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TEATRO INFERNAL1

No escuro deve ser projectada a seguinte legenda, enquanto se ouvem sons de água a

cair em gotas e de correntes:

PRÓLOGO

A luz sobe a um canto. Os sons de água a cair e de correntes devem continuar. Um

homem está sentado a uma mesa, num quarto. Vê-se que está cansado e confuso. Uma

vela ilumina umas folhas onde escreve.

Homem – Já não sei como tudo começou. Provavelmente começou muito antes de eu ter

capacidade de me lembrar. Nem sei porque me dou ao trabalho de registar isto. Já está

tudo registado. Isto… o que penso… o que sinto… Será que interessa a alguém? Já

foi… Já passou… Já não vou a tempo de apagar. Bebe um copo de whisky. Torna a

encher o copo. Gotas de suor caem pela testa. Já nem sei se é mau. Se é… Já não sei o

que é. Ou melhor… o que foi! O Homem precisa de ser domado. Não é só o cavalo ou o

leão. O Homem… mais do que qualquer outro animal. Mas… assim? Com o fogo da

verdade irreversível que queima? Se calhar sim… Ou se calhar não… não sei… já não

sei. Mas se não souber eu… que anotei tudo… quem vai saber? Vou continuar a

anotar… Vou anotar o que sinto… Roubem-me a alma, mas não me roubem a raiva. A

raiva é minha. Tenho direito à minha raiva.

A luz baixa e é projectada a seguinte legenda:

1 – ÉDITO DE FÉ

Um grupo de Freis canta Veni Creator Spiritus. Um casal passeia. Estão apaixonados.

Os diálogos que se seguem devem ouvir-se sobre o cântico dos Freis.

Ele – Dás-me um beijo?

Ela – Só se pedires muito. Ri com luxúria. Dança à volta dele.


1
De Bruno Schiappa; Jan./Fev. de 2010
Uma mulher mais velha passa. Olha-os com rancor.

Mulher – Há-de haver forma de não me deixares amarga. Há-de haver forma de te

arrependeres. Só vens ter comigo à noite. Quando ela não pode fazer-te “a dança”.

Cabrão.

Um grupo de mulheres passa com legumes e frutas frescas.

1ª Mulher – Já viram a vaca? Hoje já levou mais caro. A continuar assim tenho que ir

vender o corpo. Vaca. Que Deus me perdoe.

2ª Mulher – E como ela olhou para nós? Como se tivéssemos obrigação de comprar ao

preço que ela bem entende. Puta. Que Deus me perdoe.

3ª Mulher – Parecia doida. Com olhos de bruxa. E o sorriso dela a gozar connosco?

Sempre de lado e com olhos de porca? Estava capaz de lhe dar com uma garrafa na

cabeça. Que Deus me perdoe.

4º Mulher – Uma garrafa vazia? Tenho no lixo lá em casa. Mas ela é que devia dar um

tiro nos cornos. Que Deus me perdoe.

As 4 – Vaca, puta, bruxa,porca. Que Deus me perdoe.

Um grupo de homens conversa sobre terras.

1º Homem – A zona toda de oeste é, e sempre foi, minha.

2º Homem – E a de leste minha. E ninguém m’a tira.

3º Homem – Heh! Calma. A que fica a sul do oeste é minha, e sempre foi desde os meus

tetravós.

4º Homem – Bem, se querem continuar meus amigos têm que confirmar, se alguém

perguntar, que a que fica a norte do leste é, sempre foi, e sempre será, minha.

Os 4 – Ele que venha cá dizer que é dele. É dele o caralho. Que Deus me perdoe.

Um grupo de mulheres discute.

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1ª Mulher – Eu? Eu só faço magia branca. Uso os meus poderes para as minhas filhas se

casarem com um homem, cada uma, bem entendido, que as ame. Não estou cá para me

meter com malefícios! Deus me livre.

2ª Mulher – Tal e qual eu… Não vou andar aí a fazer mal às pessoas!! Só quero que as

minhas filhas casem com homens bem parecidos, que tenham muito dinheiro, e que não

olhem para mais nenhuma. Os meus feitiços são de amarração. A única coisa que fazem

é impedir que eles se apaixonem por outras e força-os a serem fiéis às minhas filhas.

Quer queiram quer não. Agora, aquela?!

3ª Mulher – Mas nós somos boas pessoas. Filhas de Deus. Só queremos é impedir que o

mal desabe sobre as nossas filhas. Por isso fazemos feitiços bons. Brancos. Que fazem

com que os estouvados dos homens olhem… para as nossas filhas. Eles têm que saber

que elas são o melhor para eles. E eles para nós… se forem ricos. Ri. As outras

mulheres riem também.

4ª Mulher – Claro. Nós somos movidas por bons sentimentos. Agora… aquela? É uma

megera. Só faz mal aos outros. E só tem inveja. Lá porque tem um marido rico que lhe

dá vestidos de seda acha que é melhor do que as outras. É má! Má! Má! Nem sei como

é que ele ainda está com ela e não lhe dá uns açoites.

