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Eugene Peterson
na mesma
Uma longa obediência na mesma direção,'Eugene H. Peterson © 2005 Editora Cultura Cristã.
Originalmente publicado em inglês com o título A Long Obedience in the Same Direction - 20“'
Anniversary Edition by Eugene H. Peterson © 1980 by InterVarsity Christian Fellowship e 2000 by
Eugene H. Peterson. Traduzido e publicado com permissão da InterVarsity Press P.O.Box 1400
Downers Grove, IL 60515 USA. Todos os direitos são reservados.
Tradução
Helen Hope Gordon Silva
Revisão
Madalena Torres
Claudete Água de Melo
Editoração
Carla Daniela Ribeiro Araújo
Capa
LelaDesign
Peterson, E ugene 1932 -
P4851 U m a longa obediência na m esm a direção/ Eugene Peterson; [tradução Helen Hope
Gordon Silva]. - São Paulo: Cultura Cristã, 2005.
160p. ; 1 6 x 2 3 x 0 ,83cm .
Editora Cultura Cristã - Rua Miguel Teles Júnior, 394 - Cambúci - 01540-040 - São Paulo - SP - Brasil
-Caixa Postal 15.136-S ão Paulo-SP-01599-970-Fone (0**11)3207-7099-F ax (0**11)3209-1255-
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P r e f á c io 7
Ah. bendito seja D eus! Ele não f o i em bora e não nos abandonou
7 S egurança 57
Conservei os p és no chão
1 4 O b e d iê n c ia
Um Epílogo
N o ta s
PREFACIO
sabia que seguir Jesus nunca poderia se tornar uma “longa obediência”
sem uma vida de oração cada vez mais profunda, e que os Salmos sempre
foram o principal meio pelo qual os cristãos aprendiam a orar tudo o que
viviam e viver tudo o que oravam, numa continuidade de tempo.
Mas as pessoas que eu via em volta não oravam os Salmos. Isso me
intrigava; os cristãos sempre oraram os Salmos; por que não os meus amigos
e vizinhos? Então percebi que era porque a linguagem, cadenciada, bela e
harmônica, parecia estar muito distante da vida diária deles. No entanto,
quando esses Salmos foram orados e escritos pelos nossos ancestrais hebreus,
eles eram de ritmo tão desigual, desarrumado e destoante como qualquer
coisa que vivenciamos hoje. Eu queria traduzi-los do seu hebraico original
e transmitir a energia crua, desigual, tosca e forte que é tão característica
dessas orações. Eu queria que as pessoas começassem a orá-los de novo,
não que apenas os admirassem de longe; e que assim aprendessem a orar
tudo o que vivenciavam e sentiam e pensavam à medida que seguiam Jesus,
não só aquilo que achavam ser apropriado para orar na igreja.
E aconteceu que a conseqüência não intencionada de escrever Uma
Longa Obediência na Mesma Direção foi essa nova tradução dos Cânticos
de Subida, e depois todos os Salmos e o Novo Testamento (e finalmente a
Bíblia inteira). A inclusão dessa tradução nesta nova edição completa o
livro de uma forma que eu não poderia ter previsto há vinte anos.
1
D is c ip u l a d o
O que o faz pensar que pode apostar
corrida contra cavalos?
FRIEDRICH NIETZSCHE,
BEYOND GOODAND EVÍL [ALÉM DO BEM E DO MAL]
ste mundo não é amigo da graça. Uma pessoa que assume um
Turistas e Peregrinos
Um aspecto de mundo que eu pude identificar como sendo prejudicial para
os cristãos é a presunção de que qualquer coisa que vale a pena pode ser
adquirida imediatamente. Achamos que se algo pode ser feito, pode ser feito
rápida e eficientemente. Nossos períodos de atenção foram condicionados pelos
comerciais de trinta segundos. Nosso senso de realidade foi achatado pelas
condensações de trinta páginas.
Não é difícil num mundo desses conseguir que uma pessoa fique interessada
na mensagem do evangelho; é terrivelmente difícil sustentar o interesse. Milhões
de pessoas, na nossa cultura se decidem a favor de Cristo, mas há uma porcen
tagem de desgaste terrível. Muitos afirmam ter nascido de novo, mas a evidência
de um discipulado cristão maduro é fraca. Em nosso tipo de cultura, qualquer
coisa, até notícia sobre Deus, pode ser vendida se tiver embalagem novinha;
mas quando perde a novidade, vai para o lixo. Há um grande mercado para a
12 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Peregrino (parepidêmos) nos diz que somos pessoas que passam a vida
indo para algum lugar, indo para Deus, e cujo meio para chegar lá é o caminho,
Jesus Cristo. Reconhecemos que “este mundo não é meu lar” e saímos rumo “à
casa do Pai”. Abraão, que “saiu” é nosso arquétipo, nosso modelo. Jesus, em
resposta à pergunta de Tomé “Senhor, não sabemos para onde vais. Como o
Senhor espera que conheçamos o caminho?” fornece o roteiro: “Eu sou a
Estrada, também a Verdade, também a Vida. Ninguém chega ao Pai à parte de
mim” (Jo 14.5,6). A carta aos Hebreus define nosso programa: “Você vê o que
isso significa — todos esses pioneiros que abriram a estrada, todos esses
veteranos encorajando-nos a seguir em frente com seus aplausos? Significa
que é melhor seguir em frente. Despojar-nos, começar a correr — e nunca
desistir! Nada de gordura espiritual extra, nada de pecados parasíticos. Con
servar os olhos em Jesus, que tanto começou como terminou essa corrida na
qual estamos” (Hb 12.1,2).
Um hinário gasto
No trabalho pastoral de treinamento das pessoas em discipulado e acompa
nhamento delas em peregrinação, eu descobri, guardadinho no Saltério He breu,
um velho hinário gasto. Usei-o para providenciar continuidade em guiar outros
no caminho cristão e em dirigir pessoas de fé no esforço consciente e contínuo
que evolui em maturidade em Cristo. O velho hinário é chamado, em hebraico,
shiray hammaloth — Cânticos de Subida. Os hinos são os salmos de números
120 a 134 do livro dos Salmos. Esses quinze salmos provavelmente eram
cantados, talvez em seqüência, pelos peregrinos hebreus enquanto subiam para
Jerusalém às grandes festas de culto religioso. Topograficamente Jerusalém
era a cidade mais alta da Palestina, e por isso todos os que viajavam para lá
passavam muito do seu tempo subindo.5 Mas a ascensão não era só literal, era
também uma metáfora: a viagem a Jerusalém dramatizava uma vida vivida
para cima em direção a Deus, uma existência que avançava de um nível a outro
no amadurecimento que se desenvolvia — o que Paulo descreveu como sendo
“o alvo, onde Deus está nos acenando para seguirmos adiante — para Jesus”
(Fp 3.14).
Três vezes por ano os hebreus fiéis faziam essa viagem (Ex 23.14-17;
34.22-24). Os hebreus foram um povo cuja salvação foi realizada no êxodo,
cuja identidade foi definida no Sinai e cuja preservação foi assegurada nos
quarenta anos de caminhadas no deserto. Como povo dessa natureza, eles subiam
a estrada para Jerusalém regularmente para cultuar. Refrescavam suas memórias
a respeito das operações salvíficas de Deus na Festa da Páscoa no começo do
verão; respondiam como comunidade abençoada ao melhor que Deus tinha
para eles na Festa de Tabernáculos no outono. Eles eram um povo redimido,
um povo comandado, um povo abençoado. Essas realidades fundamentais eram
14 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
pregadas e ensinadas e comemoradas nas festas anuais. Entre uma festa e outra
o povo vivia essas realidades no discipulado diário até que chegasse o tempo
de subir à cidade serrana novamente, como peregrinos para renovar a aliança.
Esse retrato dos hebreus cantando esses quinze salmos quando deixavam
sua rotina de discipulado e se encaminhavam dos povoados e vilas, das
fazendas e cidades, como peregrinos subindo a Jerusalém já se fixou na ima
ginação devocional cristã. É como nosso melhor pano de fundo para entender
a vida como uma jornada de fé.
Sabemos que o nosso Senhor desde menino viajava a Jerusalém para as
festas anuais (Lc 2.41,42). Continuamos a nos identificar com os primeiros
discípulos que “iam de caminho para Jerusalém. Jesus ia mais à frente, e eles o
seguiam, perplexos e não pouco temerosos” (Mc 10.32). Também nós esta
mos perplexos e um pouco temerosos, porque há maravilha sobre inesperada
maravilha nessa estrada, e há fantasmas temíveis para se encontrar. Cantar os
quinze salmos é uma maneira de expressar a maravilhosa graça e aquietar os
temores da ansiedade.
Não há melhores “cânticos para a estrada” para os que percorrem o
caminho da fé em Cristo, uma estrada que tem tantas ligações com o caminho
de Israel. Visto que dos itens essenciais do discipulado cristão, muitos (não
todos) estão fazendo parte desses cânticos, eles fornecem um meio de
lembrarmos quem somos e para onde estamos indo. Eu não busquei produzir
exposições eruditas desses salmos e sim oferecer meditações práticas que
usam esses cânticos para estímulo, encorajamento e direção. Se aprendemos
a entoá-los bem, podem ser uma espécie de vade mecum para o andar diário
de um cristão.
Entre tempos
Paul Tournier, em A Placefor You [“Um Lugar para Você”] descreve a
experiência de estar entre — entre a hora em que saímos de casa e chegamos
ao nosso destino; entre a época em que deixamos a adolescência e chegamos
à idade adulta; entre o tempo em que deixamos a dúvida e chegamos à fé.6
E como o momento em que o artista do trapézio solta a barra e está num
ponto no meio do espaço, pronto para agarrar outro suporte: é um tempo de
perigo, de expectativa, de incerteza, de excitamento, de estar extraor
dinariamente vivo.
Os cristãos reconhecerão o quanto esses salmos podem ser cantados entre
os tempos: entre o momento de deixar o ambiente do mundo e chegar à assem
bléia do Espírito; entre a hora em que deixamos o pecado e chegamos à santi
dade; entre a hora em que saímos de casa na hora do culto no domingo de
manhã e chegamos à igreja com o grupo do povo de Deus; entre a hora em que
deixamos as obras da lei e chegamos à justificação pela fé. São cânticos de
DISCIPULADO 15
transição, breves hinos que fornecem coragem, apoio e direção interior para
levar-nos aonde Deus está nos dirigindo em Jesus Cristo.
Enquanto isso o mundo sussurra: “Por que se preocupar? Há muito para
gozar com alegria sem se envolver com tudo isso. O passado é um cemitério —
deixe-o para lá; o futuro é um holocausto — evite-o. Não existe salário para o
discipulado, não existe destino para a peregrinação. Consiga Deus do modo
rápido; compre o carisma instantâneo”. Mas outras vozes falam — se não
mais encantadoramente, pelo menos mais verdadeiramente. Thomas Szasz, na
sua terapia e nos seus escritos, procurou avivar o respeito por aquilo que ele
denomina “a mais simples e mais antiga das verdades humanas: a saber, que a
vida é uma luta árdua e trágica; que aquilo que chamamos de “sanidade mental”,
o que queremos dizer com “não ser esquizofrênico”, tem muito a ver com
competência, ganha ao se lutar por excelência; com compaixão, ganha
duramente ao se confrontar o conflito; e com modéstia e paciência, adquiridas
por meio do silêncio e do sofrimento”.7 O testemunho dele valida a decisão
daqueles que se comprometem a explorar o mundo dos Cânticos de Subida,
que procuram tirar sabedoria dessa mina e cantá-los para se alegrar.
Sem dúvida, como Isaías descreveu, esses salmos foram usados dessa maneira
pelas multidões que diziam: “Venham, subamos o monte do Senhor, vamos à
Casa do Deus de Jacó. Ele nos mostrará o modo em que ele opera para podermos
viver da maneira em que somos feitos” (Is 2.3). Também são evidência daquilo
que Isaías prometeu quando disse: “Vocês cantarão! Cantarão durante toda uma
noite de festa santa; seus corações romperão em cântico, farão música como o
sonido de flautas em desfile, na sua jornada à montanha de Deus, no seu caminho
à Rocha de Israel” (Is 30.29).
Todos aqueles que viajam pela estrada da fé requerem ajuda de tempos em
tempos. Precisamos ser alegrados quando o espírito esmorece; precisamos de
direção quando o caminho não está claro. Uma das “pequenas orações” de
Paul Goodman expressa nossas carências:
Para aqueles que escolhem não mais viver como turistas mas como
peregrinos, os Cânticos de Subida combinam toda a alegria de uma canção de
viagem com a praticidade de um livro guia de viagem e um mapa. Sua brevidade
é descrita de modo excelente por William Faulkner. “Não são monumentos, e
sim pegadas. Um monumento só diz: ‘Pelo menos cheguei até aqui’, enquanto
uma pegada diz: ‘Foi aqui que eu estive quando eu me movi novamente’.”9
2
A r r e p e n d im e n t o
“Estou fadado a viver em Meseque ”
Sabem o que vem em seguida, vocês enxergam o que está para vir,
vocês todos, mentirosos descarados?
SALMO 120
MÊNCI O
s pessoas submersas numa cultura apinhada de mentiras e malícia
destino era Deus. Falam-nos sobre o mundo sem nos contar que Deus o fez.
Falam-nos sobre nosso corpo sem dizer-nos que ele é templo do Espírito
Santo. Instruem-nos em amor sem contar-nos sobre o Deus que nos ama e
que se deu por nós.
SALMO 121
Mas desviar-se da verdade por amor a alguma perspectiva de esperança
DIETRICH BONHOEFFER
o momento em que dizemos não ao mundo e sim a Deus, todas
O Salmo 121 é uma voz mansa que nos diz gentil e bondosamente que
talvez estejamos errados quanto à maneira em que procuramos viver a vida
cristã; e então, de modo bem simples, nos mostra a maneira certa. Assim, ele é
a continuação necessária do salmo anterior, que nos inicia no caminho cristão.
Ele deu nomes aos sentimentos confusos e desnorteados de alienação e descon
fiança que nos tomaram insatisfeitos e inquietos num caminho de vida que
ignora ou rejeita Deus e que nos impulsionaram ao arrependimento que renuncia
ao “diabo e a todas as obras dele” e afirma o caminho da fé em Jesus Cristo.
Mas nem bem nos lançamos, com expectativa e entusiasmo, no rio da fé
cristã, nosso nariz se enche de água e subimos à tona tossindo e engasgados.
Nem bem apressamos o passo confiantemente na estrada da fé, tropeçamos
num obstáculo e caímos na superfície dura, machucando nossos joelhos e
cotovelos. Para muitos, a primeira grande surpresa da vida cristã é na forma
das dificuldades que enfrentamos. Parece que não é bem o que tínhamos
previsto: esperávamos algo bem diferente; tínhamos a mente colocada no Éden
ou na Nova Jerusalém. Despertados rudemente, olhamos em redor buscando
socorro, buscando no horizonte alguém que nos auxilie: “Elevo os olhos para
os montes; será que minha força vem dos montes?”
O Salmo 121 é o vizinho que se aproxima e diz que nós começamos errado,
procuramos ajuda no lugar errado. O Salmo 121 é dirigido àqueles de nós que,
“desconsiderando Deus, procuram numa distância tudo em volta e fazem longos
e tortuosos rodeios em busca de corretivos para seus problemas”.1
Consultoria de viajantes
Três possibilidades de mal que os viajantes podem sofrer são mencionadas
no salmo. Uma pessoa que viaja a pé pode a qualquer momento pisar numa
pedra solta e torcer o tornozelo. Uma pessoa a pé, exposta por muito tempo a
um sol causticante, pode chegar a desmaiar de insolação. E uma pessoa viajando
grande distância a pé, sob a pressão de fadiga e ansiedade, pode ficar doente
emocionalmente, o que era descrito pelos antigos escritores como ficar aluado
(ou por nós como lunático). Podemos atualizar a lista de perigos. As provisões
de lei e ordem podem falhar com facilidade desalentadora: um louco com uma
arma na mão, um revólver ou um explosivo pode transformar os planos de
viagem computadorizados de trezentos passageiros da aviação numa anarquia
instantânea. A doença pode romper as defesas farmacêuticas e invadir nosso
corpo com dor paralisante e morte. Um acidente — de automóvel, numa escada
ou num campo esportivo — pode interromper sem aviso nossos planos elabo
rados com tanto cuidado. Tomamos precauções aprendendo regras de segurança,
usando o cinto de segurança e fazendo apólices de seguro. Mas não podemos
garantir segurança.
Em referência a esses perigos o salmo diz: “Ele não deixará que você tropece,
. . . D e u s é o seu guardião... cobrindo-o da insolação, protegendo-o de aluamento”.
Será que devemos concluir que os cristãos nunca torcem o tornozelo, nunca
PROVIDÊNCIA 29
sofrem insolação, nunca têm problemas emocionais? Pelo visto é isso. Contudo,
conhecemos muitos exemplos ao contrário. Alguns dos melhores cristãos que
eu conheço já torceram o tornozelo, desmaiaram, tiveram esgotamento nervoso.
Nesse caso, ou eu estou errado (essas pessoas que achei que eram cristãs não
eram e o salmo, portanto, não se aplica a elas) ou o salmo está errado (Deus
não faz o que o salmo afirma).
presente a cada passo do caminho que viajamos. Você acha que o modo de contar
a história da jornada cristã é descrever seus problemas e tribulações? Não é.
