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Nº 160 - Junho 2019 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

KARINA FREITAS

A HISTÓRIA EM ESPIRAL
Sobre o que se conversa – e o que se preserva – quando
obras de escritoras negras brasileiras entram na roda

LIVROS INFANTIS DE ELVIRA VIGNA | VERONICA STIGGER | MARLON JAMES | IAN MCEWAN
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

E
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
sta edição do Pernambuco está centrada mais do que um “Game of thrones africano”, pensa sujeitos
em outras formas de leitura. Contra a negros como agentes de futuro. Paralelo a isso, há Vice-governadora
Luciana Barbosa de Oliveira Santos
proliferação de cursos de “escrita criativa”, também um ensaio que aborda uma crítica a estruturas
importa, num país cuja Educação sofre e formas particulares de ser na modernidade a partir do Secretário da Casa Civil
Nilton da Mota Silveira Filho
ataques calcados em uma visão colonialista, trabalho da escritora uruguaia Armonía Somers.
ler de outras formas. Na matéria de capa, Noutra via das formas de ler está o texto de Veronica COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
Fernanda Miranda reúne, numa leitura em roda, 8 dos Stigger sobre os bastidores de seu livro Sombro ermo turvo. Presidente
11 romances lançados por mulheres negras de 1859 Jogando com a própria subjetividade, Stigger nos lembra Ricardo Leitão
a 2006. O que significa ler em roda? Significa perceber a que a leitura deve se pautar pela materialidade do texto. Diretor de Produção e Edição
importância do gênero romance para o povo negro; Propondo debates, a entrevista de Angela Grillo toca Ricardo Melo
significa notar espécie de “passagem de bastão” entre em ponto delicado: a questão da negritude em Mário Diretor Administrativo e Financeiro
as autoras, nas quais elas, em uma espiral entretempos, de Andrade. A relação do modernista com a própria Bráulio Meneses
constroem juntas uma representação que interpela de negritude sempre foi discutida. A partir da descoberta
forma contundente um país que atualiza suas opressões. de manuscrito até então inédito dele, discute-se como o
A força delas lançou sementes: de 2006 a 2019, já são escritor se via, seu método de pesquisa e assuntos afins.
17 romances escritos por mulheres negras. As imagens Três textos operam outras provocações: sobre Ian
Uma publicação da Cepe Editora
criadas por Karina Freitas trazem a ideia de unidade entre McEwan, há perspectiva que parte da ficção científica Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
esses discursos, possibilitada pela tecnologia da roda. sobre o futuro; nos 100 anos de Ferlinghetti, a literatura e Pernambuco – CEP: 50100-140
Dialoga com isso o trecho inédito de Pensamento feminista a vida literária como propositores de insurgência social; e Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
negro, clássico escrito por Patricia Hill Collins que chega um poema de Brecht traduzido por André Vallias, no qual
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
ao Brasil pela Boitempo. Também podemos ver um podemos ver o clima de extrema-direita no entreguerras. Luiz Arrais
diálogo com o texto sobre o 1° volume de uma trilogia
EDITOR
de fantasia lançada no exterior por Marlon James que, Uma boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITORES ASSISTENTES
Carol Almeida e Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Hana Luzia, Filipe Aca, Janio Santos e Luísa Vasconcelos
André Vallias, poeta, Fernanda Miranda, Karina Freitas, TRATAMENTO DE IMAGEM
designer, tradutor professora, doutora em designer Agelson Soares
e produtor de mídia Literatura (USP), autora REVISÃO
interativa, foi curador de Carolina Maria Maria Helena Pôrto
da exposição Transfutur de Jesus: literatura e COLUNISTAS
(Kassel, Alemanha) cidade em dissenso Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Ana Rüsche, escritora e doutora em Letras (USP), autora de A telepatia são os outros (no prelo); Bernardo Brayner, escritor e ensaísta, e Sóstenes Fernandes
autor de Nunca vi as margens do Rio Ybbs; Edma de Góis, pós-doutoranda em Estudos de Linguagens (Uneb); Gustavo Silveira Ribeiro, MARKETING E VENDAS
professor (UFMG), co-organizador de Toda a orfandade do mundo; Laura Erber, poeta, editora e professora (Unirio), autora de Tarcísio Pereira, Rafael Chagas e Rosana Galvão
A retornada ; Marcelo Lotufo, editor, tradutor e doutor em Literatura Comparada (Brown University); Priscilla Campos, doutoranda E-mail: marketing@cepe.com.br
em literatura hispano-americana (USP); Veronica Stigger, escritora, autora de Os anões; Virginia Siqueira Starling, tradutora e jornalista Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

BASTIDORES

HANA LUZIA

mais do que as formigas, que iam em fila de uma


jaula para outra.
15. Quando o Eduardo visitou o Zoológico do
Bronx, havia, dentro da loja de lembrancinhas,
um elefante preso com correntes pelos pés. Assim
que ele viu o elefante, este o encarou. Tinha o olhar
mais triste do mundo.
16. No dia anterior à neve de 1984, fui com a minha
família a Canoas para comprar um filhote de cocker
spaniel. Ele viveu 12 anos conosco e se chamava
Nero. Sua pelagem preta e branca lembrava a do
boi abatido pelo Eduardo.
17. A música que sempre costumava ouvir quando
me dedicava a um novo projeto era Clandestino, de
Manu Chao. Agora, escuto Kátia Flávia, de Fausto
Fawcett. Quando não quero trabalhar com música,
ouço, bem baixinho, a Suite bergamasque, de Debussy.
18. Nunca liguei para o telefone dos anúncios
de conserto de gaitas espalhados por Porto Alegre.
Nunca tive uma gaita. Nunca fiz um aborto.
19. Nenhum coração é verdade.
20. Há sempre alguém rezando nos meus livros.
21. Quando fiz a primeira comunhão, a hóstia
grudou no céu da minha boca. Achei melhor não
mexer. Assim, ela ali ficou por semanas.
22. Nunca tivemos tupperware em casa. Só potes
de vidro. Tampouco tínhamos margarina. Só man-
teiga. Como nunca consegui espalhar a manteiga
dura no pão de forma, meus sanduíches ficavam
sempre esfarelados.
23. Não sei quem são as pessoas que estão debaixo
da caixa. Nunca as vi. Talvez as tenha inventado.
24. Joel, o herói, nunca mais foi visto e Veronica
Stigger continua desaparecida.
25. Quando conheci o Eduardo, ele dirigia uma
Parati vermelha, embora ainda não tivesse 18 anos.
Ele tentou me ensinar a dirigir, mas desistiu quando

Agudo
perguntei, guiando a 60 quilômetros por hora, qual
Veronica Stigger era mesmo o pedal do freio.
26. As poucas aulas de direção foram realizadas
1. Levei seis anos, quatro meses e um dia para na praia. Mas nunca entrei com o carro na areia.

rolante
escrever Sombrio ermo turvo. Quando digitei a última 27. Num poema, João Cabral de Melo Neto conta
linha do último texto do livro, nevava em São Paulo. que, um dia, Clarice Lispector e uns amigos troca-
2. O Eduardo e minha irmã são, respectivamente, vam histórias de morte quando foram interrompidos
meus maiores muso e musa inspiradores. Minha por outros amigos que voltavam eufóricos do fute-

espumoso
irmã se chama Helena, mas, desde pequena, é, para bol. Assim que estes últimos finalmente silenciaram,
todos nós, Lena. Foi ela quem me contou a história ouviu-se apenas a voz de Clarice: “Vamos voltar a
da suruba na cozinha. falar de morte?”.
3. Por via das dúvidas, nunca bebi o sangue da 28. Outro dia, minha irmã viu Pedro e os três
minha irmã. Mas já bebi sangue de porco. sujeitos escondidos debaixo da caixa. “Um deles

Sobre um conjunto de ficções 4. Eu, o Eduardo e minha amiga de infância as-


sumimos nossa antiga relação a três e seguimos
era uma mulher”, me confidenciou ela. “Isso não
é um bom sinal”, pensei.

que fazem rir e aterrorizam


tocando o bar juntos. Este só não fica do outro lado 29. Uma semana depois da morte do meu avô, eu
do Atlântico, mas em Sanga da Toca. Na semana e minha irmã o vimos diante da televisão em preto
passada, incluímos morcilha e galinha de cabidela e branco que ele havia nos dado. Era madrugada.
ao abordarem nossas no cardápio.
5. Depois que o Eduardo abateu o boi a tiro, pro-
Minha irmã chorou muito.
30. Minha mãe, como a Consuelo, tem o costume

fragilidades. E de como a meteu que me daria de presente a kalashnikov


banhada a ouro que eu tanto queria.
de ver mortos no supermercado.
31. Hilda Hilst não só falava com os mortos,

única verdade sobre o texto 6. Faz tanto tempo que eu e o Eduardo estamos
juntos que, quando o vi pela primeira vez, ele usava
como também os gravava. E Caio Fernando Abreu,
seu amigo, fazia mapas astrais em seus cadernos

é nada além do próprio texto


um tênis cuja língua ia até quase o joelho. Era moda. esotéricos. Embora fosse de um signo regido pela
Gamei no mesmo instante. terra, o elemento que mais dominava seu mapa
7. Um dia antes de irmos a Évora, eu e o Eduardo astral era o fogo.
tiramos uma foto com o Franklin no carro do papa. 32. O Victor queria fotografar a lava fervente quan-
Foi uma rapariga que passava quem bateu a foto. do o vulcão de nome esquisito entrasse em erupção.
Ela levou um susto quando o Franklin a abordou. Não havia santo que o convencesse do contrário. Por
8. Foi o Marcelo quem roubou minha camisa ver- sorte, o vulcão teve a decência de esperar que fôsse-
melha num sonho. Hoje, ele é performer em Portugal. mos embora da Indonésia para começar a cuspir fogo.
9. Não é a primeira vez que aparecem anões em 33. O Eduardo e o Franklin serão os protagonistas
meus livros. Mas é a primeira vez que menciono o do meu próximo livro, que se chamará O Satanista.
creme Nívea. Não sei qual é o signo do Franklin, muito menos o
10. Nenhum nome é verdade. elemento predominante em seu mapa astral.
11. O pequeno barco enfeitado de luzinhas co- 34. Antes de nos mudarmos para São Paulo, eu e
loridas que aporta ao lado da antiga ponte romana o Eduardo costumávamos assistir ao seriado Arquivo
existe de verdade e baloiça pelos canais de Veneza X. Este tinha uma epígrafe: “A verdade está lá fora”.
todo ano, na festa do Redentore. 35. Nenhuma verdade é verdade.
12. A festa à qual se dirigem o Leão e o seu padri- 36. O bilhete escrito à mão, numa caligrafia de
nho não tem nada a ver com a festa do Redentore. volteios, continua a ser a única verdade.
Esta se passa nas águas, a outra no céu.
13. Uma vez, o avô do Eduardo o levou para ver
um leão que era criado nos fundos de um curtume O LIVRO
em Caxias do Sul. O Eduardo tinha seis anos e ti- Sombrio ermo turvo
rou uma foto do leão. Gosto de imaginar que foi a Editora Todavia
primeira foto que ele fez. Mas não foi. Páginas 144
14. Meus pais contam que, na primeira vez em Preço R$ 49,90
que fui ao zoológico, não queria sair da frente da
jaula onde o leão e a leoa trepavam. Eles também
contam que nenhum outro bicho me encantou
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RESENHA

Do imaginário Se os deuses tudo criaram, não seria a verdade apenas uma


outra criação?
Marlon James em Black leopard, red wolf

deslocado por
Griots são os guardiões do passado e da história das
civilizações africanas. Eram eles os responsáveis por
perpetuarem a memória social através de narrativas,
canções e poemas. Griots ainda existem em determi-

Marlon James
nadas regiões da África Ocidental e mantêm-se como
figuras essenciais à tradição oral do continente. Antes
da dominação da língua escrita, a linguagem oral que
usavam para garantir a preservação da história de seu
povo fez dos griots agentes importantes nas cortes reais,
Autor jamaicano lança no como sábios conselheiros que conheciam o passado
para auxiliar na vivência do presente e na construção

exterior 1ª parte de trilogia do futuro. Em sua narração do épico africano Sundiata,


o griot Mamadou Kouyaté revela que sua “palavra é

de fantasia afrocentrada
livre e despida de toda inverdade”. A palavra de um
griot é, portanto, confiável.
Para ler Black leopard, red wolf, primeiro livro de uma
trilogia de fantasia escrita pelo jamaicano Marlon
Virginia Siqueira Starling James, precisamos nos preocupar exatamente com o
contrário, pois o narrador dessa história é extrema-
mente ambíguo – e é essa a proposta do autor. Uma
história não é necessariamente verdadeira porque
quem a conta assim determina e um só ponto de vista
dificilmente basta para dar conta de uma sucessão de
eventos. Assim como uma só história não abarca a
imensidão do imaginário e da cultura do continente
africano: daí o trabalho de Marlon James em propor
uma recuperação das narrativas, dos mitos, dos perso-
nagens e das paisagens da África. Essa é uma tentativa
de revitalizar a relação entre tais elementos e os filhos
da diáspora africana nos tempos contemporâneos,
ao mesmo tempo em que subverte os parâmetros
e arquétipos tradicionais do gênero fantástico – por
tradicionais, leia-se de origem ocidental e branca.
James orquestra uma segunda subversão, abalando as
expectativas do público acerca do que um vencedor
do Man Booker Prize, a mais respeitada premiação da
literatura em língua inglesa, escreveria depois de Uma
breve história de sete assassinatos, seu reverenciado roman-
ce. Laureados do Man Booker, afinal, não costumam
optar pela fantasia.
Como um homem da diáspora africana, nascido e
criado em uma família de classe média nos subúrbios
de Kingston, na Jamaica, James queria uma história
que não reduzisse o continente africano à marca da
escravidão e, de quebra, provasse que há bastante
espaço na fantasia para protagonistas negros e de
outras etnias. Black leopard, red wolf foi a narrativa que vista; os dois próximos livros confessarão os seus, e
ele decidiu escrever para explorar as ricas mitologias James não soltará a sua versão definitiva. Cabe aos
africanas em um ritmo turbulento e alucinante, que leitores a decisão de em quem (não) confiar, e Black
leva os personagens em uma missão fracassada por leopard, red wolf é apenas o depoimento de um dos
terras fantásticas inspiradas nos impérios da Idade personagens que viveram a história.
do Ferro, como os de Etiópia, Mali e Gana. É aí que Marlon James sabia que sua decisão de enveredar
monstros alados e vampirescos soltam raios e an- pela fantasia, logo após ter recebido o Man Booker,
dam à luz do dia, necromantes enfeitiçam pessoas impressionaria público e crítica. O establishment lite-
vivas para se submeterem ao seu comando, portas rário, no qual preconceitos contra fantasia e ficção
levam o viajante que souber abri-las de um ponto a científica persistem – especialmente quando escrita
outro do mapa em segundos e um homem – nosso por autores negros – começava a prestar a devida
narrador – tem um olfato sobrenaturalmente aguça- atenção em sua obra quando James anunciou que
do, o qual ele usa para localizar pessoas temporal e seu próximo projeto seria escrever um “Game of thrones
espacialmente distantes e que lhe rendeu seu nome, africano”. É bom ir avisando, aliás, que Black leopard
Tracker. A palavra tracker se traduz literalmente como não é uma versão da saga de George R. R. Martin com
“rastreador”, mas talvez a sonoridade deste nome e protagonistas negros. James vai além de se inspirar
o caráter ambíguo do personagem remetam ao tricks- nos cânones ocidentais do gênero e faz mais do que
ter, um tipo de herói trapaceiro e contraditório que aproveitar a onda do sucesso bilionário de Pantera Negra,
aparece com frequência no repertório narrativo de o filme dos estúdios Marvel sobre um super-herói
povos africanos e indígenas. Assim como Tracker, que herda o trono de um rico, poderoso e oculto rei-
o trickster é tanto malicioso e astuto quanto pode ser no africano, que rendeu mais de US$ 1.3 bilhão em
tolo; é capaz de gestos bondosos e generosos, mas bilheteria. O primeiro livro da trilogia Dark star é uma
também destruidores e maldosos. obra à parte, na qual personagens e situações deixam
Em Black leopard, a verdade está invariavelmente o leitor aturdido a cada capítulo, a violência brutal não
em jogo e os leitores permanecem implicados nesse cessa em provocar desconforto genuíno e onde James
embate desde a primeira página. Tracker começa a desenvolve sua reflexão de que personagens negros
contar sua história para um inquisidor que o interroga, representam uma parte fundamental do passado e
e seu aviso inicial é surpreendente para um livro de serão agentes essenciais à construção do futuro. A
fantasia cujo enredo se baseia em uma missão de antecipação pelo lançamento do livro em janeiro deste
resgate: deu tudo errado; o menino que deveria ter ano era tal, que, apenas um mês depois, ele já tinha
sido recuperado está morto; o próprio Tracker, ao que sido fisgado para uma adaptação cinematográfica,
tudo indica, está preso; e, segundo ele, não há mais assinada entre a Warner Bros. e a produtora do ator
nada a ser dito. Mas é claro que há, senão não tería- estadunidense Michael B. Jordan, que fez especial
mos a história. Para nossa sorte, ele tece a narrativa e sucesso em 2018 como o vilão de Pantera Negra.
reconta a sua perspectiva dos fatos, detalhe que Marlon Para tanto, James se apoiou nas bases mitológicas,
James ressalta em entrevistas, quando revela que a geográficas, religiosas e linguísticas do continente
estrutura narrativa da trilogia Dark star não é feita de africano: leu mitos, épicos, livros sobre clima, cosmo-
volumes que, juntos, complementam uma história logia e história, e buscou elementos reais das culturas
cronologicamente. Black leopard revela um ponto de africanas para incorporá-los ao seu mundo imagi-
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JEFFREY SKEMP / DIVULGAÇÃO

nário. Sangomas são “antibruxas” que atuam como


curandeiros entre o povo Zulu, da África do Sul, e as
crianças Mingi são assassinadas pelas tribos nas quais
James faz mais deus aranha, pode ter mentido o tempo todo. E nós,
leitores, podemos nos ter deixado levar.
James surpreende em todos os alicerces que usou
nascem simplesmente por apresentarem caracterís-
ticas interpretadas como maldições. Os griots fazem
parte da narrativa, desempenhando seu papel para
que dialogar com para conceber sua trilogia. Além dos épicos e mi-
tos africanos e de sagas gregas e nórdicas, o autor
retomou obras que marcaram sua juventude na Ja-
revelar o obscuro ou desconhecido aos personagens,
mas também ao leitor. James busca o conceito de shoga, Pantera negra: maica: as histórias em quadrinhos, como as séries
dos X-Men, Novos mutantes, Hellboy e Patrulha do destino.

pela fantasia,
relacionado a gênero e sexualidade não normativos James queria trazer as ruas para as disputas de po-
– bastante presentes no livro, inclusive em relação a der entre herdeiros do trono e rumores de guerra,
Tracker, um homem homossexual – e que em swahili então entendeu que os épicos sobre grandes heróis

ele pensa sujeitos


quer dizer “homem afeminado” até hoje. E um ponto seriam insuficientes para lhe ajudar a criar o cenário
essencial do enredo retoma a orientação matrilinear para um homem a serviço de pessoas importantes.
de herança, que orientou tribos e sociedades africa- Os dramas políticos são relevantes para a trama,
nas em contraste com a patrilinearidade da tradição
europeia ao determinar que tanto terras e posses
quanto a autoridade podem ser transmitidas através
negros como mas Tracker é o cara comum que se envolve – re-
lutantemente, é bem verdade – nas maquinações
dos poderosos. A relação de James com a cultura
das mulheres, não apenas dos homens. No universo
de Black leopard, red wolf, bruxaria não tem nada a ver
com druidas e fadas, mas com o poder de ancestrais
agentes de futuro pop lhe rendeu muita inspiração para as dinâmicas
de grupo desbaratado e cheio de desajustados, em
uma crítica aberta à ideia de que personagens se
e espíritos, mediados por sangomas e sacerdotes que R. R. Tolkien, se desbanda no primeiro instante em que uniriam sob um grandioso propósito coletivo até o
empreendem a conexão entre os vivos e os mortos. se reúne, para que cada um siga seu caminho e seja a fim, quando uma luta épica entre as forças do Bem e
A fantasia de Marlon James enfeitiça desde a pri- pessoa a ganhar a recompensa pelo menino sumido. do Mal terminaria por recompensar os justos e punir
meira página, com sua composição narrativa inusi- E, antes mesmo de chegarmos ao primeiro encontro os mal-intencionados – uma das tradições narrativas
tada. O enredo não é inesperado somente devido às da sociedade, já sabemos que tudo deu errado; ao ocidentais mais comuns, sobretudo nesse gênero.
fontes mitológicas não ocidentais nas quais o autor menos é isso que Tracker revela ao seu interrogador. Ninguém promete se sacrificar por ninguém: em
se inspira, uma vez que existe todo um movimento Como ele chegou ali é mais um mistério e, embora o Black leopard, red wolf, é cada um por seus interesses,
de escritores africanos e afrodescendentes no gênero final da história nos interesse enormemente, o que inimigos podem facilmente se tornar parceiros no
da ficção especulativa – N. K. Jemisin, Octavia Butler, mais importa é o processo, que culmina na morte crime, escrúpulos são raros, e infeliz do que se deixar
Tomi Adeyemi, Charles R. Saunders, para citar alguns do menino. São traições, desentendimentos, reen- atacar pelo caminho.
–, que conduzem suas histórias a partir de culturas contros, desencontros, fugas desesperadas e muitos A jornada é a verdadeira história, a forma como
africanas. Nosso narrador Tracker deveria ter saído combates fatais que nos levam às revelações finais e cada personagem – em especial Tracker, nesse pri-
em busca do garoto, ao lado de um leopardo que se um desfecho que, comparado a outras fantasias, ilude meiro volume – modifica sua visão de mundo e se
transforma em homem, um gigante que não gosta de com a impressão de ser um grande anticlímax. Mas as adequa para melhor responder às circunstâncias que
ser chamado de gigante, um búfalo especialmente emoções até ele foram inúmeras, e as tais revelações regem o jogo. Se a missão fracassa, o processo é que
esperto, uma bruxa com tantos mistérios na manga nunca terão sua veracidade determinada por inteiro, conta. E James revela, enquanto isso, a humanida-
quanto feitiços, um antigo desafeto, uma mercenária já que James montou sua trilogia para que as partes de profunda – e, em sua crueza, desconfortável e
e um ex-soldado. Mas a “sociedade”, ao contrário da nunca completem um todo. Então Tracker, um tra- incômoda – dos personagens. Por mais mágicos e
Sociedade do anel da também trilogia O senhor dos anéis, de J. paceiro contador de histórias ao estilo de Anansi, o fantásticos que sejam.
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ARTIGO