As 4 – É a verdadeira Puta do Diabo. Só tem poderes porque fornica com o demónio.

Uma mulher passa e fuma. É bonita e sedutora.

Mulher – Amor! Vende-se amor. Amor de trazer por fora. Amor para consumir aqui e

agora. Quem nunca amou? Quem não quer repetir o amor? Chorar de novo por amor?

Por uma pequena quantia eu dou-vos isso. Amor, choro e sofrimento. Para consumir

aqui e agora. Ri e chora como louca. Amor, amor, amor, amor vermelho, ao rubro.

Amor que é fogo que arde, como o inferno. Ri e chora.

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O grupo de Freis continua a circular recitando Deus qui corda fidelium. Olham de

soslaio para quem está na praça que continua a falar mas “sem som”. O olhar dos

Freis incomoda como se estivessem a avaliar quem fica melhor na fogueira.

Alguns adolescentes brincam de forma violenta dizendo coisas como: És parvo! O meu

pai é melhor do que o teu! Tens os olhos tortos! Burra!!!

O casal de namorados faz juras de amor.

Ele – Amo-te! Para sempre. Á parte. Enquanto durar!

Ela – Meu querido! Estou a guardar-me para ti! Á parte. Espero que ele e o Frei Diogo

Silva nunca se embebedem juntos nem falem de mim.

A mulher ciumenta – Antes, sequer, de dares por isso, vais estar a implorar-me para

entrares na minha cama! E, essa, vai estar com a corda na garganta… ou pior! Ri.

O primeiro homem surge na praça.

Homem (subindo a um cadafalso, enquanto alguns guardas tocam tambores) –

Cristãos! Ouçam! Prestem atenção. O próximo grande espectáculo público está a ser já

preparado. É importante que estejam atentos e dêem informações sobre algum destes

casos. Em causa está, não só, a recuperação da ordem, como, também, o bom caminho

cristão da nossa comunidade. Contamos convosco para este momento crucial da

recuperação da moral e bons costumes. E não vos deixeis cair em tentação. O vosso

contributo livrar-vos-á do mal. Precisamos que nos recomendem pessoas com as

seguintes características: Que sejam ou manifestem práticas de judeus; que reneguem

Deus Todo Poderoso; que não professem nem cumpram a lei cristã; que pratiquem

sodomia; que pratiquem adultério ou bigamia; que não cumpram a moral e bons

costumes; que não vão à missa nem pratiquem a religião católica; que sejam ou

manifestem práticas de judeus … este já disse… mas que fique bem claro; que

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pratiquem actos de bruxaria; que, de uma forma ou de outra, desonrem a ordem, a Igreja

e o Rei Nosso Senhor, filho de Deus.

Se tiverem conhecimento de pessoas destas ou de outras ordens que vos pareçam

suspeitas, dirijam-se ao Tribunal do Santo Ofício, da Santa Igreja Católica, a fim de se

apurar e deliberar sobre os cidadãos em causa. O próximo Auto-de-Fé irá realizar-se

nesta mesma praça, daqui a exactamente um mês.

Nunca se esqueçam, Deus Nosso Senhor tudo vê e a todos pune se pecarem.

Fica assim cumprido este édito de fé, aos 22 de Julho de 1749.

O homem desce do cadafalso enquanto troam os tambores. Todos os que

estavam na praça reagem de modo cínico e, manifestamente, satisfeitos com a

possibilidade de se vingarem uns dos outros. Uma mulher surge de repente. Vem

afogueada.

Mulher – No meio dos esconjuros, perdi a noção do tempo. Aconteceu qualquer coisa.

Eu sei. O que foi que aconteceu? Digam-me! Reparamos que traz nas mãos um coelho

morto. Um dos soldados dos tambores deixou-se ficar para trás. Outro, reparando no

último, atrasa o passo e esconde-se, assistindo à cena que se segue.

Guarda – Isto está a ficar mal parado Beatriz. O povo quer ver fogueiras e sangue. Está

tudo desalmado. Tens que parar de surgir assim, de repente, e a dizeres essas coisas.

Beatriz – Não me digas, João de Menezes. Ri. Tu, tão forte, tão másculo, com medo de

meia bagatela de gente miúda que não vale a sopa que come? Hoje vais ter comigo? De

repente fica lasciva. Vais ter comigo a que horas? O vinho já fermentou. Está à tua

espera!

João de Menezes (tenso) – Beatriz, deixa-te disso, estou a falar a sério… as pessoas

estão cada vez mais ferozes!

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Beatriz – As pessoas sempre foram ferozes. Nunca deixaram de o ser. Nem deixarão.

Agora e para sempre. Para todo o sempre.

João de Menezes – Valha-te Deus, mulher. Não digas essas coisas. Ainda alguém te

ouve.

