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Curso Online de Filosofia

OLAVO DE CARVALHO

Aula 24
19 de setembro de 2009

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Nota: última aula do curso “Conceitos Fundamentais da Psicologia”, ministrado em Colonial Heights.

[00:00] Boa tarde a todos, sejam bem-vindos!

Este curso está sendo dado simultaneamente aqui para o pessoal que está em Colonial
Heights, no Hotel Hilton Garden, e para todo o pessoal do seminário que está assistindo
online. Como estes não pegaram a semana inteira do curso, eu terei de fazer um resumo do
que nós dissemos. Mas ao mesmo tempo eu tenho de adverti-los que com essa aula nós
saímos da seqüência normal do curso. Esta aula é uma espécie de extra, que não tem
continuidade com o que eu estava dando antes no curso online. De qualquer modo, é um
material que no futuro poderá ser útil para vocês. Então vocês simplesmente deixem isso
guardado, e mais tarde voltaremos a pensar neste assunto.

Eu comecei este curso explicando que nunca tive nenhuma pretensão de conceber uma
psicologia geral, muito menos de escrevê-la, mas que tudo o que eu investiguei de psicologia
ao longo da minha vida foram apenas detalhes de certos problemas específicos que me
pareceram necessários para esclarecer outros problemas, cujo interesse não era
primordialmente de ordem psicológica, mas ligado à teoria do conhecimento. Não obstante,
como esses problemas são problemas básicos, dizem respeito aos fundamentos mesmos da
psicologia, eles acabam constituindo, de algum modo, o começo de uma psicologia geral que
pode ser desenvolvida em muitas direções.

Evidentemente, a primeira das perguntas que se colocaram foi: exatamente o que é a psique,
do que os psicólogos estão falando? Como os autores mais famosos da área da psicologia não
têm o mais mínimo acordo em relação a isso — o conceito de psique é elástico a ponto de
C.G. Jung dizer que tudo é psique, e B.F. Skinner dizer que não há psique nenhuma —, eu me
acreditei autorizado a investigar a coisa por minha própria conta, e usar os meus próprios
métodos. E o método que eu usei é simples: é impossível que tantos psicólogos, ainda que
estejam em total desacordo ao definir a psique, ao expressar verbalmente o conceito de
psique, é impossível que eles não estejam de algum modo olhando para o mesmo objeto.
Dizer que todos os psicólogos do mundo jamais viram uma psique e não têm nenhuma
experiência disso seria uma coisa catastrófica. Isso seria impossível.
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O desacordo se dá na esfera teórica, não na prática. Na prática, nenhum psicólogo erra ao


dizer que uma determinada conduta humana, um determinado ato, teve uma causa psíquica.
Portanto, se ele não sabe o que é psique, ele sabe mais ou menos onde ela está. E, por isso
mesmo, para obter o conceito de psique, eu usei o próprio material fornecido pela bibliografia
psicológica, não como expressão do que é a psique, mas como uma coleção de testemunhos
dados por pessoas que algo da psique sabem, e que mais ou menos sabem distingui-la de
outras coisas.

Eu me perguntei o que há de comum entre todos esses enfoques da psique. Não de comum no
que eles dizem, mas no que está subentendido na sua experiência da psique. Eu não tentei
pegar um monte de definições da psique e reduzi-las a um denominador comum — não foi
isso que eu fiz. Eu ignorei as definições de psique, e prestei atenção às outras coisas que os
psicólogos diziam a respeito de dela. E essas coisas subentendiam alguma experiência. O que
eu tentei foi espremer essa experiência, para que eu pudesse obter um objeto comum. Ou
seja: qual é o objeto ao qual todos estão tendo acesso, quando eles dizem todas essas coisas
diferentes a respeito da psique? Mais ou menos como se você ouvisse vários comentários a
respeito de uma pessoa que você não conhece, e você, independentemente do teor de todos
esses comentários, buscasse ver qual é a referência comum que eles têm. Parece que eles
estão falando de uma mesma pessoa, e portanto algo dessa pessoa deve ser perceptível para
além e por trás daquilo que todos estão dizendo.

Esse é mais ou menos o mesmo método que eu usei, de análise de discurso, no estudo da
mente revolucionária, quando eu cheguei a espremer esses discursos para ver o que havia de
comum em todos eles — não no conteúdo do que eles diziam, mas no modo pelo qual eles
olhavam o seu objeto. Então, como o assunto que eu creio que mais estudei foi esse problema
da análise do discurso, então é esse o método que está mais ao meu alcance para lidar com
qualquer coisa. E onde você tem uma coleção grande de documentos escritos, analisar esses
discursos e ver de qual objeto eles estão falando é mais ou menos o caminho natural que se
apresenta. Não quer dizer que o objeto apareça nos discursos — isso é importante — porque
uma coisa seria buscar o ponto de acordo entre os psicólogos, e não é isso que eu estou
buscando. Você pode pegar várias doutrinas e ver onde é que elas estão de acordo, mas não é
isso que eu estou procurando. Eu só estou procurando o do quê elas estão falando. Não o
mínimo múltiplo comum entre as várias coisas que elas dizem.

A pergunta era mais ou menos a seguinte: como é que esses psicólogos todos sabem localizar
mais ou menos onde está a psique, e distinguir uma causa psíquica de uma outra causa
qualquer? De cara, nós entendemos que, se ninguém sabe definir a psique, no entanto todo
mundo está de acordo em encará-la como causa de alguma coisa, e, portanto, o modo pelo
qual a psique se apresenta na experiência dos psicólogos, seja os psicólogos práticos, seja os
teóricos, não é como uma coisa, mas como uma força agente, uma força causal.

Desde que nós temos essa espécie ao qual a psique pertence, então nós vamos tentar situá-la
dentro do gênero “causas”. Nós acabamos, então, por ver, que a causa psíquica a que o
psicólogo se refere nunca envolve uma necessidade absoluta, como uma necessidade de tipo
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lógico — como em 2 + 2 é 4, ou um quadrado dividido por uma diagonal forma dois


triângulos isósceles. Não é disso que estamos falando. Se algo decorre de uma necessidade
lógica absoluta, então não se diz que aquela ação teve uma causa psíquica. Mesmo que o
indivíduo haja baseado numa conexão lógica tal como ele a entende, não é a simples conexão
lógica que o faz agir, mas o fato de que ele aceita aquela conexão lógica.

Além da necessidade lógica haveria um segundo fator interveniente. Por exemplo, você vai
fazer as contas para ver quanto está devendo. Você faz as contas de acordo com as regras
estritas da aritmética elementar, e você diz: é tanto! Uma coisa é a regra aritmética que você
usou para fazer aquela conta, outra coisa é o fato de que você aceita esse resultado, e até às
vezes paga a dívida. Então você entende que existe uma causa lógica aí envolvida, que
produz o resultado da conta, mas existe uma outra causa, que faz o indivíduo aceitar o
resultado, ou até o torna capaz de acompanhar o raciocínio que leva àquele resultado. E
nenhum psicólogo teria a menor dificuldade de distinguir entre a causa lógica do resultado da
conta, e a causa psicológica que faz o indivíduo fazer a conta, acompanhar o processo lógico
inteiro da conta, e aceitar o resultado. Qualquer psicólogo sabe que são duas coisas
diferentes, e portanto nenhum psicólogo, ou mesmo o cidadão comum, confunde o que é uma
causa psicológica do que é uma causa puramente lógica.

Se nós falamos em causas puramente lógicas, nós também entendemos aí causas metafísicas,
que atendem a uma necessidade absoluta. Por exemplo, o princípio de identidade: que eu seja
eu mesmo e a outra coisa seja ela mesma, e assim por diante. Todo mundo sabe distinguir
isso de uma causa psicológica.

E, por fim, [00:10] nós temos as causas físicas, que são determinações naturais que às vezes
obedecem a uma necessidade absoluta, mas que em geral obedecem a uma necessidade
probabilística. As chamadas leis da natureza, quase todas elas são de natureza probabilística.
E nós entendemos que também, na prática clínica, os psicólogos sabem distinguir entre o que
é uma necessidade natural probabilística, que pesa sobre o seu paciente, e o que é a causa
psicológica pela qual ele reage diante dessa necessidade natural. Nós sabemos, por exemplo,
que o ser humano adulto de peso x necessita de uma quantidade y de alimentos para
sobreviver. Isso é uma necessidade natural, e portanto estatisticamente ele precisará de um
tanto de comida. Porém isso não o fará comer essa quantidade: ele pode comer a mais ou a
menos. Então qualquer um entende que a pura necessidade natural não criou aquela conduta
psíquica.

Quando um psicólogo diz que uma ação teve uma causa psíquica, ele está se referindo a um
tipo específico de causa, que não é nem uma causa puramente lógica, nem uma causa
metafísica, e nem uma causa física. É um quarto tipo de causa, e ainda que ele não saiba
defini-la, ele sabe percebê-la quando ela está presente. E, aliás, o exercício da sua profissão
só se justifica porque ele a percebe. Mesmo que na teoria que ele vai desenvolver, ele tente
reduzir indiretamente a causa psicológica a uma causa física que está ali subentendida, ele
não confunde uma coisa com a outra. Quando Skinner, por exemplo, procura reduzir a
conduta humana aos reflexos condicionados, ele só pode fazer isso porque já discerniu, na
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conduta humana, a presença de um elemento que não é a pura necessidade natural. Ele pode
tentar explicar esse elemento por uma necessidade natural remota que o causa, mas ele não
confunde uma coisa com a outra. Ele pode, por exemplo, dizer que a única diferença que
existe na causalidade natural, no caso dos reflexos condicionados, que se impõe a um ser
humano e se impõe a um gato, é quantitativa. Na verdade ele vai dizer isso: a única diferença
entre o ser humano e outros animais é que nós somos capazes de absorver um número
imensamente maior de reflexos condicionados. Você não pode condicionar um gato para que
ele aprenda alemão, por exemplo, mas um ser humano você pode.

Mesmo que ele conceba essa diferença como meramente quantitativa, ele só pode fazer isso
porque percebe essa diferença, porque se não percebesse ele não poderia tentar explicá-la.
Então mesmo o psicólogo que nega a existência de algo como causa psíquica, percebe que há
uma causa psíquica presente, e em seguida ele faz uma série de raciocínios tentando, com
maior ou menor sucesso, reduzi-la a uma outra coisa.

No entanto, qual é a diferença entre isso e as causas físicas, naturais, comuns? Quando se
instaura um processo patológico, por exemplo — entra uma bactéria e causa uma infecção no
indivíduo —não é preciso fazer nenhum raciocínio para reduzir isso a uma causa natural,
porque a causa natural já está presente. Ela é obviamente uma causa natural. Mas quando
você quer explicar a conduta psíquica por uma causa natural, biológica, subentendida, você
tem de fazer um raciocínio para reduzir uma causa a outra, o que quer dizer que a suposta
identidade entre a causa psicológica e a causa natural não é uma coisa auto-evidente, e só
pode ser concebida como uma teoria, uma hipótese que o Skinner fez.

Se nós entendemos que a intenção, no sentido fenomenológico, ... Intenção é a referência, a


atenção a um objeto. A intenção com que o psicólogo fala de conduta determinada por uma
causa psiquica se refere então a um tipo de causa que não se enquadra nos outros tipos.

Dito isso, e se nós entendemos, primeiro, que a psique é uma força agente, uma força causal,
ao dizer isso nós estamos afirmando que as ações que ela causa não são causadas por nenhum
fator por trás dela. Se todas as causas psíquicas puderem ser reduzidas a uma outra coisa, a
uma outra causa mais básica, que está por trás ou por cima dela, isso é a mesma coisa que
dizer que não existem causas psíquicas. Mas, a rigor, todas as tentativas de reduzir a causa
psíquica a uma outra coisa, até hoje, entraram em contradição — como acontece com o
próprio Skinner, com o próprio behaviorismo. Então é praticamente um consenso entre os
psicólogos que existem causas psíquicas, e que portanto a psique é uma força agente distinta
das outras.

Se ela é uma força agente, então nós podemos passar em seguida a examinar quais são as
características dessa força causal. A primeira característica que aparece é que ela é individual.
A causa psíquica só aparece intimamente ligada à presença de uma individualidade física
humana. Não existe uma psique que esteja agindo simultaneamente sobre dois corpos, uma
mesma psique fazendo duas pessoas fazer a mesma coisa. Isso não existe. Também não existe
uma psique que possa agir sozinha, sem um corpo. Ninguém já viu uma psique por aí, agindo.
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Essa individualidade e essa coexistência com a individualidade numérica, corporal, é a


primeira característica da psique. Ela é uma para cada um. E as relações dela com o corpo do
agente são extremamente complicadas. Na verdade, ninguém sabe. Se você perguntar onde
termina o corpo e começa a psique, você já está supondo que existe uma fronteira entre eles.
Nós nem sabemos se existe essa fronteira. E, também, você os está concebendo como duas
entidades espaciais, porque uma terminar e outra começar é uma características dos corpos:
um corpo começa onde termina o outro. Então, até essa pergunta, onde termina o corpo e
começa a psique, já é totalmente inadequada em relação ao objeto. Nós não sabemos se é
possível formular essa pergunta.

Isso quer dizer que a questão da relação entre psique e corpo não pode ser o começo da
psicologia, porque essa é uma coisa que talvez você descubra no fim, mas da qual no começo
você não tem a menor idéia. Pior. Para identificar que uma determinada conduta tem causa
psíquica, nem o psicólogo e nem qualquer pessoa precisa saber exatamente qual é a relação
entre psique e corpo. Dá para você perceber a presença da ação psíquica, sem que você
precise esclarece ao mesmo tempo qual é a relação dela com o corpo.

A segunda característica da psique é o que nós chamamos de sua historicidade. Onde quer
que não exista nenhum elemento do passado atuando presentemente nas ações, não se pode
falar de causa psíquica. Causa psíquica sempre se refere a algo que aconteceu, e à luz do qual
você entende o que está acontecendo agora, a começar pelo uso da sua linguagem. Se alguém
lhe diz alguma coisa, como é que você vai reagir a isso se você não se lembra da linguagem
que você aprendeu? Então, no mínimo, esse aporte do passado está presente, mas em geral
esses elementos do passado são muito mais numerosos.

Segundo, esses elementos do passados estão presentes, mas não determinam diretamente a
ação psíquica. [00:20] Se eles determinassem totalmente, ou seja, se a conduta do sujeito nesse
momento fosse inteiramente determinada pelo seu passado, você não poderia dizer que ele é
o sujeito agente. Ele estaria sendo apenas o instrumento de uma causa anteriormente
desencadeada. E se fosse assim, todas as condutas humanas seriam enormemente fáceis de se
prever — o que na verdade elas não são. Você entende que o passado está presente na
estrutura da ação, mas não a determina.

Além do passado, existe um outro elemento que também está sempre presente, que é a
expectativa de futuro — podendo ser um futuro remoto ou um futuro imediato. Se você abre
uma porta, por exemplo, você supõe que existe algo depois dela, e não um vazio. Você não
espera que o universo termine ali mesmo. Mesmo o ato mais simples pressupõe uma
expectativa. Você não pode nem andar se você não espera que o chão fique no mesmo lugar e
o sustente.

Em tudo aquilo que tem causa psíquica existe um certo depósito do passado, que está
presente e que faz parte da estrutura da ação, e você tem uma expectativa de futuro, e no meio
há uma certa mobilidade onde existe um elemento de escolha, e é justamente esse elemento
de escolha que nós dizemos que é a causa psíquica. Isso quer dizer que aquilo que tem uma
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causa psíquica não pode ser explicado por nenhuma outra causa. A própria psique foi a fonte
da ação, a causa da ação, e então nós entendemos que só podemos falar em causa psíquica
quando a ação ou a conduta não foi determinada totalmente por uma outra causa, exceto o
próprio sujeito agente.

Isso quer dizer que quando qualquer psicólogo fala de “psique”, ele está falando do próprio
sujeito humano agente. A psique é você. Ou, dito de outro modo, a psique é aquilo que
permite que você seja um sujeito agente, que você seja uma causa originária de alguma coisa.

Notem bem que quando nós chegamos aí as pessoas fazem as maiores confusões, misturando
isso com o problema metafísico da liberdade e do determinismo. Mas o que eu estou dizendo
aqui é totalmente separado desse problema. A ação que tem causa psíquica provém do
próprio sujeito — não há uma outra causa além dele — porém esse indivíduo é uma coisa, é
um ente real. Tomado na sua totalidade, ele é um ente real e tem uma constituição, ainda que
nós não sejamos capazes de conhecê-la no seu todo. Nós podemos dizer que a constituição
total dele, enquanto entidade metafísica, o faz agir ou assado. E então você atribuiu, em
última análise, a Deus as ações dele, mas com isso você escapa totalmente ao problema que
nós estamos tratando aqui. Dizer que Deus causou alguma coisa é não dizer nada, porque
Deus causou tudo. Se você apertou o interruptor e a luz acende, você diz que é por causa da
eletricidade, por causa deste ou daquele fator natural, mas se você continuar perguntando por
que esse fator existe, e qual é a causa da causa, e assim por diante, você chega a uma entidade
que você chama Deus, e que é a causa de todas as coisas. Isso que dizer que não vale dizer
que Deus causou, porque quer Ele tenha agido diretamente ou indiretamente, Ele fez tudo.
Por isso é que nós não precisamos mexer com o problema da liberdade e determinismo
quando dizemos que o indivíduo humano — ou seja, a psique — é criador de causas, é fonte
de causas, é origem de causas. Ele desencadeia processos causais aos quais você não pode
atribuir nenhuma outra origem exceto a origem metafísica, Deus. Porém, você entende que
para fins de observação científica, tanto faz você dizer que a causa se originou no sujeito ou
se originou em Deus. Porque foi Deus que originou o sujeito, o qual foi a causa. Então demos
uma volta e chegamos no mesmo ponto. Então favor não fazer perguntas sobre liberdade e
determinismo com relação a este ponto, porque elas são despropositadas.