É dizer o nome e descrever o Deus que nos preserva, acompanha e governa.
Toda a água em todos os oceanos não pode afundar um navio a não ser que
entre nele. Nem toda a dificuldade do mundo pode nos machucar a não ser que
entre em nós. Essa é a promessa do salmo: “D e u s o guardará de todo mal”. Não
é o demônio na pedra solta, não é o ataque feroz do deus do sol, não é a influência
da deusa da lua — nada disso pode separar você do chamado e do propósito de
Deus. Desde o tempo do seu arrependimento que o tirou de Quedar e Meseque
até o tempo de sua glorificação com os santos no céu, você está seguro: “D e u s o
guarda de todo mal”. Nenhuma das coisas que lhe acontecem, nenhuma das
dificuldades que você encontra tem algum poder para se colocar entre você e
Deus, diluir a graça dele em você, distrair a vontade dele de você (ver Rm
8.28,31,32).
O único erro sério que podemos fazer quando vem a doença, quando a
ansiedade ameaça chegar, quando o conflito perturba nossos relacionamentos
com os outros é concluir que Deus se cansou de cuidar de nós e desviou sua
atenção para um cristão mais empolgante, ou que Deus se aborreceu de nossa
obediência divagadora e decidiu deixar-nos lutar sozinhos por um tempo, ou
que Deus ficou muito ocupado cumprindo uma profecia no Oriente Médio
para ter tempo agora para endireitar o enrosco em que conseguimos nos colocar.
Esse é o único erro sério que podemos cometer. E o erro que o Salmo 121
evita: o erro de supor que o interesse de Deus por nós oscila de acordo com a
nossa temperatura espiritual.
O grande perigo do discipulado cristão é que nós tenhamos duas religiões:
um evangelho glorioso e bíblico que nos liberta do mundo, que na cruz e na
ressurreição de Cristo toma a eternidade viva em nós, um evangelho magnífico
de Gênesis, Romanos e Apocalipse; e depois, uma religião de cada dia com
que nos arranjamos durante a semana entre a hora de sair do mundo e chegar
no céu. Guardamos o evangelho do domingo para as grandes crises da existência.
Para as trivial idades mundanas — as horas em que nosso pé escorrega numa
pedra solta, ou o calor do sol está demais para nós, ou a influência da lua nos
abate — usamos a religião de cada dia do livrinho de auto-ajuda, o conselho
de um amigo, a coluna de nosso comentarista predileto, a sabedoria alardeada
de uma celebridade entrevistada. Praticamos a religião do convincente vendedor
do elixir da felicidade. Sabemos que Deus criou o universo e executou nossa
salvação eterna. Mas não conseguimos crer que ele se digne a assistir à novela
das nossas tentações e tribulações de cada dia; então compramos nossos próprios
remédios para isso. Pedir que ele trate daquilo que nos perturba diariamente é
como pedir a um famoso cirurgião que ponha desinfetante num arranhão.
Mas o Salmo 121 diz que a mesma fé que funciona nas grandes coisas
funciona nas pequenas coisas. O Deus de Gênesis 1 que das trevas tirou a luz é
também o Deus do dia de hoje que o guarda de todo mal.
32 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Companheiro de viagem
A vida cristã não é um retiro solitário num jardim onde podemos caminhar
e conversar com o nosso Senhor sem interrupções, não é uma viagem fantástica
a uma cidade celestial onde podemos comparar nossas taças e medalhas de
ouro com as de outras pessoas da roda de campeões. Supor isso, ou esperar
isso, é virar a porca no sentido contrário. A vida cristã é ir até Deus. Ao ir a
Deus os cristãos percorrem o mesmo terreno que todos os outros percorrem,
respiram o mesmo ar, bebem da mesma água, fazem compras nas mesmas lojas,
lêem os mesmos jornais, são cidadãos sob o mesmo governo, pagam os mesmos
preços para alimentos e gasolina, temem os mesmos perigos, estão sujeitos às
mesmas pressões, sofrem as mesmas aflições, são enterrados no mesmo chão.
A diferença é que a cada passo que caminhamos, a cada fôlego que tomamos,
sabemos que somos preservados por Deus, sabemos que somos acompanhados
por Deus, sabemos que somos governados por Deus; portanto, sejam quais
forem as dúvidas que suportamos ou os acidentes por que passamos, o Senhor
nos guardará de todo mal, ele guardará a nossa própria vida. Conhecemos a
verdade do hino de Lutero:
Se nos quisessem devorar
Demônios não contados,
Não nos iriam derrotar.
Nem ver-nos assustados.
O príncipe do mal,
Com seu plano infernal,
Já condenado está!
Vencido cairá
Por uma só palavra.NT
Nós cristãos cremos que a vida é criada e modelada por Deus e que a vida
de fé é explorar diariamente os meios constantes e incontáveis em que a graça
e o amor de Deus são vivenciados.
O Salmo 121, aprendido cedo e cantado repetidamente no andar com
Cristo, define claramente as condições sob as quais vivemos nosso discipulado
— que, numa palavra, é Deus. Uma vez que conseguimos colocar esse salmo
no nosso coração será impossível supormos de modo pessimista que ser cristão
é uma batalha sem fim contra forças agourentas que a qualquer momento
podem irromper e vencer-nos. A fé não é uma questão incerta de escapar por
acaso dos ataques satânicos. É a experiência sólida, maciça, segura de Deus,
que impede todo mal de penetrar dentro de nós, que guarda a nossa vida, que
guarda-nos quando saímos e quando retornamos, que nos guarda agora, que
nos guarda sempre.
4
CULTO
“Vamos à Casa de Deus”
Q u an do d issera m “ Vamos à ca sa d e D eu s ”,
meu c o ra ç ã o sa lto u d e alegria.
E agora estamos aqui, ó Jerusalém,
dentro dos muros de Jerusalém!
Jerusalém, cidade bem-construída,
construída como lugar de adoração!
A cidade à qual as tribos sobem,
todas as tribos de D eus sobem para cultuar,
Para dar graças ao nome de D eus —
isso é o que significa ser Israel.
Tronos para justo juízo
estão colocados ali, fam osos tronos de Davi.
Orem p ela p a z de Jerusalém!
Prosperidade a todos vocês que amam Jerusalém!
Habitantes amigos, vivam em harmonia!
Forasteiros hostis, guardem distância!
Por amor de minha fam ília e amigos,
Eu o digo de novo: vivam em paz!
P o r a m o r à c a sa d e n o sso D eus, D eus,
SALMO 122
Há algo moralmente repugnante nas teorias
tem valor em si, mas é apenas um meio para o que vem a seguir.
NICOLAS BERDYAEV
ma das aflições do trabalho pastoral é a de ouvir, sem fazer careta,
Um exemplo da média
O primeiro versículo pega muitos de surpresa: “Quando disseram ‘Vamos à
casa de D e u s ’, meu coração saltou de alegria”. Mas não devia. O culto é a
coisa mais popular que os cristãos fazem. Muita coisa daquilo que chamamos
de comportamento cristão já se tornou parte de nosso sistema legal e está
embutido em nossas expectativas sociais, ambas as coisas tendo fortes elementos
36 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Uma estrutura
Por que o fazemos? Por que há tanto culto voluntário e fiel da parte dos
cristãos? Por que é que nunca achamos uma vida cristã sem que haja, por trás
em algum lugar, um ato de culto, nunca encontramos comunidades cristãs sem
encontrar também o culto cristão? Por que o culto é o pano de fundo comum de
toda existência cristã, e por que é tão fiel e voluntariamente praticado? O salmo
destaca três itens: o culto nos dá uma estrutura funcional para a vida; o culto
supre nossa necessidade de estar em relacionamento com Deus; o culto centra
nossa atenção nas decisões de Deus.
O culto dá-nos uma estrutura funcional para a vida. O salmo diz: “Jerusalém,
cidade bem-construída, construída como lugar de adoração! A cidade à qual as
tribos sobem, todas as tribos de D e u s sobem a cultuar”. Jerusalém, para um
hebreu, era o lugar de adoração (só incidentalmente era o centro geográfico do
país e a sede política de autoridade). As grandes festas de culto às quais todo
mundo ia pelo menos três vezes por ano eram realizadas em Jerusalém. Em
Jerusalém tudo o que Deus disse era lembrado e celebrado. Quando você ia a
Jerusalém, você encontrava as grandes realidades fundamentais: Deus o criou,
CULTO 37
Deus o redimiu, Deus providenciou para você. Em Jerusalém você via no ritual
e ouvia proclamada na pregação a verdade poderosa que formou a História:
que Deus perdoa nossos pecados e possibilita vivermos sem culpa e com pro
pósito. Em Jerusalém todos os fragmentos dispersos da experiência, todos os
pedacinhos e partes da verdade, do sentimento e da percepção foram ajuntados
num único todo.
A versão da Bíblia inglesa ( k j v ) traduz esta sentença assim: “Jerusalém é
construída como uma cidade que é compacta junto”. A Coverdale anterior
havia traduzido esta última frase como “que está em unidade consigo mesma”.
A própria cidade é uma espécie de metáfora arquitetural para aquilo que o
culto é: Todas as peças de alvenaria se ajustam compactamente, todas as pedras
da construção se unem harmoniosamente. Não havia pedras soltas, pedaços
sobrando, nada de espaços desajeitados nas paredes ou torres. Era bem construí
da, compactamente, habilmente “em unidade consigo mesma”.
O que era verdade quanto à arquitetura era verdade também socialmente,
pois a sentença continua: “à qual as tribos sobem, todas as tribos de Deus”. No
culto todas as diferentes tribos funcionavam como um só povo em relacio
namento harmônico. No culto, embora cheguemos de lugares diferentes e
condições várias, demonstramos estar atrás das mesmas coisas, dizendo as
mesmas coisas, fazendo as mesmas coisas. Com todos os nossos diferentes
níveis de inteligência e prosperidade, de passado e língua, de rivalidades e
ressentimentos, ainda assim no culto reunimo-nos num só todo. Disputas
externas e desentendimentos e diferenças perdem a importância ao se
demonstrar a unidade interna daquilo que Deus constrói no ato do culto.
Quando uma pessoa está confusa e as coisas recusam ajustar-se, às vezes
isso anuncia a necessidade de sair do barulho e turbulência, afastar-se da correria
só para “encaixar as peças”, ajustar-se à situação. Quando ela consegue fazer
isso, está tudo lá, nada sobra, nada está fora de proporção, tudo se ajusta numa
estrutura tratável.
Quando entrei numa casa para uma visita pastoral, a pessoa que eu tinha
ido ver estava sentada a uma janela bordando um tecido preso num bastidor
oval. Ela disse: “Pastor, enquanto estava esperando o senhor, percebi o que
está errado comigo — eu não tenho um bastidor para me dar estrutura. Meus
sentimentos, meus pensamentos, minhas atividades — tudo está solto e mal
arrumado. Não há limites na minha vida. Nunca sei onde estou. Preciso de uma
moldura para minha vida como esta que tenho para o meu bordado”.
Como conseguimos essa moldura, aquele senso de estrutura sólida para que
saibamos onde estamos e possamos assim fazer nosso trabalho com facilidade
e sem ansiedade? Os cristãos vão para o culto. Semana após semana entramos
no lugar construído compactamente, “para onde as tribos sobem”, e obtemos
uma definição operacional para a vida: o modo como Deus nos criou, os modos
como ele nos dirige. Sabemos onde estamos.
38 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Uma ordem
Outra razão pela qual os cristãos continuam a voltar para cultuar é que
isso supre nossa necessidade de estar em relacionamento com Deus. O culto
é o lugar onde obedecemos à ordem de louvar a Deus: “Dar graças ao nome
de D e u s — é isto que significa ser Israel”. Este mandamento de dar graças
passa pelo centro de todo o culto cristão. Um decreto. Uma palavra dizendo-nos
o que devemos fazer, e que isso que devemos fazer é louvar.
Quando pecamos e estragamos nossa vida, descobrimos que Deus não vai
•embora e nos deixa — ele entra em nosso problema e nos salva. Isso é bom, um
exemplo daquilo que a Bíblia chama de evangelho. Descobrimos razões e
motivações para viver em fé e descobrir que Deus já está nos ajudando a fazer
isso — e que é bom. Louvado seja o Senhor Deus! “Um cristão”, escreveu
Agostinho, “deve ser um aleluia da cabeça aos pés.” Essa é a realidade. Essa é
a verdade da nossa vida. Deus nos fez, nos remiu, provê por nós. A resposta
natural, honesta, saudável, lógica para isso é louvor a Deus. Quando louvamos
estamos funcionando no centro, estamos em contato com a realidade básica,
central do nosso ser.
Mas muitas vezes não sentimos vontade e por isso dizemos: “Seria desonesto
eu ir a um local de culto e louvar a Deus quando não sinto vontade. Eu seria um
hipócrita”. O salmo diz: Eu não me importo se você está com vontade ou não:
foi decretado ( r s v , inglês), “renderem graças ao nome de D e u s ” .
Eu pus grande ênfase no fato de que os cristãos cultuam porque querem,
não porque são forçados. Mas eu nunca disse que prestamos culto porque sen
timos vontade. Os sentimentos são grandes mentirosos. Se os cristãos cultuassem
somente quando sentem vontade, haveria pouquíssimo culto. Os sentimentos
são importantes em muitas áreas, mas não se pode confiar neles nem um pouco
em matéria de fé. Paul Scherer é lacônico a respeito: “A Bíblia fala muito
pouco sobre como nos sentimos”.1
Vivemos na época que um escritor chamou de “idade da sensação”.2 Achamos
que se não sentimos alguma coisa não pode haver autenticidade em fazer isso.
Mas a sabedoria de Deus diz algo diferente: que podemos agir para entrar num
novo modo de sentir muito mais depressa do que podemos sentir para entrar
num novo modo de agir. O culto é um ato que desenvolve sentimentos para
com Deus, não um sentimento para com Deus que é expresso num ato de culto.
Quando obedecemos à ordem de louvar a Deus em culto, nossa necessidade
essencial, profunda de estar em relacionamento com Deus é suprida.
Paz e segurança
O culto, mesmo para aqueles que são mais constantes e fiéis, ocupa só uma
pequena porcentagem da vida de uma pessoa, uma hora, mais ou menos, por
semana. Será que isso faz diferença para o resto da semana? As palavras finais
do Salmo 122 dizem que faz: “Orem pela paz de Jerusalém! Prosperidade a
todos vocês que amam Jerusalém! Habitantes amigos, vivam em harmonia!
Forasteiros hostis, guardem distância! Por amor de minha família e de meus
amigos, eu o digo de novo: vivam em paz! Por amor à casa de nosso Deus,
D e u s , farei o meu melhor pelo senhor”. Aqui temos orações que transbordam
os limites da adoração e criam novos relacionamentos na cidade, na sociedade.
A primeira palavra, orem, é uma transição ao mundo de cada dia. Não é a
palavra comumente usada no culto formal, e sim a palavra hebraica para “pedir”.
Não é impropriamente traduzida “orem”, pois quando pedimos a Deus nós
oramos. Mas o pedir não é uma oração formal no santuário; é um pedir informal
à medida que cuidamos dos nossos afazeres entre um domingo e outro. É a
40 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
palavra hebraica que usaríamos para pedir um segundo pedaço de pão se ainda
estivéssemos com fome, ou para pedir orientação na rua se estivéssemos perdidos.
O culto não satisfaz nossa fome de Deus — dá mais apetite. Nossa neces
sidade de Deus não é saciada por tomarmos parte no culto — fica mais profunda.
Extravasa aquela hora e permeia a semana. A necessidade é expressa num
desejo de paz e segurança. Nossas necessidades de cada dia são mudadas pelo
ato do culto. Não mais vivemos de modo imprevidente, lutando avidamente na
competição insana para fazer de uma magra existência o melhor que podemos.
Nossas necessidades básicas de repente tomam-se merecedoras da dignidade de
criaturas feitas à imagem de Deus: paz e segurança. As palavras shalom e shalvá
têm um jogo de sons com Jerusalém, yerushalayim, o lugar de culto, de adoração.
Shalom, “paz”, é uma das palavras mais ricas da Bíblia. É tão impossível
defini-la pelo seu sentido no dicionário quanto definir uma pessoa pelo número
do seu RG. Reúne todos os aspectos de completude que resultam do fato de a
vontade de Deus estar sendo completada em nós. E a operação de Deus que,
quando completa, libera correntes de água viva em nós e pulsa com a vida
eterna. Toda vez que Jesus curou, perdoou ou chamou alguém, temos uma
demonstração de shalom.
E shalvá, “prosperidade”. Nada tem a ver com apólices de seguros ou grandes
contas bancárias ou estoques de armas. O sentido da raiz é lazer — a postura
descontraída de alguém que sabe que tudo está bem porque Deus está acima de
nós, conosco e a favor de nós em Cristo Jesus. E a segurança de estar em casa
numa história que tem no centro uma cruz. E a descontração da pessoa que
sabe que cada momento da nossa existência está à disposição de Deus, vivida
sob a misericórdia de Deus.
O culto dá início a uma participação diária prolongada em paz e prosperidade
de modo que compartilhamos em nossa rotina de cada dia o que Deus iniciou e
continua em Jesus Cristo.
SALMO 123
Em termos gerais, servir é dispor-se, trabalhar e fazer de modo que
uma pessoa age, não de acordo com seus próprios propósitos ou planos,
majestade da Palavra divina, que é o próprio Deus como ele fa la na sua ação.