Beatriz (subindo as saias em atitude provocatória) – João, meu João, preocupas-te

comigo, eu sei. Mas não sejas medricas. Ninguém nos ouve. Vens ter comigo logo? Sim

ou não?

João – Já sabes que é o que me faz viver. São os momentos em que estou contigo. Claro

que sim.

Black out enquanto se ouvem resquícios do cântico. É projectada a seguinte

legenda:

2 – DENÚNCIA

Quatro Inquisidores estão sentados. Batem à porta. Um dominicano entra com

a primeira mulher. Depois senta-se, abre um livro, e aponta as conversas que se

seguem.

Mulher – Eminências, venho denunciar a filha dos Monteiro. Ela pratica bruxaria.

Ainda ontem a vi, ao luar, a dançar e a dizer conjuras contra a nossa Madre Igreja

Católica. Ela é uma puta do diabo.

1º Inquisidor – Como te chamas mulher?

Mulher – Helena Marques, monsenhor. Cristã e católica de fé e fervor.

2º Inquisidor – E tens a certeza do que dizes? É uma acusação muito grave.

Mulher – Eu sei monsenhor. Tenho a certeza absoluta. Vi com estes que a terra há de

comer.

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3º Inquisidor – Atenta bem no que dizes mulher. Nosso Senhor não dorme. Tudo ouve e

tudo vê. Se levantares falsos testemunhos irás pagar no juízo final. Como se chama a

herege?

Mulher – Maria Felipa Monteiro, Monsenhor, a minha palavra é de honra e apenas zelo

pelo interesse da Santa Igreja Católica. Aquela mulher pactua com Satanás. E deita os

homens todos a perder.

4º Inquisidor – Então vai com Deus, mulher. Paz à tua alma. Está bem feito o que

fizeste.

A mulher benze-se, beija as mãos dos Inquisidores e sai. Entram os primeiros

homens.

1º Homem – Eminências, eu e os meus compadres estamos muito preocupados com o

André Gonçalves. Ele reúne com judeus e celebram cânticos deles. Por várias vezes os

ouvimos, à noite, quando passávamos pelas terras que nos pertencem e que ele roubou.

2º Homem – É sabido que as terras nos pertencem. É sabido, também, que eles se

endinheiram à nossa custa. Além disso riem alto quando juram que têm mais ouro do

que a Igreja. São homens maus monsenhores.

3º Homem – Ainda ontem os ouvi dizer que, mais cedo ou mais tarde, iriam ter mais

terras do que o próprio rei e do que a Igreja.

4º Homem – Não gostamos de denunciar ninguém Monsenhores, mas está em risco a

nossa terra e a Santa Igreja Católica.

1º Inquisidor – Como se chamam, bons homens?

1º Homem – João Dias, Diogo Annes, Pedro Zuzarte e António Soares.

2º Inquisidor – E como se chamam os outros hereges?

2º Homem – Não sabemos Monsenhor. É tudo feito com muito segredo e a altas horas

da noite. Só por acaso é que nos apercebemos.

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3º Homem – Sim, quando íamos ver das nossas cabras.

4º Homem – Elas estavam bem inquietas.

3º Inquisidor – Mas as vossas cabras estavam todas juntas?

4º Homem – Sim Monsenhor. Partilhamos as terras com a erva mais fresca para ficarem

bem alimentadas.

4º Inquisidor – O Senhor esteja convosco. Boa acção a vossa. Vão em paz e estejam

descansados. Em breve estarão livres desse inimigo da Igreja.

Os homens benzem-se, beijam as mãos dos Inquisidores e saem. Entram quatro

mulheres.

1ª Mulher – Eminências, vimos denunciar a Catarina Ruiz. Ela é judia. Ainda ontem a

vimos pôr de lado carne de porco e, em vez disso, comer legumes. Ela não vende carne

de porco na feira e, além disso, cada dia que passa vende as coisas mais caras.

2 ª Mulher – Ora, toda a gente sabe que os judeus só pensam em fazer dinheiro e mais

dinheiro à custa da desgraça dos outros. E depois dizem que é com trabalho.

3ª Mulher – E ela faz farinheiras em vez de chouriço, para disfarçar. Para pensarem que

come porco e que não é judia.

4ª Mulher – Mas celebra o sabbath como se fosse o dia do senhor. Não temos dúvidas

de que é judia e, pior ainda, influencia os outros a juntarem-se a ela. Aqueles que se

baptizaram e fingem que são cristãos-novos.

4º Inquisidor – Já é tempo de meter ordem nesses inimigos da Fé. Não podemos tolerar

mais isto. Dois séculos de fogueiras ainda não foram suficientes para eles aprenderem?

3ª Inquisidor – Bem tentamos mostrar-lhes o que os espera se não seguirem as práticas

da Fé. Mas que havemos de fazer? A mão de Satanás ainda é muito forte e astuta. Ele

consegue ludibriar a alma dessa pobre gente. Infelizmente são eles que têm que servir

de exemplo no palco da Fé para que outros não sucumbam às armadilhas de Lúcifer.

