até os tempos futuros. Analisar
essas mudanças é uma parte importante para uma
boa formação acadêmica, pois olhar para a história é
essencial para que se possa entender com clareza o
estado atual da arte.
A história dos estudos em desenvolvimento foi
dividida, pelo menos até agora, em quatro períodos:
período precursor (1787-1928), período maturacional
(1928-1946), período descritivo (1946-1970) e
período orientado ao processo (1970 até a data
atual). Essa divisão deixa bem marcados os diferentes
momentos e as diferentes perspectivas dos estudos.
Período precursor (1787-1928)
Esse foi o primeiro período, portanto quando as
bases foram fundadas e estabelecidas. Essa fase

estabeleceu os métodos de observação descritiva
como críticos para o estudo do desenvolvimento.
Nessa época, os pesquisadores costumavam
descrever longitudinalmente o comportamento de
seus próprios filhos enquanto bebês em anotações
ricas de detalhes. Darwin foi um dos que contribuiu
com suas observações a respeito do desenvolvimento
de seu filho.
Nessa época, descrições minuciosas sobre a
transição do “reflexo de preensão palmar” para a
pegada voluntária foram feitas por Tiedemann em
1787 (apud BORSTELMANN, 1983). As descrições
desse autor forneceram evidências para o papel da
experiência na alimentação, uma observação que
antecedeu em mais de um século o debate entre
inato e adquirido que foi central a partir dos anos
1930.
Essas descrições, chamadas de “biografias dos
bebês”, que tiveram início com Tiedemann, foram
seguidas das descrições de Preyer quase 100 anos
depois com a publicação de um texto clássico, A
mente da criança, em 1881-1882 e depois em 1909.
Sendo um embriologista, Preyer por meio de um
estudo de caso, descreveu cuidadosamente, com
a habilidade de um biólogo, o desenvolvimento de
uma criança, trabalho de grande contribuição para a
evolução de outros estudos na área.
Todas as biografias dos bebês foram bons exemplos
de estudos focados no produto do desenvolvimento.
Diferentemente desses, Galton, em 1876, apresentou
um exemplo de estudo focado no processo. Usando
gêmeos para ter o controle sobre as características
hereditárias dos indivíduos, ele apontou que o papel
da hereditariedade e do ambiente deveria ser revisto
para poder explicar as diferenças individuais entre
gêmeos idênticos.
Seguindo esse raciocínio, pelo qual a importância
do ambiente deveria ser considerada, os escritos de
Darwin foram marcantes para a época. A noção dele
sobre o papel do ambiente na forma do animal, a
9
Processo de Desenvolvimento Motor
adaptação do animal ao ambiente e a continuidade de
espécie de acordo com o ambiente eram, claramente,
teorias sobre os processos desenvolvimetais.
Enfim, o período precursor estabeleceu as bases
para as pesquisas em desenvolvimento, indicando o
cuidado e a acurácia que o método de observação
exige, além de expor as fundamentações teóricas
sobre as quais os debates deveriam transcorrer nas
questões sobre o papel da genética e do ambiente no
processo de desenvolvimento.
Período maturacional (1928-1946)
Seguindo o legado dos pesquisadores do
período anterior pelo método observacional, nos
anos 1930, a pesquisa em desenvolvimento motor
apresentou um dos seus períodos mais férteis.
Inspirados nos exemplos da biografia dos bebês,
nesse período, muitos foram os estudos de caso,
com acompanhamento longitudinal e descrições de
indivíduos. Arnold Gesell e Myrtle McGraw foram as
estrelas dessa época, pioneiros nos estudos com ricos
detalhes sobre diversos comportamento infantis.
Ambos apresentaram uma visão que levantou
questões sobre os behavioristas, pois apontaram
a importância dos processos biológicos, como a
maturação, para o comportamento do indivíduo.
Em seus escritos, Gesell e McGraw apontaram
as regularidades no comportamento dos bebês
e concluíram que elas refletiam regularidades
na maturação cerebral, um processo comum
geneticamente conduzido em todas as crianças.
Fizeram relatos que documentaram a sequência de
comportamentos pelos quais os bebês passavam,
que foi intitulada sequência universal. Ela era
um argumento para a presença importante das
características biológicas permeando o processo
desenvolvimental. Apesar das detalhadas descrições
sobre o comportamento apresentado pelos bebês, a
ideia dos estudos desses pioneiros era entender o que
causava as mudanças neles. Estavam interessados

na compreensão do processo que norteava o
desenvolvimento observado.
Apesar de atribuir o papel fundamental da
maturação do sistema nervoso central para
as mudanças desenvolvimentais relatadas,
McGraw também considerava o processo de
ensino e aprendizagem como importante para o
desenvolvimento. Explicitamente, escreveu que
entendia que a aprendizagem e a maturação não
se tratavam de processos diferentes, eram apenas
variadas facetas do mesmo processo, que era o
desenvolvimento. Em diversos estudos, a autora
constatou o efeito do processo de aprendizagem
ensinando habilidades motoras a apenas uma criança
que tinha um irmão gêmeo. Assim, o outro irmão
“apenas apresentaria o comportamento que estivesse
unicamente relacionado com a maturação”. Com isso,
ela mostrava que o comportamento motor era fruto
tanto da maturação do sistema nervoso central como
também das experiências específicas de cada criança.
Figura 1. Myrtle McGraw em sessão de testes com os gêmeos
Johnny e Jimmy. Fonte: http://psicologiasolta.webnode.com.pt/
experiência%20precoce/myrtle-mcgraw/.
Apesar de Gesell e McGraw serem ambos rotulados
como maturacionistas, suas ideias eram divergentes
em vários aspectos. No entanto, o avanço que ambos
proporcionaram para os estudos do desenvolvimento
são inegáveis. Gesell enfatizou seus estudos na
morfologia do desenvolvimento, entendendo o
comportamento como a forma do desenvolvimento.
Em suas observações sobre as crianças, postulou
alguns princípios norteadores do desenvolvimento,
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Processo de Desenvolvimento Motor
por exemplo, o da direção desenvolvimental (céfalo-
caudal e próximo-distal). Esses princípios, nascidos a
partir da observação, foram proposições teóricas que
explicavam todos os comportamentos apresentados
pelas crianças, tão válidos que ainda são capazes de
explicar muitos comportamentos até os dias atuais.
O período maturacional teve muitas outras
publicações importantes. Mary Shirley (1931)
apresentou uma cronologia do desenvolvimento
mental e motor em 25 bebês durante dois anos,
com descrições dos estágios do processo de
aquisição da postura e do andar. Halverson (1931)
descreveu o desenvolvimento da preensão, que
teve fundamental importância para entender as
habilidades motoras finas. Nancy Bayley desenvolveu
uma escala normativa de desenvolvimento motor
baseada nas suas observações sobre o aparecimento
das habilidades motoras durante os primeiros três
anos após o nascimento (BAYLEY, 1935; 1936).
Essa escala é utilizada até hoje, sendo feitas
algumas adaptações para cada caso ou cada grupo
de crianças. Além desses trabalhos, a publicação
da dissertação de Monica Wild em 1938 sobre as
mudanças nos padrões de coordenação do arremesso
de ombro praticamente encerrava a era maturacional
e antecedia as descrições das habilidades motoras
grossas que estavam por vir no próximo período
(normativo/descritivo).
Período normativo/descritivo (1946-1970)
A reemergência dos estudos em desenvolvimento
motor depois da Segunda Guerra Mundial ocorreu
basicamente devido aos esforços de Anna
Espenschade, Ruth Glassow e G. Lawrence Rarick.
Esses autores haviam sido fortemente influenciados
pelos maturacionistas, porém diferenciavam-se deles
em muitos aspectos. Eram educadores físicos, com
o foco das pesquisas voltado para a área escolar.
A intenção com os estudos era, além de melhorar
a performance, principalmente esportiva, utilizar o
comportamento motor para entender os processos
cognitivos.

As investigações do comportamento eram feitas
por intermédio de medidas antropométricas e de
crescimento, e esses dados eram amplamente
utilizados para elaborar testes de avaliação escolar e
esportiva e na construção de programas para melhora
do desempenho motor.
O período normativo/descritivo não foi um período
de crescimento fulminante como o anterior, no
entanto, foi também um período importante para
a área de pesquisa, que agora estava separada da
psicologia: quem estava à frente eram as áreas da
educação física, da fisioterapia e da medicina.
O foco das pesquisas na década de 1950 estava
em entender o papel do crescimento físico e da força
na performance motora das crianças. Esses estudos
refletiram o foco dessa época não somente na área
da educação física como também na educação de
maneira geral, e assim foram desenvolvidos vários
testes para avaliação de escolares.
Espenschade reportou em seus estudos medidas
antropométricas das crianças, indicando quão rápido
elas podiam correr e os padrões de coordenação
usados na corrida. Esses estudos foram originados
na Universidade de Wisconsin sob a orientação de
Glassow. Suas análises biomecânicas das descrições
dos padrões de coordenação para algumas habilidades
fundamentais, como o saltar, eram meticulosas.
O período entre 1946 e 1960 foi caracterizado
como período dormente, pois foi nessa época que
a confusão entre os termos produto e processo1
começou a surgir. Na verdade, nem as medidas de
crescimento e desempenho, relacionadas ao produto,
nem as medidas de coordenação, associadas
aos processos, eram acompanhadas de debates
sérios para a compreensão dos mecanismos que
delineavam as mudanças desenvolvimentais. Como
estavam focados nas idades escolares, os estudos
1  Os termos produto e processo foram muito utilizados,
e ainda são até hoje. Produto refere-se ao resultado de
um processo, nesse caso, resultado do desenvolvimento,
portanto o produto era o movimento. Processo eram
os eventos internos que ocorriam, os mecanismos que
levavam ao funcionamento.
11
Processo de Desenvolvimento Motor
eram descrições do crescimento e da performance
motora desses indivíduos.
Durante a última década desse período, nos anos
de 1960, foi possível observar algumas mudanças no
delineamento das pesquisas. Descrições biomecânicas
dos movimentos das crianças continuaram a
crescer. Um bom exemplo foi o estudo longitudial
de Lolas Halverson com sete crianças, que levou
15 anos. O estudo era para descrever exatamente
o que elas podiam fazer e quando. Entender o
processo desenvolvimental era o último objetivo da
pesquisadora. No entato, é importante mencionar
que, nesse estudo, Halverson examinou também o
papel do ambiente e da aprendizagem como fatores
determinantes para o aparecimento de alguns padrões
particulares de coordenação. Claramente, Halverson,
assim como McGraw, era mais interacionista2 do
que maturacionista nos moldes iniciais da psicologia
desenvolvimetal.
A década de 1960 marcou o início do interesse
no desenvolvimento perceptivo-motor. Apoiados
nas especulações de psicólogos de que crianças
com atrasos desenvolvimentais os tinham devido
a problemas perceptivo-motores, as pesquisas na
área da psicologia voltaram-se para o campo do
desenvolvimento. Na verdade, muitas pesquisas
nessa época falharam em identificar alguma ligação
entre o desenvolvimento motor e o pensamento, no
entanto, ofereceram oportunidade para uma nova
visão emergir: a relação entre percepção e cognição
e suas interações com o movimento, que foram
essenciais para o próximo período.
O período normativo/descritivo trouxe contribuições
importantes no aumento do conhecimento orientado
ao produto: os estudos descritivos sobre o
crescimento e o desempenho motor ainda hoje são
referências. O fato é que esse período foi fruto do
anterior (maturacionista): os pesquisadores dessa
2  Interacionista é praticamente o oposto de
maturacionista. Enquanto o maturacionismo aponta
apenas o sistema nervoso central como responsável pelas
mudanças comportamentais, o interacionismo aceita que
diversos fatores podem ser responsáveis pelas alterações.
Interacionismo vem da palavra integrar.

fase espelharam-se nos maturacionistas, por isso a
lacuna nos estudos sobre o processo.
Outro fator importante para o foco no produto é
que, diferentemente dos psicólogos, que estavam
interessados em entender o funcionamento do
sistema nervoso central por meio do comportamento
motor, os educadores físicos estavam preocupados em
saber como melhorar suas instruções para aumentar
a performance. Havia ainda um terceiro grupo, os
pesquisadores da área de aprendizagem motora
(grande parte deles profissionais da educação física),
que estavam preocupados apenas em entender os
princípios gerais do processo de aprendizagem.
Um trabalho importante para a literatura que usou
esse referencial foi a descrição do desenvolvimento
das sequências dos padrões fundamentais de
saltos por Hellebrandt et al. (1961). Também houve
descrições do arremesso de ombro por Roberton
(1978) e dos padrões motores fundamentais por
Wickstrom (1983).
Depois dos estudos sobre padrões de
comportamento, por exemplo, o levantar a partir do
chão, onde cada grupo de indivíduos apresentava
estratégias diferentes dos outros,3 a autora chegou
à conclusão de que o processo de desenvolvimento
não é necessariamente hierárquico, pois pode partir
dos comportamentos mais simples para os mais
complexos, mas também pode partir dos complexos
para os mais simples. Sendo assim, é um processo
que apresenta uma organização e uma reorganização
dinâmicas de acordo com cada contexto.
Período orientado ao processo (1970 até os
dias atuais)
Esse período é caracterizado pelo aumento do
interesse pelo desenvolvimento motor, e o foco
novamente retorna aos processos que permeiam o
desenvolvimento. Apesar de se considerar que esse
período segue até os dias atuais, é preciso cautela
nessa observação, pois o avanço nas pesquisas
3  Estratégias como uso das mãos como apoio ou não.
12
Processo de Desenvolvimento Motor
hoje tem apresentado uma velocidade bem maior,
e colocar tudo em uma mesma categoria pode ser
preocupante. No entanto, vamos considerar cada
década com cuidado.
O início desse período foi marcado pela publicação
de Kevin Connolly Mecanismos de desenvolvimento
das habilidades motoras, em 1970, como resultado de
um encontro de cientistas, a maioria deles psicólogos,
marcando a volta do interesse desses pesquisadores
pelo desenvolvimento motor.
Trabalhos de psicólogos reconhecidos como
Jerome Bruner e Jean Piaget tinham o foco no
desenvolvimento das habilidades durante a infância,
tendo as motoras recebido uma atenção especial.
Além disso, a emergência da abordagem de
processamento de informação intensificou o debate
e as pesquisas entre os psicólogos experimentais e
desenvolvimentais na elaboração de suas hipóteses
sobre o processo por trás do desenvolvimento.
Ao mesmo tempo em que todas essas mudanças
apareciam no campo do desenvolvimento, na
aprendizagem motora, as ideias da teoria de
processamento de informação também estavam
tomando conta das pesquisas sobre as habilidades
motoras em adultos (FITTS; POSNER, 1967; KEELE,
1973; MARTENIUK, 1976; SCHMIDT, 1975). Assim,
com as mudanças atingindo tanto os estudos na
área da aprendizagem motor,a com a abordagem do
processamento de informação por educadores físicos
e psicólogos experimentais, quanto a abordagem
do período orientado ao processo, adotada pelos
psicólogos desenvolvimentais, dois grupos contrários
foram criados na área de desenvolvimento motor na
decada de 1970, favorecendo a confusão entre os
termos aprendizagem e desenvolvimento.
No grupo que seguia a abordagem do
processamento de informação, a memória, a atenção
e a percepção em adultos foram exaustivamente
estudadas, e muitas comparações com o desempenho
infantil foram e continuam sendo feitas.

