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OS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS NAS ESCOLAS INDÍGENAS: AS

EXPERIÊNCIAS XIKRIN E BANIWA1

Camila Boldrin Beltrame (UFSCar/SP)


Amanda Rodrigues Marqui (UFSCar/SP)

Resumo
Esta comunicação pretende discutir duas pesquisas em andamento do Observatório da
Educação Escolar Indígena da UFSCar. O objetivo é elaborar algumas reflexões a
respeito das escolas indígenas tendo dois contextos etnográficos distintos: os Xikrin do
Bacajá do sudoeste do Pará, e os Baniwa do Alto Rio Negro. Os Xikrin e os Baniwa são
exemplos de como a consolidação das escolas indígenas no Brasil vem ocorrendo de
formas e em tempos diferentes, fatores que ajudam a delinear especificidades escolares
a cada uma dessas localidades. Os elementos que ilustram essas particularidades são
diversos e o recorte que apresentamos nesta comunicação refere-se a maneira como os
conhecimentos tradicionais entram nas salas de aulas como atividades escolares. Como
essas atividades são construídas e quais os significados que adquirem ao serem levados
para as escolas? Com estes exemplos etnográficos esperamos refletir sobre os modos
como as práticas indígenas ao serem levadas para a sala de aula são (re)significadas e
contribuem para evidenciar relações e negociações que a escola propicia entre
conhecimentos indígenas e não-indígenas.
Palavras-chave: Educação Escolar Indígena, Xikrin do Bacajá, Baniwa.

As escolas indígenas devem ser diferenciadas, específicas e interculturais. Isso


está garantido na legislação brasileira desde a Constituição de 1988 e nas leis
subseqüentes2 que dão forma e sustentação a estes enunciados. Esta mudança na
maneira de pensar as escolas indígenas, que procurou refutar os antigos modelos que
tinham propósitos de integrar os indígenas à sociedade nacional ou de promover a sua
catequização através da atuação missionária (Grupioni 2008, Collet 2006, Cohn 2005b,
Cabalzar 2012), é uma conquista que surge da convergência de diálogos e da atuação
conjunta de representantes de órgãos públicos, indígenas e assessores que ao longo
dessas últimas décadas vêm se esforçando para elaborar e executar estratégias que
permitem a efetivação desta política pública.
Este conjunto de leis propõe uma série de medidas que servem para orientar esse
processo de implantação e consolidação de escolas indígenas diferenciadas, podendo ser
destacada, entre outras, o ensino bilíngüe, a produção de materiais didáticos específicos,

1
“Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.”
2
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996; Referencial Curricular Nacional para as
Escolas Indígenas (RCNEI), em 1998; o Plano Nacional de Educação (PNE), em 2001; Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, 2012; entre outros.

1
a produção de currículos também específicos com a inserção de conhecimentos
indígenas e a atuação de professores indígenas. Este movimento ressalta, portanto, a
participação dos indígenas em todo o processo escolar, da definição dos conteúdos e
práticas pedagógicas à gestão. Com isso espera-se que suas escolas sejam pensadas e
organizadas de forma que respeitem os modos de vida particulares e devem, neste
sentido, considerar as diversas expectativas que são elaboradas sobre esta instituição.
Ouvir, conhecer e discutir a partir do que cada povo reflete sobre a educação escolar e o
que desejam quando aceitam as escolas em suas aldeias é, talvez, uma das tarefas mais
importantes neste processo.
Este último ponto parece ser relevante destacar porque um dos problemas da
implantação de políticas públicas é o seu caráter homogeneizador. Um dos riscos que se
corre neste percurso é o de criar alguns modelos escolares que passam a ser aceitos
como diferenciado e, assim, replicados em diversos contextos indígenas que guardam
poucas semelhanças entre si.
Tendo em vista este alerta, já assinalado por Lopes da Silva (2001), o tema para
o qual queremos chamar a atenção neste texto é sobre a introdução de conhecimentos
indígenas como atividade escolar. Este parece ser um tema bem relevante dentro desse
quadro de debates uma vez que a valorização dos conhecimentos tradicionais3 como
parte das práticas escolares é freqüentemente assinalado como o diferenciado nas
escolas indígenas. Para tanto, trazemos dois exemplos etnográficos que ajudam a
problematizar sobre a maneira como esses conhecimentos tradicionais entram nas salas
de aula. Como essas atividades são construídas e quais os significados que adquirem ao
serem levados para as escolas?
Os Xikrin do Bacajá (Jê), moradores da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, no
sudoeste do Pará, e os Baniwa (Aruak), residentes na bacia do rio Içana, no Alto Rio
Negro, noroeste amazônico, apresentam opções distintas no que se refere à educação
escolar 4. Os primeiros afirmam que este é o local para aprender os conhecimentos dos
brancos5 e marcam esta opção de diferentes maneiras. Já os Baniwa encontram na
escola um importante espaço de produção de seus conhecimentos e de acesso aos
3
A expressão conhecimento tradicional é usada neste texto como sinônimo de conhecimento indígena.
4
Estas pesquisas fazem parte das produções do Observatório da Educação Escolar Indígena da UFSCar
(OEEI-UFSCar) que iniciou suas atividades em 2010 com a coordenação da professora Clarice Cohn.
Agradecemos a todos os membros do OEEI-UFSCar pelas discussões e contribuições na elaboração
dessas reflexões que estão sendo desenvolvidas ao longo desses anos, de maneira especial à Clarice Cohn
pela cuidadosa orientação. As pesquisas contaram com o financiamento da Capes (2010-2012), por meio
do edital no 01/2009/CAPES/ SECAD/INEP e atualmente do edital nº 1570/2012 OBEDUC (2013-2014).
5
O termo branco é usado aqui como sinônimo de não-indígena pois esta é a forma usual entre os Xikrin.

