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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, pp.

119 - 126, 2004

TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE TERRITÓRIO:


COMPETIÇÃO E MOBILIDADE NA CIDADE

Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde*

RESUMO:
Esse artigo almeja reavaliar o significado da terriorialidade nas grandes cidades brasileiras. Das
proposições de Ratzel a territorialidade de hoje, esse conceito passou por diversas mudanças que
podem renovar as interpretações do urbano. Acreditamos que o estudo da competição e da
mobilidade nas cidades pode torná-las mais claras
PALAVRAS-CHAVE:
Território, política, competição e mobilidade.

ABSTRACT:
This article aims to reavaliate the meaning of territoriality in Brazil’s largest cities. From Ratzel’s
proposions to today’s territoriality, this concept has passed by several changes that could renew
urban intepretations. We believe that the study of competition and mobility in the cities could make
them clear to us.
KEY WORDS:
Territory, politics, competition and mobility.

O estudo do território vem se constituindo I - Do boden ao território descontínuo


em uma tradição do pensamento geográfico nos Segundo a seminal “antropogeografia”
últimos 100 anos. Desde as proposições de de Ratzel, o território seria a expressão legal e
Ratzel, inspiradas na ecologia, no romantismo moral do Estado, a conjunção do solo (Boden) e
alemão e no imperialismo do final do século XIX, do povo, na qual se organizaria a sociedade.
esse conceito tem sido utilizado para conferir Sua territorialidade associa uma identidade
uma dimensão política de mobilidade e de específica, presumindo que não existiriam
competição à lógica espacial. Nesse sentido, subdivisões ou contradições internas a um
qualquer discussão da geografia que tenha o Estado determinado, fixo no tempo e no espaço,
território como objeto deveria, primeiramente, características que só poderiam ser modificadas
reavaliar as características essenciais desse sob o uso da força (Raffestin, 1990; Souza,
conceito, na medida em que, no mundo atual, 1995). O movimento de expansão dos territórios
as dinâmicas de mobilidade e de competição se assumiria caráter quase orgânico, como um ser
tornam cada vez mais desenvolvidas. Dessa vivo que se desenvolve e precisaria de uma área
forma, o objetivo desse artigo é realizar tal maior para ocupar. Nas palavras de Ratzel:
tarefa, que muitas vezes, é ignorada ou
simplesmente menosprezada nos trabalhos “Nesta poderosa ação do solo que se
geográficos. manifesta através de todas as fases da
História, bem como de todas as esferas da

* Aluno do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ.