Os pesquisadores da aprendizagem motora
embasavam seus estudos em uma abordagem teórica
que também trazia resquícios da era maturacional, a
teoria do processamento de informação. Essa teoria
apontava que o cérebro funcionava de maneira
semelhante a um computador, em que informações
entravam no sistema (input) enquanto os movimentos
eram a resposta (output) do sistema nervoso central.
Dessa forma, sugeria que os movimentos eram
o produto de unidades chamadas de programas
motores.
O programa motor era como um bloco pré-
programado de um comportamento. Era a unidade
básica na organização neuromotora, podendo ser
autoacionado pelo indivíduo ou ainda acionado por
um estímulo externo. A ideia do programa motor foi
extensivamente explorada pela comunidade científica
da época, principalmente em estudos de casos de
disfunções neurológicas.
No entanto, no começo dos anos 1970, as
pesquisas sobre percepção começaram a emergir.
Esses novos estudos foram oriundos dos de psicólogos
da década de 1960, mencionados anteriormente,
sobre desenvolvimento das capacidades perceptivo-
motoras em crianças com comprometimentos mental
e motor. Nessa época, duas correntes de pesquisa
formaram-se, uma investigando as mudanças
sensório-motoras utilizando-se da teoria de
processamento de informação como base, enquanto
outro pequeno grupo de psicólogos embasava seus
trabalhos na proposta ecológica de percepção direta
de James Gibson.
O quadro de referência de Gibson fundamentava-
se na questão de que o processo perceptivo não era
passivo e sim uma busca ativa por parte do indivíduo
que direciona sua atenção para as informações que
julgava relevantes. Nesse momento, as questões
levantadas que guiavam a nova tendência nas
pesquisas mudaram e passaram a ser: o que
muda com a experiência? Com quais capacidades
nascemos?
13
Processo de Desenvolvimento Motor
Nos anos 1980, uma nova tendência passou
a tomar conta do cenário científico a partir da
publicação de Kugler, Kelso e Turvey, em 1982, com
a sugestão de uma nova perspectiva teórica para o
estudo do controle e da coordenação do movimento,
embasada em princípios de física, biologia e
ecologia. Inspirados nas ideias de Bernstein (1967),
esses autores argumentavam que o movimento era
controlado não por inputs específicos ao sistema
nervoso central e sim pela periferia (músculo),
que a posteriori utilizava uma coordenação por
parte do funcionamento específico do SNC. Esses
apontamentos vinham na contramão das propostas
da teoria de processamento de informação, que
posicionavam o comando do sistema nervoso central
como inicial e prevalente no processo de produção
de movimentos. Além disso, a nova perspectiva
apontava princípios da termodinâmica para explicar
os processos de continuidade e descontinuidade do
desenvolvimento.
Bernstein (1967) sugeriu que o indivíduo atua
no meio por intermédio de um sistema de ação, e
não simplesmente por um sistema motor. Ou seja,
para ele, o movimento não é fruto de reações do
sistema muscular dependente de comandos do
sistema nervoso central e sim de uma relação de
constante troca de informações entre esses sistemas,
o que caracterizaria uma ação. Assim, o controle do
comportamento não caberia apenas ao SNC, mas
à interação entre ele e o sistema muscular. Essa
perspectiva inovou no sentido de tratar a interação do
indivíduo com o meio como um processo equilibrado
e ativo, baseado na ontogenia, na evolução e na
ecologia.
Alinhadas a esse ponto de vista de Bernstein estão
as ideias de James Gibson, que propunha o uso de
uma psicologia que levasse em conta a ecologia,
ou seja, o meio no qual o indivíduo está inserido e
sua interação com ele, para explicar a percepção de
maneira geral. Para Gibson (1966), a percepção é um
processo ativo que não pode ser separado da ação,
pois perceber implica agir, e agir implica perceber.

Nesse sentido, sua teoria para o desenvolvimento
da percepção passou a ser expandida para a
psicologia da ação e tem exercido grande influência
nos trabalhos sobre o desenvolvimento de maneira
geral. Esse processo perceptivo ativo parece ser
filogeneticamente adaptado para o indivíduo
identificar as informações relevantes e interagir com
o ambiente. Assim, o indivíduo vê, ouve, sente e
move-se em atividades de exploração conduzidas
pelos canais perceptivos dentro de um ambiente em
busca de informações para organizar suas ações de
maneira integrada (GIBSON, 1966; 1979).
Aproveitando os conceitos da teoria da
percepção de James Gibson, Eleanor Gibson
trata do desenvolvimento do indivíduo no meio
travando uma ligação entre o ato de perceber e
o conceito de affordances4 (traduzido aqui como
“potencialidades”). Ela sugere que o agente busca
ativamente informações no ambiente que ofereçam
possibilidades de desempenhar alguma ação. Assim,
o desenvolvimento não acontece isoladamente e sim
a partir de uma intrincada interação entre sujeitos,
objetos, ambiente (GIBSON; PICK, 2000). Essa rotina
cíclica, em que o processo de perceber tem o poder de
influenciar e guiar as ações, que, por sua vez, podem
gerar novas percepções, estabelece-se ao longo do
processo do desenvolvimento e foi chamado de ciclo
percepção-ação (GIBSON; PICK, 2000; LOCKMAN;
THELEN, 1993).
Também a partir das ideias ecológicas de Gibson,
argumentava-se que a informação era uma variável
física única e específica às mudanças dinâmicas do
sistema. Assim, um grupo adepto desses princípios
fez diversos trabalhos baseados nessa perspectiva
bernsteiniana e gibsoniana, também chamada de
teoria dos sistemas dinâmicos.
Para os pesquisadores do desenvolvimento
motor, essa nova contextualização do controle e do
4  Apesar da apresentação da tradução do termo
affordance, as versões desse termo parecem não ter ainda
encontrado uma palavra que faça jus ao significado em
inglês. Por isso, o termo original ainda é muito usado nos
documentos acadêmicos brasileiros.
14
Processo de Desenvolvimento Motor
desenvolvimento do comportamento motor levou à
reaplicação de muitos tipos de estudos que já haviam
sido elaborados, porém com essa nova abordagem
teórica. Um dos mais importantes trabalhos dessa
época foi realizado por Esther Thelen, que investigou
os precursores do andar infantil.
Um desses estudos de Thelen preocupou-se em
investigar o desaparecimento do reflexo da marcha
nos bebês quando eles estão com aproximadamente
sete meses. Por meio de manipulações morfológicas
no aparato experimental, Thelen e seus colegas
mudaram a visão tradicional sobre o papel da
maturação do sistema nervoso central, a quem
era atribuída a responsabilidade pela inibição
dele nessa idade. Até então, as explicações para
o desaparecimento do reflexo e, tempos depois, o
surgimento do comportamento voluntário eram
atribuídas a um período em que o sistema nervoso
central estava se reorganizando para a emergência
do comportamento voluntário. Thelen mostrou
que os bebês nessa idade podiam apresentar o
comportamento de marcha se colocados em um
andador ou ainda na água. Com isso, apresentou
uma justificativa física para o desaparecimento do
comportamento: os bebês não tinham força muscular
suficiente para manifestá-lo e, uma vez que essa
restrição do organismo era eliminada, no andador
ou com as pernas submersas, ele voltava a aparecer
(THELEN, 1986a, 1986b, 1988).
Juntamento com seus novos trabalhos
experimentais, a autora também se dedicou à
introdução da perspectiva de sistemas para o
desenvolvimento motor, apontando a importância de
todos os processos maturacionais do organismo, e
não apenas do sistema nervoso central, que havia
sido o foco dos maturacionistas e dos teóricos do
processamento de informação.
Outros pesquisadores que contribuíram para
a perspectiva dos sistemas dinâmicos em estudo
do desenvolvimento motor foram Jane Clark e
seus colegas, que estudaram o desenvolvimento

das habilidades locomotoras em bebês (CLARK;
PHILLIPS; PETERSEN, 1989; CLARK; WHITALL, 1989;
CLARK; WHITALL; PHILLIPS, 1988), Roberton, que
investigou o galopar (GETCHELL; ROBERTON, 1989;
ROBERTON; HALVERSON, 1988), e Newell, com seus
estudos a partir da abordagem da percepção-ação
para a preensão infantil (NEWELL et al., 1989). Usando
os princípios da teoria dos sistemas dinâmicos, os
pesquisadores voltaram o foco das pesquisas para o
processo de desenvolvimento motor.
O mesmo pôde ser observado no campo da
psicologia desenvolvimental (GUNNAR; THELEN,
1988), onde a teoria dos sistemas dinâmicos e
a perspectiva da percepção-ação surgiram como
alternativas para a abordagem do processamento
de informação nas pesquisas em desenvolvimento.
Podem ser incluídos nesse grupo de estudos baseados
na nova abordagem dinâmica do desenvolvimento
os achados de Von Hofsten no desenvolvimento do
alcançar (VON HOFSTEN, 1982; 1984), os estudos
de Campos, Bertenthal e Benson no engatinhar
(BENSON; UZGIRIS, 1985; BERTENTHAL; CAMPOS;
BARRET, 1984) e os trabalhos de Pick e Palmer (1986)
e Gibson e Schmuckler (1989) na manutenção da
postura ereta, na locomoção e na percepção.
Em suma, o começo do período orientado ao
processo trouxe pesquisas em desenvolvimento
motor que consistiam em apresentar descrições
do desempenho motor em crianças. No entanto,
20 anos depois, elas passaram da descrição para a
explicação de suas causas. Dentro desse período,
duas abordagems foram utilizadas: processamento
de informação e teoria dos sistemas dinâmicos.
Ambas, hoje em dia, são paradigmas viáveis para
explicar o desenvolvimento das habilidades motoras.
No entanto, cada uma delas apresenta diferentes
interpretações do fenômeno desenvolvimento.
Enquanto a abordagem do processamento de
informação procura responder às questões
desenvolvimentais por meio dos processos de
controle e coordenação dos movimentos e de suas
mudanças ao longo do tempo, a teoria dos sistemas
15
Processo de Desenvolvimento Motor
dinâmicos também está voltada para responder às
questões de coordenação e controle, além das sobre
os processos de desenvolvimento.
Essas diferentes abordagens, como já mencionado
anteriormente, são adotadas por grupos diferentes
de pesquisadores. Tradicionalmente, a psicologia
experimental e da aprendizagem, assim como alguns
pesquisadores da área da educação física, têm
voltado seus estudos à abordagem do processamento
de informação. Diferentemente, a psicologia
desenvolvimental, bem como alguns profissionais de
educação física, fisioterapia e terapia ocupacional,
tem adotado a teoria dos sistemas dinâmicos como
escopo para seus estudos.
Essa dicotomia acaba por contribuir ainda
mais para a impressão de que desenvolvimento e
aprendizagem são fenômenos diferentes, quando na
verdade não são.
Abordagens teóricas para o
desenvolvimento
Abordagem maturacionista
Um dos maiores nomes da abordagem
maturacionista foi Arnold Lucius Gesell (1880-1961),
um gigante no campo da psicologia desenvolvimental.
Ele foi pioneiro em suas observações científicas em
bebês e crianças por meio de técnicas e métodos
inovadores, contribuindo para um vasto conhecimento
sobre o comportamento dessa população. Publicou
ativamente por quatro décadas, sendo muito
respeitado em vários campos, como educação,
psicologia, medicina e outros ramos da ciência social.
Gesell popularizou a prática dos testes
desenvolvimentais utilizados em consultórios médicos
e clínicas escolares. Seus escritos definitivamente o
consumaram como um teórico do desenvolvimento.
Sua teoria era compreensível e coerente e usava o
que as ciências biológicas tinham de melhor em seu
tempo.

Fig. 2. Arnold Gesell. Fonte: http://psicologia12h.wordpress.
com/2010/12/03/gesell-4-links-importantes/.
Como Piaget, Gesell mergulhou profundamente
nas trilhas das ciências biológicas e olhou para todo
comportamento e atividade mental como inseparáveis
um do outro, incluindo a engenharia que dava forma
física ao organismo.
Inspirado nos métodos e achados de Darwin, Gesell
assumiu que as forças da seleção natural atuavam
com igual poder sobre os aspectos funcionais do
organismo, levando-o a descrever ordenadamente
a progressão do desenvolvimento motor durante a
infância com igual detalhamento do comportamento
intelectual, da personalidade e dos estágios sociais
durante toda a infância e a adolescência.
A visão de Gesell sobre as características individuais
e sobre o papel da família, da escola e da cultura sobre
um indivíduo nunca foi muito clara, pois apresentava
contradições. Ele enfatizava que a sociedade e a
família podem oferecer à criança um ambiente com
potencial para o crescimento, fazendo com que ela
possa alcançar patamares ótimos. No entanto, como
atribuía todo o processo desenvolvimental apenas à
maturação do sistema nervoso central, esa afirmação
era um tanto contraditória, pois assumia, mesmo que
em níveis mínimos, a influência do ambiente.
Os estudos observacionais de Gesell identificaram
detalhadamente cada marco do desenvolvimento
16
Processo de Desenvolvimento Motor
motor infantil. O propósito geral do conhecimento
dos marcos desenvolvimentais era identificar o
estado individual de cada criança para guiá-la para
um crescimento ótimo. As que apresentavam atrasos
poderiam ser munidas com ambientes favoráveis
para não atrapalhar o programa genético.
Fig. 3. Arnold Gesell em procedimento experimental
com bebê. Fonte: http://psicologia12h.files.wordpress.
com/2010/12/50768662.jpg.
A maioria de suas pesquisas foi conduzida com
o intuito de descrever e compreender as normas/
marcos desenvolvimentais. Elas foram apresentadas
em publicações sobre os movimentos posturais,
de preensão, adaptativos, social e linguístico da
infância até a adolescência. Algumas crianças
foram observadas transversalmente e outras
longitudinalmente em intervalos de meses ou anos.
Mais de 500 foram observadas, 50 a cada faixa de 10
anos, contribuindo para a determinação dos marcos
originais do desenvolvimento utilizados até hoje.
Em geral, os estudos foram concentrados mais
aprofundadamente no primeiro ano de vida. As
observações eram feitas mensalmente, e novos dados
eram coletados a cada sessão de testes. Durante
esse primeiro ano, Gesell procurava identificar os
padrões pré-formados do comportamento. De fato,
a bateria de testes contemplava itens e situações
comportamentais organizados de acordo com a
premissa da maturação das formas do comportamento.
Além disso, desde o início, o pesquisador manteve o
 Processo de Desenvolvimento Motor

foco nas competências perceptivo-motoras e sociais, Abordagem cognitivista

mas posteriormente sua forma de abordar o tema
pareceu incompleta.
Definitivamente, o maior legado de Gesell foram as
normas ou etapas do crescimento/desenvolvimento
infantil. Atualmente, muitos livros-texto sobre o
desenvolvimento trazem quase que obrigatoriamente
uma tabela com os marcos descritos por ele em um
capítulo à parte. Esses estágios de desenvolvimento
motor ainda são usados hoje como exemplos
para fundamentar estudos apoiados em teorias
maturacionais ou até mesmo para dar credibilidade
às que ainda surgem. Essa tendência do uso da
maturação neural para explicar as mudanças
comportamentais com certeza é um legado de
Coghill, pesquisador que exerceu muita influência
nos trabalhos de Gesell.
O clima intelectual nos anos 1920 era dominado
pela psicologia da gestalt5 e pelo behaviorismo
quando Jean Piaget começou seus trabalhos.
Perturbado com a visão de que o funcionamento
humano era o mesmo do ambiente em que estava
inserido (gestalt) ou que era meramente resultado
da influência deste (behaviorismo), Piaget procurou
descrever o comportamento como uma tendência
humana a se adaptar a ele. Essa proposta contrariava
as propostas vigentes e foi a primeira expressão da
reação do autor ao teste de Stanford-Binet,6 muito
utilizado na época para avaliar crianças.