2
conhecimentos dos brancos, deste modo consideram a escola como um espaço
privilegiado à interculturalidade. Uma das explicações para essas diferenças pode ser
entendida quando nos atentamos para o histórico de contato que cada um desenvolveu
com esta instituição. Enquanto os Xikrin receberam a primeira instalação de uma escola
apenas no final dos anos 1980 por meio da Funai e hoje a administração é da Secretaria
Municipal de Educação de Altamira, os Baniwa foram introduzidos a esta prática no
final da década de 1940 através do trabalho de missionários protestantes6 e católicos na
região e contam com assessoria do ISA (Instituto Socioambiental) desde a década de
1990.
Há também um marcante contraste entre a atuação dos indígenas em relação à
participação nas atividades escolares cotidianas. Os Xikrin parecem relegar todo o
trabalho aos funcionários não-indígenas que são enviados as suas escolas, pois se este é
um lugar de transmissão de conhecimentos dos brancos são eles que sabem a melhor
forma de executar essas tarefas7. Os Baniwa, por sua vez, ocupam todos os postos de
trabalho e de discussão sobre esta temática e se destacam dentro do cenário nacional
como um dos importantes articuladores desta política pública.
Estes fatores, no entanto, não explicam totalmente os diferentes engajamentos
que se formaram nestes dois contextos e a forma como cada um entende sobre o que
deve ser trabalhado e ensinado como conteúdo escolar, por isso um olhar mais próximo
das práticas cotidianas se faz necessário.
Dessa maneira, propomos nos atentar para algumas situações em que os
conhecimentos indígenas entram nas salas de aula, em contextos e por meio de
estratégias diversas, e que, neste esforço comparativo, suscitaram a formulação de
algumas questões: quais são os impactos destas práticas escolares sobre os processos
próprios de ensino-aprendizagem? Qual o papel dos professores na formação e na
transmissão de conhecimentos indígenas que antes da escola eram realizados em outras
situações, por outros atores, construídos a partir de diferentes relações? Em suma: quais
as mudanças promovidas pela escola nas formas de transmissão de conhecimentos
indígenas e não-indígenas?

6
A missionária protestante Sophia Muller da Missão Novas Tribos promoveu a conversão do povo
Baniwa e introduziu a leitura e escrita (com a finalidade evangelizadora) do Novo Testamento traduzido
por ela na língua Baniwa. Anos depois os salesianos que já atuavam na região construíram internato no
Içana.
7
O mesmo foi notado por Collet (2006: 224) para os Bakairi.

3
Neste exercício de reflexão não pretendemos responder a estas perguntas mas
usá-las como norteadoras da discussão. Ademais, não partimos apenas das experiências
etnográficas, mas procuramos dialogar com a produção antropológica que vem sendo
elaborada sobre esta temática. Estas já indicam que o movimento de aceitação ou recusa
da introdução de conhecimentos indígenas nas escolas é algo que aparece outros locais.
Grupioni (2008) informa que na maioria dos casos o incentivo ao uso da
“cultura” indígena8 nas escolas teve origem nos cursos de formação de professores
indígenas e nas oficinas de produção de materiais didáticos específicos, oferecidos por
não-indígenas, que buscavam construir estratégias de consolidação da escola
diferenciada. Este discurso é apropriado por muitos dos professores que freqüentaram
estes cursos e que começaram a formular novas propostas de conteúdos escolares.
Novos significados para as atividades escolares são delineados e as expectativas e a
valorização deste espaço podem almejar outras perspectivas a partir desses encontros.
Entretanto esta proposta adotada por professores indígenas não é aceita sem
controvérsias, que surgem dentro das próprias comunidades, como aponta o mesmo
autor (Grupioni 2008:189). Nesse caminho, que intenta inserir os conhecimentos
indígenas nas escolas, outros problemas se colocam: quem diz quais são os
conhecimentos que devem ser levados para as salas de aula? Como eles devem ser
ensinados? Por quem devem ser ensinados? Dessa maneira, um dos desafios que esta
situação parece gerar é o de definir quem detém a função de legitimar quais serão os
conhecimentos tradicionais que serão transmitidos nas escolas, uma vez que estes
precisam ser reconhecidos e negociados entre diferentes atores que estão envolvidos no
processo: professores indígenas ou não-indígenas, estudantes, comunidades,
funcionários públicos de educação, ONGs, assessores, antropólogos, entre outros. Tudo
isso torna a tarefa mais complicada.
Ademais, a proposta de incluir conteúdos relacionados aos conhecimentos
indígenas nas escolas não é consenso, como dito acima, e em alguns locais há a
preferência de uma escola que seja estruturada como a dos não-indígenas. Verificamos
esta posição em alguns dos trabalhos de antropólogos que buscaram olhar para as
formas como os indígenas se apropriam desta instituição e, assim, procuraram não
analisá-la apenas por seu caráter de aculturação ou como um lócus de expressão da

8
O antropólogo usa o termo “cultura” no sentido em que foi sugerido por Manuela Carneio da Cunha.
Dentre os artigos em que a antropóloga aponta esta discussão, destacamos “Cultura” e cultura:
conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais.