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vida presente, há alguma coisa misteriosa que legitimariam as novas políticas e suas áreas
que angustia o espírito; pois a aparente de influência. Portanto, o conceito de território
liberdade do homem parece aniquilada. assumiu um papel importante, uma vez que
Vemos, com efeito, no solo a fonte de toda poderia servir como base para compreensão dos
servidão. Sempre o mesmo e sempre inúmeros processos de fragmentação e união
situado no mesmo ponto do espaço, ele entre as nações.
serve como suporte rígido aos humores, às De forma análoga, a partir dos anos 80,
aspirações mutáveis dos homens, e quando os territórios passaram a ser aplicados para
lhes acontece esquecer este substrato, ele representar as atividades de movimentos sociais
os faz sentir seu poder e lhes recorda, urbanos. Com o inchamento das cidades
através de sérias advertências, que toda brasileiras na década anterior, aumentaram
vida do Estado tem suas raízes na terra. também os problemas relativos à superpopu-
Ele regra os destinos dos povos com uma lação, a falta de justiça social, a baixa qualidade
cega brutalidade. Um povo deve viver sobre de vida, a violência e a desigualdade econômica.
o solo que recebeu do destino, deve morrer O crescimento caótico que derivou dessa soma
aí, deve suportar sua lei”1 . de fatores trouxe uma pluralidade de atores e
cenários para o espaço público. Nesse sentido,
Apesar desse famoso autor ter também
o discurso sobre o território passa a envolver
estudado os “movimentos da humanidade sobre
novas possibilidades ao se tornar um elemento
a Terra”2 , é o estudo da fixação territorial que é
crucial das reivindicações nas cidades.
reconhecido mais freqüentemente como a sua
herança: a geografia. De fato, a geopolítica dos Para isso, foi necessário realizar uma
anos 50 seguiu os mesmos princípios de rediscussão da validade do estudo territorial.
território encontrados na teoria ratzeliana, As suas bases teóricas tiveram de ser
estendendo a sua influência até os anos 80. renovadas para que esse conceito pudesse
Alimentadas pelas disputas geopolíticas por realmente realizar um estudo mais rico das
zonas de exclusividade de fluxos militares e cidades. Como vimos, no passado a geografia
econômicos de um dos pólos ideológicos, trabalhou o conceito de território associado
capitalista ou comunista, as áreas periféricas de apenas a escala do território nacional, sendo
desenvolvi-mento serviram como palcos da este inteiriço, limitado apenas pelas fronteiras
tensão e da disputa por territórios. O continente com outros países, tendo o poder público como
africano, por exemplo, ficou marcado como uma única fonte de poder em relação ao controle
imensa fronteira do avanço desses blocos, espacial e sendo este controle permanente no
constituindo uma infinidade de pequenos tempo. Os novos estudos exigiram a
episódios da história da guerra fria. compreensão de que os fenômenos da
organização sócio-espacial da política eram
Porém, nos últimos 20 anos, o território
muito mais ricos do que a mera associação ao
ganhou um sentido diferente, mais amplo, para
território nacional. As novas interpretações do
abordar uma infinidade de questões pertinentes
território permitem uma visualização da cidade
ao controle físico ou simbólico de determinada
em disputa, dividida entre o poder público e os
área. Hoje um olhar geográfico sobre as
grupos organizados, sendo a expressão mais
fronteiras que separam os homens do século
concreta e dramática da metáfora da guerra.
XXI irá necessariamente revelar a pluralidade
Para entendermos como isso é possível,
das suas diferenças e a diversidade de suas
escolhemos os trabalhos de dois geógrafos:
formas de associação entre pessoas e espaços.
Sack3 e Souza4 .
O estudo dos territórios voltou a ser valorizado
na década de 90 por diversas razões. O fim do Souza vê o território como um “(...) espaço
mundo bipolarizado dos pontos de vista militar definido e delimitado por e a partir de relações
e econômico também foi fundamental para o de poder”5 , definição que possibilita o início da
desenvolvimento de novos pactos federativos compreensão do território como uma área de
