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Edição:
José Corrêa Leite e Expedito Correia
Capa e ilustração:
Caco Bisol
Tradução:
Alessandra Ceregatti, Elisabete Burigo
e João Machado
Revisão:
Caio Galvão
Editoração Eletrônica:
Márcia Helena Ramos
Impresso no Brasil
setembro/2000
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A A MANIFESTO COMUNISTA
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A MANIFESTO COMUNISTA
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R M L A DISCORDÂNCIA DOS TEMPOS
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R M L MARX, O INTEMPESTIVO
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R M L A APOSTA MELANCÓLICA
U M N T
Uma nova época exige uma reflexão capaz de apreender sua novi-
dade e suas tendências fundamentais. Criar este pensamento é decisivo
para a esquerda: entender as mudanças profundas porque passa hoje o
mundo é uma condição para transformá-lo.
Este é o desafio que Michael Löwy e Daniel Bensaïd enfrentam.
Suas obras constituem um esforço decisivo de rearticulação do vasto
campo de crítica da sociedade moderna que designamos pelo nome de
marxismo. Suas reflexões redefinem antigas temáticas e integram novas
em uma crítica contundente do mundo mercantil e da sociedade bur-
guesa, em uma crítica da modernidade. Elas delineam as linhas de força
a partir das quais um marxismo pode voltar a se colocar como guia para a
ação revolucionária, capaz de catalisar as energias utópicas nas condições
do capitalismo contemporâneo e construir uma outra sociedade, uma
outra civilização.
As obras de Löwy e Bensaïd compartilham, em sua diversidade
e abrangência, os mesmos propósitos e preocupações e defendem um
método comum para abordar o pensamento revolucionário e a tradição
socialista. Como militantes e intelectuais marxistas, ambos viveram a
renovação política e cultural dos anos 60 e 70, a crítica da ortodoxia asfi-
xiante do marxismo e das práticas políticas dos partidos comunistas e dos
regimes burocráticos, a rejeição da social-democracia e o engajamento na
construção da mesma corrente política, a Quarta Internacional. Ambos
compartilharam o legado anti-stalinista e internacionalista de Trotsky e
sua apropriação por Ernest Mandel. E, de um ponto de vista revolucio-
nário, ambos incorporaram, por vias próprias, as tradições intelectuais
do marxismo ocidental (e, em particular, nos anos 80, a obra de Walter
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Novos problemas
7. As novas instituições econômicas
Seja no campo do comércio mundial (GATT, OMC), da concer-
tação política (reorganização previsível da ONU), da gestão da dívida
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comunistas ou ex-comunistas).
A defesa dos direitos e conquistas sociais se apóia sobre as legislações e
as instituições existentes, mas as medidas eficazes contra o desemprego e por
uma economia a serviço das necessidades sociais assumem uma dimensão
diretamente regional ou internacional (redução coordenada da jornada de
trabalho, políticas comuns, projetos de investimentos ou socialização de
empresas multinacionais). Trata-se então – a partir das lutas e experiências,
por mais modestas e parciais que sejam – de formular e atualizar uma
proposta transitória para o século vindouro. É também a forma, abordan-
do temas centrais e acessíveis, de dar um conteúdo dinâmico e acessível à
recomposição. Trata-se de reformular os primeiros contornos de uma pro-
posta que conduza a uma contestação de conjunto da ordem estabelecida:
a) cidadania/democracia (política e social): com relação à universalida-
de truncada dos direitos humanos proclamados, direitos civis e igualdade
de direitos (imigrantes, mulheres, jovens), direitos civis e direitos sociais
(igualdade homens/mulheres); direitos sociais e serviços públicos;
b) contra a ditadura do mercado, suas conseqüências a curto prazo, sua
lógica de desigualdades: direito à vida a começar pelo direito ao emprego e à
garantia de renda mínima; reciclagem dos lucros da produtividade (serviços
de educação, saúde, moradia) com ampliação da gratuidade e ingerência no
direito da propriedade privada. Direito dos cidadãos/cidadãs à propriedade
social das grandes empresas cujas opções e decisões tenham uma maior
incidência sobre suas condições de vida presentes e futuras. Esse direito não
implica necessariamente uma nacionalização, mas uma socialização efetiva
(direito ao uso autoadministrado, descentralização, planificação).
c) solidariedade entre gerações (proteção social, ecologia);
d) solidariedade sem fronteiras: desarmamento, dívida, constituição de
espaços políticos regionais, internacionalização de direitos sociais.
Um trabalho análogo deve ser feito a partir dos problemas mais
candentes dos países dependentes (dívida, reforma agrária, cooperação
regional) ou dos países do Leste (alternativa às privatizações, democracia,
problema das nacionalidades).
1
Artigo publicado no Cadernos Em Tempo, nº 317, agosto de 2000. Originalmente publicado na
revista francesa Critique Communiste nº 157, hiver 2000. Traduzido por Alessandra Ceregatti.
2
Norbert Elias, La Dynamique de l’Occident, Paris, Calmann-Lévy, 1975, pp.181-190. A referência
ao combate abissínio soa estranha no momento em que a Etiópia combatia pela sua liberdade
contra a invasão colonial do fascismo italiano, portador de uma pretensa missão “civilizadora”.
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-semita dos dirigentes nazistas, o que pode ser notado nas conversações
privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia:
“A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a
batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças
não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos nossa
saúde sem eliminar os judeus”.11
Em seu notável ensaio sobre Auschwitz12 , Enzo Traverso destaca, com
palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do genocídio. Não se trata
nem de uma simples “resistência irracional à modernização”, nem de um
resíduo de barbárie antiga, mas de uma manifestação patológica da moder-
nidade, do rosto escondido, infernal, da civilização ocidental, de uma bar-
bárie industrial, tecnológica, “racional” (do ponto de vista instrumental).
Tanto a motivação decisiva do genocídio – a biologia racial – quanto suas
formas de realização – as câmaras de gás – eram perfeitamente modernas.
Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é
sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de exter-
minação nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da
modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica
capitalista da qual falava Marx, “a organização científica do trabalho” de
Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber.
Este último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação
da razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da burocracia como
máquina “desumanizada”, impessoal, sem amor nem paixão, indiferente
a tudo aquilo que não é sua tarefa hierárquica, é essencial para compre-
ender a lógica reificada dos campos da morte. Isso vale também para a
fábrica capitalista, que estava presente em Auschwitz, ao mesmo tempo
nas oficinas de trabalho escravo da empresa IG Farben e nas câmaras à
gás, lugares de produção “em cadeia” de mortos. Mas a “solução final” é
irredutível à toda lógica econômica: a morte não é nem uma mercadoria,
nem uma fonte de lucro.
Traverso critica, de maneira muito convincente, as interpretações
– inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso – do
nazismo e do genocídio como produto da história do irracionalismo ale-
mão (Georges Lukács), de uma “saída” da Alemanha para fora do berço
ocidental (Jürgen Habermas) ou de um movimento de “descivilização”
(Entzivilisierung) inspirado por uma ideologia “pré-industrial” (Norbert
Elias). Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolização
pelo Estado da violência – como o mostram, depois de Hobbes, tanto
11
Citado por Zygmunt Bauman, op.cit, p.71.
12
Enzo Traverso, L’Histoire déchirée. Essai sur Auschwitz et les intellectuels, Paris, Cerf, 1997.
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uma verdadeira religião secular, com seu culto fanático e restrito, seu
cortejo de dogmas intolerantes, seus rituais de expiação, seu clero inter-
nacional de “especialistas”, sua excomunhão de todas as heresias, a crítica
marxiana do fetichismo permite se desembaraçar desta capa de chumbo
esmagadora, deste conformismo sufocante e desta hegemonia usurpadora
do “pensamento único”. Ela inspirou alguns dos mais interessantes avan-
ços da teoria social no século XX, da análise da reificação por Lukács até
a crítica da razão instrumental pela Escola de Frankfurt e a da sociedade
do espetáculo pelos situacionistas.
O que constitui a força do pensamento de Marx e que explica
sua persistência, sua vitalidade, seu ressurgimento perpétuo apesar
das “refutações” triunfantes, os repetidos enterros e as manipulações
burocráticas, é sua qualidade ao mesmo tempo crítica e emancipadora, a
saber a unidade dialética entre a análise do capital e o chamado a sua
derrubada, o estudo da luta de classes e o engajamento no combate pro-
letário, o exame das contradições da produção capitalista e a utopia de
uma sociedade sem classes, a crítica da economia política e a exigência
de “eliminar todas as condições no seio das quais o homem é um ser
diminuído, submetido, abandonado, desprezado” (Contribuição para a
crítica da economia política).
Se a crítica marxista do capital guarda todo o seu valor, é antes de
tudo porque a realidade do capitalismo, como sistema mundial, apesar
das mudanças inegáveis e profundas que ele conheceu depois de um
século e meio, continua a ser aquela de um sistema baseado na exclusão
da maioria da humanidade, a exploração do trabalho pelo capital, a alie-
nação, a dominação, a hierarquia, a concentração de poderes e de privi-
légios, a quantificação da vida, a reificação das relações sociais, o exercício
institucional da violência, a militarização, a guerra. Para compreender
esta realidade, suas contradições e as possibilidades de sua transformação
radical, a obra de Marx permanece um ponto de partida indispensável,
uma ferramenta insubstituível, uma bússola sem a qual temos boas chan-
ces de perder o caminho.
É um fato que o mundo do trabalho conheceu transformações pro-
fundas, principalmente no curso das últimas décadas: declínio do pro-
letariado industrial e desenvolvimento do setor de serviços, desemprego
estrutural, formação (notadamente nos países do Terceiro Mundo) de
uma massa de excluídos à margem do processo de produção – o “pobre-
tariado”. Estes são fenômenos não previstos por Marx e que não podemos
de forma alguma dar conta com conceitos como “trabalho improdutivo”
ou “lumpen proletariado”. Mas o proletariado, no sentido amplo, isto
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tem nada a ver com a concepção que Marx tinha da articulação conflituo-
sa de sua teoria com a produção científica contemporânea.
A obra de Marx foi freqüentemente apresentada como um edifício
monumental, de arquitetura impressionante, cujas estruturas se arti-
culavam harmoniosamente, dos alicerces até o telhado. Mas não seria
melhor considerá-la um canteiro de obras, sempre inacabado, sobre o qual
continuam a trabalhar as gerações de marxistas críticos?
68
O progresso em questão
Marx pensa a história como um “modelo de crise”.2 Mas em que
consiste a crise atual, que se prolonga desde meados dos anos setenta?
Os lucros foram restabelecidos, sem que isso tenha como conseqüên-
cia a geração de investimentos produtivos criadores de emprego. Esta
fuga para frente através da especulação gera, pelo contrário, fenômenos
crescentes de desigualdades e exclusão. A crise aparece assim como uma
crise de longa duração.
Para superá-la, o capital não deve somente melhorar a sua relação
frente ao trabalho. Tem necessidade de uma reorganização à escala
planetária dos espaços econômicos, políticos, jurídicos. Esta reorgani-
zação é comprovada pela laboriosa emergência de conjuntos regionais
ou continentais e pela transferência parcial de atributos de soberania
(econômicos – a Organização Mundial do Comércio – ou jurídicos – o
Tribunal de Haia) dos Estados em direção a instituições supranacionais.