4
“cultura” indígena, mas entendê-la a partir das lógicas internas (Gow, 1991; Collet,
2006; Tassinari e Conh, 2009).
Dentro desses apontamentos iniciais e das diferenças já pontuadas entre as
experiências e os envolvimentos dos Xikrin e Baniwa com suas escolas, é necessário
ressaltar ainda, que, de maneira diversa, cada um está em busca de mais escolarização e
investimentos para melhorar a qualidade do serviço que é oferecido para as suas
crianças e jovens. Tendo em vista a relevância do tema para esses dois povos, o que se
procura neste texto é avançar no sentido de entender as reflexões que eles elaboram
sobre suas escolas e, assim, a presença dos conhecimentos tradicionais no dia a dia
escolar parece ser uma via de acesso interessante. Os recortes etnográficos que trazemos
para este texto é o uso do ensino via pesquisa adotado nas escolas Baniwa, por
professores e alunos indígenas, e a descrição de uma atividade de desenho sobre pintura
corporal realizada pelas crianças Xikrin a pedido do professor não-indígena.

O ensino via pesquisa entre os Baniwa

Os Baniwa são um povo do tronco lingüístico Aruak, residentes na bacia do rio


Içana, no Alto Rio Negro, noroeste amazônico. É notável seu protagonismo na educação
escolar indígena, tanto na esfera regional quanto no plano nacional. A região do
noroeste amazônico é reconhecida por expressiva atuação do movimento indígena,
através das associações comunitárias e da FOIRN (Federação das Organizações dos
Povos Indígenas do Rio Negro) criadas no final dos anos 1980, no contexto de lutas
pelos direitos indígenas. Nos anos 1990, com a homologação da Terra Indígena do Alto
Rio Negro9, temos o surgimento de projetos realizados pelas associações, FOIRN e
demais parceiros atuantes, como o ISA (Instituto Socioambiental) propondo o
desenvolvimento sustentável para o noroeste amazônico.
Neste momento de reivindicações, a educação escolar foi uma das pautas de
destaque ao passo que eram incentivadas discussões de educação indígena formuladas a
partir da perspectiva da educação escolar específica, diferenciada e intercultural para
valorização dos processos próprios de ensino e aprendizagem, tais como assegurados
pela Constituição de 1988, LDB (1996), RCNEI (2002) e demais normatizações. Na
década de 1990 são iniciados cursos de formação de professores na região; como o

9
A área tem a extensão de 7.999.380 hectares aprovada pelo Ministério da Justiça em 1998.

5
Magistério Indígena e o Ensino Normal. As experiência de educação escolar indígena
do Alto Rio Negro forneceram subsídios à proposta dos Territórios Etnoeducacionais10.
A articulação do povo Baniwa em torno da educação escolar no período dos
anos 1990 é intensa, são realizados vários encontros e reuniões promovidos pela OIBI
(Organização Indígena da Bacia do Içana 11) com o objetivo de fomentar uma educação
escolar indígena direcionada ao desenvolvimento sustentável da região. Nestes eventos
temos a expressiva participação de lideranças, velhos e demais interessados evangélicos
e católicos12 para discutir os problemas e demandas de educação para o Içana.
Até então, a maioria das comunidades contava apenas com “escolinhas” (isto é,
escolas de 1ª a 4ª série), com professores indígenas de outras etnias, não falantes da
língua e que utilizavam métodos didáticos fundamentados principalmente nos castigos e
punições13. Nos encontros de educação promovidos pela OIBI foram reunidas as
demandas e a proposta Baniwa: a oferta da segunda etapa do ensino fundamental no rio
Içana, a partir de uma educação escolar indígena diferenciada e intercultural.
Neste cenário de reuniões e assembleias, constitui-se o projeto de escola-piloto
indígena do Alto Rio Negro: a EIBC (Escola Indígena Baniwa e Coripaco) Pamaali, que
iniciou suas atividades nos anos 2000, ofertando a segunda etapa do ensino
fundamental. O objetivo da escola é:
“Desenvolver a formação dos cidadãos Baniwa e Coripaco com metodologia
de ensino-pesquisa participativo com base nos princípios e valores
interculturais para serem protagonistas no desenvolvimento sustentável de
suas comunidades” (PPP 2005)14