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influência e sob o domínio de um grupo. Para caso desse trabalho. De fato, a compreensão
Sack , o conceito de território constitui a da complexidade da atuação dos grupos
expressão de uma área dominada por um grupo organizados exige uma abordagem na qual seja
de pessoas e, através desse domínio, a possível perceber a cidade em disputa e
possibilidade de controlar, dominar ou influenciar retalhada por diversos fenômenos territoriais
o comportamento de outros. que podem se superpor no tempo e/ou no
Seguindo esse raciocínio, a territorialidade espaço, pois eles se dividem em hierarquias de
para Sack seria justamente as estratégias poder para realizar o maior controle territorial
espaciais usadas para obter esse controle. Ela possível. Através dessas hierarquias, eles
seria constituída por 3 aspectos fundamentais: multiplicam as suas ações no espaço da cidade,
seria simultaneamente uma forma de aumentando também o conflito pelo poder.
classificação de área, uma forma de controle de Vejamos brevemente dois exemplos das
acesso e ainda um modo de comunicação. Ao hierarquias desses grupos na cidade do Rio de
dizer que a territorialidade seria uma forma de Janeiro: o primeiro trata-se do tráfico de drogas,
se fazer uma classificação de área, Sack se que é dividido em grandes facções que dominam
refere ao fato de que ao se exercer uma morros e disputam a hegemonia do tráfico como
estratégia de controle de uma área, cria-se o Comando Vermelho, os Amigos dos Amigos,
instantaneamente uma limitação para o contato Comando Vermelho Jovem e o Terceiro
com quaisquer objetos ou pessoas dentro dos Comando; o segundo exemplo está nas
limites em questão, sem a necessidade de dinâmicas das torcidas organizadas de futebol,
enumerá-los. Isso se torna possível ao que se dividem em grupos e subgrupos
estabelecer um controle direto de acesso, seja (“Pelotões”, “Comandos”, “Esquadrões”, etc)
por barreiras físicas ou simbólicas, como guaritas que alteram o cotidiano das metrópoles e
ou placas. A terceira e última característica da entram em conflito (Valverde, 2002). Dentro
territorialidade está presente na sua neces- dessas duas estruturas de pontos (ou
sidade de comunicar o controle exercido, envol- subgrupos) espalhados pela cidade e unidos
vendo uma declaração de posse ou exclusão e por fluxos de mercadorias, pessoas e
às vezes também de direção no espaço. informações, podemos encontrar a essência da
Atento às proposições de Sack, Souza associação dos conceitos de território e rede
critica as limitações da geografia e propõe um proposta por Souza (1995), o qual ele chamou
novo modo de se usar esse conceito. Segundo de “território descontínuo”.
ele, uma nova forma de abordagem: Se observarmos as fronteiras desses
territórios – possivelmente, seus aspectos mais
“(...) pressupõe uma flexibilização da
claros tanto no nível simbólico quanto no nível
visão de território. Aqui, o território será um
concreto que comunicam a posse ou a exclusão
campo de forças, uma teia ou uma rede de
– nós veremos que suas dinâmicas geram
relações sociais que, a par de sua
movimentos constantes de fronteiras, que
complexidade interna, define, ao mesmo
surgem e desaparecem, se expandem e se
tempo, um limite, uma alteridade: a
retraem, e também se organizam segundo
diferença entre nós (o grupo, os membros
hierarquias. Moura7 faz um expressivo relato
da coletividade ou ‘comunidade’, os insiders)
desses fenômenos nas grandes cidades:
e os ‘outros’ (os de fora, os estranhos, os
outsiders)”6 . “Transparentes ou ostensivamente
cercadas, as fronteiras refletem o exercício
Assim, ele demonstra uma possível
da dominação e da autoridade de um povo
articulação entre os conceitos de território e de
em particular. (...). Cada vez mais presente
rede, que superaria as limitações da geografia
nas relações cotidianas das várias
clássica, tornando viável a aplicação desse
espacialidades, a fronteira tornou-se um
conceito sobre o espaço da cidade, como é o
símbolo claustrofóbico de limites (...) o
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mundo nunca viveu tanto controle sendo Já o genoespaço estaria fundado na