A forma e a sequência do desenvolvimento

cerebral e das manifestações comportamentais eram
definitivamente atribuídas aos códigos genéticos.
Para Gesell, a sequência de desenvolvimento motor Fig. 4. Jean Piaget. Fonte: http://www.essaseoutras.com.br/
jean-piaget-–-construtivismo-fundamentos-da-educacao/.
era geneticamente programada de forma total.
Negando alguma variabilidade cultural, a consistência
Piaget reconhecia que a consideração das
dos marcos pelas populações era interpretada como
respostas da criança no teste simplesmente como
específica da espécie.
certas ou erradas, sem um foco em como as alcançou,
não podia informar nada sobre como ela construía o
Outro tema recorrente nos escritos de Gesell era
conhecimento e adaptava seus pensamentos. A partir
o conhecimento inato. Para ele, a mente humana era
de então, Piaget começou a explorar a estrutura e o
um conjunto de conhecimentos inatos específicos
conteúdo do pensamento durante a infância.
que facilitavam a compreensão sobre pessoas,
objetos, espaço, números, linguagem e relações de
Sua teoria foi construída em duas formas de
causa e efeito, sempre apoiados na genética como
explanação sobre o curso do desenvolvimento:
determinista para explicar o desenvolvimento. No
estrutura e função. Uma teoria sobre o
entanto, ele também apresentou muitas contradições,
desenvolvimento não pode deixar de contemplar
por exemplo, acreditava na individualidade da criança,
esses dois aspectos, e Piaget fez isso para explicar o
mas escolheu o ditado dos genes para eliminar a
desenvolvimento cognitivo das crianças.
presença do ambiente. Procurou libertar e tranquilizar
os pais, mas dizia que poderiam ter culpa em alguns
processos. Estava preocupado com o bem-estar da
criança, mas, na sua classificação por idades, ela era 5  Ramo da psicologia conhecido pela psicologia da forma.
Essa doutrina dizia que não se pode conhecer o todo
vista como algo passivo e até mesmo inerte. olhando para as suas partes, pois o todo é mais do que a
soma das partes.
6  Um dos primeiros testes de QI criados para avaliar o
grau de inteligência do indivíduo.

17

Suas primeiras publicações, de 1920 a 1930,
apresentavam uma observação detalhada e sua
interpretação do desenvolvimento cognitivo de seus
três filhos. Durante a Segunda Guerra Mundial,
Piaget foi para a Suíça, onde esteve em segurança
para continuar suas pesquisas. Depois do fim da
guerra, quando suas ideias foram publicadas, a teoria
dele entrou em cena. Com uma visão estruturalista
e cognitivista, Piaget chocou a comunidade de
psicólogos na época. A era da teoria cognitivista
dominou o cenário até o final dos anos 1970, quando
a influência das experiências de Piaget passou a
declinar.
O programa de Piaget foi dividido em quatro fases,
que dão conta de abarcar todo o desenvolvimento
cognitivo.
Fase 1: A concepção de realidade da criança
mediada pela linguagem e pela interação social
A questão inicialmente investigada era sobre
para que servia e qual a necessidade do uso da
linguagem. A perspectiva de Piaget era descritiva e
classificatória, mas não sem a explicação da função.
Ele classificou a linguagem em duas categorias:
egocentrismo e socialização. O egocentrismo foi
aplicado a várias categorias de falas e refletia o ponto
de vista da criança sobre os eventos, sem levar em
consideração o que via ou ouvia. A fala socializada
reflete a intenção de interação social.
Foram detalhados três estágios nessa função.
Piaget relatou que, até os seis anos, 45% das crianças
apresentavam a fala egocêntrica. Entretanto, ela não
era absolutamente associal, pois a criança interagia
com uma pessoa contando uma história, por exemplo,
porém não levava em consideração o ponto de vista
do outro (a fala do outro). Piaget interessou-se pelo
estudo da linguagem pois, para ele, era uma janela
para entender o processo do pensamento. Esse
aspecto era apenas uma questão secundária.
18
Processo de Desenvolvimento Motor
O primeiro grande trabalho de Piaget foi elucidar
sobre a forma e função do pensamento infantil,
principalmente o pensamento para a linguagem. Ele
descreveu os estágios primeiro com uma classificação
descritiva até certo ponto simplista e uma explicação
funcional apurada das mudanças nas propriedades
dessas diferentes formas de fala. Continuou a usar
a descrição dos estágios até o fim de sua carreira,
característica essa também das fases 2 e 3, com
ênfase na descrição funcional, o que era típico da
psicologia da época.
O estudo dos questionamentos espontâneos
das crianças forneceu base para atribuir a forma
do pensamento pré-causal delas, caracterizando a
diferença entre a explicação causal e a intencional.
As relações entre a linguagem e o pensamento
foram atribuídas às conexões de justaposição, que
era a tendência em ligar um pensamento ao outro
sucessivamente quando havia uma relação de causa
ou lógica entre eles.
Piaget também investigou o julgamento e o
raciocínio e suas relações dentro do contexto verbal,
usando as perguntas do teste de Stanford-Binet
para explicar como isso funcionava nas crianças.
Por exemplo, uma das perguntas do teste era: “Eu
tenho três irmãos: Paul, Ernest e eu. O que há de
errado nessa sentença?”. Com pequenas variações,
o teste era aplicado em crianças de 4 a 12 anos.
Piaget apontou que as mais jovens eram incapazes
de diferenciar dois pontos de vista, o dele e do outro,
por isso seriam incapazes de acertar a questão.
Nos estudos de raciocínio aritmético, ele reformulou
questões, pois, nas anteriores, mesmo quando as
crianças acertavam a resposta, não sabiam explicar
o porquê. Assim, outras questões importantes
foram investigadas, como assimilação e imitação
da realidade, realismo, concepção de causalidade e
julgamento moral.
Em suma, o primeiro período da pesquisa de
Piaget foi marcado pela teoria do desenvolvimento

na trasferência do egocentrismo para o pensamento
social, com uma teoria social de causalidade em que
o egocentrismo é consequência da pobre interação
de trocas entre pensamento e ação. Foi um período
muito fecundo, em que o estudo da linguagem
e das concepções de realidade, causalidade e
julgamento moral afetou o curso de muitas pesquisas
desenvolvimentais ao redor do mundo e introduziu
uma orientação teórica que futuramente resultou em
algumas controvérsias. Também foi um período em
que houve a introdução de uma definitiva orientação
cognitiva para o trabalho de desenvolvimento com
crianças, com a descoberta de procedimentos
úteis em detalhar o curso do desenvolvimento
cognitivo. Ainda ofereceu o início para uma teoria do
conhecimento que deixou muito significado para a
psicologia desenvolvimental.
Fase 2: Estágios no desenvolvimento
sensório-motor: a teoria da adaptação
Os anos de 1930 apresentaram uma mudança
decisiva na pesquisa e na teoria de Piaget. Essa
época foi marcada pela apurada observação dos seus
três filhos, que nasceram em 1925, 1927 e 1931.
Enquanto que as primeiras pesquisas foram
focadas exclusivamente nas mudanças verbais entre
o experimentador e as crianças ou somente entre as
crianças, o estudo nesse segundo período foi uma
apurada observação das ações delas com objetos.
Foram estabelecidos seis estágios para essa parte
do desenvolvimento cognitivo. Ele apontava que
a linguagem e o pensamento eram precedentes e
preparatórios para a fase da ação lógica, representada
pelo desenvolvimento de esquemas de coordenação
e ação sensório-motora. A ação era a cena e a fonte
fundamental de conhecimento para entender e definir
os aspectos da percepção e linguagem.
Piaget adotou da teoria biológica o processo de
assimilação e acomodação como funções invariantes.
Na assimilação, estruturas já existentes na mente
incorporavam propriedades abstratas da ação
19
Processo de Desenvolvimento Motor
com objetos. Na acomodação, a mente modificava
as estruturas existentes para a variabilidade das
propriedades deles. Enquanto a assimilação tratava da
identidade funcional das ações para com os objetos,
a acomodação tratava das diferenças funcionais
entre eles. Assim, a organização provinha de um
mecanismo autorregulado para as relações dentre as
resultantes da estrutura. O balanço compensatório
entre assimilação e acomodação, feito por meio da
auto-organização, tornava possivel a adaptação do
organismo ao ambiente físico e social.
Por intermédio da teoria da adaptação, era
enfatizada a importância da repetição das ações em
uma reação circular. O aumento da intencionalidade
e as variações entre assimilação e acomodação eram
evidentes no desenvolvimento do repertório.
Parte da teoria também se concentrou em definir
o desenvolvimento do conceito de objeto, no qual
desenvolveu o conhecido experimento A não B, pelo
qual a criança olha para onde estava originalmente
um objeto que foi escondido, ao invés de olhar para
o lugar onde ela viu que ele foi colocado.
Link para vídeo do experimento clássico erro A não
B: http://www.youtube.com/watch?v=lhHkJ3InQOE.
Os protocolos de observação de Piaget nesse
período foram fatos essenciais para a descrição do
comportamento infantil, com a sua interpretação
para a significância funcional de tudo. Piaget mapeou
seu modelo de adaptação biológica para explicar um
fenômeno local. O modelo era basicamente funcional.
No próximo período, o foco seria a explanação.
Fase 3: O período estruturalista: modelo
lógico-matemático e operações concretas e
formais
No final dos anos 1930 e início da década de 1940,
livros sobre números e física marcaram a retomada a
teoria de Piaget. Esse início em uma fase estruturalista
durou até os anos 1960 e 1970 e foi marcado

pelo uso de análises estruturais e explanações tão
boas quanto a introdução dos modelos adaptados
para a lógica e a matemática. Começando com
uma intensiva análise de um domínio particular
do conhecimento, os números, uma variedade de
experimentos foi realizada, apresentando o jeito da
criança em lidar com os conceitos desses elementos,
suas complexidades e também suas limitações.
O estudo de crianças de diferentes idades rendeu
informações sobre as características funcionais do
pensamento delas, mas, nos que envolveram as mais
jovens, nos estágios formativos do desenvolvimento,
Piaget enfatizou os elementos construtivos do
processo de formação. Foi muito criticado nessa
época por outros pesquisadores (como Bruner, Flavell
e Gelman), que achavam que seu ponto de vista
caracterizava o desenvolvimento de uma maneira
negativa, pois, ao descrever um estágio particular,
ele detalhava o que faltava na criança em relação aos
estágios seguintes.
Nessa época, Piaget definiu os estágios de
operação concreta e operações formais, o primeiro
com início entre 6-7 anos e o segundo, entre 11-12
anos. Os componentes dessa teoria desenvolveram-
se e, a certo ponto, foram considerados como uma
versão expandida da teoria geral de desenvolvimento
cognitivo. O conceito central em que a arquitetura
lógica da teoria foi construída foram as operações
lógicas, interpretadas como a interiorização mental da
ação física. Nessa época, depois da Segunda Guerra,
com o progressivo desaparecimento do behaviorismo
e os escritos sobre construtos mentais, houve um
aumento na aceitabilidade das ideias cognitivistas de
Piaget, que foi muito cuidadoso em apenas posicioná-
las em fatos observados, geralmente padrões que
se repetiam de forma particular e que implicavam a
existência de uma estrutura mental.
A ação mental de combinar em classes os objetos e
suas propriedades era um indicativo de adição lógica,
em que ações mentais de subtração e multiplicação
também estavam envolvidas. Mas o conceito central
20
Processo de Desenvolvimento Motor
era a estrutura de grupos, baseados em grupamentos
matemáticos, apesar de o conceito de grupos usado
até então pela psicologia ter outras propriedades,
como classes lógicas ou relações lógicas. Também
foi estudada a noção de permanência de quantidade,
considerando números, peso, massa, comprimento,
área etc.
O período estruturalista foi rodeado por
estudos de imagem mental, percepção, memória e
caracterização de coletivos (formação de grupos).
Esses componentes apresentam estruturas que
são complementares para todas as operações do
pensamento em que as estruturas operativas agem.
Esse período não acabou abruptamente, mas a
insatisfação com vários aspectos da teoria levou
a mudanças tanto no corpo quanto na direção das
pesquisas de Piaget.
Fase 4: Retorno ao funcionalismo:
pensamento pré operacional, estratégias,
lógica intencional e teoria do significado
Na descrição de Piaget da progressão da
inteligência sensório-motora para as operações
formais, o período pré-operacional, dos 2 aos 7 anos,
foi relativamente negligenciado. Piaget então voltou
a esse estágio e, com uma continuação da análise
da estrutura, definiu a natureza do pensamento em
termos de funções e correspondências. No novo
trabalho, ele apontou que o pensamento das crianças
também é reflexo de pensamentos invariantes, que
se formam pelo estabelecimento de correspondências
por meio de comparação de ações.
O último período das pesquisas de Piaget, do
final dos anos 1960 até os anos 1980, foi rico em
produtividade e significado empírico para uma teoria.
Uma nova correspondência entre causalidade e
operações foi pensada, considerando as operações
(ações mentais) como sendo objetos físicos do sujeito
para a causalidade, como todos os outros objetos.