Todo psicólogo, por mais materialista ou behaviorista que seja, reconhece o ser humano
individual como agente, e por isso mesmo reconhece que esse ser humano tem uma psique.
Qual é a diferença, nesse sentido, entre a psique humana e a psique animal? A psique animal
não é agente, ela sempre vai agir de acordo com pautas predeterminadas, concebíveis
estatisticamente. Portanto ela não é propriamente agente. A ação animal apenas prolonga
certas causas anteriores, que você pode chamar de instinto, reflexo condicionado etc. Mas a
psique humana tem um outro elemento, que permite que para além dessas causas que estão
agindo sobre ela, ela também seja uma fonte de causas. Ou seja, aquilo que tem uma causa
psíquica não pode ser explicado por nenhuma outra causa, embora essas outras causas
possam estar ali presentes como elementos, dos quais a psique se serve para tomar as suas
decisões e produzir as suas ações.
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No começo, quando eu comecei a investigar esse assunto, vinte anos atrás, eu dizia que uma
das características da psique era a liberdade. Mas eu tirei isso, vi que esse conceito não era
necessário, e que só iria confundir. Na hora em que você fala que você tem a individualidade
e a historicidade, já resolveu o problema. Nós podemos dizer que há um terceiro elemento
que seria a irredutibilidade — ou seja, que você não pode reduzir a causa psíquica a uma
outra coisa — mas nem isso é preciso dizer, porque se você já disse que a causa psíquica não
se confunde com as outras, a irredutibilidade já está dada aí. Então eu creio que esses dois
traços da psique são suficientes para este tipo de estudo. Ela é individual e ela é histórica.

Se ela é histórica, nós podemos então investigar qual é a estrutura da sua temporalidade, a
estrutura dessa historicidade. E aí nós entendemos que a psique, que já está presente desde o
nascimento do sujeito, se desenvolve no tempo por um complexo sistema de assimilações e
transformações do material externo. Nós chamamos de externo tudo aquilo que não é
psíquico na sua origem. O fato, por exemplo, do sujeito ter um corpo. Você não pode dar uma
explicação psíquica para isso, você não pode dizer que ele tem um corpo porque pensou isso
ou decidiu isso. Ele simplesmente tem, e se não tivesse, não adiantaria você querer investigar
a psique dele. O corpo, então, é um pressuposto da atividade psíquica, assim como o próprio
nascimento. São elementos externos.

Esses elementos externos começam a ser assimilados e trabalhados pela psique desde o
nascimento. Nós notamos, por exemplo, como os bebês recém-nascidos manipulam e
observam o seu próprio corpo, e principalmente o pé e a mão, que são as partes mais fáceis de
observar. Ele tem um enorme interesse naquilo. E esse interesse seria inteiramente
inconcebível se o pé e a mão fizessem parte da psique. Eles são o elemento externo, eles
compõem o indivíduo e eles têm de ser assimilados como dados do mundo real.

Saltando, então, um pouco, sobre as aulas que nós demos aqui, nós podemos tirar uma
conclusão muito interessante disso aí. Esse corpo nasce com certas necessidades. Ele não
nasce pronto, e precisa ser também complementado. Por exemplo, ele precisa do ar. Então, a
criança começa a respirar tão logo nasce, e às vezes nem isso, tem de levar uma palmada para
respirar. Isso quer dizer que nem isso o desgraçado sabe. [00:30] Ele também precisa de
alimento, precisa de um espaço para se movimentar, tem a necessidade de se mover. Ele tem
uma série de necessidades com as quais o corpo nasce. Qual é o peso psíquico de todas essas
necessidades? Quanto elas vão pesar sobre a força causal da psique?

A fome, por exemplo. Quando é que a fome atua diretamente sobre a psique determinando a
conduta? Rarissimamente. O sujeito não faz tal ou qual coisa só porque está com fome. Além
da fome, precisam interferir mil outro elementos. Por exemplo, se você acabou de comer um
montão de comida e ainda sente fome, não é necessário que você continue comendo. Você
pode sentir fome agora e decidir que vai comer só daqui a pouco. E você pode comer mesmo
sem estar com fome. “Eu não estou com fome mas preciso me alimentar, por esse ou aquele
motivo.” Então nós entendemos que são raríssimas as situações em que a fome é a causa
direta de qualquer conduta.
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De todas essas necessidades do corpo, aquela que é a mais forte, a mais premente e a mais
constante, que é a necessidade de respirar, é praticamente neutra em relação às condutas
humanas, porque você só age se estiver respirando. Se parar, você morreu. Então, a
necessidade de respirar é compatível com todas e quaisquer ações humanas, as mais diversas.
Essa é uma necessidade corporal que, por estar permanentemente presente, não aumentar nem
diminuir, é neutra no aspecto decisório. Mas a fome já não é. Você tem a opção de comer
agora ou daqui a pouco, mas não tem a opção de respirar agora ou daqui a pouco.

Dessas várias necessidades corporais humanas, nós vemos que nenhuma delas, jamais,
determina por si a ação humana. Ela pode entrar como um componente da ação humana,
porém a ação humana requer que essa necessidade corporal seja filtrada, interpretada,
pensada, para daí resultar uma ação. E nesse processo de transformar essa informação básica
do corpo em um motivo de ação, a necessidade passa por várias transformações, podendo
inclusive ser neutralizada, quando, por exemplo, você decide não comer.

Existe uma necessidade que aparece muito mais tarde, que é a necessidade sexual, que não é
da mesma natureza da fome. Há um limite para a fome: se você passar 44 dias sem comer,
você morre. Mas se passar 44 dias sem ter atividade sexual nenhuma você não morre, e
portanto o sexo não se impõe como uma necessidade premente. Nem a fome nem o sexo
determinam ações humanas, porque toda ação humana, para poder ser executada, demanda
uma atividade mental. Você tem de poder pensar aquelas coisas, simbolizá-las. E, mais ainda,
você tem de pensar o como você vai atender a sua necessidade. Se você está com fome, no
mínimo você tem de ir até a cozinha e descobrir a comida que está lá. A fome não pode
atender-se a si mesma. A fome não sabe onde está a comida. E se não tiver comida em casa?
Você tem de sair, ir a um restaurante ou ir no supermercado comprar alguma coisa. Compare
a complexidade desse ato com o simples impulso da fome. Veja quanta coisa você precisa ter
aprendido ao longo da vida para fazer essa coisa simples, que é abrir o armário da cozinha,
preparar uma comida, ou ir ao supermercado, ou ir a um restaurante. Foi a fome que fez você
fazer isso? A fome, por si, não pode forçá-lo a fazer nada disso. A fome só vai lhe dar um
desconforto físico, mas ela não vai ensiná-lo a fazer nada disso. Isso quer dizer que a fome só
se transformará no elemento causador de uma ação quando ela for somada a outros elementos
causais enormemente complicados, e a mesma coisa acontece com o sexo.

O corpo, com todas as suas necessidade, é apenas um dos elementos externos que a psique
absorve, e aos quais ela vai ter de se adaptar de algum modo. Ela incorpora o corpo, assume o
corpo como dela. Você reconhece que o corpo é seu, e que as necessidades dele são suas.
Mas você é obrigado a fazer isso? Não, pois você pode se desidentificar totalmente dessas
necessidades. Há pessoas que jamais sentem fome. Há certas doenças em que o sujeito
simplesmente não sente a fome, e se ninguém obrigá-lo a comer ele morre.

Isso já nos mostra uma coisa da mais alta importância em psicologia, e algo que praticamente
desmantela, por simples observação, muito do que se tem escrito a respeito da constituição do
ser humano: o ser humano não tem impulsos incoercíveis. Não tem instintos poderosíssimos
que determinem a sua ação. Porém, essas necessidades corporais elementares, que são tão
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tênues e que raramente ou nunca são causa de ação, se tornam causa de ação através da
interpretação e da simbolização que você faz delas. Essa simbolização é feita com elementos
da memória, onde as coisas mais diversas podem aparecer sob uma figura única, como por
exemplo a necessidade sexual, que aparece por si, mas talvez você nem se lembrasse de
atendê-las se não a associasse com outro elementos que só existem simbolicamente na sua
cabeça. Por exemplo, a necessidade de contato corporal. Quando você era pequeno, você teve
muito contato corporal com a sua mãe, e esse contato corporal representava um conforto, uma
situação de bem-estar, de segurança, de paz etc. Você pode querer sentir isso de novo, mas o
que isso tem a ver com o instinto sexual? Nada. Isso não é um instinto sexual, mas a ocasião
do ato sexual pode ser também a ocasião de você obter isso. Também, ao longo do tempo,
você observou certas formas que lhe pareceram harmônicas e belas. Hoje está provado, por
exemplo, que um bebê sabe reconhecer a harmonia de um rosto humano, o que quer dizer que
um bebê pequeno já sabe reconhecer a diferença entre um rosto bonito e um rosto feio. O que
isso tem a ver com sexo? Nada, mas ao desejar [00:40] um ato sexual com tal ou qual pessoa
você já juntou aí três elementos: o desejo sexual, o gosto pela beleza, e o desejo do contato
corporal.

Imaginem, agora, a outra multidão de elementos que podem contribuir para você querer ter
uma relação sexual com uma pessoa. O prestígio, por exemplo. Sair com uma mulher bonita
pendurada no seu braço dá prestígio, mas o que isso tem a ver com sexo? Absolutamente
nada. O sujeito pode ser totalmente brocha e indiferente, e nem por isso ele vai deixar de
gostar de andar com uma mulher pendurada, porque isso dá prestígio. Então são essas
sucessivas camadas de símbolos que dão força a um impulso inicialmente é muito fraco.
Você cria tantos motivos para você fazer aquilo que, no fim, a coisa se torna incoercível, mas
isso não é um impulso natural. O impulso natural é fraco. É o processo de simbolização que
faz com que aquela constelação de fatores ocupe na sua psique um lugar enorme, e você
acaba pensando que não pode viver sem aquilo.

Então não é a necessidade natural que o impeliu a fazer isso, mas a própria psique. Isso é a
mesma coisa que dizer que nada na psique, absolutamente nada, se constitui de impulsos
naturais herdados da natureza. E quase tudo o que os psicólogos falam a respeito disso é
besteira. Há obras inteiras de psicologia dedicadas a estudar fatores inexistentes. Por
exemplo, a agressividade humana. Konrad Lorenz diz que a agressividade humana é um dos
fatores mais potentes na nossa conduta. Mas espere um pouco: quantas vezes você bateu em
alguém? A maior parte das pessoas passa a vida sem bater em ninguém, nem em um animal.
Se você pegar um sujeito muito brigão — como o Otto, um amigo brigão que eu tinha —, em
quantas pessoas o Otto bateu? Vinte, trinta. É um recorde. Arrumou trinta brigas. Que raio de
impulso poderoso é esse, então, que tão raramente se manifesta?

Em geral a gente come todos os dias, e mesmo assim a fome não é tão poderosa que faça
você sair comendo a mesa. Nenhum ser humano come como um cachorrinho novo, que come
tudo o que derem para ele, e não pára, e come até morrer. Se não acabar a comida ele está
lascado. Nenhum ser humano faz isso. Mas se nem a fome é tão poderosa, quanto mais a
agressividade. Se você entrevistar soldados em campo de batalha, e perguntar se ele estava
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com raiva do inimigo, louco para matar todos, ele vai dizer que não, que estava é louco para
dar no pé, e que estava morrendo era de medo. Isso sim. Autoconservação é uma coisa básica,
mas você não pode sequer dizer que ela é um instinto, porque o instinto aparece sozinho, e a
autoconservação só aparece quando há uma ameaça. E a autoconservação não pode ser um
instinto porque ela depende de toda uma elaboração conjectural da situação. Se você estiver
diante de um tigre, mas não souber que ele é perigoso, você não fará nada, e nós sabemos que
a avaliação que o ser humano faz do perigo é enormemente elástica.

Todo mundo sabe, por exemplo, que as mulheres tem medo de barata. Mas que mal pode
fazer uma barata? Nenhum. E no entanto elas fogem das baratas: é um instinto de
autoconservação voltado para defendê-la de uma ameaça inexiste. A gente entende que aquilo
é puramente simbólico, e que ela está associando a barata a alguma coisa diferente. De cara,
então, tentar explicar a conduta humana em função de instintos e impulsos é uma tolice fora
do comum.

Praticamente toda a psicologia do século XX insistiu nessa bobagem. Eles pegam o produto
final de uma longa e complexa elaboração simbólica, que jamais poderia se realizar sem
todos os meios culturais — linguagem, aprendizado etc. — e vendo como aquela motivação é
poderosa, eles a chamam de instinto, quando o instinto, por si mesmo, é bem fraquinho. Por
que nunca mediram isso? Por que essa necessidade compulsiva de descobrir fantasmas na
natureza, por trás da ação humana? Simplesmente esse é um desejo — esse sim, quase natural
no ser humano — de não se reconhecer a si próprio como força agente. Ou seja, por que
deveria existir uma psicologia se não existisse psique? Se a psique pudesse se reduzir a uma
outra coisa, para que existir uma ciência para estudar um objeto que não existe, e que é
apenas a aparência de uma outra coisa? A simples existência da psicologia está dizendo:
existe a psique, e ela é um fator distinto de outros fatores. Ela é alguma coisa. Nós temos de
reconhecer que essa força agente é uma fonte de causas, e que no fim das contas a psique é
nós mesmos.

Então qual é a maneira correta de você se colocar diante desse objeto? Eu não posso objetivá-
lo totalmente: eu não posso sair fora da minha psique para observá-la. Eu também não posso
observar a psique dos outros sem ser através da minha psique. Ou seja, eu não posso me
desligar desse objeto um único momento. Não posso sair fora dele. Teríamos de usar, então,
um método introspectivo? Um método introspectivo é você examinar a sua própria psique.
Mas se você examina a sua própria psique, você a examina com uma linguagem que não foi
você que inventou, com símbolos que você aprendeu da cultura. Que introspecção então é
essa? Você faz uma introspecção, mas está levando praticamente a humanidade inteira junto
com você para fazer essa introspecção.

Durante muito tempo houve um debate na psicologia entre os adeptos do método


introspectivo e os adeptos da observação de tipo behaviorista. Isso tudo é uma estupidez,
porque não é possível fazer nenhuma das duas coisas. O único método acessível à psicologia
é a confissão, o testemunho, confirmado pelos outros. É um método dialogal. Pense bem:
onde você descobriu tudo o que você sabe da sua psique? Não foi na convivência humana?
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Em psicologia é a mesma coisa. A psicologia apenas tornará a convivência humana um


processo sistemático e racionalmente analisável. E esse é o único método. Eu não posso me
isolar para estudar a minha psique, e também não posso colocar a minha psique fora de mim
para observá-la. E eu também não posso fazer o mesmo com a sua psique. Então a minha
auto-observação e introspecção é parcial; ela não tem autonomia. Eu preciso do testemunho
dos outros para fazer a minha introspecção.

Por exemplo, aquilo que os outros pensam de mim. Se eu supuser que ninguém pensa nada a
meu respeito, que ninguém jamais pensou nada a meu respeito, eu não posso sequer me
conceber como existente. É através do meu reflexo nos outros que eu me reconheço, e através
do reflexo deles em mim que eu os reconheço. [00:50] Esta natureza dialogal faz parte da
própria natureza da psique. A psique é individual e intransferível, mas todos os elementos que
a compõem são dialogais.

[0:50:26] [interrupção] [0:52:46]

O que eu estava dizendo é que os dois métodos que provocaram tanta discussão, tanta
polêmica ao longo de décadas no campo da psicologia, que é a oposição entre os adeptos do
método introspectivo e o método da observação experimental, é uma discussão sem sentido,
porque nem uma coisa nem a outra é absolutamente possível. Se eu vou fazer uma
introspecção, eu estou supondo, nessa introspecção, a humanidade inteira com a qual eu
convivi. Eles estão ausentes fisicamente, mas estão presentes em memória. E, notem bem, o
que eu penso naquele momento não é independente do que eu espero que aconteça na
convivência real amanhã ou depois. Se eu tentar me isolar totalmente, como René Descartes
no penso, logo existo, eu logo vejo que eu não consigo. Naquele estudo, “Descartes e a
Psicologia da Dúvida”, eu mostrei por a mais b que esse isolamento é impossível. Você pode
falar, mas não fazer efetivamente. E, por outro lado, o que significa a observação
experimental sem toda a experiência humana do observador? Não significa nada.