Salvaguardando todas as proporções, a redefinição dos espaços de valo-
2
E. Renault, Marx et l’idée critique, Paris, PUF, 1995.
71
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Marx em questão
Se não pára de exceder e de transbordar o seu século, o pensamento
de Marx está profundamente enraizado no seu tempo. Contemporâneo de
Darwin, Claude Bernard, Clausius, Maxwell, Haeckel, inscreve-se no cora-
ção de uma grande mutação cultural. Seria portanto anacrônico criticar-lhe
as lacunas e fraquezas que só se revelam no contexto das transformações
de descobertas posteriores. Seria igualmente vão pretender impor uma
totalização formal a campos de conhecimento cada vez mais ramificados e
complexos. Em contrapartida, é útil dar-mo-nos modestamente conta das
principais acusações geralmente formuladas contra a sua teoria.
Ao contrário de uma simples opinião, de uma teoria científica
expõe-se ao risco da refutação e à sanção do erro. Recusar esta prova
desqualificá-la-ia como ciência. Assim, a teoria de Marx seria invalidada
por erros de previsão, seja negada como ciência pelo fato de fugir da
refutabilidade. É o sentido da objeção popperiana.
Ora, o argumento está carregado de pressuposições epistemológicas
que dizem respeito à causalidade, à previsibilidade e ao erro. O erro é de-
finido, com efeito, em relação a uma previsão supondo por sua vez uma
temporalidade homogênea e uma ciência das trajetórias. As pesquisas
científicas mais recentes orientam-se para temporalidades múltiplas e de-
siguais, para probabilidades, para localizações. Em vez de julgar os limites
ou as incoerências de Marx em função de um modelo de ciência clássica,
seria antes melhor interrogar-se sobre o mal-estar que experimenta perante
os instrumentos desta razão científica, inadaptados ao pensamento do
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D B
A política da aposta
O nosso século obscuro termina com a ruína das esperanças que
tinha suscitado: um mundo melhor, transparente e pacificado. Deixa no
seu rastro os escombros dos desastres e das catástrofes. Perdemos nesse
tempo não poucas ilusões e certezas, sem no entanto termos renunciado
às nossas convicções.
Mudar o mundo aparece como um objetivo extremamente difícil,
mais do que o tinham os pioneiros do socialismo. Mas continua a ser uma
necessidade que não pode socorrer-se da garantia de qualquer fetiche que
seja. Nem a Providência, nem a História, nem a Ciência poderão constituir
o derradeiro tribunal e aliviar-nos do peso da responsabilidade humana.
Em um mundo mais do que nunca inaceitável, o empenho militante
toma a forma da aposta. Como dizia Pascal, é preciso apostar porque todos
“embarcamos”. Recusar-se a apostar, em nome da indiferença cética ou do
orgulho dogmático, seria ainda uma forma de aposta. Pascal opunha aos
que servindo a Deus o encontraram, os que “vivem sem o buscar nem o ter
encontrado” e, finalmente, os que “se empenham em procurá-lo, sem o ter
encontrado”. Estes últimos são os primeiros abarcados pela aposta que os
liberta da obsessão da certeza. “Trabalhamos para a incerteza”, dizia Santo
76
D B
3
Pensées, Paris, Flammarion, p. 117.
4
Lucien Goldmann, “Le Pari est-il Ecrit pour le Libertin”, in Recherches Dialectiques.
5
Idem.
77
A visão de Marx
O pensamento de Marx é atravessado por uma tensão entre duas
concepções diferentes da dialética do progresso. A primeira é uma dialética
hegeliana, teleológica e fechada, tendencialmente eurocêntrica. O obje-
1
Publicado originalmente nos Cadernos Em Tempo nº 288, maio de 1996. Tradução de José Corrêa Leite.
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histórico que iria abolir radicalmente a idéia de progresso (ver o Livro das
passagens parisienses). Para Benjamin, a revolução não é “inevitável” e ainda
menos determina pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas: ao
contrário, ela a concebe como uma interrupção de um progresso catastró-
fico, cujo indicador era o aperfeiçoamento crescente das técnicas militares
– isto é, para retomar sua imagem, como apagar um pavio fumegante
que antes que o fogo da tecnologia ficasse incontrolável e provocasse uma
explosão fatal a civilização humana (Sentimento único).
Daí seu “pessimismo revolucionário”, seu chamamento angustiado
em 1929 à uma “organização do pessimismo” pelo movimento comu-
nista, pois, segundo sua fórmula irônica – e estranhamente premonitória
– “apenas podemos ter confiança ilimitada na IG Farben e no aperfei-
çoamento pacífico da Luftwaffe” (O surrealismo). Benjamin reconhece
a contribuição positiva do desenvolvimento dos conhecimentos e das
técnicas, mas se recusa a considerá-lo, ipso facto , como um progresso
humano. Sem negar o potencial emancipador da tecnologia moderna, ele
está preocupado com seu domínio social, pelo controle da sociedade sobre
suas relações com a natureza. A sociedade sem classes do futuro deverá
colocar um fim não somente na exploração do homem pelo homem mas
também na da natureza, substituindo as formas destruidoras da tecnolo-
gia atual por uma nova modalidade de trabalho, “que, longe de explorar
a natureza, pode fazer nascer dela as criações virtuais adormecidas em seu
seio” (Teses sobre o conceito de história, 1940).
Recusando uma escrita da história em termos de progresso – que se-
ria a da “civilização” ou da “forças produtivas” – ele se propõe a interpretá-
-la do ponto de vista de suas vítimas, das classes e povos esmagados pelo
carro triunfal dos vencedores. Nesta perspectiva, o progresso lhe aparece
como uma tempestade maléfica que distancia a humanidade do paraíso
original e que fez da história “uma só catástrofe que continua a empilhar
ruína sobre ruína”. A revolução não é mais a locomotiva da história mas
a humanidade que puxa os freios de emergência antes do trem cair no
abismo” (Teses sobre o conceito de história).
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Walter Benjamin foi dos poucos que trataram, nas vésperas do desas-
tre, dos desgastes ideológicos e políticos sofridos pelo movimento operário
em função do produtivismo e do culto ao trabalho. Mas, já desde 1883,
em sua célebre brochura escrita em Sainte-Pelagie, O direito à preguiça,
Lafargue se indignava com o grosseiro despropósito de que era objeto o
pensamento de Marx. Denunciava “a paixão moribunda pelo trabalho le-
vada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo”. O culto ao trabalho
constituía “uma estranha loucura”, uma “religião da abstinência” que gerava
“corpos debilitados”, “espíritos encolhidos”, seres mutilados.
Em conseqüência, Lafargue chamava à superação “da dupla loucura
dos trabalhadores, de se matar no trabalho e vegetar na abstinência”, à “es-
magar a extravagante paixão dos trabalhadores pelo trabalho”: “é necessário
que o proletariado pisoteie os preconceitos da moral cristã, econômica,
1
Publicado nos Cadernos Em Tempo nº 308. Versão original publicada na revista Viento Sur n. 44,
junho de 1999. Tradução de Caio Galvão de França.
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2
André Gorz, Misère du présent, richesse du possible, Paris, Galilée, 1997, p.97.
3
Dominique Méda, Le Travail, une valeur en voie de disparition, Paris, Abier, 1995, p. 19.
86
D B
15
André Gorz, Op. cit., p. 17, 43.
16
Thomas Coutrot, Op. cit., p. 83, 245.
92
D B
Trabalhos práticos
Ainda que seja um elemento chave na luta contra o desemprego,
a redução do tempo de trabalho não representa, por si mesma, uma
panacéia. Somente é eficaz se inserida em um dispositivo mais amplo
de reorganização do trabalho, da divisão do trabalho, dos horários, da
formação e na condição de ser ajustada, regularmente, com os ganhos de
produtividade. Para que esta lógica se imponha sobre a flexibilidade, tão
ao gosto da patronal ilustrada, é necessário uma sólida relação de forças.
Diante da dificuldade para construí-la, muitos discursos cedem à
resignação e fazem da necessidade virtude. O desemprego massivo teria se
convertido em uma fatalidade, o trabalho, um gênero raro, no melhor dos
casos, intermitente, no pior, inencontrável. Disto decorre a idéia, cada
vez mais difundida, de desconectar do trabalho “o direito a ter direitos”.
É uma idéia sedutora para os setores excluídos, porque teoriza sobre seu
cansaço em correr atrás de um emprego improvável.
Aqui se misturam várias questões. Ainda que não se admita a idéia do
desaparecimento do trabalho, pode-se imaginar sua transformação, no sen-
tido de uma redução dos empregos estáveis e por toda uma vida, em favor
da alternância de empregos. Haveria mais trabalhos intermitentes como
já existem trabalhos por temporada nos espetáculos: “O uso do trabalho
tende a converter-se em uma seqüência de empregos, reconversões, esperas,
novos empregos; deveria se considerar, portanto, a verdadeira capacidade
de trabalho, como a possibilidade de seguir esses itinerários. O salário se
converteria em um salário da disponibilidade, pago tanto durante os pe-
ríodos de espera de emprego, como durante o próprio emprego”.17 Tudo
bem! Mas quem garantiria esse “salário de disponibilidade?
Alguns (como os autores do informe Boissonat) sonham com um
pool de empregadores, que utilizam, em função de suas necessidades, um
pool de mão-de-obra comum, que corresponderia, simplesmente, a uma
crescente flexibilidade e maior dependência. Outra hipótese consistiria
em estabelecer um estatuto do trabalhador que seria reconhecido não
17
André Gorz, Op. cit., p. 60.
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23
Stavros Tombazos, Les temps du Capital, Paris, Cahiers des Saisons, 1994.
24
André Gorz, Op. cit., p. 176.
97
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26
Jean-Claude Milner, Le salarie de l’ideal, Seuil, 1997.
27
Hannah Arendt, op. cit. p. 37-38.
99
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28
Ibid., p. 181-183. 181-183.
29
Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã.
100
D B
O trabalho da contradição
O dogma do trabalho libertador e a profecia do final do trabalho
têm em comum sua unilateralidade. O primeiro só considera a dimensão
antropológica do trabalho, abstraindo seu caráter historicamente deter-
minado. O segundo só leva em consideração seu caráter concretamente
alienado e alienante, abstraindo suas potencialidades criadoras. Na rea-
lidade, na “imbricação da ação e do trabalho”, as dimensões antropoló-
gicas e históricas estão estreitamente combinadas. Ainda que a alienação
domine o trabalho assalariado há, ao mesmo tempo, um processo de
socialização “forçosamente ambivalente”.30 Como ocorre no esporte de
competição, a submissão ao princípio do rendimento e do resultado não
consegue apagar completamente todo o resto de inspiração lúdica: se o
espetáculo desportivo se reduzisse a uma pura exploração do corpo, seria
incapaz de cumprir sua função de comunhão consensual.
Não se trata de negar essa contradição, mas de se instalar nela para
trabalhá-la. Por trás do trabalho imposto persiste, ainda que de forma débil,
surda, essa “necessidade do possível”, que diferencia a atividade humana da
plenitude simplesmente vegetativa. É o sinal, mesmo, de sua finitude e de
sua capacidade para “ir mais longe”, para melhor ou para pior.