10
O decreto dos Territórios Etnoeducacionais foi outorgado em 2009, mas até então, não foi possível ver
a efetivação desta política pública nos âmbitos regionais. Em junho deste ano ocorreu o Seminário de
Educação Indígena e do Território Etnoeducacional do Rio Negro.
11
O objetivo da OIBI é “garantir a qualidade de vida das comunidades indígenas Baniwa através de
mecanismos participativos que promovam bem-estar social intercultural e desenvolvimento regional
sustentável” (OIBI, 1992).
12
A missionária norte-americana Sophia Muller (Missão Novas Tribos) iniciou o processo de conversão
do povo Baniwa e Coripaco no final da década de 1940. Seu trabalho de evangelização se concentrou no
Alto e Médio Içana. Quando os salesianos – presentes de maneira significativa no rio Uaupés – viram o
sucesso da conversão evangélica, iniciaram o movimento de a (re)conversão baniwa (que não obteve
muito sucesso). Assim sendo, construíram a missão de Nossa Senhora de Assunção (na comunidade de
Cariamã, próximo a foz) que oferecia serviços educacionais e de saúde. A abrangência da religião católica
no Içana se concentra principalmente no Baixo Içana, em algumas comunidades no Médio Içana e Ayari.
As diferenças religiosas provocaram muitos conflitos e disputas políticas entre os Baniwa.
13
Técnicas aplicadas e aprendidas nos internatos salesianos que estavam presentes no município, no rio
Uaupés e na missão de Nossa Senhora de Assunção do Içana. Neste período a maioria dos professores
eram das etnias Tukano e Baré.
14
O Projeto Político Pedagógico da Escola Pamaali foi elaborado pelos coordenadores, professores e
assessores do ISA (Instituto Socioambiental) nos primeiros anos de atividades da escola, a fim de orientar
as práticas pedagógicas e didáticas dos professores. Somente em 2009 o PPP foi aprovado pela SEMED
(Secretaria Municipal de Educação).

6
A escola contou com a participação comunitária tanto na definição do local
quanto na sua construção. A área escolhida para sediar a Escola está relacionada a
importantes eventos na mitologia Baniwa sobre processos rituais de aprendizagem dos
jovens (Diniz 2011). Foram construídos na Pamaali alojamentos para os estudantes
(separados por gênero), professores e funcionários (que podem estar com sua família),
uma cozinha, uma sala de coordenação (onde funciona o telecentro15), salas de aula,
quadras de futsal16 e um campo de futebol.
O calendário da escola é organizado em três etapas letivas em que os alunos,
professores e funcionários saem de suas comunidades com um bongo (canoa grande que
transporta muitas pessoas) em direção à escola. Eles permanecem durante as etapas,
cerca de trinta a quarenta e cinco dias e após concluídas as aulas, retornam para suas
comunidades. O formato da Pamaali propicia um espaço de convivência escolar e
comunitária predominantemente de jovens, constituindo, assim, novas formas de
sociabilidade (tema tratado na dissertação de Diniz, 2011).
No final do ano é realizada uma Assembleia na escola onde estão presentes
coordenadores, professores, lideranças e pais de alunos. Os professores e responsáveis
pela ACEP (Associação da Escola Pamaali) apresentam as atividades desenvolvidas
durante o ano letivo, indicando as demandas a serem encaminhadas, dentre elas, a
escolha de professores para o ano seguinte. De modo geral, a experiência da Pamaali
desencadeou uma nova relação das comunidades com a escola, de modo mais
participativo, tendo como pano de fundo os projetos para/e do povo Baniwa 17.
A metodologia do ensino via-pesquisa18 na Pamaali propõe a realização de
investigações sobre os conhecimentos Baniwa tendo em vista os objetivos da escola. Os
professores que são todos Baniwa (em formação e formados no Magistério Indígena, no
Ensino Normal e Licenciaturas Indígenas) e alunos realizam pesquisas no período que
estão em suas comunidades.

15
Na escola funciona um ponto do GESAC, programa de inclusão digital do governo federal.
16
Área de terra batida com arquibancadas de madeira.
17
Essa Assembleia do final do ano letivo também é realizada atualmente nas escolas das comunidades. É
importante destacar a participação comunitária nas decisões da escola, principalmente na indicação de
nomes de professores.
18
O „Ensino via Pesquisa‟ é uma concepção curricular formulada inicialmente por John Dewey, com
maior visibilidade/respaldo a partir das ideias de Pedro Demo, Paulo Freire e Laurence Stenhouse. A
proposta do ensino via pesquisa é de que o currículo seja aberto e se estruture sobre problemáticas que
serão respondidas processualmente por meio de pesquisas, realizadas pelos alunos, permitindo assim, o
desenvolvimento de várias habilidades intelectuais. No caso Baniwa a problemática maior é o manejo
sustentável do Içana.

