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CONCLUSÃO DA I OBRA
PROBLEMAS DO FUTURO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 1
I. A VERDADE ........................................................................................................................................................... 8
II. A PERSONALIDADE OSCILANTE E A VISÃO DE OUTRAS VERDADES ............................................ 12
III. EXPERIÊNCIAS EM BIOLOGIA TRANSCENDENTAL............................................................................ 15
IV. UM CASO VIVIDO ............................................................................................................................................ 19
V. A ECONOMIA SUPERNORMAL ..................................................................................................................... 22
VI. LUTA E SELEÇÃO ........................................................................................................................................... 26
VII. O MAIS FOR'I'E .............................................................................................................................................. 29
VIII. A METAMORFOSE ....................................................................................................................................... 32
IX. A TÉCNICA DA EVOLUÇÃO ......................................................................................................................... 37
X. O PENSAMENTO CRIADOR............................................................................................................................ 40
XI. LIVRE-ARBÍTRIO E DETERMINISMO ....................................................................................................... 41
XII. EQUILÍBRIOS .................................................................................................................................................. 45
XIII. EVASÕES ........................................................................................................................................................ 49
XIV. INFERNO E PARAISO .................................................................................................................................. 52
XV. DEUS E UNIVERSO (I Parte) ......................................................................................................................... 56
XVI. DEUS E UNIVERSO (II Parte) ...................................................................................................................... 62
XVII. AS ÚLTIMAS ORIENTAÇÕES DA CIÊNCIA .......................................................................................... 67
XVIII. O “CONTÍNUO” ESPAÇO-TEMPO E A EVOLUÇÃO DAS DIMENSÕES ........................................ 72
XIX. O ESPAÇO-CURVO E A SUA EXPANSÀO ................................................................................................ 76
XX. COM A CIÊNCIA PARA O INCONCEBÍVEL ............................................................................................. 80
XXI. A CIÊNCIA NA DESCOBERTA DE DEUS ................................................................................................. 83
XXII. O DRAMA DE QUEM CRÊ ......................................................................................................................... 86
ASCENSÕES HUMANAS
COMENTÁRIOS
ASCENSÕES HUMANAS é o universo. Segue-se daí que não é possível tratar nenhum ar-
gumento isoladamente, porque cada um reclama a consideração
de todos os outros, com os quais tem pontos de contato, impon-
I. O PRINCÍPIO DE UNIDADE do-se assim a necessidade de localizá-lo com relação a todos os
problemas do universo. Quando se passa para um novo proble-
Depois de haver, no volume anterior, examinado os proble- ma, torna-se indispensável relacioná-lo a todos os precedente-
mas psicológico, filosófico e científico, encaminhamo-nos ago- mente desenvolvidos, porque se sente a cada passo uma rede de
ra para novas regiões do pensamento. contatos recíprocos que, em um universo uno, faz com que, de
Nos capítulos do volume precedente1, desenvolvemos vários qualquer ponto deste, todos os demais pontos sejam notados. É
esta impossibilidade de isolar qualquer caso que o faz apresen-
conceitos contidos em A Grande Síntese. Foram assim confir-
tar-se a nós sempre circundado por um cinturão de outros casos,
madas varias afirmativas científicas, que se podem encontrar
que necessitam ser tomados em consideração. Este é o motivo
especialmente nos capítulos XII, XIII e XLVI, bem como no
pelo qual, nesta nossa exposição, veremos reaparecer com fre-
Cap. XCVI da obra citada. Vimos, desta forma, os últimos re-
quência os mesmos conceitos, o que poderá induzir o leitor de-
sultados da ciência objetiva confirmarem os conceitos aponta-
savisado a concluir que houve repetições desnecessárias. Trata-
dos pela intuição. Ali, procuramos fortalecer a previsão intuiti-
se, ao invés disto, do retorno ao mesmo caso para observá-lo di-
va com especulações em todos os campos, ainda os mais diver-
ferentemente, ora de frente, ora de lado, ora de cima, ora de
sos. E, de cada um destes, obtivemos a confirmação desejada,
baixo, ora em função desse ou daquele fenômeno, ora em um
para tornar válida a visão sintética fundamental. Dado que
ponto ou posição do organismo universal, ora em uma outra,
qualquer ramo do conhecimento humano não é senão uma visão
pois é muito importante estabelecer as conexões e realçar as re-
parcial do universo, dado que o objeto observado, ainda que
lações com os outros casos e com o todo.
muitos sejam os pontos de vista diversos, é único, torna-se ine-
As maiores descobertas podem nascer apenas por se terem
vitável que estas visões parciais e particulares, se não forem
encontrado relações novas entre fatos velhos. O universo é uno,
torcidas por preconceitos e absolutismos, devam finalmente
e não é possível, em nenhum instante, deixar de encará-lo como
convergir e fundir-se numa única visão harmônica. É certo que
um todo. É difícil, pois, concatenar numa elaboração lógica e
o pensamento sintético de hoje deve possuir, senão nos deta-
sistemática aquilo que, apresentando-se como um bloco único e
lhes, pelo menos em seus últimos resultados, todo o conheci-
compacto de coexistência de todos os fenômenos, rebela-se con-
mento moderno. Se, antigamente, o filósofo, desdenhando o tra a exemplificação parcial e sucessiva. Esta volta frequente aos
contato com os fenômenos, reputados coisa impura, podia es- conceitos básicos, que, como dissemos, pode parecer repetição,
pecular apenas no campo das puras abstrações da lógica, hoje é devida à nossa orientação convergente e centrípeta, e não di-
ele deve levar em consideração toda a riquíssima contribuição vergente e centrífuga; resulta da nossa contínua preocupação de
oferecida pelos inúmeros ramos particulares em que se divide a unidade, a fim de permanecermos coligados ao único centro de
ciência, cada qual no seu campo de pesquisa, como resultado da todas as coisas, encarando estas apenas em função deste, do qual
indagação objetiva. Estes ramos do saber humano nos apare- dependem. Em vez da concatenação lógica, o pensamento de
cem, de fato, como disciplinas circunscritas no âmbito restrito quem observa o universo procede, em nosso caso, segundo a tra-
do particular e, por conseguinte, fragmentárias e até divergen- jetória típica dos movimentos fenomênicos (cfr. A Grande Sínte-
tes, mas o objeto é único: trata-se do mesmo universo unitário, se, Cap. XXIV, fig. 4), isto é, por retornos cíclicos que, progres-
em que todos os caminhos conduzem ao mesmo centro. Por es- sivamente, elevam a posições sempre mais altas o ponto de par-
ta razão, pode haver discrepância, por exemplo, entre revelação, tida, seguindo as oscilações de uma onda. O pensamento tam-
religião, filosofia, ciência etc., mas isto apenas enquanto estes bém obedece a esta lei universal dos fenômenos. Todo conceito,
ramos do conhecimento forem ainda involuídos e se apresenta- realmente, é atravessado muitas vezes e, cada vez, se aprofunda
rem no atual estado elementar, pois é evidente que, sendo idên- mais, de modo a surgir ampliado e coligado a outros conceitos
tico para todos o livro em que se abeberam, eles, ao progredi- novos e mais afastados. Da primeira vez, ele surge genérico,
rem, não poderão acabar dizendo senão a mesma coisa. Efeti- como vista panorâmica de conjunto; depois aparece diferencia-
vamente estamos vendo, na presente quadra, a ciência evolver do, com particulares que emergem e se distinguem com indivi-
além do materialismo, abrindo caminho para a verdade do espí- dualidade autônoma. O seu desenvolvimento detalhado não se
rito, já proclamada pelas religiões e filosofias. pode verificar senão a seguir, pois que, de outra forma, prejudi-
É justamente este sentido de unidade que domina a presente caria o aspecto conjunto da primeira visão. Por este mesmo mo-
obra. Daqui resulta a grande dificuldade de isolar qualquer fe- tivo, o desenvolvimento de tantos temas, apenas acenados em A
nômeno, seja qual for a sua natureza, do restante do todo, mes- Grande Síntese, não era possível naquela ocasião, pois divagarí-
mo com relação a aspectos que pareçam de uma ordem muito amos em digressões que teriam fragmentado a unidade da expo-
afastada. Quem concebe o universo com mentalidade sintética, sição, além do mais a visão não havia adquirido os detalhes que
e não analítica, encarando-o como um todo orgânico, e não co- só subsequentemente poderiam vir a lume. Assim compreende-
mo um oceano de fenômenos isolados, não pode deixar de per- se a necessidade de retomar cada tema em lances sucessivos, pa-
ceber, qualquer que seja o ponto do mundo fenomênico que ele ra fazê-lo progredir. Desta maneira, progressivamente, dilata-se
observe, que a multidão dos casos afins ao caso tomado por ob- o nosso conhecimento, tanto em amplitude como em penetração,
jeto de estudo acumula-se em derredor, para se fazer ouvir tam- e, assim, partindo dos princípios gerais, cada vez mais nos apro-
bém a sua voz. Um fenômeno isolado é uma abstração nossa, ximamos da atuação prática da nossa vida.
por necessidade de estudo, que não corresponde à realidade. Finalmente, também é levado a encontrar repetições nesta
Assim como não é possível observar nenhum fenômeno com- exposição quem, em sua leitura, procura apenas o conceito,
pletamente isolado, sem que nele repercutam e influam tantos pouco se importando em transformá-lo em ação na própria vi-
outros fenômenos, inclusive o próprio fenômeno que o obser- da. Ora, estes escritos não foram feitos para serem somente li-
vador representa, também não é possível enfrentar e solucionar dos, mas sobretudo para serem aplicados, pois que não consti-
um problema particular sem conhecer a sua conexão com mui- tuem uma ginástica intelectual, um treinamento literário, e só
tos outros problemas e resolver todos eles, até ao máximo, que começam a revelar sentido quando forem vividos, porque en-
tão, e só então, poderão ser compreendidos. Quem simplesmen-
1
Problemas do Futuro. (N. do T.) te os ler, sem aplicá-los em si, não poderá dizer que os compre-
90 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
endeu. Sim, trata-se de vida, de conceitos-ação, de pensamento- ponentes, mas é a resultante da sua organização, isto é, alguma
força, trata-se de um verdadeiro dinamismo concentrado na pa- coisa qualitativamente em tudo diferente. E assim se prossegue
lavra, à guisa de um explosivo capaz de imensa expansão em até à unidade máxima, Deus, que certamente não é a soma de
ambiente apropriado; trata-se de conceitos-germe, capazes de todos os elementos do universo, mas algo completamente dife-
enorme desenvolvimento se caírem em solo fecundo. Quando, rente e muito mais, não só por ser unidade-síntese, mas também
pois, o leitor achar que se encontra diante de uma repetição, em porque, neste ponto, o ciclo dos efeitos se esgota, confundindo-
vez de exclamar: ―mas isto já foi dito e eu já o li‖, diga: ―mas se com a causa, que assim permanece eterna e absoluta, trans-
ainda não fiz isto, e esta repetição deve me induzir a pô-lo em cendendo além de todas as suas manifestações imanentes, além
prática‖. Quem ler este livro como o fez com todos os outros, de sua natureza exaurível, que opera no limitado.
por curiosidade ou por cultura, sem realmente pensar em vivê- A ciência e a lógica, que nos permitiram chegar a estes
lo, perde o tempo. A leitura aqui consiste em assimilar e apli- princípios, nos guiarão em suas importantes aplicações. O pro-
car. Ela se completa na maceração, aperfeiçoa-se na maturação gresso é, pois, sinônimo de unificação, ou seja, a evolução não
e conclui-se na catarse e na sublimação. se cumpre apenas individualmente, porque, tão logo se tenha
Justamente pelo principio de unidade que domina em todo o revelado neste sentido, manifesta-se reorganizando rapidamente
universo – aquele monismo em que nos aprofundamos nos ca- os elementos em unidades coletivas. Hoje, a identidade de inte-
pítulos precedentes2 e que encontra confirmação na ciência – resses começa a irmanar em grupos variados os homens de todo
constatamos que os princípios universais e as grandes coisas es- o mundo, num sentido coletivo antes ignorado, pelo menos nas
tão coligadas com as pequenas do nosso mundo, de modo que a proporções e na extensão que se verificam agora. E o indivíduo
nossa limitada e efêmera vida do relativo adquire significados pode encontrar no respectivo grupo, qualquer que seja este, pro-
imensos e eternos. Assim é que a vida mais simples pode dila- teção e valorização. A unificação, sem dúvida, corresponde
tar-se, agigantando-se no infinito. Se esta descoberta de novas sempre a um interesse mais alto no momento, e a evolução con-
relações entre as coisas velhas pode parecer uma repetição de- siste em chegar a compreendê-lo. Assim, mal uma série de in-
las, pois não se consegue com isso nenhuma descoberta nova divíduos progride, descobre a maior vantagem de viver organi-
particular, no entanto empresta-se a cada uma delas um sentido camente que em luta recíproca.
e sabor novo. Assim, quanto melhor não se poderá compreen- Atualmente compreende-se isto para vastas classes sociais;
der cada uma delas, como por exemplo o fenômeno social, ontem se compreendia apenas para grupos menores; amanhã
quando visto do mesmo ponto de vista biológico que repete no compreender-se-á para toda a humanidade. A organização será
nível vida o que sucede nos agregados celulares, moleculares e tão ampla quanto a compreensão. Quanto mais se caminha para
atômicos da matéria! Este método universal dos agregados, ou o separatismo, tanto mais se desce. A unificação é o caminho
unidades-sínteses, que observamos por toda a parte, em todos da ascensão. A nossa vida social é uma aplicação destes princí-
os campos e em todos os níveis evolutivos, este procedimento pios. Quando um organismo qualquer, físico, biológico ou soci-
em direção a unidades cada vez mais vastas bem como a estru- al, se desfaz, é uma unidade-síntese que se fragmenta, verifi-
tura coletiva de toda unidade nos mostram a verdade dos prin- cando-se um retrocesso involutivo, e ao contrário. No primeiro
cípios acima afirmados, ou seja, de um lado uma pulverização caso, não permanecem senão as menores unidades ou elemen-
do todo em elementos cada vez menores indefinidamente e, do tos componentes, que, isoladamente, retomam a vida num plano
outro, a reconstituição da unidade no reagrupamento destes inferior, sem mais conhecer-se um ao outro, frequentemente
elementos em conglomerados continuamente maiores. Esta inimigos. A rede das relações que formam o organismo superi-
constatação da estrutura coletiva de toda a individualização, or se despedaça. Assim se dá na morte de um homem, como na
que é sempre uma síntese, é justamente uma demonstração ati- de uma nação. A própria cisão do tipo humano em dois sexos é
va do processo supracitado da reunificação universal. uma forma involuída, em que cada unidade procura completar-
Calcula-se, afirma Lieck, que um homem adulto seja se na outra metade, sem a qual permanece incompleta. Um dia
constituído, em cifras redondas, por 3 bilhões de células e que o macho atual, que compreende apenas a força, o trabalho, o
possua mais ou menos 22 bilhões de glóbulos vermelhos. Pen- dinheiro, a organização e a inteligência, deverá completar este
se-se agora, de quantas moléculas será constituída uma célula, seu conhecimento com a bondade, o sacrifício, a beleza e o sen-
de quantos átomos cada molécula, de quantos elétrons cada timento, qualidades estas sobretudo da mulher atualmente, que
átomo e de quais e quantas ondas interferentes será constituído também deverá completar-se no outro sentido. E quando o tipo
um elétron, para então avaliar-se a complexidade da estrutura biológico houver reunido em si todas estas qualidades, então te-
coletiva e progressiva sobre a qual se eleva o edifício do ser rá avançado. Entretanto, quando o homem e a mulher conse-
humano. No entanto, mesmo existindo nele uma série de mun- guem coordenar as suas qualidades em colaboração, na família,
dos, a multidão de elementos que o compõem coordena-se tão já constituem um organismo mais evoluído, uma primeira nova
harmonicamente, que esta unidade-síntese, que é o homem, célula ou uma unidade-síntese coletiva. Mas, quando uma des-
sente-se perfeitamente uno no seu eu. Mas o homem, por sua tas unidades se desfaz, ao mais evoluído estado orgânico segue-
vez, não é senão um elemento da sociedade humana, que tam- se um involuído estado caótico. Quando uma sociedade se de-
bém o é de uma humanidade mais vasta, e assim ao infinito. sagrega, são em verdade os atritos que triunfam em vez da co-
Atendo-nos a esta observação dos fatos, de um ponto de vista laboração, e, na queda involutiva, são os mais primitivos que
científico, poderemos imaginar Deus como a máxima unidade- ganham projeção, valorizam-se e emergem, porque o funcio-
síntese, em que se reunificam estes agregados que, gradativa- namento da vida coletiva desceu ao seu plano. No grau superi-
mente, progredindo de unidade-síntese em unidade-síntese, or, eles não têm oportunidades de ação. Estas desagregações se
chegam até Ele. Se este é o esquema do universo, que da maté- verificam assim que a classe dirigente se esgota e entra em cri-
ria ascende até ao homem, o mesmo deve suceder também do se, como sucede depois das guerras e nas revoluções. Então, à
homem para cima, pois que já vimos que o sistema é único em ordem de um funcionamento orgânico sucede a desordem e a
todos os níveis. Ele exprime exatamente o princípio da cisão e revolta, que se justificarão chamando-se liberdade, até que se
reunificação da cisão, confirmando com isto o outro princípio reconstitua uma nova ordem, com uma nova disciplina, que se
do equilíbrio universal. Deve-se compreender, ademais, que justificará com o nome de dever. A vida social jamais pode pa-
cada unidade-síntese não é apenas a soma dos elementos com- rar. Quando a classe dirigente, detentora da autoridade, se cansa,
perde-a, e uma classe inferior a conquista, a classe mais involuí-
2
O autor refere-se ao livro Problemas do Futuro. (N. do T.) da dos primitivos. São as classes inferiores que sempre fazem
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 91
pressão de baixo, intentando subir. São elas que o poder, nos pe- nos opostos imperialismos, representam a corrente involutiva. O
ríodos de calma, mantendo a disciplina, coagem dentro da pró- imenso progresso científico que nos conduz até ao espírito, o
pria ordem; são elas que, aspirando sempre ao domínio, no pri- domínio sobre as forças da natureza, os grandes meios de comu-
meiro sinal de fraqueza saltam à garganta do velho patrão para nicação, a formação de grandes unidades sociais, políticas, eco-
estrangulá-lo e substituir-se a ele no comando. Mas também isto nômicas e religiosas, uma tremenda necessidade de orientação e
redunda em fadiga, e também as classes inferiores se cansam em de fé, nascida da dor, representam a corrente evolutiva.
exercitar o poder. Por isso mesmo a nova ordem por elas cons- As características da nova era serão a unificação e a univer-
truída será subsequentemente agredida por outros estratos soci- salidade. Isto por si só justifica, em face das finalidades da vi-
ais, numa luta em que sairá vencedor o mais idôneo, aquele que da, a necessidade da ação destruidora atual. A nova era não será
melhor representar os interesses da vida. de imposição, mas de compreensão. O sistema da coação e da
Assim, quando a unidade-síntese superior é reconstituída força, no último meio século, destruindo a Europa, isto é, o cen-
em condições melhores que a precedente (assim caminha a his- tro do mundo civil, nos forneceu a mais dolorosa e desastrosa
tória) e firmar-se como poder, então os involuídos, representan- experiência que um homem pode conhecer. Quem ainda acredi-
tes de um nível de vida inferior ao da maioria, devem subordi- tar em tal método e segui-lo, deverá fazer a mesma experiência
nar-se à unidade superior e viver uma vida secundária, apenas e chegar ao mesmo fim, pois que isto está implícito no sistema.
em função dela. Desta forma, eles são enquadrados na ordem Mas existe um outro sistema, incompreendido e negligenciado,
restabelecida e, dado que a vida agora funciona num plano mais que é o único que poderá sobreviver: o da compreensão e o da
elevado que o seu, não aparecem mais como heróis de uma re- convicção. Os absolutismos, as verdades exclusivistas e intran-
volução, e sim como delinquentes comuns, inimigos da ordem. sigentes, tendentes a dominar e coagir o indivíduo e a consciên-
Mesmo o micróbio-patogênico no organismo humano é uma cia, em qualquer campo, são métodos superados.
forma de vida, que é mantida à parte enquanto predomina a do Da concepção matemática da relatividade de Einstein, o que
organismo são. Mas, tão logo esta se desfaz, eis que o micróbio todos compreenderam foi a ideia da relatividade humana. Avi-
invade tudo, encarregado da liquidação da sociedade celular, zinhando-nos hoje, por evolução, mais um passo do absoluto,
que é o corpo humano. Eis o significado biológico e cósmico sentimos em compensação a nossa relatividade, a princípio
das lutas políticas e classistas hodiernas, vistas em relação aos pouco notada, e percebemos melhor, em contraste, a natureza
dois princípios de cisão e reagrupamento dos elementos do uni- transitória e envolvente do nosso contingente. Sentimo-nos na
verso. Em tudo isto há equilíbrio. As classes inferiores, como pura função de ponto de referência. Desta forma, os absolutis-
os micróbios patogênicos, são solicitados pela vida à ação so- mos exclusivistas que antes possuíam o sabor de absoluto, ago-
mente enquanto for necessária e útil a sua presença, e não mais. ra não passam de obstáculos. A divulgação moderna do concei-
Trata-se de intervenções patológicas, de crises de transição (re- to de relatividade desferiu-lhes um golpe mortal. Por isso os
voluções), de execução de uma tarefa de destruição necessária à nacionalismos estão em via de extinção e sobrevivem apenas
reconstrução, da qual eles são condição. Mas a obra dos demo- como imperialismos. E estes reduziram-se a dois apenas, numa
lidores se extingue com eles logo que os interesses da vida re- luta para decidir a supremacia final de um mundo só. Trans-
clamam a obra dos reconstrutores. É assim que as revoluções, forma-se o conceito de pátria. O que antes se apresentava como
cumprida a sua função, se exaurem, e os seus autores são traga- santo patriotismo, hoje só parece belo para efeito interno e,
dos pela sua própria revolta, na qual está toda a sua missão. As- além fronteiras, desperta nos outros povos suspeitas contra a
sim se formam sempre equilíbrios novos. Mas, nestes equilí- nação que o professa, porque uma tal forma de amor tende a re-
brios, impera sempre a lei biológica, segundo a qual o ser bio- solver-se em ódio e em guerra contra outros países.
logicamente involuído deve permanecer automaticamente, pela Ao lado deste amor surge concomitantemente a ideia do es-
própria qualidade, submetido ao evoluído. trangeiro, inimigo que deve ser combatido. Modernamente,
Como nunca, hoje, no mundo se defrontam em luta dois com os grandes e contínuos intercâmbios e contatos, desponta
princípios opostos: o da cisão e o da reunificação. O nosso sé- uma tendência à fusão de todos os povos em uma humanidade e
culo é de transição, em que estão abalados os equilíbrios prece- o conceito de uma grande pátria que abrace todos eles. É uma
dentemente estabelecidos e se está na expectativa da formação dilatação de egoísmo, como já vimos para o indivíduo, que
de novos equilíbrios. É bem verdade que este estado de coisas é evolve até abraçar outros povos. Deste modo, as grandes unida-
o mais criador, mas também é o mais perigoso. É o mais cria- des humanas se reagrupam em torno de outros conceitos mais
dor porque tudo desmorona; o velho mundo é removido, e o compreensivos, e tanto ódio, antes justificado e santificado por
terreno se torna desimpedido, desaparecendo as barreiras e separações nacionalistas, encaminha-se para a extinção. O amor
desmantelando-se as defesas das posições conquistadas. Tudo é de pátria, limitado a um país, hoje pode parecer um obstáculo a
mudável, um campo aberto a todas as inovações. Tudo é possí- um novo espírito tendente às grandes unificações.
vel hoje. Mais do que a bomba atômica, temos sob os pés o Os caminhos são dois: subir ou descer. O mundo atual está
fermento das ideias, que é muito mais explosivo. Tudo é des- suspenso entre ambos. Ou fortalecer-se construtivamente atra-
truição atualmente. Rolam por terra as velhas divisões naciona- vés da unificação, que irmana, ou embrutecer-se no separatismo
listas, econômicas, religiosas, ideológicas. É a grande hora de e destruição, num massacre alternado. Ou construir um orga-
joeirar e reconstituir todos os valores humanos. Na hora destru- nismo humano mais vasto, sem exemplo no passado, e só em
tiva, são chamados em cena os demolidores de todos campos, nome deste destruir o atual, ou então destruir por destruir, fina-
materiais e espirituais. É a orgia da destruição preparada pelo lizando na barbárie. O homem seria capaz de seguir o último se
materialismo, e este é a ideia que, na quadra atual, atinge a ple- a vida sábia não velasse por ele, que ignora. Por isto é fatal uma
nitude de sua realização. Mas, justamente por se encontrar em grande onda de ascensões que invada e eleve o mundo; mas que
plena realização, ela amadureceu e caminha para a sua morte, provas e dores isto implicará? E será o homem quem deverá
enquanto que, pela lei do equilíbrio, desponta por baixo dela, suportá-las. Assim como para o indivíduo, duas são as sendas
ainda como um fraco dealbar de aurora, a ideia do espírito. As na vida dos povos: a do progresso e a do retrocesso. Por elas se
trevas e a luz se digladiam em plena batalha. E, na verdade, se desenvolve o grande caminho do universo em direções opostas,
de um lado tudo desmorona, jamais como agora se observaram como vimos. Hoje, como ontem, as criaturas seguem uma ou
tão aguçadas as tendências às grandes unidades. Involução e outra, como vemos. Os métodos usados por elas revelam o ca-
evolução se contrastam. A capacidade destruidora, o materialis- minho de sua escolha, a sua natureza e posição. Quem procura
mo, o ódio, o egoísmo, a avidez desaçaimada e individualista até a matéria, acredita na riqueza e na força, nos exércitos e no do-
92 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mínio; é um involuído, subjugado pela ilusão. Na sua grosseira e de missão, porque a realização e a conquista se transferiram
insensibilidade e ignorância, deve ainda atravessar duríssimas inteiramente para o plano mais elevado do espírito. E a vida ter-
provas para compreender a vida; deve, sofrendo as consequên- rena, em vez de enriquecer, espolia, porque, para o evoluído, ela
cias de sua ação, dado que o seu pensamento é concreto, con- se tornou de sinal negativo, dado que o positivo é representado
quistar o senso do bem e do mal. Encontrando-se em queda, ele por uma nova vida que apareceu, ignorada ao involuído: a vida
não sabe valorizar-se senão com a posse, à qual se aferra e pela do espírito. Quem freme por dominar e enriquecer-se não se ilu-
qual luta. Por isso é ambicioso e insaciável. Não é capaz de da: está no caminho da descida, em direção que conduz à pulve-
compreender outra realização de si mesmo a não ser a que con- rização. Só quem gosta de dar e sacrificar-se pelos outros está
siste em ligar a sua vida física efêmera às coisas transitórias da no caminho da ascensão, em demanda da unificação. Poderá pa-
Terra. Nada enxerga além disto. Permanece ainda excluído da recer utopista, mas só ele está habilitado a transformar um mun-
vida maior, em que se é eterno colaborador de Deus, cidadão do do de ladrões e assassinos em um mundo de civilizada colabora-
universo. Possui do bem um conceito limitadíssimo, circunscri- ção fraterna. O elemento coesivo de unidades maiores só se po-
to ao próprio egoísmo, no qual permanece aprisionado. Assim, de encontrar em quem concebe a vida como um encargo altruís-
a sua alma se encontra excluída da grande e inexaurível riqueza tico. Só uma massa de semelhantes indivíduos pode formar um
de Deus, sempre insaciada, e, por mais que possua, torna-se organismo social. Querer organizar um coletivismo real com o
sempre mais esfaimada. Quanto mais possui, tanto mais lhe tipo biológico involuído é mera utopia.
cresce a avidez e, porque crê apenas na ínfima vantagem indi- É neste coletivismo, atingido não por imposição exterior
vidual e só por isto vive, é levado a menoscabar o resto. Um de força, mas pela dita maturação, que se pode verdadeira-
mundo feito de tais seres não pode ser senão uma alcateia de mente valorizar o eu, e não pelo domínio do próximo, como
lobos. A sua involução, que lhe faz ter fé apenas na força, dá ainda hoje se compreende na Terra. A hipertrofia da persona-
nascimento a um espírito egoístico universal de revolta, que faz lidade de um indivíduo a expensas dos outros representa o
do mundo um caos. E é por isso que o involuído é vítima de si triunfo do princípio separatista, exprime um estado de pulve-
mesmo. O que o fere é a reação provocada pelo próprio méto- rização da unidade. Se for obtida com a tirania, será apenas
do: ―Quem com ferro fere com ferro será ferido‖. Estamos as- uma unidade às avessas, uma construção forçada, em equilí-
sim na via descendente, que termina na pulverização. brio instável, sempre pronta a desagregar-se. Tais são as
Mas, se o involuído assim age em seu prejuízo, condenan- pseudo-unidades, construtivas só na aparência, mas substanci-
do-se a uma vida inferior, porque não compreendeu o escopo almente destrutivas, obras de Satã. Nelas, o eu, por mais po-
da vida, o evoluído caminha em sentido oposto, que o conduz deroso que seja, está sempre entrincheirado no próprio separa-
para a unificação. Este compreendeu que há muitas outras tismo, permanece um centro isolado e jamais abre as portas do
conquistas a fazer além dos bens materiais, compreendeu a es- amor para unir-se a outros seres. Os liames impostos pela for-
terilidade de tantas lutas colimando a conquista de uma posse ça são superficiais, não substanciam e só perduram enquanto
efêmera, insuficiente para saciar o desejo infinito da alma. A existem forças para mantê-los. Em profundidade, eles não li-
razão de ser da vida é outra. A procura de uma felicidade atra- gam coisa alguma. Não é considerando todas as coisas apenas
vés de satisfações materiais é vã; ela cria inimigos, desenca- em função de si mesmo que estes liames se podem estabele-
deia lutas, verte sangue, desperta dores e nos deixa cansados e cer, mas só considerando-as em função dos outros. Como se
insatisfeitos, na sensação da inutilidade de semelhante esforço. vê, os sistemas atuais empregados na formação de grandes
Só o involuído, inexperiente, pode aceitá-la. Assim tem-se no- unidades coletivas poderão servir como tentativas, como ex-
jo da Terra, que traiu, e volta-se a olhar para o céu; então tudo periência e ainda como meio educativo para penetração de
se inverte. O desenvolvimento, que é lei de vida, atua não mais conceitos novos. Mas, para atingir a sua real atuação, mister
tomando, mas dando; o impulso não é mais para o exterior, se torna outro método, inteiramente diverso: o da compreen-
mas para o interior; a riqueza que se procura não é mais a efê- são. Para tal fim, é necessário um tipo humano diferente, e ou-
mera da forma, mas a eterna da substância. E o ódio se trans- tro caminho não existe para se conseguir esta compreensão se-
muda então em amor; a força, na compreensão; o egoísmo iso- não aquele que conduz à formação desse tipo. O mais acirrado
lacionista, na unificação; a guerra, na colaboração. adversário da unificação dos homens em um plano de justiça
Ora, enquanto o indivíduo não evoluir de modo a compreen- social é exatamente o homem hodierno, aquele que, para servir
der estas coisas, a aplicação de princípios de solidariedade não seus próprios fins, mais a preconiza, mas que, na realidade,
poderá passar de utopia e mentira. O irmanamento humano é o menos crê nela. Na realidade, os programas professados e rea-
resultado de maturação e convicção, não podendo sê-lo da força. lizados com tal psicologia manifestam-se às avessas e, efeti-
É verdade que na Terra foram feitas tentativas, em todos os vamente, ocultam sob bela roupagem a luta comum pela vida,
tempos, para se chegar a grandes unidades através dos mais di- através da substituição de pessoas nas mesmas posições de
versos imperialismos, mas deles nada resultou. Com a imposi- domínio ou de subjugação. A isto não se pode chamar progres-
ção domina-se, esmaga-se, escraviza-se, mas não se unifica. Se so, porque é falência da unidade. A verdadeira unidade não re-
as raças se misturam, isto depende de deslocamentos demográfi- pousa no equilíbrio instável, carregado de reações, como o im-
cos e não diz respeito aos imperialismos. É a vida que tudo utili- posto pela força, mas na adesão livre e convicta.
za a seu modo. A força e o egoísmo – dois impulsos separatistas Quando o eu intenta construir apenas pela via do egoísmo,
– não podem conduzir à unidade. A verdadeira unidade é outra ele tende, mais do que construir em unidade, a desfazer-se no
coisa que não imposição violenta e sobreposição dos povos ou separatismo. Quando o eu se torna centro no lugar de Deus e
das suas classes. Ela implica elementos espirituais que a política se apossa de tudo, então caminha-se para Satanás, e não para
ignora. Trata-se de compreender e de sentir a Grande Vontade Deus. De tal método não podem surgir senão rivalidades e an-
diretora do universo e de conduzir-se neste de acordo com ela. tagonismos, que só oferecem uma solução possível: a destrui-
Neste plano de vida dominam princípios bem diferentes. Ao ção de um dos contendores. Mas a isto não se pode chamar vi-
invés do egoísmo, o altruísmo; ao invés da lei do mais forte, a tória, porque, na realidade, trata-se de uma ilusão, visto que,
lei do sacrifício e do amor. No evoluído, o involuído é transfor- em uma guerra, todos são prejudicados e vencidos. Isto é na-
mado nos seus instintos e métodos. Se, no segundo, a vida do tural, uma vez que nos mundos inferiores reina a traição. Tais
espírito cede em favor da vida do corpo, no primeiro é a do cor- métodos são próprios destes mundos inferiores, como o é o
po que cede em favor da vida do espírito. Então, a Terra, antes mal, e é por isso que, carregados de atritos, dado que a força é
campo de realização e de conquista, torna-se teatro de sacrifício a sua base, não podem resolver-se senão em destruição e dor,
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 93
por mais que apregoem construção e felicidade. Este é o des- vindicações teóricas a fazer, com o que se justifica, possui
tino fatal de quem se encaminha para a matéria. Estas são as também as vítimas que o acusam: de um lado, as vítimas do
leis da vida, que funcionam igualmente no campo das realiza- cárcere e dos trabalhos forçados; de outro, as silenciosas e ―li-
ções sociais, pois que seria certamente ingenuidade supô-las vres‖ da miséria, aquelas que geraram a revolução comunista.
excluídas do funcionamento orgânico do universo, onde seri- O que leva um sistema contra o outro é a sua parte de cul-
am arbitrariamente plasmadas apenas pelo capricho do ho- pa, e isto justamente porque a vida quer destruir esta parte, va-
mem. Se este é invadido pela pretensão de tudo dominar, nem lendo-se dos dois antagonistas como um meio de recíproca de-
por isso o pode diante dos fatos. As leis da vida deixam ao puração, de modo que deles não sobreviva senão a parte em
homem também a faculdade de crer no que entenda, mas nos que ambos têm razão. De um encontro entre os dois resultará a
fatos elas agem de acordo com as próprias diretivas. Cada um destruição daquilo que cada um possui de egoísmo separatista,
pode crer e dizer o que deseja, mas no modo de agir revelará antivital para a coletividade, pela qual, efetivamente, todos
sempre aquilo que realmente é. Se acredita na força e age de trabalham. É inerente à natureza humana que culpa e razão,
acordo com ela, é um involuído, que nela encontra a sua lei. méritos e defeitos se apresentem conjuntamente imiscuídos, e
Se acredita e age na solidariedade, é um evoluído, que na uni- é lei de vida que, embora o homem seja separatista, tudo seja
dade encontra a própria lei. Força e justiça são dois extremos comum entre os homens. A solução não pode estar senão em
irreconciliáveis. Uma exclui a outra. Elas representam a lei e uma recíproca depuração que elimine em cada um a parte de
o sistema de dois planos de vida diferentes. Quem recorrer a culpa. Sobreviverá aquilo que de melhor existe nos dois. Deste
uma não pode apelar para a outra. modo, vencedora será unicamente a vida, que conseguirá o seu
fim de fazer progredir a humanidade, objetivo para o qual uti-
II. A ERA DA UNIDADE liza ambos os antagonistas, confiando a cada um deles um
princípio a ser afirmado. Neste sentido, o comunismo possui
Eis que, partindo de uma visão cósmica e de conceitos uni- uma função vital, que é lançar no mundo uma ideia de justiça
versais, chegamos agora à aplicação destes nas mais longín- com métodos de tal ordem, que ela possa ser lembrada bem
quas consequências em nosso mundo no momento atual. Refe- claramente por aqueles que, embora tendo-a recebido do evan-
rimo-nos às condições da hora histórica presente, que, mesmo gelho há 2.000 anos, acharam mais cômodo não tê-la posto em
sendo consequências de princípios universais, são na sua es- prática. Neste sentido, o Ocidente, prevendo o inevitável, que
sência transitórias e relativas. O mundo está atualmente dividi- já está iminente pela imposição das massas em plena arremeti-
do em duas partes separadas por um abismo intransponível: o da, começa hoje, queira ou não, a aplicar vários princípios do
oriente comunista e o ocidente liberal. Cada uma apoia-se em comunismo, ainda que sob bandeiras diferentes. E assim cami-
seu princípio idealístico. Eles são reciprocamente exclusivistas nha no mundo a ideia da justiça social.
e irreconciliáveis. Isto porque, por trás dos ideais, estão os in- Cristo pregou há tempos, mas, visto que a palavra d'Ele con-
teresses, que são irreconciliáveis. Os verdadeiros ideais são tinuava letra morta e as gerações não pensavam de modo ne-
verdades universais, e não particulares, e, sobre esta base, o nhum em aplicá-la, a vida teve necessidade de servir-se para is-
acordo é natural. Se há conflito é porque as duas partes são ri- so de inferiores meios de coação. Há maturações biológicas que
vais no mesmo terreno humano e os homens que o compõem não se podem conter.
pertencem ao mesmo tipo biológico e ao mesmo plano de vida. O atual movimento do mundo, que caminha em demanda da
Cada uma delas pretende esconder atrás dos ideais apregoados justiça, concentrou-se em um dado país, que se fez dele promo-
os próprios interesses. Por isso elas se acusam reciprocamente, tor em virtude de contingentes razões históricas. Mas ele é um
sem cessar, cada uma tendo razão enquanto está no campo do movimento de toda a vida humana planetária e, se não se tives-
ideal, mas tendo culpa quando, na prática, aplica este ideal se configurado em um país, tê-lo-ia feito em um outro. Não im-
apenas em vantagem própria. O quanto de razão cada uma pos- porta que seção política do globo assuma o encargo, contanto
sui, ainda que pareça sacrifício, constitui a sua força, e a parte que este seja desempenhado. É natural que um agregado de in-
de culpa que cada uma tem, embora pareça vantagem, forma a teresses logo enquadre e limite qualquer movimento. Mas este
sua fraqueza. Apliquemos sempre os princípios acima expos- se propaga além dos confins do enquadramento, porque tudo é
tos, ou seja, evolução para a unidade é crescimento em potên- comunicante e universal na vida. Assim, as ideias do inimigo
cia, involução para a cisão é decréscimo em potência. são absorvidas, pois ultrapassam os confins políticos; também
Observemos. A democracia possui uma parte de razão, que assim, elas se purificam, se adaptam e se tornam vida em toda a
lhe é dada pelo princípio de liberdade. Isto representa a sua for- parte. Desta forma, a ideia nascida em um ponto, sendo pela
ça, pela qual ela pode acusar o parte contrária. Mas também própria natureza universal, avança e alcança até onde não se
possui uma parte de culpa, representada pela injustiça econômi- imaginava; intensifica-se, expande-se, e os mais diversos agen-
ca, pelo egoísmo capitalista e pela desigualdade na distribuição tes são chamados a desempenhar cada qual a sua parte de traba-
dos bens. E isto representa a sua fraqueza, pela qual ela se ex- lho. Eis por que a ideia de uma justiça social ganha corpo atu-
põe às acusações da parte contrária. O comunismo, de outro la- almente. Na realidade, ela se desenvolve e floresce mais como
do, tem por sua vez uma parte de razão, dada pelo princípio da um princípio geral da vida do que como uma particular ideia
justiça econômica, da igualdade e solidariedade social. Aqui es- política, avançado além de todas as barreiras, para alcançar as
tá a sua força, que lhe faculta acusações à parte contrária. Mas finalidades da vida, e não apenas as de um só povo ou partido,
também exibe uma parte de culpa, dada pelas limitações à li- cada qual devendo rejubilar-se da contribuição que deu para o
berdade e ao individualismo, expressas pelo absolutismo e pelo avanço de uma ideia que é de todos.
capitalismo de Estado. Nisto está a sua fraqueza, que o expõe às Encontramo-nos em verdade, atualmente, na maturidade dos
acusações da parte contrária. tempos, e está próxima a aurora de uma nova civilização, em
Assim, cada um dos dois sistemas encontra justificação no que o evangelho deverá ser aplicado plenamente. Quem dirige a
fim a atingir, mas também possui as suas culpas e, por conse- história são as forças da vida, e não o homem. O comunismo
guinte, os seus pontos fracos no modo com que procura atingir não foi criado por uma doutrina econômica, por um partido ou
este fim, visto que, em ambos os casos, realmente, só existem povo que o tenha proclamado e aplicado. Ele não é senão o efei-
em mira vantagens próprias. Trata-se, no fundo, em todos os to da maturidade dos tempos, que conduz ao evangelho. Tudo o
quadrantes da Terra, do mesmo homem involuído, que age mais não passa de meios materiais, portanto transitórios, que
com idênticos critérios. Assim, se um dos dois tem as suas rei- cairão depois de preparadas as vias para a referida realização.
94 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
Assim, ficarão neutralizadas pela recíproca eliminação as qualquer campo, serão tragados. Tais são e assim querem as
duas zonas de culpa, e se fundirão as duas zonas de razão em leis da vida atualmente, e ninguém poderá contê-las.
uma nova formação, em que nenhum dos dois contendores do É interessante observar a sutil mecânica que um sábio jo-
momento sobreviverá íntegro e exclusivo na forma que cada go de impulsos, na luta entre o bem e o mal, conduz ao
um pretende. Assim também, exaurir-se-á a tarefa de ambas as triunfo do primeiro.
partes, que é de elaborar e ativar na sociedade uma ideia uni- No comunismo, as forças do mal, dada a sua natureza ne-
versal já expressa pelo evangelho, que está acima do contingen- gativa, operam naturalmente às avessas e, consequentemente,
te e de suas lutas. Este já contém, numa fusão conjunta, quanto aplicam o evangelho desfigurado. Elas não sabem agir senão
de razão há nos dois princípios opostos, sem aquilo que de er- com inversão de valores. Efetivamente não há nada mais anti-
rado existe presentemente na sua aplicação. O evangelho tam- evangélico que o método com que o evangelho é aplicado, ou
bém encerra comunismo, mas de amor, e não de força, e susten- seja, pela força, dado que a essência do evangelho é o amor. É
ta a liberdade individual, com a justiça do ―quod superest date lamentável que na Terra não se procure atingir a justiça senão
pauperibus‖3. Compreende-se que se deve tratar de um evange- através da injustiça. E isto macula tudo. Que faz então a vida
lho vivido, e não apenas teoricamente pregado. O movimento destes impulsos negativos? Se os deixa agir, é sinal que, de
atual é de ascensão biológica, e a vida trabalha com fatos, e não qualquer modo, eles são construtivos, porque todos conver-
com palavras. Não se trata, pois, de um evangelho situado em gem para um centro diretor que é Deus, e não para um segun-
uma religião particular, utilizado como substrato de uma hie- do centro anti-Deus, Satanás. O fato é que o mal, em última
rarquia de homens. Cristo é universal e, como o ar e o sol, que análise, é enganado, porque esta inversão, depois, se retifica
devem vivificar tudo, não podendo encerrar-se em divisões em favor do bem. O mal é ignorante e, querendo imperar pela
humanas, supera todas as barreiras. Algumas poderiam dizer: força, excita reações em toda a parte, de modo a levar todos a
nós representamos Cristo oficialmente. Ninguém o nega se, por se unirem contra ele. Ele gera mártires que, depois, formam a
ventura, o evangelho for vivido. Muitos de vós o vivem de fato, potência e a grandeza moral do inimigo. Sempre foi assim, e o
porém Cristo é realmente representado somente por quem vive mal, que é cego, recai permanentemente nos mesmos erros. E,
a Sua lei. O resto possui escopo diverso e uma função que não é assim, faz o jogo do inimigo, o bem, que ele combate. Ei-lo,
a de fazer representantes de Cristo. desta forma, a desempenhar a função social de purificar a
Assim, o comunismo, depois de trazer à lembrança dos Igreja e vivificar a fé. O mal é assim utilizado para divulgar o
homens o evangelho, sobreviverá como evangelho, pelo qual evangelho com a ideia da justiça social. Aquele pobre mal,
trabalha sem saber, e cairá como bolchevismo, que é contin- que tanto se esfalfa para conseguir os seus fins, nada mais faz
gente; sobreviverá como justiça econômica e, com isto, esgo- do que preparar, sem compreender, os fins que o bem colima.
tada a sua missão, cairá como absolutismo de Estado e escra- Depois disto, as forças da vida o liquidam em favor do bem,
vidão coletivista. Também a democracia, após haver defendido que ele acredita desfrutar e que o deixa agir somente enquanto
a liberdade humana e salvado o individualismo nas novas e é um meio para o próprio triunfo.
grandes unidades coletivas, sobreviverá nestes princípios do Na sabedoria divina, o mal está a serviço do bem. É natural
evangelho e cairá como injustiça econômica e egoísmo capita- que, para mover o homem de hoje, torna-se indispensável im-
lista. Tudo passará, exceto o evangelho. Quem está cego pela pelir a mola do seu egoísmo. É preciso que ele creia agir em
luta, vivendo no particular, não pode perceber estes equilí- seu imediato interesse. Por esse meio, a Lei o manobra para
brios. A vida ressurgirá no evangelho, porém não mais apenas seus próprios fins mais sábios, fazendo-o em benefício de to-
pregado, e sim vivido. O homem, hoje, não se contenta mais dos, porque o tipo biológico atual jamais seria levado a traba-
apenas com palavras e quer olhar os quadros que estão atrás. lhar por tais fins se conhecesse o real funcionamento da histó-
Para isto, foi educado por duras lutas de milênios, de modo a ria. E, assim, sem sabê-lo, uns e outros dos dois grandes inimi-
ver atrás de cada verdade uma mentira. Tem sido uma escola gos, capitalismo e comunismo, trabalham concordes pelo lou-
constante, a única forma de educação que todos os dirigentes, vável fim comum do progresso humano. Eles creem que diri-
em todos os tempos e lugares, em todos os campos, concorda- gir-se ao povo seja uma mentira útil e astuta, de que habilido-
ram, durante séculos e séculos, em conceber. samente se valem para conseguir os próprios fins egoísticos, e
Não sabemos se o evangelho vivido coincidirá com a Igreja não compreendem que, ao contrário, é este o verdadeiro esco-
de Roma, que o professa em sua forma atual, ou se poderá po pelo qual, à sua revelia, a vida os põe em movimento, e será
coincidir com uma outra forma que venha a revesti-lo, ou com o único que conseguirão, enquanto que a consecução do pró-
um cristianismo mais vasto, e não apenas católico, ou simples- prio interesse é muito problemático que se verifique. Quem
mente com os homens de boa vontade, aos quais foi anunciado. participa só de um ou de outro destes dois polos na luta co-
A hora histórica do momento é apocalíptica, e tudo está abalado mum pelo progresso, não pode ser senão o dominante tipo bio-
desde os alicerces. A verdade é que as duas grandes forças ora lógico involuído, que só pode pensar em função do contingen-
em ação, democracia e bolchevismo, tornaram-se fracas pela te. O evoluído está acima do embate, admira a perfeição da
recíproca inimizade, pois que cada um dos dois impulsos é neu- obra divina, na qual a Lei, para conseguir os grandes fins evo-
tralizado quando se defronta com outro igual e contrário. É este lutivos da humanidade, mobiliza homens aos quais é necessá-
antagonismo que pode destruir a ambos, deixando somente ria a forma de luta para que eles se ponham em ação.
aquilo que eles possuem de evangelho. É certo também que o Tudo que presentemente acontece no mundo é simplesmen-
ciclo da matéria está para esgotar-se, encaminha-se para a mor- te a consequência natural do grau de evolução em que o homem
te e, na ânsia de sobreviver, recorre aos meios extremos da de- vive. Se ele fosse mais evoluído, a sua vida seria inteiramente
sesperação. A matéria exaure-se no tempo, e o tempo não pode diversa. Mas evolverá e, evolvendo, tudo mudará.
parar. Vimos que, pelas leis da vida, o materialismo é um sis- Os grandes imperialismos atuais do mundo, com poderosa
tema fatalmente autodestruidor. Isto significa a destruição dos tendência expansionista, que se tornou possível em tais propor-
valores materiais, os únicos a que hoje se tributam reverências. ções em virtude dos novos e grandes meios de comunicação,
Só os valores superiores espirituais, que são inatingíveis pela acabam por manter em contato, seja na paz ou seja na guerra, as
destruição, serão salvos. Salvar-se-á também unicamente quem nações e raças mais distanciadas. Entrar em contato significa o
vive neles. Os que se apegarem a tudo que for terreno, em início da unificação. A humanidade está para tornar-se una. As-
sistimos a um esboroamento universal de barreiras. Transpõem-
3
―Dá aos pobres o que te sobra‖. (N do T.) se todos os velhos limites. O contato, na posição de vencedor
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 95
ou de vencido, de senhor ou de escravo, leva sempre ao mesmo que aprendam na luta a formar a inteligência, postos na contin-
resultado: a fusão. Tudo termina sempre com a unificação. Esta gência de empregá-la no ataque e na defesa. Foi assim que sur-
é a essência das tendências políticas modernas: a formação de giu o homo sapiens e, desta maneira, foram conseguidas as fi-
unidades cada vez maiores. Essa será a conclusão do nosso pe- nalidades evolutivas da Lei.
ríodo histórico. Parte-se para conquistar e acaba-se por irmanar- Como a química e a física, também a vida possui as suas
se, hodierna tendência universal em todos os campos. Assim leis e os seus fins, dos quais não se pode fugir. Essa necessi-
como, no fim da Idade Média, as cidades transbordaram com dade de luta é imposta pela Lei, em vista de suas finalidades
alegria da angústia das estreitas muralhas circundantes, esten- seletivas e evolutivas. Tal finalidade têm as guerras, que estão
dendo-se desafogadamente além de confins acanhados e de bar- antes no instinto dos povos do que no comando dos chefes. É
reira, desfrutando um senso de liberdade onde antes ninguém tão forte esse instinto de guerra, que, não podendo satisfazê-lo
podia circular sem esbarrar a cada passo em obstáculo inimigo, na verdadeira luta cruenta, as massas dão desafogo a ele no
também hoje, no fim do Segundo Milênio, a humanidade co- sucedâneo das competições esportivas. Assim, graças às con-
meça, jubilosa, a transbordar com alegria das angústias psico- tínuas competições, necessárias ou supérfluas, sanguinolentas
lógicas que a asfixiam. Cairão as barreiras que dividem parti- ou incruentas, o homem se manteve sempre vigilante ao assal-
dos, filosofias, religiões, isolando e sufocando em absolutismos to de qualquer rival, que pode surgir a qualquer instante, mo-
que paralisam a circulação da vida do espírito. São superações vido pela miragem de um benefício pessoal. E assim também
que redundarão em benefício de todos. Cada atrito social pesa e se cumprem os fins de evolução.
custa. Então, a máquina coletiva poderá funcionar mais desem- O atual antagonismo entre os dois grandes imperialismos do
baraçada, sem atritos e conflitos econômicos, políticos, religio- mundo é problema seletivo. Eis o verdadeiro jogo mundial da
sos, filosóficos, demográficos, raciais etc. É um grande obstá- história no momento. Jogo inerente ao plano do tipo biológico
culo à vida ter de, a cada passo, esbarrar com uma parede divi- atual. Dado o que ele é, os problemas só são solúveis através da
sória. Hoje, os homens vivem agrupados em castelos inimigos, luta e da destruição recíproca. Nesse plano, a substância da vida
prontos a combaterem-se. Se isto é útil para a sua seleção, que é de natureza econômica. Nele domina a economia limitada e
não tem outro objetivo, também torna a vida bem fatigante. A egoísta do ―do ut des‖4, isto é, interesse e materialismo, arma-
nossa época quer abater estes obscuros castelos medievais do mento e destruição. Mas já dissemos que existe para cada plano
espírito, que, se são defesa, são também prisão. Esta é outra de vida uma biologia e uma economia diferente. Ambos os an-
forma de expressão vital que acabará na unificação. tagonistas terrenos ignoram que existe uma biologia e uma eco-
Entrementes, toda força social presentemente em ação pos- nomia mais elevada, em que nenhum dos dois penetra, porque
sui uma função na vida. O comunismo tem a função que a opo- ambos pertencem a um plano de vida inferior. O ser encontra-se
sição tem em todas as assembleias: o controle que induz aos encerrado em sua forma de consciência. Além desta existe o in-
exames de consciência perante a opinião pública e a história, e finito, rico de poderes, de bens ilimitados, ao alcance da mão.
determina o aperfeiçoamento das armas, elemento de luta para a Mas está separado desse infinito pela impossibilidade de com-
seleção. De um modo particular, o comunismo desempenha a preender, pelo menos enquanto não evoluir. Explicar a este tipo
tarefa de despertar o espírito de massa e de educação ao funcio- biológico que os seus problemas serão rápida e automaticamen-
namento coletivo. A luta, enquanto não se torna cruenta, será te resolvidos, logo que se eleve em evolução, é obra inútil. Ele
pelas conquistas das massas, e, nesse sentido, as duas partes co- não poderá compreender enquanto essa ascensão não se der, ra-
laborarão na educação delas, obrigando-as a pensar. Estas, fei- zão pela qual realmente ele hoje vive e luta, destrói e sofre. Ob-
tas de carne insensível, serão obrigadas à fadiga de compreen- servada de um outro plano, toda esta luta se torna unidade e o
der para saber escolher um guia, qualquer que seja. Toda luta se problema se transforma completamente, pois que cada proble-
reduz a uma escola, e os tempos de luta são tempos de aprendi- ma é verdade sempre em função da inteligência que o propõe e
zagem e, consequentemente, de progresso. dos limites da mesma. Mais acima, vê-se a luta entre o bem in-
O comunismo serve para forçar o capitalismo a admitir al- teligente e o mal estúpido, luta em que este, pela sua estupidez,
guns princípios de justiça, pelos quais, de outra maneira, este cumprida a função que lhe cabe, é vencido e eliminado como
jamais se decidiria. Dado que a criatura humana é por natureza um mal, restando dele apenas os efeitos, que ele, sem saber e
egoísta e a mesma em ambas as partes, a justiça, se não fosse querer, produziu para o bem.
imposta, jamais seria obtida. Esta é a razão biológica pela qual Então a visão se perde naquela que configurou as tentações
a vida atira o comunismo contra o capitalismo. Sem a violência, do Cristo. Ele, após haver jejuado 40 dias, sentiu fome, e Sata-
não se teria dado a Revolução Francesa, e o mundo estaria ain- nás, o tentador, acercando-se, lhe disse: ―Se és filho de Deus,
da na fase feudal dos privilégios da aristocracia e do clero. A dize a estas pedras que se transformem em pão‖. Mas Jesus
violência, por certo, é o que revela o involuído, porque o evolu- respondeu: ―Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de
ído jamais recorre a ela. Mas é preciso recordar que nos encon- cada palavra saída da boca de Deus‖ (Mateus, 4: 3-4). Eis em
tramos no plano biológico animal-humano, e não além, plano que se torna o problema econômico que atormenta o mundo de
em que as coisas só se podem resolver desta maneira primitiva. hoje, se visto de um plano mais elevado. O diabo então condu-
Certo é também que, se não tivesse sido ensejado um motivo ziu Cristo ao cimo de um monte assaz elevado e, tendo-lhe
para o surgimento desta violência, dado por uma injustiça inici- mostrado todos os reinos da Terra e sua magnificência, lhe dis-
al que está no fundo dos atos de todos os homens deste plano, se: ―Eu te darei tudo isto, se te prosternares e me adorares‖.
então esta violência não teria oportunidade de se formar. Mas Jesus respondeu: ―Arreda-te, Satanás, porque está escrito:
Como se vê, trata-se de um jogo de forças que, contrastan- Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás‖. O diabo então
do-se, concorrem para o mesmo fim: o progresso. A carne é o deixou, e os anjos o rodearam e se puseram a seu serviço
preguiçosa, e a maioria dos homens é carne, e não espírito. Eles (Idem, 4: 9-11). Com isso, estão fixados os limites ao mal, que
se furtam ao trabalho de evolver. Então a Lei os alcança, envol- nada pode além deles. E todas as grandes lutas terrenas pelo
ve e agita, lançando-os uns contra os outros, iludindo-os com domínio material e pelo bem-estar econômico se reduzem a agi-
miragens de interesses pessoais que jamais conseguirão e que tações de um mundo inferior, além do qual a vida é completa-
desaparecerão logo que seja atingido o escopo prefixado pela mente diferente. Então desaparecem os temas relativos da luta
Lei, que eles ignoram. Assim age a Lei. Por isto os animais moderna, comunismo e capitalismo. Eles se reduzem ao que
possuem uma carne que, se para um é corpo, para outro é ali-
4
mento. Por isto eles são levados a contender, o que é útil para Dou para que dês. (N. do T.)
96 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
são todas as coisas humanas: uma transitória e ilusória forma Todavia assistimos ao fato de que se está desenvolvendo
exterior, neste caso, de um único e idêntico movimento de pro- atualmente um comunismo no campo social. E, se tudo que
gresso, para o qual concordemente colaboram. Assim quer a existe tem uma razão biológica, neste caso qual será esta razão?
unidade da vida, Porém, dada a psicologia do homem atual, esta Ela é dada pela atual fase da evolução humana, que assume a
colaboração não pode encontrar outra forma senão a da luta. O forma coletiva, quando tende à formação de grandes unidades
que realmente se dá hoje é uma formação da consciência coleti- de massa, isto é, de grandes organismos biológicos coletivos.
va e um despertar das massas, movimento universal de matura- Esta é a tendência moderna de toda a vida humana sobre o pla-
ção biológica, que, na vida, se coloca acima das divisões huma- neta terreno, ativada, pois, em todo o mundo, ainda que revesti-
nas. Pouca importância tem que ele hoje se vista de comunismo da em formas e normas diferentes. É uma tendência que implica
ou capitalismo. O movimento existiria mesmo sem estes nomes a ânsia em demanda da justiça social. O mundo, que atingiu
e teorias, vestidos em outras roupagens. De tal maneira, ele de através da ciência um inaudito domínio sobre as forças da natu-
fato se iniciará e continuará, ainda que estas vestes desapare- reza, tende a reordenar-se em novos equilíbrios econômicos.
çam. Deste modo pode-se concluir que as novas ideologias e Este é o conteúdo que, nesta sua atual fase evolutiva, a vida
concepções modernas, mais do que constituir a causa dos pre- empresta à luta pela seleção. Sendo assim, é natural que o co-
sentes e grandes movimentos coletivos, são apenas a forma re- munismo tenha surgido primeiramente nos países pobres, onde
lativa e transitória que, no atual momento histórico, assume em é maior a luta da qual ele deriva. É lá, onde mais cruciante é a
nosso mundo o eterno movimento ascensional da vida. fome e, consequentemente, mais sentida a inveja, que mais in-
tensa se torna a luta para destronar os que possuem mais. Onde
III. CAPITALISMO E COMUNISMO mais elevado é o nível econômico, não existe ódio contra quem
possui, porque todos possuem.
Depois de havermos visualizado o problema da unidade em O fenômeno só é compreensível se atentarmos para a reali-
suas linhas gerais, focalizemos de maneira particularizada e dade biológica que ele representa. As ideologias podem sobre-
concreta o que sucede atualmente no campo político do mun- por-se às leis da vida, podem envolvê-las e intentar recalcá-las,
do. Para principiar, perguntamos: corresponde às leis do uni- mas não podem destruí-las. Eis o que representa o comunismo
verso o princípio de igualdade que se pretende impor presen- moderno. A causa eventual que fez com que o movimento uni-
temente pela força? versal da vida no sentido da justiça social se localizasse na Rús-
Na estrutura atômico-eletrônica da matéria, os diversos sia, foi a miséria tradicional do seu povo. A necessidade de
elementos componentes não são iguais. É o que nos desvenda a igualdade econômica e de justiça social foi sentida, antes e mais
indagação submicroscópica. Em seguida, se à observação analí- acentuadamente, na terra da clássica desigualdade econômica e
tica substituirmos uma observação sintética macroscópica e da injustiça social. Na superfície da Terra, esse povo represen-
constatarmos uma homogeneidade de conjunto, é porque esta tou o ―locus minoris resistentiae‖5 para a explosão da crise. As
resulta das características comuns aos elementos diferentes, que características da vida nesse país permaneceram as mesmas de
só assim conseguem uma identidade de conjunto. E isto se dá há muito: a pobreza, a dor, os desnivelamentos sociais, os
sem prejuízo de sua individualidade e livre manifestação, se- ódios, a constante ameaça da Sibéria, a própria desolação que
gundo a estrutura de cada um. As leis da existência nos dizem, encontramos em Gorki, Tolstoi, Dostoiewsky e outros. Parece
pois, que a vida atinge a homogeneidade sem prejudicar a indi- que toda nação do planeta possui uma função, que, no presente
vidualidade, atinge a igualdade que unifica, sem destruir as di- caso, é a dor. O povo russo sempre sofreu um duro destino, e as
ferenças que distinguem. Os elementos conservam, pois, a indi- convulsões sociais frequentes, em vez de atenuá-lo, agravaram-
vidualidade inviolada, sem com isto impedir que todas as seme- no. O fenômeno é, pois, antes de tudo, russo, caracterizado pe-
lhanças equilibrem estas diferenças, reconstituindo assim a uni- las condições deste povo. Ainda que a ideologia comunista seja
dade segundo as qualidades coletivas, que estão na base de uma universal, a sua forma de bolchevismo russo não é aplicável a
individualização mais vasta do que a dos simples elementos. A povos tão diversos, com destinos e funções biológicas diferen-
igualdade se constitui, deste modo, não como uma violação im- tes. Ainda que a ideia comunista se divulgue, não poderá ser
posta à individualidade, mas como uma espontânea reordena- senão assumindo alhures formas diferentes. E é natural que os
ção dessas unidades. A igualdade não é, assim, uma superposi- povos não se adaptem quando ela queira permanecer russa, para
ção forçada da realidade, mas uma organização desta em um tornar russos povos que pela própria natureza não o são e que,
plano evolutivo mais elevado. biologicamente, não podem sê-lo.
Naturalmente, é inútil falar dessas leis universais a quem Se, pois, a ideia comunista não souber despojar-se da
não compreendeu o funcionamento orgânico e unitário do uni- forma contingente da terra em que se originou praticamente, a
verso. A igualdade que a natureza nos oferece é o resultado es- sua expansão reduzir-se-á como a de todos os imperialismos,
pontâneo, um produto das próprias individualidades, erguido despertando fatalmente as reações e resistências naturais por
sobre a linha de suas semelhanças, sem alteração da linha de parte das outras formas humanas de vida. Se ela quiser perma-
suas diferença. O mesmo que se dá com os agregados celulares necer russa, para tornar russo o mundo, o problema efetivamen-
se passa com os agregados sociais, de que agora nos ocupa- te oculto sob a ideologia será o de qualquer invasão demográfi-
mos. Nós existimos em um universo unitário, de princípio úni- ca e predomínio racial, velhíssimo motivo da história. A guerra
co, que se repete em todos os níveis evolutivos, e o fenômeno deflagrada seria apenas de raças e de interesses, e não de ideias.
social, para ser compreendido, deve ser tomado como um mo- Possui o comunismo atual capacidade de universalizar-se, er-
mento do fenômeno biológico. guendo-se acima das suas características particularmente rus-
A homogeneidade celular nos tecidos é efeito de qualidades sas? Saberá ele permanecer não russo em outros lugares, com
dominantes comuns, que deixam intactas as diferenças indivi- psicologia e métodos totalmente diversos? A vida, para atingir
duais, sem forçá-las ou suprimi-las, porque, tanto no indivíduo o universal, deve antes atravessar o particular. Antes da ideolo-
como na sociedade, elas são necessárias e possuem função pró- gia que tende à formação de unidades universais, a vida sente,
pria. E, se o princípio é sempre o mesmo, e a sociologia é bio- muito mais vívida, porque mais próxima, a menor unidade bio-
logia, por que se deveria aplicar nos agregados humanos um lógica nacional. Esta é a realidade, e nenhum povo pode mudá-
princípio diverso daquele aplicado pela natureza a todos os seus la. Se o trabalho obrigatório pode ser uma necessidade para um
agregados? E então, o que representa neste sistema de vida a
5
igualdade forçada imposta pelo comunismo? ―Lugar de menor resistência‖ (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 97
povo paciente e sonhador em um país imenso e triste, onde o o que é o homem atual, não pode empregar outros sistemas para
homem se habituou a ele desde séculos, como poderá ele apli- alcançar esta justiça, que, no entanto, representa a conquista a
car-se a povos de hábitos secularmente diversos, que jamais vi- ser feita nesta nova atual fase de evolução.
veram de tal forma sob regime algum, qualquer que fosse o gê- Falamos da necessidade que o comunismo de amanhã tem
nero deste? O que decide não é somente o tipo de governo, de universalizar-se, desnacionalizando-se, para supernacionali-
mas, sobretudo, a natureza do povo sobre o qual atua. A forma zar-se como ideia, e não como imperialismo de guerra; de supe-
de governo não é mais do que um dos tantos elementos da vida rar a fase de imposição de força, para ceder lugar à livre persu-
de um povo, que são, com frequência, antes a causa do que o asão; de substituir a luta de classe pela do amor evangélico.
efeito desta forma. Desta maneira se vê como o comunismo Acenamos também sobre a necessidade, para o comunismo de
atual é resultante de tantos fatos diversos. Resultou do presente amanhã, de espiritualizar-se, completando assim a sua inicial
momento histórico ou fase biológico-social, que avança para a unilateralidade materialista. No seu aspecto atual, ele é incom-
formação de grandes unidades coletivas e amplos organismos pleto, porque a vida não é feita apenas de matéria e os seus
biológicos de massa, o que impõe a implantação da justiça so- problemas humanos não são unicamente os do mundo econô-
cial. Desenvolveu-se segundo a natureza particular do povo mico. E ninguém o impede de poder encontrar, no seu caminho,
russo, que fez com que este fenômeno fosse mais sentido e se ensinos do gênero de A Grande Síntese, que estejam em condi-
verificasse naquele país, mais pobre e sofredor que os outros. ção de fornecer-lhe um sentido orgânico e uma orientação uni-
Isto explica a razão deste comunismo, cujo aparecimento hoje versal da vida, que as teorias de Karl Marx são insuficientes pa-
no mundo, biologicamente, significa a aproximação da ação ra dar-lhe. A vida caminha atualmente, e tudo o mais com ela,
evangélica esperada há 2.000 anos, ter nascido na Rússia às para o plano supermaterial. Para ele estão se dirigindo a ciência
avessas, isto é, como ódio de classe ao invés de amor evangéli- e, inevitavelmente, todo o pensamento humano.
co. O ateísmo se torna cada vez mais absurdo em um universo
Tivemos de nos referir ao evangelho porque, no seu atual que a físico-matemática revela cada dia mais ser pensante, isto
lance evolutivo, a vida está prestes a dar um passo decisivo é, feito de pensamento na sua mais profunda realidade. Os mío-
para aproximar-se da realização da Boa Nova, que há 2.000 pes, que não se orientam e não se atualizam, fixando-se nas
anos foi simplesmente anunciada. A ideia comunista, mesmo conquistas do momento e do contingente, sem conseguir vis-
se, em principio, o aplica de forma invertida, representa do lumbrar um amanhã mais vasto e sem poder pressentir a conti-
evangelho a primeira e vasta aproximação no plano econômi- nuação do presente no futuro, da matéria no espírito, arriscam-
co e político. Disto deriva que, se o comunismo quiser conti- se a ficar em meio do caminho. Não se pode existir na vida em
nuar a desenvolver-se segundo a linha traçada pelas leis da estagnação, mas só como vir-a-ser. E ninguém pode mudar as
vida, deverá completar-se, desenvolvendo-se amanhã, além da leis da vida, que assim pensa e assim quer.
sua atual fase materialista, com um novo aspecto espiritual O homem pode crer nas ideologias que mais lhe aprouve-
evangélico, de que hoje carece. rem, mas ai da ideologia que tenta sobrepor-se às leis biológi-
Ninguém nega a bondade e a verdade do comunismo como cas, procurando violentá-las! No conflito entre ideologia e bio-
justiça social. Mas, para que uma ideia seja aplicável em toda logia, vence sempre esta última, que é a mais forte. A vida é
parte, é necessário que seja universal, e não o produto apenas um fenômeno muito mais vasto e complexo do que o simples
de um dado povo ou regime. Ora, somente o evangelho, que fenômeno econômico. O homem não é, exceto em parte, um
não é filho de nenhum governo e que, nascido de um povo, dele fator de produção. No dia em que a atual ideologia não for
se destacou, possui não só as características de universalidade, mais concorde com os planos inteligentes que a vida quer rea-
mas também se apresenta completo no campo espiritual, que é lizar, será logo arredada do caminho, não pelos homens, não
necessário à vida. A história nos mostra que, quando o catoli- pelos governos ou exércitos, mas pela própria vida, que é a
cismo se nacionalizou em um povo e em um governo temporal, única força que, com a sua inteligência e poder, verdadeira-
originou a reação nórdica e antilatina do protestantismo. Assim mente domina o planeta. Em suma, não é o comunismo ou a
sendo, para evitar cismas em um comunismo universal, não res- democracia que comandam a vida, mas é esta que comanda a
taria outro caminho senão o de um imperialismo tirano e escra- ambos. É ela a única e verdadeira senhora do mundo e lhe im-
vagista, o que também significaria chegar-se a pior injustiça so- põe a própria vontade, que hoje é a de subir.
cial por meio da teoria da justiça social. Assim, um processo A respeito deste domínio das leis da vida prepostas como
tão deformado não estaria de acordo com a atual tendência evo- guia dos eventos históricos, é este o ponto mais oportuno para
lutiva da vida, mas contra e, portanto, destinado por esta, que é que se responda a algumas objeções propostas ao Cap. XCIX:
mais forte, a ser destruído, o que se verificará se o comunismo ―O Chefe‖, de A Grande Síntese. Quem, na Itália e no exterior,
não se universalizar e não se espiritualizar, isto é, se não conse- quis ver nele uma referência particular à exaltação de um dado
guir aproximar-se em tudo, também como método, do evange- homem e de um dado regime, não compreendeu o significado
lho. A acusação movida pela democracia ao comunismo é a de universal dos conceitos ali expostos, aplicáveis a qualquer
que ele não é comunismo, mas capitalismo de Estado, não é tempo, em qualquer lugar e a qualquer chefe, visto que eles
justiça, mas uma forma de injustiça social pior do que aquela exprimem universais leis biológicas. E as primeiras entre elas
que ele aponta e pretende corrigir. De fato, o comunismo se são a autoridade-função e o poder-missão. Função e missão,
implantou como luta de classes, pelo que não pode resultar se- que são o único verdadeiro sustentáculo da autoridade e do po-
não como imposição de classe, velha lei biológica do mais for- der, de modo que, se eles caírem, a vida arrebata estes últimos,
te, que ele aplica como a vida sempre fez, desde que o homem e toda a posição, qualquer seja a força que queira protegê-la,
existe. Em escala mais ampla, luta de classe significa luta de automaticamente cai. Repetimos sempre que a sociologia não é
povos e domínio de povos, imperialismo e imposição pela guer- senão um momento da biologia, e a política não é uma criação
ra. Onde está a justiça social? Pode-se alcançar a justiça pela humana, mas um efeito das leis da vida. Perante estas realida-
força? Ou então a ideologia é pura forma e aparência, por trás des, o regime representativo não é senão uma das formas pelas
da qual vigora a velha realidade biológica peculiar ao involuí- quais essas leis podem exprimir-se.
do, que não sabe afirmar-se senão pela força? Então a novidade Quem apresentou, pois, tais objeções não leu o que está es-
consiste apenas em acobertar com um manto de teórica justiça crito em A Grande Síntese, no fim do Capítulo XCVI: ―Con-
social o velho sistema da lei elaborada e imposta pelo mais for- cepção biológica do poder‖. Aí está dito: ―As forças biológicas
te em sua vantagem? Então é preciso confessar que a vida, dado não garantem o homem, mas a função, e o destroem apenas ele
98 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
deixe de corresponder a esta. (...) Assim, sempre a história comunismo, são coagidas a obstar a formação dessas condições
chama os seus homens. (...) Rejeita-os, sem remorsos, apenas a de miséria, que justificam e atraem o comunismo. O resultado
função cesse ou quando eles exorbitem ou se entibiem‖. E o do assalto comunista, porque tal é a sua forma de ação em face
referido capítulo se encerra dizendo: ―Assim nasce Napoleão, da técnica de luta que adota, é compelir os Estados capitalistas a
simples instrumento de uma guerra difusora de novas ideias, uma produção e distribuição de riqueza que facultam um eleva-
que foi posto à margem pelo destino, como inútil, mal se esgo- do nível econômico em todos os países não comunistas, de mo-
tara a sua função, da mesma forma como o último rei da Fran- do que o comunismo não encontre neles um ponto de apoio,
ça, do qual ele se rira‖. nem razão ou meio para interferir. Eis então que, superando os
Trata-se, pois, de leis biológicas, prontas para entrar em ação limitados planos dos homens de ação, os mais vastos planos da
mal se verifiquem alguns precedentes determinantes, seja no vida desenvolvem um programa inteiramente diverso, isto é,
passado, no presente ou no futuro, independentemente da pes- transformar um agente revolucionário de desordem em um gera-
soa, tempo e lugar em que elas se aplicam. A história confirmou dor de bem estar, e forçar o capitalismo a ser o primeiro a apli-
e confirmará sempre estes princípios. Deste modo se compreen- car a justiça comunista, para não ser por esta suplantado num
de quão instáveis são todas as posições de mando baseadas na desígnio hoje universalmente sentido e reclamado. Assim, nas
força, e não na função. É natural então que se pergunte que esta- mãos sábias da vida, a desorganização transmuda-se em organi-
bilidade podem ter hoje os poderes humanos considerados gene- zação, o mal em bem, e, assim também, o capitalismo conserva-
ricamente como uma conquista em seu próprio benefício. Daí as dor é obrigado a ativar o progresso. Desta maneira, nas mãos da
desconfianças e lutas entre governantes e governados, daí a clás- vida, o assalto comunista resolve-se, à sua revelia e contra a sua
sica forma de rebelião que parece hoje inerente a toda forma de vontade, na consecução daquilo a que ela aspira, e não do que
autoridade e que assume o aspecto de legítima defesa. almejam os diferentes chefes: um universal progresso de todos,
Por tudo isto se vê como os critérios através dos quais a vi- mesmo das nações capitalistas, rumo à justiça social.
da nos dirige são diferentes daqueles pelos quais o homem de- A vida atinge então essas suas finalidades pelo método da
sejaria mandar, e também como a distinção entre capitalismo e reação. Quando ficamos no contingente, onde fervilha a luta,
comunismo só possui valor contingente e transitório, em função desencadear o assalto significa excitar uma reação equivalente,
de certas finalidades, conseguidas as quais, tudo se transforma. em virtude da lei universal do equilíbrio. Uma benéfica reação
A distinção biológica é de alcance bem diverso e se verifica en- dos Estados capitalistas consiste, pois, no imperativo, a que
tre involuído e evoluído, diferença evolutiva, de substância, da eles se veem sujeitos, de desenvolver, eles mesmos, os princí-
qual tudo deriva e da qual o problema social atualmente não se pios de uma justa distribuição da riqueza e de justiça social
ocupa. Assim, praticamente, este se reduz a um conflito de inte- proclamados pelo comunismo, ainda que o façam gradativa-
resses em que os homens de ação, preocupando-se com objeti- mente. Uma outra reação consiste no fato de serem obrigados a
vos imediatos e concretos, permanecem imersos na peleja, pri- cuidar do nível econômico dos novos amigos por toda a forma
vados de qualquer visão de conjunto, a qual, se é de realização de auxílio. Efetivamente, como consequência da reação, surge
mais remota, não deixa de ser um fim a ser atingido depois. neles esta objeção: se o fim é melhorar o próprio estado eco-
Quem estiver envolvido na ação política deverá assumir a nômico, por que, em vez de melhorar-se o problema através da
atitude e o encargo de agir, o que é indispensável, mas não po- distribuição, não fazê-lo através da produção da riqueza? O
de dispensar o homem de pensamento, único capaz de indicar- mesmo problema universal da melhoria econômica pode assu-
lhe as grandes linhas de orientação. Quando se está encerrado mir, realmente, segundo a natureza dos diferentes países, as-
no horizonte estreito das realizações concretas, não se pode en- pectos diversos. Um país pobre, incapaz até de explorar o seu
xergar o amanhã distante, que também deve chegar; não se po- território, ainda que rico e vasto e, por isso mesmo, ainda pou-
de ver o pensamento da vida e a vontade da história, que, na re- co adiantado, sentir-se-á mais impelido a resolver o problema
alidade, guiam o homem, ainda quando ele se julgue dirigente pelas lutas de classes, disputando as riquezas já produzidas.
autônomo. Quem se limitar à visão e realização imediatas pode- Um outro país, rico de história, de temperamento e clima dife-
rá certamente atingir os seus fins próximos, mas não poderá sa- rentes, jovem e dinâmico, cheio de recursos próprios e alheios,
ber que realizações mais distantes alcançará. A elas chegará, será levado a encarar o método precedente como um contras-
embora não queira e não saiba. Acenamos acima para onde, senso e achar muito mais conveniente resolver o mesmo pro-
muito provavelmente, levarão as tendências sociais modernas. blema por meio de uma maior produção de riqueza para todos,
Em política, o homem prático age num outro plano. A im- relegando a um segundo plano a questão de sua distribuição
parcialidade e a universalidade para ele não têm sentido. No en- mais ou menos justa ou do nivelamento econômico. As nações
tanto o tem, bem acentuado, o enquadramento dos próprios in- não comunistas podem proclamar que elas acham mais conve-
teresses em um dado partido, com exclusão dos outros e contra niente resolver o problema deste modo e que assim o resol-
os outros. Sua psicologia de ação se reduz, pois, a uma psicolo- vem. Desse modo, sem luta de classe, o regime capitalista po-
gia de luta e ao exercício desta. De posições que correspondem de ser meio de uma abundância geral para superar as desigual-
apenas a um relativo que lhe é próprio, particular e transitório, dades distributivas, enquanto que o regime comunista, mesmo
faz um absoluto. O problema social e político se transforma en- distribuindo com justiça, deixa todos na miséria. Por que então
tão em problema particular, isolado, limitado, jamais fundido perder tempo em uma luta intestina de classe, com todas as su-
com o problema universal, do qual ele mesmo depende. Surgem as consequências destrutivas e corrosivas, quando o fim se po-
desta forma, nos primeiros planos, as questões secundárias, de mais facilmente atingir mercê de uma produção mais au-
perdendo-se de vista os projetos de ação mais vastos, justamen- mentada, que é capaz de elevar o nível econômico de todos de
te nos quais opera a mais vasta inteligência da vida. É assim modo a contentar a cada um? Ao invés de lutar contra o seme-
que nos engolfamos em uma técnica de pura batalha. lhante, possuído de ódio, por que não lutar apenas contra as
Desta forma, o comunismo, que se justifica com a injustiça forças da natureza para dominá-las? O problema não é distri-
social, procura-a e amplia-a, para também justificar a sua inter- buir, mas sim produzir. Só assim se pode verdadeiramente me-
venção. Cessa, desta forma, esta ideologia de justiça, dado que lhorar as próprias condições. Não é preferível um sistema de
prospera melhor na desagregação social, que ele incentiva para bem-estar geral, que exista para todos, ainda que desigualmen-
se servir dela. E, assim, uma ideologia de ordem e justiça come- te distribuído, a um sistema de igualdade na miséria?
