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Discipulado numa sociedade instantanea

Eugene Peterson

na mesma
Uma longa obediência na mesma direção,'Eugene H. Peterson © 2005 Editora Cultura Cristã.
Originalmente publicado em inglês com o título A Long Obedience in the Same Direction - 20“'
Anniversary Edition by Eugene H. Peterson © 1980 by InterVarsity Christian Fellowship e 2000 by
Eugene H. Peterson. Traduzido e publicado com permissão da InterVarsity Press P.O.Box 1400
Downers Grove, IL 60515 USA. Todos os direitos são reservados.

Ia edição - 2005 - 3.000 exemplares

Tradução
Helen Hope Gordon Silva

Revisão
Madalena Torres
Claudete Água de Melo

Editoração
Carla Daniela Ribeiro Araújo

Capa
LelaDesign
Peterson, E ugene 1932 -

P4851 U m a longa obediência na m esm a direção/ Eugene Peterson; [tradução Helen Hope
Gordon Silva]. - São Paulo: Cultura Cristã, 2005.

160p. ; 1 6 x 2 3 x 0 ,83cm .

T radução de A long obedience in the sam e direction


ISB N 8 5 -7 6 2 2 -0 6 4 -4

I. B íblia. 2. A ntigo Testam ento. 3. Salmos. I. Peterson, E. II. Título.

CDD 21 ed. - 223.2

Publicação autorizadapelffConselho Editorial:


Cláudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Luiz Ramos,
Francisco Baptista de Mello, Mauro Fernando Meister, Otávio Henrique
de Souza, Ricardo Agreste, Sebastião Bueno Olinto, Valdeci da Silva Santos.

Editora Cultura Cristã - Rua Miguel Teles Júnior, 394 - Cambúci - 01540-040 - São Paulo - SP - Brasil
-Caixa Postal 15.136-S ão Paulo-SP-01599-970-Fone (0**11)3207-7099-F ax (0**11)3209-1255-
www.cep.org.br - cep@cep.org.br

Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas


Editor: Cláudio Antônio Batista Marra
Para Lu e Peter
continuam a ser companheiros
na longa obediência
SUMÁRIO

P r e f á c io 7

Comemorando vinte anos de existência


1 D is c ip u l a d o 9

O que o fa z pen sar que pode apostar corrida contra cavalos?


2 A r r e p e n d im e n t o 17

Estou fa d a d o a viver em Meseque


3 P r o v id ê n c ia 25

D eus o gu arda de todo e qualquer m al


4 C ulto 33

Vamos à Casa de Deus


5 S er v iç o » 41

Como servos... Estamos vigiando e aguardando


6 A ju d a 49

Ah. bendito seja D eus! Ele não f o i em bora e não nos abandonou
7 S egurança 57

D eus está em volta de seu p o v o


8 A leg r ia 67

Nós rimos, nós cantamos


9 T rabalho . 75

Se D eus não edificar a casa


1 0 F e l ic id a d e 83

Delicie-se com a bênção! Deleite-se com a bondade!


11 P e r s e v e r a n ç a 91

Nunca conseguiram me dominar


1 2 E sperança 101

Eu oro a Deus... e aguardo o que ele dirá efa rá


13 H u m il d a d e

Conservei os p és no chão
1 4 O b e d iê n c ia

Como ele prometeu a Deus


1 5 C o m u n id a d e

Como óleo de unção precioso descendo pela cabeça e


16 B ênção

Levantem suas mãos em louvor


U m a L o n g a O b e d iê n c ia

Um Epílogo
N o ta s
PREFACIO

Comemorando Vinte Anos de Existência

os vinte anos desde que escrevi este livro, mudanças enormes

N ocorreram em todas as áreas no mundo inteiro e por toda a


igreja. Percebo que ouço constantemente e de quase todas as
direções que eu corro o risco de me tornar irrelevante se não me mantiver a
par dos últimos avanços em computadores e aparelhos e transporte e mídia.
Por esse motivo, ao sentar-me para revisar Uma Longa Obediência na
Mesma Direção para essa edição do vigésimo aniversário [a primeira em
português], estava preparado para fazer muitas mudanças.
Acontece que não fiz quase nenhuma. Acaba tendo algumas coisas que
não mudam. Deus não muda: ele busca e ele salva. E nossa resposta a Deus
como se revela em Jesus não muda: nós escutamos e nós seguimos. Ou não
seguimos. Quando estamos lidando com o básico — Deus e nossa neces­
sidade de Deus — nós estamos no fundamento. Começamos cada dia no
começo, sem nenhum adorno.
Portanto, nesta nova edição, o livro sai praticamente como eu o escrevi
no início. Acrescentei um epílogo, no propósito de reafirmar os modos em
que a Bíblia e a oração se fundem para dar energia e direção para aqueles de
nós que se põe a caminho para seguir Jesus. Alguns nomes célebres foram
substituídos por novos (as celebridades mudam bem depressa!), e mudei
algumas referências a atualidades. Mas ficou quase que só nisso. E animador
perceber mais uma vez que não temos que estudar o mundo em volta ansio­
samente para nos manter em dia com Deus e seus modos de agir conosco.
A mudança mais aparente foi o uso de uma nova tradução da Bíblia,
The Message, [“A Mensagem”] na qual venho trabalhando desde a publi­
cação de Uma Longa Obediência. De fato, os quinze “Cânticos de Subida”
[ao Templo, nas Festas] (SI 120— 134) que aqui fornecem o texto para o
desenvolvimento do “discipulado numa sociedade instantânea” forneceram
o impulso para embarcar na nova tradução. Tudo que pensei a princípio foi
traduzir os Salmos para a linguagem idiomática norte-americana que eu
ouvia as pessoas usando nas ruas, nos shoppings e nos jogos de futebol. Eu
8 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

sabia que seguir Jesus nunca poderia se tornar uma “longa obediência”
sem uma vida de oração cada vez mais profunda, e que os Salmos sempre
foram o principal meio pelo qual os cristãos aprendiam a orar tudo o que
viviam e viver tudo o que oravam, numa continuidade de tempo.
Mas as pessoas que eu via em volta não oravam os Salmos. Isso me
intrigava; os cristãos sempre oraram os Salmos; por que não os meus amigos
e vizinhos? Então percebi que era porque a linguagem, cadenciada, bela e
harmônica, parecia estar muito distante da vida diária deles. No entanto,
quando esses Salmos foram orados e escritos pelos nossos ancestrais hebreus,
eles eram de ritmo tão desigual, desarrumado e destoante como qualquer
coisa que vivenciamos hoje. Eu queria traduzi-los do seu hebraico original
e transmitir a energia crua, desigual, tosca e forte que é tão característica
dessas orações. Eu queria que as pessoas começassem a orá-los de novo,
não que apenas os admirassem de longe; e que assim aprendessem a orar
tudo o que vivenciavam e sentiam e pensavam à medida que seguiam Jesus,
não só aquilo que achavam ser apropriado para orar na igreja.
E aconteceu que a conseqüência não intencionada de escrever Uma
Longa Obediência na Mesma Direção foi essa nova tradução dos Cânticos
de Subida, e depois todos os Salmos e o Novo Testamento (e finalmente a
Bíblia inteira). A inclusão dessa tradução nesta nova edição completa o
livro de uma forma que eu não poderia ter previsto há vinte anos.
1
D is c ip u l a d o
O que o faz pensar que pode apostar
corrida contra cavalos?

Se você se esgota nessa corrida a p é com homens, o que


o fa z pensar que pode competir contra cavalos?
JEREMIAS 12.5

A coisa essencial “no céu e na terra ” é. . .


que haja uma longa obediência na mesma
direção; assim resulta, e sempre
resultou no final, algo que
já fe z a vida valer a pena.

FRIEDRICH NIETZSCHE,
BEYOND GOODAND EVÍL [ALÉM DO BEM E DO MAL]
ste mundo não é amigo da graça. Uma pessoa que assume um

E compromisso com Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador não


encontra uma multidão se formando imediatamente para aplaudir
a decisão, nem amigos antigos se reunindo espontaneamente à sua volta para
dar os parabéns e aconselhamento. Comumente nada é diretamente hostil,
mas há um acúmulo de desaprovação e indiferença agnóstica que constitui,
assim mesmo, uma oposição espantosamente pavorosa.
Uma velha tradição classifica as dificuldades que enfrentamos na vida de
fé nas categorias de mundo, carne e diabo.1 Estamos, na maioria, bem alertados
sobre os perigos da carne e das artimanhas do diabo. Suas tentações têm um
formato definível e mantêm uma continuidade histórica. Isso não os torna nem
um pouco mais fáceis de resistir, mas sim mais fáceis de serem reconhecidos.
O mundo, contudo, é multiforme: cada geração tem o mundo com o qual
tratar numa forma nova. Mundo é uma atmosfera, um estado de espírito.2 E
quase tão difícil um pecador reconhecer as tentações do mundo como é para o
peixe reconhecer impurezas na água. Há uma impressão, um sentimento, de
que as coisas não estão certas, de que o ambiente não é íntegro, mas exatamente
o que é escapa à análise. Sabemos que a atmosfera espiritual em que vivemos
corrói a fé, dissipa a esperança e corrompe o amor, mas é difícil apontar
exatamente para o que está errado.

Turistas e Peregrinos
Um aspecto de mundo que eu pude identificar como sendo prejudicial para
os cristãos é a presunção de que qualquer coisa que vale a pena pode ser
adquirida imediatamente. Achamos que se algo pode ser feito, pode ser feito
rápida e eficientemente. Nossos períodos de atenção foram condicionados pelos
comerciais de trinta segundos. Nosso senso de realidade foi achatado pelas
condensações de trinta páginas.
Não é difícil num mundo desses conseguir que uma pessoa fique interessada
na mensagem do evangelho; é terrivelmente difícil sustentar o interesse. Milhões
de pessoas, na nossa cultura se decidem a favor de Cristo, mas há uma porcen­
tagem de desgaste terrível. Muitos afirmam ter nascido de novo, mas a evidência
de um discipulado cristão maduro é fraca. Em nosso tipo de cultura, qualquer
coisa, até notícia sobre Deus, pode ser vendida se tiver embalagem novinha;
mas quando perde a novidade, vai para o lixo. Há um grande mercado para a
12 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

experiência religiosa no nosso mundo; há pouco entusiasmo pela paciente


aquisição de virtude, pouca vontade de assinar o contrato de uma longa
aprendizagem naquilo que gerações cristãs anteriores chamavam de santidade.
No nosso tempo, a religião foi tomada pela mentalidade de turista. A religião
é entendida como sendo uma visita a um local atraente quando temos tempo
disponível. Para alguns é um passeio semanal à igreja; para outros, visitas
ocasionais a cultos especiais. Alguns, com inclinação para entretenimento
religioso e diversão sagrada, planejam a vida em torno de eventos especiais
como retiros, concentrações e conferências. Vamos para ver uma nova perso­
nalidade, ouvir uma nova verdade, obter uma nova experiência e assim de
alguma forma ampliar nossa vida que sem alguma novidade seria monótona. A
vida religiosa é definida como a mais recente e a mais nova: Zen, curas de fé,
potencial humano, parapsicologia, vida de sucesso, coreografia no santuário,
Armagedom. Nós tentamos qualquer coisa — até que apareça alguma novidade.
Não sei como tem sido para pastores de outras culturas e dos séculos
anteriores, mas estou bem certo que para um pastor numa cultura ocidental
no raiar do século 21, o aspecto do mundo que toma o trabalho de guiar cristãos
no caminho da fé mais difícil é o que Gore Vidal analisou como sendo “a
paixão de hoje pelo imediato e o casual”.3 Todo mundo está com pressa. As
pessoas que eu dirijo em culto, entre as quais eu aconselho, visito, oro, prego
e ensino, querem atalhos. Querem que eu as ajude a preencher o formulário
que lhes proporcionará crédito instantâneo (na eternidade). São impacientes
por resultados. Adotaram o estilo de vida de um turista e só querem os pontos
altos. Mas o pastor não é um guia de turismo. Não tenho interesse em contar
narrações religiosas apócrifas em e sobre sítios sagrados de identificação
dúbia. A vida cristã não consegue amadurecer sob essas condições e essas
tais maneiras.
Friedrich Nietzsche, que viu essa área de verdade espiritual pelo menos
com grande clareza, escreveu: “A coisa essencial ‘no céu e na terra’ é... que
haja uma longa obediência na mesma direção; com isso resulta, e sempre
resultou no final, algo que fez a vida valer a pena”.4 E essa “longa obediência
na mesma direção” que o espírito do ambiente do mundo faz tanto para
desencorajar.
Para reconhecer e resistir à correnteza dos caminhos do mundo, há duas
designações bíblicas dadas às pessoas de fé que são extremamente úteis:
discípulo eperegrino. Discípulo (mathetes) diz que somos pessoas que passamos
nossa vida conectados como aprendizes ao nosso mestre, Jesus Cristo. Estamos
sempre num relacionamento de crescimento-aprendizado. Um discípulo é
alguém que aprende, mas não no ambiente acadêmico de uma sala de aula, e
sim no lugar de trabalho de um artífice. Não adquirimos informações sobre
Deus, mas sim habilidades na fé.
DISCIPULADO 13

Peregrino (parepidêmos) nos diz que somos pessoas que passam a vida
indo para algum lugar, indo para Deus, e cujo meio para chegar lá é o caminho,
Jesus Cristo. Reconhecemos que “este mundo não é meu lar” e saímos rumo “à
casa do Pai”. Abraão, que “saiu” é nosso arquétipo, nosso modelo. Jesus, em
resposta à pergunta de Tomé “Senhor, não sabemos para onde vais. Como o
Senhor espera que conheçamos o caminho?” fornece o roteiro: “Eu sou a
Estrada, também a Verdade, também a Vida. Ninguém chega ao Pai à parte de
mim” (Jo 14.5,6). A carta aos Hebreus define nosso programa: “Você vê o que
isso significa — todos esses pioneiros que abriram a estrada, todos esses
veteranos encorajando-nos a seguir em frente com seus aplausos? Significa
que é melhor seguir em frente. Despojar-nos, começar a correr — e nunca
desistir! Nada de gordura espiritual extra, nada de pecados parasíticos. Con­
servar os olhos em Jesus, que tanto começou como terminou essa corrida na
qual estamos” (Hb 12.1,2).

Um hinário gasto
No trabalho pastoral de treinamento das pessoas em discipulado e acompa­
nhamento delas em peregrinação, eu descobri, guardadinho no Saltério He breu,
um velho hinário gasto. Usei-o para providenciar continuidade em guiar outros
no caminho cristão e em dirigir pessoas de fé no esforço consciente e contínuo
que evolui em maturidade em Cristo. O velho hinário é chamado, em hebraico,
shiray hammaloth — Cânticos de Subida. Os hinos são os salmos de números
120 a 134 do livro dos Salmos. Esses quinze salmos provavelmente eram
cantados, talvez em seqüência, pelos peregrinos hebreus enquanto subiam para
Jerusalém às grandes festas de culto religioso. Topograficamente Jerusalém
era a cidade mais alta da Palestina, e por isso todos os que viajavam para lá
passavam muito do seu tempo subindo.5 Mas a ascensão não era só literal, era
também uma metáfora: a viagem a Jerusalém dramatizava uma vida vivida
para cima em direção a Deus, uma existência que avançava de um nível a outro
no amadurecimento que se desenvolvia — o que Paulo descreveu como sendo
“o alvo, onde Deus está nos acenando para seguirmos adiante — para Jesus”
(Fp 3.14).
Três vezes por ano os hebreus fiéis faziam essa viagem (Ex 23.14-17;
34.22-24). Os hebreus foram um povo cuja salvação foi realizada no êxodo,
cuja identidade foi definida no Sinai e cuja preservação foi assegurada nos
quarenta anos de caminhadas no deserto. Como povo dessa natureza, eles subiam
a estrada para Jerusalém regularmente para cultuar. Refrescavam suas memórias
a respeito das operações salvíficas de Deus na Festa da Páscoa no começo do
verão; respondiam como comunidade abençoada ao melhor que Deus tinha
para eles na Festa de Tabernáculos no outono. Eles eram um povo redimido,
um povo comandado, um povo abençoado. Essas realidades fundamentais eram
14 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

pregadas e ensinadas e comemoradas nas festas anuais. Entre uma festa e outra
o povo vivia essas realidades no discipulado diário até que chegasse o tempo
de subir à cidade serrana novamente, como peregrinos para renovar a aliança.
Esse retrato dos hebreus cantando esses quinze salmos quando deixavam
sua rotina de discipulado e se encaminhavam dos povoados e vilas, das
fazendas e cidades, como peregrinos subindo a Jerusalém já se fixou na ima­
ginação devocional cristã. É como nosso melhor pano de fundo para entender
a vida como uma jornada de fé.
Sabemos que o nosso Senhor desde menino viajava a Jerusalém para as
festas anuais (Lc 2.41,42). Continuamos a nos identificar com os primeiros
discípulos que “iam de caminho para Jerusalém. Jesus ia mais à frente, e eles o
seguiam, perplexos e não pouco temerosos” (Mc 10.32). Também nós esta­
mos perplexos e um pouco temerosos, porque há maravilha sobre inesperada
maravilha nessa estrada, e há fantasmas temíveis para se encontrar. Cantar os
quinze salmos é uma maneira de expressar a maravilhosa graça e aquietar os
temores da ansiedade.
Não há melhores “cânticos para a estrada” para os que percorrem o
caminho da fé em Cristo, uma estrada que tem tantas ligações com o caminho
de Israel. Visto que dos itens essenciais do discipulado cristão, muitos (não
todos) estão fazendo parte desses cânticos, eles fornecem um meio de
lembrarmos quem somos e para onde estamos indo. Eu não busquei produzir
exposições eruditas desses salmos e sim oferecer meditações práticas que
usam esses cânticos para estímulo, encorajamento e direção. Se aprendemos
a entoá-los bem, podem ser uma espécie de vade mecum para o andar diário
de um cristão.

Entre tempos
Paul Tournier, em A Placefor You [“Um Lugar para Você”] descreve a
experiência de estar entre — entre a hora em que saímos de casa e chegamos
ao nosso destino; entre a época em que deixamos a adolescência e chegamos
à idade adulta; entre o tempo em que deixamos a dúvida e chegamos à fé.6
E como o momento em que o artista do trapézio solta a barra e está num
ponto no meio do espaço, pronto para agarrar outro suporte: é um tempo de
perigo, de expectativa, de incerteza, de excitamento, de estar extraor­
dinariamente vivo.
Os cristãos reconhecerão o quanto esses salmos podem ser cantados entre
os tempos: entre o momento de deixar o ambiente do mundo e chegar à assem­
bléia do Espírito; entre a hora em que deixamos o pecado e chegamos à santi­
dade; entre a hora em que saímos de casa na hora do culto no domingo de
manhã e chegamos à igreja com o grupo do povo de Deus; entre a hora em que
deixamos as obras da lei e chegamos à justificação pela fé. São cânticos de
DISCIPULADO 15

transição, breves hinos que fornecem coragem, apoio e direção interior para
levar-nos aonde Deus está nos dirigindo em Jesus Cristo.
Enquanto isso o mundo sussurra: “Por que se preocupar? Há muito para
gozar com alegria sem se envolver com tudo isso. O passado é um cemitério —
deixe-o para lá; o futuro é um holocausto — evite-o. Não existe salário para o
discipulado, não existe destino para a peregrinação. Consiga Deus do modo
rápido; compre o carisma instantâneo”. Mas outras vozes falam — se não
mais encantadoramente, pelo menos mais verdadeiramente. Thomas Szasz, na
sua terapia e nos seus escritos, procurou avivar o respeito por aquilo que ele
denomina “a mais simples e mais antiga das verdades humanas: a saber, que a
vida é uma luta árdua e trágica; que aquilo que chamamos de “sanidade mental”,
o que queremos dizer com “não ser esquizofrênico”, tem muito a ver com
competência, ganha ao se lutar por excelência; com compaixão, ganha
duramente ao se confrontar o conflito; e com modéstia e paciência, adquiridas
por meio do silêncio e do sofrimento”.7 O testemunho dele valida a decisão
daqueles que se comprometem a explorar o mundo dos Cânticos de Subida,
que procuram tirar sabedoria dessa mina e cantá-los para se alegrar.
Sem dúvida, como Isaías descreveu, esses salmos foram usados dessa maneira
pelas multidões que diziam: “Venham, subamos o monte do Senhor, vamos à
Casa do Deus de Jacó. Ele nos mostrará o modo em que ele opera para podermos
viver da maneira em que somos feitos” (Is 2.3). Também são evidência daquilo
que Isaías prometeu quando disse: “Vocês cantarão! Cantarão durante toda uma
noite de festa santa; seus corações romperão em cântico, farão música como o
sonido de flautas em desfile, na sua jornada à montanha de Deus, no seu caminho
à Rocha de Israel” (Is 30.29).
Todos aqueles que viajam pela estrada da fé requerem ajuda de tempos em
tempos. Precisamos ser alegrados quando o espírito esmorece; precisamos de
direção quando o caminho não está claro. Uma das “pequenas orações” de
Paul Goodman expressa nossas carências:

Na alta via que vai rumo à morte


pesam os passos, não anseio chegar
àquela cidade, mas pouca paciência
faz longa essa rota em que tenho de andar.

— Ensine-me um canto de viagem, ó Mestre,


um cântico para a marcha assim
como gritávamos, nós, os meninos
quando eu era escoteiro mirim.8
16 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Para aqueles que escolhem não mais viver como turistas mas como
peregrinos, os Cânticos de Subida combinam toda a alegria de uma canção de
viagem com a praticidade de um livro guia de viagem e um mapa. Sua brevidade
é descrita de modo excelente por William Faulkner. “Não são monumentos, e
sim pegadas. Um monumento só diz: ‘Pelo menos cheguei até aqui’, enquanto
uma pegada diz: ‘Foi aqui que eu estive quando eu me movi novamente’.”9
2
A r r e p e n d im e n t o
“Estou fadado a viver em Meseque ”

Estou em apuros. Clamo a D eus

desesperado p or uma resposta:

“L ivra -m e d o s m entirosos, D eus !,

Sorriem tão docemente mas mentem a não mais p o d e r”.

Sabem o que vem em seguida, vocês enxergam o que está para vir,
vocês todos, mentirosos descarados?

Setas agudas e brasas vivas

serão sua recompensa.

Estou fadado a viver em Meseque,

amaldiçoado com um lar em Quedar.

Minha vida inteira vivida acampando


entre vizinhos briguentos.

Eu sou inteiramente pela paz; mas no momento

em que eu lhes digo isso, eles j á vão à guerra!

SALMO 120

Antes que um homem possa fa zer as coisas precisa haver


coisas que ele não fará.

MÊNCI O
s pessoas submersas numa cultura apinhada de mentiras e malícia

A sentem-se como se estivessem afundando nela: não podem acreditar


em nada do que ouvem, nem confiar em ninguém que encontram.
Esse descontentamento com o mundo como ele é será o preparo para viajar no
caminho do discipulado cristão. O descontentamento, acoplado a uma ânsia por
paz e verdade, pode colocar-nos num caminho peregrino de inteireza em Deus.
Uma pessoa precisa estar totalmente aborrecida com o modo em que estão
as coisas para encontrar a motivação para partir no caminho cristão. Enquanto
pensarmos que a próxima eleição poderá eliminar o crime e estabelecer a justiça
ou que um novo avanço científico poderá salvar o meio ambiente, ou outro
aumento de salário pode nos dar o empurrãozinho para sair da ansiedade para
uma vida tranqüila, não é provável que nos arrisquemos nas árduas incertezas
da vida de fé. O indivíduo tem que estar farto com os modos do mundo antes
que ele ou ela adquira um apetite pelo mundo da graça.
O Salmo 120 é o cântico da pessoa assim, doente com as mentiras e mutilada
pelo ódio, uma pessoa encolhida de dor a respeito do que se passa no mundo.
Mas não é um mero berro, é uma dor que penetra junto com o desespero e esti­
mula um novo começo — uma viagem a Deus que se torna uma vida de paz.
Os quinze Cânticos de Subida descrevem elementos comuns a todos aqueles
que se comprometem a viajar no caminho cristão. Este, o primeiro deles, é a
aguilhoada que os impulsiona a começar. Não é uma canção linda— nada nela
é impressionantemente melancólico ou liricamente feliz. É dura. É dissonante.
Mas faz começar as coisas.

Mentiras sem erro


Estou em apuros é a frase inicial. A última palavra é guerra. Não é um
cântico feliz, mas é um cântico franco e necessário.
Os homens estão alinhados um contra o outro. As mulheres altercam vio­
lentamente entre si. Somos ensinados a disputar desde o ventre. O mundo está
inquieto, sempre louco por uma briga. Ninguém parece saber como viver com
relacionamentos saudáveis. Persistimos em transformar cada comunidade
numa seita, cada empreendimento numa guerra. Reconhecemos, em mo­
mentos fugidios, que fomos criados para algo diferente e melhor — “Sou todo
pela paz” — mas não há confirmação dessa percepção no nosso ambiente,
nenhum incentivo para isso na nossa experiência. “Sou todo pela paz, mas no
minuto em que eu lhes digo isso, eles vão à guerra!”
20 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

A angústia que começa e conclui o cântico é o acordar doloroso para a


realidade que não pode mais ser evitada de que mentiram para nós. O mundo,
na realidade, não é como foi representado para nós. As coisas não estão bem
como estão, e em nada melhoram.
Contaram-nos a mentira desde que nos podemos lembrar: os seres humanos
são basicamente bons e agradáveis. Todo mundo nasceu igual e inocente e
auto-suficiente. O mundo é um lugar agradável, harmonioso. Nascemos livres.
Se carregamos cadeias agora, é culpa de alguém, e nós podemos corrigir isso
apenas com um pouquinho mais de inteligência ou de esforço ou de tempo.
Como conseguimos continuar a crer nisso depois de tantos séculos de
evidência ao contrário é o que é difícil compreender, mas nada que fazemos e
nada que outra pessoa nos faz parece desencantar-nos do feitiço da mentira.
Continuamos a esperar que as coisas melhorem de alguma maneira. E quando
não melhoram, choramingamos como crianças mal-acostumadas que não
conseguem o que querem. Acumulamos ressentimento que se armazena em ira
e irrompe em violência. Convencidos pela mentira que o que estamos viven-
ciando não é natural, que é uma exceção, nós inventamos modos de escapar da
influência do que outras pessoas nos fazem saindo de férias com tanta freqüência
quanto possível. Quando as férias terminam, voltamos novamente ao fluxo
das coisas, nossa ingenuidade renovada de que tudo vai acabar bem — somente
para sermos mais uma vez surpreendidos, machucados, aturdidos quando
não acaba. A mentira (“tudo está bem”) encobre e perpetua o mal profundo,
disfarça a violência, a guerra, a voracidade.
A conscientização cristã começa com o reconhecimento dolorido de que
aquilo que nós presumimos ser a verdade é realmente uma mentira. A oração é
imediata: “Livra-me dos mentirosos, Deus! Sorriem tão docemente, mas mentem
a não mais poder”. Salva-me das mentiras dos anunciantes que afirmam saber
o que eu preciso e o que desejo, das mentiras dos que oferecem entretenimento,
que prometem um caminho barato para a alegria, das mentiras dos políticos
que fingem instruir-me sobre o poder e a moralidade, das mentiras dos
psicólogos que oferecem moldar meu comportamento e meus princípios morais
para que eu viva uma vida longa, com felicidade e sucesso, das mentiras dos
beatos que “curam superficialmente as feridas deste povo”, das mentiras dos
moralistas que fingem promover-me à posição de capitão do meu destino, das
mentiras de pastores que “se livram do mandamento de Deus para você não ser
incomodado ao seguir as modas religiosas!” (Mc 7.8). Salva-me da pessoa que
me conta sobre a vida e omite Cristo, que é sábia quanto aos caminhos do
mundo e ignora o mover do Espírito.
As mentiras são impecáveis. Elas não contêm erros. Não há distorções ou
dados falsificados. Mas elas são mentiras assim mesmo, porque elas alegam
contar-nos quem somos e omitem tudo sobre a nossa origem em Deus e nosso
ARREPENDIMENTO 21

destino era Deus. Falam-nos sobre o mundo sem nos contar que Deus o fez.
Falam-nos sobre nosso corpo sem dizer-nos que ele é templo do Espírito
Santo. Instruem-nos em amor sem contar-nos sobre o Deus que nos ama e
que se deu por nós.

Relâmpagos iluminando as encruzilhadas


A palavra Deus ocorre apenas duas vezes neste salmo, mas é a chave do
todo. Deus, uma vez admitido na consciência, enche todo o horizonte. Deus,
revelado na sua obra criativa e redentora, expõe à luz todas as mentiras. No
momento em que a palavra Deus é pronunciada, a mentira agigantada do mundo
é exposta — vemos a verdade. A verdade a meu respeito é que Deus me fez e
ele me ama. A verdade sobre aqueles que se sentam ao meu lado é que Deus os
fez e Deus os ama, e portanto cada um é meu próximo. A verdade sobre o
mundo é que Deus o governa e o mantém. A verdade sobre o que está errado
com o mundo é que eu e o próximo sentado ao meu lado pecamos ao recusar
deixar Deus ser por nós, sobre nós e em nós. A verdade sobre o que está no
centro de nossa vida e de nossa história é que Jesus Cristo foi crucificado na
cruz por nossos pecados e levantado do túmulo para nossa salvação e que nós
podemos participar em vida nova à medida que cremos nele, aceitamos sua
misericórdia, respondemos ao seu amor, atendemos aos seus mandamentos.
John Baillie escreveu: “Estou certo que o trecho da estrada que mais precisa
ser iluminado é o ponto em que ela se bifurca”.' O Deus do salmista é um
relampejar de raio que ilumina justamente esse tipo de bifurcação. O Salmo
120 é a decisão de escolher um caminho em oposição a outro. E o ponto crucial
que marca a transição de uma nostalgia sonhadora para uma vida melhor a uma
peregrinação dura de discipulado em fé, a mudança de reclamar sobre como as
coisas estão más e ir atrás de todas as coisas boas.
Essa decisão é falada e cantada em todos os continentes e todas as línguas.
A decisão foi tomada em todo tipo de vida em cada século na longa história da
humanidade. A decisão é quietamente (e às vezes não tão quietamente)
anunciada de milhares de púlpitos cristãos em todo o mundo a cada domingo.
A decisão é testemunhada por milhões, em lares, fábricas, escolas, empresas,
escritórios e campos todos os dias de cada semana. As pessoas que tomam a
decisão e se deleitam com ela são as pessoas chamadas cristãs.

Um Não que é um Sim


O primeiro passo em direção a Deus é um passo de distanciamento das
mentiras do mundo. É uma renúncia às mentiras que nos foram contadas sobre
nós mesmos e nossos próximos e nosso universo. “Estou fadado a viver em
Meseque, amaldiçoado com um lar em Quedar. Minha vida inteira vivida
22 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

acampando entre vizinhos briguentos”. Meseque e Quedar são nomes de lugares:


Meseque uma tribo longínqua, a milhares de quilômetros da Palestina no sul
da Rússia; Quedar uma tribo beduína conhecida como não-civilizada e rude,
ao longo das fronteiras de Israel. Representam os estranhos e hostis. Parafra­
seando, a exclamação é: “Eu vivo no meio de valentões e selvagens; este mundo
não é meu lar, e eu quero sair daqui”.
A palavra bíblica usual que descreve o não que dizemos às mentiras do
mundo e o sim que dizemos à verdade de Deus é arrependimento. E sempre
e em toda parte a primeira palavra da vida cristã. A pregação de João Batista
era “Arrependam-se, porque está próximo o reino dos céus” (Mt 3.2). A
primeira pregação de Jesus foi a mesma: “Arrependam-se, porque está
próximo o reino dos céus” (Mt 4.17). Pedro concluiu seu primeiro sermão
com “Arrependam-se, e sejam batizados” (At 2.38). No último livro da Bíblia
a mensagem à sétima igreja é “sejam zelosos e arrependam-se” (Ap 3.19).
O arrependimento não é uma emoção. Não é ficar triste pelos próprios
pecados. É uma decisão. É decidir que você errou ao supor que conseguiria
gerir sua própria vida e ser seu próprio deus; é decidir que você errou ao pensar
que você possuía, ou poderia conseguir, a força, a educação e o treinamento
para se arranjar sozinho; é decidir que lhe contaram uma porção de mentiras
sobre você mesmo e seus vizinhos e seu mundo. E decidir que Deus em Jesus
Cristo está lhe dizendo a verdade. O arrependimento é a percepção de que
aquilo que Deus quer de você e que você quer de Deus não será alcançado se
continuar a fazer as mesmas coisas de sempre, a pensar os mesmos pensamentos
de sempre. Arrependimento é uma decisão de seguir Jesus Cristo e tornar-se
peregrino dele no caminho da paz.
Arrependimento é a mais prática de todas as palavras e o mais prático de
todos os atos. E um tipo de palavra concreta. Põe a pessoa em contato com a
realidade que Deus cria. Elie Wiesel, referindo-se às histórias do Hasidim, diz
que nos contos de autoria de Israel de Rizhim um motivo aparece repetidamente:
Um viajante perde o caminho na floresta; é escuro e ele teme. O perigo esconde-
se atrás de cada árvore. Uma tempestade quebra o silêncio. O tolo olha para o
relâmpago, o sábio para a estrada que ali está — iluminada — à sua frente.2
Sempre que dizemos não a um modo de vida a que há muito nos acos­
tumamos, há dor. Mas quando o modo de vida é realmente um caminho de
morte, um caminho de guerra, quanto mais depressa o abandonamos, melhor.
Há uma condição que por vezes se desenvolve em nosso corpo chamada
aderências — partes de nossos órgãos internos aderem a outras partes. Essa
irregularidade tem de ser corrigida por procedimento cirúrgico — uma
intervenção decisória. O procedimento fere, mas os resultados são sadios.
Como a Bíblia de Jerusalém coloca nos versículos 3,4: “Como ele [Deus]
repagará o juramento falso? / de uma língua desleal/ Com flechas endurecidas
ARREPENDIMENTO 23

de guerra/ sobre carvão em rubra brasa viva!” A sentença seca de Emily


Dickinson é uma epígrafe: “Renúncia — a virtude lancinante!”
As flechas de Deus são juízos lançados para provocar o arrependimento. A
dor do juízo evocado contra malfeitores poderia desviá-los de seus modos
enganosos e violentos para se unirem ao nosso peregrino no caminho da paz.
Qualquer ferimento que nos ponha no caminho da paz, libertando-nos para
buscar, em Cristo, a vida eterna vale a pena. É a ação que segue a percepção de
que a História não é um beco sem saída, a culpa não é um abismo. E a descoberta
de que há sempre um caminho que leva para fora da aflição — um caminho
que começa no arrependimento, ou no voltar-se para Deus. Onde quer que
encontremos o povo de Deus vivendo em aflição, há sempre alguém que fornece
essa palavra carregada de esperança, mostrando a realidade de um dia diferente:
“Naquele dia, haverá uma estrada do Egito até a Assíria, os assírios terão livre
acesso ao Egito, e os egípcios, à Assíria. Não mais rivais, adorarão juntos os
egípcios com os assírios” (Is 19.23). Tudo o que Israel conhecia da Assíria era
a guerra — a visão os mostra em adoração. O arrependimento é o agente
catalítico para a mudança. O desânimo é transformado naquilo que um profeta
posterior descreveria como evangelho.
Toda a história de Israel é acionada por dois atos desse tipo de rejeição do
mundo, que libertaram o povo para uma afirmação de Deus, “a rejeição da
Mesopotâmia nos dias de Abraão e a rejeição do Egito nos dias de Moisés”.3
Toda a sabedoria e a força do mundo antigo estavam na Mesopotâmia e no
Egito. Mas Israel disse não a eles. A despeito do prestígio, da grandeza alardeada
e inconteste, havia algo fundamentalmente discrepante e falso nessas culturas:
“Eu sou inteiramente pela paz; mas no momento em que eu lhes digo isso, eles
já vão à guerra!” O poder mesopotâmico e a sabedoria egípcia eram força e
inteligência divorciadas de Deus, usadas para os fins errados e produzindo
todos os resultados errados.
As interpretações modernas da História são variações das mentiras dos
mesopotâmicos e dos egípcios em que, como o descreve Abraham Heschel,
“o homem reina supremo, com as forças da natureza como seus únicos adver­
sários possíveis. O homem está só, livre e fortalecendo-se. Deus ou não existe
ou não se interessa. E a iniciativa humana que faz a história, e é principal­
mente pela força que as constelações mudam. O homem pode alcançar sua
própria salvação”.4
Então Israel disse não e tornou-se um povo peregrino, escolhendo um
caminho de paz e justiça através de campos de batalha da mentira e da violência,
encontrando um caminho para Deus através do labirinto do pecado.
Sabemos que Israel, ao dizer aquele não, não voltou miraculosamente para
o Éden e viveu em inocência primitiva, nem habitou misticamente numa cidade
celestial e viveu em êxtase sobrenatural. Trabalharam, divertiram-se, sofreram
24 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

e pecaram no mundo como todos os demais homens fizeram, e como os cristãos


ainda fazem. Mas agora estavam indo para algum lugar — iam para Deus. A
verdade de Deus explicava a vida deles, a graça de Deus preenchia a vida
deles, o perdão de Deus renovava a vida deles, o amor de Deus abençoava a
vida deles. O não os soltava para uma liberdade que era diversa e gloriosa. O
juízo de Deus invocado contra os povos de Meseque e Quedar foi, realmente,
um convite em palavras duras para que se arrependessem e um pedido para
que se unissem na jornada.
Entre as páginas mais fascinantes da história americana há aquelas que
contam as histórias dos imigrantes que chegaram à costa do continente no
século 19. Milhares e mais milhares de pessoas, cujas vidas na Europa haviam
se tornado ruins e pobres, perseguidas e infelizes, saíram de lá. Tinham ouvido
falar de um lugar onde se podia fazer um novo começo. Tinham relatos de
uma terra em que o ambiente era um desafio em vez de uma opressão. As
histórias continuam a ser contadas em muitas famílias, conservando viva a
memória do acontecimento que transformou em americano quem era alemão,
ou italiano ou escocês.
Meu avô saiu da Noruega há cem anos no meio de uma fome. Sua esposa e
dez filhos ficaram para trás até que ele pudesse retornar para buscá-los. Ele
chegou em Petersburgo e trabalhou nas usinas siderúrgicas por dois anos até
ter dinheiro suficiente para voltar e trazer a família. Quando veio com ela não
ficou em Petersburgo, embora essa cidade tivesse servido bem a seus objetivos
da primeira vez; prosseguiu viagem para Montana, arriscando-se numa terra
nova, procurando um lugar melhor.
Em todas essas histórias de imigrantes há uma mistura de fuga e aventura:
a fuga de uma situação infeliz, a aventura de uma situação de vida bem melhor,
de estar livre para novas coisas, aberto ao crescimento e à criatividade. Todo
cristão tem alguma variação sobre esse tema de imigrante para contar.
“Estou fadado a viver em Meseque, amaldiçoado com um lar em Quedar.
Minha vida inteira vivida acampando entre vizinhos briguentos.” Mas não temos
que viver mais lá. Arrependimento, a primeira palavra na imigração cristã, nos
coloca no caminho para a viagem na luz. É uma rejeição que também é uma
aceitação, uma partida que se desenvolve numa chegada, um não ao mundo
que é um sim para Deus.
3
P r o v id ê n c ia
“Deus o guarda
de todo e qualquer mal”

Elevo os olhos p a ra os montes;


minha fo rça vem dos montes?
Não, m inha f o r ç a vem de D eus,
que f e z céu, e terra, e m ontes.
E le não deix a rá que vo cê tropece,
seu D eus d a g u a rd a n ão c a irá no sono,
De modo algum!
O Guardião de Israel não cochilará nem dormirá.
D eu s é o seu Guardião,
bem a seu lado pa ra protegê-lo — Cobrindo-o da insolação,
protegendo-o de aluamento.
D eus o g u a rd a d e to d o mal,
ele g u a rd a a su a p r ó p r ia vida,
Ele o guarda quando você sai, e quando retorna,
ele o guarda agora, ele o guarda sempre.

SALMO 121
Mas desviar-se da verdade por amor a alguma perspectiva de esperança

nossa nunca pode ser sábio, p or ínfimo que seja o desvio.

Não é o nosso ju ízo da situação

que poderá nos mostrar o que é sábio,

mas só a verdade da Palavra de Deus.


Aqui somente está a promessa da fidelidade e ajuda de Deus.

Sempre será verdade que o rumo mais sábio para o discípulo

é dirigir-se sempre e somente pela Palavra de Deus com toda simplicidade.