É sempre a totalidade, não quantitativa, mas a totalidade estrutural da sua psique que está
sendo posta em jogo em qualquer conhecimento psicológico que você adquira. Portanto, o
método certo de alcançar uma relação cientificamente aceitável com esse objeto não é nem se
colocar fora e nem se colocar exclusivamente dentro dele, porque a psique não existe nem
como objeto do mundo exterior, e nem existe como uma posse integral minha, mas existe
como uma força produtiva minha que só se atualiza na convivência humana. E que, mais
ainda, requer a apreensão de todos os objetos do mundo exterior que me circunda, eu começo
a absorver esses objetos desde que eu nasço. Absorvê-los, conservá-los na memória e
trabalhá-los na imaginação desde que eu nasço; tudo isso está pressuposto na psique. Ou seja,
a psique pressupõe a convivência humana em um mundo real, entre seres capazes de gerar
causas.

É claro, então, que o único método admissível é o método do testemunho confirmado por
outros testemunhos. Mas até para eu prestar o meu testemunho, não é que eu preciso apenas
da confirmação dos outros, os outros são também objetos do meu testemunho, personagens
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do meu testemunho, o conteúdo mesmo do meu testemunho. Alguns desses personagens são
tão importantes para mim que eles se transformam em símbolos formativos, estruturadores
dentro da minha psique. Por exemplo, a senhora minha mãe, que é a primeira pessoa com
quem eu convivi, como em geral acontece com os outros também. A mãe simboliza para o
bebê uma infinidade de coisas. Ela é a fonte de praticamente todas as satisfações e todas as
frustrações no início. Então como é que eu posso falar da minha psique? O que seria a minha
psique sem a senhora minha mãe? Não seria nada. E assim por diante. Ela não é somente uma
pessoa que eu conheci, mas um símbolo estruturante da minha própria psique. É por isso que
eu digo que brigar com a mãe é como fazer buraco n’água, porque a mãe que pode incomodá-
lo não é tanto a mãe que está fisicamente presente, mas aquela que estava lá no começo, e
essa vai com você aonde você for, e portanto brigar com ela é brigar com a mãe atual para
acertar aquela lá no passado. Mas aquela só existe dentro de você, e portanto quanto mais
você brigar com a mãe, mais você vai acertar tapa em si mesmo. Então, o mandamento divino
de honrar pai e mãe é uma condição básica para a saúde psíquica.

Aluno: E o pai?

Olavo: O pai é a mesma coisa.

Aluno: E os irmãos?

Olavo: Os irmãos, não. (Irmão está lá para você bater nele...) Depois vemos os irmãos, às
vezes eles são forças estruturantes.

A introspecção, na verdade, não existe, e a observação também não existe. Só existe o quê? O
diálogo. Na psicologia, então, o testemunho dialogal, não o solitário, é tudo, e esse é o
método, essa é a fonte das informações em psicologia. Mas não é essa também a fonte de
informações em história? E existe alguma ciência que possa dispensar o testemunho como
elemento fundamental? Nem a mais impessoal das ciências, nem a física atômica pode. O
ideal dessas ciências é reduzir a intervenção humana ao passo que tudo possa ser medido por
máquinas, mas alguém tem de ler o que a máquina está dizendo e contar para o outro e se
mentir ali, acabou. Alguém tem de entender o que a máquina está fazendo.

A presença do testemunho humano é um dado fundamental de todas as ciências. Se nada


depende do testemunho, então o conteúdo daquela ciência não depende que ninguém a
conheça, e então seria uma ciência total, sem intervenção humana. Mas se não há intervenção
humana em nenhum momento isso quer dizer que ninguém estudou aquela ciência, e
ninguém a sabe, ninguém a conhece. A única ciência perfeita seria então uma inexistente ou
impraticável. É claro que esse ideal, que muita gente nas ciências ditas exatas têm, é
proclamado só da boca para fora, [1:00] mas as pessoas não acreditam nisso realmente.

Como nós já temos, então, a localização da psique, e entendemos aquilo que a psique é aquilo
que nós chamamos de nós, que eu chamo de eu, então nós temos de esclarecer qual é a
relação entre esse negócio chamado psique e o que é o eu. Note que aquilo que você chama
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de eu não é a totalidade da sua psique, mas apenas a parte que você conhece nesse momento.
E a parte que você conhece nesse momento depende da narrativa que você fez, depende do
seu conhecimento autobiográfico. Ou seja, depende daquelas partes da sua vida que você é
capaz de contar de novo para si mesmo e se reconhecer nelas. Então, o que é o “eu”? O eu é
uma síntese seletiva da psique. O eu é aquela parte na qual a psique se reconhece
conscientemente a si mesma. E, é claro, isso não poderia se formar antes do aprendizado da
linguagem. O Dr. Freud dizia — por outros motivos, mas eu acho que a data não está errada
— que o eu se forma por volta dos cinco anos de idade. Por exemplo, eu estava lendo ontem
mesmo a autobiografia de Giacomo Casanova, Histoire de Ma Vie, um livro absolutamente
fascinante, maravilhoso, e ele diz que ele só pode contar a história dele a partir dos oito anos,
que é onde ele se lembra de ter tido recordações mais ou menos organizadas. Então, digamos,
cinco, seis, sete, oito anos.

Casanova é famoso como o grande conquistador, como quem comeu metade da Europa. Mas
além de ser um conquistador compulsivo, ele era um grande intelecto, um grande
matemático, um filósofo, um sábio, e um escritor absolutamente maravilhoso, um dos
maiores de todos os tempos. Vocês não assistiram aquele filme com o Marcello Mastroianni,
A Noite de Varennes? O personagem é o Giacomo Casanova. Ele faz, então, um esforço de
memória, e percebe que só tem uma existência consciente a partir dos oito anos. Não porque
tudo começou aí, mas porque a partir daí ele já podia contar a sua história. Talvez tivesse já
desde um pouco antes, mas ele só se lembra a partir daí.

O eu é uma organização, uma seleção, uma estruturação da psique por ela mesma, com base
em elementos de linguagem e simbolização que você é mais ou menos capaz de repetir. Todo
mundo sabe que, além daquilo que está no eu, existem outras coisas na sua psique, mas você
não as chama de “eu”, por que você não sabe o que são elas. Por exemplo, se você fica
bêbado e faz um monte de besteiras, você diz: “Eu estava fora de mim”.

[queda da transmissão] [Áudio 2]

A partir dessa investigação, nós obtivemos várias conclusões que podem reorientar de algum
modo todo o estudo da psicologia. Com isso eu não estou desvalorizando o que os psicólogos
do século XX fizeram. O que estou dizendo é que tudo o que eles fizeram valem pelos
detalhes, jamais pela teoria geral. Todas as teorias gerais são muito ruins. A obra de Jung, por
exemplo, é riquíssima, com observações clínicas extremamente valiosas, mas na hora que vai
teorizar, ele entra em absurdidades e contradições medonhas. Uma delas, que eu já assinalei,
é a sua teoria dos tipos psicológicos. Ele diz que todos nós temos funções cognitivas que são
ativas, e outras que são passivas. As que são ativas, ele diz que são conscientes, e as que são
passivas, ele diz que são inconscientes. E aí, na hora em que ele vai definir a intuição, ele diz
que é uma “apreensão através do inconsciente”. Ó raios, então aí dançou. É uma contradição
básica, e se você tirar essa pedra, todo o edifício cai. E, não obstante, o resto do livro Tipos
Psicológicos tem observações absolutamente magistrais. Ou seja, o Jung era sobretudo um
médico, um homem do consultório, e ele era muito menos teórico e muito menos filósofo do
que ele imaginava que fosse. A mesma coisa em relação ao Dr. Freud. Há tesouros de
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observação clínica no Dr. Freud. Mas na hora em que ele vai criar uma teoria, ela é
inteiramente absurda. Wilhelm Reich, então, nem se fala. É tudo loucura na teoria geral, e no
entanto há muitas coisas valiosas lá também.

Eu acho que, de modo geral, aos psicólogos do século XX faltou muito o espírito analítico,
filosófico. Eles não sabiam lidar com os conceitos nos quais eles estavam mexendo. Das
teorias gerais, então, pouco se aproveita, mas o material é muito bom.

Eu, embora não tivesse a intenção de fazer uma teoria geral, acabei mais ou menos caindo
nela pelo fato de que eu precisava tomar uma posição em relação a esse negócio do que é a
psique, para esclarecer certas coisas de teoria do conhecimento. Isso então é uma espécie de
teoria geral sem querer. Ela não é uma psicologia geral, falta muita coisa para ser uma
psicologia geral, mas as bases e os fundamentos estão lançados.

Dito isso, por que nós não podemos definir a psique? Porque nós não podemos defini-la como
objeto, porque isso é contraditório com o seu modo de existência. Isso quer dizer que a
psicologia é necessariamente um autoconhecimento, mas não no sentido introspectivo. É um
autoconhecimento na convivência humana. É um testemunho mútuo. E na concordância
desses testemunhos nós podemos tirar inúmeras conclusões que são cientificamente válidas e
generalizáveis.

Uma dessas é essa generalização negativa que eu fiz: nada, na conduta humana, é
determinado por si mesmo por impulsos naturais irracionais. Não adianta nem falar em
“impulsos”, porque mesmo o mais forte deles, que é a fome, não chega a ser um impulso
suficiente para determinar a sua conduta. Então, a idéia de impulso é um fetiche pelo qual
você neutraliza a própria presença da psique, onde você tenta reduzir a psique a uma outra
coisa, mas na hora em que você faz isso você perde exatamente o que ela tem de específico,
que é a capacidade de ser uma força causal.

Isso quer dizer, também, que não há jeito de estudar a psique fora da idéia da
responsabilidade moral. Embora o estudo da responsabilidade moral não faça parte da
psicologia, a ação humana — psíquica, que tem causa psíquica — é a ação do próprio agente
humano. Não há outra causa ali, e portanto nada pode responder pela conduta dele a não ser
ele mesmo. Na verdade, o que eu estou dizendo aqui tem um paralelo e uma correspondência
com aquilo que nós estudamos no Curso de Ética, no Paraná, anos atrás, sob o nome de
princípio da autoria, que eu digo ser um dos princípios morais universais: toda ação tem um
autor, e o responsável pela ação é sempre o autor, e não um outro. Não existe uma única
cultura em que os responsáveis por uma ação sejam necessariamente outras pessoas e não o
próprio agente. Esta questão, então, da autoria, não é um dado que possa ser abstraído.
Embora a gente não possa estudá-lo só com os instrumentos da psicologia — são necessários
outros elementos — a simples existência da psique, e o reconhecimento de que existem
causas psíquicas da conduta, implica o reconhecimento do princípio da autoria. Como diria o
Jânio Quadros, fi-lo porque qui-lo. A psicologia passa, nessa perspectiva, a ser o estudo da
ação humana consciente. E os elementos ditos inconscientes? Bom, tem dois tipos de
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inconsciente, como dizia o Maurice Pradines: um inconsciente que nasce com você, que é
tudo aquilo que você não sabe. E tem outro inconsciente que é aquilo que você esqueceu.
Daquilo que você esqueceu, uma parte você esqueceu por decurso de prazo, e uma parte você
esqueceu porque não queria saber. Como é que você esquece? Você não pode retirar um
elemento da sua memória. Pode apenas encobri-los com outros elementos, de modo a apagar
a pista. Você encobre um símbolo com outros símbolos, com outros, com outros, de modo
que você não o reconheça quando ele voltar, e você lhe dê um outro nome. Então mesmo esse
processo do esquecimento, se torna um processo ativo, altamente complexo, e até criativo.
Você cria uma rede de confusões, uma rede de camuflagens em volta, e essa rede de
camuflagens, na verdade, é até mais trabalhosa do que a recordação simples daquele fato,
daquele elemento. Isso quer dizer que não há um impulso, uma força inconsciente, impelindo
você a agir de uma determinada maneira. Porque as únicas forças que agem sobre o ser
humano são as forças naturais externas — um tijolo que cai na sua cabeça — e são as forças
internas, que são as necessidades corporais. Não há mais nada. Não há um impulso de
agressividade, não há um impulso sexual incoercível, e assim por diante.

Essa multidão de instintos na verdade não são instintos, mas são elaborações complexas feitas
através de um processo de simbolização. É a simbolização que enfatiza, para você, o valor, a
desejabilidade ou a periculosidade de certos elementos. Nada disso é instintivo. Tudo isso foi
elaborado, e essa elaboração é sempre muito complexa. É claro que isso cria condutas
compulsivas, das quais você não consegue escapar mais. Mas você não consegue por quê?
Porque você não se lembra mais como montou aquela coisa complexa.

Então aquilo age sobre você, você sente aquela ação, aquele impulso, aquele desejo, aquele
temor, como se fosse ou um dado externo, ou um dado interno incoercível. Mas ele foi
tornado incoercível pela complexidade das camuflagens que você colocou em cima. Ou seja,
você tornou aquele elemento não-analisável. Se você fosse capaz de decompô-lo em todos os
seus elementos, ele perderia a sua força coercitiva. Mas, pela complexidade da simbolização,
você o tornou um compacto não-analisável. [00:10] E você, trouxa, chama isso de instinto,
quando na verdade não é instinto nenhum.

A idéia de explicar a conduta humana, mesmo as condutas mais doentias, extravagantes e


brutais, por instintos ou impulsos irracionais, é uma falsidade completa, cientificamente
inaceitável. Onde quer que você veja isso, houve um engano, ainda que no restante da análise
o sujeito esteja completamente certo. Lipot Szondi, por exemplo, parte da idéia de instintos, e
essa idéia está completamente furada. Não são instintos mas são composições, complexos de
imagens que você construiu a partir de instintos muito tênues. Mas o restante da análise dele
é correta. A coisa vai funcionar subjetivamente “como se fossem” instintos, porque você não
consegue resistir e é difícil trabalhar aquilo. Mas só é difícil trabalhar e dominar aquilo por
causa da complexidade da rede simbólica que se torna um compactado denso e não-
analisável. Mostrando, então, mais uma vez aquilo que dizia o meu falecido amigo Juan
Alfredo Cesar Muller, que a neurose é uma mentira da qual você não se lembra mais. Essa
mentira pode se tornar tão complexa que você precise de dez anos de análise só para
desmontar aquilo. E, na verdade, isso se torna inviável, porque você pode ter construído
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vários desses complexos simbólicos, e se você passar dois anos analisando cada um, vai
passar o resto da vida fazendo psicanálise. Como aliás, acontece: é o fenômeno da psicanálise
interminável, em que o sujeito está fazendo psicanálise há quarenta anos e ainda não acabou.
E você pode criar outros complexos no decorrer da análise.

A psicoterapia não faz parte do nosso curso aqui. Nós não estamos falando disso. Então não
adianta me perguntar como é que nós desmontamos esses complexos. Existem várias
estratégias. O próprio Dr. Muller inventou algumas que funcionavam. Mas não são o nosso
assunto aqui. O que, sim, é o nosso assunto, é esclarecer aquele processo que nós
mencionamos no princípio: a partir do instante do nascimento a psique começa a crescer e a
desenvolver-se a partir de um processo de incorporação, seleção e rearticulação dos dados.
Como se dá isso? De cara, nós percebemos que os primeiros elementos que são apreendidos
pelo bebê pequeno não são apenas objetos singulares, mas são símbolos de uma potência
extraordinária. E isto nos mostra que a famosa teoria aristotélica da abstração, que diz que de
vários elementos singulares você forma a imagem das espécies, é uma descrição da estrutura
lógica do processo abstrativo, mas não do processo psicológico real da formação das imagens
gerais.

Ao contrário, os primeiros elementos que você pega têm tanta importância para você que eles
já são símbolos de espécies inteiras. Porque, na verdade, nós só pegamos os entes individuais
por distinção dos outros elementos da mesma espécie. Isso quer dizer que tudo aquilo que o
bebê pequeno apreende é sui generis, é por si mesmo um gênero inteiro.

Isso quer dizer que os conceitos gerais das espécies são a primeira coisa que o bebê apreende,
sob a forma dos entes singulares que simbolizam essas espécies. O processo contrário, se
fosse para você formar as idéias das espécies progressivamente, a partir de várias
comparações de indivíduos, se fosse assim a coisa seria absolutamente impossível, por que
como você vai comparar um ente com outro ente? O que você compara de um ente com o quê
de outro? Por exemplo, eu posso comparar a cor de um com a posição do outro, ou a ação de
um com o tamanho do outro. Como é que eu acerto as categorias para fazer as comparações?
Eu não poderia fazer se eu já não tivesse a noção da estrutura da espécie, e a noção da
estrutura da espécie vem toda de uma vez, a partir do primeiro ente que você conhece daquela
espécie. Isso quer dizer que os outros entes, os entes seguintes da mesma espécie que você
conhece, lhe parecem amostras daquele mesmo inicial, e aí você tem a noção das espécies.
Portanto, toda a estruturação do pensamento lógico possível já está dada com essas primeiras
experiências dos primeiros entes: a mãe, a mamadeira, a bola, o gato, o ursinho etc.