O monstro
amarelo não se
leva a sério
Obra infantil de Elvira
Vigna merece um
trabalho de reedição
Laura Erber

El humor es algo parecido a la felicidad, a la editado pela Miguilim, o projeto gráfico e o formato
revolución y al amor. se mantiveram.
Roberto Bolaño Na breve história do primeiro livro, Asdrúbal é hu-
milhado pelos animaizinhos que deveria assustar,
Nenhum adulto tem acesso pleno à criança leitora que decide parar para “pençar” e é corrigido pela narradora.
foi um dia, pois, como já afirmou Cecília Meireles, a Asdrúbal chora de frustração, e seus pais decidem que
infância é um “reino que começamos a desconhecer é hora de a família se mudar para a Argentina. Com
desde que o começamos a abandonar”. O afastamento eles, vai a barata de estimação de Asdrúbal, sempre
desse reino tem sérias consequências, e a presunção de, disposta a comentários enervantes. Os animais do
longe dele, definirmos “o que é bom para as crianças”, jardim dançam uma ciranda, comemorando a partida
se sustenta certamente em mais de um ponto cego. da família monstro. A história é retomada no segundo
Porém, há livros lidos na infância que nos marcaram volume, que começa com um simpático “Lá vamos
de tal maneira, que, revisitados mais tarde, reavivam nós”. A escrita de Elvira Vigna de fato convida a em-
sensações da primeira leitura com estranha nitidez. É barcar numa viagem sem rumo claro. Não sabemos
o meu caso com as histórias de Asdrúbal, o Terrível, por onde vamos, mas zarpamos com a narradora em
escritas e desenhadas por Elvira Vigna. direção ao inesperado, e depois, de repente, de volta
Começo por levantar a pergunta: o que tanto teria me a nós, isso quando ela não nos lança abruptamente ao
atraído nos livros que contam as aventuras do monstro rés do chão da realidade da leitura e do livro.
amarelo dito Asdrúbal? Lembro-me — mas posso estar No terceiro volume, Asdrúbal vira obra rara do Mu-
inventando — de tê-los achado cômicos: os desenhos seu Dum-Dum, de onde tentará escapar lançando
eram brutos e faziam rir, e ainda havia comentários mão de estratagemas vergonhosos. Acho que foi esse
que perseguiam e criticavam as ações desajeitadas de o primeiro livro a me apresentar a ideia de que as obras
Asdrúbal ao longo das desventurosas tentativas de ser de arte ou artefatos expostos em museus têm vida
terrível. Disso gostei mesmo, e não invento: era uma própria, independentemente da presença e do olhar
história que ria e zombava do próprio personagem; do espectador. Essa outra vida do museu é diferente
ria, aliás, também da própria ilustração – um peque- daquela que conhecemos como visitantes. E Vigna
no balão à esquerda da página 6 do segundo livro diz não nos poupa de sua crítica irônica ao tédio que al-
assim: “Não poderiam ter arranjado um desenhista guns museus podem produzir, tédio que as crianças
melhorzinho?”. E por fim isto: o amarelo Asdrúbal conhecem muito bem. No último livro da série — o meu
se dirigia várias vezes ao leitor, rompendo o espaço predileto, confesso —, acompanhamos a tentativa de
narrativo com cartazes de protesto que carregava pelos Asdrúbal de se tornar imortal escrevendo uma auto-
jardins. Asdrúbal era ambicioso e desastrado, ranzinza biografia. Já nos agradecimentos ele empaca: dedica
e simpático. A criança que fui adorou isso. para o Aníbal com saudades, depois com lembranças,
São quatro livros: A breve história de Asdrúbal, o Terrível depois exclui as opções anteriores e acaba por dedicar
(José Olympio, 1978); A verdadeira história de Asdrúbal, ao amigo Aníbal sua modesta e presunçosa obra. Testa
o Terrível (José Olympio, 1979); Asdrúbal no museu (José diferentes possibilidades. Empaca de novo. Olha o ar.
Olympio, 1980); e O triste fim de Asdrúbal, o Terrível (Migui- O livro da sua vida vai se chamar Minha Lufa-Lufa. E, no
lim, 1983). Os livros percorrem a história do monstro percurso, Asdrúbal descobre que essa coisa de suces-
Asdrúbal em suas, em geral, malogradas tentativas so vicia, que vai passar o resto da vida procurando o
de praticar monstruosidades. Sabemos que Asdrúbal próprio nome no jornal.
é amarelo, tem vários pés e uma voz horrível. Odeia Vigna fazia nesses livros algo que foi se tornando
borboletas, mas não sabe assustá-las como se deve. cada vez mais raro na narrativa infantil. Escreve com
É um destruidor pouco feliz em suas investidas con- rédea solta. Não controla muito a leitura. Não faz ques-
tra a natureza. Embora o último volume tenha sido tão de marcar os diálogos com inserções de adjetivos e
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ELVIRA VIGNA / REPRODUÇÃO

qualificações que supostamente “ajudariam” a criança


leitora a compreender a narrativa, produzir imagens
mentais e dramatizar as emoções. Aliás, Vigna quase
Vigna fazia nesses de um roteiro edificante, em que cada elemento pre-
cisa ter função clara, ou seja, precisa ser claramente
“útil” à economia da narrativa, e esta, por sua vez,
nunca parece assumir que seus leitores precisem da
“ajuda” do autor para ler corretamente e entender o
que leem. Considera os leitores cúmplices críticos do
livros algo que foi para ser “útil”, precisaria abraçar critérios didáticos:
quanto mais conseguir ensinar, melhor. A ideia de que
o livro ensina algo é certamente potente, mas levada
seu processo, por isso talvez o recurso constante à
autoironia e à derrelição. se tornando cada ao extremo pode significar uma homogeneização da
linguagem literária.

vez mais raro


Não que os livros de Asdrúbal sejam desprovidos
DESCONTROLE E DISPARATE de forma, mas a narrativa ganha forma de maneira
Essa espécie de descontrole narrativo comparecia não previsível e não premeditada. Não parece que

na narrativa
em outros textos destinados às crianças de minha estamos diante de um narrador que conta à criança
geração. Há livros de Sylvia Orthof cujo enredo evolui uma história que ele dominaria, mas, sim, diante de
de maneira intempestiva e inexplicável. Algo mu- uma história que se constrói performativamente, en-
dou nos últimos anos? Difícil afirmar. Somente uma
análise cuidadosa da literatura infantil publicada em
português nas últimas duas décadas poderia revelar
infantil: escreve quanto se escreve. Nesse sentido, Asdrúbal seria uma
figura dessa performance da linguagem em seu percurso
incerto, rumo a um desconhecido núcleo de sentido.
as reais mutações na escrita literária e na concepção
de criança e de literatura por trás dos livros.
Em Rima e solução: a poesia nonsense de Lewis Carroll e Edward
com rédea solta Ilustração e poema não representam uma cena de
instrução, mas uma cena contraditória que se auto-
critica no momento mesmo em que se desenvolve.
Lear (Annablume, 1996), Myriam Ávila questiona a de divertimento leve. Nessa conta, o humor paga um Assim, liberada da obrigação de ensinar, esse tipo de
noção de nonsense em literatura. Como situa a autora, o preço ou fica menos importante, rir é coisa séria e escrita deixa de encarar a criança como receptáculo
nonsense surge em um contexto em que era necessário pode até ser polêmico. Melhor rir mais baixo, ou sorrir dos saberes adultos, e o que temos então é um adulto
corroer as normas vitorianas que regiam a socieda- apenas. É mais seguro. Decerto temos ainda Eva Fur- jogando com a linguagem, nos limites da narratividade.
de, os costumes e a linguagem. O nonsense não seria nari em plena atividade e podemos contar com o traço Disso, resulta um texto fortemente vinculado ao inusi-
a ausência de sentido, mas, sim, uma corrosão da simpático e irreverente de Mariana Massarani — que, tado e à vertigem, à possibilidade sempre iminente de
lógica que sustenta a sua construção. Há momentos aliás, já conseguiu salvar diversos textos do naufrágio que a narrativa se perca de si, ultrapassando o limiar
nos livros de Asdrúbal que parecem saídos de um na banalidade e no tédio. Tivemos ainda a alegria de do sentido. O humor comparece precisamente aí. Ele
texto de Qorpo Santo, estes versos poderiam integrar conhecer o Sapo Ivan, de Henfil, figurinha indiscipli- nos salva de nossa presunção e nos leva ao museu.
as observações do monstro amarelo: “Tão lindas as nada e carregada de um humor distante da cultura da
aranhas/ Tão belas, tão ternas/ Pois caem do teto/ e piada prêt-a-porter, tão próxima da publicidade. O humor CONSIDERAÇÃO FINAL OU À MANEIRA
não quebram as pernas!”. literário parece pender hoje mais para a irreverência e DE ASDRÚBAL: CURTA E GROSSA
a paródia, sobretudo em livros estrangeiros traduzidos Nascida em 1947 e falecida em 2017, Elvira Vigna ficou
UMA ESCRITA PELO DIREITO DE NÃO PRECISAR que retomam as fábulas e suas imagens para desfigurá- mais conhecida como escritora de romances e contos
CONTER E CONTROLAR O RISO -las, o que nem sempre resulta interessante. para adultos a partir da publicação de O assassinato de
Não se deve confundir descontrole narrativo com falta Não seria descabido levantar a hipótese de que a Bebê Martê (1997), pela Companhia das Letras. Desde
de cuidado ou de labor, nem acreditar que desenhos vinculação — e mesmo a dependência — do universo então, as notas biográficas e os perfis que a apre-
toscos são sempre desprovidos de engenho plástico. editorial infantil ao ensino através das grandes compras sentam passaram a minimizar a importância de sua
É do lado do humor e no flerte com o nonsense que se governamentais, muitas hoje infelizmente interrom- produção infantil. Gesto previsível, mas lamentável,
deve buscar o entendimento dessa escrita e dessas ima- pidas, possa ter produzido interesse menos expressivo que demonstra um forte preconceito em relação à li-
gens. Mais uma pergunta: o humor voltado à criança por narrativas abertas e de estrutura mais sinuosa e teratura infantil, sobretudo quando se trata de elaborar
mudou de sentido? Desconfio que sim. As narrativas descontínua. Penso em certos livros de Sylvia Orthof as tramas da consagração de um autor respeitável,
parecem agora mais insistentemente pedagógicas, que se desenvolvem à maneira de viagens sem destino neste caso autora.
reinvestiu-se na regra do ensinamento útil fantasiado em contraste com uma literatura estruturada à maneira E, por favor, reeditem o Asdrúbal.
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

ENTREVISTA
Angela Teodoro Grillo

Por uma leitura


não incolor do
Modernismo
Pesquisadora localiza manuscrito até então inédito de
Mário de Andade, no qual o autor pensa questões étnico-
raciais no Brasil – incluindo reflexões sobre o racismo
ALINE FÁTIMA / DIVULGAÇÃO

dei-me conta de que estava diante de um


documento muito importante e até então
desconhecido. Percebi ali o pesquisador
da cultura brasileira preocupado em
compreender a presença da cultura negra.
O segundo motivo foi meu interesse pela
presença da cultura de matriz africana na
obra de Mário. Se estamos diante de um
intelectual modernista que se preocupa
com o encontro das três raças, para usar
os termos da época, para compreender a
identidade brasileira, me perguntava onde
estaria a contribuição da cultura negra
na obra dele.

Há também a questão da nomeação do


manuscrito, de acordo com a lista deixada
pelo autor...
Ainda que a mudança de título Preto para
Estudos sobre o negro não tenha sido feita
por Mário, a análise e a interpretação dos
documentos permitiram a identificação
da segunda parte do projeto vislumbrado
pelo autor. Pouco antes de morrer, ele
negro, uma das partes do livro dadas como deixou uma lista de suas Obras completas,
Entrevista a Edma de Góis inexistente por pelo menos 60 anos, é uma no total de 20 volumes. Em relação ao
das mais valiosas reflexões do modernista volume 13, ele indicou que Aspectos...
Faça um teste rápido com a pessoa que está sobre o racismo no Brasil. deveria ser constituído de três partes: O
ao seu lado. Peça para ela dizer o nome de folclore no Brasil, Estudos sobre o negro e Nótulas
uma obra de Mário de Andrade (1893-1945) Por quais motivos os Estudos sobre o folclóricas. Oneyda Alvarenga, discípula
que lhe vem à mente. Em uma suposição negro, originalmente nomeados pelo autor de Mário, após a sua morte, encontrou a
infundada, digamos que ela responderá como Preto, demoraram tanto para serem primeira e a terceira partes, porém não
Macunaíma (1928). Já um leitor que conheça localizados no arquivo de Mário localizou a segunda e substituiu o número
com mais profundidade o modernista po- de Andrade? 13 por Música de feitiçaria no Brasil. A parte tida
derá escolher um dos estudos sobre música, Prefiro explicar por que ele foi como inexistente foi por mim identificada
mas dificilmente citará um texto cuja força encontrado. O primeiro motivo que me no manuscrito Preto, composto de 356
motriz está nas questões raciais. A suspei- faz chegar a esse manuscrito foi fazer documentos – notas de trabalho/leitura;
ta se deve ao fato de que a crítica, em sua parte de uma pesquisa científica dedicada dois artigos e uma conferência preparada
maioria, opta por trazer à superfície outros à organização, catalogação, análise e para as comemorações do Cinquentenário
aspectos de sua produção, daí a relevância democratização dos manuscritos do da Abolição por ele organizados enquanto
de Aspectos do folclore brasileiro (Global Editora, escritor. Desde 2005, realizo minhas diretor do Departamento da Cultura da
2019), organizado pela pesquisadora do Ins- pesquisas no acervo de Mário de Andrade municipalidade de São Paulo, em 1938.
tituto de Estudos Brasileiros da Universidade no IEB-USP. Meu mestrado estava A publicação de Aspectos... viabiliza,
de São Paulo (IEB-USP), Angela Teodoro inserido em um projeto temático dedicado portanto, a edição de uma obra planejada
Grillo. A obra faz justiça à trajetória do autor, aos arquivos da criação do escritor, e interrompida pela morte do escritor.
ao trazer para o público textos inéditos em coordenado pela professora Telê Ancona
que ele trata das questões étnicos-raciais Lopez. Competia-me fazer a classificação Portanto, não procede dizer que Mário de
no país. Em entrevista ao Pernambuco, a de 10 manuscritos, entre eles o dossiê Andrade se esquiva em alguma medida
pesquisadora explica por que Estudos sobre o intitulado Preto. Quando cheguei a ele, dessa discussão, exatamente no momento
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

No meu mestrado, Na pesquisa,


localizei um confirmei que
manuscrito de Mário de Andrade
nome Preto. não se resumiu
Me dei conta que a um “mulato”
estava diante de que não quis se
algo importante assumir negro
em que se discute sobre as devem ser levadas em conta na crítica, ao focalizar outros ricos de expressões culturais Você acredita que a publicação
três raças no país? ao lermos a passagem em que aspectos de sua obra? do país. Mário não só dizia o desses inéditos irá mudar a
Como outros intelectuais Mário de Andrade afirma que É interessante notar que, salvo que fazer, mas como fazer. relação da crítica estabelecida
brasileiros e latinoamericanos, toda pessoa no Brasil de “cor a crítica da literatura negra e/ A partir de um pensamento sobre a obra do autor?
Mário procura entender o que duvidosa” é insultada como ou afro-brasileira, há uma etnográfico, ele entende o Considero que o trabalho
nos torna singular em relação “negro!”. Ele mesmo, ao ouvir tendência da crítica brasileira folclore como uma forma de de pesquisa dedicado a
ao europeu, por exemplo. o insulto, responde “vou em ser “incolor” em relação compreender a sociedade, em resgatar as comemorações
Ele tem ideias que muito passando bem, obrigado!”. aos nossos escritores. Procuro diferentes linguagens artísticas do Cinquentenário da
antecedem o que conhecemos Francisco Lucrécio, um sempre compreender as e no próprio cotidiano. Como Abolição, realizadas, porém
hoje como “estudos culturais” dos fundadores da Frente questões étnicos-raciais em pesquisador, não interessa a ele interrompidas, foi um dos
e “pós-coloniais”. Quando Negra Brasileira (FNB) e Mário de Andrade de forma apenas identificar elementos momentos mais gratificantes
pensamos em cultura conferencista convidado por semelhante ao que ocorre com que valorizem a cultura negra, para mim em relação a este
brasileira, evidentemente a Mário para as comemorações escritores afrodescendentes, mas também aqueles que livro, pois confirma que Mário
cultura de matriz africana do Cinquentenário da como Machado de Assis ou servem à compreensão não se resumiu a um “mulato”
está presente e o interesse Abolição, em depoimento, Cruz e Sousa. É preciso estar da violência. que não quis se assumir. As
por ela pode ser identificado interpreta que essa resposta atento aos textos em que esses consultas em jornais da época
em toda sua obra seja como é um não assumir a cor. elementos aparecem de formas Além de Reconhecimento e em seu acervo mostraram
pesquisador, crítico ou artista. No entanto, em um dos mais cifradas. Nessa discussão de Nêmesis, que outros que, para o Cinquentenário,
Há a presença negra também poemas por mim analisados, étnico-racial, refiro-me a textos são emblemáticos ele organizou 15 dias de
nos estudos que realiza Reconhecimento de Nêmesis, de Mário como uma voz que não dessa preocupação com a consciência negra, para usar
sobre outras manifestações 1926 mas só publicado em grita, nem se cala, pois não se temática racial? os termos de hoje, convidando
artísticas, como o ensaio sobre 1941, identifiquei um eu lírico trata de um escritor militante Cito a biografia romanceada intelectuais negros e brancos
Aleijadinho, em que destaca negro. É um longo e belo como entendemos a partir dos Padre Jesuíno do Monte Carmelo, outra para um ciclo de conferências
que estamos diante da obra poema que pode ser lido como anos de 1970 com os Cadernos obra interrompida, que hoje no Palácio do Trocadero. Mário
de um gênio mulato, termo autobiográfico, visto que nos negros. Não é uma literatura conta com a edição estabelecida planejou a apresentação da
recorrente na época. Por isso, últimos versos o eu lírico engajada nesse sentido. e estudada por Maria Silvia Ianni Congada de Atibaia, que bem
considero que Mário não se registra o endereço do poeta: Barsalini (editado pela Nova conhecia como etnógrafo,
esquivou. Ao contrário, sua “Nesta Rua Lopes Chaves/ Em Linha de cor (1939), a Fronteira, 2013). A pesquisadora para o encerramento. Deixou
obra afirma a valorização da Terá um homem concertando/ defesa de que existe racismo compreende que Padre Jesuíno tudo isso escrito e, segundo
cultura de matriz africana e as cruzes de seu destino”. no Brasil, chamado por ele é um alter ego do Mário de o roteiro, o prefeito deveria
a denúncia da violência “Concertando” é grafado de “preconceito de cor”, Andrade, o que contribuiu coroar o rei, evidentemente
contra o negro. com “c”, ou seja, é na arte, é feita a partir da análise para análise de Reconhecimento negro, ao final, “isso se ele
é no concerto do destino que de provérbios, parlendas e de Nêmesis. O padre biografado tiver coragem”, escreve.
Mas, no seu livro Sambas o homem vai resolver seus cantigas populares. Como não pode alcançar postos mais O que ele chamou de
insonhados (2016), é sugerido conflitos com essa criança explicar a metodologia de elevados na igreja por causa de “superstição da cor preta”
que Mário não assumia a negra que ora ele acolhe, ora trabalho do autor? sua cor, mas enquanto pintor (que chamamos hoje de
cor. Queria que comentasse ele repele. O estudo permitiu- A terceira parte de Aspectos..., de tetos das igrejas barrocas racismo) infelizmente venceu,
esse aspecto a partir dos me confirmar a hipótese de chamada Nótulas folclóricas, da cidade de Itu, no momento pois a parte final do plano
manuscritos a que teve acesso. que foi em projetos no campo expõe sua metodologia. Mário, em que olha suas mãos, foi cancelada no momento
Desde o período escravocrata, da cultura e em produções além de leitor contumaz, ia a escurece propositadamente a em que, coincidentemente
o “negro” era o desobediente; literárias, não em declarações campo e recolhia informações. pele dos anjinhos barrocos. É ou não, Mário foi afastado do
não à toa, Aimé Césaire, individuais, que ele lutou pelo Registrava também, no caso de algo semelhante ao processo cargo. Assim, espero que esta
contemporâneo de Mário reconhecimento e valorização músicas, em partituras. Além de criação de Reconhecimento de obra contribua para a crítica
de Andrade, substitui noir da contribuição do negro disso, enquanto diretor cultural, Nêmesis, em que os versos são a respeito desse que foi um
(preto) por nègre (negro) para o Brasil. sua metodologia foi usada por escritos em um momento de profundo conhecedor, um
em seu conceito de um grupo de pesquisadores que raiva, quando Mário de Andrade intérprete do Brasil.
négritude (negritude). Toda a Se há esse empenho em trazer viajaram pelo país recolhendo e Menotti Del Picchia brigavam
ambivalência desses termos as questões raciais, podemos sons, imagens e anotações para abertamente em publicações Leia a entrevista completa em su-
e suas inversões semânticas dizer que a “manipulação” está compor um dos acervos mais de jornais. plementopernambuco.com.br.
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

O Diabo ofertou-me trinta poemas


e foi embora fazendo graça
fingindo-se de Fernando Pessoa. (J. H.)

