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RESUMO:
Esse artigo almeja reavaliar o significado da terriorialidade nas grandes cidades brasileiras. Das
proposições de Ratzel a territorialidade de hoje, esse conceito passou por diversas mudanças que
podem renovar as interpretações do urbano. Acreditamos que o estudo da competição e da
mobilidade nas cidades pode torná-las mais claras
PALAVRAS-CHAVE:
Território, política, competição e mobilidade.
ABSTRACT:
This article aims to reavaliate the meaning of territoriality in Brazil’s largest cities. From Ratzel’s
proposions to today’s territoriality, this concept has passed by several changes that could renew
urban intepretations. We believe that the study of competition and mobility in the cities could make
them clear to us.
KEY WORDS:
Territory, politics, competition and mobility.
vida presente, há alguma coisa misteriosa que legitimariam as novas políticas e suas áreas
que angustia o espírito; pois a aparente de influência. Portanto, o conceito de território
liberdade do homem parece aniquilada. assumiu um papel importante, uma vez que
Vemos, com efeito, no solo a fonte de toda poderia servir como base para compreensão dos
servidão. Sempre o mesmo e sempre inúmeros processos de fragmentação e união
situado no mesmo ponto do espaço, ele entre as nações.
serve como suporte rígido aos humores, às De forma análoga, a partir dos anos 80,
aspirações mutáveis dos homens, e quando os territórios passaram a ser aplicados para
lhes acontece esquecer este substrato, ele representar as atividades de movimentos sociais
os faz sentir seu poder e lhes recorda, urbanos. Com o inchamento das cidades
através de sérias advertências, que toda brasileiras na década anterior, aumentaram
vida do Estado tem suas raízes na terra. também os problemas relativos à superpopu-
Ele regra os destinos dos povos com uma lação, a falta de justiça social, a baixa qualidade
cega brutalidade. Um povo deve viver sobre de vida, a violência e a desigualdade econômica.
o solo que recebeu do destino, deve morrer O crescimento caótico que derivou dessa soma
aí, deve suportar sua lei”1 . de fatores trouxe uma pluralidade de atores e
cenários para o espaço público. Nesse sentido,
Apesar desse famoso autor ter também
o discurso sobre o território passa a envolver
estudado os “movimentos da humanidade sobre
novas possibilidades ao se tornar um elemento
a Terra”2 , é o estudo da fixação territorial que é
crucial das reivindicações nas cidades.
reconhecido mais freqüentemente como a sua
herança: a geografia. De fato, a geopolítica dos Para isso, foi necessário realizar uma
anos 50 seguiu os mesmos princípios de rediscussão da validade do estudo territorial.
território encontrados na teoria ratzeliana, As suas bases teóricas tiveram de ser
estendendo a sua influência até os anos 80. renovadas para que esse conceito pudesse
Alimentadas pelas disputas geopolíticas por realmente realizar um estudo mais rico das
zonas de exclusividade de fluxos militares e cidades. Como vimos, no passado a geografia
econômicos de um dos pólos ideológicos, trabalhou o conceito de território associado
capitalista ou comunista, as áreas periféricas de apenas a escala do território nacional, sendo
desenvolvi-mento serviram como palcos da este inteiriço, limitado apenas pelas fronteiras
tensão e da disputa por territórios. O continente com outros países, tendo o poder público como
africano, por exemplo, ficou marcado como uma única fonte de poder em relação ao controle
imensa fronteira do avanço desses blocos, espacial e sendo este controle permanente no
constituindo uma infinidade de pequenos tempo. Os novos estudos exigiram a
episódios da história da guerra fria. compreensão de que os fenômenos da
organização sócio-espacial da política eram
Porém, nos últimos 20 anos, o território
muito mais ricos do que a mera associação ao
ganhou um sentido diferente, mais amplo, para
território nacional. As novas interpretações do
abordar uma infinidade de questões pertinentes
território permitem uma visualização da cidade
ao controle físico ou simbólico de determinada
em disputa, dividida entre o poder público e os
área. Hoje um olhar geográfico sobre as
grupos organizados, sendo a expressão mais
fronteiras que separam os homens do século
concreta e dramática da metáfora da guerra.
XXI irá necessariamente revelar a pluralidade
Para entendermos como isso é possível,
das suas diferenças e a diversidade de suas
escolhemos os trabalhos de dois geógrafos:
formas de associação entre pessoas e espaços.
Sack3 e Souza4 .