Como se dá, então, a elaboração desses elementos? Ela se dá através das várias funções
psíquicas, que são diferentes e articuladas, e que os filósofos escolásticos chamavam de
faculdades. Faculdade quer dizer facilidade. São chamadas de facilidades porque a psique faz
naturalmente, que ela não precisa ser ensinada a fazer, mas já começa a fazer sozinha.
Porque, em fazer essas coisas, consiste a existência dela. A primeira é a memória,
evidentemente. O que significa a memória? A memória significa você conseguir ter a
experiência do mesmo objeto, na ausência do ente físico cuja presença determinou esse
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estímulo. Você vê uma bola, e então recebe aquela impressão física da bola. Mas você é
capaz de repetir a mesma sensação na ausência da bola. Claro que não terá nem a intensidade
nem a nitidez e nem o impacto da presença física, mas ela está lá.

Esta capacidade de refazer as mesmas sensações muitas e muitas vezes, é uma coisa que os
animais também têm. Isso vem com o nosso corpo. Essa capacidade, em si mesma, não se
pode dizer sequer que é psíquica. Você já nasce com ela, e ela é um pressuposto da atividade
psíquica. A atividade psíquica começa quando você começa a elaborar essas imagens e a
combiná-las. Nós vimos que, desde o início, você é capaz de apreender uma imagem não
somente como imagem singular física, mas como símbolo. Símbolo é uma coisa que designa
uma outra sem ter identidade total com essa outra. É, por assim dizer, uma coisa que
“lembra” a outra.

Os mecanismo que nós usamos para combinar imagens são extremamente interessantes, e
eles têm algo a ver com a nossa capacidade de atenção. Nós podemos dirigir a nossa atenção
a certos aspectos, fazendo abstração de outros. Por exemplo, você pensa uma parte do objeto
sem pensar o todo. Se o bebê está olhando a sua mão, ele está pensando só na mão, e não no
resto do corpo. Então, como nós podemos olhar partes sem ter noção do todo, nós podemos
combinar várias partes em outros todos. E é isto que nos permite conceber, para além daquilo
que nós percebemos, outras coisas que nós não percebemos, e que não poderiam ser objeto,
pelo menos, de uma experiência imediata. E com isso você começa a construir o seu mundo
imaginário. O seu mundo imaginário consiste no quê? Consiste de entes que não são
necessariamente reais, mas que são possíveis de algum modo. Por exemplo, você pode olhar
uma mamadeira vazia e supor uma mamadeira cheia. Você pode expressar, por exemplo, as
necessidades do seu corpo através de imagens. Se você quer algo, mas esse algo está ausente,
você o concebe como presente. [00:20] Se o menino chora para a mãe encher a mamadeira, é
porque ele concebe a mamadeira cheia, embora ela esteja vazia, senão ele não poderia fazer
isso. Aliás, até se ele chora para chamar a mãe para vir dá-lo de mamar, a mãe está ausente
mas ele a concebe como presente, senão ele não poderia querer que essa presença se
realizasse.

Memória e imaginação são mais ou menos a mesma coisa, só que a memória concebe as
mesmas imagens, na intenção de repetir a experiência tal e qual, e a imaginação concebe as
imagens alterando-as, com a intenção de conceber outras experiências que não aconteceram
ainda mas que, ao menos teoricamente, poderiam acontecer.

Em cima da imaginação, vai entrar mais tarde um elemento que se chama razão. O que é
razão? Para explicar isso, nós precisamos voltar um pouco atrás. Pressuposto de toda
experiência psíquica é um negócio que a gente chama de senso da presença do ser. Esse senso
é algo com que você conta, e não precisa ser uma apreensão consciente. Ou seja, em nenhum
momento, nenhum ser humano jamais concebeu a sua própria presença no vazio. Nenhum ser
se concebeu como o único existente. Porque se ele fosse o único existente ele não poderia
conceber a sua existência. Existir é existir no ser. Isso ninguém precisa nos ensinar, e nós não
precisamos pensar conscientemente nisso jamais, porque nós contamos com isso o tempo
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todo. Isso é o que eu chamo de conhecimento por presença. Isso não é um elemento psíquico.
Assim como a existência do corpo, o senso da presença do ser é uma condição prévia para a
existência da psique.

Esse senso da presença do ser é acompanhado do senso da unidade do ser. Você sabe que
existe um mundo, não vários. Não há um hiato, não há um intervalo de nada entre uma coisa
e outra. Portanto, por isso mesmo, tudo aquilo que nós apreendemos é apreendido como
unidade. O que quer que nós não possamos apreender uma unidade, nós também não
podemos apreender uma existência. É por isso que Duns Scot dizia que o ser e a unidade são
a mesma coisa. Porém, nós entendemos que todas as unidades existentes, que nós podemos
captar na experiência, não são unidades em termos absolutos, como o ser tomado em sua
totalidade. São partes, cada ente é uma unidade sem ser uma totalidade. E se ele é uma
unidade sem ser a totalidade, ele já não é a unidade propriamente dita, mas é uma unidade da
contagem: um, dois, três, tem um elemento de numerosidade aí. Então isso quer dizer que a
apreensão da unidade do que quer que seja é indispensável para que nós reconheçamos essas
coisas como existentes, mas também é uma apreensão problemática, tensional. Porque, em
primeiro lugar, as coisas mudam, não ficam como estavam: mudam de posição, de figura, de
atitude, ou se multiplicam, e assim por diante. Por outro lado, tudo o que nós vemos no
campo da experiência está também mudando de figura. Nós sabemos que umas coisas mudam
enquanto outras permanecem. Por exemplo, sempre que você se desloca o chão fica no
mesmo lugar, porque se ele se deslocasse com você, você não sairia do lugar. Então nós
sabemos que existe a mudança, mas também sabemos que a mudança não é unívoca, que ela
é toda complexa, constituída de diferentes ritmos, mais ou menos intensos, que vão desde a
permanência total, que é a permanência do ser, até a extrema fugacidade, que é uma coisa que
acontece em uma fração de segundo e desaparece. Nós temos a necessidade de nos posicionar
diante disso, de achar uma equação que permita nos orientar nisso aí, e a busca dessa equação
é o que nós chamamos de razão. Razão, então, é o senso da totalidade organizada, tal como
você a concebe subjetivamente.

Ou seja, você tenta organizar a totalidade da sua experiência, e é claro que você falha. Porque
uma coisa é a unidade real na qual você está, que é a unidade do ser, e outra coisa é o que
você pode pensar dela. O que você pode pensar da unidade do ser não é a própria unidade do
ser, mas apenas um símbolo dela. E o símbolo, como todo símbolo, é necessariamente
imperfeito. Isso quer dizer que você, ao longo da vida, vai tentar várias estruturações
diferentes, vai criar vários mapas do mundo. Você criar um mapa, tudo está lá bonitinho, mas
de repente acontece alguma coisa que não encaixa, e você tem de modificar tudo de novo. A
razão é a busca da unidade subjetiva que simboliza a unidade do ser, e dentro da qual você
pode então catalogar os vários seres que você conhece, e identificar as relações e as suas
funções no todo tal como você os supõe.

A razão, então, é uma força estabilizante. O mundo das percepções, da memória e da


imaginação é uma coisa que está permanentemente em fluxo. Nada fica como está, está toda
hora entrando novas informações. Entram novas, outras são esquecidas. E a razão é a função
que estabiliza isso em uma figura, que por sua vez será também provisória. Isso quer dizer
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que a razão se opõe à percepção, à memória e à imaginação; ela opera em sentido contrário.
O ideal da razão seria que tudo isso parasse, e que você chegasse à imagem perfeita. Mas não
dá para isso acontecer. Não dá para você dissolver totalmente no fluxo das imagens, das
sensações etc., e também não dá para estabilizar na imagem racional. Esta tensão e é um
elemento constitutivo da psique, e é um elemento constitutivo do nosso modo de existência.

Eu não pretendo fazer, nessa aula — que é apenas um resumo do curso todo —, uma
enumeração das várias faculdades. Eu dei só essas duas só para exemplificar mais ou menos
como a coisa funciona. Nós estamos continuamente enriquecendo a nossa psique com
elementos que nós colhemos ou da experiência, ou da memória, ou da imaginação, e a
estamos ao mesmo tempo empobrecendo e reduzindo a um esquema. Não dá para parar de
fazer nem uma coisa nem outra.

Nós entendemos, então, que aquele processo que eu estava falando, da sedimentação de
símbolos que acabam se condensando em um objeto atraente ou em um objeto temível, você
entende que a razão é um dos elementos fundamentais que entram nesse processo. Muita
coisa do que os psicólogos estão chamando de instintos é na verdade o subproduto de uma
atividade que em grande parte é racional.

E, observando a operação da razão nos seres humanos, nós percebemos que, desde o início,
todos os seres humanos estão colocados não em uma parcela do universo, mas no universo
inteiro. Então, em princípio, não há nenhum aspecto da experiência do qual eles possam estar
protegidos. [00:30] Todas as complexidades da vida natural, social, humana, psicológica,
histórica etc., estão presentes na vida dele. E, no entanto, as sucessivas estabilizações
racionais que o indivíduo vai fazendo são monstruosamente reduzidas em relação ao todo.

Ora, quando você consegue estabilizar uma dessas visões do mundo, por assim dizer, você
encontra nela algum reconforto e algum senso de poder e controle. Você acredita que sabe
como as coisas estão acontecendo, por que elas estão acontecendo, e para onde elas vão. E de
repente acontece algo que não estava no esquema, e todo o seu castelo de cartas vem abaixo.
Nenhum ser humano está protegido, no instante que nasce, de nenhuma das complexidades
da vida. Elas podem pesar sobre ele todas ao mesmo tempo, sem que ele saiba. Isso quer
dizer que a necessidade que o sujeito tem de usar a razão para se orientar no mundo está
presente desde que ele nasce, mas a razão só poderá se perfazer, só poderá atender mais ou
menos à sua necessidade, à medida em que o ser humano assimilar os elementos lingüísticos,
culturais, simbólicos etc., que lhe permitirão elaborar conjuntos mais complexos.

Notem bem que um animal, por exemplo, não precisa elaborar um conjunto complexo desses.
A estrutura do mundo no qual um animal existe subjetivamente já é dada com ele. Cada
animal tem aquilo que o biológo von Uexküll chamava de Umwelt, o seu “mundo em torno”.
Ele não vai ampliar nem diminuir o seu Umwelt durante toda a vida. O que quer que aconteça
a ele não vai modificar o seu mundo em torno, a sua cosmovisão, o conjunto das coisas que
ele pode conhecer. Tem coisas que ele não pode reconhecer de maneira alguma. Nenhum
urso jamais tomou consciência da existência de bactérias, ainda que ele esteja todo infectado
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de bactérias, ele não saberá que elas existem, porque elas não fazem parte do seu Umwelt.

O ser humano, não. O Umwelt do ser humano, a cosmovisão que ele tem, é continuamente
alterada por novos fatos. Então a estruturação racional do mundo prossegue ao longo da vida.
Muitas vezes nós gostaríamos de ser como bichinhos: nós criamos aquela cosmovisão
pequenina, e entendemos que o que está para além daquilo não interessa. Você até pode fazer
isso, mas aí se tornará uma vítima dos acontecimentos assim como um bichinho. Se um gato,
por exemplo, é atingido por uma bala perdida, ele jamais saberá que aquilo é uma bala
perdida e que há um problema de segurança pública. Nós também podemos não querer saber,
mas nós só queremos não saber, porque na verdade nós sabemos. Tudo aquilo que está no
nosso em torno, e que afeta a nossa vida, e que nós não queremos saber, nós só podemos não
querer saber porque nós já sabemos. Eu sei que aquilo existe, mas eu não quero pensar
naquilo. Mas nós já vimos que eu não posso tirar um elemento da minha memória, e então o
que eu faço? Eu construo um sistema de camuflagens em cima, digo que aquilo é outra coisa,
e acabo vivendo em mundo paralelo. Eu crio um Umwelt totalmente imaginário para mim, e
digo que vivo ali dentro, mas eu sei que eu não vivo. E justamente porque eu sei que ele é
real, eu estou permanentemente com medo. Isso quer dizer que o desenvolvimento da
capacidade racional é fatal para o ser humano. Ele precisa disso desesperadamente,
justamente porque o seu mundo instintivo é tão pobre.

Se nós tivéssemos os tais dos impulsos irracionais dos quais os psicólogos falam, nós
poderíamos resolver um monte de coisas simplesmente apelando aos impulsos irracionais e
agindo de acordo com eles. Mas eles não existem. Nós não podemos fazer nada sem pensar,
imaginar, construir hipóteses etc. etc. A estruturação racional da experiência é uma fatalidade
que cai sobre o ser humano. Ele não tem escapatória senão fazer isso. E, pior, essa
necessidade está presente para ele toda de uma vez, porque ele está continuamente sendo
afetado por elementos que vem do em torno e que ele não conhece.

Imaginem, por exemplo, um bebê que está em uma casa onde cai uma bomba. O bebê não
sabe o que é guerra, não sabe o que é política internacional, o que é diplomacia, não sabe
nada disso, mas tudo isso está presente na vida dele. E se ele não sabe agora, ele tem a
possibilidade de saber daqui a pouco. Como o ser humano é um “animal racional”, um animal
dotado de razão, o mundo o trata como se ele fosse racional, já, inteiro de uma vez, porque os
fatores que pesam sobre a vida do sujeito que está muitíssimo bem informado são os mesmos
que pesam sobre a vida do ignorante. Isso quer dizer que os problemas, as dificuldades que
pesam sobre o ser humano só são concebíveis na escala da racionalidade, na escala das
grandes generalizações articuladas em um todo logicamente sustentável. Não há como você
lidar com isso por mera imaginação, por memória, por instinto; só a razão pode dar conta. Ao
mesmo tempo, a razão é deficiente. Isso significa que, quando você é pequenininho, você já
tem problemas que só poderá entender aos quarenta anos.

Então existe sempre essa defasagem entre o homem enquanto ser existente, o homem
existencial, e o homem racional. Os problemas sempre estão na frente dele. Na corrida pelo
domínio da razão, os problemas sempre estão na frente. Vamos supor que você chegue ao
21

máximo do desenvolvimento da razão, que você seja Aristóteles, ou Leibniz, pode ter certeza
que mesmo Aristóteles e Leibniz tinham algumas problemas que eles não compreendiam, e
que eles nem chegavam a perceber. Por exemplo, eles poderiam ter uma doença que fosse
desconhecida para a medicina do seu tempo. Aristóteles morreu relativamente cedo, com
sessenta e poucos anos. Por quê? Platão morreu com oitenta, então porque Aristóteles morreu
com sessenta e poucos? Talvez tivesse alguma doença que ele não conhecia.

Então, é isso que eu chamo o trauma de emergência da razão. A partir da hora em que
aparece a razão, ela não é capaz de lidar com os seus problemas, e ao mesmo tempo você não
tem como escapar deles. Esta é a maior fonte de sofrimento do ser humano. É aquilo que ele
tem de compreender e que ao mesmo tempo ele não pode compreender. E é claro que o peso
disso é infinitamente maior do que o peso de qualquer “instinto”.

Os instintos são uma coisa muito fraquinha no ser humano. Mas o peso da complexidade da
situação humana, dentro da qual você está, e que você vai tentando conceber, para o qual
você vai tentando arranjar explicações ao longo da sua vida, esse é imenso. Você imagine,
por exemplo, os fatores histórico-sociais que determinam crises econômicas, por exemplo, e
que fazem o seu pai perder o emprego e fazem sumir o leite da sua mamadeira. Você está
dentro da situação, mas veja a diferença de escala entre a sua capacidade racional e o
tamanho do seu problema.

Se acontecem muitas coisas para um animal que não fazem parte do Umwelt, ele morre logo.
O ser humano não; ele passa por essas coisas e continua vivendo. Esta é a grande fonte do
sofrimento humano. O fato de que você tem a capacidade racional, e de que você é exigido
pela situação como se você tivesse o domínio completo da razão, que você nunca tem. Vejam
a que distância nós estamos daqueles psicólogos que tentam atribuir todos os problemas
humanos a fatores de ordem natural, irracional etc.

Ou seja, eu estou virando a psicologia de cabeça para baixo. Tudo é contrário do que dizem
[00:40] os “grandes psicólogos”. E eu acho que o que eu estou dizendo aqui é absolutamente

irrefutável. Mostrem-me um único instinto que, por si mesmo, e sem toda a elaboração
simbólica e racional, possa determinar uma conduta humana. Não há nenhum. E se eles não
determinam a conduta humana, eles não são tão fortes quanto os psicólogos dizem que eles
são. E isso eu estou falando dos impulsos existentes, que são meras necessidades do corpo,
como a fome, por exemplo. E impulsos inexistentes, como a agressividade? Eles não existem,
e portanto não podem determinam nada. Para que exista uma conduta agressiva, imaginem o
número de camadas de simbolização que tiveram que ir compondo um complexo denso, que
você já não compreende mais, mas que foi você mesmo que criou, e que portanto determinam
a sua conduta de maneira compulsiva. Nada disso é instintivo.

