A gestão municipal no Brasil não será mais a mesma: oportunidades e desafios
gerados pelo Covid-19
Eduardo José Grin, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação
Getulio Vargas de São Paulo Marco Antônio Carvalho Teixeira, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas de São Paulo Diogo Joel Demarco, professor associado da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
A gestão municipal brasileira, considerando seu status constitucional e
características assumidas após 1988, certamente enfrentará seu maior teste com o Covid-19. O governo local que sairá dessa crise não será o mesmo após a pandemia. Após 1988, a descentralização e autonomia municipal consagradas no federalismo brasileiro foram defendidas como forma de melhorar a gestão local, de promover mais eficiência no uso dos recursos e de ampliação do controle social. Algumas questões pedem um debate mais profundo, pois o federalismo descentralizado que se tornou constitucionalizado em nosso país ainda não conseguiu responder de forma adequada o tema das capacidades estatais municipais. Não há disjuntiva entre o alargamento da autonomia local e a necessidade de qualificar seus recursos de gestão política e administrativa. O município ampliou suas responsabilidades, sobretudo na implementação de políticas de bem-estar social, e adquiriu respaldo constitucional para responder por todas as questões que envolvam o interesse local. Sob essa configuração, mais ainda o tema da gestão se impõe como condição necessária para a melhoria da performance do governo local. As evidências disponíveis mostram que as fragilidades fiscais da ampla maioria dos municípios já vinham crescendo e expondo as dificuldades de financiamento. . O Índice Firjan de Gestão Fiscal 2019 trouxe dados pouco alentadores. Cerca de 35% das prefeituras não se sustentam para manter sua estrutura administrativa e quase 50% das cidades gastam mais do que 54% de suas receitas com pessoal. A sustentabilidade fiscal, considerando a capacidade de manter essa rota desigual entre receitas e despesas, já era tema de preocupação e deve se aprofundar. Para piorar, em torno de 50% das localidades não conseguem investir mais do que 3% de seus ingressos. Assim, tanto o presente como o futuro dessas populações já apresentavam, em 2019, indícios fortes de esgarçamento das capacidades de gestão financeira sustentável no nível municipal. O panorama apresentado pelo Observatório das Informações Municipais também não é alvissareiro. Pelo lado da receita municipal própria, em linha com a série histórica que acompanha esse indicador, os municípios com até 50 mil habitantes (89% do total) arrecadaram apenas 8,4%. Aqueles com até 20 mil habitantes (70% do total) tiveram 5,7% oriundos de tributos locais. Somente os municípios a partir de 200 mil habitantes com 21,7% superaram a média nacional de 19,7%. Quanto às transferências intergovernamentais, o quadro é igualmente pouco promissor: na média as cidades dependem em 66% de recursos de outras esferas de governo. A dependência é muito alta para cidades com até 20 mil habitantes (87%) e até 50 mil habitantes (82%). Somente aquelas com mais de 200 mil habitantes rompem a média nacional. Não menos importante, as cidades que compõem o chamado g100 (grupo que reúne cidades brasileiras com mais de 80 mil habitantes, baixa renda e alta vulnerabilidade socioeconômica) que serve de referência para a Frente Nacional de Prefeitos. Muitas dessas cidades estão em regiões metropolitanas e concentram números populacionais representativos, o que só faz ampliar sua vulnerabilidade social. Essa realidade fiscal que vem caracterizando a gestão fiscal municipal possivelmente se agravará, por duas razões: a) as transferências intergovernamentais são muito dependentes da atividade econômica que sofrerão uma queda brusca; b) os impostos locais provenientes da economia local, como o ISS, serão afetados e, indiretamente, a queda na renda das famílias deverá diminuir a arrecadação do IPTU, afora menores valores obtidos de taxas e alvarás em face do isolamento social prolongado. As finanças municipais serão duramente afetadas em um momento no qual as ações locais, além de serem mais exigidas, serão ainda mais a principal salvaguarda para amplas parcelas desprotegidas da população. Cabe lembrar neste contexto de crise sanitária que, segundo dados da Agencia Nacional de Saúde Suplementar de dezembro de 2019, apenas 47 milhões de brasileiros eram beneficiários de planos privados de assistência médica, ou seja, os demais 164 milhões de brasileiros dependem exclusivamente do atendimento do SUS, que tem no atendimento primário e, em muitos casos, dos atendimentos de média e alta complexidade, uma atividade precípua dos municípios. Será preciso atualizar as premissas que embasaram o modelo federativo no qual os municípios foram inseridos, pois inevitavelmente haverá forte tensionamentos no plano local pelos efeitos desencadeados pela crise. Capacidades estatais para implementar políticas públicas com menos recursos, maiores demandas sociais por serviços públicos decorrentes do desemprego, queda de arrecadação financeira e necessidade de criar canais de interlocução com a sociedade para planejar e executar medidas emergenciais e saneadoras que enfrentem os múltiplos desafios provocados pela crise figuram dentre esses desafios. Se capacidades de gestão e planejamento já eram carências da maioria das localidades, não seria improvável que muitas venham a se mostrar pouco preparadas para o tamanho do desafio. Igualmente importante, muitas cidades não possuem canais minimamente institucionalizados com a sociedade, o que deverá cobrar um preço alto, já que o poder público sozinho não terá condições de enfrentar essa situação.Nesse sentido, algumas sugestões que seguem visam contribuir para o debate sobre iniciativas para qualificar o desempenho da gestão municipal no cenário de dificuldades que resultará dessa crise: 1. A importância dos consórcios intermunicipais multifinalitários, pois as políticas necessárias para enfrentar as consequências da crise serão multidimensionais e integrada, o que demandará esforços coletivos geradores de escala nas soluções propostas e maior racionalidade no uso dos recursos. 