30
Christophe Dejours, Souffrance en France, Seuil, 1998.
101
sas e em detrimento dos mais fracos, a crise aguda das finanças públicas
conduzem à uma revisão dos procedimentos do Estado-providência (in-
dexação salarial, sistemas de proteção social, serviços públicos)4 (Castel,
1995). Disto resulta uma interpenetração ampliada entre negócios e poder,
uma corrupção galopante e a propagação de fenômenos mafiosos. Com
sua vivacidade habitual, Régis Debray sublinhou bem os fogos cruzados
paradoxais entre “a homogeneização do mundo e a reinvidicação das dife-
renças”, entre a deslocalização industrial e a “apaixonada relocalização dos
espíritos”, entre a universalização planetária da economia e a fragmentação
(“a histeria territorial obsessiva”) do político, entre desenraizamento e
contra-enraizamento. Sob um outro registro, o conselheiro econômico de
Bill Clinton, Robert Reich, pergunta: “Formamos ainda uma comunidade,
mesmo que não mais sejamos uma economia?” Sem dúvida, a interrogação
decorre de uma extrapolação abusiva. Mas ela expressa uma tendência e
angústias reais.5
Se o diagnóstico de Debray é brilhante, a resposta é um pouco curta:
“A religião não é o ópio do pobre mas a vitamina do fraco. Como demo-
ver os mais despossuídos de recorrer a ela se os Estados democráticos não
têm mais uma mística a propor além da perspectiva da prosperidade ma-
terial? É na falta de uma religião cívica livremente consentida, na falta de
uma espiritualidade agnóstica, na falta de uma verdadeira moral política
e social que prosperam os novos fanatismos clericais”. Uma religião cívi-
ca e uma espiritualidade laica? A questão é somente alterada. Pretender
que cursos de instrução cívica e o canto obrigatório da Marselhesa sejam
suficientes para reter o crescimento das “identidades obscuras” é ainda se
imobilizar em uma linha Maginot ideológica tanto insignificante quanto
ilusória frente às pesadas tendências da época. É urgente compreender
porque as místicas republicanas tradicionais estão à beira do suspiro final,
porque a escola e o Estado perderam sua aura em proveito dos estádios e
das casas de espetáculos.6
4
Para compreender este processo mais amplo, Robert Castel propõe no lugar da noção ambígua de
Estado-Providência, a de Estado Social. Ver Les métamorphoses de la question sociale, Paris, Fayard, 1995.
5
Robert Reich, L’économie mondialisée, Paris, Dunod, 1993, p.19.
6
Regis Debray, “Dieu et l’indice Dow Jones”, Liberation, 12 de agosto de 1994. A controvérsia sobre
o véu islâmico deve servir de revelação. Um ciclo histórico da “grande causa” laica se encerra diante
de nossos olhos com a oposição entre uma “laicidade fechada” (aquela, disciplinar, das circulares
ministeriais e da autoridade administrativa em sentido único) e uma “laicidade aberta” representada
unanimamente pelas hierarquias religiosas como um simples espaço vazio entre os cultos. Esta crise
da laicidade é o sintoma de uma crise mais geral de representação democrática. O espaço escolar não
é dissociável do espaço público. Também ele sofreu o impacto das empresas comerciais de ensino
e de comunicação, ao mesmo tempo em que se separou de um espaço público incerto, flutuante
entre um espaço nacional já dividido e um espaço cosmopolita ainda gelatinoso. Na falta de novos
acontecimentos criadores, o senso de herança histórica se esvazia aos olhos de gerações multiculturais.
105
M: N, P, E
8
A fórmula é de Étienne Balibar. É também dentro deste contexto que se cristaliza o princípio de
congruência entre Estado e nação: “A cada nação um Estado, um só Estado para toda a nação”. A
nacionalidade passa à frente da cidadania. A língua e a filiação tornam-se critérios determinantes
do pertencimento nacional. Ao final da Primeira Grande Guerra, a doutrina Wilson oficializa esta
equação: um povo = uma nação = um Estado. Porém, vários Estados reconhecidos pelo Tratado
de Versalhes não ficaram menos “plurinacionais”.
9
Hannah Arendt, “Les origines du totalitarisme”, Tomo II, L’impérialisme, Paris, Fayard, 1982.
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12
Hannah Arendt, op. cit., p.67.
13
Op. cit., p. 253, 262-263, 292. É interessante notar o paralelismo entre os processos analisados
por Hannah Arendt e o renascimento do olimpismo, o desenvolvimento do esporte de competição
e o aparecimento do que Jena-Marie Brohm chama “as hordas esportivas”. Ver principalmente Jean-
-Marie Brohm, Les meutes sportives, critiques de la domination, Paris, l´Hamattna, 1993; e “Quel
Corps?”, Critique de la mondernité sportive, Paris, Les Éditions de la Passion, 1995.
109
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14
Gramsci nota, por exemplo, que a tardia unidade nacional italiana abriu um fosso durável
entre o sentimento nacional das elites intelectuais e o vivido popular fortemente ligado às raízes
regionais. Ver também Benedetto Croce, Histoire de l´Europe au XIXe siècle, Paris, Gallimard, coll.
“Folio”, 1994.
15
Jules Michelet, Le peuple, Paris, Champs Flammarion, 1979.
110
D B
16
Hannah Arendt, “Les origines du totalitarisme”, Tomo III, Le système totalitaire, Paris, Seuil,
1972, p.29, 32 e 37.
111
M: N, P, E
Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Races, nations, classes, les identités ambigües, Paris, La
19
Cerf, 1990.
117
M: N, P, E
o jogo das definições parece estéril. As respostas “à” questão das naciona-
lidades variam em função das situações concretas, segundo uma tensão
permanente entre princípios e circunstâncias.
Na declaração de 1870 da Associação Internacional dos Trabalhadores,
Marx formulou o princípio segundo o qual um povo que oprime outro não
poderia ser livre. Esta profissão de fé é ilustrada pela defesa dos direitos na-
cionais do povo polonês, como do povo irlandês. O papel emancipador do
proletariado coincide então com sua capacidade de assumir a liderança da
nação em formação. Podemos ler, assim, no Manifesto Comunista: “Como
o proletariado deve começar por conquistar o poder político, se erigir em
classe nacional, se constituir em nação, permanece ele mesmo nacional,
ainda que de modo algum no sentido burguês da palavra”.
A distinção entre “nações históricas” e “povos sem história”, sistema-
tizada por Engels em seus artigos na Nova Gazeta Renana, e a relatividade
histórica da questão nacional resultam, entretanto, em conclusões con-
traditórias em relação ao princípio proclamado. Na paixão e na desilusão
das revoluções vencidas de 1848, Engels tem fórmulas terríveis contra os
povos eslavos da Europa central. Ele fala “em apagar até o nome” destas
pequenas nações: “Um dia nós nos vingaremos cruelmente dos eslavos
por sua traição”. Na verdade, estes julgamentos definitivos misturam, sem
precaução, uma questão política concreta e uma extrapolação teórica. É ver-
dade que as nações eslavas da Europa tiveram um papel reacionário contra
as revoluções democráticas alemã e húngara de 1848-1851. Mas Engels
conclui que elas estão condenadas a repetir este papel para sempre. Se elas
não foram capazes de ascender a uma existência política independente em
relação à Alemanha e aos turcos, se elas existem apenas em referência ao
despotismo russo, se elas conheceram um processo “de desnacionalização
milenar”, estas micro-nações não poderiam pretender um papel tardio.
“Necessariamente contra-revolucionárias”, elas são condenadas a se fundir
no interior das nações maiores ou a sobreviver enquanto “monumentos
etnográficos”. A análise torna-se, deste modo, perigosamente apologética. A
opressão de hoje prolongando a de ontem... Seguindo as mesmas premissas,
Marx justifica as anexações do Texas e da Califórnia pelos Estados Unidos
em detrimento dos “mexicanos preguiçosos”. Ela estaria de acordo com o
interesse da civilização (apesar dos colonos americanos serem escravagistas
e o México ter abolido a escravidão desde 1829!).
A constatação conjuntural de uma tendência se transforma assim em
prognóstico atemporal, condenando irremediavelmente estas nações inca-
pazes de história, estas “ruínas de povos pisoteadas pela marcha da história”.
Ao perder ligação com seu conteúdo social, a lei histórica geral se desenca-
119
M: N, P, E
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Auto-emancipação
Em suas Teses sobre Feuerbach e na A ideologia alemã, Marx rompeu
com as premissas do materialismo mecanicista e formulou as bases de
uma nova visão de mundo. Integravam essa visão as bases metodológicas
1
Publicado no Em Tempo nº 252, julho de 1991. Tradução de Elisabete Burigo.
125
M U
para uma nova teoria da revolução construídas a partir das mais avançadas
experiências do movimento operário de sua época (cartismo inglês, a
revolta dos tecelões da Silésia em 1844, etc.).
Rejeitando tanto o velho materialismo da filosofia do Iluminismo
(mudar as circunstâncias para libertar o povo) como o idealismo neo-
-hegeliano (libertar a consciência humana para mudar a sociedade),
Marx cortou o nó górdio da filosofia de sua época. Sua terceira tese sobre
Feuerbach afirma que na práxis revolucionária a alteração das condições e
a transformação das consciências andam juntas. Sua nova concepção da
revolução (apresentada pela primeira vez na A ideologia alemã) é obtida
a partir desta premissa com rigor e coerência lógica. É apenas através de
sua própria experiência no curso de sua própria práxis revolucionária que
as massas oprimidas e exploradas podem superar tanto as circunstâncias
externas às quais estão acorrentadas (o capital, o Estado), como a misti-
ficação de suas próprias consciências.
Em outras palavras, a única forma autêntica de emancipação é a auto-
-emancipação. Como escreveria Marx mais tarde, na declaração de fun-
dação da Primeira Internacional: “a emancipação do proletariado é tarefa
do próprio proletariado”. A revolução tem que ser autolibertação. Ela é
descrita ao mesmo tempo como transformações radicais das estruturas
econômicas, políticas e sociais e como tomada de consciência das massas
trabalhadoras sobre seus reais interesses, descoberta de aspirações, valores
e idéias novos, radicais e emancipadoras.
Os elementos que embasam uma visão da revolução obviamente
não estão relacionados apenas à “tomada do poder”, mas também a um
período histórico inteiro de transformações sociais ininterruptas. Na vi-
são de Marx não há lugar para qualquer tipo de déspota esclarecido, seja
individual ou coletivo, César ou Tribuno do povo.
A doutrina que substitui o proletariado pelo partido e impõe seu “pa-
pel dirigente” desde acima, assim como a ideologia do dirigente infalível,
onisciente e benevolente, são uma ruptura completa com os elementos
mais profundos da filosofia e da teoria revolucionária de Marx. Para en-
contrarmos as origens históricas do culto às personalidades de Stalin, Mao,
Kim Il Sung ou Ceausescu temos que recorrer à história das religiões ou às
práticas do despotismo oriental (asiático ou bizantino). Elas não podem ser
encontradas no pensamento do autor do Manifesto Comunista.