exercido em seus tantos fragmentos”. crença de que todos os indivíduos de um grupo
(usa-se também a palavra comunidade) têm
Dessa forma, a dinâmica da constituição interesses iguais, uma vez que são cultural-
e destruição diária de inúmeros territórios no mente originários de uma combinação única,
espaço público do Rio de Janeiro parece ser comum entre eles e o território. A única
sintomática do choque de percepções do diferenciação possível é entre cada um dos
significado da política e do espaço. Devido a grupos, desconsiderando qualquer outro nível
isso acreditamos que o conceito de território é de análise. O território expressaria muito mais
capaz de trazer elementos de importância do que a relação formal de pertencimento e de
inigualável na construção de novas concepções legalidade presente na definição do
sobre as cidades. nomoespaço, sendo, antes de tudo, o “solo no
É justamente nesse sentido que Gomes qual floresceu” tal relação. O inegável teor
propõe o nomoespaço e o genoespaço. O ecológico é proposital, pois revela uma ligação
primeiro seria um conceito que assume um mais passional com o terreno e procura
pacto territorial fundado no cumprimento de um “naturalizar” o intrincado processo social de
contrato social nos moldes daquele proposto formação da coletividade. Nessa concepção,
por Rosseau. Ele parte do princípio que todos toma-se por lei a tradição e os costumes
os indivíduos dentro desse acordo que envolve presentes nesses grupos e que são encon-
espaço e política são autônomos e infinitamente trados nessa extensão de área (e apenas
diferentes entre eles. Isso significaria que seus nela). Portanto, as leis são bastantes informais
interesses dentro do Estado seriam bastante e dependem da continuidade dos laços de
diversos e que só se poderia garantir a unidade e solidariedade expostos.
segurança de todos através de um equilíbrio No passado alguns sociólogos como
do conjunto ditado pelo cumprimento de suas Tönies 8 trabalhavam essas diferenças de
leis na área em questão. Nessa concepção se associação entre pessoas e espaço de maneira
admite até mesmo que o sucesso de qualquer simplificada, como se elas expressassem
interesse (seja ele privado ou público) dentro somente as diferenças de desenvolvimento do
do conjunto depende de uma postura correta campo e da cidade, ou do antigo e do novo.
em relação às leis. Tal declaração está fundada Mas nos dias de hoje podemos observar a
na crença de que o desvio de conduta pode presença dessas duas concepções de relação
garantir um ganho imediato, mas compromete entre indivíduos e espaço nas grandes cidades,
os maiores benefícios desse modelo, como a como o Rio de Janeiro. Para o nosso trabalho
liberdade e os direitos e, portanto, age em tal constatação é fundamental ao associar
detrimento dos seus próprios interesses dialeticamente o recuo da cidadania e as
privados. transformações do espaço público a fenômenos
A produção do espaço estaria então que têm o controle territorial como característica
voltada para estabelecer um equilíbrio comum. Estando a cidade totalmente tomada
normalmente não muito bem definido entre o por essas dinâmicas territoriais, existe
bem-estar público e os direitos privados, mas claramente um imaginário de guerra no qual
que está por princípio vinculado a idéias de podemos observar: a recusa a partilhar, a
equivalência e isonomia. O território seria aceleração do processo de privatização dos
apenas a área na qual esse conjunto de regras espaços públicos.
universais estaria sob vigor e o espaço público Ao que parece, o “reencantamento do
seria a grande arena da política e de todas as mundo” proposto por Maffesoli (1997), no qual
relações sociais, significando a essência e o ele proclama que nós vivemos em um momento
sucesso do nomoespaço. histórico de renovação do pacto territorial que
traria uma “nova harmonia”, ainda está um
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tanto distante. Acreditamos que o territorialismo de Ratzel, muitas vezes esperamos associar ao
não significa hoje uma necessidade válida do território uma representação ontológica que