7
Através de entrevistas e conversas com os velhos conhecedores (termo usado
localmente) em suas respectivas comunidades os alunos tomam as primeiras notas. Os
velhos conhecedores, tidos como interlocutores das pesquisas, são pessoas que tem
algum grau de parentesco com os alunos (avôs, tios, pai) ou são reconhecidos na sua
comunidade por possuírem um conhecimento específico. Os alunos retornam às
atividades na Pamaali levando os registros e continuam suas investigações sob a
orientação dos professores. As pesquisas são consideradas trabalho de conclusão de
curso e apresentadas na Assembleia.
Considerando os trabalhos de conclusão dos alunos da Pamaali do ano passado
(2013) podemos delinear algumas problematizações sobre a relação da escola com os
conhecimentos tradicionais. Os temas abordados mostravam interesse pela história e
conhecimento tradicional: “Origem de Ñapirikoli19”, “Origem de Kowai20”, “História de
Ñapirikoli”, “Histórias Baniwa”, “Clãs existentes no rio Ayari21”, “Doenças da região”,
“Plantas medicinais”; “A importância da valorização e manutenção dos espaços de
transmissão de conhecimentos e saberes tradicionais para o „bem-viver‟ Baniwa e
Coripaco”, e preocupações com o meio ambiente: “Resíduos sólidos: o lixo no Içana e
suas consequências”.
De acordo com os temas desenvolvidos é possível perceber que os assuntos
partem de interesses dos alunos e/ou de demandas comunitárias. Os alunos
desenvolveram suas pesquisas na escola com a orientação de professores principalmente
na elaboração do roteiro e na escrita da monografia. Neste sentido, vemos que estas
atividades demonstram o exercício de tradução para o formato escolar de alguns
conhecimentos indígenas Baniwa. Então, podemos sugerir que as pesquisas tendem a
produzir um conhecimento indígena escolar. É preciso notar que há assuntos que não
são pesquisáveis (alguns conhecimentos não estão presentes nestas pesquisas, como por
exemplo: flautas sagradas, rituais de passagem, benzimentos, entre outros), e os temas
das pesquisas não se restringem aos designados pelo projeto de desenvolvimento
sustentável como sugere o objetivo da escola.

19
Herói-criador que salvou o mundo da destruição nos tempos primordiais. Ñapirikoli foi responsável
pela forma e essência do mundo Baniwa. (Wright 1981).
20
Filho de uma relação incestuosa entre Ñapirikoli e sua tia Amaro. Kowai é dono de saberes poderosos e
externos, assim é compreendido como propiciador de processos de reprodução social, no que estão
incluídos, os rituais de passagem. Ele possui conhecimentos que podem ter aspectos destrutivos por isso
devem são colocados à distância (Wright 1981).
21
Principal afluente da bacia do Içana.

8
Os treze anos do projeto de educação escolar Baniwa na Pamaali produziram
efeitos no Içana. Os primeiros alunos formados retornaram as suas comunidades
contribuindo nas escolas e com isto ocorre a ampliação de experiências escolares
fundamentadas na proposta metodológica do ensino via-pesquisa. Além disso, este
processo possibilitou a expansão da segunda etapa do ensino fundamental nas escolas
das comunidades içaneiras.
Após a conclusão do ensino fundamental, os alunos interessados em continuar os
estudos deveriam encaminhar-se à cidade, sendo assim surgiu também a demanda pelo
Ensino Médio nas comunidades do Içana. O ensino médio é oferecido na categoria de
sala de extensão da escola de Nossa Senhora de Assunção, que segue as diretrizes do
estado do Amazonas, isto é, não diferenciado. Há salas de extensão em apenas cinco
comunidades ao longo do rio, de modo que se configura a mesma situação em que os
alunos precisam sair de suas comunidades para estudar e as atividades letivas se
estendem praticamente o ano todo. Desta maneira, o ensino médio também possibilita
outras relações comunitária que são acionadas principalmente pelo parentesco (como,
por exemplo, o convite para residir em alguma casa e assim, estabelecer relações na
esfera doméstica) e também de relacionamentos entre os jovens (namoros e
casamentos).
Temos então, entre os Baniwa dois modelos divergentes de educação escolar: o
ensino fundamental que fomenta a pesquisa e projetos para a região, e um ensino médio
regular convencional. Dado este cenário, surge, no ano passado a proposta do Ensino
Médio Baniwa. Em junho de 2013 a OIBI (Organização Indígena da Bacia do Içana)
realizou o V Encontro de Educação e História Baniwa e Coripaco que promoveu novas
discussões da educação escolar na região. Para dar subsídio as discussões no Encontro
foi mostrado o censo escolar Baniwa do ano vigente. Com isto foi possível apresentar e
justificar a demanda para criação de quatro escolas de Ensino Médio Baniwa que
atendam as microrregiões22 ao longo da calha do rio.

***
De modo geral, podemos sugerir que a demanda Baniwa por escola relaciona-se
com as políticas de educação escolar indígena diferenciada, específica e intercultural. O

22
O território Baniwa no Brasil corresponde a bacia do Içana, que incluem os afluentes Ayari e Cuiarí. A
extensão total do rio é 696 km, nos quais 602 km estão no território brasileiro. A organização social e
política no Içana é distribuída em microrregiões. As microrregiões são: Baixo Içana, Médio Içana I,
Médio Içana II (que inclui o Cuiarí), Ayari, e Alto Içana.

9
modelo escolhido para que suas escolas se tornassem diferenciadas é o ensino via
pesquisa. Neste sentido, a produção de conhecimentos indígenas escolares Baniwa
demonstra o incentivo à sustentabilidade para o Içana que, por sua vez, está relacionado
à política de etnodesenvolvimento na região. Parece interessante elaborar mais um
questionamento: será que esta também não é uma estratégia Baniwa de mostrar o que é
sua “cultura” para os não-indígenas? E a escola foi escolhida como o lócus privilegiado
de diálogo e visibilidade de seus conhecimentos?