K ARL BARTH
V
medida que uma pessoa cresce e amadurece no caminho cristão, é
niente para nós ou para nossa diversão. Deus não se tornou servo para nós
podermos dar-lhe ordens, e sim para que nós pudéssemos unir-nos a ele numa
vida redentora.
É freqüente demais pensarmos em religião como uma burocracia miste
riosamente conduzida à qual solicitamos ajuda quando sentimos a necessidade.
Vamos a uma seção regional e instruímos o funcionário (às vezes chamado de
pastor) para preencher o nosso pedido para Deus. Então vamos para casa e
aguardamos que Deus seja entregue a nós conforme as especificações que
colocamos. Mas não é assim que funciona. E se pensássemos a respeito disso
durante dois minutos consecutivos, nós não iríamos querer que funcionasse
assim. Se Deus é Deus mesmo, ele deve saber mais sobre nossas necessidades
do que nós sabemos; se Deus é Deus mesmo, ele deve estar mais a par da
realidade dos nossos pensamentos, das nossas emoções, do nosso corpo do que
nós mesmos; se Deus é Deus mesmo, ele deve ter uma compreensão melhor
das inter-relações em nossas famílias e comunidades e nações do que nós temos.
“Deus que habita no céu.” Quando a Bíblia usa essa frase, o que faz com
freqüência, não está dizendo nada sobre geografia ou espaço. Os escritores
bíblicos não eram geógrafos nem astrônomos — eram teólogos. Eles descrevem
com grande exatidão o relacionamento entre Deus e pessoas como eu e você,
um relacionamento entre o Criador e a criatura; coordenam nosso conhecimento
do Deus que nos ama com nossa experiência de ser amado; contam a história
do Deus que nos conduz através de dificuldades e documentam-na com nossa
experiência de ser conduzido. Não nos é apresentado um deus funcional que
nos ajudará a sair de enroscadas ou um deus de entretenimento que aliviará as
horas de tédio. É-nos apresentado o Deus do êxodo e da Páscoa, o Deus do
Sinai e do Calvário. Se quisermos entender Deus, precisamos fazê-lo sob as
condições dele. Se quisermos ver Deus do modo como ele realmente é,
precisamos olhar para o local de autoridade — para a Bíblia e para Jesus Cristo.
E será que realmente o desejamos de outra maneira qualquer? Acho que
não. Logo passaríamos a desprezar um deus que poderíamos decifrar como um
quebra-cabeça ou aprender a usar como uma ferramenta. Não, se vale a pena
dar nossa atenção a Deus, ele precisa ser um Deus a quem olhamos de baixo
para cima — um Deus a quem temos de elevar os olhos: “Olho para o senhor,
Deus que habita no céu”.
No momento em que olhamos para Deus de baixo para cima (e não para ele
ou de cima para baixo) estamos na postura de servir.
Misericórdia, D e u s , Misericórdia!
Um segundo elemento no serviço tem a ver com a nossa expectativa. O que
acontece quando elevamos os nossos olhos a Deus em fé? Há um mistério
impressionante em Deus que nunca podemos penetrar completamente. Não
SERVIÇO 45
podemos definir Deus; não podemos empacotar Deus. Mas isso não significa
que nada sabemos sobre Deus. Não quer dizer que estamos completamente a
ver navios com Deus, nunca sabendo o que esperar, nervosamente agitados o
tempo todo, querendo saber o que ele poderia fazer.
Sabemos muito bem o que esperar, e o que esperamos é a misericórdia. Três
vezes a expectativa é pronunciada no Salmo 123. “Estamos vigiando e
aguardando, prendendo a respiração, esperando pela sua palavra de misericórdia.
Misericórdia, Deus, misericórdia!”
A convicção básica de um cristão é que Deus pretende o bem para nós e que
ele conseguirá a vontade dele em nós. Ele não nos trata conforme nós
merecemos, e sim de acordo com seu plano. Ele não é um oficial de polícia
fazendo a ronda, vigiando o universo, pronto para descer o cassetete se sairmos
da linha ou colocar-nos na cadeia se ficarmos descontrolados. Ele é um oleiro
trabalhando com o barro de nossa vida, formando e reformando até que, finalmente,
ele tenha moldado uma vida redimida, um vaso adequado para o reino.
“Misericórdia, D e u s , misericórdia!”: aprece não é uma tentativa de conseguir
que Deus faça o que ele não estaria disposto a fazer caso contrário, e sim um
estender-nos para aquilo que sabemos que ele faz, uma ânsia expressa por receber
o que Deus está fazendo em e por nós em Jesus Cristo. Em obediência nós oramos
“Misericórdia/ ” em vez de “Dá-nos o que queremos”. Oramos “Misericórdia! ”
e não “Recompense-nos por nossa bondade para que nossos vizinhos recoheçam
nossa superioridade”. Nós oramos ‘Misericórdia! ”e não “Castigue-nos por nossa
maldade para que nos sintamos melhor”. Nós oramos “Misericórdia!” e não
“Seja bom para nós porque temos sido pessoas tão boas”.
Vivemos sob a misericórdia. Deus não nos trata como estranhos forasteiros,
dispondo-nos um ao lado do outro para poder avaliar nossa competência ou
nossa utilidade ou nosso valor. Ele governa, guia, ordena, nos ama como crianças
cujos destinos ele leva consigo em seu coração.
A palavra misericórdia significa que o olhar para cima a Deus nos céus não
espera que Deus fique nos céus, mas que desça, entre em nossa condição, para
realizar o vasto empreendimento da redenção, para modelar em nós sua salvação
eterna. “A raiz significando ‘abaixar-se’, ‘inclinar-se’, foi conjectura”.1
Servidão não é uma vaga abstração na direção geral de Deus, e certamente não
é um terror amedrontado, encolhido sob o açoite de Deus. Subserviência é
específica em sua expectativa e o que ela espera é misericórdia.
Serviço urgente
Um terceiro elemento na vida de servo é a urgência: “Misericórdia. . . Já
fomos chutados por aí bastante,/ Chutados nos dentes por homens ricos
complacentes,/ chutados quando caídos por irracionais arrogantes”.
46 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Serviço racional
O melhor comentário do Novo Testamento sobre este salmo está na seção
final da carta de Paulo aos Romanos, capítulos 12 — 16. A seção começa com
esta sentença: “Então aqui está o que eu quero, que cada um de vocês faça,
Deus o ajudando: Pegue sua vida comum de cada dia — seu dormir, comer, ir
ao trabalho, e caminhar pela vida — e coloque-a diante de Deus como uma
oferta” (12.1). A ênfase do salmo em serviço real, físico (não uma intenção
espiritual, não um desejo de ser prestimoso) é percebida no convite para
apresentarmos nosso dia-a-dia, vida comum. A motivação para o serviço (sem
coerção), sem exigência, fica clara na frase “Deus os ajudando”. No entanto,
SERVIÇO 47
mais significante é a última frase tão notável logiken latreian, “coloque diante
de Deus como uma oferta”, que outra tradução dá como “serviço racional”.
Serviço, quer dizer, que faz sentido. A palavra latreia quer dizer “serviço”, o
trabalho que a pessoa faz no interesse da comunidade. Mas é também a base de
nossa palavra liturgia, o serviço do culto que rendemos a Deus. E é precisamente
esse serviço que é lógico, feito com a mente, a razão [serviço ‘racional’]. O
serviço que oferecemos a Deus (em adoração) se estende em atos específicos
que servem outros. Aprendemos um relacionamento ■ — uma atitude para com
a vida, uma atitude — de servidão diante de Deus, e então somos disponíveis
para ser de utilidade a outros em atos de serviço.
O salmo não tem nada em si sobre servir os outros. Concentra-se em ser
um servo de Deus. A posição do salmo é que se a atitude de ser servo é
aprendida, atendendo-se a Deus como Senhor, então servir outras pessoas irá
se desenvolver como um modo de vida muito natural. Serão ouvidas ordens
para ser hospitaleiros, para mostrar compaixão, para visitar os doentes, para
ajudar e para curar (ordens que Paulo reúne em Romanos 12 — 15 e muitos
outros lugares) e serão desempenhadas com facilidade e equilíbrio.
À medida que vivemos o que está implicado numa vida de serviço, somos
munidos constantemente de incentivo e exemplo por Jesus Cristo, que disse:
Vocês entendem o que eu lhes fiz? Vocês me chamam de “M estre”, e têm
razão nisso. É o que eu sou. Então se eu, o Mestre e Professor, lavei seus pés,
vocês devem agora lavar os pés uns dos outros. Eu coloquei um modelo para
vocês. O que eu fiz, façam vocês. Estou apenas apontando o óbvio. Um servo
não é avaliado superior a seu mestre; um empregado não dá ordens a seu
empregador. Se vocês entendem o que eu lhes digo, ajam assim — e vivam
uma vida abençoada (Jo 13.12-17).
instrução no uso da liberdade como filhos de Deus que “andam pelo Espírito”
(G1 5.25 r s v ; “no Espírito” a r a ) . Aqueles que ostentam a retórica da liberdade
mas desprezam a sabedoria do serviço não conduzem as pessoas para a gloriosa
liberdade dos filhos de Deus, e sim para uma miséria acanhada e cobiçosa.
À medida que o Salmo 123 ora a transição da opressão (“chutados nos
dentes por homens ricos complacentes”) à liberdade (esperando pela sua palavra
de misericórdia”) a uma nova servidão (“como servos, alertas aos mandados
do seu mestre”), ele nos coloca no caminho do aprendizado de como usar nossa
liberdade mais apropriadamente, sob o senhorio de um Deus misericordioso.
As conseqüências são todas positivas. Até hoje nunca ouvi um servo cristão
queixar-se da opressividade de sua servidão. Ainda não ouvi uma serva cristã
rebelar-se contra as restrições de seu serviço. Um servo cristão é a pessoa mais
livre da terra.
6
A ju d a
“Ah, bendito seja Deus!
Ele não foi embora e não nos abandonou ”
SALMO 124
Deus é quase que intoleravelmente descuidado sobre cruzes e espadas,
arenas de luta e patíbulos, sobre todos os “males ” e todas as “pragas
Seu cuidar não significa que ele entra naquela de estofados!
PAUL SCHERER
u estava numa unidade móvel de doação de sangue para doar meu
Um funcionário do Departamento de
Reclamações da Humanidade
Os primeiros versos do salmo descrevem Deus duas vezes como sendo “por
nós”. O último verso é “O forte nome de D eus é nosso auxílio, o mesmo D eus
que fez o céu e a terra”. Deus é por nós. Deus é nosso auxílio.
Para algumas pessoas, declarações como essa são bandeiras vermelhas.
Provocam desafios. Eu, confiante e seguro no púlpito, posso anunciar: “O
Senhor é por nós... O forte nome de D eus é nosso auxílio”. Mas basta eu sair
do púlpito para alguém me dizer: “Escute, eu queria que você tivesse um pouco
mais de cuidado com seus pronomes possessivos. Como conseguiu esse nossol
O Senhor Deus pode ser por você, ele poderá ser seu auxílio. Mas ele não é o
meu. Escute só...” Durante a semana eu ouço casos sobre acontecimentos
familiares trágicos e desapontamentos sobre a carreira, junto com reprises
pessimistas de eventos no mundo. A sentença de conclusão é uma variação do
tema: “Como você explica isso, você que tem tanta certeza que Deus é por
mim, a meu favor?”
52 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Eu fico num lugar de defensor de Deus. Esperam que eu explique Deus aos
seus clientes desapontados. Sou lançado na posição de funcionário do departa
mento de reclamações da humanidade, a quem pedem para procurar a origem do
mau atendimento, escutar com solidariedade os clientes agravados, tentar consertar
os erros no que for possível e pedir desculpas pela descortesia da gerência.
Mas se eu aceito qualquer um desses serviços eu entendo mal meu trabalho
apropriado, porque Deus não precisa de mim para defendê-lo. Ele não precisa
de mim para secretário de imprensa, explicando ao mundo que ele não disse na
realidade aquilo que pensaram ter ouvido naquela entrevista com Jó, ou que a
citação de sua palavra pelo santo apóstolo Paulo foi tirado do contexto e deve
ser entendido no contexto do trabalho de fundo que Isaías escreveu.
O trabalho apropriado para o cristão é testemunhar, não pedir desculpas, e
o Salmo 124 é um excelente modelo. Não discute a ajuda de Deus; não explica
o auxílio de Deus; é um testemunho do auxílio de Deus na forma de um cântico.
É um cântico tão vigoroso, tão confiante, tão repleto daquilo que só pode ser
chamado de realidade que ele muda fundamentalmente nossa abordagem e
nossas perguntas. Não parece mais ser da mais alta prioridade perguntar: “Por
que isso aconteceu comigo? Por que me sinto largado em apuros?” Em vez
disso, indagamos: “Como pode acontecer que existam pessoas que cantam com
tanta confiança: ‘O forte nome de D eus é nosso auxílio’?” O salmo tem dados
que precisam ser explicados; e os dados são tão sólidos, tão vitais, têm tanto
mais substância e são tão mais interessantes do que as outras coisas que ouvimos
durante o dia inteiro que precisam ser tratados antes que possamos voltar às
reclamações choramingadas.
Se D eus não tivesse sido por nós
— todos juntos agora, Israel, cantem forte! —
Se D eus não tivesse sido por nós
quando todos foram contra nós,
Teríamos sido engolidos vivos
pela sua ira violenta,
Levados pela enchente de raiva,
afogados na torrente;
Teríamos perdido nossas vidas
na água desenfreada, tempestuosa.
O testemunho é vivo e contagioso. Uma pessoa anuncia o tema, todos se
juntam a ele. A ajuda de Deus não é uma experiência particular; é uma realidade
corporativa — não é uma exceção que ocorre entre estranhos isolados, mas é a
norma entre o povo de Deus.
O auxílio de Deus é descrito por meio de duas ilustrações. O povo estava
em perigo de ser engolido vivo; e eles corriam o risco de ser afogado por um
dilúvio. O primeiro quadro é de um enorme dragão ou monstro marinho.
AJUDA 53
em todo o mundo que seja mais como na vida real e mais honesta do que
Salmos, pois aqui temos religião de verrugas e tudo. Todo pensamento cético,
descrente, todo empreendimento decepcionante, toda dor, todo desespero que
se pode enfrentar é vivido até o fim e integrado num relacionamento pessoal
salvador com Deus — um relacionamento que também tem em si atos de louvor,
bênção, paz, segurança, confiança e amor.
Boa poesia sobrevive não quando é bonita, bela ou agradável, mas quando
é verdade: exata e honesta. Os salmos são grande poesia e têm durado não
porque apelam a nossas fantasias e nossos desejos, e sim porque são confirmados
na intensidade do viver honesto e perigoso. O Salmo 124 não é um testemunho
selecionado, inserido como um comercial em nossa vida para testificar que a
vida vai melhor com Deus; não é parte de uma blitz da mídia para convencer-
nos de que Deus é superior a todos os outros deuses da praça. Não é uma
mensagem liberada à imprensa. E uma oração honesta.
As pessoas que mais conhecem esse salmo, que testaram-no bem e usaram-
no com freqüência (isto é, as pessoas de Deus que são viajantes no caminho da
fé, cantando-o em todo tipo de clima) nos dizem que ele é acreditável, que ele
cabe no que conhecemos da vida vivida em fé.
Trabalho perigoso
O discipulado cristão é trabalho perigoso. Espero que a enfermeira da Cruz
Vermelha não pense que eu me referia a meu trabalho pastoral como sendo
perigoso. Meu trabalho, em si, não é mais difícil do que o de qualquer outra
pessoa. Qualquer trabalho feito fielmente e bem é difícil. Não é mais difícil eu
fazer meu trabalho bem do que qualquer outra pessoa, e não é menos difícil.
Não há tarefas fáceis no caminho cristão; só há tarefas que podem ser feitas
fielmente ou displicentemente, com alegria ou com ressentimento. E não há
espaço para nenhum de nós, quer pastores ou merceeiros, contadores ou
engenheiros, digitadores ou jardineiros, médicos ou motoristas, falar em tons
de autocompaixão das terríveis cargas de nosso trabalho.
O que é perigoso em minha vida é meu trabalho como cristão. Todo dia eu
ponho à prova a fé. Nunca vi Deus. Em um mundo onde quase tudo pode ser
pesado, explicado, quantificado, sujeito à análise psicológica e controle científico,
eu persevero em fazer o centro de minha vida um Deus a quem olho nenhum viu,
nem ouvido ouviu, cuja vontade ninguém pode examinar. Isso é um risco.
Todo dia eu ponho à prova a esperança. Não sei nenhuma coisa sobre o
futuro. Não sei o que a hora seguinte trará. Poderá ser doença, um acidente,
uma catástrofe pessoal ou mundial. Antes que termine este dia posso ter que
tratar com morte, dor, perda, rejeição. Eu não sei o que o futuro reserva para
mim, para aqueles a quem amo, para minha nação, para este mundo. Contudo,
a despeito de minha ignorância e rodeado de otimistas de latão e pessimistas
sem coragem, eu digo que Deus realizará sua vontade e alegremente insisto
em viver na esperança de que nada me separará do amor de Cristo.
AJUDA 55
Todo dia eu ponho à prova o amor. Não há nada em que eu seja pior do que no
amor. Sou bem melhor em competir do que em amar. Sou bem melhor em
responder aos meus instintos e ambições de progredir e fazer diferença do que
sou em descobrir como amar meu próximo. Sou estudado e treinado em
habilidades para adquirir, conseguir o que quero. Contudo, decido, cada dia, a
afastar o que sei fazer melhor e tentar o que faço mais desajeitadamente — abrir-
me às frustrações e fracassos de amar, ousando crer que fracassar no amor é
melhor do que ter êxito no orgulho.