O instinto, no ser humano, não determina praticamente nada. Ele tem certas necessidades que
o coitado do seu corpo sugere. “Olha, seria bom você comer agora... seria bom você dar uma
trapadinha...” Mas é o máximo que ele pode fazer. Agora, em cima disso, você pode construir
um negócio tão complexo, que vira uma necessidade absoluta. Aí você diz: “É o instinto!”
22

Mas é um engano, evidentemente.

Isso quer dizer que tudo o que foi escrito sobre instinto, impulsos irracionais etc. é uma
camuflagem, uma forma de neurose. A psicologia é um dos grandes sintomas neuróticos do
ser humanos. Trigant Burrow, o grande psicólogo americano, já dizia: “Eu acho que o
interesse pela doença mental é uma doença mental.”

Com isso, você tem um mapeamento que o permite iniciar investigações psicológicas em um
rumo completamente diferente de tudo o que foi tentado até agora.

Primeiro: todos esses elementos que vão compor, mais tarde, as condutas ditas compulsivas,
são conscientes. Agora, é consciente em um momento, e em seguida esquecido. Esquecido
não quer dizer que sumiu da sua memória. Aquilo que é inconsciente porque some da sua
memória são coisas que de fato não tinham importância, e portanto aquelas imagens não têm
um impacto grande que possa impelir você a recordar aquilo de novo. Mas se não é
importante, então não é decisivo na sua conduta. Mas os elementos que podem ser decisivos
na sua conduta ao ponto de criar uma conduta compulsiva são todos conscientes. Então, você
vai, conscientemente, colocando camuflagens, mudando os nomes das coisas, trocando os
símbolos etc., até o ponto em que você mesmo não consiga mais reconhecer qual é o caminho
das pedras. Esse é o processo de formação de uma neurose.

Ela não está no inconsciente. Não foi o inconsciente que fez nada disso. Vocês vejam que
espécie de inversão psicótica que existe em atribuir essas coisas ao inconsciente. Se é mentira
esquecida, quem foi que inventou a mentira? O seu inconsciente? Não. Se fosse o seu
inconsciente que inventasse, então você não precisaria esquecer, porque já estaria esquecido.
Isso quer dizer que, de certo modo, a consciência é a própria psique. Mas nós não podemos
conceber a consciência, como concebia Husserl, apenas como um foco de luz que é lançado.
No instante da sua atuação a consciência é isso: um foco de luz que dirige uma atenção a
alguma coisa. Mas aquele elemento que foi iluminado pela consciência permanece na
memória, e isso também é consciente. E então a consciência não é só o foco de luz: é o foco
de luz e o conjunto das coisas iluminadas. Mas e o padrão inteiro das sombras que você lança
em cima das coisas? Isso também é a sua consciência, é a estrutura da sua consciência. É o
que eu chamado do horizonte da sua consciência. O horizonte de consciência é o que você
pode saber e lembrar em um certo momento.

Então não vamos confundir a consciência, que é uma coisa que existe no tempo, com o
horizonte de consciência, que é o mapa do que é sabível em um certo momento. A
consciência retira elementos do seu horizonte de consciência, encobre elementos e os expele
para fora, dando-lhes outros nomes e complicando a simbolização. Ou seja, a consciência cria
elementos de opacidade. A obscuridade poderia criar opacidade? Não, só a luminosidade
pode criar. Aquilo que está totalmente no escuro não pode ser manipulado.

A origem das condutas compulsivas e neuróticas está, portanto, na consciência, no processo


da criação da sua imagem do mundo. No processo da criação do seu eu, que é a auto-
23

referência, e na criação da sua imagem racional do mundo. Ou seja, o nosso problema é que
nós somos racionais, não é a irracionalidade. E a nossa racionalidade consiste em imagens
simbólicas do todo. Conhecimento efetivo do todo, não simbólico, só Deus tem. E nós temos
de viver nessa tensão permanente entre a mutabilidade e variedade da experiência e a
necessidade que nós temos de estabilizá-la em uma imagem racional.

Aluno: Tudo aquilo que a consciência seleciona do horizonte de consciência: é isso o que vai
formar o ego ou não?

Olavo: Não. O horizonte de consciência não é exatamente o ego. Ele é o conjunto das
possibilidades do ego em um certo momento. É evidente que isso transcende o ego, mas ao
mesmo tempo é um elemento formativo dele.

Esse negócio de psicologia é assim: todos os fenômenos psicológicos participam de uma


simultânea duplicidade de dimensões, que só nos permitem representá-los mediante artifícios
topológicos. A topologia representa, por exemplo, um tubo que entra no próprio tubo. Ou
como esses desenhos do Escher, o grande gravurista, que fazia desenhos, por exemplo, onde
uma escada prosseguia na própria escada. Isso não reflete a estrutura do mundo físico, mas do
mundo psíquico. A grande dificuldade de falar da psique é que tudo ali tem uma estrutura
topológica.

Isso, por um lado, transcende a nossa linguagem, mas não transcende a compreensão que nós
temos da nossa linguagem. Isso é uma coisa incrível, porque tem coisas que não dá para
dizer, mas dá para ouvinte compreender, e essa é uma das propriedades da linguagem. Eu não
posso, por exemplo, falar uma palavra que esteja imediatamente entrando na outra: ou eu falo
um ou eu falo outra; as palavras têm de ser ditas em seqüência e não voltam atrás. Mas nas
suas significações, as significações podem voltar atrás. Então a gente se queixar das
deficiências da linguagem é uma covardia, porque nós entendemos muito mais do que aquilo
que nós podemos dizer. E na verdade nós só podemos dizer porque o ouvinte compreende
muito mais do que nós estamos dizendo.

Então, por exemplo, quando você pergunta sobre a relação entre o horizonte de
[00:50]

consciência e o eu. Sob um aspecto, o horizonte de consciência é maior do que o eu e o


transcende. Mas sob outro aspecto ele é uma função do eu, e portanto está dentro do eu. O
que é isso aí? Uma figura topológica. Uma coisa está dentro da outra, e ao mesmo tempo a
outra está dentro dela. Isso acontece. E dada a natureza tensional da nossa psique, tem de ser
assim. A psique, em si mesma, é uma coisa insolúvel, e ser insolúvel é o sinal de que ela
existe efetivamente, pois só é perfeitamente solúvel aquilo que não existe em si mesmo, mas
apenas como conceito abstrato. “Resolver” a psique seria a mesma coisa que dissolvê-la em
seus elementos, e então ela cessa de existir como entidade independente.

Por aí você entende que o insolúvel faz parte da estrutura da realidade. Se você pudesse
explicar tudo, você estaria sempre reduzindo tudo a outra coisa, e então nada existiria. A
indissolubilidade de certos elementos é condição para a existência da realidade. Você não
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pode entendê-los na sua totalidade; você pode apenas compreender certos aspectos, se você
aceitar a tensão entre os aspectos que você compreende e aqueles que não compreende mas
sabe que existe. Acertar o ponto de equilíbrio entre essas duas exigências, que é um equilíbrio
instável, é o único critério científico válido. O coeficiente de mistério e ignorância não é fruto
da deficiência do nosso conhecimento, mas é um dado da estrutura da realidade. Então, se
você não sabe lidar com esse aspecto misterioso, então você não quer a realidade, mas apenas
uma imagem racional na sua mente. Agora, se você também aceitou que tudo é irracional e
que tudo pode ser do jeito que for, então você também não vai saber de coisa nenhuma.
Nenhuma dessas duas atitudes é acessível ao ser humano, são coisas que você pode dizer mas
não pode fazer. O Stephen Hawking pode dizer que vai obter uma imagem completa do
universo, mas faz-me rir. Se é uma imagem, não é completa. A frase é autocontraditória. Qual
é a única imagem completa do universo? O próprio universo. O universo é uma imagem
completa de si mesmo, sem sombra de dúvida. E ele está aí como um dado existente, e não
como uma idéia na nossa cabeça.

Você percebe, então, que aquilo que você consegue representar racionalmente está, de certo
modo, submetido à sua possibilidade de ação racional. Se você tivesse a “imagem completa
do universo”, então não haveria limites para a sua capacidade de ação dentro do universo.
Mas o que significa um potencial de ação ilimitado em cima do universo, se esse potencial é
possuído por uma criatura temporal que vai viver um tempo e vai morrer? Não significa nada.

Desejar isso já é uma estupidez. O sujeito quer botar o conhecimento infinito dentro de uma
escala de tempo finita. Não dá. A ciência perfeita não é aquela que tem a explicação de tudo,
mas aquela que o coloca na posição adequada perante a realidade na qual você está. Claro
que eu não estou me referindo, quando falo na realidade na qual você está, somente aos
fatores presentes naquele momento, mas nos fatores de fundo, que podem ser permanentes,
ou podem durar milênios, e que estão atuando naquele momento. Se você tem a atitude
adequada perante isso aí, você tem a melhor ciência que pode ter. Ninguém pode dar um
passo para além disso.

Querer ir além disso é supor uma ciência divina, mas o que seria uma ciência divina na minha
pessoa? Durante quanto tempo, sob que aspecto, e em que modalidade posso eu participar de
uma ciência divina senão analogicamente, simbolicamente, e a uma distância formidável?

Do mesmo modo que esse breve exame nos permite simplesmente inverter tudo o que os
psicólogos têm falado — claro que há psicólogos que não falam isso, mas eu estou falando
dos mais notórios — você imagina que a mesma coisa pode ser feita em muitas outras
ciências. Claro que nós não podemos tratar das outras ciências aqui, mas eu acho que a maior
parte delas que você investigar vai ver que, hoje em dia, o pessoal está lidando com conceitos
absurdos, insustentáveis, autocontraditórios etc. Às vezes, é claro, pode ser que a
autocontradição dentro de uma ciência reflita uma tensão contraditória da própria realidade.
Mas se essa contradição não se aceita como tal, e a própria ciência não aceita o seu caráter
paradoxal, então ela está totalmente enganada.
25

A finalidade da busca do conhecimento não é eliminar todos os paradoxos, mas colocá-lo em


um ponto mais ou menos central, onde você possa se situar em relação a essas várias forças
paradoxais que estão agindo.
Vamos fazer, então, um intervalo, para que o pessoal possa apresentar perguntas.

[intervalo: 0:57:10 - 1:23:30]

Nós temos aqui algumas perguntas que vieram pela internet, e outras que saíram daqui do
público presente mesmo.

Aluno: Como você classificaria o sentimento dito “de amor”, que de um instante para outro
sentimos por alguém (seja filial, fraternal, amoroso etc)?

Olavo: Bom, isso até foi explicado aqui no decorrer da semana. Eu disse, logo no início, que
a psique, embora ela seja individual e intransferível, não se compõe sem a presença de outros
seres humanos, que na medida em que são incorporados na nossa memória se tornam por sua
vez, forças estruturantes da nossa psique. E eu dei, especialmente, o exemplo da figura
materna.

Isso quer dizer que os outros seres humanos não são propriamente, ou não são apenas,
elementos da circunstância externa, mas são elementos que nós absorvemos e sem os quais
nós não nos conheceríamos. Há inúmeros aspectos nossos e inúmeras possibilidades nossas
que só aparecem graças à presença de outros seres humanos, e que ficam de algum modo
eternamente associados a essas possibilidades. É por isso mesmo que eu digo que o amor ao
próximo é um componente básico da psique. Ele está presente desde o início, o que não quer
dizer que seja um instinto. Ele é um totalidade altamente complexa, porque depende da
assimilação dessas figuras externas, que se tornarão para nós símbolos de possibilidades
nossas que só se realizam através deles.

Por exemplo, o caso da mãe, que personificará para o indivíduo toda imagem de conforto, de
proteção, de paz, quase que de um estado paradisíaco. Outras pessoas podem representar a
mesma coisa para nós. Certas pessoas podem representar para nós a chance e a oportunidade
pelas quais certas capacidades nossas se manifestam. Ou seja, nós precisamos dos outros
seres humanos desesperadamente. A psique humana é inconcebível no isolamento; ela tem
uma estrutura dialogal, isso eu disse desde o início. E se eu digo que o modo de conhecer a
psique é o modo de testemunho dialogal, é porque isso corresponde à própria forma de
existência da psique. Ela não existe nem como objeto do mundo exterior, que possa ser objeto
de experimentação, e também não existe como totalidade pessoal, à qual eu possa ter acesso
por mera introspecção.

Se eu abolir todos os elementos humanos que estão presentes na minha história, eu


simplesmente não tenho psique alguma. Se eu disse que psique tem historicidade, do que se
compõe essa historicidade? Eu também observei durante a semana que, tão logo o sujeito
nasce, todos os objetos dos quais ele toma conhecimento no mundo exterior não são objetos
26

do mundo natural, são objetos do mundo humano.

Os gatos que nós vemos não saíram sozinhos da natureza, mas são domésticos, já foram
trabalhados pela espécie humana. Isto se dá com todos os materiais a que você tem acesso:
qual é a primeira forma de madeira que você conhece? É uma árvore? Não, foi a madeira do
berço, do móvel.

Em suma: entre você e o mundo natural existe, como dizia Levi-Strauss, uma “almofada”,
uma almofada protetiva. E durante longo tempo você não vai ter contato com nenhum objeto
da natureza, mas só mundo humano, ou só o da natureza já interpretada e transformada já
pelo mundo humano. Vocês vejam até que ponto nós necessitamos dos outros.

Toda essa atmosfera na qual você cresce foi feita por seres humanos. Em uma outra aula, do
curso online, eu dei até o exercício de vocês examinarem todos os objetos que estão na sala
onde você está e perguntar de onde eles vieram. Você logo vê a quantidade imensa de
trabalho humano e de racionalidade e de ação racional que houve para produzir tudo isso.
Isso quer dizer que a presença dos outros seres humanos não só é um elemento indispensável
da minha subsistência, mas um componente da minha própria psique; eu não venho com este
componente pronto, mas começo a absorvê-lo imediatamente.

É por isso que nós podemos dizer que o amor ao próximo é uma coisa inerente à psique, e
não um mandamento moral que tenha de ser cumprido desde fora, como uma obrigação
externa; ele é mais do que uma propensão natural da psique humana, pois você nunca pode
negá-lo.

A psique não existe sem o amor ao próximo, ela é inconcebível sem ele. Isto não quer dizer
que o amor ao próximo seja um instinto; no Banquete, de Platão, ele diz que o amor é fruto
do casamento entre Poros, que é o deus da Abundância e Penea, que é a deusa da carência.

Essa imagem é absolutamente perfeita, porque você nasce com essa carência, e ao mesmo
tempo essa carência está sendo atendida [1:30] abundantemente; a presença humana que
sustenta a sua vida física e psíquica é intensa desde o primeiro momento. Se ninguém tiver
nem um pinguinho de amor por você, você não vive nem dois dias; se você nasceu e te
jogaram pela janela, a sua história acaba.

Ou seja, não é possível que a sua primeira vivência humana seja a vivência do mau, da
maldade, da agressão; você tomará conhecimento disso muito mais tarde. O que significa que
esse elemento pode estar presente como uma espécie de ameaça potencial, mas ele não faz
parte das experiências primordiais humanas.

Desde o primeiro instante, a presença do ser é um elemento básico. Se um bebê não estiver
consciente da presença do ser, ele não vai estar consciente de mais nada. Este ser não poderia
ser mais indiferenciado, mais confuso e menos individualizado de que é para um bebê. É a
monumental presença de algo que me envolve e que não sei o que é. E esse senso da
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presença do ser pode, como é o senso da presença do desconhecido, pode, em certas


circunstâncias, tomar um aspecto atemorizante. Não sei por que, mas acontece. Não adianta
tentar explicar isso pelas primeiras experiências, dizendo que foi porque a mãe bateu nele ou
o jogou da janela, ou não teve mãe — nada disso explica.

A presença no ser pode ser, para algumas pessoas, uma experiência temível, porque tudo
depende de como você se relaciona com este desconhecido. O elemento de desconhecido e
mistério é um componente da estrutura da realidade; está sempre aí. Mas como é que você se
relaciona com ele? Nós vimos que a figura materna significa todas as satisfações iniciais, a
plenitude, mas também significa a carência. A carência também vem dela.

Em alguns casos, portanto, a presença do ser é a presença de uma ameaça. E aí o que o


indivíduo vai fazer? Ele vai buscar refúgio naquela parte da sua psique que lhe parece
independente, fora do ser. Na verdade não está, mas, dizia Hegel, uma das grandes
capacidades da inteligência humana é a de conceber-se a si própria isolada de tudo. E então
não existe mais o ser, existe apenas a sua consciência. Claro que isso é uma fantasia, mas se
você insistir e prosseguir nisso aí você pode até se conceber como existente em si, fora da
estrutura geral do ser.

Então daí você se torna a origem da estrutura do ser, o fundamento da estrutura do ser, e aí
você tem toda a corrente gnóstica. O gnosticismo não é bem uma corrente de pensamento, e
sim uma experiência humana. Por instantes todos nós fizemos esta experiências ou vamos
fazer, mas entendemos que este isolamento da consciência é delirante, que é um engano, uma
camuflagem apenas. Você está encobrindo a presença com razões de ausência que você
inventou. Essa não é uma experiência originária, mas um raciocínio que você cria.