Crítica implacável
Se, como nós acreditamos, o marxismo é o “horizonte intelectual de
nossa época” (Sartre), todas as tentativas de “ir mais além” resultam ape-
126
M L
Dimensão utópica
Finalmente, o desenvolvimento criativo do marxismo e a superação
de sua “crise” atual exige o reestabelecimento de sua dimensão utópica.
127
M U
Imaginação e esperança
Precisamos de uma utopia marxista – um conceito herético, mas
como poderia o marxismo desenvolver-se sem heresias? Uma utopia que
apresente do modo mais concreto possível um imaginário enclave libera-
do ainda não existente (u-topos, em lugar nenhum) no qual a exploração
dos trabalhadores, a opressão das mulheres, a alienação, a reificação, o
Estado e o capital sejam todos abolidos. Sem abandonarmos por um
instante a preocupação realista com a estratégia revolucionária e a tática e
com os problemas materiais mesmo da transição ao socialismo, devemos
dar ao mesmo tempo rédea livre à imaginação criativa, aos devaneios, à
esperança ativa e ao espírito visionário vermelho.
O socialismo não existe na realidade atual; precisa ser reiventado como
o resultado final da luta pelo futuro. Isso significa encorajar uma discus-
são de longo alcance, sem limites ou tabus sobre as possibilidades de
um socialismo democrático baseado na autogestão, com planejamento
128
M L
Elementos de utopia
Entre os elementos utópicos que deveriam ser explorados mais pro-
fundamente podemos mencionar, por exemplo:
Um novo sistema produtivo e tecnológico, explorando o desenvol-
vimento e o recurso a fontes de energia renováveis, especialmente aquelas
que não ameaçam a vida humana ou agridem o meio ambiente natural.
O princípio segundo o qual o socialismo não pode primeiro tomar posse
do aparelho do Estado burguês e usá-lo para seus próprios fins, mas tem
que destruir a velha estrutura e construir uma nova, aplica-se também,
embora de uma forma diferente, ao aparelho técnico e produtivo existen-
te. A forma atual do maquinismo industrial não é a única possível. Ele
pode e deve ser radicalmente transformado – substituído por métodos
mais avançados e menos destrutivos de produção.
A emancipação do trabalho, não apenas pela expropriação dos
proprietários privados e pelo controle sobre a produção exercido pelos
próprios produtores, mas também pela transformação radical da natureza
do trabalho. Isso significa a abolição da divisão sexual do trabalho e da
separação tradicional entre a atividade manual e intelectual, assim como
o restabelecimento da dimensão artística, qualitativa do trabalho. Marx
criticou o capitalismo industrial (nos Grundrisse) pela sua degradação do
trabalho: “o trabalho perde todas as suas características de arte (...) e se
torna cada vez mais atividade puramente mecânica”. Uma reorganização
socialistas do processo de trabalho requeriria, portanto, uma restituição
ao trabalho humano de suas “características de arte”.
A livre distribuição de um número crescente de bens e serviços,
correspondendo às necessidades materiais e culturais básicas, e o declíneo
paralelo do papel do mercado, da produção de mercadorias e do dinheiro.
Relações de gênero verdadeiramente igualitárias, não hierárquicas
e não opressivas, e a universalização para o conjunto da humanidade de
valores até então restritos (e impostos) às mulheres: a serenidade, o cui-
dado com o outro, o altruísmo etc.
Uma organização democrática e descentralizada da vida econô-
mica, social e política, onde o auto-governo e o controle direto pelos
trabalhadores e a população gradualmente substituam o tipo de estrutura
burocrática e repressiva conhecida como o “Estado”. Mesmo o Estado
129
M U
Revolução e progressso
Independentemente de polêmicas com os socialistas utópicos de sua
época, os trabalhos de Marx contêm, mesmo que de modo fragmentado,
uma dimensão utópico-revolucionária pela qual ele tem sido sempre
denunciado pelos seus críticos acadêmicos e reformistas, em nome do “re-
alismo”. Uma das características do empobrecimento social-democrata,
stalinista e pós-stalinista do marxismo do século XX foi precisamente
o abandono dessa dimensão “messiânica” em favor de uma concepção
restrita e estreita da transformação social. Para parafrasear uma velha ex-
pressão de Lenin, hoje poderíamos dizer que sem utopia revolucionária
não haverá prática revolucionária.
Na luta pela recuperação da carga explosiva da utopia marxista,
precisamos nos apoiar nas correntes de resistência, na tradição herética
e subversiva escondida ou renegada pela burocracia: Rosa Luxemburg,
Trotsky, Lenin do O Estado e a revolução e Cadernos filosóficos, o jovem
Lukacs, Gramsci, Walter Benjamin.
A História e Consciência de Classe de Lukacs (1923) foi a mais avança-
da expressão filosófica dos princípios da Revolução de Outubro. As idéias
de Benjamin podem bem ser uma fonte de inspiração para as revoltas e
revoluções que virão.
O ponto de partida e a conclusão final do trabalho de Benjamin
– inspirada pela crítica cultural do romanticismo alemão à civilização
industrial burguesa, mas indo além dele de um ponto de vista revolucio-
nário – é uma reflexão crítica sobre o progresso. Suas Teses sobre o conceito
de história, uma das mais importantes contribuições ao pensamento
marxista e à teoria revolucionária desde as Teses sobre Feuerbach, em 1845,
enfatizam que o materialismo histórico precisa compreender o progresso
de outro modo. O desenvolvimento técnico e industrial do capitalismo,
o domínio crescente da natureza, o desenvolvimento cego da produção
não é uma corrente fluindo em uma direção naturalmente inevitável (na
qual podemos nadar) rumo ao socialismo. Ao contrário, é uma estrada
que pode levar à catástrofe, à destruição da cultura humana.
Alguns anos depois de Benjamin ter escrito suas Teses (1940),
Auschwitz e Hiroshima confirmaram a correção de sua advertência,
130
M L
muito mais além do que poderia ter imaginado. Em 1986, num mundo
constantemente ameaçado por uma ruptura irreversível de equilíbrio da
natureza pelo holocausto nuclear, as idéias de Benjamin não perderam
nada de sua relevância.
Para Benjamin, a revolução não é “progresso”, melhorando a ordem
estabelecida, aperfeiçoando os mecanismos econômicos e sociais existentes.
É uma interrrupção “messiânica” do curso da história, de seu continuum.
Mais do que a locomotiva da história, a revolução socialista é o freio emer-
gencial que põe fim ao avanço impetuoso do trem para o abismo.
O agente dessa interrupção revolucionária, o proletariado, carrega na
sua consciência coletiva, como uma memória histórica e como motivação
para a sua revolta, a luta permanente dos oprimidos e dos vencidos. O
proletariado é seu herdeiro e o executor de seu testamento.
131
A A M C
D B
3
Bensaïd se refere à lei do valor: a medida do valor das mercadorias com base no tempo de trabalho
(Nota do tradutor).
135
A A M C
tam as ordens seculares dos territórios, das nações, dos Estados. É a hora
incerta das decomposições sem recomposições, das contradições sem
sínteses, dos conflitos sem superação.
11. A crise de representação e o descrédito freqüentemente invo-
cado da política são apenas o efeito visível da grande prostração das
fundações modernas.
Ilustram o risco, anunciado por Hannah Arendt, de que “a política
desapareça completamente do mundo”, de que a cidadania seja esmagada
entre os automatismos do horror econômico e as consolações ilusórias do
moralismo humanitário. Logo o mesmo acontece com as condições de
possibilidade, presentes e futuras, de uma cidadania realmente democrática.
E contudo lutam…
12. “A história de todas as sociedades até nossos dias não foi senão a
história da luta de classes”: o Manifesto desvenda o segredo do espectro e
lhe dá carne, decifrando o enigma do movimento histórico.
A Revolução Francesa consumou a transformação das ordens e esta-
dos políticos antigos em classes sociais modernas, dissociou a vida política
da sociedade civil, separou a profissão da posição social. O velho espírito
corporativo sobreviveu, entretanto, no coração da sociedade moderna
através da burocracia do Estado, cuja supressão só é possível se o interesse
geral se torna efetivo e se o interesse particular se torna geral.
13. O Manifesto não se contenta em pôr a nu a relação de classe
dominante, inerente ao reino do capital. Anuncia uma simplificação
crescente desta relação, uma polarização cada vez mais despojada que
confronta burgueses e proletários. Este prognóstico cumpre uma fun-
ção política. Contribui para resolver a contradição presente no próprio
Manifesto: enquanto o desenvolvimento industrial aumenta a força, a
concentração e a consciência do proletariado, a concorrência o “esfarela”.
Como, apesar de tudo, do nada tornar-se tudo?
Como seres privados das finalidades de seu trabalho, mutilados pelo
despotismo da fábrica, submetidos ao fetichismo da mercadoria, podem
quebrar o círculo de ferro da exploração e da opressão? Por qual prodígio
o proletariado realmente existente pode arrancar-se aos sortilégios do
mundo encantando?5
5
Bensaïd faz aqui uma referência a uma passagem de O Capital, na parte final do Capítulo XLVIII
do Livro III, “A fórmula trinitária”, em que Marx resume o absurdo da visão ideológica da economia
capitalista, propagada pelos economistas que ele chama de “vulgares”: “Em capital-lucro ou, melhor
ainda, capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-salário, nessa trindade econômica que faz a cone-
xão entre os componentes em geral do valor e da riqueza em geral com suas fontes, está consumada a
mistificação do modo capitalista de produção, a coisificação das relações sociais, o amalgama direto
139
A A M C
o conflito de classe passa a ser apenas um conflito entre outros: ele estrutura
a socialização no seu conjunto e determina os outros modos de conflito.
Alain Brossat, “Comme en finir avec la politique (à propos d’un Livre noir et d’un énergumène)”,
12
M I:
A MANIFESTO COMUNISTA
M L
XVII, enquanto que a indústria, por sua técnica e sua estrutura capitalis-
ta, “encontrava-se ao nível dos países avançados e até mesmo, sob certos
aspectos, superava-os” – especialmente pelo grau de concentração da
indústria, superior até mesmo à dos Estados Unidos: em 1914, as gran-
des fábricas (mais de mil operários) empregavam 17,8% da totalidade
dos operários, enquanto que na Rússia a proporção era de 41,4% (nós
reencontramos aqui, atualizado o argumento já esboçado em 1906).12
Uma das conseqüências do desenvolvimento desigual é aquilo que
poderíamos chamar o privilégio dos retardatários: aqueles que chegam mais
tarde, os marginais, os periféricos, os “atrasados” do ponto de vista de uma
evolução histórica determinada – econômica, social ou cultural – podem
tornar-se precisamente a vanguarda da transformação seguinte. Este foi
o caso, segundo Trotsky, da Revolução Francesa: a França, país no qual
havia “fracassado” a Reforma protestante, e onde a Igreja católica tinha
permanecido dominante até o século XVIII, será exatamente o primeiro
país a conhecer uma revolução não-religiosa, feita em nome dos princípios
democráticos. Isto também é válido para a Revolução socialista na Rússia:
“Da mesma forma que a França fez um salto por cima da Reforma”, a
Rússia ultrapassou de um salto a revolução democrático-burguesa.13
Esta hipótese implica, é claro, numa ruptura metodológica com o
economicismo tão profundamente enraizado no marxismo “ortodoxo”
(tanto o da Segunda como da Terceira Internacional). É o argumento que
Trotsky faz valer para justificar o “privilégio dos retardatários” no caso da
China de 1927: “ Como a experiência russa já demonstrou... a política não
possui o mesmo ritmo que a economia... A despeito do atraso da economia
chinesa, e em parte precisamente por causa deste atraso, a Revolução Chinesa
é perfeitamente capaz de levar ao poder político uma aliança dos operários
e camponeses sob a direção do proletariado”.14 Pode-se ver aqui o ponto
preciso onde a teoria se dissocia do eurocentrismo, aceitando a possibilidade
de que os países periféricos sejam a vanguarda do movimento histórico.