Tudo isso é trabalho perigoso; vivo à beira da derrota o tempo inteiro.
Nunca fiz nenhuma dessas coisas a contento meu (ou de qualquer outra
pessoa). Vivo no papo do dragão e à beira da enchente. “Como é difícil ser /
Um Cristão. Difícil para você e para mim.”1
O salmo, no entanto, não é sobre perigos, e sim sobre ajuda. O trabalho
periculoso do discipulado não é o assunto do salmo; é somente seu ambiente.
O assunto é ajuda: “Ah, bendito seja D e u s !... Ele não foi embora e nos deixou.
Ele não nos abandonou indefesos, desamparados como um coelho numa matilha
de cães rosnando. Fugimos voando de suas presas, livres de suas armadilhas...
livres como um pássaro no vôo. O forte nome de D eus é nosso auxílio, o mesmo
D eus que fez o céu e a terra”. Haja perigos ou não, a realidade com que vivemos
é Deus que é “por nós... O forte nome de D eus é nosso auxílio”.
Quando primeiro corremos perigo, nossa consciência de periculosidade é
total: como um pássaro preso numa armadilha. Todos os fatos dão a soma de
destruição. Não há saída. E já nesta hora, inexplicavelmente, existe uma saída.
A armadilha se quebra e a ave escapa. Livramento é uma surpresa. Salvamento
é um milagre: “Ah, bendito seja Deus!... Ele não nos abandonou indefesos”.
Como Deus quer que cantemos assim! Os cristãos não são moralistas
enjoados que cacarejam em aprovação sobre um mundo que vai para o inferno;
os cristãos são pessoas que louvam o Deus que está do nosso lado. Os cristãos
não são simuladores piedosos no meio de uma cultura decadente; os cristãos
são testemunhas fortes ao Deus que é nosso auxílio. Os cristãos não são párias
cansados que carregam justiça como um peso num mundo em que os maus
florescem; cristãos são pessoas que cantam: “Oh, bendito seja D e u s !... Ele não
nos abandonou indefesos”.
em q u e v o c ê p o d e sem p re confiar.
O p u n h o d o s m aus n unca v io la rá
p ro v o ca n d o vio lê n c ia errada.
de sua terra fosse suficiente para confirmar seu chamado a uma disciplina
G E O R GE ADAM S MI T H
ubir é difícil. O empuxo da gravidade é constante. Há barreiras
que apostatar não era uma coisa que você fazia, e sim uma coisa que acontecia
com você. Era um acidente que pegava os incautos ou um ataque que envolvia
os indefesos.
Mais adiante na vida, ao ler a Bíblia por mim mesmo, e ainda mais tarde
quando como pastor tive a responsabilidade de guiar o desenvolvimento dos
outros, adquiri um modo bem diferente de olhar as condições sob as quais o
cristão anda pelo caminho do discipulado. Tanto na Bíblia como nas tradições
pastorais da igreja encontrei um pano de fundo de confiança, uma segurança
descansada, entre as pessoas de fé.
promessas, mas ele não falta com as dele. O discipulado não é um contrato em
que se nós faltamos com nossa parte do acordo ele é livre para quebrar a dele;
é um pacto no qual ele estabelece as condições e garante os resultados.
É certo que você pode desistir se desejar. Você pode dizer não a Deus. E
uma fé livre. Você pode escolher o caminho errado. Ele não o prende contra a
vontade. Mas não é o tipo de coisa em que você cai por acaso ou entra por
ignorância. Desertar requer um ato intencional, sustentado e resoluto de rejeição.
Todas as pessoas de fé que eu conheço são pecadoras, duvidadoras, reali
zadoras de rendimento desigual. Estamos seguros não porque confiamos em
nós mesmos, mas porque confiamos que Deus tem certeza de nós. A frase
inicial do salvo é “aqueles que confiam em Deus” — não aqueles que confiam
em sua habilidade, em sua moral, coisas certas, sua saúde, seu pastor, seu doutor,
seu presidente, seu dinheiro, seu país — “aqueles que confiam em Deus”.
Aqueles que decidem que Deus é por nós e nos fará completos eternamente.
SALMO 126
Já li que durante o processo de canonização
cristãos deverão ter suas bocas cheias de riso e suas línguas de gritos de júbilo,
e eu não tenho. Não sou alegre, portanto não devo ser um cristão”.
A alegria não é uma exigência do discipulado cristão, é uma conseqüência.
Não é o que nós precisamos adquirir a fim de vivenciar a vida em Cristo; é o que
vem a nós quando estamos andando no caminho da fé e obediência.
Chegamo-nos a Deus (e à revelação dos caminhos de Deus) porque nenhum
de nós tem dentro de si, exceto momentaneamente, o ser alegre. Alegria é um
produto da abundância; é o transbordar da vitalidade. E a vida com tudo
funcionando junto harmoniosamente. Isso é exuberância. Pecadores inade
quados como somos, nenhum de nós pode conseguir isso por muito tempo.
Procuramos consegui-lo através de entretenimento. Pagamos alguém para
fazer piadas, contar histórias, desempenhar ações dramáticas, cantar músicas.
Compramos a vitalidade da imaginação de outra pessoa para divertir e avivar
nossa própria vida pobre. A enorme indústria do entretenimento da América,
por exemplo, é um sinal do esvaziamento de alegria da nossa cultura. A
sociedade é um rei glutão entediado que emprega um bobo da corte para
diverti-lo após uma refeição exagerada. Mas essa espécie de alegria nunca
penetra nossas vidas, nunca muda nossa constituição básica. Os efeitos são
temporários — alguns minutos, algumas horas, alguns dias quando muito.
Ao se acabar o dinheiro, a alegria vai passando. Não conseguimos nos fazer
alegres. Alegria não pode ser encomendada, comprada ou arranjada.
Mas há algo que podemos fazer. Podemos resolver viver respondendo à
abundância de Deus e não nos sujeitando à ditadura de nossas próprias
necessidades pobres. Podemos decidir viver na atmosfera de um Deus vivo e
não em nossos próprios seres moribundos. Podemos decidir centrar-nos no
Deus que dá generosamente e não em nossos próprios egos que avançam
gananciosamente. Uma das conseqüências certas de tal vida é a alegria, do tipo
expresso no Salmo 126.
data na história, tão sólida como uma veia de rocha na Palestina. A alegria é
nutrida vivendo-se em tal história, edifícando sobre tal fundamento.
Alegre expectativa
O outro lado de “somos um povo feliz” — versos 4-6 — está no futuro. A
alegria é nutrida por antecipação. Se os atos de Deus que produzem alegria
são característicos de nosso passado como povo de Deus, serão também
característicos de nosso futuro como povo seu. Não há razão para supor que
Deus mudará seu modo de trabalhar conosco arbitrariam ente. O que
conhecemos dele, conheceremos dele. Assim como a alegria edifica sobre o
passado, ela empresta do futuro. Espera que certas coisas acontecerão.
Duas imagens fixam a esperança: A primeira é “trazer chuva a nossas
vidas ressequidas”. O Neguebe, a sul de Israel, é um vasto deserto. Os cursos
de água do Neguebe são uma rede de valas cortadas no solo por erosão de
vento e chuva. Durante a maioria do ano ficam ressecadas sob o sol, mas
uma chuva repentina faz o deserto brilhante de flores. Nossas vidas são assim
— ressequidas — depois, de repente, os longos anos de espera estéril são
interrompidos pela invasão da graça de Deus.
A segunda imagem é “para que os que plantaram seus campos em desespero
gritem vivas na colheita, / Para que aqueles que saíram com peso no coração
voltem rindo, com braçadas de bênçãos”. O trabalho duro de semear a semente
em terra que parece perfeitamente vazia tem, como todo lavrador sabe, um
tempo de colheita. Todo o sofrimento, toda a dor, todo o vazio, todo o
desapontamento é semente: semeie-a em Deus e ele, finalmente, tirará dele
uma colheita de alegria.
Fica claro no Salmo 126 que aquele que o escreveu e aqueles que o
cantaram não desconheciam o lado escuro das coisas. Levavam a memória
dolorosa do exílio em seus ossos e as cicatrizes da opressão em suas costas.
Conheciam os desertos do coração e as noites de choro. Conheciam o que
significava semear em lágrimas.
Uma das coisas mais interessantes e notáveis que os cristãos aprendem é
que o riso não exclui o choro. A alegria não é um escape da tristeza. A dor e o
sofrimento ainda vêm, mas não conseguem expulsar a felicidade dos redimidos.
Uma estratégia comum mas fútil para se conseguir alegria é tentar eliminar
as coisas que machucam: livrar-se da dor anestesiando as extremidades do
nervo, livrar-se da insegurança eliminando riscos, acabar com o desapontamento
despersonalizando seus relacionamentos. E então tentar suavizar a monotonia
de uma vida comprando alegria na forma de férias e entretenimento. Não há
nenhuma sugestão disso no Salmo 126.
O riso é resultado de viver em meio às grandes obras de Deus (“aqueles que
saíram com peso no coração voltarão rindo, com braçadas de bênçãos”). Há
ALEGRIA 73
bastante sofrimento dos dois lados, passado e futuro. A alegria vem porque
Deus sabe enxugar as lágrimas, e, no seu trabalho de ressurreição, sabe criar o
sorriso de vida nova. Alegria é o que Deus dá, não o que nós trabalhamos. O
riso é o deleite de que as coisas estão operando juntas para aqueles que amam
a Deus, não as risadinhas que traem o nervosismo de um sistema de defesa
precário. A alegria que se desenvolve no caminho cristão do discipulado é um
transbordar de espírito jovial que vem de se sentir bem não a respeito de si
mesmo, mas a respeito de Deus. Nós descobrimos que os caminhos dele são
confiáveis, suas promessas seguras.
Esta alegria independe de nossa boa sorte em escapar de dificuldades. Não
depende de nossa boa saúde e de evitar a dor. Alegria cristã é real no meio da
dor, sofrimento, solidão e infelicidade. Paulo é nossa testemunha mais
convincente disso. Ele está sempre, de uma maneira ou outra, exclamando sua
alegria. As exclamações são timpânicas, ressoando por todos os movimentos
de sua vida: “Nós continuamos a exclamar nosso louvor mesmo quando estamos
cercados de dificuldades, porque sabemos como as dificuldades podem produzir
a paciência apaixonada em nós, e como essa paciência por sua vez forja o aço
temperado da virtude, conservando-nos alertas para qualquer coisa que Deus
fará em seguida... Cantamos e exclamamos nossos louvores a Deus através de
Jesus, o Messias!” (Rm 5.3-5,11). Isso é o cumprimento da oração: “E agora,
D e u s , faça-o de novo — traga chuva às nossas vidas ressequidas”.
E então fora da sua cela na prisão ouvimos a conclusão musical com que
Paulo encerra sua carta aos filipenses: “Celebrem ao Senhor o dia todo, todos
os dias. Quero dizer, tenham satisfação intensa nele! Tornem bem claro aos
outros, tanto quanto puderem, que vocês estão a favor deles, trabalhando com
eles e não contra eles. Ajudem-nos a ver que o Mestre está para chegar. Ele
pode aparecer a qualquer minuto!” (Fp 4.4,5). Não há nenhum estoicismo grego
severo nisso; é um forte hino galês, caminhando em passos largos da tristeza
para o cântico. É o resultado final da esperança: “Assim aqueles que saíram
com peso no coração voltarão rindo, com braços cheios de bênçãos”. O
testemunho se repete outra e mais outra vez, através das gerações, e tem
representantes espalhados em toda comunidade de cristãos.
O salmo não nos dá essa alegria como um pacote ou como fórmula, mas há
algumas coisas que ela faz. Em contraste, ela faz aparecer o brilho barato da
alegria do mundo e afirma a solidez da alegria de Deus. Ela nos faz lembrar
dos custos cada vez maiores e do retomo cada vez menor daqueles que buscam
o prazer como caminho à alegria. Ela nos apresenta o caminho do discipulado,
que tem conseqüências em alegria. Encoraja-nos no caminho da fé tanto a
experimentar como a compartilhar alegria. Conta-nos a história dos atos de
Deus, que põe riso na boca das pessoas e exclamações em suas línguas. Repete
as promessas de um Deus que acompanha seus filhos errantes e chorosos até
74 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO ->
SALMO 127
O prim eiro grande fa to que emerge de nossa civilização
é que hoje tudo se tornou “meios ”.
JACQUES ELLUL
maior projeto de trabalho do mundo antigo é uma história
Babel ou Budista
O Salmo 127 primeiro coloca um aviso sobre o trabalho: “Se D eus não
edificar a casa, os construtores só constroem choupanas. Se D eu s não guardar
a cidade, o guarda-noturno pode até dormir. E inútil levantar cedo e deitar
tarde, e trabalhar seus dedos cansados até o osso. Você não sabe que ele gosta
de dar descanso àqueles que ele ama?”
Algumas pessoas leram esses versos e os parafrasearam para serem lidos
assim: “Você não precisa trabalhar muito para ser um cristão. Você não tem
que se esforçar nem um pouco. Vá dormir. Deus está fazendo tudo que precisa
ser feito”. Paulo teve que agir com algumas dessas pessoas na igreja em
Tessalônica. Estavam dizendo que visto Deus ter feito tudo em Cristo não havia
nada mais para eles fazerem. Se todo esforço acaba em confusão irreligiosa
(como aconteceu com as pessoas em Babel) ou em justiça própria hipócrita
(como aconteceu entre os fariseus), a solução cristã óbvia é desistir do trabalho
e aguardar que o Senhor venha. Com um redentor magnífico como nosso Senhor
78 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Jesus Cristo e um majestoso Deus como nosso Pai que está no céu, o que falta
fazer? Então se sentavam por ali, não fazendo nada. Nesse meio tempo, viviam
“pela fé” por conta de seus amigos menos espirituais. Os críticos que não eram
seus amigos poderiam lhes ter chamado de aproveitadores. Paulo irou-se e
mandou-os trabalhar: “Estamos recebendo notícia que um punhado de
vagabundos preguiçosos estão tirando proveito de vocês. Isso não deve ser
tolerado. Ordenamos que comecem a trabalhar imediatamente — nada de
desculpas, nada de argumentos — e ganhem seu próprio sustento. Amigos,
não amoleçam em fazer sua obrigação” (2Ts 3.11-13). Como tinham coragem
de reinterpretar o evangelho numa racionalização a favor da preguiça quando
ele, Paulo, de quem tinham aprendido o evangelho, trabalhava com seus dedos
“até o osso, metade da noite, fazendo um bico para vocês não terem o peso de
nos sustentar enquanto proclamamos a Mensagem de Deus” (lTs 2.9).
O cristão tem que achar um modo melhor de evitar o perigo de Babel do
que só imitar os lírios do campo, que “nem trabalham nem fiam”. A obra
pretensiosa que se tomou Babel e seu piedoso oposto que se desenvolveu em
Tessalônica aparecem hoje nas amplas telas das culturas Ocidental e Oriental,
respectivamente.
A cultura ocidental assume onde Babel parou e deifica o esforço humano
como tal. A máquina é o símbolo deste modo de vida que tenta controlar e
gerenciar. A tecnologia promete dar-nos controle sobre a terra e sobre outros
povos. Mas a promessa não se cumpre: automóveis que matam, prédios feios e
burocracias pesadas devastam a terra e esvaziam de sentido as vidas. As
estruturas se tornam mais importantes do que as pessoas que se utilizam delas.
As máquinas se tornam mais importantes do que as pessoas que as usam. Damos
mais valor às nossas posses com que esperamos conseguir abrir caminho no
mundo do que aos nossos pensamentos e sonhos que nos contam quem somos
no mundo.
A cultura oriental, por outro lado, é uma variação do ponto de vista
tessalônico. Manifesta um pessimismo profundamente enraizado com respeito
ao esforço humano. Visto que todo trabalho é maculado por egoísmo e orgulho,
a solução é retrair-se de toda atividade para o puro ser. O símbolo de tal atitude
é o Buda— uma pessoa enormemente gorda sentada de pernas cruzadas, fitando
seu próprio umbigo. Imóvel, inerte, quieta. Toda dificuldade vem de fazer
demais; portanto não faça nada. Saia da corrida de ratos. O mundo do movimento
é mau, então pare de fazer tudo. Fale o mínimo possível; faça o menos possível;
finalmente, no ponto da perfeição, você nada dirá e nada fará. O ideal é afastar-
se completa e finalmente de toda ação, do pensamento, da paixão.
As duas culturas estão em colisão hoje, e muitos acham que precisamos
optar entre elas. Mas há outra opção: o Salmo 127 mostra um modo de funcionar
TRABALHO 79
que não é nem atividade pura nem passividade completa. Não glorifica o trabalho
como tal e não condena o trabalho como tal. Não diz: “Deus tem uma grande
obra para você fazer; vá fazê-la”. Nem diz: “Deus já fez tudo; vá pescar”. Se
queremos soluções simples com respeito ao trabalho podemos nos tornar
“w orkaholics”, compulsivos no trabalho, ou “dropouts”, desistentes
permanentes do trabalho. Se queremos experimentar a plenitude do trabalho, é
melhor estudarmos o Salmo 127.
Sua esposa dará à luz filhos como uma parreira produz uvas,
sua casa será viçosa como um vinhedo.