Outro importante redirecionamento dos estudos
foi para os aspectos da possibilidade. Nessa visão,
o desenvolvimento do conhecimento é resultado de
possibilidades criadas previamente.
Por fim, surge a teoria dos significados, que
não foi finalizada pois foi interrompida pela morte
de Piaget. A tese central era de que, em todos os
níveis, desde os mais elementares, o conhecimento
sempre envolve inferências. As evidências para isso
aparecem no período sensório-motor, em que as
ações são antecipadas quando se entende a relação
entre elas, assim como na linguagem, que também
é, mais tarde, elaborada em formas de pensamento
proposicional.
Em resumo, Piaget mostrou que, desde o
nascimento, as crianças apresentam competências
intelectuais que continuam se desenvolvendo e nunca
param. Seus trabalhos empíricos demonstraram
como a mente funciona e se desenvolve, por meio
de uma concepção de mente e pensamento sob
uma perspectiva construtivista. O coração dessa
teoria foi a relação entre sujeito e objeto. Inspirado
em Darwin, Baldwin e Hall, apresentou um modelo
biológico para as mudanças desenvolvimentais nas
funções cognitivas. O programa de Piaget foi uma
forma de explanação com integração de estrutura e
funcionamento. Mapeou modelos de matemática e
lógica e, metodologicamente, apresentou um método
clínico que foi capaz de acumular tanta credibilidade
quanto o dos behavioristas, levando sua teoria a ser
respeitada até os dias atuais. Logicamente, muitas
críticas foram e ainda são feitas, no entanto, o
pioneirismo do seu trabalho não pode ser esquecido.
Link para vídeo com experimentos exemplificando
os estágios propostos por Piaget: http://www.
youtube.com/watch?v=C2A971Hp0go.
Abordagem dos sistemas dinâmicos
Pode-se dizer que o renascimento do
desenvolvimento motor sob uma nova perspectiva
21
Processo de Desenvolvimento Motor
se deu em agosto de 1993, com a publicação de
uma sessão especial da revista Child Development
(Desenvolvimento Infantil) intitulada Biodinâmica
desenvolvimental: cérebro, corpo, conexões
comportamentais, editada por Jeffrey Lockman e
Ester Thelen (LOCKMAN; THELEN, 1993). A ideia
do título era captar os avanços da época nas áreas
da neurociência e da biomecânica e no estudo da
percepção-ação, voltados para o comportamento.
Nesse ponto, as influências da teoria de Bernstein
para o comportamento motor com base na física e na
matemática dos sistemas dinâmicos foram cruciais,
bem como a contribuição da teoria ecológica do
desenvolvimento da percepção-ação de James
Gibson (1986) e Eleanor Gibson (1988). Juntos,
esses pesquisadores levaram o estado do estudo
do desenvolvimento a uma figura muito diferente
daquela pintada por Gesell, Piaget e muitos outros
psicólogos da época. Roberton (1989) sugere que o
paradigma organísmico (teoria maturacional) não é
suficiente para explicar o desenvolvimento motor e
que a teoria dos sistemas dinâmicos é mais eficiente
para isso.
Bernstein foi o primeiro a explicitar a definição de
movimento nos termos de coordenação, de interação
cooperativa de muitas partes do corpo, como um
processo para produzir um resultado único final. A
apresentação desses conceitos foi chamada de “o
problema dos graus de liberdade de Bernstein”, e os
escritos diziam como poderia o indivíduo controlar
coordenadamente um organismo com tantos
músculos, nervos e células que produzem infinitas
combinações entre os segmentos do corpo sem que
um homúnculo guiasse tudo isso.

Fig. 5. Representação gráfica do homúnculo motor. Fonte:
http://criandocondicoesaliberdade.blogspot.com.br/2012/01/o-
homunculo-de-penfield.html.
Os graus de liberdade
A proposta de Bernstein era de que, durante a
realização de qualquer movimento, não era necessário
o controle total do sistema nervoso central, e sim
existiam outros componentes atuantes e importantes
nesse processo. É preciso entender que a relação entre
o movimento, os códigos neurais e a ativação dos
motoneurônios não é uma via de mão única, em que
o comando é sempre disparado pelo sistema nervoso
central e recebido pelo sistema musculoesquelético.
Este sistema, com suas propriedades características,
bem como o ambiente, são peças importantes para
a coordenação dos movimentos. O movimento pode
começar partindo de uma variedade de padrões de
contrações musculares. Além disso, uma mesma
contração muscular pode ter diferentes consequências
dependendo da especificidade do contexto em que
está sendo executada. Quando o corpo se move, ele
22
Processo de Desenvolvimento Motor
gera inércia e força centrípeta, e também há a força
da gravidade do ambiente, que é fundamental para
qualquer movimento.
Fig. 6. Braço robótico com três graus de liberdade. Fonte: http://
criticanarede.com/eti_libevolui.html.
Segundo Bernstein (1967), isso significa que as
ações podem ser planejadas em um nível abstrato
porque seria impossível para o sistema nervoso central
programar tudo para todos os locais e ainda levar em
conta a variabilidade contextual e a interação entre
as relações de força o tempo todo. Assim, quando
a decisão de se mover é tomada, os subsistemas e
seus componentes que produzem a contração nos
membros são suavemente ativados para que tudo que
esteja disponível seja usado da melhor forma. Esse
tipo de organização é devido à perfeita flexibilidade
do sistema para alcançar a demanda da tarefa dentro
de uma contínua troca com o ambiente enquanto
mantém o tipo de movimento adequado na mente.
Bernstein (1967) também ajudou os pesquisadores
a reconhecer que tal organização favorece a habilidade
em explorar as propriedades naturais do sistema
motor com um suporte complementar do ambiente.
Por exemplo, os membros apresentam algumas
propriedades devido às qualidades elásticas dos
músculos e à configuração anatômica das articulações.
Quando um determinado músculo se contrai e se
distende, ele oscila em uma trajetória particular até
chegar a um ponto de equilíbrio. Essa trajetória e o
ponto de equilíbrio não são monitorados e ajustados
pelo sistema nervoso central, são autoajustáveis
ou auto-organizados pelas propriedades dos seus
componentes.

Assim, o ambiente impõem restrições críticas aos
graus de liberdade do organismo. Para a locomoção
humana, por exemplo, é preciso manter a postura,
mover-se adiante e ainda manter um periódico e
eficiente ataque e empurre para com o chão. Além
disso, o sistema permite que se vá de um lugar para
o outro, ou seja, se locomova, pulando, galopando,
engatinhando ou ainda dançando. No entanto, as
restrições orgânicas e as propriedades do ambiente
são responsáveis por fazerem com que o movimento
mais eficiente para a locomoção, no caso dos
humanos, seja o andar. E qualquer humano que
esteja inserido nesse ambiente descobre isso e acaba
por preferir essa forma de locomoção.
Na Lua, onde há uma gravidade reduzida, a
forma preferida e, portanto, mais eficiente para
a locomoção não é o andar e sim o saltar, pois as
propriedades do ambiente mudam, e novas soluções
precisam ser encontradas. Essas soluções não são
pré-programadas, são encontradas inevitavelmente,
pois o organismo é influenciado pelas restrições do
ambiente em comunhão com suas características
físicas e biológicas, oferecendo ao sistema muitas
possibilidades de solução, umas mais, outras menos
eficientes.
Para Bernstein (1967), tanto para a criança quanto
para o adulto, os movimentos são sempre produtos
não somente do sistema nervoso central, mas
também das propriedades biomecânicas e energéticas
do corpo, do ambiente e da demanda específica da
tarefa. A relação entre esses componentes não é
simplesmente hierárquica (o cérebro comanda e o
corpo responde), mas sim profundamente distribuída
de maneira hierárquica, auto-organizada e não linear.
Cada movimento é único, e cada solução é fluida e
flexível. A pergunta que fica é: como pode cada uma
dessas relações ser sabida pelas crianças?
A multicausalidade do desenvolvimento
Para responder a essa questão, é importante
entender que o desenvolvimento não tem uma causa
23
Processo de Desenvolvimento Motor
única. Uma ação pode ter várias causas, dentre elas,
uma puramente física, energética ou fisiológica, que
será essencial para a organização do padrão final.
Um bom exemplo para entender a multicausalidade
pode ser o chamado “reflexo da marcha”, apresentado
por bebês entre aproximadamente três e sete meses.
Se um recém-nascido for colocado em uma postura
ereta (em pé) com os pés apoiados em uma superfície
rígida, imediatamente apresenta um comportamento
de retirada e colocada dos pés, um de cada vez, sobre
a superfície, como se estivesse andando. No entanto,
depois de um tempo (por volta dos sete meses), esse
comportamento “reflexivo” desaparece. Somente
perto de um ano a criança começa a apresentar a
capacidade de intencionalmente produzir movimentos
para o andar.
A explicação para tal evento era simples e unicausal:
a maturação do sistema cortical responsável pela
produção de movimentos voluntários primeiro
inibe as respostas reflexivas que são subcorticais
para depois facilitar o nível diferente e superior de
controle (MCGRAW, 1943). Essa explicação foi aceita
por muito tempo até que as propostas de Bernstein
começaram a ser difundidas.
Nessa época, muitos estudos foram replicados para
ser investigados sob a nova perspectiva. Foi quando
Thelen e Fisher (1982) colocaram os bebês que
apresentavam o reflexo da marcha desaparecido em
condições ambientais diferentes. Uma vez submersos
na água, o reflexo voltava a aparecer. Também quando
colocados em decúbito dorsal, movimentos de chutes
com um padrão de organização muito semelhante ao
apresentado no reflexo da marcha foram verificados.
Com esses resultados, ficaram claras as evidências
de que o “reflexo” não desaparecia, e sim que os
bebês, que tinham um ganho importante de gordura
nessa idade, não tinham força para levantar as pernas
uma de cada vez. Uma vez colocados na água, que
apresenta densidade diferente do ar, ou deitados,
fazendo que a quantidade de força não fosse mais
necessária, o comportamento aparecia. Ou seja,

restrições do organismo (falta de força e aumento
de massa) e ainda do ambiente (força da gravidade
e outras propriedades) também são determinantes
para o comportamento, não unicamente o sistema
nervoso central. Portanto, são múltiplas as causas do
desenvolvimento.
Fig. 7. Imagens dos experimentos de Esther Thelen sobre o
desaparecimento do reflexo da marcha. Fonte: http://psysc613.
wikispaces.com/Dynamic+Systems+Theory.
24
Processo de Desenvolvimento Motor
Link para vídeo da coordenação da marcha sobre
esteira elétrica: http://psysc613.wikispaces.com/
Dynamic+Systems+Theory.
Nesse caso, nem somente o aumento de peso, nem
somente a força da gravidade seriam suficientemente
poderosos para fazer o comportamento desaparecer,
mas os dois juntos, sim. Essa é a característica
da causalidade: ela emerge de vários fatores
que, associados, representam uma propriedade
determinante.
Com base nas propostas de Bernstein,
compreendendo o poder que têm as propriedades
do organismo, da tarefa e do ambiente, é possível
dizer que as mudanças desenvolvimentais não são
planejadas ou pré-programadas, mas nascem dentro
de cada contexto como o produto do desenvolvimento
de vários elementos.
A combinação dessas restrições tem outro poder
interessante, o de fazer emergir habilidades que
estavam escondidas antes do seu tempo. Um exemplo
desse caso é o uso do andador para crianças. Thelen
e Ulrich (1991) colocaram bebês de um mês em
um andador motorizado, e eles apresentaram uma
coordenação de passada alternada muito semelhante
à coordenação apresentada no andar independente.
Essa coordenação até então só fora identificada no
“reflexo de marcha”, que aparece a partir dos três
meses de idade. Nesse caso, o efeito facilitador do
andador fez aparecer uma habilidade que estava
escondida. Assim, o desenvolvimento acelerou?
Esse é mais um exemplo de que o desenvolvimento
não pode ser predeterminado, pois é fruto do
conjunto de condições apresentadas ao indivíduo. É
simplesmente impossível isolar as instruções que o
próprio organismo, englobado em sua relação com
o ambiente, fornece para as ações, em tempo real,
durante a performance. Todo comportamento é uma
manifestação da propriedade emergente baseada na
confluência de vários fatores.

Um pouco antes de a teoria dos sistemas dinâmicos
tomar força no cenário acadêmico, uma perspectiva
que foi sua antecessora começou a ser usada nos
estudos do desenvolvimento. A perspectiva de
sistemas gerais, apresentada por Von Bertalanffy
(1967; 1968), procurava explicar como funcionava
a organização dos sistemas baseada nas teorias da
cibernética. Segundo ele, qualquer tipo de sistema
funcionava regido por algumas linhas comuns a todo
sistema aberto, operando por meio de uma troca de
informação ou energia com o ambiente em que está
inserido. Urban (1978) propôs que essa teoria poderia
ser aplicada para a psicologia desenvolvimental.
Em paralelo a essas propostas que vários
pesquisadores passaram a compartilhar, outra,
baseada na teoria dos sistemas dinâmicos, foi
sugerida por Kugler, Kelso e Turvey (1982) para
explicar o desenvolvimento. Na verdade, os sistemas
dinâmicos, são uma forma particular de sistemas
gerais, que também buscam explicar como se dá o
aumento da complexidade. Busca entender como
um sistema passa de níveis mais simples para mais
complexos.
A complexidade é intrínseca ao sistema, e este
é formado por componentes da tarefa-organismo-
ambiente, como foi exposto por Newell (1986). A
organização desses elementos altera-se ao longo da
vida.
Essa proposta está baseada no não equilíbrio
termodinâmico. O mundo natural é composto por algo
chamado de sistema de não equilíbrio dissipativo:
sistema complexo e heterogêneo que ganha e
perde energia em uma troca com o ambiente. Uma
marca registrada dele é a formação de padrões, que
também podem se tornar complexos com o passar do
tempo em uma estrutura de auto-organização. Essa
organização emerge da confluência de componente
em um determinado contexto ambiental. A pergunta
dos autores foi: pode o padrão do movimento humano
nascer dos mesmos princípios de auto-organização
que são aplicados a outros sistemas dissipativos
25
Processo de Desenvolvimento Motor
e complexos? Podem os problemas dos graus de
liberdade de Bernstein seguirem por essa dinâmica?
O sucesso na aplicação dessa dinâmica para as
questões da coordenação do movimento humano
foi o estudo de movimento rítmicos simples,
especialmente flexões e extensões de braços,
pernas e dedos. Muitos dos movimentos humanos,
como andar, correr, nadar, pedalar etc. são cíclicos
e rítmicos, é uma propriedade do sistema motor
humano. O inovador dessas pesquisas foi o foco
na parte coordenativa rítmica do movimento, pois,
tradicionalmente, nessa época, os focos eram
questões como tempo de reação e atenção para
verificar as mudanças na coordenação. As variáveis
assim passaram a ser a trajetória do movimento e
o relacionamento entre fases para verificar como a
coordenação evoluía.
Duas abordagens dinâmicas foram propostas
pelos autores, a primeira pautada na biologia física e
a segunda, na psicologia ecológica. Nessa teoria, os
movimentos rítmicos eram associados a componentes
oscilatórios, como pêndulos com particulares rigidez,
suavidade e funções de energia e acoplamento. Vários
experimentos em que pessoas balançavam as mãos
como pêndulos demonstraram que a manipulação
de algumas propriedades físicas ou energéticas
como peso, comprimento e frequência resultava em
mudanças no movimento. Essas ideias vão também
de encontro à perspectiva de que as propriedades
ambientais são relevantes para o movimento.
A segunda abordagem teórica baseada nas
propostas de Bernstein foi focada na coordenação
dinâmica abstrata, especialmente no fenômeno de
transição de fase. Exemplos de transição de fase
podem ser vistos no andar quadrúpede dos animais,
como gatos, cavalos e cachorros, pois, quando
aumentam a velocidade da locomoção, também
mudam o comportamento, passam do andar para o
trotar e do trotar para o galopar. A transição é um
tipo de auto-organização, uma mudança espontânea
para um comportamento mais eficiente para a