A pintura corporal na escola Xikrin 23

Antes de iniciar a descrição sobre a atividade de pintura corporal realizada pelas


crianças do 3º ano do Ensino Fundamental da escola na aldeia Mrotidjãm, que servirá
de base para a discussão que envolve os Xikrin, algumas considerações sobre este
contexto de educação escolar são necessárias.
Os Xikrin do Bacajá estão organizados atualmente em oito aldeias distribuídas
ao longo do rio Bacajá, sendo que cinco delas têm o serviço da escola24. Estas escolas
são administradas pela Secretaria Municipal de Educação de Altamira (SEMED), que
conta com um setor que cuida das escolas indígenas, tendo em sua frente funcionários
não-indígenas, e oferece o serviço até o 5º ano do Ensino Fundamental nas aldeias para
nove etnias da região 25. Um curso de magistério indígena, organizado pela Secretaria de
Estado de Educação do Pará, teve início em 2009 com a primeira turma formada no
final de 2013. Em decorrência disso alguns professores indígenas assumiram os postos
de trabalho em suas aldeias. No entanto, a coordenação e a direção destas escolas
continuam sendo exercidas por não-indígenas, antigos professores nas aldeias, de
maneira geral.
A organização dessas escolas segue os parâmetros do ensino público nacional
não reconhecendo os aspectos de diferenciação aos quais têm direito. Inclusive, a
discussão sobre a educação específica e diferenciada chega apenas recentemente nesta
região. Em 2010, no primeiro contato estabelecido com os funcionários, estes

23
Estas reflexões são parte da dissertação de mestrado intitulada Etnografia de uma escola Xikrin
(BELTRAME 2013), defendida no PPGAS/UFSCar.
24
Esta é a última informação obtida no ano de 2013. Aldeias com escola: Pykaiakà, Potikrô, Pytakô,
Bacajá e Mrotidjãm. Aldeias sem escola: Krajn, Kamokti-kô e Kenkudjôi.
25
Xikrin do Bacajá e Kararaô, de língua Jê; Parakanã, Araweté, Asurini, Xipaia, Curuaia e Juruna do
tronco lingüístico Tupi; e Arara, de língua Caribe. Estava em negociação a transferência da
responsabilidade pelas escolas nas aldeias Juruna para a SEMED de Vitória do Xingu.

10
demonstravam não conhecer a legislação, os debates e trabalhos em torno da educação
escolar indígena que surgem em decorrência dessas mudanças legais. Esta foi também a
situação encontrada nas conversas com os Xikrin que não tinham sido informados e
nem haviam recebido orientações e explicações sobre os seus direitos. O cenário
começa a se modificar com a pactuação do Território Etnoeducacional Médio Xingu,
em 2012, quando estes assuntos ganham novas dimensões e entram nas pautas de
reivindicação dos indígenas locais26.
Diante disso, o cenário encontrado na aldeia Mrotidjãm, no momento da
pesquisa em 2011, foi o de professores não-indígenas que trabalhavam com materiais
não específicos, com conteúdos bem similares aos estabelecidos para as escolas não-
indígenas, seguindo horários e tendo de cumprir uma série de obrigações burocráticas
(calendário, provas, listas de presenças, diários de classe e fichas avaliativas) impostas
para as demais escolas de Altamira. A dinâmica escolar a qual os estudantes eram
submetidos também não apresentava muitas diferenças em relação a outros locais em
que as práticas escolares seguem o que poderíamos identificar como o ensino
implantado pelos governos nas escolas públicas.
No entanto, a despeito da falta de informação e de formação dos funcionários da
SEMED existia a compreensão de que estas escolas deveriam oferecer um serviço
diferenciado. Os conteúdos escolares não poderiam ser exatamente os mesmo
determinados para as crianças da cidade e os esforços empreendidos por cada professor
era notado durante as aulas e as suas preparações. Assim, algumas aulas eram
reservadas para serem trabalhados temas que, no entendimento dos professores, eram
mais próximos a realidade das crianças indígenas. É dessa forma que surge a ideia por
parte de um dos professores que estava trabalhando na aldeia Mrotidjãm 27 de elaborar
atividades que envolvessem o ensino da pintura corporal Xikrin. A sua motivação,
segundo foi explicado, era a de que as crianças não esquecessem a sua cultura e
valorizassem esta prática. Nesta perspectiva a função da atividade era estimular o
aprendizado de um assunto identificado como parte da cultura Xikrin.
A situação promovida pela escola Xikrin é interessante por vários motivos,
dentre eles está o fato de proporcionar de uma maneira muito particular a relação entre

26
A configuração deste Território manteve a organização administrativa vigente em Altamira, contando
com a participação das nove etnias.
27
No primeiro semestre de 2011, quando foi realizada a pesquisa de campo, a escola no Mrotidjãm
contava com dois professores que se dividiam entre as turmas do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental,
entre os períodos da manhã e da tarde.