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1ª Mulher – Não queremos o mal de ninguém, Monsenhores, apenas acreditamos que a

ordem deve ser mantida e que a segurança da população deve ser defendida.

3ª Mulher – Vossas Eminências não sabem o pesar que nos causa ter de a acusar. Mas

não podemos ficar de braços cruzados.

2ª Mulher – Tudo o que queremos é o nosso bem e o bem de todos os filhos de Deus

Nosso Senhor.

4ª Mulher – Deus é nossa testemunha. Ele sabe que não queremos mal a ninguém mas

não podemos ver alguém a manchar a Santa Madre Igreja sem fazermos nada.

1º Inquisidor – Não se preocupem, mulheres, sabemos que são gente de bem. Qual é o

vosso nome?

2ª Mulher – Catarina de Tavira, Branca Nunes, Francisca Barreteira e Maria Lopes,

Monsenhores.

2º Inquisidor – Vão em paz, e que o Senhor vos acompanhe.

As mulheres benzem-se, beijam as mãos dos Inquisidores e saem. Entra um

guarda.

Guarda – Monsenhores, eu Manuel Lopes Tareu, tenho a obrigação e o dever de acusar

Beatriz Mendes de bruxaria e João de Menezes de sodomia.

1º Inquisidor – Sodomia? Isso é uma acusação muito grave. Como sabes disso homem

de Deus?

Guarda – Várias vezes a vi a fazer conjuras com coelhos mortos e ele costuma aliciar os

rapazes para fazerem a “dança” referida. Se não fosse a grave ofensa à ordem e moral,

que estas práticas envolvem, nunca teria a iniciativa de tamanha acusação. Mas sabendo

que em causa está a segurança das nossas famílias e dos homens do Senhor Nosso Rei e

do Senhor Nosso Bom Deus não podia ficar de braços cruzados. Por essa razão, mais do

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que suficiente, decidi responder ao pedido do último édito de fé e cumprir o meu dever,

Monsenhores.

4º Inquisidor – Vai em paz, meu bom homem, iremos zelar pela ordem, pela moral,

pelos bons costumes e pela Santa Fé.

O guarda benze-se, ajoelha-se, beija a mão dos quatro Inquisidores e sai.

2º Inquisidor – Parece que é tudo. Infelizmente, ainda assim, há acusações graves. E a

nossa Santa Igreja ainda tem inimigos. Amanhã, pela manhã, têm que ser todos presos.

E os seus bens e propriedades confiscados. Não podemos permitir que os hereges

tenham uma posição igual à dos nossos Santos cidadãos. Frei Jerónimo, anotou todos os

nomes dos acusados?

Frei (dominicano) Jerónimo – Sim Monsenhor. Está tudo em ordem e pronto para

execução.

Quatro mulheres entram, afogueadas.

1ª Mulher – Perdão Monsenhores, atrasámo-nos no caminho. Mas não podíamos deixar

de vir acusar Catarina de Andrade. Ela é uma feiticeira que faz magia negra e

encantamentos para conseguir o que quer.

2ª Mulher – E o marido, José Sousa de Andrade, é bígamo. Casou com ela e ainda tem a

primeira mulher viva.

3ª Mulher – Aquela casa vive segundo as leis do demónio e é urgente fazer qualquer

coisa.

4ª Mulher – Ninguém sabe de onde lhes vem o dinheiro e eles estão sempre a comprar

roupas de seda e a pavonearem-se.

1º Inquisidor – Bonito. Ainda mais esta. Como sabem que ele é bígamo?

2º Inquisidor – E que ela é bruxa?

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2ª Mulher – A mulher dele, a primeira, andava há uns tempos muito fraca e sempre com

sinais de quem leva pancada.

3ª Mulher – Um dia desapareceu e nunca mais ninguém a viu. Mas o coveiro…

4ª Mulher – Jurou que ninguém tinha sido enterrado na semana em que ela desapareceu.

As quatro – Ao fim de um mês…

A 1ª – Ele aparece com…

A 2ª – Esta Catarina e…

A 3ª – Apresentou-a como …

A 4ª – Sendo a mulher dele.

As quatro entre si – Ora, nós conhecíamos e conhecemos a Francisca. Além disso esta

Catarina dança nua nas noites de lua cheia. Sim, eu também a vi. E eu também. (Tudo

isto deve ser dito em simultâneo por umas e outras).

3º Inquisidor – Mulheres de Deus, tenham calma. Sabemos que é um assunto delicado.

4º Inquisidor – Mas não se preocupem. Iremos seguir os desígnios de Deus Nosso

Senhor e tentar devolver esses irmãos ao bom caminho.

1º Inquisidor – Vão em paz. E que o Senhor vos acompanhe.

As mulheres benzem-se, beijam as mãos dos Inquisidores e saem. Os

Inquisidores olham uns para os outros. Abanam a cabeça. Olham para “os céus” e

sorriem uns para os outros.

2º Inquisidor – Parece que agora é que acabou.

