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Presidente da República

Dilma Vana Rousseff


Ministro da Educação
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Universidade Federal do Ceará
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Conselho Editorial
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Profa Ângela Maria Mota Rossas de Gutiérrez
Prof. Gil de Aquino Farias
Prof. Italo Gurgel
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Diretor da Faculdade de Educação
Maria Isabel Filgueiras Lima Ciasca
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação B­ rasileira
João Batista de Albuquerque Figueiredo
Chefe do Departamento de Fundamentos da Educação
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Série Diálogos Intempestivos
Coordenação Editorial
José Gerardo Vasconcelos (Editor-Chefe)
Kelma Socorro Alves Lopes de Matos
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Conselho Editorial
Dra Ana Maria Iório Dias (UFC) Dr. Justino de Sousa Júnior (UFC)
Dra Ângela Arruda (UFRJ) Dra Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (UFC)
Dra Ângela T. Sousa (UFC) Dra Lia Machado Fiuza Fialho (UECE)
Dr. Antonio Germano M. Junior (UECE) Dra Luciana Lobo (UFC)
Dra Antônia Dilamar Araújo (UECE) Dra Maria de Fátima V. da Costa (UFC)
Dr. Antonio Paulino de Sousa (UFMA) Dra Maria do Carmo Alves do Bomfim (UFPI)
Dra Carla Viana Coscarelli (UFMG) Dra Maria Izabel Pedrosa (UFPE)
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Dr. Jorge Carvalho (UFS) Dra Sandra H. Petit (UFC)
Dr. José Aires de Castro Filho (UFC) Dra Shara Jane Holanda Costa Adad (UFPI)
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Dr. José Levi Furtado Sampaio (UFC) Dra Valeska Fortes de Oliveira (UFSM)
Dr. Juarez Dayrell (UFMG) Dra Veriana de Fátima R. Colaço (UFC)
Dr. Júlio Cesar R. de Araújo (UFC) Dr. Wagner Bandeira Andriola (UFC)
Gledson Ribeiro de Oliveira
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Bruno Okoudowa
Organizadores

ALINE NEVES RODRIGUES ALVES


BAS´ILELE MALOMALO
BRUNO OKOUDOWA
DENISE ROCHA
FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO
FAUSTO ANTONIO
GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA
ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO
IVAN MAIA DE MELLO
IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA
JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS
JOÃO B. A. FIGUEIREDO
JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS
LUÍS TOMÁS DOMINGOS
NILMA LINO GOMES
RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE
RODRIGO ORDINE
SURA SUBUHANA
VERA RODRIGUES

Fortaleza
2013
Cá e Acolá: Experiências e Debates Multiculturais
© 2013 Gledson Ribeiro de Oliveira, Jeannette Filomeno Pouchain Ramos e Bruno
Okoudowa (Organizadores)
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Edições UFC
Av. da Universidade, 2932, Benfica, Fortaleza-Ceará
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Normalização Bibliográfica
Perpétua Socorro Tavares Guimarães
Projeto Gráfico e Capa
Carlos Alberto A. Dantas (carlosalberto.adantas@gmail.com)
Revisão de Texto
Leonora Vale de Albuquerque

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Universidade Federal do Ceará – Edições UFC

Cá e acolá: experiências e debates multiculturais / Gledson Ri-


beiro de Oliveira, Jeannette Filomeno Pouchain Ramos e
Bruno Okoudowa [organizadores] et al ... – Fortaleza: Edi-
ções UFC, 2013.

339p. : il.
Isbn: 978-85-7282-607-5

1. Educação multicultural  2. Multiculturalismo – ­Brasil 


3. Educação pós-colonial  4. Políticas afirmativas

CDD: 370.5
SOBRE OS AUTORES

Aline Neves Rodrigues Alves – Mestranda em Educação pela


Faculdade de Educação (FaE/UFMG). Graduada em Geografia
pelo Instituto de Geociências – IGC/UFMG. Integrante do Núcleo
de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Ações Afirmativas
­(NERA-CNPQ).
E-mail: alineves2005@yahoo.com.br

Bas´Ilele Malomalo – Doutor em Sociologia pela Universidade


Estadual Paulista (UNESP). Professor Adjunto do Instituto de Hu-
manidades e Letras da UNILAB e membro do Grupo de Pesquisa
ORITÁ: Espaços, Identidades, Memórias e Pensamento Complexo
(UNILAB). Pesquisador do NUPE, Núcleo Negra da UNESP para
Pesquisa e Extensão e do Centro de Estudo de Línguas e Culturas
Africanas e da Diáspora Negra.
E-mail: basilele@unilab.edu.br

Bruno Okoudowa – Doutor em Linguística pela Universidade de


São Paulo. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras
da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Estudos de Línguas
Africanas (GELA-USP), Oritas. Desenvolvimento e Cooperação In-
ternacional do CNPQ. Coordenador do Projeto de Extensão: La fran-
cophonie à l’Unilab.
E-mail: okbruno@unilab.edu.br

Denise Rocha – Doutora em Literatura e Vida Social e Gradua-


ção em Letras pela UNESP, campus de Assis (São Paulo). Profes-
sora Visitante do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB.
Bacharelado em História na Ruprecht-KarlsUniversität Heidelberg
(Alemanha). Contato: denise@unilab.edu.br

Fábio Baqueiro Figueiredo – Doutor em Estudos Étnicos e Afri-


canos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjun-
to do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro do
Grupo de Pesquisa África: história e identidades (UFBA). Contato: 
E-mail: fabiobaq@unilab.edu.br

Carlindo Fausto Antonio (Nome: literário Fausto Antonio) –


Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de
Campinas. Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras
da UNILAB; membro do NEAB- Núcleo de Estudos Africanos e Afro-
-Brasileiros e atua, no âmbito da UNILAB, na linha de pesquisa”África
no Brasil: produção e circulação de saberes”.
E-mail: fausto_escritor@unilab.edu.br

Gledson Ribeiro de Oliveira – Doutor em Sociologia pela Uni-


versidade Federal do Ceará, professor Adjunto do Instituto de Hu-
manidades e Letras da UNILAB, vice-coordenador do Grupo de
Pesquisa Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política (UFC)
e membro do Grupo de Pesquisa História, Literatura e Cultura dos
Espaços Lusófonos (UNILAB).
E-mail: gledson@unilab.edu.br

Isaac Bruno Oliveira Araújo – Discente do curso do Bacharela-


do em Humanidades da UNILAB. Bolsista de BICT-FUNCAP.
E-mail: isaacaraujooficial@gmail.com

Ivan Maia de Mello – Doutor em Educação pelo Programa de


Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal da Bahia (2012). Professor Adjunto de Filosofia
do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. Coordenador de
Arte e Cultura da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Filoso-
fia e Linguagens Artísticas Modernas e Contemporâneas (UNILAB),
Spinoza e Nietzsche (UFRJ), Epistemologia do educar e práticas Pe-
dagógicas (UFBA).
E-mail: ivan.maia@unilab.edu.br
Izabel Cristina dos Santos Teixeira – Doutora em Literatura
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora
Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB. Projeto
de Pesquisa (CNPq-UNILAB): Sustentabilidade e Meio Ambiente:
Representações na Literatura Moçambicana Contemporânea.
E-mail: izabel.cristina@unilab.edu.br.

Jeannette Filomeno Pouchain Ramos – Doutora em Educação


Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora Vi-
sitante do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB.
E-mails:ramosjeannette@yahoo.com.br
ramosjeannette@unilab.edu.br

João B. A. Figueiredo – Doutor em Ciências (Ecologia) pela Uni-


versidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pós-Doutor em Educação
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor As-
sociado da Universidade Federal do Ceará (UFC).
E-mails: joaofigueiredo@hotmail.com; joaofigueiredoufc@gmail.com

José Antônio Souza de Deus – Doutor em Geografia pela Univer-


sidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Associado da Graduação
e Pós-Graduação do Instituto de Geociências da UFMG. Integrante
do Laboratório de Geografia Agrária e Agricultura Familiar – Institu-
to de Geociências – IGC/UFMG.
E-mail: jantoniosdeus@uol.com.br

Luís Tomás Domingos – Doutor em Anthropologie et Sociolo-


gie du Politique. – Université de Paris VIII- França. Professor Ad-
junto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro
dos Grupos de Pesquisa Políticas Públicas, Diversidade Cultural e
Inclusão Social (UNILAB), Baobah –Grupo de pesquisa em Educa-
ção, Religião e Laicidade (UFPB), Cotidiano, cidadania e educação
(UEPB).
E-mail: luis.tomas@unilab.edu.br.
Nilma Lino Gomes – Doutora em Antropologia Social pela Uni-
versidade de São Paulo e pós-doutora em Sociologia pela Universida-
de de Coimbra; Reitora Pró-Tempore da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Professora
do Programa de Pós-Graduação Conhecimento e Inclusão Social da
FAE/UFMG. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Relações Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (NERA/CNPQ).
E-mail: nilma@unilab.edu.br

Ramon Souza Capelle de Andrade – Doutor em Filosofia pela


Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto do Insti-
tuto de Humanidades e Letras da UNILAB e membro dos Grupos
de Pesquisa Guerra e Justiça (UNILAB), CLE – Auto-organização
(UNICAMP), Acadêmico de Estudos Cognitivos (UNESP), Lógica e
Epistemologia (UNICAMP).
E-mail: ramon.capelle@unilab.edu.br

Rodrigo Ordine – Doutor em Letras (Estudos de Literatura) pela


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pro-
fessor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB
e membro dos Grupos de Pesquisa  ORITÁ: Espaços, Identidades,
Memórias e Pensamento Complexo (UNILAB) e Literatura, Política
e Cultura: as relações entre Portugal, Brasil e África (PUC-Rio). 
E-mail: ordine@unilab.edu.br

Sura Subuhana – Discente do curso de Licenciatura em Letras da


UNILAB. Bolsista de PIBIC- UNILAB.
E-mail: subuhana.sura@gmail.com

Vera Rodrigues – Doutora em Antropologia Social pela Universi-


dade de São Paulo. Professora Adjunto do Instituto de Humanida-
des e Letras da UNILAB e membro dos Grupos de Pesquisa Oritá:
espaços, identidades, memória e pensamento complexo (UNILAB),
Guerra e Justiça (UNILAB). Ex-Bolsista International Fellowship
Program Ford Fundation.
E-mail: vera.rodrigues@unilab.edu.br
SUMÁRIO

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E


EPISTEMOLÓGICA
Gledson Ribeiro de Oliveira
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Bruno Okoudowa........................................................................13

1
Colonização e Descolonização do Saber

COMUNIDADES QUILOMBOLAS: UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO


DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS
Aline Neves Rodrigues Alves
José Antônio Souza de Deus
Nilma Lino Gomes......................................................................27

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA


POR ALTERIDADE
Luís Tomás Domingos............................................................... 58

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO?
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos....................................... 87
João B. A. Figueiredo................................................................. 87

2
Religião, Política e Igualdade Racial

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS:


APONTAMENTOS
Gledson Ribeiro de Oliveira
Isaac Bruno Oliveira Araújo.................................................... 115
DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA: UM OLHAR
SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA
BRASILEIRA
Bas´Ilele Malomalo..................................................................134

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”? DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL


À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL.
Vera Rodrigues.........................................................................158

VOZES DA ÁFRICA — CONTEÚDOS E CONTINENTES: RAÍZES INTELECTUAIS


DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS
Fábio Baqueiro Figueiredo.......................................................178

3
Literatura, Língua e Filosofia

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE


DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO
Rodrigo Ordine........................................................................ 205

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE
Izabel Cristina dos Santos Teixeira
Sura Subuhana......................................................................... 224

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR:


JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001)
Denise Rocha............................................................................ 242

OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”,


DE MÁRCIO BARBOSA
Fausto Antonio..........................................................................272
OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES
LUSÓFONOS DOS CONTINENTES AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB:
COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL
Bruno Okoudowa..................................................................... 283

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA


Ivan Maia de Mello.................................................................. 295

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO
Ramon Souza Capelle de Andrade...........................................310
DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA
POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA

Gledson Ribeiro de Oliveira


Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Bruno Okoudowa

Preciso ser um outro


para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
(Mia Couto, 1977).

Na “modernidade tardia”, as informações, mercadorias,


símbolos, signos, imagens e pessoas deslocam-se em fluxos
globais sem precedentes formando uma economia-mundo
que potencializa o processo de compressão espaço-tempo, a
formação de um sistema interestatal de controle, a acumula-
ção por meio da financeirização econômica e entretece uma
rede de interdependência sociocultural pela qual são inter-
cambiados etnias, línguas, tradições culturais e religiões.
Como parte de variados sistemas mundiais de interação entre
sociedades e Estados que, nem sempre, são harmoniosas ou
simétricas, porque ocidentalizada e pautada por trocas mer-
cantis, os encontros socioculturais decorrentes dessas intera-
ções estimulam a desterritorializações e bricolagens culturais
para além das fronteiras nacionais.

d  13
O deslocamento ou dissolução dessas fronteiras nacio-
nais através de diásporas complexas tem como uma de suas
expressões flagrantes os fluxos migratórios globais pelos quais
pessoas e grupos passam de uma comunidade de pertenci-
mento para outro lugar, sem começo nem fim (IANNI, 1999;
HALL, 2011). Esse movimento de idas e vindas nem sempre se
materializou a partir da vontade subjetiva, mas, muitas vezes
do contexto histórico-social, podendo ser compulsória, como
foi o caso do tráfico de negros africanos para a América, Eu-
ropa e Ásia e, como ainda hoje, no caso do tráfico de pessoas
e órgãos.
Stuart Hall (2011), que cresceu na Jamaica e vive na In-
glaterra, tem contribuído significativamente para a compre-
ensão desse fenômeno. Para Hall, o estudo da diáspora deve
ser relacional e não estático, como também deve fomentar
uma análise tanto de aspectos sociais como simbólicos, ou
seja, em sua complexidade e totalidade. Dessa forma, ele re-
jeita o pensar reducionista que trata apenas do que é visível
aos olhos. Nessa perspectiva, não há uma identidade cultural.
As identidades culturais são múltiplas, pois, na modernidade,
as comunidades são transnacionais (2011, p.26).
A concepção fechada de tribo, de diáspora e de pátria
sugere uma identidade cultural “com um núcleo imutável e
atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa
linha ininterrupta. Esse cordão umbilical que se chama ‘tra-
dição’”. (HALL, 2011, p.29). A identidade é uma questão
histórica, portanto, não está restrita a um movimento de
continuidade, mas também de rupturas, como é o caso da
diáspora africana. Tanto os aspectos “autênticos da origem”,
como genético, hereditário e do Eu interior (p.28), bem
como os diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e
europeu, em fusão na fornalha colonial, resultaram em cul-

14  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
turas híbridas, múltiplas. Pode-se afirmar que, nas zonas de
contato coloniais, a copresença espacial e temporal de su-
jeitos antes isolados geográfica e historicamente forjaram e
forjam, na dialética do hibridismo cultural, uma identidade-
-como-diferença, isto é, um processo em que a diferenciação
cultural tem como ponto de partida não o que é idêntico no
interior do grupo, mas a constituição de uma operação em
que se nega, negocia-se e se deslocam as fronteiras entre o
Eu e o Outro.
Tratando dos paradigmas dos estudos culturais, Hall
(2011, p. 123) sintetiza que o que importa são as rupturas
significativas “em que as velhas correntes de pensamento
são rompidas, velhas constelações deslocadas, e elementos
novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama
de premissas e temas”. Não necessariamente é o cá dos para-
digmas culturalistas nem o acolá dos estruturalistas, mas, é no
confronto entre os dois grupos que despontam outras possibi-
lidades de análises. Nesse sentido, as pesquisas reunidas nesta
coletânea pressupõem uma diversidade cultural, paradigmáti-
ca e cognitiva na apreensão da realidade que apontam o desafio
da ruptura política e epistemológica do pensamento único e da
formação de intelectuais orgânicos “comprometidos com um
trabalho intelectual radical que gera mudanças sociais e eco-
nômicas” (p.14).
A partir de outras lentes do cá e do acolá, Catherine
Walsh (2008), ao tratar sobre as insurgências na refundação
do Estado na América do Sul, destaca que é fundamental ana-
lisar as relações culturais cunhadas nas possibilidades de in-
ter, pluri e multiculturalidade, pois a diversidade cultural na
transição para o século XXI tem se materializado de diferentes
formas no hemisfério norte e no sul. Para a autora, o multicul-
turalismo emerge no ocidente como uma possibilidade de re-

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  15


conhecer a diversidade, no entanto, não desenvolve políticas
públicas de promoção e reparação das desigualdades histó-
ricas, socioeconômicas. Segundo Walsh (2008), são coleções
de culturas singulares sem relações entre elas. A pluralidade
se caracteriza como sendo o reconhecimento da diversidade
cultural e a coexistência e convivência num mesmo território/
nação, sem relações equitativas (WALSH, 2008, p.140). A al-
ternativa que desponta como desafio é a interculturalidade,
que se apresenta como a existência de várias culturas que se
relacionam de forma harmoniosa, no entanto, esta pressupõe
políticas reparadoras e afirmativas na promoção da igualdade
social e jurídica, respeitando a diversidade cultural. Esta, por-
tanto, para Walsh, não existe ainda; é um desafio! O mesmo
desafio que em epígrafe, Mia Couto expressa: “existo onde me
desconheço”.
Para além desta trimembração, há ainda o transcultural
ou transnacional que, em consonância com o movimento de
globalização (DREIFUSS, 2004), emerge de diferentes luga-
res criando redes infindáveis, que se transversalisam perpas-
sando culturas que influenciam e são influenciadas, rompen-
do com as fictícias fronteiras nacionais.
Dessa forma, este livro trata dos encontros entre o cá e o
acolá reunindo pesquisas sobre universos culturais distintos e
interdependentes. O “Cá” é o Brasil que por si, já é multicultu-
ral. São muitos brasis numa única nação, numa única repúbli-
ca de dimensões continentais. Essa diversidade está represen-
tada não apenas nos artigos que compõem esta publicação,
mas no próprio coletivo de pesquisadores que se reuniram
em tal empreitada. Estes explicitam os fluxos multiculturais
entre cá e acolá. Do Brasil, Congo, Gabão ou Moçambique,
os autores compõem rico painel histórico, político, cultural,
educacional, linguístico, literário, filosófico e religioso. A di-

16  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
versidade de olhares e objetos indica, igualmente, diferentes
domínios do conhecimento e trajetórias de vida. Em aborda-
gens interdisciplinares, os autores se utilizam de instrumen-
tos conceituais e metodológicos de variadas searas do saber
na construção de seus objetos.
“Acolá” refere-se tanto aos falantes da língua portugue-
sa da outra margem do Atlântico como de Timor-Leste. No
que diz respeito ao continente africano, trata-se de um espaço
formado por 54 países de línguas, etnias e culturas diferentes.
A divisão da maioria desses países resultou de um processo
de invasão regularizada pelo tratado de Berlim de 1884-1885.
Essa divisão foi feita sem considerar as línguas e culturas
nativas africanas. As consequências disso são sofridas pelos
africanos até hoje. Igualmente o Timor-Leste está transpas-
sado pela empresa colonial capitaneada por Portugal e pela
ocupação militar da Indonésia. As trocas multiculturais nos
continentes africano, asiático e americano foram envolvidos
na mesma história, pelo continente europeu, através do tráfi-
co negreiro, da busca por temperos na Índia e pela exploração
de riquezas via colonização.
No que diz respeito à relação Brasil-África, há ainda
muitos passos a serem dados para que um diálogo multicul-
tural contemple o continente africano como um todo. Dos
54 países africanos, apenas cinco formam os Países Africa-
nos de Língua Oficial Portuguesa- PALOP’s, sendo três no
continente: Angola, Guiné Bissau e Moçambique; e dois
formados por ilhas: Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. A
invenção da África explicita desafios linguísticos, sociais,
econômicos, cultural, entre outros. Quanto ao continente
asiático, a ‘lusofonia’ nele é representada por três espaços:
Goa, na Índia, Macau, na China e Timor-Leste, que é um
país recém-independente.

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  17


Não obstante, a noção de lusofonia apele para a unida-
de cultural e linguística, as diferentes perspectivas políticas e
históricas nas ditas “comunidades lusófonas” têm desvelado,
peremptoriamente, a fragilidade e artificialidade do discurso
lusófono acerca de uma ‘herança’ ou ‘identidade comum’ a
ser celebrada. Com efeito, o reconhecimento à diferença e a
afirmação da herança local têm gestado uma memória e sen-
timento de pertença na qual é valorizada, menos a unicidade,
que a pluralidade cultural.
A cooperação solidária Sul-Sul pressupõe uma integra-
ção que começa pelo interesse compartilhado entre os povos
em vistas do estabelecimento de um diálogo que passa pelo
conhecimento e valorização cultural e multicultural. Dialogar
para se conhecer melhor, analisar os problemas comuns para,
se possível, encontrar soluções comuns e para aprender com a
experiência do outro, do diverso, pois “Preciso ser um outro,
para ser eu mesmo” (COUTO, s.d, p.13).
Inserida no circuito da cooperação Sul-Sul, a UNILAB
tem como um dos seus objetivos institucionais e pedagógicos
o estímulo e adensamento da produção, parceria e trocas de
saberes entre os países da ‘comunidade lusófona’, principal-
mente com os da África Negra. A UNILAB, portanto, é uma
possibilidade nessa caminhada de diálogos multiculturais, no
sentido em que se trata de uma Universidade de Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Isso envolve todos
os países onde a língua portuguesa é falada.
Como ensina Paulo Freire (2004) o diálogo é uma exi-
gência existencial e do lugar de encontro, pois não é no silên-
cio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na
ação-reflexão. Adverte ainda que a autossuficiência e os “gue-
tos” de homens puros é incompatível com o diálogo quando
se está fechado à contribuição do Outro. O diálogo, portanto,

18  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
poderá possibilitar a conscientização, a superação, o sentir-
-se e saber-se tão sujeito quanto os outros; da caminhada que
ainda está por vir a ser e da busca do saber e ser mais.
Em cadência com o dito acima, este livro socializa as
experiências de pesquisa que têm por objeto a diáspora afro-
-brasileira, a África Negra e além, a citar, Timor-Leste e Por-
tugal, em seus diferentes lapsos temporais.
Abrindo a primeira seção desta coletânea, Colonização
e descolonização do saber, Aline N. Rodrigues Alves, José
Antônio S. de Deus e Nilma Lino Gomes propõem um estu-
do da comunidade quilombola de Barro Preto, Minas Gerais.
Explorando a história do movimento negro e quilombola no
Brasil, os autores refazem o percurso das lutas pelo reconhe-
cimento social e acesso à terra dos remanescentes das comu-
nidades dos quilombos. A noção de lugar, como subjetivação
do espaço pelo qual se apreende os significados e relações de
pertencimento da comunidade, é compreendida metodologi-
camente por meio de “mapas mentais” elaborados por estu-
dantes do ensino fundamental que vivem na comunidade de
Barro Preto. Nestes, as representações das crianças sobre seu
lugar de pertença, a relação com seus parentes e o senso de
identidade quilombola ganham contornos reais por meio de
traços pueris. No segundo texto, Luís Tomás Domingos anali-
sa os efeitos “ambíguos” da educação formal em Moçambique.
Ao contrário da educação ocidental, centrada no domínio de
técnicas e conteúdos, a educação africana valoriza a harmo-
nia e a compatibilização global de todas as disciplinas face ao
Universo, tendo por fundamento gnoseológico a “dinâmica da
alteridade”. Sua problematização busca compreender os desa-
fios educacionais, em um contexto de África Negra, que con-
jugue as contribuições da educação europeia e a cultura an-
cestral africana na construção de uma educação pós-colonial.

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  19


Como conclui, a concepção de um novo projeto educacional
em África deve “descobrir, reanimar e fortalecer o seu poten-
cial criativo e revelar o potencial que está escondido em cada
cultura (Africana, Europeia e outros) para o desenvolvimento
integral do homem, o ser humano”.
Por sua vez, Jeannette Ramos e João Figueiredo nave-
gam pela história da educação portuguesa e brasileira, iden-
tificando os processos que constituíram o modelo de instru-
ção colonizante, elitista e desigual. Explicitam que o projeto
educacional português, por um lado, dava instrução às classes
subalternas com o objetivo de formar súditos alfabetizados
e tementes a Deus e, por outro, oferecia a educação média e
superior para os futuros gestores de Estado e da burocracia
sacerdotal. Na Terra de Santa Cruz-Brasil, os padres jesuítas
acrescentaram ao projeto educacional português o extermí-
nio, a dominação e a “negação da cosmovisão indígena e afri-
cana”, estabelecendo as bases do modelo desigual da educa-
ção brasileira que foi perpetuado por todo o período imperial,
e que alcançou os primeiros anos de república sem profundas
mudanças estruturais.
Na seção seguinte, intitulada Religião, Política e Igual-
dade Racial, Gledson Ribeiro de Oliveira e Isaac Bruno Araú-
jo examinam as relações conflituosas das igrejas evangélicas
com as religiões afro-brasileiras e o lugar em que o continen-
te africano ocupa nas representações religiosas. Analisando
três casos recentes, o capítulo aponta que é de livre curso a
condenação pública das religiões e cultura afro-brasileira por
parte das igrejas evangélicas, principalmente as igrejas neo-
pentecostais. Infere, também, que há uma continuidade entre
o passado e o presente das missões evangélicas que difundem
uma visão empobrecida e salvacionista, no campo evangéli-
co, do continente africano. No texto seguinte, Bas´Ilele Ma-

20  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
lomalo discorre sobre os desafios a serem transpostos em
África para alcançar um desenvolvimento socioeconômico
sustentável. Estudando o caso da República Democrática do
Congo, reconstrói, na longa duração, a dinâmica histórica
de dominação, exploração e autoritarismo que levou o país
a figurar entre as mais desiguais do globo, ponderando que a
resposta aos dilemas da sociedade congolesa passa por uma
educação voltada à complexidade e solidariedade, sustenta-
bilidade ambiental e comprometimento social dos dirigentes
políticos.
Vera Rodrigues toma as políticas públicas de igualda-
de racial dos períodos Collor, Fernando Henrique Cardoso e
Lula, e as trajetórias de lutas dos movimentos negros como
materiais de sua reflexão sobre as conquistas e recuos na pro-
moção das políticas de igualdade racial no Brasil. Compreen-
de que as desigualdades por motivo de “cor” e “procedência”
só podem ser superadas com a igualdade de acesso aos bens
públicos “como um direito inerente ao exercício pleno da ci-
dadania.” Já Fábio Baqueiro Figueiredo, traça um panorama
de dois grandes pólos simbólicos, África e Terceiro Mundo,
situando as raízes do novo discurso africano de emancipa-
ção à virada do século XIX para o XX, num inventário que
vem se estabelecendo como uma espécie de “contracânone”
da modernidade. Para o autor, as raízes intelectuais do na-
cionalismo africano das independências revela uma longa e
multiforme tradição pan-africana que combinam-se com a
emergência do Terceiro Mundo, como categoria de identifi-
cação coletiva que mudou o panorama do campo nacionalis-
ta, e dão forma ao complexo e conflituoso campo da política
africana a partir da década de 1960.
Iniciando a terceira seção, Literatura, Língua e Filo-
sofia, Rodrigo Ordine faz emergir de Sôbolos rios que vão,

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  21


do português António Lobo Antunes, temas frequentes nos
romances desse médico psiquiatra que atuou na guerra co-
lonial em Angola: a experiência traumática, o esquecimen-
to e a memória. Considerando-o uma intricada narrativa de
construção romanesca e autobiográfica hibridizada, faz uma
reflexão sobre as variações estéticas narradas a partir da per-
sonagem “senhor Antunes da cama onze” que, tal como o
autor, está transpassado, talvez, pelo seu maior momento de
dor, a descoberta de um câncer. O texto de Izabel Cristina e
Sura ­Subuhana convida o leitor a percorrer o livro da escritora
moçambicana Paulina Chiziane, Balada do Amor ao Vento.
O tempestivo amor entre as personagens Sarnau e Mwando é
o fio pelo qual os autores urdem os fluxos, com suas trocas e
negociações culturais em um contexto colonial, com os fixos,
representados pela aldeia Mambone, o povoado de além-mar
Vilanculos e a cidade de Lourenço Marques (Maputo), em in-
terface com o meio ambiente.
O texto de Denise Rocha trata dos valores, da religio-
sidade e da riqueza da cultura africana retratadas por meio
do pai de santo Jubiabá, personagem ficcional do romance
homônimo de Jorge Amado. Este era o último remanescente
da geração de escravos e o patriarca de negros e mulatos, aos
quais narra a ancestralidade africana e a saga de Zumbi dos
Palmares, ao mesmo tempo em que denuncia a perseguição
policial ao candomblé, nos anos 1920 e 1930, em Salvador.
Numa análise literária do ser negro diaspórico e desvelando
as relações encruzilhadas com os recursos jornalísticos e ci-
nematográficos, Fausto Antônio, discute e revela, a partir do
conto “Quando o Malandro Vacila”, de Márcio Barbosa, publi-
cado na Coletânea Cadernos Negros (volume 10, 1987), os tra-
ços indispensáveis para a construção de personagens negros
com história, problemática e uma cosmogonia referenciada

22  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
nos sistemas culturais negro-africanos radicados no Brasil.
As variações linguísticas apreendidas pela experiência de en-
sino da língua portuguesa aos alunos de Angola, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Brasil, do
curso de agronomia da UNILAB, é o tema do estudo de Bruno
Okoudowa. No processo de apreensão do português, explica,
o “discente ou falante estrangeiro quando não encontra o som
do português na sua língua materna, a tendência natural é
substituí-lo por um som semelhante que exista na sua língua”.
O ensaio de Ivan Maia parte da noção de “estética da
existência” de Foucault para traçar uma cartografia da produ-
ção poética afro-brasileira em autores como Solano Trindade
e Oliveira Silveira. Maia considera a negritude poeticamente
enunciada como uma ação coletiva que expressa valores es-
téticos que remetem a um modo de ser transformado que,
construindo o domínio de si, resiste às relações de poder e
controle. Finalizando essa coletânea, Ramon Souza Capelle de
Andrade oferece uma caracterização de identidade pessoal à
luz da Teoria Geral dos Sistemas ao traçar como hipótese que
a identidade pessoal constitui uma propriedade emergente de
um sistema (ou feixe) de hábitos. A identidade pessoal ou sis-
têmica poderia ser concebida, da perspectiva que o autor de-
fende, como emergindo de um conjunto próprio, e individual,
de hábitos inscritos na estrutura ou sistema psicocomporta-
mental de um agente.
Acreditamos que esta coletânea permitirá ao leitor tran-
sitar pelos diferentes tons teóricos e caminhos de investigação
percorridos pelos autores, além de contribuir para o debate,
em vários campos do saber, das múltiplas interfaces entre o
continente negro, a diáspora afro-brasileira, a cultura lusita-
na e o Timor-Leste, numa perspectiva de ruptura política e
epistemológica.

DIÁLOGOS MULTICULTURAIS: POSSIBILIDADES E LIMITES DA RUPTURA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA d  23


Referências Bibliográficas

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24  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • BRUNO OKOUDOWA
1
Colonização
e Descolonização do Saber
COMUNIDADES QUILOMBOLAS: UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO
LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS

Aline Neves Rodrigues Alves


José Antônio Souza de Deus
Nilma Lino Gomes

Introdução

O grande número de comunidades quilombolas oficial-


mente reconhecidas, no Brasil, traz consigo a necessidade de
investigarmos a evolução do próprio conceito de quilombo no
país, suas referências nos estudos, ressemantizações e discus-
sões teóricas com ele envolvidas. Atualmente, observa-se que
tais leituras buscam repensar as comunidades quilombolas
no presente, não mais a partir de uma estrutura escravista ou
calcada no imaginário de fuga. Essa relativização do conceito
ocorre também enquanto condições operacionais e conjuntu-
rais, ou seja, meios de atendimento ao artigo 68 da Constitui-
ção Federal do Brasil de 1988, que prevê o direito à proprie-
dade das terras ocupadas por remanescentes de quilombos.
Interessa-nos ainda observar, no interior das comuni-
dades quilombolas, os processos educativos vividos por seus
membros dentro e fora da escola, considerando suas carac-
terísticas socioculturais, uma vez que, a convocação à escola
para o respeito à diversidade étnica e à pluralidade cultural
desse país é algo também contemplado no aspecto legal, tanto
na Constituição Brasileira quanto na própria Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (LDB) e suas alterações.
A pesquisa tem primeiramente a intenção de se contra-
por a uma tendência presente no imaginário social brasileiro
de que as comunidades de quilombos situam-se num passado
remoto, e que por isso, não há necessidade de serem reconhe-

d  27
cidas como portadoras de direitos específicos por sua história
e legado social. Visa também contribuir teoricamente, ainda
que com certas limitações, com as discussões a respeito da
Educação sobre o direito à diferença, notadamente o direito
a uma identidade étnico-racial, que pode ser encontrada em
comunidades quilombolas, rurais e urbanas em todo o país.
Além disso, insere-se nas recentes reflexões sobre a categoria:
Lugar da Geografia Humanístico Cultural num diálogo possí-
vel a partir do uso de mapas mentais.
Para isso, o presente trabalho de pesquisa envolveu as
ações cotidianas e a história de uma comunidade quilombola
rural denominada Barro Preto, situada no município de San-
ta Maria de Itabira, no estado de Minas Gerais, em articula-
ção com as práticas educativas de âmbito escolar. Para tal, os
princi­pais sujeitos acompanhados e entrevistados foram um
grupo de crianças, estudantes do quinto ano do Ensino Funda-
mental de uma escola pública municipal localizada no interior
dessa comunidade. A escolha destas crianças deve-se ao fato
de estarem cursando o último ano escolar ofertado dentro da
comunidade e por isso, terem passado maior tempo de estudos
naquela escola. Além das crianças-estudantes, o trabalho in-
cluiu entrevistas com moradores, professores, diretora e técni-
cos da Secretaria Municipal de Educação dessa escola, buscan-
do-se uma compreensão do histórico da comunidade e outras
ações ligadas ao seu reconhecimento enquanto quilombolas.
Assim, o estudo teve por objetivo compreender a vivên-
cia de crianças da comunidade de Barro Preto e suas inter-re-
lações com a educação escolar e com os processos educativos
mais gerais, levando-se em consideração o lugar de vivência,
as relações étnico-raciais e a questão quilombola.
A investigação foi realizada por meio de estudo de caso,
com observação e intervenção em campo, entrevistas, produ-

28  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
ção de mapas mentais, oficinas com crianças e uma oficina
com moradores adultos. Para Cláudia Rosa Acevedo, a pro-
pósito, o estudo de caso “caracteriza-se pela análise em pro-
fundidade de um objeto ou um grupo de objetos, que podem
ser indivíduos ou organizações” e, enquanto método preocu-
pa-se “com planejamento, as técnicas de coleta de dados e as
abordagens de análise dos dados” (ACEVEDO, 2007, p.56).
Como forma de aproximação das crianças e tentativa
de compreender como concebem o seu “estar no quilombo”
do ponto de vista geográfico e espacial, os mapas mentais
foram os principais procedimentos metodológicos adotados.
Esses foram construídos por um grupo de dezessete estu-
dantes da escola da comunidade. Por mapas, entende-se a
metodologia de investigação nos debates sobre percepção
ambiental, percepção de paisagens e nos trabalhos de antro-
pólogos, em que se procura visualizar, nas imagens mentais
traçadas pelos homens, traços ligados à cultura, conforme
Nogueira (2002).

Quilombos no Brasil: Ressignificações, Pressões Sociais, Avanços


Políticos e Educacionais

O processo de aquilombamento existiu onde houve es-


cravidão dos africanos e seus descendentes, recebeu nomes
distintos de acordo com a região onde viveram. Como exem-
plos têm-se marroons na Jamaica, na Guiana Francesa, na
Guiana Inglesa e nos Estados Unidos da América do Norte,
pelenques em Cuba e na Colômbia, ou cimarrónes em muitos
países de colonização espanhola.
Segundo Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes
(2006), a palavra kilombo é originária da língua banto Um-
bundo, falada pelo povo Ovimbundo e que se refere a um tipo

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  29
de instituição sociopolítica militar conhecida na África Cen-
tral, já a sua conceituação, atualmente, é passível de várias
interpretações. Algumas são interpretações que remontam
à sua primitiva concepção, ainda no século XVIII, e que se
transformaram social e politicamente, de acordo com as mu-
danças sofridas por essas mesmas comunidades, suas reali-
dades rurais e urbanas, e há outras ligadas à ressignificação e
ressemantização do conceito.
O processo de ressignificação e ressemantização de-
corre das mudanças, tendências e interferências dos estudos
realizados pelo campo teórico, sobretudo da antropologia, na
arena jurídica, pelas instituições governamentais e pelo movi-
mento social negro e quilombola brasileiros, principalmente
após a promulgação da Constituição da República Federa-
tiva do Brasil de 1988, na qual consta o Art. 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que versa:
“aos remanescentes de comunidades quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
No século XVIII, o conceito clássico e que perduraria
até a década de 1970, foi definido pelo Conselho Ultramarino
em 1740 ao dirigir-se à Coroa Portuguesa: “toda habitação de
negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada,
ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pi-
lões nele”. Tal definição, ao tornar-se jurídica, marginalizava
e penalizava os grupos quilombolas que eram identificados,
então, de forma depreciativa (CARRIL, 2006, p.53).
Uma análise desse conceito é encontrada em Almeida
(1999), que, entre suas reflexões, nos apresenta uma crítica à
visão de senso comum da época em que apontava as comuni-
dades quilombolas como grupos que estariam fora do mundo
do trabalho. De acordo com Schimitt (2002), paralelamente

30  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
ao aparelho de perseguição aos fugitivos, existiu também uma
rede de informações que ia das senzalas a muitos comercian-
tes. Estes tinham interesse na manutenção dos grupos, pois
eram lucrativas as trocas de produtos agrícolas dos quilombos
por outros, repassados a eles pelos comerciantes por não exis-
tirem no interior dos quilombos.
No século XIX, principalmente nos finais do período
escravista, foi formado um grande número de quilombos no
Brasil que conseguiam sobreviver durante a escravidão, sen-
do que obtinham mais êxito aqueles que mantiveram relações
de reciprocidade com brancos pobres, indígenas e outros seg-
mentos populacionais. Portanto, os quilombolas mantinham
laços de solidariedade e convivência com seu entorno. Os
quilombos não correspondiam exclusiva ou essencialmente,
portanto, a refúgios de escravos fugidos, mas sua gestação
vinculava-se ao esforço dos negros escravizados em resgatar
sua liberdade e dignidade.
Além disso, as diferentes formas de ocupação de terras,
praticamente negadas com o sistema de Sesmarias e Lei de
Terras de 1850 no Brasil, foram, aos poucos, ganhando sen-
tido a partir da necessidade de designação da realidade qui-
lombola, sobretudo, para efeito de medidas legais, jurídicas
ou definição de direitos sociais, econômicos, políticos para
esses grupos e seus descendentes. As novas definições com-
preenderiam as estratégias de sobrevivência e outras relações
sociais criadas para além da fuga. Afinal, poderíamos encon-
trar terras doadas, compradas ou mesmo sua existência a par-
tir da apropriação de grandes propriedades que entraram em
decadência (LITTLE, 2002, p.6).
Temos assim, comunidades negras rurais, terras de
pretos, terras de santo ou santíssimo e/ou mocambos, qui-
lombos contemporâneos, comunidades quilombolas e rema-

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  31
nescentes de quilombos. Ou seja, é possível vislumbrarmos
vários critérios para denominar a luta desses grupos, ao indi-
car que o conceito elaborado anteriormente à abolição formal
da escravatura, além de ampliado, foi também ressignificado1.
Constatam-se, ainda nessa luta, os atributos simbólicos, como
o caso do quilombo de Palmares e o líder Zumbi.
Sobre esses territórios2 étnicos, entendemos os “espa-
ços” cujas referências de uma possível origem comum estão
grafadas pelas construções materiais ligadas à identidade e ao
pertencimento territorial (ANJOS, 2007), e em que são va-
lorizadas as tradições culturais a partir de “normas de per-
tencimento explícitas, consciência de sua identidade étnica”
(MOURA, 2007, p.10).
Vale ressaltar ainda que a identidade desses grupos
étnicos pressupõe experiências coletivas compartilhadas por
meio de uma trajetória comum. Portanto, o quilombo não se
define pelo tamanho da comunidade ou número de membros.
(O’DWYER, 1995). Além disso, a constituição da identidade é
algo transitório, no tempo e no espaço, e se transforma duran-
te toda uma vida, aí consideradas as mudanças de seu contex-
to sociopolítico-econômico e cultural (HALL, 2003).
1 É nessa perspectiva que nos aproximamos dos seguintes autores: Alfredo Wag-
ner Berno de Almeida (1999); José Maurício Arruti (2006), Kabengele Munanga
e Nilma Lino Gomes (2006); Lourdes Carril (2006); Paul Elliott Little (2002)
ou ainda, para reflexões acerca da atualidade da luta quilombola no campo das
lutas jurídicas: Carlos Hasenbalg (1992), Luiz Fernando Linhares (2002) e Lílian
Cristina Gomes (2009).
2 As atuais leituras dessa autora sobre território, como categoria geográfica,

concentram-se no entendimento de que este, à priori, é um espaço que existe antes


mesmo da intenção humana de apoderar-se dele, mas que tomado por um ator,
concreta ou abstratamente, é territorializado. Assim, o território seria um espaço
onde se projeta trabalho, energia e informação (RAFESTTIN, 1993). Leitura seme-
lhante e complementar se encontra em Milton Santos (2000) e Lefebvre (1978),
que ao conceberem o território como não somente como uma base que sustenta
trocas materiais e espirituais, mas onde se encontra a identidade e o “sentimento
de pertencer àquilo que nos pertence”, ou seja, o território visualizado como espaço
vivido (SANTOS, 2000, p.96).

32  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
Hoje, as comunidades quilombolas urbanas ou rurais,
longe de serem reproduções do passado, realizam em seus ter-
ritórios um movimento de respeito ao passado e desenvolvi-
mento contemporâneo de busca do direito à terra, à cultura e
educação de qualidade. Portanto, não é mais possível ostentar-
mos uma visão estática e cristalizada no passado sobre os qui-
lombos ou calcada no binômio isolamento e segregação, salvo
no imaginário social. Segundo Carril (2003), os atuais estudos
sobre a formação quilombola têm sido realizados sob a pers-
pectiva aberta pelos estudos antropológicos, assim, não aban-
donam a problemática cultural nem a influência marxista.
Há autores que identificam uma visão de inversão ao
tratamento da questão quilombola, haja vista que, se no perí-
odo colonial, os quilombolas foram tratados como criminosos,
após a Constituição de 1988, na República, esses atores sociais
tornaram-se público-alvo de políticas de reparação aos danos
historicamente sofridos. Almeida (2002) relembra que isso
ocorre com limitações/restrições dada a dificuldade destes su-
jeitos terem efetivamente acesso aos direitos que lhes cabem.
O movimento social negro e quilombola denuncia o atual tra-
tamento recebido por vários outros coletivos sociais, pois ain-
da são, muitas vezes, taxados por alguns como “baderneiros” e
“aproveitadores” ao lutarem pela reparação aos danos sofridos
no passado e sua justa correção no tempo presente.
Hoje, os quilombolas lutam também contra os interes-
ses do mercado econômico que explora suas terras em busca
de recursos naturais e mercadorias, planeja implantar proje-
tos hidrelétricos e viários, realiza compra de terras e implanta
unidades de conservação. Obviamente a temática quilombola
se tornou cara ao país por transitar nas esferas das questões
raciais e de distribuição de terras. As terras brasileiras, desde
sua origem com o sistema de sesmarias, são um bem possuído

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  33
por poucos e, com a abolição da escravatura, em 1888, fazen-
deiros e políticos latifundiários se organizaram para impedir
que negros pudessem se tornar donos de terras.
Segundo Carlos Hasenbalg (1992), as tensões provo-
cadas pelo regime autoritário produziram a necessi-
dade da sociedade, através dos movimentos sociais,
articularem-se e refletirem sobre números temas, entre
eles a questão racial e da terra. Esses temas foram
suprimidos por mais de duas décadas e incorporados
à agenda nacional através do movimento social negro.
(ALVES, 2012, p.27).

Nesse sentido, aproximamo-nos também da atual


conjuntura de políticas públicas de ações afirmativas3 volta-
das para esses povos, que incorporam as leituras de âmbito
territorial, cultural e educacional. A construção de políticas
afirmativas para populações quilombolas é tributária do mo-
vimento social negro, notadamente o movimento quilombola,
e pressupõe a ideia de cidadania que ganhou corpus na luta
social que se inicia na década de 1970 e culmina em 1988, com
a vigência do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias4.
3 Joaquim Barbosa Gomes apresenta um conceito bastante abrangente, que de-
fine as ações afirmativas como: “um conjunto de políticas públicas e privadas de
caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate
à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir
os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a
concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como
educação e emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscrimi-
natórias  baseadas em lei de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam
por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de
caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm na-
tureza multifacetária e visam evitar que a discriminação se verifique nas formas
usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação
geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, en-
raizados nas prática culturais e no imaginário coletivo” (GOMES 2001, p.40 e 41).
4 Art. 68 – Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado


emitir-lhes os títulos respectivos.

34  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
E ainda é importante refletir a respeito da ideia redu-
cionista de comunidades vulneráveis, caracterizadas por sua
condição rural, que impede o reconhecimento de sua identi-
dade específica e, consequentemente, induz a opção política
por ações assistencialistas em detrimento das políticas de di-
versidade (MIRANDA, 2011).
Entre as várias políticas de diversidade voltadas às comu-
nidades quilombolas no Brasil, destacamos a Educacional, em
que, a partir do século XXI, as organizações governamentais,
não governamentais e sociais (entidades do movimento negro)
interessadas em debater e criar condições de enfrentamento
aos problemas raciais no Brasil, visualizaram na “3ª Conferên-
cia Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xe-
nofobia e as Formas Correlatas de Intolerância”, ocorrida em
Durban (África do Sul), a oportunidade de verem seus esforços
e reivindicações contemplados, especialmente aquelas vincula-
das ao reconhecimento de responsabilidade pelo governo bra-
sileiro em criar condições estratégicas de políticas de superação
do racismo, notadamente no âmbito escolar, em que os prejuí-
zos de ações discriminatórios e racistas se manifestam em fra-
cassos escolares das crianças negras, de acordo com pesquisas.
Destacamos aqui pressões sociais, notadamente do mo-
vimento social negro, em prol de melhores condições de acesso
da comunidade negra ao ensino público de qualidade, valoriza-
ção e reconhecimento das contribuições do negro na História
do Brasil, a introdução nos currículos escolares da História da
África e cultura afro-brasileira, a participação dos pesquisado-
res e militantes negros na elaboração dos currículos, e a sanção
no ano de 2003, da Lei no 10.639/03 (alterada para 11.645/08,
que dá a mesma orientação quanto à temática indígena)
A fim de regulamentar essa alteração da Lei de Diretri-
zes e Bases (LDB), o Conselho Nacional de Educação (CNE)

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  35
aprovou o Parecer CNE/CP 03/2003 que instituiu as Diretri-
zes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas a
serem implantadas pelos estabelecimentos de ensino público
e privado em todo país. Esse parecer é ratificado pela resolu-
ção CNE/CP 01/2004, a qual explicita os deveres dos sistemas
de ensino na implementação da Lei.
Esse conjunto de medidas legais, assim como as reivin-
dicações e propostas do Movimento Negro e Quilombola ao
longo do Século XX, pode ser considerado como instrumento
de implementação de políticas de ações afirmativas respon-
sáveis por reconhecer e valorizar a diversidade cultural no
âmbito da educação. Essas medidas têm, na escola, o lugar
de formação cidadã e a responsabilidade em reparar a pro-
dução e reprodução de imaginários coletivos de supremacia
e subordinação de um grupo étnico-racial em relação a outro.
Ou seja, visam transformar positivamente a ordem cultural,
pedagógica e psicológica alicerçadas no mito da democracia
racial que atinge particularmente os negros.
Ainda levando em consideração a realidade histórica e
política que envolve a questão quilombola, ou seja, seu his-
tórico de reivindicações, lutas e ações compreendidas pelos
movimentos sociais que não dissociam a necessidade de pos-
suírem uma escola com qualidade, em territórios étnicos, e
atendendo às suas especificidades, é que temos a recente in-
clusão da educação escolar quilombola como modalidade da
educação básica por meio do parecer do Conselho Nacional de
Educação/Câmara de Educação Básica(CNE/CEB) 16/2012 e
da Resolução CNE/CEB 08/2012 que instituem as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.
Estas terão por objetivo orientar os sistemas de ensino para
que eles possam colocar em prática a Educação Escolar Qui-

36  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
lombola mantendo um diálogo com a realidade sociocultural
e política das comunidades e do movimento quilombola.

Quilombo Barro Preto: o Reconhecimento Enquanto Mobilização


Coletiva

A comunidade de Barro Preto é reconhecida enquanto


comunidade remanescente de quilombo no ano de 2006 pela
Fundação Cultural Palmares (FCP). O processo de auto-de-
claração dessa comunidade é baseado no Decreto Lei no 4.887
de 2003, que “regulamenta o procedimento para a identifi-
cação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos”. E embora o decreto apresente um novo caráter
fundiário e dê ênfase à cultura, memória, história e territo-
rialidade, até o presente momento, a comunidade ainda não
conseguiu a titulação definitiva de suas terras.
Estas terras se encontram delimitadas por cercas de
arame colocadas por fazendeiros vizinhos que limitam/cer-
ceiam as possibilidades de permanência de muitos moradores
no interior da comunidade, já que não podem construir novas
moradias no quilombo, situação recorrente entre os diferen-
tes problemas territoriais das comunidades já reconhecidas
no Brasil.
O processo de reconhecimento e titulação de terras
pelos organismos brasileiros, além de moroso e burocrático,
tende a enfraquecer a luta das comunidades que buscam o di-
reito coletivo de suas terras, daí a necessidade de se articula-
rem e manterem diálogo com entidades estaduais e nacionais
do próprio movimento quilombola. Em Barro Preto vislum-
bramos ações coletivas que envolveram atividades empreen-
didas primeiramente pelo contato de uma moradora junto à

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  37
Pastoral Afro de Itabira, entidade filiada à Igreja Católica de
município vizinho, e posteriormente, novas ações pessoais de
moradores e líderes comunitários que conseguiram mobilizar
a escola em prol da necessidade de serem reconhecidos, e,
portanto, respeitados, por sua identidade étnica.
Destacamos dessa nova rede social em Barro Preto, o
envolvimento da escola e seu corpo docente, e também, ges-
tores da Secretaria Municipal de Educação, que buscaram
implantar, a partir de recursos públicos e acompanhamento
pedagógico específico, a Lei no 10.639/20035 e suas Diretri-
zes Curriculares para Educação das Relações Étnico-Raciais
na escola da comunidade no período de 2003 a 2008. E como
consequência dos novos conhecimentos a respeito da luta qui-
lombola, temos a reforma da escola local, a construção de uma
quadra de esportes, calçamento da rua principal e a criação da
Associação dos Quilombos Unidos de Barro Preto e Indaiá6,
cuja importância está em representar a comunidade nos as-
suntos político-jurídicos referentes ao reconhecimento e titu-
lação das terras. Nesse movimento, temos ainda a iniciativa
de moradores, com apoio da comunidade escolar, de criação
do Museu do Negro no interior da comunidade e que constitui
motivo de orgulho para a comunidade quanto a suas origens.
Toda essa articulação, ao envolver a escola, traz consigo
uma importante mobilização juntamente com os estudantes,
no sentido de desenvolver o espírito crítico e de valorização
da cultura local. O grupo de crianças, cuja faixa etária oscila
5 A Lei no 10.639/03 torna obrigatório o Ensino de História da África e Cultura
Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas de todo o país.
6 Indaiá é uma comunidade quilombola localizada no município vizinho de Antônio

Dias e distanciada cerca de sete quilômetros de Barro Preto. De acordo com Maria
Aparecida S. Tubaldini (2009), as duas comunidades possuem laços de parentesco.
De Indaiá, partiram famílias que contribuíram para a origem de Barro Preto. Vale
ressaltar que ambas possuem uma área de uso comum localizada em Indaiá, daí
a justificativa de criarem uma única Associação.

38  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
entre dez e onze anos, além de presenciar as manifestações
políticas no interior da comunidade, participou das ações cul-
turais com apresentações nos municípios vizinhos, e também
recebeu, na comunidade e no museu, a visita de outras esco-
las da rede de ensino do município. E, para compreendermos
suas experiências com o lugar de vivência, é que apresenta-
mos na sequência, a discussão conceitual sobre a categoria de
análise: Lugar, no campo da Geografia Cultural.

O Lugar na Geografia Humanística Cultural

A discussão do conceito de lugar dentro da perspectiva


humanística ganhou força na ciência geográfica principalmen-
te a partir da década de 1970. Porém, como nos lembra Amo-
rim, a geografia humanística possui marcos fundamentais no-
tadamente já firmados no final do século XIX com a evolução
dos estudos de percepção ambiental (AMORIM, 1999, p.140).
Apresentamos a seguir uma caracterização desse importante
conceito da Geografia Humana:
Segundo Tuan (1980) a percepção se dá através dos
sentidos (mecanismos biológicos), entretanto a cultura
influencia a forma de perceber, construir uma visão
de mundo e de ter atitudes em relação ao ambiente.
Descreve como as características culturais dos dife-
rentes grupos humanos interferem no modo de per-
ceber o ambiente, porém combinadas a elas, destaca
o importante papel da sensibilidade biológica humana
nesse processo perceptivo. Os seres humanos atribuem
significado e organizam o espaço de acordo com os
símbolos que constroem a partir de sua ­percepção
(KOZEL, 2010).

Assim, a categoria lugar é fundamentalmente uma


concepção ligada a valores subjetivos que podem estar ain-

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  39
da referenciados por aspectos localizacionais, classificatórios
ou determinando a presença de fenômenos, porém, nesta
nova abordagem, conferindo-lhe significados (KOZEL, 2001,
p.152). É relevante assinalar que o lugar poderá ser um bairro,
um povoado, um terreiro, uma casa, uma rua e outros.
[...] o lugar é uma unidade entre outras unidades ligadas
pela rede de circulação; o lugar, no entanto tem mais
substância do que nos sugere a palavra localização; ele
é uma entidade única, um conjunto “especial” que tem
história e significados. O lugar encarna as experiências
e as aspirações das pessoas. O lugar não é só um fato
a ser explicado na ampla estrutura do espaço, ele é a
realidade concreta a ser esclarecida e compreendia
sob a perspectiva das pessoas que lhes dão significados
(TUAN, apud HOLZER, 1999, p.70).

A experiência, por sua vez, implica na capacidade do ser


humano aprender a partir da própria vivência, atuando sobre
o dado e criando a partir dele – dado este não conhecido em
sua essência. O que significa que experienciar seja vencer os
perigos (TUAN, 1983, p.10)
Dessa forma, em Tuan o lugar é afetivamente recortado
e emerge da experiência, sendo um “mundo ordenado e signi-
ficado”. Antes, porém, existe o espaço que, sendo amplo e vul-
nerável, provoca medo e ansiedade e é desprovido de valores e
significação afetiva. Portanto, o espaço pode ser transformado
em lugar nas experiências cotidianas, enfim, torna-se lugar no
contato do eu com outros sujeitos (TUAN, 1983, p.61-65)
Nesta perspectiva, não se pode deixar de apresentar
dois conceitos dos estudos em percepção. Da relação dos ho-
mens entre si e com o meio físico, emergem as categorias con-
ceituais: topofilia e topofobia. O primeiro foi discutido inicial-
mente por Bachelard, e em seguida, por Tuan em 1979, e diz
respeito ao sentimento e afeição das pessoas para com o lugar.

40  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
Assim, relacionada à categoria lugar, a Topofilia seria:
o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. A
palavra topofilia é um neologismo, útil quando pode ser defi-
nida em sentido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos
seres humanos com o meio ambiente material. Estes diferem
profundamente em intensidade, sutileza e modo de expres-
são. Outro conceito importante seria: topofobia, que inver-
samente ao primeiro, decorre da ideia de paisagem do medo
(TUAN, 1980)
Com a geografia humanístico-cultural contemporânea
há assim o privilégio da subjetividade, das experiências, dos
simbolismos que por sua vez reduzem/relativizam a tendên-
cia homogeneizante que muitas teorias geográficas produzi-
ram sobre o espaço e sobre fenômenos sociais, tais como as
comunidades quilombolas e seu movimento de luta por terra
e reconhecimento de suas identidades.

O Uso de Mapas Mentais

A metodologia de interpretação do lugar que utiliza-


remos corresponde à abordagem da “cartografia cultural”
ou mapas mentais, que são representações do vivido, uma
expressão de nossa história com os lugares experienciados.
Ou seja, revelam como o lugar é vivido e compreendido pelas
pessoas. Enfim, é uma representação que se faz integrada, ao
englobar várias representações que colaboram para a inter-
pretação da realidade ao redor dos sujeitos.
O conceito de mundo vivido discutido pela fenomeno-
logia é importante no entendimento dos mapas mentais, pois
corresponde a uma análise que permite ir além das represen-
tações espaciais assumindo também caráter sociocultural em
suas interpretações.

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  41
Na elaboração dos mapas mentais, a ideia principal é
representada/posicionada no centro de uma folha de papel
em branco, utilizada na horizontal para proporcionar maior
visibilidade. E vale ressaltar que, embora utilizemos a ima-
gem enquanto representação do espaço desde a pré-história,
foi a partir da década de 60 (do século XX) que houve a bus-
ca por novas perspectivas de comunicação e preocupação em
desvendar essa imagem.
Os mapas mentais, portanto, são imagens construí­das
por “sujeitos históricos reais, reproduzindo lugares ­reais vivi-
dos, produzidos e construídos materialmente”. E que portan-
to, devem ser lidos como produtos em movimento, ou seja, não
estáticos e não apenas cartográficos7 (KOZEL E ­NOGUEIRA,
1999, p.240)
Nos mapas mentais, a imagem é apenas uma faceta da
representação. Em Kozel (2007) temos que essa representa-
ção é indissociável de tudo que envolve o sujeito e a lingua-
gem. Esta linguagem uma vez referendada por signos, que são
construções sociais e refletem o espaço vivido representado
em todas as suas nuances. E ancorando-se na sociolinguística
é que Kozel nos apresenta um referencial teórico-metodológi-
co para interpretação ou decodificação desses signos constru-
ídos socialmente.
A autora parte do pressuposto que o objeto de análi-
se é uma forma de linguagem e encontra em Mikhail Bakhtin
(1986) o referencial para análise dos signos (mapas mentais)
como enunciados. Assim, os mapas mentais enquanto cons-
truções sígnicas que requerem interpretação/decodificação
7 Ressaltamos que os mapas mentais são imagens que os homens constroem dos
lugares, paisagens e regiões. Assim houve na geografia uma tentativa de se trazer
para o campo das técnicas cartográficas estas representações, que na verdade
devem ser tratadas enquanto fatos cartográficos com significações subjetivas.
(AMORIM, 1999, p.141).

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estão inseridos em contextos sociais, espaciais e históricos co-
letivos, apresentando singularidades e particularidades (KO-
ZEL, 2007, p.114-115).
O método bakhtiniano estuda a linguagem e o homem
numa interação ou encontro dialógico. O ser humano é visto
aí como ser social, portanto, esta teoria leva em consideração
expressões ou interações entre a linguagem e a importância do
ser humano como elemento de expressão da sociedade. E é as-
sim que o signo, produzido dentro de um contexto que lhe dá
sentido, poderá ser decodificado como forma de ­linguagem.
Kozel (2007), em sua metodologia, entende que o ser hu-
mano utiliza signos para representar a realidade, de modo que
a construção destes não ocorre de maneira vazia, mas a partir
da consciência que geralmente coincide com a orientação se-
mântico-ideológica de sua realidade. O que, numa perspectiva
sociológica, significa dizer que os signos, quando retirados do
contexto real vivido transformam-se, apenas, em sinais.
Assim, a codificação dos signos que formam a imagem
à medida que compartilham valores, significados com comu-
nidades e redes de relações tornam-se uma representação não
apenas individual, mas coletiva, referendando um signo social
em comum (KOZEL, 2007).
Os aspectos de interpretação dos mapas mentais foram
realizados de forma qualitativa a partir da metodologia pro-
posta por Kozel (2007), que adaptada8, assim define os se-
guintes aspectos a serem avaliados:

1. Interpretação quanto à forma de representação dos ele-


mentos na imagem;
2. Interpretação quanto à distribuição dos elementos na imagem;
8A adaptação refere-se ao fato de cruzarmos informações contidas nos mapas
mentais com dados obtidos em campo, ou seja, entrevistas e oficinas.

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  43
3. Interpretação quanto à especificidade dos ícones;
yyRepresentação dos elementos da paisagem natural
yyRepresentação dos elementos da paisagem construída
yyRepresentação dos elementos móveis
yyRepresentação dos elementos humanos
4. Apresentação de outros aspectos ou particularidades.

Em termos práticos, propusemos, aos estudantes do


quinto ano da escola, a elaboração de dois desenhos da comu-
nidade e a participação deles em duas oficinas. As oficinas9, ao
precederem a confecção dos mapas mentais (desenhos, para
os estudantes), tiveram como objetivo criar um primeiro diá-
logo para tornarem-se um meio de estimular a memória dos
estudantes sobre suas experiências com o lugar em que vivem,
isto de maneira mais lúdica. Assim, ampliaram as possibilida-
des de interpretação dos mapas mentais.

Discussão dos Resultados

Entre as interpretações realizadas pela pesquisa elege-


mos algumas imagens que seguem abaixo agrupadas a partir
de seus aspectos ou particularidades, bem como informações
adicionais. Elas demonstram resultados da decodificação dos
mapas mentais, ou seja, da experiência das crianças quilom-
bolas com seu lugar de vivência:

9 A primeira oficina O Auto Retrato e a Identidade, foi realizada na escola da co-


munidade e nos apresenta notadamente a forte ligação entre os estudantes, quer
por algum parentesco ou por estarem juntos desde as séries iniciais, bem como
os traços fenotípicos, marco identitário, em autorretrato registrado em papel do
tipo craft. Já na segunda oficina Contação de História, foi possível conhecermos
a comunidade em caminhadas com as crianças, assim como um intenso diálogo
que apresentava hábitos e costumes comunitários.

44  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
A. Questão da água:

Andréia, 11 anos

Atualmente a população de Barro Preto é de aproxima-


damente 600 habitantes distribuídos em cerca de 150 casas.
Dentre os problemas territoriais, destacamos as dificuldades
no acesso e abastecimento de água dentro da comunidade. À
direita da imagem temos o principal reservatório de água cap-
tada em terras que já foram da comunidade.

B. Relações com o plantio:

Rosiane, 10 anos

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  45
A economia local se caracteriza por trabalhos sazonais
nas fazendas do entorno e trabalhos de capina em empresas
locais de recuperação e recomposição vegetal de áreas degra-
dadas. Já o trabalho de cultivo em áreas próprias da comuni-
dade, ou seja, na roça, sofreu retração motivada pelo confina-
mento territorial. Anteriormente, as práticas de cultivo eram
desenvolvidas nas serras, todo o entorno da comunidade.

C. Relações de vizinhança:

Brenda, 11 anos

Os fortes laços de parentesco existentes dentro da co-


munidade e as informações constantes nos mapas mentais
sobre o pertencimento territorial demonstram uma trajetória
histórica de Barro Preto que surgiu em meados do século XIX,
e onde por muito tempo, se realizavam casamentos apenas
entre os membros das famílias pertencentes à comunidade.

46  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
D. Relações com o urbano:

Eliel, 10 anos

Barro Preto embora com características rurais, é um


povoado situado na Região Metropolitana de Belo Horizonte-
-MG e sofre influências dessa grande capital. Equipamentos
característicos do urbano, embora recentes, se apresentam aí,
como elementos da paisagem construída.

E. Relações com os limites:

Luana, 10 anos

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  47
As fronteiras criadas a partir de porteiras não parecem
sugerir limitação na circulação das pessoas. Porém, ganham
dimensões de limites no uso dos espaços, isto devido ao con-
finamento territorial que a comunidade sofre pela ação siste-
mática de cerceamento dos fazendeiros do entorno.

F. Relações com o lazer:

Luis, 11 anos

A quadra de esportes, conquistada por meio de ações


populares da comunidade durante o processo de reconheci-
mento enquanto remanescentes de quilombolas, foi constan-
temente retratada nos mapas mentais, quer em termos de sua
escala de representação quanto por meio da intensidade de
cores com que foi representada nos “desenhos” (mapas).

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G. Relações com os projetos educacionais:

Izadora, 11 anos.