situação. Vários experimentos foram elaborados para
estudar a transição de fases espontânea. Ambos
os estados são estáveis: o que está acontecendo
antes da transição e o que acontece depois dela. No
entanto, sob determinadas condições, um deixa de
ser preferido e estável, e o sistema então, passa para
o outro.
A partir desses estudos, outra pergunta surge:
qual a relação dessa dinâmica auto-organizada com
o processo de desenvolvimento? Ela pode explicar o
que faz acontecer as mudanças?
Um sistema em desenvolvimento é um sistema
dinâmico em que os padrões de comportamento
agem coletivamente na direção de estados atratores
das partes dos componentes, em particulares tarefas
e contextos ambientais. Esses padrões são preferidos
sob certas condições, e o sistema “quer” atuar com
eles. Outros padrões diferentes do preferido também
são possíveis, porém a performance é realizada com
mais dificuldade e fica mais fácil de ser interompida.
Atratores
As mudanças desenvolvimentais devem
ser analisadas como uma série de estados de
estabilidade, instabilidade e troca de fases, tudo
isso em um cenário rodeado de atratores, refletindo
a probabilidade de que um determinado padrão vá
emergir sob determinadas cirscunstâncias.
Em sistemas dinâmicos, uma forma de prever
um acontecimento futuro é identificar quando há
perda de estabilidade. Quando um componente
perde a estabilidade, a cadeia é interrompida, e o
sistema fica livre para explorar outras possibilidades
de atuação. Assim, o crescimento e os fatores
biomecânicos são importantes durante os primeiros
anos da infância, no entanto, a experiência, a prática
ou o ambiente podem se tornar dominantes. Uma
nova configuração é possível e pode ser descoberta
à medida que, progressivamente, vai se tornando
eficiente e apurada.
26
Processo de Desenvolvimento Motor
Para cada tarefa particular, vista sob uma
perspectiva dinâmica, é possível predizer quando
haverá mudança de estágio ou padrão por meio da
variabilidade. Esta pode ser observada em situações
que configuram o estágio exploratório, no qual
um leque de possibilidades para alguns padrões é
testado, e o aumento progressivo da estabilidade faz
o padrão estabelecer-se pela prática.
Fig. 8. Representação da estabilidade e instabilidade e seus
atratores. Fonte: file:///Users/priscillaferronato/Downloads/
APA%20Motor%20Development%20Esther%20Thelen.
webarchive
Nessa figura, o tempo avança do topo para baixo
da página. Cada linha horizontal é uma fatia do
tempo representando a probabilidade de o sistema
permanecer nesse estado. Quanto mais profunda for
a depressão, maior potencial de tal evento acontecer
(as linhas representam alguns comportamentos
variáveis, produto de possíveis configurações dos
elementos que compõem o sistema). Se uma bola
for rolada do lado esquerdo para o direito de cada
linha da figura, ela terá mais ou menos facilidade em
alcançar o lado oposto dependendo da profundidade
da depressão na linha. Quando a bola cai em um vale
e não tem energia suficiente para sair, pode-se dizer
que está em um estado preferido e foi levada para
ele por algum atrator. Quanto menos vales a linha
apresenta, mais variabilidade no comportamento será
 Processo de Desenvolvimento Motor

observada, uma vez que o sistema não apresenta
atratores promotores de estados de estabilidade.
Quanto mais depressões apresentar, significa que
mais padrões de estabilidade foram descobertos.
A instabilidade não é vilã da história, pelo
contrário, é preciso haver momentos de instabilidade
para dar ao sistema flexibilidade de selecionar as
atividades de adaptação. Os períodos de exploração
e seleção são chaves fundamentais para o processo
de desenvolvimento tanto no nível comportamental
quanto no neural. Essas atividades oferecem
condições para o sujeito encontrar novas soluções
para atender às demandas da tarefa e do ambiente
de acordo com suas características orgânicas.
Experimentalmente, esse processo pode ser
observado quando uma tarefa nova é oferecida a uma
criança ou a qualquer outro sujeito, como um adulto
ou idoso. Em uma tarefa nova, o processo de busca
do objetivo não pode ser antecipado, pois não há
experiência prévia na realização. Um bom exemplo
é o estudo de Goldfield, Kay e Warren (1993), que
apresentaram como uma criança aprende a usar um
“jolly jumper” (brinquedo composto de uma cadeira
atrelada a cordas elásticas presa no teto).

Exploração e seleção

O primeiro passo é descobrir quais configurações

atendem àquilo que o indivíduo “quer” fazer, por
exemplo, um bebê que está tentanto engatinhar ou
dar seus primeiros passos. Depois, é preciso sintonizar
essas configurações para fazê-las suficientemente
suaves, precisas e eficientes. Novamente, essa sintonia
Fig. 9. Jolly jumper.
é descoberta por meio de repetidas tentativas de erro
e acerto, em que as consequências dessas ações aos O estudo mostrou que, com poucas tentativas, os
poucos vão formando relações que, em determinado bebês aprenderam a usar o brinquedo com máxima
momento, são como pontes para alcançar o objetivo eficiência, gastando a menor energia possível e
desejado. aproveitando-se das propriedades do seu organismo,
do ambiente e do objeto. O impulso no chão passou
A diferença essencial entre essa perspectiva
a ser dado no momento preciso do contato, assim
dinâmica e a anterior (maturacional) é que a
como deixava de ser dado no momento adequado
emergência dessas habilidades chamadas de
para se aproveitar das forças do elástico.
filogenéticas – a sequência universal – é aprendida
por meio de processos correntes de modulação Com o passar das semanas, as crianças
dinâmica para alcançar o objetivo da nova tarefa por aumentavam o número de impulsos e diminuíam
meio de atividades de exploração e seleção dentro de a variabilidade e a amplitude, fazendo saltos mais
um campo de possibilidades. A ideia é que os bebês frequentes. Por meio da visão e da propriocepção,
são naturalmente motivados pelas tarefas – como se percebiam quais forças e em que momentos deveriam
locomover até um brinquedo para pegá-lo e levá-lo ser aplicadas, determinando também parâmetros de
à boca. Nesse sentido, a tarefa não pode ser vista tempo para os ajustes, deixando seus saltos cada vez
como algo que requer instruções predeterminadas mais eficientes.
geneticamente, e sim algo que vai sendo composto
guiado pela força da demanda.

27
 Processo de Desenvolvimento Motor

Na linguagem dinâmica, nesse cenário, a
estabilidade dos antigos atratores é interrompida,
levando a criança a explorar novos cenários para
descobrir um novo atrator que ofereça estabilidade
mais eficiente.
Link para vídeo de bebê e suas primeiras
tentativas no jolly jumper: http://www.youtube.com/
watch?v=3TJxpScimuM.
Link para vídeo de bebê experiente no jolly jumper:
http://www.youtube.com/watch?v=uhVgWpP5Xxo.
Percepção-ação
O processo de exploração e seleção é a chave
para a o aprendizado de uma nova tarefa. Durante
esse período, as informações que são captadas pelo
indivíduo, por meio dos canais perceptivos, vão sendo
integradas e compreendidas até que uma solução
adequada seja encontrada. As informações são tanto
fornecidas pelo ambiente como pelas rotinas de
ações de exploração executadas pelo indivíduo. Esse
processo de captação e integração de informações
foi chamado de ciclo percepção-ação. Portanto, o
acoplamento entre percepção e ação é imprescindível
para o aprendizado de novas habilidades.
Uma linha clássica nos estudos de James
Gibson foi a definição do conceito de affordance
(potencialidades). De acordo com Gibson (1979),
uma affordance é uma recíprocra relação entre um
sujeito e o ambiente que é necessária para executar
as atividades funcionais do dia a dia. Por exemplo,
um adulto sabe imediatamente que uma cadeira é
feita para sentar e que em uma superfície como o
chão é possível andar. Sabe, ainda, quando é possivel
pegar um objeto. Pessoas e outros animais percebem
diretamente com acurácia essas informações
sensitivas fornecidas pelo ambiente e a relação delas
com a estrutura de seus corpos. Essa percepção
é realizada por meio dos canais sensoriais e dos
receptores proprioceptivos que estão alocados nos
músculos, nas articulações e na pele.
Essas relações de percepção e ação foram
testadas em vários tipos de experimentos. Eleonor
Gibson testou a locomoção de crianças em diferentes
superfícies e observou as adaptações que eram
realizadas. De acordo com a inclinação da superfície
ou sua textura rígida ou móvel (no chão rígido
ou sobre um colchão de água), comportamentos
diferentes eram apresentados, mostrando que elas
são capazes de reconhecer as propriedades do
ambiente e adaptar suas ações a elas.

O termo percepção-ação vem sendo cunhado

O estudo de Adolph, Eppler e Gibson (1993)
desde os estudos de Piaget (1952), que acreditava
também apresenta evidências do funcionamento
que toda representação que o indivíduo tem é
desse mecanismo. Os bebês de dois grupos com
construída por meio de repetidos ciclos de perceber
idades diferentes foram testados, um com 8,5 meses
e agir no mundo. Depois desse autor, quem enfatizou
e outro com 14 meses. Eles eram colocados para se
e popularizou ainda mais o termo foram os Gibson,
locomover em uma superfície rígida com inclinações
James e Eleanor, em suas teorias sobre a percepção
diferentes.
e seu desenvolvimento. Especificamente, todos esses
pesquisadores mostraram que, desde o início, as
crianças coordenam continuamente seus movimentos
de acordo com as informações perceptivas para
aprender como manter a postura, alcançar um
objeto, locomover-se sobre vários tipos diferentes
de superfícies etc. Para uma revisão mais ampla do Fig 9. Karen Adolph no experimento de locomoção em superfície
assunto, ver Lockman (1990). inclinada. Fonte: http://www.psych.nyu.edu/psychology1.html.

28

Para subir a superfície, os bebês não apresentaram
problemas, no entanto, às vezes caíam. Essas quedas,
como não traziam consequências que causassem
pânico, não eram um fator que impedia as crianças
de continuarem a subir ou mesmo de realizarem
outras tentativas.
Para descer, a situação mudava. De acordo com o
aumento da inclinação, os bebês tornavam-se cada
vez mais cuidadosos em suas ações, explorando
a superfície com toques, às vezes recusando-se
a descer e em outras descendo de marcha a ré.
O grupo de bebês com 8,5 meses, ao contrário
do grupo com mais idade, não apresentava esse
comportamento de exploração e arriscava-se na
descida indiscriminadamente, muitas vezes sem
sucesso. Havia uma lacuna nas crianças mais jovens
em fazer a relação entre o que elas percebiam,
faziam e realmente aprendiam. Uma vez que
aprender significa lembrar-se, parece que as crianças
mais jovens se arriscavam com frequência pois não
se lembravam de que haviam falhado na tentativa
anterior. Em suma, o experimento demonstra que, a
partir dos 14 meses, elas são capazes de perceber a
inclinação da superfície e, por meio de exploração,
fazem o julgamento sobre se será possível ou não se
locomover por ela e, ainda, escolhem a melhor forma
para tal situação.
Entender como a percepção guia a ação é uma
importante questão desenvolvimental. Por isso,
diversos estudos sobre a capacidade perceptiva foram
realizados em bebês a partir da década de 1990.
Durante o desenvolvimento, cada novo marco abre
oportunidades para decobertas perceptivas. Bushnell
e Boudreau (1993) apresentaram um exemplo de
como importantes acoplamentos desenvolvimentais
estão presentes nas habilidades motoras.
Eles testaram a habilidade háptica de perceber a
forma de objetos e mostraram que recém-nascidos
somente são capazes de perceber as propriedades
deles quando em contato manual, ou seja, por meio
de exploração háptica. Enquanto adutos são capazes
29
Processo de Desenvolvimento Motor
de apenas olhando perceber propriedades como
textura, forma e tamanho, parece que os bebês ainda
não o fazem. Muitas das propriedades não foram
detectadas por eles. Os bebês parecem detectar
tamanho e temperatura já nos primeiros meses, pois
essas propriedades parecem exigir menor capacidade
de exploração háptica. Discriminação de textura e
rigidez aparece apenas por volta dos seis meses,
quando já são capazes de ações como esfregar e
“cutucar”. A percepção de peso e forma acontece
ainda mais tarde, pois requer movimentos ainda mais
diferenciados de dedos, mãos e braços.
Interessantemente, por meio da boca, os bebês
são capazes de perceber características como textura
e rigidez muito antes de essa habilidade surgir nas
mãos. Dessa forma, parece que, logo ao nascimento,
a boca é muito mais paramentada com inervações do
que as mãos. Talvez isso explique o comportamento
dos bebês de levar tudo até ela: a intenção parece
ser realmente de exploração.
Esses estudos parecem oferecer algumas pistas
de que a ação é essencial para a percepção. Perceber
e fazer parecem ser uma unidade única, em que há
uma relação intrincada de interdependência. Pessoas
percebem o mundo para agir nele e agem para
perceber. De fato, as evidências apresentadas com
os experimentos descritos apontam que desde o
início as crianças entendem o mundo por intermédio
de suas ações nele. O sistema nervoso parece ser
construído de forma a facilitar a integração dessas
informações de percepção e ação, e a neurociência
tem apresentado grande contribuição para o
entendimento desses processos.
O desenvolvimento cognitivo também pode
ser abordado de forma dinâmica. Em uma visão
dinâmica, a cognição emerge por intermédio do
mesmo processo que governa os ciclos de percepção
e ação. Atividades de alta ordem mental, incluindo
categorização, conceitos de formação e linguagem,
devem nascer de maneira auto-organizada, baseados
nas atividades recorrentes que ocorrem em tempo