ponto de vista moral para os diversos grupos confira um sentido subjetivo que seja capaz de
sociais. Afinal, os grupos não são contê-lo e explicá-lo. Mas, nas metrópoles
necessariamente os veículos de expressão de brasileiras, encontramos exemplos e evidências
revolta e procura de um mundo mais justo, pois da relação do atual fenômeno do territorialismo
eles se mostram cada vez mais como uma com a competição pelo espaço. Aliás, a partir
possibilidade de se lucrar de diferentes formas de um olhar histórico, é justamente nos momen-
do imaginário do caos das infinitas formas de tos de crescimento excessivo da percepção da
superposição e justaposição territorial. O competição e de maior fraqueza da capacidade
domínio dos territórios, nesse caso, parece estar política de negociação, que o discurso sobre o
mais próximo a uma ausência de ação do Estado território ganha maior dimensão.
e da falta de reconhecimento de sua legitimidade Ao contrário do que argumentavam
que, ao invés de gerar bases para um novo muitos pensadores como Fukuyama (1992), o
sistema de relações entre os indivíduos, está fim do embate ideológico da guerra fria não
apenas reforçando os defeitos do sistema representou o “fim da história” e muito menos
democrático e capitalista. o fim da geografia. Dissociada dos limites da
Definitivamente, a capacidade interpre- dicotomia nos circuitos do comunismo e do
tativa do conceito de território ainda tem uma capitalismo, a competição pelo território ganhou
importância subestimada nos dias de hoje, pois novas formas e novos sentidos. Na esfera
a maior parte de suas formulações não é capaz política, tal competição no território, pelo
de expressar o movimento de suas ações com território e através do território, abre caminho
a devida fidelidade. Entre o Boden, território- para uma nova interpretação das represen-
solo de Ratzel, enraizando a identidade nacional tações sociais na cidade.
alemã a um território; a geopolítica dos anos Nesse sentido, acreditamos que, no Brasil,
de 1950, marcada pelas disputas de mercados alguns fatores como a violência urbana e o
consumidores e zonas de influência militares e avanço das dinâmicas de privatização dos
econômicas; e as múltiplas representações da espaços públicos são fundamentais para o
territorialidade nos anos 1980 e 1990, nós entendimento da cidade sob a lógica da
vemos, justamente, a compreensão de que as competição. Para vermos como isso acontece,
transformações do conceito de território devemos primeiramente aceitar a seguinte
almejam conferir atualidade a ele a partir da afirmativa: a multiplicação dos grupos territoriais
percepção do seu movimento. significa, necessariamente, a existência de
De fato, nos dias de hoje, ao contrário novos atores e que, tendo estes interesses
dos exemplos de territórios abordados bastante diversos, acabam por exigir a formação
anteriormente, os territórios são mais marcados de um novo equilíbrio urbano.
pelo movimento contínuo do que propriamente Mas o que poderia ser apenas um
pela fixação, tornando os laços de processo de reorganização é interpretado por
pertencimento com o solo muito menos muitos como uma ameaça constante aos
significativos do que antes. A justificativa para direitos dos cidadãos por estabelecer regras de
tal constatação estaria na intensidade das suas convívio que muitas vezes alteram a efetividade
dinâmicas de competição. das leis formais. De fato, alguns grupos
territoriais se valem desse expediente como
II- A competição pelos territórios uma estratégia de ação na cidade, como é o
Acreditamos que uma outra limitação ao caso da ação dos grupos que promovem o
estudo dos territórios está ligada a sua tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro.
excessiva vinculação aos fenômenos relacio- Como essa forma criminal avança procurando
nados à identidade. Novamente ligados à obra estabelecer enclaves de domínio exclusivo que
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vem se multiplicando em número e em tamanho, subjetiva entre terrenos e habitantes.