A escrita “Barro Preto Resgata sua História e tem Or-


gulho de sua Cor”, neste mapa mental é também a frase-título
de um dos primeiros projetos realizados na escola, num mo-
mento em que estudante, provavelmente, esteve envolvida
com as atividades escolares de valorização da cultura local.
A julgar pela data, ela estava no primeiro/segundo ano do
Ensino Fundamental.

Conclusões

A função dos mapas mentais, de acordo com Oliveira


(2002) está em tornar visíveis as construções do mundo real
ou da imaginação de seu autor, mas não diz respeito a lugares
imaginários; e, portanto, foi possível, através deles, nos apro-
ximarmos do lugar, “a dimensão mais concreta do espaço, da
qual ninguém pode desligar-se, por ser o espaço das relações
imediatas”. (KOZEL, 2001, p.154). Percebemos inclusive, nes-
sa dinâmica de trabalho, um evolução/atualização do conceito

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  49
de comunidade quilombola, direta ou indiretamente, a partir
do resultado dos mapas mentais que engloba: a valorização
de elementos materiais e simbólicos resultantes da autodecla-
ração; pertencimento territorial com consciência dos limites/
restrições ao domínio e usufruto desse território; afirmação
das relações de parentesco; as referências de identidade; e por
fim, a constatação de que os sujeitos investigados não se en-
contram isolados ou alheios às inovações que ocorrem no seu
entorno. E mesmo as ausências significaram aqui, de alguma
forma, um dado importante da realidade experimentada pelas
crianças de Barro Preto.
Vale ressaltar que a própria ação coletiva entre comuni-
dade, entidades do movimento negro e poder público que re-
sultaram no reconhecimento da comunidade de Barro ­Preto,
é representada por seus elementos materiais e simbólicos, e
em alguns casos perceptíveis na análise dos mapas mentais.
Entre as melhorias advindas do reconhecimento do povoado
como comunidade quilombola, temos a captação e distribui-
ção da água, que, além de ser uma questão conflitiva discutida
entre a comunidade, fazendeiros e poder público, mostrou-se
como uma experiência que gerou satisfação entre as crianças
que a retrataram registrando em seus desenhos com frequên­
cia as caixas de água sobre as casas da comunidade, além de
expressarem/ documentarem também a sua satisfação em ob-
terem um local de lazer, a quadra esportiva da comunidade.
Outras questões políticas foram apresentadas, tal qual
o atual confinamento territorial experimentado pelos ha-
bitantes de Barro Preto e suas consequências na vida deles.
Partimos da constatação de que o reservatório de água da co-
munidade situa-se em terras hoje não mais sob domínio dos
quilombolas e, além disso, a presença de cercas e porteiras
arbitrariamente instaladas pelos fazendeiros da vizinhança e,

50  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
por consequência, a dificuldade de se manter a reprodução de
roças em áreas para além desses limites, as quais eram terras
ocupadas por seus antepassados, foram retratados pelos estu-
dantes. Portanto são perceptíveis as noções que eles possuem
da potencialidades e limites de seu território, como também,
de pertencimento ao Lugar, ou seja, “o fato e o sentimento de
pertencer àquilo que nos pertence”, a identidade. (SANTOS,
2001, p.96).
Outra importante vivência apresentada pelas crianças
é o fato de identificarem os moradores do lugar integrantes
de uma família extensa, corroborando com a ideia de que as
comunidades quilombolas no Brasil “[...] são comunidades
negras rurais habitadas por descendentes de escravos que
mantêm laços de parentesco” vivendo de “[...] culturas de sub-
sistência em terra doada/comprada/secularmente ocupada”
(MOURA, 2007, p.10). No caso de Barro Preto, as terras foram
compradas por ex-escravos das fazendas do atual entorno da
comunidade e trazidos do Rio de Janeiro – RJ (diferentemen-
te, portanto, da ideia generalizada de fuga de escravos, recor-
rente no imaginário social brasileiro sobre os quilombos).
A luta quilombola e do próprio movimento negro local,
em busca da construção de uma escola que seja realmente di-
ferenciada para suas crianças e adultos, ou seja, que respeite
as diferenças étnicas sem, contudo, hierarquizá-las, foi expli-
citamente verificada no conteúdo de apenas um mapa mental,
na inscrição “Barro Preto Resgata sua História e tem Orgulho
de sua Cor”. Esta escrita na parte central do mapa diz respeito
ao nome do primeiro projeto pedagógico realizado na escola e
remete a uma leitura de consciência da identidade étnica, des-
pertada por projetos que buscaram quebrar o silêncio produ-
zido socialmente pelo racismo ao trazer a afirmação positiva,
e ruptura com as experiências de muitos adultos quilombolas,

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  51
que ser negro é sim um motivo de orgulho. Assim, percebemos
também que uma proposta antirracista na escola só encontra
sentido quando o racismo é desmistificado, pois o silêncio re-
força e perpetua as suas conseqüências (GOMES, 2005, p.51).
Embora se trate de um trabalho que para ser eficaz é de dura-
ção prolongada, e ademais, não pontual, localizado.
Percebemos ainda que essas comunidades não se encon-
tram imobilizadas em relação ao que se passa ao seu redor,
e, nessa perspectiva, gostaríamos de enfatizar o contato dessa
comunidade rural com o urbano e seus aparatos. Portanto, não
é difícil para Barro Preto conceber em seu interior a valori-
zação das tradições culturais dos antepassados, as normas de
pertencimento, acompanhadas simultaneamente da vontade
de ter acesso a novas tecnologias e outros valores sociocultu-
rais, que em nossa ótica, devem ser vistos como “processos que
não devem ser negados, eles existem, e ao contrário, devem
ser compreendidos enquanto direitos” (ALVES, 2012, p.56).
Portanto, diferentemente do imaginário social para o qual os
quilombolas estariam “congelados” no tempo (em um passa-
do remoto e isolados), eles se atualizam culturalmente e com
essas novas experiências adquiridas, lutam em busca de con-
cretização de direitos, dentre eles, territoriais e educacionais.
Já o importante dado que nos coube traduzir em “pro-
dução de ausências” liga-se à seguinte constatação: embora a
escola tenha profunda importância no processo de reconhe-
cimento da comunidade, ela atualmente não desenvolve um
trabalho que sustente práticas e ações determinantes/ signi-
ficativas para as crianças em que o processo educativo formal
dê sentido aos conteúdos, à aprendizagem, ao conhecimento,
extrapolando os muros institucionais. Nos mapas mentais
elaborados pelos estudantes há poucos registros da existên-
cia da escola no território quilombola. Contraditoriamente, a

52  d ALINE NEVES RODRIGUES ALVES • JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS • NILMA LINO GOMES
estrutura escolar foi reformada e, diferentemente das cons-
truções comunitárias locais, ela tem um imenso muro de cor
laranja, possui o único telefone público de Barro Preto, com-
porta o museu criado pelos moradores e está localizada na rua
principal da comunidade.
Outra constatação que emergiu do trabalho sobre as au-
sências nos resultados dos mapas mentais situa-se no plano
das relações humanas, salvo aquelas estabelecidas entre as
próprias crianças. Curiosamente, há poucos adultos em suas
imagens (representações nos mapas mentais). Pelas investi-
gações da pesquisa, percebemos que possivelmente essa re-
presentação tenha relação com o próprio distanciamento das
crianças da comunidade com o atual mundo adulto. ­Sabe-se
que os adultos (assim como os jovens) estão imersos no ­mundo
do trabalho, e mesmo da escola (nas séries ­sequenciais do En-
sino Médio), e por isso ficam fora da comunidade, durante os
dias da semana. No seu cotidiano, os cuidados das crianças
ficam a cargo dos mais velhos e da escola e, portanto, são pou-
cos os adultos que permanecem cotidianamente no interior
das casas, e talvez, por isso, nos mapas mentais eles são repre-
sentados apenas nas janelas das casas.
Tais resultados nos aproximam, em certa medida, do
conceito de comunidade quilombola elaborado para o aten-
dimento do Artigo 68 da ADCT, em que se busca conjugar a
referência da identidade ao uso territorial tentando, portanto,
superar as ideias clássicas a respeito do tema. Pelo Decreto
Lei no 4.887 do ano de 2003, temos:
remanescentes das comunidades dos quilombos os gru-
pos étnicos raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade
negra relacionada com formas de resistência à opressão
histórica sofrida. (BRASIL, 2003).

COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  53
Concluímos assim que os elementos que configuram, na
atualidade, uma comunidade quilombola e a rede de comuni-
cação que a mesma experimenta em busca de direitos geram
ou intensificam outros elementos simbólicos e materialmen-
te construídos, que podem ser assimilados pelas crianças em
diferentes graus. E nessa pesquisa eles foram reproduzidos e
puderam ser passíveis de decodificação (não sem o auxílio de
uma pesquisa que busca revisar conceitos e com o auxílio de
diálogos oportunamente estabelecidos in loco entre o pesqui-
sador e os sujeitos da pesquisa).
Portanto, o significado de comunidade quilombola, em-
bora não seja objetivo da pesquisa, pôde ser verificado e anali-
sado pelos mapas mentais, sendo possível inclusive nos aproxi-
marmos do lugar de vivência experimentado pelas crianças. É
válido procurarmos resgatar, por fim, os postulados do ­grande
geógrafo sino-americado Yi-Fu Tuan quando ele demarca que:
[...] muitos lugares, altamente significantes para certos
indivíduos e grupos, têm pouca notoriedade visual para
seus visitantes. São conhecidos emocionalmente, e não
através do olho crítico ou da mente. (TUAN, 1983).

Daí os mapas mentais terem atraído o interesse, princi-


palmente, de educadores, psicólogos, antropólogos, urbanis-
tas, e evidentemente, também de geógrafos.

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COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO LUGAR COM O USO DE MAPAS MENTAIS d  57
DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA:
MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE

Luís Tomás Domingos

Introdução

Conforme as nossas pesquisas de campo efetuadas em


Moçambique, constatamos que o impacto da educação dita
formal, com fundamentos ocidentais, tem desempenhado um
papel ambíguo nas culturas africanas.
A história humana foi marcada por choques de culturas
no processo de educação e hoje se acentua a crise epistemoló-
gica e paradigmática sobre a educação. Isto ocorre no contex-
to onde as sociedades ditas modernas se preocupam cada vez
mais em ampliar o acesso à educação com o pretexto de dimi-
nuir os índices da exclusão social. No entanto, a persistência
de diversos questionamentos é frequente: que tipo de educa-
ção se pretende instituir nas nossas sociedades multiculturais
onde as identidades culturais são diversas? Até quando as lín-
guas dos colonizadores – assumidas como línguas oficiais dos
países africanos após as independências – serão consideradas
como parâmetros para mensurar o “nível de alfabetização”
de povos que não as praticam, mas leem e escrevem em suas
línguas maternas? Como ensinar na África, tendo em vista a
característica da oralidade das sociedades africanas? Como
explicar os conceitos da educação, da ancestralidade, sabedo-
ria, conhecimentos e religiosidade africanos nas sociedades
ocidentais e vice-versa? Como integrar as tradições culturais
africanas, suas línguas, ritos etc. nas escolas oficiais da África?
É possível um povo se apropriar da técnica moderna e suas
formas especificas de organização sem renegar a sua cultura

58  d
tradicional? Uma cultura não europeia, diante do processo de
globalização, pode se modernizar sem nada alterar da sua for-
ma de ver e construir a sua própria história, cultura e valores?
Enfim, o setor da educação formal está habilitado, capacitado
e preparado para responder a estes múltiplos desafios? Nós
consideramos essas e outras preocupações como desafios da
educação em Moçambique e na África em geral.
Na sociedade moderna, onde sistemas educativos for-
mais tendem a privilegiar o acesso, muitas vezes, ao conheci-
mento escolar, em detrimento de outras formas de saberes e
aprendizagem, é essencial conceber a educação do ser huma-
no de uma maneira integral.
O conhecimento de outras culturas, outras formas de
educação, interfaces de saberes, o confronto através do diálo-
go e de trocas de argumentos, é um dos meios indispensáveis
para enfrentar os desafios da educação.
Esta perspectiva deve inspirar e orientar as reformas
educativas, tanto na elaboração de programas quanto na defi-
nição de novas políticas pedagógicas que respeitem as diver-
sidades socioculturais. A nossa reflexão tem como objetivo
ultrapassar a visão puramente instrumental da educação for-
mal, considerada hoje como a via obrigatória para obtenção
de algo (diplomas, ascensão e status social, aquisição de capa-
cidades diversas com fins econômicos etc).
No mundo da educação tradicional africana, diversos
elementos do Cosmos estão em função do homem. O homem
está no centro do universo. E é nesta dinâmica que o negro
africano se organiza e vive a totalidade das realidades visí-
veis e invisíveis. E a razão da existência do homem na cultu-
ra africana se realiza no seu equilíbrio consigo mesmo, com
a sociedade, a natureza e o universo. Trata-se de um esforço
permanente de integração das energias do Cosmos no circuito

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  59


da força vital do ser humano e a sua participação integral e to-
tal no universo (DOMINGOS, 2005). Neste contexto tudo está
interligado numa dimensão participativa e solidária. E a edu-
cação do munthu, ser humano, se desenvolve acompanhada
por etapas de vida e rituais precisos e necessários, conforme
os preceitos de cada tradição cultural africana.
Dentro das diversidades culturais étnicas, existe uma
unidade cultural. No mundo africano, ao lado do visível e apa-
rente das coisas, há sempre um aspecto invisível e enigmático.
A concepção da educação tradicional se fundamenta na força
vital, no principio da vida e na interação dessa em diferen-
tes etapas da vida humana: nascimento, iniciação, casamento
e morte. É neste contexto que a educação na cultura africa-
na participa de uma forma dinâmica, marcante, pertinente e
contribui para compreensão da dimensão simbólica e esotéri-
ca do homem: o mistério humano. Enfim,
a educação tradicional Africana visava a integração
harmoniosa do individuo no grupo social, conforme
o seu status que lhe consignava, seu sexo, sua posição
de nascimento, função da família (PREVOST e LAYE,
1968, p.115).

A escola é uma grande família onde se faz a aprendiza-


gem da vida. Ela é uma casa aberta sobre o mundo onde as
crianças ricas ou pobres se juntam e partilham todos os seus
sentidos da felicidade. “Todos os dias os ouvidos vão à escola”,
(Provérbio Bambara/Mali). E “cada dia a orelha ouve o que
não tinha ainda entendido”. (Provérbio Malinké).
No processo da educação tradicional africana, as pesso-
as idosas são consideradas como os detentores privilegiados
da sabedoria da ancestralidade e são considerados como au-
tênticas bibliotecas vivas nas quais as prateleiras estão ligadas
entre si por um laço invisível. “Na África, velho que morre é

60  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


uma biblioteca que se queima e perde.” (Provérbio Africano)
E as fichas imateriais do catálogo de tradição oral são máxi-
mas, provérbios, contos, lendas mitos etc. que constituem ora
um esboço a ser desenvolvido, ora um ponto de partida para
narrativas didáticas antigas ou improvisadas.
A filosofia de educação africana está confirmada por ca-
nais de transmissão práticos e na dimensão iniciática.
As oficinas artesanais, por exemplo, eram verdadeiras
escolas tradicionais, onde se ensinava não apenas uma
tecnologia, mas todo um conjunto de conhecimentos
científicos e culturais ligados ao oficio. O aprendiz de
ferreiro, por exemplo, que trabalhava silenciosamente
ao lado de seu mestre, tinha acesso, através do sim-
bolismo dos instrumentos da forja, a uma explicação
particular do mundo e do papel do homem no univer-
so, papel fundado na ideia  de responsabilidade e de
interdependência de todas as coisas. Ele recebia, além
disso, um conjunto de conhecimentos concretos sobre
geologia, mineralogia, botânica, e toda uma educação
do comportamento. As escolas artesanais tradicionais
ferreiros, tecelões, sapateiros, trabalhadores da madei-
ra, narradores..., reunidas em torno dos mestres, eram,
assim, lugares de transmissão de toda uma cultura.
(HAMPATE BA, 1981).

A educação tradicional africana não tem o mesmo sis-


tema do ensino europeu. Tradicionalmente, a própria vida era
educação. O jovem era educado desde criança a aprender a ou-
vir e aprofundar os conhecimentos que vinha recebendo desde
sua iniciação, na adolescência. Muitas vezes os jovens realiza-
vam longas viagens iniciáticas e as investigações e extensão do
aprendizado dependiam da destreza, da memória e, sobretudo,
do caráter do jovem. Se o jovem era cortês, simpático e serviçal,
os velhos lhes contavam segredos que não contariam aos ou-
tros, pois diz o proverbio africano: “O segredo do velho não se

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  61


compra com dinheiro, mas com boas maneiras.” Assim a edu-
cação dura toda a vida da pessoa. Como dizia Hampathe Ba:
Pode-se dizer que o oficio, ou a atividade tradicional
[na África], esculpe o ser do homem. Toda a diferença
entre a educação moderna e a tradição oral encontra-
-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por
mais útil que seja, nem sempre é válido, enquanto o
conhecimento herdado na tradição oral se encarna na
totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas
de oficio materializam as Palavras sagradas, o contato
do aprendiz com o oficio obriga a viver a Palavra a cada
gesto. (HAMPATE BA, 1972, p.199).

A educação africana tem seus valores positivos e seus


limites: a ausência da escrita, o excesso de culto à memória e
introversão exagerada, a sua insuficiência de fazer face a uma
extensão na transmissão e mobilidade de conhecimentos, as
dificuldades dos métodos de aprendizagem e assimilação de
conhecimentos; o limite do processo de transmissão da ora-
lidade diante das exigências cientificas da cultura contempo-
rânea, pós-modernidade marcada pelo processo de globaliza-
ção. Como observa M’Bokolo (2009, p.48):
Ao lado destas dificuldades técnicas, [...], há problemas
de fundo muito mais árduos que poderíamos esque-
maticamente formular desta maneira: de qual (ais)
historia(s) as tradições orais são elas “fontes”? Será de
resto necessário só as considerar como “fontes”? Só nos
falam do passado ou também – e talvez – do presente?
Um dos numerosos exemplos que mostram a imperio-
sa necessidade do rigor e da delicadeza com as quais
é necessário manipular estas fontes é das narrativas
de origem tão abundantes em todas as áreas culturais
e políticas Africanas. A identidade e a posição social
das pessoas participando na cadeia de transmissão do
testemunho são tão importantes como o conteúdo do
próprio testemunho.

62  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


A filosofia da educação africana sempre foi vista com re-
servas e excluída dos fundamentos da educação ocidental, da
educação considerada “universal”. Todo o pensamento filosó-
fico e intelectual africano era considerado primitivo. O termo
“primitivo’ foi, ao longo de tempo, associado a “selvagem” e/
ou “bárbaro”. Em relação aos povos europeus, ditos “civili-
zados”, as populações (não europeias) colonizadas passavam
pelo processo de evolução. Esses povos não europeus, por con-
seguinte, eram primitivos, selvagens, animistas, praticavam a
magia, etc. (MORGAN, 1877; TYLOR, 1871; FRAZER, 1890).
Essas ideias evolucionistas foram advogadas socialmente por
Spencer através da doutrina “Darwinismo social” e todas suas
consequências nefastas para a humanidade. E,
[...] ao longo da história colonial a Europa voluntaria-
mente considerou os africanos do sul do Saara como
pagãos, selvagens, homens primitivos, naturais vivendo
no estado original da espécie humana (JAHN, 196, p.17).

Na antiguidade grega se designava por bárbaro tudo


o que não fazia parte da cultura helênica. No Renascimento
(séculos XVII e XVIII), se consideravam os naturais ou selva-
gens, opondo deste modo a animalidade à humanidade. O ter-
mo primitivo triunfou no século XIX, enquanto na época atual
se opta preferencialmente pelo termo subdesenvolvido. Essas
conotações pejorativas e etnocêntricas foram compartilhadas
por muitos autores e intelectuais da época posterior. Como
exemplo, podemos citar o Conde de Gobineau (1963, p.369)
que resume as características da “raça” negra na sua famosa
obra Essai sur l’inégalité des races humaines:
A variedade melaniana é a mais humilde e sem movi-
mento embaixo da escala. O caráter de animalidade
emprenhada na forma da sua bacia lhe impõe o seu
destino, desde o instante da sua concepção. Ele não será

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  63


jamais do ciclo intelectual o mais restrito. É, portanto,
um bruto puro e simples, que este negro com fronte
estreita e fugitiva, que traz na parte do meio do seu
crânio, os índices de certas energias grosseiramente
potentes (poderosos). Se estas faculdades pensantes são
medíocres ou mesmo nulas, ele possui no seu desejo, e
na sua vontade, uma intensidade, muitas vezes terrível.
Vários dos seus sentidos são desenvolvidos com o rigor
desconhecido às outras raças: o gosto e principalmente
o odor.

Ideias que serão retomadas e expressas nos mesmos


termos pelo filosofo alemão Hegel, que em sua obra La Raison
dans l’Histoire: Introduction à la Philosophie de l’Histoire,
nos descreve o horror que sente frente ao estudo da natureza
que é a desses povos, que jamais ascenderão à “história” e à
“consciência de si”. Ele prefere falar de “sociedades sem escri-
ta”, o conceito que oferece oposição à historia:
A África longe de ter a história, ficou fechada, sem o
contato com o resto do mundo, é o país de ouro, fechado
sobre ele mesmo, o país da infância que para além do
dia da história consciente é envolvido na cor da noite.
(HEGEL, 1965, p.39).

A África, ao longo dos séculos, foi considerada despro-


vida de história, conforme os princípios da filosofia da histó-
ria e da historiografia ocidental. Por conseguinte, a África é
uma criação do ocidente. Ao longo de séculos, a relação entre
a Europa e a África foi uma relação de poder, de domina-
ção, de graus variados de exploração, e de complexidade de
hegemonia, sobretudo, pelo não reconhecimento do sistema
da educação do outro. Sobre este aspecto, Mudimbe (1988),
apresenta: “a invenção da África: gnosis, filosofia e a ordem
de conhecimento.” Aliás, como constata M’Bokolo (2009,
p.45-46):

64  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


As fontes escritas de todas as origens- egípcias, gregas,
latinas, chinesas, árabes, européias... – de que certos
historiadores tinham feito a condição sine qua non
da produção de obras históricas, se revelam também
difíceis de explorar, ou até enganadoras. A fascinação
exercida pelos mirabila [sic.] – a respeito dos quais as
fontes da Antiguidade clássica oferecem o primeiro
exemplo conhecido – prolongou-se através dos escri-
tos árabes e europeus, até o fim do século XIX e talvez
mesmo até os princípios do século XX. Qual é a historia
que semelhantes fontes permitem estudar? Trata-se
da história da África ou antes a história da percepção
da África pelos outros, percepção da qual sabemos que
não cessou de reproduzir preconceitos e estereótipos ao
mesmo tempo que ia criando novos?

Se o contato entre Europa e África tivesse sido feito


num contexto “igualitário”, e se existissem objetivos e proje-
tos comuns, provavelmente os preconceitos e a hostilidade la-
tente poderiam ser apaziguados e relativizados, dando lugar a
uma cooperação sincera e humana. Nessa perspectiva, a nos-
sa proposta de educação se prioriza na descoberta progressi-
va do Outro como o ser humano. E esta educação exige duas
vias complementares. Num primeiro momento, a descoberta
progressiva do Outro, através de imersão prolongada na sua
cultura. Num segundo momento, e ao longo de toda vida, a
participação em projetos comuns, que parece ser um método
eficaz para resolver conflitos latentes.
A tentativa de estabelecer concordâncias dos conceitos
de escola e educação na África com as categorias culturais oci-
dentais arrisca deixar de fora a essência da educação na visão
do mundo africano. Numa série de estudos, Foucault resta-
beleceu uma espécie de “genealogia do sujeito moderno.” Ele
aborda um novo tipo de poder, que designa de “poder disci-
plinar”, que se desdobra ao longo do século XIX, chegando ao

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  65


seu desenvolvimento culminante no século XX. O poder disci-
plinar se preocupa em primeiro lugar, com a regulação, a vigi-
lância e o governo da espécie humana ou de populações intei-
ras e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo. Seus locais
são aquelas novas instituições educativas ou reeducativas que
se desenvolveram ao longo do século XIX e que “policiam” e
disciplinam as populações modernas- oficinas, quartéis, esco-
las, prisões, hospitais, e assim por diante (FOUCAULT, 1975).
O objetivo destas instituições ditas educativas consiste
em produzir “um ser humano que possa ser tratado como um
corpo dócil” e obediente (DREYFUS e RABINOW, 1982, p.135).
Para o Africano, a educação não é apenas tornar dócil,
obediente e obter aquisições de diplomas, ter o “domínio”
técnico e cientifico sobre a natureza, promover o desenvolvi-
mento da “razão” face à realidade contingente etc. A educação
Africana se fundamenta no Ser Humano. Numa perspectiva
dinâmica de encontrar uma harmonia, o equilíbrio, justiça,
uma coerência, uma compatibilidade global de todas as dis-
ciplinas face ao Universo (KAGAME, 1976). É na educação
que se integra Ujamaa, o desenvolvimento e a fraternidade
entre os homens (NYERERE, 1968). É com a educação que
o munhtu, ser humano, diante da força vital, encontra uma
harmonia consigo mesmo, com a sociedade e com o universo
(TEMPELS, 1965).
Uma abordagem epistemológica do pensamento africa-
no: na confiança em si surge a partir da confiança do conhe-
cimento de si mesmo” (KI-ZERBO, 1978). E a alteridade bem
compreendida é a referência crítica ao passado e a importân-
cia insubstituível de pesquisa que se apoia na sabedoria an-
cestral africana.
A pesquisa faz parte integrante do desenvolvimento,
como uma das dimensões do direito ao desenvolvimento, mas

66  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


também como a etapa estrutural de toda mudança positiva.
Sem a pesquisa endógena, não há desenvolvimento endóge-
no. Não há progresso material, sem a reflexão teórica, sem
a ciência e consciência prática. Neste sentido, a educação se
torna um fator primordial, no sentido pleno do termo. Cabe à
educação fornecer a bússola e os mapas que permitam nave-
gar através de um mundo complexo, constantemente agitado
e em transformação permanente. Nessa visão de educação,
uma resposta puramente quantitativa à necessidade insaciá-
vel – uma abordagem escolar cada vez mais pesada – já não é
possível nem mesmo adequada.
A escola [ocidental] sozinha não engloba toda a dimen-
são integral da educação do homem. A escola é apenas
um dos meios (oportunidades) dentro de tantos outros,
certamente organizada, mas não talvez a melhor, sobre-
tudo na África (KI-ZERBO, 1978, p.642).

Não basta que cada homem acumule, no começo da


vida, uma determinada quantidade de conhecimentos da qual
possa abastecer-se indefinidamente. É necessário, desde o
início, e em todas as fases de vida explorar, enriquecer todas
as dimensões da existência da vida humana e se adaptar a um
mundo de mudanças.
Uma abordagem sistemática sobre a escola, educação
no mundo, na África, e em Moçambique passa, necessaria-
mente, pela integração sociocultural entre as teorias e as prá-
ticas pedagógico-educativas, que possam responder ao desen-
volvimento integral e harmonioso do ser humano.

O Impacto da Educação Colonial na África

A análise da educação colonial permite compreender


a difícil tarefa de ruptura e/ou continuidade com o passado

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  67


que foi preciso empreender após a independência das antigas
colônias europeias na África. No período colonial, os coloni-
zadores europeus tinham acesso ao ensino. As crianças e os
jovens africanos negros, para frequentar a escola, deveriam
ser assimilados, ou seja, eles tinham que pertencer às famílias
que comprovadamente possuíssem hábitos europeus “cultura
civilizada”: saber ler e escrever a língua portuguesa, deixar de
falar “dialetos” (as línguas africanas), ser batizado cristão, não
ter práticas culturais africanas (“primitivas” e “selvagens”) e
mostrar “bom comportamento”. Assim, em torno de 0,3% da
população africana era considerada assimilada ou “evoluída”
e aos demais, 99,7%, estava vedado o acesso às escolas. O afri-
cano seduzido pelas “vantagens” da civilização ocidental, se
adaptou a novas formas de existência com objetivo supremo
de se tornar, senão um europeu, ao menos proprietário par-
cial ou da parte inteira de seus bens, desses instrumentos e
desse prestígio que se fundamenta à sua vista a superioridade
do branco. Segundo Fanon (1991, p.91):
O que eles [colonizados] exigem não é o status do colono,
mas o lugar do colono. Os colonizados, na sua imensa
maioria, querem a fazenda do colono. Para eles não
se trata de entrar em competição com o colono. Eles
querem o lugar do colono.

Como conta o escritor africano Kane (1961, p.44-45):


Ha quase cem anos, o nosso avô, e ao mesmo tempo
todos os habitantes deste país, foram acordados numa
manhã pelo clamor que subia no rio. Ele [o avô] pegou
o seu fuzil e seguido pela elite se precipitou sobre os
novos que chegaram. O seu coração era intrépido e
apegado mais ao preço de liberdade do que à vida. O
Nosso avô, assim como a sua elite foram derrotados.
Por quê? Como? Só os novos que chegaram sabem. E
é preciso lhes perguntar, é preciso ir aprender na casa

68  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


deles a arte de vencer sem ter razão. De mais a mais,
o combate ainda não terminou. A escola estrangeira
é a forma nova de guerra que nos fazem os novos que
vieram, e é preciso enviar a nossa elite, e esperando
lhes expulsar do nosso país. E é bom que a nossa elite a
proceda. Se há um risco, basta uma elite melhor e bem
preparada para fazer face, porque está apegada a ela
mesma. Se é bom disparar; é preciso que a elite seja a
primeira a fazer. (Grifo nosso).

Um dos grandes projetos do governo Colonial na África


era de assimilar os povos colonizados à civilização europeia
pela educação. Como se situavam os Africanos face ao sistema
educacional colonial? Foi na ambiguidade de comportamento
frustrante, de ser e/ou não ser africano, que muitos profes-
sores e alunos africanos se encontravam na época. Este era o
dilema de muitos africanos. Eis o testemunho de Laye (1953,
p.84-85) que expressa o sentimento dos alunos que frequen-
tavam a escola colonial:
Nós procurávamos não chamar a atenção, ou chamar
a atenção o menos possível do professor. Pois nós
tínhamos o medo constante de sermos enviados ao
quadro-negro. Esse quadro era o terrível pesadelo: o
seu reflexo sombrio refletia muito pouco o nosso saber,
e este saber era muitas vezes muito pequeno e até não
o havia, ele era frágil, e o saber vazio circulava em nós.
Para evitar receber a palmatória e ter nota alta e enfim
ter o diploma, o certificado de estudo, então era preciso
repetir decorado o que o professor dizia.

Eram poucos africanos que conseguiam estudar e ob-


ter os tais diplomas. Aprendiam a se comportar como colonos
europeus. Tornavam-se assimilados, evoluídos (les évolués), e
a eles eram oferecidos os postos de trabalho mais insignifican-
tes. Eram então considerados africanos civilizados e tinham
direito de ter alguns privilégios do sistema colonial.

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  69


No caso de Moçambique, o país herdou um legado colo-
nial pesado em quase 500 anos de dominação: o colonialismo
apenas conseguiu converter 7% de população indígena para o
mundo da leitura e escrita. E é importante lembrar que, todo
africano colonizado era considerado indígena. Uma minoria
de africanos que tivera o privilégio de ter acesso à escola na
época colonial, recebera uma educação que era a negação dos
valores culturais de tradição africana, acusada de primitiva,
obscurantista, supersticiosa etc. A educação colonial era, por
conseguinte, o veiculo de dominação, de manutenção do sis-
tema colonial português.
As políticas governamentais para educação moçam-
bicana definidas em 1929-1930 eram fundamentadas numa
base de discriminação racial e religiosa. A legislação de 1929
proibia o uso de línguas vernáculas (línguas maternas locais)
para o ensino, impondo a obrigatoriedade da língua portu-
guesa. E regulamentava a construção de escola e seus anexos,
formação de professores para as escolas indígenas (africanas),
impunha limites de idade de acesso às escolas primarias e in-
ternatos para a população indígena. Somente era permitida a
religião cristã, de preferência católica.
O uso da língua portuguesa como um meio de imposi-
ção e dominação ideológica e transmissão de valores cultu-
rais coloniais foi sempre uma regra fundamental no sistema
educacional. Assim, reforçando os decretos de 1929, – que
regulamentavam o exercício das missões religiosas e diversas
confissões e nacionalidades e das escolas de ensino primário
(diplomas legislativos n° 167 e 168/1969)-, o Estatuto missio-
nário (art. 16) reafirmava que nas escolas missionárias para
indígenas, o ensino de língua portuguesa era compulsório.
(FERREIRA, 1967, p.7). A praticada educação separada entre
o ensino primário para a população indígena – criada pelo di-

70  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


ploma legislativo n°238/1930 –, e para os cidadãos foi oficial-
mente introduzida em 1941, quando a educação para indíge-
nas foi entregue à responsabilidade da Igreja católica. (RAUL,
1995). Para os europeus, os não negros (indianos e mulatos)
e negros com o estatuto de assimilados, a escola tinha planos
e programas semelhantes aos lecionados em Portugal. Para a
população africana, considerada indígena, estava reservada a
educação rudimentar. A partir de 1956 foi instituído o ensino
de adaptação.
Esta realidade ilustra o papel desempenhado pela edu-
cação na África de maneira geral e na realidade moçambica-
na, em particular, e por um processo de assimilação de uma
ordem social colonial. As categorizações étnicas, raciais e re-
ligiosas foram incentivadas pelo sistema de educação colonial
dentro do preceito de dominação “dividir para reinar”.
A educação colonial, por outro lado, criava o desenvol-
vimento de competência, o alargamento do universo cultural
e uma abertura para novas visões e valores. Nesta dinâmica
contraditória, permitia aos jovens africanos desenvolver a
consciência crítica, analisar o mundo que os rodeava e con-
sequentemente compreender melhor a realidade social e po-
lítica. Reforçava a tomada de consciência da fronteira entre
o pertencimento e o não pertencimento, entre o colonizador
e o colonizado, o dominante e o dominado. Os estudantes se
conscientizavam diante de uma sociedade colonial onde a re-
ligião, a língua e a educação padronizavam as diferenças. O
cristianismo e o colonialismo eram aliados e impuseram no-
vos valores morais e culturais às sociedades africanas provo-
cando choques de culturas e crises de identidades.
Alguns moçambicanos, face ao processo de discrimina-
ção, aprenderam a construir as suas estratégias de resistên-
cias, negociações e sobrevivências em relação ao sistema colo-

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  71


nial racista. E outros se resignaram, assumindo formalmente
o estatuto de assimilados à cidadania portuguesa alegando ser:
[...] para evitar o trabalho forçado, o serviço militar
para nativos e uma total ausência de direitos civis [...]
bem como para assegurar pelo menos um futuro menos
degradante para os seus filhos (HONWANA, 1985, p.72).

Depois da Independência de Moçambique, em 1975, o


povo foi convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo,
o subdesenvolvimento, a superstição, a ignorância etc. O povo
observa que a vida é uma luta permanente. Nesta conjuntura,
a guerra não é uma batalha, mas uma sucessão de combates
locais nos quais, de maneira real, nenhum deles é decisivo ou
determinante. Por outro lado, observa-se que os jovens países
africanos abordam com uma facilidade perigosa os conceitos
da nação para etnia, de Estado para tribo e o discurso da uni-
dade nacional prevalece, aparentemente, como sendo politi-
camente correto e recomendável.
Estas foram algumas das formas alternativas de sobre-
vivência, uma alteridade, mantendo a sua identidade africana
“camuflada” num processo transcultural e trans-étnico resul-
tante do processo de construção e reconstrução de identidade
que caracteriza, geralmente, as sociedades africanas.

O Papel Ambíguo de Educação na Formação de Identidades

Para além da ambivalência de identidades criada pela


educação colonial através do processo da assimilação, o con-
ceito de identidade acabou por se ampliar num campo mais
vasto, ultrapassando as fronteiras da etnia ou da região geo-
gráfica, resultando num sistema de múltiplas identidades. A
identidade cultural é dinâmica e híbrida. Como confirma Hall
(2006, p.409):

72  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre
hibrida. Mas é justamente por resultar de formações
históricas especificas, de histórias e repertório culturais
de enunciação muito específicos, que ela pode constituir
um “posicionamento”, ao qual nós podemos chamar
provisoriamente de identidade. Isto não é qualquer
coisa, Portanto cada uma dessas histórias de identidade
está inscrita nas posições que assumimos e com as quais
nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de po-
sições de identidade com todas as suas especificidades.

Se considerarmos a “etnicidade” ou o “tribalismo” e o na-


cionalismo, como conceitos em movimento, concluiremos que
a natureza da consciência sobre mutações ocorre de acordo com
o contexto histórico. A elaboração de um conceito mais lato de
identidade, dentro de novas fronteiras, construídas nas áreas
sociais e reforçadas pelo contexto sociocultural do colonialis-
mo português em Moçambique vai estimular, de certa forma, a
consciência de construção de uma identidade nacional.
A consciência nacional emergente em Moçambique foi
imaginada, inventada e criada no seio das fronteiras coloniais.
E as identidades inicialmente construídas foram depois “re-
-imaginadas” para poderem se ajustar a uma causa nacional,
que mais tarde veio a se transformar numa oposição política
ao desenvolvimento do projeto nacionalista português.
Com abolição do indigenato em 1961, novos caminhos
se abriram para outra educação. As reformas subsequentes
trouxeram oportunidades, sobretudo, para o ensino primário.
O acesso a outros níveis sociais mantinha ainda barreiras que
tinham por objetivo evitar o crescimento de uma elite africana
que podia vir a construir uma possível oposição política face
ao colonialismo português. Assim, nas décadas de 1960-1970
algumas congregações das igrejas católica e protestante, entre
outras a Missão Suíça, centralizaram suas ações no ensino se-

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  73


cundário e superior, através de uma política de concessões e
distribuição de bolsas de estudo, investindo ainda em um es-
forço adicional na formação ideológica e escolar dos pastores
e seus colaboradores.
No período das lutas de libertação, muitos países africa-
nos lançaram campanhas contra o analfabetismo. Em Moçam-
bique, esta iniciativa começou nas zonas libertadas, durante o
processo da luta de Libertação Nacional. A alfabetização para
os africanos não era apenas o aprendizado da técnica de ler e
escrever, mas sim um instrumento de mobilização, o processo
de tomada de consciência da realidade de dominação em que
viviam. A alfabetização foi e ainda é o instrumento de mobi-
lização para a busca coletiva de soluções para os problemas
socioculturais e políticos etc.
O processo de alfabetização incentivou a necessidade de
resgate das raízes africanas, ou seja, a tomada de consciência
de pertencer a uma identidade cultural africana dentro das
suas diversidades. As diferentes ditas “tribos” e “etnias” que
eram rivais tomavam a consciência dos seus aspectos cultu-
rais semelhantes e tinham o mesmo inimigo, o regime de do-
minação colonial.
As relações de parentesco africanas desempenham fun-
ções na lógica social de solidariedade entre as comunidades e
etnias. A solidariedade entre as comunidades é atribuída às
relações de parentesco nuclear e da família alargada. A hos-
pitalidade e solidariedade são baseadas na reciprocidade. As
trocas comerciais, econômicas se fundamentam na responsa-
bilidade social. E as relações sociais dentro e fora da comu-
nidade são definidas e fundamentadas na justiça, equidade e
equilíbrio. Nesta constante procura do equilíbrio, os confli-
tos sociais não estão ausentes. A dinâmica de relações sociais
africanas contribui para criação de bases para o humanismo

74  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


e, de acordo com Julius Nyerere, é “uma atitude da mente”
e é o fundamento do “socialismo africano” baseado na ideia
de Ujamaa ou “familiaridade”. A família estendida não está
definida, apenas, pelo sangue nem pela linhagem. A tradição
cultural africana considera que todos os homens constituem
uma única irmandade – onde cada homem é membro inte-
grante da família humana estendida. Este constitui o funda-
mento dos valores da hospitalidade e solidariedade africana,
Ujamaa, o humanismo africano. (NYERERE, 1987, p.512-5)

A Educação na Fase Pós-Colonial

Depois da independência, por volta dos anos 1960,


muitos africanos pensavam que a vida ia mudar drasticamen-
te, agora sob o controle de um governo nacional e as escolas
iriam passar para as mãos deles próprios, onde poderiam tra-
çar o seu destino. Mas o processo de mudança é lento, requer
tempo e reformas profundas das mentalidades influenciadas
pelo regime colonial secular. As consequências da educação
colonial ainda constituem os desafios para as elites africanas
na construção de identidades nacionais e africanas.
Mas nem todo processo de subdesenvolvimento, de po-
breza que assola o continente e alguns países africanos, se ex-
plica pelo mecanismo de colonização. Outros fatores adversos
intervêm: falta de iniciativa local, ambições individuais e pu-
ramente econômicas, a ganância do poder gerando conflitos
armados, muitas vezes equacionados pelas mãos invisíveis ex-
ternas com a conivência das internas e vice-versa, corrupção
etc. A independência é, porém, um processo de construção
permanente.
A experiência dolorosa do povo moçambicano durante
o regime colonial teve, de certa maneira, um impacto deter-

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  75


minante nas decisões tomadas sobre a educação após a In-
dependência (1975). Muitas dessas diretivas educacionais,
fruto de circunstância, foram assessoradas pelos especialistas
e consultores que desconheciam o país e a cultura africana.
As orientações básicas educacionais e os pressupostos teóri-
cos da então dita doutrina do “socialismo cientifico”, se torna-
ram autênticas aventuras pedagógicas educacionais inseridas
nos projetos utópicos e experimentais. Os autores militavam
pela formação de uma identidade do “homem novo” com nova
mentalidade nacional moçambicana. Afinal, qual era o funda-
mento desta educação que menosprezava as tradições africa-
nas? As respostas são enigmáticas.
Hoje, certas correntes de intelectuais não-africanos
persistem em negar a importância e o interesse do desenvol-
vimento do ensino universitário na África em proveito da edu-
cação de base. Outros defendem a criação do ensino técnico
elementar (agrícola incluso) sob pretexto discutível da África
ser muito pobre para que se possa defender a existência de
universidades, já que o continente é de cultura essencialmen-
te agrícola (BELONCLE, 1989).
Ora, a educação universitária, através de ensino, pes-
quisa cientifica e extensão revela, cada vez mais, as condições
de desenvolvimento na África. A articulação entre os diversos
saberes tradicionais e os conhecimentos modernos permite
aprofundar e compreender o mundo africano sob as suas di-
ferentes vertentes. O sistema universitário contribui com o
despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crí-
tico e permite compreender os fatos, mediante a aquisição
de relativa autonomia e capacidade de distanciamento e de
discernimento.
Todavia, é também necessário imergir no conhecimen-
to da Filosofia, Sabedoria e Ancestralidade da cultura Africa-

76  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


na para compreender o mundo africano. Kagame, Ogotemme-
li, Tempels, formularam de uma forma sistemática a filosofia
africana, dos Ruandeses, dos Dogons, dos Bantos. Eles con-
cordam nos seus princípios fundamentais, embora sejam po-
vos de regiões aparentemente bem distantes uns dos outros.
Entretanto, têm um denominador comum que nos permite
interpretar a unidade da cultura africana dentro da sua diver-
sidade, no tempo e no espaço. Para Mbiti (1990, p.5), a filoso-
fia e religiões africanas estão relacionadas com o homem no
tempo passado, sobretudo, no presente. Deus aparece dentro
de uma figura como uma explicação do contato do homem
com o tempo. E a doutrina filosófica é o resultado do evento
histórico ou circunstâncias, em que se produzem ideias e con-
ceitos em função das necessidades de resposta(s) às experiên-
cias vividas no tempo e espaço especifico.
Por conseguinte:
Como se trata de filosofia africana e não uma variedade
da filosofia europeia, é evidentemente perigoso fazer
correspondência no vocabulário filosófico europeu. Ao
querer estabelecer a correspondência muito precisa
com as nossa próprias categorias ocidentais, se arrisca
de deixar escapar o que é precisamente essencial em
relação ao pensamento africano (JAHN, 1961, p.25).

Desde que haja consciência, a imagem do mundo que era


objeto de crença, de intuição e de experiência vivida, se transfor-
ma em filosofia. Como dizia Friedell (apud JAHN, 1961, p.25):
Tudo é filosofia. A tarefa do homem é de pesquisar a
ideia que se encontra escondida em cada fato, perse-
guir em cada fato o pensamento na qual é, apenas uma
forma simples.

A educação de base universal e eficaz, por consequente,


constitui ainda uma prioridade para muitos estados africanos,

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  77


diante do fraco índice de escolaridade, levando em considera-
ção a elevada taxa de analfabetismo existente na população
adulta, no mundo rural em particular.
A educação de base é uma exigência primordial de
desen­volvimento. Mas educação de base e alfabetização, sem a
intervenção das universidades e das pesquisas científicas que
garantem as orientações ou as adaptações necessárias, não te-
rão resultados necessários e esperados. Para serem eficazes
e eficientes, eles deverão sofrer algumas modificações no to-
cante à sua estrutura, ao seu funcionamento, ao seu conteúdo
e às suas finalidades dentro da perspectiva da emancipação
sociocultural, psicológica dos beneficiários e das expectativas
sociais que estão nelas. No conteúdo da educação não se pode
esquecer “o conceito da cultura sobre o conceito do homem”,
sobretudo na sua interpretação (GEERTZ, 1978).
Os universitários e pesquisadores são também respon-
sáveis pela perspectiva de integração da educação na socie-
dade e cultura africanas. Isto passa pelo processo de “africa-
nização” dos programas e desenvolvimento de um método
pedagógico que privilegie a cultura de um “espírito novo”,
espírito de observação apto à criação, para uma libertação de
imaginação e de uma curiosidade das crianças, passando pela
necessidade de introdução das línguas africanas, (KI-ZERBO,
1978, p.642). E é essencial que cada criança, esteja onde es-
tiver, possa ter acesso, de forma adequada, às metodologias
científicas e aos conhecimentos tradicionais africanos de
modo a se tornar, para toda a vida, amiga da ciência e da sua
própria cultura.
Várias instituições de ensino superior e centros de pes-
quisas cientificas na África, estão ainda sob tutela econômica
de países europeus e as suas prioridades de ensino e pesquisas
seguem, frequentemente, orientações estrangeiras. Alguns e

78  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


consideráveis teóricos da educação nunca foram educadores
nem sequer professores na África.
Cabe aos universitários e aos pesquisadores africanos
assumir o “papel-chave” do projeto “original” para as ciências
e técnicas, trabalhando em correlação a “educação formal” e
a “educação não-formal” a partir da consideração sistemática
das necessidades e aspirações reais das massas e as exigências
do mundo contemporâneo.
A educação para a democracia está profundamente re-
lacionada ao respeito dos Direitos Humanos: valorização da
cultura de cada povo, desenvolvimento do ensino técnico, da
formação profissional etc.
A educação passa pela tomada de consciência da neces-
sidade inelutável de uma neoeducação africana que se instala
progressivamente nos que tomam as decisões políticas. No
caso de Moçambique, o atual sistema de educação está orga-
nizado em três níveis principais: primário, secundário e uni-
versitário. A taxa de analfabetismo, nos anos 1970 era de 93%.
Em 1975, diminuiu para 72% e, em 1980, para 62%, de acordo
com as estatísticas do governo moçambicano. De 100 alunos
que iniciam a primeira séria, a proporção de crianças que co-
meçam a estudar na idade correta, de 6 anos, é de 43% para os
homens e de 35% para as mulheres. Esses dados revelam que
o país se encontra em desvantagem relativamente à média
regional, e mostram que, apesar da oportunidade de ingres-
sar no sistema educacional ter aumentado significativamente
nos últimos anos, a progressão e a permanência escolar ainda
são muito baixas e compromete a obtenção dos objetivos de
desenvolvimento país. É importante salientar que, em 1997,
depois do conflito armado entre Renamo e Frelimo, cerca de
15% dos homens e 28% das mulheres de 10 a 14 anos não ti-
nham nenhum grau de escolaridade. E, por consequência de

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  79


diversos fatores: a guerra civil, Aids, minas antipessoais ter-
restres, entre outros fatores, as crianças órfãs apresentavam
taxas de matricula menores que as não órfãs. O aparecimento
de fatores imponderáveis como a epidemia de AIDS represen-
ta outro desafio: a educação é chamada a desempenhar função
preponderante na sociedade moçambicana, não só na prote-
ção dos seus dirigentes e pessoal especializado contra os ví-
rus, mas também a se estruturar para servir simultaneamente
como palco de batalha contra a propagação do vírus.
A educação, por conseguinte, torna-se o meio através
do qual se faz a gestão dos seus impactos e a prevenção da epi-
demia. Conforme estudo sobre o impacto da epidemia (MO-
ZAMBIQUE, 2000), o setor da educação pública teria que se
ajustar para compensar a perda de cerca de 17% do seu pes-
soal, compreendendo professores e gestores, e acomodar um
número elevado de órfãos, devido ao HIV/SIDA, no período
2000-2010.
Isso ocorre em um momento em que o setor se prepara
para alargar cada vez mais o acesso à educação, visando dimi-
nuir os índices de exclusão. Perguntamos: será que o setor da
educação em Moçambique está preparado para responder a
esses múltiplos desafios?
Destaque-se ainda que, sobretudo nas famílias mais
pobres, as crianças deixam de frequentar a escola para com-
plementar o orçamento familiar pelo trabalho doméstico e in-
fantil. Nas primeiras séries do sistema escolar, a língua tem
sido um dos fatores que inviabilizam a progressão escolar,
porque a maioria das crianças que ingressam na escola pela
primeira vez só falam as línguas africanas locais, não sabem
falar português, a língua oficial de ensino. (NGUNGA, 2000).
A elevada taxa de analfabetismo e a baixa frequência escolar
são mencionadas como consequência do fator linguístico. Nas

80  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


áreas onde a maioria da população não fala a língua portu-
guesa, a escola é percebida como algo fora da cultura local,
como uma instituição “estranha” que veicula valores e conhe-
cimentos numa língua estrangeira, e estranha ao ambiente da
família e comunidade tradicional africana. Por outro lado, em
certas regiões, observa-se certo preconceito linguístico: mes-
mo sendo africanos, valorizam a língua portuguesa, oficial.
Paradoxalmente há forte presença da “identidade afri-
cana” expressa pelos falantes das línguas africanas. Estas ati-
tudes estão presentes nas diferentes manifestações sociocul-
turais: música, dança, canções, artes etc. E o moçambicano
que aprende português, como língua oficial, cultiva também
as línguas locais africanas num nacionalismo evidente (SAM-
BO, 2002). Há evidências da inclusão no vocabulário da língua
portuguesa de algumas palavras africanas, criando “o portu-
guês de Moçambique”. Por exemplo: machimbombo (ônibus);
machamba (roça) etc. Muitas palavras portuguesas foram e
estão sendo africanizadas, alias, “moçambicanalizadas”. É um
processo da “inculturação” e/ou “interculturação” das duas
línguas, das duas culturas: portuguesa e ­moçambicana.
O não reconhecimento de complexidade cultural e da
pluralidade linguística foi um equívoco do sistema educacio-
nal ocidental na África e em Moçambique, em particular. Tal
desconhecimento promove um cenário de exclusão mútua en-
tre os europeus e africanos.

Conclusão

A educação na África, e Moçambique poderia ser re-


pensada na perspectiva de ensinar para combater a pobreza,
a alienação, a submissão, para que diversas formas de domi-
nação e de neocolonização possam ser evitadas.

DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NA ÁFRICA: MOÇAMBIQUE E SUA BUSCA POR ALTERIDADE d  81


Para haver um verdadeiro desenvolvimento da escola e
educação na África deve-se passar necessariamente pela dinâ-
mica de alteridade. Nesta perspectiva, o intelectual africano
poderia conservar algumas práticas educativas da sua tradi-
ção ancestral, sobretudo as que ainda são válidas e necessá-
rias no mundo contemporâneo em processo de globalização e,
servi-las para a construção do presente da África. Não se trata
de lamentar o paraíso perdido, este não existe.
A finalidade não é preservar a África tradicional, nem
sequer fazer um “europeu negro”; trata-se de criar o Africano
“moderno”. Em outras palavras: trata-se de integrar elemen-
tos da cultura ocidental e das outras culturas não africanas
e os conhecimentos tradicionais africanos na perspectiva de
responder às exigências da vida contemporânea que passam
pela tomada de consciência sistemática e de renovação dinâ-
mica e constante, conforme a necessidade da própria tradição
Africana. Como dizia Jahn (1961, p.14):
... que não seja somente uma reiteração formal e uma
copia passada, mas o surgimento de qualquer coisa de
verdadeiramente nova. Portanto, esta ‘ qualquer coisa
de novo’ existe já.

No âmbito de educação, nós chamaríamos a educação


neoafricana. Esta educação se apresenta de maneira partici-
pativa, dinâmica e integrada, e no centro está munthu, o ser
humano na sua totalidade. E a ciência não é o fim em si mes-
ma, mas sim, um instrumento, um meio para participar, ao
lado dos povos europeus e africanos na luta pelo desenvolvi-
mento integral do munhtu, do ser humano, o Homem. A re-
jeição de maneira global de paradigmas da educação tradicio-
nal africana é como rejeitar a própria ciência ou, em última
análise, é a negação do próprio homem. Em outras palavras,
a ciência da educação impõe uma responsabilidade ao edu-

82  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


cador, pedagogo, que estudou na “escola colonial”, a escola
que ensina a “vencer sem ter razão”. (KANE, op.cit.). Diante
dos desafios existentes, o pesquisador da educação na África
deve possuir os conhecimentos através de imersão prolonga-
da na cultura tradicional africana, ter acesso a interpretação
dos seus símbolos para poder agir de forma prudente, com
um olhar sem complexos. Trata-se de uma alteridade, em que
a educação africana na sua Ancestralidade, Filosofia e Reli-
giosidade, seja tomada em consideração, reconhecida na sua
integra como parte do patrimônio da humanidade. Todo o
desenvolvimento é autodesenvolvimento (do indivíduo a si
próprio) que se caracteriza pela descoberta de cada um da
sua própria potência, sua riqueza, antes de ir à procura no
Outro. Isso passa pelo respeito à educação e cultura do Ou-
tro. Uma nova concepção ampliada da educação na África
deve fazer com que todos os povos, os europeus, africanos
etc., possam descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial
criativo e revelar o potencial que está escondido em cada cul-
tura (Africana, Europeia e outros) para o desenvolvimento
integral do homem, o ser humano.

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86  d LUÍS TOMÁS DOMINGOS


A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):
SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO?

Jeannette Filomeno Pouchain Ramos


João B. A. Figueiredo

Introdução
Não há uma educação universal, boa em si. Ela é uma
forma irresistível, imposta sobre os outros para cum-
prir fins determinados de fora. Se não podemos nos
libertar totalmente do seu poder, o conhecimento dele
pode atenuar seus efeitos.
Se cada sociedade considerada em determinado
momento histórico do seu desenvolvimento, impõe
um tipo de educação, é necessário que conheçamos
esta sociedade e seu momento histórico se queremos
desnudar o seu sistema de Educação. Especialmente
quando é preciso reverter o processo em que se está
mergulhado. (RODRIGUES, 2001, p.78).

Em nossa partida, para a viagem que aqui nos propo-


mos, optamos por utilizar como nossa caravela, para singrar
estes mares bravios, algumas leituras referentes à educação
escolar no Brasil, em que percebemos este setor como alvo da
disputa entre projetos educativos antagônicos, desde a coloni-
zação do Brasil pelos portugueses até os dias atuais, em dife-
rentes cenários e fenômenos (RIBEIRO, 2001; ROMANELLI,
2000; WEREBE, 1997; VIEIRA, 2000, 2002; RAMOS, 2009).
Os caminhos e tendências da educação escolar básica no con-
texto da realidade social, política e econômica brasileira, bem
como suas especificidades e consequências na consolidação
da colonização portuguesa que impõe um padrão, se consti-
tuem como objeto deste estudo.
As primeiras tentativas para se ter um projeto educativo
no Brasil foram feitas pelos Jesuítas, em consonância com as

d  87
diretrizes da coroa portuguesa. Mas em que se fundamentava
o seu projeto educativo? O que ele promovia? A emancipação
do homem ou a formação para submissão? Houve processos
de resistência ao padrão educativo colonial português?
Este artigo intenta desvelar o cenário educativo mo-
derno e suas pretensões colonializantes (QUIJANO, 1991;
FIGUEIREDO, 2010; LANDER, 2005; WALSH, 2008), pre-
sentes, embora de modo sutil e invisibilizado, nos primeiros
passos que prenunciam e consolidam, posteriormente, um
projeto educativo no Brasil, o que se materializa fortemente
por meio das reformas e políticas implementadas de 1549 a
1890. Neste interstício, desvela-se a educação para a submis-
são (1549-1890) com a chegada e a expulsão dos jesuítas, a
Independência Monárquica em 1822, sinalizando os feitos
de regulamentação da educação escolar e a Proclamação da
República (1889). Destacamos, porém, que este trajeto não
se dá de forma incólume, sem oposições. Desde sua origem,
encontramos muitos(as) que se posicionam favoravelmente
a uma proposta educativa descolonializante, libertadora, na
linguagem de Paulo Freire (1983).
Nessa viagem, nossa nau favorece e estimula um passeio
relevante pela pesquisa documental e bibliográfica, com base
em autores como Romanelli (2000), Werebe (1997), Saviani
(2004), Walsh (2008), Figueiredo (2012) e Ribeiro (2001), o
que nos permite analisar não só o contexto nacional, mas tam-
bém o de Portugal, por compreendermos que a história do Bra-
sil, “[...] com interpretação consequente de organização social,
deve começar antes do descobrimento” (DUARTE, 1939, p.11).
Em outras palavras, os fundamentos desse modelo edu-
cacional colonializante, opressor, foram instituídos bem antes
de acontecerem em nossa pátria. Este navegar também possi-
bilita a releitura da literatura e dos documentos com o intuito

88  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


de repensar e reformular os problemas atuais da educação es-
colar e desvelar as contradições mediante a colonialização do
saber, do poder e do ser desde a colônia portuguesa.
A partir do pressuposto acima, da releitura do Estado e
da organização educacional em Portugal, iniciamos este artigo.
Em seguida, discorremos sobre o projeto educacional de colo-
nialização dos jesuítas, como podemos afirmar fundamentados
em Quijano (1991), e as resistências a estes processos subalter-
nizantes (AZIBEIRO, 2002; FIGUEIREDO, 2009). Neste con-
texto, a análise da educação básica, de cunho eminentemente
propedêutico, apresenta elementos importantes para a com-
preensão deste paradigma educacional moderno e sua reper-
cussão na atualidade, bem como o desvelar das contradições e
possibilidades para a descolonização do saber nacional.

Contexto Social e Educacional de Portugal


Todo ato educativo deve objetivar, em primeiro lugar,
formar o cidadão, dando-lhe a capacidade de se tornar
governante, isto é, de ser uma pessoa capaz de pensar,
estudar, dirigir e controlar quem dirige. (GRAMSCI).

Navegar em águas calmas, em um navio a velas, gera


estagnação e muitos conflitos. Neste movimento da história
portuguesa, que dá origem a uma história colonializante para
o Brasil, vamos nos deparar com momentos distintos, alguns
dos quais potencializam as contradições de um povo europeu
que se diferencia de outros povos europeus, como, por exem-
plo, da Espanha, sua aliada nestas primeiras grandes navega-
ções que frutificaram nas primeiras grandes invasões maríti-
mas. Assim é que podemos reler esta história com o devido
cuidado e criticidade descolonializante.
Dito isto, lembramos que a formação histórica do Esta-
do Português é permeada por uma formação fundamentada

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  89
na família que vai constituir a base do povo brasileiro. Por sua
vez, a formação deste povo era e continuará a ser eminente-
mente particularista, comunal, municipalista, impregnada e
convicta do espírito de facção, já que se embasa na dimensão
privada, a família. Cada município constituía um núcleo his-
tórico e político próprio e singular e, assim, Portugal se divi-
dia em frações comunais e díspares. Segundo Duarte (1938),
naquele país nunca houvera uma totalidade, de forma que o
absolutismo pudesse imperar, nunca houve uma integração
territorial soberana e única, tal como ocorreu com muitos
outros países. A relação deste tipo social com o Estado, con-
siderado como organização diferenciada para atender inte-
resses coletivos e reparar as desigualdades sociais históricas
(CHAUI, 2000), é hostil e refratária.
Neste permanente duelo entre o público/Estado e o pri-
vado/família, a Igreja Católica encontrou brechas para se im-
por como um poder concorrente e, por vezes, superposto ao
poder político. O poder, a autoridade e o prestígio da Igreja ad-
vêm da Idade Média e, em Portugal e no Brasil, ela se prolon-
ga até a Idade Moderna e a Contemporânea, inclusive na área
educacional. Constatamos mesmo que este poder da “religião”
possibilitou maior poder de invasão cultural, de colonialização
do saber, do poder, do ser, da natureza (WALSH, 2008).
À época da invasão e colonização do Brasil pela Coroa
Portuguesa, na Europa, o debate educacional refletia o movi-
mento social entre a Reforma Protestante, a Contra Reforma
da Igreja Católica, a utopia e a revolução. Porém, em certa me-
dida havia uma lógica comum que permeava este conflito eu-
rocêntrico1: a manutenção de uma lógica civilizatória colonia-

1 Salientamos que, segundo Lander (2005, p.34), esta lógica eurocêntrica estrutura
e organiza tempo e espaço para toda a humanidade, desde sua percepção única
válida e referência superior e universal para todos os demais. Define um marco zero

90  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


lizante, opressora, mantenedora de um estado de exploração
e ordenamento social que homogeneíza e hierarquiza as rela-
ções, de tal modo que se mantém o padrão de favorecimento
de um pequeno segmento social elitista e elitizante.
A educação, para os reformistas, tinha como objetivo
central instruir a fim de que cada um pudesse ler e interpre-
tar pessoalmente a Bíblia, portanto, sem a mediação do Clero,
nas escolas comunais,
[...] instruídos e doutrinados com diligência e gratui-
tamente, [...], para que cada criança, segundo suas
capacidades, possa tornar-se cada vez mais hábil no seu
ofício ou atividade [...] (MANACORDA, 2002, p.195).

Além de exprimir exigências populares como uma escola


gratuita, o projeto de instrução e a função social desta escola pro-
põem conhecimentos que possibilitariam a formação de gestores
(De Corrigendis studiis apud MANACORDA, 2002, p.199).
Salientamos que a educação escolar em Portugal era
uma prerrogativa da Igreja Católica, que instituiu a Contra
Reforma, caracterizada como uma defesa intransigente desta,
no enfrentamento à expansão do Protestantismo, e culmina
envolvendo, entre as estratégias de resistência à inovação, a
condenação das iniciativas alheias à extensão da educação às
classes populares e a proibição de livros. Neste movimento, a
intensa e multiforme atividade educativa católica se reorgani-
za por meio do Ratio Studiorum (1586-99), que regulamen-
tou rigorosamente todo o sistema escolástico:
[...] a organização em classes, os horários, os programas e
a disciplina. Eram previstos seis anos de “studia inferio-
da história e da geografia instituindo o próprio mapa mundi de conformidade com
sua centralidade. Neste projeto colonializante, as demais formas de epistemes, de
valores, de modos de ser e viver se caracterizam como inferiores e subalternas por
sua própria condição de ser arcaica ou primitiva ao se comparar com este padrão
civilizatório, epistemológico, social.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  91
ra”, dividido em cinco cursos (três de gramática, um de
humanidades ou poesia, um de retórica); um triênio de
“studia superiora” de filosofia (lógica, física e ética), um
ano de metafísica, matemática superior, psicologia e fi-
siologia. Após uma “repetitio generalis” e um período de
prática de magistério, passava-se ao estudo da teologia,
que durava quatro anos. (MANACORDA, 2002, p.202).

Este projeto educativo da Igreja Católica impõe, na


perspectiva de manutenção do status quo, uma regulamen-
tação rígida da organização do trabalho na escola e dos con-
teúdos escolares e retroalimentou a colonização em curso de
modo bastante retrógrado.
Decerto, a matriz da colonização portuguesa pode ser
pensada em quatro dimensões que se retroalimentam na con-
solidação do modelo civilizatório colonializante com estrutu-
ras, instituições, racionalidades etc., são eles: o poder, o ser,
o saber e a mãe natureza/o conviver. Ao destacar o eixo da
colonialização do saber, Walsh sintetiza:
[...] el posicionamiento del eurocentrismo como la pers-
pectiva única del conocimiento, la que descarta la exis-
tencia y viabilidad de otras racionalidades epistémicas
y otros conocimientos que no sean los de los hombres
blancos europeos o europeizados. Esta colonialidad
del saber es particularmente evidente en el sistema
educativo (desde la escuela hasta la universidad) donde
se eleva el conocimiento y la ciencia europeos como
el marco científico-académico-intelectual. (WALSH,
2008, p.137).