SALMO 1 28
Alegria, que era a pequena publicidade do pagão,
é o segredo gigantesco do Cristão.
G. K. C H E S T E R T O N
revalece uma suposição geral no mundo de que é extremamente
Promessas e pronunciamentos
Bênção é a palavra que descreve esse feliz estado de coisas. O Salmo 128
apresenta o termo. O salmo começa com três promessas descritivas: “Todos vocês
que temem a D e u s , como vocês são abençoados!” “Vocês... merecem tudo que
têm pela frente”. “Apreciem a bênção! Deleitem-se na bondade!” Conclui com
três pronunciamentos vigorosos: “Ah, como ele abençoa aquele que teme a Deus!”
“Deleitem-se na vida boa de Jerusalém”. “Deleitem-se em seus netos”. No meio
dessas promessas e pronunciamentos está uma ilustração de bênção: “Sua esposa
dará à iuz filhos como uma parreira produz uvas, sua casa será viçosa como um
vinhedo. Os filhos à roda de sua mesa tão viçosos e promissores como rebentos
de oliveiras”.1
86 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Tudo isso se soma em uma vida boa — uma vida delimitada de um lado por
promessas de bênçãos, do outro lado por pronunciamentos de bênçãos, e que
vivência as bênçãos entre esses limites.
A Bíblia é uma única longa exposição desta bênção. Em Gênesis, Deus,
tendo completado o trabalho da criação fazendo a humanidade macho e fêmea,
“abençoou-os” (Gn 1.28). Ele chamou Abraão e prometeu: “De ti farei uma
grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção”
(Gn 12.2). Cada uma das doze tribos de Israel recebeu uma bênção especial
que identifica sua própria característica de vitalidade (Gn 49). Davi, que de
tantas maneiras incorpora as intensidades e alegrias da fé, era “mais rico em
bênçãos do que qualquer outro israelita” — uma longa série de bênçãos, não
sem tristeza, na verdade, mas sempre cheia, até a borda, de vida. Jesus, na sua
introdução ao Sermão do Monte, identifica as oito qualidades-chave da vida
de uma pessoa de fé e anuncia cada uma com a palavra bem-aventurado. Ele
esclarece que o caminho do discipulado não é uma redução daquilo que já
somos, não é uma diluição de nossas vidas, nem uma subtração daquilo a que
estamos acostumados. Ao contrário, ele pode expandir nossas capacidades e
encher-nos com vida, de modo a transbordarmos de alegria. A conclusão da
Bíblia é aquele grandioso, trovejante livro de Apocalipse no qual se ouvem
sete salvas de bênçãos (1.3; 14.13; 16.15; 19.9; 20.6; 22.7,14). As bênçãos
bombardeiam de um lado a outro através do campo de batalha no qual Cristo
completa sua vitória sobre o pecado e estabelece seu governo eterno. “O livro
inteiro se firma na estrutura da bênção daqueles que alcançam e se atêm à
revelação bem-aventurada dos mistérios de Deus (1.3 confirmado em 22.7)”.2
À medida que lemos essa história de bênção e nos familiarizamos com os
homens e as mulheres vivenciando a bênção de Deus, reconhecemos que não é
algo externo ou efêmero. Não é uma questão de ter um dia bom, nem um período
de boa sorte. E realmente uma
força interior da alma — e a felicidade que ela cria... a força vital, sem a
qual nenhum ser vivo pode existir. A felicidade não pode ser dada a uma
pessoa como alguma coisa que se acha fora dela... A ação de Deus não cai
fora, e sim no centro exato da alma; aquilo que ela nos dá não é algo externo,
e sim a energia, o poder de criá-lo... A bênção assim compreende o poder
de viver em seu sentido mais profundo e mais abrangente. Nada que pertence
à ação e a tornar a vida verdadeira pode ficar fora da bênção... Bênção é o
poder vital, sem a qual nenhum ser vivo pode existir.3
É isso que enche e circunda a pessoa que está no caminho da fé.
Compartilhando na vida
A ilustração que forma o centro do salmo mostra como a bênção funciona:
“Sua esposa dará à luz filhos como uma parreira produz uvas, sua casa será
viçosa como um vinhedo/ Os filhos à roda de sua mesa tão viçosos e promissores
FELICIDADE 87
tenta e seduz para longe da vontade de Deus. Temos que lutar com tudo isso.
Estamos numa batalha. Há uma luta da fé para ser travada.
Mas o caminho da fé em si está afinada com aquilo que Deus já fez e está
fazendo. A estrada que viajamos é a bem-viajada estrada do discipulado. Não
é um caminho de enfado ou desespero ou confusão. Não é um caminho de
tatear às cegas, mas é, sim, um caminho de bênção.
fornecendo um nível estável. Mas a própria pessoa paciente não sente prazer nisso.
PAUL GOODMAN
er chamado de “Caxias” por ficar bem grudado no que faz não é
Fé resistente
“Eles me chutaram por aí desde que eu era novo” — é assim que Israel
conta isso — “Eles me chutaram por aí desde que eu era novo, mas nunca
conseguiram me dominar”. O povo de Deus é forte. Por longos séculos aqueles
que pertencem ao mundo têm promovido guerra contra o caminho da fé, e eles
não conseguem vencer. Já tentaram de tudo, mas nada funcionou. Tentaram
perseguição, ridicularização, tortura e exílio, mas o caminho da fé continuou
saudável e robusto: “Eles me chutaram por aí desde que eu era novo, mas
nunca conseguiram me dominar”.
94 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Você pensa na fé cristã como sendo um estilo de vida frágil que só pode
florescer quando as condições climáticas estão certinhas, ou você a vê como
uma planta resistente, perene, que subsiste através de tempestade e seca,
sobrevive aos passos de pés descuidados e aos ataques de vândalos? Aqui está
o ponto de vista de um escritor bíblico: “Ele cresceu perante Deus como plantinha
de pouco viço em campo seco... “Ele foi desprezado e passado de lado, um
homem que sofria, que conheceu a dor de perto... Davam-lhe só uma olhada e
voltavam o rosto” (Is 53.1-3). E um quadro de extrema rejeição e dolorosa
perseguição. O que poderia advir de um começo tão pobre, tão precário? Não
muito, pareceria. Contudo veja os resultados: “Ele verá vida vir disso, vida,
vida e mais vida, e o plano de Deus prosperará através daquilo que ele faz.
Daquele terrível trabalho penoso da alma, ele verá que vale a pena e ficará
feliz por tê-lo feito. Através do que ele aprendeu, meu justo, meu servo, fará
muitos ‘justos’, levando ele mesmo a carga dos pecados deles” (Is 53.10,11).
A pessoa de fé sobrevive a todos os opressores. A fé perdura.
Lembramos como foi com Jesus. Seu ministério começou com quarenta
dias de tentação no deserto e terminou naquela memorável noite de provação e
dureza no Getsêmani e Jerusalém. E alguém terá vivido pancadas tão
implacáveis e impiedosas no interior e no exterior? Primeiro houve as tentativas
astutas para que ele saísse da rota, cada tentação disfarçada como sugestão
para melhora, oferecida com a melhor das intenções para ajudar Jesus no
ministério a que ele havia se proposto com tanta ingenuidade e inocência.
Depois, na outra ponta, quando todas as tentações haviam fracassado, aquele
assalto brutal quando seu corpo foi feito uma câmara de torturas. E sabemos o
resultado: uma incompreensível bondade (“Pai, perdoa-lhes”), uma serenidade
sem precedentes (“Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito”) e — a ressurreição.
E Paulo. Sua vida temerariamente lançada de adversidade a perseguição e
de volta à adversidade. Em uma passagem ele olha para trás e resume:
Fui espancado vezes sem conta. Enfrentei a morte várias vezes. Fui açoitado
pelos judeus as trinta e nove vezes regulamentares cinco vezes. Com varas
me bateram três vezes. Fui apedrejado uma vez. Sofri naufrágio três vezes.
Fiquei vinte e quatro horas no mar aberto. Em minhas viagens estive em
perigo constante de rios, de bandidos, de meus próprios conterrâneos e de
pagãos. Enfrentei perigo nas ruas de cidades, perigo no deserto, perigo em
alto mar, perigo entre falsos cristãos. Já conheci trabalho enfadonho,
exaustão, noites inteiras em claro, fome e sede, jejuns, frio e abandono às
intempéries. À parte de todas as tribulações externas tenho o peso diário da
responsabilidade por todas as igrejas. Pensam que alguém possa estar fraco
e que eu não sinta sua fraqueza? Alguém tem sua fé desconcertada sem que
eu me queime de indignação? (2 Co 11.23-29 cf. trad. Phillips).
PERSEVERANÇA 95
Nada disso teve poder para forçar Paulo a sair do seu percurso. Nada disso o
convenceu de que ele estava no caminho errado. Nada disso o persuadiu de
que tivesse feito a opção errada anos antes na Estrada de Damasco. No final de
sua vida, entre as últimas palavras que ele escreveu está esta sentença: “Tenho
meu olho na meta, onde Deus nos acena para irmos adiante — para Jesus. Já
parti e estou correndo, e não volto para trás” (Fp 3.13,14).
Apego. Perseverança. Paciência. O caminho da fé não é moda adotada em
um século apenas para ser descartada no seguinte. Dura longo tempo. E o
caminho que funciona. Já foi testado completamente.
A paixão da paciência
Há uma frase nesse salmo que o bom gosto preferiria deletar, mas que a
honestidade pede tratar: “Ah, que aqueles que odeiam Sião se arrastem em
humilhação”. A ira ferve e pulsa nas palavras. Um sentimento de injustiça ficou
inflamando a ferida. Ressentimento acumulado pede um acerto de contas.
Por mais que sintamos que não é apropriado esse tipo de coisa no homem ou
mulher de fé, temos também que admitir que é autêntico. Pois quem é que não
sente repentes de ira contra aqueles que tomam duro e difícil o nosso caminho?
Há ocasiões na longa obediência do discipulado cristão em que nos cansamos e
a fadiga encurta nossa paciência. Em tais horas ver alguém voando de uma
sensação, um entusiasmo para outso, desistindo de compromissos, fugindo a
responsabilidades, suscita nossa raiva — e às vezes nossa inveja. Não importa
que estejamos, em outras bases, convencidos de que seus atos de infidelidade
sejam uma admissão de enfado, que seus prazeres sejam as mais superficiais
distrações das quais precisam voltar as ansiedades cada vez piores e solidão
mais vazia. Mesmo quando sabemos que estamos fazendo um trabalho bom
que tem um futuro bom, as brincadeiras e animosidades desses outros tornam
um dia difícil mais duro, e a raiva aumenta.
Não podemos desculpar o salmista por se zangar com base em não ser ainda
um cristão, porque ele já tinha Levítico para ler: “Não aborreça seu irmão no
seu íntimo... Não se vingue nem guarde mágoa contra os filhos de seu próprio
povo, mas você amará seu próximo como a você mesmo” (Lv 19.17,18). E ele
tinha Êxodo: “Se encontrar desgarrado o boi do seu inimigo ou o seu jumento,
você o conduza de volta. Se vir caído debaixo da sua carga o jumento daquele
que aborrece você, não o abandone, mas ajude a erguê-lo (Êx 23.4,5). E ele
tinha Provérbios: “Não dê risada quando seu inimigo cair; não fique contente
quando ele tropeçar” (Pv 24.17). Quando Jesus disse “Ame a seus inimigos”,
ele não acrescentou nada aquilo que esse salmista já tinha diante de si.
PERSEVERANÇA 97
se dirigia— aquele finai alegre em e com Deus— ele pôde agüentar qualquer
coisa pelo caminho: cruz, vergonha, tudo. E agora ele está lá, no lugar de
honra, bem ao lado de Deus (Hb 12.1,2).
Alguns daqueles cristãos primitivos a quem esse escritor se dirigia recla
mavam, ao que parece, que a vida estava muito dura para eles. Não podiam
suportar mais (reclamações que, de tempos em tempos, são ouvidas em todas
as congregações de crentes). Não viam a utilidade de crer num Deus que nunca
viam, servir um Deus que não lhes dava o que queriam, confiar num Deus que
deixa que bebês morram e pessoas boas sofram. Há um choque nada absurdo
de realidade para acabar com tolices nas palavras com que o pastor deles os
exortou: “Neste jogo com tudo contra o pecado, outros têm sofrido muitíssimo
mais do que vocês, para não dizer daquilo que Jesus sofreu — todo aquele
derramamento de sangue! (Hb 12.3). Parem de reclamar. Olhem aquela estrada
da peregrinação e vejam bem de onde vocês vieram e aonde estão indo. Peguem
o refrão do grande cântico: “Eles me chutaram por aí desde que eu era novo —
é assim que Israel conta isso — Eles me chutaram por aí desde que eu era
novo, mas nunca conseguiram me dominar”.
Os propósitos duram
O motivo de minha infância e adolescência ser um entusiasmo atrás de
outro foi que eu ainda não tinha encontrado um centro organizador para minha
vida e um alvo que exigiria meu todo e meu melhor. A fé cristã é a descoberta
daquele centro no Deus que fica junto de nós, o Deus justo. O discipulado
cristão é uma decisão de caminhar em seus caminhos, com constância e firmeza,
e então descobrir que o caminho integra todos os nossos interesses, paixões e
dons, nossas necessidades humanas e nossos anseios e aspirações eternas. E o
caminho da vida para a qual fomos criados. Há nele desafios sem fim para nos
manter sempre na aresta do crescimento da fé; há sempre o Deus que fica junto
de nós para tornar possível perseverarmos.
Na peça encantadora e breve de Charles Williams, chamada Grab and Grace,
há um diálogo entre Grace [Graça] e um homem que está experimentando na
religião, tentando experiências diversas, “na ioga uma semana, no budismo na
outra, no espiritualismo na seguinte”. Graça menciona o Espírito Santo. Grab
[Apego] diz: “O Espírito Santo? Bom. Vamos pedir que ele venha quando eu
estiver com disposição para isso, porque ela passa tão rapidamente e depois
tudo é tão monótono”.
E a Graça responde: “Meu senhor, os propósitos duram”.
12
E sperança
“Eu oro a Deus... e aguardo
o que ele dirá e fará ”
do nível da consciência.
THORNTON WILDER
er humano é estar em dificuldades. A angústia de Jó é nossa
Se o salmo nada mais fizesse do que isso, já seria um prêmio, uma jóia,
porque é difícil encontrar alguém em nossa cultura pronto a nos respeitar quando
sofremos. Vivemos numa época em que a meta de toda pessoa é estar
perpetuamente sadia e constantemente feliz. Se qualquer um de nós não
consegue viver à altura dos padrões anunciados como normais, somos rotulados
como problema para ser resolvido, e uma leva de pessoas bem-intencionadas
vem correndo para experimentar várias curas em nós. Ou somos olhados como
um enigma para ser desvendado e, neste caso, somos sujeitos a discussões
infindáveis, a ter nossas vidas examinadas por pesquisadores zelosos para
encontrarem o indício que explicará nossa falta de saúde ou felicidade. Ivan
Illich, em uma entrevista, disse: “Sabe, há um mito americano que nega o
sofrimento e a sensação de dor. Age como se não devessem existir, e assim
desvaloriza a experiência do sofrimento. Mas este mito nega nosso encontro
com a realidade”.1
O evangelho oferece uma visão diferente de sofrimento: em sofrimento nós
entramos nas profundezas; estamos no coração das coisas; estamos perto de
onde Cristo estava na cruz. P.T. Forsyth escreveu:
A profundeza é simplesmente a altura invertida, como o pecado é o índice
de grandeza moral. O grito não é só verdadeiramente humano, mas também
é divino. Deus é mais profundo do que a mais profunda profundidade no
homem. Ele é mais santo do que nosso mais profundo pecado é fundo. Não
há profundeza tão funda para nós como quando Deus revela sua santidade
ao tratar do nosso pecado... [e por isso] pense mais na profundidade de
Deus do que na profundidade de seu clamor. A pior coisa que pode acontecer
ao homem é não ter nenhum Deus a quem clamar da profundeza.2
Israel nos ensina a responder ao sofrimento como realidade, não a negá-lo
como ilusão, e nos leva a enfrentá-lo com fé, não a evitá-lo por terror. O salmo
assim é representativo de Israel, que
assumiu um ponto de vista supremamente realista dos sofrimentos e perigos
da vida, viu-se exposto a eles como vulnerável e indefeso, e mostrou pouco
talento para fugir deles a ideologias de qualquer tipo. Ao contrário, conceitos
de sua fé levavam-no a trazer essas experiências reais de sua vida diária
para ligá-los com Yahweh. Em seu período mais antigo, na verdade, lhe
faltava qualquer aptidão para o doutrinário: ele possuía, em vez disso, uma
força excepcional para enfrentar mesmo as realidades negativas, reconhecer
e não reprimi-las, ainda quando incapaz, espiritualmente, de dominá-las de
qualquer forma. É a esse realismo, que permitia a cada evento sua própria
inevitabilidade e validade... que a arte narrativa do Antigo Testamento,
especialmente em sua forma mais primitiva, deve sua grandeza sombria.3
E assim não encontramos no Salmo 130 nem um só traço daquelas coisas
que entre nós são tão comuns, que roubam de nós nossa humanidade quando
sofremos e tomam a dor tão mais terrível para suportar. Nada encontramos de
ESPERANÇA 105
Um vigia é uma pessoa importante, mas ele não faz muita coisa. O girar
compacto da terra, as imensas energias liberadas pelo sol— tudo isso prossegue
à parte dele. Ele nada faz para influenciar ou controlar tais coisas: ele é um
vigia. Ele sabe que o amanhecer está chegando; não há dúvidas a respeito
disso. Nesse ínterim ele está alerta aos perigos; ele consola crianças ou animais
irrequietos até que seja hora de trabalhar ou brincar novamente à luz do dia.