DIETRICH BONHOEFFER
o momento em que dizemos não ao mundo e sim a Deus, todas

N as nossas questões são resolvidas, todas as nossas perguntas são


respondidas, todos os nossos problemas acabam. Nada pode per­
turbar a tranqüilidade da alma que está em paz com Deus. Nada pode interferir
na segurança bendita de que tudo está bem entre mim e meu Salvador. Nada, e
ninguém, pode atrapalhar o relacionamento prazeroso que foi estabelecido
pela fé em Jesus Cristo. Nós cristãos fazemos parte daquele grupo privilegiado
de pessoas que não sofrem acidentes, que não discutem com o cônjuge, que
não são mal entendidos por seus pares, cujos filhos não desobedecem a eles.
Se quaisquer dessas coisas nos ocorrem — uma dúvida esmagadora, uma
explosão de ira, uma solidão desesperada, um acidente que nos coloca no
hospital, um bate-boca que nos põe em maus lençóis, uma rebeldia que nos põe
na defensiva, um mal-entendido em que nos saímos mal — é sinal de que há
algo errado no nosso relacionamento com Deus. Isso significa que retiramos,
de modo consciente ou inconsciente o sim que dissemos a Deus; e Deus,
impaciente com a nossa fé volúvel, distanciou-se para cuidar de alguém que
merece mais a atenção dele.
É essa a sua crença? Se é, eu tenho uma notícia incrivelmente boa para
você. Você está enganado.
Às vezes, o fato de alguém dizer que estamos errados é um constrangimento,
até uma humilhação. Queremos correr e esconder a cara de vergonha. Mas há
ocasiões em que descobrir que estamos errados é um alívio repentino e imediato,
e podemos erguer nossa cabeça com esperança. Não temos mais que ficar
obstinadamente tentando fazer algo que não está funcionando.
Há poucos anos eu estava no meu quintal com meu aparador de grama
virado de lado. Estava tentando tirar a lâmina para poder afiá-la. Eu estava
com a minha maior chave de porca segurando a porca, mas esta não se movia.
Peguei um cano de um metro e vinte e posicionei-o em cima do cabo da chave
empregando-a como alavanca, com a pressão adicional do meu corpo — e ela
ainda não se moveu. Peguei uma pedra grande e bati no cano. A essa altura eu
já começava a me alterar com meu cortador de grama.
Então, meu vizinho apareceu e disse que já tivera um cortador como o meu
e que, se estava bem lembrado, a rosca da porca ia no sentido contrário. Eu
inverti meus esforços e, deu certo, a porca se desenroscou facilmente.
Fiquei feliz de descobrir que eu estava errado. Isso me salvou da frustração
e do fracasso. Eu nunca teria conseguido fazer o serviço, por mais que tentasse,
fazendo-o do meu modo.
28 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

O Salmo 121 é uma voz mansa que nos diz gentil e bondosamente que
talvez estejamos errados quanto à maneira em que procuramos viver a vida
cristã; e então, de modo bem simples, nos mostra a maneira certa. Assim, ele é
a continuação necessária do salmo anterior, que nos inicia no caminho cristão.
Ele deu nomes aos sentimentos confusos e desnorteados de alienação e descon­
fiança que nos tomaram insatisfeitos e inquietos num caminho de vida que
ignora ou rejeita Deus e que nos impulsionaram ao arrependimento que renuncia
ao “diabo e a todas as obras dele” e afirma o caminho da fé em Jesus Cristo.
Mas nem bem nos lançamos, com expectativa e entusiasmo, no rio da fé
cristã, nosso nariz se enche de água e subimos à tona tossindo e engasgados.
Nem bem apressamos o passo confiantemente na estrada da fé, tropeçamos
num obstáculo e caímos na superfície dura, machucando nossos joelhos e
cotovelos. Para muitos, a primeira grande surpresa da vida cristã é na forma
das dificuldades que enfrentamos. Parece que não é bem o que tínhamos
previsto: esperávamos algo bem diferente; tínhamos a mente colocada no Éden
ou na Nova Jerusalém. Despertados rudemente, olhamos em redor buscando
socorro, buscando no horizonte alguém que nos auxilie: “Elevo os olhos para
os montes; será que minha força vem dos montes?”
O Salmo 121 é o vizinho que se aproxima e diz que nós começamos errado,
procuramos ajuda no lugar errado. O Salmo 121 é dirigido àqueles de nós que,
“desconsiderando Deus, procuram numa distância tudo em volta e fazem longos
e tortuosos rodeios em busca de corretivos para seus problemas”.1

Consultoria de viajantes
Três possibilidades de mal que os viajantes podem sofrer são mencionadas
no salmo. Uma pessoa que viaja a pé pode a qualquer momento pisar numa
pedra solta e torcer o tornozelo. Uma pessoa a pé, exposta por muito tempo a
um sol causticante, pode chegar a desmaiar de insolação. E uma pessoa viajando
grande distância a pé, sob a pressão de fadiga e ansiedade, pode ficar doente
emocionalmente, o que era descrito pelos antigos escritores como ficar aluado
(ou por nós como lunático). Podemos atualizar a lista de perigos. As provisões
de lei e ordem podem falhar com facilidade desalentadora: um louco com uma
arma na mão, um revólver ou um explosivo pode transformar os planos de
viagem computadorizados de trezentos passageiros da aviação numa anarquia
instantânea. A doença pode romper as defesas farmacêuticas e invadir nosso
corpo com dor paralisante e morte. Um acidente — de automóvel, numa escada
ou num campo esportivo — pode interromper sem aviso nossos planos elabo­
rados com tanto cuidado. Tomamos precauções aprendendo regras de segurança,
usando o cinto de segurança e fazendo apólices de seguro. Mas não podemos
garantir segurança.
Em referência a esses perigos o salmo diz: “Ele não deixará que você tropece,
. . . D e u s é o seu guardião... cobrindo-o da insolação, protegendo-o de aluamento”.
Será que devemos concluir que os cristãos nunca torcem o tornozelo, nunca
PROVIDÊNCIA 29

sofrem insolação, nunca têm problemas emocionais? Pelo visto é isso. Contudo,
conhecemos muitos exemplos ao contrário. Alguns dos melhores cristãos que
eu conheço já torceram o tornozelo, desmaiaram, tiveram esgotamento nervoso.
Nesse caso, ou eu estou errado (essas pessoas que achei que eram cristãs não
eram e o salmo, portanto, não se aplica a elas) ou o salmo está errado (Deus
não faz o que o salmo afirma).

Ajuda dos Montes?


Mas não se descarta tão facilmente nem o salmo nem a nossa experiência.
Um salmo que tem tido por tanto tempo uma alta estima entre os cristãos deve
encerrar uma verdade que é confirmada no viver cristão. Voltemos ao salmo: A
pessoa iniciada na vida de fé cai em problemas, procura em volta o auxílio
(“Elevo os olhos para os montes”) e faz uma pergunta: “Minha força vem dos
montes?” Quando essa pessoa de fé volta os olhos para os montes em busca de
ajuda, o que ele, ou ela, vai ver?
Um cenário magnífico, para começar. Há algo mais inspirador do que a
silhueta de uma cordilheira contra o céu? Há alguma parte desta terra que
prometa mais em termos de majestade e força, de firmeza e solidez, do que as
montanhas? Mas um hebreu veria algo mais. Durante a época em que esse
salmo foi escrito e cantado, a Palestina estava infestada de culto pagão popular.
Muito dessa religião era praticado nos altos dos montes. Eram colocados
santuários, bosques de árvores eram plantados, a prostituição sagrada de ambos
os sexos era providenciada; as pessoas eram atraídas aos santuários para se
envolverem em atos de culto que aumentassem a fertilidade da terra, fizessem
a pessoa sentir-se bem, protegesse a pessoa do mal. Eram oferecidos remédios,
proteções, feitiços e encantamentos contra todos os perigos da estrada. Você
teme o calor do sol? Vá ao sacerdote do sol e pague pela proteção contra o
deus do sol. Teme a influência maligna da luz da lua? Vá à sacerdotisa da lua
e compre um amuleto. Você é assombrado pelos demônios que podem usar
qualquer pedregulho debaixo do seu pé para fazê-lo tropeçar? Vá ao santuário
e aprenda a fórmula mágica para impedir o dano. De onde me virá o socorro?
de Baal? do poste-ídolo (Aserá)l do sacerdote do sol? da sacerdotisa da lua?2
Devem ter sido uma turma miserável: imorais, doentes, bêbados — impos­
tores e fraudulentos, todos eles. As lendas de Baal estão cheias dos contos de
suas orgias, a dificuldade de acordá-lo de um sono bêbado para conseguir sua
atenção. Elias escarnecendo dos sacerdotes de Baal (“Será que ele não dormiu
demais e precisa ser despertado?” 1 Reis 18.27) é a evidência. Mas indignos
ou não, prometiam ajuda. Um viajante em apuros ouviria a oferta deles.
Essa é a espécie de coisa que um hebreu, tendo partido no caminho da fé há
dois mil e quinhentos anos, teria visto nos montes. É o que os discípulos ainda
vêem. Uma pessoa de fé depara com tribulação e grita “Socorro!” Erguemos
30 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

nossos olhos aos montes, e ofertas de ajuda, instantâneas e numerosas, aparecem.


“Minha força vem dos montes?” Não. “Minha força vem de D e u s , que fez céu,
e terra, e montes.”
Olhar para os montes em busca de socorro acaba em desapontamento. Apesar
de toda sua majestade e beleza, toda sua força e firmeza silente, eles são apenas
montes. E apesar de todas as suas promessas de segurança contra os perigos da
estrada, todos os atrativos de seus sacerdotes e sacerdotisas, são, afinal de
contas, mentiras. Como Jeremias o expressou: “Na verdade, os outeiros são
uma ilusão, as orgias nas montanhas” (Jr 3.23-RSV).3
E assim o Salmo 121 diz não. Rejeita um culto à natureza, uma religião de
estrelas e flores, uma religião que aproveita o melhor daquilo que encontra nos
montes; em vez disso olha para o Senhor que fez os céus e a terra. A ajuda vem
do Criador, não da criação. O Criador está sempre acordado: ele nunca cochila
ou dorme. Baal tirava longos cochilos, e uma das tarefas dos sacerdotes era
acordá-lo quando alguém precisava de sua atenção — e eles nem sempre tinham
êxito. O Criador é Senhor sobre o tempo: ele o guarda quando você sai, e
quando retoma”, seus começos e seus términos. Ele está com você quando
você anda no caminho dele; ele ainda o acompanha quando você chega ao seu
destino. E você, nesse meio-tempo, não precisa buscar a ajuda suplementar do
sol ou da lua. O Criador é Senhor sobre todas as forças naturais e sobrenaturais:
ele os criou. O sol, a lua e as rochas não têm nenhum poder espiritual. Não são
capazes de infligir-nos mal: não precisamos temer um ataque sobrenatural de
nenhum deles. “ D e u s o guarda de todo mal.”
A promessa do salmo — e tanto os hebreus como os cristãos sempre o
leram assim — não é que nunca iremos dar uma topada com os dedos do pé,
mas que nenhum ferimento, nenhuma doença, nenhum acidente, nenhuma an­
siedade terá poder maléfico sobre nós, isto é, poderá separar-nos dos propósitos
de Deus para nós.
Nenhuma literatura é mais realista e honesta em enfrentar os duros fatos da
vida do que a Bíblia. Em nenhum momento há a menor sugestão que a vida de
fé nos isente de dificuldades. O que a Palavra promete é a preservação de todo
o mal no meio delas. Em cada página da Bíblia há o reconhecimento de que a
fé depara com problemas. O sexto pedido da Oração do Senhor é “Não nos
deixe cair em tentação, mas livre-nos do mal”. Essa oração é respondida todos
os dias, às vezes várias vezes por dia, na vida daqueles que percorrem o caminho
da fé. São Paulo escreveu: “Nenhuma provação ou tentação que apareça no
seu caminho será mais forte do que as que outros já tiveram de enfrentar. Tudo
de que você precisa lembrar é que Deus nunca o desapontará; ele nunca deixará
que seja pressionado além de seu limite; ele sempre estará lá para ajudá-lo a
passar por ela” (1 Co 10.13).
Três vezes o Salmo 121 refere-se a Deus pelo nome pessoal Yahweh, traduzido
como D e u s. Oito vezes ele é descrito como o guardião, ou aquele que guarda.
Ele não é um executivo impessoal dando ordens lá de cima; ele é uma ajuda
PROVIDÊNCIA 31

presente a cada passo do caminho que viajamos. Você acha que o modo de contar
a história da jornada cristã é descrever seus problemas e tribulações? Não é.
É dizer o nome e descrever o Deus que nos preserva, acompanha e governa.
Toda a água em todos os oceanos não pode afundar um navio a não ser que
entre nele. Nem toda a dificuldade do mundo pode nos machucar a não ser que
entre em nós. Essa é a promessa do salmo: “D e u s o guardará de todo mal”. Não
é o demônio na pedra solta, não é o ataque feroz do deus do sol, não é a influência
da deusa da lua — nada disso pode separar você do chamado e do propósito de
Deus. Desde o tempo do seu arrependimento que o tirou de Quedar e Meseque
até o tempo de sua glorificação com os santos no céu, você está seguro: “D e u s o
guarda de todo mal”. Nenhuma das coisas que lhe acontecem, nenhuma das
dificuldades que você encontra tem algum poder para se colocar entre você e
Deus, diluir a graça dele em você, distrair a vontade dele de você (ver Rm
8.28,31,32).
O único erro sério que podemos fazer quando vem a doença, quando a
ansiedade ameaça chegar, quando o conflito perturba nossos relacionamentos
com os outros é concluir que Deus se cansou de cuidar de nós e desviou sua
atenção para um cristão mais empolgante, ou que Deus se aborreceu de nossa
obediência divagadora e decidiu deixar-nos lutar sozinhos por um tempo, ou
que Deus ficou muito ocupado cumprindo uma profecia no Oriente Médio
para ter tempo agora para endireitar o enrosco em que conseguimos nos colocar.
Esse é o único erro sério que podemos cometer. E o erro que o Salmo 121
evita: o erro de supor que o interesse de Deus por nós oscila de acordo com a
nossa temperatura espiritual.
O grande perigo do discipulado cristão é que nós tenhamos duas religiões:
um evangelho glorioso e bíblico que nos liberta do mundo, que na cruz e na
ressurreição de Cristo toma a eternidade viva em nós, um evangelho magnífico
de Gênesis, Romanos e Apocalipse; e depois, uma religião de cada dia com
que nos arranjamos durante a semana entre a hora de sair do mundo e chegar
no céu. Guardamos o evangelho do domingo para as grandes crises da existência.
Para as trivial idades mundanas — as horas em que nosso pé escorrega numa
pedra solta, ou o calor do sol está demais para nós, ou a influência da lua nos
abate — usamos a religião de cada dia do livrinho de auto-ajuda, o conselho
de um amigo, a coluna de nosso comentarista predileto, a sabedoria alardeada
de uma celebridade entrevistada. Praticamos a religião do convincente vendedor
do elixir da felicidade. Sabemos que Deus criou o universo e executou nossa
salvação eterna. Mas não conseguimos crer que ele se digne a assistir à novela
das nossas tentações e tribulações de cada dia; então compramos nossos próprios
remédios para isso. Pedir que ele trate daquilo que nos perturba diariamente é
como pedir a um famoso cirurgião que ponha desinfetante num arranhão.
Mas o Salmo 121 diz que a mesma fé que funciona nas grandes coisas
funciona nas pequenas coisas. O Deus de Gênesis 1 que das trevas tirou a luz é
também o Deus do dia de hoje que o guarda de todo mal.
32 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Companheiro de viagem
A vida cristã não é um retiro solitário num jardim onde podemos caminhar
e conversar com o nosso Senhor sem interrupções, não é uma viagem fantástica
a uma cidade celestial onde podemos comparar nossas taças e medalhas de
ouro com as de outras pessoas da roda de campeões. Supor isso, ou esperar
isso, é virar a porca no sentido contrário. A vida cristã é ir até Deus. Ao ir a
Deus os cristãos percorrem o mesmo terreno que todos os outros percorrem,
respiram o mesmo ar, bebem da mesma água, fazem compras nas mesmas lojas,
lêem os mesmos jornais, são cidadãos sob o mesmo governo, pagam os mesmos
preços para alimentos e gasolina, temem os mesmos perigos, estão sujeitos às
mesmas pressões, sofrem as mesmas aflições, são enterrados no mesmo chão.
A diferença é que a cada passo que caminhamos, a cada fôlego que tomamos,
sabemos que somos preservados por Deus, sabemos que somos acompanhados
por Deus, sabemos que somos governados por Deus; portanto, sejam quais
forem as dúvidas que suportamos ou os acidentes por que passamos, o Senhor
nos guardará de todo mal, ele guardará a nossa própria vida. Conhecemos a
verdade do hino de Lutero:
Se nos quisessem devorar
Demônios não contados,
Não nos iriam derrotar.
Nem ver-nos assustados.
O príncipe do mal,
Com seu plano infernal,
Já condenado está!
Vencido cairá
Por uma só palavra.NT

Nós cristãos cremos que a vida é criada e modelada por Deus e que a vida
de fé é explorar diariamente os meios constantes e incontáveis em que a graça
e o amor de Deus são vivenciados.
O Salmo 121, aprendido cedo e cantado repetidamente no andar com
Cristo, define claramente as condições sob as quais vivemos nosso discipulado
— que, numa palavra, é Deus. Uma vez que conseguimos colocar esse salmo
no nosso coração será impossível supormos de modo pessimista que ser cristão
é uma batalha sem fim contra forças agourentas que a qualquer momento
podem irromper e vencer-nos. A fé não é uma questão incerta de escapar por
acaso dos ataques satânicos. É a experiência sólida, maciça, segura de Deus,
que impede todo mal de penetrar dentro de nós, que guarda a nossa vida, que
guarda-nos quando saímos e quando retornamos, que nos guarda agora, que
nos guarda sempre.
4
CULTO
“Vamos à Casa de Deus”

Q u an do d issera m “ Vamos à ca sa d e D eu s ”,
meu c o ra ç ã o sa lto u d e alegria.
E agora estamos aqui, ó Jerusalém,
dentro dos muros de Jerusalém!
Jerusalém, cidade bem-construída,
construída como lugar de adoração!
A cidade à qual as tribos sobem,
todas as tribos de D eus sobem para cultuar,
Para dar graças ao nome de D eus —
isso é o que significa ser Israel.
Tronos para justo juízo
estão colocados ali, fam osos tronos de Davi.
Orem p ela p a z de Jerusalém!
Prosperidade a todos vocês que amam Jerusalém!
Habitantes amigos, vivam em harmonia!
Forasteiros hostis, guardem distância!
Por amor de minha fam ília e amigos,
Eu o digo de novo: vivam em paz!
P o r a m o r à c a sa d e n o sso D eus, D eus,

Farei o meu melhor pelo senhor.

SALMO 122
Há algo moralmente repugnante nas teorias

ativistas modernas que negam a contemplação e nada reconhecem

a não ser a luta. Para eles nem um só momento

tem valor em si, mas é apenas um meio para o que vem a seguir.

NICOLAS BERDYAEV
ma das aflições do trabalho pastoral é a de ouvir, sem fazer careta,

U todas as desculpas que as pessoas dão como motivo de não irem à


igreja:
“Minha mãe me obrigava quando eu era pequeno.”
“Há hipócritas demais na igreja.”
“É o único dia que eu tenho para dormir até mais tarde.”
Houve tempo quando eu respondia a essas declarações com argumentos
simples que as expunham como sendo desculpas bem fracas. Depois notei que
não fazia diferença. Se eu mostrava que uma desculpa era inadequada, mais
três apareciam em seu lugar. Então eu não respondo mais. Eu escuto (bem
sério) e vou para casa e oro para que essa pessoa um dia encontre a razão única
e suficiente de ir à igreja, que é Deus. Eu me ocupo do meu trabalho desejando
que aquilo que eu faço e digo seja usado pelo Espírito Santo para criar naquela
pessoa uma decisão de adorar a Deus numa comunidade cristã.
Muitas pessoas fazem isso, sim: decidem adorar a Deus, fiel e devotada­
mente. É um dos atos importantes numa vida de discipulado. E muito mais
interessante do que as razões (as desculpas) que as pessoas dão para não cultuar
é a descoberta das razões por que o fazem.
O Salmo 122 é o cântico de uma pessoa que decide ir à igreja e prestar culto
a Deus. E uma amostra do fenômeno complexo, diverso e mundial de culto que
é comum a todos os cristãos. É um excelente exemplo do que acontece quando
uma pessoa presta culto.
O Salmo 122 é o terceiro da seqüência dos Cânticos de Subida. O Salmo
120 é o salmo de arrependimento — aquele que nos tira de um ambiente de
engano e hostilidade e nos coloca no caminho de Deus. O Salmo 121 é o salmo
de confiança — uma demonstração de como a fé resiste aos remédios popu­
lares fajutos para as dificuldades e tribulações e resolutamente confia que Deus
fará o seu querer e guardará de todo mal em meio à dificuldade. O Salmo 122
é o salmo de culto — uma demonstração daquilo que as pessoas de fé em toda
parte sempre fazem: reúnem-se num certo lugar e adoram ao seu Deus.

Um exemplo da média
O primeiro versículo pega muitos de surpresa: “Quando disseram ‘Vamos à
casa de D e u s ’, meu coração saltou de alegria”. Mas não devia. O culto é a
coisa mais popular que os cristãos fazem. Muita coisa daquilo que chamamos
de comportamento cristão já se tornou parte de nosso sistema legal e está
embutido em nossas expectativas sociais, ambas as coisas tendo fortes elementos
36 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

de coerção. Se tirássemos todas as leis da sociedade e eliminássemos todas as


conseqüências dos atos anti-sociais, não saberíamos quantos assassinatos,
quantos roubos, quantos perjúrios e falsificações ocorreriam. Mas sabemos
que muito daquilo que comumente descrevemos como comportamento cristão
não é volitivo de modo nenhum — é imposto por lei.
Mas o culto não é imposto. Cada pessoa que cultua faz isso porque ele ou
ela quer fazê-lo. Há, certamente, alguma coerção temporária — crianças e
cônjuges que freqüentam a igreja porque outra pessoa decidiu que devem. Mas
essas coerções têm vida curta, alguns anos rto máximo. A maioria da adoração
cristã é voluntária.
Um excelente modo de testar os valores das pessoas é observar o que nós
fazemos quando não temos que fazer nada, como passamos nosso tempo de lazer,
o que fazemos com nosso dinheiro extra. Mesmo numa época em que a freqüên­
cia aos cultos não é considerada estar em crescimento na América do Norte, os
números impressionam. Há mais pessoas no culto em qualquer domingo, por
exemplo, do que há em todos os jogos de futebol ou campos de golfe ou pescando
ou fazendo passeios ecológicos. O culto é o ato mais popular nessa terra.
Então, quando ouvimos o salmista dizer: “Quando disseram ‘Vamos à casa
de D e u s ’, meu coração saltou de alegria”, não estamos ouvindo o falso entu­
siasmo de um propagandista à procura de uma audiência maior para o culto;
estamos testemunhando o que é típico da maioria dos cristãos na maioria dos
lugares na maioria das vezes. Não é uma exceção à qual aspiramos; é um exem­
plo da média comum.

Uma estrutura
Por que o fazemos? Por que há tanto culto voluntário e fiel da parte dos
cristãos? Por que é que nunca achamos uma vida cristã sem que haja, por trás
em algum lugar, um ato de culto, nunca encontramos comunidades cristãs sem
encontrar também o culto cristão? Por que o culto é o pano de fundo comum de
toda existência cristã, e por que é tão fiel e voluntariamente praticado? O salmo
destaca três itens: o culto nos dá uma estrutura funcional para a vida; o culto
supre nossa necessidade de estar em relacionamento com Deus; o culto centra
nossa atenção nas decisões de Deus.
O culto dá-nos uma estrutura funcional para a vida. O salmo diz: “Jerusalém,
cidade bem-construída, construída como lugar de adoração! A cidade à qual as
tribos sobem, todas as tribos de D e u s sobem a cultuar”. Jerusalém, para um
hebreu, era o lugar de adoração (só incidentalmente era o centro geográfico do
país e a sede política de autoridade). As grandes festas de culto às quais todo
mundo ia pelo menos três vezes por ano eram realizadas em Jerusalém. Em
Jerusalém tudo o que Deus disse era lembrado e celebrado. Quando você ia a
Jerusalém, você encontrava as grandes realidades fundamentais: Deus o criou,
CULTO 37

Deus o redimiu, Deus providenciou para você. Em Jerusalém você via no ritual
e ouvia proclamada na pregação a verdade poderosa que formou a História:
que Deus perdoa nossos pecados e possibilita vivermos sem culpa e com pro­
pósito. Em Jerusalém todos os fragmentos dispersos da experiência, todos os
pedacinhos e partes da verdade, do sentimento e da percepção foram ajuntados
num único todo.
A versão da Bíblia inglesa ( k j v ) traduz esta sentença assim: “Jerusalém é
construída como uma cidade que é compacta junto”. A Coverdale anterior
havia traduzido esta última frase como “que está em unidade consigo mesma”.
A própria cidade é uma espécie de metáfora arquitetural para aquilo que o
culto é: Todas as peças de alvenaria se ajustam compactamente, todas as pedras
da construção se unem harmoniosamente. Não havia pedras soltas, pedaços
sobrando, nada de espaços desajeitados nas paredes ou torres. Era bem construí­
da, compactamente, habilmente “em unidade consigo mesma”.
O que era verdade quanto à arquitetura era verdade também socialmente,
pois a sentença continua: “à qual as tribos sobem, todas as tribos de Deus”. No
culto todas as diferentes tribos funcionavam como um só povo em relacio­
namento harmônico. No culto, embora cheguemos de lugares diferentes e
condições várias, demonstramos estar atrás das mesmas coisas, dizendo as
mesmas coisas, fazendo as mesmas coisas. Com todos os nossos diferentes
níveis de inteligência e prosperidade, de passado e língua, de rivalidades e
ressentimentos, ainda assim no culto reunimo-nos num só todo. Disputas
externas e desentendimentos e diferenças perdem a importância ao se
demonstrar a unidade interna daquilo que Deus constrói no ato do culto.
Quando uma pessoa está confusa e as coisas recusam ajustar-se, às vezes
isso anuncia a necessidade de sair do barulho e turbulência, afastar-se da correria
só para “encaixar as peças”, ajustar-se à situação. Quando ela consegue fazer
isso, está tudo lá, nada sobra, nada está fora de proporção, tudo se ajusta numa
estrutura tratável.
Quando entrei numa casa para uma visita pastoral, a pessoa que eu tinha
ido ver estava sentada a uma janela bordando um tecido preso num bastidor
oval. Ela disse: “Pastor, enquanto estava esperando o senhor, percebi o que
está errado comigo — eu não tenho um bastidor para me dar estrutura. Meus
sentimentos, meus pensamentos, minhas atividades — tudo está solto e mal
arrumado. Não há limites na minha vida. Nunca sei onde estou. Preciso de uma
moldura para minha vida como esta que tenho para o meu bordado”.
Como conseguimos essa moldura, aquele senso de estrutura sólida para que
saibamos onde estamos e possamos assim fazer nosso trabalho com facilidade
e sem ansiedade? Os cristãos vão para o culto. Semana após semana entramos
no lugar construído compactamente, “para onde as tribos sobem”, e obtemos
uma definição operacional para a vida: o modo como Deus nos criou, os modos
como ele nos dirige. Sabemos onde estamos.
38 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Uma ordem
Outra razão pela qual os cristãos continuam a voltar para cultuar é que
isso supre nossa necessidade de estar em relacionamento com Deus. O culto
é o lugar onde obedecemos à ordem de louvar a Deus: “Dar graças ao nome
de D e u s — é isto que significa ser Israel”. Este mandamento de dar graças
passa pelo centro de todo o culto cristão. Um decreto. Uma palavra dizendo-nos
o que devemos fazer, e que isso que devemos fazer é louvar.
Quando pecamos e estragamos nossa vida, descobrimos que Deus não vai
•embora e nos deixa — ele entra em nosso problema e nos salva. Isso é bom, um
exemplo daquilo que a Bíblia chama de evangelho. Descobrimos razões e
motivações para viver em fé e descobrir que Deus já está nos ajudando a fazer
isso — e que é bom. Louvado seja o Senhor Deus! “Um cristão”, escreveu
Agostinho, “deve ser um aleluia da cabeça aos pés.” Essa é a realidade. Essa é
a verdade da nossa vida. Deus nos fez, nos remiu, provê por nós. A resposta
natural, honesta, saudável, lógica para isso é louvor a Deus. Quando louvamos
estamos funcionando no centro, estamos em contato com a realidade básica,
central do nosso ser.
Mas muitas vezes não sentimos vontade e por isso dizemos: “Seria desonesto
eu ir a um local de culto e louvar a Deus quando não sinto vontade. Eu seria um
hipócrita”. O salmo diz: Eu não me importo se você está com vontade ou não:
foi decretado ( r s v , inglês), “renderem graças ao nome de D e u s ” .
Eu pus grande ênfase no fato de que os cristãos cultuam porque querem,
não porque são forçados. Mas eu nunca disse que prestamos culto porque sen­
timos vontade. Os sentimentos são grandes mentirosos. Se os cristãos cultuassem
somente quando sentem vontade, haveria pouquíssimo culto. Os sentimentos
são importantes em muitas áreas, mas não se pode confiar neles nem um pouco
em matéria de fé. Paul Scherer é lacônico a respeito: “A Bíblia fala muito
pouco sobre como nos sentimos”.1
Vivemos na época que um escritor chamou de “idade da sensação”.2 Achamos
que se não sentimos alguma coisa não pode haver autenticidade em fazer isso.
Mas a sabedoria de Deus diz algo diferente: que podemos agir para entrar num
novo modo de sentir muito mais depressa do que podemos sentir para entrar
num novo modo de agir. O culto é um ato que desenvolve sentimentos para
com Deus, não um sentimento para com Deus que é expresso num ato de culto.
Quando obedecemos à ordem de louvar a Deus em culto, nossa necessidade
essencial, profunda de estar em relacionamento com Deus é suprida.

Uma Palavra de Deus


Uma terceira razão para continuarmos a tomar parte em atos de culto regulares
é que nele nossa atenção está centrada nas decisões de Deus. Nosso salmo descreve
o culto como sendo o lugar onde “tronos para justo juízo estão colocados...
CULTO 39

famosos tronos de Davi”. A palavra bíblica juízo significa “a palavra decisiva


pela qual Deus endireita as coisas e as põe certas”. Tronos de juízo são os
lugares em que essa palavra é anunciada. O juízo não é só uma palavra sobre
coisas, descrevendo-as; é uma palavra que faz as coisas, pondo em movimento
o amor, aplicando a misericórdia, anulando o mal, ordenando a bondade.
Essa palavra de Deus está em toda parte no culto. Na chamada à adoração
ouvimos a primeira palavra de Deus dirigida a nós; na bênção ouvimos a última
palavra de Deus a nós; nas lições bíblicas ouvimos Deus falando aos nossos
pais na fé; no sermão ouvimos essa palavra explicada para nós; nos hinos, que
são, em maior ou menor extensão, paráfrases da Bíblia, a Palavra de Deus
torna nossas orações inteligíveis. Toda vez que cultuamos, nossa mente é
informada, nossa memória é revigorada com os juízos de Deus, ficamos
familiarizados com o que Deus diz, o que ele decidiu, os modos como ele está
elaborando nossa salvação.
Simplesmente não há lugar em que essas coisas possam ser feitas tão bem
como no culto. Se ficamos em casa a sós e lemos nossa Bíblia vamos perder muito,
porque nossa leitura será inconscientemente condicionada pela nossa cultura,
limitada por nossa ignorância, distorcida por preconceitos não notados. No culto
somos parte da “grande congregação” em que todos os escritores da Bíblia se diri­
gem a nós, em que os compositores dos hinos usam a música para expressar ver­
dades que nos tocam não só na mente como também no coração, em que o pregador
que acaba de viver seis dias de dúvida, dor, fé e bênção com os adoradores fala a
verdade da Escritura na linguagem da experiência atual da congregação toda.
Queremos ouvir o que Deus diz e o que ele diz a nós: o culto é o lugar onde a nossa
atenção está centrada nessas palavras pessoais e decisivas de Deus.

Paz e segurança
O culto, mesmo para aqueles que são mais constantes e fiéis, ocupa só uma
pequena porcentagem da vida de uma pessoa, uma hora, mais ou menos, por
semana. Será que isso faz diferença para o resto da semana? As palavras finais
do Salmo 122 dizem que faz: “Orem pela paz de Jerusalém! Prosperidade a
todos vocês que amam Jerusalém! Habitantes amigos, vivam em harmonia!
Forasteiros hostis, guardem distância! Por amor de minha família e de meus
amigos, eu o digo de novo: vivam em paz! Por amor à casa de nosso Deus,
D e u s , farei o meu melhor pelo senhor”. Aqui temos orações que transbordam
os limites da adoração e criam novos relacionamentos na cidade, na sociedade.
A primeira palavra, orem, é uma transição ao mundo de cada dia. Não é a
palavra comumente usada no culto formal, e sim a palavra hebraica para “pedir”.
Não é impropriamente traduzida “orem”, pois quando pedimos a Deus nós
oramos. Mas o pedir não é uma oração formal no santuário; é um pedir informal
à medida que cuidamos dos nossos afazeres entre um domingo e outro. É a
40 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

palavra hebraica que usaríamos para pedir um segundo pedaço de pão se ainda
estivéssemos com fome, ou para pedir orientação na rua se estivéssemos perdidos.
O culto não satisfaz nossa fome de Deus — dá mais apetite. Nossa neces­
sidade de Deus não é saciada por tomarmos parte no culto — fica mais profunda.
Extravasa aquela hora e permeia a semana. A necessidade é expressa num
desejo de paz e segurança. Nossas necessidades de cada dia são mudadas pelo
ato do culto. Não mais vivemos de modo imprevidente, lutando avidamente na
competição insana para fazer de uma magra existência o melhor que podemos.
Nossas necessidades básicas de repente tomam-se merecedoras da dignidade de
criaturas feitas à imagem de Deus: paz e segurança. As palavras shalom e shalvá
têm um jogo de sons com Jerusalém, yerushalayim, o lugar de culto, de adoração.
Shalom, “paz”, é uma das palavras mais ricas da Bíblia. É tão impossível
defini-la pelo seu sentido no dicionário quanto definir uma pessoa pelo número
do seu RG. Reúne todos os aspectos de completude que resultam do fato de a
vontade de Deus estar sendo completada em nós. E a operação de Deus que,
quando completa, libera correntes de água viva em nós e pulsa com a vida
eterna. Toda vez que Jesus curou, perdoou ou chamou alguém, temos uma
demonstração de shalom.
E shalvá, “prosperidade”. Nada tem a ver com apólices de seguros ou grandes
contas bancárias ou estoques de armas. O sentido da raiz é lazer — a postura
descontraída de alguém que sabe que tudo está bem porque Deus está acima de
nós, conosco e a favor de nós em Cristo Jesus. E a segurança de estar em casa
numa história que tem no centro uma cruz. E a descontração da pessoa que
sabe que cada momento da nossa existência está à disposição de Deus, vivida
sob a misericórdia de Deus.
O culto dá início a uma participação diária prolongada em paz e prosperidade
de modo que compartilhamos em nossa rotina de cada dia o que Deus iniciou e
continua em Jesus Cristo.

Uma pausa para afiar um instrumento


Vivemos numa era pragmática e hesitamos em fazer qualquer coisa se sua
utilidade prática não pode ser demonstrada. E inevitável que perguntemos com
respeito ao culto, vale a pena? Justifica-se o tempo, a energia e os custos
despendidos para reunir os cristãos em culto? Veja bem, o ceifeiro num dia de
verão, com tanto para cortar antes que o sol se ponha. Ele faz uma pausa no seu
trabalho — ele é um preguiçoso? Ele apanha sua pedra e começa a passá-la
para cima e para baixo na sua foice, fazendo rink-atink, rink-atink, rink-atink.
Será isso uma toada sem sentido — ele está desperdiçando momentos preciosos?
Quanto mais ele poderia ter cortado enquanto ficou tocando essas notas em
sua foice! Mas ele está afiando seu instrumento e fará muito mais quando
novamente der sua força àqueles movimentos longos que deitam o feno em
filas diante dele.3
5
S e r v iç o
“Como servos... Estamos vigiando e
aguardando”

Olho para o senhor, ó Deus que habita no céu,

olho ao senhor p o r ajuda,

Como servos, alertas aos mandados do mestre,

como a serva que atende à sua senhora,

Estamos vigiando e aguardando, prendendo a respiração,

esperando pela sua palavra de misericórdia.

Misericórdia, Deus, misericórdia!

Já fom os chutados por aí bastante,


Chutados nos dentes p or homens ricos complacentes,

chutados quando caídos p o r irracionais arrogantes.

SALMO 123
Em termos gerais, servir é dispor-se, trabalhar e fazer de modo que

uma pessoa age, não de acordo com seus próprios propósitos ou planos,

mas tendo em vista o propósito de uma outra pessoa e conforme a necessidade,

a disposição e o direcionamento de outros.

E um ato cuja liberdade é limitada e determinada pela liberdade do outro,

um ato cuja glória se torna cada vez maior na medida em que

o realizador não se preocupa com sua própria glória mas com

a glória do outro... E um ministerium Verbi divini,


que significa, literalmente, “atençãoprestimosa do servo à Palavra divina”.

A expressão “serviço” pode fa zer lembrar o fato

de que o conceito neotestamentário do diakonos

originalmente significava: “um copeiro”. [Nós] temos de servir à alta

majestade da Palavra divina, que é o próprio Deus como ele fa la na sua ação.

K ARL BARTH
V
medida que uma pessoa cresce e amadurece no caminho cristão, é

A necessário que adquira certas habilidades. Uma é o serviço. É uma


habilidade tão difícil de adquirir e sujeita a tantas incompreensões
que é necessário destacá-la para atenção especial de tempos em tempos.
O Salmo 123 é um exemplo de serviço. Neste aqui, como acontece com
tanta freqüência nos salmos, não somos instruídos sobre o que devemos fazer;
ao contrário, é-nos fornecido um exemplo daquilo que é feito. O salmo não é
uma advertência; é um cântico. Num salmo temos a evidência observável
daquilo que acontece quando uma pessoa de fé cuida da questão de crer e
amar e seguir a Deus. Não temos um livro de regulamentos que definem a
ação; o que temos é uma foto instantânea de jogadores no meio do jogo. No
Salmo 123 observamos aquele aspecto da vida de discipulado que ocorre sob
a forma dos préstimos de um servo.

Se Deus é Deus de alguma forma


“Eu olho para o senhor, Deus que habita no céu, olho ao senhor por ajuda.” O
culto começa com um olhar para cima, para Deus. Deus está sobre nós. Ele está
acima de nós. A pessoa de fé olha para Deus de baixo para cima, não para ele, e
nem de cima para baixo. O servo assume uma posição certa. Se ele ou ela deixa de
tomar aquela posição, a receptividade atenciosa aos mandados do mestre será difícil.
É fácil pegar a idéia errada, porque quando uma pessoa se torna cristã há
um novo senso de capacidade confiante e força assegurada. Além disso
recebemos promessas que nos dizem para ir em frente:
Peça, e receberá;
Procure, e encontrará;
Bata, e a porta se abrirá (Lc 11.9).
Deus se apresenta a nós na história de Jesus Cristo como um servo: com
isso diante de nós é fácil assumirmos o papel de mestre e começarmos a dar
ordens a ele. Mas Deus não é servo para ser chamado para agir quando nós
mesmos estamos cansados demais para fazer algo; ele não é um especialista
para ser chamado quando nos encontramos mal equipados para tratar de um
problema específico da vida. Paul Scherer escreve severamente sobre pessoas
que “fazem lobby” nas cortes do Todo-Poderoso atrás de favores especiais,
dando tapinhas no braço, amolando-o com pedidos. Deus não é um colega a
quem pedimos ocasionalmente que venha conversar conosco quando é conve-
44 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

niente para nós ou para nossa diversão. Deus não se tornou servo para nós
podermos dar-lhe ordens, e sim para que nós pudéssemos unir-nos a ele numa
vida redentora.
É freqüente demais pensarmos em religião como uma burocracia miste­
riosamente conduzida à qual solicitamos ajuda quando sentimos a necessidade.
Vamos a uma seção regional e instruímos o funcionário (às vezes chamado de
pastor) para preencher o nosso pedido para Deus. Então vamos para casa e
aguardamos que Deus seja entregue a nós conforme as especificações que
colocamos. Mas não é assim que funciona. E se pensássemos a respeito disso
durante dois minutos consecutivos, nós não iríamos querer que funcionasse
assim. Se Deus é Deus mesmo, ele deve saber mais sobre nossas necessidades
do que nós sabemos; se Deus é Deus mesmo, ele deve estar mais a par da
realidade dos nossos pensamentos, das nossas emoções, do nosso corpo do que
nós mesmos; se Deus é Deus mesmo, ele deve ter uma compreensão melhor
das inter-relações em nossas famílias e comunidades e nações do que nós temos.
“Deus que habita no céu.” Quando a Bíblia usa essa frase, o que faz com
freqüência, não está dizendo nada sobre geografia ou espaço. Os escritores
bíblicos não eram geógrafos nem astrônomos — eram teólogos. Eles descrevem
com grande exatidão o relacionamento entre Deus e pessoas como eu e você,
um relacionamento entre o Criador e a criatura; coordenam nosso conhecimento
do Deus que nos ama com nossa experiência de ser amado; contam a história
do Deus que nos conduz através de dificuldades e documentam-na com nossa
experiência de ser conduzido. Não nos é apresentado um deus funcional que
nos ajudará a sair de enroscadas ou um deus de entretenimento que aliviará as
horas de tédio. É-nos apresentado o Deus do êxodo e da Páscoa, o Deus do
Sinai e do Calvário. Se quisermos entender Deus, precisamos fazê-lo sob as
condições dele. Se quisermos ver Deus do modo como ele realmente é,
precisamos olhar para o local de autoridade — para a Bíblia e para Jesus Cristo.
E será que realmente o desejamos de outra maneira qualquer? Acho que
não. Logo passaríamos a desprezar um deus que poderíamos decifrar como um
quebra-cabeça ou aprender a usar como uma ferramenta. Não, se vale a pena
dar nossa atenção a Deus, ele precisa ser um Deus a quem olhamos de baixo
para cima — um Deus a quem temos de elevar os olhos: “Olho para o senhor,
Deus que habita no céu”.
No momento em que olhamos para Deus de baixo para cima (e não para ele
ou de cima para baixo) estamos na postura de servir.