Do pensamento único eurocêntrico a projetos educa-


tivos distintos, por vezes complementares ou contraditórios,
Manacorda (2002) nos ensina, mediante sua máxima, que
nenhuma batalha pedagógica pode ser dissociada da batalha
política e social. Exemplo disto é a formação social, política e
educacional do povo português que expressa desafios como a

92  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


reinvenção da relação promíscua entre a esfera privada e a es-
fera política – pública, dos interesses coletivos versus provei-
tos particulares e a educação popular e a educação burguesa.
No âmbito educacional, a Contra-Reforma instituída
restringe ainda mais os avanços sociais, como o direito de ins-
trução das mulheres, a universalização da educação na pers-
pectiva de formação de governantes e não somente governa-
dos, bem como a dimensão científica mediante um padrão de
pensar, sentir e querer. Por outro lado, nela fica mais evidente
a intencionalidade colonializante que se manifesta de modo
mais sutil na Reforma.
Aqui, aportamos para reconhecer que foi este o contex-
to que envolveu os elementos fundantes do projeto educativo
brasileiro, nosso objeto de estudo a seguir, em busca de trilhar
na compreensão de alguns processos históricos em volta da
invenção da escola brasileira, marcada com intensidade por
conflitos e contradições.

Educação para a Submissão ou Libertação (1549-1890)?


A estrutura social do Brasil – Colônia já foi caracterizada
como sendo organizada à base de relações predominan-
temente de submissão. Submissão externa em relação
à metrópole, submissão interna da maioria negra ou
mestiça (escrava ou semiescrava) pela minoria ‘branca’
colonizadores).[...]. A opressão era tão intensa, blo-
queando as manifestações de descontentamento, que
aparentemente parecia ser aceita como necessária ou,
pelo menos, como inevitável. (RIBEIRO, 2001, p.38).

Enquanto na Europa os conflitos políticos e educacio-


nais estavam expressos nos movimentos da Reforma e Con-
tra-Reforma, Portugal e Espanha se conservaram católicos,
diferenciando-se em ideias e processos dos demais países e
dos continentes em decurso de ocupação. Uma educação para

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  93
submissão reflete o projeto educativo português no Brasil-
-Colônia, pautado na exploração, bem como no Brasil monár-
quico “quase” (in)dependente, o que influencia a educação na
República, numa urdidura sutil que garante a perpetuação do
padrão colonial, agora ainda mais colonializante.
Ao considerar esta terra como colônia de exploração, o
projeto educativo, a ocupação produtiva, os elementos huma-
nos e os recursos materiais foram transplantados de fora para
dentro, pelo invasor-opressor português. Esta dependência do
Exterior 2 perpassa a história do Brasil e da educação escolar.
A importação do modelo educacional dos Jesuítas para
a Colônia, por meio da chegada da Companhia de Jesus, em
1549, atendia tanto aos interesses da Metrópole, quanto aos
da Igreja Católica. No cenário conflituoso da Europa, esta úl-
tima tinha como objetivo o recrutamento de fiéis/servidores,
a restauração do dogma e da autoridade. Atende também aos
interesses da Coroa, ao atuar junto aos gentios com a esco-
larização e catequese destes, com a finalidade de integração
ao projeto do explorador na formação do estado brasileiro,
por meio da “anulação” de toda diferenciação étnica, cultural,
portanto, da sua identidade, ao serem incorporados à socieda-
de, ao mercado, evidentemente numa perspectiva subalterna.
A escolarização3, segundo este projeto educativo, passa a
ser um instrumento de imposição do modelo educacional, social
2 Como nos reforça Walsh (2008), ao destacar que desde sua “formação” os Esta-
dos nacionais sul-americanos, possuem em sua estrutura de base a pretensão de
políticas homogeneizantes que garantem a manutenção da ordem de dominação,
seja econômica, política, social, cultural, ordem que alimenta os interesses do
capital e do mercado global.
3 Movimento similar é retratado na publicação da UNESCO (2010, p.639), África

desde 1935, sobre a relação entre a língua, a evolução social e o Instituto Africano
Internacional – IAI, organismo internacional, com o seu plano colonializante de
escolarização, com a elaboração de manuais escolares africanos destinados a iniciar
os estudantes no estudo da civilização e do pensamento ocidentais, cuja influência
seria decisiva na formação de futuros chefes.

94  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


e cultural, em consonância com a matriz colonial determinado
externamente, mediante extermínio, dominação, integração,
negação da cosmovisão indígena e africana4, homogeneização
cultural, entre outros. Segundo Romanelli (2000, p.36):
Foi ela, a educação dada pelos jesuítas, transformada em
educação de classe, com características que tão bem dis-
tinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou
todo o período colonial e imperial e atingiu o período
republicano, sem ter sofrido, em suas bases, qualquer
modificação estrutural, mesmo quando a demanda
social da educação começou a aumentar, atingindo
as camadas mais baixas da população e obrigando a
sociedade a ampliar sua oferta escolar. [...] esse tipo de
educação, veio a transformar-se no símbolo da própria
classe, distintivo desta, almejado por todo aquele que
procurava adquirir status.

Ao abordar os índios adultos, no entanto, os jesuítas en-


frentaram uma grande resistência, por serem estes defensores
da sua cultura tradicional. Desde então, retomaram os proces-
sos de catequese e escolarização junto às crianças, consideradas
como campo fértil, onde tudo o que é cultivado surte resultado.
O projeto educativo jesuítico era pautado por uma edu-
cação religiosa uniforme, neutra e conservadora, que concen-
trava esforços na formação intelectual, no desenvolvimento
de atividades literárias e acadêmicas, em outras palavras, na
formação do homem branco erudito e na domesticação dos
índios. Este modelo refletia a organização social e política do
Estado Português, que pretendia manter a dualidade do ensi-
no, o status quo do ciclo de navegação e do período áureo do
imperialismo português ao ocupar e povoar as suas colônias.
4 Segundo a tradição africana, Nascimento (1981, p.40) cita que os eventos “[...]
são integrais: não há a pretensão de rigidamente separar a política da vida social,
a luta econômica da vida cotidiana popular, ou o ensino e a educação da alegria, da
música e do culto”. É preciso liberar a mente da dualidade da existência marginal.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  95
Além disso, as atividades de produção, exploração e ad-
ministração na época não exigiam nem o preparo de mão de
obra especializada nem o ensino qualificado, sendo o último
deixado à margem, sem qualquer utilidade prática, a não ser
para a garantia do domínio político da Colônia e da submis-
são, pela reafirmação do dogma e da autoridade junto aos na-
tivos, minando assim toda forma de busca pela emancipação
do homem nativo aqui presente. Como podemos deduzir, a
educação jesuítica no Brasil promovia e alimentava a divisão
social, como cita Romanelli (2000, p.35):
Os padres acabaram ministrando, em princípio, educa-
ção elementar para a população índia e branca em geral
(salvo as mulheres), educação média para os homens de
classe dominante, parte da qual continuou nos colégios
preparando-se para o ingresso na classe sacerdotal, e
educação superior religiosa só para esta última.

Além desta divisão social, a Ratio Studiorum regula-


mentava rigidamente a organização do trabalho escolar. Este
papel dominador e conservador da Igreja, associado a uma
postura excludente, potencialmente colonializante, de algum
modo, se cumpliciaram com o Estado colonial, o que possibi-
litou que culturas inteiras fossem dizimadas do mapa do Bra-
sil. Comunidades indígenas foram destruídas, sendo suas tra-
dições esmagadas e seus saberes ancestrais substituídos por
informações e conhecimentos alienados dos jesuítas.
Faz-se necessário registrar o fato de que, no âmbito da
educação formal, não havia nas sociedades indígenas, uma
instituição responsável por esse processo: toda a comunidade,
em geral, é responsável por fazer com que as crianças se tor-
nem membros sociais plenos. Isto habitualmente com todos
os povos tradicionais, em todas as épocas, sempre mantiveram
suas formas de transmissão do conhecimento e da cultura, seja

96  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


por via oral, a citar, por meio dos contos, fábulas, lendas..., ou
por outros meios, como o desenho, a escrita etc., perpetuando
a herança cultural ancestral de geração para geração.
Entre os procedimentos que possibilitaram a esses po-
vos a produção de ricos acervos de informações e reflexões
sobre a natureza, a vida social e os mistérios da existência hu-
mana, a praxiologia se constituía como critério de verdade,
por meio de vários mecanismos, a citar: a observação, a expe-
rimentação, o estabelecimento de relações com a casualidade,
a formulação de princípios, a definição de métodos adequa-
dos, entre outros (Parecer CEB/CNE no 19/1999).
De volta ao navio, destacamos que enquanto o projeto
conservador se efetivava na Colônia, na Europa “[...] o livre
exame, o espírito de análise e de crítica, paixão pela pesquisa
e o gosto da aventura intelectual [...]” (ALMEIDA, TEIXEIRA,
2000, p.39) eram incentivados. Nesta mesma obra ainda se
afirma que este projeto teria ampliado o horizonte mental de
nosso povo, considerando que o Iluminismo, pautado numa
razão dita científica, possibilitaria um contraponto aos dog-
mas religiosos. Será que isto teria sido um efetivo avanço ou
apenas outra face escura desse projeto colonializante? Afinal,
a lógica eurocêntrica, colonializadora, excludente, opresso-
ra, focada no mercado e na homogeneização social e cultu-
ral também ali se evidenciava. A real mudança seria no modo
como o modelo se organizaria e nos meios que utilizaria para
alimentar ou contrapor estes procedimentos hierarquizantes.
Em nossa viagem, percebemos que o sistema educacio-
nal dos jesuítas atuou durante 210 anos e promoveu a educa-
ção religiosa por via de um modelo elitista e de cunho acade-
micista, sob anuência do governo português. Sua decadência
resulta do excesso de ambição pelo poder e pelas riquezas e da
manipulação dos governos como instrumentos políticos para

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  97
atender aos interesses da Comapanhia de Jesus. Isto tudo
passa a concorrer e ameaçar os interesses da Coroa Portugue-
sa (HAIDAR e TANURI, 2004).
Deste modo, o Marquês de Pombal, influenciado tam-
bém pelo enciclopedismo, expulsou os jesuítas do Brasil e
de Portugal, em 1759, por um Alvará que é, segundo Castelo
(1970, p.28),
[...] uma síntese das ideias iluministas de Pombal,
não um iluminismo revolucionário, anti religioso, anti
histórico, mas reformista, humanista, em que procura
laicizar a estrutura da sociedade portuguesa, mantendo,
porém, a religião.

Esta expulsão já havia ocorrido na França, Espanha,


Nápoles e Sicília. A Companhia de Jesus chegou a ser extin-
ta em 1773 e restabelecida em 1814. Determinou-se, então, o
fechamento dos colégios jesuítas sob a alegação de que este
método distanciava os estudantes do mundo, tornando-o ine-
ficaz para a vida prática. Foram introduzidas as Aulas Régias
– aulas avulsas a serem mantidas pela Coroa por meio do sub-
sídio literário (1772). Seria uma ampliação do modo como se
exploraria os nativos brasileiros? Seria esta outra maneira de
continuar a colonializar, agora de forma mais sutil e mais per-
versa, pois que nem sempre perceptível?
Segundo seus defensores, o novo projeto educativo pre-
tendia modernizar e liberar da estreiteza do obscurantismo.
Ao expulsar os jesuítas, a Colônia viveu novos tempos de des-
mantelo e falta de organização educacional, ao não substituir
o sistema educacional destes por um novo. Em vez de um sis-
tema único, passaram a existir escolas leigas e confessionais
que seguiam os mesmos preceitos da ordem anterior.
O ensino médio, por exemplo, quase “desapareceu
como sistema e se resumia, de maneira, irregular, às aulas

98  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


régias que só tiveram vantagem, em relação ao dogmatismo
jesuítico, por introduzir novas matérias, como as línguas vi-
vas, matemática, física, ciências naturais, etc.” (WEREBE,
1997, p.27). Estas transformações que ocorreram no ensino
médio não atingiram o ensino fundamental que manteve a
Ratio Studiorum. Seria um gradativo processo de ampliação
do mercado de consumidores/produtores no novo cenário
mundial?
A aproximação histórica com Portugal promoveu cres-
cente intercâmbio que levou inúmeros jovens brasileiros a es-
tudar em universidades na Europa, e delas trouxeram ideias
liberais e revolucionárias, na perspectiva de mudanças sociais
e econômicas. Concomitantemente, havia aí um reforço na re-
lação entre o Estado, a elite mediadora local e o povo subalter-
nizado e oprimido. Constatamos a lógica do dividir e dominar
dos romanos, bem como a ideia de compartilhar poder para
melhor continuar os procedimentos exploratórios numa con-
dição mais viável para os novos tempos globais.
Afunilando nosso trajeto náutico, constatamos também
que o modelo educacional para a submissão é igualmente re-
tratado na História do Ensino no Ceará (CASTELO, 1970),
sendo as primeiras escolas fundadas no início de 1700 em
Aquiraz e Viçosa. Estas promoviam o ensino público, tanto
em relação à educação primária como secundária. A última
somente para os que se destinavam ao sacerdócio, ou seja, a
perpetuação dos processos colonializantes.
As terras cearenses eram habitadas por indígenas de
tribos diferentes, que foram dizimados ou “domesticados”
por meio da catequese cristã, transformando-os em pacíficas
e quietas nações de tapuias. Estes processos foram marcados
pela resistência indígena à invasão de suas terras e à submis-
são imposta ao seu povo. Exemplar é a leitura feita pelo padre

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  99
Antônio Vieira (apud CASTELO, 1970, p.20), acerca de como
reconhecem a resistência dos indígenas:
[...] que a fereza natural destes brutos, entraram um dia
de repente na aldeia e pela Igreja os chamados Tocarijus,
e estando o Padre Francisco Pinto ao pé do altar para
dizer a missa, sem lhe poderem valer os poucos índios
cristãos, que o assistiam, com frechas e partazanas,
que usavam paus mui agudos e pesados, lhe deram três
feridas mortais pelos peitos, e pela cabeça, e no mesmo
altar, onde estava para oferecer a Deus o sacrifício do
corpo e sangue do seu filho, ofereceu e consagrou o de
seu próprio corpo e sangue, começando aquela ação
sacerdotal e consumando-a o sacrifício.

Desvela-se a mentalidade colonial, de educador para ben-


feitor, este é o caminho desenhado pelo autor para justificar as
ações dos jesuítas no Ceará e os “índios”, “selvagens”, passam
a ser domados, obedientes e vassalos. Para estes “educadores”,
índio bom é o que obedece e se submete à lógica eurocêntrica.
Mas, continuemos nosso embarque. Com a expulsão da
Companhia de Jesus, as escolas da aldeia passaram a ser mi-
nistradas por “mestres” sem experiência, nem moral suficien-
tes, tanto que um dos diretores da Vila da Parangaba informa
que: “[...] retirara da escola e vendera quarenta e um meninos,
índios, de ambos os sexos” (CASTELO, 1970, p.23). Sem sis-
tema nem método, a evolução do ensino, no período de 1759 a
1772, permaneceu sob critério dos interesses locais e reprodu-
zindo este corpus colonializante, que implica em:
[...] oprimir, subalternizar, explorar, desumanizar, coi-
sificar, tornar o indivíduo não humano, torná-lo coisa
de uso, que serve a um propósito alheio a ele mesmo
(FIGUEIREDO, 2012, p.70).

No início do século XIX, com a vinda da Família Real,


apresentam-se grandes mudanças na estrutura social e um

100  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


tanto na organização educacional, pois este passa de colô-
nia de extração de recursos naturais para a sede do Governo
português. Registram-se, neste período, o rápido processo
de urbanização e modernização. Na disputa interna de cultu-
ras e projetos educativos distintos, ou melhor, de contrários,
portugueses e indígenas se confrontaram, se chocaram e, em
algumas situações, se fundiram. Neste conflito, coube ao por-
tuguês invasor a posição predominante e o papel de padrão
para o país que se formava, por exemplo, a língua, a forma e o
modelo organizacional civil, político e educacional.
No âmbito educacional, foram criadas diversas institui-
ções de formação, em diferentes ramos e níveis, inclusive no
nível técnico, e inaugurou-se o ensino superior no Brasil, que
deveria atender às necessidades urgentes da conjuntura local.
A educação passou assim, a ter uma utilidade prática, ao for-
mar quadros técnicos para a administração do Estado e aten-
der a demanda da aristocracia local. A ruptura com a tradição
da escola jesuítica, porém, não fora total, pois a formação li-
terária se manteve como eixo central, mesmo nos cursos de
formação técnica e científica, bem como na organização dos
níveis escolares.
Deste modo, além da propriedade de terra e do número
de escravos, os graus de bacharéis mestres passam a ser ins-
trumento de ascensão social no período colonial. Este projeto
educativo dos jesuítas foi consolidado enquanto educação de
classe, da elite, e tornou-se símbolo dela. Foi o coroamento de
um exitoso projeto de colonialização do saber que se desdobra
na colonialização do poder e do ser.
Do outro lado do barco, constatamos que, após a derro-
ta de Napoleão na Europa, a Corte Portuguesa exigiu o retor-
no de D. João VI a Lisboa e este deixou seu filho, Pedro, como
príncipe regente do Brasil. Havia a necessidade de garantir

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  101
uma hegemonia política lusitana e o monopólio de explora-
ção sobre o Brasil, no ambiente colonializante em franco de-
senvolvimento. Assim, em 1822, Pedro tomou medidas para
declarar o Brasil independente como uma monarquia consti-
tucional e coroando a si mesmo como D. Pedro I.
No movimento pela Independência, Ramos (2009) re-
gistra que este processo incidiu na formação de dois grupos,
um de direita, representado pela classe dominante e parte da
classe média, e outro de esquerda, constituído por intelectu-
ais da classe média, sob a influência de ideais revolucionários
franceses. Mas o grupo dominante da direita mantém o País à
imagem e semelhança do projeto original português. A mes-
ma oligarquia local permanece no poder, agora sob a alcunha
de Império.
Com a Proclamação da Independência do Brasil, outro
projeto educativo nacional poderia ter sido implementado na
Constituição de 1824, caso efetivamente houvesse interesse de
potencializar um amplo e real processo de libertação para o
país. O texto inicial propunha um sistema nacional de educação
com escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comar-
ca e universidades nos mais apropriados locais (art. 250).
Em 1827, a Lei das Escolas de Primeiras Letras poderia
ter estabelecido a escola pública nacional, mas isso não acon-
teceu, pois o que vigorou foi a ideia da distribuição, por todo
o território nacional, apenas das escolas de primeiras letras,
limitadas tanto na abrangência quanto no conteúdo.
Em 1831, D. Pedro I abdicou de seu trono e é decretado
o Ato Adicional de 1834 que restabelece a descentralização,
concedendo mais autonomia às províncias ao situar “as esco-
las primárias e secundárias sob a responsabilidade das pro-
víncias, renunciando, assim, a um projeto de escola púbica
nacional” (SAVIANI, 2004, p.17). Decorre daí uma instabili-

102  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


dade da política educacional, insuficiência de recursos, bem
como o compartilhamento do controle por uma elite regional,
no que de pior carregava, associado a uma globalização de co-
nhecimentos ditos humanistas, de caráter enciclopedista, dis-
sociado da realidade local, que impera ainda hoje nos estados
e municípios.
Entre as leis aprovadas, no que diz respeito à educação,
há de se mencionar a independência também relativa ao mé-
todo e à organização do ensino. A influência dos jesuítas se
mantém, embora associada ao método inglês lancasteriano5,
que é adotado para resolver um problema interno de falta de
professores.
Em 1879, a Reforma Leôncio de Carvalho é difundida e
poucas consequências são observadas. Outro projeto educati-
vo, de 1882, apresentado e bem debatido, embora não imple-
mentado, foi o projeto Rodolfo Dantas, que deu origem a um
parecer de Rui Barbosa. Este parecer foi na verdade:
[...] um plano global de educação, abrangendo todos os
níveis e ramos de ensino, todos os aspectos relativos à
administração escolar, aos programas e à didática das
várias disciplinas, à formação dos professores, ao finan-
ciamento do ensino, à psicologia dos alunos, à avaliação
do sistema e do rendimento escolar, à construção esco-
lar etc. Preconizava ainda um Museu Pedagógico (que
reuniria a documentação educacional e as estatísticas
escolares) e de um ministério próprio consagrado à
educação. (WEREBE, 1997, p.35-36).

Apesar de reconhecermos um idealismo romântico de


Rui Barbosa, permeado pela concepção ingênua de que pela
educação se poderia reformar a sociedade, para nós merece
5 Este método propõe a seleção de monitores entre os alunos mais avançados para tra-

balhar diretamente com seus colegas, reforçando o ensinado pelos mestres momentos
antes. Além desta seleção, vale registrar o papel do inspetor de ensino, que deve
vigiar os monitores e apontar ao mestre os que devem ser premiados ou corrigidos.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  103
destaque neste parecer a sinalização da necessidade de um
projeto educativo nacional, respaldado numa legislação espe-
cífica para o setor educacional, e, portanto, pressupõe a for-
mação de um sistema nacional de educação6.
Quanto à instrução secundária, esta não fora objeto de
grandes transformações, ao continuar focada em uma peque-
na parcela da elite, na preparação para os cursos superiores
em escolas particulares, enquanto o ensino público passou a
se organizar em liceus e colégios, plasmando o sistema edu-
cacional francês, que havia adotado o sistema de estudos se-
riados desenvolvidos em cursos regulares de curta duração,
em contraposição às aulas avulsas7, que continuavam e pro-
liferaram em razão da ausência da quantidade necessária de
docentes, bem como dos parcos recursos disponíveis.
A formação livresca e precária no ensino secundário
também incidiu no ensino superior, que não possibilitava a
leitura concreta da realidade, embora contraditoriamente en-
volvesse o gosto pela palavra ao mesmo tempo em que limita-
va a ação. Este:
[..] tipo de formação do ensino superior recebida, que
oferece uma interpretação da realidade, fruto desta pers-
pectiva de privilégios a serem conservados ou quando
muito uma interpretação da realidade segundo mode-

6 A origem do sistema educacional no Brasil remonta ao início do século XX, com


o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (AZANHA, 2004), que propõe a
elaboração de um plano sobre a organização do ensino. Nesta transição do Século
XX-XXI, a pauta central das conferências nacionais de educação retoma o debate
sobre o Sistema Articulado de Educação Brasileira, ou seja, a “[...] unidade de vários
elementos intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto coerente e
operante” (SAVIANI, 2009). No entanto, há a perpetuação da matriz colonial de
quatro obstáculos que inviabilizam a consolidação deste, são eles: político, eco-
nômico, legal e financeiro (SAVIANI, 2009, RAMOS, 2013).
7 Em 1854, havia no Brasil 20 liceus, 148 aulas avulsas e 3713 alunos, enquanto, na

Europa, a Revolução Francesa pregava a universalização e a gratuidade do ensino


elementar (HAIDAR, TANURI, 2004). Em 1822, registrava-se no Ceará uma po-
pulação estimada de 200.000 habitantes e somente 27 escolas (CASTELO, 1970).

104  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


los importados, os mais avançados, mas resultado de
situações distintas e, por isso, inoperantes. (­RIBEIRO,
2001, p.55).

É a reafirmação do modelo colonializante, portanto,


conveniente à formação da elite e participante do poder que
não expõe o seu projeto político a jogo. Em contraparte par-
cial a este modelo, a formação humana com base na ciência
moderna, que promove o gosto pelos fatos científicos, conti-
nuava sendo vivenciada em inúmeros países na Europa desde
a Reforma Protestante.
Enquanto os dilemas educacionais na Europa estavam
ao sabor da conciliação entre a formação clássica e a ciência,
Ribeiro (2001, p.61) assinala que a realidade brasileira “en-
frentava um dilema anterior – conciliar a formação humana e
o preparo para o ensino superior”.
O controle indireto do ensino secundário pelo Governo
imperial ficou explícito na centralização do ensino superior
(Ato Adicional de 1834), que, além de dar direção à leitura
da realidade, também estabelece os exames de admissão e os
cursos preparatórios do ensino superior.
A não-organização do sistema educacional brasileiro, por
meio da centralização do sistema de avaliação e da “descentra-
lização da educação primária e secundária”, atendia aos inte-
resses alheios, ou seja, da iniciativa privada, que expandia a sua
rede de atendimento, gozando de toda a liberdade (ver em RA-
MOS, 2009, p.53) e perpetuando a educação para a submissão.

Considerações Finais
Tales reconocimientos hacen interculturalizar y des-
colonizar la lógica y racionalidade dominantes, abri-
éndolas a modos otros de concebir y vivir, modos que
encuentran sus fundamentos en el pensamiento, los

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  105
principios y las prácticas de los pueblos ancestrales.
Desde la filosofía o cosmovisión indígena, la Pachama-
ma o madre naturaleza es un ser vivo “con inteligencia,
sentimientos, espiritualidad”, y los seres humanos son
elementos de ella. La naturaleza, tanto en el concepto
del «buen vivir» como en el «bien estar colectivo» de
los afrodescendientes (conceptos similares pero no
iguales por sus mismas diferencias históricas), forma
parte de visiones ancestrales enraizadas en la armonía
integral, una armonía que la sociedade occidentalizada
y el sistema de capitalismo “ahora neoliberal” ha hecho
no solo perder, sino destruir. (WALSH, 2008, p.146).

Estamos próximos do porto que nos aguarda o desem-


barque. Após uma releitura descolonializante da realidade da
educação escolar luso-brasileira, percebemos que nossa he-
rança colonial traz muitas mazelas, tais como a extinção de
muitos povos, de milhares de línguas, tradições e de muitos
princípios educacionais dos povos indígenas e dos africanos
escravizados, bem como a negação de suas culturas. Decerto,
[...] a linguagem cria e unifica uma consciência nacional,
em que as fronteiras culturais correspondem muitas
vezes mais poderosas e fundamentadas do que as fron-
teiras políticas e geográficas. (PARADISO, 2009, p.34).

Isto demonstra a gravidade desta atitude de subalter-


nização e tentativa de opressão e negação dos processos de
resistência.
Durante todo o Império, a educação escolar permaneceu
desorganizada, desde a expulsão dos jesuítas até a política de
centralização do ensino superior, que atende a camada privi-
legiada, só se tem agravado os problemas educacionais. O en-
sino primário e secundário foi jogado (descentralizado) para
as províncias e, com isto, se apresenta um desenvolvimento
educacional diferenciado, conforme as disposições políticas,

106  d JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • JOÃO B. A. FIGUEIREDO


sociais e econômicas locais. O ensino médio era meramente
propedêutico, a ponto de transformar-se em simples ilustra-
ção e preparação para funções nas quais a retórica tem papel
mais importante do que a vida, a ação, além de fomentado
basicamente pela iniciativa privada, em sua ampla maioria.
A proclamação da chamada Independência no Brasil se
concretiza na dimensão formal da política e na relação com
Portugal. Porém, no setor educacional, a dependência é regis-
trada numa formação precária de intelectuais que continuam
transplantando modelos educativos, seja da França, Inglaterra
e Alemanha, como forma de resolver os problemas nacionais.
Para uma reorganização e sustentabilidade de um pro-
jeto educativo nacional seria necessário, além do reconheci-
mento da educação como prioridade e compromisso nacional,
a aplicação de recursos financeiros que os viabilizassem. Con-
tudo, tal como em outros momentos históricos, o Brasil conti-
nua afirmando o déficit econômico, a falta de recursos, como
fator de restrição das possibilidades do poder central desenhar
um projeto educativo libertador, descolonializante para a Na-
ção. Fica explícita, portanto, uma vontade política excludente
e uma formação educacional subalternizante e opressora.
Em síntese, concluindo esta viagem marítima entre
Portugal e nosso país, podemos enfatizar que o Brasil, du-
rante séculos, esteve absolutamente submisso politicamente
à Metrópole portuguesa e, consequentemente, à Igreja, cujos
objetivos eram a exploração das riquezas naturais e o recru-
tamento de fiéis ou de servidores. A República prometia uma
revolução que foi abortada8 na sua essência e a mudança no
8 Do ponto de vista cultural e pedagógico, a República foi uma revolução que
abortou e que, contentando-se com a mudança de regime não teve o pensamento
ou a decisão de realizar uma transformação radical no sistema de ensino para
provocar a revolução intelectual das elites culturais e políticas, necessárias às novas
instituições democráticas (AZEVEDO apud ROMANELLI, 2000, 43).

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL COLONIALIZADO (1549-1890):


SUBALTERNIZAÇÃO OU LIBERTAÇÃO/DESCOLONIALIZAÇÃO? d  107
regime político possibilitou a permanência da elite no poder e
a submissão do projeto educativo aos interesses do “invasor”
português. Para invisibilizar o problema, o caminho escolhido
foi o da dimensão instrumental-legal, através de reformas e
políticas que refletem a ineficácia e a intencionalidade subal-
ternizante em prejuízo da população.
Como prognóstico, podemos apontar para o aprofun-
damento da crise da educação escolar brasileira, da formação
do jovem e da sociedade como um todo, no entanto, este não
será o fim da escola. Assim como os povos da África, no pós-
-independência, é preciso que o povo brasileiro se descubra
diferente e tome consciência de tudo o que lhe caracteriza e os
diferencia dos europeus, dos demais povos (CANÊDO, 1992,
p.7). Somente assim, neste reconhecimento do valor e da ri-
queza das diferenças, poderemos avançar na direção desse
mundo melhor que desejamos.
É preciso descolonializar a lógica e a racionalidade
dominantes e conceber outras formas de poder, saber, ser e
conviver. Dentre os caminhos possíveis para a educação liber-
tadora, desvela-se a necessidade de refundar o Estado, numa
perspectiva intercultural critica e descolonializante, com o re-
conhecimento, socialização e implementação dos fundamen-
tos epistêmicos, princípios e práticas dos povos ancestrais na
escolarização básica. Afinal, como dizia Paulo Freire, é na ex-
periência da conscientização que se supera a submissão, ou
seja, o medo da libertação.

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2
Religião, Política
e Igualdade Racial
ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS:
APONTAMENTOS1

Gledson Ribeiro de Oliveira


Isaac Bruno Oliveira Araújo

Sem Preconceito de Ter Preconceito

Nos últimos anos pastores e membros de igrejas neo-


pentecostais2 voltaram aos noticiários por seu envolvimento
conflituoso com as religiões afro-brasileiras e seus símbolos
culturais. Ao tornarem públicas posições e condutas classifica-
das pelos movimentos negros e ativistas de direitos humanos
como preconceituosas e discriminatórias, desencadeou-se, de
parte a parte, críticas, indignação e atos de solidariedade por
todo o país.
Em uma dessas situações, quatorze estudantes de uma
escola estadual em Manaus, Amazonas, se recusaram a par-
1 Este texto faz parte do projeto de pesquisa “Transnacionalização religiosa: igrejas

neopentecostais brasileiras em Angola” contemplado pelo edital BICT/FUNCAP


2013-2014.
2 As tipologias criadas para distinguir os vários pentecostalismos no Brasil tentam

dar conta da circularidade de suas práticas e crenças ao longo do tempo. Essa


circularidade de práticas e crenças cria um fio tênue de separação entre elas. Por
exemplo, se as características da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), tipifi-
cada como neopentecostal são – para além da gestão empresarial e da teologia da
prosperidade – a guerra espiritual, o exorcismo, o transe e a manipulação mágica,
algumas desses elementos já eram praticados pela Assembleia de Deus no Brasil
e pela Igreja do Evangelho Quadrangular. Essa última, quando ainda chamada de
“Prece Poderosa”, já realizava sessões de curas, oferecia “óleos e bênção a dinhei-
ro” ainda nos anos 1950, portanto, antes da IURD. Em comum a todas elas está o
desenvolvimento dos dons do Espírito Santo. Para efeito didático pode-se dividir
o campo religioso evangélico brasileiro em protestantismo histórico (luteranos e
anglicanos, batistas, presbiterianos e congregacionais) e pentecostal que é subdi-
vidido no pentecostalismo clássico (Assembleia de Deus e Congregação Cristã),
deuteropentecostalismo (Brasil Para Cristo, Igreja Quadrangular, Deus é Amor),
e neopentecostalismo (IURD, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Apos-
tólica Renascer em Cristo, Igreja Mundial do Poder de Deus, Sara Nossa Terra,
Catedral do Avivamento etc.).

d  115
ticipar de uma feira sobre a cultura africana. Como contra-
proposta à atividade, os estudantes decidiram realizar uma
apresentação sobre as missões evangélicas na África. Para os
professores, a atividade fugia ao objetivo da feira, a ­saber, o
estudo da cultura africana através de obras selecionadas da
literatura brasileira. Não obstante, os estudantes ergueram
uma tenda à porta da escola para falar do trabalho missio-
nário no continente. A atitude foi entendida como um ato
de intolerância étnico-religiosa pelos professores. Já os es-
tudantes alegaram discriminação por serem evangélicos.
Um dos argumentos apresentados em reunião com os repre-
sentantes do Conselho de Direitos Humanos, do Movimento
Religioso de Matriz Africanas, da Comissão de Diversidade
Sexual, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Marcha
Mundial de Mulheres era de que na obra de Jorge Amado,
Jubiabá, uma das personagens possuía amizade com um
“pai de santo” e que, além disso, havia citação de práticas
homoafetivas. Já a obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto
Freyre, foi considerada insidiosa aos princípios evangélicos.
Diante da repercussão, e retirando do foco a resistência em
apresentar um trabalho sobre a cultura africana, um pastor,
em defesa dos pais e dos estudantes, argumentou que a lite-
ratura indicada pelo professor continha “homossexualismo
no meio.” (EVANGÉLICOS, 2012a).
Em Olinda, Pernambuco, ocorreu uma tentativa de in-
vasão do terreiro Pai Jairo de Iemanjá Sabá. Segundo o baba-
lorixá, que presenciou a ação, membros de uma igreja evan-
gélica gritavam em frente ao terreiro “Sai daí, satanás”. Com
seu filho à frente da entrada, e buscando filmar e impedir a
invasão, ele ouviu de um dos que forçavam o portão que eles
tomassem cuidado, pois “era evangélico, mas era também um
ex-matador.” (EVANGÉLICOS..., 2012b).

116  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


Recentemente o líder da Igreja Assembleia de Deus Ca-
tedral do Avivamento e Deputado Federal pelo Partido Social
Cristão em São Paulo, pastor Marcos Feliciano, escreveu em
uma mídia social: “africanos descendem de ancestral amaldi-
çoado por Noé. Isso é fato.” Replicado na internet e repercu-
tindo nos meios de comunicação, o deputado explicou duran-
te uma pregação no Rio de Janeiro o sentido bíblico de sua
afirmação: argumentou que, de acordo com a Bíblia, um dos
motivos pelos quais a África é um continente pobre, com fome
e pestes é a maldição de Noé sobre seu filho Cão3 relatado no
capítulo 9 versículos 18-27 do livro de Gênesis. Cão, após ver
seu pai bêbado e nu, teve sua família e sua descendência amal-
diçoadas com a “servidão”, enredo que justificara simbolica-
mente a violência do tráfico negreiro e a escravização de afri-
canos ao longo da era moderna.
Estes três casos, separados no tempo por apenas alguns
meses, sugerem que não há somente uma luta concorrencial
por espaço e visibilidade no campo religioso brasileiro, mas
um enfrentamento, encabeçado pelo pentecostalismo, contra
o candomblé e a umbanda. Especificamente a busca de esta-
belecer o monopólio legítimo, isto é, socialmente reconheci-
do, sobre a oferta de práticas mágicas e de transe4, parece mo-
3 Mantenho aqui a grafia Cão, e não Cam, em acordo com a tradução da Bíblia por

João Ferreira de Almeida, largamente usada no meio evangélico.


4 Diferenciando o êxtase do transe, Marion Aubrée (1985), explica que o primeiro

é a saída de si e o segundo a descida de uma divindade ou espírito. Enquanto o


êxtase é a plena memória do evento, o transe é a perda da consciência, a impossi-
bilidade de acesso à memória. O êxtase surge com a fixidez, o silêncio e a solidão
enquanto o transe beneficia-se da polifonia de sons e palavras. Seguindo Gilbert
Rouget, Aubrée diferencia o transe de possessão do de inspiração. No transe de
possessão, a exemplo da cerimônia xangô, o possuído muda de personalidade,
transformando-se na divindade. Já no transe de inspiração, caracterizado pela
glossolalia, o pentecostal conserva sua personalidade, mas ele está investido da
divindade que dominando-o, faz dele o seu porta-voz. É tempestivo lembrar que os
conceitos de êxtase, transe e possessão não fazem parte do léxico pentecostal em
nenhum tempo. Na linguagem própria do pentecostal diz-se “derramar o espírito”,

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  117


tivar as ações contra as religiões afro-brasileiras, bem como é
o mote das pregações que buscam atrair novos fiéis interes-
sados nessas experiências em um contexto cristão (SILVA,
2007; MARIANO, 1999).
Em particular, o neopentecostalismo abominou e, ao
mesmo tempo, retrabalhou à sua maneira a manipulação má-
gica e pessoal que há muito compõe o sistema de crenças bra-
sileiro do qual são agentes os curandeiros, adivinhos, videntes,
feiticeiros, santos milagreiros etc. Partindo-se do princípio de
que o mundo é permeado de seres divinos e malignos que pro-
vocam graça ou infortúnio e podem ser suprimidos através de
orações e sessões de descarrego, é o equilíbrio na oferta de
serviços mágicos – transes, dons, curas etc. – e dos serviços
religiosos – sacramentos e salvação – que garante a eficácia
da mensagem que carreia fiéis das religiões afro-brasileiras,
principalmente, para as igrejas neopentecostais.5 (ORO,
2001; MONTERO, 1986).
Se o protestantismo histórico aportou no Brasil para
converter principalmente católicos, o pentecostalismo tem
hoje como um de seus principais alvos as religiões afro-brasi-
leiras. A mensagem direcionada a conversão de fieis católicos
tem demonstrado, desde o evento conhecido como o “Chute
na Santa”, em 1995, menor eficácia simbólica que a mensa-

“receber o Espírito Santo”, “cheio do Espírito”, “plenos do Espírito” ou “possuído


pelo Espírito” ao invés do termo “possessão”. Para os pentecostais transe, êxtase
e possessão são palavras carregadas de conotação negativa porque ligadas ao
espiritismo e às religiões afro-brasileiros.
5 O que distingue a religião da magia é que a primeira é um serviço a Deus e a

segunda uma coação sobre Deus, isto é, a religião é “por favor”, respeito, prece,
culto e doutrina; a magia é coerção do sagrado, implicando a subordinação dos
deuses e a conjuração dos espíritos. (PIERUCCI, 2001). Se o monoteísmo judaico e a
teologia calvinista na Europa seiscentista e setecentista – e depois o protestantismo
estadunidense – buscaram expurgar a magia da religião através da racionalização
ético-ascética do cotidiano, nos países de forte religiosidade popular, como no caso
do Brasil, a magia permaneceu como fundamento inexterminável. (WEBER, 2009).

118  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


gem de enfrentamento à umbanda e ao candomblé, o que não
significa o esmorecimento do trânsito religioso de católicos
para os bancos de igrejas evangélicas. Demograficamente ma-
joritário e culturalmente hegemônico, o catolicismo possui
condições estruturais e massa de adeptos que lhe permitem
gozar de alguma imunidade. Se não lhe coloca a salvo das
ações proselitistas próprias do mercado religioso, impede que
suas igrejas sejam alvos de ações diretas como aquelas obser-
vadas contra as religiões afro-brasileiras. A constituição em
unidades autônomas e os tênues laços de solidariedade entre
os terreiros contribuem para essa situação levando babalori-
xás e ialorixás a buscarem se organizar na defesa de seus di-
reitos constitucionais movendo ações legais contra pastores e
suas igrejas (PRANDI, 2004).6
Direta ou indiretamente, essa situação tem repercu-
tido nas amostras dos Censos de 2000 e 2010 que indicam
uma constante perda de adeptos por parte das religiões afro-
-brasileiras. No Censo de 2000, 0,26% da população brasi-
leira disse pertencer à umbanda, 0,08% ao candomblé. Já no
último Censo, 0,21% afirmou ser umbandista, 0,09% que era
do candomblé, e 0,01% disse pertencer a alguma religiosidade
afro-brasileira não determinada.
Em um contexto diferente daquele empregado por Flo-
restan Fernandes (2007), pode-se dizer que, em relação às re-
ligiões afro-brasileiras, não existe um preconceito de não ter
preconceito.7 A prática, classificada como intolerância étnico-
6 Igualmente mediúnicos os adeptos do espiritismo apresentaram crescimento de

1,38% em 2000 para 2,02% no Censo de 2010.


7 Em seu contexto original, Florestan escreve que, a despeito de o preconceito de

cor ser considerado ultrajante para quem sofre e degradante para quem pratica,
continua intocável no cotidiano desde que se mantenha o decoro no seu exercí-
cio. Essa “ambiguidade axiológica”, em parte produzida por um ethos católico de
comportamento, aponta para um dilema racial brasileiro no qual o preconceito
de cor, mesmo não institucionalizado como foi nos Estados Unidos e na África do

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  119


-religiosa, se realiza tanto na esfera da intimidade como pu-
blicamente. Não há decoro ou dissimulação quanto ao que se
pensa sobre as religiões afro-brasileiras. Pelo contrário, sua
condenação é francamente aberta como parte da propaganda
religiosa das igrejas pentecostais e neopentecostais. Pode-se
inferir, a partir da somatória de casos arrolados nos últimos
anos, que, no pentecostalismo, tem livre curso e aceitação a
condenação pública das religiões afro-brasileiras.
Ora, na alquimia religiosa que transforma as relações
sociais em relações transcendentes não é relevante a “lei dos
homens”, mas sim a livre interpretação e revelação da lei
“extraída” das Escrituras. O evangélico, pentecostal ou pro-
testante, tem seu pensamento, percepção e conduta de vida
transpassada pela sua condição, segundo a linguagem nativa,
de “salvo”. O salvo, ou o convertido, é o indivíduo que por bus-
ca pessoal ou por fruto da propaganda salvacionista deixou
sua religião de origem para escolher outra religião na qual o
messias cristão é o princípio-eixo de sua vida8. Converter-se
é, ao mesmo tempo, uma experiência confessional em que se
afirma publicamente o desejo de pertencer e seguir o deus
da comunidade moral – igreja – e uma experiência vazia de
conhecimento, pois ainda não se sabe totalmente no que se
deve crer. É uma resposta a uma crise emocional desencade-

Sul, continua a pautar as relações sociais atravessando todo o espectro social. Seu
resultado tem sido uma forma historicamente gestada e elaborada de dissimulação
da discriminação que teve no mito da democracia racial, com sua defesa da mesti-
çagem, o seu principal expoente teórico (Cf. FERNANDES, 2007).
8 No campo evangélico, a transmissão familiar da filiação religiosa também sofre

perturbações externas como em outras religiões. Hoje não é mais incomum ver
filhos de pais evangélicos “desviados”, ou seja, que deixaram suas igrejas de
origem para transitar em outras religiões e crenças, para tornarem-se agnósticos
ou, raramente, para negarem qualquer profissão de fé. A fase em que as rupturas
começam a surgir é ao final da adolescência e começo da vida social adulta,
momento em que estímulos externos a família e a igreja influenciam a conduta de
vida do fiel e abalam suas convicções religiosas.

120  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


ada por eventos cotidianos que podem estar relacionados a
infortúnios – morte, desemprego, doença etc.-, ou a questões
existenciais – o ser-no-mundo sem sentido, situações em que
os esquemas de interpretação disponíveis não mais traduzem
adequadamente a experiência vivida.
Inicialmente, o salvo não tem a dimensão do significa-
do de sua decisão, pois não sabe ainda nominar o que está
sentindo. É necessário adotar uma nova conduta e uma nova
linguagem sobre o mundo que estejam adequadas a sua nova
expectativa de vida. Quem inicia o neófito à mistagogia do uni-
verso evangélico são os pastores, bispos ou missionários, e os
próprios membros da igreja. Nesse processo de socialização
ele aprende a exprimir corretamente o léxico que o identifica
como salvo, pois adotar um novo vocabulário é uma das mais
importantes formas de diferenciação entre o ser evangélico e
o ser de outra religião. No modelo proposto por Rubem Alves
(1982, p.71) eles são de quatro tipos: o vocabulário jurídico-
-penal, em que o pecado é proibido; o da impureza, em que
o pecado é uma nódoa na vida do fiel; o medicinal, em que o
pecado é doença que deve ser tratada e curada pelo “sangue de
Jesus”; e o sentido político-comercial, no qual o pecador é um
ser que vendeu sua alma ao diabo exigindo um preço por sua
salvação que foi pago com a morte e ressurreição do Cristo.
Acrescento à lista um quinto sentido: o sentido “guerreiro”,
no qual o deus do monoteísmo judaico-cristão é o “Senhor dos
exércitos”, o “Leão da tribo de Judá” que guia seu povo na “ba-
talha espiritual” contra o diabo e seus demônios.
Ainda com Rubem Alves, a conversão deve ser encarna-
da na conduta social. Deve-se assumir que a consciência in-
dividual é sempre a consciência do pecador e que há limites
entre o permitido e o não permitido: não se deve beber, fumar,
jogar, ir a festas “mundanas”, cultuar imagens, consultar adi-

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  121


vinhos, ir a terreiros... É essa nova conduta e linguagem, com
seu vocabulário centrado no pecado, na batalha espiritual e na
redenção, que estrutura o agir e as representações evangélicas.
Se for possível falar de um habitus evangélico, ele se estrutura,
precisamente, a partir da experiência de conversão.
No caso do pentecostalismo, a linguagem de guerra em
cadência com a atitude guerreira desencadeia as situações
de enfrentamento contra os terreiros e as cerimônias públi-
cas afro-brasileiras. Pode-se dizer, seguindo Weber (2008,
p.109), que a santificação ascética exige uma ecclesia mili-
tans. Na batalha espiritual afronta-se o “inimigo” em todos
os lugares e momentos. Afirmando que está em curso uma
batalha pela salvação da sociedade, diz-se e age-se sem consi-
derar as suscetibilidades de ordem social e jurídica, conduta
que também tem criado impasses entre o governo federal e as
igrejas evangélicas no tocante aos direitos de religião na esfe-
ra pública e às políticas afirmativas homoafetivas presentes
no Plano Nacional de Direitos Humanos.9
É possível afirmar que as representações acerca das re-
ligiões afro-brasileiras não são uma particularidade apenas do

9 Em reunião com o Ministro Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República,

representantes da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil entregaram um manifesto


em que se colocam contrários às políticas afirmativas homoafetivas presentes no
Plano Nacional de Direitos Humanos: “MANIFESTAMOS nossa posição contrária
à redefinição da família incentivada no PNDH que se distancia frontalmente
dos preceitos bíblicos e do que é estabelecido na própria Constituição Federal.
Assim, CONCLAMAMOS os representantes do povo no Congresso Nacional que
se posicionem a favor da manutenção dos ideais expressos em nossa Constituição
Federal, rejeitando qualquer dispositivo que subverta a constituição da família
conforme preceitua a referida Constituição e a Bíblia; as demais instâncias da
República, cidadãos e líderes de instituições sociais, que se unam em defender a
manutenção saudável da família que, ao longo da história, tem sido o esteio de
nossa sociedade; aos Pastores Batistas que continuem ensinando claramente os
preceitos bíblicos sobre a família, garantindo, assim, o esclarecimento do povo
de Deus que vive nesta Nação, bem como suas Igrejas e comunidades de modo a
demonstrar a sociedade os benefícios que a família, biblicamente constituída, vem
trazendo ao longo da história”. (BATISTA..., 2013).

122  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


pentecostalismo. Na longa duração histórica, a igreja católica
apropriou-se de ritos e elementos das religiões afro-indígenas
que a estimulou a criar pastorais específicas e retrabalhá-los
no contexto da catolicidade. No campo evangélico, a relação
das várias igrejas com a religiosidade brasileira – catolicismo,
a umbanda, o candomblé e as religiões indígenas... – foi de
confronto e rejeição-apropriação. As igrejas do protestantis-
mo histórico, por exemplo, não fizeram concessões de ordem
religiosa, como fizera o catolicismo. Pelo contrário perma-
neceram como críticos das tradições e costumes brasileiros,
concebendo o catolicismo como uma heresia e idolatria a ser
combatido. Já o candomblé e a umbanda foram considera-
dos demoníacos muito antes que os primeiros pentecostais
aportassem no Brasil. Por sua vez, ao mesmo tempo em que
confrontou o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, o neo-
pentecostalismo incorporou alguns rituais católicos e abraçou
o magismo, típico do sincretismo brasileiro, ao oferecer ben-
ção, milagres, curas e prodígios a seus adeptos credencian-
do-se como religião a serviço da consumação das demandas
religiosas do aqui e agora. Além disso, incorporando à sua lin-
guagem ritual expressões que remetem diretamente ao imagi-
nário religioso brasileiro – “encosto”, “olho grande”, “sessão
espiritual”, “descarrego”.. – conseguiu alcançar as camadas
populares e além.
Indiferentemente se protestantes ou pentecostais, a re-
ligiosidade brasileira permanece, em geral, alvo de crítica e
reprovação. Para pastores e teólogos, a experiência religiosa
brasileira é “sincrética”, “pluralista”, “secularista”, “superfi-
cial”, cheia de “crendices populares” e “mágica”; que concebe
um deus “tolerante, informal e em última análise, superficial”
(ROCHA et al., 2004). A resposta dada pela ética social evan-
gélica à religiosidade brasileira também permanece inaltera-

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  123


da ao longo do tempo: converta-se o indivíduo e a sociedade
se transformará (ALVES, 1982).
Paradoxalmente, pelo Censo de 2010, as igrejas pente-
costais e neopentecostais congregam mais membros negros e
pardos.10 Igualmente, o pentecostalismo é a religião que mais
cresce na África lusófona. A Assembleia de Deus, Igreja Univer-
sal do Reino de Deus e a Igreja Mundial do Poder de Deus, por
exemplo, têm alcançado êxito nos países de língua portuguesa
e junto aos imigrantes de países anglófonos. Não obstante, no
meio evangélico, ser negro não tem gerado uma relação de per-
tença com o continente africano. O que parece ser óbvio. A as-
cendência africana de milhões de brasileiros não significa que
se faça ideia de qual povo da África corresponde a sua origem,
como escreve Antônio Risério (2007). Menos óbvio é dizer que
entre os evangélicos negros ou não, ela é desconsiderada ou ne-
gada em nome de outro lugar-tempo de referência onde tudo
começou: Israel. Aliás, a defesa da política militar israelense na
Palestina é causa mansa, e seu pavilhão nacional um ornamen-
to presente em algumas igrejas do pentecostalismo.
Há uma tendência de que o evangélico negro – ou par-
do – perceba o continente africano como um lugar distante

10 Há 25.370.484 evangélicos pentecostais no Brasil, representando 13,30% da


população. As demais igrejas do protestantismo histórico somam 6.095.089 mem-
bros (3,19%). Nas igrejas pentecostais, 1,12% declaram-se negras, 6,50% pardas,
e 5,49% da cor branca. O percentual de negros no protestantismo histórico é de
apenas 0,28%, o de pardos 1,60% e o de brancos é 2,08%. Levando apenas em
consideração o item “cor preta”, as igrejas pentecostais possuem uma pequena
vantagem em relação às igrejas protestantes históricas no número de adeptos
negros (1,88%). Entre as igrejas pentecostais, 5,49% declararam-se brancos. Só
com a união dos percentuais de negros (1,12%) e “pardos” (6,50%) é que as igrejas
pentecostais se tornam a “religião mais negra” do país (7,62%). Também, entre
as igrejas pentecostais, a Assembleia de Deus permanece com o maior percentual
(6,46%). A maior igreja protestante é a batista, com 1,95%. O catolicismo segue
perdendo adeptos. No Censo de 2000 os católicos somavam 73,77% decaindo para
64,63% no Censo de 2010. Novamente o item “sem religião” registrou um aumento
de 7,28% para 8,4%. Fonte: Censo Demográfico, 2010.

124  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


a ser salvo de si mesmo. Se a religião implica na mobilização
de uma memória que reconstrói no tempo um sentimento de
pertença, o continente africano não faz parte desse circuito
de memória a não ser como território a ser cristianizado ou
um lugar de cativeiro, como invocado na celebrada história
do Êxodo do Egito. Escrevendo de outra maneira, a pauta
dos movimentos negros tem dificuldade em alcançar o meio
evangélico – ao contrário do que ocorre no catolicismo – pelo
fato de que a única ação afirmativa que importa manifestar é
a do messias como “salvador”.11 Transculturais, protestantes
e pentecostais proclamam um deus que age em um mundo,
segundo eles, sem fronteiras socioculturais que impeçam o
proselitismo. É exatamente essa percepção sobre a cultura-
-mundo, inerente às religiões monoteístas, que impulsionam
as missões evangélicas em África.

África e as Representações Religiosas

Há, nos três casos mencionados no início deste texto,


outra unidade de pensamento que chama atenção: o lugar
em que a África figura nas representações religiosas. Dois
dos três casos descritos cristalizam a África como um lugar
amaldiçoado com uma cultura, que antes de ser conhecida
ou celebrada, deve ser transformada através da ação missio-
nária e da pregação salvacionista. De que forma é possível
compreender a lógica de produção e de reprodução dessas
práticas e representações em relação à África no campo
evangélico? Um caminho metodológico a ser seguido é a atu-
11Apesar da pouca visibilidade o chamado Movimento Negro Evangélico tem
realizado um debate sobre a questão racial no interior das igrejas. As poucas
informações sobre o movimento dificultam uma análise de suas propostas e
atuação, uma faceta do campo evangélico ainda ignorada pelos pesquisadores em
sociologia das religiões.

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  125


ação de missionários evangélicos que atuaram e atuam no
continente africano.
A fase contemporânea das missões protestantes se ini-
ciou ainda no século XVIII liderada pela Sociedade Missioná-
ria de Londres. Começando pelo sul do continente, a interiori-
zação do trabalho missionário foi capitaneada por anglicanos,
metodistas, presbiterianos e batistas alcançando durante o
século seguinte os territórios subsaarianos, a costa atlântica e
o Magrebe.12 No campo missionário, foi francamente admiti-
da a afinidade eletiva entre missões e imperialismo europeu.
Os lemas de dois dos mais iminentes representantes e inspi-
radores do trabalho missionário em África, Robert Moffat –
“a Bíblia e o arado” – e de seu cunhado, David Livingstone
– “Comércio e cristianismo” –, são um exemplo da cadência
entre o processo de evangelização e a expansão capitalista.
Segundo eles, só era possível criar um ambiente propício à
pregação do evangelho com a modernização das sociedades
africanas (TUCKER, 2010). A situação colonial estava domi-
nada pela presença branca e seus dispositivos civilizatórios.
O modelo de administração colonial determinava a eficiência,
ou não, das negociações de conflitos e de assimilação que não
raramente desconsideravam as singularidades políticas e so-
cioculturais nos espaços colonizados. Junto à administração
colonial figurava à testa as missões protestantes ou católicas
12Os pentecostais iniciam seus trabalhos na África ainda nos anos 1920. Uma das
primeiras igrejas foi a Igreja do Espírito Santo, no Quênia, fundada por Jakobo
Buluku e Daniel Sande em 1927. Seus fundadores estabeleceram o batismo pelo
Espírito Santo, o dom de falar em línguas e a livre confissão dos pecados como
condições necessárias para a salvação e a comunhão religiosa. Particularmente,
em Angola, uma das mais antigas igrejas pentecostais, a Assembleia de Deus, é
fruto do trabalho missionário português que aportou em Luanda nos anos 1950.
Tão importante na construção do pentecostalismo em Angola foi – e ainda é – a
influência da República do Congo. A alta incidência de igrejas neopentecostais na
região é fruto do circuito de emigração de congoleses para Luanda e do regresso
de angolanos do Congo para seu país.

126  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


com suas escolas, hospitais e campos agrícolas, estes últimos
transformados de uma economia de subsistência em verda-
deiras empresas agrícolas e artesanais nos quais o trabalho
oscilou entre o compulsório e o “mal pago” como ocorrido no
Congo belga e países lusófonos (M’BOKOLO, 2007).13
Na primeira década do século XX reafirmou-se a neces-
sidade de se levar o evangelho à África no aclamado e lamen-
tado Congresso Mundial de Missões Protestantes de Edim-
burgo (1910), Escócia. Para além das divergências entre os
delegados alemães e os delegados estadunidenses a respeito
da permanência ou não da América Latina como uma frontei-
ra a ser missionada, porque católica, ficou decidido pela con-
tinuidade e estímulo às missões junto aos africanos, asiáticos
e orientais, que, diziam, não conheciam em sua maioria o cris-
tianismo.14 Aliados do trabalho de evangelização, os serviços
sociais continuaram como estratégia de inserção e conversão,
não somente no continente africano, mas em todas as fron-
teiras missionárias do globo. Nestes locais, é o equilíbrio na

13 Particularmente, nos “países lusófonos”, a presença de missões protestantes


foi considerada pelas autoridades coloniais uma luta entre a “cultura da pátria”
e o “estrangeirismo”. Em Angola, os batistas iniciaram seus trabalhos ainda em
1878, com a Sociedade Missionária Batista, em São Salvador (antiga Mbanza
Kongo), seguidos pelos congregacionalistas e metodistas. O modelo de missões
foi o mesmo para toda a África Negra: possuíam prensas para confeccionar litera-
turas religiosas em língua kimbundo, hospitais e escolas de ensino pré-primário e
primário que visavam o controle da educação e do trabalho, atividades condenadas
pela administração ultramarina e que levaram vários missionários ao exílio ou à
clandestinidade. Não à toa a Revolução dos Cravos de 1974 foi percebida como
uma oportunidade para a conquista de espaço e visibilidade pelos missionários
em territórios lusófonos.
14 Aclamado por nele terem sido desenhados os primeiros contornos do diálogo

ecumênico entre as igrejas protestantes. Lamentado devido à mudança de atitude


em relação ao catolicismo latino-americano. De maioria cristã, mesmo que católica,
a América Latina já conhecia o evangelho, sendo o alvo missionário deslocado
para outros continentes. Essa resolução resultou no Congresso da Ação Cristão
do Panamá (1916) capitaneado pelos estadunidenses. A única exceção apoiada em
Edimburgo foi dada às sociedades missionárias que trabalhavam evangelizando
os povos indígenas do continente americano.

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  127


oferta dos serviços sociais e dos serviços religiosos à medida
de aproximação e assimilação aos povos nativos.
As visões registradas nos relatos de missionários sobre
a África Negra colonial são similares. Etnocêntricos, eles des-
crevem um continente rico em recursos naturais, com condi-
ções precárias de vida e de trabalho, atormentado pela ação
colonizadora, dominado pela poligamia, pelo infanticídio de
irmãos gêmeos, carente de valores cristãos e imersos na su-
perstição “tribal” de feiticeiros (TUCKER, 2010, p.169-203).
Um enredo substantivamente similar pode ser encontrado nos
relatos atuais dos missionários que trabalham na África. Para
estes, os povos africanos permanecem envolvidos pela magia
e pelo culto aos mortos, sendo responsabilidade do cristão
derrotar os espíritos e destruir o poder da feitiçaria. Mesmo
que, para isso, como escreve o missionário Wilbur O’Donovan
em seu livro O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana,
tenha que se criar rituais paralelos àqueles praticados pelos
feiticeiros e estimular a queima de amuletos e fetiches após a
conversão de nativos. O renascimento cultural da África pós-
-colonial trouxe consigo o retorno às religiões ancestrais e às
práticas mágicas no interior do cristianismo. O cristianismo
africano criou sua própria configuração religiosa de base sin-
crética, associando teologia cristã com a tradição africana. O
sincretismo, muitas vezes consentido por missionários libe-
rais, é considerado como o símbolo do declínio da influência
das chamadas missões verdadeiramente cristãs.
Nos relatos de campo, os feiticeiros permanecem os
principais antagonistas ao trabalho missionário. Rivais de ofí-
cio, ambos buscam legitimar sua atuação junto à comunidade
nativa. Os primeiros, através dos sacrifícios, práticas mági-
cas e ritos ancestrais, busca perpetuar sua posição de chefe
espiritual da comunidade. Os segundos, ao invocar um deus

128  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


superior aos deuses ancestrais e amuletos, procuram desesta-
bilizar a credibilidade do chefe espiritual local. Em momentos
rituais, a presença de um missionário é sinal de infortúnio,
principalmente quando não alcança o êxito desejado. Não
à toa a conversão de feiticeiros é um evento celebrado, tor-
nando-se rapidamente emblema do progresso do trabalho de
evangelização. Seu efeito de propaganda é similar àquele em
que um pai de santo se converte a uma igreja evangélica.
Nas últimas quatro décadas, tem sido dada especial
atenção a forma de comunicação dos missionários com os po-
vos nativos. A sofisticação no trato do tema é um diferencial
em relação àquela geração que nos setecentos deu início ao
processo de evangelização protestante no continente. A cha-
mada “Antropologia Missionária”, de matriz evangélica é dis-
ciplina recente que, em última instância, visa dar um verniz
“científico” ao trabalho no campo missionário. A disciplina
tem por objetivo, segundo Ronaldo Lidório (2011b), aplicar às
pesquisas e ações missionárias a fortuna academicamente acu-
mulada desde Taylor e Morgan passando pelos antropólogos
contemporâneos. Teologicamente orientada, seu fundamento
é a interculturalidade, isto é, a compreensão de que o trabalho
missionário acontece em um contexto em que há um conta-
to entre atores de diferentes culturas que exige o prévio co-
nhecimento lingüístico e sociocultural em todos os processos
de interação. Trata-se de traduzir a partir de um padrão dito
“étnico-teológico” a experiência vivida no campo em acordo
com “valores bíblicos supraculturais”. Isso significa afirmar
que os valores extraídos da Bíblia podem ser compreendidos
e aceitos por qualquer cultura humana, bastando que haja a
contextualização linguística e cultural desses mesmos valores
à realidade missionada. Se para o povo Kokomba da região de
Koni, nordeste de Gana, o ser criador de tudo é Uwumbor, ele

ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  129


pode ser traduzido pela experiência vivida como Javé, porque
são teologicamente equivalentes (LIDÓRIO, 2011a).
Ora, toda tradução se realiza segundo um código cultu-
ral dominante. Na interface com os povos africanos, os mis-
sionários tornam-se tradutores arbitrários da cultura nativa,
organizando e difundindo ideias, imagens e pensamentos
em cadência com a sua condição religiosa e etnocêntrica. É
certo que, no processo de negociação de significados cultu-
rais, há margem para apropriações e releituras nativas que
são características do cristianismo africano. Contudo, e há
muito tempo, a visão missionária tem contribuído, em seus
termos, na forja de representações empobrecidas e trágicas
sobre a África15. As representações são uma forma singular de
conhecimento e de construção do mundo social que variam
segundo a posição social e os interesses dos agentes no campo
evangélico. Segundo Bourdieu (2004), as representações são
um produto do habitus – a internalização da exterioridade -,
isto é, um sistema de determinações adquiridas pelo qual se
realiza a produção e percepção das práticas religiosas – agir
religioso – e de apreciação, apropriação e classificação dessas
mesmas práticas – representações religiosas.
A elaboração, transmissão e internalização de uma vi-
são empobrecida e trágica sobre o continente africano se dão
por diferentes instituições e meios de difusão. Os seminários,
cursos de formação, cartas e diários de campo, além dos teste-
munhos sobre o trabalho missionário, figuram como os prin-
15 A compreensão de que a passagem de Isaías 14: 12-14, que não menciona o nome

“satanás”, se refere à queda do diabo na Terra continua vívida no meio pentecostal.


Teria sido o continente africano o lugar em que o ele fora lançado ao ser expulso dos
céus. “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado
por terra, tu que debilitavas as nações! Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao
céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e no monte da congregação
me assentarei, nas extremidades do Norte; subirei acima das mais altas nuvens, e
serei semelhante ao Altíssimo.”

130  d GLEDSON RIBEIRO DE OLIVEIRA • ISAAC BRUNO OLIVEIRA ARAÚJO


cipais reprodutores dessas representações sobre a África no
campo evangélico. Na esfera da ação religiosa, as missões e
seus agentes de campo constróem um circuito de produção-
-reprodução de sentidos transpassados por uma leitura sal-
vacionista e altruísta que permanece, em nível simbólico e
prático, no marco colonial. Isso significa dizer que há uma
continuidade na longa duração histórica entre os fazeres e in-
terpretações que sustentam e direcionam o trabalho missio-
nário de ontem e de hoje.
Dois dos casos que se referem à África no início des-
te texto podem ser compreendidos como desdobramentos de
um aprendizado historicamente socializado e internalizado
que não perdeu pulsão ao longo do tempo. Uma rápida olha-
dela nas listas de discussões dos sites das agências missioná-
rias brasileiras reforça o argumento aqui urdido. A produção e
reprodução dessas ideias, imagens e pensamentos continuam
alimentando a verve de voluntários e de aspirantes à fronteira
missionária africana.