3º Inquisidor – Sim. Podemos sossegar.

Black out enquanto os Inquisidores entoam Te Deum Laudamus. É projectada a

seguinte legenda:

3 – AUTO DE FÉ PRIVADO/TORTURA/INQUÉRITO/CONFISSÃO

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A cena seguinte passa-se às escuras. O público não deve ter acesso visual à

mesma. Ouvem-se os mesmo sons de água a cair e de correntes, do início. Devem

ouvir-se, também, sons de potros e de polés a apertarem, bem como gemidos e gritos.

Os Inquisidores devem inquirir sobre as acusações enquanto as respostas soam, umas

abjurando, outras declarando culpa e assumindo ferozmente que estão em “pecado”.

Tudo deve imbricar.

Inquisidores – Em nome de Deus, confessas ser judeu? Confessas ter práticas

judaizantes? Regressas a Deus? Estás arrependido/a? Fornicas com Satanás? Danças

nua nas noites de lua cheia? Praticas feitiçaria? Bruxaria? Confessas ter práticas da

dança de sodomia? És casado duas vezes e ambas estão vivas? És inimigo da Santa

Igreja Católica Apostólica Romana? Regressas a Deus? És um cordeiro de Deus?

Arrependes-te dos teus pecados? Etc.

Os inquiridos (devem alternar as várias respostas com gritos) – Sim, confesso e quero

regressar a Deus. Nunca fui Judeu. Não sou dado a práticas judaizantes. Sim, fornico

com o Diabo. Sim, sou bruxa, feiticeira, tudo o que quiserem. O vosso Deus é um Deus

mau. Nunca pratiquei sodomia. Sim, pratico sodomia e gosto. Arrependo-me de ter

desonrado a Deus e à Santa Madre Igreja desonrando as mulheres com que casei. Sim,

falo com Satanás, durmo com ele. Ele é o meu senhor. É ele o verdadeiro Deus.

Mezeltof. Deus, recebe-me de volta. Meu Bom Deus, eis-me devotado/a a ti. Etc.

Deve seguir-se um silêncio durante o qual apenas se ouvem as respirações dos

inquiridos. Depois de alguns minutos deve ser projectada a seguinte legenda:

4 – ÉDITO DE FÉ

Os Freis passeiam e entoam o cântico Veni Creator Spiritus. Vemos os homens e

as mulheres do início mas já sem as personagens que foram acusadas.

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Homem (subindo a um cadafalso, enquanto alguns soldados tocam tambores) –

Cristãos! Ouçam! Prestem atenção. O próximo grande espectáculo público terá lugar no

próximo dia 8 de Novembro. O local será a Igreja do Convento de S. Domingos sendo

Inquiridor Geral o Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Nuno da Cunha, Presbítero

Cardeal da Santa Igreja de Roma do título de Santa Anastásia, do Conselho de Estado.

Serão apresentados os penitenciados que abjuraram e levam hábito, os que abjuraram e

não levam hábito, os relapsos e os relaxados em carne bem como dois outros que, um

por ter morrido e outro por ter fugido, serão relaxados em efígie cuja execução será

levada a cabo pelo tribunal secular uma vez que, como é sabido, o Tribunal do Santo

Ofício não decreta a morte de ninguém. Nem tal coisa seria um acto cristão. Estará

presente o Senhor Nosso Rei, D. João V. Não será admitida a presença popular no Auto

de Fé mas podem acompanhar a procissão da vela verde e seguir os relaxados até ao

local da queima que será anunciado a seu tempo. Nunca se esqueçam, Deus Nosso

Senhor tudo vê e a todos pune se pecarem. Fica assim cumprido este édito de fé, aos 22

Outubro de 1749.

Os populares, na praça, regozijam-se e soltam gritos de alegria. Apenas o

jovem, cuja namorada foi condenada, revela tristeza. A luz deve baixar na cara do

jovem, cujas lágrimas caem pelo rosto enraivecido. Será projectada, no escuro, a

seguinte legenda:

5 – AUTO DE FÉ PÚBLICO

Vemos, num trono, D. João V e Dona Maria Ana da Áustria ladeados pelo

Inquisidor Mor. Ao lado deste, um notário. Do lado da Epístola deve estar o Inquisidor

que lê as sentenças. Do lado dos Evangelhos um coro de religiosos segurando uma vela

verde. Entre as duas áreas devem estar os penitenciados, com mitras de papel e

sambenitos. Pelo menos 3: um de relaxado em carne; um de reconciliado; um de

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relapso. Imediatamente na zona dos crentes devem estar vários elementos da nobreza e,

atrás destes, alguns da burguesia. Ouve-se o hino Veni Creator Spiritus e, logo a

seguir, um Prior diz a oração Deus Qui Corda Fidelium. Terminada esta, o mesmo

Prior faz a seguinte pregação: Começa o presente Auto com a celebração da paz, sob

os auspícios da nossa Padroeira e Rainha, Nossa Senhora da Conceição, cuja

maternidade divina se celebra também, liturgicamente. É já uma tradição de iniciar esta

profissão com uma Missa. Hoje, pelo facto dos levantamentos populares se terem

revelado tumultuosos, a celebração eucarística ocorre nesta Igreja do Convento de São