11
um adulto não-indígena e crianças Xikrin, que não é vista em outros momentos
(Beltrame 2013). Uma dessas particularidades é a de que o adulto tem a função de
transmitir alguns conhecimentos às crianças. O que deve ser ensinado neste caso? Esta
parece ser uma questão com a qual os adultos Xikrin não despendem muito tempo, pois
consideram a escola um lugar de transmissão de conhecimentos dos brancos e, portanto,
são eles que sabem o que fazer e como fazer da melhor maneira28. Esta postura não deve
ser entendida como desvalorização da educação escolar e nem falta de interesse por
garantir um serviço de qualidade nas suas aldeias. Também não significa que os Xikrin
não se importam com que os estudantes estão fazendo na escola, uma vez que eles estão
o tempo todo tentando controlar os impactos que ela traz para a formação de suas
crianças (Beltrame 2013). A atividade de pintura corporal motivada pelo professor
aparece como um exemplo dentro dessa relação mais geral que os Xikrin estabelecem
com sua escola, que se num primeiro momento pode parecer distanciada, quando vista a
partir de suas expectativas indica a forma como se apropriam desta instituição.
Em nenhum outro momento os adultos deixam suas crianças sob a orientação e
os cuidados de um branco. Ao contrário, os cuidados são rotineiramente empreendidos
pelos adultos Xikrin que intervêm em diferentes aspectos que envolvem a formação de
seus corpos para que suas crianças cresçam bonitas (mex) e de forma adequada (Cohn
2000), aprendendo o kukradjà. Este último termo versa sobre a fabricação de pessoas e
sobre um modo de ser e estar no mundo
O kukradjà, no uso que ganha entre os Xikrin do Bacajá, refere-se tanto às
prerrogativas rituais e aos adornos herdáveis que compõem a pessoa como a
um modo de ser e a um conjunto de conhecimentos que definem uma
condição de estar no mundo. Fala não só do que (coisas, atributos,
capacidades, afetos, relações) compõem as pessoas, mas do modo de fazê-las
e fabricá-las. (COHN 2005a:172)

A pintura corporal é uma das práticas exercidas com dedicação pelas mulheres
Xikrin durante este processo. Os recém nascidos, após a queda do cordão umbilical,
recebem a pintura com jenipapo, ato que confere sua humanização e socialização (Vidal
1992 e Cohn 2000). Ao crescerem as crianças recebem pinturas e adornos, que são
específicos para as diferentes fases do crescimento (Cohn 2000: 133). Dessa maneira, as
crianças Xikrin têm contato com as pinturas corporais desde muito cedo, tanto nos
momentos em que as recebem em seus corpos, quanto ao acompanhar suas mães e avós

28
Porém, em várias situações os adultos explicam que o professor não deve ficar falando muito durante as
aulas porque senão as crianças não aprendem. O que precisam fazer é passar bastante atividade na lousa
para ser copiada no caderno.

12
neste trabalho em suas casas. Além disso, as meninas começam a praticar esta técnica
também quando pequenas, pois sabem que terão que exercer tal atividade depois que
tiverem o primeiro filho. As brincadeiras que envolvem a pintura em bonecas ou nos
próprios corpos – neste último caso respeitando a restrição do uso de certos materiais
para não marcar os corpos de forma incorreta - é muito freqüente entre elas (Cohn
2000:159).
Mas o que acontece quando este conhecimento, que vai sendo transmitido e
praticado em diferentes situações, e que deve ser executado exclusivamente pelas
mulheres, é demandado pelo professor na escola? Como é realizado por crianças,
meninos e meninas? Como são transferidos para este espaço? Para tentar apontar
algumas sugestões sobre isso é preciso esclarecer a forma como a tarefa transcorreu.
A atividade fazia parte do ensino de desenho e pintura no papel que era realizado
todos os dias nas aulas. Este exercício específico consistiu na produção de desenho
sobre pintura corporal usando papel e lápis de cor. Para cumprir tal objetivo o professor
entregou uma folha para cada estudante em que havia o desenho de dois corpos, apenas
delineado os seus contornos, e as crianças deveriam preenchê-los com uma pintura
corporal das mulheres e outra dos homens. Para esta atividade as crianças só puderam
usar os lápis das cores preto e vermelho, referentes ao jenipapo e urucum. Os desenhos,
em sua maioria, corresponderam ao padrão Xikrin de usos do vermelho e preto no
corpo. Assim, uma parte das pernas e os pés, bem como uma parte dos braços e as
mãos, além dos traços nos rosto, foram feitos com o vermelho, remetendo ao urucum. A
parte dos grafismos, de maneira geral, respeitou os limites que aparecem nas pinturas
corporais dos adultos, foram feitos de preto, cor que adquire o jenipapo ao ser misturado
com o carvão.
Uma das leituras possíveis de ser feita para a produção final dessa atividade é a
de que os estudantes, ao manipular instrumentos escolares, respeitando os padrões
reproduzidos neste espaço, passaram a pintura corporal não somente para um novo
suporte, mas a fizeram dentro da perspectiva do professor. Respeitaram o modelo de
corpo ensinado por ele e aplicaram o que sabem sobre esta prática, ajustando-a aos
saberes da escola. Esta foi a maneira escolhida pelas crianças para expressar um
conhecimento que adquirem no cotidiano da aldeia Este conhecimento não é cobrado
pelos adultos Xikrin em outras situações, mas quando a escola exige que ele seja
explicitado, as crianças demonstram saber sobre o assunto e saber ajustá-lo ao modelo
previamente definido e adequado para aquele espaço.