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ÁFRICA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E IGREJAS EVANGÉLICAS: APONTAMENTOS d  133


DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA: UM
OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA
DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA

Bas´Ilele Malomalo

Exílio
A toda diáspora africana exilada e migrante
No meu país
Só os pássaros cantam
[...]
Eu sinto a morte, o cheiro da pobreza
Vergonha que carrego na terra do exílio
Vergonha de um exilado
Sem país
[...]
(Bas´Ilele Malomalo).

Introdução

O texto que apresento neste livro foi discutido pela pri-


meira vez na I Conferência Internacional do Centro de Es-
tudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra
(CLADIN) e do NUPE – Grupo de Estudo, Pesquisa do Negro
da Universidade Estadual Paulista (UNESP) promovida pela
Faculdade de Ciências e Letras, pelo Departamento de Antro-
pologia Política e Filosofia, pelo Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Centro de Referência Afro da mesma uni-
versidade, nos dias 15, 16 e 17 de maio de 2007. As reflexões
decorrentes dele situam-se no contexto dos acontecimentos
que ocorreram na África e na República Democrática do Con-
go (RD Congo) até 2007. A minha comunicação fez parte do
seminário temático do CLADIN: “Lugar político e estado da
cultura africana e afro-diaspórica no século XXI”.

134  d
Sugiro, portanto, o seguinte tema para nossa reflexão:
“Desafios da democracia e do desenvolvimento na África: um
olhar sobre a República Democrática do Congo a partir da di-
áspora negra brasileira”. A minha intenção não é abordar a
realidade social, cultural, política e econômica do continen-
te africano na sua generalidade, que pode ser encontrada no
relatório 2006 da União Africana (UA), mas destacar uma de
suas realidades, tendo a RD Congo como um caso particular
por dois motivos. Primeiro: foi nesse país que nasci e comecei
a alimentar a minha consciência crítica sobre a negritude/afri-
canidade. Segundo: o advento da III República, nessa parte da
África, é um belo exemplo para discutirmos – nós, intelectuais
africanos, negros da diáspora, africanistas e simpatizantes da
nossa luta – sobre o nosso futuro e o dos nossos filhos.
Desenvolverei esta reflexão a partir dos instrumentos
teóricos que fazem parte da minha realidade intelectual na
atualidade, qual seja os estudos do desenvolvimento, espe-
cificamente a sociologia do desenvolvimento e das relações
raciais e do multiculturalismo. Articularei o meu discurso a
partir de três pontos: 1) o campo dos estudos do desenvolvi-
mento: dos velhos aos novos temas; 2) o paradoxo do subde-
senvolvimento africano: o caso da RD Congo; 3) os desafios
da democracia e do desenvolvimento na África a partir da Re-
pública Democrática do Congo. Finalizo o meu texto com uma
nota de esperança para o Congo, tendo por pano de fundo a
epígrafe de um poema de minha autoria intitulado de “Exílio”.

O Campo dos Estudos do Desenvolvimento: dos Velhos aos Novos Temas

Os estudos do desenvolvimento são um campo multi-


disciplinar que faz uso dos conceitos da sociologia, da antro-
pologia, da economia e da ciência política para pensar a reali-

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  135
dade social. Nasceram após a Segunda Guerra mundial, num
contexto histórico que Gunnar Myrdal caracterizou de Guerra
Fria, da descolonização e de aspiração dos países em desen-
volvimento em ocupar um melhor lugar na ordem política e
econômica mundial e as condições de vida mais digna para o
conjunto de suas populações (FORSTER, 2007).
Na atualidade existem duas correntes desse campo do
conhecimento. O pensamento dominante do desenvolvimen-
to que tem a economia como o núcleo duro. Essa primeira
abordagem tende a pecar pelo seu economicismo. As gran-
des instituições financeiras, tais como FMI, Banco Mundial,
são as defensoras dessa linha de pensamento. De outro lado,
existe o pensamento crítico do desenvolvimento, conhecido
também como o pensamento alternativo (FAVREAU, 2004;
MÉSZÁROS, 2002, 2003, 2004).
Perante a crise atual, a primeira corrente considera que
não há outra saída. A própria lei do mercado irá corrigindo
as desigualdades sociais criadas pelo próprio mercado. Os
defensores do pensamento alternativo pensam o contrário.
Estes fazem parte da nova sociologia econômica, da teoria da
economia social e solidária, do desenvolvimento humano, do
desenvolvimento local, do desenvolvimento econômico co-
munitário ou do desenvolvimento sustentável. Para eles, é
preciso introduzir um novo olhar sobre o conceito econômi-
co. (GENDRON, 2004). A economia, o mercado e suas tran-
sações são vistos como construções sociais. Nessa ordem de
raciocínio, a superação das desigualdades sociais contempo-
râneas, da pobreza e da agressão ao meio ambiente causadas
pela manipulação política do sistema econômico capitalista só
é possível definindo-se novas leis, normas e regras na forma
de se pensar e construir a economia e sociedade. Em outras
palavras, isto significa que o desenvolvimento é um conceito

136  d BAS´ILELE MALOMALO


que vai para além do simples crescimento econômico: diz res-
peito à qualidade de vida das populações e do seu meio am-
biente (FAVREAU, 2004; GENDRON, 2004).
Fundamento minha reflexão sobre o novo paradigma do
desenvolvimento que nasceu nos anos de 1990. O seu surgi-
mento tem muito a ver com a gênese das ciências do desenvol-
vimento que, conforme Forster (2007), tinham por velho tema
o Sul. Buscava entender a situação de subdesenvolvimento em
que se encontravam a maioria dos países da Ásia, da América
Latina e da África após suas independências. Se de um lado as
teorias do subdesenvolvimento e da dependência nos ajuda-
ram a entender, nos anos de 1960 a 1980, as relações de assi-
metria e de dominação existentes nas relações diplomáticas,
econômicas e nas cooperações internacionais entre o centro e
a periferia, do outro lado, somente a partir dos anos 1990 é
que o novo paradigma do desenvolvimento vai nos possibilitar
apreender a complexidade da lógica de dominação dos impé-
rios ocidentais em relação aos países do Sul no contexto da
globalização (MÉSZÁROS, 2004; COMELIAU, 2007). Pode-se
perceber que essa reflexão se alicerça sobretudo nas aborda-
gens que têm usado o método genético-estrutural ou sistêmico
(BOURDIEU, 1979; COMELIAU, 2004).
Pode-se afirmar que as mudanças trazidas pela globa-
lização tanto no Norte quanto no Sul fizeram emergir novos
temas para a agenda dos estudos de desenvolvimento. Fors-
ter (2007) qualifica esses temas de “problemas globais”. Es-
tes afetam, portanto, toda a humanidade e dizem respeito ao
acesso aos recursos e a repartição da riqueza ligada às ques-
tões das desigualdades sociais, da pobreza e da distribuição
de poder nas instâncias locais e globais, do comércio equita-
tivo e da ética nos negócios, das necessidades de construção
de sociedades multiculturais que valorizem as diferenças, de

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  137
elaboração de uma política regional e internacional que aten-
da os direitos dos trabalhadores migrantes; a problemática da
preservação do meio ambiente e, por fim, a questão da segu-
rança que foi definida durante a última década a partir de três
dimensões: a da segurança humana, a prevenção dos conflitos
e a luta contra o “terrorismo”. Todos esses temas, na perspec-
tiva deste trabalho, constituem os desafios da democracia e do
desenvolvimento.
O tratamento adequado desses novos temas dos estu-
dos do desenvolvimento exige um novo olhar teórico sobre
um desenvolvimento que vai além do econômico. O desen-
volvimento como conceito científico é ao mesmo tempo um
projeto social, cultural, político e econômico cuja constru-
ção implica nas negociações entre vários agentes sociais: o
Estado, o Mercado e a Sociedade civil (LÉVESQUE, 2002).
Trata-se de uma teoria e prática que dizem respeito à susten-
tabilidade das populações locais, do (seu) meio ambiente e do
planeta. A avaliação crítica do desenvolvimento, nesse sen-
tido, conforme Comeliau (2007), passa pelas considerações
das competências técnicas e éticas presentes nos projetos de
desenvolvimento. Além disso, os ativistas e intelectuais que
lidam com o novo paradigma do desenvolvimento acreditam
que a discussão em torno desse assunto requer também uma
nova cultura, uma nova ética baseada em valores como de-
mocracia, autonomia, cooperação, solidariedade e justiça nas
transações econômicas, políticas e culturais que acontecem
em vários níveis sociais, locais, regionais, nacionais e inter-
nacionais. É nesse contexto que os intelectuais e ativistas do
Sul têm interpretado o conceito de desenvolvimento em ter-
mos de deslocamento do centro de decisão dos países centrais
para os países periféricos (FERNANDES, 1968; FURTADO,
1992), de desenvolvimento como caminho da liberdade (SEN,

138  d BAS´ILELE MALOMALO


2000), ou seja, ter a capacidade e as condições necessárias
para construir o destino de suas nações.
Eles entendem também que há uma inter-relação entre
os problemas ligados ao desenvolvimento dos Estados-Nação,
das localidades e das populações. Os problemas econômicos
presentes no destino desses agentes são, ao mesmo tempo,
problemas sociais (políticos, culturais e ambientais). A com-
preensão dessa problemática passa pela mudança teórica e
política de se estudar e enfrentar o problema das desigualda-
des, da pobreza e do subdesenvolvimento. Trata-se ali de uma
problemática política e epistemológica. Em relação a essa últi-
ma, gostaríamos de acrescentar mais um elemento típico des-
se campo de conhecimento: a valorização da ­particularidade
de cada sociedade sem perder de vista a complexidade do
tema do desenvolvimento (FORSTER, 2007).

Os Paradoxos do Subdesenvolvimento Africano: o Caso da RD Congo

Acho melhor fazer uso do conceito de subdesenvolvi-


mento para descrever a situação da África a partir da realida-
de da RD Congo. Subdesenvolvimento parece ser um concei-
to velho e esquecido, mas a meu ver ainda possui a sua força
explicativa. Remete à privação de liberdades, de violação da
cidadania, de impedimento de ter acesso e de exercer os direi-
tos econômicos, sociais, culturais de um indivíduo ou de uma
coletividade (SEN, 2000). Não falarei da situação do subde-
senvolvimento do continente africano. Para isso bastaria ler
os Relatórios de Desenvolvimento Humano do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e outros do-
cumentos, como Relatório da UA sobre o estado das popula-
ções africanas (2006). Interessa-me particularmente a situa-
ção da RD Congo.

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  139
Os indicadores econômicos apresentados pela Revista
Jeune Afrique ilustram a situação de precariedade em que se
encontrava a RD Congo em 2007.

1 Euro vale (em 01/01/2004) 518,71


Paridade Euro
Francos Congoleses (FC)
Paridade Dólar 1 Dólar vale (em 01/01/2004) 439,7 FC
Renda Nacional Bruta (RNB) por
120 $/ hab (entre os 175 países)
habitante
RNB por habitante Paridade de
697 $/hab.
Poder de Aquisitivo (PPA)
Primário: 52%
Partilha do Produto Interno Bruto
Secundário: 18%
(PIB)
Terciário: 30%

Inflação 6%

Investimento interno bruto 12% do PIB

Investimento estrangeiro 900 milhões de $


Exportações 1813 milhões de $
Principais recursos 2056 milhões de $
Risco país D
Fonte: Indicadores Econômicos da RDC (2007).

O subdesenvolvimento da RD Congo é um paradoxo na


temática do desenvolvimento das nações. Esta nação africa-
na rica em recursos naturais e humanos, cotada entre os dez
países do mundo em termos de potencial, é ao mesmo tempo
classificada entre os dez países mais pobres do planeta (MA-
LEKERA, 2007). “Pois a história econômica do país resume-
-se a uma longa descida aos ‘infernos’. Em 1960, o PIB do
ex-Zaire (entenda-se Congo) era superior ao do Canadá”, es-
creve Laurence Tovi (2006). Só que, em 2007, esse país pas-
sava por grandes dificuldades. A reflexão a ser feita é que nin-

140  d BAS´ILELE MALOMALO


guém desce ao inferno sozinho. No caso do Congo, só existe
inferno porque houve “diabos” que o construíram. O inferno é
a sua situação de subdesenvolvimento.
Para entendermos o processo de subdesenvolvimento
da RD Congo, precisamos entender a sua história nacional,
regional e internacional. Nossos pressupostos para ­análise
são esses: desde o tempo colonial até a III República, em
2007, esse país sempre foi vítima da cobiça do poder e do ca-
pital internacional, continental e regional e o sucesso dessa
dominação só se justifica pela cumplicidade de uma parte da
sua liderança política seduzida pelo poder e pela ganância
material (MOYROUD; KATYNGA, 2002). A seguir explicarei
essa afirmação dividindo a história do Congo em três fases:
período pré-colonial (antes de 1493), período colonial (1885-
1960) e período pós-colonial (1960 aos nossos dias).
Antes de 1493, o território congolês era composto de rei-
nos tais como Kongo, Luba, M´siri, Zande, Mangbetu, Mongo
etc. Essas instituições políticas contribuíram durante séculos
para a coesão social. Como diria o filósofo congolês Tshama-
lenga Ntumba, o poder tradicional africano era colocado a ser-
viço da comunidade. Pois, para povos os afro-luba, ­conforme
o mesmo autor: “o chefe era o chefe da comunidade e a co-
munidade era comunidade do chefe” (NTUMBA, 1997). A vida
comunitária, a solidariedade, o respeito pelo mais velho, as
alianças entre grupos étnicos, o respeito para com o outro, as
divindades, a comunidade e a natureza eram valores que cons-
tituíam a cosmovisão, o ethos africano pré-colonial. Mesmo
que as culturas africanas que eram praticadas nos diversos es-
paços civilizatórios de seus povos não fossem perfeitas, deve-se
reconhecer que conseguiam manter o equilíbrio e o bem-estar
das populações. É dessa forma que os primeiros missionários
europeus que chegaram nas terras dos Bakongo se admiraram

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  141
pelo fato de não encontrar crianças órfãs abandonadas nas
ruas, fenômeno corriqueiro na Europa do século XV.
Com a chegada dos portugueses, em 1493, no reino do
Kongo, essa parte da África central entrara na rota do tráfico
negreiro e assim se iniciara o processo de saque da RD Con-
go e da desestruturação de suas instituições sociais. Se por
um lado os portugueses ocuparam-se do comércio negreiro
na parte oeste da RD Congo abastecendo o mercado do Bra-
sil, por outro lado sabemos que os árabes entraram pela parte
leste, comercializando os escravos nos mercados de Zanzibar,
de Quelimane e Oriente Médio. O tráfico transatlântico dos
escravos africanos marcara a primeira fase da espoliação do
continente africano e da RD Congo durante quatro séculos,
entre XV e XIX (NZIEM, 2009).
A abolição da escravatura no final do século XIX, não
significou o início de um “novo” projeto de desenvolvimento
nacional, pelo contrário, o início de um novo ciclo de saque
e dominação dos territórios congoleses, de suas populações
e de seus descendentes pelos europeus e euro-descendentes.
Na conferência de Berlim (15 de novembro de 1884 – 26 de
fevereiro de 1885), a atual RD Congo foi objeto de disputa po-
lítica entre as coroas portuguesa e belga. Desta conferência
ela foi constituída como um país, que foi batizado de Estado
Independente do Congo (EIC, 01 de julho de 1885 – 1908),
propriedade privada da família do Rei Leopoldo II. O mesmo
país será assumido pelo governo belga anos após, tornando-
-se sua colônia a partir de 15 de novembro de 1908 até 30 de
junho de 1960 (NZIEM, 2009).
Não seria necessário lembrar que o sistema colonial foi
um sistema de dominação dos povos africanos e de exploração
de seus recursos naturais. Todo aparato cultural, administra-
tivo, político e econômico montado pelo colonizador com uso

142  d BAS´ILELE MALOMALO


da mão de obra escrava ou assalariada dos nativos africanos
visava servir seus próprios interesses econômicos e políticos.
Sendo assim, contribuíram para o desenvolvimento e prospe-
ridade das nações colonizadoras e, portanto, para o processo
de subdesenvolvimento dos povos das nações dominadas. Em
uma palavra, a colonização foi um projeto de dominação cul-
tural, político e econômico que beneficiou mais o colonizador
que o colonizado (RODNEY, 2010; KI-ZERBO, 2006).
Entre 1950 e 1960, a humanidade assistira ao proces-
so de descolonização das nações africanas. O Congo Belga
tornou-se independente em 30 de junho de 1960, tendo Jo-
seph Kasa-Vubu como presidente e Patrice Lumumba como
primeiro-ministro. Vale ressaltar duas dinâmicas sociais
nesse contexto de libertação. A primeira é o movimento de
resistência, de luta contra o colonialismo, que só foi possível
graças à solidariedade existente entre as diásporas negras das
Américas e da Europa, com as lideranças locais africanas de-
terminadas a elaborar um projeto de desenvolvimento alter-
nativo para o seu continente a partir da sua realidade cultural.
Na figura de uma personalidade como Lumumba, podemos
encontrar os germes de um pensamento do desenvolvimen-
to local africano: o nacionalismo africano que entendia que
a cultura, a política e a economia deviam colocar-se a serviço
das populações (NZIEM, 2009).
Essa visão de Lumumba, como de tantos outros pais
das independências africanas, se contrapunha ao projeto do
imperialismo euro-norte-americano. Por isso, foi assassinado
em 17 de janeiro de 1961. Para Carlos Moore (2010), o assassi-
nato é uma das estratégias do imperialismo. Não foi por acaso
que vários outros líderes africanos e da diáspora negra foram
assassinados nesse mesmo período. Foi um projeto homicida
do imperialismo, que via seus interesses econômicos sendo

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  143
questionados. Dessa forma, a segunda dinâmica que marcou
esse período das independências africanas foi a do conserva-
dorismo imperialista. Com a cumplicidade de alguns líderes
africanos interesseiros, o Ocidente continuara a dominar o
continente africano através do neocolonialismo (MUNANGA,
1988; MÉSZÁROS, 2003, 2004).
Na RD Congo, no dia 24 novembro de 1965, Joseph-
-Désiré Mobutu, com a cumplicidade dos governos americano
e belga, realizou um golpe de Estado e se proclamou presiden-
te da República. Em 27 de outubro de 1971, o Congo tornou-se
Zaire; o governo Mobutu implementou a política da negritude
dos pais das independências africanas em termos de políti-
ca de autenticidade, política cultural de resgate da identida-
de negro-africana e zairense. Como presidente, batiza-se de
Mobutu Sese Seko. Nos primeiros anos do seu governo, Mo-
butu se mostrou um pouco “nacionalista”, mas de fato era
um elemento a serviço do capital internacional (MÉSZÁROS,
2003). Assim, o imperialismo hegemônico norte-americano,
através de seus sucessivos governos, usaria Mobutu e o posi-
cionamento geopolítico do Zaire para implementar a política
de segurança nacional. Como se sabe, essa era o braço político
do capital internacional que conseguiu se sustentar pela cria-
ção de regimes autoritários e ditatoriais na América Latina,
na Ásia e na África. Para se manter, esses governos recorrem
frequentemente às práticas de corrupção, violência e intimi-
dação dos opositores e das populações, assim como ao nepo-
tismo e rombo dos cofres públicos. Foi o que aconteceu com o
ex-Zaire. A manutenção do autoritarismo e da ditadura levou
à miséria e ao subdesenvolvimento toda uma nação.
O Zaire, que se tornara uma nação sem Estado, a partir
do fim dos anos de 1989, se viu sacudido pelo grito da ­liberdade
de uma parte de sua população e líderes de oposições, sobre-

144  d BAS´ILELE MALOMALO


tudo Tshisekedi wa Mulumba, reivindicando as mudanças.
Em 18 de dezembro de 1990, o governo Mobutu foi obrigado
a restaurar o multipartidarismo. Depois de eleger o líder da
oposição, Tshisekedi, como primeiro-ministro e o arcebispo
Mosengo Pasinya como presidente da Conferência Soberana
(um tipo de fórum nacional construído para pensar as refor-
mas políticas e econômicas da nação), Mobutu, com medo de
perder o poder, fechara essas novas instituições em abril de
1991, gerando assim uma crise política (BRAECKMAN, 1999).

Mapa da República Democrática do Congo

Fonte: HISTOIRE de la République Démocratique du Congo (2007).

Foi assim que, em outubro de 1996, Laurent-Désiré Ka-


bila, ex-rebelde nos anos de 1965 que lutava contra o regime
de Mobutu, socialista por ideologia, iniciara uma rebelião con-
tra a ditadura mobutista com o apoio de Rwanda e Uganda no

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  145
Kivu. Em 17 de maio de 1997, Aliança de Forças Democráticas
para a Libertação do Congo (AFDL) entra em Kinshasa, e Ka-
bila proclama-se chefe de Estado. Em 16 de janeiro de 2001, L.
D. Kabila foi assassinado. Não há dúvida que a mão invisível
dos proprietários do capital global esteve atrás dos 47 golpes
do estado que esse dirigente político sofrera. Apesar do seu au-
toritarismo, o governo de L.D. Kabila procurou, bem ou mal,
defender os interesses da nação congolesa. Sabia mais do que
ninguém que o Congo era um potencial econômico e só preci-
sava da autonomia para se desenvolver (BRAECKMAN, 2008).
O seu filho, Joseph Kabila, o sucedeu em 30 de junho
de 2003. Em 22 de fevereiro, após o Diálogo Inter-Congolês
em Sun City, J. Kabila formou um governo de transição com a
aplicação do esquema “1+4”: um presidente com quatro vice-
-presidentes, três oriundos das facções rebeldes e um da so-
ciedade civil. De 19 a 20 de novembro de 2004, foi organizada
a Conferência dos Grandes Lagos em Dar es-Salaam, visando
o respeito dos acordos de paz nível regional (MOYROU e KA-
TYNGA, 2002). Em 21 de outubro de 2006, a RD Congo fez
suas primeiras eleições democráticas da história e iniciou-se a
III República. J. Kabila se elegeu presidente.
O que se diz dos governos liderados por J. Kabila em
2007? Diferentemente do seu pai e dos outros dirigentes que
o Congo já conheceu, J. Kabila é diplomático e flexível nas ne-
gociações. Do ponto de vista da crítica do novo paradigma do
desenvolvimento, não deve ser escondido que durante a tran-
sição, como nesse novo governo da III República, os dirigentes
do Congo continuaram com o modelo neoliberal. Por ser novo,
a única pergunta que deve se fazer é essa: o modelo neoliberal
do Congo estará a serviço do capital global ou a serviço das
populações marginalizadas? Parece-nos que a resposta a essa
pergunta dependerá da capacidade do governo atual de en-

146  d BAS´ILELE MALOMALO


frentar os desafios da democracia e do desenvolvimento que se
apresentam a ele nessa fase histórica. (BRAECKMAN, 2008).

Desafios da Democracia e do Desenvolvimento na África a partir da


República Democrática do Congo

O termo “desafios” quer lembrar que tanto a demo-


cracia como o desenvolvimento são tarefas, construções his-
tóricas. São processos que envolvem escolhas de estratégias
para a sua construção. Comeliau (2007) indica dois tipos de
escolha: uma técnico-científica e a outra político-ética. O ad-
vento da “Nova África”, da “Segunda independência africana”
(ROBERT, 2006), a superação dos desafios da “III República
no Congo” para realização “dos cincos canteiros” do governo
atual (SABAHARA, 2006) tão falados, mais do que realida-
des místicas e imutáveis, são desafios históricos nesse terceiro
milênio para os filhos dessa parte do mundo. A sustentabili-
dade desse novo projeto de nação passa pela criatividade e
pela boa vontade política dos afro-congoleses em enfrentar
os desafios da construção de uma nova história, que requer
a implementação de uma nova cultura, de uma democracia
política e social, de uma sociedade civil orgânica. Para isso, o
Congo precisa inovar na economia e ter a capacidade de nego-
ciar os conflitos, lidar com a questão da segurança. A análise
crítica desses desafios não deve omitir as relações de forças
recíprocas que existem entre a variedade de agentes locais,
regionais, nacionais, continentais e internacionais envolvidos
na sua realização, apesar de grande parte da responsabilidade
estar nas mãos dos dirigentes congoleses.
É comum, entre os intelectuais que pensam o desenvol-
vimento do continente africano, falar-se de uma nova cultura
para a eclosão de uma Nova África. Esta nova cultura remete

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  147
a uma prática ética, uma mudança de mentalidade e de ações
da parte de seus dirigentes, dos aliados da cooperação e dos
governados. A história político-econômica particular da RD
Congo mostra como a falta de ética por parte dos dirigentes
nacionais, regionais e internacionais, levou a população con-
golesa a pagar o preço da sua “descida ao inferno”, isto é, da
sua miserabilidade, do seu subdesenvolvimento.
A educação nos parece ser a porta de entrada para o en-
frentamento dos desafios citados. Trata-se de construir uma
educação formal e difusa que tenha como fundamento a ética.
Estamos nos referindo a uma educação que vai construir um
homem novo: um congolês que é nacionalista, não egoísta,
não traidor da nação, não predador das riquezas e dos bens
comuns, senhor de guerra e aliado do poder e do capital in-
ternacional. Um congolês cosmopolita, que sabe negociar as
diferenças étnicas, os conflitos e é capaz de perceber que a
nacionalidade é uma construção política e histórica. Como se
pode ver, trata-se ali de uma educação para a complexidade
e para a solidariedade com intuito de formar cidadãos demo-
cráticos (PERREROUD, 2005).
Esses conceitos não são estranhos à cultura africana
e congolesa. O diálogo com a memória histórica é um pas-
so indispensável para se caminhar nessa direção. Resgatar
criticamente os valores da democracia, da solidariedade, da
partilha, da comunidade, assim como o fizeram os pais das
independências africanas (NTUMBA, 1997; MONARE, 2007),
é uma tarefa indispensável para o Congo de hoje.
Portanto, o cidadão, administrador político e o homem
comum, o homem congolês novo nascerá desse diálogo crítico
com o nosso passado de ancestralidade africana e o nosso pre-
sente híbrido afro-ocidental. Outro elemento indiscutível da
memória histórica congolesa é esse: lembrar-se sempre que o

148  d BAS´ILELE MALOMALO


advento da III República, da democracia formal, de luta de re-
sistência contra o colonialismo, o neocolonialismo, a ditadura
mobutista e o egoísmo de alguns de nossos compatriotas, “se-
nhores de guerras”, com a cumplicidade dos países vizinhos e
detentores do capital internacional, custaram a vida de mais
de 4.000.000 de nossos irmãos e irmãs (PÉANS, 2010). Por-
tanto, é nossa responsabilidade tornar essa democracia for-
mal e substantiva (SEN, 2000; MÉSZÁROS, 2002).
Para isso, a educação para a democracia deve ter por
base também a criatividade nos setores da economia e da
segurança considerados cruciais para o desenvolvimento do
país. Essa atitude deve partir dos dirigentes políticos e dos se-
tores dinâmicos da nação. No campo da economia nacional,
regional e internacional, exige-se que os atores endógenos e
exógenos incorporem uma nova cultura, bem como uma ética
nos negócios e no uso do meio ambiente congolês. O profes-
sor Albert Cirimwami Malekera (2007) entende que esses ato-
res devem abandonar a lógica da economia do saque que tem
visado unilateralmente o serviço dos interesses leopoldinos,
mobutistas e dos novos senhores de guerras, para a adoção de
uma prática da economia do saber e geradora de empregos e,
acrescento, de trabalho.
Para que isso aconteça, do ponto de vista da responsabi-
lidade nacional, o Congo deve aderir e cultivar o espírito ino-
vador, questionar políticas coloniais do passado e neoliberais
do presente e elaborar uma estratégia para o bem-estar e o
desenvolvimento comunitário. No que diz respeito ao último
ponto, Malekera (2007) acha que é preciso, primeiro, iden-
tificar a existência dessas atitudes nos dirigentes do Congo:
a ambição e o reconhecimento da gravidade da situação da
miserabilidade do país. Em seguida, para trilhar o caminho
do desenvolvimento, é necessário inserir o país no meio da

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  149
sua realidade nacional, regional, continental e internacional,
isto é, o Congo deve fazer uso da inovação como instrumento
de realização de uma economia do saber, do uso bem feito de
seus recursos naturais e humanos, evitando o desperdiço.
Nessa perspectiva, o governo do Congo deve investir
nas políticas de meio ambiente, valorizando assim, a floresta
equatorial cuja 4/5 parte, no contexto africano, se encontra no
seu território e investir na produção de energia do Rio Congo,
cuja capacidade atual lhe permite vendê-la para oito países
africanos. Em relação a imensidão de seus recursos minerais,
para além da prática da economia extrativista, o Estado con-
golês deve estimular a criação de microempresas nacionais
que atendam a demanda interna e externa, assim como as
parcerias entre o setor privado nacional e internacional com
as universidades para que se possa aproveitar das capacida-
des humanas para o desenvolvimento da tecnologia. Outro
ponto importante a ser considerado é investir na agricultura,
[...] porque nosso país tem com certeza fortes poten-
cialidades agrícolas, é, portanto, a sua vocação. Assim,
a agricultura não industrial é desenvolvida por 70% da
população ativa da economia. Porque esse é um dos paí-
ses do mundo que, dispõe de uma terra fértil e onde pode
se cultivar todo ano (MAFELLY-MAKAMBO, 2007).

A diáspora congolesa é e deve ser também vista como


um potencial agente do desenvolvimento desse país. Colocan-
do suas habilidades éticas, democráticas e técnicas a serviço
da nação.
Paralelamente ao desafio da inovação da econômica
política, o que a RD Congo deve enfrentar para trilhar o ca-
minho do seu desenvolvimento, é a política da segurança. A
insegurança nesse país está ligada à história, à cobiça de seus
recursos naturais e à ausência de um Estado nacional forte.

150  d BAS´ILELE MALOMALO


Na atualidade, o desafio que o governo eleito enfrenta é, de
um lado, desarmar e integrar os grupos de rebeldes nacionais,
e, de outro lado, desarmar e expatriar os grupos rebeldes dos
países vizinhos que semeiam o pânico nos territórios do leste,
ou seja, nas regiões de Norte Kivu e Sul Kivu.
Existem duas situações a serem consideradas na busca
por soluções. De um lado, o governo congolês enfrenta os gru-
pos rebeldes nacionais e seus aliados, os países vizinhos, pelo
uso da força, isto é, a guerra. De outro lado, os países vizinhos,
pelo intermédio de seus aliados congoleses, atacam no territó-
rio congolês os seus rebeldes. Cria-se assim um círculo vicioso
de acusações entre os envolvidos na guerra, sem saída para
a crise. O mais grave é que essa situação de guerra continua
criando mortes entre os civis e, desde 1997, a região leste está
numa insegurança total (MUIKENZA, 2007). Nessas circuns-
tâncias, as populações locais não conseguem criar condições
para o seu desenvolvimento como faziam no passado. A inse-
gurança atua como inibidor de eclosão de um desenvolvimen-
to sustentável nessa região e no território nacional.
O caminho para o diálogo interno e/ou regional realizado
pela intermediação da Organização das Nações Unidas (ONU)
para apaziguar os conflitos na região leste do Congo está encon-
trando dificuldades. A ONU alega que a extensão do território,
a falta de recursos e os limites legais do seu mandato têm im-
pedido a realização do seu trabalho. O que sabemos é que, na
atualidade, quem sai ganhando nesse conflito são os rebeldes
nacionais, os governos vizinhos e as empresas multinacionais
aliadas que não visam outra coisa senão o saque das riquezas
naturais desse país. Quem está perdendo é toda nação congo-
lesa que está querendo levar nas mãos o seu destino. O parla-
mento atual está discutindo a questão de segurança do leste no
momento como assunto prioritário (XINHUANET, 2007).

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  151
Do nosso ponto de vista, a RD Congo ainda vai encontrar
dificuldades, enquanto seus vizinhos continuarem a ser gover-
nados por ditadores. A comunidade internacional, as organiza-
ções regionais africanas, a UA, as populações africanas e outros
grupos da diáspora negra devem pressionar esses grupos rebel-
des nacionais dos países vizinhos e seus respectivos exércitos
para que se retirem do território do Congo. Além disso, é neces-
sário forçar esses países a iniciar um processo de democratiza-
ção. Enfim, a RD Congo deve se dotar de um Estado forte, de-
mocrático e organizado militarmente para que tenha condições
de exercer a hegemonia tanto na política da segurança nacional
quanto regional. Se isso não é interesse dos atuais “senhores
de guerra” e dos grupos armados ilegalmente no seu território,
para a nação congolesa essa tarefa é uma questão de vida ou
morte, pois o seu destino depende da sua soberania.
Enfim, é nesse sentido que entendemos que a sociedade
civil congolesa, na atualidade, deve desempenhar um papel
político-pedagógico crucial para que a democracia e o desen-
volvimento se tornem realidades substantivas no seu territó-
rio (ROBERT, 2006). A tarefa prioritária a ser feita é lutar
pela implementação da nova cultura e da educação cidadã,
no momento em que uma grande parte dos dirigentes de sua
classe política está ainda limpando suas mãos sanguinárias
dos crimes cometidos durante a ditadura mobutista e as duas
últimas guerras que mataram milhões de seus compatriotas
(MONARE, 2007). Essa sociedade civil pode e deve, ainda,
contar com a sua base, uma parcela dos homens de negócios
e políticos nacionais e internacionais que desejam o bem des-
sa pátria. A sociedade civil congolesa composta por igrejas,
sindicatos, universidades, setores da mídia, associações na-
cionais e da diáspora, deve desempenhar mais do que nunca
o papel do intelectual orgânico coletivo, sobretudo nesse mo-

152  d BAS´ILELE MALOMALO


mento histórico da abertura da democracia formal para que
essa se torne substantiva. Assim, com a pressão e o diálogo
com o setor privado, o governo e outros agentes internacio-
nais movidos pela solidariedade, essa sociedade civil pode se
tornar um agente de construção da democracia, da educação
cidadã e do desenvolvimento nacional e regional.

Conclusão

Geralmente, no final de um trabalho científico espera-


-se que o pesquisador retome as ideias principais da sua re-
flexão. Nos estudos do desenvolvimento é comum fazer as
recomendações. Não é o que vou fazer no momento. Gosta-
ria de deixar um testemunho. Nasci em 1973, no ex-Zaire. Na
época, encontrei um país próspero social e economicamente.
Sou também testemunha da descida para o “inferno” do nosso
país. Por sorte, desde cedo aprendi a identificar quais são os
“demônios” que o levaram para tal lugar.
Gostaria de agradecer aos organizadores da I Conferên-
cia Internacional do Centro de Estudos das Culturas e Línguas
Africanas e da Diáspora Negra por me ter dado a oportuni-
dade de reconciliação com o meu passado e o meu presente,
que apontam para um futuro melhor para o nosso país. Quem
sabe para o Paraíso ou Renascimento. Para que isso ocorra
precisamos trabalhar, pois o pastor, o padre, o nganga nzam-
be (que em Lingala significa “médico de Deus”) só expulsam
demônios rezando. A nossa reza será o trabalho de reconstru-
ção da democracia e do desenvolvimento para a RD Congo e
para o nosso continente. Quem sabe se, dessa forma, os pás-
saros não hão mais de cantar sozinhos, mas acompanhados
pelo coro das vozes encantadoras de homens e mulheres da
nossa terra: África! Eis o meu grito de esperança para o Congo
e para a África desde a terra do exílio.

DESAFIOS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NA ÁFRICA:


UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  153
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UM OLHAR SOBRE A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO A PARTIR DA DIÁSPORA NEGRA BRASILEIRA d  157
BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”? DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À
POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL

Vera Rodrigues

A Política Pública Universalista no Brasil: Definições e Trajetória

As políticas públicas no Brasil possuem um histórico


complexo que abrange desde sua elaboração teórica até sua
aplicação prática. Para começar, na literatura especializada
encontram-se múltiplas definições resultantes do acúmulo
teórico sobre o tema. Em Silva & Melo (2000) e Souza (2006)
há definições clássicas concentradas na análise do Estado,
instituições e ação governamental. Tais definições vêm an-
coradas, principalmente, na tradição dos estudos oriundos
do campo da Ciência Política, Sociologia e Administração
Pública, em que também foram cunhadas as expressões po-
licy analysis (análise da política pública); policy makers (to-
madores de decisão); policy cicle (ciclo de política); impact
analysis or evaluation (impacto ou avaliação da política) pe-
los “pais fundadores” H. Laswell (1936), H. Simon, (1957) C.
Lindblom (1979) e D. Eastone (1965).
A definição aqui apresentada é aquela proposta por Sou-
za (2006) em termos daquilo que “o governo escolhe fazer ou
não fazer” e que implica buscar responder quem ganha o quê
com a política pública, por que e que diferença isso faz no cená-
rio social. Essa é uma proposta, a meu ver, em diálogo com dois
modelos explicativos do processo de formulação de políticas
públicas: o modelo de “arenas sociais” e de ‘'múltiplos fluxos”.
O modelo de arenas sociais vê a política pública como
uma iniciativa dos chamados empreendedores políticos
ou de políticas públicas. Isto porque, para que uma

158  d
determinada circunstância ou evento se transforme em
um problema, é preciso que as pessoas se convençam de
que algo precisa ser feito. É quando os policy makers do
governo passam a prestar atenção em algumas questões
e ignorar outras. [...] Esses empreendedores constituem
redes sociais que envolvem contatos, vínculos e cone-
xões que relacionam os agentes entre si. [...] O foco
está no conjunto de relações, vínculos e trocas entre
entidades e indivíduos. (SOUZA, 2006 p.32).
[...] Kingdon considera as políticas públicas como um
conjunto formado por quatro processos: o estabeleci-
mento de uma agenda de políticas públicas; a conside-
ração das alternativas para a formulação de políticas
públicas, com base nas quais escolhas serão realizadas;
a escolha dominante entre o conjunto de alternativas
disponíveis e, finalmente, a implementação da decisão.
Em seu modelo de multiple streams, o autor preocupa-
-se especificamente com os dois primeiros processos,
chamados estágios pré-decisórios: a formação da agenda
(agenda-setting) e as alternativas para a formulação das
políticas (policy formulation). (CAPELLA, 2007, p.88).

A reflexão, com base na complementaridade desses


modelos, privilegia o olhar para a formulação de políticas pú-
blicas como ponto inicial que deflagra todo um processo que
produzirá resultados concretos na realidade social. Assim,
utiliza-se um modelo de “arenas sociais” para analisar como
se dão as relações entre aqueles que demandam a política pú-
blica e aqueles que deverão implementá-la. De forma com-
plementar, observar via modelo de “múltiplos fluxos” como e
quais foram os mecanismos utilizados no jogo relacional ca-
pazes ou não de transpor a abstração de um problema para a
concretude da solução ou, ainda, a dinâmica de construção de
uma agenda política.
Por essa via, chego ao momento atual em que Estado
e sociedade convergem – ainda que de forma tensa, parcial e

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  159
incipiente – para as políticas públicas de promoção da igual-
dade racial, bem como o período que o antecede. Se a arena
social da política pública no Brasil for dividida temporalmen-
te o marco será a Constituição Federal de 1988, a Constitui-
ção Cidadã. Assim, tomo como ponte de transição o artigo 3º,
relativo ao compromisso estatal com a redução das desigual-
dades sociais:
Constituem objetivos fundamentais da República Fede-
rativa do Brasil: III – erradicar a pobreza e a margina-
lização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação. (Constituição da República Federativa
do Brasil, 1988, Art. 3o).

O antes e o pós-1988 têm marcas próprias, as quais


podem dizer algo sobre o caminho percorrido até aqui. Por
exemplo, em Bacelar (2003) o período que abrange entre
1920 e 1980 caracteriza um Estado desenvolvimentista, con-
servador, centralizador e autoritário, cujo objetivo maior era
consolidar o processo de industrialização, portanto uma polí-
tica de caráter notadamente econômico. Segundo a autora, o
contraponto a essa política desenvolvimentista foi a desigual-
dade gerada pelo modelo político e econômico adotado. Ou-
tra interpretação desse dado aponta que a política de cunho
social ficou por conta do direcionamento às áreas de previ-
dência, legislação trabalhista, saúde, educação, saneamento
básico, habitação e transporte.
As áreas de saúde e saneamento refletiram certo con-
servadorismo, pois incidiram basicamente no controle de
doenças e epidemias e não necessariamente na qualidade e
oferta de serviços básicos à população. Tal postura pode ser
relembrada via episódio da Revolta da Vacina (Rio de Janeiro,

160  d VERA RODRIGUES


1904), ocasião em que a população foi alvo tanto de uma po-
lítica higienista, quanto de uma reforma urbana que previa a
remoção de determinados grupos sociais (pobres, desempre-
gados, mendigos) do centro da cidade para as periferias. Na
área da educação também há críticas quanto ao investimento
feito no acesso à educação básica e ao formato da política edu-
cacional. Nas demais áreas também coexistiram contradições,
entre avanços (direitos trabalhistas) e recuos (limitada parti-
cipação política dos trabalhadores).
Nesse ínterim, fatores como o patrimonialismo e o po-
pulismo engessaram de tal forma a estrutura social que di-
ficultaram a organização da sociedade e a reivindicação por
direitos. A influência desses fatores pode ser pensada a par-
tir da leitura de Silvério (2009) em que se verifica que da era
Vargas, passando pelo plano de metas do governo Juscelino
Kubitschek até o milagre econômico dos governos militares,
o desenvolvimento econômico brasileiro se refletiu de forma
desigual para o conjunto da população:
No Brasil, a sequência acima sugerida se inverteu
[refere-se às fases no desenvolvimento dos direitos do
homem: direitos civis e políticos, em seguida os direitos
sociais] os direitos sociais foram institucionalmente
desenvolvidos a partir da década de trinta do século XX.
No entanto, os direitos civis, mesmo figurando em todas
as Constituições, foram constantemente desrespeitados.
O peso da herança colonial, da escravidão e da grande
propriedade privada são fatores que produziram um
país comprometido com o poder privado e com uma or-
dem social que, ao negar a condição humana de grande
parcela da população, obstruía e reprimia intencional-
mente a participação popular. (SILVERIO, 2009, p.18).

Um aspecto agregador à luz de elucidação é apresen-


tado por Silvério (2009) em relação a negação da condição

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  161
humana da população negra, surge em Santos (2000) quando
o autor estabelece um paralelo entre a noção teórica de cida-
dania e o seu exercício condicionado ao lugar social ocupado
pelo indivíduo negro na sociedade brasileira:
A cidadania define-se teoricamente por franquias
políticas, de que se pode efetivamente dispor, acima
e além da corporeidade e da individualidade, mas, na
prática brasileira, ela se exerce em função da posição
relativa de cada um na esfera social. Costuma-se dizer
que uma diferença entre os Estados Unidos e o Bra-
sil é que lá existe uma linha de cor e aqui não. Em si
mesma, essa distinção é pouco mais do que alegórica,
pois não podemos aqui inventar essa famosa linha de
cor. Mas a verdade é que, no caso brasileiro, o corpo
da pessoa também se impõe como uma marca visível
e é frequente privilegiar a aparência como condição
primeira de objetivação e de julgamento, criando uma
linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito
das pretensões de individualidade e de cidadania do
outro. (SANTOS, 2000, p.2).

A leitura de Santos (2000) pode ser provocativa em ter-


mos de alguns questionamentos: qual foi a cidadania que a
população pôde dispor na franquia política? Por que os em-
preendedores sociais, no caso os movimentos negros só re-
centemente conseguem inserir na agenda política uma pauta
propositiva de políticas públicas? Arriscando uma resposta:
a causalidade dos processos que delimitam a cidadania e in-
fluenciam a formulação de políticas públicas encontra no con-
ceito de racismo institucional uma explicação adicional para o
tema das desigualdades:
O racismo institucional é a incapacidade coletiva de
uma organização em prover um serviço apropriado
ou profissional às pessoas devido à sua cor, cultura ou
origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em pro-

162  d VERA RODRIGUES


cessos, atitudes e comportamentos que contribuem para
a discriminação através de preconceito não intencional,
ignorância, desatenção e estereótipos racistas que pre-
judicam minorias étnicas. Em qualquer caso, o racismo
institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou
étnicos em desvantagem no acesso a benefícios gerados
pelo Estado e por demais instituições e organizações
(XAVIER, 2011. p.10).
[...] a partir dos projetos políticos que assumiram em
seus programas de governo o compromisso com esta
bandeira fundamental do movimentos negros: o Estado
tem a responsabilidade de atuar contra as desigualda-
des sociais e raciais no Brasil. São dezenas de novos
gestores e gestoras que se deparam com uma máquina
estatal ainda despreparada, em grande medida, para
lidar com os desafios de inclusão social das populações
negra e indígena, por exemplo, ao mesmo tempo em que
enfrentam nas estruturas governamentais o chamado
racismo institucional (RIBEIRO, 2009, p.9).

A incapacidade e/ou o fracasso estatal na promoção da


equidade, só muito recentemente (por volta dos anos 1990)
teve no conceito de “racismo institucional”, conforme citado
acima, uma ferramenta de análise no campo das desigualda-
des sociorraciais. A incorporação conceitual suscitou uma tra-
vessia entre a análise que, geralmente, focava o racismo nas
relações interpessoais para uma análise, e também a interven-
ção, no plano institucional. Isso acarretou envolver o Estado,
suas instituições e todo o aparato que o sustenta numa leitura
mais abrangente do cenário político brasileiro.

O Movimento Negro e o Estado Brasileiro na Construção de Políticas


Públicas de Promoção da Igualdade Racial

Entre os anos 2001 e 2007 realizou-se o Programa de


Combate ao Racismo Institucional (PCRI), que, através de

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  163
uma parceria entre poder público, organizações dos movi-
mentos negros e agências internacionais buscou atuar favora-
velmente na formulação e implementação de políticas públi-
cas de promoção da igualdade racial. Ainda que não estejam
disponíveis os dados de avaliação do PCRI, é possível consi-
derar interessante essa iniciativa no setor público pelo desafio
que representa para a superação de desigualdades.
O desafio de superação das desigualdades sociorraciais
tem destacado o papel dos movimentos negros na luta por
cidadania. Se a noção de cidadania, como provoca a pensar
Dagnino (1994), comporta a dimensão de estratégia política,
justamente por expressar interesses, desejos e aspirações de
parte da sociedade, abrigando assim projetos diferenciados
em seu interior, tem-se na experiência dos movimentos so-
ciais nos anos 1990 uma experiência concreta dessa dimen-
são. No caso, os movimentos negros protagonizam uma luta
por direitos que se dá tanto pela via do direito à igualdade,
quanto à diferença, já que emergem da luta política especifi-
cidades em direitos e sujeitos, como ocorre com as comunida-
des quilombolas e as demandas por reconhecimento.
Se Santos (2000) discute de uma “cidadania mutilada”
da população negra, Dagnino (1994) indica uma cidadania
“de baixo para cima” via constituição de sujeitos sociais ativos
que definem seus direitos e lutam por seu reconhecimento.
Essa “cidadania de baixo para cima” transparece nas políticas
públicas de promoção da igualdade racial desencadeadas, a
partir do marco da Constituição Federal de 1988. Esse perí-
odo é emblemático para os movimentos sociais de forma ge-
ral, os quais se fortalecem no cenário de redemocratização do
país. Assim é que organizações representativas dos direitos
das mulheres, homossexuais, juventude e negros, por exem-
plo, protagonizam demandas ao poder público com vistas à

164  d VERA RODRIGUES


concretização da cidadania e da própria democracia. No que
tange aos movimentos negros, esse período demarca uma
nova fase de sua atuação política, pois ultrapassa o viés da de-
núncia para investir na proposição de políticas públicas. Essa
dinâmica em relação ao Estado tem sido marcada por avanços
e recuos na resposta governamental, além do reflexo disso no
seio dos próprios movimentos. Os principais fatos dessa di-
nâmica se dão ao longo dos mandatos presidenciais de três
governos: José Sarney (1985-1990); Fernando Henrique Car-
doso (1995-1999) e (1999-2003) e Luis Inácio Lula da Silva
(2004-2007) e (2008 -2010). A seguir, estabeleço uma linha
de tempo que abrange a dinâmica de demanda e ação gover-
namental durante esse período, entre os movimentos negros e
o Estado brasileiro na construção de uma agenda de políticas
promotoras da igualdade racial.
A construção do atual quadro de políticas de promoção
da igualdade racial vem sendo delineada desde o final dos anos
1980. Nesse intervalo de tempo os atores políticos em foco,
movimentos negros e Estado, interagiram num cenário feito
de mobilizações, definições de pautas e estratégias políticas.
Quando falo em movimentos negros, refiro-me às diversas ge-
rações de militantes e organizações negras que compuseram
um mosaico de bandeiras de luta e formas de mobilização e
ação, mas mantendo o fio condutor da luta antirracista. Assim,
interagiram nesse período organizações com reconhecimento
regional e/ou nacional, a começar por aquelas fundadas nos
anos 1970, tais como: IPCN – Instituto de Pesquisa das Cultu-
ras Negras (Rio de Janeiro, 1975), MNU – Movimento Negro
Unificado (São Paulo, 1978) e CCN – Centro de Cultura Negra
do Maranhão (Maranhão, 1979).
Dos anos 1980 veio uma militância composta por enti-
dades recentemente instituídas, tais como a UNEGRO – União

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  165
de Negros pela Igualdade (Bahia, 1988) e as primeiras Orga-
nizações Não Governamentais (ONGs) negras, destacando-se:
Maria Mulher Organização de Mulheres Negras (Rio ­Grande
do Sul, 1987), Geledés – Instituto da Mulher Negra (São Paulo,
1988) e CEAP – Centro de Articulação de Populações Margina-
lizadas (São Paulo, 1989). A atuação conjunta desses ­militantes
e organizações exigiu a construção de uma pauta comum, per-
meada pela heterogeneidade de temas ­representativos de cada
entidade, da realidade social em que estava inserida, bem como
da época vivida. Por conta disso, temas antigos como a violên-
cia policial contra a população negra – fator de contínua de-
núncia pelo MNU – foi evidenciado ao lado de novos temas tra-
zidos, especialmente, pelas ONGs de mulheres negras, as quais
colocaram em evidência o feminismo negro, através do debate
sobre a participação das mulheres nas organizações ­negras e a
defesa de políticas públicas com recorte de gênero e raça.

Quadro

Governo Fernando Governo Fernando Governo Lula


Collor Henrique

1985-1990 1995-2003 2003-2010


Centenário da Abo-  Marcha Zumbi  Conferência Re-
lição da Escravatura dos Palmares pela gional para Amé-
no Brasil. Cidadania e pela rica Latina e Cari-
Vida (1995) be – Preparatória
Contextos Na-  Conferência Mun- para a Conferên-
cional e Inter- dial das Nações cia de Revisão de
nacional Unidas contra o Durban (2008)
Racismo (2001)  2ª Conferência
Mundial das Na-
ções Unidas con-
tra o Racismo/Re-
visão de Durban
(2009)

166  d VERA RODRIGUES


(continuação)
R e i v i n d i c a ç õ e s 
 Programa de Su- 
Concretização do
por avanços entre peração do Racis- Programa de Su-
igualdade formal mo e da Desigual- peração do Racis-
e substancial. dade Racial. mo e da Desigual-
dade Racial
Demandas dos Cumprimento do

Movimentos Programa de Ação
Negros da Conferência
Mundial das Na-
ções Unidas con-
tra o Racismo.

Programa Nacio-
 Programa Nacio-
 Secretaria de Pro-

nal do Centenário nal de Direitos moção da Igualda-
da Abolição da Humanos de Racial
Escravatura Grupo de Traba-
 Política Nacional

Criação da Fun-
 lho Interministe- de Promoção da
dação Cultural rial Igualdade Racial
Palmares Grupo de Tra-
 Programa Brasil

Artigo 68 da
 balho para Eli- Quilombola
Constituição minação da Dis- Decreto nº 4.887

Federal: Reco- criminação no referente à regu-
nhecimento dos Emprego e Ocu- larização fundiária
Direitos das Co- pação das comunidades
Ações Governa-
munidades Qui- Conselho Nacio-
 quilombolas
mentais
lombolas nal de Combate à Conferência Re-

Discriminação gional para Amé-
Programa Diver-
 rica Latina
sidade na Univer-
sidade
Programa Nacio-

nal de Ações Afir-
mativas
Marcha
 Zumbi
dos Palmares pela
Cidadania e pela
Vida

Por conta disso, avalio também como elemento de rede­


finições temáticas dos movimentos negros nos anos 1980 o
lugar social de onde emergiram as novas organizações. Se
nos anos 70 muitos militantes vinham de entidades de clas-
se e culturais, agora eles e elas vinham de segmentos religio-
sos, grupos de estudantes universitários e partidos políticos.

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  167
Por exemplo, nessa linha enquadram-se respectivamente, os
APNs –Agentes de Pastoral Negros (São Paulo, igreja cató-
lica, 1983), os grupos de religiosos de matriz afro-brasileira
(Candomblé, Umbanda e Batuque), o Grupo Negro da Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, 1979-
1983), o qual deu origem a SOWETO Organização Negra (São
Paulo, 1991), a Secretaria de Combate ao Racismo do Partido
dos Trabalhadores (São Paulo, 1980), Secretaria Nacional do
Movimento Negro do Partido Democrático Trabalhista (Rio
de janeiro/Rio Grande do Sul, 1980) e os Conselhos de Par-
ticipação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (órgãos
consultivos de caráter municipal e estadual presentes em vá-
rios estados brasileiros).
Esse painel de temas e lugares de atuação militante
contribuiu para a formatação de discursos e práticas políticas
capazes de responder à articulação necessária com o poder
executivo. Para que isso acontecesse, sem dúvida houve um
exercício coletivo de acomodação e/ou superação de inúme-
ras questões internas. Assim, deve ter ocorrido em relação às
diferenças político-partidárias as contradições entre a repre-
sentatividade feminina e masculina ou, ainda, ao viés religio-
so defendido.
Dessa construção política, consolidaram-se novas orga-
nizações como a Coordenação Nacional das Entidades Negras
– CONEN (São Paulo, 1991), Centro de Estudos de Relações
de Trabalho e Desigualdades – CEERT (São Paulo, 1991),
Criola (Rio de Janeiro, 1992) e Educação e Cidadania de Afro-
descendentes e Carentes – EDUCAFRO (Rio de Janeiro/São
Paulo, 1995), as quais, juntamente com outras organizações
anteriormente citadas – lembrando que os movimentos ne-
gros extrapolam os limites deste texto –, foram a cara e a voz
negra dos anos 1990.

168  d VERA RODRIGUES


Retornando ao final dos anos 1980, saliento no contex-
to nacional, os eventos de promulgação da Constituição Cida-
dã e o centenário da abolição da escravatura. O conteúdo sim-
bólico do centenário se assentava nas ideias de “liberdade”e
“democracia racial”, porém, isso foi alvo de crítica por orga-
nizações dos movimentos negros que repudiavam o tom cele-
brativo do centenário, e reivindicavam medidas concretas de
igualdade a partir da nova Constituição Federal:
Eu acho que em 1988 o movimento negro brasileiro deu
a resposta adequada ao Estado brasileiro, às tentativas
de manipular o sentido do centenário da abolição. Aqui-
lo que a gente havia definido anos atrás como uma data
de denúncia, acho que a gente fez isso cabalmente no
contexto do centenário. (apud PEREIRA, 2009, p.252).

A resposta dos movimentos negros transpareceu por


vias de mobilização na “Marcha contra a Farsa da Abolição”,
realizada no Rio de Janeiro em maio de 1988. Além dessa
mobilização visível, aconteceram outras articulações não tão
aparentes, mas que impulsionaram ações em todo o país. As-
sim, foi a presença de militantes nos núcleos de partidos po-
líticos, sindicatos, bem como nas coordenadorias, programas
e conselhos da população negra que começavam a ser criados
nesse momento, em âmbito municipal, estadual, federal e que
imprimiram força às reivindicações. Esse diálogo tão próxi-
mo com o Estado não foi fácil ou aceitável para todos os en-
volvidos, já que para alguns isso significava a cooptação do
militante pela máquina estatal, sendo essa apenas uma das
questões delicadas e em jogo no momento.
A principal ação do governo em resposta à pressão mi-
litante foi a criação da Fundação Cultural Palmares (FCP), a
qual nascia como a primeira instância responsável por for-
mular e implantar políticas públicas para a população negra.

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  169
Para alguns, isso representou um avanço na concretização de
uma pauta política, porém, para outros, o caráter cultural da
Fundação revelava o lugar em que, preferencialmente, a pro-
blemática racial era definida e tratada. Esse último entendi-
mento se fez sentir quando se verificou que a Fundação não
dispunha de poder legal, técnico e orçamentário para titular
os territórios quilombolas – uma das atribuições previstas ini-
cialmente – mas apenas o de emitir certidões de reconheci-
mento como comunidade quilombola.
Apesar dos limites impostos à plena atuação da Fun-
dação Palmares, não apenas na questão quilombola, a “visão
de futuro” que consta em sua apresentação institucional é de
“consolidar-se como instituição de referência nacional e in-
ternacional na formulação e execução de políticas públicas da
cultura negra”. A ênfase sobre a “cultura negra” revela outro
caminho possível de direcionamento que não é excludente aos
anseios de participação, reconhecimento e visibilidade da po-
pulação negra.
Na fase intermediária, durante o governo Fernando
Henrique Cardoso, o contexto em parte assemelha-se ao an-
terior: uma data a celebrar (tricentenário da morte de Zumbi
de Palmares, em 1995) e nova marcha oposicionista dos movi-
mentos negros (Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania
e pela Vida em Brasília, no dia 20 de novembro de 1995). A
marcha até hoje é considerada um momento histórico para
os militantes, já que exigiu o enfrentamento das fragilidades
dos movimentos (apoio financeiro, organização interna, su-
peração de antagonismos etc), além de ampliar o horizonte
das articulações com centrais sindicais, políticos de esquerda
e outros atores que vieram a construir a agenda política. Em
relação às diferenças com o contexto político anterior, cabe
atentar para o seguinte: primeiro, a marcha origina um do-

170  d VERA RODRIGUES


cumento intitulado “Programa de Superação do Racismo e
da Desigualdade”, que foi um conjunto de reivindicações cujo
ponto central era a ênfase nas políticas públicas para a popu-
lação negra, conforme excertos a seguir:

yy Inclusão do quesito cor nos sistemas de dados governa-


mentais;
yy incentivos fiscais para empresas que adotassem políticas
de promoção da igualdade racial em seus quadros de fun-
cionários e
yy desenvolvimento de ações afirmativas no acesso à educação
básica ao nível superior. Fonte: Fundação Perseu Abramo,
2003, p.10

Dentre as ações governamentais desencadeadas está a


criação de um grupo de trabalho interministerial (GTI), com-
posto por membros dos movimentos negros e do próprio go-
verno. O GTI sinalizou em seus objetivos para o atendimento
da demanda por políticas públicas a elaboração, proposição
e promoção de políticas governamentais antidiscriminatórias
e de consolidação da cidadania da população negra, assim
como o estímulo e apoio a iniciativas públicas e privadas.
Obviamente, isso não significou a efetivação plena das
reivindicações, mas cimentou o caminho para a continuidade
delas. Outro diferencial marcante no contexto dos anos 1990 foi
a fala presidencial assumindo o racismo como um ­problema per-
tinente ao Brasil e, mais ainda, segundo Santos (2009, p.249), o
reconhecimento que “as históricas desigualdades raciais neces-
sitariam de tratamento específico por parte do ­Estado”.
No final do segundo mandato, militância e governo são
influenciados pelo debate internacional trazido pela Confe-
rência Internacional das Nações Unidas contra o Racismo,

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  171
realizada em Durban, África do Sul em 2001. As organiza-
ções negras promoveram encontros preparatórios, inclusive
abrangendo outros países latino-americanos como exempli-
fica a Conferência de Santiago (2000). Nesses espaços de in-
terlocução construíram-se consensos relacionados às ações
afirmativas e eixos temáticos levados para Durban e é dentro
deste contexto que se entrelaçam o local e o global da pauta
dos movimentos negros, bem como o Brasil torna-se signatá-
rio de acordos e convenções internacionais na área de direitos
humanos e cidadania.
No governo seguinte, mais precisamente no dia interna-
cional pela eliminação da discriminação racial, 21 de março de
2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promo-
ção da Igualdade Racial (SEPPIR). A estrutura organizacional
da SEPPIR configurou-se em subsecretarias de planejamento
e formulação de políticas de promoção da igualdade racial,
políticas de ações afirmativas e políticas para comunidades
tradicionais, além de um órgão colegiado de caráter consul-
tivo, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(CNPIR).
O CNPIR foi composto por 22 órgãos do Poder Público
Federal, entre ministérios e as secretarias com status minis-
terial, sendo interessante que o Ministério do Meio Ambiente
não teve representante, ao menos não divulgado. Da socieda-
de civil foram escolhidas 19 entidades1 através de edital públi-
1No biênio 2010-2012 o CNPIR está composto pelas seguintes entidades: Agen-
tes de Pastoral Negros (APN’s); Articulação de Organização de Mulheres Negras
Brasileiras (AMNB); Associação de Promoção Humano Serumano (SERUMANO);
Associação Nacional dos Coletivos de Empresários e Empreendedores Afro-Bra-
sileiros (ANCEABRA); Central Única dos Trabalhadores (CUT); Centro Nacional
de Africanidade e Resistência Afro- Brasileira (CENARAB); Coletivo de Entidades
Negras (CEN); Confederação Israelita do Brasil (CONIB); Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil-/ Pastoral-Afro (CNBB); Congresso Nacional Afro- Brasileiro
(CNAB); Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN); Federação Árabe
Palestina do Brasil (FEPAL); Federação Nacional das Associações de Doença

172  d VERA RODRIGUES


co, as quais desenham um perfil de ONGs, entidades de classe,
entidades religiosas e organizações dos movimentos negros e
por três notáveis indicados pela SEPPIR.
Coube ao CNPIR a proposição das políticas de promo-
ção da igualdade racial com ênfase na população negra, bem
como incorporar outros segmentos sociais representativos da
lógica de exclusão. Assim, representantes de judeus, indíge-
nas, ciganos, árabes e palestinos debateram sobre a participa-
ção e pertinência na construção da política. Essa não foi uma
discussão sem tensões, pois havia posturas de que a política
da SEPPIR deveria voltar-se para a população negra, em face
do histórico e incidência do racismo brasileiro, e outras que
defendiam uma lógica multicultural, englobante de vários
segmentos. Venceu a multiculturalidade das ações da SEP-
PIR, sem perder de vista ações focadas na população negra
como, especialmente defendidas pelas organizações do movi-
mento negro.
Na sequência dos fatos, o CNPIR propôs alternativas de
superação das desigualdades raciais, tanto do ponto de vista
econômico quanto social, político e cultural. A construção e
articulação política dessas ações nas três esferas governamen-
tais (federal, estadual e municipal) ficou a cargo do Fórum In-
tergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR)
criado em 2005.
O FIPIR veio suprir a ausência de órgãos similares a SE-
PPIR nas demais esferas, além de se constituir como o canal
de diálogo com os gestores públicos. Entre 2005-2010 seis-
centos e nove (609) municípios aderiram ao FIPIR, ou seja,

Falciforme (FENAFAL); Federação Nacional dos Jornalistas/ CONAJIRA; Fórum 


Nacional de Mulheres Negras (FNMN); Fundação Santa Sara Kali (FSSK); Insti-
tuto Nacional de Tradição e Cultura Afro- Brasileira (INTECAB); Rede Amazônia
Negra (RAN); União Nacional dos Estudantes (UNE) e Notório Reconhecimento
em Relações Raciais.

BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  173
adotaram em alguma medida políticas públicas de promoção
da igualdade racial. Isso não significa dizer aderência institu-
cional plena, pois há entraves na efetivação, tais como vonta-
de política, barreiras partidárias, resistências a aplicações da
Lei no 10.639 ou, ainda, o trato da questão quilombola e falta
de estrutura. Em relação a esse último item, um dado inte-
ressante é que só recentemente, a partir de 2009, embora o
FIPIR atue desde 2005, passou-se a exigir dos municípios um
plano municipal de promoção da igualdade racial e instituição
de um organismo local do FIPIR
A exemplo do estado de São Paulo, sessenta e seis mu-
nicípios aderiram ao FIPIR, isso equivale em torno de 10%
do total. No restante do país é possível que o quadro não seja
diferente, o que demonstra ainda o longo percurso a ser per-
corrido na efetivação das políticas. Os municípios participan-
tes comprometem-se a desenvolver ações nos seguintes eixos:

yy Implementação do Programa Brasil Quilombola;


yy Implementação das diretrizes curriculares da Lei n o
10.639/03, e da Lei no 11.645/2008;
yy Desenvolvimento socioeconômico nos eixos do Empreen-
dedorismo, Trabalho e Geração de Renda;
yy Política Nacional de Saúde;
yy Cultura e Religiosidade de Matriz Afro-Brasileira;
yy Segurança Pública e
yy Relações Internacionais.