nos sentimos tentados a pensar todo o espaço Enfim, a multiplicação dos grupos territo-
da cidade como objeto de disputa constante riais promove direta e indiretamente um recuo
entre o poder público e o poder paralelo dos acelerado do espaço público, ao potencializar
grupos organizados. os processos de privatização e de segregação
Seguindo na análise desse exemplo, tal nos espaços da cidade, elevando-os a
quadro tem como conseqüência a mudança no patamares poucas vezes vistos. Ela promove o
equilíbrio das forças na cidade que, se persistir recuo do espaço público através do controle de
instável, acabará influenciando os moradores e sua extensão ou mesmo da ameaça do controle,
pode causar o rompimento dos valores urbanos diminuindo o número de fóruns políticos ao
como a civilidade e a cidadania. O primeiro valor expor a inutilidade dessas ações frente às
perdido é a concepção da cidade como o “lugar dinâmicas de apropriação. Nesse sentido, para
da segurança”, uma vez que esta imagem é nós, as atuais forças de modificação dos
talvez a mais frágil de todas aquelas ligadas, já espaços na cidade têm um caráter
que qualquer evento extremo e ao acaso podem excessivamente exacerbado de segurança:
significar o seu abandono. Na sua duração, é muito mais do que a mera expressão do
capaz de induzir e de permitir a existência de sentimento de insegurança ou a necessidade
formas de interações sócio-espaciais que não de proteção, este caráter revela um processo
podem ser vistas quando essa imagem se perde. de autodestruição progressiva ao minar tanto
Quando a imagem da segurança é deixada de as relações ilegais entre seus cidadãos quanto
lado, significa que alguns outros laços divididos as legais, a partir do avanço de um planeja-
entre habitantes da cidade podem ser cortados mento quase “antiespacial” para as cidades.
e reorganizados sobre outras bases. Na nossa Na nossa interpretação, essas ações
concepção, a recusa à partilha e a insegurança territoriais prejudicam a permanência e o
na cidade é justamente o primeiro passo para desenvolvimento da comunicação e da circulação
avançar no descarte sucessivo dos outros dos habitantes da cidade. Tal perspectiva pode
“lugares”. Afinal, se não há a ilusão da ser comprovada através da multiplicação de
segurança, pouco a pouco as dinâmicas sociais muros, armas, cercas, placas, bandeiras etc que
começam a se retrair e a diminuir suas vem tornando a cidade inacessível como um
amplitudes, tentando garantir os seus todo. Aos poucos, como vimos, as barreiras
interesses privados (Valverde, 2002). tornam a vivência pública uma mera questão
Seguindo no esclarecimento dessa cadeia coletiva, ou da impossibilidade da dissociação
de eventos, podemos lembrar que a expansão total, e acreditamos que em seguida podem
dos territórios da criminalidade e/ou da estimular a um maior rompimento com a política
sociedade civil, significam um processo de através da negação da validade e da
“coisificação” do espaço. Ao contrário do legitimidade dos fóruns públicos.
argumento “culturalista” de Maffesoli (1997), Dentro de tudo isso, nós consideramos
que credita a existência de novos territórios a que uma das conseqüências mais evidentes do
um processo de “reencantamento do mundo” territorialismo urbano como um vetor de
no qual as pessoas encontrariam nas suas mudança das cidades estaria na associação do
novas dinâmicas territoriais o “amor perdido” e espaço público como espaço do conflito e da
a sua identidade no caos das metrópoles do competição, rompendo parcialmente o sentido
século XX e XXI, nós acreditamos que, por de cidade aberta, democrática e capaz de
exemplo, o foco do territorialismo nas grandes combinar de maneira harmoniosa as diferentes
cidades brasileiras, e, em especial, a cidade do representações sociais. Esse sentido ideal está
Rio de Janeiro, está mais concentrado na relação se tornando cada vez menos visível nas cidades,
de posse dos espaços públicos como uma restrito a certas áreas e horários, tornando a
estratégia de defesa, ao invés de uma ligação experiência urbana cada vez mais complexa.
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III - Os territórios em movimento estádios não são mais os únicos palcos de