— “Aonde me levam os astros?”


Ao celular, Jarkko larga-me a pergunta, sem
explicação. Logo sugere que nos encontremos no
mercado de Campo d’Ourique, às 15. Está de visita
à Casa de Fernando Pessoa, no mesmo bairro. Cam-
po d’Ourique é conhecido por ter sido esquecido
pelo tsunami que devastou a cidade em 1755. Mas,
segundo Jarkko, não se livrou de outro tão grande
quanto: o provocado pelo autor do Livro do desassos-

Everardo sego que carrega na mochila.


— “Estou pelo Chiado. Chego já!”, respondo.

NORÕES
Fica pairando no ar a pergunta dele sobre os astros.

Entro no "elétrico" 28 abarrotado de turistas.


Três franceses comentam o ridículo do presidente
Macron numa estação de esqui, enquanto Paris
pega fogo com os coletes amarelos. “Paris ce n’est plus
esnoroes@uol.com.br Paris...”, escuto. No jornal Le Monde, da véspera, fotos
de fachadas dilapidadas da Apple, Louis Vuitton,
Longchamp e outras casas que provocam frisson em
turistas brasileiros e chineses. E eu pensando no
tempo em que Charles Aznavour, o armênio, cantava
o coração vazio de tudo como Paris no mês de agos-
to; Yves Montand, o italiano, entoava o tempo dos
lilases. Tempo em que uma baguete com café creme
era alegria matinal de estudante no Quartier Latin.
Desço em frente à Igreja do Santo Condestável ou
São Nuno, o santo e herói, estrategista militar que
nunca perdeu batalha, a quem Camões se refere
no verso “ditosa pátria que tal filho teve”. Avisto

O poeta e o
Jarrko do outro lado da rua, à porta do mercado,
jeito hippie. Até parece o gringo John, de São Paulo,
que dá aulas de conversação em inglês andando
pelas ruas e comentando livros de Faulkner ou
pinturas de Kandinsky.

louco martelo
Sugiro a Jarkko umas voltas pelas lojas de queijos,
azeites, frutos secos. Ele poderia provar um figo na
farinha. Pergunta-me se é fruta cultivada no Brasil.
Conto o episódio de um secretário de governador,

da noite (2)
demitido por ter associado a fruta ao sexo feminino
durante um almoço "oficial".
— “Acho esquisita a forma ‘latina’ como vocês
observam essas coisas. De um lado, sexo sem pro- fragrância de flor. Antes de provar, comenta:
blemas; do outro, o pecado medieval. E o jeito como — “É uma reprodução sexual diferente, flor inver-
tratam as crianças, como se fossem brinquedos! Na- tida, ovário bem-nutrido! Se as coisas continuarem
morar uma brasileira ajudou-me a perceber isso.” como estão no país de vocês, em breve figo vai ser
Outra volta com o poeta Comento um encontro de escritores nórdicos
ao qual assisti. A uma pergunta sobre literatura
proibido!”
Sentamos para o café e ele recita Alberto Caeiro:

Jarkko Heikkinen, desta vez infantil, um deles respondeu de forma rude não
existir diferença entre literatura para guris ou outra A espantosa realidade das cousas

com os astros e F. Pessoa


qualquer. Havia apenas Literatura. Ponto final! É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
Numa lojinha do mercado, o vendedor dá a E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
provar um figo na farinha. Jarkko abre-o, cheira, E quanto isso me basta.
ARTE SOBRE REPRODUÇÃO

LITERATURA
Wellington Efeito Dunning-Kruger
de Melo
Você talvez não conheça a uma ilusão de superioridade,
criatura pelo nome, mas já e acabam tomando decisões
deve ter vivenciado situações equivocadas por não conseguir

MOBY-DICK
que envolvem a descoberta perceber sua completa
dos pesquisadores Justin incapacidade. Quem nunca
Kruger e David Dunning. O ficou constrangido ao dizer
fenômeno foi batizado com a alguém, que se considera
o nome deles: aquele em que escritor, que aquelas mil
pessoas pouco preparadas páginas de originais em que

MERCADO acreditam saber mais que


outras mais competentes
investiu anos de sua vida não
são literatura? E quem já viu

EDITORIAL em determinada área de


conhecimento. Indivíduos sob
essas mesmas pessoas com a
boca cheia de verdades para
o efeito Dunning-Kruger têm uma plateia atenta e cativa?
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
ARTE SOBRE REPRODUÇÃO
CONSELHO EDITORIAL
ferir mais fundo se tivesse cheiro. Quando sentir de
novo este cheiro de figo, vou pensar neste mercado I Os originais de livros submetidos à Companhia
e, por inferência, no Pessoa.” Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
Aviso a Jarkko para ter cautela. Diretoria considera projetos da própria Editora, são
— “Por quê?” analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
— “Há os que chamo de ‘poetas vampiros’. Os partir dos seguintes critérios:
críticos literários certamente devem ter classifi-
cações para eles. O poeta vampiro toma conta da
alma dos candidatos a poeta que o apreciam. No 1. Contribuição relevante à cultura.
nosso caso, toda uma geração foi ‘dominada’ por
João Cabral de Melo Neto. Uma espécie de vírus 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
para o qual não havia recurso. Escreveu numa que privilegia:
forma diferente. Um tanto inspirado em Gonzalo
de Berceo, autor espanhol do século XIII. Versos
que lembram o cordel do nordeste brasileiro. A cua- a) A edição de obras inéditas, escritas ou
derna de Berceo acabou virando título do Quaderna, traduzidas em português, com relevância
um dos livros de João Cabral. Foi o nosso vampiro cultural nos vários campos do
mais perigoso. Mas Fernando Pessoa é um caso à conhecimento, suscetíveis de serem
parte! Ele afeta não apenas poetas. Há gente que apreciadas pelo leitor e que preencham os
passa a vida a vasculhar armários e baús atrás de
seguintes requisitos: originalidade,
alguma coisa que poderia ter sido usada por ele. E
os achados nunca findam!” adequação da linguagem, coerência
— “Soube até que escreveram sobre medidas an- e criatividade;
tropométricas do poeta! Como se a Ode marítima tives-
se a ver com alguma ordem anatômica!”, comenta. b) A reedição de obras de qualquer gênero da
A risada dá por findo o café.
criação artística ou área do conhecimento
— “Ainda não entendi a pergunta Aonde me levam científico, consideradas fundamentais para o
os astros?” patrimônio cultural;
— “Na visita à Casa, vi um mapa astral desenhado
na soleira da porta. Tomei um susto ao imaginar 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
aquelas linhas e signos emaranhando-se nos neu- sem as modificações necessárias à edição e que
rônios, interferindo na minha escrita. Pesquisei
contemplem a ampliação do universo de leitores,
no computador sobre os mapas astrológicos dos
heterónimos feitos por ele...” visando à democratização do conhecimento.
— “E então?”
Ri e comenta que buscaria desvendar que as- II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
tros haviam anunciado seu livro Ääreton valkoinen sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
(Infinito branco).
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
— “Sabes algo de astrologia?”, pergunta.
— “Nada! Mas tenho um amigo que conhece uma sobre a publicação.
senhora dos lados de Alvalade. Talvez consiga o núme-
ro de telefone para marcar consulta! Quer que tente?” III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
Abro os contatos do celular. Ligo para o Nuno. papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
Peço-lhe o número da senhora que fez palestra Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
sobre o tema numa das livrarias da Baixa.
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
Jarkko anota num papelzinho verde que tirou
— “Penso como Fernando Pessoa”, continua. de dentro do livro de F.P., no qual há uma frase for o caso, índices e bibliografias apresentados
“A imagem poética é sempre uma ‘translação do de Picasso, em inglês: I would like to live as a poor man conforme as normas técnicas em vigor.
sentido’. Por isso, marco meus encontros em ca- with lots of money. Brinde oferecido por Maria, uma
fés ou mercados públicos. Para sentir cheiros que menininha que acompanha a mãe num trabalho IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
condensem a saudade. Como o odor da resina do voluntário na livraria solidária Associação Déja Lu,
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
pinheiro de nossas florestas! Não sei se você sabe, praça Luís de Camões, Cascais.
mas o muguet é nossa flor nacional. Quando se lê violência e as diversas formas de preconceito.
um poema, os versos invadem nosso cérebro e o Despeço-me.
levam à morada dos sentidos. Mas um cheiro ou Do lado de fora, os 18 graus com sol sugerem V Os originais devem ser encaminhados à
um sabor navegam em direção contrária. Vão direto a caminhada. Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
à nossa sensação. Tocam-nos com mais sutileza Digo-lhe que, em breve, veremos o aceno roxo seguir, sob registro de correio ou protocolo,
do que um texto literário. Um poema poderia nos dos jacarandás.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

ESCRITORES LIVROS
Companhia Editora de Pernambuco
“É a vaidade, Fábio...” “Call me Ishmael” Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Prove que alguém que se diz Dunning e Kruger provaram “Me chame Ismael” e “Meu CEP 50100-140
baterista não o é: peça que com seus experimentos que nome é Ismael” — como trazem Recife - Pernambuco
execute, uma parte do solo “a ignorância gera confiança algumas más traduções — do
de Moby Dick, do Led Zeppelin. com mais frequência do que sonha sua vã filosofia;
Comprove a incompetência do que o conhecimento”. O que esse outro Moby Dick, o de
ministro: veja-o trocar Kafka por fervor religioso com que Melville, condensa séculos de
“Kafta”, ou ser um economista alguns escritores e escritoras literatura, milênios da tradição
e não saber a regra de três — ok, defendem sua obra é judaico-cristã num arranjo
o exemplo nem é bom, milhões incompatível com o amor singular, e que o arranjo é
ainda não perceberam. E com à literatura. Quem imagina um dos segredos, enfim. Mas
escritores? Ah, essa “rosa, que da que para ser escritor basta como falar de arranjo — de
manhã lisonjeada,/ púrpuras mil, ser alfabetizado e escrever um romance ou de um solo de
com ambição dourada,/ airosa relativamente bem não percebe bateria — com quem ignora o
rompe, arrasta presumida”. que há mais diferenças entre princípio das notas?
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

CAPA

Porque a roda é o
avesso da torre
Das potências reveladas Sob quais parâmetros, sob quais reveses, podemos
pensar o narrador no mundo de hoje? Este mundo,
sociais. Para Toni Morrison, o poder fundamental de
criar/contar/armazenar narrativas pode encontrar

pela leitura em conjunto


em que a História pulou da torre, rompeu a cúpula das regalo justamente na plataforma romance.
capitanias hereditárias, desterrou os barões assinala-
dos, olhou bem ao redor, e foi lavar acúmulos de roupa Antigamente isto aqui não era assim. Quero dizer, era e não
de romancistas negras suja escondida nas camadas do subsolo? Este mundo
mesmo, em que todos formulamos nossa própria dose
era. O engenho está no mesmo lugar e trabalha como antes. As
árvores são as mesmas — eucaliptos subindo a ladeira que vai
de autoficção e metanarrativa em status e stories de redes até a casa do administrador. Na refinação é aquele barulho de
Fernanda Miranda virtuais que se propõe comunidade, arregimentando sempre: maquinaria rodando, correame dando chicotadas no ar
novos sentidos para o verbo compartilhar? Qual o lugar e engrenagens se entrosando. O mesmo caminho sobe torcido,
da ficção no mundo atual? No qual fake news derrubam, corcunda de nascença, varando a serra desde os começos, em-
aprisionam e elegem chefes de Estado, e os discursos baixo, na fazenda, volteia o cabeço e vai dar, no outro lado, em
dos chefes das instituições recorrem cada vez mais a terras de Maria da Fé. E os burros descem, como sempre desceram
fábulas e vocabulários controlados, enquanto a ficção por ele, carregados de cana caiana e cana-rosa. Pode ser que
scricta, a ficção científica, os romances, são cada vez sejam os mesmos burros. (Ruth Guimarães, Água funda)
mais requeridos e necessários para o entendimento do
tempo-espaço em que nos movemos? Quais histórias Fértil como terra preta é o romance, pois o mundo
hoje nos instigam, nos explicam, quais nos conectam, também é feito da carne das estórias que cultivamos:
nos desorganizam? Quais nos removem do lugar e narrativa implica vida, porque constitui nossa po-
nos permitem experiências de outros centros, outras tência de significar, compõe parte resistentemente
sensibilidades? Qual é o lugar do romance em um humana da nossa condição. Observem a passagem
mundo em que, acima de (quase) tudo, disputamos do romance Um defeito de cor em que a avó de Kehinde,
narrativas, significados? ao perceber suas netas Ibejis a ponto de se perderem
No clássico ensaio O narrador, Walter Benjamin para sempre diante da captura colonizadora, faz o
pensou as condições dissolventes da narrativa como impossível para ir junto com elas, e ali no navio, na
possibilidade de acesso e contato em um mundo ca- travessia de um mundo (África) em que Kehinde era
pitalista, que se tecnicizava e cada vez mais focava no pessoa para um sistema (Brasil) em que passaria a
indivíduo em detrimento da comunidade. O jornal e ser escravizada, a velha vodúnsi narrou tudo que
o romance foram, para ele, os eventos responsáveis podia antes de morrer, tornando o futuro (humano,
pela queda da “capacidade de intercambiar experiên- não escravo) possível à menina.
cias”, promovida no momento de repartir narrativas.
O declínio da roda – isto é, a perda da possibilidade Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que
de partilhar a voz e a escuta, tornada mais rara no podia dizer, as histórias, a importância de cultuar e respeitar
mundo das máquinas e suas velocidades, se apro- os nossos antepassados. Mas disse que eles, se não quisessem,
funda, para Benjamin, também como substrato do se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para
trauma da guerra, que produziu silêncio sem palavra, eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não
calando fundo. O jornal e o romance – pela emergência fosse através dos voduns, disse para eu nunca me esquecer da
veloz da informação rasurando tempo e espaço e pela nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de
condição isolada da leitura, direcionada ao mundo Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e
fechado do sujeito burguês – constituíram, segundo respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos. A minha
o filósofo, o desequilíbrio na capacidade humana de avó morreu poucas horas depois de terminar de dizer o que
contar, impedindo a proposição de uma comunidade podia ser dito. (Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor)
entre vida e discurso. 1
Através da forma romance, é possível ver retin-
Foi preciso que a herança de Vô Vicêncio se realizasse, se tamente a literatura brasileira como uma arena de
cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo. (...) Com- disputa por narrativas, especialmente notável quando
preendera que sua vida, um grão de areia lá do fundo do rio, abordamos o gênero levando em conta a autoria. A
só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria autoria, pensada como os atravessamentos e posicio-
argamassa de outras vidas. Descobrira também que não nalidades que configuram a voz que escreve, é uma
bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar ênfase que permeia os exercícios contemporâneos
outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, de reflexão sobre o literário. Como escreveu Judith
assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus. Butler, “há uma vida corporal que não pode estar
E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo ausente da teorização”. É interessante pensar que no
os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por caso da literatura brasileira, o “quem escreve” compõe
baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas o literário canônico desde sempre, embora a pergunta
havia. A vida era um tempo misturado do antes-agora-e-do- sobre “quem escreve” só tenha passado a incomodar,
-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos a ser entendida como problema sociológico e não
que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser. literário, quando o sujeito enunciador privilegiado da
(Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio). literatura brasileira tornou-se objeto de contestação.
A representação nacional arregimentada pela voz que
A possibilidade dessa comunidade, decaída, para enuncia o romance brasileiro comparece na clássica
Benjamin, com a assunção do romance, se alça, pelo obra Formação da literatura brasileira, de Antônio Candido,
oposto, a prenúncio, no olhar mais recente da roman- em que o fundamento do romance não está nem na
cista Toni Morrison, quando ela diz que “o romance é “transfiguração da realidade” operada pela poesia, nem
uma forma necessária para o povo negro”. 2 Entre Ben- tampouco na “realidade constatada” da ciência, mas,
jamin e Morrison, um Oceano Atlântico, no mínimo. sim, na “realidade elaborada por um processo mental
Mas em ambos há noções de narrativa como ponte, que guarda intacta a sua verossimilhança externa,
caminho e cognição, como linguagem que sustenta fecundando-a interiormente por um fermento de
nossa continuidade e reconhecimento enquanto seres fantasia, que a situa além do cotidiano – em concor-
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CAPA

rência com a vida”. Para o crítico, o romance é vitorioso que aponta, podemos conjecturar, um cenário futuro precisar que o mundo se acabasse. (...) Nessa cidade de onde
quando esses elementos aparecem em equilíbrio, e ele de caminhos mais abertos para a forma. saio, essa cidade tão enorme de prédios e pessoas e carros e
se mantém fiel “à vocação de elaborar conscientemente lixo passando e vida de cidade, as pessoas são jeitos perdidos.
uma realidade humana, que extrai da observação direta, Eu vi a força tão grande de gotas que rasgam fendas na ter- As coisas acontecem, as histórias se fazem aos milhares, mas
para com ela construir um sistema imaginário e mais durável”. ra – essa que ontem tinha sido tão dura e seca – e arrancam as histórias se perdem também aos milhares, morrem onde
Um sistema imaginário eurocêntrico, tendo em vista lascas dum barco que penso em amanhã esculpir. (Marilene nascem. Cada pessoa é uma história perdida. (Marilene
que a história do romance no Brasil também tangencia Felinto, As mulheres de Tijucopapo) Felinto, As mulheres de Tijucopapo)
a formação da elite letrada nacional.
Deste corpo de romances emerge uma roda insurrec- A TECNOLOGIA DA RODA
Movidos por um natural sentimento de solidariedade humana ta, que lança palavra contra o silêncio a que a História A roda é, antes de tudo, uma forma de leitura compa-
e pelo orgulho de sua raça, os negros se mantiveram altivos, relegou, de um lado, pessoas negras e suas narrativas rada, uma metodologia. O pressuposto da roda são as
indiferentes, revelando um destemor que não passou despercebido de si, e do outro, as narrativas do mundo. Uma roda trocas, os atravessamentos daquele momento vivo. A
ao senhor da casa-grande. O coronel percebeu que não poderia composta por um corpo textual que vem secularmente roda é um prisma a partir do qual se pode pensar a li-
insistir. Ficou petrificado, sentindo que os negros o envolveram disputando significados perante conteúdos que for- teratura como experiência contemporânea de conexão
subitamente num círculo estreito, encurralando-o. O medo mulam e interpretam o nacional, o passado colonial e e partilha, de comunidade. Gira nos clubes e círculos
dominara-o. Não tinha coragem de encarar os escravos. Furtava- a sociedade presente exclusivamente a partir do euro- de leitura, por exemplo, que retornaram como nunca
-se a olhá-los. A custo se mantinha de pé. Os braços cruzados centrismo. A roda engendra outras vias de significação foram, populares, e alguns com declinação aparente do
sobre o peito, a cabeça baixa, o olhar comprido vagueando sobre para pensar, por exemplo, as relações de poder e as que se busca, como os “leia/lendo mulheres”, “leia/
o assoalho. A respiração lenta, pausada, quase imperceptível. heranças que nos configuram enquanto sociedade. lendo mulheres negras”. Na roda não há hierarquia,
(Anajá Caetano, Negra Efigênia, paixão do senhor branco) o centro é móvel, contingente, transitório. A roda é o
O Coronel, não havia dúvida, nascera sob o domínio de uma avesso da torre. A roda não é lúdica nem está à parte,
Romances com autoria negra na literatura brasileira boa estrela, pois até essa idade não encontrava empecilhos na pelo contrário, pode gerar uma inteligibilidade oxi-
constituem um quadro de poucas obras, um quadro vida, tudo era amplo, igual ao espaço. Via todas as aspirações genada para lermos nosso tempo.
rarefeito. Em minha pesquisa de doutorado, na USP, realizadas, às vezes ficava pensando: “consigo tudo que almejo, A roda nos abre caminhos. De entender e se movi-
arrisquei fazer um mapeamento preliminar para pos- tenho a impressão de que a felicidade é minha madrinha e me mentar. Cada personagem, tessituras cujos sentidos
sibilitar uma visão panorâmica da cartografia da forma. protege com seu manto” (Carolina de Jesus, Pedaços da fome) dialogam com o real – e com os imaginários – que
Não localizei sequer uma centena de títulos, e encontrei nos atravessa(m) agora. Um corpus ficcional, do qual
apenas 14 autoras com romances publicados. Esse Textos que disputam narrativas desde o momento emerge um pensamento que nos atualiza acerca do
mapeamento, cabe dizer, já parte do princípio (espe- de formação das ficções de fundação. Disputam a conhecimento do passado, pois a memória é um chão
rança) da falha, isto é, de que existam muito mais obras narrativa de imaginação da nação e a narrativa da comum nos romances, levando-nos de volta à cena li-
e autoras do que o que está visível neste momento. memória que seleciona o passado a ser lembrado, minar da escravidão (Úrsula, de Maria Firmina dos Reis,
Oito dessas obras compõem a roda que costura minha impondo-se ao arquivo pretérito que apaga o negro Negra Efigênia, de Anajá Caetano, Um defeito de cor, de Ana
tese3, dedicada ao estudo de um conjunto de romances ou o mantém escravo. Disputa a História oficial en- Maria Gonçalves), à cena difusa do pós-abolição (Água
escritos por autoras negras brasileiras, em que teço um quanto projeção das elites dominantes, inscrevendo funda, de Ruth Guimarães, Diário de Bitita, de Carolina
recorte temporal de 1859 a 2006, por serem estes dois as temporalidades da experiência negra na narração de Jesus, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo), à cena
anos paradigmáticos: o primeiro, porque funda o corpus, da nação. Mas não só, evidentemente. Tece cotidianos, fractal do contemporâneo permeado de fantasmas
com o pioneiro Úrsula, o segundo, porque o assenta, sumidouros, bifurcações. do pretérito (A mulher de Aleduma, de Aline França, As
com Um defeito de cor – destacando que, desde o livro de mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto). Esses textos
Maria Firmina dos Reis, no século XIX, até a publicação E agora eu preciso inventar o sonho que vou sonhar amanhã. articulam continuidades num nexo enunciativo que
da obra de Ana Maria Gonçalves, apenas 11 romances (...) Nema, é assim que eu faço agora, aqui, para aguentar o abrange quase três séculos de confronto às narrativas
de autoras negras foram lançados no país. Mas, depois meio-dia. Eu saio em sonho ao meio-dia. Sabe quando foi que que moldam a face da literatura brasileira sem dina-
do lançamento de Um defeito de cor até o outono de 2019 primeiro eu sonhei? Quando era 1969 e eu pisei em São Paulo. mizar nela o seu princípio colonial. Isto é, afrontam
(isto é, no período de13 anos) foram publicados 17, o Lá nessa cidade eu passei a precisar inventar sonhos. Passei a a seletividade dos arquivos discursivos com os quais
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se tem imaginado a nação, porque impõe a essa ima-


ginação o componente fundante que, contraditoria-
mente, é mantido soterrado (na literatura canônica):
Lidas em roda, essas de alguma maneira, transposta a outros homens (no
pós-abolição) pela permanência da colonialidade.

a experiência histórica do negro.