Também na esfera federal esses eixos, com maior ênfa-


se que os demais, foram objeto de atenção e pressão pela sua
consecução. Isso se deu em um cenário em que a SEPPIR, de
forma geral, desde a primeira gestão até a última, enfrentou
limites impostos por questões que foram do orçamento limi-

174  d VERA RODRIGUES


tado, ausência de transversalidade das políticas com os minis-
térios e frágil base de apoio político-partidário.
No início do atual governo alguns fatos sugerem que
esses obstáculos permanecem. Para começar, houve redução
de orçamento para a Secretaria de Políticas Públicas para Mu-
lher (SPM) e SEPPIR. Na primeira reunião ministerial que
discutiu o Plano de Erradicação da Miséria, a SEPPIR não es-
tava presente à mesa lembrando que diversos estudos já abor-
daram a concentração da pobreza entre a população negra ou
como o economista Hélio Santos diz: “a pobreza aqui tem cor
e procedência” (informação verbal).2
Ainda que, “cor” e “procedência” estejam ausentes, ou
surjam quase como um dado natural na pauta governamental,
permanece o desafio de trazer para uma política universalista
de combate à pobreza os sujeitos nela inseridos. Esse desafio
pode ser o que define a proposta de transversalidade da pers-
pectiva racial nas políticas públicas. Assim, considera-se que
o “País de Todos” é, sobretudo, um processo de construção
política que abarca novos moldes democráticos em que o eixo
norteador é a igualdade de acesso aos bens públicos (educa-
ção, saúde etc.) como um direito inerente ao exercício pleno
da cidadania.

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para a promoção da igualdade racial no ensino superior – Secretaria de Justiça
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BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  175
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BRASIL, “UM PAÍS DE TODOS”?


DA POLÍTICA PÚBLICA UNIVERSAL À POLÍTICA PÚBLICA PELA IGUALDADE RACIAL. d  177
VOZES DA ÁFRICA — CONTEÚDOS E CONTINENTES:
RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS
INDEPENDÊNCIAS1

Fábio Baqueiro Figueiredo

Há um certo consenso historiográfico em situar o marco


inicial dos estudos sobre o nacionalismo africano no fim da Se-
gunda Guerra Mundial. É bem verdade que existe um debate
interessante sobre a pertinência e os termos de uma continui-
dade entre, de um lado, os diversos e multifacetados episódios
de resistência à dominação europeia desde a conquista militar
até meados de século XX e, de outro, as atividades mais ime-
diatamente discerníveis como nacionalistas que surgiram em
períodos mais recentes. Existe, ainda, um reconhecimento ge-
neralizado da relevância, para o nacionalismo emergente após
1945, de mudanças sociais, políticas e culturais, bruscas ou
lentas, que remontam aos primeiros anos do século XX e estão
intimamente relacionadas à imposição da administração colo-
nial e da penetração de uma economia baseada na exportação
maciça de produtos agrícolas e minerais no seio das estruturas
locais (RANGER, 1968a, 1968b, 2010).
O fim da guerra representou, no entanto, e sem sombra
de dúvida, uma espécie de ponto de maturação desses pro-
cessos anteriores nas sociedades africanas sob dominação
colonial, que permitiu por sua vez uma viragem nos discur-
sos públicos anticoloniais, os quais tenderam a abandonar
a ênfase nas propostas reformistas até então em voga para

1 Este artigo é uma versão ligeiramente modificada de uma seção de minha tese de

doutorado, intitulada Entre raças, tribos e nações: os intelectuais do Centro de


Estudos Angolanos, 1960-1980. Alguns temas cruciais a que me refiro aqui e que
não puderam ser desenvolvidos, por questões de espaço, receberam um tratamento
mais pormenorizadamente na tese.

178  d
defender cada vez mais clara e urgentemente a necessidade
da independência política tout court. Essa viragem, além de
estar fundamentada no aumento decidido das demandas de
participação política africana — expresso através da crescente
adesão a sindicatos, associações e partidos políticos, e corpo-
rificado em um sem-número de manifestações e greves — foi
facilitada pelo contexto internacional do pós-guerra, em que
determinados fundamentos políticos liberais foram erigidos
em princípios estruturantes da nova ordem mundial que esta-
va sendo construída.
Que o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill,
e o presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt,
considerassem natural negar às colônias africanas e asiáticas
o direito universal e inalienável à autodeterminação dos po-
vos sacramentado na Carta do Atlântico, que assinaram em
1941 e que serviria de base para a constituição da Organiza-
ção das Nações Unidas (ONU), era algo previsível nos termos
da “lei da diferença colonial”. (CHATTERJEE, 1993, p.16-18).
A grande novidade era existirem então grandes contingentes
africanos prontos a exigi-lo, e a apoiar com atos de rebeldia a
denúncia, repetida incansavelmente por seus intelectuais, do
racismo implícito na perpetuação do domínio colonial, frente
a um público europeu extremamente sensível às lembranças
sangrentas da guerra, e vacilante em seu apoio a alegações de-
masiado explícitas de sua própria superioridade racial.
Ainda em 1943, por exemplo, o jornalista e nacionalis-
ta nigeriano Nnamdi Azikiwe distribuía um panfleto intitu-
lado The Atlantic Charter and British West Africa (A Carta
do Atlântico e a África Ocidental Britânica), em que propu-
nha um cronograma para a obtenção da independência em 15
anos. Esse programa serviu de plataforma para reivindicações
formais dos nacionalistas nigerianos diante do poder metro-

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  179
politano, que terminou obrigado a reconhecer, de muita má
vontade, o direito à autodeterminação dos habitantes de seus
territórios na África Ocidental (ADEBIYI, 2008; IBHAWOH,
2007; JACKSON, 2006, p.220-225).
Ao longo do período que vai do final da Segunda Guerra
até a obtenção das independências, pode-se traçar uma his-
tória contínua de conquistas políticas cada vez mais abran-
gentes, especialmente no que se refere às colônias francesas
e britânicas, que juntas constituíam cerca de três quartos de
todo o território do continente. Essas duas metrópoles toma-
ram a dianteira, diante da pressão exercida sobre sua opinião
pública doméstica e sobre suas administrações coloniais, no
sentido de admitir progressivamente concessões de represen-
tação política e de alguns dos direitos civis que proclamavam
publicamente como universais. Para os representantes polí-
ticos africanos, entretanto, a exigência de que as potências
europeias observassem de fato o universalismo que diziam
promover era apenas uma tática no longo caminho que deve-
ria levar à completa independência (BENOT, 1981; COOPER,
2002, p.38-65; MAZRUI; WONDJI, 2010, seç. II).
As raízes desse novo discurso africano de defesa da
emancipação podem ser remetidas à virada do século XIX
para o XX. Recentemente, diversos autores engajados na
chamada crítica pós-colonial têm-se dedicado a inventa-
riar uma série de contribuições intelectuais que partiram de
fora da Europa e dos Estados Unidos (ou de suas margens),
e que procuraram deslocar os termos da modernidade, seus
conteúdos, seus significados e seus protagonistas (MUDIM-
BE, 1988; APPIAH, 1997; SAID, 1994; para uma coletânea
recente ver SANCHES, 2011). É em meio a esse inventário,
que vem se estabelecendo como uma espécie de “contracâno-
ne” da modernidade, que podemos encontrar um importante

180  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


subconjunto que vai desembocar nos discursos nacionalistas
africanos a partir de 1945, e que podemos reunir, de forma
algo frouxa, sob o rótulo do pan-africanismo. É verdade que
a designação “pan-africanismo” costuma ser utilizada de for-
ma bem mais restrita, e, muitas vezes, em contraposição à
“négritude”. Acredito que essa oposição, bem como uma de-
finição demasiado fechada, não são particularmente produ-
tivas em termos analíticos, como procurarei evidenciar mais
à frente.
Em todo caso, esse rótulo e essas contribuições não
são exclusivamente africanas em sua origem. A visão pan-
-africanista quase sempre incluiu em sua ideia de África os
descendentes de africanos escravizados e levados à força para
as Américas. De fato, o termo “africano” em língua inglesa era
utilizado como sinônimo para “negro”, mesmo nos Estados
Unidos ou na Inglaterra, até pelo menos a década de 1960;
e já foi observado que o agora disseminado termo “diáspo-
ra” guarda uma forte relação com visões religiosas propostas
pelos “retornados” protestantes, ex-escravos ou descendentes
de escravos que migravam dos Estados Unidos e Caribe para
a África Ocidental no final do século XIX e que enxergavam
sua própria experiência em termos de um enredo bíblico de
cativeiro e redenção.
Os principais porta-vozes desse grupo eram, via de re-
gra, homens de fé, em geral vinculados a congregações religio-
sas nas Américas: Edward Blyden, James “Africanus” Horton,
Alexander Crummell, Samuel Johnson, todos “voltavam” à
África imbuídos de uma missão; todos percebiam o futuro da
experiência africana como parte de um desígnio divino para
o cumprimento do qual acreditavam ter um papel a desem-
penhar. Compartilhando das visões europeias do seu tempo
sobre o continente africano, acreditavam no entanto serem o

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  181
grupo em melhor posição para realizar a tarefa de redimir a
África — sua própria raça — das trevas do animismo e da bar-
bárie. A experiência da imposição do domínio europeu, que
assistiram de perto, faria alguns deles mudarem de posição
quanto ao valor relativo da Europa e da África em termos civi-
lizacionais: Blyden, por exemplo, passou a criticar as camadas
urbanas de Serra Leoa, de hábitos ocidentalizados, por se te-
rem “desafricanizado”, e Crummell, desiludido com a realida-
de da cristianização no terreno africano, terminou por aban-
donar o Cristianismo e se converter ao Islã. (APPIAH, 1997;
MACAMO, 2003; MUDIMBE, 1988). De qualquer modo, um
ponto a reter desde já é o fato de que essas formulações se
introduziam no debate público a reivindicação, a partir de
dentro, de um espaço geográfico africano enquanto uma co-
munidade de destino, o faziam em termos de uma identidade
de “raça” a que se emprestavam as funções tradicionalmente
assumidas pela “nação”. De fato, Samuel Johnson foi prova-
velmente o único que empreendeu sua missão em termos de
um quadro nacionalista de inspiração herderiana mais estri-
to, baseado em uma língua, em uma história e em uma cultu-
ra compartilhadas. Curiosamente, o resultado último de seu
ativismo e de sua produção acadêmica não foi o surgimento
de um Estado nacional, mas a constituição de uma moderna
identidade étnica iorubá em parte do território que viria a ser
a Nigéria contemporânea (PEEL, 1989).
Percebemos, assim, como o pensamento político afri-
cano via-se às voltas com a opção por diferentes categorias
para descrever (e organizar) a identificação e a ação social co-
letivas — nomeadamente a etnia, a nação e a raça. A história
do conhecimento ocidental sobre a África, e da própria cons-
tituição das Ciências Sociais, nos séculos XVIII a XIX, pode
ajudar a explicar essa situação, à medida que a distribuição

182  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


espacial desta ou daquela categoria como unidade descritiva
e explicativa preferencial das realidades sociais obedeceu a
uma hierarquização assentada sobre as pretensões da supe-
rioridade europeia, corporificada na projeção sobre o globo
de uma concepção evolucionista da história da humanidade,
segundo a qual ao continente africano corresponderiam os
estágios mais arcaicos, ou “primitivos”, do suposto desenvol-
vimento — do espírito ou das forças produtivas, conforme as
orientações políticas — que deveria desembocar na Europa
industrial capitalista.
O contínuo deslizamento categorial etnia-nação-raça e
sua problemática conciliação com as fronteiras do Estado que
a dominação colonial instituiu mais ou menos artificialmen-
te foram, como se pode facilmente perceber, uma das mais
marcantes características do nacionalismo africano, tanto an-
tes quanto depois da obtenção das independências políticas.
Para os fins deste artigo, entretanto, teremos de abandonar a
análise dessa escala de categorias coletivas e nos concentrar
na vinculação persistente entre um de seus polos (a raça) e a
própria ideia de África.
A primeira atividade pública coletiva que reivindicava a
África como locus de enunciação política, a Conferência Pan-
-africana, realizada em Londres, em 1900, reuniu cerca de
trinta delegados, quase todos negros de origem caribenha vi-
vendo na Inglaterra (muitos, novamente, ligados a denomina-
ções protestantes), e uns poucos africanos e estadunidenses.
Um deles, W. E. B. Du Bois, que iniciava nessa época sua car-
reira como militante antirracista em seu país natal, assumiria
o fardo de dar sequência à ideia de constituir uma rede tran-
satlântica antirracista, passando a se dedicar à organização
de uma série de Congressos Pan-africanos nas duas décadas
seguintes (DECRAENE, [s.d.], cap.1-2).

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  183
O primeiro desses eventos foi celebrado em 1919, em
Paris, de modo a coincidir com a assinatura do tratado de
paz de Versalhes, que punha fim à Primeira Guerra Mundial.
Dentre os cinquenta e sete delegados havia ainda muito pou-
cos africanos, mas um número maior de representantes dos
negros estadunidenses e caribenhos, incluindo um delegado
da Universal Negro Improvement Association (Associação
Universal para a Promoção dos Negros, UNIA), liderada por
Marcus Garvey, que defendia a migração maciça dos negros
das Américas para a África, e a autodeterminação imediata do
continente. O Congresso foi viabilizado pela intervenção de
Blaise Diagne, deputado africano negro à Assembleia Nacio-
nal Francesa pelo Senegal, com uma longa carreira pregres-
sa na administração colonial, que foi apontado presidente.
É significativo, entretanto, que Diagne tenha marcado seu
distanciamento de algumas propostas que circularam no Se-
gundo Congresso, em 1921, por considerá-las muito radicais.
Na manchete do jornal conservador francês Le Figaro, “sá-
bias palavras são pronunciadas — o Sr. Diagne denuncia uma
fórmula perigosa: a África aos africanos”.2 Diagne não estava
então, como muitos outros africanos nas colônias francesas
e portuguesas, interessado na independência política, mas
na extensão dos direitos de cidadania vigentes na metrópole
aos estratos africanos educados em escolas de modelo euro-
peu e que haviam assumido um estilo de vida ocidentalizado,
no quadro unitário da República metropolitana. A absoluta
maior parte da população do continente africano, composta
por camponeses que não se expressavam na língua colonial,
2 United States, University of Massachusetts Amherst Libraries, Special Collections

and University Archives, W.  E.  B.  Du  Bois Papers (US  UM  SCUA  MS  312),
doc. mums312‑b018‑i017, Congrès des Noirs à Paris, Paris, 5 set. 1921. Disponível
em: <http://credo.library.umass.edu/view/full/mums312‑b018‑i017>. Acesso
em: 22 jun. 2012.

184  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


estava à altura completamente excluída desse tipo de debates.
Sua participação política dava-se então num âmbito mais lo-
cal, num jogo complexo de adaptação e resistência às deman-
das e possibilidades suscitadas pela implantação e pela con-
solidação das agências do poder colonial (RANGER, 2010).
De toda forma, a partir de 1920, a ideia do pan-africa-
nismo, implicando possibilidades de conexão, organizacional
ou ideológica, entre associações negras em diversos pontos do
Atlântico, passou a funcionar como um ponto focal para a mo-
bilização dos estudantes negros nas metrópoles europeias, cujo
número cresceu devagar mas continuamente ao longo das duas
décadas seguintes (SHEPPERSON, 1960; LANGLEY, 1969).
Para além das tentativas de organização política, o pan-
-africanismo enquanto ponto focal também serviu de ponte
entre expressões culturais variadas, mas que tinham em co-
mum a experiência do cotidiano de sociedades baseadas na
discriminação racial e em recordações ainda muito próximas
da escravidão. Movimentos como a renascença do Harlem,
iniciada na década de 1920, nos Estados Unidos, o negrismo
cubano dos anos de 1930 e o renascimento literário haitiano
convergiram com as iniciativas literárias de estudantes negros
do Caribe e da África em Paris, como por exemplo a revista
L’Étudiant Noir (O Estudante Negro), conformando o movi-
mento da négritude a partir do fim da Segunda Guerra. É sig-
nificativo que a revista fundada em 1947 para dar expressão
pública ao movimento tenha sido intitulada Présence Afri-
caine (Presença Africana) — a referência à raça negra, do-
minante até então nos títulos de revistas e nas denominações
dos movimentos, sendo substituída por uma alusão à África.
Se, por um lado, essa África era tomada como um espaço ge-
ográfico substantivo, reflexo do aumento da quantidade de
intelectuais africanos atuantes na metrópole e empenhados

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  185
na denúncia da situação colonial, era também o “país natal”
(na expressão consagrada de um dos fundadores da revista,
o poeta martinicano Aimé Césaire) em que os movimentos
artísticos negros das Américas de uma forma ou de outra se
referenciavam (IRELE, 1965a, e 1965b).
Em relação ao processo político da descolonização afri-
cana, o afastamento progressivo de atores, meios e programas
que se verificou entre os nacionalistas das possessões ingle-
sas e aqueles oriundos das colônias francesas foi interpretado
muitas vezes como uma oposição fundamental entre a opção
por uma estratégia de combate político (à qual se costuma
reservar a designação “pan-africanismo”) ou por uma forma
que seria fundamentalmente cultural ou literária, no âmbito
da qual as reivindicações políticas estariam em segundo plano
(à qual se aplica, por extensão, o termo “négritude”).
Em parte, essa percepção binomial é fruto da tentativa
de Léopold Sédar Senghor, um dos fundadores da Présence
Africaine e mais tarde presidente do Senegal, de transformar
a négritude em uma base de justificação filosófica para suas
próprias posições na disputa política no âmbito do Senegal e
da África Ocidental Francesa, conjunto administrativo no qual
seu país estava inserido até as independências. Essa tentativa,
que mobiliza as categorias de raça, nação e etnia, não poderá
ser analisada aqui, por questões de espaço. Em todo caso, de-
sejaria expressar minha inquietação diante da opção analítica
de destacar a négritude do conjunto desse grande movimento
de reivindicação da África como espaço de enunciação.
A meu ver, ao contrário, esse afastamento envolve me-
nos diferenças profundas de conteúdo ou orientação filosófica
e ideológica, e mais as necessidades conjunturais do enfren-
tamento a duas potências coloniais com estilos de dominação,
climas intelectuais, opiniões públicas, quadros legislativos e

186  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


formas de repressão significativamente diferentes. A alegada
contradição entre a produção literária e a atuação política dos
intelectuais comprometidos com a négritude simplesmente
não se verifica na prática — não apenas as edições de Présence
Africaine veiculavam artigos muito claramente políticos, mas
muitos de seus associados candidataram-se a uma série de
cargos em seus territórios de origem, e foram, quase sempre,
eleitos por ampla maioria. Além disso, muitos dos naciona-
listas das colônias francesas não tinham pretensão literária
alguma. Houve, é verdade, muito pouca comunicação entre
os nacionalistas que lutavam contra a dominação francesa e
aqueles que lutavam contra a dominação britânica (para não
falar dos nacionalistas das colônias portuguesas e belgas, que
se moviam em espaços bem menos abrangentes). Nesse que-
sito, o domínio da expressão culta em francês ou em inglês
era provavelmente o aspecto definidor das articulações possí-
veis e de suas respectivas zonas de silêncio — algo que só co-
meçou a mudar nos últimos anos da década de 1950, quando
Gana e Guiné, tão logo emancipados, passaram a promover
tentativas de unidade política e econômica nos níveis regional
e continental, no contexto de uma África formada por uma
multiplicidade de Estados independentes. (sobre o domínio
da língua colonial, ver ELAIGWU, 2010; SOW; ABDULAZIZ,
2010; PRAH, 2008; para o caso do português, MATA, 2006,
2007, p.144-165).
Em termos de concepções de base sobre a África, seu
passado e seu destino, os nacionalistas que lideraram o cami-
nho para as independências após a Segunda Guerra — fosse
confrontando a Inglaterra, a França, a Bélgica ou Portugal —
concordavam mais do que divergiam. Eles compartilhavam
não apenas um significativo conjunto de textos, literários e
ensaísticos, constituído ao longo da primeira metade do sécu-

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  187
lo XX nas duas margens do Atlântico, como vimos acima, mas
também uma marcada influência moral cristã (fosse católica
ou protestante), quase sempre derivada de sua formação es-
colar inicial em missões religiosas em seus territórios de ori-
gem — considerando a importância das missões para a esco-
larização formal de modelo europeu, não admira que muitos
fossem filhos de pastores e catequistas protestantes, ou tives-
sem um padre católico na família. Finalmente, os nacionalis-
tas africanos das independências compartilhavam ainda um
certo corpo de noções antropológicas sobre o continente que
circulavam então na Europa.
Com efeito, especialmente a partir dos anos 1930, tanto
antropólogos profissionais quanto missionários e adminis-
tradores coloniais com preocupações etnográficas vinham-
-se dedicando a “reabilitar” a África, seus habitantes, rituais
e instituições, do universo simbólico ligado à sua classificação
como espaço por excelência do “primitivo”, herdada do século
XIX. Em 1936, a editora Gallimard traduzira para o francês
a obra da maturidade do historiador da cultura alemão Leo
Frobenius, como Histoire de la Civilisation Africaine (Histó-
ria da Civilização Africana). Essa obra, que condensava de
trinta anos de pesquisas sobre mitos e cultura material de di-
versos povos africanos, investiu contra o consenso vigente ao
defender a existência de uma história africana significativa e
a relevância de estudá-la — ainda que seu autor se recusasse a
reconhecer nos africanos os autores das obras mais sofistica-
das que encontrou em campo. Por sua vez, em 1937, o antro-
pólogo inglês E. E. Evans-Pritchard declarou ter identificado
um pensamento lógico perfeitamente racional nas crenças
de um grupo africano acerca dos efeitos do sobrenatural, em
Witchcraft, oracles and magic among the Azande (Bruxaria,
oráculos e magia entre os azande). Mais tarde, observou que

188  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


mesmo os povos africanos “sem Estado” tinham, sim, uma or-
ganização política, em sua etnografia sobre os nuer, publicada
em 1940; e tornou respeitável o estudo das instituições polí-
ticas africanas com o livro coletivo organizado no mesmo ano
em colaboração com seu colega sul-africano Meyer Fortes,
African political systems (Sistemas políticos africanos). Em
1945, saía em francês, na então colônia belga do Congo, a pri-
meira versão de La philosophie bantoue (A filosofia bantu), do
padre franciscano Placide Tempels, que declarava haver des-
vendado um sistema filosófico completo e coerente entre os
baluba. Já o administrador e etnólogo Marcel Griaule impôs
a discussão ao universo acadêmico francês com a publicação
de Dieu d’eau (Deus de água), em 1948, no qual demonstrava
que o nível de sofisticação intelectual envolvido nos mitos cos-
mogônicos dogon era comparável ao da Grécia antiga.
Toda essa produção intelectual africanista apontava no
sentido de reforçar a tese, que se tornou consensual apenas
na segunda metade do século XX, da unidade fundamental
da espécie humana. Entretanto, se essa tese implicava o reco-
nhecimento formal de uma igualdade potencial entre africa-
nos e europeus, seus defensores não estavam necessariamen-
te preparados para admitir uma igualdade prática em todos
os níveis; muito pelo contrário. Na verdade, muitas dessas
obras foram escritas com a finalidade explícita de subsidiar
as tarefas da administração colonial — melhor compreender
os africanos para melhor governá-los, evitando mal-entendi-
dos culturais e conflitos desnecessários. De modo geral, esse
movimento de descoberta da humanidade fundamental dos
africanos contribuía para afastar do discurso científico, de
uma vez por todas, alegações de uma superioridade europeia
de base racial, mas a suposição de superioridades sociais, po-
líticas, econômicas e culturais, contextuais e mais ou menos

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  189
matizadas, persistia, junto com um arcabouço evolucionista
subjacente, cada vez mais implícito nas análises.
Essa série de influências intelectuais comuns fez emer-
gir um conjunto de características inter-relacionadas e lar-
gamente disseminadas, que se encontram, com variações,
no pensamento da maior parte dos intelectuais nacionalistas
africanos. Em primeiro lugar, a associação entre África e a
raça negra, ainda que a noção de raça envolvida assumisse,
para além de qualquer determinação genética, um aspecto de
unidade cultural e civilizacional que a aproximava da nação
— o que se ligava à certeza, experimentada existencialmente
por muitos deles, da ineficácia dos projetos de assimilação.
Em segundo lugar, um nativismo difuso, corporificado nas
representações da África pré-colonial como um espaço de
exercício de uma solidariedade social ampla e de realização
humana coletiva, em que os conflitos eram pouco significa-
tivos e facilmente resolvidos, com o recurso à observação de
valores morais superiores àqueles em vigor no mundo ociden-
tal. Essa visão estava relacionada à ideia de que a conquista e
a dominação colonial haviam interrompido a trajetória civi-
lizacional do continente africano — uma trajetória percebida
como largamente unitária, comparável à trajetória civilizacio-
nal da própria Europa, mas essencialmente diferente, e capaz
de aportar valores e realizações particulares, necessários ao
desenvolvimento do conjunto da humanidade, que se orien-
tariam por um humanismo profundo, sensível e irredutível,
em contraste com a racionalidade técnica e instrumental in-
dividualista que seria característica da Europa. Em terceiro
lugar, e como consequência lógica das duas primeiras, uma
certa relutância em admitir a validade, para o caso africano,
de categorias de análise social que enfatizassem o conflito (es-
pecialmente classe e, mais ainda, luta de classes), o que podia

190  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


ser traduzido em uma desconfiança, maior ou menor, em re-
lação ao marxismo, ou, quando menos, na afirmação da ne-
cessidade de adaptação de suas fórmulas à realidade africana
(fórmulas essas que correspondiam, é bem verdade, à versão
esquemática de uso corrente entre os partidos comunistas das
metrópoles). Tendo em vista o contexto da inescapabilidade
da Guerra Fria, os matizes envolvidos nessas propostas dis-
cursivas de minimização do conflito social interno chegaram
a assumir enorme significação prática.
Esse conjunto de características gerais constituíram
uma base intelectual comum a partir da qual os diversos
atores políticos africanos, confrontados com situações espe-
cíficas, esboçaram um ideal de futuro, formularam seus pro-
gramas, identificaram seus oponentes, planejaram seus méto-
dos, e elencaram suas justificações em disputas concretas nos
planos intra e supranacionais. Mas, neste breve panorama do
contexto intelectual e político em que se moviam os naciona-
lismos africanos na época das independências, é preciso ain-
da mencionar o processo de constituição do Terceiro Mundo
como um personagem global.
O deslanchar do processo de descolonização na Ásia
havia antecedido ao da África em cerca de dez anos, com a
proclamação da independência da República Democrática do
Vietnã, ainda em 1945. Entretanto, a década que se seguiu foi
repleta de golpes e contragolpes marcados fortemente pelos
interesses das novas superpotências e de sua Guerra Fria: a
recusa da França em aceitar a independência e a implanta-
ção de um regime comunista em sua antiga colônia levando
à Guerra da Indochina (1946-1954) e à partição do Vietnã; a
guerra civil na China, com a vitória dos comunistas em 1949
e a fuga dos nacionalistas para Taiwan; a tentativa militar de
reunificação da Coreia pelo regime comunista do norte em

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  191
1950 seguida da intervenção estadunidense e da partição defi-
nitiva em 1953 (PANIKKAR, 1977). Em busca de articulações
diplomáticas que permitissem afastar o risco de intervenções
militares em seus próprios territórios, um grupo de cinco paí­
ses — Indonésia, Índia, Paquistão, Ceilão (atual Sri Lanka) e
Birmânia — convocou uma Conferência Afro-Asiática de Che-
fes de Estado, que teve lugar na cidade de Bandung, na Indo-
nésia, em 1955.
Da parte africana, compareceram os países já formal-
mente independentes e aqueles que viviam sob governos de
transição. Mas, e talvez mais importante, estiveram também
em Bandung, como observadores, movimentos armados de li-
bertação e partidos políticos que lutavam pela independência.
Uma outra indicação da importância simbólica desse evento
para o contexto intelectual que venho tentando esboçar nesta
seção é a participação do romancista estadunidense negro Ri-
chard Wright, provavelmente o maior herdeiro intelectual da
renascença do Harlem, que deixou um testemunho literário
do encontro, centrado na questão da raça e suas implicações
na política internacional (WRIGHT, 1956).
A declaração final da Conferência reafirmava alguns
princípios norteadores das relações internacionais já estabe-
lecidos na Carta das Nações Unidas, e fazia menção explícita
a esse documento em sua primeira resolução — no que vemos
mais uma vez em operação a estratégia de forçar as potências
coloniais a respeitarem as normas universais que elas mes-
mas haviam estabelecido. A condenação a qualquer forma de
colonialismo, a recusa do alinhamento automático às super-
potências, a defesa da não interferência estrangeira e a de-
núncia das alianças militares da Guerra Fria completavam o
modelo internacional defendido em Bandung. O conjunto das
resoluções aponta para um padrão de atuação que as antigas

192  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


colônias da África e da Ásia passaram a adotar dali por diante:
o reforço incondicional do papel da ONU como canal legítimo
para a resolução de disputas interestatais, e a formação de um
“bloco” afro-asiático na Assembleia Geral do órgão, bastante
coeso quando o assunto em pauta dissesse respeito à situação
de territórios sob domínio colonial — embora, se fosse outra a
matéria, esse bloco tendesse a se dividir conforme os alinha-
mentos da Guerra Fria (GAREAU, 1972).
O legado da Conferência de Chefes de Estado pode ser
avaliado pela proliferação posterior de conferências que reu-
niam antigas colônias de diferentes continentes, ainda que
nenhuma delas tenha sido, oficialmente, uma continuação da
primeira. Na verdade, o “espírito de Bandung” e seu enorme
prestígio foram apropriados por forças significativamente
mais à esquerda, e dedicadas a um anticolonialismo muito
mais militante. Um exemplo é o percurso que vai da Confe-
rência de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos, no Cairo,
em 1957, à Conferência de Solidariedade aos Povos da África,
Ásia e América Latina, em Havana, em 1966, mais conhecida
com a Conferência Tricontinental (BRIEUX, 1966; JACKSON,
1995; KIMCHE, 1969).
No âmbito estritamente africano, cabe destacar a apro-
ximação entre o impulso pan-africano legado pelo Congresso
de Manchester, em 1945, e o “espírito de Bandung”, o que to-
mou corpo nas três edições da Conferência dos Povos Afri-
canos — em 1958 em Acra, em 1960 em Túnis, e em 1961 no
Cairo — a qual reunia governos independentes e movimentos
de libertação do continente. Por outra via, Bandung desem-
bocou também na constituição do Movimento dos Países Não
Alinhados (MNA), cuja primeira reunião de cúpula ocorreu
em Belgrado, em 1961. É significativo que as três reuniões
de cúpula subsequentes tenham sido realizadas na África —

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  193
em 1964 no Cairo, em 1970 em Lusaka, e em 1973 em Argel
(SAHOVIC, 1977; VERLET, 1980; EDMONDSON, 2010).
Não foi propriamente com a Conferência de 1955 que
se introduziu na história do século XX o Terceiro Mundo. O
termo fora sugerido pela primeira vez em 1951 e entrara de-
finitivamente no vocabulário acadêmico em 1956, com a pu-
blicação de um número especial de um periódico acadêmico
francês voltado para o estudo estatístico, acerca do problema
do desenvolvimento e do subdesenvolvimento (BALANDIER,
1956). Mas, inicialmente, essa formulação abstrata não pas-
sava do rótulo a aplicar a um conjunto inerte de países pro-
blemáticos, que apresentavam indicadores estatísticos mui-
to semelhantes. Foi o legado organizacional de Bandung e
a apropriação de seu “espírito” por uma esquerda militante
nos países saídos ou que iam saindo da situação colonial, ao
longo da década de 1960, que fez o Terceiro Mundo se tornar
progressivamente a referência coletiva a um protagonismo
multiforme, que abrangia um conjunto de atitudes políticas
concretas embasadas em uma clara opção anticolonial, fosse
ela feita por governos ou por partidos ou movimentos sociais
de oposição a situações consideradas neocoloniais. (GUI-
TARD, 1974). Essa emergência como ator coletivo global en-
contra sua corporificação última com o lançamento das revis-
tas L’economiste du Tiers Monde (O economista do Terceiro
Mundo), em 1973, em Paris — pelo egípcio Simon Malley, que
quatro anos antes havia fundado Africasia, mais tarde reba-
tizada Afrique‑Asie (Africa‑Ásia) — e Cuadernos del Tercer
Mundo, em 1974, em Buenos Aires. Ao longo desse processo,
o Terceiro Mundo tornara-se um outro locus de enunciação
para o nacionalismo africano — um espaço em que a indepen-
dência da África se colocava no quadro de um discurso global
de enfrentamento da hegemonia europeia.

194  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


Embora obedecendo a diferentes cronologias de desen-
volvimento, tanto “África” (ca. 1900-1945) quanto “Terceiro
Mundo” (ca. 1955-1970) foram, para o nacionalismo africano
das independências, loci de enunciação política tanto quanto
categorias de identificação coletiva em macroescala, comuni-
dades de destino reivindicadas por acadêmicos, literatos e na-
cionalistas, cujo devir compreenderia uma etapa fundamental
da história da emancipação humana. Sua capacidade de mo-
bilização política não deve ser menosprezada.
Internamente, no âmbito de cada território indepen-
dente ou em vias de o ser, ambas foram invocadas, simul-
tânea ou alternadamente, em contraposição a categorias de
identificação coletiva em escalas infraestatais, em particular a
etnia. Concebida como inerentemente conflitante com o pro-
jeto modernizador encampado pelo nacionalismo, a etnia foi,
quase sempre, a culpa do outro, o estratagema ilegítimo que
se acusa o oponente político de lançar mão.
Externamente, em termos das relações entre movi-
mentos de libertação africanos (e mais tarde os governos que
eles se tornaram), poderíamos dizer que, se o pan-africanis-
mo forneceu os fundamentos ideológicos sobre os quais os
nacionalistas africanos pensaram a relação entre etnia, na-
ção e raça em cada território específico, o Terceiro Mundo em
constituição e sua rede de alianças internacionais serviram
para conformar a grade na qual essas ideias tiveram de se
posicionar em relação umas às outras ao longo da década de
1960. São esses fundamentos e essas redes que se articula-
ram para conformar a política africana das independências.
De um lado, o espaço africano viu nascer logo no início da
década, sob o impacto da crise do Congo, uma clivagem que
dividiu o campo do nacionalismo em duas grandes opções
políticas (GIBBS, 1993, 2000; NWAUBANI, 2001; WITTE,

VOZES DA ÁFRICA – CONTEÚDOS E CONTINENTES:


RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  195
2002). Essas opções diziam respeito, primariamente, à ma-
nutenção ou à transformação das relações entre a colônia
que se independentizava e os interesses comerciais metropo-
litanos. Obviamente, a adesão mais ou menos explícita a um
terceiro-mundismo revolucionário estava implicada aqui.
(WALLERSTEIN, 1971). Mas a relevância de um discurso de
identificação baseado na raça não deixava de estar presen-
te, por exemplo, no recurso a um discurso de “autenticidade”
como legitimador de regimes conservadores frente a oponen-
tes internos “revolucionários”.
Por outro lado, a força do pan-africanismo se revela por
inteiro na constituição de uma “linha de frente” entre os paí-
ses independentes e o sul do continente sob dominação bran-
ca (BIRMINGHAM, 1992). Tanto as colônias portuguesas de
Angola e Moçambique quanto os regimes de apartheid da
África do Sul e Rodésia do Sul eram considerados, pelo con-
junto dos países africanos, independentemente de suas res-
pectivas orientações ideológicas, como sujeitos à dominação
colonial (KUPER, 1964). O movimento negro estaduniden-
se, da mesma forma, empenhou-se fortemente no combate a
esses regimes (SHEPHERD JR., 1977). Mas, mesmo aqui, o
terceiro-mundismo não deixou de ser extremamente relevan-
te, por exemplo, no apoio aos movimentos de libertação da
África austral provido pelos países do norte da África, para os
quais uma reivindicação de unidade continental baseada na
raça tinha um apelo extremamente limitado.
Ao longo deste brevíssimo panorama, esforcei-me para
indicar as linhas fundamentais do que acredito serem as raí-
zes intelectuais do nacionalismo africano das independências:
uma longa e multiforme tradição pan-africana, uma formação
moral predominantemente cristã e um conjunto de concep-
ções sobre a África derivadas de uma Antropologia europeia

196  d FÁBIO BAQUEIRO FIGUEIREDO


bem-intencionada mas ainda fortemente marcada pela forma
evolucionista. Ao mesmo tempo, tentei mostrar como a emer-
gência do Terceiro Mundo como categoria de identificação
coletiva mudou o panorama do campo nacionalista, e como
esses dois grandes polos simbólicos, África e Terceiro Mun-
do, combinaram-se para dar forma ao complexo e conflituoso
campo da política africana a partir da década de 1960.

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RAÍZES INTELECTUAIS DO NACIONALISMO AFRICANO DAS INDEPENDÊNCIAS d  201
3
Literatura, Língua e Filosofia
MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA:
UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO

Rodrigo Ordine

Desenvolvido no campo da Física, o termo “resiliência”


é utilizado para demonstrar a capacidade de resistência de
alguns materiais à aplicação de determinada força. Uma vez
que tal força deixa de ser exercida, o material retorna ao seu
estado original aparentemente sem danos.
Esse conceito tem sido usado por pesquisadores, como
Sandra Cabral Baron1, que se dedicam à compreensão do pro-
cesso de trauma sofrido por determinados indivíduos, uma
vez que o grau de resiliência poderia ser entendido, por ana-
logia, ao tipo de resposta que é dada por indivíduo à ocor-
rência de um trauma. Obviamente, quando se refere a seres
humanos, o conceito de resiliência pode soar estranho, já que
os indivíduos nunca voltarão “o seu estado original” (como
lembra Baron): primeiro, porque a noção de origem é de fato
essencialista e, em segundo lugar, porque uma dada socieda-
de acaba por apresentar aos indivíduos nela inseridos várias
experiências diárias que os transformam de forma contínua,
levando-os a escolher entre diferentes mundos simbólicos, a
fim de “viver a vida.”
Contudo, após a experiência traumática, o indivíduo
procura formas de retornar a um estado possível de ser vi-
vido, isto é, há uma busca de harmonização entre o ser de
antes do trauma e o novo ser, já marcado por ele. Nesse mo-
vimento, se não há a volta ao estado original, há, contudo,

1 Cf. BARON, Sandra Cabral. Estratégias criativas de sobrevivência psíquica ao


traumatismo insidioso de um cotidiano de adversidades. Disponível em: <http://
www.senesat.uff.br/sandra.pdf.> Acesso em: 01 maio 2013.

d  205
a reconstrução de uma nova identidade, e nele se envolve
um outro processo que define o quão bem a resposta a um
trauma pode(pôde) ser elaborada: o processo de coping ou
enfrentamento. De modo geral, o coping pode ser entendido
como o modo de se articular o estresse envolvido no trauma,
ou seja, da relação particular entre o indivíduo e o ambien-
te, o qual é apreciado por aquele como excedente aos seus
recursos de compreensão. Havendo uma boa administração
do estresse envolvido, fundamenta-se o coping, um conjunto
de esforços cognitivos e comportamentais utilizados com o
objetivo de lidar com demandas específicas que surgem em
situação de estresse (LAZARUS & FOLKMAN apud YUNES
& SZYMANSKY, 2001).
Por via de adaptação, sugiro o entendimento do pro-
cesso de enfrentamento através do que propõem os teóricos
da Sociologia do Conhecimento, Peter Berger e Thomas Lu-
ckman (1991), quando definem o conceito de “alternação”, ou
seja, uma constante, necessária e semiconsciente escolha por
mundos simbólicos disponíveis baseada em processos de ins-
talação e manutenção de realidade, mediada pelo diálogo e
por interações face a face. Resumidamente, à medida que o
indivíduo se desenvolve, toma contato com diferentes mun-
dos simbólicos que ele apreende como existentes e possíveis
através do diálogo e de outros elementos presentes em intera-
ções com outros indivíduos. Quanto maior o número de inte-
rações em que ele é capaz de participar, mais mundos simbó-
licos podem lhe ser apresentados e, com isso, o indivíduo se
vê impelido a determinadas escolhas a partir de seus critérios
pessoais e também grupais. Dito de outro modo: a identidade
individual será reconstruída continuamente a partir de sele-
ções de mundos simbólicos reconhecíveis como pertinentes a
uma vivência harmônica em determinada sociedade. Como o

206  d RODRIGO ORDINE


processo é semiconsciente (nem sempre havendo clareza de
que se está optando por determinado mundo), o indivíduo
tem a sensação de que sua história de vida faz sentido e pode
ser narrada linearmente.
Por outro lado, nem sempre os mundos simbólicos
disponíveis para seleção estão em concordância com o mo-
dus vivendi do indivíduo, que, então, buscará mecanismos de
enfrentamento para sentir em menor intensidade o estresse
advindo das escolhas feitas, especialmente se o processo de
alternação for do tipo radical, como numa conversão religio-
sa, quando há o redimensionamento de uma significativa par-
te de sua conduta de vida. Se o enfrentamento dessa escolha
por um novo mundo simbólico (ou uma mescla de alguns pos-
síveis) não se dá de modo a garantir uma sensação de com-
preensibilidade, estabilidade e pertencimento a um grupo, o
indivíduo pode se encontrar numa situação de desconforto: a
realidade, in toto, passa a não ser mais inteligível e, portanto,
passa a ser traumática.
Assim, o trauma não obrigatoriamente é fruto gerado
a partir de um grande evento do qual o indivíduo se tornou
vítima, como guerras, acidentes e outros. Ele pode se con-
figurar a partir da realidade cotidiana em si, uma vez que
esta realidade precisa ser entendida, tornar-se significativa e
compreensível. Logo, indivíduos traumatizados pela cotidia-
nidade apresentam uma necessidade de compreender as ex-
periências vividas pelo processo de tentar dar sentido a uma
provação, ao menos a priori, sem sentido. O indivíduo que
se caracteriza preso a um cotidiano traumático experiencia
dificuldades de responder eficazmente aos eventos rotineiros
porque estes são carregados de um excesso de informação
impossível de ser processado. De acordo com o meu ponto
de vista, a intensidade da condição traumática acaba por não

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  207
comportar uma administração cotidiana e provoca no indiví-
duo uma imobilidade de respostas aos eventos, muitas vezes
não expressa por inatividade, mas pela repetição de diálogos
e comportamentos; reações ao invés de ações; ou mesmo em
padrões contínuos de relacionamento. Dessa forma, uma
vez que se pense em um componente resiliente relacionado
ao trauma, é preciso ajustar esse conceito ao que Martineau
(1999) denomina de “resiliência performática” ou, por outras
palavras, a tentativa de restaurar o contexto original de um
indivíduo através de ferramentas que tornarão a sua existên-
cia significativa e lhe darão, ao menos, uma justificativa para
que ele continue vivendo. Uma dessas ferramentas seria a
narrativa: alguns indivíduos encontram na narração de seus
traumas uma forma de apaziguamento de suas dores e tam-
bém um modo de tentar dar sentido à experiência que lhe
trouxe um mundo simbólico impossível de ser digerido cog-
nitivamente. Contudo, esse desencontro com o real se apre-
senta de modo tão intenso que a própria linguagem não se
mostra capaz de descrever com exatidão a experiência vivida,
impossibilitando um espaço de intelecção. Assim, o que se
testemunha é um excesso de realidade e o que configurará o
testemunho enquanto narração é uma falta, isto é, uma rup-
tura entre o evento e a linguagem, “a impossibilidade de re-
cobrir o vivido (o ‘real’) com o verbal” (SELIGMANN-SILVA,
2003, p.46). Todavia, como também aponta Seligmann-Silva,
essa impossibilidade pode ser enfrentada através da arte que,
pela via da imaginação, utiliza-se da “linguagem entravada”
para enfrentar o “real” (Op.cit., p.47).
É nesse sentido que proponho a análise da obra Sôbolos
rios que vão (2012), do escritor português António Lobo An-
tunes. Pretendo, porém, refletir inicialmente sobre as primei-
ras obras do autor para depois chegar ao objetivo enunciado.

208  d RODRIGO ORDINE


A guerra colonial angolana é um tema recorrente em
parte da obra de ficção de António Lobo Antunes. Seus três
primeiros romances, Memória de Elefante (1979/2000),
Os Cus de Judas (1979/2003) e Conhecimento do Inferno
(1980/1999) – conhecidos como a Trilogia da Guerra – são
extra­tos de experiências traumáticas literariamente manipula­
das. Mesmo se tendo cuidado para não cair na armadilha de
atribuir uma origem autobiográfica ao que é uma criação fic-
cional, eles apresentam um personagem que é um psiquiatra
que voltou da guerra colonial em Angola e se mostra clara-
mente assombrado por memórias desse evento em seu retor-
no à carreira médica em Lisboa (o próprio Lobo Antunes é um
psiquiatra que trabalhou como médico nos campos de guerra
em Angola por dois anos durante a luta de libertação).
Como Isabel Moutinho (2008) defende, o paradoxo fun-
damental da obra de Lobo Antunes é que a prosa exuberante
e detalhada é fortemente usada para narrar a monotonia na
vida dos protagonistas que partilham o gosto pelo silêncio ou
a incapacidade de quebrá-lo. Essa dialética de silêncio e fala,
ou do aprisionamento em silêncio e a vontade de quebrá-lo, é
constantemente reformulada no entrelaçamento entre a fic-
ção autobiográfica e a guerra colonial. Moutinho ressalta que,
em Memória de Elefante (2000), ou o médico precisa sentir-
-se encapsulado em um silêncio protetor ou simplesmente
suspeita que suas palavras não terão efeito algum desde que
ele não será ouvido. Mesmo que ele diga alguma coisa, essa
angústia, por fim, fazê-lo-á sentir-se já não pertencente a al-
gum lugar. Essa é também uma das bases de Os Cus de Judas
(2003), como aponta a pesquisadora:
His war experience, and his involvement with the (res-
tricted) African civilian populations he also cared for,
revealed that the place where he thought he belonged

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  209
was not only a place but a set of values and a time which
history had already condemned 2 (MOUTINHO, 2008).

Ao meu ver, o projeto literário dessa trilogia não serve


unicamente a apresentar memórias da guerra personalísticas,
mas sim criar narradores que deem voz, em seus longos mo-
nólogos, aos combatentes esquecidos tanto de Portugal quan-
to de Angola e aos inúmeros mortos que não podem levan-
tar suas vozes em protesto contra o silêncio reinante. Nessa
matéria, a memória privada é usada para cumprir um papel
social, o de reverter a amnésia da história e quebrar o silêncio
oficial ensurdecedor. De outra forma, pode ser possível afir-
mar que as narrativas das três obras de Lobo Antunes pre-
tendem abordar, em algum nível, a responsabilidade dos ci-
dadãos portugueses comuns em relação à guerra em Angola,
inclusive fazendo com que se sintam culpados por seu próprio
silêncio sobre o evento.
Muito embora a temática central de Sôbolos rios que vão
não seja a guerra, é também o trauma a demarcar a existência
de indivíduos o que se apresenta nessa narrativa. Na contraca-
pa da obra publicada no Brasil, a título de sinopse, lê-se:
Após a retirada de um tumor, o narrador desta história
de fundo autobiográfico passa os dias entregue à fra-
queza do corpo. Sofrendo com as dores e humilhações
da doença, ele se recorda dos caminhos trilhados até
então – a ingenuidade e as descobertas da infância, a
vila em que morou e os ares da serra, a convivência com
os avós, as cartas não correspondidas pela menina que
amava – ao mesmo tempo em que encara a incoerência
da morte em relação à infinita riqueza de experiências
da vida. (ANTUNES, 2012).
2Sua experiência de guerra e seu envolvimento (restrito) com as populações civis
africanas das quais cuidava, revelou que o lugar ao qual ele achava que pertencia
não era apenas um lugar, mas um conjunto de valores que a história já havia
condenado. (Tradução minha).

210  d RODRIGO ORDINE


Inicialmente, a classificação do romance como “de fun-
do autobiográfico” parece remeter à estrutura já observada na
trilogia do início da carreira do escritor português. Apesar das
ressalvas já feitas sobre a cilada que pode se tornar uma aná-
lise que misture as categorias de autor e de narrador, é impor-
tante observar que: a obra é organizada em capítulos repre-
sentados como se fossem páginas de um diário (datadas de 21
de março a 04 de abril de 2007); o narrador é referido como
“senhor Antunes da cama onze” (ANTUNES, 2012, p.16) por
uma das vozes presentes no primeiro capítulo e como “Anto-
ninho” (ANTUNES, 2012, p.16) por outra voz logo em segui-
da; além do fato de que o autor António Lobo Antunes tenha
sido diagnosticado com câncer exatamente como o narrador
da obra. Tais entrelaces podem levar o leitor ingênuo a pensar
que Sôbolos rios que vão (2012) é uma autobiografia. Entre-
tanto, já há algum tempo, produções literárias subvertem o
gênero autobiográfico, produzindo obras de efeito caleidoscó-
pico, que emprestam técnicas da autobiografia e as mesclam
com traços romanescos (ou vice-versa).
Por exemplo, na novela de César Aira, Como me hice
monja, estão presentes muitos ingredientes da narrativa auto-
biográfica (apud KLINGER, 2007). O narrador, em primeira
pessoa, promete contar a história de sua vida, que coincide,
segundo ele informa, com a história de sua transformação (vi-
rar freira). O que instiga é que a trama da novela é construída
a partir de elementos que identificam o narrador-protagonista
com o autor. O narrador, que ostenta permanentemente ter
uma memória implacável, perfeita, é chamado de “César”,
“Césarito”, “o menino Aira”; no entanto, o relato de César
Aira desmente todas as expectativas do leitor de que se trata
de uma ficção autobiográfica: os elementos autobiográficos da
ficção chocam-se com as formas paradoxais em que o narrador

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  211
constrói sua história. O gênero do nome do autor que figura na
capa (César Aira) não concorda com a voz que enuncia o título
“como virei freira”, voz que remete a um sujeito feminino.
Klinger (2007) também pontua sobre a novela de Fer-
nando Vallejo, La virgem de los sicarios, onde um “anjo ex-
terminador” percorre as ruas de Medellín, limpando-a de par-
te de seus moradores e ao mesmo tempo livrando seu amante
daquilo que mais parece incomodá-lo: o outro, o ser humano.
O narrador da novela, gramático de profissão, voltara já velho
à Colômbia da sua infância e iniciara uma relação homosse-
xual com o “anjo”, um rapaz chamado Alexis, um sicário (ou
assassino profissional). Em Noches vacías, de Washington
Cucurto (apud KLINGER, 2007), o narrador relata suas aven-
turas noturnas no mundo marginal da “cumbia” (gênero mu-
sical que se produz, ouve-se e se dança às margens da cultura
oficial, possivelmente comparável ao funk brasileiro), povoa-
do pelas recentes imigrações de latino-americanos que chega-
ram à Argentina dos anos noventa com a ilusão de encontrar
melhores condições de vida. Em Nove Noites, de Bernardo
Carvalho (apud KLINGER, 2007), um jornalista se interna
na aldeia de índios krahô no Xingu em busca de dados sobre
Bell Quain, promissor antropólogo norte-americano que, em
1938, aos 27 anos, suicidou-se em circunstâncias misteriosas
quando voltava da aldeia indígena para a cidade de Carolina.
O que une os últimos três romances citados e os torna
especialmente curiosos para a análise literária é justamente
o campo movediço da memória, das relações autobiográfi-
cas e dos pactos autobiográfico e ficcional. Segundo Klinger
(2007), em Noches vacías, o nome do personagem coincide
com o pseudônimo do autor, Washington Cucurto. Na novela
de Fernando Vallejo, o narrador possui vários traços da bio-
grafia do autor, fora o fato de que ele mesmo declarou para a
imprensa de que se trataria de uma “história de amor autobio-

212  d RODRIGO ORDINE


gráfica”. Por sua parte, em Nove Noites, a figura do narrador
também está montada com traços autobiográficos e Bernardo
Carvalho, ao colocar na orelha do livro uma foto sua, aos 6
anos de idade, de mãos dadas com um índio no Xingu, inse-
re sua própria imagem na trama romanesca. É precisamente
essa transgressão do “pacto ficcional” em textos que, no en-
tanto, continuam sendo ficções, o que os torna tão intrigantes:
sendo ao mesmo tempo ficcionais e (auto)referenciais, esses
romances problematizam a ideia de referência e assim inci-
tam a abandonar os rígidos binarismos entre “fato” e “ficção”,
margeados pelo campo vasto da memória.
A análise que proponho de Sôbolos rios que vão (2012)
reside, contudo, mais na maneira como o narrador lida com o
evento traumático (o câncer) e com a realidade traumática antes
e após a doença, ambos margeados pelo oceano da memória.
O romance apresenta, já na “primeira página do diário”,
datada de 21 de março de 2007, o movimento inicial de acesso
ao arquivo da memória. O narrador, ao olhar através da janela
de seu leito de hospital, afirma:
Da janela do hospital em Lisboa não eram as pessoas que
entravam nem os automóveis entre as árvores nem uma
ambulância que via, era o comboio a seguir os pinheiros,
casas, mais pinheiros e a serra ao fundo com o nevoeiro
afastando-a dele [...] (ANTUNES, 2012, p.7).

O caminho de memória que será percorrido pelo nar-


rador é um caminho em espiral, através do qual imagens do
presente se fundem a outras do passado. Na verdade, embora
o teor de memória dê a entender essa sobreposição – como
se o presente remetesse a todo tempo ao passado – defendo
que o processo é muito mais marcado por uma concepção de
um passado que só existe no presente, não como substituição,
mas como sobreposição interdependente. Em outras palavras,

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  213
minha hipótese é que as memórias do narrador devem ser en-
tendidas não como a lembrança de um passado como “antes”,
mas sim fundido numa ideia de passado como “agora”, como
se o passado só fosse possível no tempo presente.
Ainda durante a narrativa da data de 21 de março de
2007, o narrador irá mesclar o seu olhar do mundo presente
ao olhar do mundo passado, inserindo nesse “terceiro mun-
do” justaposto as falas de personagens que travam com ele
algum tipo de interação nesse espaço/tempo uno e indivisí-
vel, nesse espaço de memória marcadamente ambíguo e dia-
lógico. Falas como “— Aproxima-te rapaz”, proveniente de D.
Lucrécia, e “— Ainda não”, usada em diferentes contextos e
para diferentes personagens, são passíveis de serem observa-
das em quantidade no excerto datado. O mesmo se dará nos
capítulos/datas seguintes, como no capítulo seguinte (22 de
março de 2007), onde a fala de uma prima (“— Quando cres-
ceres compreendes”) irá se repetir por mais seis vezes, sendo
utilizadas para contextos diferentes.
As constantes repetições de falas e sucessivas iterações
trazem à tona a noção de um ato dialógico em que o outro
(o receptor) parece ser destituído de valor significativo, ge-
rando uma manutenção da realidade cotidiana muito mais
centrada na contingência de um emissor que supervaloriza
o seu dizer como aquele único capaz de imprimir sentido e
manter o “real” de maneira a satisfazer necessidades do pre-
sente, principalmente frente à contraposição ao passado. É
óbvio, entretanto, que esse mecanismo de construção de um
“real” como fruto de uma contingência individual, sem inte-
ração face a face, é somente uma ficção derivada do próprio
processo semiconsciente de construção de realidade.3 Tanto
3 Defino “ficção” aqui como construção e/ou manufatura (derivado do latim fingo,

fingere) e não como conceituação oposta à noção de verdade.

214  d RODRIGO ORDINE


o é que muitas personagens irão se debater com o outro e as
construções de si, sobre si e sobre o outro através do encami-
nhar da narrativa antuniana, vendo-se a si e aos outros como
uma miríade muitas vezes desfocada, ambígua, sobreposta e
confusa. Atos reiterados de construção do passado, nesse con-
texto, colocam-se como uma alternação quase desesperada de
se interpretar frente a um mundo construído por si mas não
muito adequado, à primeira vista, aos mundos dos outros que
tomam parte dessas interações face a face. Assim, a persona-
gem António estabelece um ato monológico de reflexão a par-
tir de dois planos simbólicos iniciais, o presente e o passado
e, sucessivamente, de outros planos simbólicos oriundos da
fusão destes, ou seja, o justaposto tempo “presente que é pas-
sado / passado que é presente”.
O evento que funciona como gatilho desse irrompimen-
to de memórias em António é justamente a internação para o
tratamento do câncer, acontecimento que lhe apresenta tan-
to uma ocorrência traumática una (o próprio câncer) como
o que advém dele, isto é, uma realidade contínua de insatis-
fação, desconforto e dúvida. Dessa forma, além da ideia de
uma “realidade” não mais agradável, necessitando uma rein-
terpretação, vê-se, também, que a memória não existe em ne-
nhum outro lugar a não ser no estado atual de consciência e
em nenhum outro tempo a não ser na hora de sua realização
no presente. As memórias não são, por conseguinte, relem-
bradas de algum lugar, mas são geradas com base na auto-
-estimulatividade ou autorreferencialidade do personagem-
-narrador. O que se observa é que as memórias de António
não o fazem ciente dos acontecimentos passados, mas apenas
o conscientizam daquelas ideias que são assim identificadas,
na situação presente, como expressão consciente de aconteci-
mentos passados e, muitas vezes, essas memórias cumprirão

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  215
o papel de gerar adaptabilidade a uma situação presente não
mais identificável, em especial, a possibilidade de morte.
Contudo, a memória não traz garantia de paz. Não apa-
zigua seu detentor e nem é capaz, pelo menos na narrativa
de Sôbolos rios que vão, de construir um senso de cronolo-
gia linear para dar um tom mais aceitável (agradável?) a uma
narrativa de vida, principalmente porque esse passado tradi-
cional, passível de organização, seja de fato uma ficção neces-
sária à vida cotidiana de muitos indivíduos.4
Problematizando o conceito de passado, Beatriz Sarlo,
em sua obra Tempo Passado (2007), argumenta que:
há algo inabordável no passado. Só a patologia psicoló-
gica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele
continua ali, longe e perto, espreitando o presente como
a lembrança que irrompe no momento em que menos
se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato
do qual não se quer ou não se pode lembrar. Não se
prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da
inteligência; tampouco ele é convocado por um simples
ato da vontade. O retorno do passado nem sempre é um
momento libertador da lembrança, mas um advento,
uma captura do presente (SARLO, 2007, p.9).

Para além dessa proposição, a pesquisadora argentina


mostra que a lembrança não permite ser deslocada, mas que,
pelo contrário, obriga a uma perseguição, pois nunca está
completa. “A lembrança insiste porque de certo modo é so-
berana e incontrolável (em todos os sentidos dessa palavra).”
Logo, o passado se faz presente, e como mostrou Deleuze, a
respeito de Bergson, ambos citados por Sarlo (2007), o tem-
po próprio da lembrança é o presente, ou seja, o único tempo
apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a lem-
brança se apodera, tornando-o próprio.
4 É importante manter em mente a definição de “ficção” como manufatura, construção.

216  d RODRIGO ORDINE


É nesse movimento caleidoscópico, quando o olhar
interpretativo é alterado com base na própria condição dos
eventos cotidianos, que a realidade cotidiana passa a ser rein-
terpretada e adaptada para um fim específico: gerar um plano
simbólico mais de acordo com a reflexão contingencial semi-
-consciente proposta.
Nesse contexto, a percepção dos objetos e dos eventos
cotidianos é moldada não para a construção de um “real” fixo,
mas sim para um “real” que gera a ideia de fixação momentâ-
nea, ou seja, um plano simbólico que, no agora, parece estar
de acordo com os desejos da personagem nesse presente, mas
que frente a uma situação interativa não esperada, rui e abre
caminho para uma reinterpretação.
É válido apontar que nesse roldão de memórias espira-
ladas, a base da memória é um adulto, António, lembrando
de seu passado e, especialmente, sobre sua infância. No capí-
tulo datado como 24 de março de 2007, quando aparecem as
memórias de um amor pueril, é interessante observar como
características de uma cena de memória vão se misturando
a outras cenas, gerando o tempo/espaço uno ao qual me re-
feri anteriormente. Não só a sensação dessa indivisibilidade
pode ser sentida, como também o interesse do narrador em
apresentar as memórias de um determinado contexto ligadas
a outro diferente. Em dado momento do capítulo supracitado,
a narrativa se apresenta assim:
[...] é impossível que a dona Lucrécia se esfume, durará
para sempre, no quintal dela um freixo que assustava
os pardais, se um pássaro se aproximasse engolia-o
conforme a doença o engolia a ele, puseram-lhe fraldas
e não estranhou as fraldas, limpavam-no com um pano
e as suas intimidades a baloiçarem inúteis, a estrangeira
loura da piscina [...] (ANTUNES, 2012, p.48).

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  217
Nessa fala, a construção literária dá à personagem An-
tónio a capacidade de fabricar um caminho interessante de
analogias de memórias: sua memória de D. Lucrécia como
imortal (gerada pela memória do menino que vê impossível a
morte daqueles que ama, pelo adulto canceroso que é assom-
brado pela sua própria perecibilidade e por sua concepção do
papel imortalizador da memória) se liga à lembrança do freixo
e dos pardais (numa analogia óbvia entre freixo e câncer) que
se liga ao seu presente de humilhações quando ele volta a ser
criança (o uso de fraldas). Embora isso não o incomode, o fato
proporciona ligação a outra memória – o encontro do meni-
no com uma mulher adulta à beira de uma piscina, mulher
esta que já havia sido apresentada na narrativa de capítulos
anteriores simbolizada como um objeto de desejo à época.
Por outro lado, o encontro com a mulher o incomoda pois,
consciente de sua meninice, vê a impossibilidade da realiza-
ção do desejo carnal, evento que se amálgama à sensação de
seu órgão sexual inútil no presente, como inútil no passado
de criança, no que concerne à realização do desejo. Contu-
do, é fundamental observar que as memórias de António são
mescladas a comentários de um outro narrador, um narrador
onisciente que aponta para uma 3ª pessoa: “...engolia-o con-
forme a doença o engolia a ele...”; “...puseram-lhe fraldas...”;
“... limpavam-no com um pano...”. Essa construção traz em si
o tom de ambiguidade tão caro aos narradores de Lobo An-
tunes: ou se entende que de fato há um narrador onisciente
na obra ou se conclui que António se refere a si em 3ª pessoa,
como se olhasse para si próprio a partir do exterior – o Antó-
nio do presente que se refere ao António do passado (ou vice-
-versa). Embora essa discussão extrapole os objetivos aqui
propostos, permiti-me apontá-la para que estudos futuros se
dediquem a ela.

218  d RODRIGO ORDINE


Se no fragmento acima é possível notar o tom melancó-
lico e até mesmo decadente da personagem, que se ancora em
suas memórias para que a vida faça algum sentido, é preciso
pensar na escolha do autor pelo título da obra.
“Sôbolos rios que vão” é o primeiro verso de um poema
de trinta e sete estrofes de Luís de Camões também conheci-
do como “Redondilhas de Babel e Sião” ou “Super flumina”.5
Muito embora frente às dificuldades de se precisar a exata
data de produção e publicação dos poemas de Camões, alguns
pesquisadores, como o primeiro biógrafo de Camões, Pedro
de Mariz (1551-1615), afirmam que o grande poeta português
teria escrito o poema no final da sua vida, visto que há notícia
de uma encomenda para que traduzisse em verso os Salmos
Penitenciais. Segundo Mariz:
[...] como o poeta não se decidia a executar a tarefa,
foi-se a ele o mecenas, perguntando-lhe porque não
cumpria o prometido, tendo anteriormente escrito tão
famosos poemas. Ao que Camões lhe respondeu “que
quando fizera aqueles Cantos, era mancebo, farto, e
namorado, querido e estimado, e cheio de muitos fa-
vores, e mercês de amigos, e de damas com que o calor
Poético se aumentava. E que agora não tinha espírito,
nem contentamento para nada” (apud SIMÕES, 2012).

É aparente a concordância da pesquisadora Carla Ri-


beiro em relação ao conteúdo do poema, entendido como uma
reflexão sobre a vida que supostamente se apresenta em vias
de encerramento. Ribeiro aponta que o poema:
consiste numa recuperação do texto bíblico sob uma
perspectiva platónica, o que permite ao sujeito poético
fazer uma reflexão/síntese da sua própria existência. Os

5 Cf. THE PROJECT GUTENBERG. Obras completas de Luís de Camões. Tomo


III. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/files/37192/37192-h/37192-h.
htm.> Acesso em: 28 jul. 2013.