Fui vigia certa vez. Trabalhei das 22 horas às 6 da manhã num prédio da
cidade de Nova York. Meu trabalho como vigia noturno estava vinculado ao
de ascensorista, mas o trabalho com o elevador ia acabando mais ou menos à
meia-noite. Depois disso ficava sentado e lia, cochilava ou estudava. Havia
pessoas noturnas na vizinhança que paravam ali durante a noite e conversavam
comigo: pessoas estranhas, bizarras com histórias maravilhosas. Nunca saberei
quanto daquilo que eu ouvia deles era fato e quanto era ficção: um milionário
falido obcecado com complôs comunistas responsáveis pelo seu declínio, um
aventureiro sul-americano já velho agora para caminhar em matas e montanhas
longínquas, umas duas prostitutas que em noites sem movimento se sentavam
e conversavam sobre Deus e o valor de suas almas.
Fiz isso por um ano inteiro. Fiquei acordado, estudei, aprendi, troquei
conversa e fofoquei. E eu esperava o amanhecer. O amanhecer sempre veio.
As pessoas que me empregavam acharam que valia alguns dólares por hora eu
aguardar durante a noite e vigiar pelo amanhecer. Mas eu nunca fiz nada, nunca
construí nada, nunca fiz nada acontecer. Eu aguardava e vigiava. Eu esperava.
Se eu não soubesse que havia outros encarregados do prédio, eu poderia
não ter estado contente de só ser um vigia e receber meu pagamento. Se eu não
confiasse que o prédio tinha um dono que se importava com ele, se eu não
soubesse que havia um engenheiro do edifício que o conservava em ordem e
bom estado de conservação, se eu não soubesse que havia centenas de pessoas
no edifício que iam e vinham cuidando de seu trabalho todos os dias de maneira
capaz— se eu não soubesse essas coisas, talvez eu não teria estado tão à vontade
jogando conversa fora com as mulheres da noite e os velhos que contavam
histórias passadas. Nem o salmista teria ficado contente de ser um vigia se ele
não tivesse certeza de Deus. O aguardar e vigiar do salmista e do cristão — isto
é, o esperar, o ter esperança — se baseia na convicção de que Deus está
ativamente envolvido em sua criação e vigorosamente trabalhando na redenção.
Esperar não quer dizer fazer nada. Não é resignação fatalista. Significa
ocupar-nos das tarefas que nos cabem, confiantes de que Deus fornecerá o
sentido e as conclusões. Não é ser forçado a trabalhar para manter as aparências
com uma espiritualidade falsa. É o contrário de manipulações desesperadas de
pânico, de correr e se preocupar.
E esperar não é sonhar. Não é criar uma ilusão ou fantasia para nos proteger
de nosso tédio ou nossa dor. Significa uma expectativa confiante, alerta, de
que Deus fará o que disse que ia fazer. E imaginação colocada no arreio da
108 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
fé. É uma disposição de deixar Deus agir do seu jeito e a seu tempo. E o
oposto de fazer planos que exigimos que Deus efetue, dizendo-lhe como e
quando efetuá-los. Isso não é esperar em Deus, e sim ameaçar Deus. “Eu oro
a Deus — minha vida uma oração — e aguardo o que ele dirá e fará. Minha
vida está totalmente diante de Deus, meu Senhor, aguardando e vigiando até
amanhecer, aguardando e vigiando até amanhecer.”
Um oftalmologista e um pintor
Quando sofremos, atraímos conselheiros como dinheiro atrai ladrões. Todo
mundo tem uma idéia do que fizemos errado, e nos colocar em tal aflição é uma
receita para o que podemos fazer para nos livrar. Somos inundados primeiro com
compaixão e depois com conselhos, e quando não reagimos depressa somos
abandonados como caso perdido. Mas nada disso é o que precisamos. Nós
precisamos de esperança. Precisamos saber que estamos relacionados com Deus.
Precisamos saber que o sofrimento é parte daquilo que significa ser humano e não
algo estranho, alienado. Precisamos saber onde nós estamos e onde Deus está.
Precisamos de um oftalmologista em vez de, digamos, um pintor. Um pintor
procura transmitir-nos com o auxílio de seu pincel e paleta um retrato do mundo
como ele o vê; um oftalmologista procura habilitar-nos a ver o mundo como
realmente é. No romance de George MacDonald The Princess and Curdie,
quando Curdie chega ao castelo, ele vê a grande escadaria e sabe que para
alcançar a torre ele precisa ir mais adiante. O narrador aproveita a ocasião para
comentar que “aqueles que trabalham bem nas profundezas entendem mais
facilmente as alturas, pois de fato, em sua natureza verdadeira elas são uma só
e a mesma coisa”.8
Para a pessoa que sofre, já sofreu ou sofrerá, o Salmo 130 é equipamento
essencial, porque ele nos convence de que a grande diferença não está naquilo
que as pessoas sofrem, e sim em como elas sofrem (“A mesma sacudida que
faz a água fétida exalar mau cheiro faz o perfume soltar um cheiro mais
agradável”.).9 O salmo não nos exorta a agüentar o sofrimento; não o explica
nem procura fazê-lo desaparecer com uma explicação. Ao contrário, é uma
demonstração poderosa de que nosso lugar nas profundezas não está fora
dos limites de Deus. Nós vemos que seja o que for ou quem for que nos pôs
em dificuldades, isso não pode separar-nos de Deus, porque “o perdão é seu
hábito”. Somos persuadidos de que o modo de Deus conosco é redenção e
que a redenção, não o sofrimento, é final.
O “fundo” tem um fundo; as alturas não têm limites. Sabendo isso, somos
auxiliados a ir em frente e aprender as práticas de aguardar e vigiar —
esperando! — e por esse meio é dado a Deus espaço para operar a nossa
salvação e desenvolver nossa fé enquanto fixamos nossa atenção nos modos
dele, nos caminhos dele de graça e ressurreição.
13
H u m ild a d e
“Conservei os pés no chão”
eu n ão qu ero se r o re i d a montanha.
A atenção a ela. “Se você deixa alguma coisa por conta própria,
você a deixa sujeita a uma torrente de mudanças. Se você deixar
sem limpeza um poste branco logo será um poste preto”.1
Em cada primavera, na minha vizinhança, várias pessoas podam seus
arbustos e árvores. E uma prática anual das pessoas que se importam com
coisas que crescem. Também é um daqueles atos que alguém de fora, um que
não entende como o crescimento se processa, quase sempre entende mal, porque
sempre parece um ato de mutilação. Parece que você está estragando a planta
quando, de fato, você a está ajudando.
Nós temos uma roseira que deixou de ser podada por vários anos. Quando
ela floriu a primeira vez, as rosas eram cheias e vigorosas. No verão passado
a planta estava muito maior. As trepadeiras subiam até o telhado numa treliça
que eu havia feito. Eu esperava muito mais rosas. Mas fiquei desapontado.
As flores eram pequenas e mirradas. Os ramos tinham ficado longe demais
de suas raízes. A planta não pôde dar uma só flor viçosa. Precisava de uma
boa poda.
O Salmo 131 é um salmo de manutenção. Funciona para a pessoa de fé
como a poda funciona para o jardineiro: tira aquilo que parece bom para quem
não entende do ramo, e reduz a distância entre nossos corações e as raízes que
estão em Deus.
As duas coisas que o Salmo 131 corta fora são a ambição indomável e a
dependência infantil, o que poderíamos chamar de complexo de grandeza e
recusa de deixar a chupeta. Ambas as tendências podem facilmente parecer
virtudes, especialmente para aqueles que não estão familiarizados com os modos
cristãos. Se não tivermos cuidado, estaremos encorajando as coisas exatas que
nos irão arruinar. Estamos em necessidade especial e constante de uma correção
perita. Precisamos de poda. Jesus disse: “[Deus] corta fora todo ramo em mim
que não produz uvas. E todo ramo que produz uvas ele poda para que produza
ainda mais” (Jo 15.2). Nosso Senhor, o E spíritojá usou o Salmo 131 mais de
112 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
uma vez para fazer essa obra importante entre seu povo. À medida que
conseguimos nos familiarizar e entender o salmo, ele poderá usá-lo assim
conosco “para que possamos produzir ainda mais”.
Aspiração enlouquecida
“D e u s , eu não estou tentando governar o galinheiro, eu não quero ser o rei
da montanha. Eu não mexi onde não me cabe nem sonhei acordado planos
grandiosos. Eu conservei os pés no chão, eu cultivei um coração quieto”.
Estas linhas são enormemente difíceis para compreendermos— não difíceis
de entender com as nossas mentes, porque as palavras são todas claras, mas
difíceis de captar com as nossas emoções, sentindo sua verdade. Todas as
culturas lançam certas pedras de tropeço no caminho daqueles que perseguem
as realidades do evangelho. É pura fantasia supor que teríamos menos
dificuldades como crentes cristãos se estivéssemos em outra terra ou outra
época. Não é mais fácil ser um cristão chinês do que ser um cristão espanhol
do que ser um cristão russo do que ser um cristão brasileiro do que ser um
cristão americano — nem mais difícil. O caminho da fé trata com realidades
em qualquer tempo e qualquer cultura.
Mas há diferenças de um tempo para outro e de um lugar para outro que
causam problemas especiais. Por exemplo, quando uma tentação ou provação
antiga torna-se uma característica aprovada na cultura, um sistema de vida
que é esperado e incentivado, os cristãos têm colocada diante de si uma pedra
de tropeço que é difícil reconhecer como sendo o que é, porque foi
transformada em um monumento, pintada com bronze e banhada em luzes
coloridas. Tornou-se um objeto de veneração. Mas o simples fato é que está
bem no meio da estrada da fé, obstruindo o discipulado. Apesar de seu
revestimento ornamentado e posição de honra, ainda é uma pedra de tropeço.
Uma tentação que recebeu esse tratamento na civilização ocidental, com
alguns ornamentos especiais no continente americano, é a ambição. Nossa
cultura estimula e recompensa a ambição irrestritamente. Estamos rodeados
por um sistema de vida no qual melhorar é entendido como expansão, como
aquisição, como fama. Todo mundo quer ganhar mais. Estar em cima, não
importa do quê, é admirado. Não há nada recente sobre a tentação. É o mais
antigo pecado no livro da história, aquele que fez Adão ser lançado fora do
jardim e Lúcifer lançado fora do céu. O que é mais ou menos novo é a admiração
e aprovação geral que isso recebe.
O velho conto de Dr. Fausto era bem conhecido antigamente e apreciado
como sendo um aviso. João Fausto ficou impaciente com as limitações impostas
sobre ele em seu estudo de direito, medicina e teologia. Por mais que ele
aprendesse nesses campos, ele descobria que estava sempre a serviço de algo
maior do que ele — da justiça, da cura, de Deus. Ele irritava-se de estar como
HUMILDADE 113
servo e queria sair disso: queria estar no controle, sair fora dos limites do
finito. Então tornou-se perito em mágica, pela qual ele podia desafiar as leis da
física, as restrições da moralidade e as relações com Deus e usar seu
conhecimento para seu próprio prazer e propósitos. Para poder realizar isso,
contudo, ele tinha que fazer um pacto com o diabo que lhe permitisse agir
pelos próximos vinte e quatro anos do modo de um deus — vivendo sem
limites, estando no controle em vez de num relacionamento, exercendo poder
em vez de praticando amor. Mas no fim dos vinte e quatro anos vinha
condenação às penas eternas.
Através de muitas gerações essa história já foi contada e repetida por poetas
e dramaturgos e novelistas (Goethe, Marlowe, Mann) avisando as pessoas contra
o abandonar a posição gloriosa de ser uma pessoa criada à imagem de Deus, e
tentar a temerária aventura de ser um deus por conta própria. Mas agora algo
de alarmante aconteceu. Sempre houve personagens faustianos, pessoas na
comunidade que embarcavam num caminho de arrogância e poder; mas agora
nossa cultura inteira é faustiana. Fomos apanhados num modo de vida que, em
vez de se deleitar em descobrir o sentido de Deus e buscar saber as condições
nas quais as qualidades humanas melhor podem ser realizadas, com arrogância
desafia os relacionamentos pessoais e só fala o nome de Deus quando maldiz.
A lenda de Fausto, por tanto tempo útil em apontar a tolice do orgulho desafiador
de um deus, agora está praticamente irreconhecível porque os pressupostos de
nossa sociedade inteira (nossos modelos educacionais, nossas expectativas
econômicas, mesmo nossa religião popular) são “Faustianos”.
É difícil reconhecer o orgulho como pecado quando é exaltado, de todos os
lados, como uma virtude, estimulado como proveitoso e recompensado como
sendo um feito, uma realização. O que é descrito na Bíblia como o pecado
básico, o pecado de assumir as coisas em suas próprias mãos, ser seu próprio
deus, agarrar o que está lá enquanto se pode, agora é descrito como sabedoria
básica: melhore-se por qualquer meio que possa; progrida a qualquer preço,
cuide de mim primeiro. Por um tempo limitado funciona. Mas no final o diabo
tem o que lhe é devido. Existe a maldição, a condenação.
Soma-se ainda a dificuldade de reconhecer a ambição desregrada como
pecado porque ela tem uma espécie de relacionamento superficial com a virtude
da aspiração — que é uma im paciência com a m ediocridade e um
descontentamento com todas as coisas criadas até que estejamos à vontade
com o Criador, a luta esperançosa pelo melhor que Deus tem para nós — o tipo
de coisa que Paulo expressou: “Estou de olho no alvo, onde Deus está nos
acenando para a frente — para Jesus. A corrida começou e corro ao alvo, e não
volto para trás” (Fp 3.14). Mas se pegamos as energias que contribuem para a
aspiração e tiramos Deus do retrato, substituindo o nosso auto-retrato mal
desenhado, acabamos tendo uma arrogância feia. O verso feliz de Robert
114 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Browning sobre a aspiração “A man’s reach should exceed his grasp, or what’s
a heaven for?” [“O alcance da mão de um homem deve ser maior do que o
punho fechado para agarrar, ou para que serve um céu?”] já foi distorcido para
“Reach for the skies and grab everything that isn’t nailed down” [“Estenda a
mão aos céus e agarre tudo que não estiver preso com pregos”] . A ambição é a
aspiração enlouquecida. A aspiração é a energia criativa, canalizada, que nos
induz ao crescimento em Cristo, formatando ideais no Espírito. A ambição
pega essas mesmas energias de crescimento e desenvolvimento e as usa para
fazer algo inferior e barato, suando para juntar peças para uma Babel quando
poderíamos estar de férias no Éden. Calvino comenta: “Aqueles que se deixam
levar pela influência da ambição logo se perderão num labirinto de
perplexidade”.2
Nossa vida é vivida bem somente quando é vivida nos termos de sua criação,
com Deus amando e nós sendo amados, com Deus fazendo e nós sendo feitos,
com Deus revelando e nós compreendendo, com Deus mandando e nós
respondendo. Ser um cristão significa aceitar os termos da criação, aceitar
Deus como nosso confeccionador e redentor, e crescer dia a dia tornando-nos
uma criatura cada vez mais gloriosa em Cristo, desenvolvendo a alegria,
vivenciando o amor, amadurecendo na paz. Pela graça de Cristo experienciamos
a maravilha de sermos feitos à imagem de Deus. Se rejeitarmos esse caminho,
a única alternativa é tentarmos a embaraçosa imitação desengonçada, de quarta
classe, de Deus feito na imagem de homens e mulheres como nós.
Tanto a revelação como a experiência (Gênesis e Goethe) mostram que é o
caminho errado, e por isso o salmista é sábio ao ver isso e cantar “ D e u s , eu não
estou tentando governar o galinheiro... Eu não mexi onde não me cabe... Eu
conservei os pés no chão”. Não tentarei conduzir minha própria vida nem a
vida de outros; isso é atividade de Deus, eu não terei a pretensão de inventar o
sentido do universo; aceitarei o que Deus já mostrou ser o sentido dele; não
desfilarei exigindo que eu seja tratado como o centro de minha família ou de
minha vizinhança ou do meu trabalho, mas buscarei descobrir onde eu caibo e
farei aquilo para o qual sou bom. A alma, clamando por atenção e desfilando
arrogantemente a sua importância, está acalmada e aquietada para que ela possa
ser ela mesma, verdadeiramente.
grande tentação cristã é tentar ser tudo, a solução cristã perfeita é não ser nada.
E assim temos o problema do cristão capacho e do santo papel toalha: a pessoa
em que os outros pisam e limpam os pés, a pessoa que é usada por outras para
limpar a bagunça de cada dia da vida e depois descartar. Essas pessoas então
compensam sua pobre vida se apegando a Deus com choro, esperando
compensar tristezas da vida cotidiana com sonhos de luxos no céu.
A fé cristã não é dependência neurótica e sim confiança como de criança.
Não temos um Deus que para sempre e sempre satisfaz nossos caprichos, e sim
um Deus a quem confiamos nossos destinos. O cristão não é um infante ingênuo
e inocente que não tem nenhuma identidade à parte de um sentimento de ser
consolado e protegido e bem cuidado; ele é uma pessoa que descobriu uma
identidade dada por Deus que será desfrutada melhor e mais plenamente com
uma confiança voluntária em Deus. Não nos seguramos em Deus desespera
damente pelo medo e pânico da insegurança; nos chegamos a ele livremente
em fé e amor.