Susana, Efigênia, Kehinde, Bitita, Maria Vitória,
Rísia, Joana, Ponciá, personagens dos romances, numa
autoras interpelam, – Meu filho – disse o coronel, se acercando dele – como me
sinto reconfortado com a volta de mãe Benedita e Efigênia.
Creio que estamos perdoados por todas as nossas faltas,
roda. Pensando cada uma dessas mulheres de papel,
vou imaginando conversas: ler é um ato vivo. Susana através dos tempos, por todos os nossos erros. Agora, eu creio que a fazenda do
Tronco sobre a qual pesavam tantas e tantas maldições será

o Brasil que sempre


é a mais velha da roda, sua voz pavimenta caminhos para sempre a fazenda de Santa Isabel. Daremos liberdade
e enunciações. Ela tem memórias intensas de sua plena a nossos escravos e sobre as nossas terras o trabalho
vida na África, antes dos bárbaros a capturarem para será livre. Ao término de cada jornada de trabalho, depois

repete as mesmas
ser escravizada no Brasil. Susana narra, sob o fluxo do amanho da terra avara de seus tesouros, os nossos negros
da água saindo dos olhos, aquelas outras águas, que não mais terão como recompensa apenas, o bolo de fubá e o
a atravessaram quando sob elas passou dentro de um catre, ou a solitária onde purgavam suas faltas.... Paulinho
navio negreiro. Ela narra, e leitores do século XIX es-
cravocrata puderam escutar assim: “Vou contar-te o
meu cativeiro”. A partir desse momento, um universo
engrenagens olhou-o com admiração, estarrecido. Ele jamais falara assim.
Súbito, como se tivesse sido possuído por forças espirituais
irresistíveis, o coronel Galdino num assomo de nervos como
representativo foi instaurado na ordem discursiva.

Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame


de opressão se houvesse enlouquecido, começou a gritar: – Para fora
daqui! Sois livre! Puxa! Puxa Estais livres! Eu os libertei! Ao
falar assim, afrontava a todos com gestos imperiosos, como
e o mendubim eram em abundância nas nossas roças. Era porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta se repelisse a negrada, procurando enxotá-la do terreiro.
um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos (Anajá Caetano, Negra Efigênia, paixão do senhor branco)
a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela, como nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para
o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em Ponciá, gestando tantos elos rompidos, faz a ponte
no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados entre os tempos idos e as dores que paralisam hoje,
minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão in- como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para realçando que evitar ou esquecer feridas históricas
compreensível pesar. Minha filha sorriu-se para mim (...). recreio dos potentados da Europa (...). (Maria Firmina nos expõe a perigos, impedem a saúde do sujeito, da
Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe e dos Reis, Úrsula) comunidade. Feridas que precisam ser fratura exposta,
fui-me à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la… para depois de vistas, dar lugar à pele nova do futuro.
Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando Afiando suas facas sob o peso do colonial que em- Os círculos em torno dos quais Ponciá Vicêncio se en-
um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar pareda, Efigênia é só escuta e espera – pantera no reda geram uma catarse que extrapola a personagem:
acerca do perigo iminente que aí me aguardava. E logo procedimento, comunicando um cenário distópico e a experiência das memórias que herdamos de nossos
dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era totalmente realista, em que a escravidão termina, mas antepassados, articulada aos desafios do nosso próprio
uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei as desigualdades e hierarquias perduram. A abolição, presente, é que pode descolonizar a vida.
em nome de minha filha que me restituíssem a liberdade: os no romance, não representa uma mudança de fato
bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me para as pessoas negras, nada indica que o 13 de maio De todas as pessoas, Ponciá ouviu a mesma observação. Ela
sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas garantirá à comunidade ex-escrava a ascensão à ci- era a pura parecença com Vô Vicêncio. Tanto o modo de andar,
não me foi possível... a sorte me reservava ainda longos dadania e igualdade; ao contrário, o romance termina com o braço para trás e a mão fechada como se fosse cotó,
combates. Quando me arrancaram daqueles lugares onde sugerindo que a consciência do homem branco não como ainda as feições do velho que se faziam reconhecer no
tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! seria realmente transformada com a mudança oficial semblante jovem da moça. A neta, desde menina, era o gesto
Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós de regime político: liberto da condição de senhor, mas repetitivo do avô no tempo. Escutou também, por diversas
o pudestes avaliar… Meteram-me a mim e mais trezentos não do lugar de poder que essa posição lhe conferia, vezes, a história dolorosa, que ela já sabia, da morte da avó
companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito infecto essa consciência do senhor de escravos sobreviverá, pelas mãos do avô. Relembravam o desespero e a loucura do
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CAPA

homem. Falavam também do ódio que o pai dela tinha por Vô


Vicêncio ter matado a mãe dele. Ponciá sabia dessas histórias
e de outras ainda, mas ouvia tudo como se fosse pela primeira
vez. Bebia os detalhes remendando cuidadosamente o tecido
roto de um passado, como alguém que precisasse recuperar a
primeira veste para nunca mais se sentir desesperadamente
nua. (Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio)

Rísia andou por nove meses à margem da BR-101,


que liga São Paulo ao Recife, procurando no passado
um futuro para nascer de novo, mas agora na placenta
da revolução. Uma revolução interior, subjetiva, que
envolve o retorno para a cena das “esculhambações”
históricas que formam o sujeito no presente, e um
mergulho na composição dos afetos, também eles,
respondendo aos atravessamentos (de raça, gênero,
classe social, geografia) que constituem a primeira
pessoa da narrativa. O tempo, filtrado pela subjeti-
vidade da narradora, é um dos temas centrais da fic-
ção. Passado e presente surgem como temporalidades
amalgamadas, espirais, medi(a)das pelo sentimento,
e pelos próprios fantasmas.

Eu saí de São Paulo porque houve um homem que se morreu de


mim e porque lá eu morava no subúrbio enquanto todos os meus
amigos estavam bem estabelecidos no Higienópolis paulista.
Então, muitas vezes os contatos eram impossíveis porque eu não
tinha telefone. Eu nunca era avisada da morte de alguém, por
exemplo. Os contatos ficavam difíceis. O Higienópolis paulista
é onde se bebem os guaranás inteiros. E o onde estão as pessoas
que já leram os livros que eu já li. E é isso que me dana. (...)
É essa gente que depois discutirá a goles de Coca-
-Cola inteira no Higienópolis paulista. (...) Quando eu
chegar lá, vou contar a Nema dos mil nomes científicos e não
científicos que eles arranjaram para me definir e para provar a
inocência deles na minha retirada. (...) Nema, você pensa que
em São Paulo há um poema que rime com Nema? Não, lá é tudo
dissonância (Marilene Felinto, As mulheres de Tijucopapo).

No caminhar da roda, corajosa e aguerrida, chega


Bitita, dizendo do que permanece, do que a abolição
prometeu e depois ninguém sabe, ninguém viu. Mu-
lheres negras sendo presas sem razão (ou melhor,
dentro de uma (ir)racionalidade racista) e a perma-
nência do chicote – simbólico inconteste da opressão amar. Obá, Obá... Deixem de guerrear... (Aline França, A que vive e resiste à morte (do corpo, da memória
dos senhores de escravos. Carolina Maria de Jesus é mulher de Aleduma). e da agência). Escrava, alforriada, fugida e livre,
uma intérprete da modernidade brasileira, uma fonte Kehinde experimentou todos os estados em que
de água revolta. Suas narrativas nos ensinam a ler a Kehinde, filha de Oxum astuta e criativa, vem na no passado se categorizou a vida da pessoa negra,
sinonímia moderno/colonial, porém, não sem antes roda mostrar os desenredos de seus caminhos atlân- e em todo eles produziu saídas e vias de existência.
nos confrontar: Trouxeste a chave? ticos. Cruzando vários mundos no romance, sua nar- Nesse romance, a narrativa se potencializa como
rativa torna prescritos múltiplos silêncios, abrindo cognição, cuja cognoscibilidade produz, no ato da
Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. E espaço para uma rede intrincada de relações, linhas leitura, um conhecimento do passado que reverbera
muitas vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados de fuga, atalhos e curvas, tornando tudo mais fundo e no nosso presente.
não podiam prender os brancos, então prendiam os pretos. complexo, lembrando-nos a todo tempo a necessidade O corpo de romances de autoras negras no Bra-
Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto. (...) e a força do arquivo. sil constitui a/constitui-se na literatura brasileira
Os brancos, que eram os donos do Brasil, não defendiam moderna e contemporânea, embora questione seus
os negros. Apenas sorriam achando graça de ver os negros Quando eu disse que me chamava Kehinde, o nosso dono pa- pressupostos formativos ao inscrever em seu ter-
correndo de um lado para outro. Procurando um refúgio, para receu ficar bravo, e um dos empregados perguntou novamente, ritório uma gama de problemáticas, em razão da
não serem atingidos por uma bala. (...) Minha mãe lavava em iorubá, que nome tinham me dado no batismo. Eu repeti potência que possui em acender fagulhas nos falsos
roupa por dia e ganhava cinco mil-réis. Levava-me com ela. que meu nome era Kehinde e não consegui entender o que consensos que historicamente foram sendo inscritos
O meu olhar ficava circulando através das vidraças olhando diziam entre eles, enquanto o empregado procurava algum no arquivo discursivo nacional. Por exemplo, o de
os patrões comer na mesa. E com inveja dos pretos que podiam registro na lista dos que tinham chegado no dia anterior. O que somos um povo harmônico, sem conflito racial
trabalhar dentro das casas dos ricos. Um dia minha mãe que sabia iorubá disse para eu falar o meu nome direito porque nem racismo.
estava lavando roupa. Os policiais prenderam-na. Fiquei não havia nenhuma Kehinde, e eu não poderia ter sido bati- Pelos seus conteúdos, o pensamento produzido
nervosa. Mas não podia dizer nada. Se reclamasse o soldado zada com este nome africano, devia ter um outro, um nome nessa roda de romances retoma o passado e nos atu-
me batia com um chicote de borracha. Quando o meu irmão cristão. Foi só então que me lembrei da fuga do navio antes da aliza sobre o contemporâneo, ao elaborar de forma
soube que a mamãe estava presa começou a chorar. Rodáva- chegada do padre, quando eu deveria ter sido batizada, mas criativa a concepção de que no Brasil há uma lógica
mos ao redor da cadeia chorando. À meia-noite resolveram não quis que soubessem dessa história. A Tanisha tinha me de poder atuante que sustenta ininterruptamente a
soltá-la. Ficamos alegres. Ela nos agradeceu depois chorou. contado o nome dado a ela, Luísa, e foi esse que adotei. Para colonialidade. Mas, se uma das ferramentas mais
Eu pensava: “é só as pretas que vão presas.” (Carolina de os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me importantes da manutenção da ordem é o controle
Jesus, Diário de Bitita) considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a minha avó sobre o esquecimento de determinadas fendas, a sua
me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã, por enunciação na narrativa rompe o silêncio, propõe
Sob o som dos tambores, inventando espaços no Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo. linhas de fuga, constrói a ruptura. Retém-se da leitura
imaginário para a existência plena, eis que surge na Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, desses romances que a roda é substantivo espiral,
roda Maria Vitória, lá da ilha de Aleduma, um quilom- era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao produz um pensamento sobre o Tempo, sobre o que
bo na Terra projetado por negros vindos de um planeta secreto. (Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor) do passado permanece constituindo nosso presente,
imaginário. Nesse romance, o histórico é inscrito como rareando nosso futuro.
deriva do real, antecipando linhas afrofuturistas na Por meio do seu intenso e longo fluxo narrativo, Esses romances, visíveis e em circulação, interrogam
narrativa. A ficção, científica para alguns, surrealis- o romance Um defeito de cor possibilita uma experi- o Brasil pela chave da espiral-plantation 5, seu paradigma
ta para outros, projeta uma comunidade de destino ência de pensamento e acesso a um arquivo, um mais durável. Por isso, convergem tanto com o con-
transnacional, afropolita 4, que se encontra e conecta mundo de conexões, representações e imagens temporâneo, nas dinâmicas notáveis de fortalecimento
por uma mesma linguagem oral e corporal, o ijexá. sobre a escravidão; sobre a modernidade vista da continuado dos mesmos círculos no poder, na repeti-
diáspora; sobre a colônia; as relações sociais (entre ção das mesmas engrenagens de opressão, no retorno
O presidente do afoxé falou em voz alta: que esta febre apa- homens e mulheres, negros e brancos, adultos e a certo modus operandi já conhecido, nos retrocessos, em
reça sempre em cada um de nós e com a voz embaraçada de crianças, brasileiros e estrangeiros, livres, libertos tudo que no nosso momento aquilata forças de cará-
emoção gritou OXUM, OXUM, banhe a terra com suas águas e escravizados). O romance constrói uma narrativa ter regressivo. Romance e sociedade são uma chave
abençoadas e que todos os cânticos em IJEXÁ traduzam nossas para o cotidiano de uma mulher negra em suas clássica de leitura nos estudos literários brasileiros,
homenagens ao planeta IGNUM. E o Badauê cantou: “Oxum, relações, transições, negociações, buscas, frus- mas quantos trabalhos aproximam os romances de
Oxum, amenize a fúria de Ogum... Deixe Xangô, suas mulheres trações, alegrias, amores, enfim, enquanto sujeito autoria de mulheres negras em suas interpretações?
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KARINA FREITAS

Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que
passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de
outros, e ainda assim o dou a lume. Não é vaidade de adquirir
De 1859 a 2006, de uma comunidade entre discurso e vida, entre
narrativa e experiência histórica, a partir da qual
outra interpretação do Brasil emerge, fraturando a
nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco
vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação
apenas 11 romances “comunidade imaginada” alimentada em diversos
romances que compõem o cânone literário nacional.
No campo dialógico desse corpo de romances está
dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que
corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo assinados por composto narrativamente, isto é, com o mesmo padrão
de tropos narrativo que molda nossa concepção de história 8,

mulheres negras
a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é a experiência/pensamento/perspectiva/existência
quase nulo.” (Maria Firmina dos Reis, Úrsula) do sujeito negro, a partir da qual outra narrativa do
Brasil emerge.

foram lançados no
As frases do trecho acima foram as primeiras que o
leitor do século XIX leu da pena da romancista pre- Estas coisas aconteceram em qualquer tempo e em qualquer
cursora do Brasil. Assim mesmo, em duplo sentido: parte. O certo é que aconteceram. E, como sempre se dá,
precursora do romance e precursora do Brasil. Não
se engane com o tom, cara leitora do século XXI, este
acento de justificativa era um código comum entre es-
Brasil. De 2006 até ninguém apreendeu nada do seu misterioso sentido. (Ruth
Guimarães, Água funda)

critoras que ousaram publicar nos oitocentos. Zahidé


Muzart 6 avaliou que a pretensa postura de humildade
e inexperiência no trato com a linguagem, revelada
2019, já são 17. NOTAS
1. Jeanne Marie Gagnebin. “Walter Benjamin ou a história
aberta” (Prefácio). BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas,
por mulheres escritoras nos prefácios de seus livros, pode ter sido escrito antes ou concomitantemente a v. I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasi-
constituía uma estratégia pela qual a mulher sutilmente O guarani (1857), de José de Alencar.7 Ambas as obras liense,1994.
conseguia transpor os limites a ela impostos. Mas, no partilham do mesmo contexto histórico e político, 2. Toni Morrison em entrevista a Paul Gilroy. In: O Atlân-
caso da nossa precursora, subjazendo esse “pedido de mas, entre os significados para o passado e o porvir tico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo:
desculpas” há uma altivez escancarada, interposta que comunicam, existem largas diferenças. Ed. 34; Rio de Janeiro: UCAM, Centro de Estudos Afro-
justo ali no duplo verbo saber. Maria Firmina dos Reis -Asiáticos, 2001.
sabia. E já que sabia, adiantou-se. Entre o riso e/ou a – Tu! Tu livre? ah, não me iludas! – exclamou a velha africana 3. “Corpo de Romances de Autoras Negras Brasileiras
indiferença dos homens da elite letrada, a primeira abrindo uns grandes olhos. Meu filho, tu és já livre? (Maria (1859-2006): Posse da História e Colonialidade Nacional
romancista do Brasil está (cons)ciente de seu próprio Firmina dos Reis, Úrsula). Confrontada” (Letras, USP, 2019).
presente no que ele continha de barreira, e está ali- 4. SELASI, Taiye. Bye-bye babar (or. what is an afropolitan?).
nhada ao seu devir no que ele contém de revide – no No instante em que Úrsula foi lançado no mundo The LIP Magazine, 2005.
primeiro uso do verbo, a audácia lúcida: sabia das público, ficou inscrito um conteúdo que não existia 5. O conceito de espiral-platantion trabalha com a ideia de
dificuldades de recepção, deu lume ao texto assim na ordem discursiva nacional até então. O romance continuidades nacionais que mantém certos paradigmas
mesmo. No segundo verbo, a visão ampla: sabia que a transgrediu o campo mapeado pela ficção brasileira, de dominação intactos.
valoração da obra literária acontecia em correspondência ultrapassando o limite das águas navegáveis pela 6. MUZART, Zahidé. “Artimanhas nas entrelinhas: leitura
imediata com elementos extratextuais, como o gênero imaginação e pelo pensamento no século XIX. Na do paratexto de escritoras do século XIX”. In: FUNCK,
e a etnia do autor: sendo ela uma mulher negra, no obra, é do homem negro que brota a medida do Susana Bornéo (Org.). Trocando ideias sobre a mulher e a
século XIX escravocrata, enunciou e pronto. humano, e da mulher negra que emerge um arquivo literatura. Ed. da UFSC, 1994.
Úrsula, da maranhense Maria Firmina de Reis, é um de memória cuja narração fratura o ordenamento 7. A resenha pode ser acessada no precioso portal: https://
romance fundador da literatura brasileira. Escrito e colonial que organiza(va) a sociedade brasileira. Esse mariafirmina.org.br/, idealizado pela pesquisadora Luciana
publicado no momento em que as narrativas funda- romance produziu uma significação (dentro e fora do Diogo, que disponibiliza diversos materiais sobre Maria
cionais da nação e do sujeito nacional estavam sendo texto) que não apenas confrontava a realidade que Firmina dos Reis.
elaboradas pela elite letrada. Embora tenha sido lan- a literatura oitocentista produzia, mas que gerou 8. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da imagem
çado no fim do ano de 1859, em 1857 já estava pronto também uma pergunta, e uma forma de perguntar, eurocêntrica – Multiculturalismo e representação. São
e a caminho do prelo, o que indica que o romance rastreada em outros romances, que alçam contornos Paulo: Cosac Naify, 2006.
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ARTIGO

Para riscarmos What are poets for, in such an age?