real, assim como o alcançar desenvolve-se por
ciclos de tentar levar as mãos na direção do alvo
(THELEN; SMITH, 1994). Assim como a trajetória
da mão não é pré-programada e sim descoberta,
então é possivel pensar que as habilidades cognitivas
também emergem assim, dependentes do contexto,
da história e do momento em que a atividade está
sendo realizada. Tudo isso compõem a causa da
emergência de uma nova habilidade.
Abordagem dos sistemas de ação
A abordagem dos sistemas dinâmicos levou alguns
pesquisadores a extrapolar alguns dos conceitos
básicos dessa teoria e chegar a novas conclusões
sobre o processo desenvolvimental.
Depois de entender melhor o funcionamento
do sistema por meio das explicações baseadas na
teoria dos sistemas dinâmicos, alguns pontos foram
questionados, por exemplo: o que realmente está
sendo observado? Será que para entender o processo
de desenvolvimento a atenção deve se voltar para o
movimento?
A partir de então, a palavra movimento passou
a ser analisada com mais atenção, e percebeu-se
que ele é apenas a mudança de um objeto de um
lugar para outro. É um conceito físico de alteração
de posição. Uma habilidade nova, quando emerge no
comportamento humano, é muito mais do que isso.
Ela não é a simples mudança no posicionamento dos
membros: o comportamento parece ser realizado
sempre na intenção de atingir uma meta.
Se pensar com atenção em algumas habilidades
que são executadas pelos humanos, por exemplo,
andar, correr, abrir a porta, pegar um copo, varrer
o chão etc., é possível analisar que todas elas foram
descritas com verbos que indicam ações. Pensando
nos marcos desenvolvimentais, a interpretação é a
mesma: sentar, rolar, engatinhar, alcançar, pegar etc.,
todos verbos de ação.
30
Processo de Desenvolvimento Motor
As ações diferem do movimento pois são
comportamentos com uma meta a ser alcançada.
Enquanto o movimento é o deslocamento no
espaço com suas relações de força, a ação é um
comportamento que, antes de ser realizado, exige
motivação. Em outras palavras, os movimentos são
iniciados por motivação, definidos por objetivos e
guiados por informação (VON HOFSTEN, 2004). Visto
dessa forma, as ações necessariamente apresentam
uma função: atingir alguma meta.
As novas ideias com relação ao conceito de ação
propunham que o que na verdade observamos
ao longo do desenvolvimento são ações e não
movimentos. Logicamente, a ação é composta de
movimentos, mas eles não são para onde se deve
olhar. Quando uma habilidade nova é manifestada
por um bebê, não é por acaso que isso acontece.
Provavelmente, ele passou minutos, horas ou até
mesmo dias para conseguir executá-la. Nesse caso,
uma nova forma de olhar para o comportamento é
apresentada.
Na visão tradicional, todo comportamento
apresentado por recém-nascidos era visto como
reflexivo, ou seja, automatizado, sem qualquer tipo
de controle voluntário ou intenção atuando. Olhando
o comportamento com os óculos da perspectiva da
ação, isso passa a ser enxergado de outra forma.
Todo comportamento parece atender a um objetivo.
Mesmo os tidos classicamente como reflexo, por
exemplo, o sugar, a preensão e tantos outros que se
manifestam quando algum estímulo é apresentado,
parecem ter uma finalidade.
A literatura apresenta evidências de que os
movimentos humanos são organizados como ações
e não reações desde o início (BRUNER, 1970;
CONNOLLY, 1973; TOWEN, 1984; HOMMEL, 2001).
Essas evidências são mostradas em estudos que têm
usado diferentes paradigmas.
Em 1981, Esther Thelen apontou uma importante
classe de movimentos que não podiam ser chamados
 Processo de Desenvolvimento Motor

de reflexivos, pois não eram dependentes de

estímuos específicos, mas também não eram um
comportamento absolutamente organizado e preciso.
Eram comportamentos rítmicos e estereotipados
produzidos pelos bebês, que foram chamados
de espontâneos. Para compreender melhor esse
fenômeno, em outro estudo, Thelen (1995) verificou
que havia um acoplamento entre percepção e ação
durante a execução desses movimentos espontâneos
em bebês de três meses. Ou seja, os bebês foram
Fig 10. Claes von Hofsten em experimento de alcance de objetos
capazes de perceber quais padrões de movimentos móveis. Fonte: http://www.psyk.uu.se/forskning/forskargrupper/
desencadeavam um evento ambiental externo e, babylab/historia/.

assim, agiam de maneira prospectiva para obter o

resultado desejado.
Seguindo a linha de pensamento baseada nas
propostas e nos achados expostos, a emergência
de um comportamento ativo depende de frequentes
comportamentos de exploração para se obter
um comportamento prospectivo (VON HOFSTEN,
1992). De acordo com Von Hofsten e Lee (1982),
os movimentos são sempre controlados por um fluxo
contínuo de informações proveniente do ambiente
para que eles sejam planejados. Além disso, as
informações percebidas por meio da execução desses
movimentos também são usadas para corrigi-los.
Para agir no ambiente, o sujeito necessita de
informação para predizer o resultado da ação e,
subsequentemente, identificar a informação relevante
para realizá-la. Ação, portanto, é diferente de reflexo
(VON HOFSTEN, 2004). O reflexo precisa de estímulo;
a ação precisa de motivação e, consequentemente,
de intenção. Movimentos reflexivos são respostas
estereotipadas; ações são planejadas baseadas na
percepção do ambiente e do próprio movimento
para descobrir as regras e regularidades que aquele
apresenta e ser capaz de predizer o resultado final.
Uma das partes mais importantes da ação é a
intenção. De acordo com Bruner (1973), identificar
antecipação no comportamento infantil é um
indicativo de intenção.
Inspirado no conceito de ação e na nova maneira
de olhar para o comportamento, Edward Reed, em
1982, propôs que os humanos “funcionam” baseados
em sistemas de ação. Esses sistemas contam com a
filogenia, pois a proposta é que, ao nascer, já estamos
providos de algumas funções que seriam facilitadoras
para a atuação dos sistemas de ação.
Os sistemas de ação são categorizados levando
em consideração suas funções. Assim, eles podem
ser definidos em termos das propriedades ambientais
em que surgem pressões para a seleção. O sistema
de ação, assim como o perceptivo, são fruto de uma
evolução convergente e paralela na qual a pressão
por seleções deriva do tipo de informação disponível.
Enquanto a teoria dos sistemas motores apresentava
ênfase unicamente na análise individualizada
do músculo ou nos caminhos eferentes, não se
preocupando em tentar explicar a função do
comportamento, a teoria dos sistemas de ação
buscava justamente preencher essa lacuna. Uma coisa
é dizer que o padrão do comportamento é causado
por um programa motor, outra coisa é tentar explicar
por que certos comportamentos são utilizados em
certo contexto em detrimento de outros.
Baseado nesse conceito de que os sistemas de
ação são guiados pelas funções, oito tipos diferentes
deles foram definidos por Reed (1982).

31

Sistema de orientação básica
Esse é o sistema básico de ação, cuja função é
essencial para todas as outras. Ele ajuda a manter
a orientação funcional celular do animal de acordo
com a gravidade, as superfícies e o meio (ar, água)
dentro do ambiente. Manutenção da postura significa
mais do que estar em equilíbrio em uma posição.
Quer dizer também manutenção de comportamentos
dinâmicos de troca de posturas.
Sistema investigativo
Todos os sistemas perceptivos são baseados
nas fontes ecológicas de informação. Esse sistema
controla as atividades do sistema perceptivo (busca
de informação) e a orientação dos movimentos dos
órgãos sensoriais e da cabeça.
Sistema locomotor
Os animais estão continuamente em movimento
de um lugar para o outro, e essa capacidade de
se mover talvez seja uma das mais generalistas do
mundo animal. A habilidade de controlar a postura, a
orientação e a informação que chega pela locomoção
é uma característica típica e essencial para os animais
em geral.
Sistema de alimentação
Para manter a si próprios, os animais estão
em contínua interação com o ambiente por meio
da respiração, da ingestão de elementos, da
termorregulação e da reprodução. Esse sistema tem
a função de monitorar e regular a relação básica
entre organismo e ambiente nessas trocas.
Sistema performático
Além de alterar as relações entre o organismo e
o ambiente por intermédio das atividades orgânicas
controladas pelo sistema de alimentação, os animais
podem alterar aspectos físicos do ambiente para
atender a suas necessidades ou seus objetivos.
32
Processo de Desenvolvimento Motor
Trata-se do desenvolvimento da arquitetura animal
por meio das ações entre organismo e objetos do
ambiente. A construção de elementos que garantam
suas atividades (abrigos, armadilhas, ninhos) tem sido
observado em todos os tipos de ambientes (aquático,
aéreo e terrestre), e o uso dessa ferramenta tem sido
um fator importante adaptação da performance do
animal no ambiente.
Sistema expressivo
As observações do reino animal de Darwin já
denotavam que a organização sexual e familiar
animal está embasada na pressão por seleção da
manifestação de certas expressões emocionais e
intenções de comportamentos para seus pares.
As ações expressivas são efetivas, mas devem ser
acompanhadas da habilidade de discriminar as
diferentes expressões e de agir de acordo com isso.
Sistema semântico
Esse sistema serve para dar significado a algumas
situações do ambiente, levando os animais a
codificarem vários tipos de informação de acordo com
um pequeno número de regras. Exemplos podem ser
a linguagem, os desenhos antigos (rupestres) e a
dança em algumas culturas ou espécies específicas.
Um agente pode expressar uma enorme variedade de
significados por meio da manipulação e da integração
de sequências de movimentos de acordo com certas
regras.
Sistema de jogo
Esse sistema trata de regular os movimentos que
são feitos para o próprio prazer. Existem movimentos
nos quais não foi possivel identificar outra função
a não ser a de que são feito em benefício próprio,
e, portanto, a melhor definição para eles é de que
são feitos para o próprio bem. Assim como uma
criança brinca, outros animais também o fazem. Essa
brincadeira, apesar de poder trazer contribuições

para os outros sistemas de ação, em vários casos é
feita para o próprio prazer.
De maneira geral, os sistemas de ação estão
envolvidos em auxiliar o sujeito a interagir com
o ambiente e seus affordances. Cada tipo de ação
realizada por um agente é um tipo particular de
affordance. Cada sistema de ação coordena e
controla vários tipos de ação, todas derivadas de uma
semelhante pressão para seleção. Todas as ações são
compostas por posturas e movimentos, que são por
si mesmas as relações de agente e ambiente.
Essa teoria combina a proposta fisiológica da
atividade de Berstein com a psicologia ecológica de
Gibson. Numa perspectiva da percepção ativa do
animal, para a realização de ações ou simplesmente
na manutenção de posturas, o agente percebe
os affordances, orienta-se por eles, produzindo
movimentos e posturas por intermédio dessas
percepções, e modula isso por intermédio das
informações proprioceptivas que a ação gerou.
Abordagem da neurociência
De acordo com a abordagem da neurociência,
todo o processo de aquisição de qualquer informação
pelo cérebro passa pelos caminhos sensoriais,
que permitem “captar” as informações do mundo
externo e transmiti-las ao sistema nervoso central.
O processamento central ocorre em vários níveis
de integração, sendo a sensório-motora cortical
fundamental para os mecanismos perceptivos. A
extensa área cortical humana responsável pela
associação de informações sensitivo-sensoriais
permite dar sentido às informações que recebemos
do ambiente ou que geramos internamente.
O cérebro humano é estruturado por sistemas
complexos e bem organizados. Na visão da abordagem
cognitivista, o cérebro é metaforicamente entendido
como um dispositivo que funciona à semelhança
de um computador, que processa a informação
de entrada (input) e emite respostas adequadas
33
Processo de Desenvolvimento Motor
(output). Entretanto, essa concepção simplista não
considera as complexas conexões córtico-corticais e
córtico-subcorticais, bem como as vias de associação
inter-hemisféricas e o processamento paralelo multi
e intersegmentar.
O córtex cerebral e o tálamo estão interconectados
por uma extensa via de projeções excitatórias (conexões
córtico-subcorticais) que mantém a reverberação
autossustentada associada aos processos sensoriais,
cognitivos, emocionais e motores. Entende-se por
reverberação a automanutenção de uma atividade
num circuito neuronal após um estímulo transitório,
estado fundamental para a geração e a persistência
do processo cognitivo.
O conhecimento dos processos neurobiológicos
que participam do processo de desenvolvimento,
aprendizagem e controle tem sido possível pelo
desenvolvimento tecnológico, que disponibilizou
novos instrumentos que permitem avaliar de
maneira não invasiva as funções neurológicas em
seres humanos. Assim, tornou-se possível, com a
utilização da tomografia de emissão de pósitrons
(PET, do inglês positron emission tomography),
da ressonância magnética funcional (RMf) e da
magnetoencefalografia (MEG), avaliar a ativação
das áreas cerebrais envolvidas na execução de
determinadas tarefas. O aporte de novas tecnologias
e a investigação interdisciplinar têm permitido um
importante progresso nos conhecimentos científicos
dos processos de desenvolvimento e têm mudado os
rumos da pesquisa científica nessa área atualmente.
Fig 11. Situação experimental de coleta de dados por meio
de eletroencefalografia (EEG). Fonte: http://www.psyk.uu.se/
forskning/forskargrupper/babylab/metoder/eeg/.

Teoria da seleção de grupos neurais
Uma proposta teórica embasada nos conhecimentos
da neurociência que tem sido utilizada por alguns
pesquisadores atualmente é a teoria da seleção de
grupos neurais.
Além da contribuição das teorias de Bernstein e
Gibson, uma terceira proposta tem influenciado muito
a forma como o desenvolvimento tem sido tratado.
Ela versa sobre o desenvolvimento do cérebro e é
consistente com as abordagens sobre o processo de
desenvolvimento do comportamento. É importante
definir quais partes do cérebro mudam com os novos
marcos que emergem, além da natureza química e
celular dessas mudanças, porém somente isso não
é suficiente. Como já foi mencionado anteriormente,
a visão tradicional levava à crença de que a ligação
que causava as mudanças desenvolvimentais tinha
apenas uma direção: o cérebro amadurecia, e o
comportamento emergia. Mas o que causas as
mudanças no cérebro?
O campo do desenvolvimento da neurociência
contemporânea aponta para a plasticidade do
cérebro, que é a capacidade de se moldar por meio
das experiências individuais de percepção-ação.
Também, para os neurocientistas, a experiência é a
janela que o cérebro tem para mudar, e ela torna a
se abrir a cada nova oportunidade.
A teoria do cérebro consiste em uma nova síntese
que também aponta para a multicausalidade.
Essa teoria foi proposta por Gerald Edelman,
um imunologista, biólogo desenvolvimental e
neurocientista, que a chamou de teoria da seleção
de grupamento neural. Ela apresenta um mecanismo
neural específico para aquisição de habilidades
perceptivas que é consistente tanto com a perspectiva
da dinâmica gibsoniana quanto com os recentes
achados sobre a plasticidade neural.
Basicamente, essa teoria trata da natureza do
cérebro de um recém-nascido, com foco principal na
34
Processo de Desenvolvimento Motor
diversidade. A neurodiversidade nasceu dos processos
dinâmicos neuroembriônicos, o que significa que
podem não ser geneticamente determinados, no
cérebro. Além do mais, a diversidade oferece o
material para a seleção dependente da experiência,
que é o reforço de certas conexões de grupos de
neurônios a ser usados.
A segunda premissa essencial é a sobreposição,
densa e enlaçada, dos padrões de conectividade
entre todas as áreas do cérebro. Edelman usou o
termo reentrância, que significa que cada área tem
o sinal recíprocro de muitas outras. A reentrância é
um processo crítico que segue integrando a partir de
múltiplas áreas sensoriais e motoras e faz emergir a
coordenação nas respostas por meio das modalidades.
As bases para essa correlação de sensações é a
sincronia temporal dos sinais que chegam em tempo
real a respeito das coisas e eventos. Além disso,
o forte entrelaçamento na arquitetura do sistema
significa que os padrões de descarga provenientes
de duas modalidades extraem e combinam traços em
comum, um tipo de mapa dos mapas.
Juntas, a diversidade neural e a reentrância
levam o sistema nervoso a aprender a reorganizar
e categorizar os sinais sensoriais por meio de um
processo dinâmico auto-organizado. Usando uma
situação prática para exemplificar o funcionamento
cerebral baseado na teoria de Edelman, pode-se
retomar o experimento dos bebês de seis meses
no jolly jumper. Inicialmente, os bebês saltam
espontaneamente (esse já é um estado preferido)
sem um objetivo específico. Enquanto isso, eles
sentem, veem e ouvem tudo ao seu redor, e a relação
recíprocra dessas informações é feita no cérebro,
fazendo acontecer associações. Como os bebês
geram diferentes padrões de saltos, o grupo de
neurônios que recebe as informações proprioceptivas,
visuais e auditivas integradas “ascende”,7 levando
a uma coordenação diferente que se aproveita
melhor das propriedades elásticas do brinquedo. Ao
longo do tempo, as crianças descobrem classes de
7  Ascender, na linguagem da neurociência, significa ativar.
 Processo de Desenvolvimento Motor