Misericórdia, D e u s , Misericórdia!
Um segundo elemento no serviço tem a ver com a nossa expectativa. O que
acontece quando elevamos os nossos olhos a Deus em fé? Há um mistério
impressionante em Deus que nunca podemos penetrar completamente. Não
SERVIÇO 45

podemos definir Deus; não podemos empacotar Deus. Mas isso não significa
que nada sabemos sobre Deus. Não quer dizer que estamos completamente a
ver navios com Deus, nunca sabendo o que esperar, nervosamente agitados o
tempo todo, querendo saber o que ele poderia fazer.
Sabemos muito bem o que esperar, e o que esperamos é a misericórdia. Três
vezes a expectativa é pronunciada no Salmo 123. “Estamos vigiando e
aguardando, prendendo a respiração, esperando pela sua palavra de misericórdia.
Misericórdia, Deus, misericórdia!”
A convicção básica de um cristão é que Deus pretende o bem para nós e que
ele conseguirá a vontade dele em nós. Ele não nos trata conforme nós
merecemos, e sim de acordo com seu plano. Ele não é um oficial de polícia
fazendo a ronda, vigiando o universo, pronto para descer o cassetete se sairmos
da linha ou colocar-nos na cadeia se ficarmos descontrolados. Ele é um oleiro
trabalhando com o barro de nossa vida, formando e reformando até que, finalmente,
ele tenha moldado uma vida redimida, um vaso adequado para o reino.
“Misericórdia, D e u s , misericórdia!”: aprece não é uma tentativa de conseguir
que Deus faça o que ele não estaria disposto a fazer caso contrário, e sim um
estender-nos para aquilo que sabemos que ele faz, uma ânsia expressa por receber
o que Deus está fazendo em e por nós em Jesus Cristo. Em obediência nós oramos
“Misericórdia/ ” em vez de “Dá-nos o que queremos”. Oramos “Misericórdia! ”
e não “Recompense-nos por nossa bondade para que nossos vizinhos recoheçam
nossa superioridade”. Nós oramos ‘Misericórdia! ”e não “Castigue-nos por nossa
maldade para que nos sintamos melhor”. Nós oramos “Misericórdia!” e não
“Seja bom para nós porque temos sido pessoas tão boas”.
Vivemos sob a misericórdia. Deus não nos trata como estranhos forasteiros,
dispondo-nos um ao lado do outro para poder avaliar nossa competência ou
nossa utilidade ou nosso valor. Ele governa, guia, ordena, nos ama como crianças
cujos destinos ele leva consigo em seu coração.
A palavra misericórdia significa que o olhar para cima a Deus nos céus não
espera que Deus fique nos céus, mas que desça, entre em nossa condição, para
realizar o vasto empreendimento da redenção, para modelar em nós sua salvação
eterna. “A raiz significando ‘abaixar-se’, ‘inclinar-se’, foi conjectura”.1
Servidão não é uma vaga abstração na direção geral de Deus, e certamente não
é um terror amedrontado, encolhido sob o açoite de Deus. Subserviência é
específica em sua expectativa e o que ela espera é misericórdia.

Serviço urgente
Um terceiro elemento na vida de servo é a urgência: “Misericórdia. . . Já
fomos chutados por aí bastante,/ Chutados nos dentes por homens ricos
complacentes,/ chutados quando caídos por irracionais arrogantes”.
46 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

A experiência de servidão é recorrente através da história. E a experiência


nunca foi muito feliz. O salmista viveu numa cultura na qual escravo e servo
eram institucionalizados, como têm sido em diferentes épocas na história do
mundo. Até onde podemos saber, nunca funcionou muito bem. Poder gera
opressão. Os mestres se tornam preguiçosos e passam a desprezar aqueles que
lhes são subservientes. O grito “Já fomos chutados por aí bastante, chutados
nos dentes... chutados quando caídos” é acreditável. O salmo faz parte de uma
vasta literatura de clamor, uma ânsia por livramento de opressão.
Nós vivemos numa escravidão semelhante. E verdade que temos abolido,
nos países ocidentais, as formas institucionalizadas da escravidão e quase
eliminado a classe serva, mas a experiência de servidão ainda está entre nós e é
tão opressiva como sempre. A liberdade está nos lábios de todo mundo. A
liberdade é anunciada e celebrada. Mas não muitos sentem ou atuam como livres.
A evidência? Vivemos numa nação de reclamadores e uma sociedade de adidos.
Em todo lado para o qual viramos ouvimos queixas: não posso gastar meu dinheiro
da maneira que eu quero; não posso gastar meu tempo da forma que quero; não
posso ser eu mesmo; estou sob o controle de outros o tempo todo. E em todo
lugar encontramos os adidos— adidos ao álcool e drogas, aos hábitos compulsivos
de trabalho e ao consumismo obsessivo. Trocamos de mestres, continuamos
escravizados.
O cristão é uma pessoa que reconhece que nosso problema verdadeiro não
está em alcançar a liberdade, mas em aprender a servir sob um mestre melhor.
O cristão reconhece que todo relacionamento que exclui Deus torna-se
opressivo. Reconhecendo e percebendo isso, desejamos urgentemente viver
sob Deus como mestre.
Por tais razões todo serviço cristão envolve urgência. Servidão não é um
casual ficar parado por aí esperando por ordens. Nunca é sem método; é
necessidade urgente: “Fala, Senhor, porque teu servo ouve”. E o evangelho é
a boa-nova que as palavras de Deus, ordenando nova vida em nós, já estão em
nossos ouvidos; “aqueles que têm ouvidos para ouvir, que ouçam”.

Serviço racional
O melhor comentário do Novo Testamento sobre este salmo está na seção
final da carta de Paulo aos Romanos, capítulos 12 — 16. A seção começa com
esta sentença: “Então aqui está o que eu quero, que cada um de vocês faça,
Deus o ajudando: Pegue sua vida comum de cada dia — seu dormir, comer, ir
ao trabalho, e caminhar pela vida — e coloque-a diante de Deus como uma
oferta” (12.1). A ênfase do salmo em serviço real, físico (não uma intenção
espiritual, não um desejo de ser prestimoso) é percebida no convite para
apresentarmos nosso dia-a-dia, vida comum. A motivação para o serviço (sem
coerção), sem exigência, fica clara na frase “Deus os ajudando”. No entanto,
SERVIÇO 47

mais significante é a última frase tão notável logiken latreian, “coloque diante
de Deus como uma oferta”, que outra tradução dá como “serviço racional”.
Serviço, quer dizer, que faz sentido. A palavra latreia quer dizer “serviço”, o
trabalho que a pessoa faz no interesse da comunidade. Mas é também a base de
nossa palavra liturgia, o serviço do culto que rendemos a Deus. E é precisamente
esse serviço que é lógico, feito com a mente, a razão [serviço ‘racional’]. O
serviço que oferecemos a Deus (em adoração) se estende em atos específicos
que servem outros. Aprendemos um relacionamento ■ — uma atitude para com
a vida, uma atitude — de servidão diante de Deus, e então somos disponíveis
para ser de utilidade a outros em atos de serviço.
O salmo não tem nada em si sobre servir os outros. Concentra-se em ser
um servo de Deus. A posição do salmo é que se a atitude de ser servo é
aprendida, atendendo-se a Deus como Senhor, então servir outras pessoas irá
se desenvolver como um modo de vida muito natural. Serão ouvidas ordens
para ser hospitaleiros, para mostrar compaixão, para visitar os doentes, para
ajudar e para curar (ordens que Paulo reúne em Romanos 12 — 15 e muitos
outros lugares) e serão desempenhadas com facilidade e equilíbrio.
À medida que vivemos o que está implicado numa vida de serviço, somos
munidos constantemente de incentivo e exemplo por Jesus Cristo, que disse:
Vocês entendem o que eu lhes fiz? Vocês me chamam de “M estre”, e têm
razão nisso. É o que eu sou. Então se eu, o Mestre e Professor, lavei seus pés,
vocês devem agora lavar os pés uns dos outros. Eu coloquei um modelo para
vocês. O que eu fiz, façam vocês. Estou apenas apontando o óbvio. Um servo
não é avaliado superior a seu mestre; um empregado não dá ordens a seu
empregador. Se vocês entendem o que eu lhes digo, ajam assim — e vivam
uma vida abençoada (Jo 13.12-17).

A pessoa mais livre da terra


O povo de Deus é incentivado em toda parte e sempre a trabalhar pela
libertação de outros, ajudando-os a ficarem livres de qualquer forma de
servidão — religiosa, econômica, cultural, política ■ — que o pecado emprega
para mirrar ou frustrar ou restringir suas vidas. As promessas e cumprimentos
de liberdade são antifonais em toda a Escritura. O tema glorioso tem
documentação extensa na vida do povo de Deus. Mas há também, tristemente,
numerosos casos em nossa sociedade de pessoas que, tendo recebido sua
liberdade, têm-na desperdiçado, usando-a como “uma desculpa para fazer o
que quiserem” (G1 5.13), terminando numa escravidão pior. Pois liberdade é a
liberdade de viver como pessoas com amor por amor a Deus e ao próximo, não
uma licença para agarrar e empurrar. E a oportunidade de viver no nosso melhor
nível, “um pouco menor do que Deus” (SI 8.5 r s v ) , não como animais
desregrados. O trabalho de libertação deve ser acompanhado, portanto, de
48 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

instrução no uso da liberdade como filhos de Deus que “andam pelo Espírito”
(G1 5.25 r s v ; “no Espírito” a r a ) . Aqueles que ostentam a retórica da liberdade
mas desprezam a sabedoria do serviço não conduzem as pessoas para a gloriosa
liberdade dos filhos de Deus, e sim para uma miséria acanhada e cobiçosa.
À medida que o Salmo 123 ora a transição da opressão (“chutados nos
dentes por homens ricos complacentes”) à liberdade (esperando pela sua palavra
de misericórdia”) a uma nova servidão (“como servos, alertas aos mandados
do seu mestre”), ele nos coloca no caminho do aprendizado de como usar nossa
liberdade mais apropriadamente, sob o senhorio de um Deus misericordioso.
As conseqüências são todas positivas. Até hoje nunca ouvi um servo cristão
queixar-se da opressividade de sua servidão. Ainda não ouvi uma serva cristã
rebelar-se contra as restrições de seu serviço. Um servo cristão é a pessoa mais
livre da terra.
6
A ju d a
“Ah, bendito seja Deus!
Ele não foi embora e não nos abandonou ”

Se D eus não tivesse sido por nós


— todos juntos agora, Israel, cantem forte! —
S e D eus n ão tivesse sid o p o r nós
qu a n d o to d o s fo ra m con tra nós,
Teríamos sido engolidos vivos
pela ira violenta deles,
Levados pela enchente de raiva,
afogados na torrente;
Teríamos perdido nossas vidas
na água desenfreada, tempestuosa.
Ah, ben d ito s e ja D eus!
Ele não fo i embora e não nos deixou.
Ele não nos abandonou indefesos,
desamparados como um coelho numa matilha de cães a rosnar.
Fugimos voando de suas presas,
livres de suas armadilhas, livres como uma ave.
Do aperto estamos soltos,
já somos livres como um pássaro no vôo.
O fo r te nom e de D eus é n osso auxílio,

o m esm o D eus qu e f e z o céu e a terra.

SALMO 124
Deus é quase que intoleravelmente descuidado sobre cruzes e espadas,
arenas de luta e patíbulos, sobre todos os “males ” e todas as “pragas
Seu cuidar não significa que ele entra naquela de estofados!

PAUL SCHERER
u estava numa unidade móvel de doação de sangue para doar meu

E meio litro anual, e uma enfermeira me fez uma série de perguntas


para ver se havia qualquer motivo para desqualifícação. A pergunta
final da lista era “Seu emprego é de risco?” Eu disse: “Sim”.
Sua rotina ficou interrompida; ela ergueu os olhos para mim, um pouco
surpresa, porque eu estava usando uma gola clerical pela qual ela pôde me
identificar como ministro. Sua hesitação foi só de um momento; ela sorriu,
desconsiderou minha resposta e assinalou ‘não’ em seu questionário, dizendo:
“Não quero dizer esse tipo de risco”.
Eu gostaria de ter podido continuar a conversa, comparando o que ela supôs
que eu quis dizer com ser de risco com aquilo que eu de fato quis dizer com
isso. Mas não eram apropriados o momento e o lugar. Havia uma fila de pessoas
aguardando sua vez da agulhada.
Mas há horas e lugares apropriados para uma conversa exatamente assim, e
uma delas é quando os cristãos se deparam com o Salmo 124. O Salmo 124 é
um cântico de perigo — e de ajuda. Entre os Cânticos de Subida, cantados pelo
povo de Deus no seu caminho da fé, esse é um que melhor do que qualquer
outro descreve o trabalho perigoso de todo discipulado e declara o auxílio que
sempre se experimenta vindo da mão de Deus.

Um funcionário do Departamento de
Reclamações da Humanidade
Os primeiros versos do salmo descrevem Deus duas vezes como sendo “por
nós”. O último verso é “O forte nome de D eus é nosso auxílio, o mesmo D eus
que fez o céu e a terra”. Deus é por nós. Deus é nosso auxílio.
Para algumas pessoas, declarações como essa são bandeiras vermelhas.
Provocam desafios. Eu, confiante e seguro no púlpito, posso anunciar: “O
Senhor é por nós... O forte nome de D eus é nosso auxílio”. Mas basta eu sair
do púlpito para alguém me dizer: “Escute, eu queria que você tivesse um pouco
mais de cuidado com seus pronomes possessivos. Como conseguiu esse nossol
O Senhor Deus pode ser por você, ele poderá ser seu auxílio. Mas ele não é o
meu. Escute só...” Durante a semana eu ouço casos sobre acontecimentos
familiares trágicos e desapontamentos sobre a carreira, junto com reprises
pessimistas de eventos no mundo. A sentença de conclusão é uma variação do
tema: “Como você explica isso, você que tem tanta certeza que Deus é por
mim, a meu favor?”
52 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Eu fico num lugar de defensor de Deus. Esperam que eu explique Deus aos
seus clientes desapontados. Sou lançado na posição de funcionário do departa­
mento de reclamações da humanidade, a quem pedem para procurar a origem do
mau atendimento, escutar com solidariedade os clientes agravados, tentar consertar
os erros no que for possível e pedir desculpas pela descortesia da gerência.
Mas se eu aceito qualquer um desses serviços eu entendo mal meu trabalho
apropriado, porque Deus não precisa de mim para defendê-lo. Ele não precisa
de mim para secretário de imprensa, explicando ao mundo que ele não disse na
realidade aquilo que pensaram ter ouvido naquela entrevista com Jó, ou que a
citação de sua palavra pelo santo apóstolo Paulo foi tirado do contexto e deve
ser entendido no contexto do trabalho de fundo que Isaías escreveu.
O trabalho apropriado para o cristão é testemunhar, não pedir desculpas, e
o Salmo 124 é um excelente modelo. Não discute a ajuda de Deus; não explica
o auxílio de Deus; é um testemunho do auxílio de Deus na forma de um cântico.
É um cântico tão vigoroso, tão confiante, tão repleto daquilo que só pode ser
chamado de realidade que ele muda fundamentalmente nossa abordagem e
nossas perguntas. Não parece mais ser da mais alta prioridade perguntar: “Por
que isso aconteceu comigo? Por que me sinto largado em apuros?” Em vez
disso, indagamos: “Como pode acontecer que existam pessoas que cantam com
tanta confiança: ‘O forte nome de D eus é nosso auxílio’?” O salmo tem dados
que precisam ser explicados; e os dados são tão sólidos, tão vitais, têm tanto
mais substância e são tão mais interessantes do que as outras coisas que ouvimos
durante o dia inteiro que precisam ser tratados antes que possamos voltar às
reclamações choramingadas.
Se D eus não tivesse sido por nós
— todos juntos agora, Israel, cantem forte! —
Se D eus não tivesse sido por nós
quando todos foram contra nós,
Teríamos sido engolidos vivos
pela sua ira violenta,
Levados pela enchente de raiva,
afogados na torrente;
Teríamos perdido nossas vidas
na água desenfreada, tempestuosa.
O testemunho é vivo e contagioso. Uma pessoa anuncia o tema, todos se
juntam a ele. A ajuda de Deus não é uma experiência particular; é uma realidade
corporativa — não é uma exceção que ocorre entre estranhos isolados, mas é a
norma entre o povo de Deus.
O auxílio de Deus é descrito por meio de duas ilustrações. O povo estava
em perigo de ser engolido vivo; e eles corriam o risco de ser afogado por um
dilúvio. O primeiro quadro é de um enorme dragão ou monstro marinho.
AJUDA 53

Ninguém jamais viu um dragão, mas todo mundo (especialmente as crianças)


sabe que eles existem. Os dragões são projeções de nossos temores,
interpretações horríveis de tudo que pode nos machucar. Um dragão é totalmente
mau. Um camponês confrontado por um magnífico dragão é completamente
excedido. Não há escape: a pele grossa, a boca de fogo, a cauda sinuosa que se
move violentamente em chibatas, e o apetite insaciável e lascívia assinalam
destruição imediata.
O segundo quadro, a enchente, fala de desastre repentino. No Oriente
Próximo, cursos de água que causaram erosão no território são todos
interconectados por um sistema gravitacional complexo. Uma tempestade
repentina enche esses regos de água, eles alimentam uns aos outros, e dentro
de poucos minutos uma rápida enchente torrencial é produzida. Durante a
estação da chuva, tais catástrofes inesperadas constituem grande perigo para
as pessoas que vivem nessas áreas desérticas. Não há como escapar. Em um
minuto você está bem, está feliz, e fazendo planos para o futuro; no minuto
seguinte o mundo inteiro está desordenado por uma catástrofe.
O salmista não é uma pessoa que fala sobre a vida boa, como Deus o
preservou de toda dificuldade. Esta pessoa já passou pelo pior — a boca do
dragão, a torrente da enchente — e se acha intacto. Ele não foi abandonado e
sim ajudado. A força final não está no dragão ou na enchente, e sim em Deus
que “não foi embora e nos deixou”.
Podemos, naturalmente, evitar tratar disso empregando um cinismo barato
das costas da mão. E inevitável, em um sentido, que todos respondamos ao
entusiasmo com um pouco de cinismo. Propagandistas são costumeiramente tão
desonestos conosco que nós nos treinamos para guardar distância de qualquer
pessoa que fale com paixão e exaltação, de medo que eles nos manobrem. Vemos
Michael Jordan ou Tiger Woods ou Ana Paulo Arósio falando a favor de um
produto e dentro de nós desconsideramos o testemunho; sabemos que as palavras
foram escritas por um criador de material de publicidade bem pago e que a
apresentação custou muito caro. No meio dessa espécie de mundo chegamos às
linhas “Se D eus não tivesse sido por nós quando todos foram contra nós, / teríamos
sido engolidos vivos”, e dizemos: “Poesia vigorosa! Muito bem feita! Mas quem
foi o redator da propaganda, e quanto pagaram para você dizer isso?”
A única cura para esse tipo de cinismo é expor e tratar dele abertamente. Se
for deixado para agir atrás do cenário em nossos corações, é parasita que corrói
a fé, enerva a esperança e nos deixa anêmicos no amor. Não hesite em colocar
o salmo (ou qualquer outra passagem da Bíblia) sob o holofote de sua descrença!
A razão porque muitos de nós não cremos ardentemente no evangelho é que
nunca o submetemos a um teste rigoroso, nunca jogamos perguntas duras em
cima e enfrentamos o texto com nossas dúvidas mais espinhosas.
Sujeito à nossa crítica mais implacável e penetrante, o Salmo 124, penso
eu, finalmente nos convencerá de sua honestidade. Não há nenhuma literatura
54 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

em todo o mundo que seja mais como na vida real e mais honesta do que
Salmos, pois aqui temos religião de verrugas e tudo. Todo pensamento cético,
descrente, todo empreendimento decepcionante, toda dor, todo desespero que
se pode enfrentar é vivido até o fim e integrado num relacionamento pessoal
salvador com Deus — um relacionamento que também tem em si atos de louvor,
bênção, paz, segurança, confiança e amor.
Boa poesia sobrevive não quando é bonita, bela ou agradável, mas quando
é verdade: exata e honesta. Os salmos são grande poesia e têm durado não
porque apelam a nossas fantasias e nossos desejos, e sim porque são confirmados
na intensidade do viver honesto e perigoso. O Salmo 124 não é um testemunho
selecionado, inserido como um comercial em nossa vida para testificar que a
vida vai melhor com Deus; não é parte de uma blitz da mídia para convencer-
nos de que Deus é superior a todos os outros deuses da praça. Não é uma
mensagem liberada à imprensa. E uma oração honesta.
As pessoas que mais conhecem esse salmo, que testaram-no bem e usaram-
no com freqüência (isto é, as pessoas de Deus que são viajantes no caminho da
fé, cantando-o em todo tipo de clima) nos dizem que ele é acreditável, que ele
cabe no que conhecemos da vida vivida em fé.

Trabalho perigoso
O discipulado cristão é trabalho perigoso. Espero que a enfermeira da Cruz
Vermelha não pense que eu me referia a meu trabalho pastoral como sendo
perigoso. Meu trabalho, em si, não é mais difícil do que o de qualquer outra
pessoa. Qualquer trabalho feito fielmente e bem é difícil. Não é mais difícil eu
fazer meu trabalho bem do que qualquer outra pessoa, e não é menos difícil.
Não há tarefas fáceis no caminho cristão; só há tarefas que podem ser feitas
fielmente ou displicentemente, com alegria ou com ressentimento. E não há
espaço para nenhum de nós, quer pastores ou merceeiros, contadores ou
engenheiros, digitadores ou jardineiros, médicos ou motoristas, falar em tons
de autocompaixão das terríveis cargas de nosso trabalho.
O que é perigoso em minha vida é meu trabalho como cristão. Todo dia eu
ponho à prova a fé. Nunca vi Deus. Em um mundo onde quase tudo pode ser
pesado, explicado, quantificado, sujeito à análise psicológica e controle científico,
eu persevero em fazer o centro de minha vida um Deus a quem olho nenhum viu,
nem ouvido ouviu, cuja vontade ninguém pode examinar. Isso é um risco.
Todo dia eu ponho à prova a esperança. Não sei nenhuma coisa sobre o
futuro. Não sei o que a hora seguinte trará. Poderá ser doença, um acidente,
uma catástrofe pessoal ou mundial. Antes que termine este dia posso ter que
tratar com morte, dor, perda, rejeição. Eu não sei o que o futuro reserva para
mim, para aqueles a quem amo, para minha nação, para este mundo. Contudo,
a despeito de minha ignorância e rodeado de otimistas de latão e pessimistas
sem coragem, eu digo que Deus realizará sua vontade e alegremente insisto
em viver na esperança de que nada me separará do amor de Cristo.
AJUDA 55

Todo dia eu ponho à prova o amor. Não há nada em que eu seja pior do que no
amor. Sou bem melhor em competir do que em amar. Sou bem melhor em
responder aos meus instintos e ambições de progredir e fazer diferença do que
sou em descobrir como amar meu próximo. Sou estudado e treinado em
habilidades para adquirir, conseguir o que quero. Contudo, decido, cada dia, a
afastar o que sei fazer melhor e tentar o que faço mais desajeitadamente — abrir-
me às frustrações e fracassos de amar, ousando crer que fracassar no amor é
melhor do que ter êxito no orgulho.
Tudo isso é trabalho perigoso; vivo à beira da derrota o tempo inteiro.
Nunca fiz nenhuma dessas coisas a contento meu (ou de qualquer outra
pessoa). Vivo no papo do dragão e à beira da enchente. “Como é difícil ser /
Um Cristão. Difícil para você e para mim.”1
O salmo, no entanto, não é sobre perigos, e sim sobre ajuda. O trabalho
periculoso do discipulado não é o assunto do salmo; é somente seu ambiente.
O assunto é ajuda: “Ah, bendito seja D e u s !... Ele não foi embora e nos deixou.
Ele não nos abandonou indefesos, desamparados como um coelho numa matilha
de cães rosnando. Fugimos voando de suas presas, livres de suas armadilhas...
livres como um pássaro no vôo. O forte nome de D eus é nosso auxílio, o mesmo
D eus que fez o céu e a terra”. Haja perigos ou não, a realidade com que vivemos
é Deus que é “por nós... O forte nome de D eus é nosso auxílio”.
Quando primeiro corremos perigo, nossa consciência de periculosidade é
total: como um pássaro preso numa armadilha. Todos os fatos dão a soma de
destruição. Não há saída. E já nesta hora, inexplicavelmente, existe uma saída.
A armadilha se quebra e a ave escapa. Livramento é uma surpresa. Salvamento
é um milagre: “Ah, bendito seja Deus!... Ele não nos abandonou indefesos”.
Como Deus quer que cantemos assim! Os cristãos não são moralistas
enjoados que cacarejam em aprovação sobre um mundo que vai para o inferno;
os cristãos são pessoas que louvam o Deus que está do nosso lado. Os cristãos
não são simuladores piedosos no meio de uma cultura decadente; os cristãos
são testemunhas fortes ao Deus que é nosso auxílio. Os cristãos não são párias
cansados que carregam justiça como um peso num mundo em que os maus
florescem; cristãos são pessoas que cantam: “Oh, bendito seja D e u s !... Ele não
nos abandonou indefesos”.

Fotografias ampliadas de objetos comuns


A sentença final, “O forte nome de D e u s é nosso auxílio, o mesmo D eus
que fez o céu e a terra”, liga o Deus que criou céu e terra ao Deus que nos ajuda
pessoalmente. Toma a majestade daquele que moldou em ordem e beleza a
forma de um universo, e encontra esse mesmo Deus envolvido nas dificuldades
locais de uma pessoa bastante comum.
Um amigo me mostrou uma série de fotos que ele havia tirado. O assunto
consistia exclusivamente de itens da casa encontrados numa cozinha comum:
um palito de fósforo, um alfinete, o gume de uma faca. Utensílios da casa não
56 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

são comumente considerados como possuidores de muita beleza, mas todas


essas fotos de objetos muito comuns eram admiravelmente belas. A beleza foi
repentinamente visível porque as fotografias foram todas feitas através de uma
lente de aumento. Itens pequenos, feios, insignificantes foram ampliados
grandemente, e pudemos ver o que não percebíamos na rotina de cada dia.
Apareceu que o que nós negligenciamos foram os detalhes cuidadosos,
planejados que produziram a primorosa beleza.
Eu me lembro especialmente da fotografia de uma ampliadíssima esponja
de palha de aço. Nada na cozinha parece tão pouco interessante esteticamente.
Quando possível, nós deixamos as esponjas de aço escondidas debaixo da pia.
Ninguém pensaria de pôr uma num prego ou gancho para as pessoas admirarem.
Mas ampliado é um dos mais belos itens na cozinha. O torcido de arame bem
fino é agradável para o olho. A cor do filme furta-cor ajuda. O que temos por
desinteressante, guardado num local obscuro, se mostra, ao exame, uma
construção linda.
O Salmo 124 é uma ampliação dos itens da vida que são julgados pouco
agradáveis, melhor encobertos, no silêncio para que não atravanquem nossa
vida com dissabores: a boca do dragão, a enchente em torvelinho, o laço do
engaiolamento, sofrimento, catástrofe, desastre. São partes reais da vida e
constituem um pano de fundo dominante temeroso para muitos. Procuramos
alívio entre peritos da medicina e psicologia; vamos a museus para ver beleza.
O Salmo 124 é o caso de uma pessoa que se aprofunda no problema e encontra
ali a presença do Deus que é por nós. Nos detalhes do conflito, nas minúcias do
histórico pessoal, a grandeza majestosa de Deus é revelada. A fé se desenvolve
a partir dos aspectos mais difíceis de nossa existência, não dos mais fáceis.
A pessoa de fé não é aquela que nasceu, por sorte, com boa digestão e
disposição alegre. A idéia dos de fora de que os cristãos são simplórios, ou
protegidos, é o contrário da verdade: os cristãos conhecem mais sobre as lutas
profundas da vida do que os outros, mais sobre a feiúra do pecado.
Um olhar aos céus pode trazer um sentimento de tirar o fôlego diante da
maravilha e majestade, e se a pessoa é um crente, um sentimento de louvor ao
Deus que fez céu e terra. Este salmo olha na outra direção. Olha para as
dificuldades da história, a ansiedade do conflito pessoal e trauma emocional. E
vê ali o Deus que está ao lado de nós, Deus nossa ajuda. A visão de perto, a
visão microscópica dos terrores do dragão, das águas da enchente e da armadilha
que prende, faz ver a ação de Deus no livramento.
Falamos nossas palavras de louvor num mundo que é infernai; cantamos nossos
cânticos de vitória num mundo onde as coisas ficam feias e sujas; vivemos nossa
alegria entre pessoas que nem nos entendem nem nos incentivam. Mas o
conteúdo de nossas vidas é Deus, não a humanidade. Não estamos revirando
lixo nas ruelas escuras do mundo, buscando nas latas uma parca subsistência.
Estamos viajando na luz, em direção a Deus que é rico em misericórdia e forte
para salvar. E Cristo, não a cultura, que define nossa vida. E a ajuda que viven-
ciamos, não os perigos que arriscamos, que formata nossos dias.
7
S egurança
“Deus está em volta de seu povo”

Aqueles que confiam em D eus

são como o Monte de Sião:

N a d a p o d e m ovê-lo, um a m on tan h a de roch a s ó lid a

em q u e v o c ê p o d e sem p re confiar.

M on tan h as estão em v o lta d e Jerusalém ,

e D eus em v o lta de seu p o v o —

sem pre e steve e sem p re estará.

O p u n h o d o s m aus n unca v io la rá

a q u ilo q u e é d e vid o a o s ju sto s,

p ro v o ca n d o vio lê n c ia errada.

Seja bom para seu povo bom, D eus,

para aqueles cujos corações são certos!

D eus aju n tará os a póstatas,

e le o s a rreb a n h a rá com os in corrigíveis.

Paz sobre Israel!


S A L M O 125
A Jud éia fo i projetada p a ra produzir em seus habitantes o sentimento de reclusão

e segurança, embora não tanto que os aliviasse das

atrações do mundo amplo que pulsava ao passar de perto,

ou para relaxar neles aqueles hábitos de disciplina, vigilância e valor,

que são os elementos necessários para o caráter de uma nação.


Na posição da Judéia não havia suficiente para tentar seu povo a depositar

em si mesmo a sua confiança, mas havia o suficiente para encorajá-lo a

defender sua liberdade e uma vida extenuante. E enquanto que o isolamento

de sua terra fosse suficiente para confirmar seu chamado a uma disciplina

e destino à parte de outros povos, não era tão completo que

os conservasse em ignorância do mundo ou que os libertasse daquelas


tentações de se misturar com o mundo, no embate contra o qual

estaria o único meio de sua disciplina e destino se poder realizar.

G E O R GE ADAM S MI T H
ubir é difícil. O empuxo da gravidade é constante. Há barreiras

S para serem transpostas e perigos para enfrentar. Ordinariamente,


no entanto, com medida razoável de determinação e resistência, as
pessoas completam a subida que iniciaram. Mas por vezes o apoio do pé cede
e há uma escorregada para trás.
As Montanhas Rochosas, onde nossa família gosta de fazer caminhadas,
são na maioria rocha sedimentar. Há lugares onde a pedra, sob o impacto de
gelo e água, sofre erosão até ser um material solto que se esfarela em pedregulho.
Um passo em falso ali pode levá-lo a descer escorregando por um declive
íngreme de mais de cem metros.
Backslider (“alguém que derrapa no caminho”) era uma palavra básica no
vocabulário religioso que aprendi quando cresci. Exemplos havia em exposição
em toda nossa cidade: pessoas que haviam feito um compromisso de fé com
nosso Senhor, que foram atuantes em nossa igrejinha, mas que tinham perdido
o apoio dos pés na subida a Cristo e tinham derrapado: eram apóstatas. Meu tio
Oscar era um apóstata. Ele havia sido um cristão quente, ardoroso. Na meia-
idade, na base de um mero fiapo de diz-que-diz, ele adquiriu uma grande
extensão de terra inútil. Pouco tempo depois o Ministério dos Negócios Internos
decidiu construir uma grande usina hidroelétrica naquele terreno. De repente
meu tio era um homem rico. O fogo de ganhar dinheiro entrou no sangue dele;
assistência aos cultos já não era freqüente. Tornou-se impaciente com seus
filhos e comigo, seu sobrinho. Tornou-se compulsivo quanto aos hábitos de
trabalho. Foi quando primeiro ouvi a palavra backslider aplicada a alguém que
eu conhecia. Ele morreu de pressão alta e um ataque do coração. Os demais
familiares respiraram, visivelmente aliviados.
Duas mocinhas, mais velhas do que eu, a quem eu muito admirava, bonitas
e animadas, viajaram para fazer faculdade. Voltaram para as férias usando batom
mais vivo e saias mais curtas. Do banco da igreja logo na frente do meu pude
ouvir os cochichos de duas idosas: “Você acha que elas já apostataram?”
Uma delas casou-se com pastor, e a outra com seu esposo tornou-se
missionária na África.
Mas a “derrapagem” estava em toda parte e era sempre uma possibilidade
ameaçadora. Avisos eram freqüentes e as tristes conseqüências podiam ser
vistas em público. O clima era ansioso e preocupado. Fui ensinado a medir
minha temperatura espiritual todos os dias, ou pelo menos toda semana. Se
não estivesse exatamente “normal”, havia pânico geral. Fiquei com a impressão
60 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

que apostatar não era uma coisa que você fazia, e sim uma coisa que acontecia
com você. Era um acidente que pegava os incautos ou um ataque que envolvia
os indefesos.
Mais adiante na vida, ao ler a Bíblia por mim mesmo, e ainda mais tarde
quando como pastor tive a responsabilidade de guiar o desenvolvimento dos
outros, adquiri um modo bem diferente de olhar as condições sob as quais o
cristão anda pelo caminho do discipulado. Tanto na Bíblia como nas tradições
pastorais da igreja encontrei um pano de fundo de confiança, uma segurança
descansada, entre as pessoas de fé.

Outra pessoa construiu a fortaleza


A ênfase do Salmo 125 não está na precariedade da vida cristã, e sim na sua
solidez. Viver como cristão não é caminhar na corda bamba sem uma rede de
segurança, bem alto acima de uma multidão que está segurando o fôlego, muitos
ali querendo mais do que tudo sentir o emocionante espetáculo de ver você
cair; não, é sentar-se bem seguro numa fortaleza.
O salmo se utiliza de uma geografia conhecida para demonstrar essa verdade:
Aqueles que confiam em D eus
são como o Monte de Sião:
Nada pode movê-lo, uma montanha de rocha sólida
em que você pode sempre confiar.
Montanhas estão em roda de Jerusalém,
e D eus está em roda de seu povo —
sempre esteve e sempre estará.
Jerusalém estava entre várias colinas. Era a mais segura das cidades por
causa da fortaleza protetora que esses montes lhe davam. Justamente assim é
a pessoa de fé circundada pelo Senhor. Melhor do que a muralha de uma
cidade, melhor do que uma fortaleza militar é a presença do Deus de paz.
Geograficamente a cidade de Jerusalém tinha “bordas e baluartes de
extraordinária variedade e complexidade” 1 que ilustravam e reforçavam a
realidade do amor e cuidado seguro de Deus.
A vida urbana no mundo antigo era perigosa. O mundo lá fora estava cheio
de assaltantes sem paradeiro, prontos a atacar a qualquer sinal de fraqueza.
Vigilância constante era pré-requisito para a vida em comunidade e para o
desenvolvimento das artes da civilização. As cidades precisavam ter sistemas
de defesa complexos e extensos para que fossem seguras. Dispendia-se um
esforço imenso para construir muros e abrir fossos.
Nós ainda vivemos nesse tipo de mundo e ainda construímos esses tipos
de defesa embora as formas tenham mudado. O processo não é só político
como pessoal. O mundo externo é apenas uma extensão de um mundo
SEGURANÇA 61

interno, espiritual. Os psicólogos que nos observam falam de complexos


sistemas de segurança (Sullivan) e mecanismos de defesa (Freud) que
usamos para nos proteger.
As pessoas de fé têm as mesmas necessidades de proteção e segurança como
qualquer outra. Não somos melhores do que os outros nesse respeito. O que é
diferente é que descobrimos que não temos que construir nossas próprias
defesas: “Deus é um lugar seguro para se esconder, pronto a nos ajudar quando
precisamos dele” (SI 46.1). “Montanhas estão em volta de Jerusalém, e Deus
em volta de seu povo”. Não precisamos estar sempre olhando por cima do
ombro para que o mal não nos alcance despercebidamente. Não temos que
firmar os olhos em nossos passos para que não escorreguemos, inadverti­
damente, em alguma tentação. Deus está ao nosso lado. Ele está, como o colocou
outro salmista, por trás e por diante” (ver SI 139.5). E quando chegamos a esse
ponto, será que precisamos mais do que a oração do Senhor por nós, “Pai
Santo, guarda-os... Não peço que os tires do mundo,/ e sim que os guardes do
Mau” (Jo 17.11,15)? Com uma oração como essa oferecida ao Pai a nosso
favor, nós não estamos seguros?

Uma história do fio de serrote


Assim mesmo, ficamos ansiosos, caímos em estado de apreensão, nos
tornamos cheios de dúvida e insegurança. A fé confiante, robusta que desejamos
e achamos ser nosso destino é limitada por incertezas recorrentes. Cantar o
Salmo 125 é um modo que os cristãos têm de desenvolver confiança e banir a
insegurança. O salmo acerta, não é assobiando simploriamente quando a vida
é escura, e sim enfrentando honestamente as inseguranças típicas que nos
assolam e colocando-as no devido lugar.
Uma ameaça à nossa segurança vem dos sentimentos de depressão e dúvida.
A pessoa de fé é descrita nesse salmo como sendo “uma montanha de rocha
sólida... nada pode movê-la”. Mas eu sou movido. Sou cheio de fé um dia e
vazio com dúvida no seguinte. Acordo em uma manhã cheio de vitalidade,
regozijando no sol; no outro dia estou nublado e desanimado, vacilante e mal-
humorado. “Nada pode movê-lo?” — de mim nada pode ser menos verdade.
Posso ser movido por qualquer coisa: tristeza, alegria, sucesso, fracasso. Sou
um termômetro e subo e desço conforme o clima.
Há poucos anos um amigo me disse a frase “a história do fio de serrote de
Israel”. Israel estava em alta um dia e lá embaixo no seguinte. Em certo dia
atravessavam o Mar Vermelho marchando em triunfo, cantando cânticos de
vitória; no seguinte resmungando no deserto porque sentiam falta da carne, do
Egito, com batatas na refeição da tarde. Um dia marcharam em redor de Jericó
tocando trombetas e cantaram hinos com vigor, e no outro se lançavam numa
orgia diante de algum santuário de fertilidade cananita. Num dia estão com
62 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Jesus no cenáculo, ouvindo em silêncio enlevado seus mandados e recebendo


seu amor, no outro estão pisando duro por ali e amaldiçoando no pátio, negando
que algum dia o tenham conhecido.
Mas o tempo todo, ao lermos essa história do fío de serrote, percebemos
algo sólido e firme: eles são sempre o povo de Deus. Deus é constante com
eles, em misericórdia e juízo, insistentemente gracioso. Captamos que tudo é
feito no ambiente certo e sólido do Deus que redime seu povo. E à medida que
aprendemos isso, aprendemos a viver não de acordo com nossos sentimentos
sobre Deus, e sim com os fatos de Deus. Eu recuso crer nas minhas depressões;
eu escolho crer em Deus. Se eu quebro a perna nem por isso me torno menos
uma pessoa. Minha esposa e filhos não me repudiam. Nem quando minha fé
tem fratura ou meus sentimentos se machucam Deus me descarta ou rejeita.
Meus sentimentos são importantes para muitas coisas. São essenciais e
valiosos. Eles me mantêm apercebido de muita coisa que é verdadeira e real.
Mas não me avisam praticamente nada com respeito a Deus ou ao meu
relacionamento com Deus. Minha segurança vem de quem Deus é, não de
como eu me sinto. Discipulado é uma decisão de viver de acordo com aquilo
que eu sei sobre Deus, não com aquilo que eu sinto sobre ele ou sobre mim
mesmo ou meus vizinhos. “Como as montanhas estão em volta de Jerusalém,
assim está D eu s em volta de seu povo.” A imagem que anuncia a existência
confiável, imutável, segura do povo de Deus vem da geologia, não da
psicologia.