ça a agir como desordem e injustiça. Mas decorre daí um fato Por aí se vê quanto é difícil o transplante de ideologia feita
estranho. As nações capitalistas, para impedir o crescimento do para um país e outros climas, difícil de aplicar a outras realida-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 99
des biológicas, que naturalmente reagem. O que pode ser ver- se de todas as vantagens materiais e igualmente dos vícios das
dadeiro junto a um povo pode parecer absurdo a um outro que classes superiores, mas não se preocupa com os deveres, educa-
possui qualidades muito diferentes. Como mandar um urso po- ção e encargos inerentes a esses níveis. Daí decorre um rebai-
lar para o Equador? Ou morre ou se transforma. A vida, com as xamento geral do nível de vida a plano inferiores. Erigirem co-
suas férreas exigências, impõe adaptações dentro de férreos li- mo modelo o homem da rua, o camponês, o operário, significa
mites de tolerância. Por este motivo, como dissemos, o comu- um nivelamento também espiritual e está em correspondência
nismo, se quiser ganhar o mundo, deve desnacionalizar-se, com o atual materialismo, com a psicologia do ventre, própria
adaptar-se e transformar-se, porque existem leis biológicas que do tipo menos evoluído, assim como com a tendência destruido-
nenhuma força pode mudar. O resultado final da realização da ra atualmente em ação em todos os campos mais elevados da
ideologia não sabemos a que distância está do ponto de partida, mente e do coração. O problema é muito vasto. Hoje, nos encon-
porque, para atingi-lo, a ideologia originária deve defrontar-se tramos em fase universal de nivelamento, que não é apenas eco-
com as leis e com a vontade da vida, que a amoldarão inexora- nômico. É natural que os extratos inferiores da sociedade huma-
velmente às próprias exigências, e, se, por ventura, não se qui- na, despertando, nivelando-se e afirmando-se, carreguem consi-
ser dobrar, será despedaçada. Já dissemos que o pensamento da go aos primeiros planos todas as características do involuído.
vida é bem diverso do pensamento dos homens. É aquele, e não O princípio igualitário não interessa apenas ao mundo eco-
este, o verdadeiro pensamento que necessita ser lido para que nômico, mas é fenômeno que investe sobre todas as manifesta-
se possa compreender os fenômenos sociais. Existem princípios ções da vida, mesmo aquelas que não lhes dizem respeito. Pu-
universais mais profundos, que o indivíduo, imerso nos seus seram-se em movimento para sentir a vida todas as células so-
problemas particulares, não vê e que, entretanto, atuam. É, pois, ciais, mesmo aquelas adormecidas em expectação. É certamen-
natural que no mundo imperem motivos diversos, repetidos no te um fermento de vida extenso, mas rude, primordial. Desta
fragor das armas, mas que, embora guerreando, colaboram to- maneira, na quadra atual, cada vez mais decai a raça do indiví-
dos para os mesmos fins evolutivos da vida. duo evoluído selecionado, porque uma emergente maré de vida
Momentaneamente, pondo-nos do lado do capitalismo, po- inferior se impõe, conquista todo o espaço e submerge qual-
demos indagar se a desigualdade econômica, contra a qual só quer superelevação biológica.
hoje a psicologia coletiva se insurge em massa, foi historica- Tal é o momento histórico, do qual o comunismo não é
mente considerada uma injustiça. Se ela existiu, se a vida lhe senão um aspecto no plano econômico-político. Em seu âmbito,
permitiu existir, isto significa que deve ter cumprido uma fun- o nivelamento talvez satisfaça o sentimento de inveja dos me-
ção que hoje teria desaparecido, não se sabendo qual será o seu nos abastados, mas é indubitável que a nossa época deverá pa-
substituto. Só hoje a vida, em um momento excepcional, deci- gar esta conquista com um rebaixamento do tipo mais elevado
diu o progresso das massas humanas em bloco. Antes, com a de civilização. Porém este tipo era de poucos, e o nivelamento
sua habitual parcimônia, ela permitiu o avanço apenas de gru- agora é de todos, e, por isso, faltar-nos-ão modelos elevados, a
pos limitados, que formavam as aristocracias. Este sistema não ser o da mediocridade. Teremos um estado de semicultura,
persistia, ainda que se lhe mudassem os componentes, porque de semirriqueza, de semieducação e finura, mas igual para to-
estava adequado à função de criar modelos de civilização mais dos. É verdade que, na alma do pobre que sonha, o comunismo
avançados, formas de existências mais refinadas, de modo que é bem diverso de um ideal de justiça social, ou pelo menos essa
os menos abastados, a seguir, pudessem por sua vez, imitando- justiça deveria ser, no seu modo de ver, uma substituição por
os, ascender. Estas formas mais adiantadas, quer em razão do sua pessoa nas posições de favor de pessoas dos velhos esque-
meio, quer pelo preparo educativo, não podiam se alcançadas mas sociais. E, assim, ele está pronto a aceitar o comunismo
pelo grosso das massas e se tornavam assim, necessariamente, somente enquanto houver o que ganhar e, se, por ventura, tiver
limitadas a uma classe de reduzido número de pessoas. Estas que resignar-se a uma paridade econômica, só admiti-la-á no
possuíam uma função educadora e diretora, representando uma caso em que signifique para ele uma melhora. Com o que ele
antecipação ou modelo. A Europa admirou, desta maneira, as verdadeiramente sonha é o desnivelamento de antes, mas em
loucuras luxuosas de Luís XIV, que constituíram depois o mo- seu favor. Contudo esta possibilidade de emergir, distinguindo-
delo para a civilização aristocrática do século XVIII e, exauri- se da plebe, está definitivamente eliminada da atual fase histó-
da a sua função, justificaram o assalto demolidor da Revolução rica, mesmo para a plebe. Esta, no igualamento, terá o gosto de
Francesa. A mesma plebe que se sentiu honrada e se extasiava não ver mais diante dos olhos esta exibição de riqueza; não terá
quando era admitida a contemplar a opulência daquela corte ao menos quem e o que invejar; não poderá mais admirar, ainda
nos banquetes reais, nos jardins etc., um século depois consi- que seja invejando, as cenas de que ela mesma sempre foi tão
derava tudo isso um escandaloso insulto. ávida. No entanto poderia ser-lhe útil explorar alguns dos as-
A vida, que se expressa através das pessoas, utilizou o ego- pectos da riqueza que lhe foge, percorrer as experiências das
ísmo da classe aristocrática enquanto esta lhe servia para criar classes refinadas, que conhecem também outras formas de dor,
um modelo. Mas, quando esta classe, egoisticamente pretendeu que a justiça da vida mantém distanciadas daqueles que já se
monopolizá-la para seu usufruto exclusivo, a própria vida se in- encontram abundantemente gravados com a dor da pobreza.
surgiu e, manifestando-se através de todos os que haviam sido Em face destas mais profundas realidades da vida, todos os
excluídos, lançou-se contra os monopolizadores. A vida é por si nossos nomes de partido e de governo passam para segunda
mesma coletivista e não admite injustas exclusões. Então ela plano, e parece até inútil amofinar-se com as distinções atrás
grita pela boca dos deserdados: ―também nós!‖. das quais, sob a forma especiosa de palavras novas, esconde-se
O erro humano que a vida pune e que, para não ser pago, o velho homem de sempre. Então se desce ao terreno da luta,
deve ser evitado está inteiramente no egoísmo e no monopólio. onde é inútil procurar a verdade. Esta situa-se alhures, nas leis
A moral está em que, segundo o verdadeiro coletivismo, que é da vida. E, por esta, as diferenças individuais existem e persis-
o da vida, todos devemos ser irmãos. tem e, como tais, voltarão a manifestar-se. Nenhum nivelamen-
Hoje, com a igualdade, obteremos certamente a justiça soci- to econômico poderá impedir ao mais inteligente e voluntarioso
al, mas também o nivelamento de toda distinção e refinamento, de aparecer, e ao mais obtuso e preguiçoso de ter que se subme-
perdendo completamente o modelo do senhor que, se era rico, ter a ele. A distância entre servos e senhores corresponde a uma
também deveria ser educado, culto e bondoso, pelo menos em realidade biológica e está sempre pronta a reconstituir-se, até na
teoria. Teoria hoje perdida, embora justamente, mas perdida, sua manifestação exterior de posições sociais diferentes. Ne-
porque traída pelas classes altas. O povo está pronto a apropriar- nhuma disciplina de estado pode alterar estas posições substan-
100 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
ciais. Nos indivíduos, como nos grupos, o mais forte se torna os homens de ação, que são necessários, mas não nos deixe-
sempre centro, em torno do qual, como planetas, os mais fracos mos empolgar demasiado pela sua miragem. Atentemos para a
gravitam, seguindo a lei e a ordem que ele lhes quiser impor. vida, que é a única que não mente e pode inspirar-nos confian-
O movimento da vida hoje é o mesmo já realizado no pas- ça. Ela, dividindo o mundo entre capitalismo e comunismo,
sado: a ascensão das classes sociais inferiores. O nivelamento não faz mais do que aplicar o seu universal princípio de duali-
não tem outro sentido. Verificar-se-á uma retração das distân- dade. Nós sabemos que o dualismo é a base do monismo, por-
cias, sobretudo formais, mas as diferenças são insuprimíveis. A que cada unidade que existe é o resultado de duas metades in-
plebe ainda agora é menos evoluída do que os chefes, consti- versas e complementares. Essas duas metades são hoje no
tuindo campo de luta favorável aos dominadores, que continua- mundo: capitalismo e comunismo. Estes formam, por conse-
rão a instruir as massas sempre com novos truques, pois, na guinte, uma unidade. Eles representam a forma atual dos equi-
verdade, cada povo possui os dirigentes que merece e que pode líbrios da vida. Isto é, as duas metades são, como sempre e em
compreender. Desta maneira, as massas aprenderão melhor a toda a parte, equilibradas, tal como o positivo e o negativo em
pensar e, de desilusão em desilusão, sofrendo duramente de ca- todas as coisas, como os dois polos do circuito elétrico ou os
da vez, irão formando, como é natural, à própria custa, a cons- dois termos do sexo. Assim como a história possui os seus pe-
ciência coletiva. Assim, a vida consegue permanentemente, ríodos românticos e clássicos e a política as suas formas de
através da luta, os seus objetivos evolutivos. Como se vê, a ten- democracia e totalitarismo, assim também devem ser encara-
dência destruidora universal do presente não passa de uma fase. dos capitalismo e comunismo. O primeiro é produtor, logo ar-
Em biologia, a destruição tem sempre uma função renovadora. mazenador e conservador, estribando-se na riqueza e no bem-
A substância de todos estes movimentos é a luta biológica, estar material. O segundo é revolucionário, logo expansionista
em que cada um se comporta segundo a própria natureza. Toda e guerreiro, baseando-se na conquista e na ideia. Eles lutam
ideologia tem de se ajustar sempre aos insuprimíveis instintos hoje como o macho e a fêmea no amor, acreditando, como es-
que fazem o homem agir, e, entre estes instintos, são fundamen- tes, poder impor o seu próprio eu para sua exclusiva vitória.
tais o de posse e propriedade, meios poderosos que o ajudam a Mas o terceiro elemento, o filho, que nascerá desse encontro,
subir. O verdadeiro comunismo presumiria o homem angelical, não será exatamente nem um nem outro, pois, ainda que se
desinteressado, altruísta, disposto a renunciar às próprias vanta- lhes assemelhe, será apenas ele. E o que será mais necessário
gens individuais em benefício de todos. para a sua gênese: o macho ou a fêmea? A vida age sempre,
Existem hoje exemplares de tal homem? E, se existem, po- em toda a parte, com os mesmos princípios.
derão sobreviver no mundo atual? Então, como podem subsis- Antigamente, pobres e ricos viviam na mesma cidade. Hoje,
tir tais qualidades? Com o espírito de grupo e o interesse de esta cidade é o mundo, e como todos os pobres se uniram, o
partido? Mas, assim, da ideologia não estará em atividade se- mesmo fizeram os ricos. Assim, o mundo se dividiu em dois. A
não a habitual e antiga luta pelo domínio, a união para gerar a Rússia, que é pobre, fez-se mãe de todos os pobres e está abra-
força. Esta culpa não cabe ao comunismo ou ao capitalismo, çando a China, que também é pobre, em uma ideologia que jus-
mas ao próprio homem, que, em toda a parte, é sempre o mes- tifique a todos. A América, que é rica, fez-se mãe dos ricos e
mo. Na verdade, a meta é o evangelho e a sua justiça. Mas, da- está abraçando a Europa, que até ontem pertencia à casta dos ri-
do o que o homem ainda é hoje, mais avançada aproximação cos. Se, no passado, todo pobre pedia esmola ou pretendia ex-
em massa não se pode obter presentemente. Tudo sucede em torqui-la ao rico à força, cada um cuidando de si mesmo, sem
virtude de uma razão profunda e colima num objetivo na vida, pensar em outro pobre, e cada rico dava isoladamente, hoje, em
e este ainda está muito distante para que os homens da atuali- consequência da atuação do princípio das grandes unidades, o
dade o percebam. Amanhã, a fase atual de capitalismo e co- mesmo gesto, de uma parte ou de outra, é repetido em grandes
munismo estará superada. Sem dúvida nenhuma, a consciência massas. Hoje, não é mais um pobre ou um grupo deles, mas é
coletiva foi despertada e as massas sentem com maior clareza a uma metade do mundo que pede e impõe justiça econômica à
voz da vida. Os erros serão pagos e, na dor, serão corrigidos. outra metade. A realização do princípio das grandes unidades a
Deste modo, por eliminação, sobreviverá apenas o melhor, que que o progresso nos conduziu nos faz alcançar a unificação em
passou pela seleção das provas. todos os campos, começando pelo econômico.
Todos os movimentos hodiernos, ainda que em parte nau-
fraguem, possuem uma grande função como escola e prova. IV. A UNIDADE POLÍTICA
Começará a formar-se um egoísmo de classe que é mais vasto
que as unidades psicológicas que se haviam formado no pas- Nos capítulos precedentes, observamos o principio da unifi-
sado. Tudo que arvora-se em coordenação e unificação é uma cação e a sua presente atuação no mundo, que representa a fase
forma de progresso. A estruturação da organização de classe atual do seu progresso. Trata-se da coordenação de múltiplos
levará a um sentido de unidade por parte de células que ainda elementos antes heterogêneos em novas unidades-sínteses, o
não se conheciam. A coordenação dos egoísmos de classe em que significa uma ascensão na hierarquia do ser, dado que este
mais amplos egoísmos de povos e humanidade levará a novo é um momento da reordenação progressiva do caos, através da
progresso. Já vimos, no volume A Nova Civilização do Ter- qual tudo tende a voltar para Deus. Qualquer que seja a atitude
ceiro Milênio, os métodos de aquisição do involuído. Ele é le- que o homem queira presentemente assumir, no bem ou no mal,
vado a considerar ―legitimamente seu‖ qualquer coisa em que, o fato novo que exprime o progresso atual é que tudo hoje co-
de alguma forma, tenha arriscado a pôr as mãos. As atuais meça a suceder em escala sempre crescente, em razão do ho-
macerações sociais levam-no, pelo amadurecimento, a conce- mens abranger distâncias cada vez maiores, agrupando-se, con-
ber uma propriedade cada vez menos egoísta e exclusivista, sequentemente, em unidades mais amplas.
cada vez mais coletiva e social, até à sua negação no comu- Falando em A Grande Síntese (Cap. XXVII) da lei das uni-
nismo. Esta é uma maneira de conduzir o involuído à concep- dades coletivas, simplesmente constatamos esta estrutura analí-
ção que o evoluído possui de propriedade, que, em outra par- tico-sintética, isto é, coletivista, através de reagrupamentos or-
te, veremos ser muito diferente. gânicos no universo. Aqui, estamos observando alguns casos
Muitos são hoje os modos pelos quais a vida procura eclo- particulares situados no campo social da presente fase histórica,
dir das suas velhas formas. Não nos resta mais que confiar na analisando algumas unidades coletivas, sobretudo no seu pro-
sua sabedoria e nos limitarmos a segui-la, lendo-lhe o pensa- cesso de formação, ou seja, não em seu aspecto estático, mas
mento, que se inscreveu nos eventos da história. Respeitemos sim no dinâmico de sua transformação.
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 101
No capítulo anterior, verificamos assim o fenômeno hodi- Em nosso século de movimento e velocidade, assistimos a
erno das grandes unificações mundiais na fase de interesses um contínuo desmoronar de barreiras. As paredes divisórias,
econômicos. erguidas pela ignorância humana, por mais que resistam, vão
Passamos agora a observar o mesmo fenômeno no campo sendo paulatinamente demolidas. No campo político, revela-se
político e, finalmente, o veremos no religioso. No estudo des- absurda e ofensiva para os excluídos a ideia de uma absoluta
tes casos particulares de unificação, encontramos também uma superioridade racial, como o é também a de uma absoluta supe-
explicação e uma confirmação do monismo que sempre nos rioridade individual. Tanto mais perniciosa é semelhante ideia
guiou nesta obra. Por este estudo, o leitor verá que todos os quanto mais ela tende à escravização e ao extermínio de outras
problemas são sempre orientados para o mesmo princípio uni- raças ou povos. Toda raça possui qualidades que não se forma-
versal. Mesmo agora, partiremos utilizando um ponto de refe- ram ao acaso e que têm uma função coletiva. Cada povo pode
rência de caráter universal. oferecer uma contribuição útil à formação do novo organismo
A criação não é o resultado da intervenção exterior por parte da humanidade. E, se existe uma raça mais evoluída, esta tem,
de um princípio transcendente que do nada cria tudo de uma vez. por isso mesmo, o dever de educar e fazer evoluir, e jamais o
A realidade fenomênica nos mostra universalmente que a criação direito de esmagar e desfrutar.
é o resultado de uma contínua e íntima atividade de um princípio A mentalidade moderna, especialmente depois das últimas
imanente, cuja faculdade criadora deriva do fato de dispor de um experiências bélicas, é impelida a fazer a crítica do velho con-
modo permanentemente novo e diverso de formas transitórias e ceito de nacionalidade, que dividiu e prejudicou o mundo por
caducas, numa substância que é indestrutível. O que muda e se milênios. Então interroga: que interesse tem alguém em matar,
acaba é apenas a forma. Somente ela nasce do nada, e não a subs- por motivos de estratégia política, homens que não conhece?
tância. Esta é envolvida por uma cadeia de contínua composição Em face de qualquer afirmativa, o espírito crítico moderno vai
e decomposição, segundo modelos diferentes. Tudo se individua- espiar por trás dos cenários, dando origem então à dúvida de
liza em tipos definidos e, compondo-se, passa a existir. Depois que as exaltações heroicas, as honorificências bélicas, podem
desintegra-se, para recompor-se de novo, em uma existência mais ser criações artificiais dos governos ou classes sociais, a servi-
completa e perfeita, consoante a marcha da evolução. Através ço dos seus objetivos egoísticos, e que, efetivamente, não inte-
deste florir e fenecer para reflorir, nascer e morrer para renascer, ressa aos povos, conduzidos assim ao massacre, para vantagem
a vida avança – movimento que, se é esforço e parece instabili- de alguns. O racionalismo moderno abalou a confiança simples
dade, é porém meio de inexauríveis conquistas. Por isso é certo de antanho. Os últimos desmoronamentos de grandes potências
que quem toma por realidade definitiva a forma transitória e a ela e os rápidos transtornos que sofreram as pregações e os ideais,
se fixa, abraça apenas uma aparência e se perde na ilusão. Isto puseram à mostra o desgaste de muitos políticos que em geral,
não acontece a quem se fixa na substância. antes, se mantinham ocultos. O lamentável aspecto dos gover-
Dito isto, vejamos sua aplicação. A nova era, na qual o nos desnudados desacreditava a ideia de Estado. A proclama-
mundo está para entrar, não é uma criação nova do nada, mas ção feita aos quatro ventos dos abusos praticados pelos diri-
somente uma forma diversa e mais elevada de vida, em que os gentes soou aos ouvidos do cidadão, inimigo natural de seu pa-
elementos individuais e sociais da humanidade, hoje existen- trão estatal, não mais como uma reivindicação de justiça, mas
tes, serão dispostos diversamente, isto é, mais harmônica e or- como uma simples acusação pública contra toda autoridade,
ganicamente, com maior amplitude e profundeza de fusão, razão e justificativa de desordem e consequente incentivo à re-
através da supressão de tantos atritos dolorosos, de modo a belião. Degringolou assim o prestígio da autoridade em si
tornar possível a formação de uma individualidade biológica mesmo, personificada em quem quer que fosse. O homem, tor-
coletiva mais harmônica, extensa, complexa e perfeita, ou seja, nado mais astuto e suspicaz pela constatação de tantos enga-
uma civilização mais avançada. nos, começa a compreender os truques de todos os governos,
Há milênios que os indivíduos sofrem uma elaboração den- de todos os programas, de todos os partidos, e sabe agora por
tro dos mais variados acontecimentos históricos, que de modo que método a imprensa fabrica a opinião pública e, em meio a
nenhum se podem repetir igualmente. Ainda não existe a com- tantos mestres, aprendeu a desconfiar de todos. O homem de
preensão, mas há a possibilidade de se alcançá-la. Indiscuti- vida privada quer os seus negócios, a sua paz. Os povos estão
velmente, o homem é, na maioria dos casos, um involuído. cansados de guerra. Eles não admitem hoje senão uma guerra:
Mas dois fatos novos surgiram: a extensão das suas faculdades a guerra contra aqueles que pretendam desencadear novas
racionais, mercê da ciência e da cultura, e o progresso tecnoló- guerras. Por este motivo, quem deseja fazer a guerra desempe-
gico, que libertou o homem do trabalho material e lhe facultou nha antes o papel inocente do agredido, proclamando ao mes-
fáceis e rápidos meios mundiais de comunicação. Formou-se, mo tempo que é o defensor da paz.
pois, na humanidade, a capacidade e o meio para que ela se No entanto murmura-se: o pacifismo abre as portas ao inimi-
sinta em qualquer dos seus pontos. Não existe ainda o senso da go. É verdade, mas o atual transtorno e relatividade de frontei-
organicidade, mas as suas premissas já estão plantadas. O ras, com os meios aéreos que as podem superar e com a moder-
mundo está maduro para começar a compreender e movimen- na tendência a grandes unidades mundiais, faz tal frase perder
tar a ideia nova de unidade. dia a dia sua significação. A guerra se faz, cada vez mais, com
A velha mãe Europa completou grande parte da sua tarefa, capitais e indústrias e, cada vez menos, com patriotismo e espíri-
irradiando a própria civilização para as duas Américas, as suas to heroico; cada vez mais, com a capacidade técnica e, cada vez
duas filhas, a latina e a anglo-saxônica, nas quais se expandi- menos, com o valor militar. Por isso tem mais ação protetora pa-
ram e revivem as duas grandes raças europeias. O mundo está ra o povo o senso orgânico industrial do que o sentimento béli-
dividido hoje entre as duas únicas grandes potências: Rússia e co. O mundo se transforma, caminha para a fase orgânica coleti-
América. De qualquer maneira, deverão defrontar-se e decidir a va. Ora, o coletivismo é, pela própria natureza, colaboracionista,
supremacia mundial, alcançada a qual, tudo girará em torno de antiagressivo e pacifista. Pelas suas naturais destruições, a guer-
um único centro, aquele que demonstrar como potência, justiça ra encaminha-se para destruir a si mesma. A técnica torná-la-á
e inteligência, ser o melhor. Somente a formação de um único tão destruidora, que o mundo entrará em coalizão, em autodefe-
governo central poderá estabelecer uma ordem que isole e eli- sa, contra quem quiser recorrer a ela. E, assim, o espírito belico-
mine a violência bélica dos Estados separados. Os idealismos so de virtude se transformará em culpa. Tudo isto, hoje, pode
antibélicos podem exprimir um desejo e preparar o terreno para parecer desmoralização, mas, com a evolução, as necessidades e
a paz, mas não são por si sós suficientes para eliminar a guerra. os valores éticos sociais mudam. A vida avança e abandona os
102 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
valores que não mais a servem. O que servia em um mundo de Compreensão não significa sujeição do superior ao inferior e,
paz temporária, permitida por um equilíbrio instável entre tantas muito menos, do inferior ao superior, mas coordenação, segun-
nacionalidades distintas e rivais, não serve mais para um mundo do o valor intrínseco e peso específico de cada unidade, para a
que gravita em torno do único poder central, para um mundo or- formação de um todo orgânico e único. Cada religião na sua
gânico, ligado assim ao pacifismo. Os meios técnicos conquista- justa posição, consoante à sua elevação espiritual. Há lugar,
dos, assim como emancipam o homem dos esforços animais, pois, para os budistas, maometanos, hebreus e cristãos de todos
também o levam a aplicar as suas energias em lutas mais eleva- gêneros, inclusive os católicos. Há lugar para cada religião, pa-
das, para servir a uma seleção espiritual, e não material. ra cada seita que supere o espírito sectário, para cada forma de
O patriotismo, sentimento tão fundamental no passado, pa- fé, filosófica ou científica, contanto que seja livre e que tenha
ra a defesa nacional, ressente-se da mutação condicional da vi- tendência sincera para o espírito e para o divino.
da e se transforma. Ao invés de surgir como exaltação heroica, Também isto pode parecer desmoralização. Mas tantas sub-
ele se nos revela em outros aspectos, que lhe são peculiares, divisões humanas do mesmo sentimento de adoração a Deus,
em conexão com sentimentos de intolerância, rivalidade, com as quais acredita-se ciosamente conservar a fé, são mais
agressividade, guerra e destruição. Cada um desses sentimen- questões de forma do que de substância e atingirão a unidade
tos encadeia-se com outro, numa sequência de raízes profun- quando souberem superar a forma, atendo-se precipuamente à
das. A elevação do nível de vida e a progressiva evolução do substância. Dê-se à forma o valor que merece e não mais. Quan-
ser humano o tornaram mais sensível a tudo, especialmente em tos delitos se cometeram por ela, quantos massacres se fizeram
face da destruição, cujas dores se tornam cada vez mais insu- em nome do mesmo Deus, que a cada qual parecia tão diverso,
portáveis. Se o patriotismo é belo dentro dos limites pátrios, no sendo sempre o mesmo. É evidente que tudo quanto divide é sa-
exterior constitui uma ameaça, e a cada exaltação patriótica in- tânico. Os caminhos de Deus, que são amor, conduzem à unida-
terior corresponde uma recrudescência de ódios nos países vi- de. O espírito egocêntrico e sectário é uma expressão do mal. O
zinhos. Estes isolamentos egocêntricos se tornam gradativa- espírito de compreensão, altruísta, é expressão do bem. Em to-
mente mais absurdos em um mundo tão intercomunicante nos das as igrejas se adora Deus, e trata-se do mesmo Deus. No en-
seus interesses e relações de qualquer gênero. tanto queremos dividir-nos com a pretensão de definir o indefi-
Hoje, sentimos o peso das barreiras a que nos sujeitávamos nível infinito, de conceber o inconcebível, de dar no relativo
no passado, resignados como a um fato inevitável. Tem-se sede uma forma àquilo que, podendo assumi-las todas, está acima de
como nunca de liberdade, de uma liberdade mais ampla que a qualquer forma! Se a verdade absoluta é uma só e jamais muda,
precedente, de mais espaço, porque, de criança, o mundo trans- é natural que, no relativo humano, não possa caber senão uma
formou-se em adulto. Como nunca, hoje o homem sente que a verdade relativa, limitada e em evolução. É natural que a capa-
vida é tanto mais bela quanto mais livre. A intensificação do cidade humana de compreensão não possa abarcar a verdade ab-
dinamismo moderno e dos meios de movimentação que satisfa- soluta, que está além de toda a inteligência humana e que, pois,
zem a este dinamismo exige liberdade. E uma liberdade maior a esta verdade não se pode subir senão por graus, por aproxima-
não se pode obter senão com uma tolerância e compreensão ções sucessivas. Na livre atmosfera espiritual do universo, todo
proporcionalmente maiores. Do princípio de que é grande quem isolamento fechado de uma verdade particular é estiolamento e
ama apenas a própria pátria, odiando todas as outras, chegar-se- morte. Cada profeta, cada fundador de religião, levou a sua
á ao de que é grande quem ama ao próximo como a si mesmo. mensagem do mesmo Deus, em formas diversas, adaptadas ao
Aquilo que, perante a velha mentalidade, parece desmoraliza- homem e proporcionada aos tempos. Não confundamos a forma
ção é, pelo contrário, uma queda de barreiras. O patriotismo do com a sua essência. As diversas mensagens de Deus não são
futuro abraçará todo o mundo, e um homem não será cidadão verdades diferentes e inimigas, mas sim as formas sucessivas
senão da nação humanidade. O tipo biológico do futuro, senhor com as quais se exprime a palavra de Deus aos homens em um
do planeta, o vencedor da luta pela vida nas suas novas formas, mesmo progressivo plano de educação.
não será o homem belicoso, violento e feroz de antanho, mas Não basta a tolerância, que é atitude passiva. É necessário
um ser orgânico, ―o homem social‖, célula de um imenso orga- alcançar a compreensão, isto é, a fraternidade entre as várias re-
nismo humano, cuja vida nada mais terá a ganhar com a extor- ligiões. Não se trata de suportar um inimigo tolerando-lhe o erro
são do indivíduo pelo indivíduo praticada até agora, mas base- com um tácito espírito de condenação, trata-se sim de ir ao en-
ar-se-á no desfrutamento das inexauríveis riquezas e energias contro de todas as formas de fé, de coração aberto, procurando,
que transbordam da natureza. mais do que aquilo que as divide, aquilo que as pode unir. É ne-
cessário compreender que elas não são mais que diferentes está-
V. A UNIDADE RELIGIOSA gios históricos, fases evolutivas ou formas étnicas de uma mes-
ma religião única, que evolve paulatinamente e se completa de
O mundo atual não caminha apenas no sentido da unidade período em período. Por que deve o adulto ser inimigo do jovem
política internacional em que está implícita, numa relação de ou da criança; o fruto, inimigo da flor ou do botão ou da semen-
causa e efeito, a unidade econômica, mas avança também para a te, se é sempre o mesmo eu que marcha no tempo, evoluindo? A
unidade religiosa. Neste campo, igualmente tão importante co- atual mania separatista no campo espiritual torna-se dia a dia
mo o político e econômico, lavra uma tendência, em meio a mais ilógica e prejudicial. As barreiras que dividem o mundo
tantos grupos distintos e hostis, à unidade, isto é, à formação de são ainda grandes, mas, na época atual, elas deverão desmoro-
um só rebanho, com um só pastor, mas é necessário frisar que nar. A luta entre as religiões esteve até agora unida à luta racial,
isto, assim como para as raças e nações, não se deve interpretar política, econômica e nacional. É evidente que, conseguindo-se
como supremacia de uma religião e seus representantes, com a unificação nesses últimos campos, deve-se conseguir a unifi-
exclusão das outras religiões e seus representantes. Assim como cação também no campo religioso. Visto que a realidade funda-
a futura humanidade será uma unidade racial e nacional acima mental das religiões é uma só e a mesma e que a luta religiosa é
das diferentes unidades raciais e nacionais, a religião do futuro frequentemente a expressão de rivalidade de outro gênero, é cer-
também será uma unidade espiritual acima das diferentes uni- to que, desaparecendo esta, a tendência à unidade em todo cam-
dades religiosas. Em outros termos, da mesma forma que no po acarretará a fraternidade também no campo religioso. Esta
campo político, social e econômico, a unidade no campo religi- fraternidade fará com que o mais evoluído compreenda e ajude o
oso também não pode ser dada senão pela compreensão e fusão menos evoluído, ao invés de condená-lo e combatê-lo. Não é
em um todo harmônico das verdades religiosas existentes. nociva a disputa de interpretação quando acarreta cisão e ódios?
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 103
Não é a essência da religião a união, a fraternidade, a aproxima- cido. Elas avançam com a psicologia dominante. Ideias que, há
ção de Deus, amando o próximo? A mais profunda erudição, poucos anos, pareciam heresias, como o conceito de evolução,
sem o ardor de sacrifício e de fé, é puro farisaísmo. É evidente, hoje são admitidas. Assim será também amanhã para estas pá-
já o dissemos, que em nosso tempo assistimos a um desmoro- ginas. Deixemos que, no homem, o finito caminhe gradativa-
namento de barreiras em todos os campos. O instinto expansio- mente para o infinito, pois que jamais o atingirá. Deixemos que
nista, sempre fundamental e ativo na vida, jamais atirou como o homem faça de Deus a representação admissível pelo seu po-
agora uns nos braços dos outros, ainda que o seja por instinto de der de concepção. Tudo quanto ele disser de Deus jamais será
violência bélica e num amplexo de ódio. Não importa. Os fins Deus, mas a Sua limitação para uso humano. A essência da di-
da unificação em um mundo involuído se manifestam sobretudo vina realidade é para nós inconcebível, e qualquer especulação
em forma de luta, que é a primeira fase do avizinhamento. A vi- filosófica e teológica não pode nos dar dela mais do que uma
da é sempre expansionista em qualquer nível, desde as invasões longínqua aproximação. O homem não pode ver Deus senão em
bárbaras, que reduzem os povos à servidão, aos imperialismos Seus espelhos. Passam pela Terra seres como o poeta, o gênio,
políticos e econômicos, até mesmo na ordem evangélica, que o santo, o herói; tão avançados, que neles podemos ver um re-
diz: ―Ide e pregai a toda a gente‖. Tudo tende sempre a dilatar-se flexo de Deus; alguns tão perfeitos, que nos aparecem como
e, por conseguinte, à unidade. semelhantes a Deus. Se a essência divina não é cognoscível, as
No campo religioso ocidental, esta dilatação não pode ser manifestações da Sua qualidade são visíveis por toda a parte, e
realizada pela segregação dos dissidentes, mas sim por uma ex- nada existe que não nos fale d'Ele. Então poderemos vê-Lo em
pansão além de sua forma atual. É necessário encontrar, para lá todo rosto e forma, amá-Lo em toda criatura, encontrá-Lo em
do Cristo chefe de uma única religião, o Cristo universal cone- toda parte. Então compreenderemos que Deus não se atinge se-
xo a todos, no qual se pode, assim, concentrar o consenso de não amando o próximo e que, se agredirmos e detestarmos,
todos os justos que seguem os princípios do evangelho, ainda ainda que seja em nome de uma fé, estamos nos distanciando
que formalmente se filiem a outros ritos e hierarquias. Uma d'Ele. Acima das diferentes formas religiosas está, pois, a subs-
verdadeira expansão não se pode verificar a não ser neste senti- tância da verdadeira religião de Deus, que só pode ser única.
do, porque é o único que não gera reações naturais de defesa. Hoje, vivemos ainda em um mundo de cisões. Não se pode
Os obstáculos nascem do que é material e terreno. As cisões re- dar um passo sem tropeçar numa parede divisória. Nenhuma fé
ligiosas nasceram, com frequência, das rivalidades nacionais e verdadeira pode existir com o espírito sectário de domínio, no
raciais. Quando a ideia assume forma concreta de homens, hie- entanto é este que se encontra em todos campos. É o mesmo
rarquias e interesses terrenos, entra-se no campo biológico, com espírito humano de luta e exclusivismo que impera. Deus, o
seus absolutos antagonismos. Quanto mais a religião assumir bem e o justo estão sempre desse lado; Satanás, o mal e a culpa
forma material, tanto mais ressentir-se-á das lutas que dominam estão sempre no lado oposto. É sempre o homem agindo por si
a vida terrena e delas dependerá. Se esta pode ter sido uma dura mesmo, e não fazendo-se instrumento de Deus. Os métodos de
necessidade do passado, pela qual a religião, o poder temporal, Deus são opostos: aqueles que o seguem, praticam antes de
a força e a guerra tiveram que misturar-se, é também verdade pregar; convencem com o amor e com o exemplo antes de
que tudo evolui e que, com o tempo, tudo se espiritualiza. constranger com as argumentações, ameaças de sanções e de
Quanto menos a ideia penetrar no árduo terreno biológico, tanto condenações morais. A guerra santa é uma contradição. Matar é
mais independente ela se torna de todas as limitações que daí sempre um delito, mesmo que se cumpra em nome de Deus. A
derivam e tanto mais possível se lhe torna a expansão e a con- guerra religiosa não se faz com a espada, mas com o exemplo e
sequente unificação, que estão a serviço da espiritualização. o martírio. Jamais puderam as perseguições sufocar a verdade,
Tal é o processo evolutivo das religiões, que, nas suas for- tornando-se, pelo contrário, instrumento de divulgação. Para
mas, exprimem as etapas seguidas pela ascensão biológica dos cada crente morto pela sua fé, formam-se centenas de novos
povos. Essas formas são o efeito da forma mental dominante crentes. Esta também é uma estratégia de guerra, ainda que
nos vários séculos. As culpas e erros que se atribuem a uma hi- oposta à estratégia bélica humana.
erarquia humana não passam de culpas de um século e mais ou No limite extremo do nosso ciclo histórico, os conceitos se
menos de todos os homens. Quando a evolução biológica tiver tornaram mais ásperos. Se ciência e fé não estão de acordo em
civilizado o mundo, a religião ter-se-á libertado da forma terre- algum ponto, isto significa que, aí, pelo menos uma delas deve
na e, então, poderá expandir-se sem as reações de parte a parte, possuir algum conceito errado e, por conseguinte, não pode ter
rivais apenas porque são formas terrenas. Quando a religião se razão. Isto porque uma religião e uma ciência que sejam verda-
fundamentar no céu, não haverá, como não há para os santos, deiras e completas não podem deixar de concordar, devendo
razão de rivalidades na terra e desaparecerão todos os males ambas dizer de maneira diferente o mesmo pensamento de Deus.
que dela derivam. Céu e terra são dois opostos. Toda potência É necessário que essas duas asas do espírito humano se movam
terrena é uma impotência no céu, e toda derrota na terra é uma sincrônica e harmonicamente, sem o que o voo não será possí-
vitória no céu. Assim, quando a religião for apenas espírito, en- vel. Não se voa com uma asa só. Com a religião apenas, cai-se
tão, automaticamente, será universal. A unificação só pode vir na superstição; só com a ciência, resvala-se para o materialismo.
fora da terra, no único Deus universal, que, acima de todas as Hoje, Oriente e Ocidente estão divididos, não se comuni-
divisões humanas, domina-as todas. cam, não se compreendem. Entretanto o primeiro tem necessi-
Em outros tempos, não maduros para tais conceitos, era dade dos conhecimentos científicos do Ocidente, e este precisa
uma necessidade histórica fixar a verdade na forma, restringin- dos ideais espirituais do Oriente. Um simples intercâmbio pre-
do a liberdade de pensamento no campo da fé, para impedir o encheria as duas lacunas. Presentemente, as religiões e as várias
seu fracionamento em heresias. O misoneísmo possui funções formas de fé são, com frequência, causa de separações e de
conservadoras, também necessárias. O cisma era o terror de to- ódio. Quem, com estes sentimentos, professa qualquer religião
da a unidade religiosa, que representava uma laboriosa e preci- ou fé é antirreligioso, e toda religião que não gerar amor, har-
osa construção, custara milhares de mártires para formar-se e monia e união não é verdadeira religião. A verdade que se fun-
exigia uma plêiade de pensadores e uma legião de ministros pa- damenta em anátemas e acusações recíprocas de falsidade está
ra manter-se. Ele se insurgiu contra tal espírito conservador, muito longe do espírito de verdadeira religiosidade. O progres-
que tem contudo a sua função e, de fato, não freia a evolução. so do conhecimento exige colaboração em todos os campos,
Não obstante a sua aparente imobilidade, as religiões caminham porque cada um está ligado ao outro e toda descoberta, qual-
conexas com o progresso humano. De outra forma, teriam pere- quer que seja ela, ilumina a todos. Assim, o astrônomo, o quí-
104 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mico, o físico, o biologista, o psicólogo, o sociólogo, o filósofo, VI. OS CAMINHOS DA SALVAÇÃO
o teólogo etc., ajudam-se constantemente um ao outro. É neces-
sário que eles se compreendam e se completem fraternalmente. O leitor que seguiu a vasta orquestração ascensional com a
A síntese universal do saber só poderá surgir desta unificação, qual procuramos dar apenas um eco daquela que realmente vive
em que o intérprete da divina revelação dos textos sagrados e soa no infinito, ver-se-á agora, gradativamente, conduzido ao
concorde com o intérprete do mesmo pensamento divino escrito mundo místico. Uma vez neste, teremos nos avizinhado do pon-
na realidade fenomênica. to culminante deste trabalho, para depois, novamente, descendo
Todos esses dissídios constituem um contínuo óbice às pes- de grau em grau, atingirmos o seu termino. Ao vértice, o leitor
quisas e manifestações do pensamento. Cada seção, cada fé, será guiado por uma real experiência do autor. Essa, como aqui
possui uma terminologia própria com que pretende enclausurar está exposta, representa dele uma nova maturação, cujo trajeto
a verdade nos limites do seu monopólio. Apresenta formas que preparatório está nesta obra delineado nos quatro capítulos que
constituem simplesmente as vestes da própria verdade, acredi- se seguem, do VI ao IX, em que se estabelece a base para o sal-
tando com isto apresentar a própria verdade. Quem tem espírito to até o capítulo XI: ―Ressurreição‖, que conclui a fase. O capí-
de separatismo se escandaliza com quem, possuindo espírito de tulo XI pode ser considerada o ponto culminante deste volume.
unidade, diz a mesma verdade indiferentemente, de qualquer Estes quatro capítulos foram sentidos e registrados na Qua-
maneira. Este último, na realidade, acredita dar um bom exem- resma do ano de 1947, em um lance instintivo que representava
plo de unificação quando, no campo religioso, animado de fé, uma preparação à eclosão da Páscoa do mesmo ano, na ―Res-
fala e escreve sobre as mais diversificadas questões como se surreição‖, que se segue. Nos aproximaremos deste ponto ao
fossem uma coisa só; quando demonstra que se sente igualmen- entrar em mais detalhes à medida que avançarmos, atingindo a
te bem entre crentes de qualquer fé, sejam católicos, protestan- ―Paixão‖, que se apresenta como antecedente para uma eleva-
tes, hebreus muçulmanos, budistas etc., contanto que sejam sin- ção, assinalando o harmônico retorno do ritmo de uma vida. Es-
ceros; quando mostra que sabe venerar a Deus tão bem em uma tes quatro capítulos foram escritos para em opúsculo individua-
igreja como em uma sinagoga, ou em uma mesquita, ou em um lizado, cujo capítulo seria ―A Comunhão Espiritual‖, que deve-
templo hindu, ou mesmo a céu aberto. Deus, em toda parte, não ria narrar completamente uma experiência mística, logicamente
é o mesmo? Quem possui espírito de unidade, que é muito mais apresentada e enquadrada. Porém, não tendo sido possível en-
do que tolerância, desfruta dessa confraternização, que ofende o contrar um editor religioso que quisesse publicar o opúsculo
espírito de exclusivismo e intransigência de tantos. Às vezes sem antes obter o ―imprimatur‖ e visto, também, que este grupo
acontece que uma verdade, ainda que aceita por uma crença, é de capítulos representava a fase espiritual vivida pelo autor a
por esta condenada quando exposta com a terminologia e di- meio caminho da gênese do presente volume, ele foi incluído
vulgada com a configuração de uma outra. Surgem assim estra- aqui, neste ponto e neste momento, em seu lugar mais natural e
nhas contradições: um livro ou uma ideia são exaltados sobre- lógico, como verdadeira exposição de estudos místicos vividos.
tudo porque condenados pela parte oposta, que é sempre de Sa- Todavia resta o fato que esses quatro capítulos, tendo sido
tanás, e o mesmo livro ou ideia são expulsos como satânicos escritos para um opúsculo separado, tiveram que ser refeitos
mal sejam aceitos e subscritos por essa parte. Pobre verdade! nessa ocasião para adaptarem-se aos conceitos gerais, que de-
Efetivamente, quando se expõe um conceito, é necessário man- viam ser aqui escritos resumidamente, a fim de permitir um
ter-se no princípio abstrato, onde todos estão de acordo, porque melhor entendimento ao leitor novo, mas que se tornam repeti-
ele não toca em pessoas e interesses. Mas, quando se entra em ção supérflua para quem os acompanhou nos outros volumes.
particulares, até alcançar os representantes terrenos dessa ideia, Não obstante, dado que se trate de poucas páginas, aqui nada
então a controvérsia é inevitável, e a condenação da parte opos- alteramos da sua original espontaneidade, seja porque qualquer
ta é certa. Isso demonstra que aprovação e condenação são com alteração seria difícil hoje, em face do estado de alma superado
frequência frutos de interesses e preconceitos. Muitos concor- e longínquo que os criou, seja porque somente de um texto as-
dam hoje em seguir o Cristo da história, porque pode parecer sim, deixado íntegro, poder-se-á construir em seguida, para as
estar longe e afigurar-se teórico, mas quantos o seguiriam se almas devotas, um extrato autônomo completo em si, num
Ele voltasse à Terra e ferisse os interesses terrenos? opúsculo. O leitor que já conhece os motivos gerais que nesses
Aqui, esboçamos a unificação sobretudo no aspecto religioso, quatro capítulos aparecem como ponto de experiência para uso
porque a religião é a base da civilização. Mas, neste aspecto, es- de um leitor novo, a quem era destinado o opúsculo, poderá
tão implícitos todos os outros. Os sinais dos tempos nos revelam facilmente dispensar a sua leitura. Mas, nem mesmo aqui, de
a aproximação de uma nova era para o mundo. Esta será a era da resto, será completamente inútil projetar aqueles conceitos
unidade. Isto quer dizer era do espírito, do amor, da consciência. complexos sob um ponto de vista diferente, isto é, de uma
E, só quando tudo isto existir, poderá haver também liberdade. forma prática para as almas simples, mais como aplicação vi-
Esta é algo que o homem procura, mas que ele ainda não apren- vida do que como teoria ou demonstração.
deu a conseguir. A nova civilização nascerá da substituição pro- Pode saltar esses quatro capítulos o leitor que não aprecia a
gressiva da animosidade recíproca pela ajuda recíproca. psicologia do tipo místico-religioso, para satisfazer-se com os
É lei de vida que a crisálida se transmude em borboleta, que de caráter filosófico, social, cientifico ou psicológico. Todavia
a criança se torne adulto e que a flor desabroche e origine o fru- deverá admitir que, em nome da imparcialidade e universali-
to. Tudo deve fatalmente maturar. É verdade que sempre esti- dade que aqui foram sempre profundas, não se pode excluir a
vemos e todos já nos encontramos unidos em um organismo priori nenhuma forma de pensamento e, por isso, nem mesmo
universal, ainda que muitos não o saibam. Mas hoje estamos a místico-religiosa, dado que alguns estados de alma não se
unidos mais por vínculos de ódio e de luta do que de amor e podem exprimir de outra maneira. Os aspectos da verdade
compreensão. Que vínculos duros e tristes são estes. O homem apresentados neste volume são variados, e cada um traz consi-
do futuro será consciente desta unidade que hoje não compre- go a sua forma mental e a terminologia que lhe corresponde.
ende. Presentemente, estamos unidos mais pela dor do que pela Quanto menos formos universais, tanto mais nos encerraremos
alegria, unidos sem querê-lo, unidos sem compreendê-lo, uni- em um ponto de vista particular e tanto menos poderemos ob-
dos pela força. União suportada, e não sentida e conhecida; vi- ter a visão conjunta do verdadeiro. Para compreender este, é
vida sem a coparticipação consciente nesta divina unidade de preciso saber pensar nas mais díspares formas mentais e ex-
tudo quanto existe no universo, que é a mais evidente expressão primir-se segundo as mais diversas psicologias e terminologi-
de Deus e a maior maravilha da vida. as. Quem se fecha no seu particular aspecto do verdadeiro, es-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 105
candalizando-se quando se lhe mostram outros aspectos da ve senão em função de uma dada vantagem. E a vantagem neste
questão, não pode compreender estes escritos, que são anima- caso, para cada um, é um estado de felicidade dependente ape-
dos pelo principio da mais imparcial universalidade. nas de si mesmo, e não das condições do ambiente e da vontade
Sob a orientação que aqui se segue, foi escrito: ―A religião alheia. Para o mundo, a vantagem está em receber a mais valio-
universal de Cristo‖. Acompanha-o quem vive na disciplina do sa contribuição hoje possível para conseguir a sua salvação em
espírito, tremenda porém livre, porque é consciente e convicta. uma hora histórica de tremenda gravidade.
Não há nisso nenhuma anarquia, mas sim uma ordem maior, O nosso mundo de hoje é materialista. Projeta-se pelas vias
porque, além de exterior, é também, e sobretudo, interior. sensórias, que chama de objetivas, completamente para o exte-
Só a universal religião do espírito, nas pegadas de Cristo, rior e só aí procura a solução dos seus problemas. Nós segui-
vivendo o evangelho, reunindo todos os justos da Terra, de mos uma via oposta. Ao invés de agir sobre os efeitos, pene-
qualquer religião, pode dar ao mundo uma unidade religiosa, tramos nas causas, na substância espiritual das coisas e dos
que não se pode obter por imperialismos e imposições morais, problemas, havendo antes bem compreendido como tudo funci-
mas apenas por compreensão e confraternização. ona. Trata-se de compreender, para depois agir de maneira in-
Isto dito, quem escreve pode afirmar que tudo quanto segue, teiramente diversa da habitual. As fontes do conhecimento e do
antes de ser exposto, foi por ele experimentalmente vivido, ob- poder, da riqueza e da saúde não estão, como a maioria crê, no
jetivamente estudado, cientificamente compreendido. Não se mundo material, exterior a nós, mas no mundo espiritual. E tu-
trata, pois, de vagas aspirações, mas de realidades controladas do o que se realiza naquele não é mais do que uma consequên-
com o método da observação e da experimentação, ainda que cia daquilo que primeiro se realizou neste. Tudo deriva de um
devamos nos referir a realidades imateriais que fogem à sensi- centro do universo, que tudo rege e se chama Deus.
bilidade comum do homem atual. Se este as nega porque não as Colocar-se e manter-se por vias espirituais em contato com
percebe e não as compreende, isto não obsta a que elas existam. Deus, significa poder atingir tesouros guardados e alegrias des-
Quem aqui escreve deu-se conta das atuais e desastrosas conhecidas. Nós somos livres e podemos, se quisermos, alcançar
condições espirituais da maioria. Mas ele sabe que nesta babel a felicidade. Mas tudo provém do interior, e nada poderá andar
infernal que é o mundo de hoje, existem também almas eleitas, bem no exterior, se antes não estiver bem marcado em nosso in-
ainda que em minoria, e que a estas está confiada a salvação e o terior. Só nos mudando para melhor é que poderemos transfor-
futuro de todos. A nossa terra é reino ainda involuído, no qual mar para melhor toda a nossa vida. Não se pode pretender que
ramificações provindas de baixo, da grande árvore do mal, ani- negócios, saúde e os acontecimentos se tornem nossos amigos
mada por Satanás, se entrelaçam, frequentemente vitoriosas, ao invés de inimigos, se antes não tivermos estabelecido a or-
com as ramificações descidas do alto, da grande árvore do bem, dem dentro de nós, em harmonia com Deus e a Sua lei.
animada por Deus. Em nosso plano material, onde reina a forma, Quando as coisas vão mal, ninguém quer admitir ter sido ele
Deus se manifesta através de Suas criaturas. É certo que toda próprio a causa disso. Não compreende que atribuir isto ao pró-
criatura é um canal para as manifestações divinas, mas os bons ximo de nada serve, que este desafogo a que tantos recorrem na
constituem o mais elevado, melhor e mais permeável meio pelo dor não só não a elimina, como, pelo contrário, agrava-a pelo no-
qual Deus pode exprimir-se com maior evidência. Assim eles vo mal que se lhe acresce, pois quem faz o mal aos outros o faz a
representam o ponto de apoio do bem na Terra; constituem o ca- si mesmo e, para fazer o bem a si mesmo, necessário se torna
nal através do qual a ação benéfica de Deus pode melhor operar praticá-lo em primeiro lugar com outros. A vida provém de Deus
entre nós; são a única via aberta para que o mundo possa atingir e é irradiada desse centro em forma universal. Para que ela possa
a divina fonte da vida, que está no centro: Deus, e nutrir-se nela, ser fecunda de alegria, tudo deve circular livremente com espírito
estabelecendo uma comunicação com o princípio afirmativo e fraterno. O egoísmo atualmente dominante, com o seu separatis-
construtivo do bem. Do outro lado, os malvados representam o mo, é antivital. Ele obstrui os canais da linfa vital, opondo desta
ponto de apoio do mal na Terra; constituem o canal através do maneira barreiras que produzem congestões e estagnações; aqui,
qual a ação das forças do mal pode se manifestar entre nós; são a superabundância inútil; ali, dolorosa miséria, e, por toda a parte,
via comunicante com o princípio negativo e destrutivo que per- tristes diferenças e penosos desequilíbrios de todo o gênero:
sonificamos em Satanás. Se aos malvados, pois, está confiado o econômicos, demográficos, orgânicos, espirituais.
encargo de tudo massacrar, espiritual e materialmente, aos bons Aqui, buscamos orientar-nos de maneira diversa; procuramos
está atribuída a incumbência de tudo salvar e construir. O terre- não só compreender que a vida funciona de modo inteiramente
no de seu encontro e luta é o nosso mundo. diferente daquilo que se crê e que se segue, mas também enten-
Estas páginas se dirigem imparcialmente a todos os bons, der que a maior parte das nossas desventuras depende de não sa-
que representam na Terra a obra divina do bem. Os outros não bermos comportar-nos. Procuramos a felicidade onde ela verda-
podem compreender e, obedecendo a outros impulsos e encar- deiramente está e a encontraremos se soubermos pensar e agir.
gos, palmilham a sua estrada. Contudo quem compreendeu a vi- Poderão, desta maneira, começar a formar-se, no oceano das do-
da sabe, com absoluta certeza, que só as vias do bem conduzem res humanas, ilhas de felicidade e, no espinheiro universal, tufos
à felicidade e que as forças do mal, prometendo-a, em verdade floridos. Na tempestade do mundo, algumas almas poderão, desta
traem depois a promessa e, cedo ou tarde, acabam infalivelmen- maneira, formar em derredor de si uma atmosfera de bondade e
te na dor. O escopo desta obra é de ajudar, ensinando os espíri- de paz e nela repousar. Nesses castelos, protegidos por forças es-
tos evoluídos a alçar-se sempre mais para o alto, de modo que a pirituais, ainda mesmo que, a princípio, isolados no inferno ter-
felicidade, que está no bem e com a qual Deus permanentemente restre, poder-se-á ter, aqui e ali, uma antecipação do paraíso.
nos quer inundar, contanto que saibamos e queiramos, possa, Deste estado de ordem e harmonia interior, não pode deixar de
por caminhos inteiramente independentes das coisas terrenas, derivar, espontaneamente, um símile estado de ordem e, por con-
alcançá-los e entrar neles, para aí permanecer, instaurando a sua seguinte, de bem-estar nas próprias coisas terrenas também.
paz interior. Ajudar as almas dispostas a alçar-se sempre mais Cada um desses indivíduos, reequilibrados dentro de si, não
para o alto tem, pois, também por escopo multiplicar os canais poderá deixar de irradiar em torno de si mesmo equilíbrio e paz,
de comunicação com o divino, ampliar as estradas, aumentar os carregando consigo, para onde quer que vá, a sua atmosfera de
meios para que, mais rápida, ativa e abundante, por eles flua e harmonia, e poderá assim saturar com ela tudo que ele tocar, sa-
possa descer a linfa vital do bem, único meio de salvação. nando o mal e a dor ao seu redor, depois de havê-lo sanado den-
Como se vê, aqui se fala em termos de psicologia utilitária, tro de si mesmo. Formar-se-ão, desta maneira, na desordem geral
pois sabemos bem que o homem não compreende e não se mo- do mal, núcleos de atração de bem, do Alto para a Terra, e de ir-
106 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
radiação deste para o bem de todos. Isto permitirá a formação de imediato, se a direção fosse confiada ao homem, seja por deso-
correntes benéficas e salvadoras, uma gradual reordenação do rientação, por impotência ou por incapacidade deste. O homem
caos, uma progressiva transformação da infernal dissonância ter- é relativo na evolução, imperfeito e contingente. A Lei é eter-
rena na música divina do paraíso. A vida poderá então, cada vez na, perfeita e resoluta. O homem é capricho inconsciente; a Lei
mais, expandir-se pelas largas estradas do amor. A vida tem ne- é disciplina sábia. O homem é desordem; a Lei é ordem e har-
cessidade, para prosperar, não das barreiras do egoísmo, mas dos monia. A primeira coisa, pois, que devemos compreender é
canais abertos do altruísmo. E da lei de Deus que, nestes canais, que, acima da vontade do homem, está esta norma que tudo re-
ela se atire triunfante, apenas eles se formem, para levar nutrição gula, feita de bem, de liberdade e de amor, representando a
vital onde existe mal, amor onde domine o ódio, paz onde pre- perfeição. Nada se pode acrescentar a ela; nada há nela para se
domine a guerra, alegria onde reine a dor. É a bondade de Deus modificar. Então, quando o mal triunfa e a dor nos fere, ao in-
que faz pressão para verter-se nestes canais e por eles circular. vés de culpar a Deus e a sua lei, devemos compreender que is-
São as forças do bem que por eles querem descer até nós para, to não é obra D‘ele, mas da criatura, que, sendo livre e ignara,
entre nós, contrapor-se às do mal e vencê-las, espargindo a felici- enganou-se no caminho; compreender que é justamente por
dade. As graças divinas procuram as portas abertas e requerem meio da dor que Deus a faz compreender que errou e a induz a
almas dispostas para poder chegar até nós e nos salvar. procurar o caminho certo, onde ela encontrará alegria. Assim,
É a estas almas que aqui nos dirigimos, a fim de que atin- pois, ao invés de nos rebelarmos ou maldizer, o certo é procu-
jam o centro divino e sirvam de canal à Terra e, desta manei- rarmos compreender qual foi o nosso erro, para corrigi-lo. Ca-
ra, não só conquistem a felicidade para si mesmas, mas tam- so se pudesse chegar ao absurdo de suprimir a dor, como dese-
bém a irradiem em derredor de si, cumprindo a sua missão, jaria o homem, a vida se deteria no seu caminho ascensional,
que é de receber do Alto e irradiar embaixo. Elas formarão que a conduz à perfeição e à felicidade, porque, então, viria a
uma rede de correntes benéficas que envolverão o mundo e – faltar a sua maior mestra e o seu mais poderoso corretivo. A
vencendo as influências maléficas, que, funcionando em sen- grande coisa a compreender é que nós não vivemos num caos,
tido contrário, querem transtorná-lo – salvá-lo-ão dos cata- mas sob a guia de um pai sábio e amoroso que, com a sua lei,
clismos que hoje o ameaçam. através de todos os meios compatíveis com a nossa necessária
liberdade, quer conduzir-nos à nossa felicidade. É necessário
VII. FAZER A VONTADE DEUS compreender que Deus não nos faz sofrer por egoísmo ou vin-
gança, mas sim para o nosso bem, porque nos ama; que a Lei
Tudo isto é possível, mas é necessário saber alcançar as fon- não faz mal e que, se inflige dor a quem a transgride, é para
tes da vida, que estão em Deus. Para conseguir isto, começare- ensinar que ela é a única e verdadeira via da felicidade. Certa-
mos procurando compreender algumas coisas elementares. Ei- mente o homem é tremendamente ignorante e se atira de um
las. O universo é um movimento contínuo que não se desenvol- lado e de outro, iludido por miragens cuja falsidade ainda não
ve ao acaso, mas segundo normas precisas, estabelecidas por conhece. Somente sofrendo pode compreender onde foi que er-
uma lei que representa o pensamento e a vontade de Deus. rou. É justamente a dor que nos mostra quão amorosamente
Quanto mais a ciência avança, tanto mais deve constatar Deus vela por nós, como ele nos guia e age sempre, ainda
em todos os fenômenos um princípio orgânico que rege o uni- quando nos fere, para o nosso bem. Em vista disto, compreen-
verso e que revela a presença de uma mente diretriz. Segue-se de-se agora que não só a felicidade é possível, mas que nós
daí que o nosso livre arbítrio não é absoluto, ilimitado. Se po- somos realmente feitos para ela e que o nosso instinto, que no-
demos agir como loucos, praticando o mal e, consequentemen- la faz procurar em toda parte, não nos engana. Compreende-se
te, provocando para nós mesmos a dor, enquanto a lei de Deus também que há uma via para alcançá-la, mas que, não bastan-
quer nosso bem, para a nossa felicidade, esta possibilidade de do isto, Deus emprega todos os meios compatíveis com a nos-
violação, em um sistema universal de ordem, está providenci- sa liberdade, para nos fazer enxergar esta via e nos forçar a
almente confinada dentro dos limites dados pelas necessidades atingir essa felicidade. A lei de Deus indica esta via. Então, a
de nossa experimentação. O homem vive para aprender. Ele melhor posição possível em nossa vida, aquela que exprime o
deve construir-se espiritualmente, conquistar a plena consciên- máximo grau de perfeição atingível para cada um, relativamen-
cia, e não apenas constituir um instrumento cego, um autômato te ao que ele é e deve ser, é dada pela vontade de Deus e pela
de Deus. É-lhe feita, portanto, a concessão de agir em plena li- fusão da nossa vontade na d'Ele, numa adesão tão completa,
berdade. Mas, para que esta liberdade não possa redundar em que ambas se fundam numa só. E que mais se pode desejar se-
sua destruição, ela é regulada pelas reações da própria Lei, que não aderir a uma vontade que só procura o nosso bem? Se o
permanece inviolada e, com a dor, fere o homem com o único homem compreendesse Deus, veria claramente que Ele deseja
escopo de corrigi-lo e iluminá-lo para o seu bem, tão logo ele o seu bem muito mais do que ele mesmo o desejaria.
se aparte da referida lei pelo erro ou pela culpa. Se ele é livre, Muitos se quedam, todavia, perplexos, porque não sabem
é contudo responsável também e deve fatalmente sofrer as qual possa ser para eles a vontade de Deus. Antes de tudo, nós,
consequências de suas ações. mais ou menos dependentes de nosso grau de evolução, possu-
No mundo atual, o homem, na sua ignorância, engana-se, ímos todos o senso do bem e do mal. A vontade de Deus está
tomando como poder absoluto esta limitada liberdade de agir sempre sobre as sendas do bem. Uma regra mais precisa é esta:
que Deus lhe concedeu apenas para os referidos escopos. Ele cumpramos o nosso dever, como ele nos é apresentado pelas
não compreende que se trata de uma liberdade enquadrada nas condições da nossa vida, e teremos feito a vontade de Deus.
férreas reações da lei de Deus, que lhe inflige dor quando ele er- Mas o que é que se entende por dever? Para estar de acordo
ra. Assim o homem se engana ao crer-se árbitro de tudo, quando com Deus e, assim, aproximar-se do infinito, não são necessá-
na realidade não é senão árbitro do próprio destino. O homem rios atos heroicos. Trata-se de estabelecer uma harmonia, e isto
atual, efetivamente, não compreende a vida e, por isso, a empre- se pode atingir muito bem pelos meios mais simples e humil-
ga quase que por inteiro para cometer erros e provocar dores. É des. Para cantar a música divina, não é necessário aquela altis-
natural então que, na Terra, a dor seja dominante, pois é sobre- sonância que fere os sentidos e, na Terra, faz tanto efeito, mas
tudo à construção intensiva dela que o homem se dedica hoje. basta apenas executar bem o próprio trabalho, com amor e com
Quem guia tudo não é o homem, mas Deus. E como pode- consciência. Tudo consiste em saber enquadrar a própria ativi-
ria o homem guiar um mundo onde ele procede tão mal, onde dade no funcionamento orgânico da vida e do universo. Nós
pode tão pouco e do qual nada sabe? O desastre dar-se-ia de nos valorizaremos ao máximo apenas se soubermos desincum-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 107
bir-nos da função que nos toca. Desta maneira, a corrente vital de diferente da de nosso Pai. E, assim como o organismo pro-
nos impelirá; de outro modo, porém, ela estará contra nós e vê, através de uma sábia distribuição, cada célula e órgão para
procurará destruir em nós o rebelde e o inimigo. que execute o seu trabalho e auxilie os outros elementos com
Não é, pois, a importância e a nobreza de trabalho que de- os quais está em conexão, para a vantagem de todos, assim
cide, mas é o modo pelo qual ele é por nós executado. Este igualmente Deus proverá cada indivíduo quando este tenha
trabalho pode até assumir a forma apenas de dor, isto é, algo cumprido o seu dever, isto é, tenha desempenhado as suas fun-
que pareça não apenas improdutivo, mas até mesmo prejudici- ções com relação aos seus semelhantes.
al. Na sábia organização da vida, tudo e todos são úteis em seu Esta é a economia da criação. Bem-aventurado é quem sabe
lugar, cada um ocupa a posição mais justa, segundo a capaci- amoldar-se a ela. Nessa economia, o trabalho é remunerado com
dade e o mérito que lhe é peculiar, a mais adaptada para sua justiça, e o parcimonioso pode depositar o fruto desse trabalho
vantagem, a mais útil para o seu bem, ainda que seja a mais em caixas seguras, que lhe proporcionarão uma renda garantida
humilde, desprezível e dolorosa. Observando-se, verifica-se para a hora da necessidade, em proporção ao mérito que adqui-
que a concepção do mundo é exatamente inversa de tudo isto, rir. Só assim se pode encontrar uma forma de investimento segu-
e que tantos males derivam justamente do fato de que ninguém ro, que assim é porque depende apenas de Deus, que é justo, e
quer executar bem o próprio mister, qualquer seja ele. Todos não dos homens, nos quais não se pode depositar confiança al-
se sentem deslocados e querem mudá-lo, tornando o mundo guma. Consegue-se dessa maneira um pecúlio tranquilo e pacífi-
cheio de descontentamento e de luta. Cada qual pretende valer co, porque é harmônico, visto que está contido na sua verdadeira
muito mais do que realmente vale e acredita que o mais certo função, que é a de ser um meio aos fins da vida. O homem, uni-
esteja em mudar de posição, enquanto uma realidade se impõe versalmente, coloca a riqueza fora do lugar, fazendo dela um
e mostra saber mais, acabando por ficar melhor aquele que sa- fim, e não um meio. E, assim, torna-se ambicioso e ansioso pelo
be permanecer fiel no lugar que lhe cabe. Hoje, considera-se dia de amanhã, e, em meio à abundância, acaba por debater-se
falido quem não triunfa de qualquer modo, não importam os em tormentos. Deus não nos quer ávidos e ansiosos, mas confi-
meios que utilize; admite-se que a dor seja um insucesso e uma antes n'Ele. ―Para cada dia baste a sua pena‖. Por que haveremos
perda; enquanto há possibilidade de uma vitória e de um ga- nós de pretender dominar o amanhã, se dele nada sabemos? Não
nho, não se trabalha senão com o espírito de avidez, reputan- é pela vontade que poderemos nos impor a ele, mas pelo obedi-
do-se bravura saber fazer o menos possível dentro do próprio ência à Lei, merecendo. Poderemos assim formar em nós um oá-
dever, em aparente vantagem própria e prejuízo dos outros. A sis de paz, não importa qual seja o inferno que nos circunde na
vida, ao contrário, é para todos uma missão, com objetivos, re- Terra. Não é o mundo que no-lo poderá dar, com as suas fasci-
alizações e recompensas ultraterrenas. Antes que operários nantes mentiras, mas somente a adesão à vontade de Deus. Obe-
humanos, somos operários de Deus, igualmente grandes, qual- deçamos à Lei, e o auxílio está garantido, porque a vida foi que-
quer seja a posição social. Desincumbir-se da própria função rida por Deus, e, com ela, ganhamos o direito aos meios para vi-
no imenso concerto universal, qualquer seja ela, como nos é vê-la. Todos temos direito à vida perfeita, mas somente quando
oferecida por Deus, e executá-la bem, eis a perfeição, porquan- tivermos antes cumprido os nossos deveres para com Deus. Se
to isto é fundir-se na perfeita lei de Deus. não fizermos isto, este direito deixa de existir ou existirá apenas
Este é o segredo da felicidade: enquadrar-se na ordem divi- na medida em que tivermos atentado para os deveres. O mundo
na. Quando tivermos desempenhado em nosso posto todo o não quer compreender tudo isto, está destorcido e fora dos tri-
nosso dever, teremos feito o suficiente para que tudo caminhe lhos. É lógico que sofra e caminhe para a ruína.
bem por si mesmo. Podemos então repousar tranquilos. Quan- Para muitos, no entanto, tudo isto ainda não basta para co-
do tivermos obedecido em tudo a Deus, conformando-nos à nhecer a vontade de Deus no seu caso particular. Deus está pre-
Sua Lei, propriamente deixamos de ser responsáveis, porque, sente em toda a parte, no entanto não o vemos jamais manifes-
na realidade, não agimos por nós mesmos e também não somos tar-se por ação direta, mas apenas por meio do pensamento e
passíveis de reações dolorosas como quando nos substituímos ação das suas criaturas, por meio dos eventos, e agir, mais do
a Deus e Sua lei, agindo independentemente. É natural que, que no exterior, no profundo ou pela profundeza das coisas. É a
quando a escolha seja nossa, também nossas sejam as conse- isto que é necessário atentar. Quando Deus faz uma flor, cria um
quências e males. Mas é natural também que, quando não se- órgão ou matura um fenômeno, não age com as próprias mãos,
jamos senão executores da vontade de Deus, tenhamos direito como nós o faríamos, pelo exterior, mas opera silenciosamente
à Sua proteção e providência. A nosso vida encontra então, de do interior, justamente porque, se Satanás é exterior e periférico
novo, um equilíbrio, uma sensação de segurança que o mundo e age em superfície, Deus é interior e central e opera em profun-
de hoje ignora. Desta maneira, fluiremos aquele profundo sen- didade. A vontade de Deus reside, pois, no interior da vida e daí
timento de paz que é o primeiro passo em direção à felicidade aflora nos fatos. É uma tácita e lenta transformação que só por
interior, que é a substância do paraíso. Assim, a nossa vida se fim aflora à realidade sensória, quando todo o processo da gêne-
torna rica e a nossa obra, coordenando-se em um plano univer- se estiver completo. Por isto a maioria não a percebe e, assim,
sal, torna-se infinita. Se, ao invés, nos isolarmos em nosso ego- acredita que Deus não esteja presente na Sua obra contínua. É,
ísmo, permaneceremos destacados e sós e, distanciados de pois, necessário saber enxergar profundamente, não com olhos
Deus, nos sentiremos perdidos. É necessário abdicar do separa- materiais, mas espirituais. É necessário permanecer com ouvidos
tismo e, através da caridade para com o próximo, tornar-se atentos para ouvir como falam os fatos em volta de nós, sobre-
uma só coisa com o todo. É abraçando os nossos irmãos que tudo como significado espiritual, que não é quase nunca aquele
conquistamos a unidade. Em um universo de princípio unitá- significado próximo e utilitário que nós lhes damos. Se souber-
rio, é a via da unificação que conduz a Deus. É indispensável mos ouvir, perceberemos que realmente Deus nos fala. Ele se
olhar com amor todas as criaturas irmãs, porque cada uma de- manifestará indiretamente, através de outras bocas e outras
las é um canal através do qual Deus se exprime e nos fala. Para ações, mas se manifestará. Efetivamente, através dos infinitos
chegar a abraçar Deus, o caminho mais fácil é começar por seres viventes e pensantes, não lhe falecem as vias para expri-
abraçá-Lo nas Suas infinitas manifestações da Criação. Em to- mir-se em qualquer linguagem e caso.
da parte e sempre, devemos ser executores da vontade de Nós nos fazemos iludir pela voz do mundo. Esta é muito di-
Deus, que é bondade e amor. Só nisto é que está a vida. Assim ferente. É verdade que fere muito mais os ouvidos, mas não
como um órgão ou célula não pode ter uma vontade diversa da atinge a alma. O mundo tem sempre pressa, porque está encer-
de todo o organismo, nós também não podemos ter uma vonta- rado no tempo. Deus fala calmo, porque é senhor do tempo. Por
108 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mais que o mundo corra, nunca chega exatamente. Deus, com a quando a dor nos fere, em lugar de procurar compreender o seu
paz das coisas eternas, jamais se engana na hora. O mal clama significado profundo e aceitá-la, reconhecendo que o que Deus
estertorante nas praças, faz-se ouvir bem materialmente e, por nos envia não pode deixar de ser justo; em lugar de admitir que,
isto, parece prevalecer. O bem, que vem de Deus, enxerga-se se ela nos fere, é sinal de que a merecemos; em lugar de procu-
mais dificilmente, porque está oculto no interior, onde silencia rar, sobretudo, superar essa prova salutar, para aprender, evi-
e espera, mas amadurece na raiz das coisas. As vias de afirma- tando recair em novo erro, nós tentamos iludir essa ordem em
ção são opostas, mas as interiores produzem efeitos bem maio- nosso favor, com a pretensão de dirigir e violentar a vontade
res. Os homens escrevem na superfície, mas Deus esculpe nas divina. E é por isso que, ao contrário de repetir as grandes pala-
profundezas, de onde tudo nasce. Assim, os bons não aparecem, vras de Cristo: ―Fiat voluntas tua‖ 6, que nos mostram a consci-
porque não fazem ruído. O bem move-se mais lentamente, mas ência da divina ordem do universo, nós nos tornamos advoga-
produz transformações mais substanciais, por conseguinte mais dos de nós mesmos, com o único objetivo de evitar danos ou
duradouras. Ele se propaga pacificamente, quase invisível; ra- ganhar graças em nossa vantagem, e isto quase sempre no cam-
mifica-se, infiltra-se no interior, sem aparecer, porque obedece po material, que mais de perto nos toca e interessa. Em suma,
aos tenazes e profundos impulsos da vida, que o quer. Aflição, na oração, nós nos conduzimos diante de Deus com a psicolo-
alarido e também instabilidade estão no exterior, no reino peri- gia de luta e utilitarismo, que é própria da Terra e das coisas
férico de Satanás, não nas fontes, onde se encontra Deus. Ali há terrenas. Ora, se essa mentalidade pode estar adaptada ao nosso
paz e silêncio; uma atividade imensa e silenciosa, que só surge, mundo inferior, ela está inteiramente deslocada quando nos
por fim, quando tudo está feito. Deus opera sem rumor. A Sua elevamos para o Alto. A atitude egocêntrica, para não dizer
ação é tranquila, igual, segura, tenaz, e tudo vence em paz, co- egoísta, e o exclusivismo constituem um grave erro quando se
mo uma lenta inundação. Diferentemente da afanosa evolução fala com Deus. É, pois, ilusório que semelhante gênero de ora-
do mundo, Deus ―é‖ e silencia, no entanto está sempre presente ção possa produzir frutos reais. Certamente, Deus permite que
com a Sua ação íntima, constante, benéfica. Só com essa Sua falemos. A diferença está em que nós não obtemos aquilo que
silenciosa presença, Deus alimenta e renova o universo, não da pedimos. E é lógico. Deus não nos dá senão o que merecemos,
periferia ou superfície, mas do centro; não da forma, mas a esta senão aquilo que é justo, segundo a Sua lei, nos seja dado. Que
chegando pela substância, onde Ele é fonte da vida. Por isto é grandes tolices nós cometemos quotidianamente, agindo assim
que Deus se nos revela em uma sensação de grande paz. É nesta em um ato tão vital quanto é o de nos colocarmos em comuni-
direção, portanto, isto é, na profundidade, no espírito, que de- cação com Deus. Que resultados poderemos obter quando
vemos procurar ouvir as vozes que nos dizem qual é para nós, transportamos para planos de vida mais elevados a psicologia
em nosso caso e a cada momento, a vontade de Deus. do nosso plano, quando levamos para eles aquela mentalidade
de luta e usurpação, que na Terra parece tão verdadeira e útil,
VIII. COMO ORAR porque corresponde às necessidades seletivas animais, mas que,
um pouco acima, não tem o menor sentido?
Não basta ter estabelecido as nossas relações com Deus. É A atitude fundamental da prece deve ser de obediência, de
necessário entrar em comunicação com Ele, é necessário a ora- adesão à vontade de Deus, de harmonização entre nós e a Sua
ção. Eis aqui uma outra coisa elementar, comumente não com- Lei, que é perfeita. No entanto, mesmo na prece, recaímos na
preendida, e que também é necessário compreender, para alcan- primeira culpa do homem, que foi também a de Lúcifer: erigir o
çar não só o conhecimento da vontade de Deus mas também a próprio eu em lei da vida e antepor essa lei, em que o eu é cen-
adesão a ela e, com isto, a união mística da alma com Ele. Em tro, àquela em que o centro é Deus. Desta maneira ora-se às
geral, não se sabe orar, o que explica o escasso resultado que avessas, com um impulso de afastamento, ao invés de aproxi-
obtemos com as nossas orações. mação a Deus. Nós nos erigimos em juízes de nós mesmos, de
A lei de Deus, que tudo regula, inclusive a nossa vida, não é nossos semelhantes, do mundo, da própria ação de Deus e pre-
e não pode ser ilógico capricho, como frequentemente cremos e tendemos indicar-lhe o caminho a seguir para o nosso bem. Pre-
como, tal qual somos, assim desejaríamos, para que a pudésse- tendemos salvar tudo e não sabemos nada. Justamente nos diri-
mos submeter à nossa vontade. Nesta lei, que guia e rege o uni- gimos a Deus, mostramo-Lhe todo o nosso orgulho e a nossa
verso, tudo é ordem, lógica, método, disciplina. O contrário es- presunção. Exatamente na oração, provamos desconhecer a Sua
tá apenas em nós, que somos um grosseiro esboço de sua reali- bondade e o Seu amor por nós. Tomamo-Lo, universalmente,
zação e, por conseguinte, nos encontramos muito longe da sua por um chefe caprichoso, que podemos propiciar com ofertas;
perfeição. A desordem não está na Lei, nem em Deus, mas so- por um Deus de vingança, capaz de ser aplacado com sacrifí-
mente em nós, e a dor, que lhe é consequente, não é uma absur- cios. Imaginamo-Lo um senhor despótico e O respeitamos ape-
da condenação de um Deus malvado que nos criou para nos nas porque é o mais forte. O insensato chega mesmo a manifes-
atormentar, mas é uma prova da Sua bondade, sabedoria e cui- tar, na blasfêmia com que O desafia, uma prova da própria for-
dado que nos dedica, visto que, por intermédio dela, Ele nos ça. E muitos oram apenas porque não podem mandar. Desejari-
conduz ao único caminho que nos pode proporcionar felicidade, am poder mandar e, não o podendo, entregam-se a uma total su-
sabiamente corrigindo-nos e ensinando-nos na escola da vida. jeição. Tornamo-nos, às vezes, petulantes ao pedir e insistir em
A dor, que tanto nos azorraga, não é uma violação da vida divi- vantagens imediatas e materiais que, se coincidem com o nosso
na do universo, mas é justamente uma reintegração nela, ainda prazer, nem sempre representam o nosso bem. Por que esta ati-
que seja às nossas expensas, o que é justo, porque fomos nós tude de mendigos enfadonhos, que pretendem impor-se mais
que livremente quisemos violá-la. com a insistência do que com a humildade, mais com a longa
Ora, o que sucede frequentemente, ao nos apoiarmos em repetição vocal do que com a expectação confiante? Mas Deus
Deus, através da comunicação com Ele pela prece, é que, ao in- tudo sabe a nosso respeito, sabe do que necessitamos, sabe me-
vés de aderirmos à disciplina que Ele criou e da qual nos dá o lhor do que nós aquilo que é benéfico ou maléfico para nós.
exemplo em Suas manifestações, procuramos alterá-la em nos- Devemos compreender que Ele é Pai que nos ama e que, por
sa vantagem. Então, ao invés de nos unirmos a Deus, fundindo conseguinte, antecipa-se em nos oferecer todo o bem que não
a nossa na Sua vontade, procuramos as vias do separatismo seja para nós um dano, antes que nós mesmos saibamos ou pen-
egocêntrico, em que pretendemos ser nós os senhores e dirigen- semos. Como podemos presumir que possamos ensinar-Lhe o
tes, vias estas pelas quais justamente mais nos distanciamos de
6
Deus, que é unidade e, por conseguinte, fusão, e não cisão. E ―Faça-se a tua vontade‖. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 109
que é melhor para nós, correndo para oferecer-Lhe esse belo vidência, o necessário para que possamos cumprir a obra da
aspecto de soberba atitude, justamente na oração? nossa vida. Que paz se origina em trabalhar assim nos braços
Não. A oração deve ser diferente. Nela, não devemos ter a de Deus, na consciência do próprio dever cumprido! Quando se
pretensão de ensinar nada a Deus. Não é a lei de Deus que deve executou o próprio dever para com Deus, está-se seguro de que
alterar-se, adaptar-se a nós, mas somos nós que devemos mudar, Deus cumprirá o Seu para conosco. E que grande fato, que ex-
curvando-nos a ela. Não devemos pretender, com a oração, tor- pansão de toda a nossa vida é nos tornarmos assim Seus operá-
nar Deus um nosso servo a trabalhar para nós, nem buscar fazer rios e representar uma parte do grande organismo, uma função
de Cristo um redentor que tenha sofrido em nosso lugar. Não se no funcionamento do universo!
deve inverter, porque é cômodo, a ordem divina. Cada um con- A oração que se baseia em tal estado fundamental de alma
quista a felicidade com a própria dor. A verdadeira oração é avi- deve caracterizar-se por ser feita mais de aspiração que de pa-
zinhamento e adesão, é dócil aceitação. Nem também por isto, lavras, deve ser mais sentida do que dita. Ela deve preferir as
ela deve ser confundida com uma passiva e inerte resignação. coisas espirituais e só pedir as materiais em função das espiri-
Ao contrário, ela é consciência da ordem e vontade de Deus, é tuais. A oração só deve ser feita com escopo justo e altruísta,
cooperação ativa na Sua ação de bem no mundo, é aceitação pois não pode produzir efeito de outra maneira, contrariando a
operante, dinâmica e fecunda. Aceitar significa colaborar com lei de Deus, que quer o amor ao próximo, e não o egoísmo; o
Deus segundo os Seus desígnios, significa corresponder ao Seu bem, e não o mal. A oração não deve ser egocêntrica, do eu
amor, compreendendo que toda a alegria que, segundo a Sua que pede para si, mas uma adesão à vontade de Deus, um ato
bondade e justiça, nos pode ser dada pelo nosso verdadeiro bem, de harmonização com a ordem divina. Devemos estar dispos-
Ele já no-la deu antes que fosse por nós pedida, e que se não nos tos a sofrer quando tivermos violado essa ordem, persuadidos
dá um bem, é porque este nos faria mal. Mesmo uma privação de que o nosso bem e a nossa redenção residem nessa dor me-
pode ser um dom em vista de uma maior felicidade futura. recida, que nos reintegra na ordem que violamos. As formas
Se quisermos, pois, que a oração seja uma verdadeira prece inferiores de oração, próprias do involuído homem atual, pode-
e dê os seus frutos, não peçamos o impossível, porque, por mais rão ser, por piedade à sua ignorância, permitidas por Deus,
que seja pedido e rogado, nos será negado. Ela não deve ser mas é certo que a verdadeira e elevada oração não exige, não
uma ordem, nem uma petulante mendicância, nem também um julga, não aconselha, não pede, apenas escuta, para depois ade-
modo de aconselhar Deus quanto ao que deve fazer, mas deve rir e obedecer. Cessa, desta forma, a exposição das necessida-
ser um ato de humilde adesão à Sua sábia vontade: ―Fiat mihi des e rogativas terrenas; domina uma atitude receptiva de au-
secundum verbus tuum‖7. E, se quisermos reduzir a oração a dição, em que muito mais fala Deus do que nós; prevalece uma
um pedido de graças, recordemos que o melhor meio de obtê- expectativa de conselho e de guia, de ampliação de energia e
las é tornarmo-nos merecedores delas. Nós somos livres para de potência para a nossa nutrição. A prece torna-se assim algo
fazer o que mais nos aprouver e aceitar ou não, no momento, a diferente: é um abrir de portas da alma para que Deus entre,
vontade de Deus. Mas, se não aceitamos hoje, teremos que para que o grande rio da vida, descendo das suas fontes, nos
aceitá-la amanhã, em condições mais onerosas, pois que a von- inunde, e para que a divina irradiação do centro nos invada e
tade divina é que nós consigamos, por todos os meios e a qual- vivifique. Atitude de grande atividade espiritual, porque se tra-
quer custo, mesmo com dor, o nosso bem. Essa ativa adesão a ta de atingir as altas frequências e os potenciais necessários pa-
tudo que Deus nos prepara; essa nossa compreensão e boa von- ra nos sintonizarmos com o centro transmissor, porque sem
tade de desenvolver os motivos que Ele nos oferece, sejam eles sintonia não há comunicação. Trata-se de nos darmos em
sofrimento ou alegria; esse superamento do nosso interesse amor, porque só então Deus pode dar-se a nós em amor, dado
imediato em vista de maiores interesses nossos porvindouros; que Ele jamais se impõe a quem não O quer. E, enquanto nós
enfim, essa anulação da nossa vontade individual na vontade não O quisermos, porque ainda não chegamos a compreender,
divina, que guia os grandes planos da vida universal, tudo isto é Ele permanecerá em expectativa, indiretamente estimulando-
essencial para atingir e manter aquela contínua união com nos por mil vias, a fim de que sintamos a necessidade d'Ele,
Deus, que aqui nos propomos atingir. procuremo-Lo e O chamemos para que venha até nós. Quantos
Semelhante comunicação com Deus através da prece pres- perdem os Seus imensos tesouros por andar à procura das po-
supõe em nós um estado de ânimo habitual inteiramente diverso bres riquezas terrenas! No entanto Deus não deseja senão tor-
do comum. Na Terra, acredita-se que valer e poder estejam em nar-nos ricos! Mas é necessário que O procuremos, fazendo-
função de possuir, enquanto que o que realmente conta é o que nos dignos, porque assim o quer a Sua justiça.
se é, e não o que se possui. Quanta gente possuiu os nossos ha- A verdadeira oração, a mais elevada e mais intensa, chega
veres antes de nós, acreditando ser deles o verdadeiro dono, no assim a não ter mais palavras e se reduz a um silêncio de todo o
entanto teve que deixá-los! Assim, nós também podemos acre- nosso ser, em atitude de receptividade e de oferecimento à es-
ditar que sejamos os seus donos, mas, apesar disso, os deixare- cuta da palavra divina. A maior oração é tácita e consiste, antes
mos, e assim também outros, depois de nós, acreditarão suces- de tudo, em ter agido bem e, depois, na simples sensação da
sivamente ser igualmente donos e terão que os deixar. E cada presença de Deus. Quando tivermos compreendido e cumprido
um não levará consigo senão o que realmente é e vale, isto é, as tudo quanto acima está dito, isto é, quando tivermos nos har-
obras e os méritos, isto é, somente aquilo que possui em espíri- monizado em pensamento, palavra e ação na ordem divina, tor-
to. Deve-se, por isso, desligar o coração de qualquer coisa ter- nando a nossa vontade una com a vontade de Deus, então pro-
rena, tratando-a com desapego de simples administrador, depo- varemos esta sensação. Quando tivermos dado tudo a Deus e ao
sitário que deve prestar contas a Deus dos bens que lhe foram próximo e deixado de existir para nós mesmos, então tudo virá
confiados temporariamente para fins mais altos. Então, na ver- a nós espontaneamente e tudo possuiremos.
dade, não se possui mais nada para si mesmo. Tudo se torna Preparemo-nos, pois, para essa oração. Ela se faz em silên-
propriedade de Deus, e a Ele compete a defesa dos nossos ha- cio, a sós com Deus, distante do alarido das multidões, tacita-
veres. Embora nos cansemos e corramos, é para mais segura re- mente enquanto espera a mão de Deus, como ocorrem na inti-
compensa e já sem a ânsia de perder, porque tudo é confiado ao midade os maiores fenômenos da vida. Abramos confiantes as
verdadeiro dono, com a garantia de sua sabedoria e bondade. nossas almas, como faz a flor à luz do Sol. Assim como a lei
Então, estamos seguros de que Ele nos enviará, com a Sua Pro- de Deus quer que o sol leve aos seres a vida orgânica, ela tam-
bém quer que as radiações espirituais do sol divino nos inun-
7
―Faça-se em mim segundo a tua palavra‖. (N do T.) dem de sabedoria e felicidade.
