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Aritmética ou Geometria?
No final do século XVIII e inı́cio do século XIX, a matemática era vista como a ciência das
quantidades que tratava do estudo geométrico ou algébrico de grandezas discretas ou contı́nuas
assim como suas contrapartes abstratas, os números (EPPLE, 2003). Uma definição de número
comumente aceita a partir do século XVII até metade do século XIX foi dada por Newton da
seguinte forma:
Por números nós entendemos não uma multitude de unidades, mas especi-
almente a razão abstrata de uma grandeza para outra de mesma espécie to-
mada como unidade. Os números são de três tipos; inteiros, frações e surdos:
um inteiro é o que pode ser medido pela unidade, as frações são uma parte
submúltipla das unidades de medida e um surdo é aquele que é incomensurável
com a unidade. (NEWTON, 1707 apud PETRI; SCHAPPACHE, 2007, p.344)
Sobre essa definição, Petri e Schappache (2007) ressaltam o caráter dependente do conceito
de grandeza e a continuidade apoiada basicamente pela intuição geométrica. Note que essa
dependência da geometria é encarada de modo natural, visto que a matemática dividia-se em
dois ramos de estudo: a aritmética e a geometria sendo essa última amplamente aceita como
critério de rigor desde os tempos de Euclides. A álgebra e a análise, eram consideradas métodos
matemáticos e, portanto evitadas quando se desejava instaurar uma fundamentação rigorosa
sobre uma teoria (BONIFACE, 2002, p.3).
Em seu Cours d´Analyse, Cauchy enuncia sua preocupação em não fundamentar seus te-
oremas com base em fatos “evidentes” provenientes das figuras, ou, em última instância, com
base na geometria. Considere, por exemplo, o seguinte teorema:
De fato, o problema da existência dos limites procurados não chegou a ser levado em
consideração nos primórdios do desenvolvimento do cálculo infinitesimal. Inicialmente, o
cálculo de Newton e Leibnitz tratava de resolução de problemas geométricos e mecânicos sobre
curvas cuja continuidade era garantida pelo movimento. A existência da solução era, portanto,
garantida a priori pela natureza do problema tratado.
Alem disso, Kleiner (1991) ainda aponta que o uso dos infinitésimos conduzira Cauchy a
resultados falsos, mascarando a diferença entre a convergência pontual e a convergência uni-
forme 1 de séries de funções. Desse modo algumas inferências feitas para séries de funções
contı́nuas seriam refutados com contra exemplos pelos matemáticos da geração seguinte.
Em seu curso de Introdução às funções analı́ticas, Weierstrass dedicava um quarto da sua
duração à introdução minuciosa do conceito de número bem como das suas operações. Para
tanto, ele introduzia não um mas quatro tipos distintos de unidades, a saber, positiva, negativa,
imaginária positiva e imaginária negativa. Seus números reais e complexos eram apresentados
como séries de unidades e partes da unidade. Essa soma, no caso dos números irracionais
deveria ser necessariamente infinita e naturalmente sua representação não seria necessariamente
única, ou seja, infinitas séries de elementos distintos poderiam representar o mesmo número.
Por outro lado, Weierstrass evita o problema da existência dos limites das séries convergentes
que cria para definir os números irracionais quando define as operações a partir de somas finitas
de números racionais definidos anteriormente. Em seu artigo Fundamentos de uma teoria geral
das multiplicidades de 1883 (BONIFACE, 2002, p.79), Cantor sublinha que o erro lógico de
1 Em notação moderna, uma seqência de funções fn (x) : D → R converge pontualmente para f (x) : D → R se
∀ε > 0∀x ∈ D∃N ∈ N; ∀n > N| fn (x) − f (x)| < ε . Por outro lado, essa sequência converge uniformemente para
f (x) : D → R se ∀ε > 0∃N ∈ N∀x ∈ D; ∀n > N| fn (x) − f (x)| < ε .
considerar a existência dos limites mesmo antes desse limite estar definido como um número
dentro do domı́nio trabalhado teria sido evitado pela primeira vez por Weierstrass, ao contrario
de seus predecessores que cairam nessa armadilha.