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  219
três locais referidos nas redondilhas, nomeadamente
Sião, Babilónia e Jerusalém, a pátria celeste, correspon-
derão a passado, presente e futuro. Só o conhecimento
do bem, da felicidade, correspondendo ao passado e a
Sião, e, simultaneamente, o conhecimento do mal da
tristeza, que correspondem ao presente e a Babilónia,
darão ao sujeito poético o conhecimento total que lhe
permitirá ascender a um grau superior, a uma verdade
absoluta. (RIBEIRO, 2008).

Nesse sentido, a obra de Lobo Antunes parece se asse-


melhar à proposição de que as vozes dos narradores, em es-
pecial a de António, estão a serviço de uma postura de revisão
de vida, como na feitura de um balanço da existência. No ro-
mance, a personagem António chega à sua ­possibilidade de
felicidade quando a doença não existe mais. Contudo, a ex-
periência da morte possível marca-lhe profundamente. Em
acréscimo à sensação da morte próxima, os sentimentos de
solidão, de incompreensão, de revolta com o divino, todos
juntos no roldão de uma vida. Se a memória não apaga as do-
res, pelo menos cumpre o seu papel em um dos sentidos mais
básicos das narrativas de memória: expor as dores para sobre
elas refletir, tentando dar-lhes um significado. Entretanto, a
exposição das dores não as faz desaparecer: as memórias do
“terceiro momento” (a categoria de um presente que é passa-
do, como exposto anteriormente), em seus movimentos espi-
ralados em que memórias se embatem, ao invés de gerarem
um campo de apaziguamento, abalam ainda mais a identida-
de da personagem. Sua serventia, então, jaz na afirmação de
que não basta somente saber quem se é (através da oposição
“quem não se é”), mas sim saber o que fazer com quem se
é. Em outras palavras: sempre que a personagem António é
colocada em interações face a face com outros personagens,
suas falas – embora compostas por anáforas – estabelecem

220  d RODRIGO ORDINE


relações diferentes com os objetos ou eventos da realidade en-
tendida como tal. Isso acontece porque, em primeiro lugar, os
significados das palavras não são fixos e, assim, o falante não
pode, nunca, fixar o significado de uma forma final. Segun-
do, porque as palavras carregam ecos de outros significados
que elas colocam em movimento. Afirmações são baseadas
em proposições e premissas das quais não se tem consciên-
cia plena e, assim, não se tem total controle do horizonte de
expectativa do outro durante um processo dialógico. Logo,
como o significado é inerentemente instável, António procura
o fechamento (a compreensão de sua identidade), mas é per-
turbado constantemente pela diferença, pelo não esperado, o
que impede a forja de uma ideia de ordem.
Se de tudo não é possível a obtenção de uma linearidade
cronológica que dê um sentido único às experiências de vida,
ainda sim é preciso expor, contar, narrar. António, narrador,
parece entender que o evento traumático foi experienciado e,
de algum modo, sobrepujado pela extirpação do câncer, mas a
realidade (por si só traumática) ainda permanece a lhe enre-
dar. Esse cotidiano traumático que não permite fuga nem es-
quiva exige, por outro lado, um processo de coping performá-
tico que, mesmo não levando à paz total, possibilita que uma
fase da vida possa ser entendida como experienciada e que
não há nada mais a dizer sobre ela naquele momento: exeunt
omnes. É dessa forma que se finaliza a narração de Sôbolos
rios que vão (2012), usando uma expressão latina que pode
ser traduzida como “tudo para fora”, chave para se observar
o coping performático de António: a narrativa de testemunho
que, ficcionalmente, debate o poder e as falhas da narração de
uma realidade traumática – as possibilidades e impossibilida-
des do discurso da dor.

MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  221
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MEMÓRIA E REALIDADE TRAUMÁTICA: UMA ANÁLISE DE SÔBOLOS RIOS QUE VÃO d  223
O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL: O CASO DE
“BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE

Izabel Cristina dos Santos Teixeira


Sura Subuhana

“Balada de Amor ao Vento” (2003), obra da autora mo-


çambicana Paulina Chiziane, ao mesmo tempo em que traz
em destaque o tema de um aparente idílio amoroso, tecido
entre as personagens Sarnau e Mwando, com seus encontros
e desencontros, também traz, como pano de fundo, a organi-
zação estrutural dos espaços de territorialização de ambos e
os problematiza, permitindo a observação de como eles aí se
acomodam, ou não, em equilíbrio dinâmico.
Neste sentido, a obra é um exemplo da relação entre
literatura e meio ambiente, de acordo com a perspectiva da
Ecocrítica, que concentra dois campos de saberes, intercalan-
do-os, conforme afirma Garrard (2007, p.13).
Segundo Walter (2009, p.116), uma vez alinhada com
a interface mencionada, a Ecocrítica tem se desenvolvido
por meio de três direções fundamentais: a) a do emprego de
uma metodologia sociológica interdisciplinar, que examina
a relação entre personagens e natureza, enfocando a consci-
ência ecológica destes com relação a questões ecológicas lo-
cais e globais; b) a da adoção de uma metodologia cultural-
-antropológica interdisciplinar que problematiza a alienação
e reificação do ser humano, como resultado da dominação da
natureza dentro do projeto civilizatório moderno; c) a do em-
prego de uma metodologia ética interdisciplinar, “cujo objeti-
vo é a revisão do sistema de valores culturais antropocêntricos
como base de uma coexistência planetária inter-relacionada.
E o que liga estas três abordagens é a compreensão da na-

224  d
tureza como entidade físico-material e como entidade social
ativamente envolvida na dinâmica das construções culturais”
(WALTER, 2009, p.116).
Com efeito, é a partir do conceito de ecocrítica que ana-
lisamos os lugares de habitar, à medida que os personagens
Sarnau e Mwando se movimentam, tornando-os evidentes,
quer seja em seu cotidiano, quer seja por meio de lembranças
do passado, evocadas no presente, de onde emergem imagens
de elementos da natureza, bem como as relações de ambos
com seus afins.
A história narrada, predominantemente em primeira
pessoa, se passa no período da colonização portuguesa, em
Moçambique. Os espaços geográficos identificados são: a al-
deia de Mambone, um povoado de além-mar, Vilanculos, ba-
nhado pelo Oceano Índico, e a cidade de Lourenço Marques.
Também há uma referência a Angola, para onde muitos ho-
mens e mulheres são conduzidos para o trabalho escravo, nas
lavouras e na construção civil, nessa época. Isoladamente, cada
um deles proporciona uma conjuntura social e cultural, com
geografia específica. A narrativa, então, conduzida por Sarnau,
demarca cada um desses espaços em que os acontecimentos se
desenrolam, ao mesmo tempo em que estabelecem contrastes
e paralelos, principalmente, em sua vida e na de Mwando.

Mambone: um Espaço Dinâmico dos Costumes Banto

Lugar de nascimento de Sarnau, a aldeia de Mambone


será reino de Nguila Zucula, de quem ela se torna a primeira
esposa, adquirida por lobolo e, portanto, a rainha, dentro de
uma prática da poligamia.
Localizada nas margens do rio Save, Mambone é des-
crita por Sarnau como um cenário do “campo de mil cores em

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  225
harmonia, das mangueiras e dos cajueiros e palmares sem fim”
(CHIZIANE, 2003, p.11), o que ressalta, numa aparente rela-
ção de plenitude entre ambos – ela e o lugar – em sua infância.
Adulta, após muitos percalços – a serem trazidos à tona,
nesta pesquisa – e já vivendo em Lourenço Marques, por meio
de suas lembranças, num misto de influências híbridas, banto
e cristã, Sarnau revive (memória) aquela que foi a sua “sau-
dosa terra, onde aprendera a amar a vida e os homens” (CHI-
ZIANE, 2003, p.11). É na aldeia, em sua juventude, que ela
ascende para o primeiro idílio amoroso, numa festa local, em
meio a uma comemoração exitosa de um rito de passagem de
jovens rapazes para a vida adulta (circuncisão), dentre eles,
Mwando, objeto de seu desejo, com quem se relacionará, an-
tes e após o casamento com Nguila Zucula.
Mambone, conforme Sarnau é o recanto de águas tran-
quilas, de peixinhos, de pássaros, caniços, céus, e é, por assim
dizer, um lugar de previsibilidade, pela constância e apazi-
guamento de conflitos, e que, na plenitude de suas rotinas,
no perene ciclo de sobrevivência, é comparado ao “Jardim do
Éden”, por ser um locus de paz e confraternização, para o qual
“sempre chega a época do amor” (CHIZIANE, 2003, p.17).
Ao mesmo tempo em que é lugar da acomodação emo-
cional para Sarnau, a aldeia abriga uma Missão religiosa cris-
tã, que interfere, de alguma forma, nos comportamentos lo-
cais: aí, os homens aprendem a ler, o que não acontece com as
mulheres; também podem tornar-se padres, função social de
prestígio, e que, entre outros objetivos, serve aos interesses da
metrópole colonizadora, no caso, Portugal.
Dessa forma, entre as práticas socioculturais dos nativos
locais (bantos) e as trazidas pela colonização, a aldeia desen-
volve uma espécie de resistência à influência cristã, ao manter
determinados costumes, dentre eles, o lobolo e a poligamia e,

226  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


assim, se equilibra em um ciclo contínuo terreno, por meio de
“um conjunto de idéias atributos, hábitos, crenças e ritos, sig-
nificados, símbolos, valores, concepções estéticas, organização
social e costumes que formam o ambiente sobreposto ao pura-
mente natural dado, e informam um modo de vida transmitido
sem descontinuidade”, atitude comum ao grupo etno-linguís-
tico acima mencionado, conforme lembra Altuna (1993, p.10).
A Missão religiosa, por sua vez, abriga os seminaristas, o
padre Ferreira e uma cozinheira. Nativa, esta exerce uma dupla
função: além de cozinhar, é objeto sexual dos jovens Salomão e
Mwando e do próprio padre. Ele, rendendo-se às suas próprias
interdições, infiltra no lugar o oposto das regras que estabelece
como ideais de comedimento e abstinência sexual (castidade).
Ambiguidade recorrente em obras de Paulina Chiziane,
a mulher nativa, negra, de nome desconhecido, cujo corpo é
objeto de desejo, é, por assim dizer, a própria metáfora da co-
lônia, a então Moçambique (e, por extensão, a África), alvo da
exploração desenfreada da supracitada metrópole.
Em sua relação com o Sagrado, Mambone convive com
práticas de feitiçarias, encantamentos e conhecimentos de
ervas medicinais. Nesse caso, apontando para algumas mu-
danças nos usos e costumes dos bantos – oralidade, prática
de lobolo, poligamia, religiosidade – para outros trazidos
“de fora”, a aldeia registra uma transição que é a conversão
ao cristianismo (casamento monogâmico). Para além disso,
acrescenta o aprendizado da escrita e a introdução do dinhei-
ro nas trocas econômicas.
Aí, marginalizadas, as mulheres transitam entre a al-
deia e o núcleo urbano mais próximo, a cidade, propriamen-
te dita, onde uma nova ordem vai se impondo: a instalação
de escolas, de acesso às crianças, em geral. Insatisfeitas, as
mencionadas mulheres reagem à sua falta de acesso às “ino-

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  227
vações”, negando-se aos afazeres da lida doméstica, como por
exemplo, arrumar casa, rachar lenha, cozinhar. Com isso, ge-
ram uma crise no trato das relações de gênero no entorno da
aldeia. Essas ações são alvo das críticas, não só de Mwando à
sua mãe e irmãs, como também da própria Sarnau, a futura
rainha de Mambone. Tendo de conviver com esta dicotomia,
este espaço de habitar vai se reconfigurando, diante do que
Santos (2012, p.25) denomina de “cisão da totalidade”, repre-
sentada aqui pela identificação de núcleos de instabilidade no
modelo social nele vigente, os quais “arranham o discurso de
unidade, uniformidade e horizontalidade”, nos termos defi-
nidos por Hommi Bhabha (1998). Noutras palavras, a orien-
tação dada às mulheres é desmantelada por elas mesmas,
quando promovem uma certa forma de protesto à sua falta
de oportunidades, desencadeando um conflito no núcleo fa-
miliar, de acordo com as falas de Sarnau, e de Mwando, nas
queixas ao novo comportamento de sua mãe e irmãs.
Em uma dinâmica constante, a insatisfação se manifes-
tará nas ações da própria esposa, Sumbi, que responde às crí-
ticas a seu respeito, feitas por Mwando e sua família, fugindo
do casamento, unindo-se a outro homem.
Com efeito, percebe-se que as novas influências vão de-
nunciando formulações diferenciadas as quais, por sua vez,
agirão na conduta, social e psicológica dos implicados, num
processo de transformação profunda, como a fragmentação
que a aparente “presença externa” produz no lugar, trazida
pela relação colonial.

Sarnau e Mwando: as Rupturas Dentro de um Mesmo Espaço

Ascendendo para o primeiro e grande amor, ainda na


aldeia natal, Sarnau, esta jovem negra, de origem banto, en-

228  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


canta-se pela bravura de Mwando, a quem seduz, posterior-
mente. Este, por sua vez, convertido ao cristianismo, é mono-
gâmico, e atende a uma exigência do pai, que o quer casado
com uma cristã, de posses (Sambi). Antes, porém, engravida
Sarnau, que acaba provocando aborto, utilizando-se de ervas
destinadas a esse fim.
Desiludida, Sarnau, então, é adquirida, por meio de lo-
bolo, por Nguila Zucula, o rei, a quem se une, em uma ce-
rimônia realizada ironicamente pelo padre Ferreira, em dois
sentidos: o padre não só preside a cerimônia do primeiro
casamento de uma série poligâmica, como presenteia Sara-
nu com “um vestido de noiva magnífico” (CHIZIANE, 2003,
p.40), e assim, funde as doutrinas do Sagrado de ambas as
crenças – banto e cristã, aparentemente se esquecendo das
diferenças internas que há entre elas.
Mwando, o iniciante do ritual de passagem banto, frá-
gil e dominado pelo pai, vai construindo para si um percurso
em que, não sendo de um clã de prestígio, como o de Nguila,
descendente régio, entra para o seminário, onde aprende a ler
e escrever nas línguas ocidentais e, ainda, a interpretar textos
bíblicos, em moldes cristãos.
Tendo por horizonte o processo histórico da coloniza-
ção, o jovem Mwando experimenta a nova crença, o cristia-
nismo, na tentativa de superar o revés de não ter nascido para
liderar um grupo social, como Nguila: em lugar de sujeição,
ele vai se impondo numa conta-corrente, utilizando-se do
aprendizado das línguas (latim e português), do saber religio-
so e, assim, se deixa seduzir por eles, ainda que lhe convenha
a ambiguidade entre o amor carnal por Sarnau e a sexualidade
experimentada com a cozinheira até, por fim, ser descoberto
pelo padre Ferreira e ser expulso da Missão.

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  229
Do aprendizado, resulta a Mwando, indiretamente, o
elo com a orientação patriarcal, que mantém a supremacia
masculina, e lhe dará vantagem, futuramente, em um contex-
to totalmente adverso (Angola) e quase mortal.
Ao contrário de Mwando, Nguila é polígamo, violento,
de apetite sexual voraz. Pelo casamento, submete Sarnau a so-
frimentos diversos, entre eles, a própria rejeição sexual. Pouco
tempo depois, a despeito de ser a rainha e sofrer toda sorte de
maus-tratos que padece na vida conjugal, vê-se grávida, e dá à
luz gêmeas, contra quem, mais tarde, reproduzirá a violência
que lhe é impingida pelo marido, além de ter de coabitar com
mais outras de suas seis esposas, competindo, em atenção, so-
bretudo com Phati, a mais jovem e preferida de todas.
Convivendo com modelos rígidos de papéis sociais, Sar-
nau, vai, pouco a pouco, despertando o olhar para a condição
física da mulher na aldeia: natureza fértil, luz para a vida, e
vai, gradativamente, analisando as desigualdades de gênero,
em que prevalece, quase sempre, sua condição de sexualizada
e de reprodutora.
Inserida em uma forma de organização social que, se
por um lado lhe convence que, sendo a rainha, é a figura prin-
cipal do clã a que passa a pertencer, por outro lado, além de
lhe obrigar à maternidade, permite que a violência do marido
faça parte do seu cotidiano.
Porém, o sentimento por Mwando e a influência dos
valores coloniais trazidos pela Missão religiosa atingem em
cheio a percepção de Sarnau, a ponto de, gradativamente, ela
dar um basta na lógica do sistema social a que se vê condi-
cionada. Isso ocorre quando Mwando reaparece, contrafeito,
após a fuga de sua esposa.
Reiniciando o idílio amoroso, Sarnau se vê, outra vez,
grávida, dando à luz um filho varão. Porém, ameaçada em sua

230  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


posição social, recorre à feitiçaria para seduzir o marido e,
assim, resolver o imbroglio. Sanada a questão, ela introduz
o filho espúrio no grupo que constitui a sua parentela na al-
deia, o qual, na vida adulta, será fiel ao clã, e sucederá Nguila
no reinado paterno, fato sobre o qual, jamais, ninguém na al-
deia tomará conhecimento. Dessa forma, a ideia de “família
ampliada”, pela poligamia, resistência cultural à monogamia
trazida pela colonização, sofre um revés, ao contemplar outra
forma de “mestiçagem” (social), ainda que de forma escamo-
teada e, porque não dizer, subversiva.
Para preservar seus filhos na aldeia e não levantar des-
confiança de Nguila sobre sua paternidade, Sarnau, que não
desafia a organização social de seu povo, põe fim ao culto de
sua majestade submissa, desliga-se de seu território e foge
com Mwando para outras paragens.

Entre Bazaruto (Arquipélago) e Vilanculos (praia): a Fuga de Sarnau e


Mwando

Sarnau vive, aí, com Mwando, com quem foge. Ele,


alimentando valores da cultura ocidental, a convence de sua
superioridade, quanto à monogamia, afirmando que “cada
homem tem uma só mulher e as pessoas vivem em ninhos
de amor” (CHIZIANE, 2003, p.96), desprestigiando todo o
passado de costumes bantos, dentre eles, a poligamia, que ali-
mentaram por séculos a fio sua identidade aldeã.
Afeito, sem nenhuma criticidade, ao padrão colonial,
Mwando, neste próximo lugar de habitar, experimentará com
Sarnau uma segunda ordem: nem um, nem outro se revelam,
publicamente. Ou seja: eles sobrevivem em um terreno instá-
vel, ao sabor das idas e vindas das marés.

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  231
Para chegar a Vilanculos, eles seguem pelo alto-mar, al-
cançando Bazaruto, até atingir a ilha, onde Mwando se torna
empregado de um barco pesqueiro indiano. Esta referência
chama a atenção para a então colônia, Moçambique, que fun-
ciona como porta de entrada a abrigar muitos povos de partes
da Ásia, promovendo um caldeamento de grande diversida-
de étnica e cultural, favorecendo muitas misturas, conforme
lembra Lourenço Rosário (2010).
Na chegada ao povoado da ilha de Vilanculos, Sarnau,
convencida pelos valores culturais cultivados pelo amado, en-
vereda para uma visão de futuro conformada e, assim, formula
este pensamento: “mas que vida tão linda, tão diferente da po-
ligamia” (CHIZIANE, 2003, p.104), como se o casal, uma vez
comungado um mesmo ideal, vivesse, enfim, em ­plenitude.
No entanto, tempos depois, em meio a uma rotina de
trabalhos em alto-mar, ambos recebem a visita de Nhambi,
um antigo irmão de rito de passagem (circuncisão) de Mwan-
do, da aldeia de Mambone. O recém-chegado lhe transmite
os acontecimentos de lá: a morte de Phati, e o interesse do rei
Nguila em reencontrar Sarnau, que lhe deve reaver todos os
bens que sua família adquiriu por lobolo.
Em relação a essa prática, Paulina Chiziane, em uma
entrevista, afirma que
o lobolo é um cerimônia tradicional como tantas outras.
Portanto, por ser tão importante, tentou-se lutar conta o
lobolo, mas ele resiste até hoje. É muito difícil explicar,
mas o lobolo é muito mais do que o preço da noiva. É
uma união espiritual entre duas famílias. Uma família
vai buscar uma mulher, daí, as duas famílias se juntam
e os espíritos também (CHIZIANE, 2010, p.178).

Pelo exposto acima, então, para Sarnau, o lobolo signi-


fica a violação de um código de ética, do qual ela não poderá

232  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


escapar: essa lembrança lhe traz de volta a dependência moral
às práticas sociais (e espirituais) de sua aldeia e ela, para se
libertar, certamente necessitará do apoio de Mwando, a quem
agora está unida.
A despeito dessa tomada de consciência, Mwando, que
a convencera da fuga, reage às revelações trazidas de Mambo-
ne da seguinte forma: é aconselhado por Nhambi a fugir dali,
deixando para trás, mais uma vez, Sarnau, grávida e só. Tal
situação a faz relembrar as ocorrências que a marcaram, no
passado, em sua tentativa de união com Mwando.
Diante do novo horizonte que se lhe descortina, Sarnau
debate-se entre o “entre-mundos” que a despertou, em prin-
cípio – poligamia X monogamia/tradição X modernidade – e
vai construindo a lógica do significado de ser mulher numa
sociedade patriarcal, em que ela vive, praticamente como uma
simples resposta a uma contingência da sua condição bioló-
gica, perante o idílio amoroso, em que mulher e mãe vão se
tornando ambiguidades constantes.
De início, pela fuga, o casal tenta expandir seus hori-
zontes, após flutuar pelo alto-mar, até encontrar um aparente
“porto seguro” – uma ilha. Aí, o isolamento, temporário, a in-
comunicabilidade com os aldeados e a tentativa de alcançar a
plenitude, incorporando outros elementos culturais, como a
monogamia, leva-o a uma mobilidade limitada. Neste sentido,
esse lugar transitório, isolado, quando sofre, então, o revés da
chegada de um elemento de suas relações sociais pregressas,
revelador, perde a força de sua aparente consistência. Ou seja:
emerge o conflito, colocando os dois sob tensão, o que culmi-
na, mais uma vez, com a partida de Mwando, dessa vez, às
escondidas. Abandonada, mais uma vez, Sarnau entrega-se à
sorte. Sozinha e grávida, ela sai dali, indo parar na cidade de
Lourenço Marques, ao sul de Moçambique.

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  233
Lourenço Marques: Sarnau frente a Novos Desafios

Nesta cidade, Sarnau, a ex-rainha de Mambone, vive,


inicialmente, como serviçal de um casal de indianos, até o
nascimento da filha. Em seguida, larga o emprego e torna-se
prostituta. Com os ganhos, acerta as contas com o seu passado
de mulher lobolada, ao devolver o pagamento a Nguila. ­Passa
a ter um certo domínio sobre si mesma, porém, envolvida com
a prática de “vender o corpo”, tem mais um filho, cujo pai re-
cusa-se a reconhecer como tal, por ser casado e monogâmico.
Mais uma vez, é levada a se questionar sobre estas duas prá-
ticas de relação familiar – poligamia e monogamia – que se
impuseram em sua vida.
Como uma expressão do colonialismo, a monogamia
mais parece a Sarnau uma invenção inutilizável, tal como a
poligamia, em uso “por seu povo”, já que as duas a reduzem à
condição de mera procriadora, condenada ao abandono e ao
desprezo.
As duas formas de constituição familiar – poligamia e
monogamia – parecem esferas culturais muito semelhantes,
em curso em Moçambique, à beira da Independência: ambas
envolvem contradições e, ao mesmo tempo, se juntam por
circunstâncias históricas, e são incorporadas à percepção de
mundo de Sarnau, já quer ela teve a experiência das duas pos-
sibilidades, não concluindo em favor de nenhuma. Como con-
sequência para si, ela, sozinha, desenvolve novas formas de
sentir a realidade e, com isso, acomoda conflitos pregressos,
como, por exemplo, dar o nome de Phati à filha que teve com
Mwando, e não se insurgir contra os costumes da aldeia, por
isso, devolve o pagamento de seu lobolo.
Ajustadas as contas devidas, Sarnau segue em ­Lourenço
Marques, em que pode desenvolver uma outra forma de re-

234  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


lação com o novo lugar de habitar: ela, mãe, educa menina e
menino, e se sustenta, vendendo alimentos em um mercado
– Mafalala – satisfeita por suas filhas gêmeas se casarem em
Mambone, e seu primeiro filho tornar-se rei do lugar, “por su-
cessão hereditária”.
Reorientando a vida, a partir da devolução do objeto do
lobolo, não nega a importância dos valores preservados pelos
costumes do seu povoado, porém, transita agora num univer-
so multifacetado, urbano, e parte para uma nova orientação
social: inaugura os passos iniciais, em outros tempo e lugar, já
que, para a aldeia, não voltará mais. Apaziguada, ela percebe
que, no curso do tempo, os dois espaços (aldeia e cidade) re-
configuram hábitos, formas de pensamento, e ações que, em
sua consistência, se perpetuam na vida cultural de cada um.

Novos Saberes nos Lugares de Habitar

Na aldeia de Mambone, a geografia, tanto física, quanto


cultural, no sentido de ser e pensar o mundo, mostra os dois
extremos na vida de Sarnau e de Mwando: a infância (jovem)
e a vida adulta.
Enquanto jovens, nos festejos rituais de passagem, há
as expectativas, e os desejos individuais, em dinâmica com os
elementos da natureza: o rio Save, as plantas, o céu, as estre-
las, ou seja, há uma aparente internalização de um ciclo bem
acabado (?), alimentado, ainda que de forma transgressora, já
que Sarnau convive com Mwando, antes de se unir a Nguila.
Na vida adulta, os jovens se abandonam, e cada um se-
gue um rumo diferente. Sarnau, a posição de rainha; Mwan-
do, a obediência ao pai (casa-se). Como soberana, Sarnau
nada mais é do que o exemplo de uma base que nutre interes-
ses de uma comunidade de orientação patriarcal. Ou, como

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  235
diria Walter (2009, p.15), um exemplo de “manifestação de
territorialidade cultural, em múltiplas zonas de contato”, já
que, conforme citado acima, há as interpolações sociais e reli-
giosas entre o Sagrado nativo e o trazido pela colonização, em
situações diversas.
Ante a uma reviravolta no relacionamento de Mwando
com a esposa (esta o abandona), ele retorna à aldeia e volta a
se envolver com Sarnau. Descobertos por Phati, fogem, para
preservar a vida, deixando ali – a ligação de estratos sociais
distintos – o filho varão.
É na vida adulta que, aos poucos, ambos perdem a per-
cepção da natureza local como lugar de plenitude, ainda que,
tempos depois, Sarnau retorne, sem fazer menção aos elemen-
tos da Natureza, que antes lhe foram tão caros, e aí negocie
com Nguila uma espécie de recomposição dinâmica, que con-
tribui para a sobrevivência dos padrões sociais da aldeia. Neste
sentido, o lugar “aldeia” adquire acomodação, pela paz entre
o rei, Sarnau e nova rainha (sua irmã de sangue) e, também,
pelo filho que será o sucessor do pai, preservando as práticas
culturais, contrapostas ao ideal de conduta previsto pela colo-
nização. Sarnau, embora fragmentada por muitas andanças, se
harmoniza, podendo seguir frente, rumo a Lourenço Marques,
sem dívidas com o passado, até mesmo com relação à jovem
Phati (dá esse nome à filha mais nova), morta por ordem de
Nguila, por ele acreditar que ela tivesse sido a responsável pelo
sumiço da primeira esposa, apelando para a feitiçaria.
Mwando, na aldeia, onde se instala a Missão religiosa,
também internaliza dos valores da sociedade dominante e
com eles se defende, quando é obrigado a permanecer fora de
Moçambique.
No enredo, Angola é visível a partir de um recurso lite-
rário: Paulina Chiziane muda a voz do narrador (de primei-

236  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


ra pessoa para a terceira), mostra a simultaneidade entre o
percurso de Sarnau e o enfrentado por Mwando, após o fim
do idílio amoroso de ambos, no além-mar. Este último, após
deixá-la na Ilha de Vilanculos, envolve-se com a mulher de
um sipaio (negro cooptado pelo colonizador). Ao ser desco-
berto, acaba condenado à deportação para Angola, onde pas-
sa a trabalhar como escravo nas plantações de cana e café,
praticamente no meio de uma floresta. Lá, utiliza-se de seus
conhecimentos religiosos e atua como missionário. Ganha
respeito e “faz fortuna”, além de ser reconhecido como “Pa-
dre Moçambique” (CHIZIANE, 2003, p.126), usufruindo do
aprendizado conquistado na Missão, em Mambone, em seu
passado.
Em seguida, ele, o antigo rapazote frágil e tímido, que,
sem ter permanecido no seminário, chega a ganhar dinheiro
em outro país, desiste de tudo, retorna a Moçambique, reapa-
recendo em Lourenço Marques, robusto (gordo – “que barriga
enorme ele tem” (CHIZIANE, 2003, p.140), numa possível re-
ferência à sua vida fausta e sedentária, conquistada no exílio.
Após quinze anos, liberto, impõe-se-lhe o desejo de re-
tornar à terra natal e procurar por Sarnau. Gasta praticamen-
te todo o dinheiro na viagem de volta e, em Mambone, des-
cobre o tipo de vida que Sarnau leva em Lourenço Marques.
Do encontro com Mwando, no mercado (Mafalala),
antes descrito como abjeto e degradante, ela se ergue, pondo
fim, não apenas à história de amor por Mwando, mas tam-
bém à sua condição numa sociedade comandada por homens
dos quais finalmente se liberta: a retomada crítica de toda sua
conturbada trajetória de vida, que a levou da riqueza à misé-
ria, dos casamentos à separação, do amor à solidão, põe fim
aos seus questionamentos: ali, em meio a labirintos escuros,
diz “não” ao amor. Porém...

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  237
Reencontro: Compreendendo Reveses, Fechando um Ciclo

Os sentimentos de Sarnau frente aos costumes de seu


povo e, sobretudo, frente ao papel social da mulher, em Mo-
çambique, são colocados em conflito com seus desejos e sen-
timentos e, ali, em Lourenço Marques, superam os reveses e,
também, abrem-se às novas perspectivas.
Se, comparados por Sarnau, Mwando, é fisicamente di-
ferente de Nguila, conforme ela mesma afirma:
É um búfalo enorme e forte como exige a nobreza de sua
raça. Tem a pele bem negra, testa e nariz esbeltos, dentes
branquíssimos, o que lhe confere um aspecto de espécie
rara. Tem um caminhar dinâmico, dominante, sedutor.
É um excelente caçador, o melhor atirador de arco e
flecha [...] Nas bangas e tabernas é o primeiro a entrar
e o último a sair e, quando se embriaga, é a coisa mais
insuportável deste mundo. (CHIZIANE, 2003, p.40).

Mwando, ao contrário, de antes, frágil e, depois, “com


uma barriga enorme” demonstra, antagonismos, com o últi-
mo se “mestiçando”, pela influência do contato com o “lado
superior” da colonização. Ele não tem as características de
Nguila, que revela o forte domínio social imposto aos de-
mais de sua aldeia. Porém, tem a seu favor, a intelectualida-
de. Desenvolve-a e usa-a, em Angola. Dessa forma, conforme
lembra Glissant (1992, p.105): a relação com a terra torna-se
uma questão-chave em um ambiente caracterizado por falta
de raízes locais, de origens. Ou seja: alienado por sua não es-
colha, Mwando incorpora uma espécie de não inscrição numa
história, numa cultura e num lugar vivido e percebido como
não-lugar, não-história e não-cultura, já que sua ida foi pro-
vocada por um ato de traição. Por outro lado, tudo se modi-
fica, à medida que ele incorpora o aprendizado adquirido na
Missão, em Mambone. O novo contexto é absorvido pelo “Pa-

238  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


dre Moçambique”, ao mesmo tempo em que ele se torna uma
presença imprescindível aos moradores locais. Nesse caso, ele
gera uma forma de sobrevivência, apesar de sua prática como
religioso ser um embuste. Neste sentido, ele se reapropria
do espaço, e torna-se necessário. Visto dessa forma, seu ato,
em si, também, “é forma de resistência cultural”. (WALTER,
2009, p.117).
Desde o início de sua aparição, na aldeia de Mambone,
Mwando envolve-se com uma elite prestigiosa, branca: é liga-
do aos negócios do pai e também ao seminário. Expulso dali,
casa-se com uma moça de boa condição financeira. Tendo de
enfrentar as situações inesperadas em seu casamento mono-
gâmico, é abandonado, mas continua submetido à lógica do
poder colonial, aprende-lhe as “manhas”, torna-se um mesti-
ço cultural.
Vivendo em uma época de colonização, Mwando, que
realiza o ritual de iniciação dos jovens bantos, ao mesmo tem-
po, participa dos negócios do pai, lida com dinheiro, e é cris-
tão. Não reinará num clã, nos moldes da família de Nguila à
que Sarnau se liga. Pelo contrário: alia-se à cultura do poder
colonial, morando na Missão.
De volta a Moçambique, vindo de Angola, já homem
maduro, reencontra Sarnau, e a convence a recomeçar a “his-
tória de amor” e a “vida em comum”, e sai vitorioso, enfim.
Interpretados como metáforas, dentro do sistema colo-
nialista, Sarnau é uma espécie de representação de Moçam-
bique (e, por extensão, como já lembrado antes, da própria
África) que progressivamente vai se superando, ante as con-
dições que tem de enfrentar: dividida entre o universo banto
de Mambone e a urbanização colonizada de Lourenço Mar-
ques, adere à nova conjuntura social, em que ambas, apesar
de tudo, coexistem e se modificam, temporal e espacialmente.

O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  239
Ela, a miniatura personificada de uma, antes, “aldeia”,
cresce, se desloca, vira “Moçambique”, cujos filhos (a pequena
Phati e João, por exemplo), nativos e mestiços, serão a nova
“África” – de tradição que se moderniza, em meio a práticas
de convivência com o Sagrado, de valores sociais e éticos, até
aí, tanto banto, quanto cristão. Aos seus olhos, poligamia e
monogamia se desorganizam, marcadas por frequentes opo-
sições, entre si, naquilo que devem ser, e não o são, sempre a
buscar um sentido necessário que foge ao seu entendimento.
Mwando, por outro lado, vai se moldando à lógica de
ideologia colonizadora, porém, integrando-se, num tempo
futuro, ao sistema social a que Sarnau/Aldeia/Moçambique/
África experimenta: ainda que dominado pelo sexo masculino
e sua vinculação ao poder de homens, negros ou brancos, quer
na aldeia de Mambone, quer na cidade, ele é alvo das contes-
tações de Sarnau e, portanto, da própria Mãe-África da qual
ela se torna um emblema.
Com isso, o reencontro do par amoroso, na verdade, dá
um desfecho em favor de emancipação de Sarnau: de início,
não atende ao chamado de Mwando, e sai pelos “labirintos
sinuosos e escuros do mercado de Mafalala, seu último reduto
de sobrevivência e de seus filhos.” (CHIZIANE, 2003, p.145).
Dessa feita, tateando num escuro, ela, essa mulher que carre-
ga a sociedade alargada, de filhos e filhas de muitas origens,
adentra num “presente” ainda precário, a ser explorado, tal-
vez, anunciando os tempos que estão por vir (no caso, a guerra
pela Independência de Moçambique, que faz com que Lou-
renço Marques passe a ser Maputo) – “A alegria virá um dia,
nós sabemos disso.” (CHIZIANE, 2003, p.128).
Sua entrada “no novo tempo/lugar” não implica elimi-
nação completa de seus antigos relacionamentos sociais: ela
aceita os costumes da aldeia a qual, inclusive, ajuda a reor-
ganizar, quando devolve os bens a Nguila. Porém, é em Lou-

240  d IZABEL CRISTINA DOS SANTOS TEIXEIRA • SURA SUBUHANA


renço Marques – onde ironicamente exerce a prostituição, e
adquire doenças e sofre abusos – que ela se reconstitui como
“Sarnau”, desmistificando crenças pregressas. É na prostitui-
ção, ou seja, na sua degradação, no seu não ser a rainha negra
(poligamia), nem a esposa de moldes brancos (monogamia),
que Sarnau define o sistema de valores que consegue absorver
e, assim, formula sua identidade, enfim, sem dubiedades.
Por fim, ao aceitar Mwando de volta, reorienta um siste-
ma social: de pai, mãe e filhos, quaisquer que sejam eles, e, as-
sim, os dois se tornam aptos a receber a Moçambique que está
surgindo, antes mesmo da chegada da Independência do país.

Referências Bibliográficas

ALTUNA, P. Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional Banto.


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O LUGAR DE HABITAR E SUA RECONFIGURAÇÃO AMBIENTAL:


O CASO DE “BALADA DO AMOR AO VENTO”, DE PAULINA CHIZIANE d  241
UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR:
JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001)

Denise Rocha

Introdução

No início dos anos 1930, época na qual a elite branca,


católica e baiana não conhecia a profundidade da estrutura ri-
tualística, litúrgica e mitológica das práticas espiritualistas de
matriz africana e, por isso, as temia e as discriminava, Jorge
Amado (1912-2001) consegue, com a publicação do roman-
ce Jubiabá (1935), apresentar, de forma simples e didática,
a importância do pai de santo homônimo para a comunidade
negra de Salvador e da Bahia.
A escrita da saga do guardião da memória ancestral
africana, o qual renovava em sua gente, por meio da narrativa
de Zumbi dos Palmares, a tradição afro-brasileira de lutas em
prol da liberdade, confere ao escritor Amado um título: o de
promotor literário da apresentação e da valorização sociocul-
tural e religiosa das comunidades de descendentes de africa-
nos da Bahia de Todos-os-Santos. Amado foi membro do Ilê
Axé Opô Afonja do terreiro tradicional da nação nagô-queto,
localizado no bairro de São Cristóvão, em Salvador, e tinha
cargo de Obá de Xangô, isto é, de ministro do Orixá que rege
a roça/terreiro.
O papel decisivo de Jorge Amado na elaboração literária
de estórias/histórias baseadas em fatos verídicos ou constru-
ídas por sua imaginação sobre o legado sociocultural afro na
vida pluriracial da Bahia é enaltecido pelo pesquisador Fábio
Lucas que no artigo A contribuição amadiana ao romance
social brasileiro esclarece:

242  d
Na visão crítica do Brasil, Jorge Amado trabalha com
a contraposição histórica do branco perante o preto e
oferece, como resposta positiva, o imenso estuário da
miscigenação. E mitiga os diferentes jogos opositivos
com a força do progresso, a astúcia do amor, a alegria
de viver, a ruptura das regras e o sincretismo religioso.
(LUCAS, 1997, p.108).

A Bahia, como reduto da civilização de matriz africana, é


glorificada por Jorge Amado que apresenta em sua obra as cele-
brações sociais, culturais e espirituais dos negros e mulatos, que
entrelaçadas com elementos sincréticos, revelam não somente
a riqueza patrimonial humana e física do legado afro de além-
-mar, mas também as formas de discriminação ­vivenciadas pe-
los afrodescendentes em uma sociedade patriarcal, branca, ca-
tólica e estratificada. No romance Jubiabá, Amado exemplifica
os contrastes herdados da escravidão ainda preponderantes,
nos anos 1930, na paisagem social e profissional dos moradores
do ficcional Morro do Capa Negro no qual a vida:
[...] é difícil e dura. Aqueles homens todos trabalhavam
muito, alguns no cais, carregando e descarregando
navios, ou conduzindo malas de viajantes, outros em
fábricas distantes e em ofícios pobres, sapateiro, alfaiate,
barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, munguzá, sara-
patel, acarajé nas ruas tortuosas da cidade [...] lavavam
roupa [...] eram cozinheiras em casas dos bairros chiques.
Muitos dos garotos trabalhavam também. Eram engra-
xates, levavam recados, vendiam jornais [...]. E não se
revoltavam porque desde há muitos anos vinha sendo
assim: os meninos das ruas bonitas e arborizadas iam ser
médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens
ricos. E eles iam ser criados destes homens. Para isto é
que existia o morro e os moradores do morro. [...] Raros
eram os homens livres do Morro: Jubiabá, Zé Camarão.
Mas ambos eram perseguidos: um por ser macumbeiro,
outro por malandragem. (AMADO, 1975, p.26 e 27).

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  243
Ao promover uma releitura do passado escravocrata e
de opressão da Bahia, com ênfase na oralidade presente na
tradição cultural dos folhetos sobre a saga de Zumbi dos Pal-
mares e sobre a vida dos cangaceiros -Antonio Silvino e Lucas
da Feira-, Jorge Amado destaca a voz de protagonistas anôni-
mos e ilustres, históricos e ficcionais, que se insurgiram con-
tra o poder instituído, e enfoca, pela primeira vez na literatura
brasileira, as questões de raça e classe, sob uma perspectiva
comunista.
Em Jubiabá, o protagonista Antonio Balduíno (Baldo),
negro órfão criado pela tia Luísa no morro do Capa Negro que
teve uma vida turbulenta – moleque de rua, pedinte, lutador
de boxe, compositor de samba, agricultor nas plantações de
fumo, trabalhador de circo pobre, estivador e líder grevista-
sonhava ter sua existência imortalizada em um texto literário
com estrutura de ABC, presente na literatura popular conhe-
cida como folhetos. Charmoso amante e malandro, Baldo se
projeta na paisagem portuária de Salvador, como condutor de
greves, que sempre retorna ao terreiro de Jubiabá para rece-
ber conselhos e se purificar.
No romance, Amado destaca paralelamente à trajetó-
ria de Baldo, a longa vida do pai de santo, Jubiabá, que era o
último remanescente da geração de escravos e o patriarca de
negros e mulatos. Profundo conhecedor da vida de Zumbi, o
ancião, como líder dos cultos aos orixás, praticava medicina
espiritual e real, por meio de aconselhamento e apoio às ques-
tões físicas e psicológicas, em rituais de descarregos, purifica-
ções e proteções. No seu terreiro, de caráter sincrético, tinha
um altar com imagens de entidades e divindades africanas
bem como de santos e santas celebrados no cristianismo. A
filosofia de Jubiabá era explicada, de forma clara, por meio da
metáfora dos olhos: o ser humano podia expressar seus sen-

244  d DENISE ROCHA


timentos e atitudes por meio do “olho da piedade” e do “olho
da ruindade”.
Em sua narrativa multicultural sobre a saga do negro
Baldo que sempre fora apoiado pelo guia espiritual, Jubiabá,
o escritor baiano aborda fatos históricos da cidade e da so-
ciedade de Salvador em um período de repressão policial efe-
tuada pela Delegacia de Jogos e Costumes, a partir dos anos
1920, que promovia “batidas” em terreiros de macumba ou
umbanda, destruía altares ritualísticos, trajes, oferendas, ins-
trumentos musicais e prendia líderes religiosos.
A publicação do romance Jubiabá, cujo título evocava o
caboclo homônimo, recebido por Severiano Manoel de Abreu
(1886-1937), provocou um áspero diálogo entre o babalorixá
Severiano e o escritor Amado que foi publicado em artigos na
imprensa baiana (1936).

A Cultura Africana na Bahia

Do golfo da Guiné – África Ocidental atlântica – ao porto


da Bahia de Todos-os-Santos chegaram pessoas de diversas et-
nias e culturas, as quais receberam várias denominações. A par-
tir do século XVII, elas começaram a ser chamadas de minas, e
posteriormente, de negros-minas ou negros da Guiné. Aquelas
oriundas da região localizada mais a oeste do golfo, que cultu-
avam os vodus, ligadas a ancestrais fundadores de linhagens,
eram conhecidas como jêjês. Os outros grupos, os iorubás, pro-
venientes de área mais a oeste, vinculados às religiões dos ori-
xás, eram denominados de nagôs1 (SOUZA, 2009, p.85). Jorge

1Popularmente, algumas pessoas de ascendência afro se declaram nagô, filhos de


nagô, ou descendentes de nagô. Em Salvador, na segunda metade do século XIX,
negros e crioulos de diversas etnias, que falavam o iorubá, eram conhecidos como
nagôs, palavra que ficou conhecida como o idioma – o nagô.

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  245
Amado em Jubiabá vai retratar o universo da cosmogonia nagô
em terreiro do pai de santo ancião. Esse tipo de líder religioso
era conhecido também como babalorixá ou babalaô.
A cultura africana pode ser preservada na Bahia não so-
mente pelo interesse dos escravos em preservar sua identida-
de, mas também com a autorização do Conde de Arcos, sétimo
vice-rei do Brasil, o qual aprovou, no ano de 1758, as danças
e cânticos ritualísticos, como forma dos negros guardarem as
lembranças das raízes e para não se esquecerem a aversão re-
cíproca que sentiam pelos adversários, os quais combatiam
no continente africano (VERGER, 1981, p.25).
Para justificar suas preces, louvações e pedidos por aju-
da aos orixás ou proteção na sociedade branca e católica, os
cativos diziam que louvavam os santos cristãos, criando uma
prática religiosa sincrética: Oxalá era o Senhor do Bonfim;
Oxóssi = São Jorge, Xangô = São Jerônimo, Ogum = Santo
Antônio, Obaluê= São Lázaro, Omolu = São Roque, Iemanjá =
Nossa Senhora da Conceição, Nanã Buruku = Santa Ana, mãe
da Virgem Maria, e Oiá-Iansã = Santa Bárbara (VERGER,
1981, p.26).
A casa de candomblé, conhecida como terreiro ou roça,
foi originariamente o centro sociocultural e religioso de afro-
-descendentes, mas na contemporaneidade acolhe pessoas de
cores, profissões e credos diversos. O terreiro tem diversos
edifícios: uma casa é destinada à moradia das pessoas que fa-
zem parte do candomblé; a construção principal (o barracão)
é uma grande sala para danças e cerimônias públicas, e nas
outras casas estão instalados os péjis, consagrados aos diver-
sos orixás. Existe ainda um cômodo, sem janelas, mobiliado
somente com uma esteira, conhecido como a camarinha, onde
são feitas as iniciações de filhos ou filhas de santos. No cen-
tro do barracão são reunidos alguns recipientes que têm as

246  d DENISE ROCHA


oferendas às divindades, como a farofa amarela, a cachaça, o
azeite de dênde e a acaçá (VERGER, 1981, p.45; e 71 e 72). Na
oferta alimentar aos orixás nagôs está “o mito que a prescreve
pelas práticas divinatórias”. Por exemplo, o ebô, milho branco
cozido, oferecido a Oxalá, não tem nem sal e nem azeite de
dendê “porque os mitos de Oxalá e de sua corte remetem à
interdição desses temperos.” (LIMA, 1999, p.323).
Na cerimônia de macumba ou candomblé, a música de-
sempenha um papel muito importante, pois estabelece a rela-
ção entre os homens e as divindades: “Os cânticos, as danças,
os gestos, as cerimônias e mitos estão inextricavelmente liga-
dos e formam uma única realidade mítica.” (BASTIDE, 1945,
p.111). A orquestra ritual tem instrumentos de percussão: tam-
bores, denominados de atabaques, agogôs e gãs (campânulas
de ferro percutidas por baquetas de metal) que apoiam as dis-
tintas fases das celebrações: orikis, evocações; orin – cantos
de louvação; adura – preces; iba – saudações; e ofó – encanta-
mentos das espécies vegetais. (BARROS, 2006, p.265 e 268).
No início da cerimônia religiosa é feito para outros lu-
gares o despacho de uma entidade conhecida como Exu:
Em mitos cosmogônicos nagôs ainda hoje relatados
em terreiros baianos, Exu interfere na obra do criador,
criando disparidades, desequilíbrios, desarranjos, de
maneira a gerar mudança e movimento (SERRA, 1999,
p.295).

Os cantos e as danças, que são formas de evocar e saudar


as divindades, produzem estados de transe nos filhos-de-san-
tos, consagrados a determinado orixá. Levados para o peji (co-
nhecido como camarinha), eles se vestem com as roupas carac-
terísticas de sua divindade e portam seus objetos simbólicos.
Voltam ao barracão e começam a dançar diante da assistência:
“Xangô “pavoneia-se” majestosamente; Oxum requebra-se;

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  247
Oxóssi corre, perseguindo a caça; Ogum guerreia; Oxalufã, en-
fraquecido e curvado pelo peso dos anos, arrasta-se mais do
que anda, apoiado no seu “paxorô”. (VERGER, 1981, p.73).
O terreiro é um espaço organizado onde acontecem:
“As práticas religiosas, os rituais, os trabalhos, as obrigações,
a consulta aos orixás, as atividades de cura e tratamento”. Em
relação ao método terapêutico, ocorre o diálogo com o orixá
no quarto de consulta (o consultório): “Para lá acorrem os que
padecem de dor física, moral e psíquica. Os que padecem fome
e sede de justiça. Os perseguidos da má sorte, do destino, da
perdedeira na vida.” (PÓVOAS, 1999, p.216 e 218).
O pai ou mãe de santo exercem diversas funções e seu
“poder sacerdotal não está simplesmente na detenção do co-
nhecimento adquirido, está também no desempenho eclesiás-
tico dentro de um terreiro [...]. O axé do orixá foi sacramen-
tado na cabeça/corpo do sacerdote, tornando-o um único ser.
O divino não se separa do profano, apenas existem momentos
de vivência diferentes”. Em relação ao significado do contato
com o sagrado, o filho ou a filha de santo incorporam o orixá
no momento do transe: “Ao vivenciar a divindade, todos os
membros da comunidade o reverenciam.” (VALLADO, 1999,
p.143 a 146).
Os iniciados na categoria de ogãs, que aprendem os
cantos e os ritmos (toques), não entram em transe (BARROS,
2006, p.269). São dignatários, sem funções religiosas espe-
ciais, que ajudam o terreiro de forma material e contribuem
para a sua proteção. Colocados sob a invocação de um santo
católico, eles constituem uma sociedade civil de apoio recí-
proco; alguns recebem o prestigioso título de obá no Terreiro
Axé Opô Afonjá (VERGER, 1981, p.71). Jorge Amado recebeu
essa denominação honrosa do terreiro tradicional da nação
nagô-queto.

248  d DENISE ROCHA


No romance Jubiabá são apresentadas três situações
detalhadas sobre as práticas religiosas no terreiro do pai de
santo: uma cerimônia com o ogã Antonio Balduíno (Baldo),
com a aparição das seguintes divindades: Xangô, Omolu,
Oxóssi e Oxalá; outra celebração com a presença de um es-
critor de folhetos tipo ABC; um momento de consultas par-
ticulares a Jubiabá e a ida de Baldo ao terreiro para avisar
seus companheiros sobre a greve. Além disso, são citados mo-
mentos de preconceito de grande ala da sociedade baiana em
relação ao culto dos orixás e o aprisionamento de Jubiabá, por
prática ilegal de liderança religiosa.

Perseguição ao Candomblé, à Capoeira e ao Samba na Bahia, nos anos


1920 e 1930

O pai de santo Jubiabá no romance de Jorge Amado


foi vítima de repressão policial e, apesar de sua idade muito
avançada, foi encarcerado.
A Bahia-de-Todos-os-Santos foi palco, nos anos 1920 e
1930, de intensa perseguição religiosa realizada por membros
da Delegacia de Jogos e Costumes, que controlavam os terrei-
ros, bem como da imprensa de Salvador, a qual desenvolvia
uma crítica cerrada aos ritos de candomblé, à capoeira e ao
samba. A pesquisadora Ângela Luhning no artigo “Mito e reali-
dade da perseguição policial ao candomblé entre 1920 e 1942”
destaca que: “um dos mais fortes, e talvez mais surpreendentes,
é que ‘uma campanha cerrada da imprensa levou a polícia a
perseguir os candomblés.’” (LÜHNING, 1995-1996, p.199).
O preconceito e intolerância chegaram a tal ponto, que
pessoas envolvidas nas práticas de ritos de raiz africana, como
umbanda, candomblé e macumba, se distanciavam dessas
classificações, por medo de represálias. Alguns deles declara-

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  249
vam ser espíritas e não serem membros do dendê, conforme
esclarece Raul Lody na obra Tem Dendê, tem Axé: etnografia
do dendezeiro:
O estigma cultural do dendê é tão impregnado do saber,
do comportamento, do jeito, do conhecimento e reco-
nhecimento dos adeptos do Candomblé, do chamado
Povo do Santo – principalmente os feitos ou iniciados,
podendo se incluir também simpatizantes e aqueles
que não são feitos, mas têm obrigação ou ainda Santo
assentado – onde o azeite, o dendezeiro e seus muitos
produtos somente atestam como é próximo e uno o
ser do santo como o ser do dendê. (LODY, 1992, p.13).

Nessa ambiência de estigmatização sociopolicial em


relação ao candomblé foi planejado o 2º Congresso Afro-Bra-
sileiro, que tinha como objetivos o apelo às autoridades para
legislarem em prol da liberdade religiosa da população de an-
cestralidade africana, bem como a criação da União das Seitas
Afro-Brasileiras com clara intenção de legitimar a prática de
religiões de matriz africana (ritos, benzimentos, curas, aconse-
lhamentos etc.) e com isso tirá-las da esfera da contravenção.

O 2o Congresso Afro-Brasileiro em Salvador (1936)

Uma série sobre a cultura africana da Bahia, que seria


publicada em O Estado da Bahia no mês de maio de 1936, foi
anunciada no dia 9 desse mês, com o título “As Macumbas
Através de Interessantes Reportagens do Estado da Bahia” e
o subtítulo “Jubiabá, o célebre ‘pai de santo’, ouvido por nós,
faz sensacionais revelações”. Foram chamadas jornalísticas
para anunciar a série de reportagens – com os babalorixás
Martiniano do Bonfim, Manuel Paim, Jubiabá, Joãozinho da
Goméia, e a ialorixá Aninha –, que viria a ser publicada nos
meses seguintes, como forma de preparativo para o planejado

250  d DENISE ROCHA


2. Congresso Afro-Brasileiro. Tal evento estava sendo orga-
nizado pelo jornalista e etnógrafo Edison Carneiro, para ser
realizado em Salvador, nos dias 11 e 19 de janeiro de 1937.
Nesse momento, maio de 1936, o livro Jubiabá, de Jor-
ge Amado, já tinha sido lançado (1935) e provocado uma rea-
ção belicosa no babalorixá homônimo que se chamava Seve-
riano Manoel de Abreu.

Jorge Amado e Severiano Manoel de Abreu: o Conflito sobre Jubiabá (1936)

No romance Jubiabá, publicado pela Editora José


Olympio do Rio de Janeiro, Jorge Amado cria uma persona-
gem literária homônima que tinha as seguintes característi-
cas: o pai-de-santo era bem idoso, tinha as pernas tortas e
condição econômica humilde, trazia sempre um ramo de fo-
lhas, em suas andanças pelo bairro, e resmungava palavras
em nagô. Guia espiritual da comunidade do morro do Capa
Negro, ele fazia rezas, espantava forças malignas, curava do-
enças, e aconselhava as pessoas em suas atribulações ­pessoais.
Ex-escravo, que narrava sobre as raízes africanas do seu povo
e sobre a vida de Zumbi dos Palmares, Jubiabá foi um pai para
Antônio Balduíno, menino órfão criado pela tia, o qual se tor-
nou um líder grevista.
O aparecimento do romance Jubiabá provocou uma re-
ação profunda em Severiano Manoel de Abreu (1886-1937),
capitão do Exército, em Salvador, e guia religioso do Centro
Espírita Paz, Esperança e Caridade. Ele recebia o caboclo Ju-
biabá e incorporou para si a denominação da entidade, de
modo que acreditou ser o detentor do nome e não aceitou a
licença poética de Jorge Amado.
Severiano Manoel de Abreu se posicionou contra o es-
critor Amado, conforme o teor de sua entrevista, concedida

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  251
ao jornal O Estado da Bahia, e publicada no dia 11 de maio
de 1936, com o seguinte título “No mundo cheio de mistérios
dos espíritos e ‘pais de santos’”, e dois subtítulos: 1-“Inician-
do uma larga reportagem sobre espiritismo e candomblés o
Estado da Bahia viu e ouviu o famoso Jubiabá, herói do últi-
mo romance de Jorge Amado”; e 2- “De incrédulo a médium
curador – Cruz do Cosme e seu reduto – Até entre os espíritos
há melindres e vaidades – Pai de 22 filhos vivos e influência
política”.
O capitão Severiano residia em uma casa chique e gran-
de, possuía fazendas e terrenos e era orgulhoso por ter liga-
ções com membros e assessores do governo, como Martinelli
Braga, oficial de gabinete do governador Juracy Magalhães.
Sentia-se poderoso, pois exercia influência política no seu re-
duto espiritual: o Centro Espírita Paz, Esperança e Caridade,
localizado na rua Cruz do Cosme, 205, renomeada de Avenida
Saldanha Marinho:
– Minha casa, diz ele, é freqüentada por muitas pessoas
de importância. Médicos, bacharéis, negociantes e auto-
ridades vêm aqui. Dentre os meus amigos eu conto o dr.
Martinelli Braga. Eu sou amigo do governo! Nas eleições
municipais dei mil e tantos votos ao dr. Americano da
Costa a pedido do dr. Martinelli.

Aquele é um velhinho bom e amigo dos pobres. Para


estas casinhas daí do fundo, ele dispensou as plantas
e vai mandar botar um chafariz. (CLAY, [s.d.], p.11).

Severiano tinha prestígio social e político e enfatizava


muito sua crença no espiritismo, enquanto que negava os ri-
tos de candomblé e de feitiçaria. Após conseguir a orientação
e a autorização do doutor Martinelli, Severiano-Jubiabá per-
mitiu que a equipe do jornal O Estado da Bahia fizesse foto-
grafias em seu centro/terreiro e declarou:

252  d DENISE ROCHA


– Não sou feiticeiro! Exclamou aborrecido. Pedem-me
às vezes consentimento para “bater”, a fim de agradar
aos caboclos. Minha casa é de sessão. Curo e faço ca-
ridade com o poder que Deus me deu, com as minhas
forças ocultas.

Depois desta afirmativa mostra-nos todas as depen-


dências da casa para que constatássemos a inexistência
de santos e objetos de candomblé. (CLAY, [s.d.], p.11).

Ao jornalista, Severiano anunciou sua aposentadoria


como guia espiritual, médium e negou a prática de curas por
meio de medicamentos. Tratava-se de uma postura de defesa
de atos considerados ilícitos como o da prática ilegal da medi-
cina. Ele distanciou-se também da realização de festas ao som
de atabaques.
– Atualmente, concluiu “Jubiabá”, eu não faço “traba-
lhos”. Dou apenas sessões doutrinárias e preces.
Posso garantir ao senhor, que nunca fiz curas com remé-
dios. Troco idéias com os médicos e estes aconselham
o remédio de que o doente necessita. Há pouco tempo
deixei de fazer estas curas, atendendo a uma determi-
nação do meu amigo tenente Hannequim, ordem esta
que estou cumprindo.
Quanto a esta história de bater, uns estudantes vieram
aqui e me pediram isso. Eu não tinha material e mandei
pedir uns courinhos emprestados (atabaques). Pergun-
tei se eles queriam ver de caboclo ou de africano. Fiz a
festa, eles ficaram satisfeitos e no meio destes um achou
que eu era feiticeiro. (CLAY, s.d., p.13).

Severiano praticava sua crença sincrética que reunia es-


piritismo kardecista e candomblé de caboclo, em uma forma
de união de elementos da espiritualidade indígena e outros de
origem africana. Em sua residência e na sua “casa de culto de
centro espírita” foram feitas fotografias, publicadas no jornal
O Estado da Bahia com as seguintes legendas – “A capela de

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  253
Santo Antonio, na sala principal do palacete de Jubiabá”; o
edifício do Centro Espírita Paz Esperança e Caridade; o retra-
to dele sentado em sua famosa cadeira, com a legenda: “Se-
veriano Manoel de Abreu (Jubiabá) capitão do Exército de 2ª
linha e curador espírita, posando para Estado da Bahia para
mostrar-se como ele verdadeiramente é” e a imagem de São
Tomé, o guia espiritual de líder religioso e o de seu altar.
No final do encontro, realizado em maio de 1936, o jor-
nalista e o fotógrafo desceram o morro e tropeçaram:
na ladeira com um pombo enfeitado e cheio de pipocas
e azeite e mais adiante com uma galinha preta um ‘ebó’
perfeito, completíssimo, que, com certeza, não era des-
tinado a trazer felicidade. (CLAY, [s.d.], p.14).

Severiano Manoel de Abreu foi descrito na reportagem


como um “tipo forte de caboclo, estatura um pouco acima da
mediana, fala mansa e de boas maneiras, 50 anos de idade
há dias feitos” que tinha feudo no Cruz do Cosme e era segui-
do por mais de uma centena de devotos. Ele não queria ser
chamado de candomblezeiro ou macumbeiro, e, sim, preferia
ser nomeado como espírita, ou seja, membro de uma doutrina
de origem europeia, aceita socialmente. Por ter se compara-
do ao Jubiabá, velho macumbeiro, pobre e de pernas tortas,
personagem criada por Jorge Amado, Severiano detestou o
romance, conforme falou em outra conversa concedida a João
Duarte dos Diários Associados.
Dias depois, em entrevista realizada na Livraria José
Olýmpio, no Rio de Janeiro, Jorge Amado negaria ter se ins-
pirado no famoso pai de santo baiano para elaborar a perso-
nagem do seu livro. O encontro foi publicado em O Estado
da Bahia no dia 28 de maio de 1936, com o título “O Jubiabá
do romance e o da vida real”, e o subtítulo “Não pensei no
mulato Severiano, um só momento, enquanto escrevia o meu

254  d DENISE ROCHA


livro – declara o romancista Jorge Amado – Macumbeiro e
baixo espiritismo – Como o homem se meteu na pele de um
personagem de romance”. Jorge Amado disse: “ — Meu perso-
nagem está humilhadíssimo...”, bem como afirmou que tinha
como objetivo, criar uma personagem que fosse um verdadei-
ro sacerdote da sua religião, bom, nobre e sereno: “Se você
reconhecesse a história do mulato Severiano, haverá de com-
preender porque o meu personagem está tão humilhado...”.
(CLAY, [s.d.], p.26). 2
Jorge Amado disse que não tinha pensado um só mo-
mento em Severiano Manoel de Abreu, pois se inspirou em
vários outros pais de santo para compor a personagem Jubia-
bá, principalmente no babalaô Martiniano do Bonfim:
É claro que estão mesclados no meu Jubiabá vários
pais de santo que deram aquele tipo. O físico de um,
a moral do outro, assim por diante. Não lhe nego que
pensei muito numa figura de pai de santo da Bahia ao
levantar o Jubiabá. Mas aquele em que pensei é uma
grande figura, um homem que merece todo o respeito e
já mereceu de Gilberto Freyre palavras do maior elogio.
E esse pai-de-santo foi uma das primeiras pessoas a
receber o meu romance. Foi ele quem me deu a tradução
daqueles cânticos nagôs de macumba, daquele conceito,
etc. (CLAY, [s.d.], p.26).

O escritor baiano, em seguida, acusa Severiano de ten-


tar se aproveitar da homonímia para obter fama: “Como você
vê, estão criando um romance em torno do meu romance. Boa

2 Para convencer de que seu personagem nada tem a ver com o Jubiabá da vida
real, Jorge Amado cita dois depoimentos: “... um artigo do poeta Aydano do Couto
Ferraz (“Jubiabá e a poesia do mar”, publicado no “Diário de Notícias”, do Rio),
onde o escritor baiano esclarece bem a diferença entre os “xarás” e uma nota no
livro de Edison Carneiro, o grande estudioso das questões do negro brasileiro, que
se acha no prelo: “Religiões Negras”. Edison também faz notar que muito diferem
os dois sujeitos do mesmo nome, o do romance e o da vida”. (CLAY, [s.d.], p.27).

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  255
publicidade, aliás. O pior é esse negócio do mulato Severiano
estar a fazer a publicidade dele às minhas custas [...]”. (CLAY,
[s.d.], p.27).