Uma espada de Dâmocles


Outra fonte de incerteza é nossa dor e sofrimento. Coisas desagradáveis
nos acontecem. Perdemos aquilo que julgamos que não podemos viver sem. A
dor chega àqueles que amamos, e concluímos que não há justiça. Por que Deus
permite isso? A ansiedade penetra em nossos corações. Somos tomados pela
sensação precária de viver sob a espada de Dâmocles. Quando cairá o machado
sobre mim? Se coisa tão terrível pôde acontecer a meu amigo que é tão bom,
quanto tempo demorará para que eu seja atingido?
O salmista conhece tudo isso. Doença e morte, desespero e perseguição.
Ele está familiarizado com a violência e pilhagem da invasão militar e a fome
e terremoto do desastre natural. O Salmo 125 foi escrito por uma pessoa que
não tinha anestésicos em seu hospital nem aspirina em sua caixa de remédios e
cujo governo não tinha centenas de bilhões de dólares para gastar em defesa
nacional. Dor e sofrimento com toda certeza faziam parte de sua vida cotidiana.
Por que não destruíram sua confiança?
A resposta está nestas palavras: “O punho dos maus / nunca violará / aquilo
que é devido aos justos, / provocando violência errada”. A palavra chave é
violará: cancelará os propósitos de Deus que estão sendo realizados. Israel
teve mais do que seu quinhão de opressão. O punho dos maus esteve sobre
SEGURANÇA 63

Israel repetidas vezes: Faraó, os filisteus, Tiglate-Pileser, Senaqueribe,


Nabucodonosor, César. Para uma pessoa de fora deve ter parecido, em grande
parte do tempo, que o punho dos maus dominava a vida dos israelitas. Do lado
de dentro o testemunho da fé dizia que não era assim: “O punho dos maus /
nunca violará / aquilo que é devido aos justos, / provocando violência errada”.
Se o punho mau é permanente, se não há esperança de salvação, até mesmo
a pessoa mais fiel e devota se quebrará e responderá em “violência errada”.
Mas Deus não permite que isso aconteça. O perigo e a opressão nunca são
demais para a fé. Não foram demais para Jó, não foram demais para Jeremias,
e não foram demais para Jesus. O mal é sempre temporário. “O pior nunca
dura”.2 Nada contrário à justiça de Deus tem a seu respeito qualquer eternidade.
O testemunho de Paulo foi: “Nenhuma provação ou tentação que lhes venha
superar o andamento do que outros tiveram de enfrentar. Tudo que vocês
precisam lembrar é que Deus nunca os desapontará; ele nunca permitirá que
sejam pressionados além de seu limite; ele sempre estará lá para ajudá-los a
passar por isso” (ICo 10.13). “Ele sabe quando dizer: Basta.”3

Um contrato não negociável


A terceira ameaça à confiança prometida ao cristão é a conhecida possibi­
lidade de deserção. A verdade geral sob a qual o cristão vive a esse respeito é
“uma vez salvo sempre salvo”. Uma vez que você se torna cristão não há como
sair disso. É um contrato não negociável. Uma vez que você assina o contrato
não pode mais se tornar um livre agente, sejam quais forem as regras do chefe
do departamento ou da Suprema Corte.
Por mais verdadeiro que isso seja no geral, e creio que seja, há exceções.
Parece que se Deus não nos força à fé de início, ele não nos manterá contra
nossa vontade por fim. Apostatar é possível. Sabemos de Judas. Sabemos de
Himeneu e Alexandre, que “naufragaram na fé” (ver lTm 1.19,20). São estes
os descritos no salmo como sendo “os apóstatas”.4 O caminho do discipulado
fica difícil; vêem uma abertura entre as árvores que promete uma vereda mais
macia, mais fácil. Distraídos e extraviados do caminho, eles saem quietinhos e
nunca voltam.
Se é possível desertar, que certeza tenho de que eu não vou — ou pior
ainda, de que eu já não desertei? Como sei que eu já não perdi a fé, especialmente
durante ocasiões quando estou deprimido ou tenho uma calamidade depois de
outra empilhadas em cima de mim?
Tais inseguranças insinuadas precisam ser confrontadas direta e claramente.
Não é possível ser levado inconscientemente da fé à perdição. Vagamos como
ovelhas perdidas, é verdade; mas Deus é um pastor fiel que nos busca sem
tréguas. Nós temos nossas subidas e descidas, zelosamente acreditando num
dia e obscuramente duvidando no outro, mas ele é fiel. Nós faltamos com nossas
64 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

promessas, mas ele não falta com as dele. O discipulado não é um contrato em
que se nós faltamos com nossa parte do acordo ele é livre para quebrar a dele;
é um pacto no qual ele estabelece as condições e garante os resultados.
É certo que você pode desistir se desejar. Você pode dizer não a Deus. E
uma fé livre. Você pode escolher o caminho errado. Ele não o prende contra a
vontade. Mas não é o tipo de coisa em que você cai por acaso ou entra por
ignorância. Desertar requer um ato intencional, sustentado e resoluto de rejeição.
Todas as pessoas de fé que eu conheço são pecadoras, duvidadoras, reali­
zadoras de rendimento desigual. Estamos seguros não porque confiamos em
nós mesmos, mas porque confiamos que Deus tem certeza de nós. A frase
inicial do salvo é “aqueles que confiam em Deus” — não aqueles que confiam
em sua habilidade, em sua moral, coisas certas, sua saúde, seu pastor, seu doutor,
seu presidente, seu dinheiro, seu país — “aqueles que confiam em Deus”.
Aqueles que decidem que Deus é por nós e nos fará completos eternamente.

Montanhistas amarrados à mesma corda


Quando eu era criança tinha que andar mais de um quilômetro e meio para
a escola todos os dias com meus dois melhores amigos. Num quarto daquela
distância havia uma estrada de ferro. Quando chegávamos ali sempre
caminhávamos nos trilhos. Cada um de nós queria caminhar todo o trecho sem
cair, mas não queria que os outros conseguissem fazer isso. Jogávamos alguma
coisa de um para o outro para desequilibrá-lo, ou dizíamos algo para distrair
sua atenção, gritávamos que o trem estava chegando ou anunciávamos que
havia o corpo de um morto na vala.
Alguns já imaginam ser bem assim o viver cristão, oscilar e balançar num
trilho, escarnecido pelo diabo e seus anjos. Com alguma habilidade e muita
sorte talvez ainda alcançássemos o céu, mas é negócio incerto, na melhor das
hipóteses.
O Salmo 125 diz que não é assim de modo nenhum. Ser um cristão é como
assentar-se no meio de Jerusalém, fortificado e seguro. “Primeiro estamos
estabelecidos e depois entrincheirados; fixados e depois apoiados por sentinelas:
feitos como um monte, e depois protegidos como se fosse por montanhas”.5 E
então a última sentença é “Paz sobre Israel!” Uma tradução coloquial, mas
exata no contexto, seria “Relaxe”. Estamos seguros. Deus está no comando.
Nem nossas emoções de depressão, nem os fatos de sofrimento, nem as
possibilidades de desistência são evidências de que Deus nos tenha abandonado.
Nada é mais certo do que o fato que ele executará sua salvação em nossa vida
e aperfeiçoará a vontade dele em nossas histórias. Três vezes em seu grande
Sermão, Jesus, sabendo como nós facilmente imaginamos o pior, repete a ordem
tranqüilizante: “Não andeis ansiosos” (ou “Não vos inquieteis”, Mt 6.25,31,
34). Nossa vida com Deus é uma coisa certa.
SEGURANÇA 65

Quando os montanheses estão em terreno perigoso, na face de uma escarpa


ou nas rampas de uma geleira, eles se amarram um ao outro. Algumas vezes
um escorrega e cai para trás (“como um apóstata”). Mas não caem todos de
vez, e por isso aqueles que ainda estão de pé são capazes de evitar que aquele
que escorregou caia completamente. E naturalmente, em qualquer grupo de
montanheses há um veterano na liderança, identificado para nós na carta aos
Hebreus como “Jesus, que tanto iniciou como completou esta corrida da qual
participamos” (“Autor e Consumador”, isto é, Iniciador e Completador, Hb 12.2).
Viajar no caminho da fé e fazer a subida até Cristo pode ser difícil, mas não
é preocupante. O tempo pode estar desfavorável, mas nunca é fatal. Poderemos
escorregar, tropeçar, cair, mas a corda há de nos segurar.
8
ALEGRIA
‘Nós rimos, nós cantamos”

Parecia um sonho, bom demais para ser verdade,

quando D eus fe z voltar os exilados de Sião.

Nós rimos, nós cantamos,

não podíam os acreditar em nossa boa sorte.

Éramos a conversa das nações —

“D eus fo i maravilhoso para com eles! ”

foi maravilhoso para conosco;


somos um povo feliz.

E agora, D eus, faça-o de novo —

traga chuva a nossas vidas ressequidas pela seca.

Para que os que plantaram seus campos em desespero

gritem vivas na colheita,

Para que aqueles que saíram com peso no coração

voltem rindo, com braçadas de bênçãos.

SALMO 126
Já li que durante o processo de canonização

a Igreja Católica exige prova de alegria no candidato,

e embora eu não tenha ainda conseguido descobrir capítulo e versículo

gosto da sugestão de que cara macambúzia não é atributo sagrado.


PHYLLIS MCGINLEY
llen Glasgow, em sua autobiografia, conta de seu pai que era

E presbítero presbiteriano, cheio de retidão e rígido com o dever:


“Ele era inteiramente altruísta, e em sua longa vida ele nunca
cometeu um prazer”.1 Peter Jay, numa coluna política no Baltimore Sun,
descreveu a sóbria intensidade e as austeridades pessoais de um de nossos
políticos do estado de Maryland e então arrematou com esta frase: “Ele se
veste como um presbiteriano”.
Eu sei que há cristãos, assim chamados, que nunca abrem um sorriso e que
não suportam uma piada, e suponho que os presbiterianos contribuem com sua
cota. Mas não me encontro com muitos deles. O estereótipo em si é uma grande
mentira criada, presumivelmente, pelo diabo. Uma das descobertas encantadoras
ao longo do caminho do discipulado cristão é de quanto prazer há, quanto riso
se ouve, quanta pura alegria divertida se encontra.
No livro encantador de Phyllis McGinley, Saint-Watching [“Observação dos
Santos”] lê-se esta história: “O amigo do peito de Martinho Lutero foi Felipe
Melanchton, autor da Confissão de Augsburgo. Melanchton era um homem frio
enquanto Lutero era férvido, um estudioso em contraste com homem de ação, e
ele continuava a viver como um monge mesmo depois de ter se ligado à Reforma
Alemã... Um dia Lutero perdeu a paciência com a virtuosa discrição de
Melanchton. ‘Por amor de qualquer coisa’, ele berrou, ‘por que você não sai por
aí e peca um pouco? Deus merece ter alguma coisa pela qual perdoar você!”’2

Uma conseqüência, não uma exigência


“Nós rimos, nós cantamos, não podíamos acreditar em nossa boa sorte.”
Esse é o tom cristão autêntico, o sinal daqueles que estão no caminho da
salvação. A alegria é característica da peregrinação cristã. É o segundo da lista
de Paulo dos frutos do Espírito (G1 5.22,23). É o primeiro dos sinais de Jesus
no Evangelho de João (transformar água em vinho). Foi dito do Hasid Levi-
Yitzhak de Berditchev: “Seus sorrisos eram cheios de maior significado do
que seus sermões”.3 A mesma coisa pode ser dita de muitas coisas da Bíblia:
seus sorrisos transmitem mais sentido do que seus sermões.
Isso para não dizer que a alegria é uma exigência moral para a vida cristã.
Alguns de nós experimentamos eventos que são repletos de tristeza e dor. Alguns
de nós descemos a pontos baixos em nossa vida quando a alegria parece ter ido
embora permanentemente. Não devemos em tais circunstâncias ou durante tais
horas dizer: “Bem, esta é a prova final de que eu não sou um bom cristão. Os
70 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

cristãos deverão ter suas bocas cheias de riso e suas línguas de gritos de júbilo,
e eu não tenho. Não sou alegre, portanto não devo ser um cristão”.
A alegria não é uma exigência do discipulado cristão, é uma conseqüência.
Não é o que nós precisamos adquirir a fim de vivenciar a vida em Cristo; é o que
vem a nós quando estamos andando no caminho da fé e obediência.
Chegamo-nos a Deus (e à revelação dos caminhos de Deus) porque nenhum
de nós tem dentro de si, exceto momentaneamente, o ser alegre. Alegria é um
produto da abundância; é o transbordar da vitalidade. E a vida com tudo
funcionando junto harmoniosamente. Isso é exuberância. Pecadores inade­
quados como somos, nenhum de nós pode conseguir isso por muito tempo.
Procuramos consegui-lo através de entretenimento. Pagamos alguém para
fazer piadas, contar histórias, desempenhar ações dramáticas, cantar músicas.
Compramos a vitalidade da imaginação de outra pessoa para divertir e avivar
nossa própria vida pobre. A enorme indústria do entretenimento da América,
por exemplo, é um sinal do esvaziamento de alegria da nossa cultura. A
sociedade é um rei glutão entediado que emprega um bobo da corte para
diverti-lo após uma refeição exagerada. Mas essa espécie de alegria nunca
penetra nossas vidas, nunca muda nossa constituição básica. Os efeitos são
temporários — alguns minutos, algumas horas, alguns dias quando muito.
Ao se acabar o dinheiro, a alegria vai passando. Não conseguimos nos fazer
alegres. Alegria não pode ser encomendada, comprada ou arranjada.
Mas há algo que podemos fazer. Podemos resolver viver respondendo à
abundância de Deus e não nos sujeitando à ditadura de nossas próprias
necessidades pobres. Podemos decidir viver na atmosfera de um Deus vivo e
não em nossos próprios seres moribundos. Podemos decidir centrar-nos no
Deus que dá generosamente e não em nossos próprios egos que avançam
gananciosamente. Uma das conseqüências certas de tal vida é a alegria, do tipo
expresso no Salmo 126.

Alegria: Passada, Presente, Futura


A sentença central do salmo é “Nós somos um povo feliz” (v. 3). As palavras
de um lado desse centro (vs. 1,2) estão no tempo passado, as palavras do outro
lado (vs. 4-6) no tempo futuro. Alegria presente tem passado e futuro. Não é
uma emoção efêmera. Não é um jato de boas emoções que vem quando o
tempo meteorológico e o mercado de ações estão certinhos no mesmo dia.
O que está por trás da alegria só é uma alusão aqui, mas as palavras acordam
vastas memórias: “quando D eus fez voltar os exilados de Sião. Nós rimos, nós
cantamos... Éramos a conversa das nações — ‘D eus foi maravilhoso para com
eles!’ D eus foi maravilhoso para conosco; somos um povo feliz”. O que
aconteceu que foi tão “maravilhoso”? Em quase qualquer página da Bíblia
encontramos alusões e histórias. Há a história do povo de Deus numa longa
ALEGRIA 71

servidão, aparentemente interminável, sob as sombras das pirâmides do Egito


e o açoite de duros feitores, e então, de repente e sem aviso, acabou. Num dia
estavam fabricando “tijolos sem palha” e no outro estavam subindo em corrida
as margens opostas do Mar Vermelho, cantando bem alto a grande canção:
“Estou cantando do coração a D eus — que vitória! Ele lançou no mar o cavalo
e seu cavaleiro! D eus é minha força. D eus é meu cântico. E, siml D eus é minha
salvação. Este é o tipo de Deus que eu tenho — estou anunciando ao mundo!
Este é o Deus de meu pai — quero exultar a plenos pulmões! (Ex 15.1,2).
Passamos mais algumas páginas e encontramos a história de Davi. Houve
anos de guerrilha nos ermos contra os fílisteus, uma existência perigosa com o
taciturno e maníaco Rei Saul, e todo aquele doloroso procedimento de tentativas
e oração para tratar da culpa de assassinato e adultério; depois em sua idade
avançada, ser tocado do trono pelo seu próprio filho e forçado a estabelecer
um governo no exílio. E, por fim, seu cântico. Ele começa com gratidão: “O
Senhor é minha rocha sob os pés, o castelo no qual moro, meu cavaleiro que
me salva”; e termina com confiança: “Viva o Senhor! Bênção da minha Rocha!”
No meio há um rojão de alegria: “Estou incendiado com sua luz... Eu salto
muralhas” (2Sm 22.2,29,30,47).
Algumas páginas mais e encontramos a terrível história do cativeiro
babilônico. Israel experimentou o pior que pode acontecer com qualquer de
nós: violência nas ruas, canibalismo na cozinha, vizinhos reduzidos à
bestialidade, uma marcha forçada de uns 970 quilômetros através de um deserto,
as zombarias insultantes dos captores. E então, incrivelmente — alegria.
Começando pelas palavras em tom baixo, brando: “Consolem, ó consolem o
meu povo, diz o seu Deus. Falem em voz branda e tema a Jerusalém, mas
também com firmeza e ousadia, que ela já completou o tempo da sua sentença,
que seu pecado está acertado — perdoado!” (Is 40.1,2). E depois as montantes
promessas de ajuda: “Quando você estiver quase afogado, eu serei com vocês.
... Não temam, porque sou com vocês” (Is 43.2-5). Os sons combinam e crescem
até chegarem a uma proclamação: “Que belos sobre os montes são os pés dos
mensageiros que trazem boas notícias... Vozes! Ouçam! Os atalaias gritam,
bradam em alta voz, exclamam alegremente todos a uma” (52.7,8). A gratidão
e alegria crescem. A mudança é para uma enchente de alegria.
“Parecia um sonho, bom demais para ser verdade, quando D eu s fez voltar
os exilados de Sião.” Cada ato de Deus foi um milagre impossível. Não tinha
como aquilo acontecer, e aconteceu. “Parecia um sonho, bom demais para
ser verdade.” Nós cultivamos essas memórias de riso, essas exclamações de
alegria. Enchemos nossas mentes com as histórias dos atos de Deus. A alegria
tem uma história. A alegria é a experiência verificada, repetida daqueles que
estão envolvidos naquilo que Deus está fazendo. E tão real quanto uma
72 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

data na história, tão sólida como uma veia de rocha na Palestina. A alegria é
nutrida vivendo-se em tal história, edifícando sobre tal fundamento.

Alegre expectativa
O outro lado de “somos um povo feliz” — versos 4-6 — está no futuro. A
alegria é nutrida por antecipação. Se os atos de Deus que produzem alegria
são característicos de nosso passado como povo de Deus, serão também
característicos de nosso futuro como povo seu. Não há razão para supor que
Deus mudará seu modo de trabalhar conosco arbitrariam ente. O que
conhecemos dele, conheceremos dele. Assim como a alegria edifica sobre o
passado, ela empresta do futuro. Espera que certas coisas acontecerão.
Duas imagens fixam a esperança: A primeira é “trazer chuva a nossas
vidas ressequidas”. O Neguebe, a sul de Israel, é um vasto deserto. Os cursos
de água do Neguebe são uma rede de valas cortadas no solo por erosão de
vento e chuva. Durante a maioria do ano ficam ressecadas sob o sol, mas
uma chuva repentina faz o deserto brilhante de flores. Nossas vidas são assim
— ressequidas — depois, de repente, os longos anos de espera estéril são
interrompidos pela invasão da graça de Deus.
A segunda imagem é “para que os que plantaram seus campos em desespero
gritem vivas na colheita, / Para que aqueles que saíram com peso no coração
voltem rindo, com braçadas de bênçãos”. O trabalho duro de semear a semente
em terra que parece perfeitamente vazia tem, como todo lavrador sabe, um
tempo de colheita. Todo o sofrimento, toda a dor, todo o vazio, todo o
desapontamento é semente: semeie-a em Deus e ele, finalmente, tirará dele
uma colheita de alegria.
Fica claro no Salmo 126 que aquele que o escreveu e aqueles que o
cantaram não desconheciam o lado escuro das coisas. Levavam a memória
dolorosa do exílio em seus ossos e as cicatrizes da opressão em suas costas.
Conheciam os desertos do coração e as noites de choro. Conheciam o que
significava semear em lágrimas.
Uma das coisas mais interessantes e notáveis que os cristãos aprendem é
que o riso não exclui o choro. A alegria não é um escape da tristeza. A dor e o
sofrimento ainda vêm, mas não conseguem expulsar a felicidade dos redimidos.
Uma estratégia comum mas fútil para se conseguir alegria é tentar eliminar
as coisas que machucam: livrar-se da dor anestesiando as extremidades do
nervo, livrar-se da insegurança eliminando riscos, acabar com o desapontamento
despersonalizando seus relacionamentos. E então tentar suavizar a monotonia
de uma vida comprando alegria na forma de férias e entretenimento. Não há
nenhuma sugestão disso no Salmo 126.
O riso é resultado de viver em meio às grandes obras de Deus (“aqueles que
saíram com peso no coração voltarão rindo, com braçadas de bênçãos”). Há
ALEGRIA 73

bastante sofrimento dos dois lados, passado e futuro. A alegria vem porque
Deus sabe enxugar as lágrimas, e, no seu trabalho de ressurreição, sabe criar o
sorriso de vida nova. Alegria é o que Deus dá, não o que nós trabalhamos. O
riso é o deleite de que as coisas estão operando juntas para aqueles que amam
a Deus, não as risadinhas que traem o nervosismo de um sistema de defesa
precário. A alegria que se desenvolve no caminho cristão do discipulado é um
transbordar de espírito jovial que vem de se sentir bem não a respeito de si
mesmo, mas a respeito de Deus. Nós descobrimos que os caminhos dele são
confiáveis, suas promessas seguras.
Esta alegria independe de nossa boa sorte em escapar de dificuldades. Não
depende de nossa boa saúde e de evitar a dor. Alegria cristã é real no meio da
dor, sofrimento, solidão e infelicidade. Paulo é nossa testemunha mais
convincente disso. Ele está sempre, de uma maneira ou outra, exclamando sua
alegria. As exclamações são timpânicas, ressoando por todos os movimentos
de sua vida: “Nós continuamos a exclamar nosso louvor mesmo quando estamos
cercados de dificuldades, porque sabemos como as dificuldades podem produzir
a paciência apaixonada em nós, e como essa paciência por sua vez forja o aço
temperado da virtude, conservando-nos alertas para qualquer coisa que Deus
fará em seguida... Cantamos e exclamamos nossos louvores a Deus através de
Jesus, o Messias!” (Rm 5.3-5,11). Isso é o cumprimento da oração: “E agora,
D e u s , faça-o de novo — traga chuva às nossas vidas ressequidas”.
E então fora da sua cela na prisão ouvimos a conclusão musical com que
Paulo encerra sua carta aos filipenses: “Celebrem ao Senhor o dia todo, todos
os dias. Quero dizer, tenham satisfação intensa nele! Tornem bem claro aos
outros, tanto quanto puderem, que vocês estão a favor deles, trabalhando com
eles e não contra eles. Ajudem-nos a ver que o Mestre está para chegar. Ele
pode aparecer a qualquer minuto!” (Fp 4.4,5). Não há nenhum estoicismo grego
severo nisso; é um forte hino galês, caminhando em passos largos da tristeza
para o cântico. É o resultado final da esperança: “Assim aqueles que saíram
com peso no coração voltarão rindo, com braços cheios de bênçãos”. O
testemunho se repete outra e mais outra vez, através das gerações, e tem
representantes espalhados em toda comunidade de cristãos.
O salmo não nos dá essa alegria como um pacote ou como fórmula, mas há
algumas coisas que ela faz. Em contraste, ela faz aparecer o brilho barato da
alegria do mundo e afirma a solidez da alegria de Deus. Ela nos faz lembrar
dos custos cada vez maiores e do retomo cada vez menor daqueles que buscam
o prazer como caminho à alegria. Ela nos apresenta o caminho do discipulado,
que tem conseqüências em alegria. Encoraja-nos no caminho da fé tanto a
experimentar como a compartilhar alegria. Conta-nos a história dos atos de
Deus, que põe riso na boca das pessoas e exclamações em suas línguas. Repete
as promessas de um Deus que acompanha seus filhos errantes e chorosos até
74 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO ->

que cheguem em casa, exuberantes, “com braçadas de bênçãos”. Anuncia a


existência de um povo que se reúne para cultuar a Deus e se dispersa para
viver para a glória de Deus, pessoas cujas vidas são debruadas de um lado pela
lembrança dos atos de Deus e do outro por esperança nas promessas de Deus,
e que podem dizer, junto com tudo mais que está acontecendo, no centro de
tudo isso, “Somos um povo feliz”.
9
T r a b a lh o
“Se Deus não edificar a casa ”

Se D eus n ão ed ifica r a casa,

o s con stru tores só constroem choupanas.

Se D eus não guardar a cidade,

o guarda-noturno pode até dormir

É inútil levantar cedo e deitar tarde,

e trabalhar seus dedos cansados até o osso.

Você não sabe que ele gosta

de dar descanso àqueles que ele ama?

Vocês n ão vêem qu e filh o s sã o a m elh or d á d iv a d e D eus ?

O fr u to d o ven tre se u le g a d o g en ero so ?

Como mão cheia de flechas de um guerreiro


são os filhos de uma mocidade vigorosa.

Ah, quanto são abençoados vocês pais,

com suas aljavas cheias de crianças!

Seus inimigos não têm chance contra vocês;


vocês os varrerão de vez da soleira de sua porta.

SALMO 127
O prim eiro grande fa to que emerge de nossa civilização
é que hoje tudo se tornou “meios ”.

Não há mais um "fim não sabemos aonde vamos.


Esquecemo-nos de nossos fin s coletivos, e possuím os grandes meios,

colocamos em movimento grandes máquinas a fim de chegar em parte nenhuma.

JACQUES ELLUL
maior projeto de trabalho do mundo antigo é uma história

O de desastre. A organização sem rival e a energia enorme


concentradas na construção da Torre de Babel resultaram numa
comunidade tão esfacelada e comunicação tão estilhaçada que a civilização ainda
está procurando se recuperar. Esforço, mesmo se o esforço é religioso (quem
sabe especialmente quando o esforço é religioso), em si não justifica nada.
Uma das tarefas do discipulado cristão é reaprender “a prática de suas
primeiras obras” (Ap 2.5) e absolutamente recusar “trabalhar como o diabo”.
O trabalho é um componente importante na maioria das vidas. E inevitável.
Pode ser bom ou mau, uma área onde nosso pecado é ampliado ou onde nossa
fé amadurece. Pois é da natureza do pecado pegar coisas boas e torcê-las um
pouquinho só, de modo a errarem o alvo ao qual foram dirigidos, o alvo de
Deus. Uma exigência do discipulado é aprender as maneiras em que o pecado
torce nossa natureza e submeter o que aprendemos à vontade contínua de Deus,
para que sejamos reformados através dos dias de nossa obediência.
O Salmo 127 mostra tanto a forma certa como a forma errada de operar.
Coloca um aviso e fornece um exemplo para guiar os cristãos em trabalho que
é feito para a glória de Deus.

Babel ou Budista
O Salmo 127 primeiro coloca um aviso sobre o trabalho: “Se D eus não
edificar a casa, os construtores só constroem choupanas. Se D eu s não guardar
a cidade, o guarda-noturno pode até dormir. E inútil levantar cedo e deitar
tarde, e trabalhar seus dedos cansados até o osso. Você não sabe que ele gosta
de dar descanso àqueles que ele ama?”
Algumas pessoas leram esses versos e os parafrasearam para serem lidos
assim: “Você não precisa trabalhar muito para ser um cristão. Você não tem
que se esforçar nem um pouco. Vá dormir. Deus está fazendo tudo que precisa
ser feito”. Paulo teve que agir com algumas dessas pessoas na igreja em
Tessalônica. Estavam dizendo que visto Deus ter feito tudo em Cristo não havia
nada mais para eles fazerem. Se todo esforço acaba em confusão irreligiosa
(como aconteceu com as pessoas em Babel) ou em justiça própria hipócrita
(como aconteceu entre os fariseus), a solução cristã óbvia é desistir do trabalho
e aguardar que o Senhor venha. Com um redentor magnífico como nosso Senhor
78 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Jesus Cristo e um majestoso Deus como nosso Pai que está no céu, o que falta
fazer? Então se sentavam por ali, não fazendo nada. Nesse meio tempo, viviam
“pela fé” por conta de seus amigos menos espirituais. Os críticos que não eram
seus amigos poderiam lhes ter chamado de aproveitadores. Paulo irou-se e
mandou-os trabalhar: “Estamos recebendo notícia que um punhado de
vagabundos preguiçosos estão tirando proveito de vocês. Isso não deve ser
tolerado. Ordenamos que comecem a trabalhar imediatamente — nada de
desculpas, nada de argumentos — e ganhem seu próprio sustento. Amigos,
não amoleçam em fazer sua obrigação” (2Ts 3.11-13). Como tinham coragem
de reinterpretar o evangelho numa racionalização a favor da preguiça quando
ele, Paulo, de quem tinham aprendido o evangelho, trabalhava com seus dedos
“até o osso, metade da noite, fazendo um bico para vocês não terem o peso de
nos sustentar enquanto proclamamos a Mensagem de Deus” (lTs 2.9).
O cristão tem que achar um modo melhor de evitar o perigo de Babel do
que só imitar os lírios do campo, que “nem trabalham nem fiam”. A obra
pretensiosa que se tomou Babel e seu piedoso oposto que se desenvolveu em
Tessalônica aparecem hoje nas amplas telas das culturas Ocidental e Oriental,
respectivamente.
A cultura ocidental assume onde Babel parou e deifica o esforço humano
como tal. A máquina é o símbolo deste modo de vida que tenta controlar e
gerenciar. A tecnologia promete dar-nos controle sobre a terra e sobre outros
povos. Mas a promessa não se cumpre: automóveis que matam, prédios feios e
burocracias pesadas devastam a terra e esvaziam de sentido as vidas. As
estruturas se tornam mais importantes do que as pessoas que se utilizam delas.
As máquinas se tornam mais importantes do que as pessoas que as usam. Damos
mais valor às nossas posses com que esperamos conseguir abrir caminho no
mundo do que aos nossos pensamentos e sonhos que nos contam quem somos
no mundo.
A cultura oriental, por outro lado, é uma variação do ponto de vista
tessalônico. Manifesta um pessimismo profundamente enraizado com respeito
ao esforço humano. Visto que todo trabalho é maculado por egoísmo e orgulho,
a solução é retrair-se de toda atividade para o puro ser. O símbolo de tal atitude
é o Buda— uma pessoa enormemente gorda sentada de pernas cruzadas, fitando
seu próprio umbigo. Imóvel, inerte, quieta. Toda dificuldade vem de fazer
demais; portanto não faça nada. Saia da corrida de ratos. O mundo do movimento
é mau, então pare de fazer tudo. Fale o mínimo possível; faça o menos possível;
finalmente, no ponto da perfeição, você nada dirá e nada fará. O ideal é afastar-
se completa e finalmente de toda ação, do pensamento, da paixão.
As duas culturas estão em colisão hoje, e muitos acham que precisamos
optar entre elas. Mas há outra opção: o Salmo 127 mostra um modo de funcionar
TRABALHO 79

que não é nem atividade pura nem passividade completa. Não glorifica o trabalho
como tal e não condena o trabalho como tal. Não diz: “Deus tem uma grande
obra para você fazer; vá fazê-la”. Nem diz: “Deus já fez tudo; vá pescar”. Se
queremos soluções simples com respeito ao trabalho podemos nos tornar
“w orkaholics”, compulsivos no trabalho, ou “dropouts”, desistentes
permanentes do trabalho. Se queremos experimentar a plenitude do trabalho, é
melhor estudarmos o Salmo 127.

No princípio Deus trabalhou


A premissa do salmo para o trabalho é que Deus trabalha: “Se D eus não
edificar a casa... Se D eus não guardar a cidade...” A condição se pressupõe que
Deus trabalha: ele constrói; ele guarda.
A principal diferença entre cristãos e outros é que levamos Deus a sério e
eles não. Nós realmente cremos que ele é a realidade central de toda existência.
Nós realmente prestamos atenção ao que ele é e ao que ele faz. Nós realmente
ordenamos nossas vidas em resposta a essa realidade e não a alguma outra.
Prestar atenção a Deus compreende a percepção de que ele trabalha.
A Bíblia começa com o aviso: “No princípio Deus criou” — não “sentou-se
majestosamente no céu”, nem “estava cheio de beleza e amor”. Ele criou. Ele
fez alguma coisa. Ele fez algo. Ele formou o céu e a terra. A semana da criação
foi uma semana de trabalho. Os dias não são descritos pelas condições do
clima, nem pelas leituras de seu horóscopo: Gênesis 1 é um relatório de trabalho.
Nós vivemos num universo e numa história em que Deus está trabalhando.
Antes de mais nada, o trabalho é uma atividade de Deus. Antes de irmos aos
sociólogos em busca de uma descrição do trabalho ou aos psicólogos para um
discernimento do trabalho, ou aos economistas para uma análise do trabalho,
precisamos entender o registro bíblico: Deus trabalha. O trabalho de Deus é
definido e descrito nas páginas da Bíblia. Temos modelos da criação, atos de
redenção, exemplos de ajuda e compaixão, paradigmas de consolo e salvação.
Um dos motivos pelos quais os cristãos lêem a Bíblia repetida e cuidadosamente
é para descobrir ao certo como Deus trabalha em Jesus Cristo para que possamos
trabalhar em nome de Jesus Cristo.
Em cada carta que Paulo escreveu, ele demonstrou que o trabalho de um
cristão é o que se desenvolve de modo natural, inevitável e fiel a partir do
trabalho de Deus. Cada uma de suas cartas termina com uma série de instruções
que nos conduz ao tipo de trabalho que participa no trabalho de Deus. A
maldição das vidas de algumas pessoas não é o trabalho, como tal, e sim trabalho
sem sentido, trabalho vão, fútil, trabalho que ocorre à parte de Deus, trabalho
que não vê o “se” [da presença de Deus], O discipulado cristão, ao orientar-nos
no trabalho de Deus e colocar-nos na correnteza daquilo que Deus já está
80 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

fazendo, nos liberta de sentirmos o trabalho como compulsório. Hilário de


Tours ensinava que cada cristão deve vigiar constantemente contra o que ele
chamou de “solicitude irreligiosa pró Deus ” — uma ansiedade blasfema de
fazer o trabalho de Deus por ele, em lugar dele.1
Nosso trabalho sai errado quando perdemos contato com o Deus que
trabalha “sua salvação no meio da terra”. Sai tudo errado quando trabalhamos
ansiosamente como quando não trabalhamos de forma nenhuma, quando nos
tornamos frenéticos e compulsivos em nosso trabalho (Babel) como quando
ficamos indolentes e letárgicos no trabalho (Tessalônica). A verdade
fundamenta] é que o trabalho é bom. Se Deus o faz, deve ser certo. O trabalho
tem dignidade: não pode haver nada degradante com o trabalho se Deus
trabalha. O trabalho tem propósito: não pode haver nada de inútil com o
trabalho se Deus trabalha.

Trabalho sem esforço


O salmo não só afixa um aviso de perigo, como dá um exemplo: “Vocês não
sabem que ele gosta de dar descanso àqueles que ele ama? Vocês não vêem que
filhos são a melhor dádiva de D eu s ? Que o fruto do ventre é seu legado generoso?
Como mão cheia de flechas de um guerreiro são os filhos de uma mocidade
vigorosa. Ah, quanto são abençoados vocês pais, com suas aljavas cheias de
crianças! Seus inimigos não têm chance contra vocês”.
Em contraste com o trabalho ansioso que constrói cidades e vigia posses, o
salmo louva o trabalho sem esforço de fazer crianças. Em oposição aos esforços
desgastantes de pessoas que, duvidando da providência de Deus e sem confiança
no amor humano, buscam seu próprio lucro com lutas sem fé em Deus, há a
dádiva das crianças, nascidas não através de esforço humano, mas sim através
dos processos miraculosos da reprodução que Deus criou entre nós. O exemplo
não poderia ser mais apropriado. O que nós mesmos fazemos para ganhar filhos
e filhas? Muito pouco. O milagre inteiro da procriação e reprodução requer
nossa participação, mas dificilmente na forma a que damos o nome de nosso
trabalho. Nós não fizemos essas criaturas maravilhosas que andam e falam e
crescem entre nós. Participamos num ato de amor que nos foi providenciado
na estrutura da criação de Deus.
Jesus nos leva a entender os filhos do salmista em termos que representam
todos os relacionamentos íntimos e pessoais. Ele mesmo não procriou filhos,
contudo por seu amor ele nos fez todos filhos e filhas (Mt 12.46-50). Sua
descrição de tarefa foi “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (Jo
5.17). Ao unir Jesus e o salmo aprendemos um modo de trabalhar que não
adquire coisas ou ajunta posses, mas antes responde a Deus e desenvolve
relacionamentos. As pessoas estão no centro do trabalho cristão. No caminho
de peregrinação não dirigimos carroções cobertos de lona cheios de balaios
TRABALHO 81

para atravessar pradarias infíndas. Viajamos com pouca bagagem. O caráter de


nosso trabalho não é condicionado por realizações ou posses, mas na origem
dos relacionamentos: “Os filhos são o melhor presente de D e u s ” . Investimos
nossa energia em pessoas. Entre aqueles à nossa volta envolvemos filhos e
filhas, irmãs e irmãos assim como nosso Senhor fez conosco: “Ah, quanto são
abençoados vocês pais, com suas aljavas cheias de crianças!”
Pois faz pouca diferença a quantia de dinheiro que os cristãos carregam
em suas carteiras ou bolsas. Faz pouca diferença como nossa cultura valoriza
e recompensa nosso trabalho... se Deus não o faz. Porque nosso trabalho não
cria nem vida nem justiça. Hábitos de trabalho implacáveis, compulsivos
(“trabalhar seus dedos cansados até o osso”) que nossa sociedade recompensa
e admira são vistos pelo salmista como sinal de fé fraca e auto-afirmação
soberba, como se não se pudesse confiar em Deus para realizar sua vontade,
como se pudéssemos dar um jeito no universo por nosso próprio esforço.
O que faz diferença mesmo são os relacionamentos pessoais que criamos e
nutrimos. Aprendemos um nome; começamos uma amizade a que damos
prosseguimento com um sorriso — ou talvez até uma careta. A natureza é
esbanj adora com suas sementes, espalhando-as em toda parte; algumas delas
brotam. Dos numerosos apertos de mão e saudações, alguns germinam e crescem
numa amizade em Cristo. O culto cristão reúne a energia e focaliza a motivação
que nos transforma de consumidores que usam o trabalho para obter as coisas
em pessoas que são íntimas e em quem o trabalho é um modo de estar em
relacionamento criativo um com o outro. Tal trabalho pode ser feito dentro da
estrutura de qualquer serviço, carreira ou profissão. A medida que cristãos
fazem as tarefas que lhes são demarcadas dentro daquilo que o mundo chama
de trabalho, nós aprendemos a dar atenção e a praticar o que Deus está fazendo
em amor e justiça, em ajudar e curar, em libertar e alegrar.
As primeiras pessoas que cantaram esse salmo gastaram muito esforço para
chegar a Jerusalém. Alguns vinham de grandes distâncias e venciam dificuldades
enormes. Será que houve uma tendência entre os peregrinos de congratularem
uns aos outros pelo êxito da viagem, orgulhar-se de seu feito, trocar histórias
de suas experiências? Será que houve comparações sobre quem fez a peregri­
nação mais longa, a mais rápida, a que tinha trazido mais vizinhos, quem tinha
vindo mais vezes? Depois, no burburinho da multidão, alguém começava a
cantar: “Se D eus não edificar... guardar...” A peregrinação não é o centro; o
Senhor é o centro. Não importa o quanto lutaram para chegar lá, não importa o
que tenham feito em heroísmos — afastando bandidos, golpeando leões a
porrete, esmagando lobos — não é isso que vai ser cantado. O Salmo 127
insiste numa ótica em que nosso esforço fica na periferia e o trabalho de Deus
está no centro.
10
F e l ic id a d e
“Delicie-se com a bênção!
Deleite-se com a bondade!”

Todos vocês que temem a D eus, como vocês são abençoados!


Com quanta alegria vocês caminham nesta estrada plana e reta!

Vocês trabalharam muito e merecem tudo que têm pela frente.

Apreciem a bênção! Deleitem-se na bondade!

Sua esposa dará à luz filhos como uma parreira produz uvas,
sua casa será viçosa como um vinhedo.

Os filhos à roda de sua mesa

tão viçosos e promissores como rebentos de oliveiras.

Tenham respeitosa admiração pelo Sim de Deus.

Ah, como ele abençoa aquele que teme a Deus!

Deleitem-se na vida boa de Jerusalém

todos os dias de sua vida.

E deleitem-se em seus netos.


Paz sobre Israel!

SALMO 1 28
Alegria, que era a pequena publicidade do pagão,
é o segredo gigantesco do Cristão.
G. K. C H E S T E R T O N
revalece uma suposição geral no mundo de que é extremamente

P difícil ser um cristão. Embora seja verdade que muitos não se


desqualificam completamente como “cristãos”, eles costumam
modificar suas afirmações: cristãos comuns, eles se chamam. Respeitam a igreja,
freqüentam os cultos com regularidade, procuram viver decentemente. Mas
também se permitem margens um tanto generosas para fazer concessões às
tentações e pressões que o mundo lhes impõe. Estar realmente no caminho da
fé, aceitar com absoluta seriedade tudo que a Bíblia diz — bem, isso requer
uma predisposição para a santidade, uma força de vontade extraordinária e um
número não especificado de austeridades sem-nome que eles estão certos que
não iriam conseguir.
Mas isso está tão longe da verdade como o leste do oeste. A coisa mais fácil
do mundo é ser um cristão. O que é difícil é ser um pecador. Ser um cristão é
aquilo para o qual fomos criados. A vida de fé tem o suporte de uma criação
inteira e os recursos de uma magnífica redenção. A estrutura deste mundo foi
criada por Deus para podermos viver nele com facilidade e felicidade na
condição de filhos dele. A história em que caminhamos foi repetidamente
dirigida por Deus, de modo mais notável em Jesus Cristo, primeiro para mostrar-
nos e depois para ajudar-nos a viver cheios de fé e exuberantes por termos
propósito. No decurso do discipulado cristão descobrimos que sem Cristo
estávamos procedendo do modo difícil e que com Cristo procedemos do jeito
fácil. Não são os cristãos que têm vida dura, e sim os não-cristãos.