movimentos em outros padrões, categorias diferentes
de movimento das pernas que produzem efeitos
cada vez melhores no elástico. O processo é auto-
organizado, porque, fornecido o substrato neural8
(que já é implícito filogeneticamente no indivíduo),
tudo o que se precisa é a oportunidade de exploração
espontânea e algum reforço motivacional. Não há um
plano genético para aprender a usar o jolly jumper,
mas esse padrão pode ser descoberto por meio de
exploração e seleção.
Em uma visão dinâmica, o sistema pode ser
instável o suficiente para que os padrões possam ser
alterados a cada tarefa. Além disso, saltar não faz
parte da sequência universal, e essa nova perspectiva
permite abarcar um novo marco não incluído nas
habilidades motoras filogenéticas, mesmo sem um
processo de instrução. O estado inicial precisa apenas
de uma forte motivação para se alcançar uma meta.
Cada nova solução, ou cada nova habilidade, abre
novos espaços para a exploração perceptivo-motora.
Alguns trabalhos seminais apresentam evidências
para essa sugestão, como os de Stein et al. (1993),
que indicam que, nos gatos, tanto no colículo superior
quanto em outras porções médias do cérebro havia
processamento de informação visual. Além disso, uma
grande parte de um grupo de neurônios foi ativada
não somente pelas informações visuais como também
pelas auditivas e somatossensoriais. Adicionalmente,
havia uma correspondência topográfica entre as
porções que fazem esse processamento, como
um tipo de espaço multissensorial. Esses autores
sugeriram que as respostas motoras são similarmente
integradas para produzir um mapa multissensorial
e multimotor que também é encontrado em outros
sítios da região cerebral.

A hipótese alternativa do desenvolvimento por

meio da seleção é especialmente atrativa porque
leva em consideração a variabilidade individual que
muda de forma ativa a forma e a proporção do corpo,
o crescimento neural e as tarefas no ambiente. Os
humanos descobrem que andar é melhor do que
galopar, no entanto, cada um anda de uma forma
única e particular, apesar de o andar apresentar um
padrão semelhante para todos.

A visão tradicional está apoiada no conceito de

que as modalidades sensoriais são processadas em Fig 12. Ilustração da integração das informações no córtex.

porções diferentes do cérebro e depois disso levadas

a níveis corticais superiores, onde são integradas e
combinadas. A visão atual da neurociência aponta
para princípios diferentes de funcionamento cerebral.
A ideia é que o cérebro funciona de maneira
multimodal, assim, as informações são conectadas e
processadas juntas em múltiplos sítios ao longo de
toda a fase de processamento (DAMASIO, 1989).
8  Substrato neural: cérebro, neurônios, sinapses e energia
elétrica.
Esses apontamentos são muito importantes
para entender que, durante o desenvolvimento, a
percepção guia a ação e vice-versa. Ao contrário das
crenças de Piaget de que a criança “constrói” pequenos
jogos/relações a partir da relação entre a percepção
e o movimento ao longo do desenvolvimento, o
funcionamento intermodal parece ser algo básico e
primitivo, presente ao nascimento. Há muitos casos
na literatura que demonstram que as crianças são

35

capazes de fazer transferências entre as modalidades
perceptivas desde as idades mais precoces. Por
exemplo, percebem oralmente as diferenças entre os
bicos de chupetas (MELTZOFF; BORTON, 1979) ou
olham preferencialmente para sons que se movem
em formas rígidas ou flexíveis que já tiveram a
oportunidade de explorar (STRERI; PÊCHEUX, 1986).
Quando um evento acontece no ambiente, ou
quando uma pessoa age no mundo, informações como
luzes, sons, cheiros, gosto e pressão impregnam-
se nos sentidos. Quando uma mãe cuida do bebê
e o carrega em seu colo, por exemplo, ele não só
sincroniza voz e movimentos faciais como percebe
mutuamente cheiros, gostos e informações táteis,
tudo relacionado com as posturas que assume na
situação. O mesmo acontece quando uma criança
passa horas caminhando. Nessa atividade, ela
olha, ouve e sente os movimentos que estão sendo
gerados e, então, absorve essas informações que são
consequências de suas atividades.
O mais importante para o desenvolvimento é
exatamente esse bombardeio de informações da vida
real, que são engenhosamente integradas ao longo
dos processos de mudanças em que as crianças
aprendem a agir no mundo físico e social. O elemento-
chave para o processo dinâmico de exploração e
seleção é a habilidade de gerar comportamentos que
oferecem uma variedade de experiências perceptivo-
motoras e a retenção do papel diferenciado que cada
uma das ações desempenha, habilitando a criança ou
qualquer outro indivíduo a atuar no mundo.
Segue um link para a palestra de Vilayanur
Ramachandra, um neurocientista que explica o
funcionamento de um grupo especial de neurônios
chamados neurônios espelho: http://www.ted.com/
talks/lang/en/vs_ramachandran_the_neurons_that_
shaped_civilization.html.
36
Processo de Desenvolvimento Motor
Desenvolvimento da ação
O desenvolvimento começou sua história pautado
no comportamento reflexivo (para definição de reflexo
e comportamento, ver VanSant, 1989, p. 226). Uma
série de estudos foi feita para demonstrar que mesmo
os movimentos considerados reflexivos utilizavam-
se das informações ambientais e não aconteciam
sempre da mesma forma. Quando o mesmo estímulo
era oferecido em condições ambientais diferentes, a
resposta motora apresentava variações.
As investigações sobre os movimentos reflexivos
passaram então a ser feitas para avaliar se esses
comportamentos poderiam ser identificados no
período pré-natal. Tendo em vista que, após o
nascimento, muitos comportamentos tidos como
reflexivos pareciam na verdade não ser totalmente
estereotipados, a ideia era investigar se ao menos
em fetos os reflexos se manifestavam na sua forma
pura.
Surpreendentemente, na análise do comportamento
fetal, não eram evidentes características reflexivas
como estímulo específico que desencadeia resposta
estereotipada. Não havia uma relação clara entre
os eventos sensoriais e o comportamento motor.
Passou-se então ao conceito de que o bebê era um
ser ativo e não reativo.
Se a criança vem ao mundo preparada para integrar
as informações provenientes de todos os sentidos,
como demonstram os estudos da neurociência, então
cada dia significa uma experiência, cada movimento
oferece um novo propósito, mesmo nos bebês mais
jovens.
Com esses resultados, a dicotomia entre sistema
central e periférico presente por muito tempo
nas teorias da psicologia foi o principal fator a ser
abandonado para que se pudesse propor uma teoria
da ação, e não apenas uma explicação de como os
movimentos acontecem. Abandonar essa dicotomia
significa abandonar o conceito de sistemas motores

para tratar de sistemas de ação. Sistemas de ação
apresentam tanto componentes sensoriais como
motores e são organizados fundamentalmente,
diferentemente dos sistemas motores.
A base para a dicotomia entre processos centrais e
periféricos é anatômica e fisiológica. Os vertebrados
apresentam um sistema nervoso central composto em
níveis, desde os segmentos da espinha até o córtex.
Esses níveis são centrais porque são compostos por
caminhos comuns nos quais há muita comunicação
via neurônios entre o sensorial e o motor. A inervação
perférica de músculos, ligamentos, pele e órgãos
apresenta caminhos provados aferentes e eferentes
(aferente: do sistema nervoso central para a periferia,
seriam os comandos enviados pelo cérebro; eferente:
da periferia para o sistema nervoso central, aquilo
que é percebido e enviado ao cérebro).
Desde a descoberta de que as vias dorsais da coluna
espinhal são vias de entrada e as vias ventrais são
de saída, os psicofisiologistas têm tentado especular
que as primeiras são relacionadas às capacidades
sensoriais e as segundas, às funções motoras.
Mergulhados nesses conceitos estão também os de
movimento voluntário e involuntário. Movimentos
involuntários são aqueles essencialmente reflexivos,
em que a estimulação parte da periferia e segue por
caminhos fixos até o comando central, sem qualquer
sensação de consciência. Movimentos voluntários
são aqueles que são iniciados no córtex cerebral e
seguem para a periferia conscientemente. A ideia
de entrada sensorial somente pela via reflexiva e
inconsciente foi a base para a compreensão do
funcionamento cerebral durante o século XIX e ainda
hoje tem muita força.
A teoria da ação não nega todas essas premissas.
É evidente que há diferenças anatômicas e fisiológicas
entre o sistema nervoso central e o periférico e que
o sistema nervoso central é construído em diferentes
níveis de atuação. No entanto, é a interpretação
desses fatos, de que alguns movimentos são pré-
programados via controle central e outros acontecem
37
Processo de Desenvolvimento Motor
somente na periferia, que não é aceita dentro de
uma perspectiva da ação.
Há uma incoerência na proposta de que a
aferência é informação sensorial e a eferência é
comando motor. Muitos movimentos utilizam os
dois processos; assim, o comando enviado (output)
pode ter algumas vezes funções sensoriais, assim
como a entrada (input) pode ter função motora.
Nesse sentido, a mistura entre algumas abordagens
para a interpretação do controle motor tem muito a
oferecer para o engrandecimento do conhecimento
a respeito desse processo. A eferência resultante de
um programa central, chamada de motora, talvez
possa desempenhan um papel importante no ajuste
das características receptivas, e a aferência, que tem
a função primária de modular o aspecto neural, é
chamada de sensorial apesar da aparente falta de
qualquer função perceptiva.
A primeira premissa para uma teoria da ação é
que o movimento funcional é sempre guiado sobre
essas situações de aferência e eferência misturadas.
Esse aparato conceitual parece mais adequado para
tratar da complexidade dos movimentos do que as
teorias tradicionais. Ele está pautado em conceitos
da zoologia e da biologia evolutiva, assim como da
psicofisiologia.
As bases para a teoria da ação estão nas propostas
de sistemas funcionais de Bernstein e nos trabalhos
de Gibson, com sua teoria para o funcionamento
do sistema perceptivo mostrando que os sistemas
de ação podem ser controlados pela informação.
Propõem que as ações são realizadas de acordo com
o ambiente, que “convida” o indivíduo a interagir com
ele. Os conceitos de Bernstein e Gibson, publicados
na década de 1940, mudaram a psicologia. Ambos
os autores apresentavam uma perspectiva naturalista
para a psicologia básica que abordava de forma
muito abstrata a função do contexto no processo de
desenvolvimento. As propostas foram baseadas em
análises empíricas da maioria das habilidades e ações
produzidas no dia a dia, usando extensivamente
 Processo de Desenvolvimento Motor

conceitos evolucionários de desenvolvimento e movimento, considerando as ações um constructo

para auxiliar na compreensão das ações, sempre
em contextos reais em que os comportamentos
aconteciam.
Do movimento para a ação
Tanto as propostas de Gibson para a percepção
quanto as de Bernstein para o movimento foram
um tanto radicais inicialmente. Gibson não queria
considerar os inputs sensoriais no processo perceptivo
para fugir da visão tradicional da época, no entanto,
não teve como escapar e assumiu que eles e suas
associações subjetivas são produtos da atividade
perceptiva.
à parte dos movimentos. Mas, na verdade, o que ele
chamou de ação nada mais era que um conjunto
de movimentos e posturas. A proposição era que
o controle sofisticado de movimentos específicos,
habilidades humanas características, era, na verdade,
uma consequência do desenvolvimento da ação.
As premissas sobre as quais o conceito de ação foi
sendo formado por Bernstein foram:
- Movimentos são unidades da ação.
- Movimentos são resultados de comandos do
sistema nervoso central ou reflexos.

A proposta de percepção ativa de Gibson apontava - Movimentos são mais parecidos se forem
que o processo perceptivo não era algo passivo, repetidos quando se tornam associados com
em que as informações simplesmente entravam sensações e resultados plausíveis.
no indivíduo pelos canais sensoriais. Atribuída a
- A repetição do movimento leva a mudanças na
grande importância que o meio exercia sobre o
frequência deles, o que é o mecanismo central da
comportamento do indivíduo, na teoria de Gibson,
aprendizagem.
este era o ator principal do processo perceptivo,
que buscava no ambiente as informações a ser
- Juntas, essas premissas transformam-se em
utilizadas. Essa busca era o processo facilitador para
associações que representam estados positivos, que
a interação entre o indivíduo e o ambiente, levando
guiam a aprendizagem motora.
ao estabelecimento das affordances. Para ele, assim
como para Bernstein, havia também um output
Essas premissas passaram a ser usadas para
sensorial e um input motor.
explicar qualquer tipo de desenvolvimento e
aprendizagem da ação. E o papel da repetição
Gibson procurou mostrar a percepção visual
começou a ser investigado dentro do conceito
humana em situações diárias realistas. Algum tempo
desta. Bernstein rejeitava a abordagem de que a
depois, Bernstein publicou o livro On dexterity (Sobre
repetição associada a fatores prazerosos levava a
a destreza), que foi logo comparado com as ideias
caminhos no sistema nervoso central. Para ele, a
de Gibson. Nessa publicação, a ideia era apresentar
repetição pela repetição não poderia existir porque
a “base de uma teoria do movimento”, não apenas
há uma variabilidade inerente ao sistema associada
publicações sobre movimento, e sim movimentos em
à complexidade do ambiente que faz com que cada
contextos específicos.
uma seja diferente da anterior. A repetição era
entendida como uma função ecológica, característica
Bernstein tinha necessidade de afirmar que as ações
primordial para a aprendizagem, porque, quando as
eram primárias e que o controle dos movimentos e
ações são repetidas muitas vezes, é para encontrar
as posturas eram secundários, no entanto, teve que
novas soluções:
assumir que estes são consequências da atividade do
organismo. Ele tinha uma visão dicotômica de ação