110 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
IX. A COMUNHÃO ESPIRITUAL prio prejuízo pelo inferno merecido e pelo paraíso perdido.
Ao menos neste supremo momento de união com Cristo, de-
Quando bem tivermos compreendido e assimilado os pon- ve-se banir completamente todo o egoísmo humano. Para al-
tos acima expostos, suscetíveis de aplicação em qualquer reli- guns, isto será difícil, e só quem for capaz poderá consegui-lo.
gião, visto que possuem um significado universal, racional e, Mas, se quisermos obter resultados verdadeiros nesta comu-
poder-se-ia dizer também, biológico e científico, poderemos nhão, não há outro caminho a seguir. Quem não estiver ama-
entrar em uma fase mais profunda, fase mística e intuitiva, em durecido não pode compreender e deve ocupar-se com outra
que não se procede à luz da razão, mas da fé, fase de atuação coisa. Para estes, a Eucaristia é verdadeiramente um ―myste-
dos referidos pontos no seio do cristianismo, que é a mais ele- rium fidei‖8, algo incompreensível, de que só pode avizinhar-
vada religião que o homem conhece. Deus, na Sua verdadeira se com: ―credo quia absurdum‖ 9. É questão de evolução e re-
essência, está tão acima de nossa capacidade intelectiva e afe- lativa sensibilização. Mas quem atingiu a maturidade biológi-
tiva, que permanece inacessível à nossa natureza humana. Não ca e, com ela, a necessária sensibilidade nervosa e espiritual,
somos capazes de amar e proclamar tal suprema abstração, em quem conseguiu, contrariamente ao comum, ser mais vivo no
face da qual o coração e a mente se perdem. Devemos, por espírito que no corpo, poderá então ―sentir‖ na Eucaristia a re-
conseguinte, contentar-nos em nos aproximar de Cristo, mais al presença de Cristo; e ―sentir‖ a tal ponto, que poderá esta-
acessível a nós porque é também forma, e forma humana. belecer o colóquio. Esta é a evidência máxima que supera
Cristo, materialmente desaparecido da Terra e aos nossos qualquer demonstração ou esforço de fé.
sentidos com a Sua morte física, fica entre nós sempre presen- É justamente na prática da comunhão espiritual que a alma
te em espírito e, de um modo particular, na Eucaristia. Ele procura educar-se ainda melhor para esta sensibilização, esta-
quis, com esta Sua instituição, deixar um canal aberto para belecer a comunicação, aprofundar a sensação, progredindo
que nós pudéssemos nos comunicar com Ele. Este é o maior sempre para Deus. Esta prática pode ser, pois, para as almas
dom da Sua paixão. Nós nos propomos aqui utilizar justamen- eleitas, um grande meio de elevação espiritual. É certo que
te este canal para conseguir a união com Cristo em uma forma Deus, do centro, faz pressão para alcançar as Suas criaturas,
que, de resto, não é nova, mas que, se já é admitida, não foi mas, frequentemente, as forças do bem não podem passar, por-
muito praticada e sentida; uma forma que, se pode parecer que os canais estão obstruídos por mil detritos e atravancamen-
materialmente mais livre, exige em compensação uma disci- tos espirituais. É certo também que as forças do mal, que per-
plina espiritualmente mais rígida, pelo menos se quisermos sonificamos em Satanás, tudo fazem para manter esses canais
obter os resultados que lhe pedimos. As almas pias poderão fechados e, cada vez mais, acumular obstáculos à passagem
recorrer a ela para integrar a forma material, renovando-a nes- das correntes benéficas. Mas é igualmente verdade que, sim-
ta forma espiritual, que pode ser praticada mesmo quando a plesmente pela vontade humana, um e outro canal abre-se ao
outra não seja possível, quer pela hora, pelo lugar ou por ou- fluxo livre das radiações divinas, podendo se formar assim um
tras incontáveis circunstâncias. A comunhão espiritual pode bom condutor para a corrente espiritual, através do qual ela
efetivamente ser praticada não só nos momentos e circunstân- pode passar. Então, as forças do bem precipitam-se álacres e
cias mais próprios, nos instantes de maior urgência e fervor, abundantes por essa via, que lhes permite a expansão, porque
mas em qualquer hora e lugar, sem necessidade de jejum, to- assim é a Lei. E a vida, que fala no coração dos homens, cons-
das as vezes que a alma sinta necessidade, com uma frequên- tringe-os instintivamente a sentir e reconhecer, nesses seres
cia que, de outra forma, seria impossível, até que se consiga que servem de conduto à vontade divina, o mais alto e precioso
assim, mesmo em meio às nossas ocupações, uma contínua e valor biológico, ao qual está cometida a incumbência de ali-
completa união em Cristo. mentar-nos e salvar-nos. Estas atividades espirituais aqui ex-
Esta forma de comunhão, sendo espiritual, não pode deixar postas são, pois, preciosas não só para o indivíduo em sua as-
de assumir, por esta sua própria natureza, uma forma mais censão, mas também para o bem de todos.
individual e espontânea, relativa à natureza de cada alma. É Começamos, desta maneira, a nos aproximar do ponto cul-
difícil assim traçar-se normas gerais, porque cada um irá minante da comunhão espiritual, que é a sensação do contato e
adaptá-la a si mesmo, e não se pode, nem como guia, configu- da união com Cristo, reconstruindo em nós, isto é, revivendo
rar preces com palavras e formas. Cada alma dirá, com plena espiritualmente, como conceito e como sentimento, a sublime
sinceridade e efusão, o que ela mesma é, expondo de acordo cena da Última Ceia. Quem não a tiver presente, já impressa na
com as suas necessidades, mas, sobretudo, ouvirá consoante a alma, pode recorrer à leitura dos evangelhos. Estes contém um
própria capacidade de ouvir. Nenhum constrangimento lhe é imenso material para meditação. Pode-se chegar, assim, a atin-
imposto, nenhuma linha lhe é traçada, senão os princípios ge- gir a formação em nós e em derredor de nós de uma atmosfera
rais acima expostos, porque ela deve dizer as coisas que ver- espiritual onde vibra como que um eco daqueles sentimentos
dadeiramente sente, que brotam de si mesma, jamais abando- que, de um lado, foram sublimes em Cristo e, de outro, como-
nando-se a repetições mecânicas no trabalho de lábios, e não ventes nos discípulos; sentimentos de alta paixão espiritual,
de espírito. É justamente esta realidade interior que pode fal- como os que se agitaram no cenáculo, naquela hora suprema de
tar mesmo na mais perfeita execução das formas materiais de amor e de dor. Deve-se procurar alcançar um estado de identifi-
comunhão; é esta realidade interior que deve, de maneira ab- cação espiritual; em outros termos, alcançar a presença em espí-
soluta, ser posta em primeiro plano e tudo reger; é ela que, rito de todo o drama vivido, gradativamente começando da re-
quando tudo o mais tenha caído, deve subsistir em toda pleni- presentação da cena material e, aos poucos, ascendendo através
tude. Não é, pois, possível conseguir a comunhão espiritual dela, penetrar sempre mais na sua íntima compreensão, cada
com o espírito ausente, com a alma errante, sem a mais com- vez mais profunda, até à efusão espiritual. Começa-se por con-
pleta e vibrante adesão de nós mesmos. centrar a própria atenção na figura de Cristo, observando o pen-
É lógico que, tratando-se de um puro ato de amor, presu- samento, o amor, a paixão d'Ele naquele momento, procurando
me-se como preparação, de modo absoluto, um perfeito ato de penetrar o sentido do Seu supremo sacrifício. Aproximar-nos-
dor com respeito às próprias faltas, isto é, uma dor verdadei- emos, assim, paulatinamente, da visão da Eucaristia, da percep-
ramente sentida por haver violado a lei de Deus e desobedeci- ção do seu verdadeiro conteúdo e significado. Abriremos, desta
do à Sua vontade. Seria verdadeiramente ofensivo, em um ato
de amor tão puro, introduzir, justamente no momento de cum- 8
―Mistério da fé‖ (N. do T.)
9
pri-lo diante de Deus, cálculos de interesse referentes ao pró- ―Creio porque é absurdo‖ (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 111
forma, pouco a pouco, as vias à comunhão espiritual com Cris- guimos estabilizar-nos na alta velocidade do voo e nele manter-
to, que se dá então a nós nesse momento. nos em equilíbrio. Como quem sobe a vertente de um monte, em
Inicialmente, nesta ascensão, a nossa gradual elevação de terreno irregular, escorregaremos às vezes para trás, nos detere-
tensão será dificultosa e lenta. Tudo depende da nossa pureza. É mos às vezes, ora baixamos ora subimos, mas continuamos
necessário, como primeira condição, que a alma, antes de entre- sempre, cada vez mais alto, até atingirmos o cume desejado. As-
gar-se a estes atos espirituais, que constituem uma verdadeira sim, quando tivermos chegado a obter o estágio colimado, esta-
realidade e atividade no imponderável, se haja destacado de to- bilizando a passagem do fluxo espiritual, por haver eliminado
das as coisas terrenas, pela compreensão de tudo quanto foi aci- todo o material obstrutor, então sentiremos a radiação divina
ma exposto, encontrando-se já distanciada e bem acima delas. É descer em amplas ondas, enchendo-nos a mente de pensamento,
indispensável, para isso, estar habituado à concentração, saber o coração de sentimento, saciando-nos de potência, nutrindo-nos
isolar-se do ambiente na meditação. Nisto pode ajudar-nos a so- de energia, iluminando, confortando e alimentando todo o nosso
lidão, quer ao ar livre, quer em casa, como também em uma ser. Nessa altura, tudo se harmoniza e se potencializa dentro de
igreja que seja silenciosa, pouco frequentada por perturbadores, nós. As mesmas energias, em vez de divergirem e se atritarem
recolhida e, sobretudo, pobre. Tudo quanto é luxo humano pro- reciprocamente em lutas e conflitos, agora convergem e colabo-
fana esses contatos de espírito. Não importa tanto o lugar, mas ram entre si para produzir um rendimento máximo. Adquirire-
sim a atmosfera espiritual de que ele se constitui, as radiações de mos, então, a potência que é própria dos sistemas de forças equi-
que está saturado, pois que a base de tais fenômenos é a sintoni- libradas. Uma nova harmonia, que tem sabor de paraíso, come-
zação de vibrações. Há ambientes que parecem esplêndidos, no çará a invadir o nosso ser, penetrando-o gradativamente; primei-
entanto são espiritualmente surdos, e há ambientes paupérrimos, ro, no plano espiritual; a seguir, nervoso; depois, orgânico, até
como por exemplo São Damião, em Assis, mas riquíssimos de atingir a medula dos nossos ossos, imprimindo no indivíduo to-
sonoridade e ressonâncias espirituais. Cada um deve escolher, do um ritmo de vida mais elevado e benéfico. Isto permanecerá
de acordo com a sua natureza, todos os meios que sentir serem em nós como um eco doce e poderoso e se estabilizará, empres-
no seu caso coadjuvantes do processo de sintonização com o tando-nos uma vitalidade nova, que cicatrizará primeiro as nos-
centro, para o qual se dirige e em torno do qual gravita. A alma sas feridas morais, depois materiais, começando por nós e inva-
pode seguir nisto as suas simpatias e atrações, mas deve lem- dindo a seguir o nosso ambiente. Uma nova força nos fará supe-
brar-se de que aquilo que sobretudo forma a sintonia é a nature- rar as dificuldades das provas e as angústias da vida. No mundo
za dos seus pensamentos habituais, pensamentos de cada instan- orgânico, não é tudo regido, ainda que através de inúmeras pas-
te de sua vida, mesmo os que estejam fora do mundo; é o seu ca- sagens graduais, pela energia que desce do Sol para a Terra? As-
ráter e tipo; é a natureza das obras de que ele vive; é a sua afini- sim também, no mundo das forças espirituais, tudo é regido pela
dade conseguida com o Alto. Comunhão quer dizer de fato ade- potência que de Deus desce às almas. Quando estes mais eleva-
são, contato de espírito, ensimesmamento, fusão, identificação. dos planos do espírito são atingidos, a oração se torna audição e
Ela se baseia na afinidade. É necessário, pois, que procuremos a alma não mais fala, mas ouve e recebe. Então, ela nada mais
avizinhar-nos o mais possível de Cristo desta maneira, tendo an- tem a dizer e não faz senão ouvir à voz de Deus, nutrir-se de Sua
tes já nos avizinhado d'Ele em todas as manifestações de nossa potência e deixar-se conduzir pela Sua vontade.
vida. Pode-se alcançar tudo isto, mas é necessário uma discipli- Quando a ciência define como alucinatórias semelhantes
na que nos transforme radicalmente. O objetivo é exatamente sensações, relegando-as em massa, sem discriminação, para o
uma maturação e ascensão de todo o nosso ser. O exercício e o domínio do patológico, não sabe o que diz nem o que faz. Trata-
hábito abreviarão e facilitarão essas fases iniciais. se, como já dissemos, de realidades experimentais e objetivas, se
Façamos, pois, o que saibamos e possamos para abrir a nossa bem que de realidades sobrenaturais, que escapam a quem não
alma e escancará-la às radiações divinas, deixando-nos inundar tem os sentidos para percebê-las e, por conseguinte, as nega.
por elas, recebendo-as e tornando-as nossas, vibrando com elas Mas o homem, com o tempo, evoluirá e então compreenderá.
em todo o nosso ser. Quando tivermos, de nossa parte, tudo feito Hoje, faltando a sensibilidade necessária para a percepção, para
para sintonizar-nos; quando tivermos sabido tornar-nos recepti- a admissão de um fato que está além da razão, como seja a pre-
vos, mais por abandono do que por esforço; quando, subindo em sença de Cristo na Eucaristia, não há outra via senão a da fé.
espírito, tivermos conseguido abrir o canal e estabelecer assim Dado que este escrito se dirige ao ser humano atual, é ne-
uma corrente entre emissor e receptor, então basta: a nossa parte cessário insistir sobre o que, para ele, constitui a parte mais di-
está feita e a nossa tarefa executada. Abertas as portas, a luz en- fícil a percorrer, isto é, a que prepara a sintonização. Para isto,
tra por si. Aqueles que não estejam habituados ao trato com coi- aconselhamos a reconstrução interior do ambiente espiritual da
sas espirituais de tal profundidade, não se amedrontem. Deus, Última Ceia no momento da instituição da Eucaristia, momento
que, no outro extremo, deseja a união muito mais do que a pró- que seria de uma grandeza terrificante, se tudo nele não fosse
prio criatura e pode muito mais do que esta, virá em seu auxílio, feito de amor, em que Cristo se sacrifica e tudo dá, esquecido
porque tudo isto está na linha da ascensão, que é o ponto mais da própria grandeza, de tal maneira que desce até ao nível da
vital e central da lei divina. A alma nada mais tem a fazer, senão natureza humana. Ora, em nada encontraremos tão poderosa-
secundá-la, permitindo-lhe a atuação. Sem dúvida, quanto mais mente reconstruída, atual e presente, em sua sensação mais ví-
se é evoluído, tanto mais fácil é percorrer rapidamente e com vida e profunda, a substância espiritual desse momento como
mais sucesso esse caminho. As almas preguiçosas, gélidas, ego- no sacrifício da missa. Basta apenas seguir-lhe o desenvolvi-
ístas, fechadas em si mesmas e incapazes de um grande impulso mento em espírito, ainda quando, materialmente, não se possa
de paixão, ainda que religiosas, ainda que carregadas de uma estar presente. As próprias fórmulas do rito, pelo menos as mais
montanha de práticas formalísticas e mecânicas, são as mais dis- importantes, repetidas com todo fervor, poderão ser um ótimo
tanciadas dessas realizações espirituais e as que mais necessitam guia para o preparo da Comunhão Espiritual.
de maturar-se. Mas tenhamos fé, porque Deus está presente em Sigamos, pois, o sacrifício da missa e concentremos a
toda a parte e também a elas auxiliará. nossa atenção no momento culminante da elevação, repetindo
Continuemos. Uma vez estabelecida a comunicação por as mesmas palavras do sacerdote, as mais vitais, aquelas que
meio do desejo e da prece, a comunhão é espontânea, calma, ele realmente pronuncia em voz baixa, como que para sub-
profundamente vibrante e sem choques. É como que um desli- traí-las à profanação do público distraído. Repitamo-las, me-
zamento pelo ar. As sacudidelas do desprendimento da terra ces- ditando, procurando senti-las em profundidade, em um cres-
saram, e tudo se acalma, parecendo imóvel. Nem sempre conse- cendo de paixão e aproximação:
112 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
―Accepit panen in sanctas manus suas et elevatis oculis in meira, porque o espírito arde no desejo de unir-se ao espírito.
coelum, gratias agens benedixit, fregit, deditque discipulis suis Dentro de si não significa penetração material de corpos, mas,
dicens10: como sempre acontece no mundo espiritual, fusão de centros de
―Accipite et manducate ex hoc omnes: hoc est enim corpus forças vibratórias e isto pela via da sintonização, que é vibração
meum11. em uníssono, semelhante ao que sucede no campo acústico, pe-
―Accipit et bibite ex eo omnes: Hic est enim calix sanguinis la qual duas notas distintas tornam-se uma nota só. Esta fusão é
mei, novi et aeterni testamenti, mysterium fidei: qui pro vobis a mística união com Cristo, isto é, a perda da própria personali-
et pro multis effundetur in remissionem peccatorum‖12. dade egocêntrica distinta, que se abstraiu assim e se introverteu
―Haec quotiescumque feceritis, in mei memoram facietis‖. 13 na de Cristo, com a qual, daí em diante, saberá pensar e agir.
Cada qual procure ―sentir‖ estas palavras na máxima pro- Se a alma souber atingir este ponto, qualquer guia será para
fundeza possível que a sua natureza permita. Depois disto, a sempre supérfluo ou até mesmo um obstáculo. Deus agirá e fa-
alma sensível começa a perceber a real presença de Cristo tor- lará nela, e ela, silenciando, admirada e arrebatada, por-se-á à
nar-se cada vez mais vizinha e perceptível, em um lento cres- escuta, realizando assim a oração perfeita. Ela não necessita
cendo de sensações, cada vez mais claras e evidentes. Cada pa- mais do guia, porque Cristo a guiará. Daqui por diante, ela tudo
lavra, naturalmente, não deve ser dita com a boca, como habi- possui e nada mais lhe pode ser dado pelo homem.
tualmente se faz, mas com a alma, sentida como a própria pai- Neste ponto, o conselheiro que até aqui, nestas páginas, ser-
xão, profundamente. Extraordinariamente poderosa é a palavra viu de guia, deixa a alma que ele procurou conduzir a Deus, nas
que corresponde a um real estado de alma, a palavra que não é mãos de Deus, para que Ele apenas lhe fale, a ilumine, a con-
apenas som, mas força viva da alma. forte, a nutra e a fortifique. Ninguém pode interferir nesses co-
Eis que se avizinha o momento culminante em que Cristo, lóquios e amplexos de espírito. A comunicação com Deus está
tendo-se pouco a pouco aproximado como nossa sensação, po- estabelecida, e toda a alma encontrará, segundo sua própria na-
de comunicar-se com a alma que lhe soube abrir as portas. Sau- tureza, em plena liberdade, vias individuais de efusão. Neste
demos esta aproximação com as palavras do sacerdote: ponto, o pobre conselheiro que a acompanhou até aqui, nestas
―Agnus dei qui tollis peccata mundi: miserere nobis. páginas, cala, venera e em silêncio se retira.
―Agnus dei qui 'tollis peccata mundi: miserere nobis.
―Agnus dei qui tollis peccata mundi: dona nobis pacem‖ 14. X. PAIXÃO
A esta palavra ―paz‖, deixemos a nossa alma repousar tran-
quila, longe de todas as tempestades e preocupações humanas, Agora que completamos o trajeto dos quatro capítulos pre-
plácida como um lago límpido em cuja superfície o sol pode cedentes e, com isto, se não chegamos todos a realizar, pelo
agora espelhar-se em toda a sua pureza, sem ofuscamento ou menos compreendemos a união espiritual com Cristo, avan-
deformação. cemos ainda no mundo místico, tremendamente real para
Atingindo esse estado de calma e limpidez, abandonemo- quem o alcançou, mas dificilmente concebível para o homem
nos agora a Cristo, deixando que Ele venha a nós e complete o apenas racional.
restante. Mas, antes que Ele chegue, ofereçamo-nos a Ele com- Chegados a este cume, não podemos deixar de voltar para
pletamente, em perfeita fusão com a Sua Lei e vontade, ofere- trás e considerar o longo caminho que percorremos desde o
çamo-Lhe tudo o que sejamos como dor e como miséria, já que Cap. I – ―A Verdade‖, do livro Problemas do Futuro, até aqui.
nada mais possuímos. Repitamo-Lhe as grandes palavras. Todas as formas mentais atravessadas foram verdadeiramente
―Domine, non sun dignus, ut intres sub tectum meum: sed sentidas como reais por quem expõe, e isto pelo fenômeno
tantum dic verbo et sanabitur anima mea‖ 15. acima descrito da personalidade oscilante e pela sua ascensão
Após este último impulso de humildade e consagração, a em onda progressiva até às tensões elevadas. À medida que
alma que, em graus sucessivos, conseguiu subir até aqui está nos avizinhamos do cume, a racionalidade, embora progredin-
pronta. Ouvirá então uma voz atrás de si anunciando-lhe: do até destilar-se nas abstrações físico-matemáticas, permane-
―Corpus domini nostri Jesu Cristi custodiat animam tuam in ce no limiar do mundo místico, incapaz de penetrar em uma
vitam aeternam. Amen‖16. atmosfera tão rarefeita, em que ela se sente dissolver e onde
A alma deve seguir este pensamento três vezes. Na terceira, apenas a intuição pode penetrar.
ela terá a sensação da presença de Cristo, não mais apenas vizi- Após haver observado esse momento culminante e o seu re-
nho, mas dentro de si mesma. Se ela estiver amadurecida e flexo nos problemas que lhe são afins, o leitor poderá observar
pronta, frequentemente Sua presença em si, para tornar-se sen- o fenômeno da personalidade oscilante na sua cômoda metade
tida, não esperará a terceira vez, mas será notada desde a pri- descendente, isto é, em uma coordenação mais calma, no plano
da racionalidade normal, retornando aos problemas da Terra.
10
―Tomou um pão em Suas santas mãos e, levantando os olhos para Com isto, o volume se encerrará. Os dois capítulos: ―A Verda-
o céu, deu graças, abençoou-o, partiu-o e o deu aos Seus discípulos, de‖ e ―Ressurreição‖, deste volume, representam os dois ex-
dizendo‖: tremos da oscilação da vida percorrida pelo autor no período
11
―Tomai-o e comei dele todos: isto é o meu corpo‖.
12 1945-50, em que este volume foi escrito, no fim do qual ele re-
―Tomai e bebei dele todos: este é o cálice do meu sangue, do novo e
eterno testamento, mistério da fé, que por vós e por muitos é derrama- tornou ao fundo, mas sempre em nível mais elevado, e assim
do em remissão dos pecados‖. por diante. Daí se pode concluir que não é tanto o estudo ou o
13
―Todas as vezes que fizerdes estas coisas, fazei-o em lembrança de raciocínio que eleva o conhecimento, mas a maturação da per-
mim‖. (N. do T.) sonalidade. Aqui não se trata, assim, de aquisições culturais,
14
―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; tem compai- mas de um fenômeno biológico mais profundo, de uma catarse
xão de nós. de todo o ser, da qual deriva toda essa produção.
―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; tem compai- Antes de seguir adiante, será útil observar o ritmo destas
xão de nós. oscilações ou ondas sucessivas e ascendentes, comparando-
―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; dá-nos a
paz‖. (N. do T.)
lhe os vértices, que, como dissemos, com a maturação do in-
15
―Senhor, não sou digno de que entres em minha casa, mas dize uma divíduo, atingem níveis cada vez mais elevados. Um cume fo-
palavra e minha alma ficará curada‖. (N. do T.) ra em primeiro lugar alcançado no fim da I Trilogia, com a
16
―O corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo guarde a tua alma na vida cena conclusiva: ―Paixão‖, do volume Ascese Mística, como
eterna. Assim seja‖. (N. do T.) foi descrita na Páscoa de 1937, ao pé da tumba de São Fran-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 113
cisco, que está na sua Basílica em Assis. O cume atual, na ce- O novo impulso representado pela ―Ressurreição‖ foi prepa-
na do capítulo seguinte, ―Ressurreição‖, foi atingido na 2 a rado como que por um prenúncio na noite que precedeu a tercei-
parte do 1o volume da III Trilogia, na Páscoa de 1947, diante ra sexta-feira anterior à Sexta-feira Santa de 1947, com inespe-
do Alverne. O conteúdo aqui não é de desolação na expectati- rados e intensos fenômenos místicos. Isto sucedia com a apro-
va da guerra e de oferta na dor, como em ―Paixão‖, mas é ximação da Páscoa, ao 60o aniversário do autor, enquanto ―Pai-
triunfante na espera de uma nova civilização. Também o am- xão‖ foi escrita na Páscoa do seu 50o aniversário. Essa composi-
biente de inspiração, ao invés de uma tumba escavada nas en- ção representa a dor e o voto expressos pelas três solenes pro-
tranhas da terra, lugar de morte para o corpo, é o da contem- messas feitas na tumba de São Francisco de Assis, aos cinquenta
plação radiosa de um monte sagrado, onde Cristo apareceu, anos. Essas promessas foram repetidas em seguida, todas as tar-
lugar de máxima realização espiritual. Tudo se transforma e des, até que, 10 anos depois, juntam-se à ―Comunhão Espiritu-
se inverte. O motivo de 1937, expresso no 3 o volume, com al‖, atrás exposta, escrita em 1947, pouco antes de ―Ressurrei-
que se encerra a I Trilogia, se transforma completamente, em ção‖. Esta, depois daquele período de maceração, representa a
1947, no 1 o volume, com que se inicia a III Trilogia, em per- alegria que triunfa sobre a dor, a vida que se sobrepõe à morte, o
feito equilíbrio em uma obra de três trilogias. cumprimento da catarse. Após 10 anos de esforço e de dor, no
Há depois um retorno, com ritmo decenal, 1937-47, que en- Monte Alverne, onde Francisco se uniu a Cristo, veio do Alto a
contramos também nas Mensagens Espirituais17, pelo qual, tam- resposta e foi colocado o sinete da promessa final. O motivo ne-
bém aqui, ―A Mensagem da Paz‖ (Páscoa de 1943) chegou gativo de ―Paixão‖ reproduz-se aqui em posição corrigida, posi-
inesperada, justamente dez anos após a ―Mensagem aos Cris- tiva. Não mais trevas e tormentas, mas luz e vida.
tãos‖ (Páscoa de 1933), que encerrava a serie precedente. Retor- É a retificação do mundo na nova era do espírito. A dor,
no decenal de vértices, segundo um ritmo que parece inserido no compreendida, aceita e vivida, cumpriu a sua obra de redenção e
fenômeno, pelo qual os dois cumes, 1937 e 1947, seguem o pri- se transmuda em alegria. É a ressurreição do mundo através da
meiro na vida do autor, no ano de 1927, ano em que fez o seu sua atual prova e paixão, é a derrota do mal no triunfo do bem.
voto de pobreza e teve a primeira visão do Cristo. Como se vê, Sobre as ruínas despontam as flores, e a vida avança. O autor
já em 1927, o fenômeno se verificara, embora a sua primeira não vive aqui um motivo seu, individualizado, mas todo o moti-
manifestação exterior não haja surgido senão com a primeira vo biológico da sua era histórica, e começa a realizar, primeira-
―Mensagem do Natal‖, em 1931. Todas essas coisas não foram mente nele, a metamorfose que levará o mundo para o novo tipo
preparadas nem previstas, sendo constatadas somente posterior- de civilização. É assim que, nestas composições e nesta sua
mente e por um impulso íntimo, não controlado pela vontade e obra, pode repercutir e vibrar o ritmo do grande fenômeno que a
consciência por parte de quem o experimentava. É evidente que vida está agora vivendo. Ele teve que vivê-lo antes, sentindo em
este, como tantos outros fenômenos biológicos, é regido por um si a correção evangélica dos valores hoje invertidos no materia-
seu ritmo inteligente e sábio, que o ser não cria, apenas segue. lismo, como deve hoje vivê-lo o mundo em tragédia paralela.
Eis então que, assim como no volume A Nova Civilização do Neste endireitamento, os três motivos da ―Paixão‖ reapare-
Terceiro Milênio se verifica um desenvolvimento de A Grande cem, portanto, em ―Ressurreição‖, correlacionados entre si, mas
Síntese, aqui também se encontra mais aprofundado o motivo fi- transformados de treva em luz, de tristeza em alegria. E o mes-
nal do volume Ascese Mística. Assim, os germes sumariamente mo homem que, na Quinta-feira Santa de 1937, havia tornado
aparecidos na primeira explosão retornam amadurecidos com a sua a dor de Cristo moribundo e a dor que esperava o mundo,
progressiva catarse do indivíduo, da qual mais não são que um então ignaro da última guerra mundial, agora faz, na manhã da
momento e uma expressão. Assim, através dos volumes das vá- Páscoa de 1947, também suas a festa do Cristo que ressurge
rias trilogias, toda a obra verdadeiramente ascende, elevando-se triunfante e a glória que está reservada para o mundo em uma
a uma atmosfera cada vez mais purificada. Aqui, cada palavra, nova civilização que ele ainda não vê. O fenômeno não se refe-
cada capítulo, cada volume, enfim toda a obra, não pode deixar re apenas a quem escreve, mas envolve a todos no mesmo ritmo
de espelhar e repetir o grande motivo ascensional, que é a base e a todos conduz para a mesma meta.
de toda a orquestração da vida, que se expande para Deus. É um Enquanto ―Paixão‖ foi escrita na noite de Quinta-feira Santa,
canto único de todo o ser, canto do qual estes escritos não são vigília de paixão, na treva, embaixo, junto a uma tumba, ―Ressur-
senão um eco na alma de um pobre homem que sentiu cantar em reição‖ foi escrita na manhã da Páscoa, à luz, no alto, onde triun-
si o universo e, em uma férvida paixão, se tornou dele o humilde fou o espírito em Cristo. Esta passagem representa o afastamento
intérprete. Assim, este canto, começando na forma racional das da pedra que fechava o sepulcro e a ressurreição do espírito, que,
zonas inferiores da matéria e do nosso cotidiano contingente in- no terceiro dia, isto é, no III Milênio, explode do seu invólucro
dividual e social, eleva paulatinamente o seu potencial. Assim é corpóreo. Assim, quem escreve, instintivamente preparado pelo
que a racionalidade se torna intuição, a observação se transfor- ritmo do fenômeno universal, que vai da vida de Cristo à vida do
ma em contemplação, o pensamento se transmuda em prece, a mundo, fenômeno no qual se encontrava preso sem sabê-lo, che-
visão do verdadeiro se faz êxtase, amor, arrebatamento. Então gou à manhã da Páscoa de 1947, após um vago pressentimento
deixa-se de ser espectador, para se tornar ator no grande funcio- da aproximação de um grande acontecimento espiritual. A visão
namento orgânico do universo. Não mais se ouve apenas a divi- exposta em ―Ressurreição‖ se desenvolveu nas primeiras horas
na harmonia do criado, mas nela se penetra, por ela se é envol- do dia, estando o seu espírito presente na Capela dos Estigmas,
vido e transformado. E nós mesmos nos tornamos assim um no Alverne, enquanto o corpo estava em Santo Sepulcro (Arez-
canto, o canto da vida, uma harmonia de Deus, uma harpa vi- zo), aonde fora com a família. Voltando a si, ele registrou a refe-
brante na divina orquestração do todo. E nos anulamos, desta rida visão, de jato, como uma explosão, ao mesmo tempo que
forma, perdidos no ilimitado incêndio do amor divino. podia ver com o olho físico o perfil do Alverne e o ponto onde se
Descreveremos aqui, em seguida, no presente capítulo e no encontra a aludida capela, visíveis dali de Santo Sepulcro. E
seguinte, estes dois vértices: ―Paixão‖ e ―Ressurreição‖. Esta aquela manhã, embora interposta entre duas semanas de mau
última composição é nova, enquanto que a precedente é repro- tempo, estava verdadeiramente límpida e radiosa.
duzida do volume Ascese Mística. Isto para que seja possível o Eis o texto de ―Paixão‖18. Seguir-se-á, no capítulo subse-
confronto. Mas, antes, façamos algumas observações. quente, ―Ressurreição‖.
17 18
Traduzidas em português com o título de Grandes Mensa- Publicado também no volume Ascese Mística, II Parte – Cap. XXVI,
gens.(N. do T.) do mesmo autor. (N do A.)
114 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
PAIXÃO Já é noite. Ensombram-se os vitrais luminosos. Tudo está
Assis, Quinta-feira Santa de 1937 apagado nos altares nus. A Igreja, que nesta hora agasalha a dor
de um Deus e a dor do homem, depôs seus ouropéis e se abate
Peregrino de dor e de paixão, eu me aproximo de Ti, Se- desnuda ao pés de Cristo.
nhor. Neste ar triste, mas calmo; nesta atmosfera de dor, gran-
Despedaçaste todos os meus afetos humanos, um a um; qui- de mas consciente e resignada, ouço o clamor das multidões
seste que somente o Teu amor permanecesse. distantes, que não querem e não sabem sofrer; sinto o es-
E, quando o meu coração caiu por terra, ensanguentado, na pasmo das marés humanas que a dor e a paixão perseguem e
estrada poeirenta, pisado por todos, Tu então o recolheste e me atormentam.
disseste: ―Eu sou o teu amor. Somente a mim podes amar‖. Minha alma treme.
Em mordaça de ferro, comprimiste minha paixão; quando Jaz abatida ao pé da cruz e olha no alto o drama de um
ela desejava explodir no mundo, Tu lhe fechaste todas as portas Deus agonizante por amor. Somente o seu olhar me dá força
e a lançaste dentro de mim, para que, na constrição, se tornasse para viver.
mais profundo e mais potente o seu lume e ardesse num incên- Vivo o Teu tormento, meu Senhor. Subi Contigo até à cruz;
dio sempre maior e, no íntimo, inflamasse, chamejando até en- Tua dor é minha dor. Agonizo e morro Contigo.
contrar-Te, Senhor. Desejaria invocar piedade para todos, mas não tenho cora-
Dosaste o meu tormento, proporcionaste asfixia lenta, qui- gem. Não tens mais sangue para dar; morres nu e amaldiçoado
seste que eu me aproximasse de Ti por minha procura e por es- e és inocente. Que posso pedir-Te mais por amor do homem?
forço meu. Eu o sei: dar-me-ias ainda lacerações tremendas; mas, a ca-
Agora compreendo que ao Teu amor divino eu não poderia da novo rasgar-se de minha carne, eu Te direi: ―Por amor de Ti,
chegar senão pela dilaceração de todo amor humano. Senhor‖.
A Ti não se chega senão pela tempestade, por que és o tur- E, quando, já sem forças, cair e vir chegar até mim a carícia
bilhão e o poder, és a essência da força. sedutora das coisas humanas, minha alma deverá recusar qual-
Sinto que a chama do Teu incêndio se aproxima e lança la- quer repouso ou conforto e dizer: ―Por amor de Ti, Senhor‖.
baredas sobre mim. De repente, uma delas me toca e se enrodi- Flagela diariamente meu espírito, para que ele seja desperto
lha em minha alma, aperta-a e agarra-a, para atraí-la a si, no e pronto ao Teu comando.
centro do incêndio. Com a minha renúncia, alimentarei todo o dia a chama de
Afrouxa em seguida a pressão e me deixa recair nas coisas amor por Ti.
humanas, para retomar-me depois, outra vez, e ainda outra, Não! Não é renúncia, não é dor: é expansão e alegria. ―É pe-
sempre mais forte. lo meu amor, Senhor‖.
Aquele incêndio me espera, e eu nele cairei. Que posso eu fazer? Agora, é inútil resistir. Precipito-me em
◘ ◘ ◘ Ti, Senhor; as órbitas se comprimem vertiginosamente; a matu-
É a Semana da Paixão, e aproxima-se a hora santa em que ração prossegue no mundo e em mim, por caminhos opostos.
Tu, Senhor, na Tua agonia, lançaste ao mundo o grito de reden- A hora é intensa para todos. Não se pode detê-la. Preparada
ção e de amor. já há tempo, precipita-se. Eu temo olhar.
Nestes dias, espadelaste minha alma para que também eu ◘ ◘ ◘
vivesse a Tua paixão de dor e de amor. O círculo se aperta. O drama da paixão de Cristo se faz in-
Sobre minha sensibilidade, vibrando e ressoando, passaram tenso dentro de mim; o drama das tempestades humanas acossa
o choque brutal e o insulto feroz, e nela pousaram, submergin- quem está lá fora.
do com alegria na minha dor. Desço a cripta e me abato aos pés do túmulo de Francisco.
Tu estavas presente e próximo, mas, por desgraça minha, eu Apossa-se de mim, plenamente, o espírito do lugar, tão forte
não o senti. que me lança por terra. Apoio sobre a pedra desnuda a fronte
A nova dor, porém, reergueu até Ti minha sensação e, nas em chamas, para acalmar a febre e abrandar o incêndio.
profundezas do meu desânimo, eu Te encontrei, assim como Conduziste-me até aqui. Para que? Que queres de mim,
tantas vezes eu Te perdi e, na minha prostração, vieste ao meu Senhor?
encontro e de novo me apareceste. Começo a balbuciar: ―Toma minha alma‖. Estou à espera,
Que desejas de mim, Senhor? vibrando em tensão, sem palavras.
◘ ◘ ◘ Recordo. Já me disseste numa hora de trevas: ―Segue-me,
Chego a Assis ao anoitecer da Quinta-feira Santa. segue-me‖.
Sete velas e mais sete, em duas ordens bem visíveis, ardem Paira sobre mim algo de grave e de grande que eu não sei.
solitárias na basílica de Francisco19. Sinto solene a hora. Estás perto de mim, ó Cristo, eu Te sinto.
Apagam-se lentamente, uma a uma, com um salmodiar lon- Francisco é uma força viva, vibrando daquele túmulo, e me
go e triste, em que chora a Igreja e o mundo suplica; lá fora, contempla e me ajuda.
tristemente, o dia se extingue, filtrando sua agonia através dos Algo de potente, de imenso, quer subir das profundezas de
históricos vitrais. meu coração e não pode. É intenso demais para suas forças. A
A sinfonia de liturgia, de luzes, de pranto, canta concorde ideia se agita, comprime-se para explodir, busca a palavra que a
com a lenta sonolência de morte em que se extingue a agonia expresse, que a engaste em sua última forma.
da paixão. Finalmente, emerge a voz e minha alma grita:
Quando, porém, com a derradeira luz do dia, apaga-se a ―Senhor! Eu Te seguirei até à cruz‖.
última vela, o último cântico do salmo explode tão trágico e Então, sinto dentro de mim, a cantar: ―Tu estás no centro de
dilacerante, interrompido pelo triste batido das vergas no solo, meu coração‖.
que minha alma tempestuosa se abate, porque, então, ouço Minha alma, liquefeita em lágrimas de júbilo, de amor e de
dentro de mim gritar a dor do mundo, que, súplice, chora com paixão, prostra-se sem forças.
o Cristo que morre. Naquele instante, porém, ressoa do alto, do templo superi-
or20 da igreja baixa, pintada por Giotto, o cântico que salmodia
19
Nesta basílica giotesca, ao anoitecer de Quarta e Quinta-feira Santas,
20
se faz o ―Ofício das Trevas‖, extremamente sugestivo pelo ambiente ar- A basílica de São Francisco é composta de três igrejas superpos-
tístico, a liturgia, o canto solene e, sobretudo, pela quase ausência do po- tas. A cena realiza-se na igreja do meio e na cripta embaixo, onde
vo, que perturba sempre, com a sua distraída incompreensão. (N. do T.) está o túmulo do Santo. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 115
até ao vértice de Sua paixão; ressoa como raio a ecoar toda a Hora de doces colóquios de espírito com a alma do criado
explosão do meu tormento, condensando minha tempestade; no intenso pressentimento de primavera. Hora de ternas recor-
ressoa, no clamor da musica e das vergas batendo no solo, o dações para mim, nesta doce terra de Assis, onde tão profun-
grito derradeiro do Cristo que morre. damente vivi e que tanto amei. Hora em que o céu e a terra re-
Esse grito me atinge e me fere. Alguma coisa se dilacera em fletem, amigos, um sorriso comum e se estreitam num fraterno
mim; abre-se uma fenda em minha alma. amplexo.
O extremo apelo me convoca: é o lamento de Cristo, é a dor Parecem em paz, mas é aparência do momento.
do mundo, é uma convergência, em mim, de forças superiores e Vive dentro de mim a visão da realidade.
inferiores. Sinto minha alma fugir-me, arrebatada num vértice Eu senti verdadeiramente a terra tremer.
de forças titânicas; sinto a voz instar dentro de mim e repito:
―Senhor, seguir-Te-ei até à cruz‖. XI. RESSURREIÇÃO
Estou esmagado pelo peso de uma promessa solene. Alverne – Páscoa de 1947
◘ ◘ ◘
Torno a subir à igreja média, pintada por Giotto. É manhã de Páscoa, manhã radiosa da minha ressurreição
Apaga-se a última vela. É noite. Ouço a repetir-se ainda em Cristo, e eu cheguei em espírito aqui em cima do Alverne.
mais perto, dentro de mim, o grito do Cristo a morrer. E, aqui, na Capela dos Estigmas, no lugar em que Francisco viu
Ele aqui está, atual, presente. Cristo, a minha alma escreve no livro da sua vida eterna, em ca-
Rasga-se, então, ante meus olhos, a visão da terra e do céu. racteres que não mais se apagarão. Escreve e exprime em si este
O céu chora a agonia e a paixão de amor de um Deus; a terra novo grande dia da sua eterna transformação, dia de alegria,
treme, convulsa, no pressentimento de um vendaval sem noite. depois de tanta dor, dia de vitória e de paz, depois de uma ca-
O drama do homem e o drama de Deus se conjugam nesta minhada tão exaustiva. Sinto o olhar de Cristo sobre mim, que
hora suprema de paixão. imprime um sinete de fogo à minha palavra.
Olho atemorizado. Vejo um turbilhão de forças que se pro- Deste alto cume do Alverne, contemplo a terra adormecida
jeta para a terra e vejo a terra sacudida, agitada, submersa num lá embaixo, longínqua e vaga na névoa matinal, tão cheia de
mar de sangue. ânsias e de dores e, apesar disso, aquecida e fecundada pela di-
É a hora tétrica da paixão do mundo. E parece sem esperan- vina luz do sol.
ça. O círculo estreita-se cada vez mais; bem depressa estará fe- Deste cume espiritual, também repasso a história do mundo,
chado, e tarde será para escapar à compressão. ainda imerso no paul da ignorância e da barbárie, perdido na
A mão do Eterno empunha o destino do mundo; estão pron- névoa da involução, história cheia de aflições e destruição e,
tas a desencadear-se as forças para o choque fatal. Está próxima apesar disso, guiada e regida pela lei de Deus.
a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Feliz Deste cume do meu destino, miro a infinda alternância de
quem não for vivo, então, sobre a terra minha transformação, que hoje, finalmente, emerge da prova e
O amor de Deus deve retrair-se um momento, para que a da dor e, por esta impelida a um ancoradouro mais firme e ele-
justiça seja feita e o destino, desejado pelo homem, se cumpra. vado, pode arremessar-se agora de um salto para Deus. O espí-
Há algum tempo, eu já disse – preparai-vos, preparai-vos – rito, redimido pela dor, pode finalmente escancarar as portas
e não ouvistes. Em breve será demasiado tarde. cerradas pelo egoísmo e pela culpa, pode abrir-se para que a luz
O drama está próximo, eu o sinto, torna-se meu, toco-o, res- do alto o penetre e o inunde.
soa desesperadamente, no mais íntimo de meu espírito. Eis que hoje, não mais na tumba de Francisco de Assis 22,
Repito: ―Toma, Senhor, minha alma‖. tumba de Seu corpo morto, mas no Alverne, a apoteose do
E três vezes repito: ―Senhor, ofereço-Te a mim mesmo pela Seu espírito vivo e presente confirma-se e se concluem, ama-
salvação do mundo‖. durecidos no tempo, os meus pactos com Cristo, já cumpridos
―Seguir-Te-ei até à cruz‖. em uma hora de paixão e de treva para o mundo, no claro
Três vezes repito e sinto que Tu, Cristo, me escutas e me pressentimento do iminente último conflito mundial. Tudo
aceitas; estou unido à Tua Paixão. Compreendo que me guiaste caminha e tudo fatalmente deve maturar-se na vida. O bem e o
até aqui, ao templo de São Francisco, para que, sobre Seu túmu- mal estão enquadrados no ritmo de sua transformação, e eis-
lo, próximo Dele, eu Te repetisse esta nova promessa solene, de- me chegado aqui em cima, de onde contemplo a terra, a histó-
cisiva, seguindo a primeira, após cinco anos de duro caminhar. ria e a mim mesmo.
Compreendo que Tu esperavas esta minha nova dação, por- Dez anos faz, na Quinta-feira Santa de 1937, que chorei em
que agora um peregrinar mais áspero se inicia e um esforço Assis e pranteei a minha dor e a dor do mundo, que tornei mi-
mais árduo me espera. nha. E, como agora ressurjo da minha dor na alegria de Cristo,
O cântico cessou depois de seu último paroxismo. assim ressurgirá o mundo em uma nova civilização. Vejo-a do
Todas as luzes se apagaram. O templo está em silêncio, no alto deste cimo, que domina o tempo, última meta de tanta luta
escuro. e sofrimento. Hoje, aqui, neste cume do Alverne, não choro
Minha alma atinge, junto à alma de Cristo no Getsêmane, mais a minha paixão em Cristo e a paixão do mundo, mas can-
sua última desolação. to a minha ressurreição em Cristo e a ressurreição do mundo.
Abala-me o último estalido das vergas batendo no solo. A esta dediquei a vida.
Naquele instante, verdadeiramente senti a terra tremer. ◘ ◘ ◘
◘ ◘ ◘ Senhor, semeei segundo as Tuas pegadas, como me orde-
Como era belo contemplar, lá fora, antes do ocaso, sobre naste. Semeei por toda a parte, em todos os campos do mundo,
o doce e extenso vale umbriano, os reflexos do Tescio 21 e os rivais e invejosos de vãs posições terrenas. Entrei lá, onde, com
pinheiros ondeando ao vento, contra os diáfanos esplendores bondade e compreensão, me foi aberta a porta, seguindo o Teu
da distância! evangelho, que nos ordena amor. Permaneci contristado em si-
E, mais tarde, a lua cheia surgindo do Subásio, a mole lêncio, no limiar das portas que me foram fechadas. Fui expulso
do templo, irreal entre pálidas luzes, e a imensa campina por aqueles que mais amava e que melhor deveriam ter com-
adormecida.
22
Veja ―Paixão‖; Assis, Quinta-feira Santa de 1937, capítulo an-
21
Rio perto de Assis (N. do T.) terior. (N. do A.)
116 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
preendido. Senhor, ofereço-te esta minha dor. Eles não me qui- Eis que, aqui, no cimo do Alverne, nesta manhã de Páscoa, o
seram. Oro por eles. Outra coisa não posso fazer. A obra da meu drama se cumpre. Por dez anos repeti toda tarde os três vo-
qual eu sou o servo é Tua. Somente Tu possuis os meios para tos. E Tu permaneceste ao meu lado, Senhor, e guiaste cada pas-
fazê-la triunfar. Eu nada sou. Repito-Te o meu voto: ―Senhor so meu no mundo, precedendo-me com a Tua cruz, coroado de
eu sou o Teu servo, nada mais quero senão isto‖. espinhos. Mas tudo é transformação, e a transformação possui
Senhor, pela salvação do mundo, para aliviar, se possível, a um ritmo. A lei que rege o universo é um pacto que Deus fez
sua merecida dor; para dar à Tua justiça uma contribuição com o homem, estabelecendo a garantia da estabilidade fenomê-
qualquer de amor, ainda que seja quase nula; para encher o hor- nica. Nesta lei, o mal está enquadrado a serviço do bem, a dor é
rendo vazio produzido pelo ódio, ofereci a Ti minha dor aqui permitida como instrumento de felicidade. Assim, como em Ti,
em cima, esvaído e quase que sangrando. Somente Tu a viste. depois da paixão a ressurreição. Tudo é ordem em uma harmonia
Tu o sabes. Jamais peço para mim. A minha prece não pede, sublime. Tal como Tu já nos mostraste como sucederá para o
mas ouve. Ouve a Tua voz. Mas, se posso implorar para os ou- mundo, assim também a minha dor cumpriu a sua redenção.
tros, faze com que o mundo seja salvo da medonha catástrofe Na redenção, não Te vejo mais coroado de espinhos, san-
que o ameaça, faze com que ele possa aportar a salvo à outra grando na crucificação, na primeira fase que é de sacrifício do
margem, que se encontra além da sua atual prova de dor e faze corpo-matéria, crucificado, em que o homem, ainda todo carne,
com que a meta da sua ressurreição, pela qual Te ofereço a vi- se detém demasiado e permanece ainda. Mas vejo-Te na segunda
da, seja logo plenamente alcançada. Faze que não seja vão tanto fase, a mais alta e vital da redenção, que é a ressurreição no espí-
sofrimento, faze com que a dor abra as mentes e os corações, rito, ressurreição em que o homem, ainda pouco evoluído, muito
faze que esta destruição na matéria construa no espírito. Tam- pouco assimila e compreende. Vejo-Te, pois, imensamente diver-
bém Tu, Cristo, ressurgiste da Tua paixão, e também ressurgi so de ontem. Vejo-Te emerso da dor, em um esplendor de glória,
agora em Ti da minha dor. Faze que igualmente o mundo, re- de beleza e de potência, projetado na amplitude dos céus. Es-
dimido pela sua tribulação, ressurja em Ti, álacre e triunfante, plendes e irradias, todo feito de luz. És o sol da vida. A Tua cha-
como Te vejo ascender hoje aos céus, vencedor da dor e da ma aquece e nutre o universo. Neste esplendor, aqui no Alverne,
morte, como me apareces neste radioso cume do Alverne, nesta onde agora me encontro presente em espírito, Te viu Francisco,
gloriosa manhã de Páscoa. Faze com que isso aconteça. Sei que aqui onde está escrito: ―Signasti, Domine, Hic servum tuum
tudo é perfeito no universo, segundo a vontade do Pai, que Lhe Franciscum, Signis Redemptionis nostrae‖23. Nesta alegria, como
acena a marcha fatal e que eu, orando, não posso e não devo se acabou a Tua dor, ó Senhor, deve ter fim, pela mesma lei que
nem ajuizar nem aconselhar, mas apenas obedecer. Deveria di- Tu nos mostraste, toda dor, a dor do homem, a dor do mundo.
zer somente: ―Seja feita a Tua vontade‖. Mas esta minha súpli- ◘ ◘ ◘
ca é a explosão do meu amor pelos irmãos em perigo, e é mais Na mata em derredor do sacro monte do Alverne, canta a
forte do que eu. Vejo o báratro da barbárie, que ameaça as mul- voz das grandes árvores meditativas, projetadas para o céu, a
tidões inconscientes. Entre tanta preconização de sistemas, sal- voz das minúsculas criaturas aladas que aí se aninham. Mais
va-os, Senhor. Repito-Te o meu segundo voto: ―Senhor, eu Te além canta a voz do homem ocupado nos labores da terra, canta
ofereço a mim mesmo pela salvação do mundo‖. a voz das rochas e das águas, das nuvens e dos ventos em tem-
◘ ◘ ◘ pestade, e tudo domina o canto imenso dos céus. Tudo é festa.
Senhor, ao terceiro ponto, permaneço só, diante de Ti. O Os sinos anunciam para o mundo a Tua ressurreição. E Tu so-
destino do mundo separa-se do meu destino. Cada qual é livre bes glorioso no esplendor do sol. A Tua ordem triunfa. É a vitó-
e responsável por si, isoladamente. Um dia me chamaste para ria final do bem sobre o mal.
dizer-me: ―Segue-me, segue-me!‖. Obedeci ao Teu apelo e O meu destino se cumpre. Eis-me junto a Ti, Senhor, última
procurei seguir-Te Senhor, como a minha infinita fragilidade e meta. As trevas da noite se desfizeram, a névoa se diluiu ao sol.
fraqueza permitiram, como a minha pobre e culpável humani- Tu me apareces intensamente mudado, vestido assim de glória,
dade facultam. Mais não pude fazer. Desesperadamente Te se- visto nesta outra margem da minha vida, depois de uma cami-
gui de longe, chorando o meu amor perdido, no desejo de tor- nhada bem longa e dolorosa. Vejo-Te, não mais aflito, mas
nar a manifestá-lo. E caminhei sangrando entre as sarças, cain- amorosamente reclinado ao meu lado, para dizer-me: ―Estás fa-
do e levantando, levantando apenas porque Tu, que conheces a tigado. Apoia a tua cabeça em meu peito e repousa‖. Mas, ven-
miséria, tiveste piedade de mim e me estendeste a mão. Segui- cedor do mal, Tu me dizes, como ao bom ladrão, porque com
Te de longe, como convém a um servo indigno. Procurei ver- ninguém mais tenho semelhança: ―Amanhã estarás comigo no
Te do fundo destas trevas terrenas. Procurei ouvir de novo a paraíso‖. É a Tua resposta aos meus votos, repetidos por dez
Tua voz amiga no Evangelho, esquecido dos homens. Escutei anos seguidos. Tantas outras coisas depois me dizes, em lin-
com a minha pobre razão os passos por Ti impressos na histó- guagem não humana, no segredo da alma. Mas estas não se po-
ria, sentindo, contudo, que a pobre análise feita pelos sentidos dem repetir, porque não seriam compreendidas. Estas não se
não poderá jamais reconstruir a Tua figura, que está acima de devem dizer, permanecem encerradas no segredo do Eterno!
toda a forma humana. Segui-Te chorando a minha insensatez, ◘ ◘ ◘
envergonhado por não saber falar a Ti, porque Tu estás no alto, Assim cheguei junto a Ti, Senhor, peregrino de amor e de
em tão ofuscante glória de perfeição, que eu me desoriento. paixão. De todos os amores humanos, o Teu foi que venceu. A
Senhor, juntei esta dor que é a consciência da minha miséria às Ti só se pode amar. Através da tempestade, cheguei à Tua paz.
outras dores e também isto Te ofereci, para que Tu tivesses pi- As chamas do Teu incêndio me envolverão e não me deixarão
edade de mim. Tudo isto Tu sabes, e eu o sei. Nada fiz do que mais. A dor me salvará. Bendita sejas, irmã dor, que nos redi-
devia e do que desejaria. No entanto o meu coração, enamora- me. Agora sei o que Tu querias de mim, Senhor. Não mais cho-
do de Ti, sem medir mais nada, nem a Tua grandeza, nem a ra, não mais treme a minha alma, mas triunfa na Tua alegria. A
minha indignidade, o meu coração, ardente de desejo por Ti, paixão está superada na ressurreição. Assim como a Tua dor foi
incapaz de resistir à Tua chama, que o envolve e queima, inca- minha, assim também agora é minha a Tua felicidade.
paz de compreender o alcance das suas próprias palavras, a Tu estás comigo, Senhor, e não mais me deixas. E Ele me
imensidade de seu ardor, o absurdo do seu impulso, o meu co- diz: ―Vai, diz aos homens que não se sofre em vão. Vai, lembra
ração Te repete, irresistivelmente transtornado à Tua luz, repe-
te o seu terceiro voto: ―Senhor, seguir-Te-ei até à cruz‖. 23
―Assinalaste aqui, ó Senhor, o teu servo Francisco com os estigmas
◘ ◘ ◘ da nossa redenção‖. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 117
aos homens o caminho da redenção. Que saibam sofrer e, so- vos. A concepção materialista fez crer aos dirigentes que a
frendo, compreender. À medida que compreenderem, o círculo opinião pública se pode hoje fabricar mecanicamente, em sé-
se alargará e a dor se suavizará. A luz de Deus bate às portas de rie, por meio do radio e da imprensa. Não é verdade. Existem
sua alma e pede para entrar, mas eles a mantêm hermeticamente correntes de pensamento independentes, que escarnecem de
fechadas. Abram-nas ao amor fraterno, que Deus entrará. O ho- semelhante indústria. A vida nos mostra que, em momentos
mem deve aprender qual ser livre e pode, pois, aceitar ou repelir decisivos, a alma coletiva caminha por si, independente do ha-
como quiser. Mas ai de quem odeia os outros, porque envenena bitual controle dos dirigentes em qualquer campo.
a si mesmo. Ai de quem se encerra no cárcere de egoísmo, por- No momento atual, efetivamente, ideologias hedonistas im-
que barra para si próprio o caminho das fontes da vida, isola-se e portadas tendem à formação de uma ordem bem diversa de idei-
se estiola em direção à morte. Vai, ensina ao mundo esquecido, as, baseada no interesse e no bem-estar material. Como explicar,
desviado em busca de falsas miragens, os verdadeiros caminhos no entanto, que semelhante propaganda, em vez de atrair com
da alegria. Sê sacerdote do espírito e oferece também o que sa- seu utilitarismo, tenha obtido o efeito exatamente oposto, colo-
bes, porque de mil ofertas nasce a nova civilização‖. cando-nos, ao invés, frente a um inegável despertar religioso?
Eis que, enquanto me afasto do Alverne para tornar aos mes- Este, por sua vez, não é apenas o difícil produto desejado pela
mos misteres do mundo azafamado, uma última visão se me de- Igreja, mas sim algo mais profundo, além do quanto possa que-
para. Também aqui, como lá em Assis, o drama do mundo e o rer um indivíduo, uma autoridade ou as próprias massas huma-
drama de Cristo se conjugam. Assim como Cristo ressuscitou, a nas, que apenas lhe obedecem. E como pode ele, nos eventos
vida ressurge da moderna e imensa catástrofe. Outros golpes vi- históricos, assumir de inopino uma direção tão imprevista?
rão, porque o homem é obstinado. Mas, além deles, também para Observemos um fato. Em 1939, quando eu já sentia os temo-
o mundo, há a sua ressurreição. A fé, a lógica profunda da vida res da guerra desde 1932 (tudo publicado), ninguém temia essa
no-la indicam. E tal como me liguei à dor do mundo na hora de guerra, razão pela qual nela nos precipitamos com a inconsciên-
sua paixão, estou ligado agora à sua alegria na hora da sua ressur- cia de criança. Hoje, quando o horizonte não é tão sombrio co-
reição em espírito. Nela reviverei. No bem e na felicidade dos mo então, todos vivemos sob o temor de uma nova guerra. Pro-
outros estará o meu paraíso. E isto será a plenitude da minha me- virá este sentimento do temor de uma nova guerra ou será mais a
ta atingida. Um paraíso ocioso, egoísta e solitário, não é paraíso. recordação da última, tão recente? Estará este despertar religioso
Adeus, santo monte do Alverne, adeus... Retorno lá embaixo conexo à tão difusa psicose de guerra? A Terra está surgindo aos
ao meu árduo trabalho, no mundo azafamado. Tudo aqui embai- olhos do homem como qualquer coisa de infernal e inabitável,
xo é tempestade: egoísmo, ódio, agressão. A fúria das paixões então ele procura refúgio alhures, em Deus. E ei-lo a fitar o céu,
devasta esta pobre terra, que poderia ser um jardim. Aqui em- Cristo e os Santos, em outro mundo. E à Terra, apontada pelo
baixo, o belo sonho vivido se torna utopia, e ao canto de Deus materialismo como paraíso imediato e seguro, mas que, de fato,
responde um grunhido feroz e satânico. Mudo é o espírito, extin- tornou-se um inferno, voltam-se as costas. Tal desespero impele
ta é a chama da fé e da esperança. Vive-se em um pressentimen- o homem a buscar a verdadeira vida alhures. É assim que as for-
to de catástrofe universal, sem que se saiba evitá-la. A terra está ças do mal colaboram para o triunfo das forças do bem.
enregelada sob um manto de dor. Nem mesmo o céu se vê mais Tudo isto é lógico, mas não termina aqui. O insucesso do
sorrir do fundo deste inferno, e a terra parece prestes a abrir-se, materialismo, com a falência das suas promessas, é clamoroso e
ávida por tragar o homem, que se tornou fera e criatura do mal. o atingiu em profundidade. Isto todos compreenderam. O mun-
Dentro de mim está a visão do real. do sente que o materialismo o traiu e o repudia. O mundo, pre-
Sim! O velho mundo realmente está no fim. É o fim deste cipitado na dor, viu o verdadeiro rosto de Satanás, antes oculto
mundo. Mas um outro surgirá dele. atrás das falsas promessas. E então? Eis aí o germe da reação e
Eu vi realmente a terra florir. o primeiro impulso em uma nova direção, no sentido oposto,
espiritual. É assim que a onda da vida, depois de uma descida
XII. CRISTO AVANÇA tão grande, volta a subir após atingir o fundo. O mal operado
pelo materialismo foi grande, mas o homem é livre e deve pro-
Depois de haver observado o fenômeno místico em um caso var para aprender. A lição foi dura e feriu a nossa carne. Não é
individual, observemos a sua dilatação no mundo da hora atual. fácil esquecer, quando se derramou sangue. Algo de imenso e
Todo período histórico possui a sua moda, que é a forma de novo deve maturar, porque Deus não nos fez sofrer em vão,
manifestação de suas atitudes mentais. A corrente dominante mas apenas para o nosso bem. As leis da vida querem que tudo
de nosso tempo tem sido o materialismo, com todas as suas rume enfim para o bem, que o mal se transforme em bem, nisto
consequências em todo campo. Como se explica hoje, no en- tudo respeitando o livre arbítrio humano.
tanto, que bem no meio desta corrente que tudo penetrou, nas- Que sucede, pois, hoje no mundo? Verifica-se uma inversão
ça entre nós a moda das paixões, dos milagres e, nas massas, de rota. Essa inversão se inicia nas massas da maneira mais
surja uma tão imprevista e difundida paixão de sentimento re- elementar: o sentimento religioso. Hoje, isto pode nos parecer
ligioso? Os fatos provam, pois, a tese por mim amplamente fanatismo. Mas, amanhã, subirá até aos mais evoluídos, até aos
sustentada há tempo, de que nós nos encontramos no ponto de dirigentes, que serão atraídos. Dar-se-á um refinamento no sen-
maior declive da onda involutiva, e que é justamente deste timento e na manifestação, haverá uma consolidação através da
ponto que se inicia a ascensão. Essa ascensão parece hoje ina- razão e da ciência, que, em forma bem mais evoluída, conferirá
creditável para quem enxerga apenas superficialmente, mas ela novo aspecto à humanidade. Essa renovação não pode provir
invadirá todo o horizonte de amanhã, configurando a realiza- dos dirigentes de hoje, porque eles não se encontram evoluídos
ção daquela ideia que parece utopia no momento e pela qual eu o bastante, em todos os campos, para poder assumir a direção
luto: ―A Nova Civilização do Terceiro Milênio‖. de uma renovação do mundo no sentido espiritual. A renovação
Como é possível que hoje, em pleno materialismo, assista- se inicia naturalmente pelas multidões, em forma primitiva,
mos à intensificação de movimentos religiosos de massas? É como primitivas são estas também. Ela se comporta como a
difícil provocá-los artificialmente desta maneira. Eles são es- maré, como uma inundação que sobe lentamente, em silêncio,
pontâneos. Eles não obedecem a nenhum comando de dirigen- invadindo tudo, sem alarido, sem propaganda, sem armas nem
tes humanos. As leis da vida seguem um plano lógico e entram conflitos, mas sempre subindo. Não provém, como habitual-
em função no momento adequado, sem se preocuparem com mente, do exterior, de coações, partidos, hierarquias ou classes
longas explicações, visando apenas conseguir os seus objeti- dirigentes; não é fundamentada em meios econômicos nem ori-
118 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
entada pela vontade humana. É de dentro que ela provém, das Tudo isto parece irrealizável hoje. No entanto o mundo está
almas, de uma necessidade instintiva, de uma ordem de Deus, reduzido a apenas duas ou três grandes unidades. O fato destas
que fala tacitamente aos corações e os arrasta. Suas vias e mé- se armarem para destruir-se mutuamente prova que elas não
todos estão invertidos, nos antípodas dos humanos ora vigentes. podem deixar de decidir a supremacia absoluta do mundo, em
É estranho! Essa maré crescente do bem é mantida e impeli- uma fatal pugna eliminatória pelo último campeonato. Isto trará
da pelos impulsos do mal! A fase materialista gerou um espírito a unidade e, portanto, o fim das guerras. A unidade não pode
de luta. O princípio egoístico em que se baseia é cisão satânica e ser conseguida por pacifismos teóricos ou desarmamentos si-
acarreta, implícita no sistema, uma crescente e contínua destrui- mulados, mas somente pela vitória final de um só, escolhido
ção, que irremediavelmente o leva para o desmoronamento final, pela vida através da seleção natural, que se efetua por intermé-
única solução. O conflito humano entre ideias e interesses é hoje dio da luta sem piedade; seleção de apenas um, biologicamente
tão intenso, que a vida não pode mais suportá-lo, o que torna fa- escolhido como o mais cotado das qualidades necessárias, que
tal ele explodir e, com isto, resolver-se e exaurir-se. O homem demonstre nas provas ser o mais capaz. Com isto, a era dos
não aguenta mais. Daí a revolta. No fundo da atual descida invo- conflitos, depois de um terrível crescendo, exaurir-se-á e a nova
lutiva da onda histórica há um vértice negativo, um ponto críti- era poderá então nascer, a era da harmonia e colaboração, a no-
co, de máxima tensão, em que o edifício de forças, formado se- va era do conhecimento e do espírito.
gundo aquele sistema, em direção separatista-destrucionista, não Todas as energias do mundo, demográficas, bélicas e eco-
pode deixar de precipitar-se e desmoronar fragorosamente. A nômicas, giram em torno destes princípios. Toda raça, toda na-
ressurreição em direção à vida, que não pode acabar, está implí- ção serve a estes princípios de acordo com a própria forma. No
cita e é fatal. Eis aonde vai terminar este primeiro sintoma atual entanto a ideia fundamental, que avança em meio a tão diferen-
do despertar instintivo do sentimento religioso das massas. tes processos e manifestações exteriores, é o retorno de Cristo e
Homens e governos, toda a autoridade humana na Terra, fo- a verdadeira atuação do evangelho na Terra. Até agora, tem ha-
ram até agora, em geral, prevalentemente egoístas. A luta do- vido aí mais pregação e teoria do que prática, mas Cristo avan-
minante pesou sobre eles, exigindo-lhes que pensassem antes ça. Por este motivo, as primeiras manifestações se dão como
na própria defesa. Em todo campo, mesmo espiritualmente, a expressão religiosa das multidões. Estes movimentos religiosos
vida teve que forçosamente basear-se na luta e na imposição. populares constituem o primeiro e verdadeiro sintoma do futu-
De resto, as multidões eram um verdadeiro rebanho inconsci- ro. As próprias forças do mal são utilizadas pela vida para este
ente, e se fazia mister não só ensiná-las, mas igualmente im- retorno de Cristo. Ele se encontra no centro da nova civilização;
por-lhes aquilo que deveriam crer, pensar e fazer, sem direito a é a grande potência da nossa ascensão humana. Ele é o princí-
juízo, porque este levaria à anarquia. A necessidade de unidade pio do amor que concretizará a nova unidade. Esta não será
implica a sujeição de consciências em todo campo. Não se po- apenas de diretivas sociais e interesses, mas também de fé e re-
dia pretender uma ação por convicção da parte de massas inca- ligiões. Em Cristo, meta final, exaurir-se-ão e se extinguirão
pazes de possuir outro valor senão os do ventre e do sexo. todos os atuais conflitos humanos. Da tumba do materialismo,
Mas, hoje, o homem começa a procurar compreender, queren- Cristo fará ressurgir na humanidade, com Ele, a nova luz da
do entender por si. Diante da mentalidade moderna, que está percepção e consciência espiritual. A grande força que faz pres-
mais apta a funcionar por persuasão espontânea do que por são através de tantos conflitos atuais, para resolvê-los e vencê-
aceitação obrigatória, perde cada vez mais valor o princípio de los, é Cristo. Ele inspira alguns elementos isolados, mais pró-
autoridade, que já foi útil uma vez, mas pode ser prejudicial ximos a Ele, e os faz falar. Ele fala no instinto das massas, ori-
agora. Quem, no entanto, poderá coagir os dirigentes – instin- entando-as de maneira inesperada para novas formas de consci-
tivamente levados a repousar nas suas posições de comando, ência. A vida não pode deixar de responder ao apelo de Cristo.
tão trabalhosamente conquistadas – senão a troante voz da vi- O mundo sabe que, entre os homens, não pode haver um salva-
da, que investe contra eles, falando através das multidões? Es- dor e o espera do céu. E o Cristo libertador se aproxima. Clama
sa voz os perturba, mas como poderia falar de outra maneira a por Ele o desesperado grito de dor da humanidade dilacerada,
vida, se as outras portas estão fechadas? Só então eles, para igualada que está no sofrimento, sem distinção de classes, cre-
salvar as próprias posições, procuram as reparações, obedecem dos ou de raça. Já se abrem as vias espirituais para Sua presen-
e se modernizam. Os dirigentes são assim conduzidos pela vi- ça entre nós. Tudo está pronto e evidente nos eventos, e não há
da, que tudo dirige. Desse modo, tudo se move, também eles, quem possa pará-los. Tudo, mesmo o mal, abre o caminho para
ainda que por último, e a vida avança. Ele. Esperemos com alegria a final e fatal apoteose do bem.
O homem desperta hoje, através da dor, para uma nova ma-
turidade. Ai de quem não se dá conta disto! Não se resiste ao XIII. UMA ESTÁTUA SE MOVE
crescimento do espírito, centro da vida. O ideal dos dirigentes, (Santa Maria dos Anjos - Assis, 14 de março de 1948).
em qualquer campo do passado, foi a vitória sobre outros seres
humanos por meio de rivalidades, lutas e superações sem fim. Precisemos agora melhor as nossas observações, localizan-
O herói da raça foi o guerreiro agressivo, o ideal foi a conquis- do-as em um caso particular24. Quando acontece um fenômeno
ta, a grandeza consistiu no domínio pela sujeição. Harmonia e reconhecido como milagroso, todos acorrem para ver e julgar.
cooperação no mundo eram inconcebíveis na prática, uma uto- Um caso fora do comum, que parece situado além dos limites
pia. Estamos hoje em uma grande reviravolta, na qual o ho- ordinários das leis da vida, nos chama a atenção para o sobrena-
mem, cansado de suportar os efeitos coletivos da sua universal tural. Frente ao extraordinário, somos levados a procurar a so-
ferocidade, conceberá um novo ideal, biologicamente mais lução interpretativa que mais corresponde à nossa própria for-
rendoso. O seu herói não será mais um imperialista como Júlio ma mental, instintos e necessidades, mas, às vezes, também aos
César, Carlos Magno, Napoleão, mas sim aquele que, conce- interesses coletivos, e não só individuais. Nesta interpretação
bendo o mundo como uma unidade harmônica e cooperante, só influem, pois, não só a natureza de cada tipo biológico, mas
agir em função disso. Todavia não era possível atingir isto se- também a da raça e dos eventos de um particular momento his-
não hoje, quando o mundo tende a reunir-se sob um só gover- tórico, que podem fazer pressão sobre este juízo. Este, por con-
no, com os meios de comunicação multiplicando as relações e seguinte, é resultante também de fatores psicológicos interiores.
permitindo uma fusão antes impossível. Também se tendia à
unidade no passado, mas a excessiva involução da época não a 24
Este capítulo é extraído de um artigo do mesmo autor, publicado em
permitia senão por aproximação. ―La Nazione‖ de Florença, em 4 de agosto de 1948. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 119
Mas eis que, ao lado do juízo dos indivíduos e da coletivi- tes, visíveis de qualquer ponto, próximo ou distante, indepen-
dade, dado pela corrente formada pela maioria, existe também dentemente de fatores atmosféricos. Entramos então no campo
um outro: o juízo da ciência e da autoridade. Há indivíduos das ciências psicológicas. Mas estas também não conhecem a
diferenciados, que observam o fenômeno munidos de cultura, técnica de funcionamento da personalidade humana. Elas per-
de métodos racionais, de instrumentos científicos e também manecem no campo nervoso e central, com uma psicologia su-
de autoridade espiritual. Tal observador não é instintivo ou perficial, que não atinge as profundezas do espírito. Os termos
fanático. Ele procura, por todos os meios de que dispõe, ser psicose, alucinação etc., são mais palavras do que conceitos,
objetivo, buscando ser racional e prudente. É lógico, pois, que mais complicações do que explicações. Neste ponto então, jus-
o indivíduo e a multidão apelem, em última análise, para a ci- tamente quando se deveria começar a explicação científica do
ência e a autoridade. Mas isto não impede que os primeiros caso, como acima dizíamos, não se enxerga mais nada e pene-
influenciem estes últimos, fazendo pressão sobre eles na dire- tra-se em cheio no sobrenatural e miraculoso, no mistério
ção a que pende a psicologia coletiva do momento, a qual ar- inexplicável. O fenômeno, desta maneira, nos foge para o in-
rasta mais ou menos a ―todos‖. cognoscível, autorizando, desta maneira, os incréus a negá-lo.
Do lado oposto dessa tríplice ordem de espectadores, isto é, Ora, Deus nos deu a mente para usá-la com o raciocínio, e não
indivíduo, multidão e ciência-autoridade, está o fenômeno, seja para renunciá-la. E relegar o problema como inexplicável não
ele a aparição de Lourdes, de Fátima, ou outra qualquer. No é conclusão para a mente, mas sim fracasso. Não se quer com
caso presente, trata-se da enorme mole da estátua de Santa Ma- isso contrariar o ato de fé e de sentimento com que as massas,
ria dos Anjos. Move-se ou não se move? Para muitos, ela se por instinto e intuição, tudo resolvem de improviso, o que evita
move. Eis o que multidões vão ver para julgar, deduzir, como- cair no fanatismo – perigo oposto ao da incredulidade – crian-
ver-se, crer ou não, cada qual segundo o seu temperamento. do fatos e milagres por fantasia. Não queremos de modo ne-
Alguns realmente não veem. Por que eles não veem? Um mo- nhum renunciar à fé, mas apenas ser, sem ingenuidade nem fa-
vimento real da matéria, situado na matéria, todos veem se não natismos, verdadeiros crentes, isto é, acreditar em plena cons-
forem cegos. Mas quem tem olhos para ver, vê segundo preci- ciência e com a solidez da razão clara.
sas leis óticas. Parece, pois, que aqui deva intervir outro fator, Se o fenômeno indubitavelmente existe e se a sua objetiva
mais sutil, além das leis óticas. Qual é ele? realidade não está, como demonstram os controles, situada na
Já coligimos os vários elementos do fenômeno. Se este, por estátua, essa realidade deve estar em alguma outra parte. Ora, o
um lado, refere-se à matéria, por outro lado concerne às três milagre não é menor se a sua sede for transferida de um movi-
unidades psíquicas – a cada uma e a todas conjuntamente, com mento físico, espiritualmente sem nenhum valor, a um movi-
recíproca influência – que se encontram no extremo oposto do mento de almas. Aqui é o caso de se crer então que os apare-
próprio fenômeno. Este, assim, está situado, em parte, no cam- lhos sismográficos, se tivessem sido postos na alma das multi-
po das leis físicas e dinâmicas do mundo exterior ao homem e, dões ao invés de na estátua, teriam registrado oscilações nor-
em parte, no campo das leis psíquicas e espirituais do mundo mais. Mas a ciência não possui sismógrafos capazes de registrar
interior do próprio homem. Daí uma consequência importante. tais movimentos. Deve-se mesmo acreditar que as máquinas fo-
Quem observa apenas o lado físico, ignorando o psicológico, tográficas, se pudessem gravar a imagem psicológica espiritual
não vê mais do que a metade do fenômeno, e nada vê quando o da estátua na alma dos observadores, teriam registrado imagens
fenômeno físico, segundo o exame objetivo, é inexistente. bem diversas das estáticas. Mas tais máquinas fotográficas não
Façamos a aplicação. Diz-se que foram colocados apare- existem. É certo que, se o fenômeno não é solúvel no plano fí-
lhos sismográficos na estátua e que estes nada registraram. Es- sico, deve sê-lo no espiritual. É certo também que existem rea-
ta é a primeira fase, a mais elementar e material da observação. lidades interiores, sólidas e objetivas, poderosas e resistentes,
A Igreja, em tais fenômenos de sua jurisdição, de acordo com tanto quanto as exteriores, se não mais. Não é mais fácil mudar
a lógica, não recorre à hipótese do assim chamado sobrenatural a forma de uma montanha que a de um tipo de personalidade?
e miraculoso, senão depois de excluída toda e qualquer expli- Com tudo isto, exauridas todas as hipóteses científicas, a re-
cação que possa ser dada pelas leis normais da física, conheci- alidade objetiva do fenômeno permanece e se apoia em fatos
das por nós. A precedência cabe assim à ciência e ao seu mate- tão sólidos quanto os da realidade exterior, que parecem negá-
rialismo. Mas, se, por tal método de indagação, nada se encon- lo. Deixemos a matéria entregue às suas leis. O espírito não tem
tra nesta primeira e mais baixa ordem de fenômenos, então é necessidade dela, a não ser, quando muito, como ponto de refe-
evidente que, se não quisermos permanecer alheios, impõe-se rência para fixar a atenção e as ideias. Mas a causa, o motor,
que abandonemos a sabedoria da matéria, que nada mais pode não está na matéria, e sim no espírito. Em um artigo não é pos-
nos dar, e apelemos para a ciência do espírito, capaz de, com sível expor mais do que as conclusões. Neste caso, o movimen-
outros métodos, permitir-nos um juízo sobre uma outra ordem to não é de caráter físico, mas está repleto de sentimento e de
de fenômenos. A primeira observou, por todos os seus meios, significação moral, qualidades ignoradas na matéria.
se existe ou não uma oscilação física e se é possível, segundo Observa-se na estátua um arquejar doloroso, as mãos se es-
as suas fórmulas, dar uma explicação do fenômeno. Foram tendendo como por amor, enquanto a coroa e toda a matéria
exercidos controles de caráter elétrico e ótico, mas tanto os circunstante permanecem imóveis e indiferentes. O fenômeno,
eletroscópios, como os galvanômetros ou a imagem fotográfica pois, projeta-se também na matéria, mas está e tem origem nas
nada revelaram. Excluídas as causas físicas – elétricas, óticas almas, mesmo que estas tenham a necessidade de representá-lo
etc. – foram descartadas também as causas radiantes. Todo em uma realidade exterior, onde pode ser reconhecido e encon-
controle no sentido de descobrir uma causa física ou dinâmica trado. Toda a técnica das imagens corresponde a esta lei. O fe-
teve resultado negativo. Logo, na realidade objetiva, situada no nômeno não é menos extraordinário por isso. Ao contrário, jus-
mundo das leis cientificamente conhecidas, a estátua não se tamente por estar situado nas almas e revestir-se de um caráter
move. Para os aparelhos de registro, desprovidos do lado espi- espiritual, representa a via lógica e natural da comunicação do
ritual, que está na alma humana, o fenômeno não existe. Neste homem com as forças superiores da divindade. O fenômeno se
ponto, o fenômeno foge à ciência atual, que deve retirar-se, torna realmente miraculoso, quando pensamos que este contato
declarando a própria incompetência. das massas com Deus é tão poderoso e de tal ordem, que o mo-
Entramos agora, aqui, em um campo inteiramente diverso. vimento espiritual invade mesmo a matéria e a arrasta consigo.