Domingos, por especial favor do seu Prior, o Senhor Cónego João Seabra, a quem

agradeço a hospitalidade. Saúdo também, em especial, Suas Altezas Reais o Nosso

Ilustríssimo D. João V e sua Real esposa, D. Maria Ana. Eis-nos reunidos na

perspectiva de um renovado compromisso com a sua fé cristã e com o futuro de

Portugal. Que celebra a Igreja com esta confirmação da Fé? A Eucaristia é sempre uma

acção de louvor à Santíssima Trindade, pela qual se realiza verdadeiramente o Sacrifício

de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário. É, por isso, uma acção litúrgica, ou seja, de

culto divino, que realiza o fim latrêutico que anima toda a vida eclesial, porque a

principal finalidade da Igreja, dos seus fiéis e até de cada homem é dar glória a Deus.

Mas como a glória de Deus é, como já ensinava São Leão Magno, o homem vivo, a

celebração da divindade é também, em Cristo Nosso Senhor, comemoração da

humanidade assumida e redimida no Verbo encarnado. Para além de verdadeiro

sacrifício, a Missa é também memória e celebração. Assim é, também, a entrada no

reino dos Céus, majestoso pórtico que permanece indiferente às mais sublimes

dignidades terrenas, sejam elas de natureza política, histórica, intelectual, económica,

artística ou outra. Para a salvação eterna, pouco importa o poder, a fidalguia, a beleza, a

inteligência ou a riqueza material do cristão. Não é por esses seus atributos que se lhe

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franqueará a porta do paraíso que, no entanto, se abrirá ante a singela grandeza de quem

tiver a dita de se reconhecer a si mesmo o que afinal todos somos nesta vida: pobres

pecadores em demanda da pátria celestial, que só pela infinita misericórdia de Deus

poderemos alcançar. Muito embora a definição de martírio pressuponha, por regra, a

entrega voluntária da vida por causa da fé, também é verdade que a Igreja tem admitido,

ao longo da sua história, algumas excepções. Por exemplo, a antiquíssima veneração

dos santos inocentes, as crianças assassinadas por Herodes no seu intuito de matar o

recém-nascido Rei dos Judeus, parece indiciar uma aplicação sui generis do conceito de

martírio, na medida em que aquelas crianças não eram crentes, nem morriam

voluntariamente em defesa de uma fé que, por certo, ignoravam absolutamente. Nesse

caso, como a sua vida foi ceifada em nome do ódio anti-cristão, que movia o ímpio

tirano, a Igreja entendeu que lhes era devida a honra do martírio e, como tal, as festeja

no seu calendário oficial, na oitava do Natal. A Nossa Senhora da Conceição dirigimos

uma última prece, pedindo à nossa Padroeira que seja agora de novo – como foi, em

1385, para o Santo Condestável e, em 1640, para El-Rei D. João IV – a nossa bandeira,

sob a qual nos comprometemos a defender a fé, para salvar Portugal. Ámen.

O notário levanta-se e faz a publicação das sentenças:

Notário – Maria Monteiro, por dançar ao luar, por culpas de feitiçaria e ter pacto com o

demónio, por presunção de reincidir nas mesmas: relaxada em carne.

Maria Monteiro é mostrada com sambenito de relaxada em carne.

Notário – André Gonçalves, por judaísmo: açoites, hábito perpétuo e 3 anos para o

reino de Angola.

André Gonçalves é mostrado com sambenito com as chamas para baixo e é

obrigado a ler a seguinte declaração: Eu, André Gonçalves, tendo sido trazido

pessoalmente ao julgamento e ajoelhando-me diante de vós, eminentíssimos e

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reverendíssimos Cardeais Inquisitores-Gerais da Comunidade Cristã Universal contra a

depravação herética, tendo frente a meus olhos os Santos Evangelhos, que toco com

minhas próprias mãos; juro que sempre acreditei e, com o auxílio de Deus, acreditarei

de futuro, em cada artigo que a sagrada Igreja Católica de Roma sustenta, ensina e

prega. Eu desejo remover da mente de Vossas Eminências e da de cada cristão católico

esta suspeita correctamente concebida contra mim; portanto, com sinceridade de

coração e verdadeira fé, abjuro, maldigo e detesto os ditos erros e heresias, e em geral

todos os outros erros e seitas contrários à dita Santa Igreja; e eu juro que nunca mais no

futuro direi nada que possa levantar semelhante suspeita contra mim; mas se eu vier a

conhecer qualquer herege ou qualquer suspeito de heresia, eu o denunciarei a este Santo

Ofício ou ao Inquisidor Ordinário do lugar onde eu estiver. Juro, além disso, e prometo

que cumprirei e observarei todas as penitências que me foram ou sejam impostas por

este Santo Ofício. Mas se por acaso eu vier a violar qualquer uma de minhas ditas

promessas, juramentos e protesto, sujeitar-me-ei a todas as penas e punições que forem

decretadas e promulgadas pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e

particulares contra delinquentes assim descritos. Portanto, com a ajuda de Deus e de

seus Santos Evangelhos, que eu toco com minhas mãos, eu, abaixo assinado, André

Gonçalves, abjurei, jurei, prometi e me obriguei moralmente ao que está acima citado;

e, em fé de que, com minha própria mão, assinei este manuscrito de minha abjuração, o

qual eu recitei palavra por palavra.