Infelizmente, este conjunto de hipóteses não conheceu um desenvol-
vimento posterior na obra de Trotsky. É mesmo espantoso até que ponto
a teoria do desenvolvimento desigual e combinado é pouco presente nas
suas reflexões sobre os países periféricos, senão como lembrança do pre-
cedente russo – ou como pressuposição implícita, raramente articulada.
Uma das exceções são os escritos sobre a revolução republicana espanhola
12
Ibid, p.25.
13
Ibid, p.30.
14
Leon Trotsky, “Les rapports de classe dans la révolution chinoise”, 1927, in Pierre Broué (ed.), La
question chinoise dans I”International Communiste, Paris, EDI, 1976, p. 128, sublinhada por mim, ML.
166
M L
18
Michael Löwy, Le marxisme en Amérique Latine. Anthologie, Paris, Maspero, 1980 pp. 239-258 e
413-423.
19
Os teóricos da dependência (especialmente Gunder Frank) se distinguem entretanto dos parti-
dários da concepção do desenvolvimento desigual e combinado, pela afirmação do caráter exclu-
sivamente capitalista das economias latino-americanas, desde a época da colonização – na medida
em que para estes últimos trata-se mais de um “amálgama” entre relações de produção desiguais,
sob a dominação do capital.
20
Carol MacAllister, “Tradition, changement et résistance quotidienne”, in P. Duggan e H. Dash-
ner (eds.), Les femmes dans la nouvelle économie mondiale. Cahiers d’Etudes et de Recherches, 22,
1994. Cf. também. Do mesmo autor , “Uneven and combined development dynamics of change
in women’s everyday forms in Nigeri Sembilan, Malysia”, Review of Radical Political Economics,
23 (1-2), 1991.
168
A Q O
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1
Publicado nos Cadernos Em Tempo nº 298, novembro 1997. Traduzido por Maria Regina Pilla e
Luis Pilla Vares. Publicado originalmente na revista Inprecor n. 418 (edição francesa), de novembro
de 1997.
169
A Q O
fose tão brutal, sob o chicote de uma burocracia faraônica: entre 1926 e
1939 as cidades aumentarão de 30 milhões de habitantes e sua parte na
população global passará de 18% a 33%; durante o único primeiro plano
quinquenal sua taxa de crescimento é de 44%, ou seja praticamente tanto
quanto entre 1897 e 1926; a força de trabalho assalariada mais que dobra
(passa de 10 a 22 milhões); o que significa a “ruralização” massiva das
cidades, um esforço enorme de alfabetização e de educação, a imposição à
marcha forçada de uma disciplina do trabalho. Esta grande transformação
é acompanhada de um renascimento do nacionalismo, de um desen-
volvimento do carreirismo, do surgimento de uma novo conformismo
burocrático. Nesta grande confusão, ironiza Moshe Lewin, a sociedade
estava, num certo sentido, “sem classes”, porque todas as classes estavam
uniformes, em fusão.5
7
Ver Marc Ferro, Les sovietes en Russie, coleção Archives.
8
Ver Revue Lignes n° 31, maio 1997.
174
D B
Revolução “prematura”
Após a queda da União Soviética uma tese readquiriu vigor entre os
defensores do marxismo, especialmente nos países anglo-saxônicos (ver as
teses de Gerry Cohen): aquela segundo a qual a revolução teria sido desde
o começo uma aventura condenada porque prematura. Na realidade, esta
tese tem sua origem muito cedo no discurso dos próprios mencheviques
russos e nas análises de Kautsky, desde 1921: muito sangue, lágrimas e
ruínas, escreveu ele então, teriam sido poupados “se os bolcheviques ti-
175
A Q O
9
Vonder Demokratie zur statssklaverei, 1921, citado por Radek em Les voies de la Révolution russe,
EDI, p. 41.
176
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2
Eu tive a chance de escrever minha dissertação de mestrado sobre A noção de crise revolucionária
em Lenin, sob a direção de Henri Lefebvre, em ... 1967-1968!
179
L, P T P
Trotsky fala de Estado operário, “mas este Estado operário, retifica Lenin,
não é completamente operário, eis a questão” (Lenin, Œuvres XXXII,
p. 16). Para apreender sua singularidade, as categorias sociológicas são
menos convenientes do que as categorias propriamente políticas. Sua fór-
mula é, então, mais descritiva e mais complexa, irredutível em todo caso a
um conteúdo social unilateral: este será um Estado operário e camponês
com “deformações burocráticas” e “eis a transição em toda sua realidade”.
As implicações desta visão do político podem ser encontradas em
quase todas as controvérsias importantes da época. No debate sobre os
sindicatos, em que Trotsky defende, em nome do comunismo de guerra,
a militarização dos sindicatos, Lenin sustenta uma posição original (ver
Pierre Broué, Trotsky, Fayard, e também Ernest Mandel). Porque não é
um órgão político de poder, o sindicato não poderia se transformar em
“organização de Estado coercitiva”. Ele se situa no sistema “entre o parti-
do e o Estado”, se “podemos nos exprimir dessa forma” (Lenin. Œuvres
XXXII. p. 12). Nos primeiros anos da revolução não havia restrição ao
direito de greve e o conselho dos comissários chegou a organizar um fun-
do de greve (Marcel Liebman, Le léninisme sous Lénini, Seuil, II, p. 198).
Da mesma forma, a questão nacional é abordada em sua especificidade
política, como questão democrática, fora de todo esquema sociológico
abstrato. É preciso incluir nela o elemento psicológico. Se a menor co-
erção entra nesta questão, ela suja, estraga e reduz a nada o indiscutível
alcance progressivo da centralização.
por Lenin. Para ele, não se trata de devolver, pela paz, a luta de classes
a uma suposta normalidade. A guerra faz parte da luta, e a questão é
apreender a novidade desta forma agônica do conflito para abrir uma
situação revolucionária. Duas visões opostas do mundo, da história, e
da temporalidade política, se traduzem aqui em orientações práticas
contraditórias.
Karl Kautsky é o representante mais prestigioso da posição reformis-
ta clássica, então dominante na social-democracia internacional. Em seu
célebre O caminho do poder, afirma que o objetivo socialista não pode, é
verdade, ser atingido senão por uma revolução; mas “não depende de nós
fazer uma revolução”. O partido se contenta em acompanhar e esclarecer
como pedagogo as lutas dos explorados. Esta tese tem, é certo, sua parte
de verdade. As lutas não se decretam. Elas eclodem: “isto” acontece,
“aquilo” se passa. Mas para Kautsky, o fenômeno objetivo se separa da
subjetividade revolucionária. Se fala de estratégia e de guerra de desgaste,
é com o cuidado de não ter jamais que dar batalha.
Esta ortodoxia de antes de 1914 reivindica a herança de Marx e En-
gels. Em 1851, em um contexto de refluxo revolucionário, este último
definia a revolução como “um fenômeno natural, comandado por leis
físicas”. A consciência de classe aparece, então, como uma espécie de
produto natural do desenvolvimento histórico e do crescimento socioló-
gico do proletariado. É pela fusão tendencial entre a classe e seu partido
que parece se resolver a contradição inextricável entre sua vocação revo-
lucionária e sua sujeição ao fetichismo da mercadoria e ao despotismo
da empresa: “Para a vitória definitiva das proposições enunciadas no
Manifesto, Marx se baseava unicamente no desenvolvimento intelectual
da classe operária que deveria resultar da ação e da discussão comuns”
(Engels. Prefácio de 1890 ao Manifesto). Se sua luta contra a burguesia
“começa com sua própria existência”, o proletariado passa, de fato, “por
diferentes fases de evolução”. Com o desenvolvimento industrial, “a
força dos proletários aumenta e eles ganham mais consciência disso”. A
solução do enigma estratégico se encontra, portanto, na “organização
gradual e espontânea do proletariado em classe”. É assim que “o proleta-
riado de cada país deve, em primeiro lugar, conquistar o poder político,
erigir-se em classe dirigente da nação, tornar-se ele mesmo a nação”.
Entretanto, esta “organização do proletariado em classe, e portanto em
partido político, é incessantemente destruída de novo pela concorrência
dos próprios operários entre si”.
O alento internacionalista
1
Publicado nos Cadernos Em Tempo nº 307, julho 1999. Originalmente publicado no jornal Rouge
nº 1812, em janeito de 1999, por ocasião do 80º aniversário da morte da revolucionária polonesa.
Tradução de José Corrêa Leite.
193
R L: U C S XXI
Socialismo ou barbárie
Em segundo lugar, neste final de um século que foi não somente
dos “extremos” (Eric Hobsbawm), mas também das manifestações mais
brutais da barbárie na história da humanidade, apenas podemos admirar
um pensamento revolucionário como o de Rosa Luxemburg, que soube
recusar a ideologia cômoda e conformista do progresso linear, o fatalismo
otimista e o evolucionismo passivo da social-democracia, a ilusão perigosa
– como fala Walter Benjamin nas suas Teses de 1940 – de que bastaria
“nadar a favor da corrente”, deixar que as “condições objetivas” atuassem.
Ao anunciar, em sua brochura de 1915, A crise da social-democracia
194
M L
Revolução e democracia
Em terceiro lugar, as correntes dominantes do movimento operário
conheceram uma derrota histórica – de um lado, pelo colapso pouco
glorioso do pretenso “socialismo real”, herdeiro de sessenta anos de sta-
linismo, e de outro, pela submissão passiva (ou adesão ativa?) da social-
-democracia às regras neoliberais do jogo capitalista mundial. Frente a
isto, a alternativa representada por Rosa Luxemburg aparece mais do que
nunca pertinente: a de um socialismo ao mesmo tempo autenticamente
revolucionário e radicalmente democrático.
Como militante do movimento operário do Império Czarista – ela
foi fundadora do Partido Social-Democrata da Polônia e da Lituânia, fi-
liado ao Partido Operário Social-Democrata Russo – ela tinha criticado as
tendências, a seu ver muito autoritárias e centralistas, das teses defendidas
por Lenin antes de 1905. Sua crítica coincidia, neste ponto, com aquela
do jovem Trotsky em Nossas tarefas políticas (1904).
Ao mesmo tempo, enquanto dirigente da ala esquerda da social-
-democracia alemã, ela combate a tendência da burocracia (sindical ou
política) e das representações parlamentares à monopolizarem as decisões. A
greve geral russa de 1905 lhe parece um exemplo a ser seguido também na
Alemanha: ela confia mais na iniciativa das bases operárias que nas decisões
sábias dos órgãos dirigentes do movimento operário alemão.