2. A ausência de cooperação metropolitana cobrará preços cada vez mais altos, dadas as múltiplas e complexas interfaces existentes nesses territórios. Se a descoordenação de ações já era deletéria antes da pandemia, a insistência no padrão autárquico de governar adiará ou tornará pouco viável a organização de políticas integradas e com efeitos benéficos para amplas parcelas da população que vivem nos grandes centros. 3. Possivelmente o tema do amalgamento e fusão de municípios menores de 5 mil habitantes voltará para a agenda governamental. Se essa já era uma questão considerada crucial pelo governo federal mesmo antes da Covid-19, não é improvável que, diante das pressões fiscais decorrentes dos recursos federais utilizados nesse momento, essa proposta volte ao debate como resposta para reduzir os volumes de transferência, sobretudo do Fundo de Participação dos Municípios. Será preciso estar preparado para esse debate suas consequências políticas, sociais, econômicas e na provisão de serviços públicos que seguirão sendo essenciais para as populações. 4. A relevância que programas e políticas de desenvolvimento local assumirão como alternativa de geração de emprego e renda em um cenário de recessão econômica e aprofundamento do desemprego. 5. A implementação do planejamento regional como instrumento para alinhar propostas de ação comum nos territórios. A exemplo do vírus que tem ensinado que barreiras físicas são, em muitos casos, meras convenções administrativas, áreas como meio ambiente, resíduos sólidos, água, dentre outros, guardam a mesma lógica. 6. A exigência para que os instrumentos de planejamento estratégico municipal, a começar pelo Plano Plurianual, sejam efetivamente elaborados, implantados e avaliados como guias de ação governamental. Governos municipais não poderão ser negligentes ou pouco atentos em atender essa exigência. Carências de planejamento e gestão deverão, cada vez mais, cobrar um preço elevado na (in)capacidade e prontidão de ação governamental. 7. A necessidade de os municípios aprenderem a lidar com a informação transparente, pois a sociedade precisaestar bem sempre bem orientada. Oxalá essa lição seja adotada como prática corrente, visto que sua debilidade segue alta em muitas cidades. 8. A importância de instituir arenas de diálogo, redes de solidariedade social, participação e formulação conjunta de política públicas com atores sociais. A crise mostra que os governos são necessários para coordenar respostas, sem o que os dramas sociais, sanitários e econômicos seriam ainda maiores, mas são cada vez mais insuficientes. Fóruns públicos, como os conselhos de políticas existentes em praticamente todas as cidades, podem ser os embriões, desde que sejam legitimados e vocalizados para essa função. No Brasil, na média, há mais de onze dessas arenas em cada cidade, de forma que precisam ser valorizadas, empoderadas e qualificadas. 9. O debate sobre a tributação progressiva do IPTU deveria ser retomado, pois não seria socialmente justo ou mesmo fiscalmente eficaz não compreender que, em um cenário de perda de renda e emprego dos setores menos favorecidos que a conta seja paga sem uma distribuição mais equitativa. Da mesma forma, os debates sobre mudanças na legislação federal do ISS seriam bem-vindos no sentido de alargar as possibilidades de cobrança. Mesmo que essas medidas não supram as carências de financiamento local, e também considerando que a reforma tributária deverá ficar travada por um bom tempo no Congresso Nacional, podem amenizar a redução de receitas locais quando será necessária uma atuação mais efetiva dos governos municipais. 10. A necessidade de estabelecimento de políticas de segurança alimentar e nutricional no âmbito local, articuladas com as demandas no setor educacional, sobretudo a oferta de merenda escolar, tão premente para milhões de famílias em todos os recantos brasileiros, bem como de articulação do crescente movimento de hortas comunitárias e agricultura urbana, fortalecendo o desenvolvimento de cadeias curtas de abastecimento e de conexões diretas de produção e distribuição entre agricultores familiares e consumidores urbanos. 11. Será necessário que o tema das capacidades estatais municipais assuma relevância na agenda da cooperação federativa com a União e os Estados. Com certeza, desde 1988 essa será a maior crise que colocará em xeque o modelo de federalismo descentralizado implantado no Brasil e o quanto os governos locais estarão habilitados a lidar com a crise e seus desdobramentos. Já há suficiente conhecimento que descentralização sem coordenação federativa só faz crescer a desigualdade regional e, nos temos de Marcus Melo, o hobbesianismo municipal.Implantar políticas públicas voltadas a modernizar a gestão municipal pode não parecer importante, pois “ninguém vê”, mas é em momentos como esse que tal lacuna cobra seu preço elevado. 12. Nas áreas da saúde e assistência social, talvez os setores dos quais as populações mais diretamente demandarão do poder público local, é importante destacar a importância da cooperação federativa organizada verticalmente no SUS e SUAS. Seria importante aprender com essas experiências para que outras políticas também pudessem dispor de arenas desse tipo para planejar conjuntamente as iniciativas nos três níveis da federação. O debate sobre qual governo local sairá dessa crise ainda está por ser realizado, mas quanto mais ele for retardado mais lenta será sua capacidade de se (re)colocar como um ator estratégico para o enfrentamento dos efeitos sobre as populações. Esse também é um debate necessário, pois será no nível local que as demandas sanitárias, sociais e econômicas mais pressionarão diretamente o governo. Nunca antes na história do Brasil os governos municipais serão tão demandados pela população e tão importantes para a vida humana como nesse momento.