What is the use of poetry?
Ferlinghetti, Poetry as an insurgent art

nossos fósforos
Em março deste ano, Lawrence Ferlinghetti, poeta,
editor e ativista estadunidense, completou 100
anos. A efeméride, bastante celebrada nos Esta-
dos Unidos, especialmente em sua cidade, São

dentro da noite
Francisco, levou o mundo literário a revisitar a
sua trajetória, uma trajetória única em diversos
sentidos. Pela nossa conjuntura de democracia em
ruínas, e também pelo estado belicoso do nosso
pequeno mundo poético, vale a pena recuperar ao
O centenário de Ferlinghetti menos um dos aspectos que fez de Ferlinghetti uma
figura central para a literatura e a contracultura nor-

e a celebração de vida e obra te-americanas: a sua capacidade de agregar artistas


e ativistas diferentes ao seu redor, fazendo de sua

voltadas para a insurgência


livraria e editora um polo de discussão e resistência.
Seus 100 anos, celebrados com a publicação de
um pequeno romance, Little boy, um gesto de quem
ainda acredita em literatura, são uma aula sobre o
Marcelo Lotufo lugar que a poesia e os livros podem ocupar em
tempos de crise; são um guia para pensarmos na
nossa própria atuação nos próximos anos. “Ah, o
mundo é um lugar ótimo / para nascer / se você
não ligar tanto / para algumas mentes vazias / nos
lugares mais altos / ou para uma ou duas bombas /
jogadas aqui ou acolá / nas suas caras arrebitadas.”
(The world is a beautiful place)
Há, em Ferlinghetti, uma recusa em se colocar
em primeiro lugar, uma negativa de seguir o refrão
“eu, eu, eu, eu, eu” que marca, segundo ele próprio,
a cultura americana. “Yeah, por toda a América todo
mundo correndo feito louco atrás da sua gratifica-
ção instantânea e por que não? O que mais existe
para animar nossas vidas eu tenho de tomar o que
é meu o que eu quero eu quero eu quero fazer um
milhão da noite para o dia e ficar rico rapidinho e
sair e ter amantes e quem liga para aquecimento
global e foda-se tudo isso” (Little boy). Criar espaços
de trocas e aprendizado, apoiar outros escritores
e artistas, pode não parecer um ato radical, mas
certamente teve e tem um poder transformador.
Se dedicar ao coletivo é a concretização daquele
“ninguém solta a mão de ninguém” que passamos
a escutar desde as últimas eleições.
Ferlinghetti tornou-se conhecido ao publicar o
icônico Uivo (Howl) de Allen Ginsberg em sua peque- livro você acredita que ele é?” Sincero, o crítico
na editora de poesia; uma publicação que o levou, respondeu: “o livro seria melhor descrito como um
em finais de macarthismo, às cortes norte-ameri- livro à maneira dos livros proféticos da Bíblia, par-
canas. Foi em um sarau na cidade de São Francisco ticularmente o de Oséias, com o qual se assemelha
– a famosa leitura da Galeria Seis – onde o poeta em muitas partes”. Em tempos de crise, não basta
beat apresentou pela primeira vez o seu famoso editores fazerem cartas pedindo para comprarmos
poema para o público. Impressionado pela maneira mais livros; eles precisam se arriscar publicando o
com que Ginsberg captava algo das transformações que não querem que leiamos. Os livros “perigosos”
sociais que a contracultura começava a representar, são os que contam e transformam, mesmo quando
Ferlinghetti escreveu ao poeta convidando-o a pu- não dão lucros. Nos próximos anos, será preciso
blicar o trabalho por sua recém-inaugurada editora: insistir que nossas pautas continuam relevantes,
a City Lights. “Felicidades em uma bela carreira que mesmo que não haja financiamento para nos-
que se inicia! Quando recebo o seu manuscrito?” sos projetos, eles irão acontecer. A outra opção,
A importância do livro, hoje, é difícil de men- como já sabia Ferlinghetti, é capitular e deixar de
surar. Ainda assim, passados mais de 60 anos, acreditar que outro mundo é possível.
sabemos que conhecidas editoras norte-ameri- Ao aproximar-se dos escritores beats, Ferlinghetti
canas haviam lido o manuscrito de Urro antes de também publicou poetas como Diane di Prima e
ele chegar às mãos de Ferlinghetti, mas prevendo Gregory Corso, além do romancista Jack Kerouac, e
o custoso caso judicial que se seguiria à sua publi- viu a sua própria poesia ganhar o ar despojado e por
cação, resolveram não levar o projeto adiante. Foi vezes messiânico do movimento. Dois anos depois
Ferlinghetti, um pequeno editor independente, de publicar Uivo, Ferlinghetti publicava o seu próprio
quem resolveu comprar a briga. Ele se associou à Um parque de diversão da cabeça (1958), um dos grandes
Liga pelas Liberdades Civis dos Estados Unidos e sucessos de público da poesia estadunidense; um
esperou ser processado, como de fato aconteceu. livro que se tornou porta de entrada para gerações
Como poeta, sabia que valia a pena correr riscos; de leitores daquele país encontrarem a poesia. Sua
sabia que era ali, nas margens, que a verdadei- obra, de certa forma, também procura agregar, ha-
ra literatura acontecia, onde a luta para definir o bitando entre o erudito e o popular, e convidando
mundo que gostaríamos de viver se passava. Essa o seu leitor a passar de um para o outro sem pre-
foi uma decisão que rendeu dividendos morais cisar vestir-se com ares presunçosos, ou assumir
(e também financeiros) aos envolvidos, além de um tom de superioridade. Ninguém gosta de um
uma curta temporada de cadeia para Ferlinghetti babaca diplomado te dizendo o que fazer. A poesia
e o gerente de sua livraria, Shig Murao. de Ferlinghetti não era só para iniciados. É possível
O processo, que até pouco pareceria absurdo, passar uma tarde em um estádio esportivo com os
hoje parece ter ganho novamente ares plausíveis. amigos, pensando em poesia, falando de política,
A perseguição à universidade e ao pensamento, o sem se incomodar com a algazarra, ignorando a
medo do diferente, a aversão ao erótico e ao sen- sisudez do cânone e da escola, “assistindo baseball
sual, retornaram com força nos últimos anos e nos / sentado sob o sol / comendo popcorn / lendo Ezra
obrigam novamente a nos posicionar enquanto Pound / desejando que Juan Marichal / rebatesse
artistas, editores, leitores e cidadãos. “Você diz a bola bem em cheio / na tradição anglo-saxã”
que este livro não é pornográfico” perguntou o (Baseball Canto).
juiz a um dos nove críticos literários convidados a Ainda assim, Ferlinghetti resistiu chamar-se de
ser testemunhas no processo. “Então que tipo de poeta beat, ou tornar a sua uma editora beat, capi-
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

FILIPE ACA

talizando no sucesso explosivo que o movimento


tivera. A resposta, às vezes atribuída a Gregory
Corso ou a Gary Snyder, quando questionados sobre
O poeta acreditava assim que se formariam os quadros da revolução
futura, ou da resistência presente. Em momentos
de crise, esses espaços são preciosos e precisam
sua participação na geração beat, poderia pertencer
também a Ferlinghetti: “três escritores não fazem
uma geração.” Algo do desejo “automitologizante”
que a variedade ser valorizados.
Uma cena literária não podia florescer sem livra-
rias abertas após as cinco da tarde ou nos finais de
desses escritores, que funcionava tão bem na lite-
ratura, acendia um alerta para Ferlinghetti na vida de interesses semana. Foi esta a missão que Ferlinghetti, junto
a Peter D. Martin, assumiu ao abrir a sua livraria

e a atenção à
real. O “eu, eu, eu, eu, eu” que parecia assombrar o e editora. Não lhes interessavam livros caros e es-
estilo de vida norte-americano, também espreitava paços restritos. Eles queriam fazer livros (e ideias)
o mundo da cultura. Em tempos de Instagram, a circularem, queriam que livros fossem carregados

política poderia
vontade de nos projetarmos é ainda maior; mas se em bolsos e prolongassem os debates e trocas que
deixarmos ela definir nossas ações culturais e de alimentavam seus encontros. Era preciso fortalecer
resistência, se deixarmos ela pautar aquilo que es- estes debates, primeiro dentro da própria comu-
crevemos, estaremos reproduzindo a própria lógica
que está nos afundando como sociedade. Diferen-
temente dos beats que gostavam de não gostar de
transformar sua nidade, para depois expandi-los. E foi isso que fez
Ferlinghetti, criando, a partir de São Francisco, uma
grande rede de trocas que, em tempos de Guerra
tudo que não fosse aquilo que eles mesmos faziam,
Ferlinghetti acreditava que uma maior variedade
de temas e interesses, uma atenção às questões
comunidade Fria, abarcou países como a China e a Nicarágua,
além da própria União Soviética.
A poesia de Ferlinghetti, como alguns de seus
político-sociais do seu tempo, seria central para negro, e Denise Levertov, ativista contra a Guerra críticos gostam de apontar, é uma poesia popular,
transformar a sua comunidade. do Vietnã, entraram no catálogo da editora. Fugindo por vezes beirando o hit da música pop. Pode ser.
Na sua correspondência com Ginsberg, fica claro do niilismo beat, Ferlinghetti tornava-se uma figura Ou, talvez, ela seja uma poesia que se aproxima
o seu desconforto com a mitomania do seu amigo; cada vez mais engajada. Foi assim, também, que da música de protesto, sem perder certo lirismo,
assim como a sua tentativa de tergiversar os pedidos Pier Paolo Pasolini e Ernesto Cardenal, além do ou deixar de ter um caráter reflexivo. Não é à toa
dele para que publicasse o seu círculo de amigos. soviético Ievguêni Ievtuchenko, em plena Guerra que foi ali na sua livraria que Bob Dylan conheceu
Uma editora de amigos não é uma editora, é um Fria, chegaram ao público americano. alguns dos poetas que influenciaram suas canções
clube. “Você é um movimento em si mesmo”, ele Aqui, vale abrir parênteses e apresentar um poe- mais engajadas. É uma poesia para se ler e escutar ao
escreveria à Ginsberg. “Mas carrega esta pequena ta menos conhecido no Brasil, mas que também som de jazz, ao lado dos amigos, ou quem sabe no
gangue de aduladores com você em uma espécie de teve uma importante influência sobre Ferlinghetti: caminho de mais uma manifestação que, espero,
portfólio de candidatos à revolução... Eu não estou Kenneth Rexroth. Ferlinghetti, ao chegar em São serão mais e mais comuns nos próximos meses. É
neste mundo para editar poetas que escrevem como Francisco no início dos anos 1950, antes dos beats uma poesia que, assim como o próprio Ferlinghetti,
Allen Ginsberg.” Não interessava, ao poeta, investir aportarem por lá, encontrou uma cidade que já procura congregar e não dividir. É o tipo de poesia
em uma mitologia beat, ainda mais enquanto a pulsava. A cena poética era vibrante, capitaneada que talvez estejamos precisando para resistir aos
Guerra do Vietnã pegava fogo e a luta por igualdade por Rexroth, e nela circulavam Dylan Thomas, anos que temos pela frente. E mesmo que seja por
de direitos civis da população negra dos Estados Kenneth Patchen e outros. Uma cidade viva cul- mais 100 anos, continuaremos resistindo. “Ainda
Unidos enfrentava a política racista do Estado. Era turalmente foi o que possibilitou, em partes, que a nem tudo despedaçado / nem tudo perdido para a
preciso abrir espaço para novas vozes, era preci- explosão beat ganhasse tração e que a contracultura escuridão / tudo ainda amarrado / a algum centro
so ampliar as redes de convivência e poesia; era questionasse a ordem das coisas. Nada acontece do estável / até mesmo agora / neste começo quase
preciso ser solidário às lutas dos outros e fazê-las dia para a noite. Egresso do movimento sindical dos incendiário / enquanto mais outro / rebelde quei-
também nossas. Foi assim que nomes tão diversos e anos 1930, Rexroth acreditava na importância de mando intensamente / risca o seu fósforo / dentro
importantes como os poetas Bob Kaufman, que era se encontrar para debater política e literatura. Era da nossa noite.” (The rebels)
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

ENSAIO

Outras formas Em troca de missivas com Julio Payró, crítico de arte


argentino, Juan Carlos Onetti afirma que aprendeu,
ao longo de sua vida até ali, mais com a pintura do

de ser na
que com a literatura. Essa afirmação tem me cau-
sado inquietações no que diz respeito às estruturas
estéticas dos textos uruguaios, em especial os que
surgiram nas décadas de 1940 e 1950. Nesse recorte
histórico-cultural, as letras do país passaram por

modernidade
um processo de ruptura com a escola conhecida
como “do Centenário”, o que culminou na formação
do pensamento da Geração de 45, entendida como
parte de uma paisagem da modernidade latino-
-americana tardia.
Os corpos e as críticas que A partir de breve contexto cronológico, entende-se
que a produção do Centenário – atravessada pelo viés

habitam a obra da escritora ideológico de Jose Batlle y Ordoñez, presidente do


país de 1903 a 1907 e, depois, de 1911 a 1915 – surge

uruguaia Armonía Somers


em um momento no qual a classe média uruguaia
entra em ascensão e o liberalismo, proposto por
Batlle, está em seu auge também como motor da
produção literária e de difusões artísticas. Assim, na
Priscilla Campos década de 1940, a sociedade entra em uma espécie
de apogeu econômico pós-guerra e pré-ditatorial.
Destaco, desse período, as seguintes publicações: Na-
die encendia las lámparas (1947) e Las hortensias (1949), de
Felisberto Hernandéz; La vida breve (1950), de Onetti;
La mujer desnuda (1950) e El derrumbiamiento (1953), de
Armonía Somers.
Os autores citados, assim como Idea Vilariño,
Marosa di Giorgio e Mario Benedetti, formam uma
geração que se coloca como elite intelectual do país,
típicos citadinos de Montevidéu, sujeitos resultados
da cidade letrada latino-americana de que falou o
crítico Ángel Rama. Dessa forma, é importante o
registro de que o espaço ocupado pela Geração de
45 era um tanto quanto “confortável”; oponente à
política liberal do passado, por exemplo, porém ba-
seado em todos os benefícios urbanísticos e sociais
de um desenvolvimento que perpassou os países
do continente.
Dito isso, observo tal contorno como um espaço-
tempo no qual foi possível a constância de desvios
em vários eixos: temáticos, de linguagem, de autoria
e de estrutura textual. Nesses termos, parece-me
natural o comentário de Onetti sobre a importância
das pinturas, pois é no gesto da imagem que se con-
juram duas figurações muito importantes para esses em A mulher de trinta anos, faz parte da ordem de um
escritores: as alegorias fantasmagóricas e os corpos. corte preciso em relação aos tipos de deslocamentos
Representações essas que têm como base desviante admissíveis ao corpo da mulher.
o ato de ver; é por meio da visão que se pode falar. Diante da literatura imaginativa de Somers, penso
Seleciono, então, a escrita de Armonía Somers (1914 em dois caminhos de investigação. O primeiro parte
– 1994), pseudônimo de Armonía Liropeya Etchepare da perspectiva do corpo; o segundo reflete sobre como
Locino, como objeto foco para pensar as caracterís- a sua obra pode ser lida a partir das relações entre au-
ticas, incluindo as contradições, da Geração de 45. toria e gênero. Nos tópicos a seguir, relaciono as duas
Nascida na cidade de Pando, a escritora tornou-se frentes com a ideia da imagem, da pintura: o motor
nome de referência, em especial, no gênero conto e na do processo criativo da literatura uruguaia concebida
ação feminista. Seu pai era um comerciante anarquista durante o recorte cronológico da Geração de 45.
e anticlerical e, sua mãe, muito católica. Foi professora
e pedagoga; dedicou-se, principalmente, a estudos OLHA-SE O CORPO
sobre criminalidade entre os jovens. Publicou quatro No início de O que vemos e o que nos olha, Georges Di-
novelas – entre elas, como visto, La mujer desnuda (1950) di-Huberman fala da “inelutável cisão do ver” por
e Un retrato para Dickens (1969), espécie de releitura do meio de um trecho de Ulisses, de James Joyce. No
clássico Oliver Twist – e antologias de contos. fragmento a seguir, ele analisa de que forma se dá
Sobre a sua obra, Ángel Rama afirma: “Somers não esse entendimento de que o corpo é um estado de
parte de uma linha da literatura fantástica em que continuidade diante do olhar: “É que a visão se choca
reside unicamente num tipo de oposição ao realismo sempre com o inelutável volume dos corpos huma-
dominante – segundo o esquema cultivado pela crí- nos. In bodies, escreve Joyce, sugerindo já que os cor-
tica argentina.” Para o teórico, a autora “apela” aos pos, esses objetos primeiros de todo conhecimento
elementos fantásticos e os utiliza “a serviço” de um e de toda visibilidade, são coisas a tocar, a acariciar,
afã em explorar o mundo. “Com maior rigor, estaria obstáculos contra os quais ‘bater sua cachola’; mas
falando de uma literatura imaginativa”, escreve Rama. também coisas de onde sair e onde reentrar, volumes
Assim, de início, entende-se que a obra de Somers não dotados de vazio, de cavidades ou de receptáculos
é uma resposta ao cânone, ao patriarcado e ao passado orgânicos, bocas, sexo, talvez o próprio olho”.
de sua tradição nacional – como se pode imaginar, de Para a interpretação do que Joyce fala no parágrafo
forma rasa, a partir da leitura de Un retrato para Dickens, do capítulo de abertura do romance, o crítico de arte
por exemplo. O que a autora propõe é um tipo de linha destrincha uma ideia do corpo como constante a ser
disruptiva entre o que pode ser construído narrativa- tocada e, também, como algo que atravessa os olhos.
mente, por uma mulher, em um recorte de intenso No corpo, então, encontra-se a chance do palpável
experimentalismo e novas concepções literárias. e de ser apenas visto (como um fantasma). Em uma
O lançamento de La mujer desnuda foi tido como um das cenas de La mujer desnuda, a personagem corta a
“choque” em sua recepção e leitura. O público e a sua própria cabeça que gira “pesadamente, como
crítica não sabiam de quem era a autoria do relato um fruto”1 e, depois, coloca-a de volta “de um golpe
de Rebeca Linke, mulher que acaba de completar duro como um casco de combate”.
30 anos e chega, de trem, até uma casa de campo. Assim, os corpos nos livros de Somers não mais
Durante o caminho, o seu corpo torna-se despido, podem ser acariciados – o que, para um corpo de
volta a certo tipo de grau zero, ao nada, ao corpo nu mulher, na estética patriarcal, seria a ação “natural”
em um espaço fora do sistema citadino, letrado, capi- a seguir; o corpo a serviço do toque – pois o que
talista. Aqui, o “ápice poético da vida das mulheres”, pode ser alcançado aqui faz parte de um processo
como escreveu Honoré de Balzac, no século XIX, de mutilação, corte e fragmentação. Um corpo que
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

ARTE SOBRE REPRODUÇÃO

busca os pedaços para que, dessa maneira, com-


preenda o que pode ser interpretado como tangível
e, ato contínuo, o que pode aparecer, torna-se foco.
As personagens de Calibã e a bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva,
de Silvia Federici, a participação do corpo feminino
como membro ativo do sistema capitalista foi sendo
Em O corpo impossível – A decomposição da figura humana:
de Lautréamont a Bataille, Eliane Robert Moraes analisa
a prática de alguns gravuristas franceses que re-
Somers estão em manipulada ao longo dos séculos.
Quando Somers, Marosa di Giorgio, Delmira Agusti-
ni e outras escritoras do cone sul propõem uma espécie
presentavam, no século XVIII, a figura humana por
meio de retratos de guilhotinados. De acordo com a em deslocamento de segunda voz – termo visto por Alicia Genovese em
sua pesquisa do final dos anos 19902 –, seus textos

constante; são
pesquisadora, as palavras “fragmentar, decompor e estão contorcendo expectativas e premissas opressoras
dispersar” encontram-se na base de qualquer espí- que permeiam todos os recortes literários, não só o da
rito que se diga moderno. Nesse aspecto, as imagens Geração de 45. Muitos são os ensaios de fortuna crítica,

modernas sem
do corpo, em Somers, estão ligadas a um tipo de voltados para essas autoras, escritos por homens (a ver,
identificação moderna. Porém, o recorte moderno como citado aqui, o de Angel Ráma, por exemplo).
pressupõe um tipo de apreço ao efêmero, ao que Eu os vejo, para além da legitimação que faz parte do
permanece em estado de suspensão.
Aqui está a chave de leitura que nos interessa: sim,
as personagens de Somers encontram-se em estado
crer no detalhe machismo estrutural, como movimento de leitura
importante para época. Essas mulheres estavam sendo
lidas entre si, pelo público, pela crítica e pelos homens.
de deslocamento constante – como os modernos –,
mas não reivindicam esse instantâneo para obter
espaço dentro da tradição. E não acreditam na ideia
ou no efêmero Ocupavam espaços de performance, de discussão e de
captura de um recorte geográfico-histórico.
Assim, volto aos corpos monstruosos, divididos e,
de que se constrói uma narrativa na qual persiste a que tem como potência a transformação de nossas ao mesmo tempo, inteiros de Somers para observar
perspectiva de olhares detalhados e momentâneos. percepções de mundo. A autora de Gênero: uma cate- como o seu mundo em quatro partes – terra, mar,
“E, ao dobrar uma esquina, começou o fenômeno: goria útil de análise histórica observa o termo como uma deserto e seres – está fincado na percepção de tota-
sentir que já não estava no solo, mesmo que a uma categoria social. Afirmar o gênero e suas tensões lidade imagética que só se torna possível por meio
curta distância da terra, é certo, mas sem apoio”, com a autoria, então, é também questionar-se sobre da incerteza constante desses quatro elementos.
trecho de Un retrato para Dickens no qual o ato de levitar é formas de romper sanções sociais. Como reescreveu Dickens, Somers também rescre-
atribuído à personagem. Assim, que não corresponde No registro do escândalo diante do lançamento de La ve Guernica, de Picasso: uma obra que marca o seu
somente à característica de um grupo, mas ecoa mujer desnuda, tem-se um clássico episódio de recepção tempo porque o entende através do formato de seus
como força de imagem, e de potência dos corpos. opressora patriarcal de determinada obra. Pela lingua- atravessamentos, e não de maneira cronológica ou
Tal implosão interna proposta por Somers, assim gem “excêntrica” e por suas cenas eróticas, o livro, medida exata. Como escreve a personagem de Un
como por outros escritores da Geração de 45, faz parte lançado em 1950 ainda de maneira clandestina, foi retrato...: “Me movo no aro para contar o tempo. Ainda
da ordem da imagem que se molda no fragmento e remetido a um autor pois, como uma mulher ousaria que na realidade nunca faria falta saber o quanto ele
esbarra nos órgãos, membros, cavidades. O corpo publicar tamanha obra disruptiva? Somente nos anos é, mas, sim, que sucede e como sucede”.
“visto”, descrito por meio de lacunas, só é possível por- 1960, Somers vai assumir totalmente sua autoria e o
que persiste em aparecer também pelo nosso próprio: relança junto com a novela De miedo en miedo (1965). 1. Armonía Somers, assim como muitas autoras da Gera-
retina que se faz, no mesmo instante, palavra e forma A figura da autora, desde a sua formação anarquis- ção 45, não foi traduzida no Brasil. Todos os trechos de
conjuradas. Dessa maneira, são esses corpos remon- ta aos estudos pedagógicos, também dialoga com seus livros, aqui presentes, foram traduzidos por mim a
tados, em sua maioria, de mulheres, que vão formar uma preocupação em organizar a literatura a partir partir de edições da El Cuenco de Plata, editora argentina.
o universo literário uruguaio nas décadas a seguir. de rupturas com o sistema vigente. Dessa forma, 2. Trata-se do livro La doble voz: poetas argentinas con-
tem-se a experiência de uma mulher atravessando temporáneas, publicado em 1998 com o intuito de mapear,
OLHA-SE A ÉPOCA o projeto estético – e, neste ponto, lembro a sequên- em especial, a poesia argentina, escrita por mulheres, nos
Joan Scott, em suas pesquisas voltadas à história cia constante na história das mulheres: apagamento anos 1980 e questionar o que se entende como clássico
da mulher, observa uma espécie de filtro de gênero seguido de quebras de representação. Como visto em dentro das poéticas hispano-americanas.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

HISTÓRIA DO BRASIL SOB O PEQUENA VOZ: ANOTAÇÕES POVO XAMBÁ RESISTE: 80


GOVERNO DE MAURÍCIO DE SOBRE POESIA ANOS DA REPRESSÃO AOS
NASSAU (1639-1644) Nuno Félix da Costa TERREIROS EM PERNAMBUCO
Gaspar Barléu Marileide Alves
O escritor português Nuno Félix da Costa
Nova tradução com mais de 300 notas situa o lugar da poesia no desenvolvimento Esta é a história do Povo Xambá contada
explicativas e reproduções coloridas de do pensamento, desde antes da pelos que a viveram e que trazem as marcas
gravuras do original, que retrata o período sistematização do pensamento filosófico. das dores sofridas em 80 anos de repressão,
holandês no Brasil. É uma edição essencial Para ele, a poesia é antiga e contemporânea, pela proibição de viver sua religiosidade,
para pesquisadores e envolvente para o e o poema descobre harmonia nas pela proibição de cultuar seus deuses, pela
público geral. Barléu é uma fonte histórica desconexões sinfônicas ou jazzísticas do proibição de expressar sua liberdade. É,
importante de contribuir de forma original real. O livro é fragmentário e guarda o principalmente, a história da resistência e das
para a compreensão europeia da América. despropósito permitido à linguagem poética. conquistas da nova geração de xambazeiros.