A ilusão ótica também está excluída, tratando-se de um fenô- E é isto o que confere a esta, no fenômeno, a parte de efeito, e
meno coletivo e objetivo, de movimentos parciais e intermiten- não como se acreditou, a de causa.
120 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
As multidões acorrem, veem, choram, convertem-se. A que já não interessa mais qual seja a ideologia. Tanto isto é
matéria da estátua, de per si muda e inerte, modela-se assim verdade, que o conteúdo delas consiste apenas na mesma coi-
em uma forma de pensamento e exprime uma ideia superior sa: mentir, conquistar, dominar.
de santidade, de bondade e de fé. Esta ideia, que é viva nas De tudo isto nasceu uma extraordinária recrudescência da lu-
almas, torna viva a estátua inerte. Esta forma de vida a faz ta pela vida. O racionalismo mal disfarça a realidade bestial, em
mover-se por vias interiores, que podem mesmo chegar a que o lobo, não importa em que forma social, alia-se a outro lo-
atingir a solidez das leis físicas. Faz também com que ela fale, bo apenas porque a união faz a força, tornando mais fácil vencer
e a alma docemente ouve. Mas não é a estátua que fala. É a e pilhar. Formam-se, assim, as associações de interesse que
voz de Deus que se fez ouvir pelas almas, por vias interiores, mantém ligadas em unidades compostas algumas classes de in-
através de um meio sensório aparente, necessário para firmeza divíduos, não importando sua categoria ou tipo biológico, nem
e atenção dos espíritos habituados a perceber quase somente os objetivos aparentes apregoados ou o lugar na Terra onde tudo
os estímulos dos canais exteriores. Então a alma das multidões isto se passa. Essas diversas formas são aparências de um mes-
ouve a Mãe de Cristo dizer-lhe: ―Na hora tremenda que te afli- mo problema substancial, que é a luta, o ataque e a defesa, que
ge e que tu, no teu instinto, sentes aproximar-se pavorosa, eu se tornam mais fáceis se executados em grupo. Não importa,
aqui estou para te proteger com o meu amor. Vem a mim. Crê. pois, se esses agrupamentos possuem características e objetivos
Vem, eu te salvarei‖. Isto corresponde também aos profundos religiosos, econômicos, políticos etc. Se reduzirmos todas essas
instintos da vida, pois esta, nas horas apocalípticas, recorre às diversas formas à sua nua realidade biológica, então compreen-
ideias mães da estirpe e às forças biológicas salvadoras, que deremos que, atrás de todos estes princípios que deveriam edu-
não são destruidoras, como no homem-conquistador, mas sim car o indivíduo, está na realidade o homem, buscando submetê-
conservadoras, como na mulher-mãe. los a si mesmo e adaptá-los às suas necessidades, que são antes
Desta maneira inicia-se o colóquio entre Deus e as multi- de mais nada biológicas, isto é, de um animal que quer viver.
dões. Os dois interlocutores se falam e se aproximam cada vez Nesse estado de coisas, tendendo cada vez mais ao caos,
mais. É a hora histórica tremenda que aguça nas massas a sen- onde ―homo homini lupus‖26, em vão busca-se no mundo um
sibilidade para o divino. A tragédia está nas almas. O temor da poder, uma autoridade superior que restabeleça a disciplina,
aproximação dos sem Deus provoca, por natural lei biológica sem a qual não são possíveis a paz e o bem-estar. As nações
de reação, uma automática frente de resistência dos homens que procuram unir-se, como fazem os homens nas classes sociais,
estão ou estarão com Deus. Assim, pois, de acordo com o que com o fim de atacar e defender. Formar-se-á um espírito de
se é, vê-se ou não o fenômeno. Cada um de conformidade com grupo, não mais apenas de indivíduos, mas de nações, sólido
a própria alma. E isto é lógico, porque não se trata de uma visão porque utilitário. A psicologia da alcateia de lobos estender-se-
dos olhos, mas sim da alma. Só assim tudo se explica: tanto a á dos indivíduos aos povos, que se coalizarão em classes domi-
imobilidade física da estátua, como o seu movimento espiritual, nantes, como acontece antes no seio de qualquer nação. Os fe-
invisível para muitos, porque inexistente em sua alma. Explica- nômenos sociais são compreendidos apenas quando vistos pelo
se, desta maneira, como tais fenômenos, antes tão raros, verifi- que realmente são, isto é, fenômenos biológicos particulares.
cam-se repetidamente agora, nestes momentos tão calamitosos. Mas, ainda que as unidades em luta se tornem cada vez mais
Deixemos, pois, à matéria o que é da matéria, para dar assim ao vastas, isto não basta para formar um poder superior a todos,
espírito o que ao espírito pertence. E é no espírito que devemos sempre parciais e terrestres. Superior quer dizer melhor pela in-
venerar o milagre de Deus, que se faz sentir tangivelmente pre- teligência, capacidade e bondade. Isto existe no super-homem,
sente em momentos tão excepcionais. no homem de gênio, no herói, no santo. Mas estes são extre-
mamente escassos, portanto agem isolados, insuficientes para a
XIV. SINAIS DOS TEMPOS25 formação de um grupo, além disso não se coadunam com a psi-
cologia do domador, indispensável para a formação da alcateia
Lancemos o olhar em derredor. Hoje, em nosso mundo, de lobos, necessária para dominar. Mesmo que os materialistas
impera o materialismo, que, na prática, significa racionalismo, não saibam, porque não podem compreender (dado que essa é a
egoísmo, força bruta, destruição e dor, estados conexos e liga- psicologia do involuído), esta inteligência ou poder diretor cen-
dos entre si numa cadeia fatal, até ao fundo. Isto é natural, tral existe, mas não reside na Terra, por isso não é passível de
porque o materialismo representa a filosofia do involuído, que agressão nem destruição. Ela é Deus, ainda que a esta palavra
não sabe apelar senão para os instintos bestiais, pois que não tenhamos de dar apenas um sentido científico, de mente e von-
pode compreender mais do que isso. Ao materialismo se con- tade diretoras da vida. Não há motivo para desencorajamento se
trapõe o espiritualismo, que possui características opostas e falta a diretriz humana. Quando ela existe, em verdade é muito
pode ser denominado, quando elevado, a filosofia do evoluído. relativa. De resto, não faz falta e, na maioria das vezes, seria
Essas duas atitudes do pensamento humano se defrontam hoje, prejudicial, como vemos. Nem por isto a história é destituída de
no mundo, em luta desesperada, uma das formas da luta entre senso ou caminha ao acaso. Ainda que os chefes frequentemen-
o bem e o mal. E cada uma, consoante a própria natureza, põe- te nada saibam do pensamento de Deus, esse pensamento, que
se de um ou de outro lado. não se vê nem é acessível ao involuído rebelde e destruidor,
É evidente que, quando se fala de ideologias num período não deixa de guiar tudo, ainda que numa ação deletéria para es-
de materialismo – e nunca se falou tanto delas como hoje – isto te último, mas com finalidade de construir o bem.
não pode ser senão por espírito de mentira, que faz parte dos Quem vê em profundidade, onde o materialismo involuído
métodos do involuído. Outra interpretação não se pode dar à não alcança, não se alarma e diz: tende fé. O que quer que su-
propaganda de ideologias que hoje se observa, quando a subs- ceda, Deus tudo sabe e tudo orienta para o melhor. As iniquida-
tância que apoia a maior parte desses estandartes é bem dife- des são de superfície, visíveis apenas aí. Deus trabalha por bai-
rente: é a voracidade do lobo, é o mais desapiedado egoísmo, é xo, na intimidade das coisas, para ressurgir sempre contra todos
o espírito avassalador de domínio, seja do indivíduo, da famí- os assaltos. Por isso é verdade que a vida sempre vence a mor-
lia ou da nação. O pendor para mentir hoje está tão difundido, te. Se na profundeza está Deus, silencioso e perene criador, na
superfície está o mal, rumoroso, destruidor e encerrado no tem-
25
Este capítulo e alguns dos seguintes foram, pelo mesmo autor, po. O mal naturalmente se contradiz, e nenhuma psicologia é
tratados em artigos publicados em 1948-49, em revistas italianas e
26
estrangeiras. (N. do A.) ―O homem é o lobo do homem‖. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 121
mais contraditória do que a racionalista moderna. Hoje acredi- que se devem despojar para serem dadas em pasto. O sistema
ta-se ser possível chegar à posse através da destruição, à alegria da luta de classes é o mais antiprodutivo e pode transformar-se
pela semeadura da dor, ao bem-estar por intermédio da guerra e em verdadeiro parasitismo. Arrisca-se, com ela, a chegar a uma
do ódio de classe. Mas, para possuir, é necessário ordem e dis- reação ou, realmente pior, à destruição do trabalhador – pacífi-
ciplina, em vez de rebeldia. Para progredir, é necessária a sábia co produtor – e, consequentemente, de todo o bem-estar. O sis-
obra construtora dos melhores, e não dos piores, dos pacíficos, tema está ligado à necessidade de ampliar cada vez mais a área
e não dos delinquentes; é imprescindível paz e segurança. Mas de destruição em que ele trabalha. Como as guerras, esse siste-
como é possível enriquecer por meio de agressão e furto recí- ma está unido à força e à necessidade de conquistas sempre no-
procos? Este processo resseca as fontes de toda riqueza, que só vas que o justifiquem. Essa necessidade está implícita na pró-
pode nascer do trabalho pacífico e da confiança. Não é mais ló- pria natureza do sistema e, por isso, o tornará cada vez mais fe-
gico aspirar ao bem-estar por uma elevação geral do nível eco- roz e agressivo no exterior, férreo e desapiedado no interior, is-
nômico através de um trabalho concorde do que esperar melho- to é, antissocial e antivital, levando-o a um desequilíbrio bioló-
ramentos de uma destruição alternada e improdutiva? As armas gico que lhe acarretará, em um determinado ponto, fatalmente,
preparam o deserto e a morte, não o bem-estar e a vida. uma ruptura e a ruína. A espantosa irracionalidade do raciona-
Remedeia-se, então, pedindo um esforço que visa um paraí- lismo moderno não alcançou esta verdade elementar: opressão,
so futuro, não aquele apregoado e utópico dos céus, mas sim extorsão, violência, são forças negativas, que, por isso, se des-
real, na terra. E se escarnece do paraíso celeste, conquistado por troem e jamais poderão construir, porque essa função construti-
esta realidade. Mas este tem pelo menos a vantagem de ser uma va só se pode encontrar nas forças positivas, que são a convic-
promessa sem controle, porque se mantém no outro mundo, en- ção, a colaboração, a confiança. O racionalismo não compreen-
quanto já se via que o paraíso terrestre ninguém conseguia deu que o materialismo é um impulso negativo, que tende à
cumprir. Por este motivo, poucos são ainda os que creem em destruição de tudo, inclusive de quem o pratica. É verdade que
fenômenos semelhantes. Embora a ciência e o progresso te- ele acredita poder prescindir da alma, negando-lhe a existência.
nham caminhado, a dor, se não cresceu, pelo menos não dimi- Mas o homem permanece um ser com alma. Ele não é um nú-
nuiu. Que descrédito! Se tais promessas materialistas do paraíso mero, uma máquina de produção, um cálculo econômico. É um
terrestre foram logo compreendidas e aceitas, a razão está em ser humano. As construções do racionalismo moderno são
que elas se dirigem aos instintos animais do homem. A via, a construções contra as quais a vida se rebela. E a vida esfranga-
princípio, como para todas as vias do mal, é fácil. Mas esses lha tudo que lhe constitua obstáculo. Certas leis que represen-
instintos não raciocinam e exigem satisfação. Desde que esta tam o pensamento e a vontade de Deus não podem ser plasma-
falte, verifica-se a revolta. O animal morde quando se vê mal- das por nenhum poder humano.
tratado, e o involuído, que é presa do materialismo, é feroz. É necessário que o espiritualista veja todos os aspectos da
Uma fé que origine esperança em qualquer coisa que supere vida e não se limite à repetição estereotipada das fórmulas da
a miséria cotidiana e a insatisfação humana e salve o homem da sua religião ou grupo, quaisquer sejam elas. Existem hoje males
desesperação das más horas, é necessária a ele. A fé possui essa gigantescos nesta nossa época convulsionada, são problemas
função biológica de defesa, de resistência e de recuperação. É formidáveis, mas eles já foram denunciados, sentidos, investiga-
uma verdadeira força para a luta, mesmo material. Destruir essa dos e enfrentados com vigor e nova fé. O materialismo é um as-
fé é perigoso, porque então se desarma a vida dentro da dor. Que salto que invade toda a nossa vida, opondo-se às forças do espí-
meios fornece o materialismo que possam compensar a perda de rito. Mas esse assalto serve justamente para despertá-lo e desen-
tais defesas? Que dizer, então, quando a compensação oferecida, volvê-lo. Jamais nasce tanta fé como nos tempos de descrença,
o paraíso terrestre, animalesco e vegetativo, não se realiza mais nem se formam tantos mártires e heróis como sob a opressão. Os
e, mesmo que se verifique, a alma, como é natural, não se en- dois movimentos, pois, de autodestruição do materialismo e de
contra satisfeita com ele e procura outro? Mesmo atingindo o reação do espírito, concorrem para a mesma meta.
bem-estar material, sabe-se que nem só de pão vive o homem. É Não se aflijam os bons, porque são os mais fortes. Carlyle
difícil saciar o homem, ainda que lhe dando todo o bem-estar. dizia no Sintomas dos Tempos: ―A verdade é que quem possui
Quando, pois, além disso, dissemina-se a luta e, por conseguin- uma sabedoria imensa, uma verdade espiritual ainda desconhe-
te, a dor, associando-se a uma filosofia ateia, o absurdo é evi- cida, é mais forte não do que dez mil homens, mas sim do que
dente. Sim, porque nunca é tão necessária a fé como na dor. todos os homens que não a possuem. Ele os supera com uma
Quem semeia a dor, ainda que seja ateu, justamente porque se- força eterna, angélica, como que empunhando uma espada for-
meia a dor, compele a uma fé em um paraíso situado algures, jada na harmonia dos céus, uma espada à qual não poderá efi-
porque, sem uma esperança de felicidade, cá ou lá, não se vive. cazmente resistir uma couraça ou uma torre de bronze‖.
Isto é instinto. Quem, pois, destrói Deus, para imperar com a É necessário que o evoluído, que é mais inteligente, observe
agressão, abre as vias do céu, que conduzem a Deus. Somente a as vias do mal e os métodos do involuído. Este, para dominar,
ingenuidade do involuído pode acreditar que uma fé se possa permanece encerrado em um sistema que o torna um projétil
destruir com a força. Oprimindo-se, cria-se a fé, porque esta sa- lançado para a autodestruição. A organização dos involuídos,
tisfaz a ânsia de pregar. Ouvi dizer: a este as coisas na terra de- para manter-se com a força, que é o seu meio, atrai e deve cer-
vem ter andado mal, para que se tenha voltado com tanto fervor car-se dos piores elementos da sociedade, destituídos de inteli-
a Deus. Nesse erro caíram os imperadores romanos, perseguindo gência, de cultura e de piedade. Que rendimento se pode obter
os primeiros cristãos, e caem os perseguidores de todos os tem- deles? Tal organização deve temer o despertar do senso de hu-
pos. Para cada mártir caído, nascem cem novos crentes. manidade que está na alma deles, e não o embrutecimento que
Mas a reação das massas pode assumir a direção oposta possa destruir a alma. O nosso tempo procura fabricar homens
quando se trata de involuídos. A dor pode, ao invés de elevar, em série, o homem-máquina para produção (o grande produto
embrutecer. Neste caso costuma-se atirar-lhes um cibo de ódio, da moderna técnica científica), no qual não é o espírito que co-
e a posição de domínio se salva, instigando-os contra uma presa manda a máquina para os seus fins superiores, mas é a máquina
humana cada vez maior. É um pedaço de pão que se dá a ex- que sujeita o espírito. É necessário atentar para esse homem,
pensas alheias, como primeira realização terrestre do paraíso que é imagem de Deus, ligado por Satanás à máquina. Seguin-
prometido. Porém a via é perigosa. Como todas as vias do mal, do Satanás, o mundo moderno conseguiria inverter este meio de
é fácil apenas no inicio, transformando-se em catastrófica no libertação, tornando-o um instrumento de escravidão. A vida
fim. Ela torna necessária uma inexaurível coorte de vítimas, possui limites de resistência e incríveis meios de reação. Quan-
122 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
tas almas agonizam, asfixiadas pelo materialismo moderno? fatalmente levado à autodestruição pelo seu próprio sistema não
Qual é o seu limite de resistência? Quando se despedaçarão elas é apenas filosófica, mas sim uma realidade prática. Satanás,
no desespero? E que reação nascerá deste desespero? Eis os mesmo quando opera racional e cientificamente, trabalha sem-
males recentes da história, o imponderável que se negligencia, a pre em perda, ainda que dispondo de todos os meios de riqueza,
invisível ação de Deus! As dores se somam, montanhas de mor- astúcia e força. No balanço final, a colheita dos esforços des-
tes se acumulam, a vida ulula desesperada, porque foi traída pendidos é uma traição. Satanás não paga senão em moeda fal-
com as promessas do paraíso da ciência materialista. Quando sa. Isto é dado pelo seu sistema. Apostar no mal é um mau ne-
irromperá o equilíbrio? É a vida que dirige a história, e nin- gócio. Este é o calcanhar de Aquiles do mundo moderno, ver-
guém pode resistir à vontade da vida, que não quer morrer. Ela dadeiro colosso de pés de barro. O complexo racionalismo do
não morreu no tempo e não pode morrer agora. A força bruta nosso tempo está excessivamente carregado de cultura e por
tenta conter cada vez mais a maré da reação. Mas esta sobe, so- demais encerrado na mecânica da sua lógica para compreender
be tácita e constante. Em um dado momento atravessará e rom- uma causa tão simples. Apoiar o próprio poder nos involuídos;
perá os diques. Será a destruição apocalíptica da fase atual. Ho- apostar nos piores, nos extratos inferiores da sociedade, iludin-
je, estamos na era da mitra e da bomba atômica, na era da des- do-os que sejam os senhores, quando antes deveriam ser educa-
truição. Uma certa percentagem de destruição e de mortes justi- dos para aquilo que não sabem fazer; não ter em defesa senão
fica-se com a vitória, que pode transformar a carnificina em sa- mandíbulas de lobo e procurar as soluções do problema no ven-
cro holocausto. Mas, além de um certo limite, frente a frente tre aberto do próximo – isto tudo não pode acarretar senão a ru-
com a catástrofe, não há idealização de morte e martírio que va- ína. A salvação e o futuro só podem estar no oposto disso, isto
lha. A morte aparece, então, na sua verdadeira e horrenda luz, e é, no apoio aos evoluídos, na aposta nos melhores, nas camadas
a vida se rebela; além de um dado limite, não há vitória que não econômica mas sim biologicamente mais avançadas, que
possa compensar e justificar as perdas, nem tornar razoável e têm consciência do duro encargo a assumir; em ter como defesa
útil o sacrifício. Este então se torna assassínio ou suicídio. Ora, a justiça e procurar a solução dos problemas no bem do próxi-
quando um sistema, para manter-se, coliga-se à necessidade de mo. Tudo isto é assim porque nenhum homem, por mais pode-
um sacrifício crescente, o limite da destruição deve cedo ou roso que seja na Terra, pode impedir, com uma situação inver-
tarde chegar. Refazer os passos não é mais possível, porque se- tida e artificial, que a vida queira e busque uma solução dada
ria necessário tragar toda a dor e morte semeadas, neutralizan- pelo tipo mais inteligente, mais trabalhador e produtivo, mais
do-se com renovada alegria e vida. Faz-se mister, pois, avançar, apto a colaborar, confraternizando em sociedade.
e avançar sempre para o abismo. É terrível não se poder parar, Concluindo, saudamos, na forma do pensamento e da ação
não se poder retroceder. Nas vias do mal, como nas do bem, que o materialismo nos deu, um instrumento de Deus para nos
marcha-se sempre até atingir o fundo permitido pelo sistema, e abrir as portas da nova civilização do espírito.
o progresso em tal caminho se faz cada vez mais perigoso, difí-
cil e catastrófico. O método implica uma função destrutiva, e a XV. O ATUAL MOMENTO HISTÓRICO
destruição chama a destruição. ―Abyssus abyssum invocat‖27.
Cada vez mais. É um afundamento satânico de tudo. Olhemos mais uma vez em nosso derredor. No atual mo-
E para que serve tudo isto? Deus o sabe, e a vida o expres- mento histórico existem dois estados: um aparente, superficial
sará. Certamente, o presente serve para forjar o futuro, pois, de e transitório, que é visto por todos e constitui a base de julga-
outro modo, não poderá ter sentido. E é para isto que serve, mento da maioria; outro real e profundo, dado pelo eterno de-
mesmo quando, na mente dos homens, ele pareça feito unica- senvolvimento das coisas. O primeiro é de destruição, miséria,
mente para si ou para destruir o futuro. De tantas imensas cons- mentira e ódio – um estado bestial, involuído. Aí, os melhores,
truções ideológicas, sociais, econômicas e religiosas de hoje, que, por serem os mais evoluídos, conquistaram os valores
talvez não reste senão algo de secundário, atualmente ainda não mais elevados da vida – que não são os materiais, única meta
previsto na verdade. São muitos os secretos fins da história, ig- dos involuídos, mas sim os espirituais, bens preciosos e pode-
norados pelos homens. A vida revoltar-se-á contra a máquina e rosos – são hoje perseguidos e deslocados pelos piores. Hoje é
buscará viver livre no espírito. A ciência com que a orientação exatamente a hora do mal, cuja característica é a negação e a
materialista quis trair o mundo inverter-se-á para demonstrar a subversão. Assim, os melhores se tornaram perseguidos, quase
alma e Deus e nos guiar, pelas vias do espírito, para a evolução. que obrigados a esconder-se, enquanto os piores conquistaram
Desprovido da coesão resultante dos ideais e metas superiores, tudo. Mas é natural que os revolvimentos necessários para pas-
o atual movimento materialista, traído pela força e pela riqueza sar de um estado de equilíbrio a outro, evolutivamente superi-
em que acredita, desagregar-se-á. Homens que não acreditam or, sejam também convulsivos. É natural que, para passar de
no sacrifício e no amor fraterno – valores que levam à compen- um estado de legalidade ao de uma legalidade mais completa e
sação – saltarão à garganta de outros homens idênticos. O utili- perfeita, seja necessário atravessar uma fase de ilegalidade,
tarismo conduz à traição. Homens e povos criam no seu pensa- que depois se refaz e coordena em uma nova ordem. Também
mento e ação um sistema de forças que, depois, os domina. Es- durante a Revolução Francesa, que teve os seus fins históricos
se sistema é uma nêmese que pesa sobre o mundo moderno. Foi e sociais, verificou-se a ascensão da escória. Mas, visto não
desejado e, daí por diante, é fatal, até o fundo. As religiões do corresponder a um valor intrínseco, é uma posição falsa e, por
ódio organizado, o método da destruição científica, uma seme- conseguinte, não pode durar. Então, em qualquer revolução, ou
lhante psicologia absorvida e vivida em ação por tanto tempo, seus filhos demonstram estar à altura da posição conquistada,
devem produzir os seus frutos, sem possibilidade de evasão. ou é a própria revolução que os mata, como matou Robespierre
Até quando a força bruta das armas bastará para suprir a fal- e seus companheiros na França. Mas o que, inversamente, en-
ta de inteligência para compreender que a vida social não se contramos em profundidade? Toda a verdade, pela lei do dua-
pode realizar sem confiança e colaboração? Um sistema basea- lismo universal, não está completa se não for vista em seus
do na violência não pode passar de instrumento de destruição, dois temas antitéticos e contraditórios, dos quais ela se compõe
sem nenhum valor como meio construtivo, e deve, pois, fatal- na totalidade. No outro extremo do fenômeno histórico atual,
mente dissolver-se no caos. Na prática, isto significar uma per- que aparece na superfície, temos um estado oposto, de prepa-
da progressiva. Como se pode ver aqui, a teoria de que o mal é ração subterrânea, de espera e maturação. Assim como se diz
que sob a neve está o pão, também é sob a tempestade que es-
27
―Um abismo atrai outro‖. (N. do T.) tão amadurecendo os germes de uma nova civilização. Para
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 123
compreender isto, seria necessário conhecer não só as leis his- ra o observador superficial, hoje dominante, é, pois, exatamente
tóricas mas também as leis biológicas, pois delas a história o mais verossímil e lógico para o observador profundo. Por isso
humana não é mais do que apenas uma parte. Quem compre- nos encontramos precisamente em uma noite que precede um
endeu essas leis não discute mais com os homens, que, em ge- novo dia, pois, na vida, é exatamente a noite que prepara o dia; é
ral, não sabem o que fazem nem por que fazem. Discute, isto a morte que anuncia o renascimento; é o mal, a destruição e o
sim, com as leis biológicas que os movem, leis às quais eles, martírio que anunciam o bem, a construção e o espírito. Encon-
que tanto creem comandar, não fazem mais do que obedecer, tramo-nos no fundo do vale da onda histórica, que deve necessa-
movidos, mais ou menos lúcidos e conscientes, pelos instintos, riamente, depois, reascender, como tornam a subir todas as on-
que são as forças por meio das quais as leis os manobram. Isto das. Conclusão: caminhamos para uma nova civilização do espí-
porque o caminho da história não se faz ao acaso, não está en- rito, para a nova civilização do Terceiro Milênio.
tregue ao capricho ou vontade dos povos e muito menos de Trata-se agora de saber como se conseguirá essa nova civi-
seus dirigentes. Quem faz a história são as correntes de pensa- lização. Naturalmente, porque é nova, ela deverá estar, por ra-
mento coletivo, que são inconscientemente sentidas e expressas zões de equilíbrio e compensação, nos antípodas do que hoje
pelas massas. E os dirigentes serão tanto mais capazes quanto denominamos a nossa civilização. Não se trata de retoques do
melhor souberem sentir essas correntes, interpretá-las, exprimi- que é velho, de novas ordenações políticas, com a habitual
las, encarná-las. Mas, se eles quiserem seguir outra via, substi- substituição, para vantagem de novas figuras ou classes; não se
tuindo-se às profundas impulsões biológicas, para desviá-las do trata de continuar, mas sim de iniciar outra, com princípios di-
caminho, elas se rebelarão e se libertarão deles como de um ferentes. Expô-los aqui é tarefa muito grande para um capítulo.
trambolho. O poder, para manter-se, não pode possuir finalida- Bastam-nos alguns acenos. Os atuais valores que se projetam
des egoísticas individuais ou de classe, visando domínio, deve acima do nível comum pertencem mais ao plano animal do que
representar em vez disso uma função biológica e ser compreen- ao plano que deveria ser humano. O homem atual é involuído, é
dido como uma missão a serviço da vida, caso contrário ela re- mais animal do que homem. Hoje vale a força e a astúcia. A
agirá, fazendo qualquer poder humano desmoronar. honestidade e o mérito, valores superiores, têm importância
Eis então que, no fundo das coisas, há algo bem diferente; mínima. A bondade e a inteligência voltada para o bem são as
estão aí o pensamento e a vontade diretora de Deus, que não qualidades menos úteis na vida social de hoje e chegam a ser
são apenas transcendentes nos céus, mas também imanentes em mesmo nocivas. Hoje, a importância é medida pela capacidade
nós e em nossas coisas, presentes com a sua incessante obra de prejudicar ou pela utilidade extraída, e não pelo valor pro-
criadora. Na direção da história há, portanto, uma outra obra, priamente . Isto acontece justamente porque a balança dos juí-
bem diferente da pobre e ignorante sapiência humana. Há a sa- zos humanos, mais que de um ser superior, é a de um animal.
bedoria de Deus. Que isto seja de grande conforto aos melho- Hoje, o poder não é compreendido como uma função biológica,
res, mais evoluídos, hoje expulsos e esmagados. cumprindo missão a serviço do povo, mas sim como uma con-
Quem está habituado a olhar com humildade e amor, pedin- quista com objetivos de vantagem individual, como qualquer
do e entregando-se a esse pensamento divino que tudo rege, outro meio. A seleção biológica de um tal tipo, tido como o
constata experimentalmente a existência de uma lei de ordem e mais forte, corresponde a estados primitivos, involuídos. A evo-
de amor que está no centro das coisas, que as alimenta e as lução impõe a passagem para formas de luta e de seleção bioló-
mantém em vida, mesmo deixando que na periferia, na forma e gica mais elevadas, dirigidas à formação de um tipo menos in-
na matéria, dominem a desordem e o mal. Assim como nas consciente, menos egoisticamente isolado. A vida caminha para
grandes tempestades oceânicas, a poucos metros abaixo da su- a formação de grandes unidades coletivas humanas, em que é
perfície das águas, observa-se a calma, também verifica-se na necessário compreensão e colaboração, e não mais subjugação
história, sob o grande rumor das revoluções, da queda das clas- e proveito. A época do senhor e do escravo já passou. Marcha-
ses sociais e dos tronos, do desmoronamento das enormes cons- se para novas formas de liberdade, que, porém, não significam,
truções políticas, a calma das grandes leis da vida, que, lentas como acredita o homem de hoje, abuso e licença, mas sim uma
mas seguras, vão preparando o futuro. Futuro garantido, como nova disciplina, mais elevada, uma ordem mais férrea e uma
garantida é a primavera, que deve (pelas leis da vida) trazer consciência capaz de compreender a utilidade disto e obedecer,
consigo a germinação das novas massas. Não podemos, de fato, ainda que seja por espírito utilitário.
presumir que a continuação da vida seja confiada aos homens e Hoje se crê no número. Basta uma maioria, não importa de
aos seus expedientes. E, se ela sempre triunfou e triunfa sem- que elementos, para formar uma verdade, um direito, para esta-
pre, como o demonstra o fato de haver chegado até aqui, isto se belecer uma norma de vida, uma lei. Ora, como pode a quanti-
dá justamente porque ela é protegida por essa sabedoria divina, dade fazer a qualidade? Não podemos formar nem ao menos
que a guia, a nutre e a mantém. uma única unidade reunindo um número de zeros, mesmo que
Abordemos agora a parte mais importante da questão. O que seja infinito. Isto é elementar. Hoje, a matéria é tudo. Ela é
é que a sabedoria das leis biológicas e, por conseguinte, tam- apenas meio, mas foi elevada a fim. A riqueza é o objetivo da
bém históricas e sociais nos está preparando para o futuro? A vida. Troca-se o continente pelo conteúdo. O trabalho material
história jamais caminhou uniformemente, mas sempre por vale mais do que o intelectual. O que decide na difusão de uma
ações e reações, por impulsos e contrachoques, progredindo no ideia não é o seu valor, mas a posse de meios materiais que po-
tempo não como um rio canalizado em margens feitas pelo ho- dem difundi-las. As opiniões fabricam-se mecanicamente. Bas-
mem, mas como um curso d‘água que, deixado livremente va- ta possuir a imprensa e o radio. A grande floração de meios de
gar pela planície, por ela serpenteia da maneira que o seu dina- que se enriquece a nossa pseudocivilização mecânica e utilitá-
mismo lhe permite. Este processo de ação e reação contraria o ria, nos fez esquecer o melhor. Eles absorveram toda a nossa
que presume o cálculo das probabilidades, de modo que ama- atenção, sujeitaram o nosso espírito, invadiram tudo, substi-
nhã pode suceder o contrário de hoje. Essa é a lei da vida, que tuindo-se a tudo e pretendendo bastar a tudo. Mas já sentimos o
não está baseada na continuação indefinida de estados idênticos vazio terrível que está em nós, a carência de diretivas, porque
e constantes, mas sim na compensação de contrários e no seu sentimos cada vez mais que somos incapazes de dirigir esses
equilíbrio. Sabemos que a oscilação entre contrários, isto é, en- meios, sempre mais poderosos. E o perigo é grave, porque, se
tre um extremo positivo e um extremo negativo, em que cada não soubermos dirigi-los com sabedoria, eles constituirão, em
fenômeno se inverte no seu oposto, é a base da luta, da evolução nossas mãos, um instrumento de destruição universal. Isto o
e da própria percepção. O fato mais inverossímil e fantasioso pa- mundo já viu e fez nestes anos. Basta continuar um pouco ainda
124 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
nesta loucura, e a humanidade será destruída ou, pelo menos, que será amanhã) ao seio de uma nova civilização, de tipo di-
reduzida ao estado de barbárie. Dir-se-á, porém, que, para al- ferente. A nossa já atingiu os seus fins. A nova atingirá outros,
cançar isto, urge um novo homem, consciente, justo, o que foi e mais elevados e complexos, servindo-se dos produtos do traba-
será sempre uma utopia. Ora, a história nos mostra com fre- lho executado pelo nosso tempo. A vida hoje diz: basta por es-
quência que é justamente a utopia que será a verdade de ama- te lado. E acrescenta: operemos a compensação, completando
nhã. Um exemplo disso é o cristianismo. Além do mais, há um o edifício pelo outro lado. Um vazio tremendo se formou exa-
fato positivo: a evolução. É necessário evoluir. Essa é a lei da tamente do lado espiritual. É, na multidão, uma atrofia perigo-
vida, que sempre fez pressão no íntimo das coisas, não só para sa para o equilíbrio, uma carência patológica que urge remedi-
se manifestar, mas também para subir a manifestações sempre ar. E as forças da vida se apressam hoje a preencher a falha,
mais perfeitas. Luta-se tanto, sofre-se e experimenta-se, mas convergindo a sua ação precisamente nessa direção, semelhan-
tudo por esse motivo. O amanhã deve, por lei, superar o presen- temente ao que fazem na defesa orgânica. Essas forças se pro-
te. Ademais, o homem atual alcançou um ponto crítico em que, põem agora a construir o novo homem do espírito. Atualmente
não sendo possível continuar com os velhos sistemas, impõe-se nos encontramos na profunda noite da matéria. O mundo está
uma mudança de rota. Os poderes hoje em suas mãos são muito desorientado, sem guia e com muito pouco senso. O espírito
superiores àqueles que ele possuía no passado. Isto implica a parece morto. Não existe mais arte. A música é um pandemô-
necessidade de uma proporcional sabedoria, para saber como nio de rumores irritantes. Hoje, a vida está tentando a constru-
empregá-los bem. O homem que possui a bomba atômica não ção de novos e grandes organismos coletivos, especialmente
pode agir com a mesma inconsciência e psicologia de ferocida- daqueles que têm por célula o indivíduo, nas colossais unida-
de empregada pelo guerreiro medieval, que não dispunha senão des biológicas. Este novo ser, do qual as massas constituem o
de uma lança ou pouco mais. Com essa psicologia, o homem corpo, ainda vaga incerto à procura da sua alma diretora, como
moderno destruiria a humanidade. se fora um antediluviano monstro paleontológico. Aturdido pe-
Como se vê, a utopia de uma nova civilização não se apoia lo rumor de quem mais grita e fere os sentidos e os seus instin-
em sentimentos de bondade e de altruísmo. Conhecemos o ho- tos, desconfiado e crédulo, arredio e esperançoso, rebelde e
mem, sabemos o que se pode obter dele e quais são as molas fraterno, esse corpo social das massas, ainda informe, procura
que o movem. Faz-se, pois, apelo ao terror que lhe inspirará a auscultar no seu instinto a longínqua voz da vida, seu único
perspectiva certa da autodestruição. Faz-se depois apelo ao seu guia. E a vida está pronta para gritar nesse seu instinto uma pa-
senso utilitário. Pede-se somente que o novo homem seja sufi- lavra nova, e as massas estão prontas para ouvi-la e segui-la.
cientemente inteligente para poder compreender a enorme van- Jamais como hoje, entre tanto esfacelo e atabalhoamento, os
tagem que pode advir para todos da valorização do fator moral espíritos estiveram tão preparados para se incendiar sob o in-
e espiritual na vida social, porque só assim se pode obter paz, fluxo de uma palavra ardente, feita de verdade verdadeira, sen-
confiança e aquela segurança que é a única garantia de qualquer tida, vivida, dita com seriedade. E a esperamos. Virá ao certo.
fruição do fruto das próprias fadigas. Se não se compreender is- Disto cuidam as sapientes leis da vida.
to, é inútil reconstruir. Com a psicologia do homo homini lupus,
com o sistema do revólver em punho, pode-se também fazer um XVI. UMA PARÁBOLA
inferno para os demônios e para os danados que vivem na Terra
e um purgatório para os justos, que assim se apressarão para Existiam muitos homens em uma certa terra, e cada um de-
procurar mundos melhores. Mas, na Terra, para quem nela tra- les, segundo a própria natureza, elaborou um plano de vida.
balha, nela possui e prolífera, só haverá desesperação. É neces- Um se propôs a triunfar no mais baixo e primitivo plano da vi-
sário compreender verdades elementares, entender que, quando da, tornando-se rei segundo a lei da fome e da egoísta conser-
se semeia violência e mal, não se pode colher senão violência e vação individual, isto é, vitorioso no mundo econômico dos
mal; que a reconstrução não se pode operar senão recorrendo-se bens e na posse da riqueza. Para isto, tudo sacrificou. Não viu
ao trabalho, o ato criador pelo qual o homem se torna operário outra coisa, nada mais quis e de nada mais se ocupou. E nesse
colaborador de Deus; que não convém jamais fazer mal aos ou- campo venceu. Trabalhou de corpo e alma, sem tréguas, em
tros, porque quem faz o mal nunca o faz aos outros como pare- prol dessa única meta. Casou-se pelo dinheiro, subordinando-
ce, mas o faz realmente a si mesmo. lhe o amor. Não teve filhos. Como fruto do seu esforço, obteve
Há leis na vida. Para se obter determinados resultados, co- extraordinário bem-estar. Chegou a ser mesmo estimado e res-
mo por exemplo o nosso bem-estar, é imprescindível seguir peitado, mas porque era rico e poderoso, e só por isto. Como
normas. Cada ato tem as suas normas, como cada fim tem o reflexo, ganhou igualmente autoridade honrarias e louvores.
seu caminho para ser seguido. Todos nós desejaríamos viver Mas foi pouco amado e, na realidade, foi apenas invejado. Du-
em um jardim, porém não deixamos de contribuir para fazer rante a vida, muitos lhe invejaram as riquezas e procuraram ar-
um campo minado. Que poderemos esperar, então? Mas cada rebatá-las. Na velhice, muitos desejaram seu fim, para apode-
um pensa que vencerá e se refará à custa do vencido. Não! Os rar-se dos seus bens e desfrutá-los. Ele morreu sem filhos, rico
vencedores não vencem desta forma. Apenas desempenham, e só, nem amado nem pranteado, e, mercê do fruto dos seus
através da sabedoria divina, uma função biológica diferente sacrifícios, outros gozaram. Tal foi a sua vida. Mas ele não ti-
daquela dos vencidos. Funções opostas, que se devem com- nha possibilidade de escolha, porque era esse o seu tipo bioló-
pensar e equilibrar para consecuções comuns, que a vida coli- gico, e não podia explicar-se porque era assim.
ma para todos, em formas diferentes e segundo as diferentes Um segundo se propôs a triunfar em um mais elevado plano
capacidades. O homem do futuro deverá ser mais inteligente, a da vida, tornando-se rei segundo a lei do amor físico e da con-
tal ponto que possa superar as ilusões psicológicas e não cair servação da raça, isto é, o vitorioso no mundo biológico da mul-
nos erros a que estas induzem. tiplicação da carne. A proteção dos filhos e da família o compe-
Concluímos agora nosso pensamento. O materialismo, fru- liu ao mesmo trabalho e argúcia do primeiro homem, mas com
to dos últimos séculos, fruto espiritual e material, já deu todo o uma finalidade que transcendia a sua própria pessoa, dado que
seu rendimento. Como filosofia, já se esgotou e agora é posto à esta se dilatara a ponto de compreender em si todo o grupo famí-
margem pela vida. Como técnica, deixou um produto útil, que lia, do qual ele era o centro. Casou-se por amor, teve muitos fi-
é o domínio sobre as forças naturais, postas em parte a serviço lhos, lutou, sacrificou-se por eles, trabalhou de corpo e alma,
do homem. Este resultado útil é o produto do nosso tempo e sem descanso, por essa sua única meta. E nesse campo venceu.
vai ser transferido (reduzido, porém, de fim que é hoje a meio Foi por eles amado, mas o seu patrimônio e o seu trabalho não
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 125
bastaram para tanta gente, e a pobreza dominou em seu lar. Teve homens voltou ao mundo com as qualidades do seu tipo bioló-
grandes afetos mas pouca estima, e nenhuma honraria, porque gico e, dado que não podia manifestar-se senão como era, tor-
não era rico e poderoso. Durante a vida não foi muito invejado. nou a agir como antes, isto é, procedendo de acordo com a na-
Na velhice, ninguém desejava a sua morte, porque nada havia a tureza da sua função. Porém, encontrando-se em um mundo
herdar. Morreu pobre, mas amado e pranteado. Tal foi a sua vi- mais evoluído, agora podiam funcionar organicamente.
da, mas ele não tinha possibilidade de escolha, porque esse era o Então o primeiro homem, utilizando a sua qualidade de tra-
seu tipo biológico, e não podia explicar-se porque era assim. balhador e a sua capacidade técnica, tornou-se um produtor útil,
Um terceiro homem se propôs a triunfar em um plano ainda não apenas para si, mas também para a sociedade. As condições
mais elevado da vida, tornando-se rei não segundo as leis da mais conscientes da vida do novo mundo não mais o constringi-
fome e do amor, mas segundo a lei da evolução, isto é, de con- ram a sacrificar tudo para poder alcançar a realização de sua
servação e criação dos valores morais que regem a vida. Quis personalidade; o rendimento das suas qualidades no cumpri-
ser o vitorioso no mundo espiritual, do amor fraterno, do bem e mento de sua função pôde realizar-se plenamente em benefício
da justiça. Tudo sacrificou para isto. Nada mais viu, outra coisa de si próprio e dos outros. Ele se tornou assim o rei do mundo
não quis e só disso se ocupou. Não cuidou de bens materiais e econômico dos bens e extraiu dele benefício para si e para to-
não se casou. Lutou, trabalhou de corpo e alma, sem quartel, dos. Foi também estimado e honrado, não porque era rico e po-
em prol dessa única meta. E neste campo venceu. Porém ele foi deroso, mas sim porque era capaz de poder formar e conservar
espoliado por todos e empobreceu. Não teve filhos nem afetos e a riqueza que possui valor coletivo. Ele pôde assim desfrutar
vagou solitário e triste. Não desfrutou de estima ou honrarias, também o amor dos outros, porque a riqueza que antes dedicara
porque era humilde e pobre. Durante a vida foi desprezado, a si, agora a dedicou também aos outros. A sua morte não foi
quando muito deplorado. Mas ele lutou pelo bem do próximo e esperada para que se apossassem dos bens, que agora já eram
sacrificou-se pela justiça e pela verdade. Por toda a parte, di- de todos. Ele representava um valor útil à sociedade e era ver-
fundiu luz e amor em derredor de si. A gente que em público o dadeiramente estimado, não pelo que possuía, mas pelo que
desprezava, intimamente o admirava. Por ocasião de sua morte, valia e produzia, por isso morreu amado e pranteado.
não deixou mais que as próprias dores, mas acabou amado e O segundo homem tornou-se o rei do amor terreno, utili-
pranteado por todos. Foi compreendido e venerado após a mor- zando o espírito adquirido de sacrifício e de dedicação à famí-
te, e reviveu no amor de uma grande família, a família dos seus lia, a sua capacidade de economia, de parcimônia e de trabalho
filhos espirituais. Tal foi a sua vida. Mas ele não tinha possibi- fecundo, não no campo diretivo, mas no executivo. Ele repre-
lidade de escolha, porque tal era o seu tipo biológico, e não po- sentou a carne honesta e pacífica, que, animada do espírito de
dia explicar-se porque era assim. bondade ativa, fez frutificar a terra e as fabricas, multiplicando
Esses três homens haviam trabalhado em três níveis diferen- as coisas com a sua atividade abençoada por Deus. Assim, a
tes, cada qual segundo uma das três leis biológicas fundamen- carne, ávida de multiplicar-se, como quer a vida, não foi cons-
tais, que alicerçam o funcionamento da vida e se exprimem pe- trangida a maldizê-la e a resvalar para o vício e para o mal. En-
los três instintos: 1) a fome; 2) o amor; 3) a evolução. Essas três tão reproduzir-se e multiplicar-se não constituiu mais um delito
leis, assim expressas, são os três planos ascensionais do edifício ou um perigo, e sim alegria de viver. Mas tudo isto foi possível
biológico do nosso mundo, onde cada um dos três tipos situa-se porque quem possuía a capacidade diretora, organizadora e
segundo sua natureza e com uma correspondente e diferente economicamente genética, não mais monopolizou apenas para
função. O homem da primeira lei pensa na conservação indivi- si o fruto das próprias qualidades, reservando o seu rendimento
dual, com o egoísmo. O da segunda lei pensa na conservação em vantagem da coletividade. Então, o amor são e fecundo não
coletiva, com a reprodução. Mas nem um nem outro cuida do se tornou uma couraça ou dissimulação; a família não represen-
progresso, de que só se ocupa o homem da terceira lei. Nós os tou mais um peso insuportável, qual agrupamento de lobos es-
vemos agir desorganicamente, como é o caso do mundo de ho- faimados, prestes a destruir os vizinhos; a classe operária não
je. São rivais e mantém-se separados. Cada qual possui a sua mais se arvorou em uma dinamite pronta a explodir em revolu-
personalidade, o seu instinto, a sua função, a sua recompensa, ções. Assim também esse tipo de homem pôde, recebendo o
cada um agindo por sua própria conta. As atividades ainda não que lhe faltava, dar o que possuía. Morreu tranquilo, sabendo
estão coordenadas. Cada um dos três tipos se acredita tudo e é que o futuro dos filhos estava assegurado.
levado a operar com espírito de exclusivismo e domínio, ainda O terceiro homem, segundo o seu tipo e capacidade, tornou-
que, à medida que o homem evolui, passe da primeira à segun- se ainda esta vez, o rei do mundo espiritual, o vencedor segundo
da e desta à terceira posição, superando assim a posição prece- a lei da evolução. Atingiu assim, com as suas qualidades, um
dente inferior. Por isso cada um, permanecendo no próprio pla- maior rendimento para o progresso coletivo, podendo manifestá-
no, encontra aí a recompensa que lhe cabe. O separatismo não las em um mundo então fraternalmente compreensivo! Quantos
impede a justiça. No primeiro caso, a recompensa foi medida e atritos, mal-entendidos e dores profundas evitados; quanto auxí-
restrita ao usufruto pessoal dos bens; no segundo caso, dilata-se lio na mais facilitada possibilidade de multiplicar, por meios
mais, polarizando-se na vida dos filhos; no terceiro caso, am- técnicos e econômicos, a expressão de si mesmo, para que a luz
pliou-se ainda mais e foi além, alcançando a vida espiritual da e o conselho, o amor e a bondade chegassem a todas as partes.
coletividade. Porém, quanto menos imediato e restrito for o re- Quanto tempo e energias ganhos e, por conseguinte, quanto
sultado, tanto mais se expande e dura. Cada um obteve segundo maior rendimento espiritual, ao poder libertar-se do inadequado
o critério de seu tipo, plano evolutivo de ação e função biológi- e ingrato trabalho de ter de se ocupar de bens materiais. A negli-
ca. As leis da vida são sempre justas, mas, no estado de separa- gência pela riqueza não produziu mais as desastrosas conse-
tismo que oferece o mundo humano egoísta e involuído, elas quências de antes. Ele não foi roubado nem se empobreceu; pe-
não podem funcionar senão isoladamente. lo contrário, não lhe faltou o necessário, que considerou mesmo
Esses três homens morreram e passaram. Depois de vários demasiado, ele que era a negação personificada da avidez. Natu-
milênios, retornaram ao mundo, que, entrementes, havia pro- ralmente era já tão rico em um nível superior, que não sentiu ne-
gredido de modo a conduzir a mente humana ao ponto de com- cessidade, na Terra, de tomar do fruto do trabalho alheio mais
preender o evangelho e aplicá-lo seriamente, como prática indi- que o mínimo indispensável. Quem é do espírito já possui a me-
vidual e cooperação social, realizando aquela coordenação fra- dida das coisas. Ele não foi desprezado e aviltado, porque negli-
terna de toda atividade, somente com a qual se pode realizar na genciava a posse. O estado de mais elevada consciência do
Terra um bem-aventurado reino dos céus. Cada um dos três mundo estava finalmente em grau de apreciar um homem pelos
126 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
valores espirituais, e não mais pelo critério da força ou da rique- novas formas. Os grandes criadores, portanto, nascem e operam
za. Desta maneira, ele foi compreendido e estimado. Não acei- agora, lançando essa semente.
tou honrarias, que não lhe serviam, mas, com infinita alegria, A civilização futura não é muito compreensível aos espíritos
viveu essa nova atmosfera de simpatia, que afetuosamente o de hoje. Pela observação de algumas formas mentais do nosso
aquecia e lhe enchia a triste solidão de antanho. O desenvolvi- mundo atual, verificamos que este, se é indiscutivelmente mui-
mento da gratidão, a concreta manifestação da resposta da vida to forte no campo da desorientação e da destruição, é, por outro
ao seu impulso na forma de confraternização com as suas criatu- lado, fraquíssimo no campo da compreensão. Como é possível
ras espirituais, a confirmação exterior da consciência íntima da dirigir povos, provocar e desencadear guerras, legislar, impor is-
própria utilidade coletiva, proveniente de um consenso amplo, to ou aquilo, agir em qualquer campo sem ter compreendido o
não só multiplicaram, para o bem dos outros, os recursos e ren- que seja a vida e a morte, a finalidade de cada coisa, o próprio
dimentos dele, mas também o transformaram num homem satis- plano do universo? O instinto, que tudo guia, basta para o bruto,
feito, feliz de ser um trabalhador do espírito, em plena eficiên- mas, ainda que, em grande parte, o homem esteja embrutecido, o
cia, e não mais num peregrino ou mártir, operário da dor. Ele problema da vida se tornou atualmente muito complexo para
não foi assim obrigado a esperar pela morte, para atingir nos ou- que esses instintos possam bastar. No mundo político, social,
tros a realização de si mesmo e dos seus ideais de bem. econômico, religioso e cultural, movemo-nos em um mar de
O que é que tivera tanto poder para alterar a posição desses contradições. Falamos de matéria, espírito, eletricidade, justiça,
três homens? Apenas uma atitude da alma, um fraternal espírito liberdade, direitos e deveres etc., sem compreender o que exa-
de compreensão e colaboração. Essa é a chave da felicidade que tamente sejam e sem saber colocar cada conceito no seu devido
está no reino dos céus. E este espera apenas uma forma de boa lugar, como parte integrante de um plano que logicamente tudo
vontade dos homens para descer à Terra. No fundo, cada um, se- englobe. Na cultura, somos muito fragmentários e divergentes,
gundo o seu tipo biológico, não pede senão para realizar-se a si perdidos em particularidades e em sutilezas inconcludentes. No
mesmo. Trata-se de uma sã e fecunda lei biológica. Mas, hoje, campo prático mata-se e rouba-se, agindo-se para o bem ou para
essa realização, para poder efetuar-se, deve assumir formas invo- o mal sem saber a exata consequência das próprias ações. E não
luídas, violentas e caóticas. Desse modo, a utilidade fornecida pe- o sabe nem quem faz o bem nem quem pratica o mal. Apenas
lo rendimento da própria personalidade não pode ser conseguida névoas. Existe a fé, mas a fé não é exata, é vaga. E a razão de
senão à custa de sacrifícios e danos individuais e coletivos. As- muito pouco vale. É imperativo esclarecer e demonstrar tudo,
sim, portanto, na terra está o inferno, e o reino dos céus está lon- para que o homem possa compreender tudo seriamente.
ge. E os homens de boa vontade são raros e esmagados. Bastaria Estranha transformação está sofrendo o materialismo! Escava
muito pouca coisa para tudo melhorar: ao invés de combaterem- e escava na matéria e eis que encontra o espírito, que havia nega-
se, os homens deveriam auxiliar-se reciprocamente! do. E as religiões, que clamam pelo triunfo porque veem na ciên-
Por esta parábola se vê como estes três tipos biológicos, se- cia uma confirmação, encontrarão uma alma individualizada, de-
gundo os quais é possível agrupar os homens, podem, somente signada com aqueles termos e conceitos que antes lhes pareciam
com a mudança da sua conduta recíproca, sem modificar sua tão adversos e demolidores. Hoje, todos se encontram divididos,
capacidade e atividade, transformar-se de modo a obter-se um sem conhecer a verdade pela qual lutam. Quem realmente luta
maior rendimento para cada um e para todos. Isto significa criar pela verdade, que é una, simples e única, não pode estar dividido.
a alegria e eliminar a dor. A evolução só pode levar-nos à feli- Quem está dividido está nas seitas, nos partidos, nos agrupamen-
cidade. E tudo isto está explicado pela presente parábola. tos e interesses humanos, no próprio egoísmo, mas não na verda-
de. Quanto ainda estamos longe de a haver compreendido. A
XVII. A DESORIENTAÇÃO DE HOJE unidade está no amor recíproco, filho da compensação que ainda
falta. Deus e a vida estão na unidade. No exclusivismo e separa-
Continuemos a descer das místicas alturas atingidas atrás, tismo está Satanás, isto é, a involução e a morte.
para vagar agora em nosso mundo, observando-lhe as condi- O ridículo e o horror da nossa atual situação serão compre-
ções atuais. Já dissemos no princípio do Capítulo X, ―Paixão‖, endidos pelas gerações futuras. Então se verá a imensa estupidez
que nos encontramos, aqui, na fase descendente do fenômeno de matar, porque se concluirá que não se mata uma pessoa des-
da personalidade oscilante, o que leva o autor a ver as verdades truindo-lhe o corpo. Os chamados mortos permanecem junto a
mais materiais da Terra e a focalizar, com respeito a elas, a nós, mais vivos do que antes e, segundo foram por nós tratados,
própria psicologia. assim também nos tratarão. Aqueles que se arvoram em juízes e
Uma das principais características do nosso tempo é a deso- justiceiros não o são senão por um momento, em que desempe-
rientação, qualidade negativa, expressão da atual fase involuti- nham, para fins que ele mesmos ignoram, uma dada função bio-
va. Enquanto a palavra de ordem do nosso tempo se mostra nas lógica. Eles serão, por sua vez, de acordo com o que fizeram,
diretivas conceituais de razão e análise, a da época que se se- julgados e mesmo justiçados. O papel de rico e pobre é instável,
guirá será de intuição e síntese. Se atentarmos para a palavra e o de vencedor e vencido é, como nos demonstra a história,
dos nossos homens de pensamento, observaremos que, apesar transitório para os povos. As revoluções quase sempre devoram
de estar ela carregada de erudição e ciência, sendo complexa e os próprios autores e filhos. Quem utiliza a espada perecerá pela
difícil, falta-lhe a orientação da suprema simplicidade da sabe- espada. Trata-se de equilíbrios de forças, equilíbrios que, obede-
doria e do verdadeiro. É uma complicação crescente, em mar- cendo a leis invioláveis, resolvem-se em esquemas que o ho-
cha para o caos babélico, em que, no fim desse século, encerrar- mem ignora e contra os quais nada pode. Como é efêmero para
se-á, mesmo no cérebro do dirigente, a nossa assim chamada quem quer que seja, em tal ordem de coisas, proclamar vitória.
civilização, para que, desta decomposição possa nascer uma Os próprios imperialismos, dissimulados sob mascaras di-
nova civilização, baseada em outros princípios, sustentada por versas, sempre iguais, não constituem senão uma forma de
outros cérebros, próprios de um tipo biológico diferente. obediência à Lei, que concede a palma ao vencedor apenas pa-
O corpo social desta corrente de pensamento, que já exauriu ra lhe confiar o encargo de, dominando, coordenar, nutrir e
o seu ciclo e completou a sua tarefa, com a atual civilização, es- permitir a evolução de outras nações menores. E estas, pela
tá se desfazendo. Nesta decomposição, prosperam todos os mesma Lei, deixam-se dominar, nutrir, guiar e instruir, até se
princípios patogênicos que têm função biológica de acelerar a tornarem adultas, para então rebelar-se e se tornarem, como se
destruição. Em todo campo, hoje, tudo é destruição. Mas é na diz, livres. É o mesmo fenômeno vivido pelos novos rebentos
putrefação do corpo morto que a vida depõe a semente das suas que crescem sobre o velho tronco, nutrindo-se da sua ruína.
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 127
Sempre o mesmo esquema: dualismo, centro e periferia, nú- XVIII. O ERRO DE SATANÁS E AS CAUSAS DA DOR
cleo positivo e elétrons negativos que giram em seu derredor,
pai e filhos. Crescidos os filhos, os pai nada mais tem a fazer. Observemos alguns dos grandes erros do nosso tempo, de-
O mesmo se passa com as nações imperialistas. E todos sem- vidos à sua desorientação.
pre servos da mesma lei, todos enquadrados no desenvolvi- Uma das graves consequências do pecado mortal dos nossos
mento dos ciclos históricos do tempo. É fatal. tempos – o orgulho – é a incompreensão do problema da dor,
Mas, hoje, não estamos numa época de compreensão e sa- do seu porquê e dos seus fins. Em nossa Terra, hoje, uma parte
bedoria. As ideias são magras e poucas, frequentemente erra- tende a infligi-la a uma outra parte, que vive sob a angústia de-
das; há trevas nas mentes e enormes vácuos. Que terríveis pro- la. Assim os piores, os involuídos, mais ferozes, não se cansam
vações serão necessárias para se chegar a compreender apenas de organizar aquilo que pode fazer sofrer tantos outros, que
pouca coisa. Mas é necessário, porque não se pode conquistar a formam a outra parte da humanidade e, ainda quando não che-
sabedoria com o esforço alheio, mas apenas com a própria dor. guem a sofrer, vivem sob a psicose do terror de vir a sofrer.
Assim progride lentamente o caminho da história. O destino Acreditou-se que tudo isto poderia ser justificado por meio da
é um desenvolvimento lógico, e, quando se lhe conhecem todos teoria da seleção do mais forte. Mas esta é a força do bruto, que
os elementos, visto que o efeito está fatalmente ligado à causa, se sobrepõe a todos pelo próprio egoísmo. Não se pode com-
pode-se prever o futuro para o indivíduo e para os povos. Então preender que proveito de um tal forte possa tirar a vida, em vir-
a história está toda no presente e o tempo assinala por si só a tude da base social já atingida no nosso planeta!
sucessão de quadros conhecidos; então também o tempo, di- Respondamos a pergunta: como é possível existir uma
mensão que a intuição supera, estagna no pensamento e tudo semelhante condenação de dor em um mundo regido por uma
aparece permanentemente no presente. O problema está em se lei divina, que é perfeita, boa e justa? Certamente, nada pode-
conhecer todos os elementos componentes do sistema de forças remos compreender se não houvermos concluído por aquilo que
formado pelo eu individual ou pelo eu coletivo do povo. todos os fenômenos revelam, isto é, que uma lei regula tudo. Se
Hoje se age ao acaso, em geral por interesses materiais e não estabelecermos uma conexão do nosso estado presente com
imediatos, pouco se cuidando do depois, que se ignora. Ouça- a série de fatos precedentes que se ocultam em nosso passado e
mos as últimas palavras de Buda aos seus discípulos: se, antes, não decifrarmos o enigma do nosso destino individual
―Semeia um pensamento e colherás uma ação. e coletivo, não poderemos decifrar o enigma da nossa dor. O
―Semeia uma ação e colherás um hábito. princípio de seleção do mais forte abandona o vencido à dor,
―Semeia um hábito e colherás um caráter. sem nada explicar das causas e finalidades do seu sofrimento.
―Semeia um caráter e colherás um destino‖. Mas, para quem compreendeu, não é possível acreditar que isto
Hoje, sabe-se pouco ou nada da realidade do imponderável, não possua uma razão e um objetivo. Nasce assim a dúvida de
onde se registra tudo quanto pensamos ou fazemos e de onde que, em um regime de ordem, como é indubitavelmente o uni-
tudo renasce. Mas hoje domina o involuído, tipo biológico que verso, o fraco esmagado, o vencido na luta pela vida, não seja na
vive na periferia e não procura o poder senão na matéria, na realidade um inferior derrotado para ser eliminado, porque, efe-
força e no dinheiro. O evoluído de amanhã viverá mais em de- tivamente, é um indivíduo que paga o seu débito à justiça divina,
manda do centro e procurará o poder no espírito, no mérito, na enquanto que o vencedor vence apenas momentaneamente, visto
convicção das almas. Ele será mais rico, porque estará mais vi- que, se não fizer bom uso da sua passageira posição, pode suce-
zinho da fonte da vida, que está no interior, no centro: Deus. der-lhe que venha por isso a endividar-se, tendo de pagar caro
Então, a conquista imperialista pela guerra será substituída pela amanhã uma vitória de que abusou. Que seleção dos mais fortes,
conquista das almas, pelo exemplo, pela iluminação, pela paz. qual nada! Vê-se por aí a que aberração pode conduzir a con-
Que imensos continentes inexplorados serão alcançados cepção materialista hodierna que regula o mundo.
pela ciência e pela mente de amanhã! É a descoberta da ver- Na realidade, as coisas se passam muito diversamente. Aqui,
dade do espírito, e não o utilitarismo de hoje, que cumprirá o devemos relembrar alguns conceitos já expostos. Comecemos
encargo de arredar todas as barreiras do medievalismo espiri- por Deus. Se bem que seja impossível definir o infinito e, na sua
tual que ainda nos asfixiam dentro do exíguo âmbito de suas essência, Ele permaneça para nós um superconcebível, a sua lei,
paredes. O pensamento moderno ainda está encerrado em cas- que O exprime e que nós vemos funcionar a cada passo em to-
telos torreados, que fazem guerra entre si. O futuro forçará as dos os fenômenos, diz-nos claro que Ele é ordem, justiça, bon-
portas e derrubará os muros. A vida está a céu aberto. As ar- dade, amor. Mercê da inteligência diretriz e vontade construtiva
quiteturas lógicas do passado são agora prisões, e não casas. dessa lei, em que se manifesta a presença de Deus em todas as
Quando se houver experimentalmente provado aquilo que coisas, nós e tudo o mais nos encontramos imersos em uma at-
agora a intuição me diz, isto é, que o espírito é um organismo mosfera continuamente saneadora e criadora. Na verdade, quei-
de forças individualizáveis por onda, frequência e potencial, e ramos ou não, Deus está realmente presente em toda parte, a to-
que a sua vida se exprime em oscilações dinâmicas ou vibra- do o instante. Esta é a potência interior que rege a vida e as coi-
ções de um comprimento de onda que se situa além dos raios sas, e, se ela cessasse, tudo desapareceria subitamente. Todos
ultravioletas, então se poderão construir aparelhos rádio- podem dizer: ―ela está presente no meu organismo, pois regula
receptores de tais ondas, que revelarão o pensamento incorpó- seu desenvolvimento e suas funções, que não são, por certo,
reo humano e super-humano. Então se poderá fazer mecani- produtos do meu querer e da minha consciência. Está presente
camente tudo aquilo que hoje poucos sensitivos o fazem, sós e no desenrolar do meu destino, cujos acontecimentos coordena
incompreendidos. Para se penetrar cientificamente no mundo para um fim, ainda que eu o ignore em particular‖. Ela está pre-
do espírito, é necessário atingi-lo através da decomposição do sente no encadeamento da história, cujos eventos guia para con-
sistema dinâmico nas zonas de máxima frequência, assim co- tínuas superações, fazendo o homem progredir segundo a lei da
mo, para atingir o mundo da energia, se decompôs o sistema evolução; está presente no ritmo que caracteriza e define todos
atômico da matéria nas zonas mais evoluídas, mais velhas e os fenômenos, do mundo físico ao mundo moral, fazendo do
mais complexas. No fundo da matéria, além da energia que já universo uma sinfonia. Deus está presente como disciplina de
encontramos nela, encontraremos o espírito. Isto é lógico e cada instante no movimento universal, disciplina da qual nasce a
análogo no físio-dínamo-psiquismo trino-monismo do univer- bandeira que, no campo do espírito, significa felicidade.
so. As descobertas já feitas serão, comparadas com as do Quando tivermos compreendido isto, deveremos compreen-
amanhã, coisas pueris. Eis o imenso futuro. der que Deus está sempre tão presente e operante em nós, que,
128 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
de modo nenhum, podemos nos separar d'Ele. Dado que Ele é dor. Aqui, o problema do amor se complica com o da liberdade,
amor, só Ele representa para nós a felicidade, cuja via está, pois que, sendo o homem livre, pode refutar o amor e escolher
pois, escrita na divina lei e cuja consecução só é possível se- o ódio, preterir o bem e preferir o mal, ainda que, desta manei-
guindo esta, isto é, fazendo nós o que entendemos por vontade ra, recuse com Deus a felicidade e aceite a dor com Satanás. A
de Deus. É difícil fazer com que o homem comum, subjugado liberdade é, pois, um dom perigoso, porém necessário para que
pela ilusão dos sentidos, compreenda que a felicidade, ao invés o homem não seja um autômato, mas sim um ser que busca es-
de se encontrar na satisfação destes, consiste na adesão à von- pontaneamente Deus, como requer o amor, que não pode e não
tade divina. É necessário que ele comece a observar e compre- deve ser forçado; um ser que conquista, livremente experimen-
ender a lei de Deus. Nós carregamos conosco o germe e o ins- tando, essa consciência de si mesmo e a sabedoria da vida que
tinto da felicidade, que é também um nosso direito absoluto. Deus pôs na Lei, que o homem obedece vivendo. Deus, pois,
Por que, pois, estamos tão longe de atingi-la? Será talvez, como deixa ao homem a liberdade de amá-Lo ou repudiá-Lo. Não o
poderia dizer o cético, devido a um refinamento tantálico de constringe. Ele quer ser amado espontânea e livremente, não
crueldade por parte da chamada bondade divina? Não! É por por coação, mas por compreensão. Quer que o reconheçamos
um refinamento do amor de Deus para com as suas criaturas. como Ele é – Pai bom e previdente. Como proceder então, nes-
O universo está baseado em dois princípios: amor e liber- sas condições, para persuadir de tudo isto um ser que é livre e
dade. Tudo o que existe, inclusive nós mesmos, mantêm-se a quis escolher as vias do mal? A intervenção de Deus onipresen-
todo o instante porque o Deus transcendente dos céus está pre- te é indireta. Ele então se afasta do pecador, não se vinga ou
sente e ativo, isto é, imanente em toda a sua plenitude. Ele, pune, como se costuma dizer, porque tais conceitos são absur-
pois, se encontra também aqui na Terra a lutar e a sofrer conos- dos em Deus, mas apenas se nega. Na verdade, não é exatamen-
co. O amor, que tudo gerou, tudo sustém e regenera a cada te Deus que se nega, porque Ele continua a proteger e assistir
momento. Mas Deus não nos ama apenas, porquanto Ele nos ao rebelde, mas é este que, em si mesmo, negou a Deus. Ora,
quer livres, e nos quer livres como Ele, isto é, feitos à sua ima- Deus é a fonte da vida, e quem O nega, de qualquer forma, ne-
gem e semelhança, elevados à dignidade de seres que possuem ga a si mesmo, expelindo-se da vida real e permanecendo então
uma consciência para saber o que fazem e poderem escolher li- abandonado a si mesmo, fora da Lei. A Lei não pode manter
vremente a via que preferem, entre o bem e o mal. em suas fileiras ordenadas um núcleo de desordem, um seme-
Observemos esses dois princípios. Do princípio de amor de- lhante bubão pestífero, e o isola, como igualmente faz no plano
riva o de dualidade, pelo qual toda individuação da existência é orgânico para qualquer foco de infecção.
dada por duas metades inversas e complementares, que se atra- O rebelde mantém-se então sob o jugo da lei que o seu eu,
em e se completam, e não se satisfazem enquanto não se fundi- que se substituiu a Deus, pretendeu criar para si e, portanto,
rem na unidade. Em todo plano, desde o mais material até o permanece na miséria da sua ignorância. A consequência é de-
mais espiritual, encontramos sempre esse mesmo princípio, sarmonia e, por conseguinte, dor. Se Deus não estivesse sempre
que, em essência, é o amor. Isto se verifica desde o mínimo par- pronto a operar indiretamente a salvação do pecador, esse seria
ticular até ao máximo: Deus e Criação, tudo segundo o esque- o caminho da sua destruição.
ma dualista. Deus e a Criação, em todas as suas infinitas for- Essa revolta do homem livre e a sua consequente queda na
mas, os dois termos contrários e complementares, o perfeito e o dor não é um sonho, mas uma realidade. Nisto se baseia a vida
imperfeito, o absoluto e o relativo, o centro e a periferia, atra- humana e o destino do homem. Este destino nos é narrado, des-
em-se e tendem irresistivelmente a unir-se, e não se satisfarão de a pré-história, pelo mito da queda dos anjos capitaneados por
enquanto não se fundirem na unidade. Deus e criatura são, por Lúcifer; pela narração bíblica de Adão, que, tendo comido o
conseguinte, feitos para amar-se. E a criatura, pela mesma lógi- fruto proibido da árvore do bem e do mal, foi expulso com dor
ca do sistema, não pode encontrar felicidade senão em Deus. do paraíso terrestre; depois, pelas vicissitudes do filho pródigo
Explicar isto ao homem atual, filho dos sentidos, fazê-lo com- que, reduzido à situação de saciar a fome com bolotas para por-
preender que a felicidade deve consistir em amar um supercon- cos, volta arrependido, sendo perdoado pelo pai, e assim por di-
cebível ou, pelo menos, a tremenda abstração que é Deus, é ante. Nos tempos modernos, esse destino de revolta e de dor é
empresa difícil. Isto deriva do exagero do conceito do Deus uma realidade tangível que o mundo deve viver. O motivo do
transcendente, o que conduz ao erro contrário de ter então que passado e do presente é sempre o mesmo: o ser é livre, mas,
humanizá-Lo, reduzindo-O a uma reprodução antropomórfica, quando se rebela e abusa da sua liberdade, surge então a neces-
que a bondade divina nos perdoará. Deus é também imanente sidade da dor. Porém não de uma dor pura e simples, uma ideia
em todas as suas criaturas. Podemos assim nelas, que são a Sua estéril em si mesma, mas sim uma dor que não possui e não po-
manifestação, sempre encontrá-Lo e amá-Lo. Nelas, podemos de possuir outro sentido senão o de instrumento de redenção, is-
verificar como Deus pensa e age, como dirige e faz mover o to é, de uma dor que nos reconduza a Deus e à nossa felicidade.
funcionamento orgânico do universo. A lei pela qual Deus se Eis a dor que não é vingança ou punição, nem apenas injustiça
exprime não é um segredo e, mesmo na Terra, é sensível. A indiferente, mas sim ato de amor de um Deus cioso do nosso
própria ciência esbarra com ela a cada instante e a perscruta ca- bem, ansioso para que nós, por contínuas superações, nos deci-
da vez mais, procurando aprofundar o seu conhecimento. Toda damos evoluir, para nos tornarmos assim aptos à união com
descoberta científica só é absoluta para o homem, porquanto é Ele, em seu amor, como é o Seu ardente desejo. Eis que surge
uma lei eterna, já feita por Deus. Não nos faltam, pois, manei- assim a ideia central da história do mundo: a redenção. Eis co-
ras de encontrar Deus também na Terra. E, para a nossa felici- mo a dor se santifica e se sublima como força criadora que nos
dade, O encontraremos sobretudo no mundo moral, derivando conduz a Deus. Eis o significado da paixão de Cristo. Estamos,
deste aspecto da Lei todos os sábios preceitos. Nas relações so- assim, bem distantes e bem mais acima do conceito terreno da
ciais, ela diz: amor, ou seja: ―ama o próximo como a ti mes- dor, que marca o insucesso do ser vencido na luta pela vida.
mo‖. Eis a chave da felicidade. Eis o meio prático para se fun- Assim sendo, ainda quando a dor nos fere, Deus continua
dir em Deus, atingindo-O através das Suas criaturas. Eis como sempre bom. Nada devemos jamais temer da parte d'Ele. Mes-
se realizam, até às suas últimas consequências práticas, em nos- mo no erro, ele está perto de nós e nos auxilia a conquistar a
so mundo, o princípio do amor. nossa felicidade, ainda quando a nossa insensibilidade e igno-
Observemos agora o princípio da liberdade. Ele é princípio rância clamam pelo azorrague. Tal método foi querido por nós
absoluto, inviolável, precioso dom, porém constitui arma de e, mal nos elevemos um pouco mais, desaparece, porque então
dois gumes, que, se mal aplicada, pode resolver-se em grande ele deixa de ser necessário. Mas, dado o nível em que vivemos,
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 129
ele prova sempre o amor de Deus, ainda que assumindo essa a ser elementos desta ordem, que nos reconduz à harmonia com
forma severa, contudo necessária. Ele prova o desejo de Deus a Lei, para participar da grande obra de Deus? Como temer
de nos atrair para nos unirmos a Ele, de nos fazer felizes em uma dor que nos constringe permanentemente a subir? A nossa
uma felicidade que não pode estar senão nele. Na dor que redi- insatisfação frente a qualquer conquista humana exprime essa
me, na dor onde se compreendeu sua grande função, sente-se o necessidade de ascensão.
amor de Deus, que a mitiga e a adulçora, até torná-la o alimento O plano da vida é nos conduzir para as grandes unidades. É
do santo; sente-se que Deus envolve a alma na Sua ação salva- necessário, pois, que o egocentrismo humano se dilate no altru-
dora, confortando a dor com o amor. Sente-se então, ainda que ísmo. Está no instinto do nosso tempo a alegria da superação
sofrendo, que Ele bate às portas da alma para poder entrar, tra- mecânica dos limites de esforço e tempo, superamento das ilu-
zendo vida e alegria; sente-se que Ele não pune, mas que faz sões da nossa atual fase de vida. Com esse superamento, tudo
pressão para nos erguer até Ele, onde, e só onde, poderemos ser tende a uma unificação maior. A vida social avia-se hoje, mais
felizes. Esta dor, que, na primeira fase mosaica, foi definida do que nunca, a funcionar por grandes unidades. Devemos pro-
como vingança e punição, revela-se em nossa fase, mais evolu- curar, em todo campo do pensamento e da atividade humana,
ída, como um ato de amor, um dom providencial de Deus, que tudo o que unifica, evitando tudo o que divide; insistir sobre os
Ele nos envia somente para nos fazer compreender o erro come- pontos que possam favorecer a coligação, fugindo de todos
tido e que, tão logo tenha completado a sua função educadora, aqueles que podem determinar cisão. As vias de Deus são as
não tem mais razão de existir. Desta maneira, o homem expe- que tendem à unificação. O progresso se realiza percorrendo-as.
rimenta a vida e constrói, através dos seus ensaios e consequên- Tudo o que nos divide e nos isola, qualquer forma de separa-
cias, a própria consciência, aprendendo que é necessário saber tismo, ainda que procedamos em nome de Deus e da verdade,
agir com justiça e disciplina, como está escrito na Lei. Quando leva-nos para a cisão, que é a obra de desagregação de Satanás.
tivermos compreendido isto, estaremos reunidos a Deus e se- Os homens se revelam sobretudo pelos métodos que usam,
remos felizes. Então a dor, sem causa que lhe dê nascimento, mais do que pela verdade que professam. Quando o método é
não terá mais motivo de existir. perseguição, terror, ódio e vingança, é certo que estamos na via
A vitória sobre a dor não se obtém, pois, atirando-a com de Satanás. É um grave erro acreditar que semelhante método
ódio sobre o próximo, infligindo mal a outrem, mas rebatendo facilite a vitória. Na realidade, ele é desagregador e conduz à
as suas causas com causas contrárias, isto é, irradiando bem e derrota. A rebelião na luta contra uma disciplina moral não sig-
amor. Na Terra, inversamente, acumulam-se as reações maléfi- nifica nos tornarmos livres para melhor vencer, mas sim coli-
cas, que se fortificam por meio de um vesgo senso de justiça, dirmos com a resistência da Lei, usando uma estratégia de pés-
pretendendo santificar a vingança. Desta maneira fez-se a vida simo resultado. Deus obra pelas vias opostas, da convicção, do
depender apenas da força e do predomínio, quer moral quer perdão e do amor. Quem verdadeiramente é de Deus não resiste
econômico. Assim, acreditamos nos libertar da dor, mas, ao in- ao mal com o mal, mas o neutraliza difundindo o bem. A uni-
vés, constatamos que ela aumenta. As culpas, então, aumentam, versal religião do espírito, que compreende todas as outras, pe-
e a Terra, tornada lugar de pena, transforma-se no reino do mal. de apenas que se ame a Deus amando o próximo como a si
Então impreca-se contra Deus, culpando-O. Mas a causa está mesmo. E bastaria isto para transformar o mundo. O grande er-
no homem e é a fatal consequência do seu espírito de revolta e ro de Satanás e de quem o segue consiste em acreditar que a vi-
de sua ação tresloucada. A dor é naturalmente a providência de da possa basear-se no egoísmo e no ódio e que o triunfo possa
Deus e constitui a única via de redenção e salvação. Esta tão assentar-se na força, quando, na verdade, a vida se baseia no al-
vasta dor humana deve ecoar bem longe dos restritos confins truísmo e no amor e o triunfo final pertence à justiça. Nenhum
terrestres, chegando até criaturas colocadas muito acima de nós, homem, por mais poderoso que seja, pode alterar esta lei.
mais aprimoradas, que, por amor, vêm juntar-se a nós, auxili-
ando-nos, por todas as formas, em nosso esforço de redenção. XIX. O ERRO MORAL
Por intermédio delas, parece que o próprio Deus padece da nos-
sa dor e, com isto, queira unir-se a nós, numa comunhão frater- Continuemos a passar em resenha os erros modernos.
nal de amor. Por certo, Ele está presente em qualquer estado do Uma das maiores conquistas do nosso tempo foi, sem dúvi-
ser, tanto na alegria como no pesar. A paixão do Cristo e a coti- da, a ciência. Mas, se bem que mostrasse uma atitude agnósti-
diana repetição do seu sacrifício no rito eclesiástico não nos di- ca, que queria ser filosófica e religiosamente imparcial, esta
zem exatamente isto? Porque, em verdade, no grande vínculo ciência, sem filosofia e religião, visto que a alma humana não
do amor, nós estamos n'Ele e Ele está em nós. pode fazer nada sem uma orientação qualquer, na realidade
A grande lei da vida é o amor. Em toda manifestação, ja- possuía a sua: o materialismo. O seu absenteísmo no campo
mais devemos seguir o caminho do egoísmo, que divide, mas o ético, campo que é impressionantemente conexo à vida, signi-
do amor, que unifica. Só este último nos conduz a Deus e à ale- ficaria, efetivamente, negação dos valores morais. O maior dos
gria. Não devemos resistir a Deus, à Sua potência onipresente; erros modernos é, pois, o erro moral, que orientou e utilizou
não devemos rebelar-nos com o orgulho, mas tornar nossa a mal uma ciência de per si benéfica. Erro profundo este, porque
Sua vontade. Não é possível fugir de Deus. Ele é a atmosfera fez das conquistas da técnica um meio de destruição material;
que todo o universo respira e de que tudo se nutre e vive. De erro grave, porque, no espírito das massas, que, mal sabendo
Deus não se foge, e a Deus não se pode destruir. Estar com pensar por si, sempre seguem a orientação da classe culta diri-
Deus significa participar da Sua potência. Estar contra Deus gente, resultou em espírito de revolta, desordem e destruição.
significa estar perdido em um deserto de trevas. Sem Deus, Em nosso século acreditou-se, em nome da ciência, ser possí-
nem mesmo o pecador pode viver, e, se ele continua vivendo, vel libertar-se dos tradicionais conceitos de Deus e de Sua lei,
isto significa que Deus ainda opera nele. O remorso e a dor ex- que regulam toda a vida, até o campo ético humano. Isto pare-
primem a necessidade de reencontrá-Lo. A revolta à Lei, obstá- ceu uma conquista e uma libertação. Podia sê-lo com respeito
culo à atuação Dele, gera um pequeno atrito na contínua obra às concepções filosóficas e religiosas que, tendo sido vividas e
criadora de Deus. A Lei não muda, mas algo no universo deve havendo dado seus frutos, requeriam uma superação. Mas su-
sofrer. Esta rebelião origina uma convulsão em alguma parte. O peração quer dizer atingir um conceito superior de Deus e de
plano da Lei é tornar o homem livre e consciente colaborador Sua lei, e não a destruição desse conceito. É certo que muitas
da divina obra da perene criação, um operário, um ministro de ideias haviam envelhecido e não correspondiam mais às novas
Deus. Como podemos maldizer uma dor que nos permite voltar formas mentais. Mas é perigoso destruir sem reconstruir, pro-
130 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
duzindo apenas ruínas; perigoso sobretudo no campo ético e mem, sempre sofrendo, deve aprender, como ser livre e consci-
ideal, onde se encontram as diretivas das nossas ações. O orgu- ente e, por conseguinte, responsável, a saber usar com prudên-
lho humano exagerou na destruição; alçou a bandeira do ate- cia o poder que Deus lhe concedeu. Mas hoje, dada a ordem do
ísmo e da desordem moral enquanto a incumbência estava em universo e visto que, nesta ordem, o homem age e pensa devi-
progredir no relativo e, ansioso pela autoafirmação, substituiu damente, a sua dor é lógica e plenamente justificada. Justificada
ao velho dogmatismo por um novo, demonstrando, com o não só como consequência punitiva mas também como condi-
mesmo espírito parcial, que o homem não muda. A verdadeira ção providencial, porque, com a dor, aprende-se a eliminar o er-
ciência continuou, com os seus gênios e os seus heróis, o tra- ro e, assim, com a dor de hoje diminuirá a dor de amanhã, isto
balho tenaz, rígido e objetivo, que produziu as maravilhas que é, com a dor se elimina a dor, visto que com ela se evolui.
contemplamos. Mas um fruto tão belo caiu em um mundo ne- Esses princípios gerais e sintéticos estão presentes nas suas
gador de Deus e de Sua lei, que fez péssimo uso daquele fruto. consequências até nas menores coisas de nossa vida contingen-
Arcou então com a culpa a ciência, que em si mesma, no en- te, dizendo-nos respeito muito de perto. Esta, em todos os seus
tanto, é inocente, tanto que hoje, continuando seu tenaz cami- particulares, está saturada de soluções falsas, que, por conse-
nho, progredindo sempre, é justamente ela, que no princípio se guinte, produzem o mal e a dor. Não sabemos agir ordenada e
tornara um estandarte do materialismo, que acabou por nos in- harmoniosamente e, por isso, através de pensamento e ação er-
dicar o espírito e nos levar de novo a Deus e à Sua lei. rados, semeamos em cada dia a nossa pena. Na procura tres-
Quantas coisas esta ciência ainda nos demonstrará é impos- loucada de gozo e liberdade, tornamo-nos cada vez mais es-
sível suspeitar! Mas é certo que os séculos futuros, bem mais cravizados de mil necessidades artificiais. Sofre com isso a
evoluídos, demolirão muitos erros do nosso tempo, que são nossa saúde, os nossos interesses, a nossa paz. Para elevar nos-
muitos, consequentes da orientação supramencionada, cujos so nível econômico, nos empobrecemos cada vez mais em
efeitos práticos ainda se farão sentir. Esses erros foram graves, substância. A supressão da disciplina moral não é, como se
e o mundo de hoje lhes paga as acerbas consequências. À lei de acredita, liberdade, mas escravidão. Pode-se rir dos emancipa-
Deus, que guia o universo, não se pode destruir. Hoje, o homem dos, mas as eternas leis da vida não se alteram, e nela a ordem
é ainda tão criança, que acredita poder, com o seu arbítrio e de elevação moral constitui a base do poder. O poder é con-
vontade, substituir-se a ela. Mas só os jovens, os ignorantes e quistado harmonicamente, evolvendo, e não desequilibrando
os inconscientes são em geral presunçosos. Os evoluídos são com a violência, que tende a reequilibrar-se retomando o mal,
sábios. O grande pecado do homem presente é o pecado de Lú- excitando uma proporcionada reação oponente. O hodierno
cifer: o orgulho. O mundo atual é todo um tremendo grito de grito satânico contra Deus, expresso pelo orgulho do ser e pela
rebelião a Deus e à Sua lei. Tentada a substituição de comando, adoração da força e da matéria, é servidão do espírito livre pa-
de consequências terríveis, que vemos tanto na paz como na ra com esses senhores. Na realidade, o homem perde todo o
guerra? Tal mundo se desfaz. Por que? Porque o orgulho cega, poder de autodomínio, e quem não for senhor de si não pode
faz perder a límpida visão das coisas, destrói o poder diretor e, ser senhor das coisas; quem não possui disciplina em si não
assim, acumula erros; porque o orgulho, afirmação do eu, é ne- pode determinar senão o caos em derredor de si. Para obter fe-
gativo perante Deus, logo o é perante a vida, de cujas fontes o licidade e prosperidade, não basta, como se supõe, apenas a
homem, desta maneira, afasta-se. Resulta disso uma ação dese- posse das coisas. Se nos aproximamos delas animados de ego-
quilibrada, contraditória, descendente ao invés de ascendente. ísmo e avidez, elas virão a nós envenenadas e, por isso, nos
O que é contra Deus e a Sua lei só pode operar destruição. En- envenenarão. Desta forma, ao invés de obtermos o gozo, do
tão o espírito rebelde à ordem divina volta-se para a forma, com qual a condição precípua é a paz, chegaremos à violência, à
sensualidade e avareza, e se perde no relativo do particular. Eis guerra e, consequentemente, à miséria e à dor.
o mundo de hoje, feito de avidez mórbida, de rivalidade san- Todavia a vida está imersa em um oceano de substância, e
guinária, de mente destruidora e caótica, caindo sempre, até nós, com tais atitudes, impedimos que esta nos alcance. Esta
atingir o fundo. Todo sistema possui uma lógica de proposições substância nutritiva, esta atmosfera vitalizadora em que o ho-
em cadeia, a qual, uma vez iniciada, deve desenvolver-se elo mem se move, é inexaurível em toda parte, pois é a onipotente
por elo, até às últimas consequências. divindade de que tudo nasce. A sua vitalidade e fecundidade são
O homem, acreditando poder desorganizar a lei de Deus, dadas pela circulação, pelas trocas, pela comunicação e pela fra-
pelo menos na Terra, para depois refazê-la a seu modo, com es- terna comunhão entre os seres. Quando, egoisticamente, conte-
se orgulho, não desorganizou senão a si mesmo e ao próprio mos o seu livre fluxo, procurando o entesouramento exclusivis-
mundo. A causa não está em Deus, mas no homem. A Lei é ta, erguemos barreiras que a tornam inerte e estagnante, então a
perfeita, é ordem e não falha. Ao homem, operário de Deus, foi sua potência dinamizante se extingue, Deus se nega e o homem
confiado, à imagem e semelhança da obra do Criador, um tra- é afastado da fonte vital. Não se enriquece, pois, com a avareza,
balho de criação na Terra. A Lei o deixa livre de errar, mas de- mas com a ilimitada e benéfica generosidade. Como o mundo
pois o constringe a pagar na mesma proporção do erro, para que faz o contrário, naturalmente empobrece. A lei de Deus colocou
possa compreender. A dor e o mal não estão em Deus, mas na uma riqueza inexaurível à livre disposição dos sábios, que dela
ignorância, na vontade, no erro do homem, e são eliminados sabem fazer uso, mas a exclui dos estultos, que agem em contrá-
através da sua dura experiência. Assim, pois, tudo isto diz res- rio à Sua ordem. Efetivamente, não vemos nós o mundo tornado
peito ao homem e é relativo à sua atual fase de evolução. O mal miserável justamente em razão da doida procura da riqueza, en-
não está em Deus e na Sua lei, que não se altera de modo al- fraquecido pela loucura do poder, escravo do desejo absurdo de
gum, apesar de todos os erros humanos. Pelo contrário, tudo domínio egoísta e, como consequência, da procura da mais in-
orienta maravilhosamente, não obstante eles. Então vê-se como disciplinada liberdade? A vida possui leis muita sabias, que fa-
o homem é guiado pela sabedoria divina e protegido pela divina vorecem o prudente e frustram o tolo, para que aprenda.
bondade, mesmo quando se rebela e, cego, arrisca-se a perder- Mesmo a prosperidade material tem as suas leis, mas quem
se. Enquanto o homem, abusando da sua liberdade, tenta, na as segue? Elas são continuamente violadas. A consequente e
própria insipiência, transtornar tudo, a lei de Deus está sempre contínua constatação da carência geral enraíza nas almas o ter-
intimamente presente e ativa na reconstrução. A destruição age ror da falta do necessário, estabelecendo-se então uma psicose
do exterior, a reconstrução do interior. A primeira é explosiva, e angústia perpétuas. Desta maneira, nos acreditamos escravos
desordenada cega e violenta; a segunda é tenaz, metódica, sábia do trabalho, sem o qual não se vive, e fazemos dele uma con-
e boa, sempre atenta a reparar as faltas. Desta maneira, o ho- denação na vida. Mas o trabalho é um ato criador, que nos põe
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 131
na condição de operários de Deus, colaboradores da Sua obra finita; ansiosos por tudo, onde Deus tudo provê com supera-
de criação! Ele exprime o nosso eu nas formas que Deus plas- bundância; escravos da matéria, quando o homem é feito para
ma consoante a Sua vontade e potência. Ele representa a nossa ser livre e senhor dela. Mas que imenso mundo se abre a quem
realização, constitui o meio pelo qual adquirimos experiência sabe sair de tal prisão. Trata-se de imponderáveis que também
para evoluir, é o sinal de fraternidade entre os seres. A potên- possuem peso decisivo e podem mudar a vida. Trata-se de sen-
cia do trabalho está na cooperação, que exprime a harmonia e a tir essa contínua presença de Deus, alimentadora de tudo. Se, de
ordem do universo. Em vez disso, hoje temos um trabalho ran- fato, num extremo, Deus é de tal modo transcendente, que nos
coroso, rebelde, rival do capital em vez de seu colaborador; um foge para o superconcebível – tanto que não é possível definir,
trabalho desagregante e feito de atritos, mais destinado a des- ou seja, encerrar no finito tal infinito sem mutilá-lo, de tal for-
truir do que a criar. Ao contrário, a força está na colaboração, e ma que a Sua definição é um absurdo – ao mesmo tempo, na
não na desordenada concorrência. Como todas as coisas, tam- outra extremidade do ser, Ele está tão imanente, que se encon-
bém o trabalho, para ser fecundo e criador, deve estar saturado tra presente e ativamente criador em cada momento particular
de amor. Ele deve, assim, ser executado não para produzir de da Sua manifestação, que é o universo. É verdade que nós vi-
qualquer forma, seja qual for a consequência, uma vantagem vemos na caducidade da forma, no relativo e periférico. Mas
egoísta, pouco importando o interesse alheio, mas sim para ser esta zona exterior da manifestação está sempre em comunica-
verdadeiramente útil ao próximo e, de tal sorte, que seja execu- ção com a substância eterna, com o absoluto central, fonte vital
tado da melhor maneira possível. A tendência moderna, con- de que tudo deriva e permanentemente floresce, sem a qual tu-
trariamente, é executá-lo mal, cabendo a palma da vitória a do se extinguiria. A ciência se encaminha hoje para também
quem melhor tenha sabido utilizar o próximo em seu benefício. compreender isto e amanhã o demonstrará. O orgulho e a revol-
Não se baseiam sobre tais princípios a propaganda e os méto- ta contra o divino princípio que tudo rege, não importando a
dos de tanta produção moderna? O objetivo não é, de fato, cri- imagem que cada um, segundo o seu poder intelectual, pode fa-
ar uma legião de consumidores, orientando as massas neste zer de Deus, constituem o mais grave erro moderno, pois traz
sentido, considerando-as um meio de ganho, onde se usufrui como consequência para o mundo o seu isolamento das fontes
do homem, fingindo-se servi-lo ? Ora, sejam quais forem a da vida, o que significa praticar o suicídio. Mas a sabedoria de
meta e a astúcia, quem viola o princípio moral, fraudando um Deus supera a ignorância do homem e o salvará a despeito dele,
serviço, deve colher o que semeou. através de uma dor proporcionada, a fim de que o bem triunfe.