Nosso Senhor nos deu o retrato da criança como modelo para a fé cristã
(Mc 10.14-16), não por causa do desamparo da criança, e sim por causa da
prontidão da criança de ser conduzida, ser ensinada, ser abençoada. Deus não
nos reduz a um conjunto de reflexos pavlovianos para o adorarmos e orarmos
e obedecermos sem sequer pensarmos nisso quando toca o sinal; ele nos
estabelece com uma dignidade em que nós estamos livres para receber a palavra
dele, seus dons, sua graça.
O salmo mostra um talento de gênio a esta altura e descreve um
relacionamento que é completamente atraente. Os tradutores da Bíblia de
Jerusalém retiveram o literalismo da metáfora hebraica: “Suficiente para mim
é guardar minha alma tranqüila e quieta como uma criança nos braços de sua
mãe, tão contente como uma criança que foi desmamada”. A última frase,
“como uma criança que foi desmamada”, cria uma realidade nunca imaginada,
completamente nova. O cristão é
não como um bebê chorando alto à procura do peito de sua mãe, mas como
uma criança desmamada que descansa bem quietinha ao lado da mãe, feliz
em estar com ela... Nenhum desejo se entrepõe entre ele e seu Deus; pois
ele está certo de que Deus sabe do que ele precisa antes que ele lho peça. E
assim como a criança aos poucos se desfaz do hábito de ver sua mãe apenas
como um meio de satisfazer seus próprios desejos e aprende a amá-la por
ela mesma, assim o adorador depois de uma luta chegou a uma atitude de
mente na qual ele deseja Deus por ele mesmo e não como um meio de
satisfazer seus próprios desejos. O centro de gravidade de sua vida mudou.
Agora ele não mais descansa em si, mas sim em Deus.3
A transição de um bebê que mama para uma criança desmamada, de um
116 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
nenê que chora alto para um filho ou filha quieta, não é suave. Não é fácil
aquietar-se: mais facilmente podemos acalmar o mar ou governar o vento ou
amansar um tigre do que aquietar-nos. É uma batalha intensa. O bebê, ao ser
negado os confortos esperados, se enraivece desesperadamente ou passa a
ficar amuado. Ele soluça e se debate. O bebê enfrenta sua primeira grande
tristeza e está muito estressado. Mas “para a criança desmamada sua mãe é
seu conforto embora lhe tenha negado conforto. E um marco abençoado de
crescimento e saída da infância espiritual quando podemos abandonar as
alegrias que antes pareceram ser essenciais, e encontrar nosso conforto naquele
que as nega a nós” .4
Muitos que já viajaram nesse caminho da fé descreveram a transição de
uma fé infantil que se agarra a Deus por desespero a uma fé madura que
responde a Deus por amor, “como um bebê contente nos braços de sua mãe”.
Muitas vezes nossa vida cristã consciente começa mesmo em pontos de
desespero, e Deus, é claro, não recusa satisfazer nossas necessidades. Os
confortos celestes atravessam nosso desespero e nos persuadem que “tudo
estará bem e todas as coisas irão bem”. Não é incomum os primeiros estágios
da crença cristã serem marcados por sinais miraculosos e enlevos espirituais.
Mas na continuação do discipulado, os confortos sensíveis desaparecem aos
poucos. Pois Deus não nos quer neuroticamente dependentes dele e sim
voluntariamente confiando nele. E assim ele nos desmama. O período da
infância não será sentimentalmente estendido além do necessário. O tempo
de desmamar muitas vezes é barulhento e marcado por mal-entendidos. Eu
não me sinto mais como eu me senti quando primeiro me tornei cristão. Isso
significa que não sou mais um cristão? Deus me abandonou? Será que fiz
alguma coisa terrivelmente errada?
A resposta é, nenhum dos dois. Deus não o abandonou e você não fez nada
errado. Você está sendo desmamado. A chupeta foi tirada. Sua dependência de
Deus não é mais a de um bebê. Você está livre para ir a Deus ou não ir a ele.
Você está, em certo sentido, por conta própria, com um convite permanente
para ouvir e receber e gozar da companhia de nosso Senhor.
A última linha do salmo se dirige a essa qualidade de recém-adquirida
liberdade: “Aguarde, Israel, por Deus. Aguarde com esperança. Espere agora;
espere sempre!” Escolha estar com ele; opte por sua presença; aspire os seus
caminhos; responda ao amor dele.
O caminho simples
Quando Charles Spurgeon pregou este salmo, ele disse: “É um dos salmos
mais curtos para ler, mas um dos mais compridos para aprender”.5 Parece que
estamos sempre cambaleando de um lado da estrada para o outro ao viajarmos
HUMILDADE 117
O Salmo 132 é um dos salmos mais antigos da Bíblia. Foi incluído nos
Cânticos de Subida para desenvolver justamente aqueles aspectos da vida sob
Deus e em Cristo que faltavam a meu amigo Kelly naquele momento, e que
todos nós precisamos ter.
É um salmo da obediência de Davi, de “como ele prometeu a D e u s , fez um
voto ao Forte Deus de Jacó”. O salmo mostra obediência como uma resposta
de fé viva e aventureira que tem raízes em fato histórico e se estende a uma
esperança prometida.
da arca era coisa de todos os dias para eles. Sua extensa e complexa história
era conhecida de todos, muito parecida com a história de Jesus para os cristãos.
Com as dicas do salmo, a história revivia para eles de novo, especialmente a
parte contando da vez que Davi redescobriu a arca numa vila obscura e decidiu
colocá-la no centro da vida israelita, restaurando uma antiga unidade à vida do
povo de Deus em adoração e louvor. “Lembram-se de como recebemos a notícia
em Efrata, aprendemos tudo a respeito nas Campinas de Jaar?” A notícia chegara
a Davi de onde a arca estava; ele prometeu consegui-la e foi obediente a seu
voto. E reuniu seu povo em volta de si e disse: “Vamos à dedicação do santuário!
Vamos adorar a Deus diante do próprio estrado de seus pés!” Ele foi até a arca
e a trouxe para Jerusalém em desfile festivo: “Suba, D e u s , aprecie seu novo
lugar de repouso quieto, o senhor e sua forte arca da aliança. Vista de justiça
seus sacerdotes, leve seus adoradores a cantarem...” Enquanto o canto foi
cantado, o relato nos conta, “Davi dançava com grande abandono diante de
Deus. A nação toda estava com ele enquanto trazia a Arca de Deus com júbilo
e toques de trombetas” (2Sm 6.14,15).
Quando esse velho cântico é cantado de novo hoje pelo povo de Deus em
peregrinação, memórias históricas são reavivadas e revividas: há uma vasta e
rica realidade de obediência sob os pés de discípulos. Eles não são as primeiras
pessoas a subirem essas ladeiras em seu caminho de obediência a Deus e não
serão as últimas. Subindo essas mesmas estradas, por esses mesmos caminhos,
a arca tinha sido carregada, acompanhada por um povo de determinação e
expectativa. Foi carregada tanto de formas boas como más. Lembrariam da
vez em que a conduziram em pânico (“Estou com medo! Ore por mim!”),
supersticiosamente como arma secreta contra os filisteus. Aquela tinha
terminado em calamidade. Também se lembrariam da parada de adoração
reverente e celebração dançante quando obediência foi transformada em culto.
Os cristãos trilham caminhos bem pisados: obediência tem uma história.
Essa história é importante, porque sem ela ficamos à mercê de fantasias. A
memória é um banco de dados que usamos para avaliar nossa posição e tomar
decisões. Com uma memória bíblica temos dois mil anos de experiência dos
quais chegar às respostas improvisadas que nos são exigidas todos os dias na
vida de fé. Se vamos viver de modo adequado e maduro como povo de Deus,
precisamos de mais dados de trabalho do que nossa própria experiência nos
pode fornecer.
O que acharíamos de um perito em sondar a opinião pública que soltasse
um relatório definitivo sobre como o povo americano se sentia sobre um
novo especial de TV, se descobríssemos mais tarde que ele só tinha entrevis
tado uma única pessoa que tinha visto apenas dez minutos daquele programa?
Descartaríamos as conclusões como frívolas. Contudo é exatamente o tipo
de evidência que um número grande demais aceita como sendo a verdade
OBEDIÊNCIA 125
fmal sobre muitos assuntos muito mais importantes — assuntos como a oração
respondida, o juízo de Deus, o perdão de Cristo, a salvação eterna. As únicas
pessoas que eles consultam são eles mesmos, e a única experiência que avaliam
é a dos últimos dez minutos. Mas precisamos de outras experiências, a
comunidade de experiências de irmãos e irmãs da igreja, os séculos de
experiência fornecida por nossos ancestrais bíblicos. Um cristão que tem
Davi nos seus ossos, Jeremias na sua circulação, Paulo na ponta de seus
dedos e Cristo em seu coração saberá atribuir o muito e o pouco de quanto
valor deve colocar em suas próprias sensações momentâneas e na experiência
da última semana.
Para permanecer voluntariamente ignorante das caminhadas de Abraão no
deserto, dos hebreus escravizados no Egito, de Davi batalhando contra os
fílisteus, de Jesus discutindo com os fariseus e de Paulo escrevendo aos coríntios
é como dizer: “Eu me recuso a lembrar que quando eu chutei aquele cachorro
preto na semana passada ele mordeu minha perna”. Se eu não me lembro disso,
no próximo acesso de raiva eu vou chutá-lo de novo e ser mordido de novo. A
história bíblica é boa lembrança do que não funciona. Também é boa lembrança
do que funciona — como lembrar do que você pôs na sopa que fez ter um gosto
tão bom para que possa repetir e apreciar a receita em outro dia, ou lembrar do
percurso mais curto pela cidade a caminho da praia que te salvou de ficar preso
no trânsito e permitiu chegar à praia duas horas mais cedo.
Um cristão com memória defeituosa tem que começar tudo do zero e gastar
tempo demais do seu tempo retrocedendo, consertando, começando novamente.
Um cristão com boa memória evita repetir velhos pecados, sabe o caminho
mais fácil para passar por situações complexas, e em vez de começar tudo de
novo a cada dia, continua o que foi começado com Adão. O Salmo 132 ativa a
memória da fé para que a obediência seja sã. “Cada ato de obediência feito
pelo cristão é uma prova modesta, inequívoca por imperfeita que seja, da
realidade daquilo que ele comprova.”1
o viver cristão exige que fiquemos com os pés no chão; também pede-nos para
fazer o salto da fé. Um cristão que estaciona não é melhor do que uma estátua.
Uma pessoa que salta de um lado para outro constantemente está sob suspeita
de não ser um homem, e sim um boneco saltador. O que nós exigimos é
obediência — a força para ficar de pé e a disposição para saltar, e o bom senso
para saber quando fazer qual. Que é exatamente o que conseguimos quando
uma memória correta dos caminhos de Deus é combinada com uma esperança
vivaz em suas promessas.
15
C o m u n id a d e
“Como óleo de unção precioso
descendo pela cabeça e barba ”
ord en a a v id a eterna.
SALMO 133
Então a questão não é “Vou ser parte de uma comunidade de fé?” e sim,
“Como vou viver nessa comunidade de fé?” Os filhos de Deus fazem diferentes
coisas. Alguns fogem dela e fingem que a família não existe. Alguns se mudam
dela e arranjam um apartamento próprio do qual voltam para fazer visitas
ocasionais, quase sempre aparecendo para as festas e trazendo um presente
para demonstrar que eles realmente têm os outros em grande apreço. E alguns
nunca sonhariam em sair, mas motivam que outros sonhem isso por eles, porque
estão sempre criticando o que é servido nas refeições, brigando pelo modo
como é feita a manutenção da casa e reclamando que as pessoas da casa ou não
lhes dão atenção ou estão aproveitando deles. E alguns determinam achar o
que Deus tem em mente ao colocá-los nessa comunidade chamada igreja,
aprendem como funcionar nela em harmonia e alegria, e desenvolvem a
maturidade que é capaz de compartilhar a graça de Deus com aqueles que caso
contrário poderiam ser vistos como incômodos.
Um sacerdote do outro
Há duas imagens poéticas no Salmo 133 que são preciosas pelos discerni
mentos no trabalho de incentivar e formar uma vida boa e deleitosa juntos em
Cristo. A primeira imagem descreve comunidade como sendo “óleo de unção
precioso descendo pela cabeça e barba, descendo pela barba de Arão, escorrendo
pela gola de suas vestes sacerdotais”.
A figura vem de Êxodo 29, onde se dá instruções para a ordenação de Arão
e os outros sacerdotes. Depois que os sacrifícios fossem preparados, Arão devia
ser trajado nas vestimentas sacerdotais. Então esta instrução é dada: “Tomarás
o óleo da unção e lho derramarás sobre a cabeça; assim o ungirás... assim
ordenarás Arão e seus filhos” (Ex 29.7,9).
Óleo, em toda a Bíblia, é um sinal da presença de Deus, um símbolo do
Espírito de Deus. O óleo brilha, se aquece com o calor da luz solar, amacia a
pele, perfuma a pessoa. (Gerard Manley Hopkins, exaltando a grandeza de
Deus na criação, emprega uma imagem semelhante na sua frase: “Ele se reúne
a uma grandeza, se deposita como o escorrer do óleo esmagado”).3 Há uma
qualidade de calor e calma na comunidade de Deus que se contrasta com a
frieza gélida e superfícies duras de indivíduos que se acotovelam uns aos outros
em multidões e ajuntamentos.
Contudo, mais especialmente aqui, o óleo é um óleo de unção, marcando a
pessoa como um sacerdote. Viver juntos significa ver o óleo fluindo por sobre a
cabeça, pelo rosto, pela barba, até os ombros do outro — e quando vejo isso, sei
que meu irmão, minha irmã, é meu sacerdote. Quando vemos o outro como
ungido de Deus, nossos relacionamentos são afetados profundamente.
Ninguém reconheceu isso mais perceptivelmente em nossos dias do que
Dietrich Bonhoeffer. Ele escreveu: “Não o que um homem é em si como cristão,
sua espiritualidade e piedade, constitui a base de nossa comunidade. O que
determina nossa fraternidade é o que aquele homem é em razão de Cristo.
Nossa comunidade de um com o outro consiste somente naquilo que Cristo fez
para nós dois” .4 E o que Cristo fez foi ungir-nos com seu Espírito. Somos
separados para prestar serviço um ao outro. [Como mediadores] nós mediamos
um ao outro os mistérios de Deus. Nós representamos um ao outro o discurso
de Deus. Somos sacerdotes que falam a Palavra de Deus e compartilham o
sacrifício de Cristo.
O cristão precisa de outro cristão que fale a Palavra de Deus para ele. Ele
precisa dele outra e mais outra vez quando fica com dúvida e desanimado,
pois sozinho ele não pode ajudar a si mesmo sem interpretar mal a verdade.
Ele precisa de seu irmão humano como portador e proclamador da palavra
divina de salvação. Ele precisa de seu irmão somente por causa de Jesus
Cristo. O Cristo em seu próprio coração é mais fraco do que o Cristo na
palavra de seu irmão; seu próprio coração é incerto, o de seu irmão é seguro.5
136 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
assim de querer passar a eternidade num lugar como aquele. Talvez preferís
semos o bom companheirismo bem agitado do inferno. O Salmo 133 nos lança
só uma pequena dica (uma dica que é ampliada para uma grande visão em
Apocalipse 4 — 5), que vira isso de cabeça para baixo: o companheirismo bem
agitado é no céu.
Onde os relacionamentos são calorosos e as expectativas novas, já estamos
começando a apreciar a vida juntos que será completada em nossa vida eterna. O
que significa que o céu não se compara com nada tanto quanto uma boa festa.
Ajunte em sua imaginação todos os amigos com quem você mais gosta de estar,
os companheiros que te evocam a mais profunda alegria, seus relacionamentos
mais estimulantes, as mais gostosas das experiências compartilhadas, as pessoas
com quem você se sente completamente vivo — isso é uma dica do céu, pois “é
ali que D eus comanda a bênção, ordena a vida eterna”.
9 de Abril de 1945
Um dos melhores, talvez o melhor livro escrito no século 20 sobre o
significado de viver junto como uma família da fé é Life Together [A Vida
Juntos] de Dietrich Bonhoeffer. O livro começa com as palavras do salmo:
“Eis, quão bom e quão agradável é os irmãos viverem juntos em unidade!”
( n k j v ) . O texto ficou com Bonhoeffer durante toda sua vida. Sua primeira
e b en digam a D eus.
S A L M O 134
Um livro sobre Deus tem por título The God Who Stands, Stoops and
Stays [“O Deus que Fica de Pé, Abaixa e Pára”]. Isso resume a postura de
bênção: Deus fica de pé — ele é fundamental e confiável; Deus se abaixa
— ele ajoelha a nosso nível e nos encontra onde estamos; Deus pára ali —
ele se mantém junto a nós através dos tempos duros e dos bons, repartindo
sua vida conosco em graça e paz.
E porque Deus nos abençoa, nós abençoamos Deus, nós o bendizemos.
Nós respondemos com aquilo que recebemos. Participamos do processo
que Deus iniciou e continua. Nós que somos abençoados, abençoamos.