Jubiabá: Guardião da Memória Africana e o Reconhecimento da


Sociedade em Transformação

Militante na Juventude Comunista, Jorge Amado par-


ticipa, desde o final de 1934, ativamente das atividades da
Aliança Nacional Renovadora – ANL –, em uma época de
formação das Frentes Populares incentivadas pelas seções
partidárias, subordinadas a III Internacional Comunista. Na
concepção do historiador Eric Hobsbawm na obra Era dos ex-
tremos, a proposta de uma unidade contra o General Franco
da Espanha, trouxe para as fileiras comunistas a adesão de vá-
rios intelectuais que temiam a ascensão de forças partidárias
de direita: prejudiciais “à liberdade intelectual que imediata-
mente expurgou das universidades alemãs um terço de seus
professores.” (HOBSBAWM, 2005, p.151).
No Brasil de Getúlio Vargas, a liberdade de opinião e de
escrita não existia, inclusive obras de Jorge Amado – Jubia-
bá, Capitães de areia, Cacau, Suor e País do carnaval- consi-
deradas de teor comunista, foram queimadas em Salvador, no
dia 19 de novembro de 1937.
No ano de 1935, que foi abalado com o frustrado golpe
da ANL contra Vargas, Jorge Amado, depois do aparecimento
de O país do carnaval (1931) e Cacau (1933) escreve Jubiabá
e o publica pela Editora José Olympio. O pesquisador Eduar-
do de Assis Duarte, na obra Jorge Amado: Romance em tem-
po de utopia, destaca a ênfase de Amado na abordagem da
negritude, da greve e da opressão religiosa na Bahia:

256  d DENISE ROCHA


Em Jubiabá, a questão da negritude aflora toda vez
que se pensa o papel do narrador, já que não se trata
simplesmente da fala do proletário negro. O narrador
de Jubiabá, aliás, como o de toda literatura socialista,
toma para si o discurso do oprimido ou que julga serem
os clamores das classes oprimidas. Trata-se, pois, de
uma apropriação do discurso do outro, mediatizada
pela perspectiva do partido. A postura do escritor é a de
vanguarda do proletariado e, como tal, fala desta classe
segundo a visão que o partido expressa como correta.
Apropriação implica superação, e o texto amadiano,
embora representando a umbanda como uma forma de
resistência cultural dos negros e mesmo denunciando
a perseguição religiosa de que são vítimas, termina por
enquadrar a negritude no discurso partidário, pelo qual
a de terminação econômica iguala os indivíduos, inde-
pendentemente de credo ou cor. (DUARTE, 1996, p.107).

Narrado em terceira pessoa, em ótica onisciente, o ro-


mance Jubiabá está dividido em três partes: “Bahia de Todos
os Santos e do Pai-de-Santo Jubiabá”, “Diário de um Negro em
Fuga” e “A.B.C. de Antonio Balduíno em Salvador, na Bahia de
Todos-os-Santos”, em uma sociedade plurirracial e cultural,
mas que marginalizava os negros e descendentes, e os ritos de
cultos aos orixás, bem como oprimia e apoiava a política de
perseguição aos líderes religiosos de matriz africana.
Trata-se da saga de Antonio Balduíno, o Baldo, um
menino sem pais, criado pela velha tia Luísa, que teve uma
existência difícil: foi moleque de rua, mendicante, belo e forte
boxeador, compositor de samba, trabalhador nas plantações
de cacau, no circo, até chegar no porto, onde se engaja no sin-
dicato e torna-se um líder de greves. Seu grande sonho é ser
herói cantado nos folhetos tipo ABC. Em sua trajetória sente a
discriminação da cor, principalmente quando ainda menino,
vai viver na casa do Comendador, após a internação de sua tia

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  257
em um hospital psiquiátrico, e apaixona-se pela jovem Lindi-
nalva. Perseguido pela empregada portuguesa, é alvo de intri-
gas delas sendo espancado pelo patrão, pois fora acusado de
olhar para as coxas da loura filha dele. Injustiçado e incapaz
de se defender, Baldo parte para o mundo.
Desde sua infância, ele conhece Jubiabá, mas tinha medo
dele, porque o pai de santo era acusado por algumas pessoas
de ser lobisomem. Desfeito o engano, Baldo o procurava para
receber conselhos e foi iniciado na macumba para ser ogã.
Jubiabá tinha carapinha branca, o corpo seco e encur-
vado, apoiado em um bastão, e trazia sempre
um ramo de folhas que o vento balançava e resmunga-
va palavras em nagô. Vinha pela rua falando sozinho,
abençoando, arrastando a calça velha de casimira em
cima da qual o camisu bordado se oferecia ao capricho
do vento como uma bandeira. (AMADO, 1975, p.15).

Ele era:
[...] como que o patriarca daquele grupo de negros e
mulatos que morava no Morro do Capa Negro em casas
de sopapo, cobertas com zinco. Quando ele falava todos
os escutavam atentamente e aplaudiam com a cabeça,
num respeito mutuo. Nessas noites de conversas Anto-
nio Balduíno abandonava os companheiros de corridas
e de brincadeiras e se postava a ouvir. Dava a vida por
uma história, e melhor ainda se essa história fosse em
versos [...] (AMADO, 1975, p.16).

Conselheiro espiritual do povo do morro, Jubiabá tinha


uma cosmovisão, baseada na ancestralidade africana, que ex-
plicava a junção do mundo, da gente e das forças cósmicas.
Para o pai de santo, o ser humano se revelava por meio do
órgão da visão: por exibir o “olho da piedade” ou o “olho da
ruindade” e mostrar sua índole com sentimentos ou atitudes
que refletiam estados de compreensão, pena, misericórdia ou

258  d DENISE ROCHA


de maldade, canalhice etc. A respeito de um homem, que na-
morava Rosa, mas que foi espancada pelo noivo, depois dele
roubar o dinheiro reservado para as núpcias, Jubiabá comen-
tou que o patife tinha morrido de “[...] morte feia. Nele o olho
da piedade vazou. Ficou só o da ruindade. Quando ele morreu
o olho da piedade abriu de novo.”
Repetiu:
O olho da piedade vazou. Ficou só o olho da ruindade
[...].
— Ninguém deve fechar o olho da piedade. É ruim fechar
olho da piedade... Não traz coisa boa.
Disse em nagô e quando Jubiabá falava nagô os negros
ficavam trêmulos:
— Ôjú `anun fó ti ika, li ôku [...].
Antonio Balduino ouvia e aprendia. (AMADO, 1975,
p.22).

Dignatário das tradições de matriz africana, o ancião


cultuava os orixás e possuía uma pequena e bonita casa no
centro no Morro do Capa Negro que tinha um grande terreiro
na frente e um quintal amplo, no fundo. Por causa de suas
atividades de macumba, o velho senhor tinha sido vítima das
forças de repressão policial, “Uma noite tinham metido Jubia-
bá na chave, o pai-de-santo passara a noite lá e tinham levado
Exu.” (AMADO, 1975, p.79).
A residência de Jubiabá tinha uma sala bem espaçosa,
guarnecida com uma mesa composta de um banco de cada
lado e com uma cadeira espreguiçadeira, virada para a porta
do quarto de dormir do pai de santo:
Nas paredes retratos inúmeros emoldurados em con-
chas brancas e rosas, mostravam parentes e amigos do
pai-de-santo. No nicho, um orixá negro confraternizava
o santo salvando um navio de um naufrágio. Porém o
ídolo era muito mais bonito, pois era uma negra de belo

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  259
corpo, segurando com uma das mãos o seio punjante
e bem feito, num gesto de oferecimento. E era Iansã,
deusa das águas, que o homem branco chama de Santa
Bárbara. (AMADO, 1975, p.84).

A roça espiritual dele, que era frequentada por pessoas


humildes e por “gente rica, doutores de anel, ricaços de auto-
móvel”, tinha um altar católico de dimensão sincrética:
Oxóssi era São Jorge; Xangô, São Jerônimo; Omolu, São
Roque e Oxalá, o Senhor do Bonfim, que é o mais mila-
groso dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os
Santos e do pai-de-santo Jubiabá (AMADO, 1975, p.78).

Nas cerimônias havia um rito: o babalorixá entrava, era


conduzido por um participante até sua cadeira, onde alguns o
beijavam na mão. Havia bancos ao redor da mesa para as visi-
tas em busca de cura física, emocional e de aconselhamentos.
No fundo da sala de barro batido tocava uma orquestra;
os ogãs, os “sócios do candomblé”, ficavam sentados em qua-
drado no meio do cômodo, e ao redor deles, giravam as feitas,
como eram conhecidas as sacerdotisas, que podiam receber
o santo. A assistência, que se reunia em volta da sala, encos-
tada na parede, era formada por brancos, negros e mulatos e
“negras gordas, vestidas com anáguas e camisas decotadas e
colares no pescoço”. Em dias de cerimônias, algumas negras
vendiam acarajé e abará na frente do terreiro e se ouviam sons
de atabaque, chocalho, cabaça e agogô. Certa noite, aparece-
ram o ogã Baldo, sua namorada Joana, seu amigo Gordo, en-
tre outras pessoas, que assistiram o início do rito com o des-
pacho de Exu para bem longe, a fim de evitar a perturbação no
desenvolvimento da festa.
Uma das mulheres recebeu o santo e foi levada para a
camarinha, mas como não era iniciada na casa, o rito não se
completou até que uma moça local, escolhida pela divindade,

260  d DENISE ROCHA


pôde entrar no quarto com as sacerdotisas. Ao retornar com
as roupas do Orixalá Xangô, o deus do raio e do trovão – vesti-
do branco e contas da mesma cor salpicada de vermelho, com
um bastãozinho na mão – a cerimônia pôde começar:
A mãe do terreiro puxou o cântico saudando o santo:
— Edurô dêmin lonan ê yê!
A assistência cantou em coro:
— A umbó k’ó wá jô!
E a mãe do terreiro estava dizendo no seu cântico nagô:
— Abram alas para nós, que viemos dançar (AMADO,
1975, p.75).

Os participantes reverenciavam o orixá, pondo as palmas


das mãos voltadas para ele e os braços colocados em forma de
ângulos agudos, e as feitas rodavam em torno dos ogãs. No meio
deles estava Jubiabá que foi saudado por Xangô: “O santo reve-
renciava curvando-se três vezes diante da pessoa, depois a abra-
çava, apertando-lhe os ombros, e punha cara ora de um lado ora
de outro da do reverenciado”. Todos gritavam: “Okê! Okê!”:
A mãe do terreiro cantava agora:
— Iya ri dé gbê ô
— Afi dé si ómón lôwô
— Afi ilé ké si ómón lérum
E ela estava dizendo que:
— A mãe se enfeita de jóias.
— Enfeita de contas o pescoço dos filhos.
— E põe novas contas no pescoço dos filhos.
E os ogãs e a assistência faziam o coro pronunciando
uma onomatopéia que indicava o ruído das contas “que
estavam todas as trincar”:
— Ômiro wónrón wónrón wónrón ômirô. (AMADO,
1975, p.76).

Joana, a namorada de Baldo, foi escolhida por uma di-


vindade para a incorporar. Apareceu vestida como Omolu, a
deusa da bexiga, trajando roupa multicolor, com predomi-

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  261
nância do vermelho vivo, e um pano branco amarrados nos
peitos. Sensual reverenciou Baldo e outros. Excitadas, as pes-
soas queriam dançar e cantavam em coro: “— Êolô biri ô b’ajá
gbá kó a péhindá e estavam dizendo que ‘o cachorro quando
anda mostra o rabo’”. Outro orixá, Oxóssi, o deus da caça, sur-
giu, vestido de branco, verde e um pouco de vermelho e com
um arco e flecha, pendurado na lateral do cinto, e portando
um capacete de metal de casco de pano verde.
A assistência estava em quase êxtase, as mulheres ba-
tiam os pés descalços na terra batida e requebravam, em com-
passo ritualístico: “Havia quem apertasse os lábios e mãos
tremiam, corpos tremiam no delírio da dança sagrada”. E o
maior dos orixás, Oxalá, que representava pessoas diferentes
– Oxodian, o moço, e Oxulafá, o velho –, surgiu e escolheu
a moça Maria dos Reis. Com traje branco e apoiado em um
bordão com lantejoulas, ele foi reverenciado pelo cântico da
mãe do terreiro:
— Ê inun ójá l’a ô jô, inun li a ô lo [— O povo da feira que
se prepare. Vamos invadí-la. E o coro respondia: — Êrô
ójá é pará món, ê inun ójá li a ô lô. [— Povaréu, cuidado,
entraremos na feira.]. (AMADO, 1975, p.78).

A jovem Maria dos Reis caiu, sacudindo o corpo, “espu-


mando pela boca e pelo sexo” e a cerimônia chegou ao clímax:
A assistência dançava freneticamente ao som dos atabaques,
agogôs, cabaças e chocalhos, junto com os quatro orixás que es-
tavam entre as feitas e os ogãs: “Oxossi, o deus da caca, Xangô,
deus do raio e do trovão, Omolú, deusa da bexiga, e Oxalá, o
maior de todos, que se espojava no chão.” (AMADO, 1975, p.78).
O pai de santo Jubiabá atendia no quarto de consultas
pessoas que necessitavam de ajuda, de consolo, de esperan-
ças, como um espanhol de queixo inchado e amarrado por um
pano que falou: – Pai Jubiabá, yo estou com um dente danado

262  d DENISE ROCHA


pra doer, Caramba! Não me deixa trabajar, nem hacer nada.
Caramba! Já gastei um dinheirão com o dentista e nada... Não
me resta nada a hacer! O guia medicou:
— Bote chá de malva e reze assim:
São Nicodemus, sarai esse dente!
Nicodemus, sarai esse dente!
sarai esse dente!
esse dente!
dente!
Completou:
-Vosmecê faz a oração na praia. Escreve na areia e vai
apagando de cada vez uma palavra, não sabe? Depois
vai pra casa e bota o chá. Mas sem a oração não presta.
(AMADO, 1975, p.84).

Outro visitante pediu por um despacho e foi conduzido


por Jubiabá no quarto. No dia seguinte apareceu
um feitiço forte, farinha misturada com azeite-de-dendê,
quatro-mil réis em pratas de dez tostões, dois vinténs
de cobre e um urubu novinho ainda vivo, na porta de
Henrique Padeiro que pegou uma doença e morreu dela
tempos após. (AMADO, 1975, p.85).

Desesperada, uma mulher relata:


— Aquela sem-vergonha da Marta tomou meu homem.
Eu quero que ele venha de novo pra casa. — A negra
estava revoltada. — Eu tenho filhos, ela não tem...
— Você arranje uns cabelos dela e traga que eu faço tudo
— respondeu Jubiabá. (AMADO, 1975, p.85).

Certa vez, Baldo que estava na expectativa de seduzir


Maria dos Reis, uma jovem feita do terreiro que recebia san-
to, encontrou um soldado, noivo dela, no terreiro de Jubiabá,
com pedido de ajuda para reconquistar a moça. O conselheiro
ordenou os elementos necessários para se fazer um despacho:
“Só trazendo uns cabelos de sovacos dela e uma ceroula sua.

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  263
Eu faço que ela nunca mais largue você [...] Fica amarrada
como cachorro [...]” (AMADO, 1975, p.85). Em conversa com
Baldo, o guia percebeu que ele desejava a moça noiva, tentou
dissuadi-lo do intento imoral, mas nada conseguiu.
Pai Jubiabá, que, às vezes, trajava um lindo camisu
longo até o chão, bordado no peito, atendeu a muitas outras
pessoas que queriam resolver seus problemas e umas foram
rezadas com ramos de mastruço. Na madrugada seguinte, a
cidade de Salvador se encheu de “coisas feitas que entulha-
vam as ruas e das quais os transeuntes se afastavam receo-
sos.” (AMADO, 1975, p.85).

O Final do Processo de Aprendizagem de Antonio Balduíno

Antonio Balduíno, depois de receber a incumbência de


Lindinalva para criar o filho dela, Gustavinho, decidiu mudar
de vida. Começou a trabalhar no porto, como estivador na
área de embarque e desembarque de mercadorias. No sindi-
cato tomou consciência da situação de exploração que vivia,
em uma sociedade imersa nas engrenagens do capitalismo
internacional e principiou uma luta em prol dos direitos hu-
manistas e trabalhistas.
Ao som dos atabaques e da macumba de Jubiabá, os
quais pareciam ser “sons guerreiros, como sons de liberta-
ção”, Baldo caminha pelas ruas de Salvador e vê no céu claro
uma estrela brilhante que acredita ser Zumbi. Alegra-se, pois
aquele dia de greve dos trabalhadores do porto, dos padeiros,
dos operários das oficinas de força e de luz, da companhia te-
lefônica e dos condutores de bondes, tinha sido um dos mais
bonitos de sua vida, inclusive o sindicato dos estudantes de
direito estava solidário com eles. Convicto sobre o motivo de
sua luta, o jovem reflete e: “não compreende por que ­Jubiabá

264  d DENISE ROCHA


ainda não lhe ensinara a greve, Jubiabá que sabia tudo. Zumbi
dos Palmares, que é o planeta Vênus, pisca para ele do céu”.
(AMADO, 1975, p.223). Corre até o terreiro para chamar o
Gordo, o Joaquim, o Zé Camarão e o próprio pai de santo.
Excitado, Baldo invade, profana a cerimônia e inter-
rompe o despacho de Exu, que não quer partir, e, sim, ser re-
verenciado. Tal fato inédito assusta os membros do rito e a
assistência, mas Baldo explica, em alto e bom som, que elas
são vítimas de preconceito e repressão. Recorda-se do apri-
sionamento de Jubiabá:
Meu povo, vocês não sabem nada ... Eu tou pensando na
minha cabeça que vocês não sabe nada ...Vocês precisam
ver a greve, ir para a greve. Negro faz a greve, não é mais
escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar para
Oxóssi? Os ricos manda fechar a festa de Oxóssi. Uma
vez os policiais fecharam a festa de Oxalá, quando ele
era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra
cadeia. Vocês se lembram sim. O que é que negro pode
fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar para
santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve,
para tudo, para guindastes, para bonde, cadê luz? Só
tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e
branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. E
só não querer, não é mais escravo. Meu povo, vamos pra
greve que a greve é como um colar. Tudo junto é mesmo
bonito. Cai uma conta, as outras caem também. Gente,
vamos lá. (AMADO, 1975, p.223 e 224).

Baldo acredita ser um enviado para abrir a consciência


dos oprimidos, no trabalho, na religião e na vida. Por isso, ele
apela para a participação direta ou de apoio a uma greve que
poderá abrir outros caminhos para a justiça e igualdade racial
e social. O ancião Jubiabá, entretanto, não compreende esse
modo de pensar e conclui: “—Exu pegou ele [...]” (AMADO,
1975, p.224).

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  265
Em sua sabedoria ancestral, o pai de santo, posterior-
mente, começa a entender a sociedade em renovação: De um
lado, em busca de melhores condições de vida pra todos, e,
de outro, o início de aceitação das religiões africanas pela eli-
te. Tal fato estava evidenciado nas visitas de ricos, brancos e
estrangeiros em seu terreiro e no reconhecimento, principal-
mente do poder da etnobotânica de raiz afro na cura de enfer-
midades físicas. O reencontro de pai e filho, de líder religioso
e ogã, ocorre quando:
Antonio Balduíno vai para a casa de Jubiabá. Agora
olha o pai-de-santo de igual. E lhe diz que descobriu o
que os ABC ensinavam, que achou o caminho certo. Os
ricos tinham secado o olho da piedade. Mas eles podem
na hora que quiser secar o olho da ruindade. E Jubia-
bá, o feiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse
Oxolufã, Oxalá velho, o maior dos santos. (AMADO,
1975, p.245).

Com essa demonstração de reconhecimento perante


o equilíbrio demonstrado por Baldo, que era pai adotivo de
Gustavinho, filho de Lindinalva e líder político por melhores
condições de vida para todos, negros e brancos, pobres e ricos,
e católicos e gente da macumba, Jubiabá conclui seu processo
de educação de vida do menino órfão, criado pela tia Luísa.
O ciclo se fecha, o pai de santo tem um sucessor de forma di-
ferente, um ogã politizado que se preocupa com o bem-estar
dos oprimidos.

Conclusão

No romance Jubiabá, publicado no ano de 1935, época


de intensa repressão social e policial à liderança religiosa de
matriz africana, Jorge Amado humaniza o pai de santo Ju-
biabá, ao revelar o importante papel do guia espiritual e cul-

266  d DENISE ROCHA


tural da população negra e mulata, cercada por preconceitos,
devido a desconhecimento de seus ritos por grande parte da
população branca e católica soteropolitana.
Amado se arrisca perante a elite por se apresentar como
um iniciado nas práticas cerimonialistas afro, descritas com
detalhes no romance que apresenta uma faceta didática: a de
explicar a dimensão da cosmogonia nagô; o significado das
divindades, seus arquétipos, danças e apresentação (vesti-
mentas, acessórios e cores); os ritos; os distintos cânticos de
evocação, saudação e de reverência aos orixás; a ambiência
dos espaços físicos e sagrados do terreiro, da orquestra ritual
e seus instrumentos, das danças, dos gestos, dos transes, dos
recipientes das oferendas, das comidas para a assistência e
demais participantes, das ervas e do sincretismo.
O escritor baiano enfatiza ainda o poder transformador
do pai de santo, Jubiabá, que exerce o papel de conselheiro
daqueles que o consultam, em busca de amparo espiritual
para as atribulações, com atendimento universal, indepen-
dentemente da cor, credo, profissão e classe social. Amado,
conforme declarou em uma entrevista publicada em O Estado
da Bahia, no dia 28 de maio de 1936, com o título “O Jubiabá
do romance e o da vida real”, reuniu na personagem ficcional
aspectos e formas de celebração e de rituais de líderes religio-
sos que conhecia. Por isso, o pai de santo criado por ele pode
elaborar facetas de magia branca e preta.
No romance Jubiabá, Jorge Amado aborda as questões
raciais vinculadas às questões sociais e reafirma pelo seu nar-
rador que a pobreza está presente não somente na vida dos
negros e grevistas, mas também na dos brancos:
A greve é dos condutores de bondes, dos operários das
oficinas de força e luz, da companhia telefônica. Tem
até muito espanhol, entre eles, muito branco mais alvo

UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  267
que aquele. Mas todo pobre agora já virou negro, é o
que explica Jubiabá. (AMADO, 1975, p.217).

A presença da personagem ficcional, o pai de santo Ju-


biabá, guardião da memória afro, na vida da comunidade do
Morro do Capa Negro, em Salvador, se faz presente não so-
mente nas práticas religiosas e terapêuticas, na participação
no cotidiano do morro, como no velório do estivador morto
por causa do guindaste etc., mas também na afirmação da
identidade africana, demonstrada nas suas frequentes narra-
tivas da saga de Zumbi dos Palmares.
Na trajetória tumultuada do protagonista Antonio Bal-
duíno – de órfão pobre, a estivador e líder grevista, de poder
reconhecido – nota-se a participação constante do guia reli-
gioso em sua vida: em relação à Luzia, tia-mãe de Baldo, e no
benzimento de dores de cabeça dela; no reconhecimento da
patologia mental da velha senhora; na internação em hospício
e nas visitas com o menino até o enterro dela, de um lado. De
outro, percebe-se o profundo vínculo afetivo e ­espiritualizado
estabelecido com o rapaz, o qual educa para ser ogã; o orienta
para reforçar sua identidade africana e para se mirar na saga
de Zumbi e o consola depois de ter reencontrado sua ­amada
como prostituta decadente. Jubiabá não compreende a ­atitude
de Baldo quando adulto e líder grevista: a invasão desrespei-
tosa a uma cerimônia religiosa para falar de greve aos seus
companheiros. No entanto, mais tarde, o guia entende a di-
mensão do amadurecimento psicológico e social de Baldo que
compreendeu a dimensão da metáfora visual (o “olho da pie-
dade” e o “olho da ruindade”) e do poder da luta para todos.
O romance Jubiabá teve repercussão internacional, e
foi, no ano de 1946, objeto de leitura apaixonada do francês
Pierre Edouard Leopold Verger, que chegou em Salvador,
onde encantou-se com a gente e a cidade e interessou-se pela

268  d DENISE ROCHA


sua história e sua cultura. Entre 1949 a 1979, ele fez diversas
viagens entre a Bahia e a costa ocidental da África, principal-
mente Daomé (atual Benin) e Nigéria, berços da grande maio-
ria de africanos que vieram para o Brasil.
Iniciado nas práticas do candomblé, Verger se tornou
ogã no Opô Afonjá da Mãe Senhora, em Salvador, e no Opô
Aganju de Balbino, em Lauro de Freitas (Bahia). Em Daomé,
por estudar as artes adivinhatórias de Ifá recebeu de seu mes-
tre Oluwwo o nome de Fatumbo: “Aquele que nasceu de novo
(pela graça de) Ifá”. Foi iniciado como babalaô, e teve acesso
ao patrimônio cultural, à mitologia, à botânica terapêutica, e
aos ritos de possessão dos iorubás. (VERGER, 1981, p.294 e
5). As experiências de Pierre Fatumbi Verger foram escritas
em obras traduzidas para o português, que são fonte de pes-
quisa para interessados e estudiosos de religiões africanas e
das obras de Jorge Amado.

Referências Bibliográficas

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UM GUARDIÃO DA MEMÓRIA AFRICANA EM SALVADOR: JUBIABÁ (1935), DE JORGE AMADO (1912-2001) d  271
OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO
VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA1

Fausto Antonio

A tópica principal da coletânea Cadernos Negros2 inau-


gurada no ano de 1978, diz respeito ao processo criativo de
construção de personagens, histórias, textos literários, teorias
e poemas preocupados com a inclusão do negro no enunciado
e na enunciação. No transcorrer dos seus 36 anos de existên-
cia, a Série Cadernos Negros produziu muitos textos nos quais
o negro é, de fato, sujeito e criador de uma cosmovisão transfi-
guradora dos limites previamente estabelecidos pelo racismo
à brasileira. A representação do negro nesta coletânea é ques-
tão nodal e não se limita à linguagem estritamente literária.
No conto “Quando o malandro vacila”, por exemplo, há trans-
bordamentos e relações encruzilhadas com os recursos, entre
tantos outros, jornalísticos e cinematográficos.
Assim, visando à leitura e à discussão de um texto lite-
rário que ofereça recursos cinematográficos como parte inte-
grada da narrativa e, do mesmo modo, apresente personagens
negros com história e deslocados dos valores sociais ou das
profissões de prestígio, passaremos, agora, a uma análise de
“Quando o malandro vacila”, conto publicado pela série Ca-
dernos Negros, de autoria do escritor Márcio Barbosa (1987).
Antes, é fundamental destacarmos que personagens negros
com história, problemáticas, com uma cosmogonia e referen-
1 Cadernos Negros é uma coletânea de autores negros, que tem por objetivo pu-
blicar anualmente contos, nos anos ímpares, e poemas, no anos pares. Site: www.
quilombhoje.com.br. E-mail: quilombhoje@quilombhoje.com.br
2 Há contos e poemas na série Cadernos Negros referenciados na tradição dos

orixás, no rap, repente, capoeira, samba e inúmeras manifestações da diáspora


negra e igualmente referenciados na intertextualidade com a tradição literária,
com os meios de comunicação e com a cultura de massa.

272  d
ciados no seu grupo étnico-racial, é questão nuclear para a
efetiva inclusão do negro nos espaços sociais e ficcionais, o
que justifica a crítica à mera inclusão alicerçada apenas nas
profissões de prestígio socialmente falando e, no entanto, sem
densidade humana e ficcional.
Para incluir personagens negros, jovens e do universo
das favelas, Márcio Barbosa valeu-se da oralidade e de uma
técnica de roteiro que pontua e vincula os meandros inter-
nos da narrativa (enredo e história) com os ganchos externos
soprados pelo histórico-social, considerando a crítica feita
acima no que concerne às densidades humanas e ficcionais.
“Quando o malandro vacila” traz, subjacente à linguagem
oral, uma expressiva técnica de roteiro cinematográfico. As
chamadas que aparecem a título de referência para o leitor,
antecedendo a cada um dos 34 blocos que compõem a his-
tória, lembram também as manchetes jornalísticas. A partir
desse suporte, cada fragmento do conto de Barbosa (1987) é
iniciado por uma frase informativa, como por exemplo: “De
como ele quase deixou a pretinha” (p.85); “Aí, otário, segu-
ra...” (p.85); “Eu avisei você p’ra largar a Kizzy, otário” (p.85)
e “Que está acontecendo, preto?” (p.88).
Destinam-se estas frases, como chamadas de texto jor-
nalístico, manchetes, à unificação do discurso fragmentado da
narrativa e/ou orientar o leitor e, ao mesmo tempo, resumir
a ideia de cada um dos episódios que compõe, na íntegra, o
conto. Os recursos de roteiro e manchete jornalística fundam
uma gramática textual através da qual os personagens Kizzy e
William trafegam pela oralidade e pelos recursos visuais.
Há dois tempos no transcorrer do conto. Um deles é o
tempo cinematográfico, dado pelas marcas rápidas sinteti-
zadas nos títulos oralizados: “Certo, Preta. Então eu vou me
adiantar”. (BARBOSA,1987 , p.88). Além disso, no corpo dos

OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA d  273


34 blocos que estruturam o conto, existe o tempo da narrati-
va, marcado pela escrita e, portanto, sujeito à lógica dessa mo-
dalidade. No tocante às chamadas, há um pronto manuseio de
suas funções. Esse recurso é ideal para um roteiro jornalísti-
co ou cinematográfico, textos que se utilizam desses suportes
para operar ou facilitar a comunicação. O exemplo a seguir é
didático, essencialmente informativo e evidencia bem a reali-
dade a que estamos nos referindo: “Era um carro de polícia”.
(BARBOSA, 1987, p.91).
O registro rápido dos acontecimentos feito por enqua-
dramentos é a gramática oral e visual de “Quando o malandro
vacila”, mas é apenas uma parte dessa construção textual. Em
contrapartida, a escrita, nesse conto marcado pela oralidade
cinematográfica das chamadas, transita numa outra dimen-
são temporal. O corpo do texto é feito de discurso indireto, a
rigor, o tempo é mais lento. É possível entrever esse descom-
passo temporal no fragmento inicial do conto e na chamada
que abre o bloco seguinte:
‘De como ele quase deixou a pretinha’
Tudo parecia irreal. O exagerado silêncio noturno, as
mortiças luzes amareladas despejando-se violentamente
dos postes, a sensação da pele de Kyzzy muito forte
em suas mãos. E ele teve a impressão de que nunca
tomaria o ônibus para voltar p’rá casa. Mesmo aquele
Volkswagen todo estourado, pintado num brilhante
azul de ofuscar os olhos parecia trazer a morte subindo
a rua em sua direção. E ele estava certo. O carro trazia
Mãezinha, o branco da favela, que parou ao seu lado
com um revolver calibre 38 na mão:
‘Ai, otário, segura [...]’ (BARBOSA, 1987, p.85)

O arquivamento da história tem duas sequências, todas


fortemente marcadas por uma dimensão cênica de um roteiro
acoplado à narrativa. É assim que se dão, intermediadas pelos

274  d FAUSTO ANTONIO


recursos cinematográficos, as aproximações das linguagens
escritas e orais nas quais a condição de vida do personagem
negro está inserida do começo ao fim.
Como ponto de partida, no bloco denominado “De como
ele quase deixou a pretinha”, o espaço e os objetos são defi-
nidos como um conjunto indissociável dos homens, do pró-
prio espaço, do tempo e das ações. Desse modo, a oralidade,
conforme expressa a frase gancho “aí, otário, segura...”, intro-
duz o desfecho e o início de outra sequência ou plano no qual
emergem, mais uma vez, os elementos cinematográficos e os
verdadeiros atores do conto, vistos na sua história conjunta:
“Aí, otário, segura...”, gritou Mãezinha e jogou cinco
vezes. Cinco tiros varando seu peito com uma dor
insuportável causando-lhe uma infinita expressão de
terror. E seu rosto estava cheio deste horroroso medo
quando acordou de repente e Kizzy entrando na sala
surpreendeu-o. “Que foi, William?”, ela perguntou,
assustada. (BARBOSA, 1987, p.85).

Cresce, no recurso fílmico, uma maneira de contar a


história. Nesse caso, para que o circuito cinematográfico se
complete, é preciso que haja algum tipo de adequação entre
suas significações e o modo de apresentação ou de chamada
que, num jogo de tensão e de distensão, é explicado ou es-
vaziado do seu conteúdo final quando em oposição ao nexo
oral, “Aí, segura, otário”, temos a informação espacial: “Ele
respirou aliviado ao ver que ainda estava na casa da Preta e
que tudo não passava de um sonho”. No caso vertente, o que
se busca, a bem da história e da verossimilhança, é uma carac-
terização precisa e num plano extrafísico, no sonho, do espaço
em que os cortes e as sobreposições se alinham num campo
de imagens, sons e palavras. Campo, em outros termos, do
esboço fílmico, do roteiro.

OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA d  275


A construção da coerência interna da narrativa está na
base das chamadas e da caracterização espacial e física do desen-
volvimento da trama. Entram, nesse mosaico, os traços de Kizzy:
Os castanhos olhos rasgados tinham uma turbulência
devastadora. Mas o rosto de pele escura brilhante era
suavemente pequeno e redondo encimado pelo cabelo
trançado na frente e adornado lateralmente com tranças
de canecalon. (BARBOSA, 1987, p.86).

Entram também as características dos objetos: “Sozi-


nho outra vez, William inclinou-se para o relógio. Havia nos
números uma estranha coloração avermelhada”. (1987,p.86).
Da mesma maneira e a partir do mesmo ponto de par-
tida, levanta-se a questão dos recortes espaciais, propondo o
debate do histórico-social. Podemos dizer que um relato, um
roteiro cinematográfico acoplado à narrativa, é verossímil
quando se ajusta à realidade e ao desenvolvimento da própria
história. Os traçados fílmicos contam, tecem, constituem-se
em argumentos e consubstanciam um trajeto. Os esboços fíl-
micos se consolidam em planos que se sucedem, fecham-se e
abrem-se a novos blocos de uma história que, cinematografi-
camente, se desenvolve. Decorre daí o possível, o verossímil.
Ele se dá, então, na relação do texto com as manchetes e com
o sentido de complementos, de contrapartes que se procuram.
O humano, os personagens aparecem da forma-conteúdo que
integra a chamada inicial:
“Que está acontecendo, Preto”???
“Duas vezes William tivera o mesmo sonho e estava
preocupado, pois dias antes Mãezinha havia mandado
lhe dizer que se ele não se afastasse de Kizzy iria morrer”
“Revelou isto à namorada e ela ficou espantada ante o
atrevimento do branco. Conhecia – o pouco. Lembrava-
-se de tê-lo visto em diversos bailes do Chic Show no
Palmeiras.” (BARBOSA, 1987, p.87).

276  d FAUSTO ANTONIO


As manchetes dão as divisões e os sentidos para cada
bloco da narrativa. Mas há manchetes que são ilustrativas e/
ou explicativas da história num sentido geral. É o caso da cha-
mada intitulada “Eu avisei você p’rá largar a Kizzy, otário”.
A informação revela a história contida nos dois blocos, isto
é, aquele imediato que a manchete sintetiza e nos outros pe-
los quais a história se torna realidade empírica ao revelar, nos
embates entre dois oponentes, o eixo central da trama. Há um
recurso que pressupõe avanços e retomadas do fio narrativo.
Impõe-se a necessidade de, revisitando o lugar, ou melhor, o
problema expresso pelas marcas enunciadas pelas manche-
tes, pelos recortes que modelam os episódios, encontrar a his-
tória e os seus novos significados.
O texto pretende, literariamente, oferecer uma discus-
são sobre o tempo presente e sobre o lugar do autor e dos per-
sonagens negros. Avultam, nessa saga inventiva e identitária,
o uso das frases telegráficas e a força da oralidade. No entanto,
para que se produza o cruzamento entre os planos narrativos
e a relação de semelhança entre as partes e a história em si,
é preciso que haja frases nominais carregadas do máximo de
significado. É o caso do “Não” e das frases de cunho popular,
verbais, onde Barbosa (1987) segue enfatizando o tempo pre-
sente, a linguagem de um determinado grupo étnico-racial e
o período histórico: “Não” (p.88). “Certo, Preta. Então eu vou
me adiantar”, (p.88) e “puxar a turbina” (p.89).
O espaço não existe por si mesmo, ele só vale como qua-
dro da vida de William e Kizzy. O sonho, a sua relação efetiva
com a realidade de William, aparece na seleção exibida pelas
chamadas intituladas: “Jogar brasa”, “Então, mano, se liga no
movimento” e ‘Todos os Pretos são parecidos”. Desse modo, a
escrita e a vida ficam submetidas a uma lógica do enunciado e
da enunciação e, igualmente, pela maneira de contar a história

OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA d  277


e de instituir personagens, de criar um ser linguagem (ou um
ser da linguagem) comprometido com a negrura. É o que su-
gere o fragmento nomeado de “Todos os Pretos são parecidos”:
[...] dissera-lhe uma vez um patrão branco, segundos
antes de William arrebentar-lhe a boca. E pensou que
eles achavam aquilo mesmo. Pretos seriam apenas
rostos idênticos sem personalidade, sem problemas,
sem nada por dentro. Mas ali ele via nitidamente que
não era isto. Os patrícios não eram pessoas parecidas.
Eram a mesma pessoa dividida. A mesma pessoa que
por alguma cisão, alguma ruptura ocorrida em sua vida,
estava assim eccionada, perdera a unidade, procurava
completar-se. (BARBOSA, 1987, p.90).

O texto de Márcio Barbosa reflete, muito especialmen-


te, sobre o jogo de linguagem e o racismo à brasileira. O jogo
de linguagem é o valor cinematográfico sobre o qual o conto
se constrói, dilatando a fronteira entre oralidade e escrita. As
manchetes, as chamadas, em destaque no início de cada epi-
sódio, nesse conto desmontável, são vistas como metonímia
do processo em que se inclui a releitura da figura do negro.
Numa trilha recheada da geografia e da vivência dos
próprios personagens, a narrativa avança sua ação recolhen-
do, no traçado de William e Kizzy, o espaço da cidade de São
Paulo. No enquadramento, no qual “William subiu e desceu
ladeiras”, saltam aos olhos os nomes, os planos espaciais que
revelam com intimidade os cruzamentos, as vielas, as casas e
o bairro. No escuro, os obstáculos são vencidos por uma câ-
mera que revela o trajeto:
Mais à frente havia uma viela estreita e sem ilumina-
ção... De um lado e de outro as paredes das residências
erguiam-se assustadoras. Mal conseguia enxergar o
chão, mas sabia que existia uma ladeira (BARBOSA,
1987, p.91).

278  d FAUSTO ANTONIO


Nos fragmentos “Ouviu passos atrás de si” e “Mulher de
verdade” e “Ela sorriu”, o autor recolhe, nesse itinerário, os
sentidos com os quais as falas ganham o significado banal da
quinta dimensão do espaço, o cotidiano no qual os homens e
suas relações são o centro. O espaço banal pode ser percebido,
com toda a sua força, pelo vigor descritivo que diz muito da
localidade e mais ainda da localização dos personagens. Os
lugares estão, portanto, entranhados nos homens e na histó-
ria. Há uma rigorosa inseparabilidade de pessoa e ambiente.
A inseparabilidade no caso em questão não é um valor deter-
minista, mas um dado visceral da condição humana e do uni-
verso de vivência dos personagens negros. Podemos dizer, de
outro modo, que a transfiguração da realidade, no lugar, não
aliena o sujeito da negrura no tocante à leitura e/ou à apreen-
são da realidade étnico-racial e social.
O desfecho narrativo do conto, a propósito da visibili-
dade do racismo à brasileira e de uma estética inclusiva do
negro, tem início com a composição denominada “O retorno”,
(BARBOSA, 1987, p.94). As chamadas seguintes, “Mas ele não
tinha fome” (p.94), “sentiu frio, muito frio” (p.95), “Foi até o
quarto” (p.96) e “Será que haviam conseguido enquadrá-lo?”
(p.97), são emblemáticas dessa passagem que o trecho abaixo
parece resumir:
“Então isto é a detenção?”, perguntava-se William.
Muitos de seus amigos haviam estado ali. Alguns haviam
saído, outros jamais. Morreram lá dentro. Dentre eles
havia os que nunca tinham cometido qualquer espécie
de crime. Os tiras simplesmente não haviam gostado da
cara deles porque eram pretos. Por isso quem conseguia
sair era visto com respeito pelo resto da malandragem.
(BARBOSA, 1987, p.98).

O caráter verossímil da trajetória de William reside não


numa suposta capacidade de refletir fielmente a realidade,

OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA d  279


mas no fato de que sua saga, vivida no plano real e numa es-
pécie de sonho e delírio, é conhecida e possível de ser com-
preendida. O plano mítico, centrado na tradição dos orixás, é
buscado para transfigurar a realidade:
À noite, sentado na cama, ele percebeu uma figura di-
ferente tomar forma na parede. Não tinha barba, usava
colares de miçangas e era bem escura.’Quem é você’,
perguntou, homem ou orixá? A figura nada respondeu,
mas de manhã onde ela estivera havia na parede uma
abertura no formato de uma vagina grande e peluda
com longos fios de cabelo incrustando-se nas bordas.
Um colar de miçangas jazia sobre a cama. A abertura
dava para a parte externa da detenção. Começou a tecer
uma corda com as miçangas e o fio, e, ao anoitecer, antes
de ir embora, quis dar uma olhada em Rui Barbosa, o
carcereiro. (BARBOSA, 1987, p.99).

O nexo, ou de outra forma, a verossimilhança, tal como


comprova a descrição do carcereiro (que é no conto, simboli-
camente, Rui Barbosa), é o resultado de mecanismos que ope-
ram no interior do discurso e dos detalhes cinematográficos.
A conformidade entre os significados e as representações fala
sem cessar:
O carcereiro era aquilo mesmo: apenas cabeça, tronco
e o cotoco dos braços, sem pernas, como nos livros da
História. Estava com a parte da cintura seccionada
apoiada numa cadeira. Não o perseguiria. Os guardas
não o veriam. Assim, saiu dali e voltou às ruas buscando
retornar p’ra casa. (BARBOSA,1987, p.99).

Há, dessa forma, nos fragmentos “[...] o bicho estava


solto e numa encruzilhada”, um aprofundamento da relação
com a cosmovisão negra, que é um acúmulo que releva o negro
e o contexto em toda a sua extensão e profundidade, como su-
gerem os dois fragmentos que, a partir da ­cosmogonia ­negra,

280  d FAUSTO ANTONIO


trazem exu (o eixo nuclear e estruturante da matriz afro) para
solucionar os impasses.
A ideia de polifonia e encruzilhada como chaves inter-
pretativas e em conformidade com artigo “As Noções Textuais
da Negrura na Série Cadernos Negros” (RIBEIRO; BARBOSA,
2008), pode ser observada além do círculo desenvolvido no
desfecho da trajetória do herói, do conto de Márcio Barbosa.
Os recursos utilizados pelo autor, no conto cinematográfico,
nos possibilitam entrever relações transculturais, remarcando
traços de aproximação entre o conceito de polifonia e o princí-
pio estruturante da cosmogonia negra referenciada na tradi-
ção dos orixás. A polifonia textual é recoberta, no texto, pelas
citações e diálogos resultantes das convergências e divergên-
cias entre o literário, o cinematográfico e o jornalístico. Não
é demais dizer, de acordo com o artigo publicado nos Cader-
nos Negros Três Décadas (2008), que a polifonia, conforme a
concebe Bakthin (1997, p.338), “[...] é sempre compreensão e
implica duas consciências, dois sujeitos. A compreensão é, em
certa medida, dialógica.” Tal relação se amplia na medida em
que consideramos a presença de Exu (e também da encruzi-
lhada) como um conceito, como uma chave hermenêutica e,
de igual modo, a presença da vagina à semelhança da placenta
ou umbigo como canal ou meio pelo qual os personagens terão
acesso à liberdade. A liberdade significa também, através da
placenta-umbigo e/ou vagina, acesso ilimitado ao mundo da
transfiguração ancestral e de relação transitiva com a cosmo-
gênese e antropogênese negro-brasileira. Temos, em “Quando
o malandro vacila”, uma encruzilhada dos sentidos literários
e cinematográficos (dos discursos também) e uma interseção
cultural e ponto de mediação entre múltiplas linguagens, a li-
terária, a cinematográfica e da tradição negro-africana, não
investida tão-somente como orixá, Exu ou encruzilhada, mas
como conceito, filosofia e cosmogonia.

OS RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS NO CONTO “QUANDO O MALANDRO VACILA”, DE MÁRCIO BARBOSA d  281


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282  d FAUSTO ANTONIO


OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES
LUSÓFONOS DOS CONTINENTES AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB:
COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL

Bruno Okoudowa

Introdução

O presente trabalho nasce no contexto de ensino da lín-


gua portuguesa na Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Mais especificamen-
te no curso de Agronomia (Turma de 2012.2), na disciplina
de Leitura e Produção de Textos I. A turma era composta de
alunos oriundos de vários países da Comunidade de Países
de Língua Portuguesa (CPLP). São eles: Angola, Brasil, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
Não havia alunos de Macau, nem de Moçambique nessa tur-
ma. Como temas de seminários, sugeri a eles que trouxessem
especificidades do uso da língua portuguesa em cada país aci-
ma citado.
Foi, portanto, a partir das diferenças observadas no uso
do português por cidadãos de cada um desses países que tive
a ideia de elaborar este trabalho, que tem três objetivos: des-
tacar aspectos do português brasileiro (PB) que representam
um desafio para alunos de países lusófonos dos continentes
africano e asiático na UNILAB; ajudar a compreender algu-
mas variações do português para além do Brasil e ajudar os
professores e alunos na sua interação em salas de aula inter-
nacionais como as da UNILAB.
Os exemplos citados neste trabalho são baseados na vi-
vência do autor com os cidadãos dos países lusófonos citados,
nos trabalhos apresentados em sala de aula e nas diferentes

d  283
obras consultadas. A metodologia usada foi a de comparar os
diferentes falares em alguns países da CPLP e, a partir daí, iso-
lar algumas palavras e expressões típicas de cada país. Quanto
à análise do português falado no Timor Leste, ela baseou-se,
em grande parte, no trabalho de Albuquerque (2011).

O Português falado no Brasil (PB) versus o Português falado em


Portugal (PP)

Algumas palavras

Portugal Brasil
Comboio Trem
Hospedeira de bordo Aeromoça, comissária de bordo
Mandioca Mandioca, aipim, macaxeira
Mais novo (a) Caçula
Puto Menino, moleque, rapaz, guri etc.
Roupa interior Camisola
Sumo Suco

Na tabela acima, no que diz respeito aos exemplos bra-


sileiros e portugueses, observa-se que há uma grande dife-
rença entre as palavras para designar a mesma pessoa ou o
mesmo objeto. Parece até que se tratam de línguas diferentes
embora se trate da língua portuguesa em ambos os casos. Pois
no PB, observamos palavras de origem indígena, isto é, da lín-
gua Tupi. São elas: aipim e macaxeira para designar mandio-
ca que é também uma palavra de origem Tupi.
Encontramos também palavras africanas oriundas de
alguma língua banta. São elas: caçula e moleque que vêm do
Quimbundu, uma das línguas bantas falada em Angola até
hoje. Moleque é um nome da primeira classe dos nominais
bantos, por ter o prefixo nominal mo- realizado [mu]. É uma
classe reservada para nomes de pessoas. Quanto a caçula, é

284  d BRUNO OKOUDOWA


um nome da décima terceira classe dos nominais bantos, por
ter o prefixo ca-, realizado [ka]. É uma classe de nomes espe-
cíficos. No caso de caçula, trata-se do nome do último filho.
Esse nome só podia ser oriundo de uma língua africana, já que
não se encontra nas línguas indígenas do Brasil, nem em Por-
tugal. Os portugueses dizem mais novo (a) ao invés de caçula.
No caso das palavras comboio e trem, a diferença é que
no Brasil, comboio indica apenas “uma porção de veículos que
se dirigem ao mesmo destino.” (FERREIRA, 2004, p.247).
Quanto a puto, por exemplo, é uma palavra que repre-
senta um palavrão. Sumo, embora seja uma palavra existente
no PB, não é usada para designar líquido nutritivo feito, de pre-
ferência, a partir de alguma fruta. Usa-se suco. Portanto, pode-
mos afirmar que há casos de mudanças semânticas. Isto é, às
vezes as palavras existem nos dois países, mas não têm o mes-
mo significado. Podemos encontrar muitos outros exemplos.
Por sua vez, as palavras Hospedeira de Bordo e Roupa
Interior recebem outros nomes no Brasil: em vez de hospe-
deira de bordo, diz-se aeromoça, ou melhor, comissária de
bordo. Ao invés de roupa interior, diz-se camisola. Tudo isso
mostra que se trata da expressão de outra realidade ou de ou-
tro cotidiano (o cotidiano brasileiro).

Algumas expressões

A diferença entre o Brasil e Portugal se nota também no


uso de algumas expressões típicas de cada país:

Portugal Brasil
Dar opinião Dar pitaco
Fazer desordem Fazer bagunça(1)
Fazer escândalo Armar barraco
Um bocadinho Um pouquinho
Uma pessoa muito feia Um cão chupando manga (azeda)

OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES


AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL d  285
Nesse quadro, as expressões portuguesas são do portu-
guês padrão. Portanto seriam facilmente interpretadas pela
maioria dos falantes do português padrão, não importa o país
dos falantes. Entretanto, expressões usadas no Brasil não se-
riam automaticamente entendidas pela maioria dos falantes.
Esses precisariam de uma explicação suplementar.

Expressões tipicamente brasileiras

Expressões Significado
Aguentar desavenças ou escutar
Engolir sapos
barbaridades e ficar quieto
Falar pelos cotovelos Falar muito
Utilizada para generalizar um com-
Farinha do mesmo saco
portamento reprovável
Utilizada para mandar alguém
Pentear macaco cuidar da sua própria vida, não a dos
outros
Quebrar um galho Fazer um favor
Rebolar no mato(2) Jogar fora (no mato), arremessar
Ter um plano B, uma alternativa,
Ter uma carta na manga
outra estratégia

Vá plantar batatas! Saia daqui!/ Me deixe em paz!

Nota: 1 Palavra de origem banta, da segunda classe dos nominais, por ter o prefixo
ba- e plural da primeira classe que tem como prefixo mo- realizado [mu]. Portanto
o singular de bagunça, em proto-banto, seria mugunça.
2 Expressão muito usada no estado do Ceará (Nordeste brasileiro). Trata-se, por-

tanto, de um regionalismo.

As expressões do quadro acima tratam, em sua maioria,


de metáforas usadas no Brasil. Essas não devem ser interpre-
tadas literalmente. Elas expressam aspectos da cultura brasi-
leira. Portanto língua também é um veículo da cultura.

286  d BRUNO OKOUDOWA


Variação Linguística para Além do Brasil (África e Ásia)

ƒƒ O português em Angola
O português falado em Angola reflete também a rea-
lidade local. Isto é, a sua convivência com as línguas locais
(Umbundu, Quimbundu, Quikongo etc.) que pertencem, na
sua maioria, ao grupo banto (GUNTHRIE, 1967).

Alguns exemplos
Exemplo 1: a) muá1 ngolé2 = filho de Angola (angolano)
b) brazuka = brasileiro
Exemplo 2: “E aí, muangolé. Está tudufich?” = “E aí ir-
mão, está tudo bem?”
“Yaa, tudufich!” = “Sim, tudo bem.”

ƒƒ O português em Guiné-Bissau
Em Guiné-Bissau, o contato do português com as lín-
guas locais: fula, balanta, mandinga, mancanha, bijagó etc.,
línguas que se dividem entre as famílias mande e atlântica.
(HEINE; NURSE, 2000). Esse contato produziu um crioulo
de base portuguesa.

• Alguns exemplos em crioulo


Exemplo1: I kastá = ele não está
Exemplo2: Sukurutip = muito escuro
Exemplo3: Limpupus = muito limpo

1 Mua é a abreviatura de Muana ‘filho ou criança’. É uma palavra que se encontra


em muitas línguas bantas e pertence à primeira classe dos nominais por ter o
prefixo Mo-, realizado Mu-.
2 Na transcrição de palavras de outras línguas diferentes do português, procuramos

a maneira mais fiel de reproduzir o som na escrita. Aqui, neste caso ‘ngolé’ tem
duas sílabas ‘ngo’ e ‘lé’. O ‘n’ da primeira sílaba não se separa do ‘g’. Portanto se
pronunciam juntos. Trata-se de uma consoante pré-nasalizada: oclusiva velar pré-
-nasalizada. São sons comuns nas línguas africanas em geral e bantas em particular.
É o caso da língua lembaama (OKOUDOWA, 2005).

OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES


AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL d  287
Nos exemplos acima, podemos facilmente reconhecer o
português no crioulo falado em Guiné-Bissau:

Português Crioulo

Está Stá

Escuro Sukuru

Limpo Limpu

Observando os exemplos em crioulo acima, podemos


afirmar que no contato do português com as línguas africanas
faladas em Guiné-Bissau, houve uma integração do léxico por-
tuguês na formação do léxico do crioulo. Esse léxico adquiriu
outra estrutura silábica. É o caso do termo escuro (es.cu.ro),
de estrutura VC.CV.CV3), virou sukuru (su.ku.ru) e passou
a ter a estrutura CV.CV.CV., estrutura mais encontrada nas
línguas do mundo. Quanto a primeira palavra, está para stá,
houve queda da vogal inicial por ela ser menos vozeada do que
o restante dos segmentos. No caso de limpo para limpu houve
apenas uma troca do o pelo u no final da palavra. É um fenô-
meno fonológico que é frequente tanto no português quanto
em algumas línguas africanas.

yy O Português em São Tomé e Príncipe


Em São Tomé e Príncipe, nota-se uma convivência da
língua portuguesa com línguas locais como o forro ou são to-
mense, o angolar, o tónga, o moncó e o crioulo cabo-verdiano.
Noventa e cinco por cento da população falam o português.
Trata-se de um caso raro dentro dos países de língua oficial
portuguesa do continente africano.

3 C = Consoante e V = Vogal

288  d BRUNO OKOUDOWA


• Alguns exemplos
Exemplo 1: paitar = comer.
Exemplo 2: apagar = dormir.
Exemplo 3: faltar as aulas = bicar.
Exemplo 4: gente vê só = até logo.

Nota-se que excluindo-se paitar, no exemplo 1, estamos


diante de palavras da língua portuguesa. Portanto, trata-se de
uma variante do português.

yy O português em Timor Leste (Ásia)


No Timor Leste há uma convivência do português com
outras línguas que podemos dividir da seguinte maneira:

a) línguas locais de origem papuásica e austronésica (Te-


tun, Kemak, Galolen, Fataluku, Makasae, Bunak etc)
b) línguas oficiais que são: o português e o tetun (língua
veicular também). O português é a língua da escola
(ALBUQUERQUE, 2011) e da administração, sendo
a única língua normalmente escrita (BRITO, 2007).

O que mais chamou nossa atenção no português falado


por alguns timorenses foi a realização de certos segmentos.
Assim, observamos as seguintes mudanças que classificamos
por casos:

Mudanças Fonéticas
yy Variação na realização dos segmentos palatais:
ƒƒ Caso 1: O segmento fricativo alveolar S pode ser
realizado S ou Si.
Exemplos:
a) Chegar pode ser realizado [se.‘ga.a] ou [‘sie. ga.a].
b) Bicho é realizado [‘bi.su].

OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES


AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL d  289
ƒƒ Caso 2: O segmento palatal e lateral lh pode ser
realizado de três formas: lh, l, li.
Exemplos:
a) Velho é realizado [‘ve.liu] ou [‘be.lio]. Reparem a
troca do V pelo B na primeira sílaba. Isso acontece
porque os dois segmentos são próximos. Portanto, na
ausência do segmento português, o falante timorense
o substitui pelo mais próximo que exista na sua língua
materna. Isso acontece com todo falante iniciante de
língua estrangeira.
b) Olho pode ser realizado [‘o.liu] ou [‘oi.lu].

ƒƒ Caso 3: O segmento nasal e palatal nh tem três


realizações pelos falantes timorenses: nh, n, ni.
Exemplos:
a) Vinho pode ser realizado [‘bi.niu] ou [‘vi.niu]. Nota-
-se,como no caso 2 acima, a troca do V pelo B no início
da palavra.
b) Bonitinho pode ser realizado [bo.ni. ‘ti.iu] ou [bo.ni.
‘ti.niu].

ƒƒ Caso 4: O segmento fricativo alveolar Z pode ser


realizado de quatro formas diferentes: z, dz, d, di
Exemplos:
a) Ajuda pode ser realizado [a.‘ zu.da] ou [a.‘ dzu.da].
b) Hoje pode ser realizado [‘o. ze] ou [‘o. dzi].

yy Homonímia
A homonímia entre segmentos de diferentes significados
é o outro fenômeno fonológico que notamos nos falantes timo-
renses. Por exemplo: Ouvir, ouvi, houve são todos realizados
[‘o.vi]. Pois não há distinção fonética na realização dessas pa-
lavras. Tanto o [r] quanto o [e] são simplesmente apagados na

290  d BRUNO OKOUDOWA


final da palavra. São desnecessários. Trata-se de uma aplicação
da lei do menor esforço na realização de certos segmentos.

yy Mudanças semânticas
Trata-se da mudança de sentido das palavras. São pala-
vras que adquirem outros significados nos ouvidos dos estu-
dantes timorenses:

Exemplo 1: amo “padre católico” = amo-bispo “bispo”, amo-


-papa “papa” etc.
Exemplo 2: serviço = profissão, trabalho, trabalhar.
Exemplo 3: valor = resultado dos exames escolares.
Exemplo 4: colega = tratamento entre amigos íntimos de
mesma idade ou de idade aproximada. Refere-se a um tipo
específico de amizade. Vamos imaginar um professor que
ignora esse significado pede para alunos trabalharem com
colegas. Qual seria a reação dos estudantes timorenses?
Obviamente trabalhariam com as pessoas mais íntimas.
Parece-me que é o que tem acontecido em algumas turmas
da nossa Universidade da Integração Internacional da Lu-
sofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Tal desentendimento da
palavra colega não pode ajudar no processo de integração.
Exemplo 5: mestre, para os timorenses, significa professor
de escola o que é diferente de docente que representa apenas
o professor universitário.
Exemplo 6: topaz = mestiço, timorense assimilado à cultura
portuguesa/descendente.
Exemplo 7: estilo = cerimônia tradicional de sacrifício de
animais.
Exemplo 8: irmão [‘ma.un] = irmão ou amigo mais velho;
irmã [‘ma.na] forma de tratamento para as mulheres mais
velhas para os timorenses.

OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES


AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL d  291
Exemplo 9: condutor = motorista de carro.
Exemplo 10: motorista = condutor de moto.

yy Léxico quinhentista
Outro aspecto do português falado no Timor Leste é a
presença de palavras usadas nos anos 1500. Exemplos:

a) Usa-se formosura para dizer beleza.


b) Usa-se gentio para designar timorense não praticante
do catolicismo.

yy Integração Tetun e Português


A integração do português com a língua local e oficial
tetumé é um tipo de crioulo de base portuguesa. Vejam este
exemplo de uma conversa entre mãe e filha segundo Albu-
querque (2011, p.232). A conversa acontece, na verdade, entre
a mãe, a filha e o marido:

— Cuzabênmamãi. = Cozinhe bem mamãe.


— Ôi, nônôi, seu marido já vênláquêlê! = Oi filha,
seu marido já está vindo!
— Hou, nónó, bên, senta bê! Cómèbai? = Oi filho,
bem, senta! Como vai?
— Ó nônôi, tira depressa arrôze, eu anta cómi (ou
eu quérècomê). = Oh filha, tire o arroz depressa,
eu quero comer. (1996 apud ALBUQUERQUE,
2011, p.232).

Considerações Finais

A lusofonia se manifesta de diversas maneiras depen-


dendo do espaço, do tempo, das pessoas. É preciso ficar atento
a esses aspectos. A compreensão dessa diversidade e das mu-

292  d BRUNO OKOUDOWA


danças linguísticas que mostramos neste trabalho por todos
os interlocutores é necessária para uma comunicação bem-
-sucedida. No que diz respeito a nós, docentes da UNILAB, é
preciso entender que o discente, longe de ser uma tábua rasa,
traz uma linguagem que precisamos entender para passar-
mos com sucesso a nossa mensagem. O discente ou falante
estrangeiro quando não encontra o som do português na sua
língua materna, a tendência natural é substituí-lo por um som
semelhante que exista na sua língua. Isso é normal, acontece
com todos os falantes de língua estrangeira. A compreensão
de tudo isso pode nos ajudar nas nossas interações cotidianas
e no nosso processo de integração internacional.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, David Borges. O português de Timor-Leste:


contribuições para o estudo de uma variedade emergente. Revis-
ta PAPIA (Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares),
Universidade de Brasília, p.65-82, 2011. Disponível em: <http://
abecs.net/ojs/index.php/papia/article/view/102/335.>
BRITO, Regina Helena Pires de e BASTOS, Neusa Maria Oli-
veira Barbosa. “Hello, mister”, “Obrigadubarak” e “boa tar-
de”: desafios da expressão linguística em Timor-Leste. Re-
vista ACOALFA: Acolhendo a Alfabetização nos Países de
Língua portuguesa, São Paulo, ano 2, n. 3,2007. Disponível
em: <http://www.mocambras.org> e <http://www.acoalfa-
plp.org>. Acesso em: 13 mar. 2013.
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Mini-aurélio: o minidicio-
nário da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2008.
GUTHRIE, M. Comparative Bantu: an introduction to the
comparative linguistics and prehistory of the bantu langua-
ges. Farnborough: Gregg Press, 1967-71. 4v.

OS DESAFIOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA OS ALUNOS DE PAÍSES LUSÓFONOS DOS CONTINENTES


AFRICANO E ASIÁTICO NA UNILAB: COMPREENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DO BRASIL d  293
HEINE, B.; NURSE, D. African languages. Cambridge:
­Cambridge University Press, 2000.
OKOUDOWA, B. Descrição preliminar de aspectos da fono-
logia e da morfologia do lembaama. 2005. 102p. Dissertação
(Mestrado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SP.

294  d BRUNO OKOUDOWA


UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA

Ivan Maia de Mello

A Abordagem Genealógica dos Processos de Subjetivação

Este ensaio visa problematizar a produção de subjetivi-


dade na poesia afro-brasileira, buscando analisar a produção de
alguns poetas negros brasileiros quanto a questões micropolí-
ticas que permeiam o processo por meio do qual eles se consti-
tuem a si mesmos como sujeitos no desempenho do que Michel
Foucault (1992) chamou de função-autor, enquanto um dos
modos de subjetivação que se dá na experiência da linguagem.
A proposta é pesquisar a referida produção quanto aos
processos de subjetivação experimentados pelos poetas negros
e elaborar uma cartografia da subjetividade nos poemas que
abordam temas ligados à cultura afro-brasileira. Os vários pro-
cessos de subjetivação por meio dos quais os poetas que se con-
sideram negros e/ou se referem a temas da cultura afro-brasi-
leira assumem posições subjetivas singulares são considerados
em seus devires e fluxos heterogêneos à medida que expressam
os componentes do processo de subjetivação em jogo.
Será levada adiante a interpretação genealógica, ao
modo formulado por Friedrich Nietzsche (1987), visando a
compreensão dos modos de singularização subjetiva expe-
rimentados na expressão dos poetas escolhidos. Com isso,
pretende-se formular a estética da existência, que pode ser
pensada a partir dessa cartografia da subjetividade na poesia
afro-brasileira. Ou seja, pretende-se compreender como estes
poetas tornam-se poetas de suas próprias vidas e, especifica-
mente, de sua negritude, fazendo da vida uma obra de arte,
assim como propôs Nietzsche.

d  295
Em termos legais, a justificativa para essa pesquisa ba-
seia-se nas Leis nos 10.639/03 e 11.645/08 que tornaram obri-
gatório o estudo da cultura afro-brasileira em todas as escolas
do Brasil nos diversos níveis de ensino, o que dá relevância à
pesquisa voltada para aspectos dessa cultura, como a literatu-
ra afro-brasileira de poetas negros. Isto torna necessário que
estudos concernentes à poesia afro-brasileira sejam empre-
endidos possibilitando a compreensão dos mais diversos as-
pectos relativos à produção literária dos poetas negros, tanto
aspectos propriamente linguísticos quanto os históricos, so-
ciológicos, antropológicos e filosóficos.
Do mesmo modo, essa pesquisa é necessária para dar
visibilidade, com a devida apreciação crítica, a essa produ-
ção literária que, no entanto, tende a ser marginalizada nos
espaços editoriais e na imprensa literária brasileiros pelos
mesmos motivos que levaram à promulgação da referida lei:
o desinteresse e o preconceito em relação à contribuição dos
negros para a cultura brasileira.
Particularmente no campo acadêmico da pesquisa em
filosofia, mesmo entre aqueles poucos pesquisadores que se
voltaram para a relação entre filosofia e literatura como os
que participam das coletâneas Filosofia e Literatura (2004)
e Poetas que Pensaram o Mundo (2005), a produção poética
afro-brasileira não tem sido apreciada, o que torna necessário
que se leve adiante uma problematização filosófica capaz de
avaliar criticamente os aspectos estéticos relativos à lingua-
gem, sobretudo os que dizem respeito à poética, assim quanto
outros de natureza ético-política relativas aos valores e posi-
ções assumidas no discurso desses autores.
Teoricamente, a pesquisa proposta neste ensaio se jus-
tifica tomando como fundamentos as concepções teóricas de
alguns pensadores críticos da noção de sujeito que renovaram

296  d IVAN MAIA DE MELLO


a compreensão da subjetividade, a saber, Friedrich Nietzsche,
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari. A crítica niet-
zschiana da metafísica da subjetividade, elaborada ao longo
do conjunto de suas obras, que passa pela análise do caráter
metafísico da estrutura gramatical das línguas europeias em
geral, levou pensadores como Foucault, Deleuze e Guattari a
investigarem criticamente a micropolítica dos processos de
subjetivação por meio dos quais os sujeitos são constituídos.
Particularmente, Foucault foi conduzido por essa perspectiva
ao formular o que ele chamou de “estética da existência”, que
consiste em uma articulação de valores estéticos, éticos e po-
líticos que configuram um modo de existência.
No âmbito da cultura afro-brasileira, a poesia produz
um agenciamento coletivo de enunciação por meio do qual é
apresentada uma série de valores constitutivos de uma esté-
tica da existência afro-brasileira, que pretende-se aqui inter-
pretar por meio da consideração da produção de alguns poe-
tas que se posicionaram nesse agenciamento discursivo.
Para isso, consideremos antes algumas das perspecti-
vas que guiarão nossa abordagem dessa poesia, como aquela
enunciada pelo Zaratustra criado por Nietzsche (2003) como
personagem poeta e dançarino que afirma, no discurso cha-
mado Da redenção:
E isso é tudo a que aspira o meu poetar: juntar e compor
em unidade o que é fragmento e enigma e horrendo
acaso. E como suportaria eu ser homem, se o homem
não fosse também, poeta e decifrador de enigmas e
redentor do acaso! (p.172).