O mundo econômico e comercial não pode fugir à atuação da
lei universal segundo a qual quem faz o bem o faz a si mesmo e XX. MEDICINA E FILOSOFIA
quem faz o mal é quem principalmente o recebe. Uma economia
agnóstica, que prescinde dos fatores morais é outro dos erros Atrás, explicamos que a culpa e o erro fundamental dos
modernos. A lei moral está acima de todas as outras leis humanas nossos tempos repousam no orgulho e na rebelião à ordem di-
e, por conseguinte, domina-as e penetra-as todas. O mundo de vina das coisas, de que derivam muitos males e muitas dores.
hoje não avalia quais sejam as verdadeiras fontes do bem-estar, Aqui, não mais falaremos desse erro moral em sua particular re-
mesmo as materiais, nem ao menos supõe que este derive de ín- lação com o trabalho e os bens úteis à vida, mas sim com rela-
timos equilíbrios espirituais em relação à lei de Deus. ção à nossa saúde física. Procuraremos precisar os efeitos da
A nossa economia moderna se baseia inteiramente sobre o moderna psicologia de independência, quando ela penetra tam-
―do ut des‖. Mas a lei do dar e receber é mais ampla na economia bém esse nobre ramo da ciência, que é a medicina.
da vida e não se limita apenas a recompensar quem nos deu e na Repassemos agora as ruinosas consequências a que uma ori-
medida em que nos deu. Na divina atmosfera alimentadora de tu- entação excessivamente materialista e hedonista conduziu a ciên-
do, as trocas são vastas e infinitas, e não nos devemos preocupar cia, enfrentando a urgente necessidade de conferir a esta uma su-
se não recebemos de quem foi por nós beneficiado e na propor- perior finalidade ética. O homem, que preferiu o seu eu a Deus e
ção do benefício. Dá e te será dado. A compensação não se sabe acredita tornar-se senhor e centro do seu mundo, por mais que
de quem, nem como nem quando virá, mas virá. É necessário queira manter-se objetivamente apegado apenas aos fatos e au-
compreender que a divina economia do universo é vasta, sempre sente e neutro em face de qualquer meta ideal, fixou, só por esta
comunicante, automática e inevitavelmente compensadora. O sua atitude, uma afirmação axiomática e dogmática que colorirá
benefício realizado por nós a um anônimo, que não se verá mais toda a sua concepção, ainda que tal premissa esteja oculta no
depois, tanto circulará pelas vias da vida, que deverá voltar a nós. subconsciente. Disto não pode nascer senão uma medicina que
Se nós, contudo, não nos enriquecermos com tais créditos, mas, tende a substituir-se à natureza e que prescinde do poder curativo
pelo contrário, acumularmos débitos em face aos equilíbrios da desta, a ponto de acreditar poder e dever corrigi-la e suplantá-la.
lei de Deus, o que então pretenderemos obter de retorno? Assim, hoje, enquanto a medicina se guarda bem de possuir uma
Eis de que maneira é movido o mecanismo da assim cha- filosofia, efetivamente tem uma, da qual depende a sua orienta-
mada Providência. Sem mérito, como poderemos esperá-la? ção. Também aqui não se pode prescindir do fator moral, que,
Então não nos resta senão a escassez de meios e a contínua pre- sendo superior a todas as leis humanas, as penetra todas, de modo
ocupação, que, como se vê, não se elimina de modo algum, an- a se encontrar em todas, ainda que seja negado. Igualmente aqui
tes aumenta por se ter procurado acumular riquezas. se verifica a habitual cadeia: ignorância, erro, mal, dor, também
Por tudo isto compreende-se como existe um mundo imenso com os mesmos resultados, como nos outros casos.
que está além do nosso e que rege e penetra a nossa realidade Encaremos o problema mais de perto. Nenhum outro campo,
contingente. Em nossa pequena vida cotidiana, vivemos o infi- como a medicina, que intervém em nosso mundo orgânico, é tão
nito, sem suspeitá-lo. No relativo, vivemos o absoluto; no áto- pejado de consequências nocivas devido a esse espírito moderno,
mo, a eternidade; nas pequenas alternativas de cada hora, cum- rebelde às leis da vida, o qual pretende erigir-se em plena auto-
primos o nosso destino, já por nós preparado no passado, en- nomia, para adaptá-la aos próprios fins hedonísticos. A saúde é
quanto forjamos um novo, pois, ainda que não o saibamos, es- fenômeno de longas e longínquas repercussões, é um equilíbrio
tamos em comunhão com Deus. Bem-aventurados os que sa- profundo das energias da vida, que o homem moderno perturba
bem disso e a sentem. Esses são os dominadores, que ultrapas- com extrema facilidade, levando uma vida contra a natureza, e
sam a ilusão humana, onde a maioria se conduz. Estes últimos que ele pretende depois restabelecer com a varinha mágica do
permanecem encerrados na prisão da miséria feita pela própria médico e da medicina, usando o milagre da descoberta científica.
natureza; afligidos pela necessidade em meio a uma riqueza in- Acredita-se facilmente nisto, pois agrada e é cômodo, além de se
132 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
prestar à exploração industrial e individual, havendo quem tenha Essa sua psicologia de batalha antimicrobiana lhe vem da
interesse em criar e manter tais credulidades. No entanto a vida é psicologia do século, que é de revolta, e não de adesão à sabe-
feita de maneira diversa, e não podemos alterá-la a nosso talante. doria das leis, ou seja, psicologia do homem ainda involuído. A
E se tentarmos tal empresa, as forças da vida reagirão, punindo- caça ao micróbio, se este é realidade, pode ser empirismo como
nos pelo erro. É certo que a imbecilidade das massas parece ili- orientação geral. Mas quem nos assegura que o micróbio não
mitada, e, biologicamente, é inevitável que os fracos sejam ex- seja senão o efeito, ao invés da causa da moléstia, visto que ele
plorados. O quanto isto é rendoso para os espertos, prova-o a surge quando o terreno orgânico já está preparado pelo morbo e
concorrência que existe hoje na indústria da exploração de tal que, neste mesmo terreno orgânico, ainda quando seja patogê-
imbecilidade, em todo o campo possível e imaginável. Mas é nico, não exercite funções particulares? Quem nos diz que o
verdade também que, dada a grande compreensão da maioria, doente não seja um ser que a vida coloca sob cuidado para cu-
nada pode educá-la melhor do que ter sido ela escarmentada com rá-lo, mais do que um ser que espera a extrema-unção humana
o próprio prejuízo. Em todas as esferas de ação, a vida adota esse para normalizar-se? Esta concepção desloca tudo, fazendo pas-
sistema para nos induzir a compreender, isto é, a progredir. sar para um primeiro plano a sabedoria da natureza e para um
O dano em medicina é grave, visto tratar-se de uma terapêu- segundo a do médico, visto que, hoje, as coisas estão invertidas.
tica desorientada, que, aplicada em larga escala, ameaça a cons- Mas a medicina consiste em seguir esta sabedoria, e não em
tituição orgânica, sobretudo das raças civilizadas, que dela fa- substituir-se a ela para coagi-la.
zem mais uso. É verdade que a vida é uma batalha onde cada O primeiro e verdadeiro grande médico é a natureza, grande
um deve combater com as próprias armas, com as próprias ca- concorrente da medicina oficial, médico que todos têm em si e
racterísticas e com os meios acumulados no tempo, e isto tanto que vigia e age continuamente. Ela representa a universal pre-
no campo orgânico como no espiritual. É verdade também que sença de Deus, sempre benéfica e restauradora. O conceito do
a vida possui poderes corretivos e de recuperação em face dos micróbio patogênico deriva do instinto de luta do homem ainda
piores erros e, por conseguinte, pode resistir aos maiores assal- involuído. É impossível seguir o bacilo e atingi-lo nas profun-
tos. Mas nós não estamos em grau de dizer quantas dores isto didades vivas do tecido, porque ele não se encontra aí como
custará ao homem moderno. uma intromissão estranha, mas sim como combinação de sim-
Hoje a terapêutica antimicrobiana domina e determina uma biose, que faz parte dos próprios equilíbrios da vida. Ele é nos-
intervenção contínua e difusa de produtos que, penetrando no sa própria vida, com funções vitais, e não se pode isolar nas in-
organismo, tendem a modificar a própria estrutura das células, finitas interdependências orgânicas. A natureza o utiliza na sua
determinando um progressivo declínio orgânico e consequente estratégia defensiva. Os micróbios não são os antagonistas da
decadência constitucional. A caça ao micróbio se reduz a uma vida, mas os seus colaboradores. Mesmo quando agem contra
conturbação, na qual se prejudicam as naturais forças defensi- ela, excitam-lhe as reações vitais.
vas e se produz uma crescente vulnerabilidade orgânica. Fre- Quando advém o assalto, a vida adota muitos meios, entre os
quentemente obter-se-á uma vantagem imediata, mas é necessá- quais ressalta a elevação da temperatura, que se chama febre. Ela
rio ver o que de nós custará pelas suas consequências. Não obs- representa um mais alto potencial elétrico celular, especialmente
tante a contínua floração de descobertas e de novos remédios, do sangue, uma posição mais enérgica para a batalha. Os medi-
os organismos resistem cada vez menos. Se os auxiliamos de camentos destinados a suprimir a mobilização desse dinamismo,
um lado, eles cedem de outro. É natural que eles se enfraque- expresso pelo processo febril, vão demolir as naturais defesas or-
çam na proporção da defesa que lhes é prestada. À multiplica- gânicas e paralisam a luta engajada pela natureza. A vida é um
ção dos remédios corresponde assim uma multiplicação de ma- inteligente princípio espiritual que quer a conservação do indiví-
les. Ademais, as enfermidades se tornam amorfas, atípicas, o duo, porque viver tem um escopo e ela quer atingi-lo. As molés-
que significa que se perturbou a lógica da estratégia posta em tias representam uma verdadeira estratégia de movimentos calcu-
prática pela inteligência da vida. Os organismos não reagem lados em intensidade e duração, conduzidos com um ritmo pró-
mais ou, se reagem, o fazem desordenadamente, o que significa prio, que se exprime pela sintomatologia. Elas representam, em
que a natureza foi induzida à desorganização. O difundido uso suma, uma inteligente operação de guerra. Se tais planos forem
dos produtos sintéticos significa o emprego de um mau sucedâ- transtornados, paralisando artificialmente a reação febril, toda a
neo, que, se possui as características químicas, não pode ter de defesa se desorganizará. Então, a natureza ou resiste à cura e tra-
modo nenhum as orgânicas, dado que a vida contém forças su- va a sua batalha da mesma forma, ou a transfere para uma outra
tis, que alcançam o próprio campo espiritual. ocasião. Entrementes nós poderemos ter tornado tão difícil o seu
Sem poder entrar aqui em particulares, este é o resultado da trabalho, que poderá suceder que a batalha seja perdida e o orga-
terapêutica moderna. Por querer ser imparcial e objetiva, ela ca- nismo sucumba. Altera-se assim, completamente, o conceito de
rece da orientação geral, que só uma filosofia da vida pode for- saúde. Esta não é dada tanto pelas boas condições do ambiente,
necer. Por permanecer positiva, escapam-lhe muitos imponde- quanto pela capacidade de resistência do indivíduo. Pelo contrá-
ráveis fundamentais. Não possuindo o senso da unidade cósmi- rio, se muito protegida, a vida se enfraquece.
ca, fogem-lhe também a percepção da unidade orgânica e, as- É necessário que nos exponhamos, que lutemos, para que
sim, o poder de síntese, ficando perdida na análise, na especia- devamos aprender a vencer. A célula só se torna passível de
lização clínica, no localismo patológico e no fracionamento sin- agressão por parte dos germes patogênicos quando o seu índi-
tomático. E, sem esse poder de síntese, não se chega a cumprir ce bio-físico-químico sofreu alteração. O estado de saúde não
o ato individual da intuição, que é o diagnóstico e o prognósti- deve, por conseguinte, ser esperado de um ambiente artifici-
co. Não se pode compreender um momento particular da vida almente corrigido, mas sobretudo de nós mesmos, e isto é o
se não se está antes orientado no todo, compreendendo primei- resultado de uma longa história individual e coletiva, história
ramente o funcionamento orgânico do universo. No estudo da em que a vida tudo registra de bom e de mal, com suma justi-
vida não se pode prescindir da ordem espiritual em que ela se ça e vontade de fazer o bem.
move, nem é lícito ignorá-la. Uma medicina materialista é, pela As nossas atuais concepções dependem de uma falsa orien-
própria natureza, incompleta e incompetente para julgar os fe- tação filosófica. Não está errada a ciência que observa objetiva-
nômenos vitais. Escapa-lhe a essência destes. Não obstante ne- mente, mas está errada a psicologia com que se aplicam os seus
gá-lo, ela possui, em realidade, a filosofia mais negadora da resultados. Em nosso caso, se é perigoso ser demasiado filósofo
substância da vida, como é o seu materialismo. Tal é a nossa e pouco médico, como sucedeu nos séculos passados, é perigoso
medicina analista, organicista e microbiana. também, como possivelmente por reação sucede hoje, ser dema-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 133
siado médico e pouco filósofo. Um pouco de filosofia também é vagamente exprimida com o simples termo religioso de alma.
necessário para superar o perigo representado pela dispersão re- Uma medicina, pois, total, mais completa e mais harmoniosa,
sultante do fragmentarismo analítico, em que a perda do sentido enquadrada no funcionamento orgânico do universo, e não iso-
unitário leva a um labirinto de fenômenos desconexos. Para re- lada dele e a ele rebelde; uma medicina que não pretenda criar o
sistir ao fracionamento da ciência na especialização, deve ocor- saber nem fazer leis, mas cuja maior sabedoria consista em pôr-
rer a síntese, a unificação, na orientação filosófica. A orientação se de acordo com as tão sabias leis já existentes.
materialista conferiu à nossa medicina um aspecto mecânico, Como se vê, não se trata de inovações particulares, mas de re-
frio, abstrato, em que a alma do paciente sente-se afogada. ferências à formação da mente atual, de que tudo derivou. Hoje
Da mesma forma que já dissemos com respeito ao trabalho, se fabricam médicos em serie, nas universidades, em que se apli-
também a medicina, assim como todas as manifestações da vi- ca, em qualquer cérebro, um verniz de cultura, aplicação que, re-
da, deve consistir, para ser genética e criadora, em um ato de forçada por um diploma, transforma-se em rendimentos e cre-
amor. O século futuro deverá aguardar na ciência a conquista dencia a atuação profissional, autorizando assim o funcionamen-
dessa nova qualidade, que pertence ao espírito e que falta intei- to da máquina cerebral confeccionada dessa maneira. A verda-
ramente em nosso tempo. deira medicina é, no entanto, um dote pessoal, uma vocação, um
sacerdócio; é o produto de qualidades biológicas intrínsecas, que
XXI. A CIÊNCIA DA ORIENTAÇÃO não podem ser improvisadas nem adquiridas apenas pela erudi-
ção. Não obstante, em nosso mundo, hoje se tende a fazer tudo
Continuemos a observar os erros do nosso tempo, sobretudo por via mecânica, enquanto o que vale é primeiramente o ho-
com respeito à orientação do cognoscível moderno, pois que a mem, o material com o qual, depois, tudo o mais se faz e sem o
nossa ciência, tão vasta e profunda, parece carecer exatamente qual nada se realiza. Assim, pois, para fazer o médico, é necessá-
do senso de orientação. rio, fato inacreditável, fazer o homem e, neste caso, mais do que
A carência de síntese é um dos males do nosso atual saber. A apenas um outro, um homem de tipo biológico ainda muito raro
análise, embora se tenha demonstrado hoje tão frutífera do ponto na Terra, isto é, o homem orientado e intuitivo, que tenha com-
de vista utilitário, arrisca-se a naufragar, se não for completada preendido todo o universo, ao menos nas grandes linhas diretivas,
por uma visão sintética que a discipline e organize, conduzindo- e que tenha alcançado, por evolução, qualidades de intuição e
a para metas mais elevadas. São ações opostas, que, no entanto, síntese que lhe permitam enquadrar as coisas com respeito ao to-
podem completar-se seguidamente, de modo que a ciência mo- do, para depois penetrar-lhes o significado e, assim, compreender
derna, de escopos prevalentemente práticos e utilitários, pode o estudo patológico no caso particular que ele deve tratar. É ne-
casar-se com uma orientação geral, que lhe falta e não lhe pode cessário o homem que, por evolução, seja mais sensível que o
advir senão de uma visão sintética unitária, em que tudo se re- atual, capaz assim de adotar na indagação o novo método do fu-
duz à unidade, tudo está conexo, formando um todo compacto, e turo: o método intuitivo. Esse homem, hoje, é esporádico, como
não pulverizado nas infinitas veredas do particular. que uma antecipação evolutiva. Os métodos da conquista do co-
Voltemos ao palpitante problema da medicina. Onde se nhecimento foram antigamente dedutivos, procedentes de edifi-
estuda a vida é necessário subir às fontes dela, que são interio- cações lógicas e racionais. Depois surgiu o método indutivo e
res, estão no espírito e são encontradas ao se caminhar para o experimental, e parecia que não existiam outros. Hoje, por evolu-
centro conceitual do universo. A medicina moderna seguiu a di- ção do instrumento homem, deve nascer o método intuitivo, que
reção geral da nossa ciência e, por isso, fechou-se na periferia, é a penetração do fenômeno por via de sintonização do dinamis-
na forma. É natural que, carregada de infinitas noções, ela tenda mo vibratório (comprimento de onda, frequência, potencial etc.)
à dispersão no particular, por falta da orientação que só um do sistema de forças do eu, com o dinamismo vibratório (idem...)
conceito unitário pode dar-lhe. O grande Hipócrates e os médi- do sistema de forças representado pelo próprio fenômeno. Mas
cos intuitivos da Antiguidade haviam concebido esta unidade e não é aqui que se pode desenvolver tais conceitos.
dessa maneira curavam. Ainda que a ciência nos tenha forneci- A nossa medicina é um setor da nossa ciência, que é uma
do um sem-número de meios de indagação e elementos de co- das manifestações do tipo de correntes do pensamento domi-
nhecimento, é necessário que tornemos, mas agora bem melhor nante em nossa fase histórica. Em cada século, o homem pensa
providos, aos métodos daqueles grandes vultos. Surgirá assim a de maneira diversa e assim se orienta. Tudo, pois, por ser pro-
nova medicina, que, sem ser empírica como a antiga, por ter gressivo, é relativo. Hoje, a orientação materialista invadiu to-
aprendido a observar objetivamente, será, como a antiga, orien- das as coisas. Daí a supremacia da forma sobre a substância, o
tada em harmonia com todas as leis da vida, e que, ao invés de ver, o existir, o trabalhar na periferia, e não na intimidade. O
erigir-se contra estas leis para submetê-las e dominá-las, irá método objetivo da observação e da experimentação é um mé-
aceitá-las e segui-las, vendo nelas uma profunda sabedoria. Ha- todo periférico, que dos efeitos sobe, por hipóteses e depois por
verá quem diga que isto não é medicina, mas sim filosofia da teorias, às causas, até estabelecer as leis. Este é o método que
medicina. Pois bem, acima do conhecimento científico, é im- está em voga, porque é sensório, mecânico, e pode prescindir
prescindível colocar essa filosofia, se não quisermos acabar em de um particular tipo evoluído de homem, hoje escasso, e ser
uma torre de Babel de especialistas que não se conhecem mais aplicado a todos ou quase todos. Em medicina também, isto
reciprocamente por se haverem afastado demasiado da origem significa uma ciência dos efeitos, e não das causas. É o mesmo
comum de todas as coisas. Este é o fim que nos espera se não que possuir um rio na desembocadura, ignorando o que se passa
nos apressarmos a formar uma ciência de orientação, que dê nas fontes e no percurso. O que sucede nas outras realidades
coesão e consistência e, com isso, uma direção ao conhecimen- que estão além da realidade material, a ciência o ignora.
to científico divergente da atualidade. A hodierna orientação da medicina espalha nesse campo a
Com todo o respeito que merecem as grandes conquistas já psicologia luciferiana da rebelião, hoje dominante em razão de
realizadas, sente-se a necessidade de enquadrá-las e coordená- nossa fase biológica involuída, em que a seleção se opera ainda,
las em um sistema único e universal que nos forneça a chave como no animal, através da força. É uma psicologia de luta e de
dos esquemas fenomênicos, chave com que poderemos melhor agressão, em que o eu afronta, armado de meios de indagação,
desvendá-los. Sente-se a necessidade de completar a medicina o fenômeno como se fosse um inimigo. É uma atitude egocên-
da matéria com uma medicina global, que inclua também o es- trica e utilitarista, que tudo pretende sujeitar a si mesmo, pon-
pírito e leve em consideração, além do organismo físico, tam- do-se como centro e lei do universo. Ora, este já possui uma lei
bém aquela outra parte tão importante do ser humano, ainda sábia e perfeita, e toda a sabedoria está em segui-la, em harmo-
134 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
nizar-se com ela, pois que ela exprime o pensamento de Deus. Mesmo a terapêutica, na prática, foi transtornada por esta
Só através dessa concórdia pode derivar a felicidade espiritual e corrente. É a massa que hoje faz tudo e, com a sua ignorância e
também a saúde física. Esta vontade de se erigir em lei própria, psicologia, estabelece o que se deve produzir para que possa ser
contra a ordem já estabelecida das coisas, esta elevação em an- vendido. É a procura que cria a oferta. O médico que quisesse
ti-Lei, substituindo à Lei a própria vontade, é patológica, asse- opor-se a essa corrente seria esmagado. A culpa é do público.
melhando-se à indisciplinada multiplicação celular do câncer Mas quando foi que o povo, soberano ou não, compreendeu o
em um organismo são, e não pode produzir senão mal e dor. que quer que seja? Calculou-se que as especialidades farmacêu-
Caminha-se, assim, seguindo um erro contínuo, que é de todo o ticas produzidas só nas nações europeias são em número de
pensamento moderno em todos os campos, pensamento que, mais ou menos de 50.000. Será isto ciência, indústria ou empi-
embora seja perspicaz, por ser invertido não pode criar o bem e rismo? O que decidiu é a propaganda, antigamente considerada
a alegria senão negativamente, ou seja, como mal e dor. E, as- charlatanismo. Ela, com o objetivo de vender, procura embair
sim, enquanto parece que se progride para a ascensão, verifica- os parvoeirões com a necessidade de tomar injeções e a ingerir
se que isto se dá somente na forma e que, na realidade, trata-se produtos inúteis, quando não prejudiciais, prometendo mila-
de um engano, porque efetivamente, na substância, anda-se pa- gres. Cria, desta forma, necessidades artificiais que se trans-
ra trás, em descida involutiva, para a barbárie e para a destrui- formam em hábitos, para estabilizar o próprio comércio. Isto
ção. Eis no que acaba a nossa ciência, por ser mal orientada e constitui um mal, não só para o bolso, mas também para a saú-
dirigida! Por conseguinte, cogitar da sua filosofia, como ciência de. Os medicamentos fundamentais, indispensáveis, são pou-
de orientação, não é coisa ociosa e inútil. quíssimos. Serão 50, no máximo 100. E por que tão grande có-
De tudo isto nasce uma medicina aparentemente maravi- pia de especialidades farmacêuticas? A razão está no interesse
lhosa, mas de resultados danosos, porque não cria saúde, mas em produzir o que a ingenuidade procura adquirir. E, assim, vê-
sim moléstia. Em face da sua direção, ela representa uma in- se que, no mundo, quase tudo é mentira. Mas tal é a necessida-
tervenção violenta, que, em vez de coadjuvar, viola a sabedo- de de confiança, a preguiça de não pensar por si mesmo e a pre-
ria divina, com o resultado de transtornar a ordem, ao invés de tensão de ser servido, que parece impossível a extinção da no-
facilitar-lhe as manifestações. Semeia, desta maneira, os pre- bre raça dos simplórios e seu renascimento com o homem.
cedentes causais de uma série de sempre novas formas pato- É bastante atentar para o tempo que duram o preço e a
lógicas amorfas, que cada vez mais nos atormentarão e aos forma desses produtos. Reina entre eles uma moda tão mutá-
nossos descendentes. Esta medicina de domador torna-se um vel e caprichosa como a feminina. O valor preponderante é
elemento a mais na degeneração das raças. Mas isto não nos dado pela novidade. Não significa isto que se procede por ten-
surpreende. Tudo hoje se encontra na via da descida involuti- tativas? E o que é isto senão empirismo? E o corpo humano
va, tendendo assim para o mal, a dor, a destruição e a morte. não é sempre o mesmo? No entanto as mesmas moléstias, ho-
O pensamento atual é um bulbo que a vida quer isolar para je, tratam-se com o branco e, amanhã, com o negro. O medi-
extinguir. Tudo – a arte, a música, a literatura, a filosofia, a camento, de início, faz milagres. Depois, parece que se exaure
política, a agricultura de exploração intensiva por meios quí- a sua carga de poder sugestivo conferida pela novidade, o sa-
micos, a técnica e a ciência utilitária, o homem como pensa- ber da descoberta, o nome estranho e exótico, então deixa de
mento, como organismo, como ação, as suas máquinas e todo curar e cai em descrédito. Por quê?
o seu poder – tudo caminha nesta vida. Assim também a me- Como se vê, o fator psicológico desempenha uma função
dicina, segundo o ritmo de nosso tempo. O sistema é por toda importante na terapêutica; assim, em grande parte, não é o re-
parte o mesmo: triunfos aparentes, promessas falazes, vanta- médio com os seus elementos químicos que curam, mas é ―la
gens vistosas e imediatas e ―aprés moi le deluge‖28. fois qui guérit‖29 (Charcot). É certo que, hoje, pretende-se fa-
Toda a nossa cultura é hoje divergente do centro, da unidade bricar esta fé com a psicoterapia, psicanálise e princípios afins.
e, por conseguinte, desagregante, ao invés de convergente para a Mas a fé faz parte de movimentos de força no organismo espiri-
unidade, isto é, construtiva. Afastamo-nos, assim, das fontes da tual, obedecendo a leis próprias, que não permitem obtê-la fa-
vida, que tudo alimentam, e permanecemos isolados e perdidos cilmente, à vontade, sob a ilusão de que se poderia conseguir is-
na especialização. É uma corrida louca de todo o pensamento to pela sugestão. Ela se verifica quando quer, e a vida sabe pro-
moderno. A humanidade, assim orientada por séculos de materi- teger-se. A fé salutar, que cura, não se fabrica em série, como
alismo, não pode mais parar e, por inércia, é fatal que ela só po- os medicamentos, mas faz parte da ―vis sanatrix naturae‖30,
derá conter-se quando colidir com a resistência das invioláveis constituindo um estado de dinamismo espiritual que se processa
leis da vida, constituídas por imponderáveis dinamismos de fer- quando as leis protetoras da vida o querem. Esta fé não se co-
ro. Choque apocalíptico, mas necessário. Quando esta humani- munica mecanicamente, por fórmulas estudadas, não sentidas
dade tresloucada, que avança estupidamente, em massa e por nem vividas por quem as quer impor. Deve-se dar muito mais, a
imitação, acreditando que a lei e a verdade se fazem somente própria vida, a si mesmo, e, para dar, deve-se possuir algo co-
com o número, quebrar a cabeça, então talvez compreenderá. E, mo força biológica. Mais do que nunca, aqui, o médico deveria
assim, as leis da vida a salvarão necessariamente. ser um sacerdote ou um taumaturgo.
O indivíduo não vê senão um meio de salvação: isolar-se A atual patologia e terapêutica limita-se ao corpo e ignora
em todos os campos dessa corrente, libertando-se o mais possí- em grande parte o espírito, de que, sobretudo, o homem é feito.
vel de todos os produtos de uma civilização transtornada. Re- Cura-se este como se procederia com um animal qualquer. Ora,
sistência passiva em vez de misturar-se ao rebanho. Em todos o princípio genético da vida está no seu íntimo, onde, por conse-
os campos: cultural, político, religioso, econômico, apenas do- guinte, encontra-se também o princípio regenerador e reparador.
mina o interesse, pelo qual a mentalidade moderna conduz à Por que o tempo cura? Por que? Porque é no tempo que se de-
formação de grupos para a exploração do próximo. Quem de- senvolve o ritmo do transformismo universal; porque, no tempo,
fende o indivíduo? Ninguém, e é lógico. Ele acredita em varias a divina potência que está na intimidade de todas as coisas, ani-
formas de defesa e na justiça, mas é necessário que aprenda por mando-as e guiando-as, pode aparecer e manifestar a sua vonta-
si a defender-se das infinitas mentiras humanas dominantes por de de bem, o seu inexaurível poder curador. Desta maneira, esta
todos os lados. No entanto, com que beata incoerência as mas- potência, através do canal de sua manifestação, que é a forma,
sas se deixam engazopar por todas as formas de propaganda!
29
―A fé que cura‖. (N. do T.)
28 30
―Depois de mim, o dilúvio‖. (N. do T.) ―Força curadora da natureza‖. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 135
pode chegar a agir terapeuticamente até à periferia material, que melhor, mas do tipo mais capaz de se impor egoisticamente.
o médico vê. As causas estão todas na profundeza, no espírito, Uma humanidade assim involuída não pode polarizar-se senão
de que seria necessário, pois, conhecer a história, a evolução, a em torno de um indivíduo ou de uma classe que, sobrepujan-
patologia. Os traumas físicos são antes traumas espirituais, e a do-a e vencendo-a, possa, por conseguinte, dominá-la segundo
sabedoria divina, que os cicatriza, começa a operar antes nestas o próprio tipo de forças que prevalecem nela. É lógico, pois,
causas, até atingir as consequências orgânicas. Como é possível que cada povo tenha o governo que merece e cada governo te-
curar sem saber estas coisas? A medicina completa é também nha os súditos que lhe correspondam. Em toda manifestação da
mística e religiosa. A patologia e a terapêutica verdadeiras deve- vida, apenas um indivíduo ou grupos de indivíduos, por vonta-
riam abarcar séculos da vida do indivíduo, segundo as alternati- de e inteligência, sobressaem um pouco da massa, mas não o
vas da sua longa caminhada no tempo. Que sabe a ciência da- bastante para distanciar-se completamente. Então ele se erige,
quela outra hereditariedade espiritual, que, pela universal lei de segundo o esquema universal dos fenômenos, em central di-
dualidade, age por um canal paralelo e complementar ao da he- nâmica autônoma, isto é, em sol ou núcleo em torno do qual,
reditariedade psicológica, que é a única hoje conhecida? En- como os satélites ou os elétrons, começam a girar as unidades
quanto a ciência não conhecer a biologia transcendental do espí- dinâmicas menores, de nível negativo com respeito ao dina-
rito e a anatomia, psicologia e patologia deste organismo dinâ- mismo central, que é positivo. Esta é uma lei própria de qual-
mico, ou sistema de forças, individualizado por comprimento de quer manifestação biológica, que se manifesta também nas re-
onda, frequência de rotação, potencial etc., não poderá compre- lações sociais, logo que estas devam ser disciplinadas em vir-
ender nem mesmo a patologia do organismo físico, que não é tude da convivência de muitos indivíduos. O conceito de auto-
senão a última consequência de tudo quanto nós mesmos prepa- ridade se baseia assim em um princípio de dinâmica biológica,
ramos com os nossos pensamentos, com a nossa vontade e ação, que, neste caso particular, é social. Em política sucede o que
no campo do imponderável. O diagnóstico hoje se faz, no entan- observamos com o galo no galinheiro, com o homem na famí-
to, à base da sintomatologia imediata e superficial denunciada lia, entre o núcleo e o protoplasma na célula, e, mais longe, na
mais ou menos pelo paciente, sob controle do médico, que não o intimidade do átomo e no sistema solar etc. Formado o poder
conhece e o vê pela primeira vez, tratando-o como corpo em sé- central, em seu derredor começa a rotação dos elementos saté-
rie, e não como indivíduo que ele é; como moléstia que se pre- lites. Da substancial natureza e valor biológico do núcleo deri-
sume mais ou menos igual para todos, e não como típico caso va o direito de comandar e o dever de obediência.
específico. Hoje, o utilitarismo prático e a lei do mínimo esforço A sociologia não é senão um ramo da biologia e só assim
impõem rapidez. Tudo é em série, em massa. Os homens, como pode ser compreendida. Ora, dado o atual nível evolutivo hu-
as máquinas, reparam-se em série, como se fazem as bicicletas. mano, e inútil procurar nela o elemento moral. A obediência
Concluindo, falta aos nossos tempos e suas produções a ori- dos muitos aos poucos baseia-se num princípio de fraqueza
entação que forneça a visão dos fins últimos a serem atingidos. É dos muitos e na necessidade de compensá-las com a força dos
uma verificação que não tem por fim desacreditar a ciência ou a dirigentes. É uma lei de complementação. A vida não rende
medicina. Existem médicos iluminados e honestos, e a ciência é homenagem senão ao mérito efetivo e, mesmo em tal caso, tra-
uma grande conquista devido ao esforço e à abnegação das gran- tando-se de um mundo involuído, o mérito pode consistir na
des mentalidades que a elaboraram, porque também ela possui os força brutal expressa pela dominação. Tudo depende da estru-
seus gênios e os seus mártires. Respeitemo-la, mas saibamos tura dinâmica do sistema, que requer do núcleo, sobretudo, a
também usá-la com sabedoria, só colocar o imenso poder que de- potência de reger os satélites.
la deriva em mãos de quem sabe dele fazer bom uso. Todavia, se Pela própria estrutura, faz-se necessária uma certa proximi-
a ciência sabe fabricar tantas coisas, não sabe ainda fabricar os dade qualitativa, uma afinidade entre governantes e governa-
cérebros que possam bem usá-la. Cheios de sapiência, falta-nos dos, pois, se quem detém o poder é demasiado evoluído e, as-
ainda a sabedoria. Possuímos todas as ciências, mas nos falta a da sim, se distancia demasiado da média, os pontos de contato
orientação. Assim, às vezes, a ciência se torna um mal, em virtu- não subsistem mais, e é impossível a troca dinâmica e a com-
de do que seria melhor que os cientistas não fizessem certas des- preensão. Então, os governados destroem o poder, que já não
cobertas ou, pelo menos, não as tornassem conhecidas. corresponde mais às suas necessidades e capacidades. Desta
Quando se pensa que hoje a humanidade está à mercê de maneira, um santo jamais poderá governar, mas apenas o indi-
poucos homens que possuem o segredo e os meios da bomba víduo ou a classe que possui as qualidades e também os defei-
atômica, e que os povos inermes, dada a mentalidade domi- tos próprio da involução da maioria.
nante, encontram-se sob a ameaça de ser por ela massacrados Quando, na ilusão própria da ignorância do atual estado da
sem remissão, conclusões amargas como esta poderão pare- humanidade, quem comanda acredita comandar por si, é porque
cer justificadas. ignora que na realidade é um servo da vida, que o utiliza para
os seus fins e o elimina quando não desempenha mais, como
XXII. O CONCEITO DE PODER EM potência, vontade e inteligência, a sua função social. O homem
BIOLOGIA SOCIAL atual, muito mais carne do que espírito, menospreza o chefe
que não seja um domador, porque necessita de ver nele a per-
Defrontamo-nos agora com o problema do comando, ob- sonificação do seu ideal de supremacia material e o vencedor na
servando o mecanismo psicológico que preside ao funciona- luta animal pela vida. Os membros exigem direção e proteção
mento das forças nas quais se baseia a autoridade, seja em do centro, o cumprimento, ainda que inconsciente, dos fins da
quem a exercita, seja em quem lhe obedece, e procurando pre- vida, que são de prosperar e progredir: bem-estar e progresso.
cisar também neste campo quais são os erros modernos e a sua O homem moralmente evoluído, o homem evangélico da bon-
razão de ser. Esses são erros de fundamentos, e de tal vastidão dade e do espírito, corresponde a outras funções biológicas, que
que é muito difícil se corrigir. Da mesma forma, o mal, aqui, não dependem de governo pelo domínio. Também ele servirá
não se encontra na perfeita lei de Deus, que tudo rege, mas no de núcleo que atrai satélites, mas não no campo das organiza-
espírito humano de revolta ções sociais que se baseiam na força material e econômica.
Qualquer que seja o sistema político e o período histórico Por esses princípios de dinâmica social, vê-se como os
escolhido para exame, o comando cabe ao mais forte. Esta é a eventos históricos são determinados por impulsos interiores,
base do poder na atual fase biológica da humanidade, em que a dos quais os atores principais não têm conhecimento. A histó-
seleção é dirigida não para o triunfo do elemento moralmente ria, pois, não avança como produto do conhecimento e da
136 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
vontade humana, mas sim movida por um dinamismo interior, função. Mudam assim as várias verdades políticas conexas em
de que os homens, mesmo os mais importantes, são em geral cadeia no caminho evolutivo da sociedade humana. Elas vão e
uma expressão inconsciente. Mais do que na inteligência de- vêm, contradizem-se e se combatem, transmudam-se no oposto
les, esse dinamismo parece situado no subconsciente das mas- a cada momento, no entanto não constituem na história senão o
sas, dado por uma espécie de alma coletiva inconsciente, que desenvolvimento de um único pensamento: o da vida, que o
sabe, por intuição, sem poder dar-lhes as explicações racio- guia. Todo governo se declara insubstituível representante do
nalmente, a substância da ação necessária a cada momento. bem público e, apesar disso, cedo ou tarde, vem a ser substitu-
Então esse dinamismo confia aos mais diversos indivíduos as ído. A verdade, feita para uso e consumo de cada um deles, se
mais variadas funções sociais, que eles cumprem segundo o inverte. E, assim, por ação e reação, compensam-se os exces-
próprio tipo biológico, porém ignorando cada qual a coorde- sos e os erros de cada um; por superações, desenvolve-se um
nação que se verifica, somente conhecida pela inteligência pensamento único, continuamente progressivo, aquele que a
que dirige a história. Não será esta a própria sabedoria de história, e não os homens, pensa e quer. Mudam os servidores
Deus, que opera além do nosso conhecimento, ao elevar o ní- da vida escolhidos para o bem público, e, através de tantas
vel térmico em nosso organismo, buscando defendê-lo pela formas e indivíduos, que acreditam combater um ao outro,
febre, quando assaltado pela enfermidade? Não se trata sem- mas, ao invés, equilibram-se, o bem público é e vem a ser por
pre da mesma fraternal e benéfica onipresença da sabedoria todos diversamente servido. Por isso se vê como na história
divina? E, assim, não estaremos nós, quer em nossa vida indi- reina a lógica e o equilíbrio, não obstante as aparências opos-
vidual, quer na social, confiados a essa sabedoria, que existe e tas, e que tudo nela, desde um incidente momentâneo até um
funciona acima da nossa consciência? grande evento, como a maturação e queda da civilização, é re-
É desta sabedoria e potência divinas que estão no funcio- gulado inteligentemente por uma lei. A essa lei se deve que a
namento da vida, que os homens recebem o poder. São elas que história caminhe, não loucamente como os interesses individu-
o dão, mas que também o tomam. É uma espécie de direito di- ais desejariam, mas para suas metas.
vino, mas em sentido biológico, isto é, que permanece enquanto Este é o estado atual do nosso mundo no seu nível ainda in-
justificado por uma função vital no corpo social, que representa voluído. Dado que a consciência coletiva se encontra na sua fa-
em outros termos o real cumprimento de uma missão. Um direi- se paleontológica de formação, ela possui expressões exterior-
to que cessa quando deixa de ser biologicamente útil e, portan- mente caóticas, cuja lógica só se encontra nas diretivas internas
to, justificado. Segue-se daí que, assim sendo, seria rapidamen- da história, a que, pois, tudo é confiado e que constituem uma
te eliminado um santo posto a governar, porque se bem adapta- zona situada fora da consciência e da razão do homem. Mas,
do a funções altíssimas, essa não é a sua, como também é eli- em um nível evoluído, uma vez formada uma consciência cole-
minado o involuído que abusa do poder, transformando-o em tiva, o homem terá conquistado o senso do dever e das funções
gozo para vantagem próprias. A vida exige uma utilidade em que cabem a cada um, dirigentes e dirigidos, no organismo so-
troca dos poderes que confere e, quando essa utilidade social cial. Então, todo poder será mantido não por meio da força, mas
vem a faltar, ela os retoma. sim pela consciência do cumprimento de função e missão, e,
Se as massas são involuídas, esses poderes serão exercita- sem uso de força, o cidadão capaz de compreender, o reconhe-
dos de forma proporcionalmente involuída, isto é, pela força, cerá e respeitará espontaneamente. Mas esta é uma meta dife-
que atinge as raias de ferocidade. Mas a função, não importa rente, um ponto a ser atingido. O ponto de partida é bem dife-
qual seja a forma que ela deva assumir de acordo com o grau rente, e o mundo atual está entre os dois.
evolutivo dos povos, deve estar sempre presente. Assim se ex- A autoridade, geralmente, nasce da força e da violência, as-
plica como alguns fortes, que polarizam em torno de si os po- sim como a propriedade, frequentemente, nasce do furto. Mas,
vos, tenham sido eliminados por outros mais poderosos, quan- com isto, o poder não cessa de desempenhar a função de uma
do, por opressão ou abuso, traíram através da tirania a sua mis- primeira ordenação e disciplinamento da sociedade humana.
são ou, por uma razão qualquer, deixaram de ter cumprido a Não é possível esperar mais de uma humanidade involuída.
função de dirigir e proteger, que a vida lhes confiou. Como se Em nosso ciclo histórico, o princípio da autoridade está ama-
vê, trata-se de reações biológicas automáticas, que todas as durecendo, de modo a passar da sua primitiva fase de violência
afirmações históricas de poder por direito divino não podem e opressão à fase futura de missão. Quantas lutas serão ainda
conter, mal a missão e a função cessem. No dia em que um go- necessárias para atingi-la! Através de cada forma política, a
verno e uma classe dirigente comecem a viver só para si pró- vida matura alguns dos diversos aspectos e faz uma conquista
prios e não mais para a nação, iniciam o próprio suicídio. diferente. O nosso tipo de poder ressente-se das suas origens e
Quem, pois, na essência, atribui e retira o poder não são os se apoia na força, sem a qual não se poderá manter, mas tam-
homens, não importa qual seja o sistema político, mas as forças bém possui o pressentimento do seu futuro. De fato, mal se te-
biológicas. Elas proporcionam o grau evolutivo dos governan- nha consolidado pela força, procura formar uma corrente favo-
tes ao dos governados e dispensam um servidor que tenha se rável de opinião pública, um consenso geral, porque já admite
tornado inútil, quaisquer sejam as defesas que a sua posição de o poderio de uma outra força, que se torna cada vez maior com
comando lhe tenha facultado acumular e usar para permanecer a formação da consciência coletiva: a força de persuasão. Mas
artificialmente no posto. A vida não nutre mais essas formas, isto só se dá em um segundo tempo, após a estabilização pela
disseca e as enfraquece interiormente, chamando à ribalta da força, seja esta bruta, econômica ou do pensamento diretivo,
história os elementos adaptados, que lhes dão o último golpe. mas sempre força, sem o que não pode haver conquista, por
Tais são as leis biológicas que regem a política de todos os mais que se queira mascará-la sob os mais diversos métodos.
tempos e lugares e a que todos estão sujeitos. Não há barreira É verdade que os governantes são os servos da vida, mas
legal que possa sustar o seu irrompimento, pois que, de uma aquele que hoje quisesse exercitar o poder sem uma porcenta-
forma ou de outra, elas prevalecem sempre. gem de egoísmo centralizador e impositivo, pretendendo em-
A primeira afirmação de todo novo governo é dizer: eu re- pregar apenas um método evoluído da função e missão, anteci-
presento a nação. E isto é verdade, até que apareça um outro par-se-ia demais à psicologia dominante e fracassaria. O tipo
mais forte e mais adaptado que diga o mesmo. Desta forma, os biológico atual médio não pode compreender os deveres, senão
homens e as classes sociais vão ocupando na história uma po- quando impostos pela força e pela ameaça em prejuízo próprio.
sição de autoridade que eles afirmam por si mesmos, mas que, O uso da espada, dada a imaturidade prevalecente, faz parte do
na realidade, despersonaliza-se e só subsiste e tem valor como poder. Este, como o centro e o núcleo, é de sinal positivo, ou
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 137
seja, é másculo. Assim sendo, elimina da sua função o espírito que admirar-se, então, que, em um tal mundo, quem haja con-
de amor e de sacrifício, que é feminil, isto é, próprio dos ele- seguido, só Deus sabe com que esforço, conquistar um poder
mentos que giram na periferia e possuem nível negativo. Esta ou um posto qualquer de autoridade, não seja levado a pôr em
não poderá ser jamais a vitalidade dos governantes, que devem primeiro plano o gozo do prêmio das próprias fadigas? A defe-
ter um viril espírito de justiça. E eis que o poder, ao lado da es- sa de infinitos rivais custa não pouco trabalho. A empresa é ar-
pada, não exibe um coração, mas uma balança. A ele não se riscada, a posição incerta. Como se pode, ao invés de procurar
pode pedir sacrifício e amor, pois que o instinto dos povos pede aproveitar-se logo, pensar no bem do povo e no exercício de
força e justiça. Os dirigentes, muitos temos, são hoje chamados uma função-missão? Isto exigiria uma estabilidade, um respei-
pelos fatos a esta realidade biológica, que é a base das respostas to, uma compreensão, uma consciência que o homem atual nem
e reações aos próprios atos da parte dos súditos. É lógico que o mesmo imagina ainda. Ao contrário, só a força comanda. Se
atual sistema do poder esteja ligado com a força e continue existe um poder forte, então há ordem, mas ela se chama tirania
com esta ligação. A força está sempre pronta a recair contra e sujeição. Se ele se desagrega, todos se sentem livres e, então,
quem a emprega (―quem usa a espada morrerá pela espada‖), surge a desordem, a luta, o caos. Como se pode pretender que
por isto quem possui o poder não tem outra defesa senão uma uma disciplina social possa agir, nesta fase evolutiva, sem um
outra força maior. Se não a possui, está perdido. É uma fatal absolutismo que se imponha pela força? Bela seria realmente
consequência do sistema que se move sobre tais elementos. uma ordem de seres livres!
Força de qualquer gênero, mas que mostre a sua real potência e Mas, para isto, o homem de hoje está ainda absolutamente
superioridade. Se faltar, outros extratos sociais surgem, para imaturo. A disciplina social necessária à vida das nações, qual-
operar a substituição. A primeira arremetida é dos mais involu- quer seja o seu regime de governo, não se pode obter, na fase
ídos, senhores somente da utilização da força bruta, pois, ainda atual de civilização, pelas vias da liberdade da consciência, mas
que possuam também a econômica, falta-lhes, para usá-la, a in- somente por meio da coação. A força é um elemento necessário
teligência organizadora. Eles duram pouco. De fato, em geral, à educação do homem inferior, incapaz de compreender outro
as revoluções devoram os próprios filhos. Estes, assim, exau- meio. Por isto a vida ainda a admite, porém não mais irá admi-
rem a função de aplainar o caminho para elementos mais adap- ti-la amanhã, com o homem evoluído. É elemento necessário
tados, da segunda ou terceira arremetida, que são os que resis- hoje, porque a disciplina, em qualquer organização de elemen-
tem e com mais critério permanecem. Em suma, a vida deixa a tos, quer se trate de homens, de átomos ou estrelas, é indispen-
função de comando à uma classe involuída o bastante para ter sável. Todo o universo não nos dá um exemplo patente?
afinidade com as massas, mas evoluída o suficiente para poder
assumir o encargo de fazê-las evoluir. XXIII. CRISE DE CIVILIZAÇÃO
A função está, pois, biologicamente aberta a todos, mas
é reservada pela vida ao mais adaptado. Este, ou bem a desem- Os erros humanos e as dores que naturalmente se seguem
penha, ou paga com a própria vida, sendo mantido na incum- dependem, em toda a sua multiplicidade, de um único erro fun-
bência enquanto pode executá-la, após o que é liquidado. Re- damental a que eles se podem reportar, erro dado por uma ati-
sulta disso um vai e vem de homens, um contínuo fluxo e re- tude psicológica de revolta às leis divinas que regem o mundo,
fluxo, uma cadeia de lutas redentoras, de quedas espantosas e a ponto mesmo de negar-lhes a existência. Instaura-se assim, na
de ascensões incríveis. Tudo isto não é fortuna, nem acaso. É Terra, em qualquer campo de atividade, um regime de desor-
função, é a lógica da vida. Mudam apenas as formas, os meios, dem e, consequentemente, de sofrimento, enquanto que a lei
as dimensões. O motivo, enquanto o homem não se elevar a divina é feita somente de ordem e a ela, que é base da felicida-
outros graus de evolução, é sempre o mesmo. Tudo se passa de, propende permanentemente. Essa lei restaura a cada passo
em turnos, porque, segundo a própria Lei, igual para todos, os as destruições que a ignorância do homem opera em dano dele
famélicos recém-chegados suavizam os próprios costumes e se próprio; procura, através das reações que infligem dor, fazê-lo
exaurem no próprio bem-estar, caindo por sua vez vítimas de compreender que só na ordem pode estar e estará a sua felici-
outros novos que chegam. Assim como as ondas do mar, as vá- dade; busca sua compreensão, como é necessário para um ser
rias formas políticas se sucedem e se sobrepõem no oceano da que deve permanecer livre e tornar-se consciente, não devendo
história. Assim se forma o tipo da atual seleção biológica hu- ser manobrado como um autômato. O erro e a dor dependem da
mana, operando sobretudo no plano animal; seleção ativa no liberdade, grande dom por Deus concedido ao homem, mas
campo político-social, bem como em todos os outros campos: grave perigo enquanto o homem, por não saber utilizá-la, dela
orgânico, econômico, intelectual etc. Desse modo, a vida mar- abuse. Liberdade que nos custa grandes dores, mas sem a qual
tela as multidões, a fim de que, ativas ou passivas, despendam não haveria experiência própria nem conquista de consciência.
centelhas criadoras e assim, na diuturna atividade afanosa, pe- Grande dom de Deus, com o qual Ele nos coloca no grau de
jada de conquistas, golpes e dores, elas evoluam. seus colaboradores na divina e eterna obra de criação, elevan-
A vida é sábia e justa. Faz sempre o melhor possível com o do-nos à dignidade de seus ministros. Mas quanto deverá sofrer
mínimo esforço, segundo os elementos de que dispõe, dados o homem antes de conseguir tornar-se digno d'Ele! E bendita
pelo grau evolutivo de cada povo. Ela não pode dar-lhe uma seja a irmã dor, que, para o bem dele, o educa e o impele, pelas
forma de governo superior ao que este pode compreender. Co- vias da liberdade da consciência, a seguir os caminhos que o
mo pode o cérebro evoluir por si só, para formas superiores, se, conduzirão à própria felicidade!
paralelamente, não evolui todo o corpo? Tudo é conexo e inter- É inútil repetir hoje estas coisas em nosso mundo. A maio-
dependente em uma nação. Méritos e culpas não constituem ria, que é involuída, não pode compreendê-las. Já se fizeram
jamais um fato isolado. Só um povo de santos poderia pretender muitas pregações a este respeito, e pouca atenção se lhes dá
um governo de santo. A involução é de todas as partes, e quem agora. A palavra cabe, neste momento, à irmã e mesma dor, pa-
acusa usa os métodos do acusado. O egoísmo está presente em ra que ela, azorragando a adorada carne, consiga desatar o espí-
todos. Dirigentes e dependentes estão habituados a considerar- rito e induzi-lo a refletir e compreender. Esta é a dura realidade.
se falsos e inimigos. Todos são adestrados para combater uns De nenhum resultado valerá pretender passar sobre ela com mil
contra os outros. As nações não se fabricam com poucos ho- astutos expedientes, à procura de evasão, porque ela depende
mens dirigentes, mas com as forças espirituais das massas. O das leis da vida, que ao homem não é dado alterar. Elas sabem a
que se pode pretender, se tudo se baseia na força, no direito de meta benéfica que se deve atingir, e, quando o homem não quer
conquista, e não na compreensão, disciplina e colaboração? Por compreender, certos desastres são necessários.
138 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
Já vimos os vários aspectos humanos desse erro fundamen- tes, desaparece a finalidade, falta o porvir, freia-se a evolução e,
tal, feito de orgulho e de rebelião, isto é: l o) O erro moral, de com a evolução, a vida. O ideal do ventre e do prazer não bas-
não compreender a lei divina; 2o) O erro científico, especial- tam para regê-la. O ―carpe diem‖31 é a renúncia ao progresso, é
mente no campo médico, do qual depende a nossa saúde física; a inconsciência sem esperança. Sente-se que hoje falta alguma
3o) O erro político-social, causa de guerras e de revoluções. Ve- coisa, ainda que imponderável: é a atmosfera em que o espírito
jamos agora o 4o aspecto: o erro intelectual, que desorienta todo respira e sem a qual sufoca. A filosofia materialista prosperou
o pensamento moderno. Eles são quatro formas de desordem no vasto terreno dos mais baixos instintos, fazendo largo e am-
que violam a Lei, do que derivam varias carências ou privações plo apelo à animalidade do involuído; engodou-o, iludindo-o
de bens, ou seja: 1o) Miséria material; 2o) Aumento de molés- com a libertação da fadiga de evoluir, ou seja, com a possibili-
tias; 3o) Destruição bélica e revolucionaria; 4o) Desorientação dade de construir um amanhã mais elevado e feliz sem trabalho,
espiritual, que atinge as raias da loucura. prometendo dar-lhe rapidamente um paraíso na Terra por meio
No campo intelectual, o erro moderno, baseado no orgulho, das conquistas sociais e da técnica científica. E tudo isto acabou
assume a forma de racionalismo. Esta é a forma mental do nos- em revoluções e guerras; paraíso nenhum, mas ódios e destrui-
so século, que nela se encerrou sem saber como sair. É uma ção infernais! O materialismo, atingindo as suas últimas conse-
forma que teve a sua grande função, na qual, porém, os recur- quências, fracassou por ter mentido. Está liquidado.
sos espirituais do homem não se podem esgotar. A razão repre- Urge mudar de rota. Esta crise não se resolve pelos velhos
senta, na fase relativa e transitória da personalidade humana, processos, destinando novas complicações de nacionalismos
um meio de construção da consciência, que deve ser abandona- guiados pelo mesmo espírito egocêntrico. Não se trata aqui de
do depois de conseguido o objetivo. Na realidade, possuímos novos sistemas racionais, mas da ruína desse tipo de sistema. É
um vir-a-ser psicológico relativo, em um contínuo processo de exatamente toda a orientação da faculdade humana especulativa
superação, vir-a-ser de que o racionalismo não é mais que um que está em crise. As tentativas atuais são apenas as últimas as-
particular momento, ao qual se pretende conferir um valor ab- persões de uma forma mental que se extingue. É necessário
soluto e definitivo. O racionalismo é uma forma de pensamento descer ainda em dor e treva. A sapiência do rebelde só pode
destinada a esgotar-se na sua função construtiva e que não pos- acabar na confusão babélica. O colapso é inevitável. No fundo,
sui valor senão relacionado a esta. Ora, em nada se vê tanto o esperam o caos, a loucura, a desesperação. É necessário reco-
aspecto luciferiano do espírito de orgulho e de rebelião quanto lher e comer os frutos envenenados do egoísmo e do ódio, se-
neste racionalismo, que substituiu o eu a Deus e o querer hu- meados pelo orgulho e pelo espírito de revolta, antes de poder
mano às leis da vida. Pretender-se-ia assim dominar a eternida- subir de novo pelas vias construtivas da fé e do amor. É neces-
de, reduzindo-a à forma do nosso presente, e o absoluto, redu- sário lançar-se em direção oposta, da periferia ao centro, da
zindo-o e encerrando-o nos termos do nosso relativo. O racio- forma à substância, retornando a Deus. O homem já experimen-
nalismo atual não é um racionalismo são, dirigido à compreen- tou nas idades pré-históricas o seu juvenil ciclo intuitivo instru-
são da lei de Deus, harmônico e sábio, mas um racionalismo tivo. Superou-o no ciclo de forma mental racionalista, em que
rebelde, que torna o homem centro e senhor de tudo, fazendo da conquistou o uso consciente do seu eu. Deve ainda superar este
vida um fim em si mesmo, e não um meio subordinado a metas ciclo em um novo, intuitivo-consciente, em que o espírito volte
superiores. A culpa não está em admitir que, se Deus nos deu ao contato com a divina essência das coisas, mas dando-se con-
uma inteligência, é justamente para que possamos usá-la no ta disto analiticamente, por meio dos poderes da racionalidade
pensamento. A culpa está no pensamento exclusivista, egocên- conquistada. É um caminhar para Deus não mais apenas através
trico e rebelde, no pensamento autônomo, que não se dirige pa- da fé, mas também através da ciência. O atual antagonismo en-
ra um conhecimento sempre mais profundo das leis do ser, ex- tre ciência e fé não passa da contraposição de um momento,
pressão do pensamento de Deus, para depois segui-las com sa- que não exprime senão o presente contraste entre Deus e o eu.
bedoria. Está na pretensão de descobrir essas leis com o fim di- Que grande coisa tornar-se-á a ciência quando este tão miserá-
tado por seu instinto animal de luta, que não se apercebe do es- vel contraste for superado e ela, não mais egocêntrica, isolada
pantoso erro em que recai e das terríveis consequências de sua em seu realismo, entrar em contato com Deus, para nos mostrar
atitude. A vida se transtorna por isto, e os resultados, sendo a grandeza d'Ele e do Seu amor, penetrando, com o estudo dos
movimento em direção contrária à da Lei, oferecem carência ao fenômenos, na profundeza do seu pensamento diretor! Que
invés de abundância. Acredita-se construir e, contrariamente, se quadro estupendo ela poderá então mostrar-nos do funciona-
destrói. Já vimos os mais tremendos absurdos devidos ao racio- mento orgânico do universo e, com que vantagem para nós, po-
cínio. Em face dessas raízes intelectuais, pode-se definir o nos- derá assim precisar, nesse universo, a nossa posição, atividades
so momento histórico como a face luciferiana da negação, a ho- e fins éticos, espirituais, sociais e biológicos. Os caminhos da
ra da desorganização social e da liquidação dos valores éticos, a razão, analítica e fragmentária na sua objetividade, são pouco
hora da aventura e da inconsciência, em que se antepõe o hoje adequados para nos levar mais alto, até Deus, sendo mais adap-
ao amanhã. É um mundo fadado a ruir na desordem. tados para nos fazer permanecer aderentes ao conceito, à forma
O movimento é profundo e grave. Ele possui um significado e à prática utilitária. Só os caminhos da intuição sintética e uni-
biológico de crise de civilização, de laboriosa conclusão de uma ficadora são capazes de nos aproximar da concepção e da sen-
fase evolutiva. Em nosso nervoso dinamismo parece que a vida sação de Deus. Quando o homem tiver superado o processo ra-
eleva a sua temperatura, para poder despender um esforço de- cional, tão relativo e indireto, e souber seguir, com método ci-
sesperado de superação. Na verdade, são ânsias do enfermo que entífico e maior maturidade espiritual, as vias da intuição sinté-
se debate na febre. Um outro erro está em acreditar que se trate tica e instantânea, quanto melhor poderá compreender Deus
de orientações particulares e de questões de detalhe, que podem onipotente! Não se trata de destruir a razão, laboriosa e preciosa
ser resolvidas com retoques no passado, utilizando os métodos e conquista que não se pode desperdiçar, mas de completar e con-
a psicologia do passado. Trata-se, ao invés, de uma crise da vida tinuar a evolução do racionalismo com os meios da fé, que se
humana, de fim do mundo atual e do início de um novo ciclo bi- tornará assim iluminada e consciente, fundida com a razão, que
ológico, baseado em princípio inteiramente diverso. permanecerá então como sua escrava.
A atual posição da psicologia humana exauriu a sua função, Conceber Deus com uma nova aproximação de precisão e
não tem mais amanhã, pois, como ela é, não pode mais evolver. profundidade; senti-Lo presente não mais vaga e instintivamente,
Sente-se este vazio de desconfiança, e procura-se por um ama-
31
nhã. O racionalismo materialista suprimiu os ideais, e, sem es- ―Aproveita o dia‖ (N do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 139
como na primordial fase pré-racional, mas ostentando todo o po- ruínas. A nossa é uma hora negativa, de inversão satânica de to-
der da fase racional, por tê-la atravessado, assimilado e superado; dos os valores, até à derrocada. A palavra de ordem é: destruir.
sentir Deus por intuição de fé confirmada e compreendida por Tal é o fruto da teoria do super-homem, expressão do século. O
consciência analítica e racional; usar o eu científico moderno sem paraíso do bem-estar material, ao invés de se aproximar, afas-
diminuí-lo, com toda a sua razão intacta, diante de Deus – esta é tou-se. Usamos da liberdade para caminhar contra, e não segun-
a grande orientação e conquista biológica do homem de amanhã. do a Lei. Agora ela está contra nós. Nada mais resta senão pagar
Que laboriosa época a nossa, em que, entre tantos desfazi- e recomeçar pela via oposta. Hoje, de novo, a razão crucificou
mentos, tantas novas sementes devam germinar; que profunda Cristo. Agora, a vida crucifica a razão, para nos reconduzir a
ansiedade hoje, na vida humana, entre a morte e a ressurreição! Cristo. Não se compreendeu que, crucificando-se a Cristo, não a
Momento histórico bifronte, híbrido, contrastante, feito de des- carne mas o espírito, crucificamos a vida e, com a vida, a nós
truição e criação. Os velhos arcabouços perderam a grande força mesmos. Não se compreendeu que, calcando aos pés a Lei e a
do espírito. Não se sabe se, assim, sem alma, ruirão ou se sabe- evolução, aprisionamos o nosso futuro e a nossa felicidade e
rão construir uma nova estrutura. Não se sabe se o espírito emi- que, traindo Deus, traímos o nosso bem. Esta é a traição de Ju-
grará deles e de que forma irá ressurgir. Desse oceano em ebuli- das, rebelde ao amor divino, e ela nos perseguirá no ódio e na
ção de tantos elementos velhos e novos, de frutos em putrefação violência, como nossa herança atual. Ela nos perseguirá, desfa-
e tenros germes, que irá a vida fazer, que nova ordem de tudo is- zendo os nossos laços sociais, porque violamos a lei do amor
to ela quererá hoje estabelecer, como do caos primordial que fraterno; punir-nos-á com a destruição, porque acreditamos na
construiu o nosso mundo atual – não o sabemos! Mas é certo força; com a miséria, porque adoramos a riqueza; com a servi-
que algo de apocalíptico está acontecendo. Enquanto as massas dão, porque abusamos da liberdade. Invertemos a direção da via
deliram, os poucos que veem contêm, tremendo, a respiração, aberta por Deus à necessidade de desenvolvimento e expansão
numa expectativa ansiosa pelo resultado desta apocalíptica aven- material, indo ao encontro do irmão, não com amor, mas com
tura da vida, de que depende a história dos futuros milênios. ódio. Assim, o homem, apanhado nas esferas de uma ilusão sa-
É certo que o espírito deverá vencer, mas é certo também tânica, para crescer e subir, encerrou-se em um cárcere erguido
que o pecado capital do nosso século foi grave. Ele foi o orgu- pelas próprias mãos. E a luta se torna cada vez mais desesperada
lho de Lúcifer. O homem quis desobedecer à lei de Deus, co- contra as paredes de aço. As portas da vida, que se abrem pelo
mer de novo o fruto proibido, isto é, tornar-se árbitro do bem e amor, cerraram-se com o ódio, e cada qual ficou aprisionado em
do mal, fazer-se Deus e lei. E agora é expulso e arredado ainda um isolamento desesperado. A vida imensa palpita vizinha, mas
a maior distância do paraíso, no inferno terrestre que desejou. é vedado participar dela, porque o eu, isolado em egoísmo, não
Andar não segundo a Lei, do eu para Deus, mas às avessas, de pode mais comunicar-se senão sob a forma negativa de ódio e
Deus para o eu, é também um grande erro biológico, que se pa- agressão. Todos se repelem, agridem-se, dilaceram-se. A Terra
ga com a morte espiritual do eu que pretende endeusar-se. se transformou no inferno. Os homens, tornados demônios, de-
Todo pecado traz a própria punição, voltando-se automati- batem-se cada vez mais e, quanto mais ofendem, tanto mais se
camente contra quem o comete. O Evangelho de Cristo não é defrontam com ofensas; quanto mais odeiam, tanto mais se sen-
uma consolação para os deserdados, uma substituição às alegri- tem odiados; quanto mais se agitam para libertar-se, mais sen-
as da vida, deslocadas no futuro e no céu, mas exprime uma re- tem que se aperta o nó que lhes constringe a garganta; quanto
alidade biológica, porque indica as vias da evolução. O amor mais difunde o mal, tanto mais encontra e recebe o mal. Assalta-
fraterno não é um sonho político, mas a base das futuras orga- se pela desesperada ânsia de evasão, e cada assalto volta-se con-
nizações sociais. Antepondo-se ao tipo biológico superior, tra- tra quem o realizou. A destruição contra o próximo torna-se au-
çado como ideal humano pelo Evangelho, o nosso tempo erigiu tonegação e suicídio. Assim, cada qual acaba por ferir-se a si
em bandeira um tipo de super-homem que representa a luciferi- mesmo e envenenar-se com o próprio veneno. A cada novo im-
ana divinização do eu e se substitui à sabedoria e bondade de pulso egoísta, o indivíduo se encontra mais prisioneiro de si
Deus, com os seus opostos instintos bestiais. É a divinização do mesmo, mais armado e feroz contra si próprio. Desta maneira, o
bruto. Nietzsche acreditou matar Deus e exterminou a Alema- circuito de forças tende a cerrar-se mais estreitamente, para re-
nha. Tal moderna psicologia de domínio destruiu a Europa e solver-se na catástrofe de quem se fez centro e senhor de tudo.
gerou o crepúsculo de sua civilização. Assim, perde-se o eu que a si sacrificou Deus.
Se o observamos de perto, em substância, esse super- Não se detém um projétil lançado. Os movimentos históri-
homem não passa de um paupérrimo e mortal burguês, ávido de cos, uma vez iniciados, possuem uma trajetória e transcurso fa-
bens terrenos, que se atira contra os bens do próximo, cúpido e tais. O homem, que acreditou crucificar a Lei e destruir Deus,
famélico, mas que, não sabendo deles saciar-se, não pode al- encravou-se por si mesmo em sua cruz e destruiu o seu eu. Não
cançar os mais nutritivos do céu. Fica assim a meio caminho, se pode mercadejar com o espírito. Os homens que só acredi-
impotente e insatisfeito. É um pobre homem ávido de evasão, tam na força eliminar-se-ão entre si pela força; aqueles que só
mas que a procura às avessas, não suspeitando, porque não pos- adoram a riqueza acabarão na miséria; os que creem no orgulho
sui a força moral necessária, da possibilidade de superação. serão atirados na humildade. Penitência que só depois poderão
Lama e miséria. Ele odeia a Terra e desejaria o céu, mas não o compreender e dela surgir purificados. Poder-se-á fazer que se
compreende e, porque não o compreende, também o odeia, calem os homens que assim falam, mas não se pode destruir as
permanecendo onde está e de onde desejaria sair. Está sedento leis da vida, que assim funcionam. O homem poderá viver na
de infinito, mas, com seu sistema, fechou-lhe as portas, perma- desordem, na aventura do ''carpe diem‖, mas não o pode a vida,
necendo escravo a ranger os dentes, impotente para se evadir. A que sabe o que faz e prepara sempre um amanhã. Quem inverte
trágica ironia de semelhante super-homem, que despreza a caminha às avessas, quem se faz Deus por Deus é punido. Nas
Deus e toda a moral, colocando-se além do bem e do mal, está misteriosas profundezas da vida jaz uma indomável vontade de
em que, na realidade, ele é um mutilado, cujo rugido leonino correção dos erros humanos a qualquer custo, para o nosso
não passa de um lamento de desespero que invoca a vida. É um bem. Então, a nova civilização que nos espera não pode deixar
fraco e um vencido, que estadeia potência e vitória para iludir- de ser a antítese da atual, um mundo novo. Não se trata de reto-
se a si mesmo, achando que as possui. ques, de uma civilização presente corrigida, mas de dois ciclos
Eis o campeão e os resultados da civilização da matéria. A antagônicos, ainda que complementares, duas épocas que se
evolução foi traída. Não se pode mais subir por tal caminho. A contrastam, a velha e a nova. Os seus representantes se medem
história foi assim ligada agora a um destino de involução e de e se batem. O fim e o princípio lutam pela vida. Naturalmente,
140 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
o novo, por lei de evolução, ainda que menos armado e experi- aventura, agindo ao acaso, desordenadamente, fazendo o que
ente, acabará vencendo o velho. A vida confia a cada século um pode e até mais do que pode. No entanto é evidente que a solu-
encargo especial. Ao nosso tempo cumpre a função de criar a ção do problema do sucesso não está no uso arbitrário e desor-
máquina e a técnica, para conseguir amanhã a emancipação do denado, ainda que enérgico e decidido, daquele quarto de ele-
trabalho material. Isto para que o tempo futuro possa desempe- mentos que dispomos, mas sim no conhecimento e, por conse-
nhar uma função diversa, que será a de, com todos os meios guinte, na sábia manobra dos elementos contidos nos outros
conquistados, criar no ilimitado campo do espírito, para onde a três quartos, que nos escapam. O que se encerra nesses três
evolução avança e onde está o futuro do mundo. quartos ignorados? É isto que é necessário conhecer.