38

Soluções repetitivas [...] são também
necessárias, porque, sob condições naturais,
condições externas nunca se repetem [...].
Consequentemente, é necessário para ganhar
experiência relevante a todas as várias
modificações da tarefa. [...] Para o animal não
pode haver confusão para as modificações futuras
da tarefa em condições externas (BERNSTEIN,
1967).
Esse conceito de aprendizagem implica uma nova
definição do que é aprendido e uma nova definição
de habilidade motora. “Habilidade motora é a
capacidade de resolver um ou outro tipo de problema
motor” (BERNSTEIN, 1967).
Nessa definição ecológica, aprender uma nova
habilidade motora implica aprender a resolver
problemas motores dentro do contexto ambiental.
Inspirados em Bernstein, uma série de psicólogos
passaram a definir ação como a habilidade do animal
de controlar as relações de mudanças com o ambiente
(TURVEY, 1977; REED, 1982).
Uma pessoa começa a aprender um movimento
porque não consegue executá-lo. No começo
da aprendizagem, não há nada correto, apenas
comportamento errados e desajeitados. Um bom
exemplo de como as ações começam a ser aprendidas
antes que se consiga executá-las são os experimentos
de alcançar de von Hosten. Apenas a partir dos três
meses os bebês são capazes de direcionar suas mãos
a algum objeto que queiram pegar. No entanto,
antes disso, nos experimentos de Von Hofsten,
foram capazes de tocar objetos em movimento de
forma descoordenada, com momentos de aceleração
ineficientes, entre outros erros, mas conseguiram.
A repetição desses comportamentos desajeitados
não levou à formação de um caminho mental errado,
pelo contrário: quando a postura foi estabilizada,
todas as crianças reorganizaram seu comportamento,
ajustando a coordenação dos momentos de aceleração
e desaceleração, sendo capazes então de alcançar o
objeto. A emergência do comportamento foi resultado
39
Processo de Desenvolvimento Motor
das mudanças na organização da postura, que
habilitaram as crianças a moverem seus braços na
direção do objeto. Assim que adquirem esse tipo de
controle, conseguem utilizar os braços, o que ocorre
aos três meses, porque a postura somente passa a
ser mais bem controlada a partir dessa idade.
As ideias de Bernstein podem ser aplicadas a
aspectos importantes do desenvolvimento da ação:
o que na verdade se desenvolve nunca é o padrão
de movimento, e a repetição deste não é garantia de
que vai emergir. Pelo contrário, aprender uma ação
por repetição não quer dizer resolver um problema
motor, quer dizer que o processo de solução muda
e melhora. O que é aprendido, muitas vezes pela
repetição, é como resolver o problema ou como agir.
Para Bernstein, as ações funcionais são
primariamente importantes, e o controle dos
movimentos e da postura é secundário. Movimentos
não são blocos de ações construídos, no entanto,
o controle deles é o resultado do desenvolvimento
delas. Esse conceito da primazia das ações é
fundamental para qualquer teoria da ação. Uma
teoria da ação, então, pode ajudar pesquisadores
a entender realmente o quanto são importantes
algumas habilidades culturalmente específicas que
caracterizam como os humanos começam a se
desenvolver.
Os trabalhos de Bernstein e Gibson procuraram
esclarecer as diferenças e os contrastes entre
os conceitos de sistema sensorial e sistema
perceptivo (Gibson) e sistema motor e sistema de
ação (Bernstein). Na avaliação deles, uma função
é formada por sistemas perceptivos que são
estimulados a explorar ativamente, e a modulação da
função é acoplada ao sistema de ação, que constrói,
coordena e ajusta os movimentos do indivíduo para
atuar adaptativamente ao ambiente.
De acordo com a teoria dos sistemas de ação, não
há unidades de movimento em que o controle deve
ser imposto; as unidades dos sistemas de ação não

são respostas (que precisam ser enviadas, moduladas
e arranjadas pelo sistema nervoso central) e sim
posturas (persistentes no indivíduo, pois baseadas
nas características de sua relação com o ambiente)
e movimentos (transformação de uma postura em
outra). Aprendizagem motora, nessa visão, é um
processo associativo em que certas características
dos sistemas sensoriais passam a ser associadas com
certas respostas.
As ações estão organizadas de forma a considerar
efeitos ambientais. A teoria dos sistemas de ação
propõe que mudanças nas variáveis perceptivas são
usadas para controlar os movimentos e as posturas.
Enquanto o sistema motor tem uma função única
(mover-se), o sistema de ação pode servir para
muitas funções (depende da meta a ser alcançada).
Sistemas motores produzem movimentos em
resposta a estimulação. As funções biológicas ou
psicológicas não estão sob comando do sistema
motor e sim são controladas por centros separados.
Ao contrário disso, os sistemas de ação têm várias
funções, porque ajustam as atividades do organismo
levando em consideração as propriedades do meio. A
evolução levou ao surgimento de vários sistemas de
ação com diferentes funções e não com diferentes
músculos ou movimentos envolvidos.
Resumindo os argumentos mais robustos de
Bernstein e Gibson que formam a base da teoria da
ação, a ideia era quebrar a dicotomia entre centro
e periferia. Para isso, Bernstein, em primeiro lugar,
assumia que o corpo é um sistema mecânico com
massa e sujeito à gravidade e às forças da inércia.
Segundo, durante o curso de qualquer movimento, o
relacionamento das forças que agem sobre o corpo
pode mudar por meio da troca de energia. E, terceiro,
a trajetória de qualquer parte do corpo não pode ser
calculada sem que sejam levadas em consideração
informações a respeito das mudanças de forças
que estão sendo aplicadas. Bernstein mostrou que
qualquer comando central enviado poderia ser
equivocado se não levasse em conta esses aspectos
40
Processo de Desenvolvimento Motor
e também que os mesmos comandos poderiam
resultar em movimentos diferentes dependendo das
carracterísticas do ambiente. Assim, apresentava
evidências do papel fundamental do ambiente na
geração das ações e controle dos movimentos.
Seleção das ações
Como Gibson (1979, 1986) apontou, o nicho
(local) onde cada espécie vive pode ser entendido
como um campo de oportunidades para aplicar
e entender suas ações e as potencialidades
(affordances) que elas despertam. Essas affordances
são os problemas que devem ser resolvidos. O nicho
humano é o ambiente social e, por isso, muitas das
habilidades desempenhadas têm uma finalidade
social. A organização cultural da vida humana leva
as habilidades biológicas, como comer e andar, a
tipicamente se desenvolver em larga escala (ou seja,
a grande maioria da mesma espécie desenvolve
as mesmas habilidades) porque as ações já estão
preparadas para esse ambiente (nicho).
Os bebês humanos não ficam totalmente de fora
desse nicho. Eles são apresentados progressivamente
às oportunidades de experiência e ação. No entanto,
cada criança cria seu próprio campo de ação, com suas
relações particulares dentro do ambiente e da cultura
em que está inserida. O que a criança na verdade
recebe é um campo promotor de ações, não um local
para desenvolver suas affordances (potencialidades)
preferidas, pois normalmente o ambiente onde ela
está é manipulado por um adulto para recebê-la.
Esses campos de promoção das ações,
influenciados por aspectos filogenéticos e culturais,
são aspectos importantes do desenvolvimento. Isso
interfere não somente nos tipos de problemas que
serão apresentados às crianças, mas também nos
recursos que ela terá para encontrar soluções para
eles. Em bebês, os aspectos que parecem exercer
maior influência nessas questões são as tarefas
posturais. Estudos apontam que posturas particulares
podem oferecer um suporte maior ou menor para

a realização de uma tarefa, como no exempo
das pesquisas de Von Hofsten, no qual, uma vez
estabilizada a postura, o comportamento de alcançar
emergiu antes do tempo esperado.
Em culturas africanas e indianas, por exemplo,
onde massagens e técnicas de manipulação do
bebê são aplicadas pelas mães, essas atividades
parecem ter um impacto importante no processo
de desenvolvimento motor. Porém será que essa
facilitação por meio do desenvolvimento postural
acarreta alguma vantagem na vida adulta em outras
habilidades?
Um estudo com crianças do Congo mostrou que
elas eram aproximadamente um ou dois meses
mais adiantadas em comparação com as francesas
nas habilidades de sentar e manter a postura ereta
em pé, e esse avanço levou ao aparecimento da
habilidade de alcançar precocemente. No entanto, o
estudo apontou que ele estava relacionado apenas
aos movimentos do braço (alcance), enquanto que,
nas habilidades de pegar (nas quais os dedos são
mais efetivos), os dois grupos foram semelhantes.
Em suma, é preciso prestar atenção na construção
desses ambientes de possibilidades para as crianças,
pois podem ser encorajadores na mesma medida em
que podem ser desencorajadores ao processo de
desenvolvimento do encontro de novas soluções.
Desenvolvimento motor x
desenvolvimento da ação
Trilhado o caminho das elucidações, é preciso
deixar claros mais este conceito: serão a mesma
coisa desenvolvimento motor e desenvolvimento da
ação? Bastante já foi dito sobre a divisão entre as
abordagens dicotômicas e interacionistas, porém
é a partir delas que é preciso dar início a mais um
processo de esclarecimento.
Relembrando a história das pesquisas sobre
o desenvolvimento motor, nos estudos pioneiros
41
Processo de Desenvolvimento Motor
de Arnold Gesell, apesar de o objetivo principal
ser a compreensão dos processos que levavam à
manifestação dos comportamentos observados,
eram as descrições do movimento que serviam
de ferramenta para isso. Nessas observações, o
ambiente não foi, ou quase não foi, levado em
consideração. Eram observadas características físicas
do movimento, lembrando ainda que, a esse tempo,
o termo desenvolvimento não era utilizado, e sim
crescimento, que denota ainda mais a característica
física e não ambiental ou social.
Com o afastamento dos psicólogos dos estudos
do desenvolvimento durante o período descritivo
e a mudança na forma como estes passaram a ser
tratados, com ênfase ainda maior no movimento,
o processo desenvolvimental foi deixado um pouco
de lado. O foco passou a ser a performance e as
diferenças entre as idades.
A retomada dos estudos com uma perspectiva
desenvolvimental, voltando o olhar para o processo,
fez surgirem então as perspectivas em que a ação é a
protagonista da situação e o movimento passa a ser
o coadjuvante.
Relembrando esses aspectos históricos, é possivel
associar o termo desenvolvimento motor aos dois
primeiros períodos que marcaram os estudos na área
de desenvolvimento, perdurando até a década de
1980, quando a visão dinâmica do processo entrou em
vigor com as teorias dos sistemas dinâmicos. Nessas
primeiras etapas, o objetivo do movimento não era
levado em consideração, nem mesmo a influência
do ambiente; por isso mesmo, o comportamento
foi chamado de movimento, que é a capacidade de
mudar o posicionamento de algo no espaço.
Com uma visão mais abrangente do comportamento
humano, a palavra movimento perde seu sentido,
pois uma série de aspectos passa a ser considerada,
e a definição de deslocar no espaço torna-se simplista
demais. A partir dessa nova visão, as teorias da ação
passaram a ser o foco dos estudos. Nesse ponto, o

comportamento passa a ser observado inserido em
um contexto, em que cada elemento pode oferecer
um tipo particular de influência para cada indivíduo.
Assim, o termo desenvolvimento da ação parece ser
mais adequado ao evento que está sendo abordado.
Para que o comportamento tenha algum
sentido, não basta realizar movimentos, é preciso
contextualizá-los. Uma vez que o desenvolvimento
motor consiste no desenvolvimento de programas
de ação, com funções específicas para a relação
ente o indivíduo e o ambiente, o movimento é um
meio para se chegar a uma meta. Portanto, quando
observamos um bebê alcançar um objeto, pegá-lo e
levá-lo até a boca, não estamos vendo simplesmente
movimentos. O que vemos são várias metas sendo
alcançadas para atingir um objetivo final, então,
estamos falamos em desenvolvimento da ação.
Talvez, e isso também não é certo, haja o puro
desenvolvimento motor no período pré-natal, mas,
a partir do nascimento, o bebê, em sua interação
com o ambiente, em uma constante busca da
compreensão dos eventos por meio da identificação
de regularidades, começa a estabelecer relações
entre seus comportamentos reativos e espontâneos,
avaliando as consequências internas e externas que
eles promovem. A partir daí, estamos falando de
ação.
Apesar de o termo desenvolvimento motor estar
ainda enraizado na fala de muitos pesquisadores da
área, é preciso atenção a seu uso, pois, no contexto
em que essa área se encontra nos dias atuais, isso
representa uma desatenção ao real significado dos
termos.
O futuro dos estudos em
desenvolvimento
Estudar o desenvolvimento é necessário e
importante por muitas razões diferentes. Para
promover melhores terapias e melhorar a qualidade
de vida de quem possui comprometimento mental,
42
Processo de Desenvolvimento Motor
físico ou motor; para aumentar a qualidade das ações
daqueles que desejam ser atletas; para enriquecer
o repertório motor e aumentar as possibilidades de
ação nas atividades diárias de lazer e trabalho; e,
também, para se adaptar melhor ao processo de
envelhecimento e manter uma vida de qualidade e
independência.
Muitas relações do desenvolvimento com
vertentes teóricas como empirismo9 e interacionismo
ou organísmica foram feitas. As mudanças podem ser
contínuas ou descontínuas, mas são irredutíveis ao
estado anterior, estão sempre diferentes do antes.
Porém percebe-se uma dificuldade dos pesquisadores
do desenvolvimento em se posicionarem de forma
coerente utilizando uma abordagem ou outra.
Na maioria das vezes, começam explicando seus
resultados pela teoria de processamento de
informação e, quando acham resultados contraditórios
ou inesperados, usam a fundamentação organísmica.
Em um ponto de vista dinâmico, uma questão
desenvolvimental não pode ser “quais habilidades
ou conhecimentos os bebês e crianças realmente
têm?” ou “quais partes do seu comportamento são
genéticas?”. A questão deveria ser “quais partes
cooperam para produzir estabilidade ou promover as
mudanças?”.
Tais questões somente podem ser respondidas
por meio de acompanhamento longitudinal do
indivíduo dentro do seu ambiente familiar e do
contexto real como unidade de análise. A ideia é
analisar o estado do comportamento natural e medir
as estabilidades e as mudanças. Saber quando
os sistemas entram em transição é importante
porque assim é possivel elaborar programas de
intervenção realmente adequados que ofereçam
a oportunidade da emergência de novos padrões.
Para isso, o pesquisador deve ser um conhecedor do
funcionamento do sistema, perceber o momento de
maior flexibilidade e intervir efetivamente. É preciso
9  Para o empirismo, o corpo é visto como máquina. Para
o interacionismo, existe uma relação de interdependência
entre o desenvolvimento e o meio.
 Processo de Desenvolvimento Motor

conhecer a história do sistema, sua dinâmica e a

maneira como a intervenção pode interromper a
estabilidade para uma nova solução emergir.

O pesquisador do desenvolvimento que tem como

seu objeto de estudo os movimentos inevitavelmente
acabará se tornando um investigador do controle motor
em diferentes idades. As repercussões desse modo
de pensar são muitas, e o controle motor certamente
terá algo a ganhar, no entanto, a compreensão do
desenvolvimento continuará estagnada. O enfoque
na ação evita esse tipo de acontecimento, pois, dessa
forma, o foco será a investigação do processo, o que
é um ponto de partida inicial para uma análise sobre
uma perspectiva realmente desenvolvimental.

Para concluir, os estudos desenvolvimentais,

qualquer que seja a perspectiva teórica em que
estejam baseados, deveriam manter o foco no
processo e, assim, integrar todos os níveis de análises
do desenvolvimento motor, desde a observação do
movimento (processo/produto) até os processos
percepto-cognitivos para oferecer uma explicação
mais completa.

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