Tomando conhecimento, na prisão, dos acontecimentos de Outubro
de 1917, ela vai imediatamente se solidarizar com os revolucionários
russos. Em sua brochura sobre a Revolução Russa, redigido em 1918
na prisão (e que só seria publicada depois de sua morte, em 1921), ela
196
M L
1
Publicado no Em Tempo nº 296/297, outubro 1997. Tradução de José Corrêa Leite.
200
M L
Guevarismo e zapatismo
O primeiro fio, a primeira tradição é o guevarismo, o marxismo na
sua forma revolucionária latino-americana. O primeiro núcleo do EZLN
era guevarista. É claro, a evolução do movimento o conduziu para muito
longe desta origem, mas a insurreição de janeiro de 1994, bem como o
próprio espírito do Exército Zapatista guarda alguma coisa desta herança:
a importância da luta armada, a ligação orgânica entre os combatentes
e o campesinato, o fuzil como expressão material da desconfiança dos
explorados frente a seus opressores, a disposição a arriscar sua vida pela
emancipação de seus irmãos. Estamos longe da aventura boliviana de
1967, mas perto da ética revolucionária tal como o Che a encarnava.
O segundo fio, o mais direto sem dúvida, é evidentemente a herança
de Emiliano Zapata. É simultaneamente a sublevação dos camponeses e ín-
dios, o Exército do Sul como exército de massas, a luta intransigente contra
os poderosos que não pretende se apoderar do poder, o programa agrário
de redistribuição das terras, a organização comunitária da vida camponesa
(aquilo de Adolfo Gilly chamou “a comuna de Morelos”). Mas é também
Zapata o internacionalista, que saldou, em uma célebre carta de fevereiro de
1918, a Revolução Russa, insistindo sobre “a visível analogia, o paralelismo
evidente, a absoluta paridade” entre aquela e a revolução agrária no México:
“uma e outra são dirigidas contra o que Tolstoi chamava ‘o grande crime’,
contra a infame usurpação da terra, que, sendo propriedade de todos, como
o fogo e o ar, foi monopolizada por alguns poderosos, sustentados pela força
dos exércitos e pela iniquidades das leis”.
“Terra e liberdade” continua a palavra de ordem central dos novos
zapatistas, que são os continuadores de uma revolução interrompida (para
retomar o título do belo livro de Gilly) em 1919, com o assassinato de
Zapata em Chinameca.
Pode ser que o fio mais importante seja a cultura maia dos indígenas
de Chiapas, com sua relação mágica com a natureza, sua solidariedade co-
munitária, sua resistência à modernização neoliberal. O zapatismo faz refe-
rência à esta tradição comunitária do passado, pré-capitalista, pré-moderna,
pré-colombiana. Mariategui falava, não sem exagero, de “comunismo inca”;
pode-se falar, no mesmo espírito, de “comunismo maia”. Isso é romantis-
mo? Pode ser. Mas como quebrar, sem o martelo encantado do romantismo
revolucionário, as barras da jaula de aço – para retomar a expressão de Max
Weber – onde nos fechou a modernidade capitalista?
O EZLN é o herdeiro de cinco séculos de resistência indígena à
conquista, à “civilização” e à “modernidade”. Não é por acaso que a in-
surreição zapatista tenha sido originalmente planejada para 1992, a data
do quinto centenário da conquista, e se, neste momento, uma multidão
de indígenas ocupou San Cristóbal de las Casas, derrubando a estátua
do conquistador Diego de Mazariegos, símbolo odioso da espoliação dos
índios e de sua sujeição.
O último fio, o mais recente, que se juntou aos outros após janeiro
de 1994, é o das exigências democráticas da sociedade civil mexicana,
desta imensa rede de sindicatos, associações de bairros, de mulheres, de
estudantes, de ecologistas, de partidos de esquerda – cardenistas, trots-
quistas, anarquistas e muitos outros istas – de associações de pessoas en-
dividadas, de camponeses, de comunidades indígenas, que se ergueram,
por todas as partes do México, para apoiar as demandas dos zapatistas:
democracia, dignidade, justiça.
Pode-se criticar muitas coisas nos zapatistas – eu não compreendo,
apenas para dar um exemplo, porque eles não chamaram o voto em
Cárdenas nas últimas eleições – mas deve-se reconhecer-lhes este mérito
enorme: neste fim de século moroso, de neoliberalismo triunfante, de
cinismo galopante, de política politiqueira, de mercantilismo rasteiro,
eles conseguiram fazer as pessoas sonharem, em Chiapas, no México,
e um pouco em todo o mundo. Eles são os reencantadores do mundo.
202
A crise que daí resulta é mais profunda e mais duradoura que as crises
econômicas clássicas. Ela anuncia uma verdadeira crise de civilização, isto
é, uma crise que tem a ver com laços e medidas comuns entre os seres
humanos. A amplitude do desemprego e a exclusão em escala planetária,
cada vez mais complexa e socializada, se torna irredutível à “miserável”
medida de trabalho abstrato, avaliado em unidades de tempo homogêneas.
A acumulação de desastres econômicos mostram que se torna impossível
reduzir, a longo prazo, a energia do ecossistema e, a curto prazo, da lógica
mercantil. As forças produtivas sacudidas pela nova revolução tecnológica,
não se mantém mais no limite de um imperativo de lucro exclusivo.
O mundo se transforma. Inclusive nos países ricos, aqueles que,
ainda ontem, sonhavam com o progresso perpétuo, com uma escada
em que se sobe e jamais se desce, temem que o amanhã seja pior que o
hoje, para eles e para seus filhos.
“A globalização moderna, o neoliberalismo como sistema mundial,
deve ser entendido como uma nova guerra de conquista de territórios. O fim
da terceira guerra mundial ou ‘guerra fria’ não significa que o mundo haja
superado a bipolaridade, e se encontre estável sob a hegemonia do vencedor”.
Guerra e política
Marcos vai mais longe: “a quarta guerra mundial começou”: uma
“guerra mundial totalmente total”. Que o sistema está criticamente instá-
vel, minado de conflitos, é um fato: dos Bálcãs ao norte da Índia, se estende
uma falha convulsiva de confrontações armadas endêmicas. Quanto a uma
“quarta guerra mundial”, tudo depende do que se entenda por guerra. As
formas da guerra não tem cessado de transformar-se em função das relações
sociais, da estrutura dos Estados, da organização do mundo. A Revolução
Francesa e o surgimento dos Estados-nações marcaram a passagem das
guerras dinásticas às guerras nacionais, em que se enfrentam não simples-
mente exércitos, mas povos. A era do imperialismo moderno foi também
a da escalada até a guerra total, ilustrada por duas guerras mundiais e por
meios de destruição cada vez mais massivos e indiscriminados. A bomba
de neutrons, cujo princípio consiste em aniquilar os humanos preservando
seus bens, simboliza às mil maravilhas o espírito do capital.
Depois do equilíbrio da guerra fria e do terror nuclear (que não
impediu a proliferação de guerras “quentes” bárbaras e de guerras civis
implacáveis), a desaparição da União Soviética inauguraria, pois, um novo
giro geoestratégico, ilustrado pela nova escala de intensidade dos conflitos
imaginados no Pentágono, pela Guerra do Golfo, pelas expedições neoco-
loniais “caritativas”. Lucien Pourier, um dos teóricos da dissuasão francesa,
204
D B
Reabilitar a política
Em um momento em que, sob o efeito da mundialização, a corres-
pondência entre um território, um mercado, um Estado, se desfaz, onde
os espaços políticos, sociais, jurídicos, ecológicos, não coincidem mais, o
princípio republicano permite pensar uma escala móvel de soberania, uma
nova distribuição de poderes e níveis articulados de decisão. “Nesta nova
guerra, a política, enquanto motor do Estado-nação não existe mais. Ela
serve somente para gerenciar a economia e os homens políticos não são
mais que gerentes de empresa”.
A retórica da mundialização é, com efeito, uma retórica da resignação,
um empreendimento de despolitização, onde “a parte não fatal do futuro”
desaparece entre a fatalidade das “leis” econômicas e os consolos do mora-
lismo humanitário. A submissão aos “estímulos” se impõe sobre a vontade
de mudar o mundo. O interesse na juventude pela figura de Che, está em
relação como sentimento confuso que ele encarna: a antítese absoluta de sua
renúncia, de suas abdicações, de seus abandonos, do que é propriamente
humano do homem. A economia e a moeda não são fetiches autômatos
mas expressão de relações sociais que inventamos. Suas pretensas “leis”
aparecem hoje em todo seu absurdo.
Por que, quando produzimos mais em menos tempo, a miséria e a pe-
núria se desenvolvem em lugar de retroceder? Por que a Bolsa de Nova York
enlouquece quando o emprego aumenta? Porque a técnica produz a exclusão
em lugar de liberar tempo para viver? Por que se pretende que o trabalho
desapareça quando há tantas necessidades por satisfazer, por transformar, por
inventar? Estas perguntas não são econômicas. Elas são políticas. Não há nada
mais urgente que reabilitar a política – não a dos políticos que são homens
duplos, com dupla linguagem, vida dupla, com tanta duplicidade, como a
mercadoria à que eles servem – mas a política profana como autodetermina-
ção coletiva de um mundo sem deuses e fetiches.
Questionam-nos, dizendo que não temos um modelo. Mas o futuro
não se desenha em planos. É inventado no presente. A utopia concreta
repousa incansavelmente no chão das resistências e lutas cotidianas. O
colapso dos regimes burocráticos, longe de deixar-nos órfãos de modelos,
abre os caminhos para o futuro.
207
M E P M
O internacionalismo a se reinventar
A insistência metafórica de Marcos em uma estratégia de resistência
mais que de conquista, se inscreve nesta situação inédita: “Se usas capuz.
De todos os tamanhos, de diferentes cores, de formas variadas. Seu único
ponto em comum: uma vontade de resistência à nova ordem mundial”.
Entretanto, esta resistência multicor e polimorfa, pode fazer de conta que
ignora o poder. O poder não a ignora. Atua, manobra, reforma, toma
iniciativas. A guerra de desgaste avança para a guerra de movimento, a
construção paciente de uma hegemonia sobre a tentação impaciente do
assalto decisivo, mas a resistência se alimenta, necessariamente, de uma
esperança de contra-ofensiva e de derrubada da ordem estabelecida.
“É urgente falar da megapolítica. A megapolítica engloba políticas
nacionais e as une a um centro que tem interesses mundiais e como
209
M E P M
9
Ibid., p. 242.
10
Ibid., p. 242.
11
Guy Debord, prefácio à quarta edição italiana de A sociedade do Espetáculo [Incluído na edição
brasileira].