Quisemos, assim, com estes capítulos sobre os erros huma- Quantas coisas imprevisíveis espreitam, para o bem e para o
nos (capítulos nascidos como uma série de artigos para revis- mal, como alegria e dor, nesse imponderável, que do mistério
tas), examinar o advento de uma nova civilização pelo seu lado guia grande parte da nossa vida! Ao lado da zona que enxerga-
negativo e preparatório, isto é, pela derrocada da atual, procu- mos bem definida, das coisas por nós pretendidas, quão vasto
rando observar os erros e perspectivas dados pela forma mental campo se estende, onde domina a assim chamada circunstância,
do nosso mundo presente, para poder melhor compreender qual surpresa, fortuna ou desventura! A maioria, ignara e simplista,
será o futuro que nos espera. atribui todas estas coisas ao acaso. Ora, quem diz acaso, con-
fessa a própria ignorância. Para quem sabe ver nas profundezas,
XXIV. COMO FUNCIONA O IMPONDERÁVEL a estrutura da vida surge bem diversa. Um tal abandono desre-
grado, uma semelhante falta de direção, um funcionamento tão
O mundo hodierno, inquieto e cético, não imagina a presença fora de leis, confiado à desordem, seria absurdo. A direção, que
do imponderável também em meio às coisas da vida cotidiana. É é ato positivo, não pode ser entregue a um elemento negativo,
a esse mundo que desejamos hoje falar disso, de maneira práti- que não se mantém por si mesmo e só existe como contraposi-
ca, segundo a sua psicologia. Do imponderável muito se falou, ção. A negação da vida não pode ter a força de reger a perene
especialmente durante a guerra, quase como de um elemento de afirmação criativa da vida. Assim como o nada não existe senão
vitória. Mas se falou com critério tão materialista, para finalida- relativamente, como condição do ser, o acaso também não é
de tão anti-humanas, com um tal falseamento do seu verdadeiro concebível senão como desordem enquadrada na função de
significado espiritual, como já sucedeu para a palavra mística e uma ordem mais vasta, que o circunscreve e, ordenadamente, o
outras, que a própria credibilidade desse imponderável acabou guia em demanda de finalidades superiores. Tudo no universo,
por ficar confusa e alterada, tornando-se ele também uma das mesmo o que parece indisciplinado e casual, é regulado por
muitas mentiras a que se reduziram hoje os mais preciosos valo- normas. Todas as forças se movem por concatenação em busca
res espirituais. Foi assim que desse tão invocado imponderável de uma precisa finalidade, segundo o princípio de causa e efei-
nada chegou a ser entendido, não se compreendeu, sobretudo, o to, mesmo onde elas surgem ainda no estado caótico, próprio
seu funcionamento, a ponto de, como vimos, depois de ter sido das fases mais involuídas, pois que, íntimos e ocultos, o pensa-
tão invocado em benefício próprio, ele funcionou precisamente mento e a vontade de Deus mantém as rédeas e regem o caos. É
no sentido oposto, justamente em prejuízo de quem mais o invo- só por este motivo que o chamado caos, em vez de se dissolver
cava. Isto mostra que não se pode brincar com o imponderável, num redemoinho infernal de forças inimigas, desfazendo-se em
pois ele é uma força poderosa e terrível, que pode estar conosco nada, evolui gradativamente, disciplinando-se em uma ordem
ou contra nós, segundo a posição em que nos colocamos em re- cada vez mais evidente, onde se manifesta a presença de Deus.
lação a ele. Procuremos compreender do que se trata. O imponderável não é, pois, o acaso ou a desordem, mas sim
Quando pretendemos realizar um objetivo qualquer, de um uma lei, uma ordem que não conhecemos.
lado existe a nossa necessidade e o nosso desejo e, de outro, um O problema consiste, pois, em penetrar a Lei nesse funcio-
plano instintivo e racional, ambos visando a conseguir a satis- namento por nós ignorado. O que é a vida de um homem? Não
fação do objetivo. Mas quanto esse plano não envolverá, face é certamente um fenômeno estático. É um feixe de forças em
ao oceano de incógnitas que nos circunda? E essas incógnitas movimento. Dado o princípio de causalidade, o problema resi-
são forças presentes, reais e ativas, de tal ordem que, a cada ins- de em conhecer a natureza e as características de cada uma
tante, podem desviar o transcurso dos nossos planos, interferir dessas forças, quais elas são hoje, e o caminho por elas percor-
na série de atos por nós coordenados, introduzindo-lhe novos rido até ao presente. Só assim poderemos saber aquilo que elas
impulsos, que, provindos do ignoto, são para nós imprevisíveis. poderão ser amanhã. Trata-se de conhecer a nós mesmos, co-
Para poder compreender e definir o imponderável, é necessário nhecer a personalidade humana em geral e, depois, a do pró-
penetrar esse ignoto. Os desvios por ele introduzidos, que nós prio caso particular. O homem não conhece nem uma nem ou-
não logramos prever, porque nos escapam seus elementos, mais tra. Trata-se de impulsos recentes e longínquos, muito distan-
poderosos do que nós, assediam-nos a cada passo, tanto nos pe- tes, de natureza e potência diferentes, sempre em contínuo
quenos eventos individuais de cada dia como nos grandes acon- movimento e desenvolvimento. Trata-se de forças nossas e
tecimentos da história, conferindo à nossa vida um contínuo to- alheias, entrelaçadas por uma contínua interdependência de
que de incerteza. Efetivamente, jamais estamos verdadeiramen- ação e reação, condensadas em determinismos, fixadas por
te seguros, quando colocamos em execução um projeto qual- longa repetição de atos em automatismos e instintos, mas tam-
quer, se conseguiremos chegar aonde pretendíamos ou se sere- bém de forças ainda livres, em formação, que só agora come-
mos levados a um ponto inteiramente diverso do fixado. Fre- çam a entrar no feixe dinâmico que constitui a personalidade
quentemente, uma coisa desejada com tenacidade e disputada humana, forças ainda fluidas, não cristalizadas no destino, que
com sagacidade não é conseguida, embora sabiamente prepara- continuamente construímos para nós mesmos. Como nos ori-
da, enquanto outras, que de início parecem apresentar-se com entarmos? Na verdade, o universo é indubitavelmente uma
mínima possibilidade de êxito, são às vezes, imprevistamente, grande orquestração de forças, imenso concerto em que, mais
coroadas de resultado pleno. Que, na realidade, os três quartos ou menos consciente, mais ou menos livre, segundo a sua evo-
dos elementos do sucesso nos escapam, é fato que todos conhe- lução e vontade, também o homem canta a sua nota. Cada ato,
cem. Nós nos agitamos, pois, às cegas, mantendo em nosso po- cada dia, cada vida segue e precede outro, como as ondas de
der apenas um quarto dos elementos do sucesso e, com tão um oceano interminável. Tudo está conexo no espaço e no
poucos trunfos na mão, tentamos conseguir tudo. Realmente tempo, tudo avança na grande marcha ascensional da evolução
tentamos. A maioria, que conhece essa incerteza, atira-se à para Deus, em demanda de fins individuais, porém objetivando
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 141
mais vastos fins coletivos, com uma hierarquia de finalidade amarelas e 25 verdes, a probabilidade de extração de cada um
orientando todos para o único centro: Deus! desses quatro tipos é de 25%. Se misturarmos 100 bolinhas de
Se o homem conhecesse todos esses elementos, que estão 100 tipos diversos, teremos a probabilidade de 1% para cada
nele e em seu derredor, por certo ele conheceria o seu futuro. uma delas. Uma outra observação. O cálculo de probabilida-
O conceito de acaso, caos e desordem não pode existir senão des nos permite admitir que a marcha do fenômeno no passa-
na forma mental do involuído. Somente nos graus de evolução do nos autoriza a crer em sua continuação no futuro, na mes-
superiores à humana pode-se possuir a capacidade de abarcar ma direção. No entanto o fato da vida basear-se no equilíbrio
tão vastos panoramas, que, ao homem do presente, dados os faz com que suceda exatamente o contrário. Quanto mais ve-
seus baixos instintos, são providencialmente vedados. Assim zes um fato se tiver verificado, menos se torna provável, pela
hoje, para ele, tudo o que se encontra fora do seu reduzido lei do equilíbrio, que ele continue a se verificar amanhã. Se-
campo de exercitações, necessárias ao seu progresso, confun- gundo uma universal lei de dualidade, a vida avança não pelo
de-se em um inextricável emaranhado, que o deixa em trevas acúmulo de casos, mas pela compensação dos contrários. Es-
profundas. Para ele, pois, a palavra imponderável só pode as- ta, e não aquela, é a verdadeira lei dos acontecimentos huma-
sumir um significado negativo, de ignoto e incognoscível, nos e é, pois, a lei do nosso destino. É a lei que vai desde a
quando, na realidade, ela encerra um conteúdo positivo e pre- grande compensação declarada por Cristo no Sermão da Mon-
cisamente definível. Mas, para alcançá-lo, é necessário ainda tanha ao fato de que, quanto maior número de vezes a sorte
evoluir, distanciando-se do atual estado de animalidade. O nos favorecer, mais difícil se torna continuarmos a ter êxito.
homem atual ainda não pode compreender isto porque ele se Estas são as leis da sorte, que de modo nenhum são cegas. O
encontra neste estado, que representa a sua forma mental, e homem comum supõe, no entanto, completamente o oposto.
um estado não pode ser percebido quando se está dentro dele, Quanto mais afortunado é, tanto mais adquire ares de ufania e
mas só quando se está fora ou quando se sai dele, iniciando confiança em si e mais se sente impelido a ousar, caminhando
um movimento de afastamento. Assim, pois, o homem do pre- assim em direção ao fracasso. Mas isto é exatamente conse-
sente navega num mar de incógnitas, onde a direção dos seus quência de uma lei a que ele inconscientemente obedece e que
eventos, individuais e coletivos, não pode ser confiada a ele, visa a estabelecer o equilíbrio. Assim, explica-se a derrocada
que é cego, mas é mantida pela sabedoria das leis de Deus. incrível de tantos e tão grandes triunfadores.
Todavia, para que lhe seja possível evoluir através de uma li- Sem querer entrar agora na questão, se um estado originário
vre experimentação, de maneira concreta e responsável, é dei- tenha oferecido, relativamente ao indivíduo, uma proporção de
xada a ele uma pequena fresta de luz, o quanto basta para ilu- 100% de felicidade e se deste estado ele tenha decaído a um
minar a estrada a ser percorrida. Nesta, ele compreende e es- percentual de 100% de dor, consistindo a evolução atual na re-
colhe, semeia e colhe, erra e paga, sofre as reações dentro das cuperação dos 100% de felicidade perdida, podemos hoje consi-
forças que possui, únicas que pode mover. O resto ele ignora e derar como ponto relativo de partida um estado de equilíbrio
não pode suportar. Tudo é determinismo fora do seu poder, atual em que, segundo a justiça, o destino de todo o homem con-
conhecimento e, por conseguinte, também responsabilidade, tenha 50 bolinhas brancas, ou probabilidades favoráveis de ale-
não lhe restando nada mais do que abandonar-se a Deus e à gria, e 50 bolinhas negras, ou probabilidades desfavoráveis de
Sua sabedoria. Ao homem foi confiado um determinado en- dor. Esta posição poderia ser, no estado atual de evolução, uma
cargo em um pequeno campo, para cultivá-lo, que é o seu pla- posição mediana de equilíbrio, para a qual a Lei tende hoje, não
neta. A direção do universo não lhe diz respeito senão na po- obstante qualquer desvio havido. Trata-se de uma ordem que,
sição de obediente espectador, pelo pouco que ele pode com- por mais variada que seja, inclina-se, automática e providenci-
preender. Completado o seu trabalho no âmbito estabelecido almente, a reconstruir-se. Não pretendemos indagar aqui se a Lei
pela lei de Deus, em favor da própria edificação, o resto per- pretende ainda mais, forçando a reconstituição dos 100% de fe-
tence a Ele, que distribui incumbências infinitas a uma infini- licidade. Aqui só interessa notar agora que a transformação do
dade de seres. Cumprido o seu dever, ao homem não resta se- nível dessa percentagem e os deslocamentos de equilíbrio po-
não entregar-se ao Pai Celeste, que demonstra imensa sabedo- dem ser operados pela livre conduta do homem. Era necessário,
ria na direção do universo, conduzindo-o são e esplêndido até para que o homem pudesse evoluir através da própria experiên-
aqui, como hoje o vemos, operando antes e sem o concurso do cia, que lhe fosse concedida a liberdade de violar a ordem, de
homem. E este, quando erra, deve aceitar de Deus a justa cor- modo que ele pudesse conhecer as consequências dolorosas do
reção, assim como fatalmente receberá a devida recompensa, erro e aprender a precaver-se. Em suma, a evolução visa a pro-
quando souber enquadrar-se na Sua ordem. duzir um ser consciente do bem e do mal, um homem que sabe,
Quando falamos de um imponderável cognoscível, devemos e não um autômato, por mais perfeito que seja.
referir-nos às incógnitas relativas ao homem, ao seu ambiente e Dado isto, sucede que, pela liberdade que Deus lhe conce-
ao universo, que se refletem nelas. Se nos contentarmos em es- deu, de abusar e errar para aprender, ainda que pagando por is-
quadrinhar esse imponderável que mais nos interessa, porque so duramente, o homem pôde distanciar-se mais ou menos do
está mais próximo de nós, relacionado com a nossa personali- equilíbrio da justiça divina, alterando nas suas diversas vidas
dade, maior será a possibilidade de alcançar o conhecimento. Já sucessivas a proporção básica do equilíbrio. O homem teve a
se tentou estabelecer, com os cálculos das probabilidades, a lei liberdade de deslocar, em seu risco e perigo, esses equilíbrios,
que regula o decurso dos acontecimentos. Mas esse cálculo se que tendem, no entanto, sempre a se refazer e aos quais a Lei
refere às formas mais simples, sendo uma abstração a que a rea- antecipadamente visa reconduzir. Sem atingir o caso limite da
lidade concreta está bem longe de corresponder. Nos aconteci- absorção completa, através da dor e da ascensão, das 50 boli-
mentos humanos, os elementos constitutivos são tantos e em nhas pretas, isto é, da felicidade absoluta em Deus, e sem tam-
tão grande parte ignorados, que aquele cálculo malogra comple- bém alcançar o caso limite oposto, da absorção completa, atra-
tamente no objetivo que colima. Reduzindo, todavia, o comple- vés do abuso e da queda, das 50 bolinhas brancas – ou seja, de
xo feixe de forças que constitui um destino à sua mais simples um lado a plenitude da vida voluntária e conscientemente con-
expressão, em forças favoráveis e contrárias, poderemos formar quistada e, de outro, a autodispersão no nada – atualmente, na
uma ideia de um provável desenvolvimento em uma dada vida. Terra, encontramos deslocamentos parciais de equilíbrio. Estes
Se misturarmos 50 bolinhas brancas e 50 negras, perfeita- deslocamentos são desequilíbrios que se fixam, ainda que transi-
mente iguais, a probabilidade teórica de extração de cada uma toriamente, no campo de forças do próprio destino, transmitin-
é de 50%. Se misturarmos 25 bolinhas brancas, 25 pretas, 25 do-se de vida em vida, na expectativa de correção. Formam-se,
142 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
assim, por nós mesmos fabricados, os destinos mais díspares, para conhecer qual será o êxito desta vida, saber os seus prece-
com desequilíbrios variados, para o bem ou para o mal. Estes dentes e, assim, conhecer a sua contabilidade no tempo, identifi-
destinos são o resultado final de todas as operações da vida, re- cando com que fardos de créditos ou débitos nascemos. Trata-se
sultado que se reflete intacto quando, com uma nova vida, se de coisa bem diversa de fortuna, de acaso ou de pura habilidade!
inicia uma nova conta. Assim, nascendo, cada um leva consigo o Compreender, compreender, compreender, eis o grande proble-
seu fardo. Seu, porque foi feito por ele, constituindo um peso ou ma. Mas o homem atual se ocupa de algo bem diverso. E, assim,
um auxílio, segundo o que praticou. O ponto de chegada de uma a Lei o guia e compele sem que ele nada compreenda.
vida é o ponto de partida da que se lhe segue. As conclusões de Que imensa bagagem de impulsos trazemos conosco, como
hoje tornam-se as premissas de amanhã. As convicções com que indivíduos e como povos! E isto em todo campo: moral, eco-
se encerraram a vida anterior formam o instinto com que, antes nômico, intelectual, orgânico e racial. Qualquer abuso, onde
de se dar conta, agirá na nova juventude. Desta forma, inconsci- quer que ele ocorra, gera a inversa, correspondente e proporci-
entemente, mas de acordo com o critério de justiça, plantaremos onada carência. Por isto, na Terra, todos sofrem, sentindo a fal-
a nossa nova vida nos fundamentos já amadurecidos em plena ta de coisas que abundam. Todo desenvolvimento unilateral de
consciência, tornando-nos consequência de nós mesmos. Tere- uma qualidade gera a necessidade de ser completado com de-
mos, assim, destinos felizes ou infelizes, destinos de alegria ou senvolvimento de uma capacidade oposta, através das experi-
de dor. Quem, por excesso de gozo, abusou da Lei pode contar ências. Por este motivo, na Terra, tantos se encontram desloca-
com um destino de 25 probabilidades de alegria contra 75 de dos, justamente para que possam experimentar e aprender em
dor, e assim por diante. Desta forma, construímos o nosso desti- campos que ainda são ignorantes. Eis o motivo por que tudo pa-
no livremente, vez por vez, carregando-o junto a nós, com toda a rece fora do lugar, dado que este não é o lugar de repouso, mas
nossa história nele inscrita, formando a base dos nossos créditos campo de treinamento; não é o lugar de colheita, mas de seme-
ou débitos. E, enquanto temos que fatalmente suportá-lo conti- adura. As nossas deficiências morais, tantas desgraças, a pobre-
nuamente, também podemos, continuamente, corrigi-lo a nosso za, a imbecilidade, mesmo as predisposições e vulnerabilidades
bel-prazer, para o bem ou para o mal no futuro. orgânicas, constituem outras tantas carências consequentes do
Eis como se pode fazer a análise do imponderável e penetrar abuso. O espetáculo do nosso mundo parece que pode ser intei-
no seu ignoto conteúdo. Tudo isto é verdadeiro tanto para os in- ramente resumido nestas duas palavras: abuso e carência. Tudo
divíduos como para os povos. Na realidade, o fenômeno não se aqui existe, mas mal distribuído. O abuso, tornando-nos sacia-
nos apresenta assim, reduzido para comodidade de observação, à dos, nos desgasta, nos enfraquece, abrindo as portas a todos os
sua mais simples expressão. Na prática, as forças que compõem assaltos patogênicos em qualquer campo, contra os quais não
um destino não possuem apenas duas cores, mas muitas outras. nos encontramos prevenidos pelas naturais defesas, que foram
Não se trata somente de alegria ou de dor, embora sejam elas por nós demolidas. O mau uso inverte os impulsos da vida, que
fundamentais, mas também de variadíssimas qualidades adqui- assim não estão mais conosco, mas se põem contra nós. Qual é
ridas, das mais variadas especializações e atitudes, segundo as o nosso passado humano? A história nos diz que ele, com fre-
atividades desenvolvidas e as tarefas a cumprir. É um fato que quência, é horrendo. Que podemos esperar da vida com seme-
os destinos, excetuando os cinzentos da nulidade, apresentam- lhante fardo às costas? Ademais, é o dinamismo íntimo da pró-
se-nos orientados, típicos, individualizados por uma cor própria pria personalidade que atrai as forças do ambiente e torna-se o
dominante, por uma tendência ou um dado gênero de experiên- núcleo em torno do qual se configura a veste material de for-
cias. Em outros termos, as forças constitutivas são diversamente mas, aquelas onde a nossa observação se detém e que conferem
coordenadas, formam um organismo com uma vontade de al- solidez e resistência concreta ao imponderável. Se este nos pa-
cançar uma dada direção. A realidade exterior, em que todos se rece inimigo e a Terra um lugar em que se pena, é também ver-
baseiam, não é mais do que uma veste, um cenário transitório, dade que ela pode ser um purgatório, ambiente de redenção. Se
que não serve senão para dar corpo a esse desenvolvimento de à Terra os involuídos podem realmente vir para gozar e os
forças. É natural, pois, que se defronte por fim com uma ilusão malvados para se arruinarem, imergindo cada vez mais no mal,
quem troque essa forma concreta por toda a realidade. é também verdade que os evoluídos podem vir para se purificar
Portanto, para poder operar a análise do imponderável, seria ainda mais através da dor e do amor, pois que, no purgatório
necessário saber penetrar a estrutura do próprio destino, conhe- terreno, é oferecida a cada alma a possibilidade de reconstituir-
cer a fórmula da sua composição, a natureza das varias forças se no bem e de preparar um futuro de felicidade, corrigindo,
componentes e a proporção em que elas participam. Seria neces- através de uma vida santa, o próprio destino.
sário, em outros termos, saber o que preparamos em nosso longo
passado. O homem atual ignora tudo isto e está a milhares de XXV. AMOR E PROCRIAÇÃO
quilômetros distante de imaginar que isto se possa saber, o que é
um bem, tão disposto está ele a fazer mau uso de tudo. A divina Passemos uma vista de olhos sobre o grande problema indi-
sabedoria não nos faculta conhecer senão na proporção em que o vidual e social da sexualidade e do amor, das suas funções re-
mereçamos. Seria necessário poder pesar méritos e deméritos, produtivas até às mais elevadas do misticismo, funções biológi-
medir e qualificar as forças adquiridas, os impulsos negativos e cas tão diversas e também tão necessárias a vida. Comecemos
contrários das culpas, os vazios, os desvios, assim como os es- pelo amor como procriação.
forços para o alto, as conexões, registrando todo o deve e haver Quanto mais baixo for o grau biológico ocupado pelo ser na
relativos aos desequilíbrios da divina justiça. Seria indispensável evolução, tanto mais o problema da proteção da prole reduzir-
conhecer o homem em geral e o seu caso em particular. É um se-á à mais simples expressão. Então ao ser que é menos valo-
trabalho de profunda penetração no próprio íntimo, que cada um rizado como qualidade a natureza protege com a quantidade e
pode fazer por si, estudando-se, reconstruindo-se – pois somos se exime, assim, de funções protetoras particulares, para que a
hoje como necessariamente devemos ter sido no passado – ob- seleção possa assim melhor cumprir-se. A medida que se sobe
servando analiticamente aquilo que os seus instintos atuais re- na escala evolutiva e se alcança a formação de um tipo biológi-
sumem em síntese, retraçando o caminho percorrido para atingir co mais perfeito, o problema da justiça se torna mais importan-
o ponto presente, decompondo o atual produto em seus vários te. Trata-se de um produto mais precioso, fruto de um longo
elementos constitutivos. Estabelecido tudo isto, ele poderá dizer processo evolutivo, de função mais laboriosa e, por conseguin-
que probabilidade terá hoje de vencer ou de perder, de gozar ou te, mais rara nos atuais exemplares. É lógico que a um valor
de sofrer, de ser, como se diz, feliz ou infeliz. É fundamental, maior a natureza proteja com maior cuidado. No homem, o re-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 143
cém-nascido, devendo desenvolver-se até alcançar funções su- cada vez mais para a proteção dos filhos e, de outro lado, a lu-
periores, tem necessidade de assistências ignoradas nos planos ta do indivíduo para evadir-se dessa disciplina, que o grava,
inferiores, das quais o procriador involuído se exime. Das con- pesam crescentemente sobre a procriação e, por conseguinte,
dições de civilização se segue, pois, que a procriação não é sobre os próprios filhos, que, assim, com o seu sacrifício em
mais aquele ato simples e instintivo como é entre os primitivos qualidade e quantidade, vêm a pagar pelos maiores cuidados
no estado animal, mas se torna um ato complexo e reflexo, pe- que eles custam aos pais e à sociedade. Também aqui, não se
jado de consequências e responsabilidades. pode ter tudo, e tudo se paga.
No animal e no homem inferior, a procriação se exau- Também o amor está sujeito em nossas sociedades civis à
re quase toda com o ato físico da geração, enquanto que, no necessidade do cálculo, e o cálculo é o primeiro passo da prosti-
homem que não vive no plano animal, ela penetra no campo tuição. Por outro lado, é natural que a sociedade humana, to-
moral e abrange também uma longa educação destinada à mando em consideração que o ato procriador é a base de sua
formação da personalidade. No plano animal, os procriadores constituição, tenha pretendido discipliná-lo. E as religiões, antes
podem logo desinteressar-se da prole e dela libertar-se, mas, do Estado, enquadraram e ordenaram o amor, equilibrando direi-
para o homem não no estado animal, os liames e serviço de tos e deveres na instituição do matrimônio. Mas isto é lei, disci-
assistência e de guia duram dezenas de anos. Daí a necessi- plina exterior, em que o homem permanece até onde quer e sabe.
dade de organizar e prever. E quando o homem não sabe e não quer, as mais excelentes ins-
É assim que, nas sociedades civis, o fenômeno da procria- tituições e a coação das leis não lhe podem impedir a evasão. E,
ção se encontra estreitamente conexo e unido ao fator econômi- assim, em perfeito regime de indissolubilidade, em que a inte-
co, que veio assim influir no fenômeno biológico da reprodu- gridade da família é mantida intacta, não se pode impedir que o
ção. Segue-se dai que, quanto mais alto for o nível de vida de matrimônio possa transformar-se em um mercadejo qualquer e
uma civilização, mais difícil se torna, por conseguinte, a manu- constituir a mais vantajosa forma de prostituição. Divórcio,
tenção de um indivíduo e mais severamente se estabelece o pois? A resposta é uma só: qualquer lei é inútil quando os indi-
controle da natividade. Dada a economia da natureza, grande víduos são corruptos; toda lei é boa quando eles são prudentes,
administradora, a qualidade se obtém a expensas da quantidade. mas, se o homem quiser fugir, toda regra é inútil e ele evade-se.
Então as condições mais refinadas e complexas de civilização Pior para ele, mas evade-se desde que o queira, porque é livre.
se tornam um freio à reprodução e se pagam com a pobreza Pagará, mas, apesar disso, evade-se. Então compreenderá, mas,
demográfica. Para voltar à quantidade, é necessário então des- por ora, não compreende. O que decide de fato é a vontade indi-
cer na qualidade. Tudo de uma vez não se pode ter. Ou a potên- vidual, e não a lei! Em todo campo é sempre assim: às leis hu-
cia, ou o domínio. Se um povo for rico e dominador, será pouco manas, por mais que provenham de instrumentos de coação,
numeroso, com tendência a rarefazer-se cada vez mais. Se for obedece quem quer. O valor das leis depende inteiramente de
pobre e dominado, invadirá o mundo com seus filhos. Sábios quem as maneja e de como são manejadas. Se a elas, exteriores,
equilíbrios da Lei, que nenhuma coação política pode alterar. A não corresponde o sentimento de uma maior lei interior, toda lei
luta, assim, entre a inteligência que alcançou o predomínio eco- humana é inútil e de escasso efeito. Assim, a questão do divór-
nômico e a carne, expressa pela massa demográfica, reduz-se a cio se reduz à legalização exterior de um fato que, sem divórcio,
uma distribuição de funções, até que a carne das massas amor- existe já de há muito. Negá-lo valerá como afirmação teórica e
fas, educada pela inteligência dos dominadores, subindo ao de princípio, mas, efetivamente, cada um já resolveu o problema
plano destes, os substituirá no grau biológico e nas funções. En- por própria conta, segundo a sua natureza e suas convicções. A
trementes, a qualidade dos povos dominadores, com seu eleva- negativa será um obstáculo que tem por objetivo impedir que a
do nível de vida, constitui uma conquista da evolução, um tra- atual geração de involuídos se lance desesperadamente para a
balho da vida, que, por isto, defende o produto do seu labor. anelada desordem a que dão o nome de liberdade, de modo a
Sabendo o que ele lhe custa, por leis da sua economia, a vida impedir que esta desordem seja exibida e fixada em palavra ju-
tende a mantê-lo a todo custo e, por isso, está disposta a sacrifi- ridicamente legalizada. Mas, neste caso, como em todas as coi-
car a abundância da sua produção. É assim que, para proteger a sas, a substância, o móvel, as consequências a pagar, são todas
qualidade, conquista preciosa, sacrifica a quantidade, que lhe pessoais e interiores, e as leis só alcançam ali até um certo pon-
constitui uma ameaça. Tudo se paga na natureza. Paga-se assim to. A questão não é tanto jurídica quanto moral.
a mortalidade menor, a cultura, a segurança, a proteção social, o Observemos em dois casos típicos em que pode tornar-se,
bem-estar, tudo enfim. Poder-se-ia assim atingir um nível de na nossa sociedade, o amor, quando submetido às pressões dos
desenvolvimento do qual os povos mais prolíferos e numerosos fatores econômicos e da luta pela vida.
estão excluídos, mas apenas até que estes atinjam o seu turno Primeiro caso. Uma esforçada jovem, religiosa, obediente
de se elevar, para então, sutilizando-se, substituir os mais evo- aos sábios conselhos paternos, fiel às normas sociais, prudente
luídos, repetindo o mesmo ciclo igual para todos. calculadora e ciosa da sua posição social, que não quer perder,
O progresso se desloca assim em vantagens dos filhos, que buscando muitos proveitos ao mesmo tempo, não consegue es-
cada vez mais pesam sobre os genitores e a sociedade. É natu- posar-se senão tarde. De outro lado, isto sucede porque a moça
ral, pois, que, pelo egoísmo protetor do indivíduo, este se es- é pobre e quer antes garantir uma posição, que, naturalmente,
quive a uma procriação que se torna cada vez mais agravada consegue apenas depois que a juventude fenece. Ela e o marido
de deveres e responsabilidades crescentes. Dadas as suas con- se unem com reflexão, com todos os cálculos relativos, com
sequências, sempre mais pesadas com o progresso da civiliza- plena permissão e consenso dos pais e parentes, das leis religio-
ção, a procriação se torna mais estreitamente controlada, fa- sas e civis, e absoluta concordância com todos e com tudo. Es-
zendo-se depender de cálculos. Ela é submetida à luta pela vi- posam-se, mas o amor não existe ou, em face de tantas refle-
da, que pode gravá-la ou até comprimi-la e sufocá-la. Assim, xões, não se sabe onde esteja aí colocado. Mas, em compensa-
o fator econômico se substitui ao biológico, que, deveria ser o ção, o equilíbrio está assegurado, os cônjuges estão tranquilos,
principal, mas passa, dessa forma, a ser relegado a um segun- a proteção dos filhos garantida, posição ideal, fruto de sacrifí-
do plano, prejudicando, assim, a seleção sexual e, por conse- cios previdentes, bem ganha também para os filhos. Ela foi
guinte, os próprios filhos. Para uma procriação sã e seleciona- prudente e honesta, soube esperar, sacrificar o instinto e se
da, o amor deveria permanecer livre do fator econômico e de apresentar ilibada. Finalmente, diante de todas as exigências
outras pressões sociais de todo gênero, para obedecer às suas sociais, tudo está em ordem. A sociedade aplaude, estima e res-
próprias leis. De um lado, a necessidade de disciplinar o amor peita. Tudo é conforme as regras e com todas as suas vanta-
144 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
gens. A reflexão, isto é, o cálculo, triunfou. A batalha pela vida os deserdados, então os filhos que parecem afortunados se tor-
foi vencida, e todos se inclinam. Há somente um pequeno fato, nam desventurados, e os que parecem deserdados acabam vito-
secundário em nosso mundo civil: as leis da idade do amor fo- riosos. Assim, a natureza justa restitui a esses, às expensas da-
ram violadas, o frescor vital feneceu, e o amor, dada a necessi- queles, quanto haviam recebido a mais, e a derrota econômica
dade de adaptação, não se sabe o que se tenha tornado. Os co- se resolve em uma vitória biológica.
rações, desiludidos pela longa espera, atiram-se aos últimos Estes não são senão dois típicos e opostos casos limites. Na
passos da juventude com voracidade inútil; os filhos ou não prática, as combinações são inúmeras. Eles demonstram que a
nascem mais ou, se nascem, são fracos, filhos de descontentes e nossa civilização, sob o tormento econômico, que é o seu pro-
de velhos, seres que não podem amar e gozar a vida, nascidos duto, tende a tornar-se um movimento antivital; mostram a ne-
cansados, que não poderão enfrentar e vencer na luta pela vida. cessidade, para os fins da evolução, de libertar o fenômeno bio-
Ganhou-se a batalha econômica, mas perdeu-se a batalha bioló- lógico dessa sua danosa dependência do fenômeno econômico.
gica. Esta é a história de tantos matrimônios de luxo, em que É um fato que hoje este último elemento influi na seleção sexu-
dois patrimônios se casam, não importando as pessoas que se al e na reprodução, nos sentimentos do amor e em todas as suas
ligam. Os filhos desvitalizados, para os quais justamente se pre- consequências. Sem dúvida, o tormento econômico é um assal-
tendera tudo preparar, pagarão por essa excessiva preocupação. to que a luta pela vida move contra a própria vida, assalto que
Certamente eles crescerão em meio aos confortos, protegidos antes era praticado pelas feras e pelos elementos. Mas, assim
pela riqueza e, em razão desta, serão estimados. Arredados arti- como o progresso atenuou esta forma de luta nas atuais menos
ficialmente da luta, acabarão por enfraquecer-se e imbecilizar- cruas e bárbaras, também a assistência estatal deverá desenvol-
se. E, automaticamente, perderão a riqueza que lhes proporcio- ver uma contribuição cada vez mais intensa à sociedade na de-
nou a inépcia. Assim vem-lhes custar bem caro quanto lhes foi fesa da sua procriação. Os casos do primeiro tipo descrito ex-
fornecido gratuitamente. A vida deve ser um campo de exerci- plicam-se pela pressão universal que exercem as necessidades
tações, e a natureza desaninha os parasitas e os protegidos. A materiais em tudo. O homem, sabendo bem que a natureza não
riqueza só vale quando ela representa uma nossa atividade para brinca, defende-se, apegando-se a tudo que pode. Em nosso
conquistá-la. Mas, assim que se torna instrumento de ódio e de grau de evolução, a luta se tornou incruenta, menos física e
parasitismo, passa a constituir um perigo. Nos casos mais gra- muito mais psíquica, mas nem por isto menos feroz. Ao homem
ves, a natureza chega mesmo a negar a reprodução. Mas, em que não enxerga senão a si mesmo, à própria família e à sua
todo caso, a vitória econômica é uma derrota biológica. exígua vida, a natureza, que objetiva fins complexos e distan-
Segundo caso. Uma outra jovem, rebelde aos conselhos dos tes, parece desapiedada, e é por isso que ele sacrifica a remota
pais e às normas sociais, temperamento passional, pouco pen- vitória biológica da raça à mais vizinha vitória econômica indi-
dor calculador, não se preocupando consigo e com a sua posi- vidual. No amor, nós vemos a vida em conflito consigo mesma,
ção social, disposta a tudo sacrificar pelo amor, esquece a auto- porque ela pretende alcançar duas finalidades que, neste mo-
defesa, deixa-se conduzir pelo instinto e, contrariamente aos mento, entram em conflito: a conservação do indivíduo e a con-
prudentes preceitos religiosos, morais e sociais, ama e concebe servação da espécie. E o egoísmo que defende o indivíduo de-
nova, realizando um matrimônio de amor, mas economicamen- fende-se do egoísmo da espécie, e este tende a esmagar aquele.
te desastroso, quando não fica só e abandonada. O seu destino O homem desejaria o mais possível eximir-se do grande es-
está selado por uma vida dura de trabalho e sacrifício. Não pos- forço de evolver, enquanto a natureza quer que ele trabalhe para
sui mais direitos e deverá tudo aceitar. Nenhuma proteção está progredir. O progresso custa tanto trabalho, tanta dor e sacrifí-
assegurada aos filhos. Ela não soube esperar, sacrificar o instin- cio de vidas, que o instinto de conservação individual se retrai.
to, ser prudente e honesta. Pais e parentes consternados e des- O homem desejaria a vida fácil de gozador, contudo o espera,
contentes, as leis religiosas e civis violadas. Formalmente, tudo ao invés, a vida dura da ascensão. A sociedade se agita para es-
está em desordem. Tudo está contra os preceitos, e dominam as capar a esse impulso e assume alternativamente atitudes diver-
desvantagens de uma posição péssima. A sociedade condena e sas, mas em vão. Nos períodos de bem-estar, quando dominam
despreza. Aqui triunfaram a sinceridade e espontaneidade do os regimes de ordem, a família é sã e a filiação protegida e es-
amor, mas a luta individual pela vida se perdeu, e todos desa- timulada, forma-se a pressão e o incremento demográfico, a
provam. Ela não foi hábil, não soube valorizar-se, protegendo- consciência coletiva se desperta na força e, com isto, o senti-
se legalmente com contratos na vida, não soube utilizar a lei em mento nacional, o amor pátrio, a fé, a disciplina. Esses períodos
sua defesa. É uma falida, é um refugo econômico, e, assim, jus- e regimes terminam todos em guerras de conquista com objeti-
tamente todos se rebelam, porque há um erro a ser pago, e ele vos de expansão. Se houver vitória, o povo que a conquistou
pesará sobre ela, justificando a necessidade de uma sua adapta- torna-se grande às expensas de outros povos vencidos; se hou-
ção. Dá-se, contudo, que o erro não foi de caráter biológico, ver derrota, ele se reduz em vantagens de outros povos vence-
mas sim econômico, e a sociedade parece que vê antes este do dores. Neste caso, despontam os regime fracos de desfazimento
que aquele. Não obstante tudo, aqui também existe um pequeno e de desordem, reina a miséria, a família se desgasta e se des-
fato, secundário em nosso meio civil, e este consiste em que as faz, a filiação não protegida diminui, retarda-se o desenvolvi-
leis da idade e do amor foram respeitadas. Os filhos consegui- mento demográfico, a consciência coletiva se atormenta e com
dos no vigor da idade e sob o impulso do amor são robustos, ela o sentimento nacional e o desejo de guerras expansionistas.
feitos para amar e gozar a vida, talhados para enfrentar e vencer Atinge-se assim a paz, mas ao preço do próprio deperecimento.
a luta pela existência. Perdeu-se a batalha econômica, mas ven- A natureza colima um só fim: a vitória. É por esta via que, mal
ceu-se a batalha biológica. Se a sociedade despreza, em com- se verifique uma exuberância de forças, ela lança os povos e,
pensação a vida aprova. Parece que esta pensa de modo muito por mais que este capital custe ao homem, não lhe permite
diverso daquela. Os pontos de vista e os objetivos são muito di- gozá-lo, mas o faz despender tudo para tentar a vitória. E, se
ferentes. Onde um condena, o outro premia. Certamente, os fi- perde, pior para ele. Se, no entanto, um povo se recusa a de-
lhos serão pobres, mas bem munidos pela natureza para lutar, e sempenhar esse jogo, então a vida o pune, liquidando-o através
a ausência de bens protetores os adestrará desde pequenos e do entibiamento, da servidão e da extinção. E o indivíduo, mo-
também os robustecerá, de modo que lhes será depois fácil le- vido pelo próprio instinto egoístico de conservação, ligado às
var a melhor sobre os entibiados filhos da riqueza, arrebatando- necessidades da própria defesa pelo peso de mil necessidades,
lhes os meios de proteção. Desta forma, a natureza restabelece repele para longe de si, o mais que pode, esta avalanche de ou-
os desequilíbrios, enfraquecendo os protegidos e fortalecendo tras necessidades biológicas, de que cuida bem pouco e, desta
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 145
forma, sacrifica e distorce o sentimento de amor e procriação, tação humana exprime a atual fase negativa, de destruição, de
sobre os quais a aspereza da luta pela vida vem assim a fazer involução, de descida. Caminha-se assim para uma dor sempre
incidir os seus signos funestos. De quem neste estado é a culpa? maior, e desta forma, com a ruptura que chamam liberdade,
Quando não há margem, é natural que o indivíduo pense pri- descer-se-á cada vez mais, até um tal estado de desesperado so-
meiro na própria conservação do que na qualidade da sua pro- frimento, que a própria desesperação imporá a reação, isto é, o
criação, antepondo a sua vitória individual e negligenciando a retorno à fadiga da ascensão. Não se pode conter a evolução.
biológica, menos urgente, da raça. As massas de hoje estão presas no vórtice e não podem enxer-
O amor, efetivamente, não é um sentimento somente para gar além deste. Deverão percorrer todo o ciclo da hora históri-
uso da prole, mas também o é para a satisfação dos genitores. ca. Cada um possui e sabe o que merece. Deus guia tudo. Pou-
Se é um fenômeno biológico demográfico e social, de interesse cos isolados e oprimidos seguem em dor e silêncio o caminho
coletivo, é também um fenômeno eletromagnético, hormonal e oposto, unindo-se a Deus em uma luta desesperada para salvar,
genético, de interesse individual. A troca de radiações de sinal nesta hora de destruição universal, especialmente os valores es-
elétrico oposto é um excitante do dinamismo nervoso, constitui pirituais, aquilo que de mais precioso e com trabalho imenso as
um ―do ut des‖, em que as duas cargas reciprocamente opostas civilizações conquistaram. A luta é desigual e desesperada. Mas
se descarregam do supérfluo e se carregam do necessário. A Deus, que tudo guia, está com eles. A vida, pela sua salvação,
troca hormonal, fenômeno ainda não bem compreendido pela está também com eles. A evolução, que não se pode frear, está
ciência e que aqui não é possível ilustrar, realizando-se através igualmente com eles. São profundas as trevas, mas com eles se
das mucosas, abastecendo a célula, influi como regulador e ati- encontra a luz. Em uma hora de inconsciência, eles possuem a
vador do metabolismo. Tudo isto é necessário e útil à vida dos consciência de serem os depositários e os guardas dos mais al-
genitores, independentemente da procriação. Por último e cone- tos valores da vida e, por conseguinte, os senhores do futuro.
xo aos precedentes, aparece o fenômeno genético, pelo qual,
através da nossa vida individual, uma outra vida se individuali- XXVI. SEXUALIDADE E MISTICISMO
za, até tornar-se autônoma, destacando-se dos procriadores. É
impossível explicar aqui a maneira pela qual o princípio espiri- Observemos agora as funções e o significado do amor nos
tual se encarna no feto e se liga à sua forma física segundo de- planos biológicos mais elevados, onde tudo e também ele se
terminadas leis, orientado por forças e afinidades. Entramos aqui transforma com a ascensão do plano vital.
no campo espiritual, em que se maturam os fins da vida e do Em face das graves afirmações de Freud, hoje em moda,
qual o organismo físico não passa de um instrumento de expe- segundo as quais a sexualidade constitui a base da personali-
rimentação. Pode-se dizer que não é possível compreender ver- dade e qualquer forma de amor não passa de uma extensão di-
dadeiramente o amor se não se compreender todos os problemas reta oriunda do amor sexual, propomos as perguntas que se se-
do universo. Mesmo considerando-o apenas como fato individu- guem: dado que o amor dos místicos apresenta características
al, ele é um fenômeno tão vasto, que alcança as próprias raízes de afinidade com o amor sexual, do qual conserva, a maioria
da vida. Aqui, podemos apenas explorar a sua complexidade. O das vezes, até as expressões, existirá realmente parentesco en-
homem tem a pretensão de dominá-lo com as suas leis, mas nem tre as duas formas e por que? Que relação haverá entre elas?
ao menos o conhece. Ele é regulado nas suas funções e conse- Será o misticismo uma forma patológica ou mesmo supranor-
quências por uma sabedoria bem diversa da humana. mal do amor sexual? Entendemos aqui por misticismo aquele
À medida que o ser evolui, o seu amor se torna cada vez fenômeno que não pertence somente ao cristianismo, mas às
mais espiritual. O involuído não sabe compreender o amor se- religiões, ou melhor, à vida, através do qual um indivíduo iso-
não na sua forma inferior, egoísta e carnal. A potência, a bele- lado experimenta em si, como fenômeno vital presente, a ima-
za, a liberdade, a alegria do amor espiritual constituem para ele nência do divino, do transcendente. Queremos aqui falar do
um inconcebível, porque estão fora das suas possibilidades per- misticismo verdadeiro, fenômeno biológico real, e não de cer-
ceptivas. Só no alto, onde os seres não amam carnal e egoisti- tos pseudomisticismos, que podem dar razão a Freud. Esse
camente, pode-se ter um amor que se sobreponha à traição, à misticismo verdadeiro é algo que a ciência deve encarar com
desilusão, à morte. Indiscutivelmente é trabalhoso subir, mas seriedade. Ele é tão sério, que, no dia em que os problemas a
caso se pretenda possuir esses resultados, é necessário enfrentar ele atinentes tiverem passado do campo teológico, religioso e
a ascensão. É árduo ascender, mas, segundo a Lei, quem sobe especulativo ao cientifico, objetivo e racional, poder-se-á dizer
caminha para a alegria e quem desce caminha para a dor. Infeli- que o materialismo científico terá ruído.
zes dos que, iludindo-se em poder gozar, precipitam-se para Aceitamos a orientação dos psicanalistas freudianos que, no
baixo. Instintivamente sentimos o paraíso no alto dos céus e o estudo da personalidade, emprestam grande valor ao elemento
inferno nas tenebrosas profundidades da Terra. Hoje, a huma- sexual. Mas teremos o direito de exagerar, como eles fazem, a
nidade é presa de um frenesi de evasão e de liberação. Acredita- importância desse elemento, a ponto de definir o místico como
se que, evadindo-se de toda norma, seja possível libertar-se da um grande amoroso que, por involuntária ou imposta renúncia,
dor. Formou-se assim um conceito invertido de liberdade, em vendo cerradas as vias normais do desafogo erótico, busca sa-
descida ao invés de ascensão. Mas o que não está invertido nes- tisfazê-lo anormalmente pelos atalhos do misticismo, que assim
sa era de involução? A verdadeira liberdade só se pode alcançar se reduz a um sub-rogado sexual? Sem dúvida, o misticismo
com a ascensão e com a luta para ascender. Este é o século das casa-se mal com a frigidez dos sentimentos, pois representa o
palavras falsas, feitas para enganar, para que tudo se transvie e desenvolvimento da potência do coração, em polo oposto ao da
se distorça. Hoje se difunde uma insana tendência para negli- razão. O fato de que os místicos poderiam ter sido grandes
genciar todos os deveres, libertar-se de todas as disciplinas, amorosos também no plano sexual, fez pensar que eles não ha-
acreditando-se que, com isso, aliviem-se todas as cargas. O re- jam sido senão libidinosos frustrados. Acreditou-se então poder
sultado é um egoísmo cada vez mais feroz, semeador de danos colocar o fator sexual na base do fenômeno místico e do seu
para todos, em uma luta cada vez mais acirrada e, portanto, desenvolvimento, podendo-se assim contrapor à sexualidade
uma vida cada vez mais dura. Esta queda na barbárie se chama normal uma sexualidade mística, interpretada esta como um
evasão e liberdade. Cada qual nega ao próximo o tributo do desvio, isto é, como uma sexualidade malograda e deformada.
próprio dever, e todos se empobrecem. Evadir-se das normas da O problema que nos propomos aqui é este: será patológico
moral e embrutecer-se no prazer pode parecer ascensão para a o caso do místico, será um desvio degenerado do normal, um
alegria, mas é, na realidade, descida para a dor. Toda manifes- sub-rogado qualquer compensatório e de valor inferior, ou re-
146 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
almente é uma verdadeira e própria tentativa de evolução que Para poder julgar um ser é necessário compreendê-lo, e, pa-
a natureza, em dadas circunstâncias e certos casos, realiza pa- ra compreendê-lo, é necessário saber viver no seu grau de evo-
ra chegar, através de uma superação biológica, a formas mais lução. Ora, a ciência e o pensamento humano da atualidade têm
evoluídas de sentir e de amar? É certo que misticismo e re- como tipo biológico modelo o involuído de hoje, possuidor de
núncia, na realidade, associam-se como que ligados por uma insensibilidade ilimitada e animado por instintos animais. A
mesma lei, pois as duas formas de amor, o sexual e o místico, moderna orientação materialista e utilitária não pode conceber
parecem rivais e com tendência a se excluírem reciprocamen- outro super-homem que não seja o de Nietzsche, isto é, o su-
te. Mas o problema está em estabelecer se a renúncia, ao invés perbruto, egoísta, violento e antissocial. Tudo depende da for-
de ser a causa, não seja senão o efeito do misticismo. Sem dú- ma mental e da medida com que se julga. É natural que o mate-
vida, o amor é um dos impulsos fundamentais da vida, e sa- rialismo freudiano não possa ver no homem senão o animal. É
bemos também que a natureza, grande e ecônoma, não des- certo também que, num mundo assim, o super-homem do espíri-
perdiça nada, utilizando tudo. Assim como ela utiliza a pró- to não possa deixar de aparecer como um anormal, um degene-
pria moléstia para robustecer e imunizar, poderia também uti- rado. Para julgar, faz-se mister ter compreendido o pensamento
lizar a renúncia, derivada de qualquer causa, para elevar as da lei que rege o universo e os fins da vida. Que o escopo desta
manifestações do amor e, assim, em temperamentos mais seja evoluir, é também uma hipótese que corresponde à observa-
adaptados pela maturidade biológica, tentar uma sublime as- ção e satisfaz a lógica das coisas e a razão humana. É lógico
censão a nível superior, utilizando o desafogo não empregado que, se existem seres que se movem em fase animal, no campo
no plano sexual animal para dirigir o seu impulso em deman- das leis da fome e do amor, ocupando-se somente das funções
da de vias mais elevadas. Dada a potência criadora do amor e vegetativas da conservação individual e coletiva, podem existir
a grande importância do fenômeno evolutivo, não é verossímil igualmente indivíduos que se movem no campo das leis da evo-
que a sabedoria da natureza se deixe tão facilmente fraudar lução, ocupando-se da função de progredir. Eis o herói, o gênio,
em face do cumprimento dos seus maiores objetivos, que são: o mártir, o santo, o místico, o super-homem do espírito, o pre-
criar, conservar, evoluir. Assim, não é verossímil também cursor da evolução, o pioneiro do progresso, tipo biológico que
que, antes de recair em uma distorção patológica, ela não ten- não é o produto de um tempo, de um lugar, de um povo ou de
te abrir caminho às suas forças e saída aos seus impulsos mai- uma religião, mas é universal, como produto da vida.
ores por vias superiores, realizando-se igualmente ao ensinar a Tudo depende, pois, do ponto de observação e consequente
amar em formas biológicas mais evoluídas. perspectiva. Para o homem involuído atual, que se coloca co-
Ora, entre fazer da renúncia um fato concomitante ao mis- mo modelo da vida, a sublimação das próprias qualidades não
ticismo e dela fazer a causa deste, ocorre uma imensa distân- parece ter muita importância, enquanto que tem muitíssima pa-
cia. É verdade que a natureza pode utilizar a renúncia para au- ra o homem que dele começa a destacar-se por evolução. Exis-
xiliar no desenvolvimento místico. Mas a renúncia apenas não tem dois modos de ver as coisas: observando-se da Terra, isto
basta para criar o místico. A elasticidade dos instintos, que fa- é, evolutivamente de baixo para cima; ou observando-se do
culta a adaptação, tornando suportável a substituição e a trans- céu, isto é, de cima para baixo. No primeiro caso, seremos le-
posição de objetos, é limitada. Visto que os instintos têm um vados a desprezar, relegando o fenômeno ao campo patológico
fim a atingir e se veem dessa maneira fraudados na consecução e anormal. No segundo caso, admirar-se-á o grau de sublima-
deste, o desvio do impulso não pode superar um certo grau de ção a que o misticismo conseguiu levar, fazendo-os evoluir, os
deformação, quaisquer sejam as necessidades impostas pela primitivos impulsos biológicos do instinto bestial. É natural
adaptação. Estas formas derivadas se conhecem por caracterís- que a visão egocêntrica que coloca o homem atual como pro-
ticas de semelhança, mas de uma semelhança tendente à dege- duto e modelo de vida, faça que ele considere um afastamento
nerescência, e não à superação no sublime. Não nos induza es- desse tipo, ainda que determinado pela evolução, como um
sa semelhança a erro, fazendo-nos confundir o anormal com o desvio encarado com desconfiança, sem interesse, quando não
supranormal. A faculdade de adaptação não nos autoriza a o seja com menosprezo. É natural também que, da posição bio-
acreditar possível um salto, como o que seria necessário para lógica do mais evoluído, as coisas pareçam bem diversas e se
superar o abismo que separa o amante carnal do amante místi- olhe o homem atual com piedade, como a um pobre ser inferi-
co. Amar espiritual e altruisticamente a Deus e, em Deus, o or que não suspeita ainda que infinitas possibilidades contém o
próximo, é muito diverso de amar sexual e egoisticamente a seu futuro desenvolvimento. Por isso os problemas do místico,
um semelhante. Se existem afinidades, é porque o amor no para ele fundamentais, não podem interessar à maioria, que se
universo é uno. Mas elas não bastam para fundir os dois fenô- aflige com a explicação do futuro e da evolução, coisas para
menos. Em verdade, a escala evolutiva é a mesma e tudo é uni- ela distantes em face do homem atual. Este, todavia, não pode-
tário em um universo monista, mas a distância que existe entre ria negar que à vida também deve interessar a evolução, pois
a fase humana e a fase sobre-humana é grande demais para ser que, se ela efetivamente produz indivíduos com tal função pre-
superada simplesmente pelo impulso de um desejo insatisfeito. cípua, quer dizer isto que esses indivíduos são igualmente in-
No misticismo, não atua apenas o elemento negativo de renún- dispensáveis ao trabalho do conjunto.
cia, mas age um elemento positivo que se distancia do mundo Mas nos levaria muito longe o desenvolvimento desses con-
sexual, na inversão dos valores, e que está implícito em tal su- ceitos. Devemos aqui, pois, concluir o aspecto atual. Se o amor
peração. No indivíduo há um fato evolutivo novo, uma maturi- universal é o fenômeno que liga sexualidade e misticismo e nos
dade que o eleva e potencia. A renúncia poderá ser um fato permite estabelecer as relações que vigoram entre eles, com isto
concomitante colateral ou mesmo uma negação inferior, neces- se estabelece a imensa distância evolutiva que os separa. Se é
sária para que possa agir a superação. Mas daqui a ser ela a certo que eles sejam duas formas do mesmo amor universal,
causa determinante do misticismo vai muita distância. É muito importa, no entanto, reconhecer em que grau diverso estejam
mais lógico admitir o contrário, isto é, que a renúncia se una ao pela pureza, alegria e potência. Isto nos diz também que os dois
misticismo no quanto este estado representa um tal esforço fenômenos podem ser comunicantes e entre si se influenciarem,
evolutivo, que absorve por si só todas as possibilidades do in- mas também que esse parentesco distante, que de resto existe
divíduo. No gênio, como no santo, que tanto se assemelham ao em todas as formas da vida, não basta para passar do amor se-
místico, vemos que a vida, que neles cumpre um trabalho ex- xual ao amor místico. Para se chegar a este, faz-se mister uma
cepcional supranormal, submete os fins da reprodução e da se- maturação evolutiva, a manifestação de qualidades novas, na
xualidade aos seus maiores objetivos criadores. verdadeira catarse biológica, uma superação de si mesmo. No
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 147
misticismo, se existem lembranças da sexualidade, há infinita- um outro pensamento, que o homem mal conhece, lei absoluta,
mente algo mais. Isto verificado, a orientação freudiana é abso- eterna, iluminada, divina. A mente humana, de fato, não guia o
lutamente inadequada para explicar um semelhante nascimento, universo, que sabe muito bem funcionar por si mesmo. Ao con-
fazendo que o mais surja do menos. Somente o fenômeno sexu- trário, a mente do universo guia o homem, sem que este o sinta,
al não é causa suficiente para determinar o verdadeiro fenôme- e, onisciente e onipresente, está de tal forma inculcada em cada
no místico. Se só bastasse uma forte sexualidade, por mais con- ser, que nada viveria sem ela. É um fato que a mais simples das
trariada que fosse, para gerar e explicar o fenômeno místico, os células do nosso corpo sabe executar, à nossa revelia, tais mila-
casos de misticismo seriam muito mais frequentes. A maior gres de bioquímica, que nós não apenas somos incapazes de re-
parte dos que renunciam forçadamente encontram uma com- produzir, mas nem ao menos conseguimos conhecer e compre-
pensação bem diversa, desviando-se para o patológico e para o ender. Uma pequena célula é mais sábia do que o maior dos ci-
anormal. O verdadeiro misticismo só é atingido pelas almas entistas. Essa consciência do universo aparece no homem sob
eleitas. Milhões que renunciam isolam-se nos conventos ou forma instintiva, não refletida, intuitiva, não racional. A consci-
alhures no mundo, mas quantos deles se tornam verdadeiros ência humana está ligada aos sentidos e constitui um sistema,
místicos? A maior parte dos exuberantes nem ao menos pensa um esquema lógico, uma forma mental em que o homem se en-
nisto. O tipo biológico normal imaturo, em tal caso, ou se rebe- contra encerrado. É o seu corpo mental. Ora, quando, por matu-
la destroçando os freios, ou se adapta à deformação do instinto, ração evolutiva, o eu consegue ultrapassar esses confins, pene-
ou enlouquece e se suicida. Para poder atingir o sublime, para trando, ainda que por pouco, a consciência universal, isto tam-
tornar-se um santo, devem interferir elementos bem diferentes, bém, enquanto é superação, distensão e expansão em uma vida
que de modo nenhum pertencem à sexualidade própria do plano maior, constitui alegria. Esta, repetimos, é índice de bem e de
animal humano. Para se atingir biologicamente tão alto, faz-se ascensão. Tudo na vida é uma contínua luta entre a necessidade
mister coisa bem diferente de uma deformação do tipo biológi- de conservação, que preside o instinto do egoísmo, e a necessi-
co normal! Para se conseguir viver a vida do tipo biológico su- dade de expansão, que preside o instinto altruísta do amor. Po-
pranormal, não são suficientes exuberância e renúncia, mas é der libertar-se da acanhada consciência individual, para entrar
necessário ter-se percorrido a longa via que conduz à própria no imenso consciente universal, que para o homem se encontra
maturação. É necessário ser evoluído, e não involuído. no inconsciente, poder senti-lo e atingi-lo, representa tocar o
sobre-humano, avizinhando-se de Deus. Correspondendo isto
XXVII. POR QUE AMOR É ALEGRIA aos mais elevados fins da Lei, que é progredir para o Alto,
constitui também a maior alegria do ser.
Que significado tem a alegria na vida? O que é o amor e Isto só se consegue por meio do amor. Mas compreendamos
por que ele, em qualquer grau evolução, desde a forma sexual bem, amor em seu significado maior, o amor universal, que
até à mais elevada, no misticismo, é prazer? Que relação há caminha da forma sexual à mística, até atingir Deus. Não é o
entre as duas formas? Pode esta pergunta nos levar à desco- racional cálculo egoísta, mas sim o abandono cego a Deus, a
berta do seu denominador comum, se é que ele existe? Será o submissão à vida, que nos abrem as portas a esses contatos com
amor talvez o grande motor da vida? E, em grau evolutivo o infinito e às alegrias que dele derivam. O fundo do supremo
mais ou menos elevado, trata-se sempre do mesmo amor? gozo místico, como de qualquer amante terreno, reside em se
Como evolve e a que tende esse amor universal que alcança a deixar ser absorvido além de qualquer lógica de interesse indi-
Deus? Como pode ele permanecer em prazer quando ainda se vidual e submergir-se no abismo divino, por mais irracional que
nos apresenta como renúncia a qualquer alegria terrena, como possa parecer um tal naufrágio do egoísmo. Mas por que moti-
dor e negação da vida animal normal? Como pode ele perma- vo, se é o eu que preside à conservação, é tão doce renegá-lo e
necer criação e sublimação, ainda quando, humanamente, pa- por que é tão agradável à mente humana perder-se na contradi-
reça destruição e insucesso? ção, no irracional? Em todo grau de amor, será tanto maior o
Respondamos a estas interrogações. É indiscutível que a vi- gozo quanto maior for a renúncia ao egoísmo. Eis que, no fun-
da procure a alegria. Por que? Porque ela foi criada para isto, do de todo amor, do sexual ao místico, existe o mesmo motivo
indicando a alegria onde está o bem. O bem é caracterizado pe- de renúncia. A razão está no fato de que a alegria é dada pelo
lo nível da alegria; o mal, pelo indício da dor. Alegrias momen- evolver, subindo para Deus, que é amor, e isto não se pode ob-
tâneas e fictícias poderão induzir-nos a erros, mas se elas mas- ter senão pelas vias do amor, que, se, de um lado, é jubilosa ex-
caram o mal, logo descobrimos a dor de que são feitas. Alegria pansão altruísta, é também, por outro lado, o oposto do egoís-
existe em tudo o que evolui, que caminha para Deus, que é o mo, negação de si mesmo, renuncia. Todas as vezes que nos en-
supremo bem. A vida é feita para evoluir, ainda que o faça tregamos, superando as barreiras do egoísmo, a lei de Deus nos
através da dor, para uma alegria cada vez maior. Todas as vezes aprova e no-lo diz, compensando-nos com uma alegria íntima.
que seguimos a lei de Deus, semeamos a alegria, ainda quando Isto é verdade para qualquer nível, do amor sexual ao amor
dela nos separe um abismo de provas e de dores. Todas as ve- místico. Então o eu se perde e a vida triunfa. O eu acredita en-
zes que agimos contra a lei de Deus, semeamos para nós mes- tão morrer, mas na verdade renasce na sua expansão, nos filhos
mos a dor, ainda que dela estejamos separados por um mar de ou no espírito, pois que Deus dá a quem dá, e nega a quem ne-
vantagens e de prazeres. Assim, há o prazer da mesa, que nos ga. Ao sacrifício e ao gozo segue-se a criação, multiplicação
diz que se deve nutrir o corpo porque ele deve viver. Um pouco material ou espiritual, que é manifestação de Deus. O princípio
mais acima está o prazer sexual, que nos diz que é necessária a é único. Eis o denominador comum dos dois fenômenos entre si
reprodução, porque a espécie deve viver. Mas há ainda, muito tão distantes: amor. Tanto num caso como no outro, a alegria é
mais acima, o gozo do trabalho e do pensamento, que criam, o dada pela mesma expansão, ainda que em forma e graus diver-
gozo do espírito e da ascese, para nos indicar que se deve pro- sos, na mesma adesão à lei divina de amor, que é base da vida.
gredir, porque o homem não necessita apenas viver e multipli- Então fala, além da consciência humana, a divina consciência
car-se, mas também evoluir. A cada fim a ser atingido, a Lei universal, constituindo-se, sem que o homem o saiba, na sua
propõe um gozo adequado. Cada coisa em seu lugar, segundo própria consciência, indo além da razão, do cálculo egoísta e
uma hierarquia funcional, que guia as nossas ações. Mas obser- dos interesses da sua conservação, até mesmo se opondo a eles.
vemos ainda. Se o homem possui uma consciência relativa, ra- Essa superação, esse abandono a um inconsciente instintivo, em
cional, refletida, transitória, limitada e adaptada aos escopos da que opera uma outra consciência mais elevada, que nos escapa,
vida e à evolução, é um fato que o universo funciona regido por esse extravasamento além dos confins do egoísmo, para viver
148 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
no todo e para o todo, representa o sacrifício que está conexo ao preendido com pureza, elevando-se sempre, até ao amor do es-
amor, pois o sacrifício cria em qualquer nível e, sem ele, não pírito. O próprio cristianismo fez do primeiro um sacramento,
existe nem verdadeiro amor nem gênese. É isto que provoca o colocando-o na base da família, com missão social.
delíquio da alma. Eis também por que motivos encontramos O amor é o estado sublime em que aparece e age a divina
nestes dois fenômenos, da sexualidade e do misticismo, os vontade que está em todas as coisas, como onisciente e secreta
mesmos elementos, ou seja, amor, sacrifício e gozo. alma do cosmo. Então ela se substitui ao eu e à sua razão; ma-
Enquanto o egoísmo contrai e disseca, o amor dilata e cria. O nobra-o à sua revelia, para os próprios fins e submete-o ao seu
primeiro, se impelido além da função conservadora, inverte-se comando, absorvendo-o na sua oceânica potência. O eu, sentin-
em forma destruidora. Assim, compreende-se como o amor de- do o extravio, percebe o perigo que envolve a sua segurança de
termina a inversão dos valores estabelecidos pelo egoísmo, como indivíduo, ao entregar-se sem refletir, e desejaria calcular, de-
o amante possa esquecer a si mesmo em favor do ente amado e fender-se, retirar-se. Mas o desfrute de um supremo gozo o fas-
como o místico possa viver de renúncia. Então a perda se torna cina e o arrasta para o sorvedouro, em que é tão doce deixar-se
ganho, ordenar se transforma em obedecer e o inconsciente triun- naufragar, que o egoísmo se esfrangalha desfeito pelo amor.
fa. A vida passa a uma fase evolutiva mais alta, e a lei de conser- Então, quer no amante terreno, quer no místico amante sobre-
vação do eu se sacrifica para que vença a lei do ensimesmamento humano, um fato se apodera do ser, que não pode mais resistir e
em um outro ser. Deus é unidade e tudo que irmana e unifica é assim arrebatado. Desta forma, assim como o enamorado da
conduz a Ele e d'Ele se aproxima. Dado que o amor é prazer, o criatura terrena afronta qualquer risco e sacrifício por ela, assim
homem pode abusar dele, eliminando o sacrifício que o eleva e o também o enamorado de Deus, tresloucadamente ousa, na re-
torna criador, fazendo assim do amor um estéril instrumento de núncia, a inversão evangélica dos valores humanos. E, assim, o
gozo. Não resta então senão ruína, um amor egoísta e, mesmo místico, que cria não na carne, mas no espírito, funde-se, sem
como alegria, mutilado, infecundo e traidor dos fins da vida. No reservas, na vontade de Deus. A divina potência criadora se
entanto, entre todas as culpas, as que menos distanciam de Deus manifesta neste impulso evolutivo do amor, que nos constringe
são as culpas de amor, já que o amor é sempre a Sua lei suprema. a esfrangalhar, com perigo da nossa própria segurança, as bar-
As piores são as do egoísmo, do ódio, da destruição. Dante colo- reiras do egoísmo, feitas para a proteção do eu. Este luta e se
ca os luxuriosos sempre distantes de Lúcifer, que constitui o cen- defende, a fim de permanecer no campo seguro da sua pequena
tro do ódio e do mal e que é a negação de Deus, ou seja, do amor, consciência racional. Mas, a um certo ponto, o inconsciente ins-
para colocá-los junto às portas do inferno e no ponto mais alto do tintivo e irracional, anelando os próprios fins, que o indivíduo
purgatório, na saída deste, próximo ao Paraíso. ignora, e metas superiores bem diversas, emerge com imensa
Tudo isto nos permite melhor definir as relações entre se- sabedoria e potência da profundidade do cosmo, para revelar o
xualidade e misticismo. Se, dada a unidade da vida, não se pensamento e a vontade de Deus, arrojando-se sobre a criatura
pode desconhecer uma necessária semelhança entre estas suas e arrebatando-a. Esta se debate ignara e desorientada; desejaria
manifestações, isto não impede a superioridade espiritual do resistir, mas não sabe como, cede por fim, triunfando mais aci-
fenômeno místico, que assim nos aparece bem diverso de uma ma, no sacrifício de si mesma, que é a derrota do seu egoísmo.
simples sublimação dos instintos sexuais, bem diverso de uma Essa derrota do eu egoísta dá nascedouro a uma vida nova, que
espécie de sucedâneo determinado por derivação compensa- é um dom que Deus concede a quem obedece ao amor.
dora, como quiseram que o fosse os psicanalistas freudianos. Esta é a hora criadora, em que a vida triunfa sobre a morte e
Não obstante a grande distância entre as duas formas, o seu o bem sobre o mal, a hora em que o indivíduo mortal se torna
elemento comum e fundamental, o amor, faz com que em am- imortal e a vida se santifica, posta em contato com Deus. Hora
bos os casos se encontre o sentimento do pudor. Cuidemos o sublime esta de amor, em que a natureza, tão parcimoniosa, tor-
seu significado. Este estado próprio do ato sexual, estado que na-se pródiga, porque então, abrindo-se nela a potência geradora
significa proteção do mesmo e de modo nenhum consciência de Deus, ela se sente muito mais rica. Então a vida se exalta no
de pecado, encontra-se também no artista, no momento da triunfo da sua maior festa, os sentidos comumente usados para a
concepção, em quem quer que cumpra com consciência um luta embotam-se como em um transe, a luz perturba e a palavra
ato nobre e altruísta e, por conseguinte, sobretudo no místico, emudece. Nisto se assemelham tanto as manifestações sexuais,
nos seus contatos espirituais. O pudor se manifesta na vida to- como os estados de inspiração artística, os mediúnicos e es mís-
das as vezes que se desempenhe um ato importante que é de- ticos. Parece que e fenômeno de transe verifica-se todas as vezes
feso, quase sacro, aos olhares dos profanos. Isto nos conduz que ocorre uma transmutação, mais ou menos acentuada, da
ao seguinte: quanto mais se sente a fé que se carrega viva, consciência racional à cósmica, isto é, toda vez que se saia de si
menos se é levado a exibi-la, mais repugnando as exteriorida- mesmo para, entregando-se, fundir-se no que há de maior ao que
des, e vice-versa. É raro que gostemos de pôr à mostra o mais está acima de si. A nota dominante é o desinteresse, a abnega-
precioso tesouro e, quando o exibimos, isto significa, geral- ção, a renúncia de si mesmo, a expansão do humano ao divino.
mente, que pouco o amamos. É sobretudo no caso do verda- Assim compreende-se como as mais elevadas atividades do ser
deiro misticismo que a natureza procura pudicamente prote- se cumprem além da vontade da consciência, por instinto e in-
ger-se dos normais involuídos, destruidores, ocultando-lhes as tuição. Atingem-se então planos de consciência superindividual
manifestações e o misterioso processo da gênese do super- e super-racional, como é a divina consciência cósmica. Se, em
homem do espírito. Então é a vida que protege o indivíduo verdade, isto contrasta com o egoísmo que nos defende e, por is-
que se lhe entrega, porque o eu abandona as próprias defesas so, parece trair-nos, levando-nos a um perigoso abandono, é, no
e, esquecido de si, permanece inerme. Tanto no fenômeno se- entanto, a maior e mais irresistível alegria da vida. Então a cons-
xual, como no místico, a consciência refletida fica em suspen- ciência normal permanece atrás, impotente para medir com a sua
so para perder-se na consciência cósmica, com a qual se funde. exígua unidade, devendo curvar-se ao que não compreende. É
A individualização do ser se anula na fusão com o objeto do assim que se vence na derrota e se fica rico na miséria, poderoso
próprio amor, seja ele criatura ou Criador. A vida permanece na obediência e douto na loucura, porque o centro da vida se
arrebatada por esse fato, tanto mais quanto mais ausente esti- deslocou, alterando com o ponto de vista todas as perspectivas,
ver a vontade individualista e egoísta do eu. O amor, em qual- quando a consciência dá um salto em direção a Deus.
quer nível, é uma exultação da vida cósmica, porque represen- Eis, então, porque amor é alegria. Isto é verdade em qual-
ta o cumprimento da sua primeira lei. Deus é amor e cria no quer nível, mas será tanto mais, quanto mais elevado ele for.
amor, em qualquer nível, desde o amor da carne, quando com- Porque ele é superação de egoísmo separatista, é fraterna uni-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 149
ficação com o todo através da unificação com o próprio seme- XXVIII. O PROBLEMA DA CASTIDADE
lhante, é a essência daquela evolução que nos aproxima de
Deus. Amor, alegria suprema do ser, porém continuamente No sistema do nosso mundo biológico, em que a sexualida-
negada e contrastada pela dor que se origina da dilaceramento de possui fundamentais funções de continuidade de vida, a cas-
do nosso egoísmo. O universo está divinamente invadido e tidade representa certamente uma posição negativa. E assim é
transbordante dessa alegria, pela qual todos anseiam. Ela está de fato nos casos de frigidez e patológicos, condições aberran-
sempre pronta a nos alcançar com a mesma ânsia com que nós tes em que a natureza excepcionalmente falha em seu objetivo.
queremos alcançá-la. Mas este é exatamente o grande drama Mas não é desses particulares casos da falha no plano animal
da vida: uma barreira de dor nos separa dela, barreira que é que aqui queremos falar. Ocupar-nos-emos de uma outra casti-
dada pelo despedaçamento de nosso egoísmo. Daí a trágica dade, daquela praticada pelo santo, pelo gênio, pelo herói da ca-
ilusão do mundo e o seu erro na procura da alegria. A verda- ridade, pelo místico, como sacrifício necessário em vista de
deira felicidade não está no prazer, mas além da dor, que é maiores realizações. Ora, essa castidade não se pode mais con-
necessário atravessar e superar. Este é o significado da inver- siderar como falha e negação de vida, visto que está conexa a
são evangélica dos valores do mundo, da consequente e fatal uma superação, a uma afirmação mais alta e poderosa. Cumpre-
necessidade de que a redenção de Cristo só poderá ser cum- nos, no entanto, indagar como é possível que ela possa deixar
prida através da dor. Para se transpor o inevitável linde, além de ser negativa frente aos fins da vida, como renúncia que muti-
do qual está a felicidade, é necessário inverter o egoísmo, des- la esta na sua fundamental necessidade de continuar-se; e saber
fazê-lo no amor, dilatá-lo e expandi-lo no altruísmo pelas como pode ela justificar-se em organismos físico-psíquicos
criaturas, até Deus. Isto pode parecer uma perda, mas não o é, normais, em que a sexualidade é representada por todo um sis-
pois não é destruição, mas sim dilatação e evolução do egoís- tema orgânico nervoso, base da personalidade.
mo. O universo, sendo egocêntrico em Deus, é, segundo um Respondemos que, antes de mais nada, semelhante renúncia
mesmo e único esquema, fundamentalmente egoísta em qual- não diz respeito senão a tipos de exceção, por conseguinte ela
quer das suas formas e criaturas. Esta é a lei pela qual tudo se não compromete de modo algum os fins da vida, pois que esta
conserva e se protege. Quando o egoísmo evolve, nós o cha- alcança esses fins, plenamente íntegra, na grande maioria dos
mamos altruísmo, mas aquele nada mais fez que dilatar o seu casos. Tudo isto faz, ao contrário, parte do seu plano, pois que
círculo. O egoísmo permanece sempre. Só que agora ele é um ela, assim, não faz mais que inteligentemente distribuir encar-
egoísmo mais amplo, que se dilatou até abraçar um maior gos e funções, confiando às massas a incumbência de multipli-
número de seres. É a evolução que leva o egoísmo a expandir- car-se na carne, e a poucos eleitos o trabalho de formá-las e
se em um egoísmo relativamente mais extenso, chamado de guiá-las espiritualmente. Esses eleitos, verdadeiros evoluídos,
altruísmo, em relação ao primeiro. Esta expansão toma o no- só podem sentir o amor de uma forma supersensível, universal,
me de amor, e ela nos faz subir. Evolver é, pois, dilatar o nos- base de uma fecundidade toda espiritual e de especial missão
so eu progressivamente, cada vez para mais próximo de Deus. que lhes confiou a vida. Esta não se esgota inteiramente no pla-
Quanto mais nos avizinhamos d'Ele, tanto maior será a unida- no animal humano, a que se limita hoje a observação científica.
de coletiva em cujo seio saberemos harmonizar-nos, tanto Outras formas de existências há acima desse plano animal. E é
mais vasto e profundo será o irmanamento que saberemos rea- no ingresso do ser em superiores fases de evolução que a natu-
lizar. É necessário, em suma, sacrificar o eu ao amor, não im- reza transforma, com o tipo biológico, também o fenômeno da
portando o que isto possa custar-nos. E sempre nos custa! Mas sexualidade. Tudo isto corresponde perfeitamente à economia
só são verdadeiras as alegrias determinadas pela fadiga da as- da vida, que não renuncia a algumas das suas atividades e ma-
censão. As comodidades da descida constituem uma mira- nifestações, senão para que essas cedam o lugar a outras que
gem... E é lógico que o seja. Deus, que é justo, não pode con- colimam fins que, pela importância, superam os precedentes.
ceder felicidade não merecida. O homem desejaria a via mais O que já dissemos com respeito ao amor pode ajudar-nos
fácil. Mas, queira ou não, outro caminho não existe, senão a muito a compreender o que diz respeito ao super-homem. Se no
vereda estreita e difícil, para alcançar a verdadeira alegria. plano animal humano domina a renúncia na castidade, no plano
Hoje, o mundo prefere as vias do ódio às do amor. E isto se espiritual sobre-humano triunfa a maior afirmação no amor
dá pelos bens materiais. Odiai, odiai, mas sereis infelizes, por- universal. A castidade que o caracteriza é algo bem diverso de
que o ódio é dor. Sem amor, por mais rica que seja a vida, ela é simples negação e renuncia. Ela é, ao contrário, condição de
estúpida, sem objetivo, destituída de sentido. Não há bem estar afirmação e superação, é um abandono do inferior, visando a
material que nos possa compensar da dor que o ódio nos acar- conquistas em níveis superiores. Na harmônica distribuição das
reta. Não é com o ódio, mas com amor, que se cria o bem es- atividades vitais, uma exígua minoria pode e deve subtrair-se à
tar. Na Terra, não nos resta senão o amor venal, prostituído pe- lei da maioria, para cumprimento de missões que esta não pode-
lo interesse. Esse fato nos torna desesperados, porque o amor ria assumir. Não se pode, pois, confundir a castidade negativa,
não é apenas uma necessidade da carne, mas, sobretudo, uma verdadeira mutilação quando aplicada ao involuído, destinado a
exigência do espírito. Hoje procura-se matar este, sufocar-lhe o viver no plano animal, com a castidade positiva do super-
grito no prazer da carne. Mas o homem, ainda que involuído, homem, que se liberta das formas animais de sexualidade, para
não é apenas o bruto; a libido satisfeita não basta para saciá-lo. conquistar novas, mais altas. Não faltam na história exemplos
Além da carne está a alma, que clama pelo amor. É a alma, que de semelhantes eleitos na castidade positiva, que não é morte,
não se sacia apenas com o prazer, que pede mais e que se de- mas triunfo do amor, casos de seres que ardem não mais nas
bate se não dermos. Ela se ergue do leito de prazer, cheia de paixões animais da carne, mas nas sobre-humanas do espírito.
náusea e de asco, e chora anelando pelo Alto. É sede de amor, Eles, evolvendo, superaram as alegrias, obrigações, desejos e
isto é, de qualquer coisa de santo e de sacro, daquela conjun- lutas do comum amor sexual e familiar. Neles, o egocentrismo,
ção mística que é a única centelha que vibra entre as almas. É a que no amor humano não supera em amplitude um egoísmo di-
necessidade do divino que nos falta e que é necessário à vida. latado no máximo ao grupo familiar, abraça aqui toda a huma-
O materialismo acreditou poder libertar-se de fastidiosos e su- nidade, todas as criaturas, todo o universo. O amor desses seres
pérfluos liames e pretendeu nos arredar das fontes da vida. O é demasiado elevado e vasto para que possa caber nas formas
mundo, hoje saturado de ódio, procura afogar o tormento dessa limitadas e egoístas do amor humano.
sua insatisfação no prazer. Mas isto é ilusão, porque, sem o Até aqui, tudo vai bem, cada um palmilhando o seu cami-
verdadeiro amor, não pode haver alegria. nho, com o seu tipo de amor e proporcionada função biológica,
150 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
segundo a natureza que lhe é própria. No entanto sucedeu que o não estiver amadurecido, isto é, apto a subir, poderemos veri-
tipo biológico supranormal foi tomado como modelo e proposto ficar, ao invés de um aumento de pressão que eleva, um au-
à imitação, especialmente no campo religioso. E também isto é mento que oprime e comprime, tendendo não a escapar por
em parte justo, visto que a educação só pode provir do melhor. cima, mas a romper impetuosamente por baixo. Assim vê-se
Porém ocorreu que, para tornar tal imitação possível, tentou-se como é difícil o sábio uso de tais virtudes. Quando o indiví-
forçar a evolução, impondo-se de fora um processo de assimi- duo atinge, por evolução, uma nova criação e conquista, ele se
lação da perfeição através de uma disciplina da castidade, adap- depara logo com uma bifurcação, ou seja, com a possibilidade
tada somente a temperamentos de exceção, e jamais a tipos bio- de se encontrar, de um lado, com o são e, de outro, com o re-
lógicos muito afastados do supranormal. Ora, cabe então per- verso patológico. Arrisca-se assim a descer, ao invés de subir,
guntar aqui em que se tornará essa disciplina e quais serão os a criar o vício em lugar da virtude, a contrair a vida em vez de
seus efeitos, quando aplicada em tipos imaturos, em tipos invo- expandi-la para Deus. A cada indivíduo é aplicada a lei do
luídos normais, desprovidos até de uma maturidade inicial, respectivo plano evolutivo e a regra à altura de sua compres-
despidos mesmo de um positivo instinto ou germe de superação são. Para os não chamados, que constituem a imensa maioria,
biológica? O que haverá, se tamanha carga for aplicada artifici- já é muito que possam seguir o amor carnal disciplinado no
almente, quaisquer sejam os motivos invocados, sobre os om- matrimônio e nobilitado pela família.
bros de semelhante tipo biológico, incapaz sequer de suspeitar Abordemos agora um outro aspecto da questão. Esta diz
no seu íntimo, diga-se o que se disser, da existência da vida es- respeito à conduta do evoluído, para o qual a castidade terá um
piritual? Evidentemente criar-se-á assim um ergástulo em plena significado, quando posto em contato com a massa dos involuí-
vida, gerando-se uma opressão capaz de produzir tipos aberran- dos, cuja psicologia é bem diversa. Aqui, no plano animal do
tes, ligados às mais baixas paixões. É um grave erro acreditar, amor sexual, encontramo-nos em pleno regime de luta e rivali-
como às vezes se acredita, que a virtude atinja os seus limites dade. O princípio vital anseia por individualizar-se na carne.
extremos somente com o seu aspecto negativo de renúncia e Mas existe a concorrência, pela qual todo indivíduo desejaria
que uma tal vontade, assim aplicada, possa criar o bem. Assim inteiramente a expansão criadora para si, sobrepujando os de-
encarada, ela se transforma numa fonte de dor inútil e prejudi- mais, de modo que, se uma única espécie, por ser melhor dota-
cial. Quanta infelicidade surgirá se lhe faltar o seu complemen- da, pudesse vencer, logo invadiria tudo, suplantando os outros.
to afirmativo criador de conquista e de amor! Infeliz daquele Ciúme e domínio fazem parte do amor animal. O conceito da
que tenta suicidar-se no plano animal, se é incapaz de ressusci- virtude, na prática, ressente-se de tais instintos. O involuído
tar no plano espiritual! Virtude dessa ordem é prejudicial. pode, por isto, facilitar as limitações terrenas do evoluído, por-
Qualquer negação da vida só é lícita em vista de uma afirmação que estas significam um rival a menos, em vantagem da própria
mais elevada. Deus não quer a vontade que disseca e mata, mas satisfação e expansão vital. O involuído pode estimar o evoluí-
a virtude que fecunda e caminha para a vida. Os super-homens, do, por que este, vivendo em um outro plano de vida, não pode
os verdadeiros eleitos são poucos, e que sucederá então? Os in- ser o seu natural inimigo. É verdade que, no consenso coletivo
divíduos que, no monasticismo de todas as religiões, isolam-se de veneração pelos seres superiores, que vivem de sacrifício,
na castidade dos conventos em comunidades monossexuais, se- existe no instinto das massas também algo de origem diversa,
rão todos eles seres superiores, capazes de utilizar tal mutilação que é uma intuição instintiva do seu valor e da sua função bio-
em vista de uma superação no amor universal? Ou, em verdade, lógica. Mas isto não impede que o senso utilitário leve em
esse tipo biológico será absolutamente incapaz de atingir, pela apreciação a ausência do rival. E nunca se tem motivo para odi-
própria altura, essa compensação de ordem superior? Então, a ar senão o rival. O nosso mundo está mais apto a compreender
que distorções, contradições e mentiras será ele obrigado pela no santo o lado negativo da renúncia à Terra e é levado quase a
própria disciplina que pretendia melhorá-lo? E assim esta, ao compensá-lo por isto, dado que lhe é útil, com louvores pela
invés de elevá-lo, inutilizá-lo-á. A evolução não se força e não sua virtude. Tal exaltação residiria no universal ―do ut des‖ da
se precipita. Impondo um ímpeto evolutivo com esforço des- vida, como uma compensação que o homem dá a quem não o
proporcionado ao grau e possibilidades existentes, provoca-se, molesta na qualidade de antagonista e lhe poupa um pouco do
como reação, a involução, e não a evolução. Então presencia- árduo trabalho de lutar. O místico é sempre um inimigo a me-
remos o triste espetáculo de seres destinados somente a mutilar- nos e, por isto, é inofensivo. Um inconsciente cálculo utilitário
se e diminuir-se, a sufocar a vida e a descer, forçados a subme- preside a todos os juízos humanos. Assim, quem é da Terra está
ter-se a tristes adaptações e a viver sem compensações. predisposto a um tributo de consolação, que pouco custa e que,
Bem diferente sucede com o indivíduo biologicamente por conseguinte, é um bom negócio, dado o baixo preço que lhe
adaptado, pelo menos de algum modo preparado. Então a casti- paga pelo que parece a outrem pesada renúncia. Mas o santo se
dade pode desempenhar a função de obrigá-lo a procurar desa- compensa com algo bem diverso. No seu egoísmo, porém, o in-
fogo em nível superior, uma vez que lhe estejam cerradas as voluído sente-se então em pleno direito de exigir virtude no
portas embaixo. A paixão sexual representa normalmente, no evoluído, isto é, qualquer forma de sacrifício que limite sua ex-
plano animal, a manifestação de uma força e a descarga de um pansão vital no plano humano-animal, procura sempre enxotá-
impulso, através do que a vida se exprime e busca atingir de- lo para fora desta região, porque é nela que se encontram os
terminados fins. Quando, artificialmente, é imposto um dique à seus tesouros, dos quais é cioso. Assim é que, enquanto o santo
natural manifestação dessa energia, dá-se com ela como que vive, o indivíduo normal suspeita de orgulho e de qualquer
uma compressão, uma concentração que implica um aumento afirmação, só se decidindo a render-lhe pleno tributo de honra
de potencial, levando o nível de suas manifestações a formas quando morre, porque só um morto lhe deixa seguro de que não
biológicas mais evoluídas. Passa-se o mesmo que em um reci- haja mais um rival na Terra.
piente que recebe água, sem que seja permitida a saída por bai- Como se vê, tudo se baseia em um mal entendido derivado
xo. O nível tende a subir, para sair por cima. Eis para o que po- do ponto de vista do involuído, inteiramente diverso do evoluí-
de servir a castidade: elevar o nível da água, isto é, do potencial do. O primeiro acredita que este último se sacrifique por ele,
nervoso, de maneira a determinar a gênese de manifestações de em sua vantagem, e esta é uma das primeiras condições para
vida e formas de paixões mais elevadas. que ele o aprove, pois que serve ao seu egoísmo. Pragmático,
Mas o problema é se estará a maioria dos indivíduos mo- não vai além. Porém um altruísmo absoluto, além de absurdo
dernos que praticam esta disciplina amadurecida para seme- para quem o desfruta, é um desperdício antivital e um absurdo
lhante evolução? Nisto reside a dificuldade. Se o indivíduo num universo que é egocêntrico em Deus e em tudo que se as-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 151
semelha a esse princípio. O santo, mesmo quando se torna um parecer anormal e patológico, também pode parecer, observado
mártir, não renuncia de modo nenhum ao próprio eu, não o des- de uma fase de evolução mais elevada, uma tentativa de estabi-
perdiça, mas é no próprio eu, cada vez maior, que ele compre- lização e fixação, nas formas da vida humana, de um novo tipo
ende e abraça fraternalmente homens e criaturas. O santo vive de amor supersexual, ativo somente em seu nível, e não mais
em um outro plano biológico, sob leis que o normal não com- naquele humano animal do presente. O lançamento de hormô-
preende, e, se cede muitas coisas a este, é porque delas não tem nios no mecanismo cardíaco não seria, assim, um desvio pato-
mais precisão. Isto mostra como, nas concepções dos ideais, lógico, mas apenas um meio de repercussão no plano orgânico,
existe na Terra, por utilitarismo egoísta, uma certa percentagem paralelamente à transformação do fenômeno do amor por evo-
de inquinamento, até ao ponto de considerar instintivamente a lução. Eis qual pode ser, em alguns casos, a justificação e o
virtude no próximo como meio de sufocar-lhes as manifesta- significado biológico da castidade. Do contraste entre o psico-
ções vitais no plano humano-animal. logia normal e a do evoluído, vimos de quanta incompreensão
Após haver considerado a função evolutiva da castidade e a é circundada a laboriosa ascensão biológica do místico, que,
psicologia com que o homem comum a julga no evoluído, se- vivendo em um plano diverso, defronta-se com leis de vida di-
gundo o seu ponto de vista terreno, abordemos agora, para ferentes. É assim uma renúncia que, para a maioria, não é ade-
concluir, um aspecto que a evolução do fenômeno sexual pode quada e, se imposta por força, pode ser prejudicial, mas que,
assumir em indivíduos em processo de maturação mística. Vi- no homem superior, constitui a primeira condição para a sacia-
mos já as relações entre sexualidade e misticismo. O momento ção de paixões mais elevadas e para a manifestação de um
de mais intensa manifestação da vida do místico está no êx- amor divino, mais amplo e poderoso.
tase. Trata-se de um arrebatamento, de um particular estado
que é afim com o transe mediúnico, mas do qual se distingue CONCLUSÃO32
nitidamente, porque o grande transe dos médiuns é inconscien-
te e passivo, enquanto que o rápido transe dos sensitivos deixa Detenhamo-nos ainda um pouco antes de deixar este volu-
intacta a personalidade e desperta a consciência. Isto deriva em me, ao fim desta sétima etapa, e primeira da III Trilogia. Este
parte do conteúdo teológico e transcendental divino que o tran- novo trajeto também está cumprido. Assisto a este meu cami-
se do místico pode assumir no êxtase. Ora, no momento cul- nhar fatal, que calma e constantemente avança em direção à
minante do êxtase místico, pode verificar-se o fenômeno do meta proposta. Quando antes se escolheu espontaneamente e se
angor místico, que parece relacionar-se ao fenômeno sexual. Já decidiu livremente, o caminho é depois fatal. Mais como espec-
observamos o significado profundo do amor e as fortes razões tador do que como ator, observo esse desenvolvimento de for-
pelas quais ele é alegria. A ciência nos diz que o angor místico ças que, uma vez postas em ação, querem, como que possuídas
é um fato pseudo-anginoso-cardíaco, um espasmo das artérias de uma vontade própria, alcançar a meta prefixada. E a matura-
coronárias como sucede nos casos patológicos de angina pec- ção continua em mim, nos escritos e no mundo. Já por estas
toris luética ou artério-esclerótica. Ele não difere dos outros três vias, o meu olhar, do caminho percorrido, projeta-se para a
espasmos fisiológicos que se acompanham de prazer, como o sua continuação. É a ânsia de subir, e a cada etapa a alma se
orgasmo sexual, senão pelo móvel e pela sede anatômica. Em lança para diante, em direção à seguinte, escruta o horizonte de
um temperamento espasmo-fílico, em caso de libido insatisfei- amanhã, ávida de explorar ainda o ignoto, que esta sua apoca-
ta, pode-se sensibilizar o plexo simpático cardíaco por hormô- líptica aventura no infinito sempre lhe reserva.
nios genitais espasmogênicos, que agem em tal caso como ex- O corpo segue a sua trajetória em descida, o espírito segue
citantes sobre os nervos e fibras cardíacas. Tudo, pois, é devi- a sua marcha em subida. Neste acende-se cada vez mais uma
do à projeção de tais hormônios no mecanismo cardíaco. É um juvenil alegria de viver, que o envelhecimento de um invólucro
fato, pois, natural, ainda que supranormal. Fato representado físico perturba cada vez menos, porque a distinção e o desta-
alegoricamente pela ―Kundalini‖ na Yoga hindu, em que a ser- que entre os dois acentuam-se cada vez mais. Pelas vias da as-
pente ―Kundalini‖ (libido) desperta e, do períneo, ascende su- censão espiritual, a independência do espírito em relação à
blimando-se através dos diversos Chacras (gânglios do simpá- morte do corpo, seu invólucro, torna-se sempre mais acentua-
tico, centros nervosos medulares), que se sensibilizam, até al- da. Os sentidos físicos se embotam. Estas portas da alma aber-
cançar o supremo Chacra no cérebro. Ora, se a ascensão do fo- tas ao mundo da matéria se atravancam de detritos, que obstru-
go ―Kundalini‖ e o angor místico se explicam fisiologicamen- em a rápida passagem das vibrações. Os sentidos intensivos,
te, a intuição, a fé e a experiência mística nos dizem que em tal porém, mais aguçados, estremecem de todo lado da prisão cor-
fenômeno concorreram também certos elementos de caráter pórea, produzem novas passagens nos muros desta e se lançam
transcendental, embora esses escapem à perquirição da ciência. ávidos para outros mundos, que começam a experimentar.