Promessas e pronunciamentos
Bênção é a palavra que descreve esse feliz estado de coisas. O Salmo 128
apresenta o termo. O salmo começa com três promessas descritivas: “Todos vocês
que temem a D e u s , como vocês são abençoados!” “Vocês... merecem tudo que
têm pela frente”. “Apreciem a bênção! Deleitem-se na bondade!” Conclui com
três pronunciamentos vigorosos: “Ah, como ele abençoa aquele que teme a Deus!”
“Deleitem-se na vida boa de Jerusalém”. “Deleitem-se em seus netos”. No meio
dessas promessas e pronunciamentos está uma ilustração de bênção: “Sua esposa
dará à iuz filhos como uma parreira produz uvas, sua casa será viçosa como um
vinhedo. Os filhos à roda de sua mesa tão viçosos e promissores como rebentos
de oliveiras”.1
86 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Tudo isso se soma em uma vida boa — uma vida delimitada de um lado por
promessas de bênçãos, do outro lado por pronunciamentos de bênçãos, e que
vivência as bênçãos entre esses limites.
A Bíblia é uma única longa exposição desta bênção. Em Gênesis, Deus,
tendo completado o trabalho da criação fazendo a humanidade macho e fêmea,
“abençoou-os” (Gn 1.28). Ele chamou Abraão e prometeu: “De ti farei uma
grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção”
(Gn 12.2). Cada uma das doze tribos de Israel recebeu uma bênção especial
que identifica sua própria característica de vitalidade (Gn 49). Davi, que de
tantas maneiras incorpora as intensidades e alegrias da fé, era “mais rico em
bênçãos do que qualquer outro israelita” — uma longa série de bênçãos, não
sem tristeza, na verdade, mas sempre cheia, até a borda, de vida. Jesus, na sua
introdução ao Sermão do Monte, identifica as oito qualidades-chave da vida
de uma pessoa de fé e anuncia cada uma com a palavra bem-aventurado. Ele
esclarece que o caminho do discipulado não é uma redução daquilo que já
somos, não é uma diluição de nossas vidas, nem uma subtração daquilo a que
estamos acostumados. Ao contrário, ele pode expandir nossas capacidades e
encher-nos com vida, de modo a transbordarmos de alegria. A conclusão da
Bíblia é aquele grandioso, trovejante livro de Apocalipse no qual se ouvem
sete salvas de bênçãos (1.3; 14.13; 16.15; 19.9; 20.6; 22.7,14). As bênçãos
bombardeiam de um lado a outro através do campo de batalha no qual Cristo
completa sua vitória sobre o pecado e estabelece seu governo eterno. “O livro
inteiro se firma na estrutura da bênção daqueles que alcançam e se atêm à
revelação bem-aventurada dos mistérios de Deus (1.3 confirmado em 22.7)”.2
À medida que lemos essa história de bênção e nos familiarizamos com os
homens e as mulheres vivenciando a bênção de Deus, reconhecemos que não é
algo externo ou efêmero. Não é uma questão de ter um dia bom, nem um período
de boa sorte. E realmente uma
força interior da alma — e a felicidade que ela cria... a força vital, sem a
qual nenhum ser vivo pode existir. A felicidade não pode ser dada a uma
pessoa como alguma coisa que se acha fora dela... A ação de Deus não cai
fora, e sim no centro exato da alma; aquilo que ela nos dá não é algo externo,
e sim a energia, o poder de criá-lo... A bênção assim compreende o poder
de viver em seu sentido mais profundo e mais abrangente. Nada que pertence
à ação e a tornar a vida verdadeira pode ficar fora da bênção... Bênção é o
poder vital, sem a qual nenhum ser vivo pode existir.3
É isso que enche e circunda a pessoa que está no caminho da fé.

Compartilhando na vida
A ilustração que forma o centro do salmo mostra como a bênção funciona:
“Sua esposa dará à luz filhos como uma parreira produz uvas, sua casa será
viçosa como um vinhedo/ Os filhos à roda de sua mesa tão viçosos e promissores
FELICIDADE 87

como rebentos de oliveiras”. A ilustração, como esperaríamos, é condicionada


pela cultura hebraica, na qual os sinais padrões de felicidade eram uma esposa
que tivesse muitos filhos, e filhos que se reuniam e cresciam à volta da mesa:
videira frutífera e rebentos de oliveira. Essa ilustração é apenas isso, um exemplo
que não precisamos reproduzir exatamente para experimentar uma bênção (Nós,
no caso, não procuramos ter o maior número de filhos possível —-nem tentamos
fazê-los permanecer em casa a vida toda!). Mas o sentido ainda está conosco:
Bênção tem inerente nela o poder de aumentar. Funciona no compartilhamento
e deleite da vida. “A vida consiste no constante encontro de almas, que precisam
compartilhar seu conteúdo uma com a outra. O abençoado dá de si aos outros,
porque a força instintivamente emana dele e em volta dele... A característica
de bênção é de se multiplicar”.4
João Calvino, pregando para a sua congregação em Genebra, Suiça, mostrou
que precisamos desenvolver melhores e mais profundos conceitos de felicidade
do que aqueles que o mundo mantém, que fazem com que uma vida feliz consista
em “sossego, honras, e grande riqueza”.5 O Salmo 128 nos ajuda a fazer isso.
Grande parte da felicidade do mundo depende de tirar de um para satisfazer
outro. Para erguer meu padrão de vida, pessoas em outra parte do mundo
precisam abaixar o deles. A crise mundial de fome que enfrentamos hoje é
resultado desse método de buscar a felicidade. Nações industrializadas adquirem
apetite por luxo cada vez maior e mais altos padrões de vida, e então um número
cada vez maior de pessoas é levado à pobreza e à fome. Não precisa ser assim.
Os peritos do assunto da fome global dizem que há o suficiente para dar
subsistência para todos no momento atual. Não temos um problema de produção.
Temos a capacidade agrícola para produzir alimento suficiente. Temos a
tecnologia do transporte para distribuir o alimento. Mas temos um problema
de ganância: se eu não pego o meu enquanto posso, poderei não ser feliz. O
problema da fome não será resolvido pelo governo nem pela indústria, e sim
na igreja, entre cristãos que aprendem um modo diferente de buscar felicidade.
Bênção cristã é um reconhecimento de que “mais abençoado é dar do que
receber”. À medida que aprendemos a dar e compartilhar, nossa vitalidade
aumenta, e as pessoas a nossa volta tomam-se vinhedos frutíferos e rebentos
de oliveira em nossas mesas.
As bênçãos que são prometidas a cristãos, pronunciadas sobre eles e
experimentadas por eles não excluem, é claro, dificuldades. A Bíblia nunca
indica isso. Mas as dificuldades não são inerentes à fé: elas vêm de fora na
forma de tentações, seduções, pressões. Não se passa um dia sem que precisemos
tratar daquela antiga ameaça tríplice que os cristãos na Idade Média resumiam
sob os cabeçalhos do mundo, a carne e o diabo: o mundo — a sociedade da
humanidade orgulhosa e arrogante que desafia e tenta eliminar o governo e a
presença de Deus na história; a carne — a corrupção que o pecado já introduziu
em nossos próprios apetites e instintos; e o diabo — a maligna vontade que nos
88 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

tenta e seduz para longe da vontade de Deus. Temos que lutar com tudo isso.
Estamos numa batalha. Há uma luta da fé para ser travada.
Mas o caminho da fé em si está afinada com aquilo que Deus já fez e está
fazendo. A estrada que viajamos é a bem-viajada estrada do discipulado. Não
é um caminho de enfado ou desespero ou confusão. Não é um caminho de
tatear às cegas, mas é, sim, um caminho de bênção.

Viajando pelas estradas


Não há artimanhas que ajudem a entrar nessa vida de bênção e não se
exija sorte. Nós simplesmente nos tornamos cristãos e começamos a vida de
fé. Reconhecemos Deus como sendo quem nos fez e amou, e aceitamos Cristo
como o meio pelo qual podemos ter um relacionamento vivo com Deus.
Aceitamos a verdade anunciada e proclamada de que Deus está no centro de
nossa existência, ficamos sabendo como ele construiu este mundo (a criação
dele), como ele providenciou para a nossa redenção, e passamos a andar
nesse caminho. Nas palavras claras do salmo: “Todos vocês que temem a
D e u s , como vocês são abençoados! Com quanta alegria vocês caminham nesta
estrada plana e reta!”
“Temam a D e u s .” Reverenciem poderia ser uma palavra melhor. Respeitem.
A Bíblia não se interessa em saber se cremos em Deus ou não. Ela presume
que todo mundo faz isso mais ou menos. O que lhe interessa é a resposta que
temos para ele: “Será que vamos deixar Deus ser como ele é, majestoso e
santo, vasto e maravilhoso, ou sempre vamos procurar talhá-lo para ser do
tamanho de nossas mentes pequenas, insistir em confiná-lo dentro dos limites
com os quais nos sentimos confortáveis, recusar pensar nele senão em termos
convenientes ao nosso estilo de vida? Mas então não estamos tratando com o
Deus da criação e o Cristo da cruz, e sim com uma reprodução de lojinha de
algo feito à nossa imagem, geralmente por razões comerciais. Para nos prevenir
de todo coleguismo blasfemo com o Todo-Poderoso, a Bíblia fala do temor do
Senhor — não para nos assustar, mas para levar-nos a uma atenção reverente
diante da grandeza sobrepujante de Deus, deixar de reclamar e falar e parar de
correr e nos movimentar para podermos realmente vê-lo como ele é e escutá-lo
quando ele fala suas palavras misericordiosas de perdão que transformam vidas.
“Caminhem em sua estrada plana e reta”. Não só deixamos Deus ser Deus
como ele realmente é, como começamos a fazer as coisas para as quais ele nos
fez. Tomamos uma certa rota; seguimos certas instruções; fazemos coisas
específicas. Há padrões éticos para seguir, há valores morais para cultivar, há
disciplinas espirituais para se praticar, há justiça social para buscar, há
relacionamentos pessoais para desenvolver. Nada disso é difícil de entender.
“Meras éticas”, gracejou Austin Farrer certa vez, “não pedem explanação tão
FELICIDADE 89

augusta ou misteriosa; depois do encanamento, a moralidade é a conveniência


social número um.”6
Por causa das ambigüidades do mundo em que vivemos e dos defeitos em
nossas próprias vontades, não faremos nada disso com perfeição e sem falha.
Mas o importante não é isso. O caminho é plano — caminhe nele. Observar as
regras e obedecer às ordens é simplesmente bom senso. As pessoas que estão
sempre transgredindo os regulamentos, experimentando outras estradas,
tentando criar seu próprio sistema de valores e verdade a começar do zero,
passam a maioria de seu tempo no telefone falando com alguém para tirá-los
de enroscadas e ajudá-los a consertar os estragos, e depois ainda perguntam
tolamente “O que deu errado?” Como disse H.H. Farmer, “Se você caminha em
direção contrária à natureza do universo, só ganha farpas”.
Alguns que lêem o Salmo 128 dirão: “Claro, é assim comigo. Todo mundo
não sente isso?” Outros só ficarão intrigados para saber como alguém pode
cantar um cântico tão alegre num mundo em tanta desordem. John Henry
Newman, certa vez, explicou isso assim: “Se eu quero viajar para o norte e
todas as estradas são cortadas para o leste, é natural que eu reclame das estradas.
Não encontrarei nada senão obstáculos; terei que passar por cima de muros, e
atravessar rios, e dar voltas e no fim fracassar no meu propósito”. Tal é a
conduta daqueles que tentam conseguir algum sentido em suas vidas, buscando
seu direito à felicidade, mas recusando-se a tomar as estradas bem viajadas
que levam para lá. Estão tentando chegar ao Monte Sião mas ignoram todos os
indicadores da estrada e leituras de bússola, e teimosamente evitam os trilhos
enquanto cortam galhos fazendo seu caminho pela mata. “Não dá para ver que
eles necessariamente têm que encontrar contrariedades, cruzamentos,
desapontamentos, e fracasso?” Andam quilômetro após quilômetro, procurando
seu destino mas nunca o enxergando. “E depois acusam a religião de interferir
com o que eles consideram ser seus prazeres e desejos inocentes”. Mas a religião
só é uma inconveniência para quem viaja ao contrário da criação, com propósitos
contrários à direção que leva à redenção.7
Todo o mundo quer ser feliz, ser abençoado. São demais os indivíduos que
voluntariamente recusam dar atenção àquele que quer nossa felicidade, e
supõem, em sua ignorância, que o caminho cristão é um meio mais difícil de
conseguir o que querem do que agir por conta própria. Estão enganados. Os
modos de Deus e a presença de Deus estão onde nós experimentamos a felicidade
que dura. Aja do modo fácil: “Todos vocês que temem a D e u s , como vocês são
abençoados! Com quanta alegria vocês caminham nesta estrada plana e reta!
11
P ersev era nça
“Nunca conseguiram me dominar”

“Eles me chutaram por aí desde que eu era novo ”


— é assim que Israel conta isso —
“Eles me chutaram por aí desde que eu era novo,
mas nunca conseguiram me dominar.
Seus lavradoresfizeram longos sulcos
de alto a baixo nas minhas costas;
Mas D eus não tolerou isso,
elefica junto de nós;
E n tão D eus a rreben tou os arreio s
d o s la v ra d o re s m au s em p ed a cin h o s. ”

Ah, que aqueles que odeiam Sião


se arrastem em humilhação;
Que sejam como capim em terra pouco profunda
que seca antes da colheita,
Antes que os empregados possam recolhê-la,
os ceifeiros fazem a colheita,
Antes que os vizinhos tenham chance de exclamar:
“Parabéns pela sua ótima colheita!
Nós os abençoamos em nome de D eus! ”
SALMO 129
Paciência é valer-se de fo rça s que estão p o r baixo; é poderosamente positiva,

embora numa visão natural pareça só com sentar-se no banco.

Como eu persistiria contra forças positivas erosivas se

eu não estivesse contando com forças invisíveis?

E a paciência tem efeito tônico positivo sobre as pessoas,

por causa da presença da pessoa paciente,


elas reanimam e prosseguem, como se ele fosse o giroscópio do navio

fornecendo um nível estável. Mas a própria pessoa paciente não sente prazer nisso.
PAUL GOODMAN
er chamado de “Caxias” por ficar bem grudado no que faz não é

S muito agradável, mas eu tenho uma apreciação toda especial


pela expressão. Eu ouvi a palavra muitas vezes quando era novo,
na maioria das vezes, se me lembro bem, partindo de minha mãe. Eu era uma
criatura de entusiasmos repentinos, porém temporários. Tinha paixão por
construir aeromodelos, e então, um dia, misteriosamente, toda a vontade sumiu
e o porão ficou atravancado de modelos armados pela metade. Depois a paixão
que me dominou foi colecionar selos. Recebi um álbum de selos imenso no
Natal, filiei-me a um clube de filatelia, adquiri montes e mais montes de selos,
e depois um dia, sem explicação, perdi o interesse. O álbum ficou empoeirado
e os montes de selos ficaram soltos. Depois foram cavalos. Todo sábado pela
manhã meu melhor amigo e eu íamos de bicicleta para onde havia cavalos, a
pouco mais de três quilômetros da cidade, arranjávamos cavalos e subíamos as
trilhas nos morros de Montana imaginando que éramos exploradores da América
dos primeiros tempos, Lewis e Clark, ou, menos pretensiosamente, os artistas
de cinema Gene Autry e Lone Ranger. E então, de um dia para outro, esse
mundo todo sumiu e no lugar dele havia — meninas.
Foi durante essas mais ou menos freqüentes transições de um entusiasmo
para outro que eu fui castigado com a crítica “Eugene, você não tem o grude da
persistência. Você nunca termina nada”. Anos mais tarde aprendi que a igreja
tinha uma palavra mais elegante para a mesma coisa: perseverança. Também
descobri que é uma das marcas do discipulado cristão e aprendi a admirar
aquelas pessoas que a exemplificam. Pelo caminho, o Salmo 129 se incluiu em
minha admiração.

Fé resistente
“Eles me chutaram por aí desde que eu era novo” — é assim que Israel
conta isso — “Eles me chutaram por aí desde que eu era novo, mas nunca
conseguiram me dominar”. O povo de Deus é forte. Por longos séculos aqueles
que pertencem ao mundo têm promovido guerra contra o caminho da fé, e eles
não conseguem vencer. Já tentaram de tudo, mas nada funcionou. Tentaram
perseguição, ridicularização, tortura e exílio, mas o caminho da fé continuou
saudável e robusto: “Eles me chutaram por aí desde que eu era novo, mas
nunca conseguiram me dominar”.
94 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Você pensa na fé cristã como sendo um estilo de vida frágil que só pode
florescer quando as condições climáticas estão certinhas, ou você a vê como
uma planta resistente, perene, que subsiste através de tempestade e seca,
sobrevive aos passos de pés descuidados e aos ataques de vândalos? Aqui está
o ponto de vista de um escritor bíblico: “Ele cresceu perante Deus como plantinha
de pouco viço em campo seco... “Ele foi desprezado e passado de lado, um
homem que sofria, que conheceu a dor de perto... Davam-lhe só uma olhada e
voltavam o rosto” (Is 53.1-3). E um quadro de extrema rejeição e dolorosa
perseguição. O que poderia advir de um começo tão pobre, tão precário? Não
muito, pareceria. Contudo veja os resultados: “Ele verá vida vir disso, vida,
vida e mais vida, e o plano de Deus prosperará através daquilo que ele faz.
Daquele terrível trabalho penoso da alma, ele verá que vale a pena e ficará
feliz por tê-lo feito. Através do que ele aprendeu, meu justo, meu servo, fará
muitos ‘justos’, levando ele mesmo a carga dos pecados deles” (Is 53.10,11).
A pessoa de fé sobrevive a todos os opressores. A fé perdura.
Lembramos como foi com Jesus. Seu ministério começou com quarenta
dias de tentação no deserto e terminou naquela memorável noite de provação e
dureza no Getsêmani e Jerusalém. E alguém terá vivido pancadas tão
implacáveis e impiedosas no interior e no exterior? Primeiro houve as tentativas
astutas para que ele saísse da rota, cada tentação disfarçada como sugestão
para melhora, oferecida com a melhor das intenções para ajudar Jesus no
ministério a que ele havia se proposto com tanta ingenuidade e inocência.
Depois, na outra ponta, quando todas as tentações haviam fracassado, aquele
assalto brutal quando seu corpo foi feito uma câmara de torturas. E sabemos o
resultado: uma incompreensível bondade (“Pai, perdoa-lhes”), uma serenidade
sem precedentes (“Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito”) e — a ressurreição.
E Paulo. Sua vida temerariamente lançada de adversidade a perseguição e
de volta à adversidade. Em uma passagem ele olha para trás e resume:
Fui espancado vezes sem conta. Enfrentei a morte várias vezes. Fui açoitado
pelos judeus as trinta e nove vezes regulamentares cinco vezes. Com varas
me bateram três vezes. Fui apedrejado uma vez. Sofri naufrágio três vezes.
Fiquei vinte e quatro horas no mar aberto. Em minhas viagens estive em
perigo constante de rios, de bandidos, de meus próprios conterrâneos e de
pagãos. Enfrentei perigo nas ruas de cidades, perigo no deserto, perigo em
alto mar, perigo entre falsos cristãos. Já conheci trabalho enfadonho,
exaustão, noites inteiras em claro, fome e sede, jejuns, frio e abandono às
intempéries. À parte de todas as tribulações externas tenho o peso diário da
responsabilidade por todas as igrejas. Pensam que alguém possa estar fraco
e que eu não sinta sua fraqueza? Alguém tem sua fé desconcertada sem que
eu me queime de indignação? (2 Co 11.23-29 cf. trad. Phillips).
PERSEVERANÇA 95

Nada disso teve poder para forçar Paulo a sair do seu percurso. Nada disso o
convenceu de que ele estava no caminho errado. Nada disso o persuadiu de
que tivesse feito a opção errada anos antes na Estrada de Damasco. No final de
sua vida, entre as últimas palavras que ele escreveu está esta sentença: “Tenho
meu olho na meta, onde Deus nos acena para irmos adiante — para Jesus. Já
parti e estou correndo, e não volto para trás” (Fp 3.13,14).
Apego. Perseverança. Paciência. O caminho da fé não é moda adotada em
um século apenas para ser descartada no seguinte. Dura longo tempo. E o
caminho que funciona. Já foi testado completamente.

Arreios cortados, grama seca


Uma sentença interessante do Salmo 129 fornece um detalhe fascinante e
também útil. A sentença é: “Então D eus arrebentou os arreios dos lavradores
maus em pedacinhos”. O versículo anterior dá o contexto: “Seus lavradores
fizeram longos sulcos de alto a baixo nas minhas costas”. Imagine Israel, a
pessoa de fé, estendida no chão, prostrada. Os inimigos atrelam os bois e
arados e começam a cortar longos sulcos nas costas de Israel. Longos cortes
se abrem na pele e na carne, para cima e para baixo, sistematicamente, como
um lavrador trabalhando um campo. Imagine tudo isso: o sangue, a dor, a
crueldade para lá e para cá.
E depois, de repente, a percepção de que não dói mais. Os bois ainda
estavam pisando para cima e para baixo, os homens ainda estavam gritando
suas ordens, mas os arados não funcionavam. “ D eu s arrebentou os arreios
dos maus lavradores em pedacinhos.” As cordas dos arreios, ligando o arado
aos bois, foram cortadas. Os arados da perseguição não estão funcionando, e
os lavradores nem notam! Eles caminham subindo e descendo, alheios ao
fato de que sua oposição já é inútil. Estão perdendo seu tempo e desperdiçando
sua energia. Os maus lavradores são figuras cômicas, solenemente e
eficientemente fazendo seu trabalho, orgulhosos e empolgados com sua
própria importância, pensando em como estão fazendo história pelo seu feito
nas costas de Israel. Se olhassem para trás (o que nunca fazem — seus pescoços
duros tornam esse exercício muito doído), veriam que seu tumulto e blasfêmia
não estão produzindo resultado nenhum: “ D eus arrebentou os arreios dos
lavradores maus em pedacinhos”.
A ilustração final do salmo conta uma verdade semelhante. Oposição a
pessoas de fé é como “capim em terra pouco profunda”. A Palestina é uma
terra rochosa; em muitos lugares há apenas uma camada fina de solo sobre o
leito de rocha. As sementes brotavam e cresciam nessa terra, mas a grama não
durava; o solo fino não a sustentaria. Já ao meio-dia os brotos secariam. Não
haveria colheita ali. Não haveria ceifeiros desperdiçando seu tempo ali. Nenhum
viajante na estrada olharia para lá e exclamaria: “Colheita linda vocês tem aí.
96 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Deus abençoe vocês!” A ilustração é uma caricatura, que visa provocar um


sorriso das pessoas de fé.
A vida do mundo que é oposta ou indiferente a Deus é seca e fútil. E arar
um campo, achando que você está pisando por cima do povo de Deus e
cortando em tiras os seus propósitos, mas inconsciente de que faz tempo que
seu arado foi desvinculado. É pensar ingenuamente que se pode obter uma
colheita de grão daquele pedacinho de terra em cima da laje de rocha. O
caminho do mundo está salpicado de entusiasmos breves, como o capim
naquele centímetro de solo, brotando tão maravilhosamente e sem esforço,
mas secando com a mesma rapidez. O caminho do mundo está marcado por
propósitos orgulhosos que desafiam a Deus, mas que não estão atrelados à
eternidade e, portanto são sem valor e fúteis.

A paixão da paciência
Há uma frase nesse salmo que o bom gosto preferiria deletar, mas que a
honestidade pede tratar: “Ah, que aqueles que odeiam Sião se arrastem em
humilhação”. A ira ferve e pulsa nas palavras. Um sentimento de injustiça ficou
inflamando a ferida. Ressentimento acumulado pede um acerto de contas.
Por mais que sintamos que não é apropriado esse tipo de coisa no homem ou
mulher de fé, temos também que admitir que é autêntico. Pois quem é que não
sente repentes de ira contra aqueles que tomam duro e difícil o nosso caminho?
Há ocasiões na longa obediência do discipulado cristão em que nos cansamos e
a fadiga encurta nossa paciência. Em tais horas ver alguém voando de uma
sensação, um entusiasmo para outso, desistindo de compromissos, fugindo a
responsabilidades, suscita nossa raiva — e às vezes nossa inveja. Não importa
que estejamos, em outras bases, convencidos de que seus atos de infidelidade
sejam uma admissão de enfado, que seus prazeres sejam as mais superficiais
distrações das quais precisam voltar as ansiedades cada vez piores e solidão
mais vazia. Mesmo quando sabemos que estamos fazendo um trabalho bom
que tem um futuro bom, as brincadeiras e animosidades desses outros tornam
um dia difícil mais duro, e a raiva aumenta.
Não podemos desculpar o salmista por se zangar com base em não ser ainda
um cristão, porque ele já tinha Levítico para ler: “Não aborreça seu irmão no
seu íntimo... Não se vingue nem guarde mágoa contra os filhos de seu próprio
povo, mas você amará seu próximo como a você mesmo” (Lv 19.17,18). E ele
tinha Êxodo: “Se encontrar desgarrado o boi do seu inimigo ou o seu jumento,
você o conduza de volta. Se vir caído debaixo da sua carga o jumento daquele
que aborrece você, não o abandone, mas ajude a erguê-lo (Êx 23.4,5). E ele
tinha Provérbios: “Não dê risada quando seu inimigo cair; não fique contente
quando ele tropeçar” (Pv 24.17). Quando Jesus disse “Ame a seus inimigos”,
ele não acrescentou nada aquilo que esse salmista já tinha diante de si.
PERSEVERANÇA 97

Então não daremos desculpas para a índole vingativa do salmista. O que


faremos é admirar sua energia. Pois é a neutralidade apática, mole, que mata a
perseverança, age como um vírus na corrente sanguínea e debilita os músculos
do discipulado. A pessoa que inventa desculpas para hipócritas e racionaliza os
excessos dos maus, que perde o sentimento de oposição ao pecado, que obscurece
a diferença entre fé e recusa, entre graça e egoísmo — essa é a pessoa que se
deve temer. Pois se não há tanta diferença assim entre o caminho de fé e os
caminhos do mundo, não adianta muito fazer o esforço de conservar-se nele.
Nós vagamos nas marés da conveniência. Boiámos em modas. E com respeito
às coisas a que damos importância que somos capazes de expressar ira. Um pai
vê uma criança sair correndo de repente para o meio da rua e escapar por pouco
de ser pega por um carro, e grita furioso com ambos, — a criança e o motorista.
A ira pode não ser a expressão de preocupação mais apropriada, mas mostra
preocupação. A indiferença seria desumana.
Aqui também. Os salmos não são cantados por peregrinos perfeitos. Os
peregrinos de antigamente cometiam seus erros, assim como nós cometemos
os nossos. Perseverança não significa “perfeição”. Significa que prosseguimos.
Não desistimos quando descobrimos que ainda não somos maduros e que há
ainda uma longa viagem pela frente. Somos pegos gritando com nossas esposas,
nossos maridos, nossos amigos, nossos chefes, nossos funcionários, nossos
filhos. Nossos gritos (embora não tudo!) significam que damos importância a
alguma coisa: importamo-nos com Deus; importamo-nos com os modos do
reino; importamo-nos com a moralidade, a justiça, a retidão. O caminho da fé
centra e absorve nossa vida, e quando alguém torna difícil o caminho, joga
blocos de impedimento no caminho dos inocentes que fazem tropeçar, cria
dificuldades para aqueles que são jovens na fé e sem prática na obediência, há
ira: “Ah, que aqueles que odeiam Sião se arrastem em humilhação!”
Pois a perseverança não é resignação, agüentar as coisas como estão, fazer
as mesmas coisas anos seguidos, nem ser um capacho em que as pessoas limpem
seus pés. Resistência não é um apego desesperado, e sim um viajar de força em
força. Não há nada cansado ou monótono em Isaías, nada despreparado em
Jesus, nada insípido em Paulo. A perseverança é triunfante e viva.
O salmista vivia entre profetas e sacerdotes que tratavam do seu espírito
vingativo e nutriam-no em direção a um melhor modo de tratar os maus do que
o de amaldiçoá-los, aprendendo o que Charles Williams certa vez descreveu
como sendo a “paixão da paciência”. Nós estamos num aprendizado semelhante.
Mas não vamos aprendê-la engolindo nosso sentimento de afronta por um lado,
ou por outro desculpando toda a maldade como sendo neurose. Nós o faremos
oferecendo a Deus nossa ira, a ele que nos treina no amor criativo.
98 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Deus fica junto de nós


A sentença fundamental do Salmo 129 é “ D eus não tolerou isso, ele fica
junto de nós”. Quando a Bíblia diz que Deus fica conosco, a ênfase está em seu
relacionamento pessoal confiável, que ele sempre está presente para nós. A
frase não significa que ele corresponde a algum ideal abstrato do que seja
correto; fala de um relacionamento pessoal certo entre Criador e criação. “Justo”
é uma tradução comum para o termo hebraico. “Justo é completamente um
termo denotando relacionamento, e ... faz isso no sentido de referir-se a um
relacionamento real entre duas partes ... e não ao relacionamento de um objeto
que está sob consideração de uma idéia”.1
Que “ele fica junto de nós” é a razão pela qual os cristãos podem rever uma
longa vida cortada em todas as direções com crueldades, tragédias que vem
sem aviso, reveses inesperados, sofrimentos, desapontamentos, depressões —
voltar os olhos para tudo isso e ver como uma estrada de bênção, e fazer um
cântico daquilo que vemos. “Eles me chutaram por aí desde que eu era novo,
mas nunca conseguiram me dominar.” Deus mantém firme seu relacionamento.
Ele estabelece conosco um relacionamento pessoal e fica com ele. A realidade
central para os cristãos é o compromisso pessoal, inalterável, perseverante que
Deus faz conosco. A perseverança não é o resultado de nossa determinação,
mas sim o resultado da fidelidade de Deus. Nós sobrevivemos no caminho da
fé não porque temos resistência extraordinária, mas porque Deus fica junto de
nós. O discipulado cristão é um processo de prestar cada vez mais atenção à
justiça de Deus e cada vez menos atenção a nossa própria; encontrar o sentido
de nossa vida não em examinar nossos estados de espírito e motivações e
moralidades, e sim em crer na vontade e nos propósitos de Deus; fazer um
mapa da fidelidade de Deus, não um gráfico da elevação e queda de nossos
entusiasmos. E a partir desse tipo de realidade que nós adquirimos perseverança.
É o que o escritor da carta neotestamentária aos Hebreus fez. Ele cantou
uma litania de pessoas que viveram pela fé, isto é, pessoas que centraram suas
vidas no Deus justo que ficou junto deles através de todas as dificuldades para
que eles fossem capazes de perseverar. Viveram com uma constância
descomunal de propósito e com uma integridade muito admirável. Nenhum
deles viveu sem pecado. Todos fizeram sua cota de erros e se meteram em
episódios de desobediência e rebelião. Mas Deus ficou junto deles com tanta
persistência e garantia que eles aprenderam como ficar junto de Deus. Dessa
litania vem este chamado:
Dispam-se do excedente, comecem a correr — e nunca desistam! Nada de
gordura espiritual extra, nada de pecados parasíticos. Conservem os olhos
em Jesus, o que tanto começou como foi até o final dessa corrida em que
estamos. Estudem como ele o fez. Por ele nunca perder de vista para onde
PERSEVERANÇA 99

se dirigia— aquele finai alegre em e com Deus— ele pôde agüentar qualquer
coisa pelo caminho: cruz, vergonha, tudo. E agora ele está lá, no lugar de
honra, bem ao lado de Deus (Hb 12.1,2).
Alguns daqueles cristãos primitivos a quem esse escritor se dirigia recla­
mavam, ao que parece, que a vida estava muito dura para eles. Não podiam
suportar mais (reclamações que, de tempos em tempos, são ouvidas em todas
as congregações de crentes). Não viam a utilidade de crer num Deus que nunca
viam, servir um Deus que não lhes dava o que queriam, confiar num Deus que
deixa que bebês morram e pessoas boas sofram. Há um choque nada absurdo
de realidade para acabar com tolices nas palavras com que o pastor deles os
exortou: “Neste jogo com tudo contra o pecado, outros têm sofrido muitíssimo
mais do que vocês, para não dizer daquilo que Jesus sofreu — todo aquele
derramamento de sangue! (Hb 12.3). Parem de reclamar. Olhem aquela estrada
da peregrinação e vejam bem de onde vocês vieram e aonde estão indo. Peguem
o refrão do grande cântico: “Eles me chutaram por aí desde que eu era novo —
é assim que Israel conta isso — Eles me chutaram por aí desde que eu era
novo, mas nunca conseguiram me dominar”.

Os propósitos duram
O motivo de minha infância e adolescência ser um entusiasmo atrás de
outro foi que eu ainda não tinha encontrado um centro organizador para minha
vida e um alvo que exigiria meu todo e meu melhor. A fé cristã é a descoberta
daquele centro no Deus que fica junto de nós, o Deus justo. O discipulado
cristão é uma decisão de caminhar em seus caminhos, com constância e firmeza,
e então descobrir que o caminho integra todos os nossos interesses, paixões e
dons, nossas necessidades humanas e nossos anseios e aspirações eternas. E o
caminho da vida para a qual fomos criados. Há nele desafios sem fim para nos
manter sempre na aresta do crescimento da fé; há sempre o Deus que fica junto
de nós para tornar possível perseverarmos.
Na peça encantadora e breve de Charles Williams, chamada Grab and Grace,
há um diálogo entre Grace [Graça] e um homem que está experimentando na
religião, tentando experiências diversas, “na ioga uma semana, no budismo na
outra, no espiritualismo na seguinte”. Graça menciona o Espírito Santo. Grab
[Apego] diz: “O Espírito Santo? Bom. Vamos pedir que ele venha quando eu
estiver com disposição para isso, porque ela passa tão rapidamente e depois
tudo é tão monótono”.
E a Graça responde: “Meu senhor, os propósitos duram”.
12
E sperança
“Eu oro a Deus... e aguardo
o que ele dirá e fará ”

“Socorro, D eus, — caiu ofundo da minha vida!


Mestre, ouça meu grito por socorro!
Ouça bem! Abra seus ouvidos!
Ouça meus brados por misericórdia.
Se você, D eus, guardasse registros de maus procedimentos,
quem teria uma chance?
Como acontece, o perdão é seu hábito,
e é por isso que você é adorado.
Eu oro a Deus — minha vida uma oração —
e aguardo o que ele dirá efará.
Minha vida está totalmente diante de Deus, meu Senhor,
aguardando e vigiando, até amanhecer,
aguardando e vigiando até amanhecer.
Ah, Israel, espero e vigio por Deus —
com a chegada de Deus vem o amor,
com a chegada de Deus vem a redenção generosa.
Nenhuma dúvida há sobre isso — ele redimirá a Israel,
comprará Israel de volta do cativeiro do pecado.
SALMO 130
A esperança é uma projeção da imaginação; o desespero também é.

O desespero está pronto demais para abraçar os males que prevê;

a esperança é uma energia e acorda a mente para explorar


todas as possibilidades de combatê-los...

Em resposta à esperança a imaginação é despertada para imaginar todas

as questões possíveis, tentar todas as portas, juntar no quebra-cabeça

até mesmo as peças mais heterogêneas. Depois da solução


ter sido achada é difícil relembrar os passos

tomados — tantos deles estão logo abaixo

do nível da consciência.

THORNTON WILDER
er humano é estar em dificuldades. A angústia de Jó é nossa

S epígrafe: “O homem é nascido para as dificuldades assim como


as faíscas voam para cima”. O sofrimento é uma característica do
humano. Animais podem ser machucados, mas não sofrem. A terra pode ser
devastada, contudo não pode sofrer. O homem e a mulher, só eles na criação,
sofrem. Pois sofrimento é dor mais: dor física ou emocional mais a percepção
de que nosso próprio valor como pessoas está ameaçado, que nosso próprio
valor como criaturas feitas na dignidade de Deus é posta em questão, que nosso
próprio destino como almas eternas é posto em perigo. Nós seremos, afinal,
nada? Vamos ser descartados? Seremos rejeitados no universo e jogados no
monte de lixo da humanidade porque nossos corpos degeneram ou nossas
emoções funcionam mal ou nossas mentes ficam confusas, ou nossas famílias
acham defeitos em nós ou a sociedade nos evita? Qualquer uma dessas coisas,
ou, mais provável ainda, uma combinação delas, pode nos colocar na situação
que o Salmo 130 descreve como sendo “caiu o fundo da minha vida!”
Um cristão é uma pessoa que decide enfrentar e passar pelo sofrimento. Se
não tomamos essa decisão, estamos em perigo por todos os lados. Um homem
ou uma mulher de fé que deixa de reconhecer e tratar com o sofrimento se
torna, por fim, ou um cínico ou um melancólico ou um suicida. O Salmo 130
luta poderosamente com o sofrimento, canta seu caminho através dele e provê
experiência utilizável para aqueles que estão comprometidos a viajar no caminho
da fé a Deus através de Jesus Cristo.