Seguem-se cinquenta açoites enquanto se entoa o câtico Te Deum Laudamus.

Notário – Catarina Ruiz, por judaísmo: açoites, hábito perpétuo e 3 anos para o reino de

Angola.

Catarina Ruiz é mostrada com o sambenito com as chamas voltadas para baixo

e é obrigada a ler o seguinte: Eu, Catarina Ruiz, tendo sido trazido pessoalmente ao

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julgamento e ajoelhando-me diante de vós, eminentíssimos e reverendíssimos Cardeais

Inquisitores-Gerais da Comunidade Cristã Universal contra a depravação herética, tendo

frente a meus olhos os Santos Evangelhos, que toco com minhas próprias mãos; juro

que sempre acreditei e, com o auxílio de Deus, acreditarei de futuro, em cada artigo que

a sagrada Igreja Católica de Roma sustenta, ensina e prega. Eu desejo remover da mente

de Vossas Eminências e da de cada cristão católico esta suspeita correctamente

concebida contra mim; portanto, com sinceridade de coração e verdadeira fé, abjuro,

maldigo e detesto os ditos erros e heresias, e em geral todos os outros erros e seitas

contrários à dita Santa Igreja; e eu juro que nunca mais no futuro direi nada que possa

levantar semelhante suspeita contra mim; mas se eu vier a conhecer qualquer herege ou

qualquer suspeito de heresia, eu o denunciarei a este Santo Ofício ou ao Inquisidor

Ordinário do lugar onde eu estiver. Juro, além disso, e prometo que cumprirei e

observarei todas as penitências que me foram ou sejam impostas por este Santo Ofício.

Mas se por acaso eu vier a violar qualquer uma de minhas ditas promessas, juramentos e

protestos, sujeitar-me-ei a todas as penas e punições que forem decretadas e

promulgadas pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares contra

delinquentes assim descritos. Portanto, com a ajuda de Deus e de seus Santos

Evangelhos, que eu toco com minhas mãos, eu, abaixo assinado, Catarina Ruiz, abjurei,

jurei, prometi e me obriguei moralmente ao que está acima citado; e, em fé de que, com

minha própria mão, assinei este manuscrito de minha abjuração, o qual eu recitei

palavra por palavra.

Seguem-se cinquenta açoites enquanto se ouve o cântico Te Deum Laudamus.

Notário - João de Menezes, por práticas de sodomia. Abjurado. Cárcere sem hábito

João de Menezes é mostrado.

Notário – Beatriz Mendes, por práticas de feitiçaria. Abjurada. Cárcere sem hábito.

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Beatriz Mendes é mostrada.

Notário – Catarina de Andrade e José de Andrade, por bigamia, práticas contra a Igreja

Católica de Roma e por pacto com o demónio: açoites, cárcere e hábito perpétuo sem

remissão uma vez que renunciam às suas práticas.

Catarina de Andrade e José de Andrade são mostrados. As mãos e os pés estão

atadas. É-lhes colocado um livro à frente para lerem. Catarina e José começam por ler

ao mesmo tempo: Eu, Catarina de Andrade (José) e eu, José de Andrade (os dois) tendo

sido trazido/a pessoalmente ao julgamento e… (de repente alteram-se, enraivecem-se,

ruborizam, espumam pela boca) e sendo obrigado/a a ajoelhar-me diante de vós, escória

maldita, eminentíssimos e reverendíssimos matadores gerais, depravados e ladrões,

tendo frente a meus olhos os Santos Evangelhos, que cuspo com toda a gana, juro que

sempre acreditei em Satanás e que não acreditarei de futuro, em cada artigo que a Igreja

Católica de Roma sustenta, ensina e prega. Eu desejo remover da mente as Vossas

Repelências e da de cada cidadão esta suspeita correctamente concebida por mim, de

que Satanás é o Senhor, que a Igreja caia, que os vossos corpos se desfacham e que as

chamas vos engulam. Eu privei com Satanás. Eu forniquei com Satanás. Eu sou servo/a

de Satanás. Á morte. À morte. Que morra a Igreja. Que o mal se abata sobre vós.

Entretanto os Inquisidores fazem sinal a dois carrascos que garroteiam

Catarina e José. Quando estes asfixiam, são levados para fora de cena.