13
Mas esta atividade traz outra questão: como entender a participação dos meninos
na execução desta tarefa? Vidal explica que as competências que envolvem a pintura
corporal são parte de uma construção de gênero “Todas pintam, e portanto a qualidade
de pintora é considerada como atributo inerente à natureza feminina. Os homens apenas
passam tintura de carvão ou urucum na face e no corpo” (Vidal 1992: 146). Cohn
(2005c), reiterando o argumento, esclarece que os meninos não experimentam esta
prática em nenhum suporte. Contudo, foi observado que esta situação muda quando
uma prática que é recorrente em diferentes espaços da aldeia vira tarefa escolar.
A sugestão suscitada por esta atividade é de que não importa o significado que a
prática da pintura corporal tem na cosmologia Xikrin, nem quem são os responsáveis
por ela, porque na escola o que se busca viver é a experiência do branco, a forma do
branco de expressar e comunicar. O desenho no papel, neste sentido, é uma das
habilidades que deve ser aprendida por meninos e meninas (Beltrame 2013). Uma
atividade Xikrin, como este exemplo demonstra, quando entra na escola adquire outros
significados, que são pautados pelas regras escolares do mundo dos brancos, passando a
ser compartilhados por estudantes e professores. Assim, os estudantes podem reproduzir
alguns conhecimentos tradicionais, que aprendem com seus parentes, para um formato
escolar.
Se as crianças estavam aprendendo a fazer o desenho do branco, através de suas
técnicas figurativas29, o que é valorizado por elas, tinham que se esforçar para colocar
na forma que fosse entendida pelo professor. As crianças poderiam expressar o que
sabem sobre pintura corporal de outras maneiras, mas, neste exemplo, o corpo foi dado
pelo professor, o que restringiu as possibilidades de expressão dos conhecimentos dos
estudantes sobre o assunto e sobre a maneira de manipular lápis e papéis 30. Talvez seja
possível sugerir que os estudantes estavam ensinando o professor sobre algo de sua
cultura, a partir dos parâmetros conhecidos por ele, ou seja, por meio de sua concepção
de corpo. Afinal, esta produção acaba por oferecer aos brancos diferentes motivos do
grafismo Xikrin e reforça que as crianças continuam aprendendo o kukradjà, em outras
relações e outros espaços.

29
Os Xikrin aprendem a técnica de desenho figurativo na escola que permanece sendo usada apenas neste
contexto ou em outras situações que envolvem o contato com o branco.
30
Nesta parte faço referência ao trabalho das mulheres no Xikrin do Cateté (Vidal 1992) em que elas,
usando jenipapo, colocaram diferentes motivos do grafismo corporal em folhas de papel. O resultado
desta atividade foi bem diferente da realizada pelas crianças na escola.

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A pintura corporal, conhecimento tradicional, ao ser levado para a atividade da
escola evidencia os desencontros que ela produz, pois de um lado estão as expectativas
dos professores brancos em valorizar o que reconhecem como a cultura indígena e, de
outro, as das crianças Xikrin que querem experimentar o modo de ser dos brancos. O
resultado do exercício parece ser diferente para cada uma das partes envolvidas nesta
relação promovida pela escola e que envolve, entre outras formas interações, a
transmissão de conhecimentos que se faz entre professor-estudante, mas no sentido
inverso também.

Os conhecimentos tradicionais nas escolas indígenas

Que resultados podem surgir quando a educação escolar indígena diferenciada é


pensada tendo como elemento central a introdução de conhecimentos tradicionais nos
conteúdos escolares? As respostas para esta questão podem ser múltiplas, como
procurarmos trazer aqui nos dois exemplos, porque em cada lugar as relações e
experiências que são construídas nas escolas se configuram dentro de certas
particularidades. Esta particularidade não se dá (apenas) pelos conteúdos escolares, mas
por meio das expectativas que esta instituição produz em cada lugar e pelas diferentes
formas pelas quais são apropriadas. Esta particularidade também decorre da maneira
como são firmadas as interações entre professore-aluno e entre estes com as
comunidades, com os assessores, servidores públicos de educação, etc.
No caso das escolas Baniwa o ensino via-pesquisa visa atender aos projetos de
educação específica para a região, assim as pesquisas demonstram um exercício de
produção de conhecimentos indígenas escolares relacionados aos projetos de
sustentabilidade da região, em outras palavras, que possam ser compreendidos para o
público não-indígena principalmente pelas agências de financiamento e demais
parceiros.
Entre os Xikrin a escola é um espaço de e para as crianças que interagem com
adultos não-indígenas para vivenciarem a relação de alteridade. Uma atividade de
desenho sobre pintura corporal demonstrou que a tentativa do professor de acionar um
conhecimento indígena não foi reconhecida por elas como momento de valorização da
cultura, como kukradjà, intenção expressa pelo professor. As expectativas se
desencontraram.

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Assim, parece que nestes dois contextos bem distintos uma aproximação pode
ser feita e que se refere aos usos dos conhecimentos tradicionais na escola. Estes
acabam tendo que ser traduzidos para formatos previamente delimitados pelas escolas,
apesar das diferentes metodologias. Estas práticas acabam gerando materiais que
comunicam em algum grau sobre os conhecimentos tradicionais, tanto para os próprios
indígenas – mas isto não significa que eles, necessariamente, querem resgatar/fortalecer
sua cultura neste espaço – mas, principalmente, parecem informar/ensinar os não-
indígenas.

Referências

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objetivos-e-metas (acesso 27/05/2014)
http://ti.socioambiental.org/pt-br/#!/pt-br/terras-indigenas/4068 (acesso 28/05/2014)

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