Portanto, a decifração do enigma da negritude e a re-


denção do sofrimento advindo do enfrentamento do racismo
são os desafios presentes na poesia afro-brasileira que abor-
daremos nos poemas considerados.

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA d  297


Zaratustra afirma ainda a condição de autenticidade
autoconfiante para que o poeta alcance uma plenitude de
expressão: “Ousai, primeiro, acreditar em vós mesmos – e
nas vossas vísceras! Quem não acredita em si mesmo mente
sempre”. Eis porque Zaratustra, na parte chamada Do ler e
escrever, afirma como critério de valor para a apreciação de
tudo que se escreve a visceralidade espiritual da linguagem
de quem foi capaz de digerir suas experiências e incorporá-
-las em seu próprio sangue, ou em suas palavras: “De tudo
o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com
seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o
sangue é espírito.” (p.66).
Alguns poetas são capazes de uma franqueza digna da-
queles que Zaratustra chamou de “homens autênticos”, quan-
do disse na parte intitulada Da virtude amesquinhadora: “Os
homens autênticos são cada vez mais raros, especialmente os
atores autênticos.” (p.205).
Essa autenticidade não está de modo algum presa a qual-
quer realismo ingênuo que ignorasse o caráter ficcional da ver-
dade, por mais objetiva e “neutra” que ela pretenda parecer.
Esses poetas compreendem historicamente e fisiologicamente,
no sentido nietzschiano da avaliação da potência dos impulsos,
ou seja, genealogicamente, o que a humanidade tem se tornado.
Isto aparece no poema História da Humanidade, no qual Fran-
ça, poeta de Olinda, que ficou conhecido como “o poeta erran-
te” pelos recitais que fazia reunindo vários poetas, diz: “Quanto
mais sei/ mais sinto/ vergonha.” (FRANÇA, 2003, p.3).
Esse poeta, que marcou a cidade de Olinda com sua
trajetória de recitais itinerantes e suas publicações artesa-
nais, deixou esta vida cedo, mas antes desafiou a morte num
brinde que se eternizou pela ironia trágica: “À morte – por
ser imortal,/ ergo um brinde, dizendo:/ – À nossa vida!/ E

298  d IVAN MAIA DE MELLO


ela ­responde ofendida:/ Não me escaparás!” (FRANÇA, 2003,
p.4). Sua ousadia deixa claro qual a disposição que anima essa
poesia, seu pathos trágico e seu ethos singular intempestivo
e extramoral, como bem sugeriu o filósofo de bigode que se
considerava um bufão, um sátiro, além de poeta e músico.
Michel Foucault empreendeu em sua última fase de
produção filosófica (particularmente no curso de 1982 no
Collége de France, cujas aulas foram transcritas e publicadas
com o título Hermenêutica do Sujeito) um estudo das formas
históricas como foram usadas, em diversos contextos, dife-
rentes “técnicas de si”, visando uma elaboração, um trabalho
de si sobre si mesmo, no sentido que foi chamado pelos gre-
gos, desde Sócrates, de “cuidado de si”.
A abordagem foucaultiana se desenvolveu no sentido da
genealogia dos processos de subjetivação que ele havia empre-
endido antes, como no livro Vigiar e Punir (1983) (depois da
pesquisa arqueológica que a antecedeu), mas com certa ­inflexão
em sua produção teórica, no sentido de estudar os modos como
o pensamento filosófico desde a antiguidade interpretou seu
próprio processo de autoconstituição de si como sujeito, daí
vinda a denominação hermenêutica do projeto. A abordagem
genealógica havia sido caracterizada no texto ­chamado Niet-
zsche, a Genealogia e a História, no qual encontramos uma
definição da proveniência como categoria central da pesquisa
histórica de viés genealógico, como nas seguintes passagens:
[...] a proveniência diz respeito ao corpo. Ela se inscreve
no sistema nervoso, no humor, no aparelho digestivo.
Má alimentação, má respiração, corpo débil e vergado
daqueles cujos ancestrais cometeram erros; que os pais
tomem os efeitos por causas, acreditem na realidade do
além, ou coloquem o valor eterno, é o corpo das crianças
que sofrerá com isto. […] O corpo: superfície de inscrição
dos acontecimentos. (FOUCAULT, 1989, p.22).

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA d  299


Pensamos em todo caso que o corpo tem apenas as leis
de sua fisiologia, e que ele escapa à história. Novo erro:
ele é formado por uma série de regimes que o constroem,
ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa;
ele é intoxicado por venenos – alimentos ou valores,
hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele
cria resistências. (FOUCAULT, 1989).

Portanto, a pesquisa genealógica tem no corpo uma


realidade histórica fundamental e a noção de cuidado de si,
encontrada como um termo em uso durante cerca de dez sé-
culos, constituiu o conceito central do pensamento filosófico
que se ocupou de uma “arte de viver”, compreendida em dife-
rentes sentidos ao longo das três principais épocas em que o
cuidado de si foi estudado, como afirma Foucault:
Parece-me que a epimeleia heautou (o cuidado de si e
a regra que lhe era associada) não cessou de constituir
um princípio fundamental para caracterizar a atitude
filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, hele-
nística e romana. (FOUCAULT, 2004, p.12).

Nessa pesquisa, Foucault considerou a estética da exis-


tência como um processo de subjetivação formulado pelos
gregos e romanos da antiguidade, por meio da noção do cui-
dado de si, no sentido de fazer da própria vida uma obra de
arte, como explica Roberto Machado:
Uma das idéias mais interessantes dessa genealogia dos
modos de subjetivação é a hipótese de que, entre o século
IV a.C. e o século II de nossa era, os gregos e depois os
romanos formularam uma estética da existência, no
sentido de uma arte de viver entendida como cuidado
de si, de uma elaboração da própria vida como uma obra
de arte, da injunção de um governo da própria vida que
tinha por objetivo lhe dar a forma mais bela possível.
(MACHADO, 2006, p.181).

300  d IVAN MAIA DE MELLO


A estética da existência aparece, então, como a formula-
ção final do pensamento de Foucault, concebida a partir da no-
ção de cuidado de si como uma arte de viver. Isso requer a cria-
ção de uma ética singular que promova a estética da existência
e resista às relações de poder que tendem a exercer um contro-
le das sensações e uma repressão de emoções, particularmente
as que constituem a sexualidade. E o que Foucault entende por
estética da existência, ele expressa da seguinte forma:
[...] deve-se entender, com isso, práticas refletidas e
voluntárias através das quais os homens não somente
se fixam regras de condutas, como também procuram
se transformar, modificar-se em seu ser singular e fa-
zer de sua vida uma obra que seja portadora de certos
valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.
(FOUCAULT, 1998, p.51).

Para Foucault, a tarefa crítica da filosofia seria sua fun-


ção principal de questionar as relações de dominação em to-
dos os campos da existência. Diz ele numa entrevista:
Em sua vertente crítica – entendo crítica no sentido am-
plo – a filosofia é justamente o que questiona todos os fe-
nômenos de dominação em qualquer nível e em qualquer
forma com que eles se apresentem – política, econômica,
sexual, institucional. (FOUCAULT, 2004, p.284).

A palavra ética surgiu do termo grego ethos, o qual é


interpretado por Foucault como uma maneira de se conduzir
em relação a si mesmo e aos outros, algo que ganhava certa
visibilidade através dos hábitos e das posições ocupadas nas
relações sociais, ou seja:
o ethos era a maneira de ser e a maneira de se conduzir.
Era um modo de ser do sujeito e uma certa maneira de
fazer, visível para os outros. O ethos de alguém se traduz
pelos seus hábitos, pelo seu porte, pelo seu jeito de cami-
nhar [...]. O ethos também implica uma relação com os

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA d  301


outros, já que o cuidado de si permite ocupar na cidade,
na comunidade, ou nas relações inter-individuais o lugar
conveniente. ((FOUCAULT, 2004, p.270).

A liberdade praticada através do cuidado de si, pensada


como uma ética singular, alcança então um significado polí-
tico ao resistir à dominação nas relações de poder, visando o
exercício de um domínio de si que se expressa no termo grego
arché, que Foucault interpreta assim:
A liberdade é, portanto, em si mesma política. Além
disso, ela também tem um modelo político, uma vez que
ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos
seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo
uma certa relação de domínio, de controle, chamada de
arché – poder, comando. (FOUCAULT, 2004, p.270).

O que Foucault procurou mostrar foi, principalmente,


como o próprio sujeito se constituía, sua autoformação nessa
ou naquela forma determinada, através de certas práticas de
liberdade nas relações de poder nas quais conquista o domí-
nio de si, que caracteriza a autonomia de sua autocriação.
A compreensão de seu próprio trabalho de pesquisa so-
bre a história da subjetividade apresentada no curso do Colle-
ge de France, cujas aulas foram transcritas e publicadas com
o título de Hermenêutica do sujeito evidencia a íntima ligação
entre arte de viver e cuidado de si na história dos períodos
grego antigo e helenístico greco-romano, como afirma:
[...] se evoquei tudo isto é porque pretendia apresentar-
-lhes um fenômeno, a meu ver importante, na história
desta vasta cultura de si que se desenvolveu na época
helenística e romana, e que tentei durante este ano des-
crever. Em linhas gerais, diria o seguinte: desde a época
clássica, parece-me, o problema estava em definir uma
certa tekhne tou biou (uma arte de viver, uma estética
da existência). E, como lembramos, foi no interior desta

302  d IVAN MAIA DE MELLO


questão geral desta tekhne tou biou que se formou o
princípio “ocupar-se consigo mesmo”. (FOUCAULT,
2004, p.542).

Foucault situa, portanto, toda a cultura de si que se de-


senvolveu na antiguidade no âmbito das artes de viver (tekne
tou biou), que assim foram ganhando um enfoque cada vez
mais ampliado, tornando-se uma questão relativa à vida como
um todo, em todos os seus aspectos e em toda a sua duração.
Isso foi ocorrendo de tal modo que toda uma busca filosófica
pela verdade foi sendo direcionada para as práticas por meio
das quais se pode transformar a si mesmo possibilitando o
acesso à verdade, o que Foucault chamou de espiritualidade,
e que configurou o cuidado de si praticado pelos epicuristas e
estóicos. Isso foi dito por ele na seguinte passagem do curso
citado há pouco:
[...] percebemos que entre a arte da existência (a tekhne
tou biou) e o cuidado de si – ou então, para falar mais
sucintamente, entre a arte da existência e a arte de si
mesmo – há uma identificação cada vez mais acentuada.
A pergunta: ‘como fazer para viver como se deve?’ – era
a pergunta da tekhne tou biou: qual é o saber que me
possibilitará viver como devo viver, [...] Isto, eviden-
temente, acarretará algumas conseqüências. Desde
logo, por certo, a absorção cada vez mais acentuada
no decorrer da época helenística e romana, da filosofia
como pensamento da verdade, pela espiritualidade
como transformação do modo de ser do sujeito por ele
mesmo. (FOUCAULT, 2004, p.219)

Chegamos, assim, à noção de uma espiritualidade como


“transformação do modo de ser do sujeito por ele mesmo” que
pode nos conduzir à apreciação de como isso se dá na poesia
afro-brasileira, particularmente nos poetas aqui considerados.

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA d  303


Os Processos de Subjetivação na Poesia Afro-Brasileira

No livro Cantares ao meu povo (1981), Solano Trin-


dade, um dos primeiros poetas a afirmar sua negritude poe-
ticamente, diz no poema Sou negro: “Sou negro/ meus avós
foram queimados/ pelo sol da África/ minh’alma recebeu
o batismo dos tambores, atabaques, gonguês e agogôs [...]”
(TRINDADE, 1981, p.32). E continua o poema descrevendo
seus ancestrais até falar no que resultou: “Na minh’alma fi-
cou/ o samba/ o batuque/ o bamboleio e o desejo de liberta-
ção [...]”. No poema Canto de esperança, Solano expressa que
se tornou cantiga e sua vida enfeitada, por estar voltada para a
grandeza de seu destinar-se, nunca terá “tempo para morrer”:
Há sempre um poema me esperando/ nas amadas feitas
de ternura/ e por isso o meu tempo/ não é contado à
velhice// Estou conservado no ritmo do meu povo/ Me
tornei cantiga determinadamente/ e nunca terei tempo
para morrer// Meu desejo de paz se tornou rosa/ e a
minha vida é enfeitada/ com bandeirolas coloridas/
porque eu tenho uma festa interior/ voltada para o
grande Amanhã. (TRINDADE, 1981, p.42).

No poema Estética (1981), ele defende a liberdade de


suas emoções estéticas ainda que a vida passe por disciplina-
dos modos de existência, o que aponta para uma vida regrada
e esteticamente livre:
Não disciplinarei/ as minhas emoções estéticas/ deixá-
-las-ei à vontade/ como o meu desejo de viver...//É gran-
de o espaço/ embora se criem limites...//Basta somente/
que eu sofra a disciplina da vida/ mas a estética/ deve
ser sempre liberta. (TRINDADE, 1981, p.60).

Essa liberdade em meio a uma vida regrada chega a ser


motivo de paródia na poesia de Solano, o que aparece no poe-
ma Gravata colorida (1981):

304  d IVAN MAIA DE MELLO


Quando eu tiver bastante pão/ para meus filhos/
para minha amada/ pros meus amigos/ e pros meus
vizinhos/ quando eu tiver/ livros para ler/ então eu
comprarei/ uma gravata colorida/ larga/ bonita/ e darei
um laço perfeito/ e ficarei mostrando/ a minha gravata
colorida/ a todos os que gostam/ de gente engravatada.
(TRINDADE, 1981, p.61).

No livro O vento (2003), Lande Onawale descreve sua


“negrice” no poema que leva este neologismo como título, atra-
vés da unidade e da multiplicidade de sua cor, sua dor e seu
cantar, que não se deixam reduzir à cor da pele, embora a ela
estejam intrinsecamente ligados em seu processo de subjeti-
vação pautado pela beleza e por sua história afrodescendente.
Beleza que caminha em muitas direções/ uma cor/ e
muitas outras/ brotando dos corações//consciência
pergaminha desfiada nas canções/ uma dor/ e tantas
alegrias/ ressoando qual perdões// histórias carapinhas
sobrevindas nos porões/ um cantar/ de muitas vozes/
emergindo em orações...//quem só vê no negro pele/
vê o espelho do branco/ nada há num corpo inerte/ ou
numa boca muda que revele/ minha tragédia e fanta-
sia// há em mim veias que anseiam/ os incontáveis
caminhos da existência/ há em mim uma memória/ que
vem lamber ou devastar/ as praias rasas do presente//
quem a isso tudo vele/ não me acha o onde/ não me
encontra o quando. (ONAWALE, 2003, p.60).

Em outro texto do mesmo livro, esse poeta baiano que


vê a reterritorialização da África no quilombo, desterritoriali-
za sua negritude de sua cor de pele e diz no poema Em negro:
Eu sou negro/ muito mais pelo que penso/ menos pela
cor da pele/ (ou traços que se revelem)/ nesse país de
tantos matizes/ pra me ver negro/ é sentir como é que
vivo/ é olhar tudo que falo/ é ouvir tudo que digo [...]
(TRINDADE, 1981, p.63)

UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA d  305


No livro Caxinguelê (1993), o escritor Lepê Correia ex-
pressa sua corajosa resistência à crueldade do racismo que
tenta desumanizar os negros calando-os, inclusive não lhes
dando voz e vez, como escreve na poesia Resistência:
[...] Pois saibam, mesmo mortos, sem abastança/ reco-
nhecidos como heróis da míngua/ se a crueldade nos
cortar a língua/ em nosso corpo ainda resta a dança.
(CORREIA, 1993, p.31).

No livro Axé – Antologia contemporânea da poesia


negra brasileira, Oliveira Silveira transita pelos territórios
existências das palavras que usa para identificar-se com suas
metáforas num fluxo de desterritorializações e reterritoriali-
zações pelo qual resiste a ser capturado por uma identidade
servil, como diz nas seguintes estrofes do poema Sou
[...] Já fui a palavra canga,/ sou hoje a palavra basta./
E vou refugando a manga/ num atropelo de aspa.//
Meu canto é faca de charque/ voltada contra o feitor,/
dizendo que minha carne/ não é de nenhum senhor.
[...] (COLINA, 1982, p.35 e 36).

Outro poeta presente nessa coletânea, Cuti (1982), ex-


pressa a tragicidade de seu amor à vida falando de sua na-
morada como alguém que, como a vida, se apresenta repleta
de sofrimentos, belezas, tristezas e esperanças mescladas e
portadoras de um futuro a ser reinventado, como no poema
Minha namorada, onde escreve:
Minha namorada?/ é a violência vestida de esperança//
a legítima filha da mãe história amarga/ a mulher crian-
ça/ de tranças de sorriso na cabeça/ e olhar perdido na
distância do brinquedo roubado// sorrindo saudade/
dum paraíso perdido antes de ser criado// Minha na-
morada? Tá todo dia me esperando na porta de casa/
com seus olhos brilhantes feito lágrimas emperoladas//
com um montão de aurora nas mãos/ pra gente brincar
de futuro. (CUTI, 1982, p.59).

306  d IVAN MAIA DE MELLO


Paulo Colina (1982), o poeta organizador dessa coletâ-
nea, descreve poeticamente seu movimento insurgente que se
lança, sem rancor nem ódio, no clamor por uma decisão de
resistir às mordaças de palavras incertas que se arriscam num
cenário sombrio de opressão social, como no poema Pequena
balada insurgente:
Não há rancor nem ódio:/ há esse clamor surdo/ que
rebenta em meu coração/ face a tantas bocas subter-
râneas,/ [...] Há que se decidir, senhores, pois mesmo
entre as noturnas sombras desse imenso véu,/ as asas
negras do meu nariz/ continuarão insistindo em ga-
nhar/ o espaço aberto dos céus. (COLINA, 1982, p.88).

Eis, portanto, uma pequena exposição de pinturas que


usa as tintas da negritude para mostrar a pujança, a ousadia
e a coragem de encarar a tragicidade da existência, em meio
a todo sofrimento advindo das condições sociais em que vive
o povo negro no Brasil, com a alegria de afirmar a aventura
de tornar-se um poeta negro, como experiência subjetiva de
resistência e superação.

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UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA d  307


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UM OLHAR FILOSÓFICO PARA A POESIA AFRO-BRASILEIRA d  309


TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL: UMA
APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO

Ramon Souza Capelle de Andrade

Introdução

Gostaria, neste trabalho, de oferecer uma caracteriza-


ção de identidade pessoal à luz da Teoria Geral dos Sistemas.
A minha hipótese é a de que a identidade pessoal constitui
uma propriedade emergente de um sistema (ou feixe) de há-
bitos. Assim, na seção 01, procuro caracterizar sistema e or-
ganização. Apresento em seguida, na seção 02, o que enten-
do constituir (como componente organizacional da estrutura
do sistema psicocomportamental) a forma lógica do hábito:
um condicional Se A (representando uma circunstância an-
tecedente), então B (representando um consequente ou curso
comportamental deflagrado pela ocorrência de A).
Sugiro, mais explicitamente, que H é um hábito se H é
uma relação binária R entre antecedentes circunstanciais a e
consequentes comportamentais b que constituem pares orde-
nados de conexões nomológicas fracas (quebráveis) inscritas
na estrutura do sistema psicocomportamental de um agente. O
hábito seria, por conseguinte, uma prontidão para se compor-
tar do modo B na presença da circunstância A. Como a cir-
cunstância A tende a disparar o consequente comportamental
B, e a circunstância A é externa ao indivíduo que adota o com-
portamento B, essa concepção de identidade pessoal enraizada
em um sistema de hábitos é mais próxima de uma concepção
externalista de pessoa, de acordo com a qual quem somos não
pode deixar de constituir, também, expressão do contexto no
qual nos colocamos (no qual estamos incorporados e situados).

310  d
Na seção 03 procuramos, em uma primeira aproxima-
ção (bastante parcial e provisória), caracterizar a concepção de
pessoa à luz do pensamento africano. Essa concepção de pes-
soa, além do corpo (ara), da mente/corpo (emi), e da mente
interna (ori), pressupõe a ancestralidade como traço identitá-
rio, fonte de proteção, sabedoria e orientação. Como, contudo,
os ancestrais (mesmo que concebidos como pertencentes aos
traços identitários da pessoa) não estão, por assim dizer, no
interior do indivíduo, a concepção africana de pessoa e uma
concepção externalista de pessoa (mais distante, pela mesma
razão, de uma concepção internalista ou cartesiana de pessoa).

Teoria Geral dos Sistemas

A Teoria Geral dos Sistemas (BERTALANFFY, 1968;


LASZLO, 1996) procura descrever, analisar, abstrair e ideali-
zar os contextos físico, biológico, mental, formal e social, ten-
do o conceito de sistema como o seu pressuposto epistemoló-
gico e ontológico fundamental. Não por outra razão, o acesso
à organização dos existentes é guiado pelo conceito de sistema
(o pressuposto epistemológico). Além disso, os princípios e
subconceitos extraídos do conceito geral de sistema podem
orientar e promover o conhecimento de sistemas particulares,
pertencentes a múltiplos âmbitos da realidade. Já uma afir-
mação mais forte, ligada ao pressuposto ontológico, é que a re-
alidade pode ser, ela mesma, concebida como uma escala, em
sobreposição, de sistemas. Segundo Laszlo (1996, p.16), “pen-
sar sistemicamente” significa pensar “[...] em termos de fatos
e eventos no contexto de totalidades”. Essas totalidades for-
mam “[...] conjuntos integrados com suas propriedades e re-
lações” (LASZLO, 1996, p.16). Os elementos, as propriedades
e as relações, quando inscritos em um conjunto, constituem,

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  311
da perspectiva lógico-matemática, uma estrutura. A estrutura
pode gerar uma organização. O conceito de organização é de
fundamental importância para a caracterização da identidade
pessoal que defendo. Proponho a seguinte definição, baseada
no trabalho do filósofo-biólogo Tom Stonier: uma organiza-
ção constitui um padrão regular, habitual, ou não aleatório,
de partículas e campos de energia, ou de elementos correla-
cionados entre si e unificados via sistema (STONIER, 1999).
O conceito de organização está associado ao conceito
de sistema. Bertalanffy (1968, p.9), um “dos pais fundadores
da sistêmica”, sustenta que há apenas um modo frutífero de
abordar a organização: “[...] abordá-la como um [...] sistema
de variáveis mutuamente dependentes”. Já uma das princi-
pais características de uma organização sistêmica, ou comple-
xa, é a presença de propriedades emergentes. As propriedades
emergentes inauguram, em um sistema, níveis mais comple-
xos de organização. Níveis que possuem um estatuto ontoló-
gico próprio, não sendo possível concebê-los ou abordá-los a
partir de níveis organizacionais mais simples, elementares ou
menos complexos. Como afirma Gershenson (2007), uma cé-
lula, por exemplo, pode ser concebida como um sistema vivo,
mas os elementos isoladamente concebidos que a constituem
não podem ser pensados dessa mesma forma. As proprieda-
des dos sistemas (a vida, digamos exemplarmente) que não
são encontradas em níveis mais elementares constituem pro-
priedades emergentes, que têm suas gêneses essencialmente
dependentes das interações complexas entre elementos reuni-
dos em um contexto sistêmico. Assim, por exemplo, (I) células,
como unidades-organizadas, emergem da complexa dinâmica
de interação/relação entre moléculas (DNA, RNA, proteínas e
metabólitos (açúcares e aminoácidos), (II) tecidos emergem da
complexa dinâmica de interação/relação entre células, e assim

312  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


por diante. Minha hipótese (a ser mais bem explorada adiante)
é que, do conjunto de hábitos (entendidos como padrões orga-
nizados de conduta) de um indivíduo, emerge (como emergên-
cia sistêmica) o sentido de Eu, ou identidade pessoal. Conside-
rando a associação entre o conceito de organização e o conceito
de sistema, adoto agora a seguinte definição para sistema: uma
unidade complexa e organizada, formada por um conjunto não
vazio de elementos ativos que mantêm relações com caracterís-
ticas de invariância no tempo que lhe garantem a sua própria
identidade (BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2004, p.239).
O “complexo”, “de unidade complexa e organizada”,
aponta para a presença de elementos e/ou partes em múlti-
plas interações/relações/conexões recíprocas. Mais precisa-
mente, “complexo” envolve e pressupõe, em geral, um grande
número de elementos e/ou partes mutuamente conectados e
interdependentes, de modo que, por exemplo, mudanças em
um elemento e/ou parte provocarão mudanças em outros ele-
mentos/partes (os associados) do sistema. As “partes” de um
sistema podem constituir “subsistemas”. Já o conjunto não
vazio de elementos de um sistema é o universo da estrutura
que subjaz ao sistema mais geral. Um conjunto é uma coleção
de elementos que compartilham ao menos uma ­propriedade.
Apresento, agora, outra definição de sistema: um sistema
constitui uma estrutura, um conjunto de elementos e relações
(BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2004). Os elementos (e/ou os
subsistemas) são as “partes”, os “componentes” ou os “agen-
tes” de um sistema. Os elementos (I) “realizam atividades”,
(II) “conduzem processos”, (III) “produzem fenômenos” e
“transformações”. Assim, (I), (II) e (III) caracterizam o com-
portamento do sistema (BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2000).
Já as relações entre os elementos de um sistema podem se
manifestar em termos de (I) interações, (II) inter-relações,

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  313
(III) interdependências, (IV) conjunções, (V) inclusões, (VI)
implicações, (VII) combinações, (VIII) conexões e assim por
diante. Essas relações “exercem restrições”, “determinações”
e “estabelecem sujeições”, e tudo isso (restrições, determina-
ções e sujeições) pode se manifestar como “leis”, “hábitos”,
“relações fixas”, “hierarquia”, “controle das regularidades” e
“ajuste” (BRESCIANI; D’OTTAVIANO, 2000).
Enfatizemos que as relações entre “elementos”, “par-
tes” e/ou “subsistemas” constituem aquilo que confere orga-
nização ao sistema. É como se um sistema fluísse relacional e
interdependentemente do seu arranjo particular de “elemen-
tos”, “partes” e “subsistemas”. Assim, por exemplo, há nos sis-
temas biológicos em especial uma substituição dos elementos,
“dos componentes materiais”, mas a “identidade do sistema”
é prioritariamente preservada através da instanciação cons-
tante do mesmo arranjo relacional que o caracteriza e o orga-
niza como sistema. Como afirma Laszlo (1996, p.05), no que
diz respeito ao átomo de carbono, não importa
[...] qual elétron preenche qual camada, desde que as
suas (do carbono) ‘faixas energéticas’ sejam preenchi-
das com um número de elétrons proporcional (eis aí a
relação) ao número de nêutrons em seu núcleo.

De modo similar, argumenta Laszlo (1996) que as célu-


las do nosso corpo são substituídas aproximadamente a cada
sete anos. Contudo, as relações que conferem identidade bio-
lógica e pessoal a um indivíduo não são, a despeito do proces-
so de renovação de elementos, modificadas juntamente com
essa renovação, e/ou, quando são modificadas, tal modifica-
ção acontece em um período de tempo mais estendido.
Entendo um hábito psicocomportamental como sendo
constituído por uma relação (de tipo condicional, Se A, então
B) entre um antecedente A (que representa a ocorrência de

314  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


uma circunstância/ocasião ou acontecimento) e um conse-
quente B (que representa um padrão de comportamento tido
como apropriado para promover o ajuste do agente à circuns-
tância antecedente A). Nesse sentido, o hábito constitui, tal
como propõe Peirce (1958) uma disposição (ou prontidão)
para se comportar de um modo característico B na ocorrên-
cia de uma circunstância específica A, e essa conexão entre A
e B (entre antecedente circunstancial e consequente compor-
tamental) estaria embutida na estrutura psicocomportamen-
tal do indivíduo. Mas vale dizer que os hábitos que conferem
organização ao sistema psicocomportamental de um agente
possuem, como relação, um grau de permanência e determi-
nação causal fraco ou, talvez, melhor que isso, essencialmente
plástico, mutável e passível de transformação. A relação habi-
tual cumpre, contudo, e a despeito da sua plasticidade, a fun-
ção de conferir organização à conduta do agente.
O ciberneticista Ross Ashby (1962) chega mesmo a
definir a organização de um sistema como um conjunto de
relações de condicionalidade. Mais exatamente, na concep-
ção de Ashby, o núcleo do conceito (de organização) é o de
“condicionalidade”. Assim, “[...] tão logo a relação entre duas
entidades A e B torna-se condicionada pelo valor ou estado
de C, então uma componente [...] de “organização” está pre-
sente” (ASHBY, 1962, p.255). Ashby reconhece, pois, que as
relações de condicionalidade são essenciais para caracterizar
a organização de um sistema. Sustento, como fiz acima, que
no sistema psicocomportamental os hábitos possuem a forma
condicional Se A, então B subjacente ao seu modo de expres-
são. Na presença de A (o antecedente representado por uma
circunstância específica, ocorrida no contexto de atuação de
um agente), teríamos provavelmente que B (o consequente
representado pelo comportamento) se seguiria em consonân-

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  315
cia com a prescrição Se A, então B, o hábito que representa a
relação de condicionalidade.
Percebo, assim, o hábito como uma relação fixa, toda-
via quebrável, inscrita e conferindo organização ao sistema
psicocomportamental de um agente rotineiramente engaja-
do em seu mundo. Mais especificamente, essa relação possui
um conteúdo organizador à medida que se manifesta pela não
aleatoriedade e regularidade da conexão entre um estado de
coisas A (representativo de um acontecimento) e um curso de
comportamento (ou consequente) B em geral, mas não ne-
cessariamente, seguido ou adotado pelo agente. Possuir um
hábito é, por conseguinte, possuir uma prontidão para, na
presença de uma circunstância/ocasião A, comportar-se do
modo B. O hábito requer que uma relação de condicionalida-
de (ainda que uma relação nomologicamente fraca) esteja em
atividade na estrutura que subjaz ao sistema psicocomporta-
mental de um agente. Na próxima seção desejo aprofundar
um pouco mais a caracterização do hábito como relação de
condicionalidade e como componente organizacional do sis-
tema (ou estrutura) psicocomportamental.

A Forma Lógica (Nomológica) do Hábito

Lembrarei agora, em vista do objetivo de aprofundar a


caracterização do hábito como uma relação binária de condi-
cionalidade entre antecedentes circunstanciais e consequen-
tes comportamentais, alguns conceitos matemáticos. Uma
relação n-ária sobre um conjunto (A, digamos) constitui um
subconjunto (B, digamos) do conjunto A x A x ... A (n vezes).
Além disso, os elementos desse subconjunto (os elementos de
B) constituem sequências finitas de n elementos do conjunto
A. Em particular, as relações binárias constituem subconjun-

316  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


tos do conjunto formado pelos pares ordenados de elementos
de um conjunto considerado (de A, digamos). Em outras pa-
lavras, se um par ordenado (a, b) pertence a uma relação bi-
nária, caracterizada como um conjunto de pares, então o par
satisfaz a relação e, ipso facto, o primeiro elemento do par,
“a”, está na relação com o segundo elemento do par, “b”. Um
par ordenado (a, b) constitui um conjunto formado pelo ele-
mento {a} e pelo elemento {a, b}, a e b podem ser conjuntos.
A ordem sob a qual a e b aparece é relevante para a caracteri-
zação do par ordenado: a constitui a primeira coordenada do
par e b constitui a segunda.
Assim, sugiro que H é um hábito se H é uma relação
binária R entre antecedentes circunstanciais a (as primeiras
coordenadas) e consequentes comportamentais b (as segun-
das coordenadas), antecedentes e consequentes que consti-
tuem pares ordenados de conexões nomológicas fracas (que-
bráveis) inscritas (como padrão de organização) na estrutura
do sistema psicocomportamental de um agente. A relação R é
instituída pela satisfação de um acontecimento (ou circuns-
tância) a está na relação R com um modo de comportamento
b se a ocorrência de a é (na maioria dos casos) acompanha-
da pela adoção do modo de comportamento b. A relação R
pode ser expressa como uma prescrição condicional contra-
factual: se a circunstância a fosse o caso (ou acontecesse no
mundo), então b (um modo de comportamento específico)
seria provavelmente adotado pelo agente. Assim, R constitui
uma relação binária entre circunstâncias (estados de coisas)
e modos de comportamento ocasionados pela apresentação
ou ocorrência dessas mesmas circunstâncias (estado de coi-
sas). O par ordenado (06h00, acordar) pode constituir (como
manifestação de “Se 06h00, então acordar”) um elemento
do subconjunto formado pelos pares ordenados (circunstân-

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  317
cia, modos de comportamento) que satisfazem uma relação
(habitual) R (a relação habitual de acordar, todos os dias da
semana, bem cedinho, às 06h00, para ir ao trabalho). Se R é
uma relação binária, então: (a) o conjunto de todos os x que
estão na relação R com algum y é chamado o domínio de R,
denotado por dom R. Assim, dom R = {x/ existe y tal que xRy},
tal que x está na relação R com y. Dom R constitui o conjunto
de todas as primeiras coordenadas dos pares ordenados em R
(HRBACEK; JECH, 1999, p.17). No caso dos hábitos condicio-
nais Se a, então b, o domínio de R constitui um subconjunto
do conjunto de acontecimentos possíveis (como antecedentes
a) para os quais o sujeito possuiria uma forma eficiente (os
consequentes b) de resposta ou adoção de linha de conduta
ou ação, (b) o conjunto de todos os y tais que, para algum x, x
está na relação R com y, constitui a imagem “range” de R e é
denotado por ran R. Assim, ran R= {y/ existe x tal que xRy},
ran R constitui o conjunto de todas as segundas coordenadas
dos pares ordenados em R (HRBACEK; JECH, 1999). No caso
de um hábito psicocomportamental, ran R constitui um sub-
conjunto do conjunto de respostas ou consequentes compor-
tamentais possíveis que podem ser adotados por um agente,
conectados a certos antecedentes circunstancias (as primeiras
coordenadas). Já (c) o conjunto dom R U ran R constitui o
field (“campo”) de R (HRBACEK; JECH, 1999). O field pode
ser interpretado como um contexto, um conjunto de circuns-
tâncias possíveis e modos de comportamento possíveis (e
considerados apropriados/eficientes para promover o ajuste
do agente às circunstâncias do contexto).
Considerando o hábito como relação e/ou consideran-
do a natureza relacional do hábito (capaz de conectar de modo
exitoso no sistema psicocomportamental certas circunstân-
cias a certos comportamentos ou padrões de conduta), sugiro

318  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


que, quando analisamos um hábito H, encontramos, ao me-
nos, o seguinte: (I) um conjunto Ci de circunstâncias em que
H pode ser aplicado com eficiência prática, (II) um conjunto
Cq de consequências que provavelmente decorreriam, caso
H fosse aplicado aos elementos de Ci e (III), uma prontidão
ou disposição para adotar o comportamento prescrito por H,
caso qualquer das circunstâncias de Ci ocorressem no con-
texto de atuação do agente. A prontidão ou disposição para
professar o comportamento prescrito pelo hábito constitui a
determinação nomologicamente fraca da conduta embutida
na conexão entre antecedente e consequente (conexão essa
que é, propriamente falando, o que caracteriza o hábito). A
determinação da conduta é fraca em virtude do fato de sermos
sempre capazes de impedir, por intermédio de uma reflexão
racional, a atualização e/ou instanciação da linha de conduta
(ou curso comportamental) prescrito pelo hábito. Além disso,
podemos, ainda, alterar ou dissolver o hábito, caso o hábito
não esteja cristalizado na estrutura psicocomportamental.
Como quer que seja, a ideia que defendo é a de que o
conjunto de hábitos do agente constitui a estrutura (e/ou pa-
drão de organização) da personalidade desse mesmo agente
(os hábitos conferem forma/personalidade ao agente). A nossa
personalidade (já, em maior ou menor grau, consolidada) seria
meramente uma personalidade possível entre muitas outras
lógica e psicologicamente igualmente possíveis (mas não, ipso
facto, atuais ou atualizadas). Uma versão alternativa, diferente
da atual ou contrafactual, de nós mesmos seria concebível caso
organizássemos nossa ação-no-mundo em concordância com
outros hábitos, do mesmo modo que, digamos exemplarmen-
te, um mundo possível, diferente do mundo atual ou contra-
factual, seria concebível caso um conjunto alternativo de leis
físico-químicas (leis naturais) estivesse em atividade na na-

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  319
tureza. O filósofo Charles Sanders Peirce, nas citações abaixo,
parece expressar uma visão semelhante à visão que defendo
acerca da estrutura da personalidade: “[...] Cada hábito de um
indivíduo é uma lei.” (CP, 1.348)1. Lemos, ainda, que
[...] por um hábito condicional, desejo denotar uma
determinação da natureza oculta de um indivíduo
que tende a causá-lo a atuar de certo modo geral [um
consequente] no caso de certas circunstâncias gerais
aparecerem (os antecedentes) [...] (CP, 5, endnotes).

Assim, o que o conjunto de leis naturais faz pelo mundo


físico/material (confere organização e identidade ao mundo
físico/material) é análogo, do ponto de vista formal e funcio-
nal, ao que o conjunto de hábitos de um agente faz por esse
agente (confere organização e identidade pessoal ao agen-
te). Não por outra razão, quando nos tornamos nós mesmos,
quando estabelecemos quem somos pelos hábitos e/ou papel
que desempenhamos, outros possíveis (ou ­contrafactuais)
“quem poderíamos ser”, ou “quem poderíamos ter sido”, são
deixados para trás como possibilidades não atualizadas, ver-
sões meramente possíveis de nós mesmos. A “vantagem” é
que, ao atualizar/esculpir uma personalidade ou uma versão
de nós mesmos, se, com tal versão, produzimos ou instancia-
mos, também, um sentido (profundo e enraizado) de pessoa,
teremos sido exitosos na criação/produção de quem somos
como indivíduos humanos.
Sugeri acima que parte da identidade de um agente é
dada por um conjunto de hábitos como prescrições condicio-
nais (relações de condicionalidade contrafactual embutidas
na estrutura psicocomportamental de um agente). Gostaria,
1Conforme padrão de referência à obra de Charles Peirce, CP significa Collected
Papers e, após CP, o primeiro número indica o livro do qual a citação teria sido
extraída (na citação acima, livro 01). O segundo número indica, por sua vez, o
parágrafo (na citação acima, o parágrafo 348).

320  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


agora, de oferecer uma classificação dos hábitos em dois sub-
conjuntos bem característicos: os hábitos identitários (que,
mais marcadamente, codificam traços da identidade do agen-
te) e os hábitos adaptativos (responsáveis pelo ajuste do
agente ao seu contexto de atuação) (ANDRADE et al., 2010).
Os hábitos identitários seriam hábitos mais fortes ou estáveis
(em comparação com os hábitos adaptativos racionais) e que,
por conseguinte, não variariam de domínio para domínio e/
ou de contexto para contexto. Na medida em que o hábito
compõe uma relação entre ocasião/circunstância, como do-
mínio, e comportamento, como imagem, é lícito afirmar que,
a cada momento, quem somos como pessoas é estabelecido,
ao menos em parte, pelo domínio e/ou contexto de atuação no
qual estamos inseridos (incorporados e culturalmente situa-
dos). Uma parcela da nossa identidade pessoal seria, assim,
atualizada pelas circunstâncias de um domínio, uma vez que
o comportamento constitui o modo pelo qual respondemos a
essas circunstâncias. Os hábitos identitários constituem, con-
tudo, hábitos transportáveis de domínio para domínio e/ou
de contexto para contexto. Se, digamos exemplarmente, um
agente possui o traço (e/ou hábito identitário) da “polidez”,
tal agente tende a transportar esse traço para todos ou para
a grande maioria de seus domínios de atuação, como o lazer,
trabalho e assim por diante (ANDRADE et al., 2010).
Por sua vez, os hábitos adaptativos (representativos de
estratégias de ajuste ao domínio e/ou contexto) precisam per-
sistir fracos e passíveis de modificação. Modificação esta que
deve ser empreendida sempre que aparecerem razões para
tanto, de modo a fazer com que o agente seja permanente-
mente capaz de congregar novidades, desenvolver e incorpo-
rar, por exemplo, respostas inauditas a circunstâncias inau-
ditas, que se apresentam em seus (do agente) domínios de

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  321
interação e vivência. Gostaria, ainda, de desenvolver mais a
classificação dos hábitos. Caracterizo os hábitos adaptativos
que permanecem como adaptativos (que podem ser modifi-
cados, casos razões para tanto se apresentem) como hábitos
racionais. Ainda que constitua uma resposta comportamental
pronta e “automatizada”, como é o caso com o comportamen-
to gerado por qualquer hábito, o comportamento instanciado
pelo hábito racional tem a “razão” como fundamento.
O hábito racional é, por conseguinte, um hábito delibe-
radamente automatizado.É como se, para usar uma metáfora,
a razão admitisse que operássemos no modus “piloto automá-
tico”. Ao menor sinal, todavia, de “turbulência”, que denotaria
a experiência da inadequabilidade do comportamento gera-
do pelo hábito, a “razão” seria convidada a redefinir, ajustar
tal comportamento (ANDRADE et al., 2010). Mais explicita-
mente, sugiro que, no que diz respeito ao hábito racional, a
prontidão para se comportar do modo B na presença da cir-
cunstância A (que caracteriza qualquer hábito) deve estar em
conformidade com um propósito escolhido pelo agente.
Assim, se reconhecemos que um hábito não está em
conformidade com um propósito, podemos alterar tal hábito.
O insucesso em assim o fazer, na ausência de obstáculos físi-
cos e/ou fisiológicos, denotaria algum grau de cristalização do
hábito, tipificando-o, ipso facto, como um hábito degenerado.
Seja como for, escolhido um propósito P, a decisão racional
de alterar o hábito que não promove P, será um passo impor-
tante na reestruturação do sistema psicocomportamental, do
conjunto de hábitos do agente. Como sugeri acima, a organi-
zação psicocomportamental é, em especial, dada por um con-
junto de hábitos interconectados em uma unidade sistêmica
(ANDRADE et al., 2010).

322  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


Assim sendo, se desejamos modificar um hábito H, será
necessário, também, e dada a interconexão dos hábitos no sis-
tema psicocomportamental, modificar os hábitos associados
(diretamente conectados) a H. Pode acontecer que um curso
de mudança comportamental descubra um impedimento, em
virtude de uma cristalização, em um hábito I (que não promo-
ve o propósito P), hábito esse diretamente relacionado ao há-
bito H. Pode ser que o agente decida persistir nessa mudança
comportamental, revelando-se capaz de evitar a atualização
dos consequentes comportamentais gerados pelo hábito I por
certo tempo, porém não de um modo definitivo. Pode ser que
a mudança comportamental necessite ser repensada. Como
quer que seja, os hábitos psicocomportamentais devem inte-
ragir entre si para que uma mudança comportamental venha
a expressar um ajuste organizatório e sistêmico entre eles e
não tão somente mero desejo da razão (ou capacidade reflexi-
va) do agente.
Estou aqui pensando em uma concepção sistêmica de
agente, agente como sistema/sujeito, o que pressupõe que a
capacidade reflexiva e as propriedades de autonomia e autode-
terminação de um agente são propriedades/partes importan-
tes da organização que suporta o sistema/agente, mas elas não
constituem as únicas propriedades ou partes caracterizadoras
da identidade do sistema/agente. Temos, por exemplo, o cor-
po, os diversos subsistemas, os hábitos, o papel do contexto
de atuação do sistema/agente e assim por diante. Mais preci-
samente, as propriedades de autonomia e autodeterminação
não constituem as únicas propriedades ou partes relevantes
nesta concepção de sistema/agente (e identidade pessoal) em
­virtude de o termo “sistema” se aplicar a uma “totalidade orga-
nizada”, e não apenas, por isso mesmo, a uma de suas partes,
como a mente (ou capacidade reflexiva de um sujeito).

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  323
Ao considerar, sistemicamente, que o contexto de atua-
ção de um agente é relevante para determinação de sua iden-
tidade, estou me afastando de uma concepção internalista
e/ou subjetivista de identidade pessoal (eu como substância
racional, pensante, que governa o corpo e estabelece as ações
em conformidade com as luzes que constantemente emanam
da razão). Estou igualmente, ipso facto, me aproximando de
(ou defendendo) uma concepção externalista de pessoa, se-
gundo a qual a identidade está, também, dissolvida nas – e é
moldada – pelas circunstâncias e domínios pertencentes ao
contexto de atuação do agente.
Como disse acima, os hábitos psicocomportamentais,
no caso de uma alteração de hábitos vislumbrada pelo sujeito,
devem interagir entre si, para que esta corresponda a um ajus-
te organizatório e sistêmico entre eles, e não apenas constitua
um desejo da razão ou expressão de uma pessoa concebida
em termos internalistas. Caso, contudo, tal ajuste ocorra e o
agente o reconheça como algo similar à mudança comporta-
mental por ele vislumbrada, haverá uma significativa auto-or-
ganização do seu sistema psicocomportamental (ANDRADE
et al., 2010). Proponho, portanto, a seguinte caracterização:
X é um hábito racional para o agente S no instante t’se, e so-
mente se, X traz boas consequências para S em t’, e S pode
mudar X em t’’, caso as consequências de X em t” se tornarem
ruins para S (ANDRADE et al., 2010).
Desse modo, um hábito racional constitui uma pron-
tidão para a ação que, em concordância com um propósito P
(estabelecido pelo agente), tende a trazer consequências exi-
tosas (favoráveis à consecução de P), ou que seja fraco ou al-
terável, ou seja, que seja um hábito capaz de participar de um
processo positivo de ajuste sistêmico ou organizatório do con-
junto de hábitos inscritos na estrutura psicocomportamental

324  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


de um agente. Em oposição aos hábitos racionais, os hábitos
adaptativos que se cristalizaram, ou perderam a plasticidade,
e que, por isso mesmo, não podem mais ser modificados pelo
agente, serão caracterizados como hábitos degenerados (tal-
vez as mais diversas modalidades de vícios – para quem aspi-
ra se livrar e não consegue – constituam exemplos de hábitos
degenerados).
Para encerrar essa seção seria pertinente dizer algumas
palavras acerca da função propriamente cognitiva (de econo-
mia mental/representacional) desempenhada pelo hábito.
Acredito que a função do hábito seja a de evitar surpresas.
Se um curso comportamental produz e tem nos conduzido a
consequências desejáveis e adaptativas, caso adotado dian-
te de certa circunstância, então, uma vez que a circunstância
venha a ocorrer em nosso contexto de atuação, poderemos
nos comportar da maneira usual, regular, já que muito pro-
vavelmente a maneira usual (o modo regular prescrito pelo
hábito) nos transportará às próprias consequências desejá-
veis e adaptativas.
Um comportamento não usual ou comum (não apoia-
do em hábitos bem estabelecidos) pode, não obstante, levar
a consequências indesejadas e, ipso facto, preferimos, em ge-
ral, não adotar tal curso comportamental. É como se os há-
bitos bem estabelecidos diretamente conectassem percepção
sensorial, memória e comportamento, produzindo modalida-
des exitosas de adaptação do agente ao contexto. Tendemos,
quando guiados pelos hábitos, a nos comportarmos de modo
ao mesmo tempo hábil e espontâneo, sem o controle e a vigi-
lância constante da experiência consciente. Sem contar, con-
tudo, com os hábitos, temos que conceber hipóteses compor-
tamentais e testar linhas comportamentais.

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  325
Pensamento Africano

A presente seção constitui expressão de um estudo, re-


centemente iniciado,e, por essa mesma razão, muito prelimi-
nar e provisório acerca do conceito de pessoa no pensamento
africano. Adeofe (2004) argumenta em defesa da tese segun-
do a qual a pessoa, concebida à luz do pensamento africano,
é ontologicamente constituída por uma tríade (por três ele-
mentos necessários à caraterização do Eu). São eles: (I) ara
(corpo), (II) emi (mente/corpo) e (III) ori (mente interna).
Diferentemente do corpo (ara), que possuiria natureza física/
material, tanto a mente/corpo (emi) quanto a mente interna
(ori) possuiriam natureza mental e/ou espiritual. Adeofe su-
gere, também, que a partição acima esboçada entre físico/ma-
terial e mental/espiritual não significa um dualismo (como a
partição cartesiana entre Res cogitans – a mente racional, que
controla o corpo mecânico – e Res extensa – o corpo mate-
rial). A concepção africana de pessoa seria, antes, e de acordo
com Adeofe (2004), genuinamente triádica, uma vez que ori
(a mente interna) seria independente tanto de ara (o corpo)
quanto de emi (a mente/corpo).
Nesse sentido, ara (corpo) constituiria a base material
interna (aí incluindo processos metabólicos e fisiológicos) e
externa (dos pés à cabeça) da pessoa. Ara torna-se consciente
em virtude da presença de emi (mente/corpo). Emi, por sua
vez, é concebido como sendo imortal e indicativo da presença,
em ara, de experiências fenomenológicas e capacidades cog-
nitivas e racionais. Já ori (a mente interna) é propriamente o
portador do destino da pessoa, ipso facto, constituindo parte
fundamental (talvez a parte mais fundamental) da identidade
da pessoa. De ori decorrem, também, os propósitos que as pes-
soas adotam para suas vidas (ADEOFE, 2004).

326  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


Emi e/ou ori estão (ou podem estar) conectados ao do-
mínio da ancestralidade, entendida, de modo bastante geral,
como fonte inesgotável de valores, atitudes, proteção e orien-
tação. Os ancestrais seriam, mais explicitamente, espíritos
desencarnados, no aqui e agora do mundo, benevolentes,
além de responsáveis por estabelecer a ligação e partilha do
conhecimento entre o mundo material (dos vivos) e o mun-
do espiritual (das entidades divinas). Quanto mais a pessoa
envelhece, tanto mais se aproxima do mundo espiritual, do
domínio da ancestralidade. Razão pela qual os mais velhos
tendem a ser respeitados e venerados na cultura africana.
Mas o ponto que gostaria mesmo de destacar nesta seção é
que a ancestralidade constitui, além de ara, emi e ori, senão
mesmo um elemento, um traço identitário forte da pessoa
africana. Uma vez, contudo, que os ancestrais não habitariam
o espaço físico circunscrito pela epiderme da pessoa (o corpo
ou ara), e a ancestralidade constituiria um traço identitário
forte da pessoa africana, parece lícito afirmar (comparando
a concepção africana de pessoa com a concepção cartesiana
de pessoa) que a concepção africana de pessoa está próxima
a uma concepção externalista de pessoa, que considera que
a identidade pessoal não decorre apenas da racionalidade da
pessoa (emi?) como ser pensante, mas está presente também
no ambiente externo e na tradição ou cultura (na condição de
um conjunto de hábitos coletivos) como um todo.
Por fim, gostaria de indicar como continuarei conduzin-
do a pesquisa sobre o conceito de pessoa no pensamento afri-
cano. Estou, em especial, e em primeiro lugar, interessado em
melhor compreender as relações entre ara, emi e ori. Assim,
por exemplo, Adeofe (2004) sugere que ori, além de constituir
elemento da identidade da pessoa, confere estabilidade e uni-
dade ao eu, unificando (assim entendo) as relações entre ara e

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS E IDENTIDADE PESSOAL:


UMA APROXIMAÇÃO COM O PENSAMENTO AFRICANO d  327
emi. Nesse sentido, poderíamos aplicar os conceitos da Teoria
dos Sistemas na análise da concepção africana de pessoa? Em
Teoria de Conjuntos, o conjunto potência de um conjunto S,
P(S) (“power set”) é o conjunto de todos os subconjuntos do
conjunto S considerado. Um sistema é um conjunto interde-
pendente de unidades de organização ou subsistemas. É como
se, nesse sentido, um sistema constituísse um power set, cole-
cionando e, mais do que isso, integrando todos os seus subcon-
juntos ou planos de organização (MORIN, 1999). O sistema é,
nesse sentido, uma “unidade unificadora”, um conjunto potên-
cia que preserva o múltiplo representado pelos planos de orga-
nização (os subconjuntos) que ele, como sistema, “coleciona”
e, mais do que isso, “unifica”. Poderíamos, à luz do acima ex-
posto, conceber (metodologicamente) ori como uma “unidade
unificadora”? Poderíamos, igualmente, conceber (metodolo-
gicamente) ara e emi como unidades de organização ou sub-
sistemas? Esse é o curso que tomarei na condução futura da
minha pesquisa sobre o pensamento africano.

Considerações Finais

A identidade pessoal ou sistêmica poderia ser concebi-


da, da perspectiva que defendo, como emergindo de um con-
junto próprio e individual, de hábitos inscritos na estrutura ou
sistema psicocomportamental de um agente. Esses hábitos se-
riam, no exercício da vida, substituídos e alterados, garantindo
a construção de um sentido de identidade plástico, em cons-
tante adaptação ao contexto (realidade sociocultural). Mais
explicitamente argumentamos, no escopo da hipótese segundo
a qual a organização é instanciada fundamentalmente via re-
lações de condicionalidade, que nossa identidade como agente
é essencialmente constituída por um conjunto de hábitos psi-

328  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


cocomportamentais (hábitos condicionais). Isso consistiu uma
questão de enfoque, ou perspectiva, e é mais uma espécie de
proposta de uma caricatura de nós mesmos (e/ou da concep-
ção de agente) do qualquer outra coisa. Ou seja, se acentuásse-
mos nossos hábitos em uma representação tal como os traços
físicos mais salientes de um sujeito são acentuados na compo-
sição de uma caricatura, teríamos uma caricatura psicocom-
portamental de nós mesmos (como agentes). Com um pouco
de sorte, caso tal caricatura tenha sido bem feita, como a rela-
ção que a caricatura guarda com seu objeto (no caso, agentes)
é uma relação estabelecida pela semelhança (signo icônico),
talvez possamos reconhecer propriedades nossas, como agen-
tes, na análise do hábito psicocomportamental que explorei.

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330  d RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE


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e José Mendes Fonteles (Orgs.). 2001. 208p. 2001. ISBN: 85-86627-13-5.
2. Memórias no plural. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano Magalhães
Junior (Orgs.). 140p. 2001. ISBN: 85-86627-21-6.
3. Trajetórias da juventude. Maria Nobre Damasceno; Kelma Socorro Lopes de
Matos e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 112p. 2001. ISBN: 85-86627-22-4.
4. Trabalho e educação face à crise global do capitalismo. Enéas Arrais Neto;
Manuel José Pina Fernandes e Sandra Cordeiro Felismino (Orgs.). 2002. 218p.
ISBN: 85-86627-23-2.
5. Um dispositivo chamado Foucault. José Gerardo Vasconcelos e Antonio
Germano Magalhães Junior (Orgs.). 120p. 2002. ISBN: 85-86627-24-0.
6. Registros de pesquisa na educação. Kelma Socorro Lopes de Matos e José
Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2002. 216p. ISBN: 85-86627-25-9.
7. Linguagens da história. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano Maga-
lhães Junior (Orgs.). 2003. 154p. ISBN: 85-7564084-4.
8. Esboços em avaliação educacional. Brendan Coleman Mc Donald (Org.). 2003.
168p. ISBN: 85-7282-131-7.
9. Informática na escola: um olhar multidisciplinar. Edla Maria Faust Ramos;
Marta Costa Rosatelli e Raul Sidnei Wazlawick (Orgs.). 2003. 135p. ISBN: 85-7282-
130-9.
10. Filosofia, educação e realidade. José Gerardo Vasconcelos (Org.). 2003. 300p.
ISBN: 85-7282-132-5.
11. Avaliação: Fiat Lux em Educação. Wagner Bandeira Andriola e Brendan Coleman
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12. Biografias, instituições, ideias, experiências e políticas educacionais.
Maria Juraci Maia Cavalcante e José Arimatea Barros Bezerra (Orgs.). 2003. 467p.
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13. Movimentos sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade.
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14. Trabalho, sociabilidade e educação: uma crítica à ordem do capital. Ana
Maria Dorta de Menezes e Fábio Fonseca Figueiredo (Orgs.). 2003. 396p. ISBN:
85-7282-139-2.
15. Mundo do trabalho: debates contemporâneos. Enéas Arrais Neto, Elenice Gomes
de Oliveira e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2004. 154p. ISBN: 85-7282-142-2.
16. Formação humana: liberdade e historicidade. Ercília Maria Braga de Olinda
(Org.). 2004. 250p. ISBN: 85-7282-143-0.
17. Diversidade cultural e desigualdade: dinâmicas identitárias em jogo. Maria
de Fátima Vasconcelos e Rosa Barros Ribeiro (Orgs.). 2004. 324p. ISBN: 85-7282-
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18. Corporeidade: ensaios que envolvem o corpo. Antonio Germano Magalhães
Junior e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2004. 114p. ISBN:85-7282-146-5.
19. Linguagem e educação da criança. Silvia Helena Vieira Cruz e Mônica Petra-
landa Holanda (Orgs.). 2004. 369p. ISBN:85-7282-149-X.
20. Educação ambiental em tempos de semear. Kelma Socorro Lopes de Matos
e José Levi Furtado Sampaio (Orgs.). 2004. 203p. ISBN: 85-7282-150-3.
21. Saberes populares e práticas educativas. José Arimatea Barros Bezerra,
Catarina Farias de Oliveira e Rosa Maria Barros Ribeiro (Orgs.). 2004. 186p. ISBN:
85-7282-162-7.

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22. Culturas, currículos e identidades. Luiz Botelho de Albuquerque (Org.). 231p.
ISBN: 85-7282-165-1.
23. Polifonias: vozes, olhares e registros na filosofia da educação. José Gerardo
Vasconcelos, Andréa Pinheiro e Érica Atem (Orgs.) 274p. ISBN: 857282166-X.
24. Coisas de cidade. José Gerardo Vasconcelos e Shara Jane Holanda Costa Adad.
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25. O caminho se faz ao caminhar. Maria Nobre Damasceno e Celecina de Maria
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Vasconcelos, José Rogério Santana, ­Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior
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89. Artes do fazer: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de Olinda
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e José Rogério Santana (Orgs.) 2010. 327p. ISBN: 978-85-7282-395-1.
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93. Ética e as reverberações do fazer. Kleber Jean Matos Lopes, Emílio Nolasco
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94. Contrapontos: democracia, república e constituição no Brasil. Filomeno Moraes.
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95. Paulo Freire: teorias e práticas em educação popular — escola pública, inclusão,
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102. Tribuna de vozes. José Gerardo Vasconcelos, Renata Rovaris Diorio e Flávio
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(Orgs.). 2011. 743p. ISBN: 978-85-7282-453-8
106. Artefatos da cultura negra no Ceará. Henrique Cunha Júnior, Joselina da
Silva e Cicera Nunes (Orgs.). 2011. 283p. ISBN: 978-85-7282-464-4.
107. Espaços e tempos de aprendizagens: geografia e educação na cultura. Stanley
Braz de Oliveira, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Gerardo
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108. Muitas histórias, muitos olhares: relatos de pesquisas na história da educação.
José Rogério Santana, José Gerardo Vasconcelos, Gablielle Bessa Pereira Maia e
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109. Imagem, memória e educação. José Rogério Santana, José Gerardo Vas-
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111. Barão e o prisioneiro: biografia e história de vida em debate. Charliton
José dos Santos Machado, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e José
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112. Cultura de paz, ética e espiritualidade II. Kelma Socorro Alves Lopes de
Matos (Org.). 2011. 363p. ISBN: 978-85-7282-481-1.
113. Educação ambiental e sustentabilidade III. Kelma Socorro Alves Lopes de
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115. Artes do sentir: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de
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116. Milagre, martírio, protagonismo da tradição religiosa popular de
Juazeiro: padre Cícero, beata Maria de Araújo, romeiros/as e romarias. Luis
Eduardo Torres Bedoya (Org.). 2011. 189p. ISBN: 978-85-7282-462-0.91.
117. Formação humana e dialogicidade III: encantos que se encontram nos
diálogos que acompanham Freire. João Batista de Oliveira Figueiredo e Maria
Eleni Henrique da Silva (Orgs.). 2012. 212p. ISBN: 978-85-7282-454-5.
118. As contribuições de Paramahansa Yogananda à educação ambiental.
Arnóbio Albuquerque. 2011. 233p. ISBN: 978-85-7282-456-9.
119. Educação brasileira em múltiplos olhares. Francisco Ari de Andrade, Anto-
nia Rozimar Machado e Rocha, Janote Pires Marques e Helena de Lima Marinho
Rodrigues Araújo. 2012. 326p. ISBN: 978-85-7282-499-6.
120. Educação musical: campos de pesquisa, formação e experiências. Luiz Botelho
Albuquerque e Pedro Rogério (Orgs.). 2012. 296p. ISBN: 978-7282-505-4.
121. A questão da prática e da teoria na formação do professor. Ada Augus-
ta Celestino Bezerra, Marilene Batista da Cruz Nascimento e Edineide Santana
(Orgs.). 2012. 218p. ISBN: 978-7282-503-0.
122. História da educação: real e virtual em debate. José Gerardo Vasconcelos, José
Rogério Santana. Lia Machado Fiuza Fialho. (Orgs.). 2012. 524p. ISBN: 978-85-
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123. Educação: perspectivas e reflexões contemporâneas. Alice Nayara dos
Santos, Ana Paula Vasconcelos de Oliveira Tahim e Gabrielle Silva Marinho (Orgs.).
2012. 191p. ISBN: 978-85-7282-491-0.

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124. Úlceras por pressão: uma Abordagem Multidisciplinar. Miriam Viviane Baron,
José Rogério Santana, Cristine Brandenburg, Lia Machado Fiuza Fialho e Marcelo
Carneiro (Orgs.). 2012 315p. ISBN: 978-85-7282-489-7.
125. Somos todos seres muito especiais: uma análise psico-pedagógica da política
de educação inclusiva. Ada Augusta Celestino Bezerra e Maria Auxiliadora Aragão
de Souza. 2012. 183p. ISBN: 978-85-7282-517-7.
126. Memórias de Baobá. Sandra Haydée Petit e Geranilde Costa e Silva (Orgs.).
2012. 281p. ISBN: 978-85-7282-501-6.
127. Caldeirão: saberes e práticas educativas. Célia Camelo de Sousa e Lêda Vascon-
celos Carvalho. 2012. 135p. ISBN: 978-85-7282-521-4.
128. As Redes sociais e seu impacto na cultura e na educação do século XXI.
Ronaldo Nunes Linhares, Simone Lucena, e Andrea Versuti (Orgs.). 2012. 369p.
ISBN: 978-85-7282-522-1.
129. Corpografia: multiplicidades em fusão. Shara Jane Holanda Costa Adad e Fran-
cisco de Oliveira Barros Júnior (Orgs.). 2012. 417p. ISBN: 978-85-7282-527-6.
130. Infância e instituições educativas em Sergipe. Miguel André Berger (Org.).
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131. Cultura de paz, ética e espiritualidade III. Kelma Socorro Alves Lopes de
Matos (Org.). 2012. 441p. ISBN: 978-85-7282-530-6.
132. Imprensa, impressos e práticas educativas: estudos em história da edu-
cação. Miguel André Berger e Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento
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133. Proteção do patrimônio cultural brasileiro por meio do tombamento:
estudo crítico e comparado das legislações estaduais — Organizadas por Regiões.
Francisco Humberto Cunha Filho (Org.). 2012. 183p. ISBN: 978-85-7282-535-1.
134. Afro arte memórias e máscaras. Henrique Cunha Junior e Maria Cecília Felix
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135. Educação musical em todos os sentidos. Luiz Botelho Albuquerque e Pedro
Rogério (Orgs.). 2013. 300p. ISBN: 978-85-7282-559-7.
136. Africanidades Caucaienses: saberes, conceitos e sentimentos. Sandra Haydée
Petit e Geranilde Costa e Silva (Orgs.). 2012. 206p. ISBN: 978-85-7282-590-0.
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