Dando dignidade ao sofrimento


O salmo começa em dor: “Socorro, D eus — caiu o fundo da minha vida!
Mestre, ouça meu grito por socorro! Ouça bem! Abra seus ouvidos! Ouça meus
brados por misericórdia”. O salmo é uma oração angustiada.
Ao colocar a angústia abertamente e dar-lhe voz como uma oração, o salmo
dá dignidade ao nosso sofrimento. Não olha o sofrimento como algo
ligeiramente embaraçoso que deve ser silenciado e trancado num armário (onde
finalmente se torna um esqueleto) porque esse tipo de coisa não deveria
acontecer com uma verdadeira pessoa de fé. E não o trata como um quebra-
cabeça que precisa ser explicado, e por isso passado a teólogos ou filósofos
para que elaborem uma resposta. O sofrimento é colocado de frente,
abertamente, veementemente perante Deus. E reconhecido e expresso. E descrito
e vivido.
104 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Se o salmo nada mais fizesse do que isso, já seria um prêmio, uma jóia,
porque é difícil encontrar alguém em nossa cultura pronto a nos respeitar quando
sofremos. Vivemos numa época em que a meta de toda pessoa é estar
perpetuamente sadia e constantemente feliz. Se qualquer um de nós não
consegue viver à altura dos padrões anunciados como normais, somos rotulados
como problema para ser resolvido, e uma leva de pessoas bem-intencionadas
vem correndo para experimentar várias curas em nós. Ou somos olhados como
um enigma para ser desvendado e, neste caso, somos sujeitos a discussões
infindáveis, a ter nossas vidas examinadas por pesquisadores zelosos para
encontrarem o indício que explicará nossa falta de saúde ou felicidade. Ivan
Illich, em uma entrevista, disse: “Sabe, há um mito americano que nega o
sofrimento e a sensação de dor. Age como se não devessem existir, e assim
desvaloriza a experiência do sofrimento. Mas este mito nega nosso encontro
com a realidade”.1
O evangelho oferece uma visão diferente de sofrimento: em sofrimento nós
entramos nas profundezas; estamos no coração das coisas; estamos perto de
onde Cristo estava na cruz. P.T. Forsyth escreveu:
A profundeza é simplesmente a altura invertida, como o pecado é o índice
de grandeza moral. O grito não é só verdadeiramente humano, mas também
é divino. Deus é mais profundo do que a mais profunda profundidade no
homem. Ele é mais santo do que nosso mais profundo pecado é fundo. Não
há profundeza tão funda para nós como quando Deus revela sua santidade
ao tratar do nosso pecado... [e por isso] pense mais na profundidade de
Deus do que na profundidade de seu clamor. A pior coisa que pode acontecer
ao homem é não ter nenhum Deus a quem clamar da profundeza.2
Israel nos ensina a responder ao sofrimento como realidade, não a negá-lo
como ilusão, e nos leva a enfrentá-lo com fé, não a evitá-lo por terror. O salmo
assim é representativo de Israel, que
assumiu um ponto de vista supremamente realista dos sofrimentos e perigos
da vida, viu-se exposto a eles como vulnerável e indefeso, e mostrou pouco
talento para fugir deles a ideologias de qualquer tipo. Ao contrário, conceitos
de sua fé levavam-no a trazer essas experiências reais de sua vida diária
para ligá-los com Yahweh. Em seu período mais antigo, na verdade, lhe
faltava qualquer aptidão para o doutrinário: ele possuía, em vez disso, uma
força excepcional para enfrentar mesmo as realidades negativas, reconhecer
e não reprimi-las, ainda quando incapaz, espiritualmente, de dominá-las de
qualquer forma. É a esse realismo, que permitia a cada evento sua própria
inevitabilidade e validade... que a arte narrativa do Antigo Testamento,
especialmente em sua forma mais primitiva, deve sua grandeza sombria.3
E assim não encontramos no Salmo 130 nem um só traço daquelas coisas
que entre nós são tão comuns, que roubam de nós nossa humanidade quando
sofremos e tomam a dor tão mais terrível para suportar. Nada encontramos de
ESPERANÇA 105

respostas inteligentes superficiais. Nada de prédicas sobre nossos infortúnios


nos quais somos puxados para uma sala de aula e doutrinados com cursos de
graduação sobre o sofrimento. Nada de tratamentos rápidos de primeiros
socorros para encobrir nosso problema para que o restante da sociedade não
tenha que olhar para ele. Nem profetas nem sacerdotes nem salmistas oferecem
curas rápidas para o sofrimento: não achamos nenhum deles dizendo-nos para
tirar umas férias, usar esse medicamento, arranjarmos um hobby. Eles nunca
se ocupam de coberturas publicitárias, de campanhas de propaganda de sorriso
de plástico que escondem problemas atrás de outdoors de pensamento positivo.
Nada disso: o sofrimento é ventilado e proclamado — e orado.
Não é que os cristãos celebrem o sofrimento — não fazemos disso uma
religião. Não somos masoquistas que acham que estão sendo santos quando
estão em dor, que pensam que a miséria pessoal seja sinal de retidão excepcional.
Há algum sofrimento no qual ficamos envolvidos que é inútil e desnecessário;
mas há a sabedoria do bom senso comum nos modos cristãos que evita que
soframos pelas razões erradas, se nós pelo menos prestarmos atenção a ele.
Henri Nouwen escreveu:
Muitas pessoas sofrem por causa da falsa suposição na qual basearam suas
vidas. Essa suposição é que não deve existir nenhum medo ou solidão,
nenhuma confusão ou dúvida. Mas esses sofrimentos só podem ser tratados
criativamente quando são entendidos como sendo feridas integrais à nossa
condição humana. Portanto ministério é um trabalho muito confrontador.
Não permite às pessoas que vivam com ilusões de imortalidade ou
integralidade. Fica lembrando a outros que eles são mortais e quebrados,
mas que com o reconhecimento dessa condição, a libertação começa.4
George MacDonald colocou isso com força de epigrama: “O Filho de Deus
sofreu até a morte, não para que os homens não sofressem, mas para que seus
sofrimentos pudessem ser como os dele”.5
A segunda coisa importante que o Salmo 130 faz é imergir o sofrimento em
Deus — fala-se de todo sofrimento na forma de oração, o que significa que
Deus é levado a sério como ser pessoal e interessado. Certas sentenças no
salmo mostram conhecimento específico do caráter de Deus como redentor
pessoal: Deus é pessoal para que possamos ter um relacionamento íntimo com
ele; Deus é redentor para que possamos ser ajudados por ele. Há sentido para
nossa vida e há salvação para nossa vida, uma verdade resumida por Forsyth
quando ele diz: “A nossa própria dor é sinal de Deus lembrar-se de nós, pois
seria muito pior se nós fôssemos deixados num isolamento medonho”.6
Oito vezes o nome de Deus é usado no salmo. Descobrimos, ao observar o
modo como Deus é abordado, que ele é compreendido como sendo aquele que
perdoa o pecado, que vem a quem o espera e aguarda, que é caracterizado por
amor constante, imperturbável e por redenção abundante, e que ele redimirá
Israel. Deus faz diferença. Deus age positivamente para com seu povo. Deus
106 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

não é indiferente. Ele não é rejeitador. Não é ambivalente ou demorado. Ele


não age arbitrariamente. Ele não é sovina, providenciando apenas para a magra
sobrevivência. Karl Barth descreve Deus quanto a isso:
A livre inclinação de Deus à sua criatura, chamado no testemunho bíblico
de graça, ocorre sob a pressuposição de que a criatura está em aflição e que
é intenção de Deus aderir à sua causa e concedê-lo ajuda quando está no
seu limite. E porque graça, o amor gracioso de Deus, consiste nessa
inclinação, ela é misericordiosa, assim como o próprio Deus o é; o próprio
ser de Deus é misericórdia. A misericórdia de Deus está em sua prontidão
de compartilhar em empatia a aflição de outro, uma prontidão que surge de
sua natureza íntima e marca todo seu ser e realizar. É da sua vontade,
portanto, surgindo das profundezas de sua natureza e caracterizando-a, ele
próprio tomar a iniciativa para remover essa aflição. Pois o fato de que
Deus participa nela por afinidade subentende que ele está realmente presente
em seu meio, e isso significa novamente que ele deseja que não exista, que
ele determina, portanto, removê-la.7
E é por isso, naturalmente, que somos capazes de enfrentar, reconhecer,
aceitar e passar por sofrimento: sabemos que nunca pode ser máximo, nunca
constitui o resultado final. Deus está no alicerce e Deus está nos limites. Deus
busca os machucados, mutilados, errantes e perdidos. Deus ganha os rebeldes
e confusos. Se Deus fosse diferente do que é, nenhum de nós teria como ficar
de pé: “Se você, D e u s , guardasse registros de maus procedimentos, quem teria
uma chance? Como acontece, o perdão é seu hábito, e é por isso que você é
adorado”. Por causa do perdão nós temos onde ficar de pé. Nós nos postamos
em respeito confiante diante de Deus, não em desespero aterrorizado.

Empregados para esperar


São duas grandes realidades do Salmo 130: o sofrimento é real; Deus é real.
Sofrimento é um sinal de nossa autenticidade existencial; Deus é prova de
nossa humanidade essencial e eterna. Nós aceitamos sofrimento; nós cremos
em Deus. A aceitação e a crença, ambas emergem daquelas ocasiões quando
“caiu o fundo” de nossa vida.
Mas há mais do que uma descrição de realidade aqui; há um procedimento
para participar dela. O programa é dado em duas palavras: aguardar e vigiar.
As palavras estão no centro do salmo. “Eu oro a Deus — minha vida uma
oração — e aguardo o que ele dirá e fará. Minha vida está totalmente diante de
Deus, meu Senhor, aguardando e vigiando até amanhecer, aguardando e vigiando
até amanhecer”. Aguardar e vigiar somados dão esperança.
As palavras aguardar e ter esperança se ligam à imagem de vigias aguar­
dando durante toda a noite o amanhecer. A ligação proporciona discernimentos
importantes para a pessoa em aflição que exclama: “Mas com certeza há algo
para eu fazer!” A resposta é sim, há algo para você fazer, ou para ser mais
exato, há algo que você pode ser. seja um vigia.
ESPERANÇA 107

Um vigia é uma pessoa importante, mas ele não faz muita coisa. O girar
compacto da terra, as imensas energias liberadas pelo sol— tudo isso prossegue
à parte dele. Ele nada faz para influenciar ou controlar tais coisas: ele é um
vigia. Ele sabe que o amanhecer está chegando; não há dúvidas a respeito
disso. Nesse ínterim ele está alerta aos perigos; ele consola crianças ou animais
irrequietos até que seja hora de trabalhar ou brincar novamente à luz do dia.
Fui vigia certa vez. Trabalhei das 22 horas às 6 da manhã num prédio da
cidade de Nova York. Meu trabalho como vigia noturno estava vinculado ao
de ascensorista, mas o trabalho com o elevador ia acabando mais ou menos à
meia-noite. Depois disso ficava sentado e lia, cochilava ou estudava. Havia
pessoas noturnas na vizinhança que paravam ali durante a noite e conversavam
comigo: pessoas estranhas, bizarras com histórias maravilhosas. Nunca saberei
quanto daquilo que eu ouvia deles era fato e quanto era ficção: um milionário
falido obcecado com complôs comunistas responsáveis pelo seu declínio, um
aventureiro sul-americano já velho agora para caminhar em matas e montanhas
longínquas, umas duas prostitutas que em noites sem movimento se sentavam
e conversavam sobre Deus e o valor de suas almas.
Fiz isso por um ano inteiro. Fiquei acordado, estudei, aprendi, troquei
conversa e fofoquei. E eu esperava o amanhecer. O amanhecer sempre veio.
As pessoas que me empregavam acharam que valia alguns dólares por hora eu
aguardar durante a noite e vigiar pelo amanhecer. Mas eu nunca fiz nada, nunca
construí nada, nunca fiz nada acontecer. Eu aguardava e vigiava. Eu esperava.
Se eu não soubesse que havia outros encarregados do prédio, eu poderia
não ter estado contente de só ser um vigia e receber meu pagamento. Se eu não
confiasse que o prédio tinha um dono que se importava com ele, se eu não
soubesse que havia um engenheiro do edifício que o conservava em ordem e
bom estado de conservação, se eu não soubesse que havia centenas de pessoas
no edifício que iam e vinham cuidando de seu trabalho todos os dias de maneira
capaz— se eu não soubesse essas coisas, talvez eu não teria estado tão à vontade
jogando conversa fora com as mulheres da noite e os velhos que contavam
histórias passadas. Nem o salmista teria ficado contente de ser um vigia se ele
não tivesse certeza de Deus. O aguardar e vigiar do salmista e do cristão — isto
é, o esperar, o ter esperança — se baseia na convicção de que Deus está
ativamente envolvido em sua criação e vigorosamente trabalhando na redenção.
Esperar não quer dizer fazer nada. Não é resignação fatalista. Significa
ocupar-nos das tarefas que nos cabem, confiantes de que Deus fornecerá o
sentido e as conclusões. Não é ser forçado a trabalhar para manter as aparências
com uma espiritualidade falsa. É o contrário de manipulações desesperadas de
pânico, de correr e se preocupar.
E esperar não é sonhar. Não é criar uma ilusão ou fantasia para nos proteger
de nosso tédio ou nossa dor. Significa uma expectativa confiante, alerta, de
que Deus fará o que disse que ia fazer. E imaginação colocada no arreio da
108 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

fé. É uma disposição de deixar Deus agir do seu jeito e a seu tempo. E o
oposto de fazer planos que exigimos que Deus efetue, dizendo-lhe como e
quando efetuá-los. Isso não é esperar em Deus, e sim ameaçar Deus. “Eu oro
a Deus — minha vida uma oração — e aguardo o que ele dirá e fará. Minha
vida está totalmente diante de Deus, meu Senhor, aguardando e vigiando até
amanhecer, aguardando e vigiando até amanhecer.”

Um oftalmologista e um pintor
Quando sofremos, atraímos conselheiros como dinheiro atrai ladrões. Todo
mundo tem uma idéia do que fizemos errado, e nos colocar em tal aflição é uma
receita para o que podemos fazer para nos livrar. Somos inundados primeiro com
compaixão e depois com conselhos, e quando não reagimos depressa somos
abandonados como caso perdido. Mas nada disso é o que precisamos. Nós
precisamos de esperança. Precisamos saber que estamos relacionados com Deus.
Precisamos saber que o sofrimento é parte daquilo que significa ser humano e não
algo estranho, alienado. Precisamos saber onde nós estamos e onde Deus está.
Precisamos de um oftalmologista em vez de, digamos, um pintor. Um pintor
procura transmitir-nos com o auxílio de seu pincel e paleta um retrato do mundo
como ele o vê; um oftalmologista procura habilitar-nos a ver o mundo como
realmente é. No romance de George MacDonald The Princess and Curdie,
quando Curdie chega ao castelo, ele vê a grande escadaria e sabe que para
alcançar a torre ele precisa ir mais adiante. O narrador aproveita a ocasião para
comentar que “aqueles que trabalham bem nas profundezas entendem mais
facilmente as alturas, pois de fato, em sua natureza verdadeira elas são uma só
e a mesma coisa”.8
Para a pessoa que sofre, já sofreu ou sofrerá, o Salmo 130 é equipamento
essencial, porque ele nos convence de que a grande diferença não está naquilo
que as pessoas sofrem, e sim em como elas sofrem (“A mesma sacudida que
faz a água fétida exalar mau cheiro faz o perfume soltar um cheiro mais
agradável”.).9 O salmo não nos exorta a agüentar o sofrimento; não o explica
nem procura fazê-lo desaparecer com uma explicação. Ao contrário, é uma
demonstração poderosa de que nosso lugar nas profundezas não está fora
dos limites de Deus. Nós vemos que seja o que for ou quem for que nos pôs
em dificuldades, isso não pode separar-nos de Deus, porque “o perdão é seu
hábito”. Somos persuadidos de que o modo de Deus conosco é redenção e
que a redenção, não o sofrimento, é final.
O “fundo” tem um fundo; as alturas não têm limites. Sabendo isso, somos
auxiliados a ir em frente e aprender as práticas de aguardar e vigiar —
esperando! — e por esse meio é dado a Deus espaço para operar a nossa
salvação e desenvolver nossa fé enquanto fixamos nossa atenção nos modos
dele, nos caminhos dele de graça e ressurreição.
13
H u m ild a d e
“Conservei os pés no chão”

D eus, eu n ão estou ten tan do g o v e rn a r o galinheiro,

eu n ão qu ero se r o re i d a montanha.

Eu não mexi onde não me cabe


nem sonhei acordado planos grandiosos.
Eu conservei os pés no chão,
eu cultivei um coração quieto.
Como um bebê contente nos braços de sua mãe,
minha alma é um bebê contente.
Aguarde, Israel, por Deus. Aguarde com esperança.
Esperança agora; esperança sempre!
SALMO 1 31

A humildade é outro lado da confiança em Deus,


enquanto que o orgulho é o outro lado da confiança em
fé cristã precisa de manutenção contínua. Requer que se dê

A atenção a ela. “Se você deixa alguma coisa por conta própria,
você a deixa sujeita a uma torrente de mudanças. Se você deixar
sem limpeza um poste branco logo será um poste preto”.1
Em cada primavera, na minha vizinhança, várias pessoas podam seus
arbustos e árvores. E uma prática anual das pessoas que se importam com
coisas que crescem. Também é um daqueles atos que alguém de fora, um que
não entende como o crescimento se processa, quase sempre entende mal, porque
sempre parece um ato de mutilação. Parece que você está estragando a planta
quando, de fato, você a está ajudando.
Nós temos uma roseira que deixou de ser podada por vários anos. Quando
ela floriu a primeira vez, as rosas eram cheias e vigorosas. No verão passado
a planta estava muito maior. As trepadeiras subiam até o telhado numa treliça
que eu havia feito. Eu esperava muito mais rosas. Mas fiquei desapontado.
As flores eram pequenas e mirradas. Os ramos tinham ficado longe demais
de suas raízes. A planta não pôde dar uma só flor viçosa. Precisava de uma
boa poda.
O Salmo 131 é um salmo de manutenção. Funciona para a pessoa de fé
como a poda funciona para o jardineiro: tira aquilo que parece bom para quem
não entende do ramo, e reduz a distância entre nossos corações e as raízes que
estão em Deus.
As duas coisas que o Salmo 131 corta fora são a ambição indomável e a
dependência infantil, o que poderíamos chamar de complexo de grandeza e
recusa de deixar a chupeta. Ambas as tendências podem facilmente parecer
virtudes, especialmente para aqueles que não estão familiarizados com os modos
cristãos. Se não tivermos cuidado, estaremos encorajando as coisas exatas que
nos irão arruinar. Estamos em necessidade especial e constante de uma correção
perita. Precisamos de poda. Jesus disse: “[Deus] corta fora todo ramo em mim
que não produz uvas. E todo ramo que produz uvas ele poda para que produza
ainda mais” (Jo 15.2). Nosso Senhor, o E spíritojá usou o Salmo 131 mais de
112 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

uma vez para fazer essa obra importante entre seu povo. À medida que
conseguimos nos familiarizar e entender o salmo, ele poderá usá-lo assim
conosco “para que possamos produzir ainda mais”.

Aspiração enlouquecida
“D e u s , eu não estou tentando governar o galinheiro, eu não quero ser o rei
da montanha. Eu não mexi onde não me cabe nem sonhei acordado planos
grandiosos. Eu conservei os pés no chão, eu cultivei um coração quieto”.
Estas linhas são enormemente difíceis para compreendermos— não difíceis
de entender com as nossas mentes, porque as palavras são todas claras, mas
difíceis de captar com as nossas emoções, sentindo sua verdade. Todas as
culturas lançam certas pedras de tropeço no caminho daqueles que perseguem
as realidades do evangelho. É pura fantasia supor que teríamos menos
dificuldades como crentes cristãos se estivéssemos em outra terra ou outra
época. Não é mais fácil ser um cristão chinês do que ser um cristão espanhol
do que ser um cristão russo do que ser um cristão brasileiro do que ser um
cristão americano — nem mais difícil. O caminho da fé trata com realidades
em qualquer tempo e qualquer cultura.
Mas há diferenças de um tempo para outro e de um lugar para outro que
causam problemas especiais. Por exemplo, quando uma tentação ou provação
antiga torna-se uma característica aprovada na cultura, um sistema de vida
que é esperado e incentivado, os cristãos têm colocada diante de si uma pedra
de tropeço que é difícil reconhecer como sendo o que é, porque foi
transformada em um monumento, pintada com bronze e banhada em luzes
coloridas. Tornou-se um objeto de veneração. Mas o simples fato é que está
bem no meio da estrada da fé, obstruindo o discipulado. Apesar de seu
revestimento ornamentado e posição de honra, ainda é uma pedra de tropeço.
Uma tentação que recebeu esse tratamento na civilização ocidental, com
alguns ornamentos especiais no continente americano, é a ambição. Nossa
cultura estimula e recompensa a ambição irrestritamente. Estamos rodeados
por um sistema de vida no qual melhorar é entendido como expansão, como
aquisição, como fama. Todo mundo quer ganhar mais. Estar em cima, não
importa do quê, é admirado. Não há nada recente sobre a tentação. É o mais
antigo pecado no livro da história, aquele que fez Adão ser lançado fora do
jardim e Lúcifer lançado fora do céu. O que é mais ou menos novo é a admiração
e aprovação geral que isso recebe.
O velho conto de Dr. Fausto era bem conhecido antigamente e apreciado
como sendo um aviso. João Fausto ficou impaciente com as limitações impostas
sobre ele em seu estudo de direito, medicina e teologia. Por mais que ele
aprendesse nesses campos, ele descobria que estava sempre a serviço de algo
maior do que ele — da justiça, da cura, de Deus. Ele irritava-se de estar como
HUMILDADE 113

servo e queria sair disso: queria estar no controle, sair fora dos limites do
finito. Então tornou-se perito em mágica, pela qual ele podia desafiar as leis da
física, as restrições da moralidade e as relações com Deus e usar seu
conhecimento para seu próprio prazer e propósitos. Para poder realizar isso,
contudo, ele tinha que fazer um pacto com o diabo que lhe permitisse agir
pelos próximos vinte e quatro anos do modo de um deus — vivendo sem
limites, estando no controle em vez de num relacionamento, exercendo poder
em vez de praticando amor. Mas no fim dos vinte e quatro anos vinha
condenação às penas eternas.
Através de muitas gerações essa história já foi contada e repetida por poetas
e dramaturgos e novelistas (Goethe, Marlowe, Mann) avisando as pessoas contra
o abandonar a posição gloriosa de ser uma pessoa criada à imagem de Deus, e
tentar a temerária aventura de ser um deus por conta própria. Mas agora algo
de alarmante aconteceu. Sempre houve personagens faustianos, pessoas na
comunidade que embarcavam num caminho de arrogância e poder; mas agora
nossa cultura inteira é faustiana. Fomos apanhados num modo de vida que, em
vez de se deleitar em descobrir o sentido de Deus e buscar saber as condições
nas quais as qualidades humanas melhor podem ser realizadas, com arrogância
desafia os relacionamentos pessoais e só fala o nome de Deus quando maldiz.
A lenda de Fausto, por tanto tempo útil em apontar a tolice do orgulho desafiador
de um deus, agora está praticamente irreconhecível porque os pressupostos de
nossa sociedade inteira (nossos modelos educacionais, nossas expectativas
econômicas, mesmo nossa religião popular) são “Faustianos”.
É difícil reconhecer o orgulho como pecado quando é exaltado, de todos os
lados, como uma virtude, estimulado como proveitoso e recompensado como
sendo um feito, uma realização. O que é descrito na Bíblia como o pecado
básico, o pecado de assumir as coisas em suas próprias mãos, ser seu próprio
deus, agarrar o que está lá enquanto se pode, agora é descrito como sabedoria
básica: melhore-se por qualquer meio que possa; progrida a qualquer preço,
cuide de mim primeiro. Por um tempo limitado funciona. Mas no final o diabo
tem o que lhe é devido. Existe a maldição, a condenação.
Soma-se ainda a dificuldade de reconhecer a ambição desregrada como
pecado porque ela tem uma espécie de relacionamento superficial com a virtude
da aspiração — que é uma im paciência com a m ediocridade e um
descontentamento com todas as coisas criadas até que estejamos à vontade
com o Criador, a luta esperançosa pelo melhor que Deus tem para nós — o tipo
de coisa que Paulo expressou: “Estou de olho no alvo, onde Deus está nos
acenando para a frente — para Jesus. A corrida começou e corro ao alvo, e não
volto para trás” (Fp 3.14). Mas se pegamos as energias que contribuem para a
aspiração e tiramos Deus do retrato, substituindo o nosso auto-retrato mal
desenhado, acabamos tendo uma arrogância feia. O verso feliz de Robert
114 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Browning sobre a aspiração “A man’s reach should exceed his grasp, or what’s
a heaven for?” [“O alcance da mão de um homem deve ser maior do que o
punho fechado para agarrar, ou para que serve um céu?”] já foi distorcido para
“Reach for the skies and grab everything that isn’t nailed down” [“Estenda a
mão aos céus e agarre tudo que não estiver preso com pregos”] . A ambição é a
aspiração enlouquecida. A aspiração é a energia criativa, canalizada, que nos
induz ao crescimento em Cristo, formatando ideais no Espírito. A ambição
pega essas mesmas energias de crescimento e desenvolvimento e as usa para
fazer algo inferior e barato, suando para juntar peças para uma Babel quando
poderíamos estar de férias no Éden. Calvino comenta: “Aqueles que se deixam
levar pela influência da ambição logo se perderão num labirinto de
perplexidade”.2
Nossa vida é vivida bem somente quando é vivida nos termos de sua criação,
com Deus amando e nós sendo amados, com Deus fazendo e nós sendo feitos,
com Deus revelando e nós compreendendo, com Deus mandando e nós
respondendo. Ser um cristão significa aceitar os termos da criação, aceitar
Deus como nosso confeccionador e redentor, e crescer dia a dia tornando-nos
uma criatura cada vez mais gloriosa em Cristo, desenvolvendo a alegria,
vivenciando o amor, amadurecendo na paz. Pela graça de Cristo experienciamos
a maravilha de sermos feitos à imagem de Deus. Se rejeitarmos esse caminho,
a única alternativa é tentarmos a embaraçosa imitação desengonçada, de quarta
classe, de Deus feito na imagem de homens e mulheres como nós.
Tanto a revelação como a experiência (Gênesis e Goethe) mostram que é o
caminho errado, e por isso o salmista é sábio ao ver isso e cantar “ D e u s , eu não
estou tentando governar o galinheiro... Eu não mexi onde não me cabe... Eu
conservei os pés no chão”. Não tentarei conduzir minha própria vida nem a
vida de outros; isso é atividade de Deus, eu não terei a pretensão de inventar o
sentido do universo; aceitarei o que Deus já mostrou ser o sentido dele; não
desfilarei exigindo que eu seja tratado como o centro de minha família ou de
minha vizinhança ou do meu trabalho, mas buscarei descobrir onde eu caibo e
farei aquilo para o qual sou bom. A alma, clamando por atenção e desfilando
arrogantemente a sua importância, está acalmada e aquietada para que ela possa
ser ela mesma, verdadeiramente.

Contente como uma criança


Mas se não é para sermos pessoas orgulhosas, resmungonas, arrogantes, o
que devemos ser? Como ratinhos, seres sem cor, encolhidos, inseguros? Ora,
não é bem isso. Tendo percebido os perigos do orgulho, o pecado de ter um
conceito alto demais de nós mesmos, estamos de repente em perigo de outro
erro, considerarmo-nos pouco demais. Há alguns que concluem que como a
HUMILDADE 115

grande tentação cristã é tentar ser tudo, a solução cristã perfeita é não ser nada.
E assim temos o problema do cristão capacho e do santo papel toalha: a pessoa
em que os outros pisam e limpam os pés, a pessoa que é usada por outras para
limpar a bagunça de cada dia da vida e depois descartar. Essas pessoas então
compensam sua pobre vida se apegando a Deus com choro, esperando
compensar tristezas da vida cotidiana com sonhos de luxos no céu.
A fé cristã não é dependência neurótica e sim confiança como de criança.
Não temos um Deus que para sempre e sempre satisfaz nossos caprichos, e sim
um Deus a quem confiamos nossos destinos. O cristão não é um infante ingênuo
e inocente que não tem nenhuma identidade à parte de um sentimento de ser
consolado e protegido e bem cuidado; ele é uma pessoa que descobriu uma
identidade dada por Deus que será desfrutada melhor e mais plenamente com
uma confiança voluntária em Deus. Não nos seguramos em Deus desespera­
damente pelo medo e pânico da insegurança; nos chegamos a ele livremente
em fé e amor.
Nosso Senhor nos deu o retrato da criança como modelo para a fé cristã
(Mc 10.14-16), não por causa do desamparo da criança, e sim por causa da
prontidão da criança de ser conduzida, ser ensinada, ser abençoada. Deus não
nos reduz a um conjunto de reflexos pavlovianos para o adorarmos e orarmos
e obedecermos sem sequer pensarmos nisso quando toca o sinal; ele nos
estabelece com uma dignidade em que nós estamos livres para receber a palavra
dele, seus dons, sua graça.
O salmo mostra um talento de gênio a esta altura e descreve um
relacionamento que é completamente atraente. Os tradutores da Bíblia de
Jerusalém retiveram o literalismo da metáfora hebraica: “Suficiente para mim
é guardar minha alma tranqüila e quieta como uma criança nos braços de sua
mãe, tão contente como uma criança que foi desmamada”. A última frase,
“como uma criança que foi desmamada”, cria uma realidade nunca imaginada,
completamente nova. O cristão é
não como um bebê chorando alto à procura do peito de sua mãe, mas como
uma criança desmamada que descansa bem quietinha ao lado da mãe, feliz
em estar com ela... Nenhum desejo se entrepõe entre ele e seu Deus; pois
ele está certo de que Deus sabe do que ele precisa antes que ele lho peça. E
assim como a criança aos poucos se desfaz do hábito de ver sua mãe apenas
como um meio de satisfazer seus próprios desejos e aprende a amá-la por
ela mesma, assim o adorador depois de uma luta chegou a uma atitude de
mente na qual ele deseja Deus por ele mesmo e não como um meio de
satisfazer seus próprios desejos. O centro de gravidade de sua vida mudou.
Agora ele não mais descansa em si, mas sim em Deus.3
A transição de um bebê que mama para uma criança desmamada, de um
116 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

nenê que chora alto para um filho ou filha quieta, não é suave. Não é fácil
aquietar-se: mais facilmente podemos acalmar o mar ou governar o vento ou
amansar um tigre do que aquietar-nos. É uma batalha intensa. O bebê, ao ser
negado os confortos esperados, se enraivece desesperadamente ou passa a
ficar amuado. Ele soluça e se debate. O bebê enfrenta sua primeira grande
tristeza e está muito estressado. Mas “para a criança desmamada sua mãe é
seu conforto embora lhe tenha negado conforto. E um marco abençoado de
crescimento e saída da infância espiritual quando podemos abandonar as
alegrias que antes pareceram ser essenciais, e encontrar nosso conforto naquele
que as nega a nós” .4
Muitos que já viajaram nesse caminho da fé descreveram a transição de
uma fé infantil que se agarra a Deus por desespero a uma fé madura que
responde a Deus por amor, “como um bebê contente nos braços de sua mãe”.
Muitas vezes nossa vida cristã consciente começa mesmo em pontos de
desespero, e Deus, é claro, não recusa satisfazer nossas necessidades. Os
confortos celestes atravessam nosso desespero e nos persuadem que “tudo
estará bem e todas as coisas irão bem”. Não é incomum os primeiros estágios
da crença cristã serem marcados por sinais miraculosos e enlevos espirituais.
Mas na continuação do discipulado, os confortos sensíveis desaparecem aos
poucos. Pois Deus não nos quer neuroticamente dependentes dele e sim
voluntariamente confiando nele. E assim ele nos desmama. O período da
infância não será sentimentalmente estendido além do necessário. O tempo
de desmamar muitas vezes é barulhento e marcado por mal-entendidos. Eu
não me sinto mais como eu me senti quando primeiro me tornei cristão. Isso
significa que não sou mais um cristão? Deus me abandonou? Será que fiz
alguma coisa terrivelmente errada?
A resposta é, nenhum dos dois. Deus não o abandonou e você não fez nada
errado. Você está sendo desmamado. A chupeta foi tirada. Sua dependência de
Deus não é mais a de um bebê. Você está livre para ir a Deus ou não ir a ele.
Você está, em certo sentido, por conta própria, com um convite permanente
para ouvir e receber e gozar da companhia de nosso Senhor.
A última linha do salmo se dirige a essa qualidade de recém-adquirida
liberdade: “Aguarde, Israel, por Deus. Aguarde com esperança. Espere agora;
espere sempre!” Escolha estar com ele; opte por sua presença; aspire os seus
caminhos; responda ao amor dele.

O caminho simples
Quando Charles Spurgeon pregou este salmo, ele disse: “É um dos salmos
mais curtos para ler, mas um dos mais compridos para aprender”.5 Parece que
estamos sempre cambaleando de um lado da estrada para o outro ao viajarmos
HUMILDADE 117

no caminho da fé. Numa volta da estrada enfrentam-nos problemas tremendos


e emergências assustadoras. Aceitamos o desafio, assumimos as coisas em
nossas próprias mãos para sermos mestres da situação, dizendo a Deus: “Muito
obrigado, mas fique fora. Nós cuidamos destes sozinhos”. Na próxima curva
ficamos submersos e dominados pelo pânico, corremos a algum tipo de religião
infantil que vai resolver todos os nossos problemas para nós, liberando-nos do
peso de ter que pensar e da dificuldade de escolher. Somos, alternativamente,
fujões rebeldes e bebês choramingando. Pior, temos numerosos peritos, assim
chamados, incentivando-nos a seguir um ou outro desses caminhos.
Os peritos de nossa sociedade que se oferecem para ajudar têm uma espécie
de mentalidade de diretoria da qual vêm soluções maciças, de cima para
baixo que são distribuídas para resolver nossos problemas. Então quando as
soluções não funcionam, nós ficamos atolados no pântano do nada pode ser
feito. Primeiro somos incitados a ser grandiosos e depois intimidados a sermos
infantis. Mas há outro caminho, o modo simples da humildade cristã quieta.
Precisamos de poda. Cortados até as raízes, aprendemos este salmo e
descobrimos a quietude da criança desmamada, a tranqüilidade da confiança
que está amadurecendo. E um salmo tão pequeno que muitos o têm negli­
genciado, mas apesar de breve e sem pretensão, é essencial. Porque todo
cristão enfrenta problemas de crescimento e dificuldades de desenvolvimento.
Há alguns anos, Peter Marin fez uma observação incisiva muito semelhante
ao espírito do Salmo 131:
Há condições culturais para os quais não há soluções, voltas da alma tão
profundas e complexas que nenhum sistema pode absorver ou contê-las.
Como poderia alguém ter “resolvido” a Reforma? Ou a Roma do primeiro
século? Fazem-se acomodações e ajustamentos, sonha-se sobre o futuro e
fazem-se planos para salvar-nos todos, mas apesar de tudo isso, por causa
disso, o que parece mais importante são os atos independentes particulares
que se tornam mais necessários a cada dia: os meios que achamos como
pessoas individuais para restaurar um ao outro nas forças que devemos ter
agora — quer seja para fazer o tipo de revolução de que precisamos ou
sobreviver à repressão que parece provável... o que nos salva como homens
e mulheres é sempre uma espécie de testemunho: a qualidade de nossos
próprios atos e vidas.6
E é isso que o Salmo 131 ensina: uma qualidade de confiança calma e força
quieta que conhece a diferença entre a arrogância desregrada e a aspiração fiel,
que sabe como discriminar entre a dependência infantil e a confiança como a
da criança, e opta por aspirar e confiar — e cantar: “Conservei os pés no chão,
cultivei um coração quieto. Como um bebê contente nos braços de sua mãe,
minha alma é um bebê contente”.
14
O b e d iê n c ia
“Como ele prometeu a Deus ”

Oh D eus, lem bre-se d e D avi,

lem bre-se de to d a s as su as aflições!

E lembre-se de como ele prometeu a D eus,

fez um voto ao Forte Deus de Jacó:

"Eu não vou para casa,


e eu não vou à minha cama,
não vou dormir,
nem mesmo tomar tempo para descansar.
Até que eu encontre um lar para D eus,
uma casa para o Forte Deus de Jacó
Lembram-se de como recebemos a notícia em Efrata,
aprendemos tudo a respeito nas Campinas de Jaar?
Exclamamos: “ Vamos à dedicação do santuário!
Vamos adorar a Deus diante do próprio estrado de seus pés!
Suba, D eus, aprecie seu novo lugar de repouso quieto,
o senhor e sua forte arca da aliança.
Vista dejustiça seus sacerdotes:
leve seus adoradores a cantarem esta oração:
“Honre a seu servo Davi:
não despreze o seu ungido ”.
D eus deu a Davi sua palavra,
ele não voltará atrás nesta promessa:
"Um de seus filhos
eu colocarei sobre o seu trono.
Se seus filhos permanecerem fiéis à minha Aliança
e aprenderem a viver do modo que eu os ensino,
Seus filhos continuarão a linhagem —
sempre umfilho que se assente em seu trono.

Sim — eu, D eus, escolhi Sião,


o lugar que eu quis para meu santuário;
Esta será sempre a minha casa;
isto é o que eu quero, e eu estou aqui para ficar.
Choverei bênçãos sobre os peregrinos que aqui vierem,
e alimentarei aqueles que chegarem com fome;
de salvação vestirei meus sacerdotes;
o povo santo cantará bem alto com o coração!
Ah, farei o lugar radiante para Davi!
Eu o encherei de luz para o meu ungido!
Vestirei seus inimigos de trapos imundos,
mas farei com que a coroa dele brilhe com esplendor".
S A L M O 132

O verdadeiro conhecimento de Deus nasce da obediência.


J OÃO C AL VI NO
m incidente ocorreu há poucos anos que adquiriu a força de

U uma parábola para mim. Fiz uma pequena operação no meu


nariz e estava no quarto do hospital me recuperando. Embora fosse
uma pequena cirurgia, a dor era grande e eu estava cheio de sofrimento. No
fim da tarde um homem foi designado para ocupar o outro leito no meu quarto.
Ele iria retirar as amígdalas no dia seguinte. Era jovem, tinha uns vinte e dois
anos, de boa aparência, e era amigável. Chegou-se a mim, estendeu a mão e
disse: “Oi, meu nome é Kelly. O que aconteceu com você?”
Eu não estava com ânimo para uma conversa amistosa, não completei o
aperto de mão, resmunguei meu nome e disse que meu nariz tinha quebrado.
Ele entendeu o recado que eu não queria conversar, puxou a cortina entre nossas
camas e deixou-me em paz. Já à noite os amigos dele vieram visitá-lo, e eu
o ouvi dizer: “Tem um homem no leito ao lado que é lutador; quebrou o
nariz numa luta de campeonato”. Ele seguiu em frente para embelezar a
história para os amigos.
Mais tarde naquela noite, como eu me sentia melhor, eu disse: “Kelly, você
não entendeu o que eu disse. Não sou lutador. O nariz foi quebrado há anos
num jogo de basquete, e só agora vim para consertá-lo”.
“Certo, o que você faz então?”
“Sou pastor.”
“Ah”, ele disse e se voltou para o outro lado; eu não era mais um assunto
interessante.
Pela manhã ele me acordou: “Peterson, Peterson — acorde”. Eu acordei,
meio zonzo e perguntei o que ele queria. “Eu quero que você ore por mim;
estou com medo.” E assim, antes dele ser levado à cirurgia, eu fui até sua cama
e orei por ele.
Quando foi trazido de volta, duas horas depois, uma enfermeira veio e disse:
“Kelly, vou lhe dar uma injeção para dor”.
Dentro de vinte minutos, mais ou menos, ele começou a gemer: “Está doendo.
Não agüento a dor. Eu vou morrer”.
Apertei a campainha e quando a enfermeira chegou, eu disse: “Enfermeira,
acho que aquela injeção não adiantou; por que você não lhe dá mais uma?” Ela
não reconheceu minhas credenciais para dar tal sugestão, cortando conversa
disse que ia ver a ficha do paciente, deu meia-volta e saiu com pressa, eu achei.
Enquanto isso Kelly continuava a dar vazão à sua agonia.
122 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Depois de meia hora ele começou a ter alucinação, e começou a gritar:


“Peterson, ore por mim; você não vê que estou morrendo! Peterson, ore por
mim!” Seus gritos trouxeram correndo enfermeiras, médicos e atendentes.
Seguraram e aquietaram-no com a injeção que eu tinha receitado antes.
A força de parábola deste incidente é a seguinte: quando o homem estava
assustado queria que eu orasse por ele, e quando o homem estava enlouquecido
ele quis que eu orasse por ele, mas entre esses pontos, durante as horas de
assim chamada normalidade, ele não queria nada com um pastor. O que Kelly
revelou in extremis é tudo que muitas pessoas conhecem de religião; uma religião
para ajudá-los com seus temores mas que é esquecida quando os temores estão
cuidados; uma religião feita de momentos de loucura mas que é remota e fica
só como sombra na luz clara do sol e rotinas da vida do dia-a-dia. Os lugares
mais religiosos do mundo, para dizer a verdade, não são as igrejas, e sim os
campos de batalha e hospitais mentais. E muito mais provável encontrar-se
uma oração apaixonada numa trincheira do que no banco de uma igreja, e
certamente encontram-se mais visões de outro mundo e vozes sobrenaturais
num hospital de doenças mentais do que numa igreja.

Estável, não petrificado


Contudo, nós cristãos não nos encaminhamos a nenhum dos dois lugares
para nutrir a nossa fé. Não nos colocamos deliberadamente em lugares de
grande perigo para evocar uma oração sentida do coração e não nos pomos
em enfermarias psiquiátricas para podermos estar em volta daqueles que vêem
claramente visões do céu e do inferno e ouvem distintamente a voz de Deus.
O que a maioria dos cristãos faz é vir à igreja, um lugar que é relativamente
seguro e moderadamente previsível. Pois temos um instinto de saúde e
sanidade em nossa fé. Não saímos à procura de situações que desafiam a
morte, e evitamos mestres mentalmente instáveis. Mas fazendo isso nós não
conseguimos uma coisa que algumas pessoas parecem querer muito, isto é,
uma religião que nos faz seguros a todo custo, certificando-nos a nossos
vizinhos como inofensivos e garantindo-nos como bons riscos de crédito para
os bancos. Seria simplesmente terrível descobrir que à medida que crescemos
em Cristo nós nos tomamos monótonos, que ao nos desenvolvermos em
discipulado nós nos tomamos como a Miss Thorpe do autor Anthony Trollope,
cujas “virtudes eram numerosas demais para descrever, e não suficientemente
interessantes para merecerem uma descrição”.
Queremos uma fé cristã que tem estabilidade mas não é petrificada, que
tem visão mas não é alucinatória. Como conseguir tanto o senso de estabilidade
como o espírito de aventura, o lastro de boa saúde e o entusiasmo da verdadeira
sanidade? Como conseguimos a maturidade adulta para manter os pés no chão
e reter a inocência como a da criança para fazer o salto da fé?
OBEDIÊNCIA 123

O Salmo 132 é um dos salmos mais antigos da Bíblia. Foi incluído nos
Cânticos de Subida para desenvolver justamente aqueles aspectos da vida sob
Deus e em Cristo que faltavam a meu amigo Kelly naquele momento, e que
todos nós precisamos ter.
É um salmo da obediência de Davi, de “como ele prometeu a D e u s , fez um
voto ao Forte Deus de Jacó”. O salmo mostra obediência como uma resposta
de fé viva e aventureira que tem raízes em fato histórico e se estende a uma
esperança prometida.