Quando a palavra é usada pelo que as pessoas fazem, ela tem na Bíblia o
sentido de “ louvor e gratidão por bênção recebida” .5 As pessoas que
aprendem como é receber a bênção, pessoas que viajam no caminho da fé
tendo a experiência dos meios da graça em todo tipo de clima e sobre todo
tipo de terreno, ficam bons em abençoar. Em Israel isso se tornou “a
expressão distinta da prática da religião”.6 No Judaísmo, até hoje, todas as
formas de oração que começam com louvor a Deus são chamadas berakoth
— isto é, bênçãos.7
a que você deu lugar? Bem, não foi tanto que te impedisse de chegar, e agora
que você está aqui, bendiga a Deus. Você está com vergonha das vezes em que
você desistiu e outra pessoa teve de apanhá-lo e carregá-lo? Não importa. Você
está aqui. Bendiga a Deus.
A sentença é um convite; é também uma ordem. Tendo já chegado ao lugar
de adoração, será que vamos sentar aí e contar o que aconteceu sobre a viagem?
Tendo chegado à grande cidade, vamos passar nosso tempo aqui como turistas,
visitando os bazares, olhando vitrines e fazendo compras? Depois de colocarmos
um sinal ao lado de Jerusalém na nossa lista de coisas para fazer, será que
ainda passaremos adiante e já vamos começar a procurar outro desafio, outro
lugar santo para visitar? O templo será um lugar para socializar, receber parabéns
de outras pessoas pela realização, um lugar para compartilhar algumas fofocas,
trocar casos, um lugar para fazer contatos de negócios que vão melhorar nossas
chances de futuro sucesso lá onde moramos? Mas não foi por isso que você fez
a viagem: bendiga a Deus. Você está aqui porque Deus o abençoou. Agora
você bendiga a Deus.
Nossas histórias podem ser interessantes, mas elas não vêm ao caso. Nossas
realizações podem ser maravilhosas, mas elas não são pertinentes. Nossa
curiosidade pode ser compreensível, mas não é relevante. Bendigam a Deus.
“Quando vier o que é Completo, nossos incompletos serão cancelados” (ICo
13.10). Bendigam a Deus. Façam aquilo para o qual vocês foram criados e
redimidos: elevem suas vozes em gratidão; entrem na comunidade de louvor e
oração que antecipa a consumação final da fé no céu. Bendigam a Deus.
Karl Barth é ura favorito meu. Ele é um dos maiores teólogos de todos os
tempos, mas a coisa realmente cativante sobre ele é que foi um homem que
bendizia a Deus. Sua mente era maciça, seu saber imenso, sua produtividade
teológica simplesmente estarrecedora. Ele escreveu uma dogmática de seis
milhões de palavras, sete mil páginas, doze volumes, mais quarenta ou cinqüenta
outros livros e várias centenas de artigos instrutivos. Por mais impressionante
que seja tudo isso, o que de longe supera isso em impressionar a mim, pelo
menos, é o que ele chamava de Dankbarkeit. Gratidão. Sempre e em toda parte
nós percebemos que Barth estava respondendo à graça de Deus; há um senso
de humor no fundo de sua prosa mais séria; há sempre um sorriso expressando-se
na beira de seus olhos. Ele nunca se levou a sério e sempre levou Deus a sério,
e por isso estava cheio de espírito alegre, exuberante de tanta bênção. Falando
de seu próprio trabalho como teólogo ele disse: “O teólogo que não sente alegria
em seu trabalho não é teólogo nenhum. Rostos tristonhos, pensamentos
melancólicos e modo enfadonho de falar são intoleráveis nesta ciência”.10
Uma vez Barth estava num ônibus em Basiléia, a cidade suíça em que ele
morou e lecionou durante muitos anos. Um homem chegou e sentou-se ao
lado, era um turista. Barth iniciou a conversa: “O senhor é um visitante, não é?
E o que o senhor quer ver em nossa cidade?”
O homem disse: “Eu gostaria de ver o grande teólogo Karl Barth. O senhor
o conhece?
“Ah, sim”, disse Barth, “eu faço a barba dele todas as manhãs”. O homem
foi embora satisfeito, contando aos amigos que ele conheceu o barbeiro de
Barth.
Como ele recusou se levar a sério e decidiu levar Deus a sério, Barth não
oprimiu nem a si nem àqueles que lhe rodeavam com a pesada e sombria
seriedade da ambição ou orgulho, ou pecado, ou justiça própria. Em vez disso,
o erguer de mãos, a claridade de bênção.
Charles Dickens descreveu um de seus personagens como uma pessoa “que
chamou sua rigidez de religião”.11Nós descobrimos muitas vezes esse tipo de
coisa, no entanto somos gratos por não o acharmos na Bíblia. Na Bíblia achamos
Jesus concluindo sua parábola da ovelha perdida com as palavras: “Pode contar
com isso — há mais alegria no céu sobre a vida salva de um pecador do que
sobre noventa e nove pessoas boas que não necessitam de ser salvas” (Lc 15.7).
Não é alívio, nem surpresa, nem uma presunçosa satisfação consigo mesmo. E
certamente não é o “amortecimento dentro de mim”. Mas alegria.
Bênção está no fim da estrada. E aquilo que está no fim da estrada influencia
tudo que ocorre ao longo do caminho. O fim formata o meio. Como disse
Catarina de Siena: “Todo o caminho para o céu é céu”. Um fim alegre requer
um meio cheio de alegria. Bendito seja o Senhor.
BÊNÇÃO 147
O fim principal
Eu tenho um amigo que é deão num seminário teológico onde os homens e
as mulheres estão sendo treinados para serem pastores. As vezes ele chama
uma dessas pessoas para ir ao seu escritório e diz algo assim: “Você já está por
aqui há vários meses, e eu tenho tido a oportunidade de observá-lo. Você tem
notas boas, parece levar a sério seu chamado ao ministério, trabalha muito e
tem alvos claros. Mas eu não detecto nenhuma alegria. Você não parece ter
prazer nenhum naquilo que está fazendo. E eu fico pensando se você não deve
reconsiderar seu chamado ao ministério. Pois se um pastor não está em contato
com a alegria, vai ser difícil ensinar ou pregar convincentemente que as novas
são boas. Se você não transmite alegria na sua conduta, e gestos e fala, você não
será uma testemunha autêntica de Jesus Cristo. Prazer naquilo que Deus está
fazendo é essencial em nosso trabalho”.
A primeira pergunta no Breve Catecismo de Westminster é “Qual é o fim
principal do homem?” Qual é o propósito final? Qual é a principal coisa a
respeito de nós? Onde vamos, e o que faremos quando chegarmos lá? A resposta
é “Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.
Glorifique. Deleite-se. Há outras coisas envolvidas no discipulado cristão.
Os Cânticos de Subida mostraram algumas delas. Mas é extremamente
importante saber uma coisa que supera tudo mais. A principal coisa não é
trabalhar para o Senhor; não é sofrer em nome do Senhor; não é testemunhar
do Senhor; não é dar aula na Escola Dominical para o Senhor; não é ser
responsável na comunidade por causa do Senhor; não é guardar os Dez
Mandamentos, não é amar seu próximo, não é observar a regra áurea. “O fim
principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. Ou, no
vocabulário do Salmo 1 34: “Bendigam a D e u s ” .
“Charis sempre exige a resposta eucharistia (isto é, graça sempre exige a
resposta da gratidão). Graça e gratidão pertencem juntas como céu e terra.
Graça evoca gratidão como a voz, um eco. Gratidão segue a graça como o
trovão segue o relâmpago”.12 Deus é realidade pessoal para ser apreciada.
Somos criados de tal modo e redimidos de tal modo que somos capazes de
apreciá-lo. Todos os movimentos do discipulado chegam a um lugar onde a
alegria é experimentada. Cada passo da subida em direção a Deus desenvolve
a capacidade de desfrutar. Não só há, cada vez mais, mais para ser apreciado,
há também em passos constantes a capacidade adquirida para apreciar isso.
Melhor de tudo, não temos que esperar até chegarmos ao fim da estrada
antes de desfrutar o que está no fim da estrada. Então, “Venham, bendigam a
D e u s ... D eus abençoe vocês!”
rápidos. Mas depois de certo tempo sempre parecia ser mais parecido com mexer
na vida destas pessoas em vez de ajudá-las a atender a Deus.
Na maioria das vezes eu me descobri atrapalhando a maneira daquilo que o
Espírito Santo vinha fazendo muito tempo antes de eu entrar em cena; então eu
voltava, sentindo-me um pouco punido, pelo meu próprio trabalho: Bíblia e
oração; oração e Bíblia. Mas a conjunção e dá um mal-entendido. Bíblia e
oração não são duas entidades distintas. Meu trabalho pastoral foi fundi-las
em um ato único: “Biblioração”, ou “oraçãobíblia”. E esta fusão de Deus nos
falar (Bíblia) e nós falarmos a ele (oração) que o Espírito Santo usa para formar
a vida de Cristo em nós. E é esta fusão que eu estava tentando conseguir colocar
nas páginas de Uma Longa Obediência.
Dezessete editores o rejeitaram. Não havia um “nicho” no mercado, me
disseram; fui avisado que era irrelevante às preocupações de norte-americanos
contemporâneos. E então a InterVarsity o aceitou para publicação. O risco que
a InterVarsity assumiu me deu estímulo e confiança para prosseguir. E eu
prossegui. Vinte anos e vinte e oito livros mais tarde continuo a escrever partindo
dessa mesma fusão de Bíblia e oração, no desejo de dar testemunho e
encorajamento aos homens e mulheres, tanto os leigos como os pastores, que se
propõem a sair a caminho e seguir a Cristo.
Alguns anos depois de escrever Uma Longa Obediência notei que muitas
pessoas estavam falando e escrevendo sobre “espiritualidade”. Achei que eu
sabia o que estavam fazendo e fiquei feliz que muitos aliados estavam
aparecendo em lugares inesperados. Mas aconteceu que eu me enganara. Eu
tinha lido minhas próprias convicções naqueles interesses deles. Pensei que se
interessavam em viver a vida de Cristo de primeira mão; achei que se
interessavam em Bíblia e oração, os meios mais acessíveis que nos são
fornecidos para cultivar essa vida e o amadurecimento nela. Em geral não
estavam. A torrente de “espiritualidades” que continua tanto dentro como fora
das comunidades cristãs, aparentemente sem pausa, parece que gosta pouco
tanto do “longo” como do “devagar”.
Como Uma Longa Obediência foi onde iniciei minha primeira aventura
naquilo que continuou a caracterizar tudo que escrevi desde então, essa nova
edição parece uma ótima ocasião para tornar explícito o que em tudo está
implícito em meus livros; que homens e mulheres que crêem e seguem a Jesus
(o que comumente chamamos de “a vida cristã” ou “a espiritualidade cristã”)
têm como melhor diretriz e energia uma fusão de Bíblia e oração. Pois enquanto
a aceleração for um entusiasmo pela “espiritualidade” cristã sem um
compromisso equivalente com os meios, não vai sair dali grande coisa. Entre
nossos ancestrais cristãos a opinião é praticamente unânime que os meios
consistem precisamente dessa fusão de Bíblia e oração. Não é uma maneira
terrivelmente difícil de ler e escrever, mas não deixa de exigir uma atenção
EPÍLOGO 151
os nossos sentidos intactos, e entrar era outras conversas e ações reveladas por
Deus, descobrindo que nos sentimos em casa no país da Bíblia.
Com oração. Ensinaram-nos a ler a fim de captar informações. Nossas escolas
nos treinam a ler livros para podermos passar nos exames. Somos bons em procurar
fatos. “Conhecer é poder”, eles nos dizem. Os livros contêm coisas que podemos
usar para conseguir um diploma, um título, consertar um motor, manter um
emprego, resolver um mistério. Mas a Bíblia não é primeiramente uma fonte de
informações; é um dos modos primários que Deus usa para falar conosco. Nós a
chamamos de, “Palavra de Deus” que quer dizer, a voz de Deus — Deus falando
conosco, convidando, prometendo, abençoando, confrontando, ordenando,
curando. A Bíblia não é tanto Deus nos contando alguma coisa — alguma idéia,
algum fato, alguma regra— mas Deus falando vida em nós. Estamos escutando?
Estamos respondendo? A leitura da Bíblia é uma oração.
Obedientemente. Obedientemente? Não estamos acostumados com isso.
Crescemos numa cultura que insiste que tomemos conta de nossa própria
vida. Somos apresentados a milhares de livros que somos treinados a usar —
buscar informações, adquirir habilidades, dominar conhecimento, distrair-
nos... seja lá o que for. Mas usar? Pessoas de boas intenções já nos disseram
que a Bíblia é útil, e por isso nós a usamos. Nós adaptamos, editamos,
peneiramos, resumimos. Então usamos aquilo que parece útil e aplicamos isso
em nossas circunstâncias da maneira que achamos melhor. Nós tomamos conta
da Bíblia, usando-a como uma caixa de ferramentas para consertar nossa vida
ou como um guia para conseguirmos o que queremos ou como um folheto de
inspiração para animar um dia sem brilho.
Mas não somos suficientemente inteligentes para fazer isso; nem se pode
confiar que o faremos. O Autor do livro está nos escrevendo no livro dele, não
estamos o escrevendo no nosso. Nós nos encontramos no livro como seguidores
de Jesus. Jesus nos chama para segui-lo e nós obedecemos — ou não obedecemos.
Este é o imenso mundo da salvação de Deus em que nós entramos; não sabemos
o suficiente para “aplicar” nada. Nossa tarefa é obedecer, em fé, com confiança,
obedecer. Simplesmente obedecer.
❖ ♦> ❖
Às vezes eu me divirto imaginando Friedrich Nietzsche, que anunciou a
morte de Deus e que agora ele próprio já está morto há muito tempo, aparecendo
no meu escritório quando eu estou escrevendo meus livros. Ele examina os
livros de minha estante e vê parte de uma sentença que ele escreveu, como
título de um dos livros. Fica sabendo que eu escrevi o livro. Ele sorri (embora
me seja difícil imaginar Nietzsche sorrindo). Como ele fica feliz ao descobrir
que eu guardei a maravilhosa sentença dele, “Uma longa obediência na mesma
direção” circulando até o terceiro milênio cristão.
EPÍLOGO 153
Capítulo 2: Arrependimento
1John Baillie, Invitation to Pilgrimage (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1942), pág. 8.
2 Elie Wiesel, Souls on Fire (Nova York: Vintage, 1973), pág. 154.
3 Abraham Heschel, The Prophets (Nova York: Harper & Row, 1962), págs. 71,72.
4 Ibid., pág. 190.
Capítulo 3: Providência
1João Calvino, Commentary on the Psalms (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1949), 5:63.
2Johannes Pedersen descreve a situação assim: “O sol e a lua, que significavam tanto para a
manutenção da ordem na vida, muitas vezes tornavam-se deuses independentes entre os
156 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO
Capítulo 4: Culto
1Paul Scherer, The Word God Sent (Nova York: Harper & Row, 1965), pág. 166
2 Herbert Hendin, The Age o f Sensation (Nova York: W. W. Norton, 1975), pág. 325.
3 Charles Spurgeon, citado em Helmut Thielicke, Encounter with Spurgeon (Filadélfia:
Fortress, 1963), pág. 11.
Capítulo 5: Serviço
1 Walther Zimmerli, “xápif ”,em Theological Dictionary o f the New Testament, org. Gerhard
Kittel e Gerhard Friedrich (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1974), 9:377.
Capítulo 6: Ajuda
1 Robert Browning, “Easter Day”, em The Poems and Plays o f Robert Browning (Nova
York: Random House, 1934), pág. 503.
Capítulo 7: Segurança
1George Adam Smith, Historical Geography o f the Holy Land (Londres: Collins, 1966),
pág. 178.
2Gilbert Highet, Man s Unconquerable Mind (Nova York: Columbia University Press, 1954),
pág. 24.
3 Alexander Maclaren, The Psalms (Nova York: A.C. Armstrong, 1908), 2:316.
4 Mitchell Dahood traduz: “Mas aqueles que cambaleiam por causa de seus caminhos
errôneos...” Pontuando diferentemente as consoantes hebraicas, ele encontra o salmista usando
a mesma palavra como no verso 1 (mwt) e assim fazendo contraste com aquele que confia
em Deus e é uma montanha de rocha sólida que não pode ser movida com aquele que
recusou confiar em Deus e que portanto escorrega e “cambaleia”, — apostatando. Psalms III
(Garden City, N.J.: Doubleday, 1970), pág. 214.
5 Charles Spurgeon, The Treasury ofDavid (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1950), 6:59.
NOTAS 157
Capítulo 8: Alegria
1Ellen Glasgow, The Woman Within (Nova York: Harcourt Brace, 1954), pág. 15.
2Phyllis McGinley, Saint-Watching (Nova York: Viking, 1969), págs. 13,14.
3 Elie Wiesel, Souls on Fire (Nova York: Vintage, 1973), pág. 100.
Capítulo 9: Trabalho
1 Hilary of Tours, citado em G.A. Studdert-Kennedy, The Word and the Work (Londres:
Hodder& Stoughton, 1965), pág. 33.
“Palavras são armas que podem ser usadas para o bem e para
o mal. Eugene Peterson as usa manejando a espada da Escritura para
penetrar nossa mente e coração. Ele é um dos mais talentosos
escritores das coisas de Deus e nós somos privilegiados por ter sua
obra entre nós.”
Jill P. Briscoe, autor de Runningon Empty
ISBN 8 5 7 6 2 2 0 6 4 - 4