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DON JUAN-DON GIOVANNI: A COISA BRUTAMONTES O VOO DA ETERNA BREVIDADE


PEÇA EM DEZ JORNADAS Renata Penzani José Mário Rodrigues
Marcus Accioly
Como um menininho reage à ideia da É por meio da poesia que José Mário
Este livro póstumo de Marcus Accioly morte? A coisa brutamontes é um livro- Rodrigues reúne forças para unir todas
foi escrito à exaustão pelo poeta, que o interrogação: Há um lugar para ser criança as coisas e mostrar seu universo, em que
imaginou como sua última obra. Nele, e outro para ser velho? A infância um as perdas representam o sentido final da
percebe-se a grandeza épica e trágica – a dia acaba? Perto e longe são palavras experiência vivida. Ideias como brevidade,
par com o burlesco –, cuja força verbal desconhecidas? Cícero e Dona Maria são solidão e imagens de ventos e nuvens dão a
resgata a figura de Don Juan. Este, em como coordenadas geográficas tentando seus versos uma característica fugidia que
seus jogos de erotismo e sedução, revela indicar um lugar fácil de chegar, mas que recusa a linearidade de ideias. O livro foi 2°
inconsistências da condição humana, a mesmo assim poucos visitam depois de lugar do Prêmio Alphonsus de Guimaraens,
recusa e a atração da morte. grandes: um lugar chamado infância. oferecido pela Biblioteca Nacional.
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CONDENADOS À VIDA POESIA REUNIDA: ESPAÇO TERRESTRE


Raimundo Carrero TEREZA TENÓRIO Gilvan Lemos
Tereza Tenório
Edição definitiva da tetralogia de Em narrativa quase cinematográfica, Gilvan
Raimundo Carrero, que reúne Maçã O universo cósmico e imaginário da Lemos transmite a saga de uma comunidade
agreste (1989), Somos pedras que se poesia de Tereza Tenório é agrupado do interior nordestino e de várias gerações de
consomem (1995), O amor não tem bons nesta primeira antologia organizada pela uma família luso-tropical, os Albanos, que na
sentimentos (2008) e Tangolomango Cepe Editora. A obra reunida da poeta Vila de Sulidade vivem conflitos exacerbados
(2013), que aborda a família do patriarca recifense obedece à ordem cronológica pela miscigenação entre portugueses, negros
Ernesto Cavalcante do Rego. Trata- de suas publicações, de Parábola (1970) e índios. Tentam preservar suas características
se de corrosiva crítica social à elite à A casa que dorme (2003), conforme o genéticas, seus modos de ser, de ver a
nordestina decadente. O volume conta desejo da autora, que foi a grande musa realidade e de reinterpretá-la à luz do que
com ensaio crítico de José Castello. da poesia da Geração de 65 no Recife. se convencionou chamar de brasilidade.
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LÁZARO CAMINHA SOBRE O INSISTENTE INACABADO


O ABISMO Luiz Costa Lima
Augusto Ferraz
Este volume desdobra mais uma volta
Um romance em prosa poética sobre no percurso de Luiz Costa Lima sobre a
um homem que vai da morte à vida, problemática da mímesis. Aqui, o autor
enquanto reflete sobre o presente traça uma retrospectiva paralela das
e o passado de sua própria história. perguntas sobre a escrita da história e a
A todo momento, ele se encontra literatura, na qual examina formulações
e desencontra consigo, morto ou oferecidas por historiadores e
vivo, pelas ruas de São Paulo, para romancistas como Chladenius,
recordar os acontecimentos mais Droysen, e Gervinus, do século XVIII
prosaicos. Escrita em um constante ao XIX. Seu exame comparado assinala
fluxo de pensamento, a narrativa é alguns resultados consideráveis e
densa e carregada de jogos verbais, também a hierarquia que se estabelecia
belas imagens poéticas e referências entre os dois campos.
a artistas como Faulkner e Fellini.
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

RESENHA

ANNALENA MCAFEE / DIVULGAÇÃO

A versão
competências de autoaprendizagem de algoritmos.
Ana Rüsche Há até uma citação, na íntegra, da Primeira Lei da
Robótica de Isaac Asimov, que cunhou o termo robótica.
Adão possui o pulso forte e as pernas firmes de um Estaria Ian McEwan blefando com essa afirmação

perfeita de
marinheiro. Entende de vinhos, desfila um vocabulá- que o livro não seria uma ficção científica? O britâ-
rio de Shakespeare, aprimora-se sozinho. Corre 17 km nico mostra ser bastante conhecedor de algoritmos.
em duas horas sem precisar de recarga e seguirá fun- É possível que imagine que o número de menções
cionando por 20 anos. Máquinas como eu, novo romance ao livro aumente em redes sociais com alguma boa

nós mesmos
de Ian McEwan lançado no Brasil pela Companhia das polêmica. Em se tratando de um autor mestre em criar
Letras, apresenta uma narrativa de suspense a respeito querelas, essa possibilidade não deve ser descartada.
de um triângulo amoroso em que um dos vértices é O livro apresenta uma Londres alternativa em 1982.
um robô, Adão. O autor britânico sugere que o futuro Marcada pela nostalgia, lá estão Margaret Thatcher, a
seguirá chegando para nos assombrar. Até pode existir Guerra das Malvinas e os Beatles ainda juntos. Entre-

Em Máquinas como eu, alguma tragédia no caminho, mas nunca o tédio.


O livro é um arcabouço de tensões. Não é de hoje
tanto, há e-mails e muito da lógica do mundo imaterial
de hoje. A antecipação tecnológica, no livro, é justi-

Ian McEwan cria um robô que McEwan se vale de uma terceira parte para
trazer à tona uma crise já anunciada. Como analisa
ficada pela sobrevida de Alan Turing (apenas para
lembrar, o cientista da computação foi condenado

que provoca humanos não


Julian Lucas na The New Yorker, o autor é o mestre à castração química por ser homossexual em 1952,
das querelas domésticas e, geralmente, intensifica falecendo em 1954). No romance, Sir Alan Turing é
a crise de um casal com a introdução do terceiro herói do protagonista.
pela ameaça de extermínio, elemento: em Reparação, uma criança precoce; em
Amor sem fim, um estranho armado de uma paixão
Ironicamente, o narrador bem nos avisa: seres hu-
manos artificiais já eram um clichê bem antes de

mas por trazer à tona instantânea e obsessiva.


Agora, esse terceiro elemento é fruto do puro de-
terem chegado — assim, quando finalmente vieram,
trazem também a marca do desapontamento. O robô

desconfiança e insegurança
sejo: Adão chega ao recôndito doméstico do narrador tem uma forma retrô: bípede sensual, com duas pernas
Charlie, motivado por uma obsessão antiga deste bem-torneadas e braços fortes, bem distinto das ima-
por criações eletrônicas. O protagonista pega todo teriais Alexia e Siri ou das tendências de algoritmos
o dinheiro de uma herança e decide comprar o robô como o projeto AlphaGo Zero.
de última geração. Uma das aquisições mais caras Adão não veio para nos exterminar e talvez isso
da vida de Charlie, que paga £86,000 em 1982, em nos desaponte um pouco. Adão veio para confrontar
uma Londres alternativa, algo hoje em torno de um Charlie e Miranda, apontar o mais cruel e terrível dos
1,5 milhão de reais. recônditos de vontades, lugar onde a desconfiança e
Página a página, mostra-se o verdadeiro custo des- a insegurança vicejam. Mary Shelley, em Frankenstein,
sa brincadeira. A narração em primeira pessoa, tão amplifica o horror do cientista quando confrontado
volúvel e machadiana, desfila reflexões de Charlie, com a visão de sua própria criação, espelhamento
bacharel em Antropologia, cuja ocupação é apostar distorcido de si mesmo. Em Máquinas como eu, Miranda
na Bolsa. Aos 32 anos, filho único de um pai músico desejaria que Mary Shelley estivesse ali, observando
e mãe enfermeira, procura estabelecer um relaciona- de perto, não um monstro, mas esse Adão, um jovem
mento estável com a vizinha de cima: Miranda, uma bonito que vem à vida. Nada mais ambíguo. Afinal, é
estudante encantadora, dez anos mais jovem. terrível estar diante da perfeição, a versão aprimorada
Charlie tece sua própria armadilha: quer que Mi- de nós mesmos.
randa usufrua ao máximo de sua nova aquisição. O O autor confronta nossos sentimentos diante de
rapaz deslumbra-se fazendo planos longevos em uma máquina cuja evolução ocorre anos-luz mais
um relacionamento que parece só estar começando. rápida que a nossa própria. O quão inseguros pode-
Então, será o recém-chegado robô que trará uma mos ser diante desse Outro que nos deve obediência
notícia perturbadora sobre o passado de Miranda. O pré-programada? O quão ameaçados e desprezíveis
triângulo da tensão está formado. Não há como não somos diante do que criamos?
ler tudo até o fim. Ian McEwan completou 70 anos. Um sorriso de
canto é comum na fotografia do homem de lábios
O FUTURO AINDA NOS ASSOMBRA finos, a pele branca vincada por vivências cosmopo-
Ian McEwan declara não enxergar esse livro como uma litas, uma infância na Alemanha, Líbia e Singapura.
obra de ficção científica, causando discussões acalo- Uma vida adulta com publicações há quatro décadas,
radas em redes sociais. A partir de critérios da crítica além de filmes como Desejo e reparação (Atonement, com
literária especializada, não há motivo para impasses: James McAvoy e Keira Knightley, 2007 — baseado no
em Máquinas como eu, aparece o novum, elemento exigido livro Reparação). É esse homem que nos fita agora, em
por Darko Suvin para categorizar uma ficção científica; seu 15º romance.
a inovação tecnológica impacta relações pessoais; há a Máquinas como eu traz uma prosa amarrada e suspense
preocupação em se detalhar aspectos técnicos, como de página a página. Adão nos conquista, nos engana.
o mecanismo de busca da Árvore de Monte Carlo e O futuro e a ficção não cessam de nos surpreender.
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INÉDITOS

Sobre a canseira
1
A gente fuma. Suja-se. Bebe até se entortar.
A gente dorme. Tira sarro de uma cara nua.
Meu caro, o tempo morde e arranca nacos devagar!
A gente fuma. Caga. E um poema efetua.
Bertolt Brecht
Tradução e nota: André Vallias

2 3
Fizemos voto de pobreza e incastidade. As delícias da carne o espírito dissipa
A incastidade adoça às vezes a inocência. Desde que as garras amputou da mão peluda.
O que se faz embaixo do sol do Senhor se há de As sensações do sol não chegam mais à tripa
Purgar na Terra do Senhor, segundo a crença. A pele é um pergaminho opaco e não ajuda.

4
Ó ilhas verdes dessas zonas tropicais:
De manhã, sem maquiagem, que feição decrépita!
O inferno das visões, branco demais
É um barracão de zinco em que a chuva penetra.

5
Das nossas noivas, como conquistar o amor?
Carne de zibelina? Não, melhor com gim!
E o coquetel lilás de um ardente licor
Com moscas afogadas e amargas ao fim.
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HANA LUZIA E FILIPE ACA

6
Beberam tudo, até alguns desodorantes.
Birita é com café bem preto que se serve.
Isso de nada adianta, ó Maria, antes
Crestarmos essas peles gostosas na neve!

7 ESTROFE ELIMINADA NA VERSÃO FINAL:


Com a cínica pobreza dos poemas rasos
E, ao gelo, um amargor com gosto de laranja! Pileque leve (põe-se o etílico pra fora
Um cabelo pichado à moda dos malásios Como aguardente) não é perigo ou atropelo:
No olho!, ó fumo de ópio que se arranja. Nós só geramos mundos. Cresce-nos agora
No crânio ébrio um bárbaro cabelo.
8 9
Nas vento-alucinadas choças de papel Ó fruta celestial da maculada conceição!
De Nanjing, ó amargalegria do mundo O que avistou, irmão? Tudo ok pra depois?
Quando a lua, animal branco e dócil, do céu Festejam com licor de cereja o próprio caixão
Tão mais frio, despenca e se perde no fundo! Levando lanterninhas de papel de arroz.

10
De manhã, acordando, flor que não se cheira
Um sorriso de escárnio o fumo azedo esbanja.
E a língua esboça, entre bocejos de canseira
Por vezes um sabor amargo de laranja.

Dezembro de 1923, algumas semanas após a malogra- das quais apenas a segunda havia sido encenada. Mas Há nele reverberações das invectivas saint-simonistas
da tentativa de golpe de Estado contra o governo da já causara furor no meio literário com a publicação na de Heine, no século anterior, contra a excessiva espiri-
Baviera, perpetrada pelo partido nazista, que redundou revista Der neue Merkur, em setembro de 1921, do conto tualização do ser humano na cultura ocidental. O clima
na prisão de Hitler e vários de seu correligionários. Bargan deixa pra lá — Uma história de filibusteiros, de fim de festa — com “sabor amargo de laranja” (alusão
Bertolt Brecht estava com 25 anos de idade quando sua carregado de alusões bíblicas, cenas de violência (“foi profética a alguma republiqueta “dessas zonas tropi-
Balada sobre a canseira foi publicada na prestigiosa tão desgraçadamente abrupto que Deus desviou a sua cais”?) — reflete a situação de uma cidade que estava
revista literária berlinense Die neue Rundschau (Novo face para longe, a fim de ver a colheita no Brasil”) e uma prestes a ser asfixiada pela extrema-direita. Munique,
Panorama), fundada em 1890 pelo crítico teatral Otto ousada relação homoerótica entre piratas. que até a Primeira Guerra Mundial fora um dos prin-
Brahm e o editor Samuel Fischer, que continua — pasme A Balada sobre a canseira, escrita para a atriz Gerda cipais centros artísticos da Europa Central, tornou-se
o leitor — em atividade até hoje. Müller em 1920, entraria — com o título abreviado, sem rapidamente o soturno epicentro de um cataclisma
O poeta, dramaturgo, escritor, crítico e diretor teatral a penúltima estrofe e a dedicatória — na primeira e político que forçaria a debandada de seus artistas e
já despontava no meio cultural, mas ainda não havia mais programática coletânea de poemas de Brecht, o intelectuais progressistas. Nos anos seguintes, Berlim
conseguido fincar os pés em Berlim. Suas diversas Breviário doméstico, de 1927. irá brilhar radiante como a metrópole mais arrojada do
incursões à capital renderam bons contatos, três sema- Parodiando o manual devocional de Martinho Lutero, continente, ainda que inflada pelo crescimento verti-
nas de internação hospitalar devido à inanição e uma mas também com referências à liturgia católica, o livro ginoso e marcada pela miséria e os conflitos sociais.
infecção renal, mas nenhuma fonte de subsistência. está dividido em cinco “lições”, um “capítulo final” e Brecht, que se muda para lá em 1924, alcançaria o su-
Continuava dependente da ajuda paterna, pendulando um apêndice. Inicia-se com uma “instrução de uso”: cesso retumbante quatro anos mais tarde com A ópera
entre Augsburgo, sua cidade natal, e Munique, onde “Este breviário doméstico destina-se ao uso do leitor. dos três vinténs, em parceria com o compositor Kurt
granjeara a amizade e admiração de seus dois principais Não deve ser devorado sem propósito. (…)” Weill e Elisabeth Hauptmann. Os anos efervescentes
incentivadores: o escritor Lion Feuchtwanger e o crítico O poema Sobre a canseira foi incluído na segunda li- da “Berlim Babilônia” terminariam abruptamente com
teatral Herbert Ihering. ção: “A segunda lição (Exercícios espirituais)” — explica a ascensão ao poder de Hitler, em 1933.
A este último, deveu a mais importante distinção o autor — “dirige-se mais ao entendimento. É vantajoso Sobre a canseira é um dos 300 poemas que selecionei
literária da República de Weimar — o prêmio Kleist proceder a sua leitura devagar e repetidamente, nunca e traduzi para a mais abrangente e primeira antologia
—, recebido em novembro de 1922. Uma proeza em se sem ingenuidade. Através dos ditos ali ocultos e das bilíngue da poesia de Brecht em língua portuguesa. Sai-
tratando de um jovem autor que só havia finalizado duas dicas explícitas, uma pessoa pode ser capaz de obter rá pela editora Perspectiva, na coleção Signos, dirigida
peças, Baal e Tambores da noite, ambas escritas em 1918, esclarecimento sobre a vida”. por Augusto de Campos, no segundo semestre de 2019.
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INÉDITOS
Patricia Hill Collins
Tradução de Jamille Pinheiro Dias

Uma (...) característica distintiva do pensamento Muitas intelectuais negras contemporâneas ain-
feminista negro diz respeito às contribuições essen- da recorrem a essa tradição, aplicando em nosso
ciais das intelectuais afro-americanas. A existência trabalho teórico ações e experiências cotidianas. A
de um ponto de vista comum às mulheres negras não historiadora feminista negra Elsa Barkley Brown
significa que as afro-americanas, acadêmicas ou não, fala da importância das ideias de sua mãe para a
apreciem seu conteúdo, percebam sua importância sua produção acadêmica sobre as lavadeiras afro-
ou reconheçam seu potencial como catalisador de -americanas. Inicialmente, Brown usou as lentes
mudanças sociais. Uma tarefa fundamental das in- fornecidas por sua formação como historiadora e
telectuais negras de diversas idades, classes sociais, analisou seu grupo de amostra como prestadoras
trajetórias na educação formal e ocupações consiste de serviços desvalorizados. Com o tempo, porém,
em fazer as perguntas certas e investigar todas as passou a ver as lavadeiras como empreendedo-
dimensões de um ponto de vista das mulheres negras ras. Levando as roupas até quem tivesse a maior
com as afro-americanas e para as afro-americanas. cozinha, elas criaram entre si uma comunidade e
Historicamente, as intelectuais negras mantêm uma uma cultura. Ao explicar a mudança de perspectiva
relação especial com a comunidade mais ampla de que lhe permitiu reavaliar essa parte da história
afro-americanas, uma relação que fez com que o das mulheres negras, Brown observa: “Foi minha
pensamento feminista negro se tornasse uma teoria mãe que me ensinou a fazer as perguntas certas – e
social crítica. A continuidade dessa relação especial todos nós que tentamos fazer o que chamamos de
depende, ironicamente, da capacidade das intelec- pesquisa acadêmica sabemos que fazer as pergun-
tuais negras de analisar seus próprios lugares sociais. tas certas é a parte mais importante do processo”.2
Tipos muito diferentes de “pensamento” e “teo- Essa relação especial das intelectuais negras com
rias” surgem quando o pensamento abstrato se junta a comunidade de mulheres afro-americanas corres-
à ação pragmática. Impedidas em posições de pes- ponde à existência de dois níveis inter-relacionados
quisadoras acadêmicas e escritoras que permitem de conhecimento.3 O conhecimento trivial, natura-
enfatizar questões puramente teóricas, o trabalho da lizado, compartilhado pelas afro-americanas, que
maioria das intelectuais negras foi influenciado por provém de nossas ações e pensamentos cotidianos,
uma mistura de ação e teoria. A atividade de inte- constitui o primeiro e mais fundamental nível de
lectuais negras do século XIX como Anna J. Cooper, conhecimento. As ideias que as mulheres negras
Frances Ellen Watkins Harper, Ida B. Wells-Barnett compartilham umas com as outras de maneira
e Mary Church Terrell ilustra essa tradição que funde informal, no dia a dia, sobre assuntos como pente-
trabalho intelectual e ativismo. Essas mulheres ana- ados, características de um homem negro “bom”,
lisaram as opressões interseccionais que limitavam estratégias para lidar com os brancos e habilidades
a vida das mulheres negras e também trabalharam para “deixar algo para trás” constituem a base desse
pela justiça social. Criado por elas, o movimento de conhecimento naturalizado.
associações de mulheres negras foi uma iniciativa Estudiosas ou especialistas que se originam e
ao mesmo tempo ativista e intelectual. As mulheres participam de determinado grupo produzem um
SOBRE A OBRA negras da classe trabalhadora também se engajaram segundo tipo de conhecimento, mais especializado.
em uma combinação paralela de ideias e ativismo. De classe trabalhadora ou de classe média, instru-
Trecho de Pensamento Porém, como o acesso à educação formal lhes era ídas ou não, famosas ou desconhecidas, a gama
feminista negro, negado, a forma desse ativismo e o conteúdo das de intelectuais negras discutida no capítulo 1 é um
importante obra da ideias que elas desenvolveram diferiam daqueles das exemplo dessas especialistas. Suas teorias facili-
socióloga e ativista mulheres negras de classe média. As apresentações tam a expressão do ponto de vista das mulheres
norteamericana Patricia das intérpretes negras clássicas de blues na década negras e formam o conhecimento especializado do
Hill Collins que será de 1920 podem ser vistas como um importante pensamento feminista negro. Esses dois tipos de
lançada no Brasil em julho espaço no qual as mulheres da classe trabalhadora conhecimento são interdependentes. Na medida
pela Boitempo Editorial. se reuniam e compartilhavam ideias especialmente em que o pensamento feminista negro articula
pertinentes para elas.1 o conhecimento – muitas vezes naturalizado –
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HANA LUZIA