Obediência com uma História


A primeira metade do Salmo 132 é a parte que enraíza a obediência em fato
e conserva nossos pés no chão. O salmo pega um único incidente do passado,
a história da arca da aliança, e faz reminiscências a respeito: “Lembram-se de
como recebemos a notícia em Efrata, aprendemos tudo a respeito nas Campinas
de Jaar? Exclamamos: ‘Vamos à dedicação do santuário! Vamos adorar a Deus
diante do próprio estrado de seus pés!’ Suba, D e u s , aprecie seu novo lugar de
repouso quieto, o senhor e sua forte arca da aliança”.
A arca da aliança era uma caixa que media cerca de 0,685 m. de largura,
0,685 m. de profundidade, e 1,143 m. de comprimento, construída de madeira
e coberta com ouro. A tampa de ouro puro era chamada de propiciatório. Dois
querubins, figuras do tipo de anjos em cada extremidade, emolduravam o espaço
em volta do propiciatório de onde a palavra de Deus era ouvida. Foi feita sob a
supervisão de Moisés (Êx 25.10-22) e era símbolo da presença de Deus entre
seu povo. A arca havia acompanhado Israel do Sinai, através das caminhadas
no deserto, e fora guardada em Siloé desde o tempo da conquista. Em uma
batalha a arca tinha sido capturada pelos inimigos fílisteus até que se tomou
um problema para eles (a história encontra-se em 1 Samuel 4 — 7) e foi devolvida
a Israel, à vila de Quiriate-Jearim (7.1,2), onde ficou até que Davi veio buscá-la
e colocá-la em lugar de honra em Jerusalém, onde mais tarde ficou no santuário
do templo de Salomão.
A história da arca era, para os hebreus, uma espécie de manual teológico.
Fornecia um relato da presença de Deus entre o povo. Sua história mostrava
a importância de ter Deus com você e o perigo de tentar usar Deus ou carregá-
lo de um lado para outro. E assim a própria arca era importante por enfatizar
que Deus estava com seu povo e que Deus estava acima de seu povo (pois
Deus muito obviamente não estava na caixa). A arca era o símbolo, não a
realidade. Quando a arca era tratada como um talismã, uma curiosidade ou
um objeto mágico com o qual manipular Deus, tudo dava errado. Deus não
pode ser contido ou usado.
O salmo não repete essa história, só lembra a história. Só há o suficiente
aqui para despertar as memórias históricas do povo. Porque o rico simbolismo
124 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

da arca era coisa de todos os dias para eles. Sua extensa e complexa história
era conhecida de todos, muito parecida com a história de Jesus para os cristãos.
Com as dicas do salmo, a história revivia para eles de novo, especialmente a
parte contando da vez que Davi redescobriu a arca numa vila obscura e decidiu
colocá-la no centro da vida israelita, restaurando uma antiga unidade à vida do
povo de Deus em adoração e louvor. “Lembram-se de como recebemos a notícia
em Efrata, aprendemos tudo a respeito nas Campinas de Jaar?” A notícia chegara
a Davi de onde a arca estava; ele prometeu consegui-la e foi obediente a seu
voto. E reuniu seu povo em volta de si e disse: “Vamos à dedicação do santuário!
Vamos adorar a Deus diante do próprio estrado de seus pés!” Ele foi até a arca
e a trouxe para Jerusalém em desfile festivo: “Suba, D e u s , aprecie seu novo
lugar de repouso quieto, o senhor e sua forte arca da aliança. Vista de justiça
seus sacerdotes, leve seus adoradores a cantarem...” Enquanto o canto foi
cantado, o relato nos conta, “Davi dançava com grande abandono diante de
Deus. A nação toda estava com ele enquanto trazia a Arca de Deus com júbilo
e toques de trombetas” (2Sm 6.14,15).
Quando esse velho cântico é cantado de novo hoje pelo povo de Deus em
peregrinação, memórias históricas são reavivadas e revividas: há uma vasta e
rica realidade de obediência sob os pés de discípulos. Eles não são as primeiras
pessoas a subirem essas ladeiras em seu caminho de obediência a Deus e não
serão as últimas. Subindo essas mesmas estradas, por esses mesmos caminhos,
a arca tinha sido carregada, acompanhada por um povo de determinação e
expectativa. Foi carregada tanto de formas boas como más. Lembrariam da
vez em que a conduziram em pânico (“Estou com medo! Ore por mim!”),
supersticiosamente como arma secreta contra os filisteus. Aquela tinha
terminado em calamidade. Também se lembrariam da parada de adoração
reverente e celebração dançante quando obediência foi transformada em culto.
Os cristãos trilham caminhos bem pisados: obediência tem uma história.
Essa história é importante, porque sem ela ficamos à mercê de fantasias. A
memória é um banco de dados que usamos para avaliar nossa posição e tomar
decisões. Com uma memória bíblica temos dois mil anos de experiência dos
quais chegar às respostas improvisadas que nos são exigidas todos os dias na
vida de fé. Se vamos viver de modo adequado e maduro como povo de Deus,
precisamos de mais dados de trabalho do que nossa própria experiência nos
pode fornecer.
O que acharíamos de um perito em sondar a opinião pública que soltasse
um relatório definitivo sobre como o povo americano se sentia sobre um
novo especial de TV, se descobríssemos mais tarde que ele só tinha entrevis­
tado uma única pessoa que tinha visto apenas dez minutos daquele programa?
Descartaríamos as conclusões como frívolas. Contudo é exatamente o tipo
de evidência que um número grande demais aceita como sendo a verdade
OBEDIÊNCIA 125

fmal sobre muitos assuntos muito mais importantes — assuntos como a oração
respondida, o juízo de Deus, o perdão de Cristo, a salvação eterna. As únicas
pessoas que eles consultam são eles mesmos, e a única experiência que avaliam
é a dos últimos dez minutos. Mas precisamos de outras experiências, a
comunidade de experiências de irmãos e irmãs da igreja, os séculos de
experiência fornecida por nossos ancestrais bíblicos. Um cristão que tem
Davi nos seus ossos, Jeremias na sua circulação, Paulo na ponta de seus
dedos e Cristo em seu coração saberá atribuir o muito e o pouco de quanto
valor deve colocar em suas próprias sensações momentâneas e na experiência
da última semana.
Para permanecer voluntariamente ignorante das caminhadas de Abraão no
deserto, dos hebreus escravizados no Egito, de Davi batalhando contra os
fílisteus, de Jesus discutindo com os fariseus e de Paulo escrevendo aos coríntios
é como dizer: “Eu me recuso a lembrar que quando eu chutei aquele cachorro
preto na semana passada ele mordeu minha perna”. Se eu não me lembro disso,
no próximo acesso de raiva eu vou chutá-lo de novo e ser mordido de novo. A
história bíblica é boa lembrança do que não funciona. Também é boa lembrança
do que funciona — como lembrar do que você pôs na sopa que fez ter um gosto
tão bom para que possa repetir e apreciar a receita em outro dia, ou lembrar do
percurso mais curto pela cidade a caminho da praia que te salvou de ficar preso
no trânsito e permitiu chegar à praia duas horas mais cedo.
Um cristão com memória defeituosa tem que começar tudo do zero e gastar
tempo demais do seu tempo retrocedendo, consertando, começando novamente.
Um cristão com boa memória evita repetir velhos pecados, sabe o caminho
mais fácil para passar por situações complexas, e em vez de começar tudo de
novo a cada dia, continua o que foi começado com Adão. O Salmo 132 ativa a
memória da fé para que a obediência seja sã. “Cada ato de obediência feito
pelo cristão é uma prova modesta, inequívoca por imperfeita que seja, da
realidade daquilo que ele comprova.”1

Esperança: Uma corrida em direção às promessas de


Deus
Mas o Salmo 132 não só conserva nossos pés no chão, como também faz
com que saiam do chão. Não só é um alicerce sólido para o passado, é um salto
ousado para o futuro. Pois obediência não é só um caminhar lento e penoso nos
sulcos da religião, é uma corrida esperançosa em direção às promessas de Deus.
A segunda metade do salmo tem uma qualidade propulsora. O salmista não é
um antiquário deleitando-se no passado por saudosismo, e sim um viajante
usando o que ele sabe do passado para chegar onde quer ir — para Deus.
Apesar de todo seu interesse em história, a Bíblia nunca se refere ao passado
como sendo “os velhos e bons tempos”. O passado não é, para a pessoa de fé,
126 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

um local histórico restaurado em que fazemos uma excursão quando estamos


de férias; é um campo que nós aramos e rastelamos e plantamos e fertilizamos
e trabalhamos para ter uma colheita.
A segunda metade do Salmo 132 leva a sério o que Deus disse a Davi e
como Davi respondeu (assuntos que são lembrados na narrativa da arca) e usa-
os para formar uma visão da realidade que há no futuro de fé: “Choverei bênçãos
sobre os peregrinos que aqui vierem, e alimentarei aqueles que chegarem com
fome; de salvação vestirei meus sacerdotes; o povo santo cantará bem alto com
o coração! Ah, farei o lugar radiante para Davi! Eu o encherei de luz para o
meu ungido! Vestirei seus inimigos de trapos imundos, mas farei com que a
coroa dele brilhe com esplendor”. Todos os tempos verbais estão no futuro.
Obediência é cumprida por esperança.
Ora, nenhuma dessas esperanças está sem ligação ou desvinculada da história
verdadeira; cada uma desenvolve daquilo que uma pessoa com boa memória
sabe que aconteceu.
“Choverei bênçãos sobre os peregrinos que aqui vierem, e alimentarei
aqueles que chegarem com fome.” A mente piedosa volta para aqueles anos no
deserto quando Deus deu água da rocha, maná da terra e codomizes dos céus,
e formata uma esperança de providência eterna e abundante.
“De salvação vestirei meus sacerdotes; e o povo santo cantará bem alto!”
Nenhum outro povo conhecia tanto de salvação como Israel. Os sacerdotes
renovavam o conhecimento e aplicavam-no à vida diária em cada reunião de
culto — ocasiões sempre marcadas com alegria — renovando a vida de
redenção. Será que qualquer outro povo se rejubilava tanto com sua fé como
Israel? Desde o cântico de Moisés à beira do Mar Vermelho com Miriã e as
mulheres acompanhando com tamborins, até as trombetas vitoriosas que
sacudiram e finalmente derrubaram os muros de Jericó, aos hinos robustos de
Davi que continuamos a cantar em nossas igrejas hoje, a alegria transbordou.
“Ah, farei o lugar radiante para Davi! Eu o encherei de luz para o meu
ungido!” Luz — luz radiante! — perpassa a Bíblia e a criação como sinal da
presença de Deus. A esperança é que seu fulgor fornecerá luz para o caminho
daquele que representa a presença de Deus, uma luz que agora identificamos
com a revelação na Bíblia e em Cristo.
“Vestirei seus inimigos de trapos imundos, mas farei com que a coroa dele
brilhe com esplendor”. A vergonha dos inimigos de Deus e a glória do rei de
Deus finalmente serão decisivos. O triunfo será completo. O mal cairá estatelado
na derrota, a justiça florescerá em vitória. Essa é uma agenda que a esperança
escreve para a obediência.
O Salmo 132 cultiva uma esperança que dá asas à obediência, uma esperança
coerente com a realidade daquilo que Deus já fez no passado mas que não se
limita a isso. Todas as expectativas listadas no Salmo 132 têm sua origem num
OBEDIÊNCIA 1 27

passado lembrado corretamente. Mas não são simplesmente repetições do


passado projetadas para o futuro. São o que se desenvolveu a partir dali, com
novas características próprias.
Os cristãos que dominam o Salmo 132 serão protegidos pelo menos de um
perigo que é sempre uma ameaça à obediência: o perigo de que cheguemos a
reduzir nossa existência cristã a uma obediência ritual a uns poucos
mandamentos que combinam bem com nosso temperamento e que convêm a
nosso padrão de vida. Em vez disso ele nos dá uma visão para o futuro para que
possamos ver o que está bem à nossa frente. Se definirmos a natureza de nossa
vida pelo erro do momento ou a derrota da hora ou o enfado do dia, nós a
definiremos errado. Precisamos de raízes no passado para dar à obediência um
lastro e amplitude; temos que ter uma visão do futuro para dar à obediência
direção e alvo. E devem estar ligados. Precisa haver uma unidade orgânica
entre essas coisas.
Se nunca aprendemos como fazer isso — estender as fronteiras de nossa
vida além das datas encerradas entre nosso nascimento e morte, e adquirir
uma compreensão da maneira de Deus como algo maior e mais completo do
que os curtos acontecidos de nossos diários particulares — estaremos sempre
alheios ao sentido das coisas, fazendo manchetes de algo que deveria estar
guardadinho num canto lá da página 97 na seção C do jornal, ou colocando
algo nos classificados que deveria estar numa propaganda de página inteira
em cores — errando ser uma dor de garganta aquilo que é uma descida ao
inferno. (“Peterson, ore por mim!”) Porque a fé cristã não pode ser examinada
num retrato instantâneo que captou uma pose da beleza ou do absurdo, de
enlevo ou de terror: é uma revelação plena de uma vasta criação e uma
redenção consumada grandiosamente. Obediência é fazer o que Deus nos diz
para fazer.

A força para ficar de pé, a prontidão para saltar


Em tais modos o Salmo 132 cultiva a memória e nutre a esperança que
levam à obediência madura. O salmo nos protege de uma religião que
desconhece os modos de agir de Deus e que assim nos conserva sempre sujeitos
a sermos apanhados por cada temor que avança contra nós. Ele nos protege de
uma religião tomada de excessos com fantasias e pesadelos porque ficou
desassociada das promessas de Deus. Desenvolve um forte sentido de
continuidade com o passado e um senso do surgimento de rumos para explorar
no futuro. E o tipo da coisa que cantamos para ficar normais sem sermos
monótonos, andando eretos no meio da estrada sem ficarmos atolados num
longo sulco de mediocridade. Suas palavras nos instigam a estender a mão
para o futuro sem perder contato com a realidade cotidiana. Seus ritmos
incentivam-nos a novas aventuras no Espírito sem fazer-nos lunáticos. Porque
128 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

o viver cristão exige que fiquemos com os pés no chão; também pede-nos para
fazer o salto da fé. Um cristão que estaciona não é melhor do que uma estátua.
Uma pessoa que salta de um lado para outro constantemente está sob suspeita
de não ser um homem, e sim um boneco saltador. O que nós exigimos é
obediência — a força para ficar de pé e a disposição para saltar, e o bom senso
para saber quando fazer qual. Que é exatamente o que conseguimos quando
uma memória correta dos caminhos de Deus é combinada com uma esperança
vivaz em suas promessas.
15
C o m u n id a d e
“Como óleo de unção precioso
descendo pela cabeça e barba ”

Como é maravilhoso, como é lindo,


quando irmãos e irmãs combinam bem!
E como óleo precioso de unção
descendo pela cabeça e barba,
descendo pela barba de Arão,
escorrendo pela gola de suas vestes sacerdotais.
É como o orvalho sobre o Monte Hermom,
descendo pelas encostas de Sião.
Sim, é a li q u e D eus co m a n d a a bênção,

ord en a a v id a eterna.

SALMO 133

Toda vida verdadeira é encontro face a face.


MARTIN BUBER
Q
uer queiramos ou não, no momento que confessamos Jesus
Cristo como nosso Senhor e Salvador, isto é, da hora em que
nos tornamos um cristão, somos ao mesmo tempo um membro
da igreja cristã — mesmo não permitindo que nosso nome seja posto num ro
de igreja, mesmo se recusamos nos identificar com um determinado grupo e
compartilhar responsabilidades com eles, mesmo se nos ausentamos do culto
de uma congregação. Nossa posição de membro da igreja é um corolário de
nossa fé em Cristo. Somos tão incapazes de ser um cristão e não ter nada com
a igreja como ser uma pessoa e não estar em uma família. Ser membro da
igreja é um fato espiritual básico para aqueles que confessam Cristo como
Senhor. Não é uma opção para aqueles cristãos que acontece por natureza serem
mais gregários, mais dados a procurar o grupo, do que outros. É parte da estrutura
da redenção.
Há cristãos, naturalmente, que nunca colocam seus nomes num rol de
membros; há cristãos que se recusam a responder ao chamado à adoração cada
domingo; há cristãos que dizem: “Amo a Deus mas detesto a igreja”. Mas são
membros assim mesmo, quer queiram ou não, quer o reconheçam ou não. Porque
Deus nunca faz tratos de salvação secretos, particulares, com as pessoas. Seus
relacionamentos conosco são pessoais, é verdade; íntimos, sim; mas particulares,
não. Somos uma família em Cristo. Quando nos tornamos cristãos, estamos
entre irmãos e irmãs na fé. Nenhum cristão é filho único.
No entanto, é claro, o fato de estar numa família de fé não significa que
somos uma grande família feliz. Os indivíduos que encontramos como irmãos
e irmãs na fé não são sempre pessoas agradáveis. Eles não param de ser
pecadores no momento em que começam a crer em Cristo. Não se transformam
de repente em pessoas sociáveis de conversa brilhante, em companheiros
estimulantes e presenças inspiradoras. Alguns deles são mal-humorados, alguns
enfadonhos e outros (se a verdade precisa ser dita) “malas sem alça”. Mas ao
mesmo tempo nosso Senhor nos diz que são irmãos e irmãs na fé. Se Deus é
meu Pai, então essa é minha família.
132 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Então a questão não é “Vou ser parte de uma comunidade de fé?” e sim,
“Como vou viver nessa comunidade de fé?” Os filhos de Deus fazem diferentes
coisas. Alguns fogem dela e fingem que a família não existe. Alguns se mudam
dela e arranjam um apartamento próprio do qual voltam para fazer visitas
ocasionais, quase sempre aparecendo para as festas e trazendo um presente
para demonstrar que eles realmente têm os outros em grande apreço. E alguns
nunca sonhariam em sair, mas motivam que outros sonhem isso por eles, porque
estão sempre criticando o que é servido nas refeições, brigando pelo modo
como é feita a manutenção da casa e reclamando que as pessoas da casa ou não
lhes dão atenção ou estão aproveitando deles. E alguns determinam achar o
que Deus tem em mente ao colocá-los nessa comunidade chamada igreja,
aprendem como funcionar nela em harmonia e alegria, e desenvolvem a
maturidade que é capaz de compartilhar a graça de Deus com aqueles que caso
contrário poderiam ser vistos como incômodos.

Não como pagar impostos


O Salmo 133 apresenta o que estamos buscando: “Como é maravilhoso,
como é lindo, quando irmãos e irmãs combinam bem!” O salmo põe num cântico
o que é dito e demonstrado através da Bíblia e da igreja: a comunidade é
essencial. A Bíblia desconhece o cristão solitário. As pessoas de fé são sempre
membros de uma comunidade. A própria criação não estava completa até haver
comunidade, Adão precisando de Eva antes que a humanidade fosse completada.
Deus nunca opera com indivíduos em isolamento, mas sempre com pessoas
em comunidade.
Esse é o dado bíblico, e aquele com o qual precisamos começar. Jesus
trabalhou com doze discípulos e viveu com eles em comunidade. A igreja foi
formada quando cento e vinte pessoas estavam “todos reunidos” em um lugar
(At 2.1 e também 5.12). Quando alguns cristãos primitivos estavam saindo da
comunidade e seguindo interesses particulares, um pastor escreveu insistindo
com eles para que nutrissem seu precioso dom de comunidade “não deixando
de congregar-se, como é costume de alguns, mas animando uns aos outros a
prosseguir, especialmente ao vermos o grande Dia se aproximando” (Hb 10.25).
A Bíblia nada sabe de uma religião definida por aquilo que uma pessoa faz
interiormente na privacidade de seu pensamento ou sentimento, ou à parte dos
outros em retiro solitário. Quando foi perguntado a Jesus qual era o grande
mandamento, ele disse: “Ame o Senhor seu Deus com toda sua paixão e oração
e inteligência”, e então imediatamente, antes que alguém pudesse sair e fazer
disso uma religião individual, particular (“No jardim onde Cristo me espera”),
afixou com rebite um outro: “Há um segundo para colocar com este: ‘Ame os
outros tão bem quanto você se ama’” (Mt 22.34-40).
Os cristãos tornam isso explícito em seu ato de culto a cada semana ao se
COMUNIDADE 133

reunirem como comunidade: outras pessoas inevitavelmente estão presentes.


Ao virmos declarar nosso amor a Deus, precisamos enfrentar os colegas
pecadores não-atraentes e atraentes que Deus ama e nos manda amar. Isso não
pode ser tratado como algó para suportar, uma das necessidades inconvenientes
da fé, do mesmo modo que pagar impostos, é uma conseqüência inconveniente
da vida em uma nação estável e livre. Não só é necessário, mas é desejável que
nossa fé tenha uma dimensão social, um relacionamento humano. “Como é
maravilhoso, como é lindo, quando irmãos e irmãs combinam bem!”
Durante séculos este salmo foi cantado na estrada enquanto grupos de
pessoas subiam a Jerusalém para as festas de adoração. Nossa imaginação
prontamente reconstitui aquelas cenas.
Que ótimo estarem todos partilhando um mesmo propósito, percorrendo
um mesmo caminho, buscando atingir um mesmo objetivo, sendo Deus aquele
caminho, propósito e objetivo. Muito melhor do que fazer a longa viagem
sozinho: “Como é maravilhoso, como é lindo, quando irmãos e irmãs combinam
bem”(JB).

Dois modos de evitar comunidade1


Mas se viver em comunidade é necessário e desejável, também é
enormemente difícil. Há uma dica sobre a natureza da dificuldade na frase
“quando irmãos e irmãs combinam bem”.
A maioria dos cristãos tem alguma experiência de primeira mão do que
significa viver com irmãos e irmãs. Irmãos brigam. E irmãs brigam. A primeira
história da Bíblia sobre irmãos morando juntos é a história de Caim e Abel. E
é uma história de assassinato. Significativamente, sua briga era uma briga
religiosa, uma disputa sobre qual deles amava a Deus. A história de José e seus
irmãos segue poucas páginas adiante, na qual José, invejado pelos outros, é
vendido para o Egito como escravo. Miriã e Arão brigaram com seu irmão
Moisés. Davi e seus irmãos não se saem melhor e aumentam a evidência de
discórdia. Até Jesus e seus irmãos são evidência de desarmonia em vez de paz.
O único quadro que temos deles mostra os irmãos entendendo mal a Jesus e
tentando tirá-lo de sua obra messiânica porque estão convencidos de que ele
está louco.
Aqueles que adquirem seu conhecimento de relações humanas lendo livros
de psicologia em vez da Bíblia encontram históricos de casos sobre esse assunto
no capítulo chamado “Rivalidade entre Irmãos”. Mas a maioria do que está lá
é só um rodapé daquilo que a Bíblia diz: crianças brigam muito; cada irmão
fica ofendido se não consegue o que quer; cada irmã quer uma parte maior da
atenção dos pais.
As crianças comumente são tão cheias de suas próprias necessidades e
desejos que olham um irmão ou irmã não como um aliado e sim como um
134 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

competidor. Se houver só uma bisteca na travessa e três de nós a queremos, eu


verei meu irmão e irmã não como agradáveis companheiros de refeição, mas
como rivais difíceis. Muito da literatura do mundo (romances, peças, poesia)
documenta isso: viver juntos como irmãos e irmãs significa, na prática real,
barulhos sem fim, brigas mortíferas, discussões alteradas. Então, se nós vamos
cantar “Como é maravilhoso, como é lindo, quando irmãos e irmãs combinam
bem!” nós não o faremos sendo deixados a sós, seguindo nossa tendência natural.
Assim, só vamos entrar numa grande briga, e a única coisa maravilhosa a respeito
será o prazer que os espectadores têm em assistir-nos tirar sangue do nariz um
do outro.
Viver juntos de uma forma que desperta o cântico alegre do Salmo 133 é uma
das grandes e árduas tarefas que cabe aos cristãos verdadeiros. Nada requer
mais atenção e energia. E mais fácil fazer quase qualquer outra coisa. É muito
mais fácil tratar com pessoas como problemas a serem resolvidos do que ter
qualquer coisa a fazer com elas em comunidade. Se um indivíduo pode ser isolado
da família (de marido, de esposa, de pais, de filhos, de vizinhos) e então ser
profissionalmente aconselhado, advertido e guiado sem as complicações de todos
aqueles relacionamentos, as coisas são muito mais simples. Mas se tais práticas
são levadas a efeito sistematicamente, tomam-se uma fuga de comunidade. Os
cristãos são uma comunidade de pessoas que estão juntas em culto visivelmente,
mas que permanecem relacionadas a semana toda em testemunho e serviço. “No
princípio está a relação”.2
Outro modo comum de evitar comunidade é transformar a igreja numa
instituição. Dessa forma, as pessoas são tratadas não na base de relacionamentos
pessoais, e sim em termos de funções impessoais. Alvos são colocados para
que cativem a imaginação do maior número possível de pessoas; estruturas são
desenvolvidas para que realizem o alvo através de planejamento e organização.
Planejamento organizacional e alvos institucionais tornam-se os critérios pelos
quais a comunidade é definida e avaliada. No processo a igreja toma-se cada
vez menos uma comunidade, isto é, pessoas que dêem atenção umas às outras,
“irmãos e irmãs”, e cada vez mais um coletivismo de “unidades contribuintes”.
Toda comunidade de cristãos corre perigo quando qualquer desses dois
caminhos é seguido: a rota de definir outros como problemas para serem
resolvidos, do jeito que se poderia consertar um carro; a rota de juntar as
pessoas em termos de capacidade econômica ou eficiência institucional, do
modo em que se poderia fazer funcionar um banco. Em algum lugar interme­
diário há comunidade — um lugar onde cada pessoa é levada a sério, aprende
a confiar nos outros, depender dos outros, ter compaixão dos outros, alegrar-
se com os outros. “Como é maravilhoso, como é lindo, quando irmãos e
irmãs combinam bem!”
COMUNIDADE 135

Um sacerdote do outro
Há duas imagens poéticas no Salmo 133 que são preciosas pelos discerni­
mentos no trabalho de incentivar e formar uma vida boa e deleitosa juntos em
Cristo. A primeira imagem descreve comunidade como sendo “óleo de unção
precioso descendo pela cabeça e barba, descendo pela barba de Arão, escorrendo
pela gola de suas vestes sacerdotais”.
A figura vem de Êxodo 29, onde se dá instruções para a ordenação de Arão
e os outros sacerdotes. Depois que os sacrifícios fossem preparados, Arão devia
ser trajado nas vestimentas sacerdotais. Então esta instrução é dada: “Tomarás
o óleo da unção e lho derramarás sobre a cabeça; assim o ungirás... assim
ordenarás Arão e seus filhos” (Ex 29.7,9).
Óleo, em toda a Bíblia, é um sinal da presença de Deus, um símbolo do
Espírito de Deus. O óleo brilha, se aquece com o calor da luz solar, amacia a
pele, perfuma a pessoa. (Gerard Manley Hopkins, exaltando a grandeza de
Deus na criação, emprega uma imagem semelhante na sua frase: “Ele se reúne
a uma grandeza, se deposita como o escorrer do óleo esmagado”).3 Há uma
qualidade de calor e calma na comunidade de Deus que se contrasta com a
frieza gélida e superfícies duras de indivíduos que se acotovelam uns aos outros
em multidões e ajuntamentos.
Contudo, mais especialmente aqui, o óleo é um óleo de unção, marcando a
pessoa como um sacerdote. Viver juntos significa ver o óleo fluindo por sobre a
cabeça, pelo rosto, pela barba, até os ombros do outro — e quando vejo isso, sei
que meu irmão, minha irmã, é meu sacerdote. Quando vemos o outro como
ungido de Deus, nossos relacionamentos são afetados profundamente.
Ninguém reconheceu isso mais perceptivelmente em nossos dias do que
Dietrich Bonhoeffer. Ele escreveu: “Não o que um homem é em si como cristão,
sua espiritualidade e piedade, constitui a base de nossa comunidade. O que
determina nossa fraternidade é o que aquele homem é em razão de Cristo.
Nossa comunidade de um com o outro consiste somente naquilo que Cristo fez
para nós dois” .4 E o que Cristo fez foi ungir-nos com seu Espírito. Somos
separados para prestar serviço um ao outro. [Como mediadores] nós mediamos
um ao outro os mistérios de Deus. Nós representamos um ao outro o discurso
de Deus. Somos sacerdotes que falam a Palavra de Deus e compartilham o
sacrifício de Cristo.
O cristão precisa de outro cristão que fale a Palavra de Deus para ele. Ele
precisa dele outra e mais outra vez quando fica com dúvida e desanimado,
pois sozinho ele não pode ajudar a si mesmo sem interpretar mal a verdade.
Ele precisa de seu irmão humano como portador e proclamador da palavra
divina de salvação. Ele precisa de seu irmão somente por causa de Jesus
Cristo. O Cristo em seu próprio coração é mais fraco do que o Cristo na
palavra de seu irmão; seu próprio coração é incerto, o de seu irmão é seguro.5
136 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Na segunda imagem, a comunidade é “como o orvalho sobre o Monte


Hermom, descendo pelas encostas de Sião”. Hermom, o monte mais alto naquela
parte do mundo, se ergue a uma altura de mais de dois mil setecentos e noventa
metros na serra do Líbano, ao norte de Israel. Alguém que já passou uma noite
em regiões de altitude elevada sabe como é pesado o orvalho em tais alturas.
Quando se acorda pela manhã, a pessoa está completamente molhada. Este
orvalho denso, característico de cada amanhecer nas altas encostas do Hermom,
é estendido pela imaginação aos montes de Sião — um orvalho abundante,
fresco e nutridor em terras secas, desnudadas como as da Judéia. O orvalho
alpino comunica um senso de frescura matutina, um sentimento de fertilidade,
uma antecipação de crescimento.
Importante em qualquer comunidade de fé é a expectativa sempre renovada
naquilo que Deus está fazendo com nossos irmãos e irmãs na fé. Recusamos
rotular os outros como uma ou outra coisa. Recusamos predizer o comportamento
de nosso irmão e o crescimento de nossa irmã. Cada pessoa na comunidade é
única, é singular; cada uma é especialmente amada e especificamente dirigida
pelo Espírito de Deus. Como posso presumir tirar conclusões sobre alguém?
Como posso pretender conhecer seu valor ou seu lugar? Margaret Mead, que
protestou com erudição e paixão contra as maneiras em que a cultura moderna
achata e desmoraliza as pessoas, escreveu: “Nenhum sistema cultural já registrado
teve expectativas diferentes suficientes para eqüivaler a todas as crianças que
nasceram dentro dele”.6
Uma comunidade de fé floresce quando vemos uns aos outros com essa
expectativa, querendo saber o que Deus fará hoje neste, naquele. Quando
estamos em uma comunidade com aqueles que Cristo ama e redime, estamos
constantemente descobrindo coisas novas sobre eles. São pessoas novas a cada
manhã, infinitas em suas possibilidades. Exploramos as profundezas fascinantes
de sua amizade, compartilhamos os segredos de sua viagem de exploração. E
impossível ficar entediado em uma comunidade assim, impossível sentir-se
alienado entre tais pessoas.
O óleo caindo pela barba de Arão comunica relacionamento sacerdotal
aquecido. O orvalho de Hermom comunica novidade do frescor do dia e
expectativa. Óleo e orvalho. As duas coisas que tornam a vida junta deleitosa.

Um companheirismo bem agitado


A última linha do salmo conclui que a vida boa e deleitosa juntos é onde
“D eus comanda a bênção, ordena a vida eterna”.
Os cristãos estão sempre tentando e nunca conseguem ter sucesso em obter
um retrato da vida eterna. Quando procuramos imaginá-la, só a banalizamos. E
então, tendo riscado um desenho pouco interessante e mal esboçado, usando os
potes de tinta de uma fé empobrecida, anunciamos que não temos tanta certeza
COMUNIDADE 137

assim de querer passar a eternidade num lugar como aquele. Talvez preferís­
semos o bom companheirismo bem agitado do inferno. O Salmo 133 nos lança
só uma pequena dica (uma dica que é ampliada para uma grande visão em
Apocalipse 4 — 5), que vira isso de cabeça para baixo: o companheirismo bem
agitado é no céu.
Onde os relacionamentos são calorosos e as expectativas novas, já estamos
começando a apreciar a vida juntos que será completada em nossa vida eterna. O
que significa que o céu não se compara com nada tanto quanto uma boa festa.
Ajunte em sua imaginação todos os amigos com quem você mais gosta de estar,
os companheiros que te evocam a mais profunda alegria, seus relacionamentos
mais estimulantes, as mais gostosas das experiências compartilhadas, as pessoas
com quem você se sente completamente vivo — isso é uma dica do céu, pois “é
ali que D eus comanda a bênção, ordena a vida eterna”.

9 de Abril de 1945
Um dos melhores, talvez o melhor livro escrito no século 20 sobre o
significado de viver junto como uma família da fé é Life Together [A Vida
Juntos] de Dietrich Bonhoeffer. O livro começa com as palavras do salmo:
“Eis, quão bom e quão agradável é os irmãos viverem juntos em unidade!”
( n k j v ) . O texto ficou com Bonhoeffer durante toda sua vida. Sua primeira

publicação, uma dissertação de doutorado com a idade de vinte e um anos,


teve o título “A Comunhão dos Santos”. Seu livro The Cost õ f Discipleship
[O Custo do Discipulado] vem sendo um manual para uma vasta companhia
de cristãos em sua peregrinação. Durante os anos nazistas ele dirigiu uma
comunidade de seminaristas fugitivos do nazismo, vivendo com eles numa
busca diária de descobrirem por si mesmos o sentido de ser uma família de fé
em Cristo e treinando-os nos ministérios pastorais que levariam outros a essa
comunhão de vida comunitária. Foi durante esse período que ele escreveu
Life Together.
Durante os últimos anos do Terceiro Reich ele foi aprisionado por Adolf
Hitler. Mas nem as paredes da prisão o separaram de seus irmãos e irmãs em
Cristo. Ele orou por eles e escreveu cartas a eles, aprofundando a experiência
de comunidade em Cristo. E então ele foi morto. Assim como sua vida tinha
sido um explorar da primeira linha do Salmo 133, sua morte foi uma exposição
da última linha: “ D eus comanda a bênção, ordena a vida eterna”.
Foi no dia 9 de abril de 1945. O médico da prisão em Flossenburg escreveu
este relatório: “Na manhã do dia, em algum momento entre as cinco e seis
horas, os prisioneiros... foram levados para fora de suas celas e o veredicto
foi lido para eles. Através da porta entreaberta de uma das cabanas eu vi o
Pastor Bonhoeffer, ainda com sua roupa de preso, ajoelhado em fervorosa
oração ao Senhor seu Deus. A devoção e a evidente convicção de ser ouvido
138 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

que eu vi na oração desse homem extremamente cativante me emocionaram


ao mais profundo grau”. Assim a manhã raiou. Então os prisioneiros
receberam a ordem de se despir. Foram conduzidos por um pequeno lance
de escada para debaixo das árvores até o lugar isolado de execução. Houve
uma pausa... Nu debaixo do cadafalso na perfumada mata primaveril,
Bonhoeffer ajoelhou-se pela última vez para orar. Cinco minutos depois,
sua vida havia terminado... Três semanas depois Hitler cometeu suicídio.
Dentro de mais um mês o Terceiro Reich havia caído. Toda a Alemanha
estava um caos e a comunicação era impossível. Ninguém sabia o que tinha
acontecido com Bonhoeffer. Sua família aguardava em angustiante incerteza
em Berlim. O relato de sua morte foi recebido primeiro em Genebra, Suíça,
e depois telegrafado para a Inglaterra. No dia 27 de julho seus pais idosos,
como era costume deles, ligaram o rádio para ouvir a transmissão de Londres.
Um culto memorial estava em andamento. As cadências triunfantes da
música de Vaughan Williams soavam no hino “For Ali the Saints”NT que
ressoava forte e solene cantado por muitas centenas de vozes. Depois um
único alemão falou em inglês: “Estamos reunidos aqui na presença de Deus
para prestarmos nosso agradecido reconhecimento pela vida e obra de seu
servo Dietrich Bonhoeffer, que deu sua vida de fé e obediência à sua santa
palavra”.7
Foi assim que um homem mostrou em sua vida e morte, como podemos
fazer nas comunidades em que vivemos e onde lideramos, as verdades ricas
e continuadas do Salmo 133: “Como é maravilhoso, como é lindo, quando
irmãos e irmãs combinam bem... Sim, é ali que Deus comanda a bênção, ordena
a vida eterna”.
16
B ênção
“Levantem suas mãos em louvor”

Venham, bendigam a D eus,


todos vocês servos de D eus!
Vocês sacerdotes de D eus, fazendo plantão na vigília da noite
no santuário de D eus,
L evan tem su a s m ãos em lo u vo r a o L u g a r Santo,

e b en digam a D eus.

Por sua vez, possa D eus de Sião abençoá-los —


D eus qu e f e z céu e terra!

S A L M O 134

Não poucas vezes nesta vida, quando, pelo lado direito,


osfavoritos da sorte velejam e passam perto,
nós, embora antes com velas murchas,
pegamos algo da impetuosa brisa,
e alegremente sentimos enfurnar as nossas velas.
HERMAN MELVI LLE
eses de luta, de estratégia, de sacrifício, tudo recompensado

M em uma vitória de arromba para o Presidente Richard Nixon


em 1972. Na noite da eleição seu assistente Charles Colson estava
no lugar que ele sempre quis ocupar. O quadro que Colson faz daquela noite
contém três personagens: o chefe de estado H.R. Haldeman, arrogante e fechado;
Nixon, irrequieto, tomando um uísque; e Colson, sentindo-se desapontado,
vazio, “um amortecimento dentro de mim”. Três homens no pináculo do poder
do mundo, e nenhuma só nota de alegria discernível na sala. “Se alguém nos
espiasse naquela noite de algum orifício de observação no teto da sala do
Presidente, que cena curiosa teria sido: um Presidente vitorioso, resmungando
sobre palavras que ele diria com má vontade ao seu oponente caído; o chefe de
estado dele zangado, amuado, e rosnando; e o arquiteto de sua estratégia política
sentado num estupor pasmo”.1
A experiência não é tão rara. Trabalhamos duramente por alguma coisa,
conseguimos ganhá-la e então descobrimos que não a queremos. Lutamos
durante anos para chegar ao topo e vemos que a vida lá é completamente
monótona. Colson escreve: “Fazer parte na eleição de um Presidente era a
maior paixão da minha vida. Por três longos anos eu empenhei tudo que tinha,
cada grama de energia à causa de Richard Nixon. Nada mais importava. Não
tínhamos nenhum tempo juntos como família, nenhuma vida social, nem
férias” .2 E depois, tendo nas mãos o que ele tinha se proposto conseguir,
descobriu que não podia apreciá-lo.
Para alguns, o alvo é um grau acadêmico, para alguns, uma posição na carreira;
para alguns, um certo padrão de vida; para alguns, adquirir alguma posse, casar-
se, ter um filho, arranjar um emprego, visitar um país, encontrar com uma
determinada celebridade. Mas tendo ganhado o que sempre quisemos, desco­
brimos que não obtivemos o que queríamos de modo nenhum. Estamos menos
realizados do que nunca e conscientes de “um amortecimento dentro de mim”.