Esses especiais estados orgânicos e nervosos estão conexos a Uma das minhas maiores alegrias, confesso, está em repousar
particulares estados psíquicos, em que sentimos a presença es- do duro labor de viver na matéria e entrar em comunicação
piritual de correntes de pensamento e de afetividade, as quais com o mundo do espírito, sentir o infinito, auscultar em nosso
admitimos que sejam provenientes de seres extraterrenos, com contingente, tão vívida e próxima, real e tangível, a imanência
os quais, em tais sublimes momentos, o místico conseguiria de Deus, tão distante para nós na Sua transcendência, e poder
pôr-se em sintonia e, por conseguinte, em condições de resso- então admirar fascinado esse universo tão saturado de pensa-
nância para comunicações espirituais. Assim o fenômeno do mento, a fim de que eu ouça alguma coisa de tudo que ele diz e
amor se nos apresenta com um aspecto bem diverso do sexual, que sabe o que eu não sei, a fim de que me ensine a resolver
alcançando os mais excelsos estados espirituais. Eis que trans- tantos problemas que Ele resolve a cada momento por vias que
formações orgânicas e nervosas podem se unir à evolução da eu não sei compreender. Então não posso deixar de ouvir a voz
sexualidade, que alturas pode a vida alcançar, enquanto, no in- tonitruante de Deus, que fala da profundeza de todas as coisas.
ferior plano animal, ela parece mutilar-se na castidade. Então, Vejo, assim, que todos os seres têm a face voltada para Deus e
enquanto tudo emudece no plano passional humano, ascende- que quem a volta ao contrário morre. Desse modo, desperto e
se no plano espiritual para a ardência de um amor diverso, su- ressurjo em uma consciência maior, em uma vida que é eterna.
blime, agindo em formas diferentes, em mais altos níveis de É uma lenta ressurreição, viva e sensória, mas em outra parte,
vida. E, assim, o fenômeno orgânico parece que se torna amor-
tecido pelo fenômeno místico e que o espírito domine tudo. 32
A presente conclusão refere-se a este volume e ao anterior: Pro-
Então, também aquilo que, visto pela fase biológica atual, pode blemas do Futuro. (N. do A.)
152 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mais distante, quem o sabe onde e como, no infinito. É como mos nas profundezas. Como estas verdades se revelaram a
que um abrir-se da alma para novas realidades inexploradas. mim porque busquei, podem revelar-se a todos os demais que
Ela, com outros olhos, fixa estupefata as novas maravilhas e queiram realmente buscá-las. Cada volume representa para
por elas é arrebatada, porque, em sua nova audição, ouve can- mim um dado trajeto psicológico no caminho de minha vida.
tar o divino, música indefinida, feita de silêncio. Assim, de fa- Este último, que se completa em 1950 33, teve, ademais, por seu
diga em fadiga, mas de alegria em alegria, continua a sua mar- particular conteúdo, também uma outra característica, de que o
cha, que não pode ser contida. meu pensamento quis aproximar-se dos problemas do espírito
Neste novo trajeto, que vai da Páscoa de 1945 (fim do vo- pela via de uma experimentação diferente, de caráter abstrato,
lume precedente) à Páscoa de 1950 (fim do atual), a minha ex- especulativo, resultante das conclusões de processos lógicos da
perimentação evangélica me demonstrou cada vez mais, no la- mais moderna físico-matemática. Essas conclusões, aceitas pe-
boratório da minha vida, em que analiso os fenômenos espiri- la ciência, forneceram-me uma base sólida, um elevado ponto
tuais e aplico experimentalmente as teorias expostas, a verdade de referência e de partida, sobre o qual se pudesse construir as
da doutrina do Cristo, tida por loucura pela maior parte do teorias do espírito, que depois se encontram no Evangelho.
mundo. Verifiquei que, quando a inversão evangélica dos valo- Com alegria, constatamos que mesmo a ciência, antes materia-
res é realmente aplicada, então funciona a economia do evolu- lista, está despertando e se prepara para fornecer uma séria con-
ído, a Providência, como descrito no 3 o volume da II Trilogia, tribuição à nova civilização do espírito. Esta nova ciência me
isto é, funciona até em nosso contingente esta nova técnica a impressionou e, nela, vi a nossa melhor aliada. Os próprios ci-
que nós, porque não a compreendemos, chamamos milagre. entistas que a divulgaram não puderam compreender a impor-
Neste período, desde que terminei o referido volume, A Nova tância do grito que eles, imersos nos cálculos, deixaram esca-
Civilização do Terceiro Milênio, submeti os princípios aí afir- par, como também não atinaram ainda com as suas consequên-
mados a controle experimental, obtendo resultados plenamente cias no campo espiritual. O mundo não compreendeu esses
satisfatórios, que me encorajaram crescentemente na difícil via grandes sintomas, que nos dizem que o caminho da vida está
de aplicação integral do evangelho. Em uma estrada que hu- mudando de direção, mudança pela qual as mentalidades de
manamente parece desastrosa, o prodígio da salvação se deu vanguarda são levadas a dirigir-se da matéria para o espírito.
regularmente no momento mais oportuno. Jamais poderei Assim, com o volume Problemas do Futuro, desenvolve-
desmentir esta confirmação experimental por mim obtida, até mos e aprofundamos a parte abstrata e científica de A Grande
hoje, na realidade do contingente. Em face de tais provas, o Síntese, como no precedente a ele o fizemos no que tange à par-
meu mais precioso e agudo espírito de observação e de autocrí- te prática e humana. Desta maneira, aquele pensamento que po-
tica, que me é tão necessário para controle, lado a lado à fé deria parecer não ortodoxo, esclareceu-se e tornou-se sempre
mais ardente, teve que se render. O risco do momento, como a melhor demonstrado como científica e racionalmente corres-
todos, também a mim pareceu muito grave, às vezes terrifican- pondente à realidade dos fatos. Destes novos volumes, A Gran-
te. Mas a coragem conferida pela fé apaixonada em Cristo des- de Síntese sai sempre mais reforçada. Eu mesmo, penetrando-
fez todas ao barreiras, que, uma vez enfrentadas, esbarronda- lhe cada vez mais o pensamento em profundidade, encontro
ram-se. Cristo, com quem me encontro sempre em contato, novas provas na vida e confirmações por todos os lados, quer
salvou-me a todo o instante. Tudo quanto foi afirmado no experimentando no campo moral, quer aprofundando-me no
mencionado volume é, pois, realmente verídico, e o tempo na- campo científico. Compreendo assim o que antes havia intuiti-
da mais fez do que confirmar. Cada vez se torna mais verda- vamente escrito, mas que não havia racionalmente compreendi-
deiro tudo quanto pretendi explicar analítica e racionalmente do. Se o volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio con-
sobre a técnica de tais salvações, a fim de que outros pudessem firmou A Grande Síntese no plano moral e social, os volumes
experimentá-las. Os princípios do Evangelho são leis biológi- Problemas do Futuro e Ascensões Humanas a confirmam no
cas de planos mais elevados de existência. Essas leis são real- plano psicológico e científico.
mente atuantes, quando nós as colocamos em funcionamento, Podemos assim, dizer agora, no fim deste novo volume, que
aplicando-as. De outra forma, não sendo aplicadas ou sendo foram aplicadas as palavras de A Grande Síntese (Capítulo
mal aplicadas, como sucede no mundo, é natural que elas per- XLII): ―A minha meta é a compreensão de uma lei mais eleva-
maneçam no campo da utopia. É compreensível que todo o da, de amor e colaboração, que a todos vos una num grande or-
mecanismo de forças, para pôr-se em movimento, tenha que ganismo animado por uma nova consciência universal e unitá-
ser tocado nos pontos motores, a fim de que funcione. É lógico ria. Não se trata, fundamentalmente, de uma sabedoria nova,
que, nas mãos do involuído ignorante, isto não pode suceder. pois apenas repito a boa-nova que já foi trazida há milênios aos
Fortalecido pelos resultados experimentais por mim obti- homens de boa vontade. Repeti-la-ei toda idêntica na substân-
dos, não somente no campo moral, mas também no psicológi- cia, mais ampliada para se ajustar ao campo mais vasto de vos-
co, quis expor nesses volumes estas novas realidades, para que sa mente mais amadurecida, a fim de que finalmente vos abale,
o leitor as descobrisse depois a seu modo, de si e por si, como vos ilumine, vos salve. Eis o meu objetivo: a palavra eterna, o
eu as descobri de mim e por mim. Descoberta esta que, se feita alimento que sacia, a solução de todos os problemas. E chegarei
em larga escala, poderia revolucionar o mundo. Guiar o ho- ao Evangelho de Cristo pelas veredas da ciência, isto é, chega-
mem em larga escala, poderia revolucionar o mundo. Guiar o rei ao Evangelho pelas mesmas sendas do materialismo, para
homem para elas creio que seja a maior contribuição que se fundir os dois pretensos inimigos: ciência e fé; para vos de-
possa dar para a ascensão em direção à nova civilização do es- monstrar não existir caminho que ao Evangelho não conduza;
pírito. São descobertas práticas, porque de resultados úteis, para impô-lo a todos os seres racionais, tornando-o obrigatório,
uma vez que facilitam o convívio humano, isto é, a coletiviza- como o é todo processo lógico. Ele é a nova lei super-humana,
ção da vida, que é a sua atual tendência. São úteis também no a superação biológica que a evolução da humanidade impõe
sentido de que elas não fazem apelo senão ao natural desejo neste momento histórico, em que está para surgir a civilização
humano de um proveito. Trata-se daquelas ideias-mães, extre- nova do III Milênio. Soou a hora em que estes conceitos, olvi-
mamente genéticas, porque representam uma centelha criadora dados e incompreendidos, pregados e não vividos, explodem,
da grandeza do pensamento. Elas têm o poder de gerar uma pelo seu próprio poder, no momento decisivo da hora do mun-
nova civilização, porque já estão escritas no livro da vida e fa-
zem parte do divino plano da sua ascensão. Eu quis ver nas 33
Aqui o autor também se refere ao volume anterior: Problemas
profundezas para lê-las e ensinar os outros a lê-las por si mes- do Futuro. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 153
do, fora do âmbito fechado das religiões, na vida onde o inte- sem se dar conta e cujos resultados ele aceita; há uma matura-
resse luta, a dor sangra, a paixão dementa‖. ção que a vontade humana não determina nem guia.
Os presentes volumes continuam a confirmar essa promes- A compreensão destes escritos, que tendem à espiritualida-
sa, que eu havia registrado, mas não havia avaliado, ignorando de, demonstra uma mudança da forma mental, é um sintoma da
que ela pudesse ter conduzido aos desenvolvimentos atuais. real aproximação do novo modo de conceber a vida, na nova
Depois de uma semelhante acumulação contínua de confirma- civilização do espírito. Isto sucede em meio ao desfazimento
ções, é evidente que se torna sempre mais absurdo renegar A dos valores da atual civilização da matéria. Nesta, todos os
Grande Síntese, cuja verdade, desde há tantos anos, estou con- princípios foram falseados e, por isso, cada vez mais estão per-
trolando a cada instante na vida cotidiana do mundo físico e dendo as suas significações precisas. À força de mentir a res-
espiritual e que cada experiência da vida confirma no plano peito de tudo, para daí extrair vantagens na luta pela vida, a
prático, moral, lógico e científico. Jamais logrei encontrar, na avalanche dos valores falsos postos em circulação em todos os
mais desapiedada crítica, um fato sequer que desminta esse li- campos está poluindo a atmosfera de todos. As ideias mais san-
vro. Quanto mais procuro os pontos fracos, tanto mais ele se tas são aproveitadas para camuflar os mais baixos valores. A
fortalece. A Grande Síntese me fez compreender tudo, deu-me delinquência e o vício apresentam os seus mártires, arvorados
forças para superar muitas provas, sustentou-me na dor, incul- em vítimas do ideal. Tudo se adota apenas com um objetivo uti-
cou-me esperança e fé, iluminou-me a mente e aqueceu-me o litário de aproveitamento. Estes escritos correspondem à neces-
coração. Centenas de cartas, repletas de gratidão, chegam-me sidade vital da reposição dos mais altos valores, que, na inver-
de todas as partes do mundo, repetindo-me essas mesmas afir- são verificada, passaram a situar-se no fundo.
mações. Não se pode negar tais fatos. A minha vida, assim Entre tantas cisões e partidos, mentiras e interesses, a palavra
como a vida de muitos outros, é um deserto de espinhos, mas imparcial e universal, sincera e desinteressada, reconstrutora de
agora possui oásis floridos, refúgios de paz. Pervagamos por valores elevados, conexa à verdade eterna, ainda que pareça fora
tantos problemas, e todos se orientam e encontram a sua solu- da psicologia do tempo, justamente porque cada vez mais rara,
ção em Cristo... que é a luz de A Grande Síntese e para quem torna-se sempre mais procurada. Quanto mais se difunde a injus-
ela está sempre apontada, em ascensão. tiça, mais se tem fome de justiça; tanto mais o ódio campeia,
Uma outra prova da verdade me vem da sua automática di- mais se tem sede de amor; quanto mais a malvadez nos atormen-
vulgação no mundo, apesar de quase nenhuma disponibilidade ta, tanto mais se valoriza a bondade. Especialmente os jovens,
de meios próprios. Ademais, sem nenhum plano de preparação que ainda devem viver uma vida na Terra e, mais do que todos
cultural científica, tenho em mãos um organismo conceitual, os outros, têm necessidade de um amanhã, sentem-se mais asfi-
que progrediu compacto até hoje, já no décimo volume 34, que xiados pelo vácuo resultante da destruição moral do que pela ru-
se encontra no nascedouro, em seguida a este. Tenho a sensa- ína material e econômica da última guerra, e assim procuram re-
ção de uma coisa querendo avançar quase que por vontade construir a alma devastada. Eis aqui um alimento de verdades
própria, para cumprir seu destino, porque ela é uma força en- eternas que nenhuma derrocada humana poderá destruir.
gastada em um sistema de forças que, encontrando-se em ple- É verdade que muitos, por se encontrarem encerrados nos
no desenvolvimento, deve, por conseguinte, fatalmente cami- castelos das próprias verdades particulares, podem olhar estes
nhar para a meta proposta. Então tudo parece caminhar por si escritos, pela sua imparcialidade, com desconfiança, ao não se
mesmo, tudo tende automaticamente ao êxito. Conheço por verem neles particularmente representados. Quem não repre-
experiência uma outra ordem de coisas que, por mais deseja- senta nenhum grupo humano, não sendo o expoente de nenhum
das, estudadas, procuradas e impelidas que sejam, mesmo sen- interesse, não é mantido e impelido por ninguém e deve pro-
do realizadas com todo o empenho, não conseguem atingir o gredir sem auxílios terrenos. Está só. Mas somente assim pode-
objetivo e tendem irresistivelmente a imergir em um mar de se alcançar uma verdade universal como a que requerem as
obstáculos. Se A Grande Síntese parece querer avançar por si grandes unificações sociais do nosso tempo, as quais não se po-
mesma, devo supor que a força que a mantém não pode ser ou- de atingir por meio de extensões imperialistas de centros parti-
tra senão o fato de ser ela segundo a Lei, e não contra, isto é, culares. Está só. Mas, justamente por isto, pode dizer a verdade
estar conforme a verdade, e não em erro. de todos, e não apenas a do grupo, da classe social ou do parti-
Tenho a sensação de que a maturação do momento históri- do ao qual se encontre exclusivamente ligado. Está só. Mas,
co o tornou faminto de soluções universais e apto a compre- desta forma, ele pode, melhor do que um conjunto de homens,
endê-las. Por isso eu me encontro na posição de ter sido in- representar a vida, as suas leis, traduzir-lhe a voz e ter para sua
conscientemente o intérprete de uma necessidade da mente sustentação e defesa as forças da evolução, muito mais podero-
moderna e de ter oferecido, sem querer e saber, precisamente sas que as de um grupo humano. Em nosso caso, tudo o que pa-
o alimento necessário à vida e por ela exigido. O que foi que, rece produto da inspiração de uma inteligência não humana de-
tão experiente de tudo isto, falou em mim e como pude sentir ve também difundir-se por forças e meios não humanos. Estra-
a forma mental da hora histórica? Não há processo lógico que nho método de conceber e de operar! No entanto é aquele que
possa dizer por que hoje domina uma corrente de ideias e vemos em plena ação. Estranho, porque está nos antípodas do
amanhã uma outra, ou prever qual será a corrente que vai do- método adotado pelo mundo. Este age de fora, reputa de pri-
minar mais tarde. Isto obedece a razões profundas, só conhe- meira necessidade a publicidade e os meios econômicos, ope-
cidas do pensamento que guia a vida. Ninguém sabe por que rando por vias exteriores, sensórias, superficiais. Aqui, inver-
hoje se pensa de modo diverso de ontem, e ninguém poderá samente, age-se de dentro, por vias interiores, de modo que pu-
saber como se pensará amanhã. Cada tempo tem a sua lingua- blicidade e dinheiro de nada servem. É o método de Cristo.
gem. O pensamento dos vários períodos históricos parece as- Tudo o que vem de Cristo parece estar impresso nesse méto-
sim funcionar no subconsciente coletivo, e o homem, mais do do, que repudia os meios humanos. Mas por que – poder-se-ia
que provocar este processo, parece sofrer seus resultados. Há objetar – sente-se justamente hoje a necessidade de uma de-
certamente na vida um outro pensamento, situado algures, monstração racional do Evangelho, como a que aqui se oferece,
mas não na consciência humana, que dele nada conhece. No isto é, a necessidade de um diverso método de divulgação,
pensamento coletivo, há um desenvolvimento automático e fa- quando Cristo, ao Seu tempo, não sentiu necessidade de recorrer
tal, com seus períodos, formas e leis, que o homem cumpre a ele? Ele, com isto, nos demonstrou que, para conquistar o
mundo, não há nenhuma necessidade de demonstração racional.
34
Aqui o autor refere-se ao volume Deus e Universo. (N. do T.) O mundo de hoje, porém, não é o mundo de então, e esse novo
154 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
meio é agora adotado porque possui maior eficiência na atuali- ra mim um ponto de partida para novos empreendimentos.
dade. Se o Evangelho é hoje assim apresentado, idêntico na Diz-se muita coisa, no entanto quase nada se diz. É verdade
substância, mas diferente nas palavras, é para que permaneça vi- que o passado se distancia cada vez mais, mas o futuro perma-
vo na alma moderna, transformada por evolução, e isto é uma nece no infinito. Olho, com uma sensação de temor, esse verti-
concessão à forma mental dos nossos tempos. Assim, oferecido ginoso infinito que nos espera a todos.
a esta o alimento espiritual na forma que ela exige, não terá ela Como não se pode frear a vida, para a qual existe sempre
mais o direito de recusá-lo. É uma concessão que implica uma um amanhã, assim como não se pode frear uma maturação bio-
grande responsabilidade para o mundo, porque se ele não quiser lógica, também não se poderá frear esse pensamento que em
aceitar o evangelho racionalmente demonstrado, não poderá va- mim continuamente nasce. E ele continuará a nascer, assim
ler-se de pretextos para mascarar a sua má vontade. A vida abre como a vida continuará sempre a nascer em mim e em todos.
hoje à humanidade as portas de uma nova grande civilização. As Sinto a atmosfera do meu aposento carregada de vibrações
tremendas consequências de uma recusa, que já não pode ser se- conceituais, ali já impressas de maneira imponderável, não
não conscientemente querida, terão que fatalmente ser sofridas. perceptível senão aos sentidos da alma. E esta, depois de ter
O produto oferecido por estes escritos é global, unitário, feito suas essas vibrações, assimilando-as ao próprio sistema
como todo desenvolvimento sempre orientado para o mesmo de forças, deve transmiti-las ao cérebro, para que as registre
centro. Unitário, porque os mais variados problemas, díspares em formas racional e analítica, depois as configure em pala-
e distantes, permanecem ligados por esta constante centraliza- vras e, por fim, por meio da mão comandada pelo cérebro e
ção, que os funde em uma única lei. Tudo aqui é regido por sistema nervoso periférico, materialize-as em forma escrita.
um universal senso unitário, pelo qual toda particularidade é Eis o meu trabalho! Assim este pensamento continuará a de-
sempre reconduzida ao mesmo centro. Unitário também por- senvolver-se em novos volumes, carreando-me para novos ho-
que se oferecem juntamente prática e teoria, o princípio e a rizontes, na direção em que sou impelido, isto é, desenvolven-
experimentação, sendo a lei exposta vivida por quem a expõe, do cada vez mais o processo de sublimação, que é o conteúdo
uma vez que todo verdadeiro filósofo deve crer na própria fi- desta III Trilogia. Esta sublimação opera o que pode parecer
losofia e vivê-la. Aqui, pensar e escrever significam viver. E também uma estranha transformação da personalidade. Antes
assim como para o autor, também para o leitor, a palavra deve de tudo, transformou-se em mim o método de registro concei-
possuir um mesmo significado de vida, e não pode ser com- tual, e é natural que o progresso evolutivo conduza a essas
preendida senão for transformada em vida. Ler sem viver sig- transformações. Enquanto, nos meus primeiros escritos, como
nifica poder compreender bem pouco. Isto porque a compre- Mensagens Espirituais e A Grande Síntese, tratava-se de re-
ensão é dada pela confirmação exterior da experiência e pela cepção direta, por via inspirativa, de uma fonte de pensamento
interior da voz da vida, que deve dizer ao leitor no seu íntimo: da qual eu era puro instrumento, ainda que em plena consciên-
Sim, é verdadeiro! Estes livros requerem, pois, esse novo mo- cia – tratava-se do registro de um pensamento já formulado,
do de ler, que não é comum. Ler para compreender não signi- que eu simplesmente recebia, não se tratando de mediunidade
fica aqui apenas uma penetração do pensamento, um árido ou ultrafania passiva em transe – agora, progredindo, tendo-me
processo racional, como é hábito no mundo cultural, mas sig- assenhoreado da técnica do método da intuição, a recepção su-
nifica compenetrar-se desde as profundezas, assimilar e viver cede não apenas como simples recepção, mas pela livre obser-
os conceitos, fazer deles a própria vida, para desenvolver em vação da substância das coisas, pela leitura do pensamento di-
si uma maturação biológica, a mesma que eles produziram em retor dos fenômenos, por visão direta, com uma nova capaci-
quem os escreveu. A dialética, as investigações, a potência de dade visual interior dos conceitos que presidem ao funciona-
argumentação lógica e polêmica, pertencem a outros planos. mento orgânico do todo. É assim que os quadros dos últimos
Aqui a luta, no sentido humano de supremacia, ainda que inte- volumes se apresentam não em forma inspirativa, mas como
lectual, é destituída de senso. visões em que simplesmente descrevo as minhas observações
O grau de evolução do indivíduo revela-se rapidamente pelo hipersensórias. Assim, explica-se a substituição da linguagem
método. O involuído polemiza, o evoluído organiza. O primeiro dos meus primeiros escritos, que não era minha, mas de natu-
é levado a firmar-se dominando, o segundo construindo. Um é reza transcendental, por uma linguagem racional e normal. Po-
particular, egocêntrico, separatista; o outro é universal, harmô- derá parecer, então, que a segunda parte, mais recente, da mi-
nico, altruísta. O primeiro compreende apenas pequenas verda- nha produção não passe de uma explicação racional da primei-
des parciais, em função de si mesmo; o outro abarca verdades ra. Não. Nenhum dos meus escritos é produção minha pessoal
universais, em função de todos. O primeiro é exclusivista e não ou criação da minha mente. Apenas se dilatou e aperfeiçoou a
admite senão as próprias verdades, declarando falsas todas as via da minha percepção. Se antes eu era instrumento, agora sou
outras. O segundo sente a possibilidade de uma infinidade de espectador, quando muito observador, mas jamais criador da
outras verdades, todas verdadeiras no universal, quais aspectos minha obra, que é de Deus e somente de Deus.
do absoluto. O evoluído pode compreender o involuído. Este Mas a sublimação também opera no meu caso uma outra
pode agredir aquele, mas não o compreende. A dialética é cor- transformação. Efetivamente devo atravessar, com a minha
rosiva, divide e não convence. A fé e o amor, a bondade e o sensação, a grande revolução biológica representada pela de-
exemplo convencem. Mais do que com a razão e a discussão, a molição do próprio eu como unidade egocêntrica. O altruísmo
verdade se conquista com impulso da mente e do coração. Se- e o sacrifício de si mesmo, além da lei de vida, em plano mo-
melhante conquista é, sobretudo, um abandono em Deus. Assim ral, o é também no biológico. A vida é uma transformação, e
como nós não criamos a vida, mas, se a vivemos, é porque a vi- querer paralisá-la em uma existência separada, para isolar-se
da vive em nós, assim também, se nós compreendemos, não é da corrente, encerrando-se no próprio egoísmo conservador,
porque nós tenhamos criado e descoberto a verdade, mas sim ao invés de abrir-se em um altruísmo inovador, acarreta ao ser
porque a verdade chegou em nós. a punição com o estiolamento até à extinção. A vida é feita de
Alcançamos assim o termo deste novo labor. Eis uma nova tal maneira que, enquanto tende egoisticamente a conservar-se,
série de experiências morais e materiais, vividas e realizadas compensa essa tendência com outra, oposta, pela qual ela se
nas vicissitudes cotidianas, alinhadas ao longo do caminho da empobrece ao se desejar conservá-la e se enriquece ao se que-
vida. Elas formam uma nova série de conceitos expostos neste rer dá-la. O egoísmo mata, o altruísmo é genético. Diz o Evan-
volume. Pode-se agora frear este pensamento? No passado, ca- gelho: quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á, e quem tiver
da ponto de chegada precedentemente atingido, tornava-se pa- perdido a sua vida (por causa do Evangelho, que é amor) a en-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 155
contrará. A vida, fonte de tudo, nega-se a quem se nega a ela, e Eis o conteúdo da sublimação. A um certo grau de evolu-
entrega-se a quem se lhe entrega. Ela é uma troca. Tudo isto ção, o eu se despersonaliza e se funde na humanidade. Na
nos é dito pela célula, pois ela nos mostra que a vida que per- imensa dilatação de si mesmo em todos, é um egoísmo que se
dura é a impessoal. Isto nos revela uma grande lei do ser: para torna tão amplo, que abarca a todos. Parece que se perde, mas,
sobreviver, é necessário não isolar-se, com o fito de conservar- na verdade, conquista-se uma vida maior, que é dada pelo eu
se, mas perder-se, lançando-se na grande corrente da vida. É impessoal, o qual não pode perecer. Não se concebe mais o eu
necessário, assim, desindividualizar-se, despersonalizar-se, agressivo, que combate para vencer e esmagar, porque os ou-
como sucede no amor que se dá. Quem se coloca como centro tros se tornaram ele mesmo. Só conceberá assim o eu que ama,
separa-se e morre. Poderemos, pois, tanto mais usufruir da vi- luta e sofre para ajudar os outros, porque ele se tornou eles
da, quanto menos pensarmos em nós mesmos. mesmos. Então o eu separado morre, desaparece, e passa-se a
Sendo o universo construído em esquema de tipo único, en- sentir como própria a dor, a responsabilidade e o dever de as-
contramos essa lei verdadeira tanto na reprodução como no censão do mundo. É inútil se rebelar contra essa lei da vida, que
amor evangélico pelo próximo. Em ambos os casos, a vida se a um dado ponto do nosso caminho nos prende, assim como os
recusara a nós, se nós nos recusarmos a ela e não revivermos, jovens são presos pelo amor. É a vida que assim quer. Tudo é
quer no primeiro como carne, quer no segundo como espírito. biologicamente lógico. Então a existência só pode ser missão.
Em biologia é o não-indivíduo que permanece, e não o isolado.
O amor é a voz da vida total, que exige altruísmo para constitu- GUBBIO, PÁSCOA DE 1950
ir um eu mais vasto, do qual o ser vivente é uma célula e a sua
vida um momento, de modo que, como indivíduo separado,
como eu isolado, o ser parece mais uma negação, um limite à FIM
vida plena, que é eterna e universal.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 157
e as edições em italiano se vão tornando cada vez mais lentas,
DEUS E UNIVERSO em face das dificuldades sempre crescentes do ambiente. Essas
dificuldades locais não mais conseguirão conter a divulgação
PREFÁCIO da Obra, que se desenvolve no mundo. O importante é que tudo
seja logo escrito e publicado, não importa onde. Outras gera-
ções, depois, após outras provas, virão e compreenderão.
Numa grande reviravolta da minha vida e da vida do mundo,
Na sua última missiva, na primavera de 1951, Albert Eins-
nasceu este livro, subitamente, como uma explosão. Foi escrito
tein assim me escrevia de Princeton–NJ, a propósito do oitavo
em vinte noites, pouco antes da Páscoa de 1951, aproveitando- volume da Obra, Problemas do Futuro, que mais dizia respeito
me de uma bronquite que me forçava ao repouso, furtando-me à sua especialidade: ―I have studied part of your book and have
ao trabalho diurno normal, necessário para a manutenção de mi-
admired the force of the language and the vast extension of
nha família. Escrevi-o sob intensa febre, que facilitava a eleva-
your interest...‖ (―Estudei parte do seu livro e admirei a força
ção do potencial nervoso, na solidão gelada de Gubbio. Como de expressão e a vasta extensão de seus objetivos...‖). O presen-
aqui está registrada, a visão me apareceu, em vinte etapas ou ca- te volume, no entanto, está construído em outro terreno, a que
pítulos, nos imensos silêncios daquelas longas noites hibernais.
podemos chamar teológico, além da ciência atual. Por isso é
Qual explosão de pensamento e de paixão, este livro não mais vasto do que o primeiro livro, A Grande Síntese, que ele
poderia revelar-se a não ser à aproximação da Semana da encerra em si, como um seu momento, desenvolvendo-se em
Páscoa, após um longo e íntimo tormento preparatório. Sob a um campo que a visão de A Grande Síntese, encarando apenas
exposição fria e racional, que pretendeu, sobretudo, ser fiel às o nosso universo atual, não podia atingir. Com o presente vo-
visões, oculta-se e arde essa paixão, a ânsia do inexplorado, o lume, pode-se dizer que o ciclo dos grandes conceitos básicos
terror de debruçar-se sozinho sobre os abismos dos maiores está exaurido, atingindo-se a solução dos máximos problemas.
mistérios, a imensa festa da alma pelo conhecimento obtido. No Possivelmente, depois deste esforço de racionalismo cerrado, o
esforço aqui despendido para galgar os últimos cimos, como undécimo volume, por compensação, deverá assumir caracterís-
coroamento da Obra, há como que uma vertiginosa tica oposta, ou seja, de vitória da vida no espírito.
desesperação da alma, que se sente perdida e desfeita diante do ―Através da vida tenho caminhado, caindo e levantando.
lampejo de uma concepção que não é sua, que dardeja sobre ela, Através dos meus escritos tenho percorrido uma longa senda de
ofuscando-a e arrebatando-a para os vértices do pensamento, fadiga e de fé. Quantas etapas superei! O meu pensamento de-
onde tudo se faz uno, e para os vértices das sensações, onde senvolveu-se através de inúmeros conceitos, e a minha paixão
alegria e dor se unificam num imenso espasmo de êxtase. amadureceu de tanto sofrer. Ao fim de tanta ansiedade de alma
Este livro, que não é meu, apareceu assim como um re- e de coração, não restará mais que uma palavra, a última de tan-
lâmpago, para trazer a solução dos problemas últimos, em tas que foram ditas: Cristo. Sobre esta palavra, que é a síntese
meio a uma humanidade descontrolada, delirante com os so- suprema da conhecimento e do amor, eu me reclinarei satisfeito
fismas e os requintes da decadência, neste momento em que a e feliz, para morrer. Satisfeito como quem, superando todas as
história está procedendo à liquidação da velha civilização eu- ilusões humanas, reencontrou a verdade absoluta. Feliz como
ropeia. A hora é apocalíptica, porque é a hora da justiça, quem, vencendo todas as dores humanas, reencontrou a sua su-
quando todas as almas e os valores da humanidade devem ser prema alegria‖ (Do quarto volume, Ascese Mística – 1939).
joeirados, de uma forma implacável, a fim de que tudo o que Aventurar-se em um terreno teológico poderá parecer exces-
não seja vital se incinere. Estamos asfixiados por montanhas siva audácia. Mas eu não pude escolher o tema das visões, que
de falsidades, e a vida se rebela porque está faminta de verda- apenas registrei. Ademais, era necessário resolver tudo, também
de. E a verdade deve ser dita a qualquer custo, pois que o os problemas últimos, a fim de que o sistema se completasse.
mundo em breve será sacudido pelos alicerces. Ela deve ser Afinal, por que o teológico deve ser um terreno proibido? Por
dita antecipadamente, de uma forma clara, simples e una. Ur- que a indagação deve furtar-se aos cimos máximos e submeter-
ge lançar a semente da ideia que deverá reger o novo mundo se eternamente ao mistério? Por que relegar ao museu das coisas
do III Milênio, aquele que ressurgirá da destruição do atual. mortas certos problemas, apenas porque hoje se acredita na ci-
Este é o décimo volume desta Obra, que agora, depois de ha- ência, que sabe fazer descobertas úteis, mas não é capaz de for-
ver superado infinitos obstáculos, transborda pelo mundo e, de mular tais questões? Deveremos, então, cancelá-las de nossa
puro sistema de conceitos, está se transformando em vida. Predi- mente? A pesquisa da verdade, feita com sinceridade, com fé e
to com exatidão, ainda que proibido, torna-se realidade o mila- com respeito não tem sentido de culpa. Possuímos inteligência
gre, que consiste no fato de um homem sozinho, pobre, cruciado para usá-la, e esforçarmo-nos honestamente para compreender
de dores, votado à renúncia e esmagado sob o peso de um árduo até onde for possível tem mais valor do que a dormência passiva
trabalho, conseguir sobrepujar tudo isso e lançar uma ideia ao da crença. Além do mais, se o mundo e as religiões progrediram,
mundo. É que, em geral, onde existe o que, por ser humanamente isto se deve à paixão de conhecimento que almas sedentas e iso-
inexplicável, chama-se de milagre está Deus, e, onde Deus está, é ladas cultivaram com o próprio risco e grande tormento.
possível chegar-se até aos fundamentos. Há quarenta anos luto A este propósito, permitimo-nos citar algumas páginas de
com esta certeza, e os fatos de cada dia mais a confirmam. Em Giovanni Papini, Cartas do Papa Celestino VI aos Homens,
breve surgirão os volumes undécimo e duodécimo; aqui já estão páginas que ninguém taxou de heterodoxia:
lançadas as suas bases. Desta maneira, uma obra completar-se-á ―Por que é a divina teologia hoje tão pouco popular entre os
pela trabalho penoso e íntimo de um homem, a fim de que a fé homens? Por que a ciência suprema, a ciência de Deus, é hoje
seja demonstrada e a paz seja feita entre ideias e homens, permi- ignorada, mesmo pelos não ignorantes? Por que a vemos rele-
tindo que o mundo possa, afinal, enxergar claro todos os proble- gada, sobretudo em nossa Igreja, às classes dos seminários e
mas e, assim, ser levado, unicamente pela via da razão e do utili- aos estudantes dos mosteiros?
tarismo, a uma vida mais honesta e justa. ―Que aconteceu? Não aflige a vossa alma a dúvida que de
Quis, por isso, interrogar, por meio de recente contato dire- tão funesto desinteresse a máxima culpa vos cabe?
to, os povos mais jovens das Américas e encontrei-os melhor ―Interrogai a vossa consciência e respondei com franqueza
preparados para compreender as nossas ideias do futuro do que cristã. A responsabilidade desse abandono não é inteiramente
a velha Europa. Graças a isso, não devemos ficar preocupados vossa, mas é, antes de mais nada, vossa. As grandes coisas ja-
se, agora, a difusão destas ideias aqui se faz com mais lentidão mais são vencidas pelos adversários, mas pela fraqueza e infi-
158 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
delidade dos seus divulgadores. Que uso fizestes, de muitos sé- aos desígnios divinos e aos esforços humanos? Espero com fé
culos para cá, do patrimônio sobrenatural que vos foi confiado? uma outra idade de ouro da nossa ciência. Novas iluminações
Por que permitistes que outros (...) tenham tomado o seu lugar de santos, novas intuições de poetas, novas interpretações de
na atenção dos pensadores? doutores farão a teologia, como em tempos de antanho, a domi-
―A verdade, dolorosa verdade, é que a vida ardente e cria- nadora dos espíritos superiores (...).
dora do pensamento se afastou de vós. Depois de São Tomás. ―Mas é necessário que vos afasteis, teólogos, das batidas
(...) não fostes capazes de construir uma nova e poderosa sínte- estradas da repetição, da mecanicidade silogística, do
se teológica (...). pedantismo verbalístico e formalístico que tresanda demasiado
―De há muito tempo não aparece entre vós um gênio que sai- a ranço e mofo às narinas modernas (...).
ba, como os grandes escolásticos, conduzir à meta única por no- ―Saí algumas vezes ao ar livre (...), não desdenheis de
vos caminhos. Não soubestes acrescentar uma nova prova da aprender alguma coisa com os não-teólogos (...). Hoje, que es-
existência de Deus, depois das apresentadas por S. Anselmo e S. tais bocejando no mar morto da indiferença e da monotonia,
Tomás. Não soubestes oferecer uma ideia mais profunda da re- exorto-vos a ousar (...). Nas palavras da revelação pode-se en-
denção depois de Duns Scott, nem soubestes verter o vinho eter- contrar novos sentidos, possivelmente mais profundos do que
no da verdade em odres ardentes, em cálices de cristal mais puro. os que já se encontraram; aos dogmas, a esses dogmas pode-se
―A escolástica decaiu pelos excessos de sutilezas verbais e chegar por novas vias, ainda mais firmes do que as das velhas
pelo pedantismo sofístico dos occamistas1. Vós a depositastes estradas. (...) dos homens de estudo e de engenho depen-
decomposta no féretro lúgubre da repetição. Há séculos, vós, dem sempre, em última instância, as opiniões e os pendores das
teólogos, não sois mais que compiladores de sinopses, manipu- multidões. Se conseguirdes reconquistar as aristocracias do es-
ladores de manuais, registradores de lugares-comuns; não sois pírito, vereis, logo depois, que os povos as seguirão (...).
mais do que entediantes comentadores, glosadores, exumadores, ―Bastaria uma inspiração audaz e feliz para fazer convergir
postiladores, ruminadores de antigos textos venerados (...). Não de todos os lados os sequiosos. Muitos têm sede hoje (...)‖.
sabeis vós que os alimentos requentados em demasia despertam ◘◘◘
aversão até aos mais gulosos, e que as comidas cozidas e reme- Assim falou Papini. Transcrevemo-lhe as palavras apenas
xidas nas velhas panelas de barro, com os mesmos condimentos, porque, ditas por ele, catolicíssimo, encontram receptividade na
acabam saturando os mais pacientes paladares? Cada século Itália, enquanto, ditas por nós, seriam condenadas como heresia.
possui a sua linguagem, os seus apetites, os seus sonhos, os seus Embora este livro, por necessidades editoriais, deva vir a
problemas. Vós parastes o relógio da história no Século XlV e público primeiro em português, no Brasil, do que em italiano,
continuais a servir uma sempiterna sopa aos dóceis candidatos na Itália, foi ele, todavia, escrito na Itália, levando em consi-
ao sacerdócio, sem dar atenção aos cristãos que estão fora das deração as diretrizes do pensamento europeu, que não são
portas claustrais e que já agora estão habituados a acepipes mais idênticas às brasileiras. Levou-se, assim, em linha de conta,
apetitosos e saborosos (...). Essa inapetência obstinada, que já sobretudo o pensamento católico. Foram-lhe, todavia, acres-
dura alguns séculos, será devida somente ao gosto pervertido e centadas algumas páginas no Brasil, para que se colocasse
gasto dos leitores modernos ou também, se não mais, à vossa também, com imparcialidade e universalidade, diante do pen-
fastidiosa mediocridade de capciosos repetidores? Se entre vós samento espiritualista e espírita.
existisse uma estrela de primeira grandeza, bem elevada sobre o Com respeito a este último, podemos afirmar, a quem teme
horizonte, todos a veriam e a procurariam. Mas não passais de que este livro fuja ao seu ponto de vista estritamente ortodoxo,
círios mortiços, que, a grande custo, iluminam as trevas dos ora- que ele pode constituir uma das maiores provas da reencarnação.
tórios. Os antigos e majestosos ‗in fólios‘ dos teólogos dormem Realmente, o sistema aqui exposto admite e prova que houve uma
um poeirento sono entre almofadas de pergaminho e pele, nas criação única de espíritos. Estes, justamente em razão da queda
(primeiro, através da fase de descida – involução – e depois, no
estantes carcomidas das bibliotecas, onde, de raro em raro, os
decurso da fase de subida – evolução), sempre os mesmos filhos
leigos vão despertá-los. As obras dos teólogos modernos são
da criação única, devem infindas vezes reencarnar-se na matéria,
prontuários para uso interno dos clérigos, ou áridos tratados (...).
que é filha da queda, para espiritualizá-la novamente, através das
―Mas pode a ciência de Deus, se quer reconquistar o afeto
provas e da dor, para que tudo retorne e se reintegre em Deus.
dos desatentos e dos desviados, permanecer sempre sobre os
Uma grande vida eterna, qual foi na origem, agora fragmen-
fundamentos e nas portinholas do século XIII? Não poderá
tada na queda, em inúmeras vidas e mortes sucessivas na maté-
também a teologia, como todas as ciências, apresentar avanços
ria, é elemento necessário e fundamental do sistema, é a im-
e progressos? O próprio S. Tomás de Aquino não pareceu re-
prescindível condição do processo evolutivo.
volucionário em seu tempo, a ponto de suscitar oposições e
O sistema é todo sustentado pela ideia reencarnacionista,
provocar condenações? (...).
que tão firme se abriga no coração dos espíritas. Esta teoria
―Existem ainda, nas Escrituras, revelações maravilhosas,
encontra aqui, mesmo quando explicitamente nela não se fala,
que se poderiam mais amorosamente desvelar (...). Não é ver-
uma confirmação, uma prova, uma demonstração. Sem ela,
dade que tudo tenha sido dito e que tenhamos de ser porta-
cairia o sistema exposto neste volume, como cairia A Grande
vozes dos mortos. Cada século avança no caminho do espírito,
Síntese e também toda a Obra.
e possivelmente ver-se-á no futuro uma teologia de fulgor tão
E, se o leitor encontrar aqui conceitos que não são os habi-
brilhante, que a por nós herdada, não obstante a sua admirável
tualmente repetidos, recordará que, sobre o problema teológico
arquitetura, parecerá aos venturosos cristãos do futuro pouco
propriamente dito, a doutrina espírita ainda não se pronunciou
mais que um esboço, isto é, julgá-la-ão como os titãs da esco-
em definitivo, pois é uma doutrina em desenvolvimento, aberta
lástica julgaram os primeiros sistemas doutrinários dos pais da
sempre a novos aperfeiçoamentos, que a amadurecem e a fa-
Igreja. O gênero humano e o povo cristão foram educados por
zem evoluir sempre mais.
graduações, então quem ousará estabelecer confins de tempo
◘◘◘
1
Seguidores de Guilherme de Occam, filósofo inglês e franciscano
Na noite de 9 de maio de 1932, eu registrava, por via da ins-
de Oxford, para quem o saber verdadeiro é o sensível (empirismo). O piração, uma mensagem particular para Mussolini, que lhe foi
occanismo teve êxito nos séculos XIV e XV, declinando em seguida entregue na tarde de 5 de outubro do mesmo ano. Ele a leu e
e descambando para um formalismo lógico. Com ele termina a esco- agradeceu através de autoridades governamentais. Tudo está do-
lástica medieval. (N. do T.) cumentado, inclusive na imprensa. Eis algumas frases da mensa-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 159
gem: ―(...) trata-se de ajudar o nascimento da nova humanidade, deverá brevemente seguir nova orientação e necessita assim, ab-
que surgirá da convulsão do mundo (...). Evita, com todas as tuas solutamente, de novas e completas concepções, por meio das
forças, qualquer guerra. Não há razão humana que possa justifi- quais possa avançar. Para isto, é indispensável um sistema de
car hoje uma guerra que, com os hodiernos meios de destruição, conhecimentos que resolva e esgote todos os problemas até aos
significaria uma tal catástrofe, que poderia assinalar, através da fundamentos. Para que se possa ter uma orientação até à realida-
invasão asiática, o fim da civilização europeia e impeliria, enfim, de da vida, é necessário, portanto, resolver também os proble-
a civilização a emigrar, depois de tremendos cataclismos, para as mas últimos, reservados à teologia, hoje negligenciados como
Américas (...)‖. Outras mensagens, depois transmitidas, diziam, inúteis pelos espíritos adormecidos no materialismo.
entre outras coisas, o que se segue: ―(...) o momento histórico es- Na introdução do livro Problemas do Futuro, explicamos
tá maduro para grandes acontecimentos (...), o momento histórico que a terceira trilogia, da qual este volume, o décimo, constitui o
chegou, porque hoje fala a dor. O momento histórico é grave, segundo termo, é a trilogia da sublimação, enquanto a primeira
porque a dor falará ainda tremendamente, como jamais falou (...). trilogia foi a da explosão e a segunda, a da assimilação. Assim,
A civilização europeia, que é civilização cristã, ameaça ruir-se após o primeiro momento de simples espontaneidade inspirativa,
(...). A presente tranquilidade operante é a calma que precede as e superado o segundo, de introversão reflexa, agora assistimos
grandes tempestades (...). O mundo, hoje, joga tudo e por tudo‖. aqui ao desenvolvimento do terceiro momento, em que, por
Estava-se assim, em 1932, bem distante das condições meio de uma maturação cada vez maior, os motivos da primeira
mundiais que somente hoje começamos a ver claramente e que, trilogia são retomados, desenvolvidos e potencializados em uma
naquela ocasião, foram previstas com exatidão. Para quem tem sempre mais profunda compreensão, elaboração na qual eles se
olhos para enxergar, o plano de Deus é evidente. É vontade Sua completam e se consolidam definitivamente. É assim que o vo-
que, no ano dois mil, deva surgir uma nova civilização do espí- lume Problemas do Futuro retoma e aperfeiçoa a parte inicial,
rito, em que o Evangelho seja vivido seriamente, a fim de que filosófica-científica, de A Grande Síntese, enquanto o volume
Cristo não se tenha sacrificado em vão. E esta hora, já anuncia- seguinte, Ascensões Humanas, retoma e aperfeiçoa o problema
da há vinte anos, chegou, conforme foi mencionado aqui e em social, biológico e místico, desenvolvendo teses apenas acena-
outras mensagens já publicadas2. das em A Grande Síntese. Mas, a fim de que o plano do conhe-
Pode-se atingir esta meta por duas vias: corrigindo-se espon- cimento desenvolvido em toda a Obra pudesse ser executado,
taneamente, pela mudança para uma psicologia inteiramente in- urgia completar a concepção de A Grande Síntese, que encara o
tegrada no amor evangélico, ou então continuar a trajetória ini- universo em função do homem, enquadrando-a em uma concep-
ciada, com uma guerra que poderá destruir o Hemisfério Norte e ção ainda mais vasta, onde se encara o universo em função de
a sua civilização. Em qualquer caso, o plano de Deus se realiza. Deus. Se aquele livro nos dizia como é construído o universo,
No primeiro, pela rápida compreensão de seres inteligentes; no era necessário explicar por que ele é assim construído, e não de
segundo, por uma lenta compreensão dos seres involuídos, atra- outro modo. Era indispensável contemplá-lo não mais apenas
vés da dor, que sabe fazer-se compreender por todos. em relação ao homem, mas em relação aos fins supremos da
A humanidade padece a doença do materialismo e agora Criação. Impunha-se ultrapassar os confins de nosso universo,
caminha para a mesa cirúrgica. No ano dois mil, Deus terá para imergir no pensamento de Deus transcendente, que está
completado a operação. A bomba atômica será instrumento de além de toda a sua criação, por nós contemplada. Era imprescin-
liquidação da civilização materialista que a produziu. A des- dível alcançar a solução dos problemas últimos, diante do que a
truição bélica, se essa for a via que o mundo escolher, será a mente deve conter-se saciada, por haver ascendido até à fonte de
obra de Satanás, que terá a incumbência, assim como a traição tudo, às causas primeiras de que tudo deriva. Para tocar o extre-
de Judas preparou a redenção, de preparar a nova civilização do mo limite do conhecimento, era forçoso subir até ao plano teo-
espírito. Cristo afirmou que reconstruiria o Templo em três di- lógico, de modo que a visão de A Grande Síntese, assim, fosse
as. E a hora chegou, a fim de que a humanidade, com o III Mi- compreendida e colocada no seu justo lugar, na mais vasta visão
lênio, entre no seu terceiro dia, aquele em que Cristo ressusci- de Deus e Universo. O primeiro livro parte da Gênese para al-
tou. Assim, a velha civilização materialista deve ceder lugar cançar o homem; no segundo, contempla-se o pensamento e a
uma nova civilização, de tipo oposto. obra de Deus, mesmo antes da Gênese, e se atinge o solução úl-
Desta forma, se a humanidade não for suficientemente inteli- tima do problema do ser até aos confins do espaço e do tempo,
gente para compreender, será a própria guerra que, destruindo um onde a Criação terá atingido as suas metas.
pouco de tudo, lhe ensinará que ela não constitui o meio adequado Tudo isto confirma o caráter continuamente ascensional de
para resolver os problemas. Esta será a maior descoberta do sécu- toda a Obra, que agora supera as últimas etapas da sublimação.
lo. O tipo biológico condutor de exércitos, o ideal nietzscheano do O próprio método de recepção se faz mais completo e profundo,
homem da força, cada vez mais desacreditado hoje, já surge como e a intuição conceptual e inspirativa torna-se visão orgânica, que
um tipo falido, e uma nova guerra o sepultará definitivamente no resolve os últimos problemas do ser nos braços de Deus. Mas,
reino passado do involuído feroz. O novo homem de comando, nestas primeiras etapas da terceira trilogia, de sublimação, seja
assim como a classe dirigente, deverá ser cada vez menos guerrei- antes, no terreno científico, como depois, no teológico, a ascen-
ro e sempre mais inteligente, até à plena espiritualidade. são, assim retomada, mantém-se sempre no plano racional. Que
Neste momento histórico, nasce o presente volume, termina- forma tomará ela no terceiro volume, último desta terceira trilo-
do na Páscoa de 1951, logo após os dois volumes: Problemas do gia? A visão se lançará ainda freneticamente para frente, per-
Futuro e Ascensões Humanas, completados na Páscoa de 1950. dendo qualquer contato com a forma mental humana? Tratar-se-
Estamos nos dois primeiros anos da segunda metade do nosso á, então, não mais de sublimação racional, de intelecto, mas de
século, no qual se decidirá a sorte do mundo para o futuro milê- sublimação mística, num incêndio do sentimento? Será possível
nio. É neste momento que A Grande Síntese é ampliada e aper- levar ainda mais adiante tais assomos, surgidos nos atuais volu-
feiçoada no terreno teológico. E, após ter atingido, nos dois vo- mes? Não sabemos ainda se a maturação poderá alcançar novos
lumes acima mencionados, a solução de problemas parciais, cimos. Mas, sem ter atingido e transposto estes, como podere-
mais próximos a nós, aqui é oferecida a solução dos problemas mos chegar ao ultimo vértice: Cristo? Não podemos saber por-
máximos, de modo que se lance luz sobre tudo, já que o mundo que ainda não vivemos essas maturações. Mas é certo que as tra-
jetórias já estão traçadas, tanto na vida do indivíduo como na do
2
Referencia às primeiras das Grandes Mensagens (Messaggi Spiri- mundo, tudo devendo prosseguir e amadurecer. O tempo assina-
tuali), volume inicial da obra completa. (N. do T.) la, com o seu inexorável ritmo, o desenvolvimento dos destinos.
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Assim, esta grande tarefa encaminha-se para o seu término. I. COMO FALA A VIDA
Encontramo-nos nos últimos registros, sempre mais altos,
sempre mais distantes do inferno terrestre. Superando sozinho Escutemos a história de um homem que ouvia as vozes de
montanhas de obstáculos, consumiu-se uma vida, mas amadu- todos os seres e com eles conversava.
receu uma alma. Martírio de um homem, mas que se enxerta Um dia, o vento se enfurecia. E esse homem lhe falou:
no martírio da mundo, porque una é a lei para todos: se qui- ─ Cala-te, não vês que danificas a vida? Arrancas as árvo-
sermos redimir-nos, não resta senão a cruz de Cristo. E hoje, res, matas os animais, ameaças as pessoas. Modera a tua corri-
queira ou não, também a humanidade nela está pregada para a da! Ninguém te impede de andar e, com um pouco de calma,
sua redenção. Cristo fez a sua parte. Agora cabe a nós fazer- chegarás da mesma forma ao teu objetivo sem causar danos. Na
mos a nossa. Acima de todas as tempestades, impassível, Deus Terra, não existis somente tu e os demais elementos. Há tam-
observa e aguarda. A grande força do Evangelho está no fato bém a vida das plantas, dos animais, dos homens. Há lugar para
de que ele jamais é superado: pertence ao futuro e, por isso, todos, tanto para ti como para eles, porque todos devem viver.
não envelhece; está no fato de que ele constitui um ponto de Ah! O vento não podia ouvir a voz nem compreender os
chegada, e não de partida. conceitos, não sabia responder. Entretanto o vento não é coisa
Frequentemente, é necessária toda uma geração para com- morta. É energia, movimento, tem um corpo físico, embora ga-
preender um livro. A Grande Síntese só começará a ser com- soso, é vida. Há na profundeza de todas as coisas um pensa-
preendida pelo mundo depois de vinte anos. Somente uma no- mento oculto, que elas ignoram e que lhes guia a existência até
va geração compreenderá toda esta Obra. Entrementes, resta a nas formas mais simples das combinações químicas e movi-
quem a escreveu o ultimo encargo conclusivo de acompanhar mentos atômicos. À medida que o ser sobe na escala da evolu-
sua difusão no mundo. Depois, após a longa e exaustiva jor- ção, vai tomando pouco a pouco consciência desse pensamento.
nada, o repouso em Deus. Mas somente assim, vivendo para o Aquele homem sabia ouvir interiormente a voz desse
bem, vale a pena viver. pensamento, que, através do vento, como se ele falasse, lhe
Agora que o ciclo volve ao seu fim, podemos ver que tudo respondeu:
se desenvolveu com a calma das coisas pré-ordenadas por uma ―É fatal que eu assim aja, porque fui feito assim e porque
vontade superior, segundo um plano em que cada momento está fatal é a força que me impele e arrasta. Sou a expressão que
no seu lugar, na sua justa posição, ainda quando se defronta veste essa força e outra coisa não faço senão exprimi-la, porque
com obstáculos e quedas. Estas três trilogias se desenvolvem, ela é todo o meu eu. Quando ela quer e diminui o impulso, eu
assim, segundo o ritmo de um esquema muito mais vasto, pre- também paro, tornando-me carinhosa aragem para as plantas,
sente nos três dias após os quais Cristo ressurgiu e no desen- os animais, os homens e para tudo o que chamas vida e que
volvimento da Sua ideia nos milênios. desconheço. Sou surdo e cego no plano em que falas. Não sei o
que seja sentir. Para mim, somente o movimento é vida. Quan-
A primeira trilogia, explosiva, corresponde, pois, à primeira
do me falas das experiências desses seres, não sei o que estás
fase do cristianismo, que avança no ímpeto de fé dos mártires.
dizendo. Não compreendo o mal que tu lamentas que eu faça,
As próprias Mensagens Espirituais, com que se inicia a Obra,
como seja arrancar e matar‖.
surgem nos primeiros três anos que vão do Natal de 1931 à
O homem replicou:
Páscoa de 1933, e continuam com o XIX Centenário da Morte
− Mas por que não compreende?
de Cristo. Depois, assim como a Igreja se consolidou na Terra,
E a voz da vida respondeu:
após três séculos de perseguições, com o ato de Constantino e o
―O fato de não compreender é alguma coisa de que tens
decorrente reconhecimento oficial, A Grande Síntese, logo após
conhecimento para que fales dela, mas de que eu não tenho,
as Mensagens Espirituais, também lançou as bases cientificas
pelo menos para as coisas que dizes. Só conheço o que diz
do sistema, partindo da matéria. Tudo isso no princípio da pri-
respeito à minha existência; somente a ela, e não às outras. E
meira trilogia, como do I Milênio. tu, que aparentas compreender mais que eu, como não enten-
A segunda trilogia, de reflexão e assimilação, representa o des que não posso conhecer mais que a mim mesmo? Também
II Milênio, em que a ideia de Cristo é racionalmente desen- tu, conquanto mais adiantado do que eu, não podes conhecer
volvida pelos pensadores, assimilada em parte pelos povos, mais do que a ti mesmo.
incorporada aos hábitos e instituições. Mas Cristo ainda dor- ―Vê bem: só tenho uma alma elementar, mecânica, sem di-
me no sepulcro. reito de escolha, sem responsabilidade e sem outras coisas a que
A terceira trilogia é de sublimação e ressurreição no espírito. dás nomes que ignoro. Sou apenas um cálculo de forças, uma
Cristo ressurge. No terceiro dia, o templo é reconstruído. No III fórmula dinâmica, uma férrea concatenação de causa e efeito,
Milênio, o Evangelho, até agora à espera, começa sua atuação na como dirias. Cabe a ti, que tens o que não tenho – a inteligência
vida coletiva. Avizinha-se o pré-anunciado Reino de Deus. En- – como a denominas, estudar a minha realidade, que podes pe-
tramos na fase da luz e do triunfo. Assim, no III Milênio, o netrar em sua estrutura e significado, coisas minhas que certa-
mundo se unificará em um só rebanho, sob um só pastor: Cristo. mente existem e das quais eu nada sei, mas a que obedeço natu-
Não há dúvida de que é estranha esta impensada coincidên- ralmente. Ignoro quem o sabe por mim. Apenas obedeço. A ti
cia, seguramente não preparada, pela qual este ritmo de três cabe estudar e compreender-me, porque te sou inferior, não me
elementos se repete e retorna do período trienal das Mensagens cabendo penetrar-te, porque me és superior. Ignoro o que dizes
(fase preparatória) para estas três trilogias da Obra, seguindo o que eu faço. Para evitar o que chamas de males e, assim, salvar
ritmo da ressurreição e reconstrução do templo no terceiro dia e deles os seres de que me falas, compete a ti e a eles, que me sois
dos três milênios em que o cristianismo se afirma: o primeiro superiores, aprenderdes a defender-vos, não só porque sabeis
na matéria, o segundo na razão, o terceiro no espírito. Dante mais que eu, mas também porque interessa à vossa existência, e
também se fundiu neste ritmo, na Divina Comédia. E a terceira não à minha, usar os meios necessários de cautela. Cada um de-
trilogia nasce na Páscoa da Ressurreição de 1950, ano santo, ve aprender a sua lição, vivendo. Eu, a minha; vós, a vossa. E, já
centro do século, e se orienta para Cristo. Mas toda a Obra não que tendes à disposição mais recursos do que eu, deveis apren-
passa de um anúncio e de uma preparação, porque, na alvorada der coisas mais complexas e difíceis. Pareço estar na ociosida-
do III Milênio, Cristo romperá a pedra do sepulcro e ressurgirá de? Se me agito sempre, é porque também tenho o meu trabalho
triunfante. E a humanidade ressurgirá com Ele. a fazer, e estas forças, que são a minha alma, devem resolver
problemas e aprender soluções, transformações e equilíbrios que
Gubbio, Páscoa de 1951. ignorais e que têm a sua função na harmonia do Todo, em que
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 161
estais e de que tenho necessidade. Tenho a minha função, que rás modificar-nos, domesticando-nos. Todavia, permanecerás
cumpro na ordem das coisas. Não me podeis pedir mais‖. sempre distante, porque não podemos seguir-te‖.
Em seguida, o vento retomou a sua corrida, que era a sua Em seguida, o animal fugiu em perseguição da presa, se-
expressão de vida, e, sibilando, elevou-se aos espaços. guindo cegamente o seu instinto.
O homem voltou-se então para uma planta que, cheia de fo- O homem voltou-se, então, para um seu semelhante e lhe
lhas e de espinhos, havia invadido todo o espaço livre ao sol, disse:
sufocando as plantas vizinhas, e lhe disse: — Eis finalmente um igual a mim. Resumes todos os seres
— Por que és assim egoísta e malvada, prejudicando os teus com que tenho falado até agora. Tens as férreas leis físicas do
semelhantes vizinhos, para que tu sozinha possas viver? vento, a sabedoria vegetativa da planta, os sentidos e o instinto
―Malvada, egoísta?‖ – respondeu a planta e continuou: do animal, além de uma qualidade nova: a tua liberdade de es-
―Que significam estas palavras? É natural que eu cuide apenas colha no mundo moral, com as suas consequências. Tu, que
da minha vida, da mesma forma que os outros só cuidam das suas. dispões de tudo, por que não és perfeito, por que caís em culpa?
Não tenho que viver? Possuo o mesmo direito que os outros. Por E este lhe respondeu:
que deveria preocupar-me com eles, se não se preocupam comi- ―Caio porque não sou perfeito. Se peco, é exatamente por-
go? Por que evitar sufocá-los, se eles estão sempre prontos a fazer que possuo uma qualidade nova. Sou livre, tenho responsabili-
isso contra mim, em seu proveito? Se possuo os meus acúleos, é dade e o direito de escolher.
porque, por mim mesma, aprendi a formá-los, a fim de que os ―O animal é mecanicamente sincero na sua ferocidade e
animais não me comam e mãos como as tuas não me arranquem não peca, pois não dispõe de liberdade, não compreende e não
da terra. Como poderia agir de outra forma para defender-me e pode escolher. A sua visão não se eleva acima de sua lei, sim-
para vos fazer compreender o meu direito de viver, senão através ples, quase mecânica. Eu a domino porque vejo de mais alto,
do vosso dano, único ponto em que sois sensíveis? Caso se queira mas ele está encerrado nela. Menos sujeito a errar, é um autô-
viver, esta defesa é necessária. Por minha conta, tive de aprender mato movido por uma mais profunda sabedoria, que não é sua,
que não me resta outro modo para viver. Tudo isto foi o que a vi- mas que tudo sabe. Devo aprender a manejar uma potência di-
da, com a sua dura escola, me constrangeu a aprender, e tu sabes versa, diretora, o que implica lutas que o animal ignora. Devo
que todo ser deve aprender a sua lição‖. viver a lei de Deus, não como cego instrumento constrangido
O homem acrescentou: por impulsos íntimos, através dos quais a Lei se faz presente,
— Mas por que não procuras compreender, além da tua vi- mas devo vivê-la por livre escolha, para assim chegar a com-
da, também a vida dos teus semelhantes, para que haja lugar pa- preender a lógica e a bondade dessa lei e, dessa maneira, tornar-
ra todos e todos possam viver? me consciente dela. Esta é a minha experimentação e, se cada
E a voz da vida respondeu: ―Mas compreenderão, porventu- um tem a sua lição, esta é a lição que devo aprender. A Lei é
ra, os outros a minha? Somos inimigos, rivais. O lugar ao sol única para todos, mas é diverso, segundo os planos evolutivos,
existe para os vencedores. A vida certamente se defende, mas o conhecimento que o ser atinge dela. Os elementos, a planta e
através do meu trabalho, pois devo aprender a vencer por mim os animais aplicam-na em graus diversos, sem nada saber a seu
mesma. Essa é a lição que a vida me impõe. Não existem em respeito. Só o homem consegue conhecê-la, para, depois de ter
meu mundo o que chamas piedade e bondade. Há somente a fér- tomado consciência dela, livremente segui-la e tornar-se seu
rea justiça do mais forte. Este é o melhor entre os de seu nível, instrumento, seu espontâneo executor, porque compreendeu
sendo justo que ele vença. Se me transportares para um ambien- que só nessa ordem está o seu bem e a felicidade.
te protegido, então eu me domesticarei e perderei os espinhos. ―A minha vida é dura e difícil, repleta de fadigas e esforços,
Mas, assim civilizada, eu me enfraqueço e, se me abandonares, de abismos que a mecânica do instinto ignora. O animal obede-
morrerei. Desta forma, vês que a minha rudeza é necessária e ce cegamente, até à brutalidade, às leis da fome e do amor e não
obrigatória, pelo menos enquanto eu estiver entregue a mim pode superá-las. O homem, mesmo sentindo-as intensamente,
mesma. Cabe a ti, que te encontras em nível superior e possuís como as sente o animal, tem, pela superior natureza humana, a
meios para melhor compreensão, e não a mim, fazer com que possibilidade que aquele não possui, de sobrepor-se-lhes e sub-
existam no mundo piedade e bondade. Executo honestamente a jugá-las; pode completar a catarse biológica ignorada pelo ani-
minha parte de trabalho no organismo universal, produzindo a mal, do herói, do gênio, do santo, do místico, que o conduz a
síntese química da vida do mundo inorgânico. O resto exorbita um plano de vida ainda mais elevado, no qual as conhecidas ca-
ao meu labor. Cumpro assim a minha função na ordem das coi- racterísticas da animalidade são subjugadas e vencidas. Se no
sas, evidentemente no meu nível. Não me podes pedir mais‖. homem ainda sobrevive a besta, já existe em germe o anjo. O
O homem se voltou, então, para um animal que avida- homem sofre e luta justamente para desenvolver em si esse
mente espreitava a presa, dizendo-lhe: germe e tornar-se anjo. Essa é a fase evolutiva que me compete
− Por que este assalto contínuo? Vós, animais, sois superio- viver. Se, por isso, eu posso criar muito mais do que o animal,
res às plantas, tendes liberdade para correr e voar, possuís olhos porque sou livre também posso, sofrendo, aprender muito mais
e ouvidos, tato e olfato, muitos sentidos e possibilidades desco- do que ele, através de lições que de modo algum ele pode co-
nhecidas pelas plantas. Por que permaneceis sob a lei feroz des- nhecer. Enquanto a sabedoria do animal consiste em aguçar os
ta, que vos é tão inferior? sentidos e as possibilidades físicas, e nisto está toda a expressão
E a voz da vida replicou: de sua vida, eu aguço os sentidos, os meios morais e espirituais,
―Se nós somos superiores à planta e mais coisas podemos cuidando cada vez mais destes últimos. Quando o animal tiver
perceber, não temos, porém, liberdade para agir. A nossa vida conseguido ver e ouvir mais longe e farejar com maior delica-
acumula experiências sensórias, mas não temos, como tens, as deza, para assim vencer com meios cada vez mais perfeitos a
experiências que chamas de morais e espirituais. Não somos li- luta pela vida, então terá aprendido completamente a lição. Eu
vres para escolher, devendo seguir fatalmente a lei que nos im- terei aprendido a minha somente quando tiver conseguido ver e
pele sempre nesse caminho, fazendo-nos agir assim. Nós nos ouvir com maior bondade e justiça para todos, para vencer a lu-
alimentamos, procriamos e vivemos quase mecanicamente, ta pela vida, não destruindo o meu semelhante, mas com ele
como quer uma lei que desconhecemos. Esta é toda a nossa vi- coordenando-me e colaborando na ordem divina‖.
da, e outra não conhecemos. Que pretendes acrescentar? Esta é Então o homem que ouvia a voz da vida dirigiu-se a um an-
a nossa experimentação, é a lição que devemos aprender. Dessa jo e lhe disse:
forma, tudo vai bem para nós. Estando em plano mais elevado, — Ó tu, bem-aventurado que vives nos céus, distante do in-
podes viver assim. Se nos levares para vivermos contigo, pode- ferno terrestre, e que progrediste muito mais do que nós, por
162 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
que não nos ajudas? O animal se equilibra em sua ignorância, II. “EU SOU” – ESQUEMA DO SER
guiado apenas pelo instinto, parecendo estático. Mas o homem,
quanto mais sobe, tanto mais adquire consciência da Lei, para Caminhemos juntos à procura de Deus. Não certamente do
melhor ver que longa estrada ainda tem a palmilhar e quanto es- Deus absoluto – inconcebível para nós em Sua substância, não
tá atrasado no caminho para a meta final! suscetível de definição – o Deus transcendente, que ―é‖ além de
E o anjo explicou: toda a Sua expressão. Para nós, humanos, Ele é hoje o inacessí-
―Eu estou mais avançado do que tu, mas ainda muito dis- vel, o incognoscível, que a nossa mente não pode alcançar,
tante da perfeição infinita de Deus. Pareço bem-aventurado e além da Sua suprema afirmação no Todo, em que Ele nos apa-
o sou de fato, relativamente ao que representa a vida na Ter- rece e nos diz: ―Eu sou‖.
ra. Pareço-te bem-aventurado, despreocupado de fadigas e lu- Caminhemos, ao invés, à procura do Deus para nós conce-
tas, mas também nós as temos e grandes, embora elas só vi- bível, porque imanente, expresso na forma, que nos é acessível
sem ao bem. Justamente porque compreendo mais do que tu, porque sensorialmente vestido de uma expressão em nosso con-
meus deveres são maiores do que os teus. A fatal transforma- tingente. Eis um humilde arbusto solitário ao pé de uma mureta.
ção em que consiste a existência torna-se para nós, mais vizi- Que significa essa vida? Que pensa e deseja esse pequeno ser,
nhos de Deus, uma ascensão rápida. Vivemos mais direta- que pensamento contém? Deixemos de lado a botânica, a quí-
mente atingidos pelos raios divinos do amor, não podendo mica, a estrutura orgânica. Busquemos o mistério que das pro-
viver senão para os outros. Poderemos ser felizes, mas vimos fundezas anima essa vida. Esta pequena planta sabe muitas coi-
colher na Terra as vossas dores, que tornamos nossas, para o sas. Nós o deduzimos pelo fato dela saber fazê-las. Se não as
vosso bem, porque só assim podemos melhor sentir Deus. A sabe como consciência desperta e refletida, que as conheça
nossa não é uma beatitude ociosa. Esta é a nossa experiência conscientemente pela razão e pela análise, o fato de se compor-
e, se cada qual deve ter a sua lição, esta é a lição que deve- tar como se as conhecesse prova que deve saber de outra ma-
mos aprender. Quanto mais subimos, tanto mais nos torna- neira. Estranho modo este saber inconsciente, mas ele é habitu-
mos fortes operários, porque nos transformamos em mais po- al na vida! Entretanto, se possuímos os efeitos de uma sabedo-
derosos instrumentos de Deus na realização do Seu plano no ria, sinais evidentes que revelam a sua recôndita presença, e se
universo. O paraíso seria um inferno se abrigasse alegrias essa sabedoria não se encontra no consciente do ser, é necessá-
egoístas como as vossas. Sem um trabalho permanente, per- rio procurá-la algures. Onde? Essa consciência cobre apenas o
deremos as nossas qualidades e volveremos a formas inferio- campo da sua atividade, imprescindível aos fins da evolução.
res de vida. Aqui fervilha o trabalho do bem, como embaixo
Se, para o ser individualizado, o resto do universo é um oceano
se agita o do mal. Aqui se respira amor, como embaixo se
de mistério, sepultado no inconsciente, só o é relativamente a
respira ódio. E nós somos os canais do amor que recebemos
ele, e não em si mesmo, porque esse oceano de inconsciente é
de Deus, para fazê-lo descer até vós. Ele dirige a grande
formado de outros seres, cada um consciente do seu pequeno
harmonia da vida, a imensa sinfonia do universo, da qual nós
trabalho, com o Todo funcionando imerso em uma atmosfera
somos as notas mais altas, e vós, as mais baixas‖.
de pensamento que o guia e rege.
Então, o homem voltou-se para Deus e Lhe falou:
Quando, pois, cada ser nos demonstra que sabe resolver
— Senhor, agradeço-te me haveres dado, pelo Teu amor, o
todos os problemas inerentes às suas necessidades vitais, isto
supremo dom de existir. Tu me fizeste um ―eu sou‖, à Tua ima-
significa que por ele sabe e pensa o consciente universal, que
gem e semelhança, no seio do Teu infinito ―Eu Sou‖. Assim eu
existo em Ti, assim eu canto uma nota na grande orquestra do lhe transmite somente a conclusão do seu raciocínio, com um
Teu universo, sou um operário, embora ínfimo, da Tua obra – impulso, cuja análise o ser não sabe fazer, mas que lhe diz em
uma célula, ainda que diminuta, do Teu grande organismo. síntese: ―faça isto‖. Então ele, ignorante do funcionamento do
Enquanto assim orava, o homem volvia o olhar para todas Todo, passa a ser um instrumento inconsciente do consciente
as formas do ser e via as criaturas irmãs, hierarquicamente universal, que funciona por ele naquilo que não pode nem sa-
dispostas de acordo com os graus de evolução, cada qual em be atingir. Não se nega, com isto, que o instinto seja formado
seu lugar no grande edifício da criação, cada uma com a sua pela experimentação da vida, com a técnica dos automatis-
função na ordem universal, cada elemento útil no grande or- mos, como já dissemos em A Grande Síntese. Não falamos
ganismo do Todo. aqui dessa pequena inteligência a posteriori, e sim da superior
E, a cada uma, segundo a respectiva posição, a voz da vida inteligência a priori, que tudo guia, inclusive a formação do
lhe havia falado, conforme à lei dominante no plano em que instinto, imprimindo-lhe a direção necessária, de acordo com
cada ser se coloca, revelando limites e deveres proporcionais. o plano geral da evolução.
Mas, contra a fatalidade de permanecer encerrado, o esforço Os impulsos fundamentais de nossa vida, tanto os do desti-
próprio de trabalho e dor abre as portas, possibilitando ao ser no individual quanto os do destino coletivo, que se desenvolve
subir cada vez mais para a suprema glória do divino. Esta é a na história, não constituem um produto racional e consciente,
grande experimentação de toda vida, esta é a lição que cada sendo insuficiente para explicar-lhes a gênese somente um ins-
qual deve aprender. O divino freme nas profundezas de todo tinto puro formado pelas experiências do passado, pois derivam
ser. O espírito adormecido deve despertar para chegar até Deus. do consciente universal, que trabalha por nós onde ignoramos.