O estudo dos territórios voltou a ser valorizado
na década de 90 por diversas razões. O fim do Souza vê o território como um “(...) espaço
mundo bipolarizado dos pontos de vista militar definido e delimitado por e a partir de relações
e econômico também foi fundamental para o de poder”5 , definição que possibilita o início da
desenvolvimento de novos pactos federativos compreensão do território como uma área de
Transformações no conceito de Território, pp. 119 - 126 121
influência e sob o domínio de um grupo. Para caso desse trabalho. De fato, a compreensão
Sack , o conceito de território constitui a da complexidade da atuação dos grupos
expressão de uma área dominada por um grupo organizados exige uma abordagem na qual seja
de pessoas e, através desse domínio, a possível perceber a cidade em disputa e
possibilidade de controlar, dominar ou influenciar retalhada por diversos fenômenos territoriais
o comportamento de outros. que podem se superpor no tempo e/ou no
Seguindo esse raciocínio, a territorialidade espaço, pois eles se dividem em hierarquias de
para Sack seria justamente as estratégias poder para realizar o maior controle territorial
espaciais usadas para obter esse controle. Ela possível. Através dessas hierarquias, eles
seria constituída por 3 aspectos fundamentais: multiplicam as suas ações no espaço da cidade,
seria simultaneamente uma forma de aumentando também o conflito pelo poder.
classificação de área, uma forma de controle de Vejamos brevemente dois exemplos das
acesso e ainda um modo de comunicação. Ao hierarquias desses grupos na cidade do Rio de
dizer que a territorialidade seria uma forma de Janeiro: o primeiro trata-se do tráfico de drogas,
se fazer uma classificação de área, Sack se que é dividido em grandes facções que dominam
refere ao fato de que ao se exercer uma morros e disputam a hegemonia do tráfico como
estratégia de controle de uma área, cria-se o Comando Vermelho, os Amigos dos Amigos,
instantaneamente uma limitação para o contato Comando Vermelho Jovem e o Terceiro
com quaisquer objetos ou pessoas dentro dos Comando; o segundo exemplo está nas
limites em questão, sem a necessidade de dinâmicas das torcidas organizadas de futebol,
enumerá-los. Isso se torna possível ao que se dividem em grupos e subgrupos
estabelecer um controle direto de acesso, seja (“Pelotões”, “Comandos”, “Esquadrões”, etc)
por barreiras físicas ou simbólicas, como guaritas que alteram o cotidiano das metrópoles e
ou placas. A terceira e última característica da entram em conflito (Valverde, 2002). Dentro
territorialidade está presente na sua neces- dessas duas estruturas de pontos (ou
sidade de comunicar o controle exercido, envol- subgrupos) espalhados pela cidade e unidos
vendo uma declaração de posse ou exclusão e por fluxos de mercadorias, pessoas e
às vezes também de direção no espaço. informações, podemos encontrar a essência da
Atento às proposições de Sack, Souza associação dos conceitos de território e rede
critica as limitações da geografia e propõe um proposta por Souza (1995), o qual ele chamou
novo modo de se usar esse conceito. Segundo de “território descontínuo”.
ele, uma nova forma de abordagem: Se observarmos as fronteiras desses
territórios – possivelmente, seus aspectos mais
“(...) pressupõe uma flexibilização da
claros tanto no nível simbólico quanto no nível
visão de território. Aqui, o território será um
concreto que comunicam a posse ou a exclusão
campo de forças, uma teia ou uma rede de
– nós veremos que suas dinâmicas geram
relações sociais que, a par de sua
movimentos constantes de fronteiras, que
complexidade interna, define, ao mesmo
surgem e desaparecem, se expandem e se
tempo, um limite, uma alteridade: a
retraem, e também se organizam segundo
diferença entre nós (o grupo, os membros
hierarquias. Moura7 faz um expressivo relato
da coletividade ou ‘comunidade’, os insiders)
desses fenômenos nas grandes cidades:
e os ‘outros’ (os de fora, os estranhos, os
outsiders)”6 . “Transparentes ou ostensivamente
cercadas, as fronteiras refletem o exercício
Assim, ele demonstra uma possível
da dominação e da autoridade de um povo
articulação entre os conceitos de território e de
em particular. (...). Cada vez mais presente
rede, que superaria as limitações da geografia
nas relações cotidianas das várias
clássica, tornando viável a aplicação desse
espacialidades, a fronteira tornou-se um
conceito sobre o espaço da cidade, como é o
símbolo claustrofóbico de limites (...) o
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tanto distante. Acreditamos que o territorialismo de Ratzel, muitas vezes esperamos associar ao
não significa hoje uma necessidade válida do território uma representação ontológica que
ponto de vista moral para os diversos grupos confira um sentido subjetivo que seja capaz de
sociais. Afinal, os grupos não são contê-lo e explicá-lo. Mas, nas metrópoles
necessariamente os veículos de expressão de brasileiras, encontramos exemplos e evidências
revolta e procura de um mundo mais justo, pois da relação do atual fenômeno do territorialismo
eles se mostram cada vez mais como uma com a competição pelo espaço. Aliás, a partir
possibilidade de se lucrar de diferentes formas de um olhar histórico, é justamente nos momen-
do imaginário do caos das infinitas formas de tos de crescimento excessivo da percepção da
superposição e justaposição territorial. O competição e de maior fraqueza da capacidade
domínio dos territórios, nesse caso, parece estar política de negociação, que o discurso sobre o
mais próximo a uma ausência de ação do Estado território ganha maior dimensão.
