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Nós que fingimos não ver que a história é escrita com sangue
temos os olhos assombrados pelo fogo
e os egos inflamados pelo medo
Nós esquecemos que as guerras são as mães dos senhores
mas também a praticam os desvalidos
Nós que das matas só queremos saber das lendas inocentes
esquecemos o canibalismo dos índios
Outros tantos aplaudem como se fossem filmes
Todos nós ficamos cegos pelas sirenes
A barbárie nos come pelos ouvidos
Inventário
Se existe um deus
esse homem barbado
de quem há que ser temente
ele ama os viados
as putas
cães e cadelas das ruas
ele ama os filhos delas
e os gatos
e as bruxas
Se existe um deus
dessa vez menos carne
mais consciência mais luta
esse deus menos acabado
ama as mulheres
os surdos e cegos
e mudos de nascença
ele ama as abelhas
os ratos e os buracos
cavernas e vulvas
Se existe afinal um deus
que não se possa dizer
gênero
número e grau
se for só vento
flor que nasceu no asfalto
curva de rio
pensamento
essa coisa que se chama por tanto nome
ama as travestis
o hospício todo
índias e escravos
as amas de leite
os ônibus lotados
mas ama mesmo quem não sabe
quem é deus
Um sonho
orgasmos públicos
ruídos múltiplos
gozem nas máquinas
derramem-se no asfalto
a poesia dos seus líquidos
precisa vencer o ódio
o sinal fechado
o cidadão de bem
o inútil acordo entre nós
e a cidade
isso não deu certo
nosso sexo comprova
que as leis são para serem
lambuzadas de acasos
Em toda esquina
cheia de mim
tu me exageras em teu corpo
eu te mereço
miro em teu meio
todo meu poder de fogo
e tu transborda-me
eu derramo
liquido-me
mato e morro em teu aroma
de vertigem
um escândalo
deixo-me em ti em toda esquina
Natown
II
o deus que pinta o meio das flores
faz caminho no infinito das estrelas
pingos nas folhas
bicos nas tetas
e o casulo das borboletas
não é deus
é deusa
III
Morrer e não morrer
são só galhos da mesma árvore
É preciso comer o fruto
para libertar as sementes
Soluço de estrela
Procedo o parto de um planeta em meu ventre e as dores de dar-se a luz são mais
intensas durante a noite, quando a lua é mãe de todos os caminhos.
O sol cumprimenta minha cabeça sem a classe exigida e em todo meu corpo padeço
de falta de água para ferver os poros. Eles secam assim como eu, num deserto noturno
de vidas longas e causas breves.
Eu quero engolir o mundo e esqueci como é que se mastiga.
Tenho a pressa de um inseto que não quer perder a próxima flor para o tempo. Tenho
a sede do peixe que quase sente o gosto da água.
Cuidado, se não engasga. É o que me diz uma fada tatuada.
Eu ouço, eu sinto dor, eu tiro cartas. Tudo me diz pra ter menos coragem e mais calma.
Sou inteira e atravessada por diagnósticos silenciosos, sintomas tropicais e curas
cósmicas.
O planeta que nasce dentro de mim se recusa a orbitar, já vem ao mundo querendo ser
estrela, calda de cometa, raio de luz.
A sede do peixe
esta súbita vontade de dizer ao mundo
tudo que eu não entendo
e beijar os corpos sem enxergá-los
mais que a metade
gostaria que em mim não tocassem
os tambores da minha eterna falta de vontade de parar
porque eu não serei jamais satisfeita
porque eu não serei jamais completa
não termino coleções
e sempre quero entender as pessoas difíceis
no fundo dos meus olhos moram feras
que de fome jamais morreriam
mas famintas vivem e não tem boca
não tenho medo de mergulhar
no fundo da tua garganta
e pintar minhas entranhas com a angústia do destino
porque eu não serei jamais tranquila
porque eu não serei jamais singela
Corpo de terra
saúdo a tarde que se vai
pela vista dos coqueiros
quase um deserto verde de tão certo
um manancial de cores
preenche-me de ausências
e tudo parece ser em linha reta
nunca adivinho o segredo
das nuvens nas quais me elevo
por sorte sou corpo de terra
não sei de mim
mas existo.
toda obra de arte da natureza é completa.
minha avó anda firme com os pés na terra, na beira do rio, no silêncio do coração da
mata, no peito que bate na mangueira que abriga o espírito de uma grande mulher. ela
se lembra que seu pai rezava os bichos picados de cobra e que salvou seu cachorro.
meu bisavô que não sei o nome tem minha bênção onde quer que esteja, o que não lhe
deu chance de me abençoar. minha tia que é mãe e avó e mãe duas vezes, lembra que
meu avô, seu pai, lhe deu os nomes das árvores. quando pergunto ela me dá o nome
da candeia e da quaresminha, diz que vai lembrar a da flor amarela que agora não
consegue. confirma com sua mãe, minha avó, que seu pai sabia das plantas porque
era reizeiro. minha avó, filha de rezador e mulher de rei. em suas veias que hoje
parecem coladas por cima de sua pele, já passaram folhas, filhos, vida e morte. seu
cachorro ofendido pela cobra, por sorte foi salvo e em meio a tantas outras, ela
também não foi ofendida. mas perdoaria se fosse.
Poeira
sobrevoo-me
em busca da melhor versão
que de mim eu fiz
deparo-me com arrepios antigos
perfumes exatos
a solidão de olhar uma mosca esfregando as patas
enquanto desisto de parecer melhor dessa vez
sou apenas o esboço de um grande plano
seria bom me acostumar a ser feliz assim
Para que a poesia exista
Quando me deixas
de memórias entrelaçadas
Quando me deixas
me enchem o peito
Se eu te busco
é porque há muito já não sei me ater
ao que me é dado
ao teu lado eu sou mulher
espírito animal
criatura da magia do mar
criadora da magia do amor
Se eu te busco
é porque de tudo que tenho
não sei o que fazer
com as tantas que já fomos
além de querê-las como um fim
um filme reprisado
aquele bem estar da infância:
só há um roteiro para o que já se viu
Se eu te busco
é porque sou capaz de escrever um poema
as três da manhã
e mesmo que ele não te encontre
tu sabes que ele é o melhor de mim
A sina do poeta é nunca receber palavra que pague a que escreve.
Entrudo
Na selva contorcida
Como os troncos do meio do Brasil
Na cama como na vida
Espasmódica
Um raio que me parte em mil
Luzes a riscar meu céu
Como aquele chá de cometas com mel
Que a gente sente o gosto sem beber
Abelha quem te faz sou eu
Beija minha flor e voa
Sonho faminto
arco-íris na tela
meu amor te dou aos goles
a fresta de sol na janela
prova que na tarde
o amor mais quente é o nosso
carros passam
o caos da cidade e o cansaço
e aquela calma que nos cobre
teu gosto era mais cheiro
teu cheiro um manancial de flor
como um istmo
minha língua de terra apertada
entre teus mares sagrados
amor e medo
em todos os monstros marinhos acredito
à todos os heróis bastardos eu falo
soltem as rédeas deste cavalo
deus se desvela na cópula do infinito
Noite partida