216
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M L
7
J. Habermas, Ibid., p. 373.
8
J. Habermas, Théorie de l’agir communicationnel, vol. 2, p. 376
9
E também de Marx. Num artigo recente, Habermas caracteriza o pensamento do jovem Marx
como “socialismo romântico”, na medida que “a idéia de uma livre associação dos produtores sempre
foi carregada de imagens nostálgicas de certos tipos de comunidade – a família, a vizinhança e a
guilda – que encontramos no mundo dos camponeses e artesões, e que estavam exatamente sendo
derrubados com a emergência violenta da sociedade competitiva, sua desaparição sendo vivida como
uma perda”. Cf. J. Habermas, “What does socialism mean today? The rectifying revolution and
the need for new thinking in the left”, New Left Review, n. 183, setembro/outubro, 1990, p. 15
10
J. Habermas, Ibid., p. 335. Cf. p. 351 “a partir do momento em que devemos considerar a bu-
rocratização como um elemento normal do processo de modernização, coloca-se a questão: como
definir as variantes às quais se refere a tese weberiana da perda de liberdade?”
220
M L
trópole colonial, de uma sociedade tribal. Na sua visão dualista existe uma
total exterioridade entre os sistemas e o mundo vivido, e seria suficiente
impedir a “intrusão” dos primeiros no segundo para que as sociedades
modernas pudessem escapar à “patologia” social.11
A utopia à qual Habermas aspira é, na sua própria confissão, a
utopia burguesa da razão, própria à idade das luzes, na qual “as esferas
de ação formalmente organizadas do burguês (a economia e o aparelho
do Estado) constituem as bases para o mundo vivido pós-tradicional
de um homem (esfera privada) e de um cidadão (espaço público)”. Ele
reconhece que essa imagem idílica é “constantemente desmentida pelas
realidade da vida burguesa”, mas não acredita menos nas “potenciali-
dades razoáveis do agir orientado para a intercompreensão”, presentes
na “compreensão de si de uma burguesia européia marcada pelo huma-
nismo”.12 Poderíamos resumir o projeto político-cultural de Habermas
como uma tentativa de tornar a sociedade burguesa mais fiel à sua
própria utopia racionalista.
Contrariamente ao que Weber pensava – muito mais pessimista na
sua visão de um universo social, preso na “gaiola de aço” da Zweckra-
tionalität – Habermas parece convencido de que a racionalidade estra-
tégica ou funcional pode permanecer dentro dos limites de sua esfera
sistêmica – a economia de mercado e o Estado burocrático – sem neces-
sariamente “colonizar” o mundo vivido. Dissociando-se de Weber, Ha-
bermas afasta-se também de Marx, para quem a dominação generalizada
do valor de troca, a submissão de todos as relações sociais ao pagamento
direto em moeda, a dissolução de todos os sentimentos humanos nas
“águas geladas do cálculo egoísta” são conseqüências necessárias e inevi-
táveis da economia capitalista de mercado.
De fato, a crítica de Habermas dirige-se ao mesmo tempo a Weber,
a Lukács e à Escola de Frankfurt, já que esses últimos estão só retomando
por conta própria o diagnóstico weberiano, radicalizando-o num contex-
to marxista. Se, como Weber, acredita-se que os sistemas fundados sobre a
Zweckrationalität são voltados à imobilização inexorável, convertendo-se
numa gaiola de aço, “só há um passo da teoria lukacsiana da reificação
até a crítica da razão instrumental”, isto é, a uma “conversão diabólica”
(o termo é de Habermas) da racionalidade com relação a fins em razão
puramente instrumental.13
11
J. Habermas, Ibid., p. 391.
12
J. Habermas, Ibid., p.362.
13
J. Habermas, Théorie de l’agir communicationnel, vol. 1, p.366. Ele acrescenta em conclusão a
esse argumento: “Assim, a crítica da razão instrumental sucumbe ao mesmo defeito que a teoria
weberiana”.
221
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D M E
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cação que encontra sua expressão mais direta na dominação total do valor
de troca das mercadorias e na monetarização das relações sociais.
Como é muito bem demonstrado por A. Mitzman, seguindo a lógica
dessa racionalização mutilada, rejeita-se necessariamente – qualificando-o
de “sentimental” ou “freio ao progresso” – “qualquer critério incompatível
com a perseguição do lucro máximo, tal como o bem-estar dos operários,
o meio ambiente planetário ou o futuro humano”.
Hoje, o processo racional de “perseguição do lucro máximo” alcan-
çou a etapa da globalização planetária, sob a égide de instituições como
o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização do
Comércio ou o G-7. Infelizmente, a Europa neoliberal de Maastricht
não escapa a tal lógica...
Os primeiros críticos desse modelo de civilização capitalista/industrial
foram os românticos: desde a segunda metade do século XVIII (Rousse-
au) até nossos dias (o historiador inglês E. P. Thompson), o romantismo
protestou contra a quantificação, a mecanização e o desencantamento do
mundo, em nome de valores culturais, sociais ou éticos pré-capitalistas.
A poluição das grandes cidades e os estragos provocados no meio am-
biente pelo maquinismo são temas recorrentes da cultura romântica. Para
citar um só exemplo: em Tempos difíceis – um dos romances preferidos de Karl
Marx – Charles Dickens descreve a cidade industrial (imaginária) de Coketo-
wn como uma “vilã cidadela” onde “o tijolo opunha uma resistência tão gran-
de à entrada da natureza quanto à saída do ar e dos gases mortíferos”. As altas
chaminés, “lançando no ar seus turbilhões envenenados”, escondiam o céu
e o sol que, “perpetuamente, estava em eclipse, através da vidraça repleta de
fumaça”. Os que tinham “sede de um pouco de ar puro”, que desejavam ver
uma paisagem verdejante, árvores, pássaros, a abóbada brilhante do céu azul,
eram obrigados a deslocar-se alguns quilômetros por estrada de ferro e passear
nos campos. Mas, mesmo aí, não estavam em paz: poços vazios, abandonados
depois de ter sido extraído todo o ferro e carvão da terra, escondiam-se na erva
como outras tantas armadilhas mortais.3 Se substituirmos os “poços vazios”
por “dejetos tóxicos” (ou nucleares), o quadro não sofreu grandes alterações
desde 1854, data da publicação desse romance...
No decorrer da história do romantismo, a nostalgia romântica do para-
íso perdido e das comunidades orgânicas pré-modernas assumiu formas, ora
passadistas e retrógradas, ora utópicas e revolucionárias. Neste último caso,
já não se trata de um retorno ao passado, mas de um desvio pelo passado em
direção ao futuro: para Pierre Leroux, William Morris ou Herbert Marcuse
3
C. Dickens, Temps difficiles,Paris, Gallimard, 1985, p.101,233.
229
D M E
6
K. Marx, Le Capital, trad. Joseph Roy, Paris, Éditions sociales, tomo 1, p. 360-361.
7
F. Engels, La Dialectique de la nature, Paris, Éditions sociales, 1968, p. 180-181.
232
M L
8
D. Bensaïd, Marx l’intempestif, Paris, Fayard, 1995, p. 347.
9
W. Benjamin, Sens unique, Paris Lettres-Maurice Nadau, 1978, p. 243; e “Thèses sur la philo-
sophie de I’histoire”, in L”Homme, le langage et la culture, Paris, Denoël, 1971, p.190. Podemos
também mencionar o socialista austríaco, Julius Dickmann, autor de um ensaio pioneiro publicado
em 1933 na revista La critique sociale: segundo ele, o socialismo seria o resultado não de um “rápido
desenvolvimento das forças produtivas”, mas antes uma necessidade imposta pela “diminuição
das reservas de recursos naturais” dilapidados pelo capital. O desenvolvimento “irrefletido” das
forças produtivas pelo capitalismo solapa as próprias condições de existência do gênero humano
(“La véritable limite de la production capitaliste”, in La critique sociale nº 9, setembro de 1933.
233
D M E
12
M. Mies “Liberacion del consumo o politizacion de la vida cotidiana”, in Mientras Tanto nº 48,
Barcelona, 1992, p.73.
236
M L
país com custos mais baixos, isto é, no país com os salários mais baixos”.13
Uma formulação cínica que revela muito melhor a lógica do capital global
do que todos os discursos lenificantes sobre o “desenvolvimento” produzi-
dos pelas instituições financeiras internacionais.
2. De qualquer forma, a continuação do “progresso” capitalista e a
expansão da civilização baseada na economia de mercado – inclusive sob
essa forma brutalmente desigualitária – ameaça diretamente, a curto ou
médio prazo (qualquer previsão seria arriscada), a própria sobrevivência
da espécie humana. A salvaguarda do meio ambiente natural é, portanto
um imperativo humanista.
A racionalidade canhestra do mercado capitalista, com seu cálculo
imediatista das perdas e lucros, é intrinsecamente contraditória a uma
racionalidade ecológica que leva em consideração a temporalidade longa
dos ciclos naturais.
Contra o fetichismo da mercadoria e autonomização reificada da eco-
nomia pelo neoliberalismo, o desafio do futuro é, para os ecossocialistas, a
aplicação de uma “economia moral” no sentido que E. P. Thompson dava
a essa expressão. Isto é, uma política econômica baseada em critérios não-
-monetários e extra-econômicos: por outras palavras, a “reintricação” do
econômico no ecológico, no social e no político.14
As reformas parciais são totalmente insuficientes: deve-se substituir
a microrracionalidade do lucro por uma macrorracionalidade social e
ecológica, o que exige uma verdadeira mudança de civilização.15 Isso não é
possível sem uma profunda reorientação tecnológica que vise a substituição
das fontes atuais de energia por outras fontes, não-poluentes e renováveis,
tais como a energia solar.16 A primeira questão que pode ser formulada é,
portanto, a do controle sobre os meios de produção e, antes de tudo, sobre
as decisões de investimento e de mutação tecnológica.
Torna-se necessária uma reorganização do conjunto do modo de pro-
dução e de consumo, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista:
as necessidades reais da população (não necessariamente “solvíveis”) e a sal-
vaguarda
13 do meio
Cf. L. Summers, “Let ambiente. Por outras
them eat pollution”, in The palavras,
Economist, 8uma economia
de fevereiro de transição
de 1992. Um outro
exemplo impressionante: em 1995, em uma reunião em Genebra, um Grupo de Trabalho do Comitê
Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas discutiu sobre um relatório em que era formulada a
questão de saber se era “rentável” (cost-effective) tomar medidas contra o efeito estufa, considerando que
esses efeitos far-se-iam sentir, sobretudo, nos países pobres. Segundo esses especialistas, o custo de uma
vida em um país rico é de US$ 100 mil... (Citado em Derek Lovejoy, “Limits to Growth?”, in Science
and Society, special issue “Marxism and Ecology”, Fall, 1996, p. 274).
14
Cf. D. Bensaïd, Marx l’intempestif, p. 385-386,396; e Jorge Reichman, Problemas com los frenos
de emergencia?, Madri, Editorial Revolucion, 1991, p.15.
15
Ver a esse propósito o notável ensaio de Jorge Reichman, “El socialismo puede llegar solo en
bicicleta”, in Papeles de la Foundation de Investigaciones Marxistas, Madri, nº 6, 1996.
16
Alguns marxistas já estão sonhando com um “comunismo solar”: ver David Schwartzman, “Solar
Communism”, in Science and Society, Special Issue “ Marxism and Ecology”, Fall, 1996.