e da falta de reconhecimento de sua legitimidade Ao contrário do que argumentavam
que, ao invés de gerar bases para um novo muitos pensadores como Fukuyama (1992), o
sistema de relações entre os indivíduos, está fim do embate ideológico da guerra fria não
apenas reforçando os defeitos do sistema representou o “fim da história” e muito menos
democrático e capitalista. o fim da geografia. Dissociada dos limites da
Definitivamente, a capacidade interpre- dicotomia nos circuitos do comunismo e do
tativa do conceito de território ainda tem uma capitalismo, a competição pelo território ganhou
importância subestimada nos dias de hoje, pois novas formas e novos sentidos. Na esfera
a maior parte de suas formulações não é capaz política, tal competição no território, pelo
de expressar o movimento de suas ações com território e através do território, abre caminho
a devida fidelidade. Entre o Boden, território- para uma nova interpretação das represen-
solo de Ratzel, enraizando a identidade nacional tações sociais na cidade.
alemã a um território; a geopolítica dos anos Nesse sentido, acreditamos que, no Brasil,
de 1950, marcada pelas disputas de mercados alguns fatores como a violência urbana e o
consumidores e zonas de influência militares e avanço das dinâmicas de privatização dos
econômicas; e as múltiplas representações da espaços públicos são fundamentais para o
territorialidade nos anos 1980 e 1990, nós entendimento da cidade sob a lógica da
vemos, justamente, a compreensão de que as competição. Para vermos como isso acontece,
transformações do conceito de território devemos primeiramente aceitar a seguinte
almejam conferir atualidade a ele a partir da afirmativa: a multiplicação dos grupos territoriais
percepção do seu movimento. significa, necessariamente, a existência de
De fato, nos dias de hoje, ao contrário novos atores e que, tendo estes interesses
dos exemplos de territórios abordados bastante diversos, acabam por exigir a formação
anteriormente, os territórios são mais marcados de um novo equilíbrio urbano.
pelo movimento contínuo do que propriamente Mas o que poderia ser apenas um
pela fixação, tornando os laços de processo de reorganização é interpretado por
pertencimento com o solo muito menos muitos como uma ameaça constante aos
significativos do que antes. A justificativa para direitos dos cidadãos por estabelecer regras de
tal constatação estaria na intensidade das suas convívio que muitas vezes alteram a efetividade
dinâmicas de competição. das leis formais. De fato, alguns grupos
territoriais se valem desse expediente como
II- A competição pelos territórios uma estratégia de ação na cidade, como é o
Acreditamos que uma outra limitação ao caso da ação dos grupos que promovem o
estudo dos territórios está ligada a sua tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro.
excessiva vinculação aos fenômenos relacio- Como essa forma criminal avança procurando
nados à identidade. Novamente ligados à obra estabelecer enclaves de domínio exclusivo que
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Notas
2
Apud Gomes, Paulo Cesar C. Geografia e Iná E. (et alli) Geografia: Conceitos e Temas. Rio
modernidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995. pp.77-116
p.186. 6
Souza, op.cit., p.78.
3
Apud Gomes, op. cit, p.185. 7
Souza, op.cit., p.86.
4
Sack, Robert. Human territoriality – its theory and 8
Moura, Rosa. “Fronteiras invisíveis: o território e
history. Cambridge, Cambridge University Press, os seus limites” In: Território – ano V, nº9. Rio de
1986. 400p. Janeiro, UFRJ, 2000. p.86.
5
Souza, Marcelo J.L. “O território: sobre espaço e 9
Sobre esse debate, ver GOMES, op. cit., 2002.
poder, autonomia e desenvolvimento” In: CASTRO,
Bibliografia