Fique de pé, abaixe-se, pare


No Salmo 120, o primeiro dos Cânticos de Subida, nós vimos desenvolvido
o tema do arrependimento. A palavra em hebraico é teshubah, um voltar-se do
mundo e voltar-se para Deus — o passo inicial num ideal de vida colocado em
Deus. Foi dirigido à pessoa na encruzilhada, convidando cada um de nós a
tomar a decisão para iniciar o caminho da fé. Cada um dos salmos depois deste
descreveu uma parte daquilo que acontece ao longo desta via peregrina entre
142 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

pessoas que se voltaram a Deus e o seguem em Cristo. Descobrimos nestes


salmos linhas lindas, discernimentos penetrantes, verdades deslumbradoras,
palavras incentivadoras. Descobrimos que o mundo no qual esses salmos são
cantados é um mundo de aventura e desafio, de ardor e sentido. Reconhecemos
que conquanto haja certas dificuldades no caminho da fé, ele não pode por
nenhuma força de imaginação ser chamado de monótono. Requer tudo que
temos em nós; convoca todos os nossos desejos e habilidades; reúne nossa
existência total em seus cânticos. Mas quando chegamos onde vamos, e daí?
O que acontece no fim da fé? O que ocorre quando finalmente chegamos?
Vamos ficar desapontados?
O Salmo 134,o Cântico de Subida final, nos fornece a evidência. O caminho
do discipuladó que começa num ato de arrependimento (tèshubah) conclui
numa vida de louvor (berakah). Não demora encontrar a palavra-chave e o
pensamento controlador do salmo: abençoado seja Deus, bendito seja Deus,
Deus abençoe você.
Há duas palavras que são traduzidas “abençoado” ou “bendito” em nossas
Bíblias. Uma é ’ashre, que descreve o senso de bem-estar de ter tudo reunido
que nos vem quando estamos vivendo afinados com criação e redenção. É o
que o Salmo 1 anuncia e o Salmo 128 descreve. E o que experimentamos quando
Deus nos abençoa. A palavra em hebraico “é usada somente de homens, nunca
de Deus, [e] no Novo Testamento só há duas ocasiões em que é usada de Deus
(.makarios em lTm 1.11; 6.15)”.3 A outra palavra é berakah. Descreve o que
Deus faz para nós e entre nós: ele entra em aliança conosco, ele derrama sua
própria vida por nós, ele compartilha a bondade de seu Espírito, a vitalidade de
sua criação, as alegrias de sua redenção. Ele se esvazia entre nós e nós recebemos
o que ele é. Isso é bênção. Quando a primeira palavra é tèshubah, a última
palavra é berakah.
Deus se abaixa de joelhos entre nós, chega no nosso nível e se compartilha
conosco. Ele não habita lá longe e nos manda mensagens diplomáticas; ele se
ajoelha entre nós. Essa postura é característica de Deus. A descoberta e
percepção disso é o que define o que conhecemos de Deus como sendo boas-
novas — Deus se compartilha generosa e graciosamente. “Qualquer que seja a
forma que a bênção toma, ela tem implícita uma troca do conteúdo da alma”.4
Deus entra em nossa necessidade, antecipa nossos alvos, ele “entra em nossa
pele” e nos entende melhor do que nós mesmos. Tudo que aprendemos sobre
Deus através da Bíblia e em Cristo nos conta que ele sabe como é trocar uma
fralda pela décima terceira vez no dia, ver um relatório no qual trabalhamos
cuidadosamente longo tempo ajuntando poeira na mesa de alguém durante
semanas e mais semanas, descobrir nosso ensino tratado com escárnio e
indiferença por crianças e jovens, descobrir que da integridade e excelência de
nosso trabalho nem tomaram conhecimento e a duplicidade inferior de outra
pessoa foi recompensada com uma promoção.
BÊNÇÃO 143

Um livro sobre Deus tem por título The God Who Stands, Stoops and
Stays [“O Deus que Fica de Pé, Abaixa e Pára”]. Isso resume a postura de
bênção: Deus fica de pé — ele é fundamental e confiável; Deus se abaixa
— ele ajoelha a nosso nível e nos encontra onde estamos; Deus pára ali —
ele se mantém junto a nós através dos tempos duros e dos bons, repartindo
sua vida conosco em graça e paz.
E porque Deus nos abençoa, nós abençoamos Deus, nós o bendizemos.
Nós respondemos com aquilo que recebemos. Participamos do processo
que Deus iniciou e continua. Nós que somos abençoados, abençoamos.
Quando a palavra é usada pelo que as pessoas fazem, ela tem na Bíblia o
sentido de “ louvor e gratidão por bênção recebida” .5 As pessoas que
aprendem como é receber a bênção, pessoas que viajam no caminho da fé
tendo a experiência dos meios da graça em todo tipo de clima e sobre todo
tipo de terreno, ficam bons em abençoar. Em Israel isso se tornou “a
expressão distinta da prática da religião”.6 No Judaísmo, até hoje, todas as
formas de oração que começam com louvor a Deus são chamadas berakoth
— isto é, bênçãos.7

Um convite e uma ordem


Não há melhor palavra de resumo e conclusão em toda a Bíblia do que
bênção. Descreve o que mais prezamos no trato de Deus conosco, e o que é
mais atraente quando nós avaliamos nosso modo de vida. Todo ato de culto
conclui com uma bênção. O salmo 134 salienta a palavra numa forma que
pode ser chamada de comando-convite: “Venham, bendigam a D e u s ... Levantem
suas mãos de louvor... e bendigam a D e u s ” .
As pessoas que primeiro cantaram esse cântico viajaram, literalmente, pelas
estradas que conduziram a Jerusalém. Agora chegaram e estavam no templo
para adorar a Deus em uma festa de celebração. Alguns teriam estado na estrada
durante dias, alguns durante semanas, em alguns casos talvez durante meses.
Agora estavam no fim da estrada. O que aconteceria? O que sentiriam? O que
fariam? Será que haveria aquele “amortecimento dentro de si”?
Se a lemos de uma forma, a sentença é um convite: “Venham, bendigam a
Deus”. A grande promessa de estar em Jerusalém é que todos podem se unir no
culto rico do templo. Você é bem-vindo agora para fazer isso. Venha e tome
parte. Não fique acanhado. Você brigou com o cônjuge no caminho? Está tudo
bem. Você já chegou aqui. Bendiga a Deus. Você discutiu com o seu vizinho
enquanto viajava? Esqueça isso. Você está aqui agora. Bendiga a Deus. Você
perdeu contato com os filhos enquanto vinha e não sabe ao certo onde estão
agora? Ponha isso de lado no momento. Eles têm sua própria peregrinação
para fazer. Você está aqui. Bendiga a Deus. Você se envergonha dos sentimentos
que você teve na viagem? As reclamações da sua murmuração? O ressentimento
144 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

a que você deu lugar? Bem, não foi tanto que te impedisse de chegar, e agora
que você está aqui, bendiga a Deus. Você está com vergonha das vezes em que
você desistiu e outra pessoa teve de apanhá-lo e carregá-lo? Não importa. Você
está aqui. Bendiga a Deus.
A sentença é um convite; é também uma ordem. Tendo já chegado ao lugar
de adoração, será que vamos sentar aí e contar o que aconteceu sobre a viagem?
Tendo chegado à grande cidade, vamos passar nosso tempo aqui como turistas,
visitando os bazares, olhando vitrines e fazendo compras? Depois de colocarmos
um sinal ao lado de Jerusalém na nossa lista de coisas para fazer, será que
ainda passaremos adiante e já vamos começar a procurar outro desafio, outro
lugar santo para visitar? O templo será um lugar para socializar, receber parabéns
de outras pessoas pela realização, um lugar para compartilhar algumas fofocas,
trocar casos, um lugar para fazer contatos de negócios que vão melhorar nossas
chances de futuro sucesso lá onde moramos? Mas não foi por isso que você fez
a viagem: bendiga a Deus. Você está aqui porque Deus o abençoou. Agora
você bendiga a Deus.
Nossas histórias podem ser interessantes, mas elas não vêm ao caso. Nossas
realizações podem ser maravilhosas, mas elas não são pertinentes. Nossa
curiosidade pode ser compreensível, mas não é relevante. Bendigam a Deus.
“Quando vier o que é Completo, nossos incompletos serão cancelados” (ICo
13.10). Bendigam a Deus. Façam aquilo para o qual vocês foram criados e
redimidos: elevem suas vozes em gratidão; entrem na comunidade de louvor e
oração que antecipa a consumação final da fé no céu. Bendigam a Deus.

Os sentimentos não mandam


Somos convidados a bendizer o Senhor; recebemos a ordem de bendizer o
Senhor. E então alguém diz: “Mas eu não me sinto assim. E não vou ser hipócrita.
Não posso bendizer a Deus se não sinto vontade de bendizer a Deus. Não seria
honesto, não seria sincero”.
A resposta bíblica a isso é “Levantem suas mãos de louvor ao Lugar Santo,
e bendigam a D e u s !” Você pode levantar as mãos independentemente de como
você se sente; é um simples movimento muscular. Você pode não ser capaz de
mandar no seu coração, mas você pode mandar nos seus braços. Eleve seus
braços em bênção; quem sabe seu coração receberá a mensagem e se erguerá
também em louvor. Nós somos seres psicossomáticos; corpo e espírito estão
inter-relacionados de modo intrincado. Passe pelos movimentos de bendizer a
Deus e seu espírito pegará a dica e a seguirá: Por que os homens levantam suas
mãos quando oram? Não é para que seus corações possam ser levantados ao
mesmo tempo para Deus?”8
Não é bem a mesma coisa, e há muitas diferenças no detalhe, mas existe
uma semelhança ampla entre as instruções no salmo e o movimento contem­
BÊNÇÃO 145

porâneo conhecido como “modificação comportamental” — que de um modo


geral significa que você pode agir em um novo modo de ser. Encontre as coisas
certas para fazer, pratique as ações, e outras coisas seguirão. “Levantem suas
mãos de louvor ao Lugar Santo, e bendigam a D e u s ” . Atue sua gratidão;
pantomime sua gratidão; você se tornará aquilo que você faz.
Muitos acham que o único meio de mudar seu comportamento é primeiro
mudar seus sentimentos. Nós tomamos um comprimido para alterar nosso estado
de espírito para que não chutemos o cachorro. Nós ligamos música para acalmar
as nossas emoções para que nossa conversação seja menos irritante. Mas há
uma sabedoria mais antiga que coloca isso diferentemente: mudando nosso
comportamento nós podemos mudar nossos sentimentos.
Uma pessoa diz: “Não gosto daquele homem; por isso não vou falar com
ele. Quando, e se meus sentimentos mudarem, eu falarei”. Outro diz: “Não
gosto daquela pessoa; portanto vou falar com ela”. A pessoa, surpresa com a
amabilidade, responde alegre e de repente a cordialidade é compartilhada. Uma
pessoa diz: “Eu não sinto nenhuma vontade de prestar culto; portanto eu não
vou à igreja. Vou esperar até que eu sinta vontade e então eu irei”. Outra diz:
“Eu não sinto vontade de prestar culto; por isso eu vou à igreja e me coloco no
modo de cultuar”. Neste processo ela se acha abençoada e começa, por sua
vez, a bendizer, a abençoar.
O mais provável é que as pessoas a quem primeiro foi dirigido este salmo,
esta ordem, foram os líderes profissionais de culto no templo de Jerusalém, os
Levitas (“vocês sacerdotes de D e u s , fazendo plantão na vigília da noite no
santuário de D e u s ” ). Trabalhavam em turnos o tempo todo durante as ocasiões
de festa, e durante a noite inteira sempre havia alguns deles de plantão. O
grande perigo naquelas horas era que o culto fosse um tanto desatento e relaxado.
O que se haveria de esperar às três horas da manhã? “Nada de desculpas”, diz
o cantor do salmo, “seus sentimentos talvez possam estar em baixa, mas você
pode controlar seus músculos: erga suas mãos”.
Humphrey Bogart, ator de cinema por muitos anos, certa vez definiu um
profissional como sendo uma pessoa que “trabalhava melhor quando não se
sentia disposto a isso”. Vale também para um cristão. Os sentimentos não
dirigem o desempenho. Há uma realidade que vai mais fundo do que nossos
sentimentos. Viva de acordo com isso. Eric Routley opina que, coloquialmente,
bendizer significa “falar bem de”.9 O Senhor falou bem de você; agora você
fale bem dele. Bendiga-o.

Levar Deus a sério mas não nós mesmos


E tão fácil achar casos de pessoas que bendizem entre os cristãos arrolados,
como é achar exemplos de pessoas que amaldiçoam entre os indivíduos do
mundo.
146 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Karl Barth é ura favorito meu. Ele é um dos maiores teólogos de todos os
tempos, mas a coisa realmente cativante sobre ele é que foi um homem que
bendizia a Deus. Sua mente era maciça, seu saber imenso, sua produtividade
teológica simplesmente estarrecedora. Ele escreveu uma dogmática de seis
milhões de palavras, sete mil páginas, doze volumes, mais quarenta ou cinqüenta
outros livros e várias centenas de artigos instrutivos. Por mais impressionante
que seja tudo isso, o que de longe supera isso em impressionar a mim, pelo
menos, é o que ele chamava de Dankbarkeit. Gratidão. Sempre e em toda parte
nós percebemos que Barth estava respondendo à graça de Deus; há um senso
de humor no fundo de sua prosa mais séria; há sempre um sorriso expressando-se
na beira de seus olhos. Ele nunca se levou a sério e sempre levou Deus a sério,
e por isso estava cheio de espírito alegre, exuberante de tanta bênção. Falando
de seu próprio trabalho como teólogo ele disse: “O teólogo que não sente alegria
em seu trabalho não é teólogo nenhum. Rostos tristonhos, pensamentos
melancólicos e modo enfadonho de falar são intoleráveis nesta ciência”.10
Uma vez Barth estava num ônibus em Basiléia, a cidade suíça em que ele
morou e lecionou durante muitos anos. Um homem chegou e sentou-se ao
lado, era um turista. Barth iniciou a conversa: “O senhor é um visitante, não é?
E o que o senhor quer ver em nossa cidade?”
O homem disse: “Eu gostaria de ver o grande teólogo Karl Barth. O senhor
o conhece?
“Ah, sim”, disse Barth, “eu faço a barba dele todas as manhãs”. O homem
foi embora satisfeito, contando aos amigos que ele conheceu o barbeiro de
Barth.
Como ele recusou se levar a sério e decidiu levar Deus a sério, Barth não
oprimiu nem a si nem àqueles que lhe rodeavam com a pesada e sombria
seriedade da ambição ou orgulho, ou pecado, ou justiça própria. Em vez disso,
o erguer de mãos, a claridade de bênção.
Charles Dickens descreveu um de seus personagens como uma pessoa “que
chamou sua rigidez de religião”.11Nós descobrimos muitas vezes esse tipo de
coisa, no entanto somos gratos por não o acharmos na Bíblia. Na Bíblia achamos
Jesus concluindo sua parábola da ovelha perdida com as palavras: “Pode contar
com isso — há mais alegria no céu sobre a vida salva de um pecador do que
sobre noventa e nove pessoas boas que não necessitam de ser salvas” (Lc 15.7).
Não é alívio, nem surpresa, nem uma presunçosa satisfação consigo mesmo. E
certamente não é o “amortecimento dentro de mim”. Mas alegria.
Bênção está no fim da estrada. E aquilo que está no fim da estrada influencia
tudo que ocorre ao longo do caminho. O fim formata o meio. Como disse
Catarina de Siena: “Todo o caminho para o céu é céu”. Um fim alegre requer
um meio cheio de alegria. Bendito seja o Senhor.
BÊNÇÃO 147

O fim principal
Eu tenho um amigo que é deão num seminário teológico onde os homens e
as mulheres estão sendo treinados para serem pastores. As vezes ele chama
uma dessas pessoas para ir ao seu escritório e diz algo assim: “Você já está por
aqui há vários meses, e eu tenho tido a oportunidade de observá-lo. Você tem
notas boas, parece levar a sério seu chamado ao ministério, trabalha muito e
tem alvos claros. Mas eu não detecto nenhuma alegria. Você não parece ter
prazer nenhum naquilo que está fazendo. E eu fico pensando se você não deve
reconsiderar seu chamado ao ministério. Pois se um pastor não está em contato
com a alegria, vai ser difícil ensinar ou pregar convincentemente que as novas
são boas. Se você não transmite alegria na sua conduta, e gestos e fala, você não
será uma testemunha autêntica de Jesus Cristo. Prazer naquilo que Deus está
fazendo é essencial em nosso trabalho”.
A primeira pergunta no Breve Catecismo de Westminster é “Qual é o fim
principal do homem?” Qual é o propósito final? Qual é a principal coisa a
respeito de nós? Onde vamos, e o que faremos quando chegarmos lá? A resposta
é “Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.
Glorifique. Deleite-se. Há outras coisas envolvidas no discipulado cristão.
Os Cânticos de Subida mostraram algumas delas. Mas é extremamente
importante saber uma coisa que supera tudo mais. A principal coisa não é
trabalhar para o Senhor; não é sofrer em nome do Senhor; não é testemunhar
do Senhor; não é dar aula na Escola Dominical para o Senhor; não é ser
responsável na comunidade por causa do Senhor; não é guardar os Dez
Mandamentos, não é amar seu próximo, não é observar a regra áurea. “O fim
principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. Ou, no
vocabulário do Salmo 1 34: “Bendigam a D e u s ” .
“Charis sempre exige a resposta eucharistia (isto é, graça sempre exige a
resposta da gratidão). Graça e gratidão pertencem juntas como céu e terra.
Graça evoca gratidão como a voz, um eco. Gratidão segue a graça como o
trovão segue o relâmpago”.12 Deus é realidade pessoal para ser apreciada.
Somos criados de tal modo e redimidos de tal modo que somos capazes de
apreciá-lo. Todos os movimentos do discipulado chegam a um lugar onde a
alegria é experimentada. Cada passo da subida em direção a Deus desenvolve
a capacidade de desfrutar. Não só há, cada vez mais, mais para ser apreciado,
há também em passos constantes a capacidade adquirida para apreciar isso.
Melhor de tudo, não temos que esperar até chegarmos ao fim da estrada
antes de desfrutar o que está no fim da estrada. Então, “Venham, bendigam a
D e u s ... D eus abençoe vocês!”

Que seja bem-aventurança nossa, no passar dos anos, acrescentar uma


graça a outra, e avançar em direção ao alto, passo a passo, não
148 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

negligenciando o mais baixo depois de alcançar o mais alto, nem


procurando acertar o mais alto antes de alcançar o mais baixo. A primeira
graça éfé, a última é amor: primeiro vem zelo, depois vem misericórdia;
primeiro vem humilhação, depois vem paz; primeiro vem diligência, depois
vem resignação. Que possamos aprender a levar até a maturidade todas
as graças em nós; temendo e tremendo, vigiando e arrependendo, porque
Cristo está vindo; alegres, agradecidos e despreocupados quanto aofuturo,
porque ele chegou.13
U ma L o n g a
O b e d iê n c ia
Um Epílogo

uando eu escrevi Uma Longa Obediência há vinte anos, eu era

Q um pastor paroquial escrevendo para meus paroquianos, as pessoas


que eu mais conhecia no lugar que eu mais conhecia, alguns acres
no declive dos montes do estado de Maryland no qual estávamos acampados
por alguns anos em nossas andanças através de regiões não-cultivadas da
América do Norte. Eu me ocupava naquilo que os pastores fazem — tentando
fazer com que este evangelho de Jesus Cristo entrasse na vida destes homens e
mulheres com quem eu convivia, e fazendo-o da única maneira que eu conhecia,
através de Bíblia e oração, oração e Bíblia. Eu pregava e ensinava a Bíblia que
revelava Jesus. Eu orava com e por essa mistura de santos e pecadores que era
minha congregação, orava em nome de Jesus.
Duas convicções alicerçavam meu trabalho pastoral. A primeira convicção
era que tudo que está no evangelho é possível viver e que minha tarefa pastoral
era fazer com que fosse vivido. Não era suficiente que eu anunciasse o
evangelho, que o explicasse ou que criasse entusiasmo por ele. Eu queria que
fosse vivido — vivido em detalhe, vivido nas ruas e no trabalho, vivido nos
quartos e nas cozinhas, vivido através de câncer e divórcio, vivido com crianças
e no casamento. Pelo caminho, descobri que isso também significava eu mesmo
vivê-lo, o que mostrou ser uma tarefa muito mais tremenda. Reconheci que
isso iria ocupar mais tempo. Eu me preparei para a longa temporada. Foi quando
a frase (de Nietzsche) “uma longa obediência na mesma direção” se assentou
em minha imaginação e eventualmente tornou-se este livro.
A segunda convicção foi que meu trabalho pastoral tinha a ver em primeiro
lugar com Bíblia e oração. Eu não era nem capaz nem competente de formar
Cristo em outra pessoa, de moldar uma vida de discipulado em homem, mulher
ou criança. Isso é obra sobrenatural, e eu não sou sobrenatural. Meu trabalho era
mais modesto do que isso, era o ensino da Bíblia e a oração — ajudar as pessoas
a ouvirem Deus lhes falar na Escritura e depois unir-me a eles para responder a
Deus tão pessoal e honestamente quanto podíamos em vida de oração. Isso mostrou
ser um trabalho lento. De tempos em tempos, impaciente com a lentidão, eu
experimentava maneiras de realizar meu trabalho que prometiam resultados mais
150 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

rápidos. Mas depois de certo tempo sempre parecia ser mais parecido com mexer
na vida destas pessoas em vez de ajudá-las a atender a Deus.
Na maioria das vezes eu me descobri atrapalhando a maneira daquilo que o
Espírito Santo vinha fazendo muito tempo antes de eu entrar em cena; então eu
voltava, sentindo-me um pouco punido, pelo meu próprio trabalho: Bíblia e
oração; oração e Bíblia. Mas a conjunção e dá um mal-entendido. Bíblia e
oração não são duas entidades distintas. Meu trabalho pastoral foi fundi-las
em um ato único: “Biblioração”, ou “oraçãobíblia”. E esta fusão de Deus nos
falar (Bíblia) e nós falarmos a ele (oração) que o Espírito Santo usa para formar
a vida de Cristo em nós. E é esta fusão que eu estava tentando conseguir colocar
nas páginas de Uma Longa Obediência.
Dezessete editores o rejeitaram. Não havia um “nicho” no mercado, me
disseram; fui avisado que era irrelevante às preocupações de norte-americanos
contemporâneos. E então a InterVarsity o aceitou para publicação. O risco que
a InterVarsity assumiu me deu estímulo e confiança para prosseguir. E eu
prossegui. Vinte anos e vinte e oito livros mais tarde continuo a escrever partindo
dessa mesma fusão de Bíblia e oração, no desejo de dar testemunho e
encorajamento aos homens e mulheres, tanto os leigos como os pastores, que se
propõem a sair a caminho e seguir a Cristo.
Alguns anos depois de escrever Uma Longa Obediência notei que muitas
pessoas estavam falando e escrevendo sobre “espiritualidade”. Achei que eu
sabia o que estavam fazendo e fiquei feliz que muitos aliados estavam
aparecendo em lugares inesperados. Mas aconteceu que eu me enganara. Eu
tinha lido minhas próprias convicções naqueles interesses deles. Pensei que se
interessavam em viver a vida de Cristo de primeira mão; achei que se
interessavam em Bíblia e oração, os meios mais acessíveis que nos são
fornecidos para cultivar essa vida e o amadurecimento nela. Em geral não
estavam. A torrente de “espiritualidades” que continua tanto dentro como fora
das comunidades cristãs, aparentemente sem pausa, parece que gosta pouco
tanto do “longo” como do “devagar”.
Como Uma Longa Obediência foi onde iniciei minha primeira aventura
naquilo que continuou a caracterizar tudo que escrevi desde então, essa nova
edição parece uma ótima ocasião para tornar explícito o que em tudo está
implícito em meus livros; que homens e mulheres que crêem e seguem a Jesus
(o que comumente chamamos de “a vida cristã” ou “a espiritualidade cristã”)
têm como melhor diretriz e energia uma fusão de Bíblia e oração. Pois enquanto
a aceleração for um entusiasmo pela “espiritualidade” cristã sem um
compromisso equivalente com os meios, não vai sair dali grande coisa. Entre
nossos ancestrais cristãos a opinião é praticamente unânime que os meios
consistem precisamente dessa fusão de Bíblia e oração. Não é uma maneira
terrivelmente difícil de ler e escrever, mas não deixa de exigir uma atenção
EPÍLOGO 151

diligente. A fusão é realizada lendo-se essas Escrituras devagar, com


imaginação, oração e obediência.
E assim que a Bíblia vem sendo lida pela maioria dos cristãos durante a maioria
dos séculos da era de Cristo, mas não é lida assim comumente no dia de hoje. O
estilo de leitura empregado pelos cristãos contemporâneos na maioria das vezes
é rápido, com um jeito redutivo, coletando informações, e acima de tudo, prático.
Lemos pelo que podemos tirar dele, pelo que podemos pôr em uso, o que achamos
útil — e isso imediatamente, agora. Para “nós... nós... nós...” mesmos.
Se é com seriedade que queremos seguir Jesus e viver o dom da vida dele
em detalhe em nosso corpo e circunstâncias, precisamos nadar contra a
correnteza desse “Rio de Nós” de corredeiras e familiarizar-nos com o mundo
no qual Jesus e seu dom de vida nos são revelados. Fazemos isso lendo nossa
Bíblia devagar, de modo imaginativo, com oração e obediência. Cada um desses
quatro pontos é importante.
Devagar. A Bíblia fornece a revelação de um mundo que tem a ver
primeiramente com Deus. E um mundo enorme, muito maior do que o que nós
habitamos por nossa conta. Vivemos em condições apertadas pelo pecado, muito
conscientes de nós mesmos — nossos sentimentos e frustrações, nossos desejos
e idéias, nossas realizações e descobertas, nossos fracassos e ferimentos. A
Bíblia é profunda e vasta com o amor e a graça de Deus, transbordante de
surpresas de misericórdia e mistério, salpicada com exibições alarmantes de
pecado e boletins de juízo. É um mundo imenso, e leva tempo o ajustar-se à
majestade dele — não estamos acostumados a nada nessa escala. Crescemos
nas ruas e vielas de Lilipute,1— e leva um bom tempo para nossos olhos se
ajustarem. Se penetramos na Bíblia depressa demais, ou caminhamos por ela
muito depressa, não vamos enxergar o que está aí.
Imaginativamente. A Bíblia nos inclui, sempre. Nossa vida está implicitamente
envolvida em tudo que é dito e feito neste livro. Para que percebamos isso
precisamos entrar na história imaginativamente. Precisamos permitir que as nossas
conversas e experiências e pensamentos sejam trazidos para dentro da história
para que possamos observar o que acontece a nós neste novo contexto, através
dessa linha da história, ombro a ombro com esses personagens.
Já pegamos o mau hábito de reduzir o que encontramos na Bíblia a idéias
ou slogans ou princípios ou “versos” fora de contexto. Tais como: Esqueça os
detalhes; pule o mistério; queremos uma definição que podemos entender e
com a qual nos sentimos confortáveis. Nós despersonalizamos a Bíblia para
termos abstrações ou “verdades” que podemos reconfigurar e então colocar
em enredos que inventamos para nossa própria vida. Mas a Bíblia nos mostra
Deus presente e ativo em e entre pessoas humanas que respiram, que vivem, o
mesmo tipo e sorte de homens e mulheres que nós somos. A imaginação é a
capacidade que temos de atravessar fronteiras de espaço e tempo, com todos
152 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

os nossos sentidos intactos, e entrar era outras conversas e ações reveladas por
Deus, descobrindo que nos sentimos em casa no país da Bíblia.
Com oração. Ensinaram-nos a ler a fim de captar informações. Nossas escolas
nos treinam a ler livros para podermos passar nos exames. Somos bons em procurar
fatos. “Conhecer é poder”, eles nos dizem. Os livros contêm coisas que podemos
usar para conseguir um diploma, um título, consertar um motor, manter um
emprego, resolver um mistério. Mas a Bíblia não é primeiramente uma fonte de
informações; é um dos modos primários que Deus usa para falar conosco. Nós a
chamamos de, “Palavra de Deus” que quer dizer, a voz de Deus — Deus falando
conosco, convidando, prometendo, abençoando, confrontando, ordenando,
curando. A Bíblia não é tanto Deus nos contando alguma coisa — alguma idéia,
algum fato, alguma regra— mas Deus falando vida em nós. Estamos escutando?
Estamos respondendo? A leitura da Bíblia é uma oração.
Obedientemente. Obedientemente? Não estamos acostumados com isso.
Crescemos numa cultura que insiste que tomemos conta de nossa própria
vida. Somos apresentados a milhares de livros que somos treinados a usar —
buscar informações, adquirir habilidades, dominar conhecimento, distrair-
nos... seja lá o que for. Mas usar? Pessoas de boas intenções já nos disseram
que a Bíblia é útil, e por isso nós a usamos. Nós adaptamos, editamos,
peneiramos, resumimos. Então usamos aquilo que parece útil e aplicamos isso
em nossas circunstâncias da maneira que achamos melhor. Nós tomamos conta
da Bíblia, usando-a como uma caixa de ferramentas para consertar nossa vida
ou como um guia para conseguirmos o que queremos ou como um folheto de
inspiração para animar um dia sem brilho.
Mas não somos suficientemente inteligentes para fazer isso; nem se pode
confiar que o faremos. O Autor do livro está nos escrevendo no livro dele, não
estamos o escrevendo no nosso. Nós nos encontramos no livro como seguidores
de Jesus. Jesus nos chama para segui-lo e nós obedecemos — ou não obedecemos.
Este é o imenso mundo da salvação de Deus em que nós entramos; não sabemos
o suficiente para “aplicar” nada. Nossa tarefa é obedecer, em fé, com confiança,
obedecer. Simplesmente obedecer.
❖ ♦> ❖
Às vezes eu me divirto imaginando Friedrich Nietzsche, que anunciou a
morte de Deus e que agora ele próprio já está morto há muito tempo, aparecendo
no meu escritório quando eu estou escrevendo meus livros. Ele examina os
livros de minha estante e vê parte de uma sentença que ele escreveu, como
título de um dos livros. Fica sabendo que eu escrevi o livro. Ele sorri (embora
me seja difícil imaginar Nietzsche sorrindo). Como ele fica feliz ao descobrir
que eu guardei a maravilhosa sentença dele, “Uma longa obediência na mesma
direção” circulando até o terceiro milênio cristão.
EPÍLOGO 153

Então ele tira o livro da prateleira e o examina. Seu rosto se enruga e se


fecha numa carranca zangada. O velho ateu estava convencido de que os
cristãos — ao promoverem o fraco e ineficaz Jesus para manter as partes
mais fracas, espiritualmente doentes, moralmente ineptas e inferiores da
população viva e se reproduzindo — eram uma influência maligna sobre a
civilização e seriam a ruína de todos nós. Ele achou que tinha dado o golpe
fatal, e agora ele nos encontra ainda fazendo o mesmo.
Eu gosto muito de imaginá-lo de pé ali, zangado e horrorizado, a barba
soltando fumaça, pasmo que esses Cristãos fracos, inadequados, ineficazes e
incapazes ainda estejam vivos, e ainda se reproduzindo.
N otas
Capítulo 1: Discipulado
1 The Book o f Common Prayer (Nova York: C h u rc h Pension Fund, 1945), pág. 276.
2 Amos T. Wilder escreve: “O mundo significa mais do que ‘humanidade decaída de Deus’
...O mundo é criado e amado por Deus, e Cristo veio para salvá-lo. Mas é efêmero, sujeito a
deterioração e morte; além disso, caiu sob o controle do mau, e portanto, caiu para as trevas”.
Em 77ze Interpreter’s Bible, org. George Arthur Buttrick (Nashville: Abingdon, 1952), 12:238.
3 Gore Vidal, Matters o f Fact and Fiction (Nova York: Random House, 1977), pág. 86.
4 Friedrich Nietzsche, Beyond Good and Evil, trad. Helen Zimmern (Londres: 1907),
seção 188.
5 Não há documentação independente que prove que os Salmos de Subida [de Romagem
( a r a ) de Peregrinação ( a r c ) , de Degraus ( k j v , n v i ) ] foram usados assim; portanto não há
nenhum consenso entre os estudiosos de que tenham sido associados com as idas peregrinas
a Jerusalém. A associação é conjectura, mas não fantasiosa. Os comentadores, tanto judeus
quanto cristãos, interpretaram-nos dentro dessa estrutura.
6 Paul Tournier, A Place fo r You (Nova York: Harper & Row, 1968), pág. 163.
7 Thomas Szasz, Schizophrenia, the Sacred Symbol o f Psychiatry (Garden City, N.J.:
Doubleday, 1978), pág. 72.
8 Paul Goodman, Little Prayers and Finite Experience (Nova York: Harper & Row, 1972),
pág. 16.
9 William Faulkner, citado nas notas do programa de Sam di Bonaventura a respeito da
Sinfonia n° 5 de Elie Siegmeister, Concerto da Baltimore Symphony, 5 de maio de 1977.

Capítulo 2: Arrependimento
1John Baillie, Invitation to Pilgrimage (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1942), pág. 8.
2 Elie Wiesel, Souls on Fire (Nova York: Vintage, 1973), pág. 154.
3 Abraham Heschel, The Prophets (Nova York: Harper & Row, 1962), págs. 71,72.
4 Ibid., pág. 190.

Capítulo 3: Providência
1João Calvino, Commentary on the Psalms (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1949), 5:63.
2Johannes Pedersen descreve a situação assim: “O sol e a lua, que significavam tanto para a
manutenção da ordem na vida, muitas vezes tornavam-se deuses independentes entre os
156 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

povos vizinhos ou tornavam-se parte da natureza de outros deuses. Jó nega expressamente


ter beijado sua mão para aqueles seres poderosos (“... se olhei para o sol quando resplandecia,
ou para a lua, que caminhava esplendente, e o meu coração se deixou atrair em oculto, e
beijos lhe atirei com a mão, também isto seria delito a ser punido em julgamento, pois assim
eu seria falso ao Deus lá de cima”), Jó 31.27,28. E em uma profecia de julgamento diz-se
que Yahweh visitará toda a hoste do céu acima e dos reis na terra, e o sol e a lua serão
envergonhados, quando Yahweh reinar em Sião (“A lua se envergonhará, e o sol se confundirá
quando o Senhor dos Exércitos reinar no monte Sião e em Jerusalém” Is 24.23). Israel: Its
Life and Culture (Londres: Oxford University Press, 1926), pág. 635.
3Há numerosos casos, naturalmente, em que os montes e altas montanhas são usados como
metáfora para a força e majestade de Deus — por exemplo. Salmos 3.4, 24.3, 43.3, 48.1,2.
NT Lutero escreveu em alemão. Esta terceira estrofe diz em inglês: “Não temeremos, pois
Deus determinou que sua verdade triunfasse por meio de nós” (vs 3,4), ["We will not fear,
for God hath willed/ His truth to triumph through us”].

Capítulo 4: Culto
1Paul Scherer, The Word God Sent (Nova York: Harper & Row, 1965), pág. 166
2 Herbert Hendin, The Age o f Sensation (Nova York: W. W. Norton, 1975), pág. 325.
3 Charles Spurgeon, citado em Helmut Thielicke, Encounter with Spurgeon (Filadélfia:
Fortress, 1963), pág. 11.

Capítulo 5: Serviço
1 Walther Zimmerli, “xápif ”,em Theological Dictionary o f the New Testament, org. Gerhard
Kittel e Gerhard Friedrich (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1974), 9:377.

Capítulo 6: Ajuda
1 Robert Browning, “Easter Day”, em The Poems and Plays o f Robert Browning (Nova
York: Random House, 1934), pág. 503.

Capítulo 7: Segurança
1George Adam Smith, Historical Geography o f the Holy Land (Londres: Collins, 1966),
pág. 178.
2Gilbert Highet, Man s Unconquerable Mind (Nova York: Columbia University Press, 1954),
pág. 24.
3 Alexander Maclaren, The Psalms (Nova York: A.C. Armstrong, 1908), 2:316.
4 Mitchell Dahood traduz: “Mas aqueles que cambaleiam por causa de seus caminhos
errôneos...” Pontuando diferentemente as consoantes hebraicas, ele encontra o salmista usando
a mesma palavra como no verso 1 (mwt) e assim fazendo contraste com aquele que confia
em Deus e é uma montanha de rocha sólida que não pode ser movida com aquele que
recusou confiar em Deus e que portanto escorrega e “cambaleia”, — apostatando. Psalms III
(Garden City, N.J.: Doubleday, 1970), pág. 214.
5 Charles Spurgeon, The Treasury ofDavid (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1950), 6:59.
NOTAS 157

Capítulo 8: Alegria
1Ellen Glasgow, The Woman Within (Nova York: Harcourt Brace, 1954), pág. 15.
2Phyllis McGinley, Saint-Watching (Nova York: Viking, 1969), págs. 13,14.
3 Elie Wiesel, Souls on Fire (Nova York: Vintage, 1973), pág. 100.

Capítulo 9: Trabalho
1 Hilary of Tours, citado em G.A. Studdert-Kennedy, The Word and the Work (Londres:
Hodder& Stoughton, 1965), pág. 33.

Capítulo 10: Felicidade


1Duas palavras em hebraico são traduzidas “abençoado” (bem-aventurado, feliz) neste salmo.
A palavra usada nos versos 1, 2 ( ‘ashre) descreve o sentimento de felicidade e integridade
que vem de se viver em bom relacionamento com Deus. A palavra usada nos versos 4, 5
(,barak) descreve o que Deus faz ao compartilhar conosco sua vida abundante em um
relacionamento de salvação.
2 F. Hauck, “uaicápioò ”, em Theological Dictionary o f the New Testament, org. Gerhard
Kittel e Gerhard Friedrich (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1967), 4:369.
3 Johannes Pedersen, Israel: Its Life and Culture (Londres: Oxford University Press, 1-926),
págs. 182-99.
4 Ibid., págs. 193,211.
5 João Calvino, Commentary on the Psalms (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1949), 5:115.
6 Austin Farrer, The Brink ofMystery (Londres: SPCK, 1976), pág. 52.
7John Hemy Newman, The Preaching o f John Henry Newman, org. W.D. White (Filadélfia:
Fortress, 1969), pág. 77.

Capítulo 11: Perseverança


1 H. Cremer, citado em Gerhard von Rad, Theology o f the Old Testament (Nova York: Harper
& Row, 1962), 1:371.

Capítulo 12: Esperança


1 Sally Cunneen, “Listening to IIlich”, The Christian Century, 29 de setembro, 1976.
2 P.T. Forsyth, The Cure o f Souls (Grand Rapids, MI; Eerdmans, 1971), pág. 128.
3 Gerhard von Rad, Theology o f the Old Testament (Nova York: Harper & Row, 1962),
1:384.
4 Henri J.M. Nouwen, The Wounded Healer (Nova York: Doubleday, 1972), pág. 95.
5George MacDonald, Unspoken Sermons, First Series, citado no frontispício de C.S. Lewis,
The Problem ofPain (Nova York: Macmillan, 1953).
6 Forsyth, Cure o f Souls, pág. 113.
7 Karl Barth, Church Dogmatics 3/1 (Edimburgo: T & T Clark, 1957), pág. 369.
8George MacDonald, citado em Denis Donogue, Nova YorkReview ofBooks, 21 de dezembro,
1967.
9 Agostinho, The City o f God (Nova York: Doubleday, 1958), pág. 46.
158 UMA LONGA OBEDIÊNCIA NA MESMA DIREÇÃO

Capítulo 13: Humildade


1G.K. Chesterton, Orthodoxy (Nova York: John Lane, 1909), pág. 212.
2 João Calvino, Commentary on the Psalms (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1949), 5:140.
3 Artur Weiser, The Psalms (Filadélfia, Westminster Press, 1962), pág. 777.
4 Charles Spurgeon, The Treasury o f David (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1950), 6.137.
5 Ihid., pág. 136.
6 Peter Marin em Saturday Review ofLiterature, 19 de setembro, 1970, pág. 73.

Capítulo 14: Obediência


1Karl Barth, Church Dogmatics 4/3, 2a metade (Edimburgo: T & T Clark, 1957), pág. 670.

Capítulo 15: Comunidade


1 Philip Slater, em seu estudo penetrante da maneira como os (norte-)americanos vivem
juntos, diz que todos nós temos um desejo e necessidade de comunidade — “o desejo de
viver em confiança e cooperação fraterna com os semelhantes numa entidade coletiva total
e visível. É fácil apresentar exemplos dos muitos modos como os americanos tentam
minimizar, evitar, ou negar a interdependência sobre a qual todas as sociedades humanas se
baseiam. Procuramos uma casa particular, um meio de transporte particular, um jardim
particular, uma lavanderia particular, lojas de "self-service ", e práticas “faça você mesmo”
de todos os tipos. Uma enorme tecnologia parece ter proposto a si mesma a tarefa de tomar
desnecessário um ser humano ter ocasião de pedir qualquer coisa de outro enquanto empreende
seus afazeres cotidianos... Buscamos cada vez mais privacidade, e sentimo-nos mais alienados
e solitários quando a conseguimos... Nossos encontros com outras pessoas tendem cada vez
mais a ser competitivos como resultado da busca por privacidade. Cada vez menos nos
encontramos com nosso semelhante humano para compartilhar e trocar experiências, e cada
vez mais o encontramos como um impedimento ou estorvo: congestionando o trânsito quando
estamos com pressa de chegar a algum lugar, enchendo e sujando a praia ou parque ou
jardim, cortando fila no supermercado, pegando a última vaga do estacionamento, tirando
nossa visão, etc. Por termos cortado tanta comunicação de um com o outro nós colidimos
um com o outro, e assim uma porcentagem cada vez maior de nossos contatos interpessoais
são ásperos, irritados”. Pursuit o f Loneliness (Bostom: Beacon, 1970), págs. 7,8.
2 Martin Buber, I and Thou (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1970), pág. 62.
3 Poems and Prose o f Gerard Manley Hopkins (Baltimore: Penguin, 1953), pág. 27.
4 Dietrich Bonhoeffer, Life Together (Nova York: Harper & Brothers, 1954), pág. 25.
5 Ibid., pág. 23.
6 Margaret Mead, Culture and Commítment (Garden City, NJ; Natural History Press/
Doubleday, 1970), pág. 17.
NTTrad. para o port. por J.W. Faustini, [“Por Muitos Santos”], em Louvor Perene (Newark
NJ, 1972) n" 290.
7Mary Bosenquet, The Life and Death o f Dietrich Bonhoeffer (Nova York: Harper & Row,
1968), págs. 15,16.
NOTAS 159

Capítulo 16: Bênção


' Charles Colson, Bom Again (Nova York: Bantam, 1976), pág. 10.
2 Ibid., pág. 7.
3J.Y. Campbell, “Blessedness”, em Interpreter 's Dictionary o f the Bible, org. George Arthur
Buttrick (Nashville: Abingdon, 1962), 1:445.
4 Johannes Pedersen, Israel: Its Life and Culture (Londres: Oxford University Press, 1926),
pág. 202.
5 W.J. Harrelson, “Blessings and Cursings”, em Interpreter's Dictionary, 1:446.
6 B. Duhm, Das Buch Hiob (1897), pág. 12, citado em Hermann W. Beyer, ‘"súXsy&i”, em
Theological Dictionary o f the New Testament, org. Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich (Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1964), 2:758.
7 Ibid., pág. 760.
8João Calvino, Commentary on the Psalms (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1949), pág. 168.
9 Eric Routley, Ascent to the Cross (Londres: SCM Press, 1962), pág. 72.
10 Karl Barth, Church Dogmatics 2/1 (Edimburgo: T & T Clark, 1957), pág. 656.
11 Charles Dickens, Great Expectations (reimpr., Nova York: Heritage, 1939), pág. 198.
12 Karl Barth, Church Dogmatics 4/1 (Edimburgo: T & T Clark, 1956), pág. 4.
13John Henry Newman, The Preaching of John Henry Newman, org. W.D. White (Filadélfia:
Fortress, 1969), pág. 211.

Uma longa obediência: Um epílogo


1 O p a ís d e p e s s o a s m u ito p e q u e n a s , d o ro m a n c e As viagens de Gulliver, d e J o n a th a n S w ift.
“Há um puro e radiante rigor por uma vida autêntica diante de
Deus. Polindo a linguagem dos Salmos, Eugene Peterson faz que a vida
vibre como a corda de um instrumento bem afinado. Uma longa
obediência é o único caminho do discipulado para Jesus, e essa é a
mensagem que nós desesperadamente precisamos ouvir e pôr em prática
hoje.”
Dallas Willard, autor de The Divine Conspiracy

“Palavras são armas que podem ser usadas para o bem e para
o mal. Eugene Peterson as usa manejando a espada da Escritura para
penetrar nossa mente e coração. Ele é um dos mais talentosos
escritores das coisas de Deus e nós somos privilegiados por ter sua
obra entre nós.”
Jill P. Briscoe, autor de Runningon Empty

Eugene H. Peterson aposentou-se recentemente


como professor de Teologia Espiritual no Regent College.
Ele é autor de vários livros.

ISBN 8 5 7 6 2 2 0 6 4 - 4

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