Para sobreviver às dinâmicas territoriais representação da territorialidade das torcidas,
de competição nas metrópoles brasileiras e a que, como colocou GOMES (2002), “transbordou”
sua tendência de desregulação do binômio os limites dos estádios e avançou na
identidade-território, os seus habitantes são apropriação no espaço da cidade.
forçados a compreender e a interagir com Nesse sentido, não é mais no ponto de
territórios em constante movimento. Isso fixação que se dá a plenitude do seu
significa que, em um mesmo dia, em um mesmo comportamento territorial: é no trajeto que os
lugar, dependendo da hora ou de circunstâncias leva aos estádios em que seus participantes
especiais, um cidadão pode perceber diversos alcançam esse clímax. De diversos pontos da
sinais de territorialização. Mas, além da mera cidade partem pequenos grupos de torcedores,
constatação da superposição dos territórios nas sub-grupos das torcidas organizadas que se
metrópoles, ou das dificuldades de se viver em dividem de acordo com a contigüidade dos
uma dinâmica urbana que exige um bairros (são os comandos, pelotões, famílias,
cosmopolitismo suficientemente desenvolvido núcleos etc), rumo ao Estádio do Maracanã.
para permitir a circulação por diferentes pontos Muitas vezes, tais grupos se valem do poder de
da cidade, somos tentados a pensar que os intimidação para não pagar as passagens nos
próprios territórios podem ser forçados a se ônibus e/ou nos trens e também tentam
deslocar. convencer o motorista a ignorar as paradas de
Tal afirmação não é banal: a possibilidade ônibus e as estações de trem. O meio de
da inversão do movimento, saindo da figura dos transporte se torna a expressão territorial
homens e passando para os limites de um daquele sub-grupo, no qual os torcedores
território, representa um rompimento cada vez expõem suas bandeiras e faixas nas janelas,
mais acentuado no princípio da fixação do cantam e coagem os torcedores adversários que
espaço. Acreditamos que tal proposição é passam pelas ruas (VALVERDE, 2002). Isso não
aceitável na medida em que a competição força significa que os ônibus e os trens sejam
as dinâmicas territoriais a se contraírem, às conservados como áreas de afinidade: essas
vezes sumirem e reaparecerem, e também a lotações são constantemente depredadas, pois
projetarem as suas relações de poder em uma não é a fixação que confere o valor, e sim o
área diferente e distante da área original. Nosso movimento.
ponto aqui é destacar que essa mobilidade Esse exemplo radical da territorialidade
estimula fundamentalmente duas grandes em movimento é apenas um em meio ao
transformações: a) transformação do sentido mosaico de representações que dominam os
do território; e b) transformação do sentido de espaços públicos das grandes cidades
cidade. brasileiras. Alguns se fixam no território, outros
Podemos apontar mudanças de sentido se movem constantemente, de acordo com o
no conceito de território na medida em que o grau de competitividade e de resistência às
movimento se torna cada vez mais o fim, e não dinâmicas.
o meio de se constituir o território. Um bom Dessa forma, acreditamos que tal
exemplo está na territorialidade das torcidas conjunção de territorialidades engendra
organizadas de futebol na cidade do Rio de conseqüências para o sentido de cidade, pois
Janeiro. Suas dinâmicas de confrontação são elas se chocam e se superpõem no tempo e no
fortemente limitadas nos estádios hoje em dia, espaço, e vem definindo uma nova forma de se
controladas pela Polícia Militar e o GEPE (Grupo pensar a experimentação do urbano. A cidade,
Especial de Policiamento dos Estádios). Com mais do que nunca, é o palco de representações
isso, aparentemente, o poder de das diferenças, mas o movimento contínuo de
territorialização desses grupos estaria bem mais pessoas tentando fugir das dinâmicas
restrito do que era no passado. Porém, os territoriais ou, ao contrário, tentando garanti-
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las, dá à circulação significações mais ricas e destacado na compreensão da cidade atual,


mais relevantes do que antes. Portanto, circular abrimos caminho para novas interpretações do
em certas áreas, em certas direções e em certos sentido de cidade, pois será nesses movimentos
horários podem ser atos muito significativos. Ao que iremos transparecer a riqueza de nossa
aceitarmos que a circulação ganha um papel organização sócio-territorial.

Notas
2
Apud Gomes, Paulo Cesar C. Geografia e Iná E. (et alli) Geografia: Conceitos e Temas. Rio
modernidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995. pp.77-116
p.186. 6
Souza, op.cit., p.78.
3
Apud Gomes, op. cit, p.185. 7
Souza, op.cit., p.86.
4
Sack, Robert. Human territoriality – its theory and 8
Moura, Rosa. “Fronteiras invisíveis: o território e
history. Cambridge, Cambridge University Press, os seus limites” In: Território – ano V, nº9. Rio de
1986. 400p. Janeiro, UFRJ, 2000. p.86.
5
Souza, Marcelo J.L. “O território: sobre espaço e 9
Sobre esse debate, ver GOMES, op. cit., 2002.
poder, autonomia e desenvolvimento” In: CASTRO,

Bibliografia

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