Notário – Acabo de saber através da linguagem universal do gesto, que suas Eminências

entregam os hereges à cúria secular para serem relaxados em carne. Na lista dos

sentenciados, seguem-se o Padre D. Francisco da Estrada, religioso da ordem de S.

Basílio, por culpas de solicitação ao sexo feminino. O mesmo morreu no cárcere, por

essa razão será entregue à cúria secular para ser relaxado em cadáver. Por último, o

Padre Miguel Sousa Arruda, Sacerdote do Hábito de S. Pedro, por práticas de sodomia e

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danças da mesma natureza com jovens do colégio de S. Domingos. O mesmo fugiu, ao

que consta, para Inglaterra. Como tal, será entregue à cúria secular para ser relaxado em

esfinge.

Segue-se o cântico Te Deum Laudamus. Grande burburinho do público. Black

out em fade. Quando se atinge o escuro total deve ser projectada a seguinte legenda:

6 – ÚLTIMO ACTO

Grande aparato com rufar de tambores. Vários soldados estão em torno dos

penitentes. Vemos um cadáver, um busto, duas mulheres e um homem amarrados a uma

cruz feita de palha e de ramos secos. A multidão come, bebe e rejubila em gritos como:

Para a fogueira! Hereges!

Mulher – Agora já não tocas no meu homem!

Homens – Vê lá se agora és salvo/a pela Diabo!

Mulheres (riem alto) – Agora vais saber o que é estar casada com dois homens!

Todos estes gritos são interrompidos pelo primeiro homem – O tribunal de

Lisboa, contemplando os pareceres do Tribunal do Santo Ofício, leva a cabo a execução

de Maria Monteiro, Catarina de Andrade, José de Andrade, Francisco da Estrada e

Miguel Arruda, por atentarem contra a Santa Igreja Católica e contra a Nação pro

gravioribus. Que fique bem claro que, todos quantos saírem da ordem, da moral e dos

bons costumes, terão o tratamento que a seguir será mostrado neste palco e que se

baseia nos pressupostos do Inferno e do Purgatório. Deus Nosso Senhor bendiga o

Nosso Rei e Portugal.

A multidão faz silêncio enquanto o rufar dos tambores cresce. Continuam a

comer e a beber.

O jovem soldado (gritando para Maria Monteiro) – Amo-te. Nunca te esqueças disso.

Deus vai reunir-nos. Vais ver. Tem coragem meu amor.

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Maria Monteiro – Eu tenho coragem. Apenas não acredito nos Homens. Amo-te. Sabes

disso (durante este tempo sentimos que Maria está muito debilitada).

O jovem soldado salta para cima do cadafalso e consegue beijar Maria. Dois

carrascos arrastam-no, brutalmente, para fora do cadafalso.

A prostituta chora e grita – Amor! Vende-se amor. Amor de trazer por fora. Amor para

consumir aqui e agora. Quem nunca amou? Quem não quer repetir o amor? Chorar de

novo por amor? Por uma pequena quantia eu dou-vos isso. Amor, choro e sofrimento.

Para consumir aqui e agora. Ri e chora como louca. Amor, amor, amor, amor vermelho,

ao rubro. Amor que é fogo que arde, como o inferno. Ri e chora.

Os miúdos estão irrequietos, brincam de forma violenta dizendo coisas como – És

parvo! O meu pai é melhor do que o teu! Tens os olhos tortos! Burra!!!

O resto da multidão exige aos relaxados que regressem a Deus – Abjurem. Morram

honradamente. Deus ouve-vos. Etc.

O rufar dos tambores anuncia a queima da fogueira. Ouve-se, ao fundo, o hino Veni

Creator Spiritus. A luz vai baixando até ao black out. Quando está tudo às escuras deve

ver-se uma tocha a acender. Ouvem-se gritos e sons de labareda. Ouvem-se gritos de

entusiasmo da multidão e outros de horror. Faz-se silêncio. Regressam os sons de água

a cair e de correntes. Surge a seguinte legenda:

EPÍLOGO

Um homem está sentado. É velho e enrugado. Percebemos, pelos adereços, que se trata

do mesmo homem que notificava os éditos. Lê o que acabou de escrever – Por decreto

das Cortes Constituintes, fechou-se mais um capítulo da História de Portugal e da

humanidade. Com o teatro infernal tentou-se, mais uma vez sem sucesso, impor o

modelo humano de humanidade. A perfeição continua a ser uma ilha distante e deserta.

No entanto morreram milhares para sabermos o que sempre soubemos. Mostramos para

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educar. Mas a educação morre como o veneno do doce a que chamamos pecado. O doce

do prazer e da adrenalina. Lisboa, 5 de Abril de 1821.

O homem sente falta de ar. Tem convulsões. Tenta agarrar-se à mesa mas

continua em asfixia. Por fim amarrota a folha onde tinha estado a escrever e cai,

morto. A luz baixa do homem, e os sons de água a cair e de correntes vão

desvanecendo.

FIM

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