compartilhado por mulheres afro-americanas certa forma de solidariedade racial nos bairros negros. mulheres brancas fizessem por nós ou conosco o que devemos
como grupo, a consciência das mulheres negras Em contraste, agora que os negros vivem em bairros fazer nós mesmas e para nós mesmas, isto é, construir nossa
pode ser transformada por tal pensamento. Muitas economicamente heterogêneos, chegar ao mesmo própria ação social em torno da nossa própria agenda de
intérpretes negras de blues cantaram sobre situa- nível de solidariedade racial gera novos desafios. mudanças. (...) O direito de se organizar em nome próprio é
ções naturalizadas que afetam as mulheres negras As intelectuais negras são centrais para o pen- fundamental para esse debate. (...) A crítica das feministas
estadunidenses. Por meio de sua música, elas não samento feminista negro por várias razões. Em negras deve reafirmar esse princípio.6
apenas descreveram as realidades das mulheres primeiro lugar, nossas experiências como afro-
negras como também buscaram dar forma a elas. -americanas nos proporcionam uma perspectiva Para a maioria das mulheres negras estaduni-
Por haverem tido mais oportunidades de se alfa- única sobre a condição feminina negra, uma pers- denses, envolver-se com a pesquisa e com a pro-
betizar, as mulheres negras de classe média tiveram pectiva que não é acessível a outros grupos, caso a dução acadêmica feminista negra não é uma moda
mais acesso a recursos para ingressar na pesquisa adotemos. É mais provável que as mulheres negras, passageira – essas questões afetam tanto a vida
acadêmica feminista negra. A educação não precisa como membros de um grupo oprimido, tenham cotidiana contemporânea quanto as realidades in-
implicar uma alienação dessa relação dialógica. uma compreensão mais crítica de nossa condição tergeracionais. Em terceiro lugar, as intelectuais
As ações de mulheres negras instruídas dentro do de opressão que as mulheres que vivem fora dessas negras de todas as esferas da vida devem enfatizar
movimento de associações simbolizam essa relação estruturas. Uma das personagens do romance Iola veementemente a questão da autodefinição, porque
especial entre um segmento de intelectuais negras Leroy, de Frances Ellen Watkins Harper, publicado falar por si mesma e elaborar uma agenda própria
e a comunidade mais ampla de afro-americanas: em 1892, expressa essa percepção com uma visão é essencial para o empoderamento. Como afirma
própria daqueles que já experimentaram a opressão: a socióloga feminista negra Deborah K. King, “a
É importante reconhecer que mulheres negras como Frances autodeterminação é essencial para o feminismo ne-
Harper, Anna Julia Cooper e Ida B. Wells não eram figuras Senhorita Leroy, pensadores e escritores devem vir de gro”.7 O pensamento feminista negro não pode fazer
isoladas da genialidade intelectual; elas se formaram dentro sua própria raça. Autores da raça branca escreveram bons frente às opressões interseccionais sem empoderar
de um movimento mais amplo de mulheres afro-americanas, livros, pelos quais sou profundamente grato, mas parece ser as afro-americanas. A autodefinição é a chave do
que elas também ajudaram a construir. Com isso, não quero quase impossível um homem branco se colocar plenamente empoderamento dos indivíduos e dos grupos, de
dizer que elas representavam todas as mulheres negras; elas em nosso lugar. Nenhum homem sente de fato o ferro que modo que ceder esse poder a outros grupos (não
e seus pares fizeram parte de uma elite culta, intelectual; mas perfura a alma de outro homem.5 importa quão bem-intencionados sejam nem quanto
uma elite que tentou desenvolver uma perspectiva cultural apoiem as mulheres negras) reproduz em essência
e histórica que mantivesse uma relação orgânica com a Somente afro-americanas ocupam esse centro as hierarquias de poder existentes.
condição mais ampla das mulheres negras.4 e “sentem de fato o ferro” que perfura a alma das
mulheres negras; afinal, ainda que as experiências NOTAS
O trabalho dessas mulheres é importante porque das mulheres negras se assemelhem às de outras, 1. Angela Davis, Blues legacies and black feminism
ilustra uma tradição que combina produção acadê- elas continuam únicas. A importância da liderança (Nova York, Vintage, 1998).
mica e ativismo. Como muitas vezes moravam nos das mulheres negras na produção do pensamento 2. Cynthia Stokes Brown (org.), Ready from Within:
mesmos bairros que os negros de classe trabalhadora, feminista negro não significa que outros não pos- Septima Clark and the Civil Rights Movement (Navarro,
as mulheres que se envolveram com o movimento sam participar disso. Significa apenas que a res- Wild Trees, 1986), p. 14.
de associações na virada do século (XIX para o XX) ponsabilidade pela definição da realidade de cada 3. Peter L. Berger e Thomas Luckmann, The social
viviam em um tipo de sociedade civil negra na qual um cabe sobretudo a quem vive essa realidade, construction of reality (Nova York, Doubleday, 1966).
era mais fácil estabelecer essa relação dialógica. Elas a quem realmente passa por essas experiências. 4. Hazel Carby, Reconstructing womanhood: The emer-
viam os problemas. Participavam de instituições Em segundo lugar, as intelectuais negras, acadêmi- gence of the afro-american woman novelist (Nova York,
sociais que incentivavam a proposição de soluções. cas ou não, são menos propensas a se afastar das lutas Oxford University Press, 1987), p. 115.
Fomentavam uma “perspectiva cultural e histórica das mulheres negras quando os obstáculos parecem 5. Ibidem, p. 62.
que mantivesse uma relação orgânica com a condição gigantescos ou as recompensas por persistir não são 6. Sheila Radford-Hill, “Considering feminism as a
mais ampla das mulheres negras”. As intelectuais atraentes. Ao discutir o envolvimento das mulheres model for social change”, em Teresa de Lauretis (org.),
negras contemporâneas enfrentam desafios seme- negras no movimento feminista, Sheila Radford-Hill Feminist studies/critical studies (Bloomington, Indiana
lhantes para incentivar o diálogo, mas em condições enfatiza a importância de agir em nome próprio: University Press, 1986), p. 162.
sociais muito distintas. Se, por um lado, a segregação 7. Deborah K. King, Multiple jeopardy, multiple cons-
racial nos Estados Unidos se constituiu para manter As mulheres negras estão se dando conta de que parte do ciousness: The context of a black feminist ideology,
os negros em situação de opressão, ela fez florescer problema do movimento era nossa insistência para que as Signs, v. 14, n. 1, 1988, p. 72.
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RESENHAS
REPRODUÇÃO

ideia de que a revista Los


Libros deveria se dedicar a
criticar a seção de resenhas
dos jornais e revistas,
analisar os suplementos
culturais etc. Estamos na
época da crítica da crítica
da crítica.”

DOS GOLPES
Da leitura deste segundo
volume fica a certeza de
um autor que ensina a
pensar. Um professor.
Um professor em meio ao
terror que se inicia.
“Escutam-se marchas
militares. Abro a janela,
é como se um circo
se aproximasse.”
“Desço para comprar
comida; na venda, clima
de euforia; Levante na
Aeronáutica, o golpe
militar está em curso.
Sensação de velhas
catástrofes, primeiro

O duplo que DO TEMPO


Em uma quarta-
feira, 4 de outubro
autobiografia, observações
sobre o mundo: “Época
estranha, paira no ar
‘Estou vivo ou morto?’,
pergunta-se o enlutado
que se apoia na repetição
pensamento: ‘fico
em Paris.’”
“Estou em Mar del Plata

sustenta a escrita
de 2017, escrevi para um astronauta, em sua do verbo to be”. rodeado pela família,
este Pernambuco aquilo cápsula”. O livro começa vim ver minha mãe para
que foi o resultado da com uma digressão do ROMANCE SECRETO as festas como todos os

de Ricardo Piglia
minha experiência de narrador sobre o que é Assim temos esse anos. Só faço ir ao mar.”
leitura dos três volumes um diário, que, segundo romance secreto de um Como se citasse Kafka:
de Os diários de Emilio Renzi, ele, é a ordenação de um escritor com consciência “A Alemanha declarou
escritos por Ricardo escrito por dias, meses ainda maior do seu guerra à Rússia. À tarde
Os anos de maturidade do Piglia. Passado um ano e
meio, volto a ler um dos
e anos. Falar da escrita
do eu, segundo Renzi,
trabalho de escritor e um
gênero literário com vasto
fui nadar”.
Ler esses diários é
escritor argentino no 2° volume volumes, o segundo, Os
anos felizes, que sai agora
é uma ingenuidade,
pois o eu é uma figura
território a ser explorado
por seu autor. E isso ele
mergulhar nas suas
centenas de tramas
d’Os diários de Emilio Renzi no Brasil pela editora oca. O sentido deve ser faz bem. Vai das reflexões microscópicas, mas
Todavia. Uma das tarefas procurado em outro lugar. sobre a literatura ao retrato luminosas. O narrador
a que me proponho No caso de um diário, da Argentina do seu e o nadador estão em
Bernardo Brayner enquanto escrevo estas por exemplo, o sentido tempo. Do guia de bares uma obra grande como
linhas é descobrir o quanto deve ser procurado nessa de Mar del Plata e Buenos um oceano. A superfície
o tempo mudou minha classificação cronológica. Aires ao esboço dos seus é clara e límpida, mas o
percepção do livro.  Kafka dizia que só quem contos e romances. Uma fundo dá medo.
Destaca-se, nessa escreve um diário pode autobiografia sempre À certa altura, Renzi
segunda leitura, a entender o diário dos se refere não ao que escreve que seu ideal
segurança de Piglia no outros. Enquanto Pavese aconteceu, mas àquilo que sempre foi ser Robinson
que estava fazendo. Há escreveu: “Só quem joga deveria ter acontecido, Crusoé. A ideia do
claramente um projeto com a ideia do suicídio escreve Emilio Renzi. Em isolamento, do espaço
literário que se consolida pode escrever um diário uma das entradas há uma intransponível. Ele recorda
neste segundo volume. convincente.” Como menção sobre o conto O o efeito que a leitura do
Um projeto que parte sabemos, o escritor nadador, de Piglia. No livro de Daniel Defoe
da forma do diário para italiano se matou em 1950. diário, lemos que narrar é provocou no seu pai. Ele
pensar a literatura e Quem conhece a obra como nadar. Os contos são lembra a fantasia que havia
fazer literatura. Anos de Ricardo Piglia conhece a velocidade do crawl. Mas em viver em uma ilha
felizes porque são anos também a sua obsessão “há algum tempo quero deserta e a felicidade que
de um escritor maduro: pelo secreto, pelo complô, escrever como quem nada isso trouxe.
“apesar de tudo é uma pela investigação. Esse é no mar e não tem um “A inspiração é um
época afortunada”. Seus um outro elemento que limite, a não ser o próprio modo de nomear a
principais interlocutores embora não seja citado, cansaço”. Talvez esteja aí capacidade de o escritor
(reais e imaginários) são está sempre presente nos uma boa definição para se esquecer de si mesmo
Jorge Luis Borges, Manuel diários de Emilio Renzi. o projeto desses diários. e passar para o outro lado
Puig, David Viñas, Roa Afinal, todo diário é até Renzi, em outra entrada, (da linguagem).”
Bastos e Roberto Arlt. certo ponto secreto. É um escreve que a literatura
Mas não é só um projeto romance secreto ordenado nos mostra a opacidade
literário. É, também, por dias que se escreve do mundo porque nos
um projeto de vida. Um em silêncio. Em dado permite conhecer as
escritor que tenta ganhar momento Renzi fantasia pessoas por dentro. “Eu
a vida como tal: “projeto com a possibilidade de conheço melhor Anna
absurdo e impossível o diário ser descoberto Karenina do que a mulher
neste país”. por uma mulher. Esse com quem vivo há anos”.
seria um dos motivos de Mais à frente, em 1973,
DOS DIÁRIOS continuar a escrevê-lo. Emilio Renzi trabalha
Nessas páginas que Emilio Renzi lê livros, em um ensaio sobre o
abarcam os anos de 1968 dá palestras e entrevistas, romance. Anota uma
a 1975 são muitas as escreve artigos e contos: observação a partir de
referências a dois diários: “O duplo que sustenta a Brecht: a obra de Kafka só
o de Kafka e o de Cesare escrita: o outro escreve e é possível graças a leitura
Pavese. Ricardo Piglia os eu assisto ao seu trabalho”. de uma passagem de Os NÃO-FICÇÃO
lê como romances com Lemos passagens como: irmãos Karamázov. Com uma
múltiplos personagens “Uma versão possível chave e outra passeamos Os anos felizes: os diários
e é assim que constrói de Hamlet, que não se pela literatura tendo Renzi de Emilio Renzi
o diário do seu alter ego, interroga sobre a presença como guia. Autor - Ricardo Piglia
Emilio Renzi. Aqui, cabe do pai morto e seu “O que eu ia dizendo Editora - Todavia
de tudo: ensaio, conto, fantasma, apenas duvida sobre o jornalismo cultural Páginas - 464
crítica literária, sonho, de sua própria realidade. volta a reforçar minha Preço - R$ 84,90
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

Cuida-se de plantas e da linguagem PRATELEIRA


A vida submarina, livro do mar (ou da água), para poética (como em vê esses elementos O QUE É RACISMO RECREATIVO?
de estreia da poeta ficar em exemplos mais O livro das semelhanças) sumirem, esses que dizem Obra que integra a coleção Feminismos plurais,
mineira Ana Martins evidentes, ajudaram do que no exercício da nada / para ninguém, mas coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro.
Marques, parece ser algo a representar em tentativa do diálogo e que, continuamente, Parte-se da seguinte pergunta: de que forma
como um inventário de livros anteriores. Não no esforço empreendido estão a dizer. devemos classificar expressões humorísticas
imagens, ações, estados, é que estejam de todo na linguagem. Nesse Das aparições do que reproduzem estereótipos negativos sobre
situações – enfim, ausentes o mar/água caminho, sobressaem-se cansaço no livro, minorias raciais? A pergunta importa cada
daquilo que veremos (o leitor lembrará do os poemas da segunda atreladas ao cuidado vez mais graças à crescente conscientização
nos livros seguintes. Os transbordamento pela parte da obra, que são com as plantas (e a de que ideias depreciativas sobre minorias
ipês, nele e como em presença do papel de jardins para poetas que linguagem), chegam dois políticas impede que esse grupos possam ter
várias cidades, decoram arroz, por exemplo) ou a influenciaram a autora. versos de um poema proteção jurídica e respeitabilidade social.
jardins urbanos. As cores geografia (marcada nas Esses poemas revelam de A vida submarina,
fortes e essa presença modalidades de jardim: diferentes formas de referentes a outra poeta,
na geografia da cidade francesa, japonesa, tensionar a distância e que acolhem, às
são vetores para que, inglesa); apenas não são entre linguagem e avessas, algo de O livro
no poema, seja pensada estas as protagonistas. experiência, entre signo dos jardins: O peso do mundo
a linguagem e salvo o Nesse jardim, a e referente: Nenhum jardim é leve / mas não há quem o
cotidiano. Também está primavera não existe. / é inocente, como diz o carregue. (Igor Gomes) Autor: Adilson Moreira
lá o verão que vivifica Poucas plantas são inspirado em Ingeborg Editora: Pólen Livros
memórias. E o fim de um nomeadas e sem Bachmann; e brilha a Páginas: 140
jardim de inverno surge preocupação em fazer página / anterior à inscrição Preço: R$ 19,90
como estúpida metáfora as imagens avançarem / limpa ainda de palavras
do fim de uma relação. com metáforas atípicas / — como um jardim em NO JARDIM DO OGRO
Nesse poema, Jardim de (a rosa continua a trazer branco, lança o poema que Segundo romance da autora franco-marroquina
inverno, o sujeito lírico reflexão amorosa e o acena a Orides Fontela; Leïla Slimani a chegar ao Brasil. A autora,
diz: às vezes me pergunto / girassol continua atento e, naquele que traz que participou da Flip 2018, traz desta vez um
porque as pessoas instalam ao sol, por exemplo). Alejandra Pizarnik, há enredo de um corpo feminino escravizado por
em casa / um quadrado em Estão no jardim o tensão entre a presença seus impulsos. Adèle tem uma vida bastante
que as coisas morrem. mundo e a indiferença dos elementos do jardim feliz, de acordo com os padrões burgueses.
Em O livro dos jardins, ao mundo, a relação ao e a insistente recusa pelo Mas o tédio com essa vida chega e traz consigo
obra mais recente da mesmo tempo vazia e envolvimento com eles, a necessidade insaciável de sexo. Os dias
poeta, o quadrado perde frutífera entre palavras e que são uma tentação à passam a ser pensados em torno de casos
seu caráter limítrofe coisas e, também, lições visceralidade do sujeito extraconjugais. Tradução de Gisela Bergonzoni.
para ser espaço de um tomadas das plantas: lírico. O jardim como POESIA
“lirismo acolhedor” e Aprender / com certas flores / cena interior, palco de
local onde se encontra para quem ser / é espalhar-se uma intensidade que O livro dos jardins
viva a linguagem. Em / e que num sopro / se soltam. não será correspondida Autora - Ana Martins Marques
suma, dá continuidade A força do livro está — e isso não vem em Editora - Quelônio
àquilo que as presenças menos em proposições sugestão psicanalítica, Páginas - 44
marcantes dos mapas e líricas de alta voltagem mas na linguagem que Preço - R$ 58 Autora: Leïla Slimani
Editora: Planeta
Páginas: 196
Preço: R$ 46,90

Debates de gênero Revisão feminista MOÇA QUASE-VIVA ENRODILHADA NUMA


AMOREIRA QUASE-MORTA
Amor e desejo se entrelaçam nessa novela
Heloisa Buarque como método, o antes e Em Pensamento feminista complexas como a Teoria de Evandro Affonso Ferreira, autor de Minha
de Hollanda é uma o hoje das intervenções brasileiro: formação e Queer. A obra não mostra mãe se matou sem dizer adeus. Do romântico ao
intelectual que busca no debate). As autoras e contexto, a outra reunião pretensão de esgotar tom seco, é a linguagem que toma a frente do
intervir em debates autor (o único homem a de textos organizada todas as possibilidades de romance, pois é apenas nela que podem se
por meio de propostas assinar texto no livro é por Heloisa Buarque pensar uma arqueologia amar o poeta e sua musa. É possível dizer que
de organização do seu o filósofo Paul Preciado) de Hollanda, destaca- dos feminismos. Com há pretensão, no livro, de atualizar histórias de
presente. Essas propostas, são nomes conhecidos se o viés histórico. todas as limitações de amor, cada vez mais raras na nossa literatura.
não raro, são reuniões e lidos. Apesar de nem O volume, que uma antologia, não deixa
de vozes, sejam elas em sempre trazer textos reúne autoras como de ser suporte para quem
antologias ou não. São seminais das obras das Constância Duarte, deseja entender parte
exemplos 26 poetas hoje, teóricas, vale como Jacqueline Pitanguy, dos debates acadêmicos.
Esses poetas, as entrevistas primeira aproximação Sueli Carneiro e Beatriz E também aborda a
com artistas e intelectuais de algumas ideias e Nascimento, cria uma participação da literatura
no Patrulhas ideológicas (que conflitos que hoje visão panorâmica do na construção de uma Autor: Evandro Affonso Ferreira
ela assina com Carlos norteiam discussões desenvolvimento dos tradição e imaginários Editora: Nós
Alberto Messeder) ou, de gênero. (I.G) estudos feministas feministas no país. (I.G.) Páginas: 120
mais recentemente, o (como a autora chama Preço: R$ 40
Explosão feminista, com no livro) no Brasil,
artigos de diferentes contextualizados EU NUNCA FUI AO BRASIL
autoras sobre as por Hollanda na Esta coletânea, selecionada e traduzida por
correntes do feminismo introdução ao volume. Myriam Ávila, apresenta o público brasileiro o
presentes no Brasil. O foco são as sementes poeta austríaco Ernst Jandl (1925-2000). Jandl
Uma das antologias que lançadas pela geração fez parte de uma geração que escreveu em
lançou recentemente que atravessou os língua alemã e encontrou na experimentação
se debruça sobre anos 1970, e seus literária uma salvaguarda contra o saldo
conceitos fundamentais desdobramentos. Já ético e político da Segunda Guerra. Levou
dos debates atuais e aqui se insere uma adiante as veredas abertas pelas vanguardas
reúne textos que nem diferença em relação germânicas, associando essa influência
sempre são fáceis de ao anterior, no qual a a um humor e à seriedade existencial.
achar no mercado ou perspectiva assume
fora dele. Centrada em a nomenclatura do
textos alinhados aos CRÍTICA “gênero”. Talvez seja CRÍTICA
estudos de gênero, que possível entender a
se impuseram de forma Pensamento feminista: conceitos visada proposta pela Pensamento feminista brasileiro:
mais contundente nas fundamentais antologista como uma formação e contexto
discussões a partir dos Autora - Heloisa B. de Hollanda (org.) visão pessoal dos Autora - Heloisa B. de Hollanda (org.) Autor: Ernst Jandl
anos 1980, a antologia Editora - Bazar do tempo debates que preparam Editora - Bazar do Tempo Editora: Relicário Edições
de textos se divide em Páginas - 440 o terreno para Páginas - 400 Páginas: 168
três etapas (o gênero Preço - R$ 76 interpelações mais Preço - R$ 65 Preço: R$ 39
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