Ao contrário de Weierstrass e Dedekind, Cantor formula sua construção dos números re-
ais sem uma motivação didática. Ela é apresentada nas duas primeiras seções como pré-
requisito para sua demonstração de um teorema de unicidade dos coeficientes de uma série
trigonométrica2. Particularmente, o próprio Cantor ressalta que as definições visam fundamen-
talmente deixar sua demonstração mais concisa.
Segundo Cantor, tomando como fundamentação o conjunto dos números racionais, é possı́vel
estender o conceito de grandeza numérica. Parte-se, então, de um conjunto A de números raci-
onais (incluindo o número zero) com o objetivo de criar um conjunto B de grandezas numéricas
num sentido mais amplo.
Durante a seção 1 de seu artigo, Cantor dá a fundamentação aritmética da igualdade e das
operações de elementos construı́dos ao considerar-se inicialmente uma sequência infinita de
números racionais
a1 , a2 , · · · , an , · · · (1)
1 1
deseja mostrar que se as séries b0 + ∑(an sin x + bn cos x) e b′0 + ∑(a′n sin x + b′n cos x) resultam na
2 Cantor
2 2
mesma soma, qualquer que seja o valor de x, então seus coeficientes são iguais.
com uma lei que garante a propriedade de que a diferença an+m − an torna-se infinitamente pe-
quena quando n aumenta, sendo m um número inteiro (positivo) qualquer. Equivalentemente,
dado um número racional positivo ε qualquer, existe um número inteiro (positivo) n1 tal que
(an+m − an ) < ε sempre que n ≥ n1 , qualquer que seja o inteiro (positivo) m. Se isso acon-
tece diz-se que a sequência (1) tem um limite determinado b. Isso quer dizer que atribuı́mos à
sequência (1) o sı́mbolo particular b.
Uma tradução mais acessı́vel, para sala de aula, por exemplo, seria dizer que Cantor associa
um sı́mbolo b ao conjunto de todas as possı́veis aproximações racionais de um número não
racional. A escolha de sequências de Cauchy (propriedade enunciada acima) nos garante que
é possı́vel refinar esta aproximação tanto quanto se imponha inicialmente. Em outras palavras,
escolhida uma margem de erro ε existe uma ordem n1 de modo que qualquer termo da sequência
infinita (1) que ocupe uma ordem maior que n1 é uma aproximação do número não racional em
questão com margem de erro inferior a ε .
Uma observação legı́tima seria se perguntar porque Cantor precisa de uma sequência de
Cauchy? Em princı́pio bastaria que a sequência fosse convergente. Note, no entanto, que dizer
que a sequência (1) é convergente, consiste em dizer que existe um número L ∈ A de modo
que, estabelecida uma margem de erro ε > 0, existe uma ordem n1 tal que |an − L| < ε sempre
que n > n1 . O problema da existência de um limite no domı́nio considerado inicialmente não
permitiria a criação de novos números. De fato, ao trabalhar com sequências de Cauchy, a
existência do limite L não é levada em consideração. O sı́mbolo b atribuı́do à sequência (1)
é o que hoje chamamos de um ponto de acumulação do domı́nio A. Os passos seguintes da
construção de Cantor, visam dar a esse sı́mbolo b o mesmo status dos elementos de A.
Será então descrita uma forma de associar esses sı́mbolos de modo que o conjunto B que
pretende-se formar possa ser considerado um conjunto numérico, no sentido mais amplo da
palavra e seus elementos serão os sı́mbolos associados a elas b, b′ , b′′, · · · .
que possui um limite determinado b′ , pode-se dizer que uma e apenas uma das relações entre
(1) e (2) é possı́vel:
2. an − a′n assume valores maiores que uma grandeza racional positiva ε , a partir de deter-
minado valor de n. Desse modo b > b′ ;
3. an − a′n assume valores menores que uma grandeza racional negativa −ε . Sendo assim
b < b′ .