E você cria esse raciocínio e se prende dentro dele, de tal modo que o teu raciocínio o isole
do mundo exterior, do passado e do universo inteiro, mas foi você que criou essas grades,
através de, por exemplo, perguntas e dúvidas. Por exemplo: “Prove que o mundo exterior
existe.” É claro que eu só posso fazer essa pergunta se eu já estiver no mundo exterior; se eu
não estivesse, não poderia fazê-la. Mas eu então transfiro esse problema do mundo exterior
para a dimensão da prova lógica e não para a dimensão da própria experiência; então só
aceito o que estiver provado. A exigência de prova lógica se sobrepõe à experiência; então
está negando a experiência por falta de prova lógica. Mas quem disse para você que a prova
lógica tem essa prioridade? A simples possibilidade de criar uma prova lógica de alguma
coisa depende de que você exista.

Agora, se você cria a noção da prova lógica, se se apega a estrutura da razão, e transforma
essa estrutura na autoridade máxima, você criou um mecanismo de isolamento artificial em
relação à experiência. É um truque que você mesmo criou; uma mentira esquecida —
igualzinho a um processo neurótico.

Isso quer dizer que a crítica cética da experiência é um mecanismo neurótico, é um fazer de
conta que você não sabe uma coisa que você sabe perfeitamente bem. É um exercício
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intelectual que pode aguçar as armas da sua inteligência racional; mas só serve para isto.
Vamos conceber uma coisa absurda para em seguida nós inventarmos a prova lógica de que
ela é falsa. Mas se você não consegue descobrir a prova lógica de que ela falsa, você pode
acreditar nela, embora ela desminta a experiência. Por outro lado, você acreditar totalmente
na experiência, e somente na experiência, também não o leva a parte alguma; porque você
não pode ter experiência de totalidade. Toda a sua experiência se dá dentro do campo do
senso de presença do ser, que transcende a experiência. Então, se você se apegar totalmente a
prova lógica ou totalmente ao aspecto experimental, você vai fugir da realidade. Na realidade,
nós estamos dentro da estrutura do ser e nós temos, dentro da estrutura da nossa psique, essa
dupla exigência tensional da experiência e da razão. Por um lado, você tem experiência,
memória, sensação e etc., que amplia o seu universo, e por outro, você tem a razão que
resume tudo aquilo, que de certo modo diz um “não” ao crescimento da experiência e fecha
dentro de um esquema; nós temos essas duas coisas. Isto é a nossa situação real.

Como você obtém isso? Por confissão. Eu sei que é assim porque eu não consigo escapar
disso; e suponho que você também não possam; o que vocês dizem? Se todo mundo for
sincero, vão acabar dizendo: “é exatamente assim. Eu não consigo ficar em uma coisa, nem
na outra, embora eu consiga dizer uma sem dizer a outra — ou seja, embora eu consiga
mentir”. Se você avaliar as escolas racionalistas e empiristas, a conclusão é: são loucas;
porque a tensão entre razão e experiência é inerente à estrutura da psique; e você é obrigado a
confessar que não pode ir totalmente por uma lado nem por outro. Quando vai totalmente
pelo lado da experiência, você dissolve em um mar de impressões e imaginações do qual não
entende nada; se você vai pelo lado da razão, você entende tudo, mas é tudo inventado na sua
cabeça. Você entende tudo aquilo que você mesmo pensou e só. Não há um só ser humano
que jamais tenha escapado desta tensão, e manter unidos os pólos desta tensão é manter a sua
inteligência viva. Esta tensão não é para ser resolvida; ela é nós. Ela é a nossa modalidade de
existência. Quando Aristóteles diz “animal racional”, o que significa animal? É um bicho que
está vivo, sente, move-se; então, tem sensações, memória e etc. O que significa racional? É o
bicho que estrutura as coisas numa totalidade fechada. A simples definição de animal racional
já é uma definição tensional; estes dois pólos não se ajustam perfeitamente bem. No entanto,
um coisa não pode ser separada da outra.

Aluno: Quando realizamos a reconstituição de uma experiência na memória [1:40] podemos


saber que tal reconstituição é gerada por nós mesmos ou ignorar isso.(...)

Olavo: Claro. Você pode fazer a reconstituição da memória de tal modo que você conte para
si mesmo a história da reconstituição que ela pareça ter vindo sozinha, e não como criação
sua. Então o que acontece? Você tem a impressão de que o passado está presente; isso
acontece quando você fuma maconha. Para o maconheiro, o passado nunca passa. As coisas
que ele lembra se aparecem como se estivessem presentes. Assim também o histérico. O
histérico é o sujeito que sente como presente, um problema no qual ele está apenas pensando.
Ele imagina que não consegue se levantar desta cadeira, e não consegue mesmo. O que é
isto? Você lembra apenas do conteúdo da rememoração, mas não lembra da construção desta
rememoração. Não é que você não lembra: você nega. É como se as imagens tivessem vindo
sozinhas. Mas isto está acontecendo na sua psique; você que fez.
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Aluno: (...) Quando isso acontece é porque deixamos de distinguir o que é externo à nossa
pisque ou o que de nossa autoria.(...)

Olavo: Claro.

Aluno: (...) Considerando que o aprendizado dessa distinção é algo que requer anos de
amadurecimento, parece-me que a conquista dessa faculdade é o que permite registrar com
eficiência as primeiras lembranças da infância, porque a memorização depende da
apreensão de um sentido que sem essa distinção não se forma.

Olavo: Bom, o aprendizado desta distinção não requer anos de amadurecimento; ele já é
imediato. Você é capaz de fazer esta distinção desde que você existe. É a perfeição maior
dessa capacidade que leva anos. Se você não tivesse a capacidade de distinguir entre o que
lhe aconteceu e a lembrança do que aconteceu desde o início, você não poderia desenvolvê-
la; ela não poderia aparecer do nada. Você tem essa capacidade efetivamente, e ela vai entrar
em ação algum dia; mas você pode simplesmente não ativar essa função. Epicuro dizia que a
base da felicidade é se fechar na escola epicurista e lembrar com tal intensidade dos
momentos agradáveis do passado que eles parecessem presentes. É a maconha sem maconha.
O cara era tão louco que nem precisava de maconha para fazer isto.

Aluno: É possível chamar isso de memória afetiva?

Olavo: É a memória afetiva desligada da consciência de que a memória afetiva é uma


memória afetiva. Você está revivendo os mesmos afetos, esquecendo de que você os está
produzindo no momento. Não é que você está esquecendo, está mentido. Você faz de conta
que a coisa está acontecendo agora. O método epicurista de conseguir a felicidade é o método
infalível de conseguir uma neurose. E o atual método de encontrar a felicidade é esse mesmo:
droga serve para isso. As coisas que se passam na sua mente serão vivenciadas como se
estivessem acontecendo realmente agora.

Durante este curso, eu enfatizei muitas vezes que todas as doenças mentais não são um modo
diferente da psique funcionar, mas apenas uma diminuição da atividade psíquica. E a
diminuição pode ser obtida, por exemplo, quando você usa uma das faculdades suprimindo a
outra. E o que é mais comum na sociedade atual é quando os aspectos racionais, que são
necessários para a organização da sua conduta, para você poder agir racionalmente e obter o
que você quer, bloqueiam o funcionamento da imaginação. A pobreza de imaginação faz com
que inúmeras situações que são vividas apareçam para você como fatalidades, quando não
são. E então você se sente preso dentro de um certo mecanismo. Mas você não está preso;
simplesmente não quer pensar nas alternativas. Essas alternativas só poderiam aparecer
imaginariamente. Mas às vezes, por exemplo, você se priva de exercer a imaginação — não
quer imaginar algo melhor — porque você tem medo de perder. Então você teme que, se
imaginar a tal coisa boa que quer, vou também imaginar a perda, ficando triste; quando na
realidade a ação normal só pode fluir quando você imaginar todas as possibilidades, e aceitar
aquilo como um esquema da situação real. O medo de imaginar certas coisas é idiota.
Aristóteles dizia que a palavra cão não morde, quer dizer, o cachorro imaginado não vai
mordê-lo. Então, não precisa ter medo do imaginário. Há pessoas que têm medo de imaginar
coisas feias. Então como vão imaginar o inferno, por exemplo? Se no seu mundo interior não
existe uma imagem do inferno, você está gravemente mal-informado. Você tem de poder
imaginar todas as coisas, incluindo as mais horríveis. Se as imagens horríveis te paralisarem,
diminuiu a sua imaginação. Você ficou tão assombrado com o horrível que se esqueceu do
sublime, que também existe. Síndrome do pânico é isto: o sujeito grudou em certas
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imaginações, e as repete tanto, que aquilo parece algo objetivo aterrorizante, que vem desde
fora, mas foi ele que fez. É uma espécie de histeria. O histérico gruda só naquelas imagens
nas quais ele acredita, e suprime as outras. Mas por quê? Por que não é capaz de imaginar
outra coisa?

Vejam, por exemplo, aquele negócio do Viktor Frankl. O Sílvio me contou hoje de um garoto
que fazia xixi na cama, e o Viktor Frankl disse: eu lhe dou 10 dólares cada vez que você fizer
xixi na cama; e ele não conseguiu fazer mais. Notem que a imaginação vai para lados
diferentes ao mesmo tempo. Agora, se você gruda em um, você paralisa.

Aluno: Professor, gostaria que o senhor falasse um pouco mais sobre a confissão como
método da psicologia.

Olavo: A psique é uma capacidade que nós temos, que nasce conosco e é individual.
Ninguém tem a minha psique; só eu a tenho. Na hora que eu morrer, vocês não vão vê-la
andando por aí. Se aparecer por aí e disserem que é uma alma de outro mundo, é uma
conversa mole. No entanto, todos os elementos simbólicos que a compõem, e que darão a ela
a capacidade de criar alternativas e de tomar decisões vêm do mundo exterior. Uma parte
vem da experiência do meu próprio corpo, mas essa é pobre em relação ao resto. A maior
parte das pessoas recebe muito poucas informações do seu próprio corpo.

Outro dia eu me lembrei da circulação do sangue, que foi descoberta por volta de 1600 por
Harvey. O sangue estava circulando a milhares de anos, e ninguém tinha percebido, e eles
viveram muito bem sem essa informação. Essa informação, embora estivesse próxima das
pessoas, não era tão importante assim. No entanto, as informações que vem do mundo
humano são necessárias desde o primeiro momento. É do mundo em torno e do mundo em
torno não só do mundo natural, mas principalmente do mundo humano.

O que vai compor a constelação inteira das suas imagens, e portanto todas as suas
possibilidades de ação e [1:50] de vida, tudo vem dos outros. Essas são as figuras que povoam o
seu imaginário. Seria impossível que você não tivesse amor por essas pessoas, porque elas
são você mesmo de algum modo. Você não pode viver sem elas. Justamente por causa disso,
o conhecimento que a psique pode ter de si mesma não pode ser obtido nem por introspecção
— o indivíduo se isolando, fazendo de conta que existe sozinho, como René Descartes no
experimento da dúvida, ou Hegel, naquele negócio da abstração — e nem colocando você
mesmo fora de você como se fosse um objeto. Essas duas coisas falseiam completamente a
realidade do objeto. Não é assim que a psique se apresenta a nós.

Um bebê pequeno está isolado na sua psique? Não! Ele começa a ter as sensações do mundo
exterior imediatamente. Ele nasce e já recebe uma palmada na bunda, e começa a respirar
imediatamente. O mundo exterior começa a vir a ele repentinamente; e então a entrada de
novas sensação não pára, acontecem o tempo todo. E é isso que vai criar na sua memória a
constelação de imagens com a qual ele poderá ter alguma vida interior. Mas essa vida interior
é toda composta de outras pessoas. E objetos também, mas esses objetos são o quê? Obras
31

humanas, em geral. Por exemplo: você tem um cachorro. Mas quem o colocou dentro de
casa? O seu pai o comprou, é o cachorro da sua família, e então ele faz parte do mundo
humano.

Se nós só existimos nessa situação de convivência humana, é nela mesma que tem que se dar
o conhecimento da psique, pois é ali que está o objeto. E então não tem outra maneira de você
observá-lo, a não ser no confronto da sua psique com outros. Em parte nós já fazemos isso o
tempo todo, nós nos conhecemos por meio dos outros, e conhecemos os outros por meio dos
nossos próprios sentimentos, imaginações e etc. Mas nós podemos transformar essa
modalidade por assim dizer natural e espontânea de conhecimento da psique em um
procedimento científico, a partir da confissão sistemática dos elementos que você reconheça
como estruturais e permanentes da psique.

Quando eu disse que não existe nenhum instinto corporal que por si mesmo determine um
comportamento, você examina na sua memória e verá que não encontra nenhum. Pode haver
dúvida, a pessoa pode se equivocar; chamar de instinto algo que não o é. Como o amor
materno. A ursa tem o instinto de defender os filhotes, porém, a mãe humana começa a
pensar nisso 20 anos antes de ter o filho; ela brinca com bonecas, que se passam por filhos
dela. Ela imagina isso muito antes de ter a capacidade de ser mãe. Vejam como o sentimento
de maternidade em um ser humano é diferente dos outros animais. O sentimento materno
humano é enormemente rico e complexo em relação ao da ursa, e você nem pode dizer que é
a mesma coisa. Mais ainda: esse sentimento materno pode ser valorizado socialmente.
Algumas pessoas respeitam certas mulheres porque elas são mães. A mulher pensa “eu
também quero desfrutar disso”.

A coisa é valorizada pela religião. E então como é que você pode chamar isso de instinto? O
que você tem realmente é o instinto “filial”: você gosta de ter uma mãe; isso todo mundo
gosta. Esse é um instinto meramente passivo, de receber algo. O conjunto das suas
necessidades é atendido pela sua mãe. É por causa dessa natureza, que eu não posso nem
chamar de dialogal, mas usando o termo de Ivan Ilitch, é convivial.

A psique só existe ali. Então onde é que eu posso observá-la? Ó raios, ali onde ela está. É
claro que eu posso pensar nessas coisas sozinho, sem que haja alguém ali, mas a recordação
de todas as pessoas está ali, e eu estou pensando em todas elas quando tento examinar a
minha psique.

Isso quer dizer que o próximo é um elemento constitutivo da minha psique. Eu não nasço
com ele, mas ele se integra imediatamente, de modo que eu não posso viver sem ele. Então,
do mesmo modo a comida não nasce com você, mas se torna um elemento constitutivo do seu
corpo; tão logo você a comeu, ela é integrada.

Tiramos, então, duas conclusões: (a) o amor ao próximo é um elemento estrutural da psique
humana. (b) E, em segundo lugar, eu só posso conhecer a psique por meio desse intercâmbio,
desse diálogo, que é onde ela está. Então como é que eu posso conferir aquilo que na minha
32

solidão eu pensei? — na solidão, mas levando em conta todos os seres humanos que
compõem o meu mundo. Eu volto lá neste mundo e lhes pergunto: eu vi algo assim, e você?
Você conhece alguma mãe que jamais tenha pensado em ser mãe, em se casar, em ter filhos?
Ela não pensou em nada disso, e de repente ela apareceu grávida, e instintivamente começou
a defender os seus filhos? Não existe isso. Isso é impossível. Lembram daquele casal alemão,
que não sabia que existia sexo? Casados, eles estavam na mesma cama, esperando há três
anos que o filhos aparecesse...

Será que tem alguma garota no mundo que seja suficientemente ingênua que ignore que,
transando, pode ficar grávida? Pode ter, mas essa garota certamente não terá nenhum instinto
materno. Veja como a relação sexual é uma coisa séria. Existe a possibilidade da mulher
engravidar. Se ela engravidar, significa que todo o código genético do par se encontrou
naquele lugar. A rede dos antepassados está presente ali; há a enorme transformação do corpo
da mulher durante a gestação.

É por isso que os ser humano encara o ato sexual como uma coisa extremamente valiosa; e
além de ter esses elementos que estão objetivamente presentes, há os elementos
subjetivamente presentes, pelos quais ele valoriza aquele ato: a beleza, a necessidade de
contato, a expectativa social de criar uma família, ser um pai e etc; a expectativa que você
tem de ter uma pessoa ao seu lado pelo resto da sua vida, [2:00] ou de livrar dela nos próximos
minutos. Até para decidir isso é necessário ter a expectativa do que é ter uma pessoa do seu
lado pelo resto de sua vida.

A expectativa pode lhe parecer adorável ou repugnante, dependendo do quê? Do seu


simbolismo, da sua memória e não da situação objetiva. Como você pode dizer que isso é
instinto? Um urso não pensa nisso. Um urso não se preocupa em se tornar um pai de família,
trabalhar etc. Tanto que existem animais que tem o ato sexual, abandonam o filho e
desaparecem. O tigre faz isto. Tigre não tem pai, só mãe.