RESENHAS
BEATRIZ SANO / DIVULGAÇÃO

Daí, também, a presença acúmulo e apagamento,


do eu, do criador que na medida em que
se mistura e afirma em nenhum deles se subtrai
meio às reflexões que por completo, mas se
se sucedem no texto; o projeta sobre os outros, em
investimento autobiográfico processo que pode acolher
era indispensável ao livro, a palavra desse outro.
bem como o despojamento Trata-se de um texto
que marca a linguagem autobiográfico que, no
e a abordagem de temas entanto, nega a ideia
complexos. No limite, de um eu que se instale
tudo neles é invenção e confortavelmente nos
descoberta: o autor nos limites da subjetividade,
oferece um tipo muito que se feche num
particular de narrativa de processo de individuação
si e de poética, segundo a convencional. Reuben
qual o lugar da poesia e da deflagra, em seus
arte é o cosmos, ao passo ensaios-poemas, uma
que o artista deve ser um operação paradoxal
corpo em disponibilidade, de grande significado
aberto à possibilidade de político, especialmente
reconexão física, num se compreendida à luz
sentido arcaico e místico, do tempo presente,
com a carnalidade do de individualidades
mundo: “a obra (é) um e identidades
índice da simpatia entre o fechadas sobre si.
artista e a matéria” (p. 24). O poeta constrói, em
Enquanto vai perspectiva lacunar, uma
desvelando os dados de constelação em torno de si
uma existência e de uma e de sua poética, formado
poética móveis, feitas da por estilhaços de imagens
atividade concentrada e ideias que se ajustam
da atenção extática e da umas às outras sem se
prática dispersiva de um completar em totalidade
caminhar insistente, o monolítica. Esse texto,
poeta trata de lembrar ao invés de confirmar
como seu próprio nome, a uma identidade, procura
assinatura que imprime nos tornar fluidos os limites
trabalhos que faz, variou entre o eu e o mundo,

Contra a O artista que assina Um


pensamento estranho atravessa
o meu crânio e desce até as
um modo de pensar que
encontra seu sentido e
sua potência na matéria
constantemente e ainda
permanece em questão
– como que a indicar a
aponta para várias origens
possíveis e simultâneas,
desfazendo, assim,

identidade e a
entranhas, Reuben, inscreve bruta da existência física. multiplicidade de vozes que qualquer ideal de pureza.
o conjunto singular de Não se fixar num o atravessa, a experiência Interessado em desfazer
textos que forma o livro ponto, não se ater a da alteridade que lhe é a trama do idêntico e do

favor do sujeito
no universo do provisório uma linguagem só ou a fundamental. Cavalodada, automático, daquilo que
e da transformação – “a um único referencial é um desses nomes, é, se faz sem que o corpo
verdade mutante de todas manter-se livre, atento segundo o autor, “uma esteja de fato presente,
as coisas” (p. 14). Há e insubmisso ao mesmo personagem semiótica” Reuben propõe, talvez, a
Sobre a subjetividade indócil nele, informando tantas
imagens e assuntos,
tempo: ao recusar
significados prontos, o
(p. 15) misturando em seu
arranjo a figura mística da
criação poética assimilada
à atividade sonora
e crítica que marca o livro o elogio de tudo o
que é impermanente:
artista que se reconhece
no precário, como Reuben,
incorporação de outros
espíritos e consciências (o
capaz da “dissolução da
ênfase” (p. 13), isto é,
mais recente de Reuben em primeiro lugar, o pode experimentar várias cavalo), do corpo que é, da razão absoluta que
movimento (a passagem possibilidades, expressar- em certos rituais religiosos, submete às coisas ao seu
gradual de um estado a se e criar a partir de passagem e receptáculo, método quase sempre
Gustavo Silveira Ribeiro outro, o deslocamento todas elas. O “autêntico ao elemento aleatório e feito de impessoalidade
paciente e estudado, e escritor é quem rechaça disruptivo do Dadaísmo. e violência. Contra as
também a fuga). Tudo o o servilismo”, afirma o A recusa de uma brutalidades do tempo
que importa para a vida, poeta, em diálogo com identidade estável, acelerado que disciplina
o livro parece afirmar, sai Bataille; é aquele que burguesa e tradicional, e regula os fluxos, a
de si, muda de lugar, se ultrapassa toda noção de que essa assinatura lentidão. A paixão
refaz: “Movimentar-se “dívida ou disciplina” anômala sugere, mesmo do objeto, a proposta
ajuda a dar leveza: abrir (p. 23), entregando-se que agora ela não seja mais que reaproxima ética
espaço” (p. 10). E é de a exercícios de escrita repetida, guarda a chave e estética: “Não tocar
vida, de vários tipos de marcados pela deriva da de um procedimento as coisas com a mão
vida (a do próprio poeta palavra e do pensamento, poético e de uma da agonia” (p. 23).
em particular, mas não indistintamente. concepção da linguagem
só), de suas circunstâncias Daí os textos que e das possibilidades
e possibilidades compõem o volume políticas da vida. O eu,
moventes, que esse livro terem sido feitos entre como o texto ou o mundo,
vai tratar. Hierarquias o pequeno poema em nunca é permanentemente
se desfazem, limites prosa, a autobiografia, o igual a si; seria, antes, um
são postos em xeque; ensaio breve e o aforismo, “rádio onívoro girando
tudo pode se deslocar. permanecendo em aberto, solto entre todas as
Num segundo momento, inclassificáveis entre emissões” (p. 15), espécie
está no centro dos textos o a poesia e o fragmento de força descontínua
corpo, “abismo lúcido” (p. de extração filosófica. sempre nova e distinta.
7) para o poeta – território A porosidade da prosa Ficção em curso, o sujeito
perecível do sagrado e inventiva, uma forma em (e o texto que produz)
das sensações, ponto de metamorfose, é essencial procuram não repetir
fermentação para “uma ao livro, pois traduz, no ou confirmar algo que
centelha de rebeldia plano da composição, já estava antes dado.
instintiva” (p. 9), que elementos recorrentes que Conforme diz o autor, em FICÇÃO
coloca toda a existência concorrem para delinear a entrevista ao Pernambuco,
que se entrega ao seu tênue estrutura sequencial a poética que desenvolve Um pensamento estranho...
controle (do corpo) à beira (quase narrativa) sobre a e o nome que carrega Autor - Reuben
do desvio e do esplendor. qual se apoia o traço da são transitórios, outros Editora - Luna Parque
Gaia ciência, afinal, parece escrita e a trama conceitual nomes ainda surgirão para Páginas - 48
ser o horizonte do livro: que nela cresce e se expõe. se desfazer, num jogo de Preço - R$ 84,90
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

Dez mandamentos do ativismo punk PRATELEIRA


A rápida passagem filosofias de ação e O livro é dividido em cineasta Fernando Birri, JOGO DE CENA
da banda Pussy Riot, relatos autobiográficos. 10 capítulos-regras em quando ele usa a ideia Terceiro romance policial de Andrea Nunes,
recentemente pelo Brasil, Com tradução de que, a partir de uma do utópico como algo publicado pela Cepe Editora. Nele, um boticário
com paradas no Recife e Jamille Pinheiro Dias estrutura subdividida sempre inatingível, porém francês morre numa cidade pequena. Isso
em São Paulo, deixou no e Breno Longhi, o livro sempre em palavras força-motriz de uma desencadeia uma sucessão de crimes talvez
caminho um documento começa com uma (teoria), ações (práxis) e movimentação incessante. provocados por assombrações do folclore
importante em termos contextualização da heróis (referências), se “Para que serve a utopia? nordestino. Para resolver os casos, a delegada
de proposições do que própria Nadya sobre propõe uma guia para Serve para isso: para responsável precisa se acertar com o filho de
vem a ser isso que boa em que cenário político outros coletivos ativistas que eu não deixe de seu padrasto, um historiador que renega suas
parte do mundo conhece suas palavras são no mundo. Naturalmente, caminhar”, falava Birri. origens e volta à cidade – agora tomada por um
apenas como “aquelas” publicadas. Ela cita a Nadya fala de um Nadya, que passou por pânico coletivo. Espionagem, ação, suspense
mulheres russas vestindo ascensão da extrema lugar muito específico processos de tortura em e crises históricas atravessam o romance.
balaclavas coloridas que direita personificada por do planeta onde, por seus anos de prisão – algo
foram presas após uma Trump, Orbán, Le Pen exemplo, o gesto de que ela menciona no livro
apresentação punk numa e por movimentos furtar uma loja em nome – trabalha nesse mesmo
igreja em Moscou. Um guia como o Brexit (as eleições da luta social não está terreno do pensamento.
Pussy Riot para o ativismo é, no Brasil ainda não atravessado por questões (Carol Almeida)
na verdade, uma tentativa tinham ocorrido quando de raça como estariam
de sistematização do o livro foi escrito) em um país como o Autora: Andrea Nunes
pensamento, das ações e, portanto, de uma Brasil. Mas há algo na Editora: Cepe Editora
e das intenções da “quebra de paradigma ingenuidade e utopia Páginas: 327
mais famosa integrante do contrato social”, do discurso do livro Preço: R$ 40
do grupo: Nadya quando não se poderá que pode ser muito útil
Tolokonnikova, que mais viver no mundo para repensar de como MELANCOLIA DE ESQUERDA
assina pelo livro. sem que haja um podem ser reconfiguradas Para o historiador Enzo Traverso a “melancolia
É a partir de sua envolvimento político as militâncias de de esquerda” caracteriza a sensibilidade de
experiência enquanto direto com ele. Afinal esquerda no mundo, quem sabe que luta por causas justas, mas
ativista e os caminhos de contas, por trás particularmente aquelas é atravessada por dúvidas: a história é
que percorreu desde a da frase “não me da América Latina imprevisível e os totalitarismos sempre podem
adolescência apaixonada importo com fronteiras que, durante governos voltar. Essa melancolia, presente em vários
por Maiakóvski até o (embora as fronteiras recentes liderados por momentos históricos, é buscada por Traverso em
momento de reflexão se importem comigo)” partidos de esquerda autores ou artistas como Benjamin, Marx, Daniel
sobre os dois anos em há a revelação de que ou centro-esquerda, Bensaïd, Gustave Courbet e Chris Marker. Assim,
que esteve presa num o estado generalizado baixaram a guarda ENSAIO o autor desenha as questões de uma “cultura
campo de trabalho de apatia, pela autora acreditando em possíveis de esquerda”. Tradução de André Bezamat.
forçado na Mordóvia, detectado como o maior resoluções definitivas. Um guia Pussy Riot para o ativismo
na Rússia, que Nadya inimigo da luta social, vai A utopia que serve à Autora - Nadya Tolokonnikova
costura uma narrativa de deixar muito em breve Nadya e ao Pussy Riot Editora - Ubu
militância cruzada por de ser uma opção viável de forma geral é aquela Páginas - 288
referências de textos, à existência humana. mesma citada pelo Preço - 49,90

Autora: Enzo Traverso


Editora: Âyiné

Disputa de sentido Poemas de fogo Páginas: 495


Preço: R$ 79,90

ARQUIVO DAS CRIANÇAS PERDIDAS


A Zazie Edições publicou estáveis, como “a O que pode um corpo? sala de jantar em que “há Crítica à tecnologia e representação dos
a transcrição da aula poesia contemporânea A pergunta que atravessa noites que são o eco de um problemas que envolvem imigração marcam
inaugural do atual ano brasileira” estão em toda a história da tiro de suicídio” e cozinhas este romance de Valeria Luiselli. Apesar disso,
letivo da FFLCH-USP, uma disputa de sentido filosofia da imanência em que o tempo “deposita o centro da trama não é político: a obra se
proferida por João que desestabiliza a parece ser também a um punhado mínimo de debruça sobre uma família que descobre sua
Adolfo Hansen, um dos conhecida visada que se faz presente na pó/ no fundo das taças própria crise em uma viagem de carro de
grandes especialistas totalizante dessa crítica, escrita poética, bem sujas”. No terceiro bloco, Nova York até a terra dos Apaches. Elogiado
em Barroco no país. A que historicamente como no pensamento o sujeito político vem toda pela crítica estrangeira, o livro faz um convite
fala exorta os sujeitos à analisa apenas obras sobre essa escrita, de força - “não quero lirismo à necessidade de escuta, algo necessário na
consciência histórica e, de autores com perfis Daniel Francoy. No que não seja incendiário” atualidade. Tradução de Renato Marques.
consequentemente, ao socioeconomicos seu novo trabalho, - e, por fim, um grupo de
trabalho crítico. Convida hegemônicos. Os estudos Ganges represado, o poeta poemas, reflexões sobre
o leitor a entrar nesse culturais deslocam de Ribeirão Preto – a o próprio fazer poético e
processo pela literatura. o olhar da crítica e marcação da cidade se a função de resistência de
Por aí se encontra uma dos leitores para a revela importante – se corpos-palavras que já
das importâncias da diferença. (Igor Gomes) mostra cada vez mais morreram.(C.A.)
crítica literária hoje. O consistente na arte Autora: Valeria Luiselli
ensaio, entretanto, vai de dar sensibilidade Editora: Alfaguara
mais longe e informa, às experiências do Páginas: 424
indiretamente, sobre corpo como produção Preço: R$ 79,90
as disputas de sentido de pensamento e,
que tomam conta do simultanemante, cada TRÊS OBJETOS
campo literário. Em vez mais devedor à Traduzido por Iara Tizzot, o livro apresenta
uma passagem, Hansen poesia drummoniana. contos de Teresa de la Parra (1889-1936), autora
mostra ranço pelos O livro é dividido em cuja obra estimulou o surgimento de outras
estudos culturais, hoje quatro blocos: “Deem- escritoras de língua espanhola. Os contos do
uma das principais me um cadáver”; livro, escritos em Caracas talvez entre 1915 e
vertentes de análise “Poemas domésticos”; 1923, permaneceram inéditos até 1982. Neles,
nas universidades, “Uma carpa na água um objeto assume o lugar de protagonista
certamente sem da fonte” e “A morte para nos mostrar a
notar que sua visada natural de um pássaro”. prosa única da autora de
pode ser encaixada No primeiro, a origem venezuelana.
neles. Além da visão ENSAIO cidade, seus espaços POESIA
reducionista do campo e a sensação de que
de pesquisas citado, o Aula Magna Hiroshima e Napalm O Ganges represado
que a passagem informa Autor - João Adolfo Hansen estão a uma janela de Autora - Daniel Francoy Autora: Teresa de la Parra
é a necessidade de Editora - Zazie distância. Na segunda Editora - Urutau Editora: Arte e Letra
acolher o entendimento Páginas - 34 parte, anatomias Páginas - 86 Páginas: 58
de que noções antes Preço - Gratuito (em zazie.com.br) domésticas de uma Preço - R$ 40 Preço: R$ 32
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PERNAMBUCO, JUNHO 2019

José
CASTELLO www.facebook.com/JoseCastello.escritor
HANA LUZIA

Lógica da estupidez
A brutalidade e o ódio se espalham. Por todos Não é uma tarefa fácil definir a estupidez: eis Talvez aqui seja possível, enfim, pisar um
os lados, cenas de agressão, de bestialidade, uma palavra que, quase sempre, se transfor- chão firme: a estupidez se relaciona com a
de ignorância. A realidade se torna tóxica. Seja ma em uma armadilha. Podemos usá-la nas falta de sentido. Não existem argumentos,
qual for o lado desde o qual a observamos, mais variadas circunstâncias e dentro das mais tampouco pontos de vista, ou razões, não exis-
ela se mostra, cada vez mais, inóspita e rude. diversas perspectivas. Em si, ela talvez nada tem provas – tudo o que importa é a acusação.
Irrespirável. Busco uma palavra que sintetize signifique – e isso é, logo, o mais chocante. Basta dar uma olhada em volta para verificar
nosso tempo. Em uma conferência pronun- O próprio Musil se adianta em dizer: “Prefi- o quanto isso é verdadeiro. A estupidez pro-
ciada em Viena no distante ano de 1937, o ro, pois, confessar desde já a minha fraqueza lifera, em especial, durante “as épocas em
escritor austríaco Robert Musil (1880-1942) me diante do problema da estupidez: ignoro o que que se aprecia, particularmente, a energia e
oferece, enfim, uma palavra que talvez possa seja”. Trata-se de uma palavra que se asseme- o punho”. Ela é tão violenta, mas também tão
dar conta do que vivemos. “Estupidez” – Musil lha a um pântano. Ou talvez ao barro: pode ser gratuita quanto um soco desferido por simples
me sugere. Autor do extraordinário O homem sem moldada em qualquer forma e por quaisquer impulso, ou por um ódio selvagem. O pior é
qualidades, livro publicado entre 1930 e 1943, mãos. De um extremo a outro da sociedade, que a estupidez pode se esconder sob os mais
ele foi um escritor que valorizava as palavras todos acusam os adversários de “estúpidos”. diversos semblantes. “Não existe um único
precisas. Estupidez: dessa odiosa palavra tenho A palavra se esvazia. “Quem quiser falar da pensamento importante que a estupidez não
que partir, eu decido. estupidez (...) deve partir da hipótese de que saiba imediatamente utilizar; pode mover-se
Corro aflito ao Houaiss, que define a estupidez ele próprio não é estúpido”, prossegue. “Quer em todas as direções e assumir todas as apa-
como “incivilidade, indelicadeza, grosseria, dizer, proclamar que se julga inteligente, ain- rências da verdade”. A estupidez é uma peste
descortesia”. Parece muito pouco, parece ainda da que isso passe geralmente por um sinal e, como tal, só leva ao extermínio.
insuficiente, mas é a palavra que tenho. Da de estupidez”. O círculo se fecha e a palavra No fim das contas, não interessa saber o
estupidez é o título da conferência de Musil, sufoca, tornando-se apenas uma ofensa, ou que ela é, mas, sim, o que ela produz. Basta
transformada em 1994, pela editora Relógio um xingamento, que serve para tudo, mas, olhar em torno para verificar que a estupidez
D’Água, de Lisboa, em um pequeno, mas pre- no fim, não serve para nada. gera um mundo convulsionado, cada vez
cioso, ensaio. Musil adverte seus ouvintes, Acontece que este é justamente o ponto: pela mais instável e incompreensível, ou melhor,
logo de saída, a respeito dos perigos em que via da estupidez não se chega a lugar algum. desinteressado em qualquer tipo de compre-
a palavra o lança: “Quem quer que se decida O barulho cresce, os nervos se esgarçam, os ensão. Ao nos observar nos espelhos, é bom
a falar da estupidez corre hoje o risco de ser corações aceleram – mas a verdade é que nada não deixar de lado nossa própria estupidez,
insultado: podem acusá-lo de pretensiosismo, se move. Tudo se torna insuportável, sem que que se manifesta em detalhes irrelevantes,
ou de querer perturbar o curso da evolução his- a realidade se altere. O parentesco entre a vai- ou sórdidos. Olhando de relance, pode não
tórica”. A advertência também me serve, mas dade e a estupidez, por exemplo, é direto. Ela parecer nada, mas pode estar ali o ponto de
não se pode escrever sem correr risco algum. pode ser camuflar em qualquer brecha. Seja partida de uma explosão. Reconhece Musil
Alerta logo Musil — para quem na arte tudo como for, a estupidez conduz inevitavelmente que “todos nós somos, por vezes, estúpidos;
se decidia — que a falta de sentido artístico à brutalidade. Recorda Musil do reverendo ale- por vezes, também, somos constrangidos
de um povo “não se exprime apenas nas más mão Johann Erdmann, para quem a brutalidade a agir cegamente ou semicegamente, sem
épocas e sob forma grosseira, mas também nas é “a estupidez em ação”. Pela via da estupidez o que o mundo se deteria”. O reconheci-
boas e sob todas as formas”. Pensa, é claro, só chegamos ao ataque selvagem. Também mento de nossos aspectos selvagens, que
na estupidez, que se esconde sob uma gran- não se deve reduzir a estupidez à incapaci- datam desde o homem primitivo, não é um
de variedade de máscaras.”Aquilo que nós dade. Fazer isso, ele argumenta, “é uma das argumento, porém, a favor da estupidez. Isso
chamamos de bel esprit (mente brilhante) po- razões que explicam que a acusação recíproca seria naturalizá-la, e a partir daí qualquer
deria também ser qualificado de bela estupidez”, de estupidez esteja hoje tão espalhada”. Pros- brutalidade poderia se justificar. “Todos nós
exemplifica. É preciso aceitar que a estupidez segue: “Somos inclinados a classificar quase somos perversos e estúpidos”, reconhece
também pode ser bela, ou, pelo menos, em tudo o que não nos convém de estúpido”. Mais Musil, antes que o julguem um estúpido esno-
dadas circunstâncias, pode ser vista como uma vez: agindo assim, não saímos do lugar. be. Ser humano consiste em manter os erros
bela. “Entre a repressão ou a proibição e os Prefere Musil pensar que a idéia de estupidez e as insuficiências dentro de certos limites.
doutorados honoris causa (...) há apenas uma di- conduz não ao deboche, ou à ofensa, mas a Apertar os freios que seguram o monstro que
ferença de grau”, ironiza Musil, que observava uma “tendência para a fuga ou para atos de levamos dentro de nós. Ainda assim, o prin-
com grande suspeita os títulos e as comendas. destruição desprovidos de sentido”. cipal está sempre em outra parte.

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