Do mesmo modo, a sequência (1), cujo limite é denotado por b, tem com um número racional
a não mais que uma das seguintes três possı́veis relações:
2. an − a assume valores maiores que uma grandeza racional positiva ε , a partir de determi-
nado valor de n. Desse modo b > a;
3. an − a assume valores menores que uma grandeza racional negativa −ε . Sendo assim
b < a.
As operações são herdadas do conjunto dos números racionais (aqui denotado por A), onde
as operações já estão bem definidas, de modo que dados b, b′ e b′′ , três elementos de B, as
operações
b
b ± b′ = b′′ , bb′ = b′′ ,
′
= b′′
b
exprimem que entre as sequências correspondentes aos números3 b, b′ e b′′ :
a1 , a2 , · · · , an , · · ·
será dada por uma expressão definida entre as sequências infinitas que estão associadas às gran-
dezas numéricas b, b′ , b′′, · · · , b(ρ ) . Em nota, Cantor ressalta que dada uma equação de grau
µ com coeficientes inteiros f (x) = 0, dizer que ela possui uma raiz ϖ significa, nada mais
que dizer que existe uma sequência do tipo (1), associada ao sı́mbolo ϖ , que também possui a
propriedade de lim f (an ) = 0.
Assim como o conjunto B foi construı́do a partir do conjunto A, analogamente pode-se criar
com elementos de A e B um novo domı́nio C. Para tanto, toma-se uma sequência infinita
b1 , b2 , · · · , bn , · · · (3)
de grandezas numéricas, nem todas pertencentes ao domı́nio A, de modo que bn+m −bn torna-se
infinitamente pequeno a medida que n aumenta, para um m do mesmo modo que as definições
anteriores. Diz-se, então, que tal sequência possui um limite determinado c.
Cantor ressalta, em seguida que a relação de igualdade entre dois elementos do domı́nio
B não significa exatamente a igualdade mas apenas aponta uma relação entre as sequências
infinitas que os geram. Em outras palavras, dizer que dois elementos b e b′ são iguais consiste,
na linguagem atual, em dizer que eles pertencem a uma mesma classe de equivalência, embora
não haja no artigo de Cantor uma demonstração de que a equivalência de sequências de Cauchy
seja uma relação de equivalência.
A segunda seção trata da linha reta. Considera-se inicialmente uma linha reta e um ponto
fixado o. Deseja-se atribuir a cada ponto da reta uma abscissa, correspondente à distância do
ponto até o, medida a partir de uma unidade previamente escolhida. Essas abscissas receberiam
um dos sinais + ou − a partir da sua posição em relação a o.
Se essa distância tem com a unidade uma relação racional, então ela pode ser expressa
por uma grandeza numérica do domı́nio A. Caso contrário, se o ponto é dado a partir de uma
construção qualquer, é possı́vel se criar uma sequência (1) a1 , a2 , · · · , an , · · · com as proprieda-
des da sequência enunciadas na primeira seção de modo que os pontos da reta que correspondem
às distâncias a1 , a2 , · · · , an , · · · se aproximam indefinidamente do ponto dado, a medida que
n cresce. Desse modo dizemos que a distância desse ponto ao ponto o é igual a b, onde b é a
grandeza numérica correspondente à sequencia (1).
BONIFACE, J. The concept of number from gauss to kronecker. In: GOLDSTEIN, C.;
SCHAPPACHER, N.; SCHWERMER, J. (Ed.). The Shaping of Arithmetic after C. F. Gauss’s
Disquisitiones Arithmeticae. Berlin: Springer Berlin Heidelberg, 2007. cap. V.1, p. 314–342.
CAUCHY, A.-L. Œvres complètes d’Augustin Cauchy. Série 2, tome 3. Paris: [s.n.], 1882.
Disponı́vel em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k90195m>.
EPPLE, M. The end of the science of quantity: Foundations of analysis 1860-1910. In:
JAHNKE, H. N. (Ed.). A History of Analysis. Rhode Island: American Mathematical Society,
2003. v. 24, cap. X, p. 291–323.