Entendem então por que esse método da confissão — que é quase uma confissão mútua — é
a única maneira objetiva que temos de conhecer a nossa psique? Se você fizer um método
experimental e observar ratos, você pode descobrir certos mecanismos dos quais a psique se
utiliza, mas o que você vai saber sobre a própria psique? Nada. Para saber, você precisa
integrar aquele experimento em todo esse quadro de referência que eu estou dando aqui.

Aluno: Professor, você poderia citar os psicólogos escolásticos que, segundo o sr., estão
mais bem preparados para lidar com os temas de psicologia?

Olavo: Tem vários. Tem o Agostino Gemelli, que é talvez o maior de todos, tem o Luis
Cencillo, o Andre Marc, autor da Psicologia Reflexiva, e assim por diante. Mas note bem: eu
não estou seguindo referências escolásticas. Por quê? Porque eu acho que até mesmo os
psicólogos escolásticos, no exame que fizeram da psicologia moderna, foram muito
tolerantes.
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Também não quer dizer que eu estou jogando toda a psicologia moderna fora. Não. Eu
apenas a estou submetendo ao teste da minha experiência, e ao testemunho das pessoas a
quem eu pergunto, incluindo os próprios psicólogos.

Por exemplo, se eu encontrasse o Konrad Lorenz, que escreveu sobre a agressividade


humana, eu perguntaria para ele: quantas pessoas você matou? Em quantas você bateu?
Nenhuma? Eu diria: mas que raios de instinto é este que jamais se manifesta? Não pode haver
um instinto que se manifeste a cada cinqüenta anos. Essa tal da agressividade humana não
existe. Existe certas circunstâncias nas quais certas pessoas agem agressivamente. E essas
circunstâncias são enormemente complexas exteriormente, e ainda mais complexa na
imaginação dos respectivos personagens.

Para você montar uma situação de agressividade você precisa de elementos culturais,
históricos, psicológicos, enormemente complexos. Se eu vir, por exemplo, todas as vezes em
que eu me meti em situações agressivas, em que eu apanhei, quis ou bati em alguém, vejo que
tudo é tão complicado que às vezes a pessoa não consegue nem reconstituir como entrou
naquilo. Pode haver elementos de competição social; o sujeito quer te humilhar, e você não
deixa.

Eu vejo que mesmo entre moleques, adolescentes, foram pouquíssimas as brigas que eu
pessoalmente assisti. Quantas violências uma quadrilha de bandidos comete ao longo de toda
a sua porca vida? Quantos assaltos fez: vinte, trinta, cem? Quantos dias ela viveu? Ou seja,
mesmo o violento profissional exerce isto pouquíssimas vezes. Então como falar de um
instinto agressivo?

O que acontece é que o psicólogo vê a violência espoucando aqui e ali, fica impressionado. E
não tendo uma explicação detalhada, ele apela para um símbolo chamado instinto, o que é
apenas uma figura de linguagem.

Do mesmo modo a sexualidade. O Dr. Freud explica tudo o que nós fazemos pela
sexualidade. Mas quantas vezes por mês lhe ocorre um pensamento erótico com relação a
alguma pessoa? Na maior parte dos casos, ocorre durante uma fração de segundo, como uma
hipótese, ameaça de possibilidade, de suspeita, e não acontece nada. É assim ou não é? Às
vezes dá em alguma coisa, mas é tão complicado! Dá trabalho esse negócio, você tem que
convencer a pessoa, levar ao motel. Na maior parte dos casos a coisa não se realiza, ela pára
na metade.

Que raio de instinto é esse, que é tão difícil de satisfazer? As pessoas viveriam numa
frustração medonha o tempo todo e estariam chorando. No entanto não estão. Seja sincero:
quantas mulheres você levar para a cama? E quantas você levou realmente? Você não está
chorando desesperadamente diante de tanta frustração; você está aí rindo cinicamente como
se nada tivesse acontecido. Se fosse instinto, você estaria chorando. Então não é uma
necessidade verdadeira; é apenas uma coisa que você pode e gostaria de fazer. Porém, depois
que você já compôs todo o mundo imaginário, sonhou com aquela mulher etc., então aquilo
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virou um complexo causal que você não consegue parar mais.

Imaginem, por exemplo, o Mike Tyson, e aquela confusão toda que deu quando ele levou
uma menina para o motel. Ele foi em frente porque pensou que sendo o Mike Tyson, famoso,
todas as meninas queriam transar com ele; por isso foi em frente. Ele achou que ela estava
dizendo não só por frescura, mas era não de verdade. Como ele iria saber? Qual é a
diferença? Ele é um cara impulsivo e cego? Não. A simbolização que ele fez foi errada
apenas, ele interpretou errado a situação. Se a pessoa dissesse não para mim, eu acharia
perfeitamente natural; mas o Mike Tyson é o Mike Tyson.

Aluno: [inaudível]

Olavo: Se ele estivesse interessado em conhecer a objetividade da situação. Mas ele não
estava. O apelo à vaidade foi muito forte.

Aluno: Ainda sobre a suposta existência de uma opressão instintiva condicionante das
[2:10]

ações no homem (presente em algumas linhas filosóficas), o que podemos entender sobre as
afirmações de alguns pensadores (dentre eles Schopenhauer) de que a razão não passa de
um instrumento da Vontade, do impulso cego que constitui o homem e toda a realidade?

Olavo: A experiência básica do Shopenhauer é de tipo gnóstica. O universo é hostil e a


humanidade é inviável. Se você entender que tudo o que ele está dizendo é apenas uma
expressão deste sentimento de base, você pode negar tudo e dizer que não lhe parece que seja
tão ruim assim. Toda a filosofia de Schopenhauer é uma construção pseudo-racional em cima
de uma escolha inicial. E digo mais: isso não chega a ser uma filosofia, porque se ela se
baseia em uma escolha inicial inteiramente injustificada, então ela é uma elaboração poética.

O que é uma elaboração poética? Já dizia o Benedetto Croce, ela é a expressão de uma
impressão. Se não existe a crítica racional das impressões, não há filosofia nenhuma. O
Schopenhauer é, sobretudo, um poeta da desgraça universal, embora ele conhecesse bem a
lógica, a técnica filosófica etc. A estrutura da obra dele é uma estrutura racional criada em
cima de uma impressão, uma gigantesca construção racional que expressa uma impressão.
Mas e se você pegar essa impressão inicial e perguntar: e se não for assim? Isso é a mesma
coisa que você assistir a Otello, onde tem um sujeito que faz uma fofoca, e se perguntar: e se
ele não fizesse a fofoca? Acabou a peça.

Por isso há nas obras de arte a suspensão da descrença. Você não faz a pergunta básica, e por
isso mesmo você aceita a premissa arbitrária, colocada pelo poeta, dramaturgo, romancista
etc. E se Romeu não se apaixonasse por Julieta? Não teria a peça. E se o mundo não for tão
ruim como Schopenhauer o via? Acabou a filosofia dele. Porém, ela vale como expressão
artística da profundidade que esta experiência do irracional no mundo pode ter para um
indivíduo. Há momentos que nós somos shopenhauerianos, então não conseguiremos
exprimir isso melhor que Schopenhauer exprimiu. Mas isso não chega a ser uma filosofia de
maneira alguma. Schopenhauer foi um grande escritor e um grande poeta, mas não um
35

filósofo.

Com Nietzsche ou Hobbes é a mesma coisa. Eles não são filósofos de maneira alguma,
porque se o sujeito não examina criticamente a impressão inicial, se ele se deixa arrastar por
ela e tenta expressá-la completamente, ele está fazendo poesia.

Aluno: Você coloca que a maior fonte de sofrimento para o homem é o “trauma da
emergência da razão”. Mas como se entende corriqueiramente que os traumas psicológicos
estão relacionados à esfera do sentimento?

Olavo: O que é sentimento e emoção? Emoção é a reação total do organismo psicofísico a um


estado de coisas, tal como você o interpreta no momento. Se acontecem determinadas coisas
e você as entende de certa maneira, você pode ficar triste, alegre, ficar esperançoso ou
intimidado e assim por diante. O sentimento é a reação a algo que você sabe; ele é a reação a
uma informação. Portanto ele por si não pode ser causa de nada.

Tudo depende de como você imagina as coisas. É a constelação de fatores tal como você a
imagina e a interpreta que provoca o sentimento. Se não existe a atividade cognitiva
precedendo o sentimento, não há sentimento algum.

A prova é assim: como você se sente em relação a um acontecimento indefinido do qual não
teve a menor notícia? Você não sente absolutamente nada. O que pode provocar a ação é o
desejo. E o que é o desejo? Ele é uma figura que você concebe na sua imaginação e que
deseja imitar na realidade física. Se não há trabalho da imaginação, não há desejo de nada.
Quando é que você deseja uma coisa que nunca viu e da qual não tem a menor notícia? Você
não deseja.

Imaginem que ali, atrás da porta, tem uma mulher pelada lindíssima, louca para transar com
você, mas você não sabe de nada. Quanto você a deseja? Nada. Porém, se eu lhe digo que a
fulaninha está ali te esperando, já melhorou. É a imaginação que puxa o desejo.

Nós fazemos um fetichismo em torno da idéia de instinto, assim como fazemos um


fetichismo em torno da idéia de sentimento e desejo, como se eles fossem causas iniciais.
Não podem ser causas iniciais, isso é absolutamente impossível. Você só pode desejar aquilo
que você imagina.

Aluno: A imagem do consciente como a ponta de um iceberg, cuja base imersa seria o
inconsciente, é então uma grande inversão da verdadeira estrutura da psique?

Olavo: É inversão total, total. A psique é a consciência. Só existem dois elementos


inconscientes: (a) primeiro, tudo aquilo que você ignora, inclusive no seu próprio corpo. E
isso, evidentemente, não pesa. (b) E em segundo lugar podem haver aqueles elementos que
você não quiz e que você elimina pelo mecanismo que o Freud chamava de repressão.
Porém, repressão por si não pode eliminar nada. Se você tem um desejo e quer reprimi-lo, e
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todo hora pensa nisso, você cria um conflito desgraçado.

O que nós fazemos, de fato, é trocar os símbolos com que nós representamos certas coisas.
Por exemplo, tem aqui um objeto que eu considero desejoso e eu começo a imaginá-lo sob
figuras odiosas. Isso quer dizer que eu esqueci, que eu puxei aquilo para o inconsciente? Não,
eu fiz uma transformação de símbolos. E eu posso fazer essas transformações de maneiras tão
complicadas que eu já não lembro mais o começo. Não é uma força inconsciente, pois ela foi
criada pelo consciente.

O mecanismo da repressão é totalmente consciente. Isso quer dizer que a quase totalidade do
que nós chamamos de inconsciente é apenas uma constelação, um aglomerado opaco de
símbolos, que se tornou incompreensível para você. E que, passados anos, você já não
consegue manipulá-lo. Por que esse mecanismo analítico funciona às vezes? Porque você
rastreia a formação desse compactado de símbolos e o desmonta. Você tem todos os
elementos soltos e, então, pode montá-los de outra maneira. É por isso que o Dr. Muller dizia
que a psicoterapia é reescrever a história do eu. O sujeito contou a história de certa maneira,
mas agora [2:20] vai descobrir os elementos e montá-la de outra maneira.

Aluno: O ódio à razão e a exaltação da irracionalidade, características de muitas escolas de


pensamento, podem ser interpretados como sintomas de raiz gnóstica, manifestados por
indivíduos que gostariam, na verdade, de possuir uma racionalidade ou ciência divina,
esquecendo-se de que são criaturas temporais limitadas?

Olavo: Batata! Se você tem a expectativa do domínio racional do universo inteiro, você ficará
frustrado. Então, o irracional lhe parecerá algo gigantesco e absolutamente incontrolável.
Porém, nós podemos dizer que a realidade em si é racional ou irracional? Não, de maneira
alguma. A realidade pode ser considerada racional em relação à razão divina, não humana. O
real não é nem racional nem irracional — essas categorias não se aplicam a ele. Racional ou
irracional é o que eu penso sobre ele. E mesmo assim, o irracional é criado através da
contradição proposital e da camuflagem de símbolos.

Eu vejo que um dos grandes motivos das pessoas perderem fé na sua própria inteligência, fé
na possibilidade do conhecimento, botando a fé na razão, é porque elas criam uma
expectativa excessiva logo no início. Se a pessoa quer saber o que é a verdade, ela deverá
partir das verdades que já possui; porque do nada, nada aparecerá. Se você quer uma verdade
mais profunda, tem de começar por uma mais superficial. Se quer uma verdade mais
importante, tem de começar por uma mais modesta; e assim por diante. É o método da
confissão.

Procure em si mesmo certas verdades que você não pode negar de maneira alguma, que você
sempre soube, sempre admitiu e que você sabe que se negar estará mentindo — procure estas.
É a técnica da confissão. Se você descobriu que conhece verdades que não pode negar de
maneira alguma, então talvez você possa descobrir outras verdades. Mas se você já pergunta
de cara as verdades últimas e não obtém resposta nenhuma, você não é o primeiro,
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evidentemente. Você quis dar um salto maior que as pernas. Então, é claro, você ficará
desiludido com a sua inteligência e dirá que não se pode conhecer nada.

Quem diz que não se pode conhecer nada, é porque jamais tentou conhecer alguma coisa. A
filosofia dele é, portanto, a expressão da sua preguiça intelectual. É claro que nós podemos
conhecer alguma coisa; nós podemos conhecer muita coisa. E por que nós não podemos
conhecer tudo? Por uma limitação da nossa inteligência? Não. É porque o elemento de
desconhecimento e de mistério faz parte da própria estrutura da realidade.

Aluno: O que segue é menos uma pergunta do que uma observação ou conclusão. Quando o
senhor descrevia o processo de formação da neurose, lembrei-me de uma frase de Goethe,
que cito de memória: “Algumas pessoas não abdicam da mentira, porque devem a ela as
suas existências”. (...)

Olavo: É claro. Um exemplo é esse pessoal todo do mensalão; como é que eles podem
desistir disso?

Na escala psicológica acontece a mesma coisa: o sujeito criou uma forma de existência que se
baseia na mentira; ele não vai desistir daquilo porque precisaria desmontar tudo. Mas isso
tem um preço. E eu acho que o preço maior é a insignificância; porque, afinal de contas,
ninguém está interessado em se transformar em personagem da mentira interior inventada por
um idiota. E na verdade é isso que esses caras estão nos pedindo o tempo todo. Eu inventei
um teatrinho e quero transformar você em um personagem dele. Se você consentir isso, é
porque consentiu em ser escravo de um idiota e, logo, você é um idiota maior ainda. Isso
acontece na realidade. Esse negócio de mentalidade revolucionária é isso: há 400 anos esses
caras estão inventando mentiras, prometendo o que não podem dar, e um monte de gente
consente em morrer para atender a essa fantasia.

Você tem, por um lado, uma psique torta e doente, capaz de inventar uma mentira tão
verossímel na qual todo mundo acredita; o sujeito se deixa matar por aquela porcaria. Agora,
imagine que coisa terrível é morrer por uma bobagem. Georges Bernanos dizia que o perigo
que nós corremos não é o de morrer, mas o de morrer como idiotas. É muito pior! Aí você
tirou a significação da sua própria vida, mesmo que você não saiba. Mas se você não sabe,
pior ainda, pois você tirou significação objetivamente e ainda a tirou subjetivamente. Então
você é um nada mesmo. No entanto, há pessoas cujas vidas são uma mentira do começo ao
fim. E eu sei que essas pessoas são frágeis, por mais poderosas que elas pareçam. Sei disso
por exeriência própria.

O ser humano em geral não é muito forte, nem muito inteligente, nem muito corajoso. Mas,
conforme a estruturação que você fez dos seus valores, dos seus símbolos etc., você sabe que
há coisas que você não pode mudar. Se o sujeito tem de morrer porque está dizendo que 2+2
é 4, já é alguma coisa, porque ele não pode fazer com que o resultado seja 5. Então, o motivo
da morte de certo modo o transcende. Porém, se ele morrer por apostar que 2+2 dá 5, então a
causa pela qual ele morreu é falsa, mas sua morte é verdadeira.

Aluno: (... )A imagem que vem à mente é a de alguém que construiu um muro com a ajuda de
um andaime, subiu no muro, sabe que o andaime não serve para mais nada, mas também
não sabe como descer do muro.
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Olavo: Uma vez aconteceu isso lá em casa. Tinha um corredor em casa e pedi que o pedreiro
construisse um quarto lá. Ele ficou o dia todo trabalhando, colocando tijolos e, de repente, ele
gritou “socorro”. Ele estava preso dentro do muro que tinha construído e nós tivemos de tirá-
lo.

Aluno: C.S. Lewis diz que o homem nasce com a tendência para o bem, e Igor Caruso diz
que a neurose é a repressão da consciência moral. Desta forma, como devemos entender a
questão moral? É uma sugestão como outra, ou parte da abertura espiritual?