237
D M E
18
J. Reichman, De la economía a la ecología, Madri, Editorial Trotta, 1995, p. 82-85.
19
Ver Pierre Rousset, “Convergence de combats. L’écologique et le social”, in Rouge, 16 de maio
de 1996, p.8-9.
20
J. Riechman, “El socialismo puede llegar solo en bicicleta”, loc. cit.,p.57.
239
240
241
Há uma tese cada vez mais em voga de que o que caracteriza a nova
etapa do capitalismo é o declínio do papel do trabalho. Como você vê
esta posição?
Há aí dois aspectos. Um primeiro é econômico, com o aumento
da composição orgânica – o peso muito maior da ciência, da tecnolo-
gia, das máquinas, da robotização, da informatização – e a diminuição
progressiva do peso do capital variável, do trabalho assalariado. É um
processo que já vem de algum tempo, com a chamada terceira revolução
industrial. Mas deduzir disso conseqüências sociológicas como aquelas
apontadas por exemplo por André Gorz – que a classe operária não tem
243
M: R U
são isso, mas tem que ser mais, tem que estimular relações de tipo co-
munitário, relações solidárias.
R M
I M L
dessas oposições em direção a uma nova cultura, uma nova unidade com a
natureza, uma nova comunidade. Essas formas novas distinguem-se radi-
calmente das manifestações pré-capitalistas por integrarem determinados
momentos essenciais da modernidade” (p.324).
Em outras palavras, não se trata de querer restaurar um impossível
passado pré-capitalista, mas de instaurar um futuro novo em que as
conquistas da humanidade, perdidas no processo de modernização – “co-
munidade, gratuidade, doação, harmonia com a natureza, trabalho como
arte, encantamento da vida” (p.325) – sejam preservadas. O que pressu-
põe o fim do sistema econômico fundado no valor de troca, no lucro e
no mercado. É esta a perspectiva de um dos mais instigantes românticos
revolucionários abordados no livro, Herbert Marcuse.
Este livro belo e generoso, ao resgatar a visão de mundo romântica,
traz para o centro do debate aquilo que tanto nos falta hoje em dia – a
possibilidade de imaginar e de lembrar uma realidade outra que não a
do lucro e do mercado, com toda a sua terrível seqüência de desastres.
Revolta e Melancolia é parafraseando Habermas, um maravilhoso oásis
utópico brilhando no horizonte do deserto de banalidade e perplexidade
em que estamos perdidos.
260
Concepção de história
A concepção de história em Marx é atravessada por uma contradição
não resolvida ente o modelo científico naturalista – que prediz o fim do
capitalismo “com a inelutabilidade de um processo natural” – e a lógica
dialética aberta. Enquanto certos textos de Marx – sobre a missão civiliza-
dora do capitalismo ou sobre o colonialismo inglês na Índia – não estão
longe de cair nas armadilhas da ideologia “progressista”, outros (como a
introdução dos Grundrisse) esboçam uma ruptura profunda com a visão
linear e homogênea da história, e com a noção de progresso “em sua forma
abstrata habitual”. Graças a noções como o contratempo (zeitwidrig) e a
discordância dos tempos, Marx inaugurou uma representação não linear
do desenvolvimento histórico.
Enquanto os epígonos – dos “ortodoxos” da Segunda Internacional até
os “marxistas analíticos” como Jon Elster ou John Roemer – não fazem mais
do que “desmontar e remontar tristemente o cansativo Meccano das forças
e das relações, das infra-estruturas e das superestruturas”, a visão marxiana
de uma história aberta inspirou Trotsky, na teoria do desenvolvimento
desigual e combinado (e na estratégia da revolução permanente), e Ernst
Bloch, em sua análise da não-contemporaneidade das classes e das culturas
na Alemanha de Weimar.
Cegos pelo primado unilateral das forças produtivas, as leituras do
progresso – das quais os “marxistas analíticos” são só a última encarnação
– apenas o concebem em termos de avanços e de recuos sobre um eixo
cronológico; só imaginam o desastre – como o fascismo – sob a forma do
retorno a um passado acabado ou suas sobrevivências residuais, “em lugar
de alertar contra as formas inéditas, originais e perfeitamente contemporâ-
neas de uma barbárie que é sempre aquela de uma presente particular, uma
barbárie de nosso tempo”.
O espaço da estratégia
O que as leituras positivistas de Marx não compreendem é que, dife-
rentemente da predição física, a antecipação histórica se exprime em um
projeto estratégico. Para um pensamento estratégico, a revolução é por
essência intempestiva e “prematura”. Marx não julga a revolta dos oprimi-
dos em termos de “correspondência” entre forças e relações de produção:
ele está “sem hesitação nem reserva do lado dos rebelados na Revolta dos
Camponeses, dos niveladores na Revolução Inglesa, dos iguais na Revolu-
ção Francesa, dos comunardos a serem esmagados pelos conservadores”.
Daniel Bensaïd avança aqui uma das mais belas iluminações profa-
nas: a distinção entre o oráculo e o profeta. O marxismo não é predição
265
M, A C
Bensaïd nos mostra, na obra de Marx, o dilema não resolvido, mas fecun-
do, entre a “ciência inglesa” e a “ciência alemã”, positivismo empirista e/ou
racionalista e concepção dialética do conhecimento. Fascinado pelo sucesso
das ciências naturais, Marx foi freqüentemente enganado por seu modelo.
Mas a tendência principal que inspira sua crítica da economia política é
aquela de um “outro saber” que associa teoria e crítica, e que resolve a an-
tinomia da necessidade e da liberdade no aleatória da luta.
Marx é, portanto, herdeiro da “ciência alemã” de Hegel e de Goethe,
rica em profundidade filosófica e em criatividade metafórica, que encontra
sua origem no desafio romântico face ao surgimento da razão instrumental,
e a ascenção da “água rala de um racionalismo gasto e sem vida” (Hegel).
Mas não se trata apenas da Alemanha. Assiste-se no curso do século
XIX a uma subversão radical do fundamento epistemológico. De Newton
a Marx (passando por Carnot e Darwin), escreve Bensaïd em uma fórmula
impactante, assistimos “à grande passagem dos relógios para as nuvens”, isto
é, do determinismo mecânico e linear para uma nova lógica autenticamente
multidimensional e dinâmica, aquela dos tempos partidos e em desacordo,
de assimetrias e de probabilidades, de incertezas e de escolhas. O tempo
histórico reencontra seus ritmos e suas articulações, “o climamen cheio de
novidade e o kairos pleno de oportunidades estratégicas”.
A principal crítica que eu faria à parte III (sobre a ciência em Marx)
é a ausência de relação com a parte II (sobre a luta de classes). A grande
questão – no centro da História e consciência de classe de Lukács e também
das Teorias da mais-valia de Marx – da relação entre posição de classe e
conhecimento da sociedade não é tratada. Confrontado com a célebre
passagem de O Capital onde Marx se refere à sua crítica da economia po-
lítica como representante do ponto de vista do proletariado, nosso autor
se limita a manifestar suas reservas: “A imagem de uma classe representada
pela crítica levanta, de fato, mais questões do que resolve”.
De outro lado – mas as duas questões estão estreitamente ligadas na
medida em que a luta de classes atravessa as ciências sociais e não (com pou-
cas exceções) as ciências naturais – ele se deixa levar pela miragem de um
“novo paradigma holista de saber científico” (a partir das teorias do sistemas
do caos), que tornaria agora “fora de moda” a distinção entre ciências da
natureza e da sociedade. O último capítulo desta parte, curiosamente inti-
tulado Os tormentos da matéria, é uma apaixonante discussão da ecologia
como ciência e como política.
Reconhecendo que seria abusivo tanto exonerar Marx das ilusões pro-
metéicas de seu tempo quanto transformá-lo num defensor da industriali-
zação desenfreada, Daniel Bensaïd nos propõe um procedimento bem mais
267
M, A C
Ecologia política
A principal limitação deste capítulo me parece ser a tendência – que
encontramos também em muitos ecologistas políticos – de abordar o pro-
blema prioritariamente sob o ângulo do cálculo dos fluxos energéticos e da
penúria de recursos naturais. Neste contexto, não é surpreendente que nos-
so autor recuse as “ideologias crepusculares” e chegue à conclusão otimista
que nós não estamos ameaçados por uma penúria absoluta de energia, pois
“é sempre possível que a humanidade descubra outras fontes de energia”.
Que seja. Mas a ameaça de catástrofe ecológica se situa em outro nível,
bem mais perigoso e iminente: a poluição (isto é, o envenenamento) do ar,
da terra e da água, o aquecimento do planeta, a destruição da camada de
ozônio. Não é a “penúria”, mas a própria sobrevivência da espécie humana
que está em jogo!
Em compensação, Daniel Bensaïd dá uma contribuição notável para
uma futura e necessária convergência entre marxismo e ecologia política,
mostrando que ambos se confrontam com um inimigo comum: o fetichis-
mo mercantil, o egoísmo de vista curta do capital e da burocracia. Ambos
colocam a necessidade de reentrelaçar a economia em uma totalidade de
determinações ecológicas e sociais. Enfim, ambos exigem uma transforma-
ção do próprio modo de produção e a abolição da ditadura dos critérios
mercantis.
Esta convergência implica que a ecologia renuncie às tentações do
naturalismo anti-humanista e abandone sua pretensão de substituir ou
absorver a crítica da economia política. Mas ela implica também que
o marxismo se desvencilhe do produtivismo, substituindo o esquema
mecanicista da oposição entre o desenvolvimento das forças produtivas
e das relações de produção que o entrava pela idéia, bem mais fecunda,
de “uma transformação das forças potencialmente produtivas e forças
efetivamente destrutivas”.
Moral da história: contrariamente aos rumores maldosos, Marx não
está esmagado sob os escombros do Muro de Berlim. Graças a espíritos
insubmissos como Daniel Bensaïd, a aventura continua...
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Do desequilíbrio do mundo
Eu estou longe de partilhar de todos os posicionamentos do autor.
Por exemplo, sua admiração pela justiça dos jacobinos; ou pelo leninis-
mo de antes de 1905 (Que fazer?), baseado na idéia, bem discutível,
que o socialismo é “introduzido de fora” do proletariado; ou ainda pelo
“antimoralismo” de Trotsky em Sua moral e a nossa, que rejeita como
“tímido pseudônimo filosófico de Deus” toda moral “situada acima das
classes”! Eu poderia multiplicar os exemplos. Mas como não reconhecer
a força e a inteligência do conjunto?
A primeira parte do livro é um diagnóstico lúcido do “desequilíbrio
do mundo” que resulta da globalização capitalista. Ele constata, inicial-
1
Publicado no Em Tempo nº 301, junho de 1998. Tradução de José Corrêa Leite.
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E M A R
Da profecia na resistência
Reencontramos a referência ao Velho Testamento na última parte
do livro, “A revolução em seus labirintos”, sem dúvida a mais inovadora
e a mais “inspirada” da obra. O profeta bíblico, com já tinha sugerido
Max Weber em seu trabalho sobre o judaísmo antigo, não procede por
ritos mágicos, mas convida a agir. Contrário à postura de expectativa
apocalíptica e aos oráculos de um destino inexorável, a profecia é uma
antecipação condicional, que procura conjurar o pior, mantendo aberto
o leque de possíveis.
270
M L