Olavo: É claro que esse problema do mal não pode ser enfocado com os métodos da
psicologia. Nós não vamos resolvê-lo aqui. Nós podemos apenas dar algumas sugestões de
por que algumas pessoas fazem o mal. Em primeiro lugar, lembre-se da questão da presença
do ser. Se a presença do ser é vivida como uma coisa hostil, então você já tem toda a psique
invertida desde o início. E como esta impressão da hostilidade do ser pode acontecer à
qualquer pessoa, pelas próprias interpretações que ela faz do que está acontecendo, então
sempre teremos a propensão para o mal. Não é propensão: é possibilidade. O mal é uma
perspectiva permanente do ser humano.

Porém, todo esse pessoal que tenta imaginar a alma humana como um um ninho de víboras
— dizendo que nós temos todas aquelas propensões permanentes para fazer o mal —, está
muitíssimo enganado. Eles imaginam o pecado original como se fosse uma condenação ao
inferno. O ser humano não é perfeito, ele não tem a possibilidade do bem perfeito, mas ele
não é tão imperfeito assim. Se você comparar brevemente inteligência humana com
inteligência angélica, verá que as diferenças que existem entre elas são tão enormes que
apenas isso já basta para assinalar a deficiência do homem. Não precisa nenhuma maldade
[2:30] especial.

O simples fato do trauma de emergência da razão já mostra que a condição da vida humana é
uma condição deficiente, estruturalmente. Isso aí já é a cota de mal que está presente na nossa
vida, queiramos ou não. Isso quer dizer que nós podemos conceber o homem como uma
criatura estruturalmente deficiente, e isso já basta para explicar uma infinidade de condutas
erradas, malignas, perniciosas etc. Não é preciso conceber a presença de impulsos malignos.
A pessoa não precisa de impulsos malignos para escolher a coisa errada. Ela escolhe a coisa
errada porque é deficiente. E essas deficiências podem se somar e produzir constelações
inteiras de erros — como as ideologias, por exemplo — e aí você não sabe mais como
desmontar isso.

O homem faz isso não porque ele tem a tendência ao mal, mas porque ele é deficiente.
Mesmo as pessoas mais monstruosas do mundo, como o Mao Tsé Tung, que matou 70
milhões de pessoas, não precisa ter uma maldade deste tamanho. A maldade dele não consiste
de 70 milhões de crimes, ele não seria capaz de pensar isso. Basta uma sucessão de enganos.
Claro que ele tem culpa desses enganos, mas as conseqüências reais dos nossos atos podem
ser infinitamente piores do que a cota de mal que havia na ideia que os gerou. O sujeito diz
que vai fazer uma revolução e criar uma sociedade melhor, e ele admite que pode ser que
tenha de matar alguém ou uma meia dúzia. Mas certamente não vai parar nisso. Por quê?
Porque a sua concepção é errada, e ele não vai conseguir controlar a quantidade de mal que
vai gerar.

Nós não podemos medir o tamanho do mal humano pelo tamanho das consequências que ele
gera. “Mao Tsé Tung é um monstro” ou “Hitler é um monstro”. Bem, na verdade não são
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monstros, são criaturas humanas como qualquer outras. Mas o mal que eles são capazes de
gerar vai infinitamente acima do que eles mesmos são capazes de compreender. E isso já
mostra o que eu quero dizer com o trauma da emergência da razão.

Aluno: Até porque você conta com a anuência de outras pessoas.

Olavo: Claro, outras pessoas também vão concordar com aquilo. A quase totalidade do mal
humano vem do fato de você não conseguir avaliar corretamente o que está fazendo. E claro
que não vai haver o mal sem a mentira, sem esse progressivo encobrimento das pistas ao
ponto que você é capaz de construir um sistema inteiro de camuflagens.

Hoje eu sei que o marxismo é um sistema inteiro de camuflagens, é tudo mentira,


meticulosamente. É uma criação monstruosa. Depois que começa, ele vira um vírus de
computador. O sujeito cria uma estrutura de pensamento errada e aquilo vai se multiplicar
várias vezes, e se essas coisas virarem atos humanos será um sofrimento atroz — a ponto que
o próprio Karl Marx, se visse as consequências, diria: “Pô, mas eu não sou tão mal assim.”
Ele disse que não era marxista; mas se não fosse, não deveria ter começado com essa
porcaria.

Você lê no Gênesis sobre o pecado original. Mas os pecados não foram tão grandes assim.
Afinal de contas, o que Eva fez? Ela aceitou uma sugestão errada, e o marido dela concordou
com aquilo. Mas foi o suficiente para criar uma desgraça universal. Então como é que nós
podemos dizer que o mal humano vem de instintos, de algo irracional? Não vem. Ele vem da
desproporção das nossas responsabilidades inerentes à própria forma de existência humana e
a nossa capacidade de estruturação racional. Nós carregamos o peso da razão, mas nós não
temos o domínio dela; nem podemos ter. Por isso mesmo temos de pensar com cuidado.

Aluno: Existe uma cota de absurdo, também, nesse mal.

Olavo: A cota de absurdo é o desajuste entre o pensamento humano e a estrutura da realidade.


Mas esse desajuste pode chegar a ser quase total, onde não há veracidade nenhuma no que o
sujeito pensou.

Quem aqui leu o meu estudo sobre Maquiavel? Ao ler aquilo você vê que Maquiavel era
totalmente louco. Tudo o que ele pensou é falso, mas tem gente que acreditou nele. Para o
bem ou para o mal, acreditou. Maquiavel não era mal nem malígno, era maluco. E, ao mesmo
tempo, era um sujeito de muito talento, que conseguia explicar aquelas coisas de tal modo
que as pessoas não percebiam o absurdo que ele estava falando.

A maior parte dos males criados pelos seres humanos vem exatamente disto. É uma briga que
o sujeito entra com a estrutura da realidade. Eu não acredito que exista uma dimensão moral
ou ética independente da estrutura da realidade. Eu não acredito que exista aqui o ser e lá,
separado, o deve ser. Isso é um absurdo. Na hora em que você pensou isto, você já está
esquizofrênico: existe o ser, a realidade, a verdade, e por outro lado, o dever ser — é um
40

negócio kantiano.

Eu acho que o bem é inerente à estrutura do ser, assim como dizemos que o amor ao próximo
é inerente à estrutura da alma humana. Não precisamos dizer que aqui está a alma humana,
como existe objetivamente, e ali estão os deveres e o bem que ela deveria atender. Ao entrar
aí você já está mentindo, primeiramente. Se existe aqui uma verdade e uma realidade
independente do bem, de onde você vai tirar esse bem? Ou o bem que está falando é uma
verdade, ou ele mesmo é uma mentira.

Para Platão não existia esse problema, para ele a suprema realidade é o supremo bem. Duns
Scott diz o mesmo: Unum verum bonum. Aquilo que tem unidade, que é verdadeiro, e que é
bom: isso é a suprema realidade. Agora, se você começa a modelar a sua imagem da
realidade pela imagem das ciências físicas, você vai falsear tudo, porque nas ciências físicas
não há como botar nem o verdadeiro nem o uno. A ciência moderna é toda feita de
fragmentos recortados para certos fins de investigação, nos quais você faz abstração de
praticamente tudo. A ciência jamais pode estudar um fato concreto, mas apenas recortes
demonstrativos. Todas as ciências juntas são uma coleção de recortes abstrativos que não
compõem mundo nenhum. E, no entanto, todos nós temos inicialmente a experiência do ser.
Mas se você juntar tudo que a ciência sabe, não se compõe ser nenhum, porque a ciência é
recorte, ela tem de fazer recorte. E esse recorte é tautológico. Eu já lhes expliquei mil vezes:
o que é uma ciência? É uma hipótese de que um certo campo de fenômenos obedece uma
constante. Então o que se faz? Se recorta esses fenômenos para ver se eles obedecem mesmo
essa constante, cujo o recorte os definiu. E mesmo assim, mesmo sendo tautológico, às vezes
não dá certo. [2:40] Até onde nós podemos ir com esse tipo de conhecimento? Não se vai muito
longe. A racionalidade dele depende de conhecimentos anteriores; ele em si mesmo, separado
da estrutura da realidade, pode ficar totalmente irracional. As ciências podem ficar totalmente
irracionais, e a tendência que os cientistas de maior destaque têm para acreditar em história
da carochinha é enorme. Vejam, por exemplo, o número dos que acreditam em aquecimento
global ou que acreditam em deuses astronautas, como o Richard Dawkins. Eles são todos
macumbeiros.

Esse tipo de prática intelectual só vale se você tiver uma referência filosófica muito mais
ampla e muito mais séria do que isso. Se você modelou a sua imagem da realidade pelo que
você aprendeu com as ciências, então só vai haver duas coisas: (a) o mundo físico,
determinado por “leis” que você imagina que conhece; e (b) o mundo humano, constituído de
idéias, criações culturais etc. E não existe nada mais além disso. Então onde pode entrar o
bem? No mundo natural não pode entrar; então só pode ser uma criação humana.

Aluno: Essa história de ser e dever ser de Kant é bem gnóstica.

Olavo: Isso é gnosticismo mesmo; o bem é uma coisa que está, por assim dizer, fora da
realidade. E, no entanto, o Gênesis começa dizendo que Deus fez o mundo e viu que era bom.
Se não fosse, ele não faria. Agora, o gnóstico acha que ele é capaz de fazer um mundo
melhor. De cara já é uma ruptura, ele já entrou em desacordo com a estrutura do mundo;
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“este mundo não serve”. Quando eu falo “este mundo” não é no mesmo sentido da bíblia;
falo do universo inteiro, com todas as suas determinações e sua estrutura. Tudo isso é ruim,
só lhe resta inventar outro.

Aluno: O fato dos seres humanos estarem abaixo da sua capacidade psíquica normal, ou
seja, não exercerem a força da sua psique como poderiam, deve-se principalmente à pobreza
de imaginação?

Olavo: A resposta é sim. Essa é a primeira coisa que falha. Na verdade, tudo depende da
imaginação, até o exercício da razão. A imaginação é o mundo do que você considera
possível. Mas se o mundo do seu possível é pobre, as elaborações que você fizer em cima
disso muito provavelmente serão pobres também. A imaginação é fundamental. É por isso
que se você não deixa o sujeito dormir, ele fica louco, porque não pode soltar a imaginação
nem durante o sono. Nós precisamos do sono em grande parte por causa da atividade onírica.
Precisamos soltar a imaginação para deixá-la combinar as coisas do seu jeito.

Tudo o que nós percebemos pelos sentidos é fragmentário, absolutamente tudo. Você nunca
percebeu uma coisa inteira. Nunca percebeu nem perceberá uma coisa inteira. Mas como
você tem o senso da presença do ser, você sabe que as coisas são unidades completas; você
sabe, mas não percebe isso. Você só tem a aceitação da unidade objetiva, e subjetivamente
você tem percepções fragmentárias. Então você precisa também de um pouco de unidade
subjetiva, precisa completar isso imaginativamente.

Aluno: O que os orientais tentam fazer através da meditação? O que acontece? Qual é o
objetivo?

Olavo: Em primeiro lugar, que “orientais” são esses? A palavra meditação é usada hoje de
uma maneira tão enormemente confusa, para significar tantas coisas diferentes. Tem um
sujeito, por exemplo, que dizia que a meditação dele consistia em não pensar em nada. Mas
ele estava meditando o quê, se não estava pensando em nada?

Hugo de São Vitor dizia que há três atividades fundamentais: pensar, meditar e contemplar.
Pensar é transitar de uma idéia à outra; você tem uma que está ligada a outra, que está ligada
a uma terceira e assim por diante. Meditar é rastrear o processo de pensamento para trás até a
raiz de realidade que desencadeou o pensamento inteiro. E contemplar é você pegar várias
meditações, que o levam até várias realidades, e você as contempla todas ao mesmo tempo. É
só isso que existe, o resto é empulhação.

Agora, o que pode existir são práticas de concentração, que não tem nada a ver com
meditação. Por exemplo, ter certos fatores sempre em conta, permanentemente, não esquecer
daquilo. É o negócio da prece perpétua: o sujeito está permanentemente lembrando daquilo; é
uma concentração, não uma meditação. Não importa o que você está pensando, a consciência
daquilo está sempre presente no fundo.
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Aluno: [inaudível]

Olavo: Isso. Mas tem de ser um foco que seja suficiente universal para ele abranger tudo,
senão vai estreitar a sua imaginação.

A concentração no coração como centro do ser, por exemplo. Onde quer que você está é o
seu centro que está deslocando. Então pensar nele não o impede de pensar em mais nada.

Você pode perfeitamente não pensar em nada. Eu fiz essa experiência muitas vezes. Tinha
aquele negócio peripatético: Aristóteles ficava andando e explicando as coisas, então,
naturalmente, ele estava pensando. Eu não consigo fazer isso de jeito nenhum. Se eu for
andar dando uma aula, eu vou bater a cabeça num poste ou vou cair. Sempre que eu
caminhava, eu não pensava em absolutamente nada. Mas isso não quer dizer que a atividade
mental parou, porque eu estava ali na pura absorção passiva das sensações, eu estava vendo
tudo. Eu não estava formando nenhuma frase na minha cabeça, nenhum raciocínio; a
estimulação estava apenas entrando.

Há aquele exercício do Narciso Irala, que eu dei no curso online, de fechar os olhos e
registrar todos os ruídos que lhe chegam, desde os mais próximos até os mais distantes. Você
não estará raciocinando, mas não estará parado. Então é possível não pensar em nada se você
estiver apenas absorvendo sensações conscientemente. É só aí que é possível não pensar em
nada — se você tomar a palavra “pensar” no sentido estrito de raciocinar. Mas se você tomar
a palavra “pensar” no sentido de atividade mental, então ela nunca pára.

Às vezes eu fazia o exercício de continuar recebendo as sensações sem associá-las a nada,


sem puxar pela memória. Porque normalmente é assim: nós percebemos algo [2:50] e o
associamos com outra coisa, imediatamente. E quando se associa com outra, você se priva de
perceber o próximo estímulo que vem vindo. Então isso você pode mais ou menos controlar.
Eu vou andar nessa praia inteira e vou registrar tudo, e só depois vou associar — é possível
fazer isso. Só se tem um input. Isso eu conseguia fazer; mas andar e pensar, não.

Dizem que o ex-presidente Gerald Ford não conseguia andar e mascar chiclete ao mesmo
tempo. Eu estou mais ou menos nesse caso; a minha coordenação motora é muito deficiente.
Por isso tentaram me ensinar tocar piano e jamais conseguiram, porque eu sempre achava que
havia dedos demais. E até hoje eu só sou capaz de digitar com dois dedinhos, olhando para o
teclado. Tocar piano e datilografia não é comigo. Tudo aquilo que involve movimentos
corporais muito complicados não é comigo. Eu sou capaz de marchar e dançar coisas muito
simples.

Aluno: O que explica o caso dos médicos [inaudível]? Eles vêem crianças mortas
diariamente, mas negam [inaudível].

Olavo: Esses caras que fazem aborto não querem ver a fotografia dos bebês abortados pois
não querem ver o que fizeram. É claro que isso é uma deformidade psíquica porque isso é
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uma recusa de completar no imaginário o que você está fazendo.

Aluno: (...) E agora eles não querem nem mais que a mãe veja (...)

Olavo: Claro. Então o que eles fazem? Substituem a percepção da realidade, ou a correta
imaginação dos fatos, por um tecido verbal num raciocínio construído. Vão falar dos “direitos
da mulher”, essas coisas todas. Os direitos das mulheres talvez existem, mas não no mesmo
sentido que existe o bebê abortado. Afinal de contas, os diretos são uma construção
hipotética, mas o bebê abortado não, ele é uma coisa que existe realmente. Isso é doença
mental. O sujeito não quer ver aquilo que ele mesmo fez.

Isso é a mesma coisa que o sujeito negar que faz cocô: “vocês fazem isso, eu não”. É
exatamente a mesma coisa.

Aluno: Ou então ele pode até ver, mas ele faz uma constitução verbal elaborada de uma
maneira que ele ignora ...

Olavo: Ele pode fazer um exercício de desensibilização. Como fazer isso? Você vai sobrepôr
a impressão originária, sobrepôr um símbolo, e outro, e outro, e no fim vai pensar que é outra
coisa. É muito complicado fazer isso.

Sobre a desensibilização, eu dei-lhes o exemplo do dentista. Eu ia lá, ele estava com a broca
na mão e eu, em vez de pensar na dor, pensava na alta tecnologia que tinha construído
aquelas máquinas. E assim, sobrepunha uma coisa à outra. Mas não funcionava muito bem no
meu caso.

Você pode usar a desensibilização para várias coisas. Controlar a reação a dor através desse
jeito é legítimo, mas você sabe que fez isso, não está mentindo completamente. Todos nós
temos o direito de focar a nossa atenção em qualquer aspecto; você pode desviar a atenção de
um ponto para outro, mas você tem de saber que está fazendo isso. Agora, dizer que a
estrutura real do mundo corresponde ao seu desvio de atenção, quando você está desviando
justamente porque a estrutura do mundo está dizendo o contrário do que você quer pensar,
então há algo errado nisso.

Bom, encerramos então este curso de Psicologia. Eu espero dar outro em abril ou maio. Eu
escolhi um tema metafísico, A estrutura do ser.

[fim da aula]

Transcrição: Eduardo Dipp


Revisão: Mariana Belmonte

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