Em todos os níveis, dos mais baixos aos mais elevados, revela- Aquela pobre e ignorante plantazinha sabe, pois, viver por
se o animador e íntimo pensamento de Deus. si mesma; conhece os meios adequados para isso, proporcio-
Então, o homem sentiu que havia compreendido o universo nados ao seu escopo e ao ambiente; sabe escolhê-los e coorde-
e abriu os braços a todos os seres, cuja voz ouvia e disse: ná-los. Ela quer viver. Ela quer crescer e sabe crescer. Ela quer
— Aperto-vos todos no amor de Deus. Fundidos todos no reproduzir-se e sabe como fazê-lo. E, assim, cuidando não
mesmo amplexo. Subi comigo, subamos unidos para Ele. Vós mais da aparência sensória, e sim penetrando por intuição a
de cima, prodigalizando amor; nós, inclinando-nos para os infe- forma que ultrapassa essa aparência, nós vemos um pensamen-
riores e ensinando-os a subir; e os inferiores, aceitando o dom to sábio, que está além do consciente do ser, pensamento que
de sacrifício e amor dos superiores, que procuram ajudá-los a enfrenta e resolve problemas, opõe uma vontade decidida con-
conquistar com justiça a própria felicidade. Só assim, unidos tra qualquer obstáculo, transpondo-os a seu modo. É que den-
em um amplexo, nós, criaturas dispersas no infinito pulverizado tro desse humilde ser existe uma alma, embora sem o grau es-
da forma, poderemos encontrar-nos e, refundidos – através do piritual que atingiu no homem e ainda que não passe de um
amor – em um só organismo, reconstituir-nos no Uno-DEUS. esmaecido reflexo do consciente universal ou alma do Todo,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 163
cuja manifestação se estende à periferia na individualização Tornamos a encontrar aqui o conceito já desenvolvido nos vo-
particular, imersa no inconsciente. lumes precedentes, do princípio central único que, no universo,
Esta forma é um transformismo contínuo. Efetivamente, pulveriza-se no particular periférico das formas – sua manifes-
não a encontraremos jamais idêntica a si mesma. Periodica- tação. Mas permanece o esquema único da constituição do uni-
mente, a vemos morrer e reproduzir-se e assim, através da verso por individualizações.
morte e do renascimento, por meio de uma renovação contí- Assim se explica como cada ser assume uma forma típica,
nua, sobreviver sempre. Se a forma não pode existir senão as- definida, com os seus limites de desenvolvimento no tempo e
sim, continuamente renovando-se, então deve haver atrás dela no espaço. Se tudo isto já não estivesse estabelecido num es-
o imutável, um outro seu aspecto, que permanece constante, quema e não fosse conhecido, ainda que por um processo não
aquele sem o qual não se explica uma vida regida por um obje- consciente, pelo ―eu‖ profundo, que sabe, quer e permanece
tivo perene, caminhando através da incessante mutação de sua idêntico através da contínua mutação de forma, não haveria
existência. E, diante da forma material, qual pode ser esse ou- nenhuma garantia de ordem funcional e de desenvolvimento
tro aspecto do dualismo, inverso e complementar, como o regular. Assim tudo é típico. O universo é um edifício compos-
imóvel é diante do móvel, senão a sua imaterial ideia animado- to de infinitos ―eus‖, que, de um ―Eu‖ central do Todo, pulve-
ra, o pensamento, que sabe tantas coisas e que, imutável, se riza-se hierarquicamente, descendo para ―eus‖ sempre meno-
exprime revestindo-se de forma mutável? res. Isto desde o infinito galáctico ao nuclear, um ―eu‖ astro-
Penetremos ainda mais profundamente no íntimo dessa pe- nômico, geológico, físico, químico, espiritual, humano, ani-
quena planta e veremos, então, que o seu ponto central, assim mal, vegetal. Este ―eu‖ é sempre uma sabedoria e uma vontade
como o de todos os seres, ponto no qual tudo converge em sín- constante, inteligentemente dirigida para um dado fim, que ir-
tese para depois se irradiar analiticamente, pelo qual passa e se resistivelmente tende à sua exteriorização. Todos esses ―eus‖
manifesta o saber do consciente universal na vontade de viver e se reagrupam por unidades coletivas, dos menores aos maiores,
que permanece constante no transformismo, é o eu. O próprio alcançando das mínimas unidades atômico-nucleares às máxi-
homem – que foi ontem criança, é hoje adulto e será velho mas organizações galácticas, do simples psiquismo orientador
amanhã – sabe que tudo muda nele e em seu derredor, mas sabe das moléculas dos cristais ao homem e ao gênio. Todos esses
também que a única coisa que nele jamais muda é a existência ―eus‖ mantêm um sistema orgânico que é próprio a cada um,
desse centro pelo qual ele se chama e se sente sempre ―eu‖. En- evoluindo e funcionando sempre em cooperação com todos os
quanto no ser tudo nasce e morre, somente esse eu não morre outros ―eus‖. Esse principio, pois, não apenas conhece, quer,
jamais. O fato dele permanecer através de tão grandes trans- permanece constante e sabe reger o funcionamento individual,
formações, como são as que de um lactante fazem um homem e mas também sabe guiar-lhes a evolução e coordená-los com o
depois um velho, faz com que o ser, intuitivamente, sinta a ló- funcionamento de todos os outros ―eus‖.
gica de uma idêntica continuação da vida do ―eu‖ também atra- Tudo isto nos mostra que o universo é um todo que, ainda
vés desta outra mutação constituída pela morte do corpo, que, quando pulverizado em infinitas formas ou expressões de um
em toda a sua vida, jamais foi idêntico a si mesmo e não fez mesmo princípio central único, permanece organicamente com-
mais do que continuamente morrer e renascer. Por que, pois, só pacto, porque é construído segundo um esquema único, conso-
essa outra transformação deveria ter a força de destruir esse ante um idêntico modelo, que se repete ao infinito em cada uni-
―eu‖ que se revelou tão invulnerável a toda mutação exterior? dade menor, onde a maior se ramifica e se diferencia até à ex-
Se toda forma pode existir sem se desfazer no contínuo trema pulverização. O que torna compacto o universo é ser ele
transformismo que a constitui, resistindo compacta ao turbi- um ―eu‖, é o mesmo princípio unitário que mantém compacta
lhão das suas mutações, é porque no íntimo de todo ser existe toda forma, sendo esta, à semelhança da máxima, uma unidade
esse ―eu‖, firme centro na tempestade transformista. Todo ser coletiva resultante da coordenação orgânica de menores unida-
existe no tempo enquanto disser: ―eu‖. Di-lo o átomo, a molé- des de ―eus‖. Assim, tudo permanece unido porque coligado
cula, a célula, o mineral, a planta, o animal, o homem, a famí- por uma contínua atração de parte a parte, por uma confraterni-
lia, o Estado, a humanidade, a Terra, o sistema solar, os siste- zação dos ―eu‖ menores nas unidades maiores.
mas galácticos, o cosmo. No universo, tudo está sujeito a essa A observação da estrutura das formas no plano de nosso
necessidade de individualização. Ele é composto de seres di- contingente nos levou à verificação desse princípio universal
versamente diferenciados, mas todos dizem igualmente: ―eu‖. do ―eu sou‖, inserto em cada forma. Agora é a observação da
De um polo ao outro do ser, tudo é construído segundo esse estrutura de nosso particular que nos indica a estrutura do uni-
princípio, que é lei fundamental. É assim que toda força no versal. Assim como cada individualização particular do ser não
universo é individualizada segundo suas qualidades particula- pode existir senão enquanto diz: ―eu sou‖, isto é, em função
res, o que explica a instintiva tendência dos povos primitivos dele e como sua manifestação, também a individualização má-
para personificar as forças da natureza, atribuindo-lhes caracte- xima do ser, isto é, o universo, não pode existir senão enquanto
rísticas humanas. É também sob este aspecto que podemos ver diz ―eu sou'', ou seja, em função deste e como sua manifesta-
as forças do mal personificadas em Satanás e seus demônios, ção. Isto à semelhança do que constatamos em todo ser, inclu-
que, de resto, nós realmente vemos existir em nosso mundo, sive o homem, fato que cada um pode observar em si mesmo.
nas manifestações dos seres maus. Esta característica de indi- Se o ―eu sou‖ de cada individualização é o seu íntimo princí-
vidualização, que, em qualquer forma, é sempre indispensável pio animador e se o ―eu sou‖ do homem é a sua alma, o que
à existência de um ser; este princípio comum a todos, ideia- poderá ser o ―eu sou‖ do universo, o princípio animador da
mãe do universo e esquema fundamental do sistema; este prin- forma máxima, senão Deus?
cípio universal do ―eu‖, centro de todo o ser, é a única coisa Assim tornam-se compreensíveis para nós as relações entre
que pode manter-lhe constante a identidade em uma forma Deus e o universo, porquanto podemos observá-las refletidas
que, de outra maneira, não poderia encontrar-se a si mesma e em nós mesmos. Deus é o ―Eu sou‖ do universo. Este, no seu
se perderia no seu contínuo transformismo. aspecto dinâmico e físico, é a forma pela qual Deus exprime o
É este seu íntimo ―eu‖ que define toda a forma nas suas ca- pensamento, é como que um Seu corpo, onde podemos ver de
racterísticas particulares, forma pela qual ele concretamente re- Deus, mesmo na forma, também um semblante que pode espe-
aliza a sua expressão. Se todas as formas são diferentes, é por- lhar na fisionomia e expressão o seu íntimo pensamento anima-
que todo ―eu‖ é diferente, embora conserve, cada qual na sua dor. Assim como nós procuramos num rosto humano uma alma
diversidade, a característica universal comum de ser um ―eu‖. e assim como, em toda forma, procuramos o princípio inteli-
164 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
gente que nela se exprime, também podemos ver na criação a sim, pelo contrário, para vantagem dos elementos componentes,
fisionomia de Deus. E, quanto mais a nossa vista se torna pene- com a conservação de um organismo global, que é necessário e
trante pela intuição, tanto mais cada forma se fará transparente útil a todos. O Estado, como um chefe de família, pode ser util-
e lhe revelará sua íntima substância espiritual. Torna-se cada mente egocêntrico sem ser egoísta. Se todo ser, para existir, de-
vez mais patente, então, que o criado é a expressão de um seu ve dizer: ―eu‖ – o egocentrismo é uma necessidade de existência
íntimo pensamento nele imanente, no qual a transcendência de e, por isso, não pode haver culpa em se repetir os princípios do
Deus desceu e permanece sempre presente. Se, no seu aspecto ser, expressos no sistema do universo. É segundo a Lei, também,
transcendente, Deus permanece na Sua essência como um ―Eu que cada fragmento conserve interiormente a natureza do es-
sou‖, incognoscível para o homem, Ele, no seu aspecto imanen- quema consoante o qual o Todo-Uno é construído.
te, transferindo-se ao nosso relativo com a criação, fica, através Então, por que egoísmo é culpa? Procuremos compreender.
da forma que assumiu para os nossos sentidos, acessível ao co- Egoísmo e altruísmo são termos relativos ao grau de extensão
nhecimento humano. E em que consiste a progressiva indaga- que o ―eu‖ cobre com o próprio amor e compreensão. Enquan-
ção da ciência, que avança de descoberta em descoberta, senão to o egoísmo é o amor exclusivo com relação ao próprio ―eu‖ e
em contínuas e crescentes sondagens na profundeza do pensa- a nenhum outro, um altruísmo absoluto que renuncia a tudo,
mento divino? Ele está escrito no funcionamento orgânico do inclusive a si mesmo, sem vantagem nenhuma para um dado
universo, e quem o indaga procura ler o livro onde estão escri- ser ou grupo de seres, é loucura, é suicídio. Ambos os extre-
tas as leis do ser e busca compreender a ideia diretriz do Todo, mos constituem culpa. A virtude consiste no altruísmo razoá-
sua alma. O místico, por sua vez, é um sensitivo que, ainda vel, no sacrifício em favor de alguém, na dilatação do egoís-
quando não se dê conta consciente e racionalmente, move-se mo, isto é, na ampliação do princípio do egocentrismo, e não
atrás da mesma indagação por vias mais diretas, porfiando, na sua supressão. A virtude será tanto maior quanto mais ex-
através das suas visões e sensações místicas, alcançar a mesma tenso for o campo dominado pelo amor, que é a substância da
compreensão do pensamento de Deus. Lei. Efetivamente, o egocentrismo máximo do sistema em
Se nós, certamente, não podemos atingir o conhecimento de Deus não é senão um egoísmo que cobre todo o universo, dila-
Deus transcendente absoluto, podemos aproximar-nos muito de tado assim infinitamente no amor capaz de abraçar e defender
Deus imanente, vivo e presente nas formas que O exprimem, todas as criaturas até considerá-las como partes integrantes de
em virtude justamente desse esquema unitário do ―eu sou‖, se- si mesmo, sacrificando-se por elas.
gundo o qual todo o universo, até os casos infinitesimais, é Eis como se opera a progressão da abertura da concha do
construído à imagem e semelhança do caso máximo, analogi- egoísmo no altruísmo, finalidade da evolução. Esta consiste
camente. Podemos imaginar o nosso universo atual como um exatamente na confraternização, que, unificando os fragmentos
todo-uno que, qual um espelho, se tenha fragmentado em mirí- do Uno, reconduz os seres à unidade no centro – Deus. O ego-
ades de partículas. Cada uma destas, embora um fragmento em ísmo poderia então denominar-se egocentrismo involuído, fe-
relação ao Todo, conserva-lhe em particular as qualidades, de chado e limitado em si mesmo, enquanto o altruísmo seria ego-
modo que pode nos traduzir e mostrar a natureza do Todo, não centrismo evoluído, aberto e expandido no Todo. Efetivamente,
obstante haver perdido a unidade global com a fragmentação. o primeiro é separatista, desagregador, centrífugo; o segundo é
Desta forma, cada parte reproduz o universal esquema do ser, unificador, agregador, centrípeto. O primeiro se afasta de Deus,
isto é, cada criatura repete reduzidamente o divino princípio e o segundo se avizinha de Deus.
unitário, alma do Todo. Em outros termos, cada ―eu‖, com a O egoísmo se explica historicamente. Resultado da frag-
sua forma, é um caso menor, que repete em miniatura o motivo mentação do Uno em tantos outros ―eu‖ menores, separados e
cósmico, no-lo narra e no-lo explica. Sendo em si um pequeno separatistas, como veremos, é qualidade do ser involuído, ne-
universo, fala-nos do universo máximo. cessária à sua existência, pois que, no nível em que se encontra,
Ignoramos se tudo isto corresponde aos princípios mais necessita revestir esta forma de personalidade separada egoisti-
aceitos em teologia, filosofia, psicologia etc. Sabemos apenas camente, em guerra com todos, na ignorância da superior fase
que cada ser fala verdadeiramente de Deus e que o universo é orgânica que poderá irmaná-lo aos semelhantes em unidades
construído segundo esta realidade. maiores. Esse egocentrismo, biologicamente justificável, só o é,
todavia, para o passado, mas, se tentar prolongar-se no futuro,
III. O EGOCENTRISMO tornar-se-á cada vez mais condenável como egoísmo separatis-
ta, porque a evolução leva a humanidade a um mais vasto ego-
A esta altura, surgem muitas questões. Procuraremos res- centrismo coletivo. É assim que o egocentrismo separatista,
pondê-las aqui, para resolver, sempre procedendo em profundi- sendo uma forma de utilidade biologicamente superada, não
dade, o problema do conhecimento das últimas coisas. poderá reaparecer senão sob um aspecto cada vez mais retró-
Se o universo diz em Deus o seu: ―eu sou‖, como o diz toda grado e antivital. Tendo cada vez menos razão de existir na sua
criatura e, por conseguinte, todo homem, será possível então forma exclusivista e agressiva, cada vez menos também será
encontrarmos, no termo máximo, o principio de egoísmo que justificado, pois que deixou de ter função biológica.
existe nos seres inferiores e que é tão condenável no homem? Em Deus, o egocentrismo representa um egoísmo tão am-
É isto possível? Mas por que então o egoísmo humano é uma plo, que abraça todas as criaturas, tudo o que existe, de modo a
culpa? Por que ele existe, o que significa e quer? Em Deus, coincidir com o máximo altruísmo. E, quanto mais o ser evolve,
princípio centralizador unitário do universo, encontraremos en- tanto mais o egocentrismo tende a se aproximar ao de Deus,
tão o egoísmo máximo? que é o egocentrismo que todo ser sente com respeito aos ele-
É um fato que, sem egocentrismo, desde os sistemas planetá- mentos componentes do próprio organismo, constituindo uma
rios aos organismos celulares e sociais, não se mantém compac- necessidade para mantê-los todos compactos em unidades em
ta nenhuma unidade. Ele é, pois, necessário a todo ser. Egocen- torno ao ''eu‖ central, alma do Sistema. O egocentrismo de
trismo não é exatamente egoísmo. Este possui um sentido mais Deus é, pois, um egocentrismo perfeito, isto é, não constituído
de centralização com vantagem individual, de pendor separatista de um egoísmo separatista e exclusivista, como o dos seres in-
e exclusivista, de usurpação em detrimento de outros ou necessi- feriores, mas sim feito de amor, que reforça essa fundamental
tados ou com direito. O egocentrismo possui, ao invés, apenas lei do ser, porque Deus é centro, não para sujeitar, mas para
um sentido de centralização, destituído de senso separatista e atrair; não para absorver, mas para irradiar; não para tomar, mas
exclusivista, não com o objetivo de usurpar nada a outrem, mas para dar. Se, por sua vez, os ―eu‖ menores têm necessidade do
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 165
seu menor egocentrismo para manter o seu menor sistema, na- a agir contra o Todo, então os impulsos do conjunto orgânico se
quele egocentrismo também eles encontram o limite do próprio encontram contra ele, para expulsá-lo do Sistema. Veremos,
ser. Em tal limite, eles estão fechados, pois que ele forma o ho- dentro em pouco, como pode surgir essa atitude rebelde das cri-
rizonte da sua existência e compreensão, e só pela evolução po- aturas e quais as suas consequências.
dem sair dele, ampliando-o em outro mais vasto. Compreende-se, dessa forma, como o mundo de hoje, base-
Assim é a íntima estrutura do sistema do universo. O grande ando-se no egoísmo, esteja completamente fora da rota. Os mé-
modelo é Deus, que todos os seres, inclusive o homem, devem todos mais seguidos para a conquista da riqueza representam,
seguir. Esse Deus se encontra no núcleo do Sistema, tudo cen- mesmo do ponto de vista utilitário, um grosseiro erro psicológi-
tralizando em si, para tudo irradiar de si, e as criaturas devem co. Acumular com exclusivismo egoísta significa caminhar
existir à Sua imagem e semelhança, isto é, como outros tantos contra a maior corrente da vida, agir com prejuízo, significa
núcleos menores que irradiam para sistemas menores. E, assim, pôr-se em posição invertida, não obter senão resultados negati-
hierarquicamente, cada um, segundo o grau de evolução atingi- vos. E, quanto mais porfiadamente o homem lutar nessa dire-
do, cobre uma extensão maior ou menor do sistema relativo ao ção, buscando vencer por ela, tanto mais se afastará das fontes
seu raio de ação. Tal o modelo central, tal a lei do Sistema. Cer- do ser, para perder-se no deserto em que o isolarão as forças da
tamente, a criatura é livre e pode, pois, agir de modo contrário. vida, que dele se arredarão como de um pestilento. Deus é amor
Mas pode estar bem certa de que é lei também que todo o sis- e sempre dá. A divina corrente do Todo está baseada no princí-
tema se volte contra ela, para esmagá-la, como a um inimigo. A pio do dar. Agindo ao contrário, o homem pretenderia opor-lhe,
grande corrente da vida vai contra quem pretende inverter a rota como uma muralha, o oposto sistema do tomar! Então, a mura-
do ser, prejudicando-o. Ela o coloca frente ao dilema de rear- lha não susta a corrente, mas a corrente destrói a muralha. A
monizar-se com a Lei, enquadrando-se de novo nela, ou ser nossa economia, porventura, não está baseada no princípio ―do
eliminado. E os salutares golpes da dor, ainda que atenuados ut des‖3? Se a balança da justiça assim se apresenta, isto signi-
pelos impulsos de amor, não serão sustados enquanto não se ti- fica egoísmo, pelo que eu não darei se tu não deres. Se não tive-
ver conseguido a correção ou a destruição. O ser é livre para res para dar, morrerás, o que a mim não importa. E, se não de-
violar, mas somente em seu dano, e não tem nenhum poder para res, eu não darei. Este princípio de compensação, que são as
dobrar ou anular as leis da vida. bases reconhecidas da economia vigente, constitui a mais lídi-
Eis as razões remotas que explicam e impõem o ―ama o teu ma manifestação do egoísmo. Se tal é a atitude da alma, que
próximo‖ do Evangelho. Hierarquicamente, a unidade do Sis- salvação podem realizar os sistemas econômicos que se erguem
tema, por esquemas únicos, repetidos em todos os níveis, impõe sobre essas bases? Uma economia desse tipo, em face das mais
que o mais sábio e poderoso, porque em níveis mais elevados, profundas leis da vida, éticas e espirituais, das quais é ilusório
deve irradiar para os inferiores, de nível mais baixo, pois que os querer furtar-se em qualquer procedimento nosso, resulta tam-
níveis elevados recebem dos que se encontram em níveis mais bém utilitariamente negativa, isto é, contraproducente. Efeti-
elevados ainda do que eles, próximos a Deus. Obtém-se, assim, vamente, o mundo econômico-financeiro não passa de uma sé-
através da desigualdade, a justiça. Receberá dos irmãos maiores rie de crises em cadeia, que formam uma única perene crise in-
quem der aos seus irmãos menores. Quem mais possui, mais sanável, porque ela não se origina de um particular momento ou
deve dar. Quem menos tem, mais deve receber. Eis a perfeita posição, mas de todo o sistema.
justiça alcançada pelo amor, respeitando diferenças e desigual- Por que, então, o homem se comporta assim e não sai dessa
dades necessárias, que exprimem a posição atingida, cada qual posição falsa? Simplesmente porque a grande massa humana é
com sua fadiga e vontade de subir. Uma justiça perfeita, atingi- involuída e não compreende esses erros psicológicos, além do
da sem nivelamentos forçados, que podem constituir mutilações que, quando já se tomou uma direção, é muito difícil inverter a
para os mais evoluídos e apropriação indébitas para os inferio- rota. E aqui se trata precisamente da evangélica inversão dos
res. Eis a função da Divina Providência, já alhures estudada. valores, isto é, de pôr no cimo da escala destes os espirituais e
Assim se compreende o Evangelho, quando diz que não ganha no fundo os materiais. Mas hoje se verifica o inverso, colocan-
a própria vida quem a conserva egoisticamente para si, mas do-se em cima estes últimos em virtude do tipo biológico do-
somente quem a dá aos outros. Recordemo-nos que somos célu- minante na Terra não se encontrar ainda, por evolução, sensibi-
las de um grande organismo e que nenhuma célula pode crescer lizado a ponto de percebê-los e apreciá-los. Ele corre atrás dos
e viver isolada, pensando exclusivamente em si mesma e em valores fictícios do mundo sensório e corporal, ao invés de bus-
seu próprio benefício, mas somente pode fazê-lo em relação às car os mais consistentes do mundo espiritual e da alma. O tipo
outras, em favor do organismo inteiro. Uma célula absoluta- dominante não consegue ainda compreender esse novo hedo-
mente egoísta representa em qualquer organismo um germe re- nismo e apoderar-se dele em seu benefício. A nova vida é do
volucionário, uma revolta à lei do Todo, uma atividade perigosa bem, que opera honestamente, sem enganar, pedindo antes o
que é logo sufocada no interesse geral, um cidadão rebelde que trabalho e depois a recompensa. O homem ignorante prefere as
urge ser expulso da sociedade. vias do mal, que age desonestamente, enganando, prometendo
Tal é a grande parte da moderna humanidade materialista, dar muito e chegando mesmo a dar logo alguma coisa sem nada
para quem o egocentrismo é egoísmo separatista e exclusivista pedir, para mais tarde retomar o que deu e não dar o que pro-
de cada um contra o próprio semelhante. E, efetivamente, as meteu. O caminho feito de mentira é mais atraente para quem
leis da vida procuram isolar esse tipo biológico, como um can- crê ser bastante bravo para burlar as leis da vida, o que leva a
cro ou tumor, para destruí-lo. Com o próprio egoísmo, ele dese- cair facilmente numa armadilha. Cada qual atrai segundo a pró-
jaria sustar o livre fluxo da vida, como quer a divina lei de pria psicologia e obtém o que merece.
amor, e a vida o põe na encruzilhada: seguir a rota da Lei ou ser O homem comum, imerso em um mar de mistérios, não
esmagado por ela. O homem moderno não conhece esses prin- sabe se orientar, detendo-se nos efeitos imediatos. No altruís-
cípios, age como uma célula que quisesse viver exclusivamente mo, ele vê um sacrifício tangível, próximo, real. Vê nele um
para si, isolando-se da corrente de todo o funcionamento orgâ- perigo para si e para os seus, de modo que tem como um dever
nico de que é parte. Para quem compreendeu a vida, isto é sim- arrebanhar o mais que pode para si e para os seus. Em face do
plesmente a louca pretensão de um ignorante de tudo. Mas o altruísmo ele recua exclamando: ―E quem me garante a vida?‖.
Sistema tem como centro Deus, e não o homem, e ninguém po- O assalto permanente que sofre da parte do próximo, que ele
de alterar a realidade dessa estrutura do universo. E, assim,
3
quando um centro menor, fazendo mau uso da liberdade, tende ―Dou para que dês‖. (N. do T.)
166 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
deveria amar como a si mesmo, justifica em parte essa sua ati- truir o que já se encontra em nosso poder. Desta forma, escon-
tude e exigiria heroísmo ter que invertê-la no oposto. Para demo-nos em uma prisão. Bastaria saber abrir-lhe a porta, para
chegar a isto, teria que não apenas dar o seu sacrifício imedia- que nos evadíssemos. A porta, para que se abra, exige que re-
to, mas também, para manter-se, lutar sozinho contra toda uma cuemos um pouco, mas o homem prisioneiro, na ânsia de fu-
corrente inversa, formada pela sociedade humana. Todavia, pa- gir, ao invés de recuar um pouco para trás, avança sofregamen-
ra o homem altruísta, há uma grande força em sua defesa – te, buscando o exterior e, pensando em tudo, menos no que de-
coisa que, na Terra, bem raramente se tem em conta – pois ele, ve fazer para se libertar, mais e mais impele a porta do lado em
não sendo egoísta, é espoliado de tudo, porque tal é o resultado que ela se fecha, tornando, com o seu esforço, mais e mais di-
de uma guerra de egoísmos para quem não ataca nem se de- fícil a libertação. Ele é um louco. Para desfazer certas mira-
fende, e isto atrai as forças da vida, que acorrem, a fim de sal- gens e destruir outras tantas ilusões psicológicas, é necessário
vá-lo. Estas forças não constituem utopia. Elas regem o mundo ao homem a dolorosa elaboração de milênios.
e acorrem esse homem porque ele personifica a vontade o O raciocínio do homem atual parece verdadeiro, porque o é
maior interesse da vida, que é a evolução. Mas, para compre- apenas em parte, pelo menos onde ele alcança com seu conhe-
ender isto, é necessária uma sensibilização moral e psíquica cimento, isto é, no seu mundo concreto, que representa a perife-
que não existe na maioria, uma orientação conceitual precisa, ria do Sistema e que ele, ignorante do resto, supõe que seja tudo.
através da qual se tenha compreendido o funcionamento orgâ- Desfazer em altruísmo o próprio egoísmo é efetivamente uma
nico do universo; é indispensável, enfim, a prova resultante do perda, mas somente periférica e apenas em uma primeira fase.
controle experimental de toda uma vida. Porque, realmente, não é perda, mas sim ganho, quando em um
Na realidade, funcionam inúmeras forças que a maioria ig- segundo tempo o ser vem a pôr-se em contato com outras forças
nora. Deus, ao sensibilizado por evolução, é uma realidade não periféricas. Efetivamente, o altruísmo não é vantajoso neste
sensível. O caminho para se aproximar Dele, suprema alegria, mundo, quando outros seres estão dispostos a arrebatar-nos tudo
consiste na progressiva dilatação do próprio egocentrismo, que e valer-se de nosso sacrifício em proveito próprio, embora com
denominamos altruísmo, isto é, o fraterno amor evangélico. evidente perda para si. E esta é definitiva para o involuído, que,
Este constitui o método de ascensão para a felicidade, encur- em remotas conexões com o centro Deus, só é escassamente ir-
tando as distâncias entre o homem e Deus, porque, assim, a radiado e, por conseguinte, empobrecido e privado de novos su-
criatura, seguindo o exemplo divino, volta-se para trás a fim de primentos. E, dado que nos encontramos na periferia do Sistema
orientar as criaturas irmãs. Quando o ser se decide dessa forma e que a maioria é, por involução, pouco irradiada, a posição de
a funcionar segundo a lei do Todo e se dispõe a despojar-se do prisioneiro da pobreza e da dor, sem capacidade de evasão, é ló-
que possui em favor do necessitado, põe em movimento os im- gica e compreensível. Não há remédio imediato. Nada resta se-
pulsos do Sistema e faz com que este funcione em seu favor, não deixá-lo na posição que lhe cabe, segundo o seu grau de
de modo a ser de alguma forma provido e largamente compen- evolução, à espera de que os golpes da vida o elaborem até que
sado do que perdeu, dando voluntariamente. Em outros termos, ele compreenda o mecanismo do Sistema e consiga assim fazê-
ativa-se o princípio segundo o qual quem beneficia é benefici- lo funcionar em seu proveito. É inútil querer explicá-lo antes
ado e tanto mais beneficiado quanto mais beneficiou. Inicial- que ele amadureça, porque permanece incompreensível, pois
mente, punge o sacrifício de pôr em movimento essas forças, que não se aceita aquilo que não se mereça conhecer, por não se
mas o Sistema, pode-se dizer, é de uma tal precisão mecânica, ter feito ainda o esforço de conquistá-lo.
que, uma vez posto em ação por quem compreende e sabe, ma- Tudo será muito diverso para o evoluído. Desfazer em altru-
tematicamente dará resultado. ísmo o próprio egoísmo, também para ele, significa um prejuí-
Certamente, é necessário ter compreendido a estrutura cole- zo. Mas ele pode enfrentar com segurança esse sacrifício, por-
tiva do organismo universal; a universal imanência de Deus, que conhece a estrutura do Sistema e sabe, por isso, o que se
pela qual tudo ―é‖; a natureza orgânica do Todo, do qual cada seguirá a esse sofrimento. Espiritualmente ligado ao centro
indivíduo é parte que vive em relação e das relações com as Deus, não vive apenas de limitada vida periférica. Pelo contrá-
outras partes, célula que morre quando se isola. É necessário rio, é justamente este seu sacrifício de dar irradiando a força
evoluir para sensibilizar-se ao ponto de perceber essa irradia- decisiva que abrirá janelas que o inundarão de sol. É este o difí-
ção do centro, Deus, que rege inteiramente o Sistema, até à sua cil passo para trás, o único que lhe pode permitir abrir as portas
periferia, onde nós, menos evoluídos, nos encontramos. É ne- da prisão. Esta negação de si próprio em altruísmo, na periferia,
cessário compenetrar-se de que não existe pobreza na infinita é uma afirmação para o centro Deus, isto é, uma mobilização
riqueza de Deus e de que os bens são ilimitados e constante- das forças de irradiação que esperavam essa sua atitude para
mente irradiados, sempre prontos a saciar qualquer possível poder inundá-lo. Porque é o ser livre que deve encontrar a cha-
necessidade. Deste oceano, o ser, no entanto, não poderá cap- ve e com ela abrir o mistério da evolução. E, assim, em um se-
tar para si mais do que lhe permite a sua capacidade receptiva, gundo tempo, ele será largamente recompensado e enriquecido
que é dada pela sua evolução, pela sua aderência ao Sistema, pelo seu empobrecimento, que, na realidade, se reduz a perdas
ou seja, pela aderência à Lei ou vontade de Deus. É, pois, ne- diminutas na zona periférica do sistema universal, na zona da
cessário que ele funcione de acordo com a Lei, agir com amor, matéria e das ilusões. Defrontamo-nos assim, em verdade, com
sabendo irradiar, dispondo-se a dar e aplicando assim a norma um sábio cálculo utilitário, que, diferentemente do outro, con-
evangélica do ―ama o teu próximo‖. duzirá à plena satisfação com segurança de êxito.
O problema está em saber acionar os impulsos do Siste- Eis o raciocínio desse tipo de homem. Dirige-se a Deus, di-
ma, de modo a pôr em movimento essa irradiação. Se souber- zendo: ―Senhor, eu dou, empobreço-me materialmente, mas,
mos abrir as janelas de nossa alma, seremos inundados por es- com isto, eu me torno instrumento que adere à tua lei, vivo se-
sa irradiação. Mas, para economizar o esforço de abri-las, fa- gundo as linhas de força do teu sistema. Para o triunfo do teu
zemos prudentemente, quando não confiamos, os nossos cálcu- amor eu sacrifico o meu pequeno eu. Tu sabes que agir assim
los utilitários, para nada arriscar, encolhendo-nos em um can- na periferia, onde me encontro imerso na matéria, significa
to, e assim permanecemos no quarto escuro e frio de nós mes- empobrecer até à morte. Mas eu não existo mais para mim,
mos, a disputar com o vizinho, embora lá fora tudo exista num isolado, mas na vida universal, em que Tu ―és‖. Eu não quero
exuberante jorrar de vida, o pouco de luz ou de calor que, mais a mim mesmo, mas somente a ti, em Quem eu vivo. Que-
mesmo assim, coa-se para o interior. Mas tal é o nosso mundo, ro a tua lei. Faço parte do teu organismo. Sou uma célula dele,
onde as maiores guerras se fazem para disputar o que já possu- uma tua célula. Tu és o meu eu maior, em que agora existo.
ímos de uma riqueza que é infinita, conseguindo apenas des- Então a minha morte não é mais possível. Compete a ti e à tua
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 167
lei impedi-la, para que a vida me seja dada, pois que ao meu IV. A QUEDA DOS ANJOS
fraco poder de defesa eu renunciei para seguir a tua lei de
amor. Não é possível que, para seguir-te, eu deva perder a vi- Concluída a precedente ordem de conceitos, abre-se dian-
da. Sei que esta tem fins eternos a alcançar e que eles devem te de nós uma outra visão, numa ordem de conceitos afins e
ser alcançados. Ela não pode perder-se ao acaso, dependendo consequentes, que o leitor encontrará em germe, primeira-
apenas da minha pobre defesa do momento. Seguindo-te, eu mente em A Nova Civilização do Terceiro Milênio, Cap. X –
ganho a vida. E se também morrer, não perderei senão a minha ―O Problema do Mal‖, e Cap. XIII – ―Problemas Últimos‖, e
vida menor, porque ressurgirei na tua vida maior‖. depois, no volume Problemas do Futuro, Cap. XV e XVI –
Assim se compreende o Evangelho de São João (Capítulo ―Deus e Universo‖.
XII: 24-25), quando diz: No capítulo anterior, havíamos explorado, sem desenvol-
―Na verdade, na verdade, vos digo que, se o grão de tri- vê-lo, este tema: ―A criatura é livre, podendo, pois, agir contra
go, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dá o Sistema‖. Aprofundemos aqui, como antes não pudemos fa-
muito fruto‖. zê-lo, essa tese, desenvolvendo-a e analisando-lhe todas as
―Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo consequências.
aborrece a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna‖. Como ocorreu essa monstruosa revolta de algumas células
A luta entre o evoluído altruísta e o mundo egoísta, que não do grande organismo-universo, as quais, ao invés de funcionar
se preocupa senão de espoliá-lo e explorá-lo, é terrível. A situa- harmoniosamente nele, puseram-se contra ele, rebelando-se?
ção é tal que se procura, por todos os meios, eliminar o benfei- Onde se encontra a primeira raiz dessa anarquia na ordem? Im-
tor, e isto exatamente por parte daqueles a quem ele desejaria portante questão que se vincula ao problema da gênese do mal,
fazer o bem. Poderosa é a resistência que o involuído opõe a da sua presença no mundo e da sua solução final.
quem procura fazê-lo evolver para a felicidade, e trágica é na Para compreender, observemos a estrutura do Sistema. Ela
Terra a posição dos benfeitores da humanidade: posição de se baseia em alguns princípios fundamentais como o egocen-
martírio! É como querer abraçar por amor um tigre: fica-se trismo e a liberdade. A criatura, parte integrante do Sistema, foi
despedaçado. Porém a vida é terrena só em parte e não se exau- constituída como um esquema menor do esquema maior, cujo
re senão do ponto de vista humano. O trabalho desses homens é centro é Deus, de acordo com o princípio já mencionado dos
missão e interessa também ao céu. Dado que à vida, se pouco esquemas de tipo único. Porém, essa dádiva de Deus, por quem
interessa o indivíduo, muito interessa a função que ele personi- a criatura fora feita à Sua imagem e semelhança, constituía um
fica, sobretudo a evolutiva, que torna esse indivíduo sagrado, poder muito perigoso se não fosse bem usado, pois continha em
quando então forças superiores intervém para protegê-lo no sa- germe a possibilidade de um transviamento, possibilidade que o
crifício, até que a missão seja cumprida e se dê o milagre. ser, exatamente pelos princípios do Sistema, deveria enfrentar
Então, aciona-se o movimento da irradiação, porque o ser com as suas forças. E as consequências, quaisquer que fossem,
não mais a mantém fechada em si, mas lhe faculta o fluxo, tor- deviam ser suas, pois significa responsabilidade em um sistema
nando-se-lhe um canal que permite fluir no universo, de criatu- de ordem e justiça, a consequência do princípio de liberdade.
ra em criatura, a divina linfa vital. E a irradiação está pronta a A quem objetar que um sistema perfeito não deve conter a
lançar-se onde a passagem é livre, mas a desviar-se de onde há possibilidade de erro, deve-se contestar que essa possibilidade,
obstrução. Assim, os homens altruístas se tornam sempre mais que não é absolutamente necessidade, está implícita nos princí-
instrumentos da Lei, que nutre cada vez mais esses seus canais pios supracitados, como sua consequência necessária, de modo
e os exalta, enquanto funcionam segundo a direção do seu sis- que, para suprimi-la, seria imperioso suprimir os princípios que
tema de forças. Tudo isto significa dar cada vez mais ampla- dão causa, cujo valor não se discute. É natural que, onde exista
mente, um despojamento crescente, que aterrorizaria o involuí- um ―eu‖ livre, seja também possível o mau uso da liberdade. E
do, mas, ao mesmo tempo, significa um nutrimento sempre nem por isso o valor desta decresce. De outra forma, não nos
mais vigoroso de forças. Ser irradiado significa sentar-se a uma encontraríamos em um sistema de liberdade, mas de determi-
lauta mesa de recursos ilimitados. E o Sistema é tal que, quanto nismo, no qual as criaturas não passariam de autômatos. Ora,
mais aumenta o sacrifício em dar, mais cresce o dom que se re- Deus não criou seres dessa espécie, mas sim criaturas partícipes
cebe, porque, com isto, sobe-se na hierarquia dos operários do das suas próprias qualidades. Dada a estrutura do Sistema, gera-
Senhor, com a conquista de poder e sabedoria crescentes. se uma cadeia de férrea lógica, que conduz dos princípios a es-
Eis a estupenda realidade que está além das trevas que ocul- sas consequências. A criatura deveria, pois, necessariamente
tam ao homem comum a verdadeira estrutura do Sistema. O encontrar-se ante a encruzilhada da escolha.
Evangelho concorda com tudo isto, concluindo pela norma do O ser, portanto, dada a sua estrutura e a do sistema em que
―ama o teu próximo‖, sem dela dar explicações racionais. Essa existia, deveria achar-se diante da possibilidade do erro. Em ou-
conclusão tem sua grande confirmação no mundo atual, que, tros termos, o ser passava por uma prova, por um exame, de cujo
não podendo compreendê-la, a considera uma utopia. Estas resultado dependeria a sua futura posição, por ele livremente es-
concepções aqui expostas pelo autor, obtidas por visão com o colhida. Ora, que o Sistema contivesse a possibilidade de um erro
método intuitivo, foram submetidas a controle durante quarenta não significa absolutamente que ele tivesse sido construído erra-
anos, usando o método experimental, sem que elas, nos fatos do ou fosse defeituoso. Tanto é verdade, que ele, como veremos,
por ele vividos, jamais encontrassem um desmentido. Se isto ti- de fato não se arruinou pelo erro cometido; pelo contrário, por ser
vesse ocorrido, teria sido gravíssimo, porque os fatos, ainda que perfeito, tinha capacidade de autorregeneração. O Sistema estava
apenas um, teriam desmentido o Evangelho. Muito se deve acima do erro nele possível e fora constituído para permanecer
pensar agora, quando o Evangelho, que parece utopia, torna, se íntegro, inabalável, para qualquer acontecimento. Por isso podia
realmente vivido, tangível a verdade, que não falha. permitir em seu seio uma possível violação e desordem, sobretu-
Horizontes novos e ilimitados, inexplorados continentes do do porque essa possibilidade tinha a função de aprovar o ser,
espírito, repletos de riquezas ignoradas, vastidões abismais de dando-lhe, segundo o princípio de justiça, caso superasse a pro-
infinito sobre os quais a alma se debruça em vertigem! O ho- va, o pleno direito de aquisição da sua posição de filho de Deus
mem ignorante não suspeita qual o futuro que o espera ali. somente depois de havê-lo merecido. O Criador exigia da criatu-
Além do infinito astronômico, existe o maior infinito espiritual. ra uma livre aceitação do Sistema, um espontâneo reconhecimen-
E, nesta Terra, grão de areia cósmica, por um pouco de espaço to das recíprocas posições nele, para então poder conceder ao ser
e de bens, o homem, centelha divina, com que ferocidade e es- uma livre coparticipação em Sua obra, como o Sistema requer, o
tupidez mata, sem saber quem é e no que poderá tornar-se! que seria impossível com uma criatura escrava ou um autômato.
168 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
A prova da livre escolha não foi, pois, um capricho, um aca- momento, em que a criatura é quase chamada, com seu consen-
so ou um erro do Construtor, mas fez parte integrante da lógica timento, a colaborar. Parece enorme, absurda, tanta bondade.
do Sistema, como necessária consequência dos princípios que o Mas essa é a estrutura do Sistema; assim quer o amor de Deus.
constituem. A estrutura do edifício de conceitos e forças do Sis- Eis o ser diante de Deus. Apenas criado, ele ainda não falou.
tema, a natureza do Criador e a da criatura, os fins a atingir além Deve dizer agora a sua primeira palavra, que Deus lhe pede em
da prova, tudo isto conduzia à necessidade de que a criatura de- resposta ao Seu ato criador, a palavra decisiva. Deus lhe fala
vesse encontrar-se só e livre na encruzilhada da escolha. A pos- primeiramente: ―Olha, ó criatura, o que há diante de ti. Eu sou o
sibilidade de erro estava implícita no Sistema, não como uma Pai que te criou. Quis fazer-te da minha própria substância, um
imperfeição, prelúdio de fracasso, mas como um elemento defi- ‗eu sou‘, centro, livre como ‗Eu Sou‘. Fiz-te grande com a minha
nido e desejado para determinados fins, como sua força, e não grandeza, poderoso com o meu poder, sábio com a minha sabe-
como sua fraqueza. Veremos, efetivamente, que esses fins são doria. Fiz assim, espontaneamente, por um ato de amor para con-
igualmente atingidos também por outra via e que a obra da cria- tigo, minha criatura. A este meu ato falta somente um último re-
ção permanece igualmente como um triunfo no plano de Deus. toque para ser perfeito, e ele deve partir de ti. Espero-o de ti, que
Os dois princípios acima aludidos, egocentrismo e liberda- o farás com plena liberdade. Ofereço-te a existência como um
de, comuns também às criaturas, faziam delas tantos menores grande pacto de amizade. Ele é baseado no amor com que te criei
―eu sou‖, semelhantes a Deus, como tantos deuses menores em e a que deves o teu ser. Podes aceitar ou não este meu amor. To-
função de Deus. Deus quis a criatura assim, feita à Sua imagem do pacto é bilateral, toda aceitação de amor deve ser espontânea.
e semelhança. Nem o ser Dele saído poderia ser de natureza di- É absurda uma imposta correspondência de amor. Escolhe. Vê o
versa da Sua. Em um sistema de esquema de tipo único, a cria- que Eu já fiz por ti. Eu te precedi com o exemplo. Tu me vês.
tura não podia deixar de ser um ―eu sou‖, centro autônomo e li- Olha e decide. Qualquer pressão minha fará de ti uma criatura
vre, como é o Criador. Então, estando não só a estrutura do Sis- escrava, e Eu te quis livre, porque deves assemelhar-te a mim.
tema mas também a natureza da criatura baseadas no princípio Para que Eu pudesse amar-te como quero, devias ser semelhante
da liberdade, tudo quanto dissesse respeito à criatura não podia a mim. Não se pode pedir amor a um escravo, mas somente obe-
ter curso sem o seu consenso. diência imposta, o que está fora do meu sistema e seria a sua in-
Ademais, existia um terceiro princípio: o amor, fundamento versão. Vem pois, a mim, corresponde ao meu amor, que te cha-
do universo espiritual, mercê do qual Deus não é egocêntrico ma e te atrai. Confirma a minha obra com a tua aceitação. Por tua
senão para irradiar em amor. Assim sendo, o sistema de Deus livre escolha, consente, entra e coordena-te no meu sistema, do
não pode basear-se na coação, assim como, em virtude do prin- qual Eu sou centro. Subordina o teu ―eu sou‖ menor ao ―Eu
cípio de liberdade, não pode basear-se no determinismo, mas Sou‖, o Uno-Deus, supremo vértice que rege o todo. Reconhece
apenas na adesão espontânea. Deus, por ser amor, não pode que- a ordem da qual Eu sou o chefe. Promete obediência à Lei, que
rer a criatura forçadamente prisioneira do Seu amor. Ele limita- exprime o meu pensamento e vontade. Por amor te peço, pois
se a atraí-la. Eis uma nova característica do Sistema, que não que és meu filho, que me retribuas o amor com que te gerei‖.
pode admitir da parte da criatura senão uma correspondência de Após essas palavras, por um instante ficou suspensa a respi-
caráter espontâneo, sem a qual não há amor. Não é possível gra- ração do universo, enquanto as falanges dos espíritos criados
vitar-se forçadamente, em direção a Deus, por amor. Assim, to- oscilavam em cósmicas ondulações. O ser olha e pensa. Ele
do o Sistema, também por esse principio, impunha a livre esco- sente o poder que lhe vem do Pai, uma imensidade que o torna
lha, qual passagem obrigatória para valorização do ser, que de- semelhante a Deus. É livre, como um ―eu sou‖ autônomo, se-
via, antes de ser aceito, conquistar plenamente esse direito, de- nhor do seu sistema, das suas forças e equilíbrios interiores. A
monstrando livremente haver compreendido, aceitado e querido sua própria estrutura, permeada de divina grandeza, impele-o a
corresponder ao amor de Deus. Mesmo sob esse aspecto, a pro- repetir em sentido autônomo, separatista, o egocentrismo que
va corresponde à perfeita lógica, pois que o amor, para ser tal, ele continha do ―Eu Sou‖ máximo: Deus.
não pode deixar de ser espontâneo e recíproco. Estar o Sistema Mas do outro lado há uma força oposta, antiegocêntrica,
fundamentado no amor é outro fato a implicar que ele deve ba- tendente a neutralizar a primeira: o amor. Ele se manifesta co-
sear-se, também, na liberdade. Liberdade e amor são conexos. mo silenciosa atração que se impõe por bondade. Quem com-
Este pressupõe aquela. Um sistema que não se fundamentasse na preendeu esse apelo, verdadeiramente compreendeu Deus.
liberdade não o seria no amor. Os princípios que regem o uni- As duas forças, assim diversas, movem as falanges dos espí-
verso são estreitamente correlatos. Todos eles se podem reduzir ritos, que as examinam e pesam. Belo é o amor, mas acarreta
a um só, do qual todos estes derivam: o amor. Foi por amor que uma renúncia cheia de deveres, uma renúncia à plenitude total
Deus quis a criatura egocêntrica, feita à Sua imagem e seme- do ―eu sou‖; implica obediência, o reconhecimento de uma po-
lhança, partícipe das Suas próprias qualidades. Foi por amor que sição subordinada. Eis o perigo tentador: exagerar, em seu juí-
Deus quis a criatura livre, a fim de que ela livremente compre- zo, a própria semelhança com Deus e admitir uma pretensão de
endesse e retribuísse esse amor. identidade. Ao invés de seguir o caminho do amor, coordenan-
◘◘◘ do-se com obediência na ordem, tomar a via oposta. Desejar
Entendidas a necessidade, a lógica e a utilidade da prova, coordenar o próprio ―eu sou‖, reforçar sua autonomia, fazendo-
observemos como se comporta o ser neste momento supremo. se isoladamente centro do Sistema com sua própria lei. Imitar
Eis a criatura, substancialmente espírito, centelha de Deus, Deus somente para superá-Lo. Responder ao doce apelo de
apenas destacada do seio do Pai, que a gerou. Ela fita o Centro, amor com um desafio: ―Não Deus! Eu, criatura, sou maior do
do qual derivou por ato de amor, a que deve a sua existência. A que Tu. Eu sou Deus, não Tu!‖.
estrutura do Sistema impõe uma resposta sua a esse ato, a cor- Então, muitos ―deuses‖ menores, feitos de substância divi-
respondência de um recíproco ato com que essa criatura, por sua na, livremente decidiram tornar-se ―deuses‖ maiores, iguais a
livre aceitação, confirme ou renegue como queira, permaneça no Deus. A escolha foi feita por eles, e o universo, abalado até aos
Sistema ou dele se desligue, ponha-se dentro ou fora dele, agin- fundamentos, que estão no espírito, estremeceu, e parte dele
do livremente e definindo assim a sua posição. O Criador respei- desmoronou, involuindo na matéria. Mas não foi assim para to-
ta tanto a liberdade que Ele deu à criatura, fazendo-a à Sua ima- dos os seres. A balança em que foram colocados os dois impul-
gem e semelhança, que submete a Sua obra de Criador a essa sos, para uma outra multidão de espíritos se inclinou, ao invés,
criatura, como ocorre no consentimento necessário de duas par- para o lado amor, oposto ao da rebelião por orgulho.
tes num contrato bilateral. Somente quando a livre criatura tiver Eles reconheceram a superioridade de Deus e se fundiram
dito: ―Sim‖, a criação estará completa, aperfeiçoada até esse na Sua ordem, tornando-se Seus colaboradores, livremente
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 169
aceitando-a e compreendendo-a. Os primeiros não quiseram re- V. ORIGEM E FIM DO MAL E DA DOR
conhecer a Sua supremacia; destacaram-se da Sua ordem e se
transformaram em demolidores. Não quiseram aceitá-la e cor- Estes conceitos não estão fora de nosso mundo. O universo,
responder. Seu chefe foi Lúcifer. Precipitaram-se, assim, para repetimo-lo, é feito de esquemas de um único tipo, e, por isso,
fora do Sistema, em posição invertida, que lhes será a caracte- encontramos a cada momento e em todo ponto o esquema
rística de toda a existência. maior no menor, embora adaptado aos casos particulares. Tudo
É certo que a queda foi devida à falta de conhecimento das ecoa e se repete no universo. O eco desse primeiro ato do ser
consequências da revolta, mas também é certo que a criatura não se extinguiu. Ele revive nas formas da vida, que continua a
não poderia ser onisciente, igual a Deus. Porém, se ela igno- se desenvolver pela via então iniciada e traçada. O denomina-
rava, pode-se objetar, então, como lhe pode ser imputada a do pecado original, a ingestão do fruto proibido da árvore do
culpa de haver caído? Deus deveria tê-la dotado do conheci- bem e do mal, não simboliza o ato sexual, necessário à vida,
mento suficiente para compreender antecipadamente as con- mas a degradação do amor espiritual em amor carnal, do qual
sequências da desobediência, de modo a não incidir nela. A deriva apenas uma gênese falsa, destinada a acabar na morte.
tal objeção pode-se contrapor que a criatura assim teria segui- Esse pecado encobre um fato muito mais central e mais grave
do Deus unicamente no seu egoístico interesse, a fim de fur- – a revolta contra Deus. Ele foi efetivamente instigado por Sa-
tar-se a um dano, e não por amor. Ora, um ato de aceitação tanás, o anjo decaído 4 que pretendeu fortalecer-se com a con-
tão fundamental no Sistema, não poderia basear-se num inte- quista de novos prosélitos, ligando-os ao seu sistema de rebel-
resse nascido do egoísmo, isto é, em um princípio antípoda dia. Assim, o pecado de Adão não constitui mais do que uma
àquele que rege todo o Sistema, como é o amor. Ele deveria reprodução especial do processo de degradação já iniciado,
resultar de uma espontânea adesão por amor, ao compreender uma consequente queda do homem, arrastado por Satanás na
a bondade do Criador. Como é fundamental no Sistema o queda dos anjos, uma imitação que prolonga o fenômeno à
princípio do amor, prova-o o fato de o próprio Deus, no seu guisa de desintegração atômica em cadeia.
aspecto imanente, ter seguido o sistema desmoronado para re- Os motivos da grande queda sobrevivem a todo momento
construí-lo, jamais abandonando a criatura, por mais injusta e na Terra. Eles se inseriram na natureza do ser, que assim tor-
rebelde que fosse. E Deus não lhe pedia senão uma prova de nou-se corrompida e falaz. A gênese do mal e de nossas dores
amor! Os espíritos obedientes a deram, ainda que, em conhe- deve ser encontrada no desmoronamento tremendo que se se-
cimento, sendo iguais aos espíritos caídos. guiu à revolta, derrocada da qual agora devemos sair, tudo re-
Tiveram, então, início no ser decaído duas vias opostas, que construindo em nós e em nosso derredor, com as nossas mãos,
o distinguem. De um lado, o orgulho, o mal, a dor, as trevas, o empenhados no grande trabalho que se chama evolução. Assim,
caos e, consequentemente, a criação e vida na matéria. Do ou- pois, o fenômeno da queda dos anjos não é estranho à nossa vi-
tro, a obediência, o bem, a luz, a ordem e a vida perfeita do pu- da, nem está distante dela, mas é atual. O fundamental motivo
ro espírito. A queda é a involução, da qual se sobe redimido pe- psicológico de desordem continua vivo em nossa forma mental.
lo esforço da evolução, absorvendo o mal em dor, edificando-se Todos compreendemos o que representa a Lei e que seria lógi-
pelo sofrimento com a experiência da vida, assim desmateriali- co, justo e útil segui-la, quer no interesse coletivo, quer no in-
zando-se e espiritualizando-se na ascensão ao encontro de dividual. Apesar disso, sentimos a tentação de rebelar-nos, de
Deus, que não abandonou o ser decaído, mas apenas lhe disse: ludibriá-la, procurando atalhos que, por via mais breve, nos
―Destruíste o esplêndido edifício. Contudo continuas a ser meu conduzam aonde desejamos chegar. Mas ainda aqui, sem dúvi-
filho. Reconstruirás, porém, tudo com o teu esforço‖. da, obedecemos a uma lei da vida, a lei do mínimo esforço, que
◘◘◘ deve ser seguida com inteligência, levando em linha de conta a
Usamos neste capítulo a expressão ―queda dos anjos‖ porque estrutura do Sistema, em que todo ―eu sou‖ só se valoriza em
tradicional e de mais fácil compreensão. Todavia, é bom esclare- função do ―Eu sou‖ centro – Deus. E, assim como o primeiro
cer ser ela uma expressão antropomórfica, que reduz o fenômeno anjo rebelde, o homem hodierno, centralizador egoísta de todo
às dimensões inferiores da matéria. Ainda que acanhado, o an- o seu ―eu‖, preocupado somente com o triunfo próprio, separa-
tropomorfismo constitui uma necessidade, porque, embora con- damente realiza o mesmo processo de reviravolta do sistema,
tenha o defeito de desfigurar o real aspecto do fenômeno, tem o com a consequente inversão de si mesmo, terminando nas mor-
valor de aproximá-lo de nosso mundo, tão diferente. Cumpre- tes das guerras, na destruição e na dor.
nos, pois, aqui realçar que a expressão ―queda dos anjos‖ repre- Somos assim levados a nos valorizar como ―eus‖ indepen-
senta uma redução da realidade, na medida limitada da psicologia dentes, e não como ―eus‖ em função orgânica do Todo. É a
humana. Na verdade, o fenômeno ocorreu em planos de existên- exata repetição da primeira revolta.
cia tão elevados, que para nós se situam no superconcebível; di- A conduta dos eleitos é justamente a oposta, de completa
mensões onde as nossas representações de espaço e de tempo não adesão à vontade de Deus. Sua primeira característica é a obedi-
têm mais sentido. A imagem, pois, que tivemos de escolher re- ência à ordem. Este terrível instinto do ―eu‖, que se deveria con-
presenta uma mutilação, e não uma expressão da realidade. trolar pela obediência à lei de Deus, mas que, ao contrário, se
Se devêssemos explicar a um homem inculto um conceito deixa livremente explodir em revolta, não é também para o ho-
abstrato, um processo matemático, um desenvolvimento filosó- mem a causa principal de tantos males? E, assim como nas mãos
fico ou coisas semelhantes, seríamos constrangidos, se quisés- dos primeiros rebeldes se desmoronou a ordem no caos, nas
semos nos fazer entender, a apresentar tudo revestido de formas mãos do homem tudo continua a fragmentar-se, repetindo-se no
materiais, a usar expressões bem concretas, para nos adequar à tempo o mesmo processo originário, com o mesmo resultado de
psicologia desse homem, a ponto de os conceitos originais fica- destruição. Por isso, caso se pretenda novamente a elevação à
rem deformados, tornando-se quase irreconhecíveis. ordem, reconstruindo-se na unidade do Sistema, é imprescindí-
Mais verdadeiro é esse fato relativamente à ―queda dos an- vel saber dominar este ―eu‖ egoísta e prepotente, enquadrá-lo na
jos‖, em face da grande altura em que se deu o fenômeno e sua ordem, coordenando-lhe as funções no Todo; é necessário retifi-
distância de nós. Era, porém, necessário adaptá-lo à mente hu- car o seu inicial estado de revolta, mantendo-o na obediência ao
mana, caso se quisesse dar uma expressão ao fenômeno, deno- plano de Deus, porque só assim, em obediência à Sua ordem, la-
minando-o ―queda‖. Mais adiante será explicado o seu signifi- boriosamente, é possível unir de novo, uma a uma, as partes do
cado de desmoronamento de dimensões a partir de um ponto edifício desmoronado, reconstruindo-o na sua grandeza.
que, estando situado em planos altíssimos, na sua substância Este esforço exigido para a reconquista do paraíso perdido é
foge completamente à nossa compreensão. justamente a condenação da nossa humanidade. Justa condena-
170 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ção, mas também salutar remédio, pois é a via de salvação para mo; daquela dor de que o próprio Deus quis participar, inte-
a criatura, a quem o amor de Deus, apesar da ingratidão dela, grando-se por amor às próprias criaturas. Foi assim que o Pai
oferece a possibilidade de redenção. enviou Cristo à Terra, para que, com o seu sacrifício, desse à
No fundo da natureza humana está a tragédia da queda, em humanidade o maior impulso à redenção. Primeiro, a revolta,
razão da qual a alma, centelha divina, desceu para a ilusão da origem do mal. Depois, a dor do mundo, seu meio de recupe-
matéria e dos sentidos, num ambiente ingrato, onde a conquis- ração; o auxílio do Alto neste árduo caminho; a redenção ob-
ta do progresso lhe custa esforço permanente; num corpo vul- tida pelo sacrifício, que Cristo nos ensinou. Estes conceitos,
nerável a tudo e com mente acanhada, com o que, aos poucos, unidos em cadeia, confirmam estas teorias.
terá de buscar o conhecimento que antes possuía do pensamen- A humanidade percorre atualmente o caminho de retorno.
to de Deus. Daí o tormento da insaciabilidade, que revela no Só assim se pode compreender o conceito de redenção e o sig-
instinto humano o anseio pelo grande bem perdido; daí o afã nificado da vinda e do sacrifício de Cristo na Terra, motivos tão
pela maceração evolutiva sob o contínuo martelar da dor, a ân- centrais na história da humanidade. Só assim se pode compre-
sia de criar sobre as areias movediças de um mundo em que ender como a dor salva e o sacrifício redime e por que era ne-
tudo caduca. Eis a razão de ser da ignorância a vencer com o cessário que Cristo sofresse. O Seu exemplo nos indica, à evi-
esforço do pensamento, com as descobertas científicas, com o dência, que a via de retorno não se pode percorrer senão dessa
sacrifício dos mártires e com o amor de Deus, que, manifes- forma. Com a sua paixão, Cristo quis, diante do Pai, tomar so-
tando-se pela revelação, vem ao nosso encontro inspirativa- bre os ombros o peso da correção do primeiro erro, a revolta.
mente, permitindo que levantemos os véus do mistério. Eis Por aqui vê-se quanto Deus continua a mostrar-se ativo e pre-
Cristo, o mais perfeito filho de Deus, fazendo-se homem em sente na história do mundo.
nossa dor para nos ensinar a via da redenção. A psicologia que enxerga, não raro, no mal e na dor, indí-
Assim tudo se explica: a luta pela seleção, as guerras, as en- cios de um sistema falido, um erro de que pode ser acusado o
fermidades, as desgraças, o ódio, a mentira, todas as traições de Criador, como único responsável, nasce justamente do ponto de
que se entretece a vida. O nosso mundo assumiu o aspecto que vista representado pelo ―eu sou‖, que, colocado em posição re-
revela a estrutura do sistema desmoronado. Cada individualiza- versa, só desta forma pode ver as coisas. É psicologia corrente,
ção reproduz a originária inversão, pela qual todo ―eu sou‖ está dominante na vida comum, mercê da qual cada um procura ati-
inquinado do princípio oposto, negativo, destruidor do ―eu não rar a culpa, a causa de qualquer mal, nos outros, mas jamais em
sou‖, que tudo corrompe. Com ele, o incorruptível fragmentou- si mesmo. O homem conserva o seu originário instinto irrefreá-
se no corruptível. O princípio originário permanece, mas false- vel para a alegria, mas o faz em um sistema invertido, que, as-
ado, porque não mais oferece correspondência com os antigos sim, só lhe pode oferecer a dor. Não compreende o porquê, mas
valores. Foi a revolta originária que semeou no ser esse germe sente o tormento desta negação. Desmembrado da causa remo-
maléfico que continua a viver da sua vida. E assim, em nosso ta, irrita-se inutilmente contra as causas próximas, incapaz de
mundo, a negação está infiltrada em toda afirmação, a vida se enxergar mais longe. Compreende apenas que a dor fere, e agi-
casou com a morte, a enfermidade aninha-se em todos os cor- ta-se confusamente nas trevas em que caiu. Procura e não en-
pos sãos, a destruição é o guia de toda construção, o mal ofende contra, ignorando completamente que a salvação está na ascen-
o bem e Satanás se introduz por toda a parte, procurando trair são. É constrangido a evoluir, tangido pelo destino em passa-
Deus. O motivo da queda dos anjos e do pecado original repete- gens obrigatórias, preso à dura experimentação da vida, cheia
se a todo instante entre nós, em nossa vida cotidiana. Não se de alegrias, a fim de atraí-lo para o Alto, e carregada de dores, a
trata, portanto, aqui de elucubrações filosóficas relativas a fatos fim de afugentá-lo das regiões inferiores. Ele desejaria adaptar-
distantes, que não nos dizem respeito. Só a evolução, a ascen- se a este inferno para repousar, mas não lhe concedem tréguas,
são da matéria ao espírito, pode cicatrizar a grande ferida, de- de um lado, o desejo insaciável de alegria e, de outro, os inces-
sembaraçar o ser do cerco maléfico que desejou. Mas isso só se santes golpes de dor. É imperioso evolver.
completará após um caminho longo e doloroso. Só desta manei- A sensação de falência do Sistema é dada não somente pela
ra se explica o motivo de nossas posições atuais, de que só po- visão às avessas, seguida de uma posição invertida, mas tam-
demos evadir-nos subindo, embora sofrendo. Eis as origens da bém pela real imersão em um mundo invertido, satânico, sensi-
dor e do mal. O semblante da criatura traz o estigma funesto. velmente mais próximo deste mundo material do que do outro,
Ela continua a sangrar da primeira colisão com as colunas do real, divino. Os esforços para subir, muito comumente, termi-
Sistema. O ser decaiu, mas as colunas da Lei não se abalaram. nam no retrocesso de alguns passos, em virtude do terreno in-
Permaneceu intacta, e a dor tornou-se o sinal da alma rebelde, forme, movediço, no qual o pé não encontra apoio e a vontade
continuando a recordar-lhe a grande tragédia, que desejaria es- se despedaça. É o esquema da primeira queda que retorna em
quecer, abandonando-se ao originário instinto de felicidade, cada decaída subsequente, tendendo a repetir-se ao infinito. E
ainda vivo. Mas, entre a felicidade e ele, jaz uma nuvem que só então se exclama: ―A redenção do mal é utopia, a dor é inútil,
poderá dissipar-se através de uma longa luta de reintegração. jamais galgaremos o monte da perfeição‖. E se conclui: ―É inú-
Desejaria repousar, mas a dor o aguilhoa e o chama à dura til tentar. O Sistema faliu definitivamente. A obra de Deus é
realidade, e então, só então, ele desperta e indaga – por quê? mal feita, porque continha um insanável erro de construção!‖.
Por que nascer, existir, sofrer? Quem goza está bem, nada Mas, se o homem soubesse ouvir a voz de Deus, teria a
pergunta, continuando adormecido na inconsciência. Assim, resposta: ―Sim, criatura, podes pecar e negar à vontade, pois
pois, após a sua gênese, a dor desempenha a função de ins- que és livre. De qualquer forma, entretanto, alcançarás o triun-
trumento de evolução. A própria culpa gerou o remédio; a en- fo do bem e do meu amor, isto é, a realização do meu plano.
fermidade deu nascimento à sua medicina. A dor, oriunda da Poderias ter preferido, como o fizeram tantos espíritos, a via
revolta, esmaga e humilha, induzindo à obediência à Lei e, as- curta da livre aceitação, encontrando-te agora na minha ale-
sim, curando o ser. Dor implacável, mas salutar, que os invo- gria. Preferiste o caminho mais longo. Não importa. Desejaste,
luídos amaldiçoam, porque não lhe compreendem a função assim, a gênese do mal e da dor, fazendo delas a tua triste he-
criadora, e que os santos abraçam, não por insano masoquis- rança. Mas a mim chegarás da mesma forma. O resultado final
mo, mas porque sabem que ela significa a escada pela qual se não se altera por isso. Continuo o centro do Todo, e tu não te
sobe. É salutar o imperativo que impele ao trabalho benéfico evadiste do Sistema, porque nenhuma evasão é possível. Tu te
pela reconquista do paraíso perdido. Falamos também da dor inverteste, e não o Sistema. Todavia permaneces meu filho e
de todo universo, e não apenas da Terra; da dor cósmica, de endireitar-te é o que procuro, estimulando a livre criatura com
que a humana dor terrena não passa de um átomo em um áti- o uso de dois meios: a dor e o amor.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 171
―Nada está perdido. Podes reconquistar a antiga posição. o que nos mostra o esquema universal do fenômeno. A morte se
Mas deves sofrer, o que não é apenas justo, mas igualmente be- manifestaria pela anulação do indivíduo que quisesse permane-
néfico, porque, sofrendo, compreenderás. A dor te abrirá os cer sempre rebelde, isto é, pela sua expulsão do Sistema, ou se-
olhos, uma longa e dura experimentação te constrangerá, através ja, para o nada, posto que o Sistema é o todo. A cura é repre-
de muitas provas, a te reconstruíres qual eras antes que te demo- sentada pela reentrada do ser no Sistema (conversão ao bem).
lisses na queda do teu ser. Minha bondade te oferece, na evolu- Uma das mais fortes razões pelas quais o mal e a dor, por
ção, uma via de redenção do mal desejado e de evasão da dor. fim, têm de se anular é dada pelo fato de que eles nasceram jus-
Será duro, e não terás outro caminho, se quiseres sair do teu es- tamente de uma exagerada superestimativa, por parte dos espíri-
tado. Voltarás a percorrer em ascensão o que percorreste na des- tos rebeldes, do princípio divino do ―Eu sou‖. Foi exatamente
cida. Bem mereceste, ao te rebelares, este açoite em tuas carnes, esse exagero que, pela lei de equilíbrio, inerente ao Sistema,
e Eu o permito para que o teu espírito ensombrado desperte. produziu como reação uma contração desse princípio no oposto
―É para o teu bem, porque te amo e te quero ver feliz ama- do ―eu não sou‖, isto é, uma limitação na negação, ou inversão
nhã. Primeiro entenderás a lição da dor, para poder fugir dela. do bem em mal, da alegria em dor. Ora, insistir em tal via de ru-
Quanto mais tardares em compreendê-la, tanto maior será a sua ína significa marchar cada vez mais contra o princípio vital que
duração. A tua rebelião à minha ordem aumentará em propor- rege o próprio eu, isto é, caminhar contra si mesmo; significa o
ção à intensidade da pena. Continuas no Sistema, do qual Eu suicídio completo do ser. Será possível que ele pretenda avançar
sou o centro e no qual represento a alegria suprema do ser. Na sempre em tal caminho de autodestruição, negando a si próprio e
minha ordem está implícito que rebelião significa dor, e esta a própria vida, que representa o seu interesse máximo? Será pos-
tanto será maior quanto mais de mim te afastares. sível que um ser, baseado no princípio do ―eu sou‖, queira retro-
―Meu outro meio é o amor. Com ele te atraio sem cessar, ceder até renegar-se no não-ser? Poderá resistir uma lógica que
incitando-te a refazer o caminho para chegares a meus braços, se anula avançando para o absurdo? A existência é dada pela
neles repousares e te alegrares. É por esse motivo que te ofere- própria natureza do princípio do ―eu sou‖, que não pode vir se-
ço todos os auxílios possíveis para instruir-te por meio de espí- não do princípio positivo: Deus. Então, chegaríamos à completa
ritos superiores, meus operários no Sistema, que, com a palavra inversão também da lógica em extremo absurdo, em que a má-
e o exemplo, te indicam as vias da redenção. Compelido pelo xima realização de Satanás e, com ele, do mal e da dor, consiste
impulso negativo, tangido pela dor e atraído pelo impulso posi- em sua anulação. Uma vez que a vida só existe em Deus, quem
tivo, onde há alegria, não podes resistir à convergência destas é contra Ele, se quiser sobreviver, deve retornar a Ele.
duas forças. Como, de outro modo, induzir uma criatura livre, Mal e dor não podem ser eternos por uma outra razão tam-
mas cega, a reencontrar o próprio bem?. bém. Entre as ideias de mal e de eternidade há uma contradição
―Quis, assim, tornar quase fatal a tua salvação, sem jamais que não lhes permite a coexistência. A eternidade é alguma coi-
violar a tua liberdade. Mas, ainda que tu, no caso extremo, sa qualitativamente diversa do tempo, situada nos antípodas. Ela
quisesse, contra o teu interesse, o absurdo do teu prejuízo; não é um prolongamento de um tempo que, embora avançando,
ainda que, com inflexível revolta, quisesses a tua dor eterna; sempre está sujeito à duração. É um tempo imóvel, que não anda
mesmo diante da tamanha loucura de assim desejares para e jamais passa. É um não tempo. E o que é o tempo, senão um
sempre, também neste caso o Sistema perdura intacto e o meu produto do desmoronamento, um fracionamento do Uno, o imó-
amor triunfa. O edifício erigido pela rebelião contra mim será vel em fuga no transformismo? Com a queda, a eternidade, uni-
anulado até o último fragmento. E tu, criatura ingrata, se qui- dade indivisa, se faz tempo e o espaço, fração do infinito. O
seres persistir absolutamente na negação, caminhando de dor tempo existe somente como medida do transformismo (involuti-
em dor crescente, procederás com as tuas próprias mãos à tua vo–evolutivo), cessando quando este termina. Então, a fração
autodestruição, desaparecendo assim em tua negação final, cindida reconstitui-se em unidade no eterno, o finito no infinito;
como quiseste, no ―não ser‖. Anular-te é o meu último ato de a eternidade, despedaçada no tempo, se refaz no Uno, imóvel,
bondade e piedade para contigo, é o que tu chamas a minha integro, indiviso, e nele a corrida do transformismo, lançada em
vingança com o inferno eterno‖. busca da perfeição, se detém diante da perfeição atingida. O
Assim poderia falar a voz de Deus a quem soubesse ouvi-la, tempo, assim, volta a ser imóvel, sem mais transformismo, e se
pois, no final dos tempos, tudo se realizará plenamente, como faz eternidade. Com a evolução, ao passar da matéria à energia e
Deus quis. A revolta dos espíritos das trevas não terá passado desta ao espírito, vai-se tornando cada vez mais evidente o avi-
de um episódio impotente a perturbar a integridade do sistema zinhamento desta fusão final, paralelamente a uma progressiva
perfeito. E, como Deus o quis no princípio, Ele resplandecerá libertação do domínio do tempo fracionado até aos fenômenos
no fim, no triunfo do bem. O dualismo bem-mal em que hoje do pensamento, que são quase independentes dele. Pode-se dizer
está dividido o universo, como desvio transitório, e não como que ele existe antes e além do tempo, tanto que lhe escapa. E,
estrutura do Sistema, será no fim reabsorvido no monismo ori- como o tempo é relativo ao fenômeno particular, quanto mais
ginário, que a cada momento permanece só relativamente des- evoluído é este, tanto mais se liberta dele.
pedaçado, e o Uno triunfará. O mal e a dor, filhos da revolta De tudo isto se conclui que o tempo faz parte do sistema
contra Deus, por orgulho, não têm poder para fazer desmoronar desmoronado, do qual também fazem parte o mal e a dor. De-
o Sistema, mas significam apenas uma doença curável, que o vemos, pois, enfileirar de um lado as características do sistema
próprio Sistema sabe sanar. Doença somente do aspecto ima- perfeito, como a eternidade, o bem, a alegria; e de outro lado as
nente do Uno e que Ele, do seu polo oposto, observa e cura. propriedades e produtos do desmoronamento, como o tempo, o
Tudo permanece absolutamente perfeito, ainda quando não mal, a dor, aferíveis somente no sistema de estado imperfeito.
possamos observar senão a imperfeição em que estamos imer- Eis por que, entre mal, dor e eternidade, nada pode haver em
sos. Permanece perfeito, como o exigem a lógica e a razão. comum, porquanto existe entre os dois primeiros e o último uma
É evidente que, em um sistema gerado pelo amor e baseado inversão de posição que os mantém inexoravelmente separados,
neste seu princípio central, construído de bem e para a alegria, situando-os nos antípodas, em dois sistemas opostos. Cada coisa
o mal e a dor não possam ser eternos. Uma sua afirmação defi- devendo permanecer no seu sistema, o mal e a dor não podem
nitiva, ainda que em ínfimas proporções, significaria a falência entrar em conexão a não ser com o tempo, que passa, com o re-
do sistema de Deus. Mal e dor não constituem senão o seu as- lativo, com o limitado, características do Anti-Sistema. E o bem
pecto patológico, que não se pode tornar eternamente crônico, e a alegria não podem ligar-se a não ser com a eternidade, o ab-
sem resolver-se ou com a morte do enfermo ou com a sua cura. soluto, o infinito. Por isso mal e dor não podem ser eternos. Eles
O que acontece, em escala menor, em nossa saúde física, repete só se podem ligar com o tempo, sendo, como este, produtos do
172 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
desmoronamento, isto é, uma contração no limite do que, no es- po. É trágica a nossa posição a meio caminho. Sentimo-nos su-
tado perfeito, foi bem, alegria, eternidade. focar pela estreiteza da prisão de nosso egoísmo, mas rompê-la
Como se vê, tudo se enquadra em perfeita logicidade. É as- nos parece a morte do ―eu‖, e desejamos, portanto, reforçá-la.
sim que o mal se apresenta encerrado nos limites do tempo, Mas a vida só pode estar no retorno à circulação do Todo. Esse
acuado pelo transformismo, que tende a corrigi-lo, transfor- egoísmo nos mata. Assim, para podermos desfrutar a vida e nos
mando-o em bem. Por isto, o mal, dada a sua tendência em expandir, é imperioso que nos evadamos, que despedacemos a
conservar-se como é, tem pressa, pois sente a sua instabilidade, prisão em que sufocamos. É imprescindível, pois, encarar o sa-
a sua posição de desequilíbrio, de exceção, ao passo que a re- crifício do ―eu‖, e, para alcançar a alegria de uma vida maior,
gra do sistema incorrupto é uma posição de equilíbrio, de esta- importa enfrentar a dor, que quebra o egoísmo protetor do ―eu‖.
bilidade: o bem. Este, ao contrário, não tem pressa, não joga Para viver, é necessário, em parte, morrer, ou seja, é necessário
com efeitos imediatos como faz o mal; prefere na maioria das destruir-se como cidadão do Anti-Sistema, para ressuscitar ci-
vezes aguardar para realizar-se, concedendo ao mal a primeira dadão do Sistema. Eis por que Cristo disse que conservará a vi-
vitória, porque sabe que é, ao contrário deste, senhor do tempo. da pela eternidade, não quem a ama, mas quem a odeia neste
Assim, também as estratégias das duas forças, bem e mal, co- mundo. O nosso egoísmo tende a manter o estado de contração
mo é natural, são opostas. A estratégia do último é contraída, em que o Sistema ruiu. Do lado oposto, o amor vota-se a des-
curta, imediata, complicada, concreta. Já a do bem é ampla, a truir este separatismo negativo, para lançar-se no universal flu-
longo prazo, lenta, linear, de finalidades elevadas, por isso as xo do Todo e novamente nos colocar no originário estado orgâ-
suas energias são mais poderosas, movem-se mais calmas, po- nico, em que tudo era Uno. E a alegria que acompanha todo ato
rém, dirigidas com sabedoria superior, sabem erigir constru- de amor, desde a entrega desinteressada do próprio corpo, na
ções maiores e, sobretudo, mais sólidas. Por todas estas razões, geração física, aos mais elevados altruísmos pela humanidade,
na luta contra o bem, o mal se encontra em posição de inferio- nos indica que esse é o caminho da reconstrução e do retorno
ridade e vencido de saída. Sua inteligência é apenas de super- ao estado de origem, de amor, que somente gera bem e alegria.
fície, estupidez em profundidade, lógica consequência da per-
da de sua primeira inteligência, motivo principal que induz o VI. DESMORONAMENTO E
mal a engajar uma luta, sem probabilidade de vitória verdadei- RECONSTRUCÃO DO UNIVERSO
ra, contra o bem, mais forte e sábio.
Eis o quadro do fim do mal e da dor. Além deste aspecto Sinto encontrar-me diante da mais vasta e profunda dentre
negativo de sua eliminação e restabelecimento como elementos as visões até aqui observadas. Nos volumes precedentes havia
patológicos mais débeis, há ainda o aspecto positivo, isto é, há aparecido certo motivo fundamental, cujos delineamentos se
o impulso incessante do princípio básico da criação, do ele- vão agora precisando e dilatando em vastidão cósmica. Estamos
mento mais forte e sadio – o amor (cfr. Cap. IV – ―Queda dos diante da visão dos últimos problemas, diante das conclusões
Anjos‖, e Cap. XX – ―Visão-Síntese‖). Este princípio, do qual sobre o sistema do universo, diante do pensamento de Deus. A
tudo nasceu, deve finalmente triunfar, firmando-se como se- primeira obra de 12 volumes atinge aqui um vértice e se preci-
nhor absoluto, o que significa que o bem e a alegria, de que o pita para a sua conclusão. Conturbado pela potência apocalípti-
amor é feito, devem triunfar sobre o mal e a dor. E vemos o ca da cena que se me apresenta, não mais consigo existir qual
amor sempre em ação. Ele significa também unidade, consti- ―eu‖ isolado e nela penetro. Tenho uma sensação de vertigem,
tuindo a força que compele o universo à reunificação no Uno suspenso assim sobre as profundezas abismais do infinito.
originário. E, todas as vezes que o ser retorna para o Todo, ten- E este fala! Chegam a mim conceitos em um oceano de on-
tando uma reunificação parcial, encontrará a alegria, que lhe das, quais montanhas, e, como avalanche, me investem e agi-
exprime o consenso da vida. Assim deve ser, ainda que de tam. É ofuscante olhar no infinito pensamento de Deus, é ater-
forma para nós misteriosa, até aos mais recônditos recessos da rorizante senti-lo na sua potência. Mas é impossível parar
matéria, onde tantas forças atômicas se unem nas combinações quando se é arrastado pelo turbilhão. O pensamento não é ape-
químicas, como também sucede no congresso sexual dos cor- nas esmagador pela sua imensa massa, mas também ardente pe-
pos e, mais ainda, no espiritual das almas. la sua alta tensão. Elevada a semelhante potencial, a minha vida
Ao amor, impulso criador primordial, está confiada, pois, física vacila como se estivesse prestes a ser fulminada. Torna-
a função de reconstruir o universo. Pelo princípio dos esque- se impossível ao organismo humano resistir a descargas tão gi-
mas múltiplos e de tipo único, repetido em todos os níveis gantescas, que fulguram e estrondam como o relâmpago. E de-
evolutivos, o fato de o amor ser, também em nosso nível, ato vo saber funcionar como transformador que regule essas des-
de criação e de alegria, que ele repete e imita, prova que o cargas em uma luz moderada e igual. Moderada para que não
primeiro ato de amor originário de Deus foi de criação para a cegue, proporcionando-a à receptividade normal. Igual, diluin-
felicidade. Se, igualmente entre nós, tudo que nasce do amor é do a potência concentrada extratemporalmente e reduzindo o
alegria, também a primeira criação deve ter sido fruto alegre lampejo sintético da intuição à exposição sucessiva em termos
do amor. Indicam-no os fatos que nós continuaremos a repetir, racionais. É preciso, por isso, ter forças suficientes para impedir
ainda que com formas e resultados imperfeitos, mas sem po- que escape o indomável dinamismo do fenômeno e para regulá-
der esquecer o motivo de origem, mantido como esquema lo de modo a conduzi-lo ao plano normal, traduzindo conceitos
fundamental do ser. O nosso amor, havendo decaído, inverteu e sensações na linguagem comum, a fim de que também os ou-
parte da sua alegria em dor e, agora, só pode criar parcialmen- tros possam desfrutar o devido rendimento espiritual. É neces-
te, com sacrifício. Apesar disso, ainda que dolorosa, a criação, sário, ademais, tornar tudo acessível e compreensível. Na maio-
desde a física do animal, até à espiritual do gênio e do santo, ria das vezes, os místicos renunciam a tal empreendimento,
constitui sempre a maior alegria da vida. confessando que não existe na linguagem humana imagens e
O nosso é um universo contraído, da infinita liberdade e palavras adaptáveis a esse fim. É-nos necessário encontrá-las.
vastidão do amor de Deus, na prisão do nosso egoísmo separa- Impõe-se-nos exprimir o inexprimível.
tista, que lembra o acanhado campo cinético das trajetórias fe- É necessário saber fazer tudo isto sem interromper o traba-
chadas do mundo atômico da matéria (energia congelada). Ora, lho para viver, o que é dever de todos, significando saber man-
toda vez que o ser consegue completar o esforço para evadir-se ter exteriormente a conduta, frequentemente tão banal. Signifi-
da sua prisão, dilatando-se da contração da queda, ele percorre ca continuar provendo as necessidades do corpo, dominando
um segmento de ascensão e de libertação, desfrutando, assim, a muitas exigências que quereriam tudo para si, sem deixar tem-
originária alegria do amor. Deve gozar e sofrer ao mesmo tem- po nem lugar para o resto na alma. E preciso escrever à noite,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 173
porque de dia não sobra tempo e muitas coisas e pessoas exis- gia) e àquela ainda mais involuída (matéria). Mas pode-se
tem, inúteis geralmente, que só sabem fazer-nos perdê-lo. E, partir e chegar, quer no processo de ida, quer no de volta, de
enquanto as infinitas mazelas do contingente continuam a nos fases superiores e inferiores a essas. Evitamo-lo porque, ainda
acabrunhar sem cessar, as cataratas do céu permanecem abertas, que possível como abstração filosófico-matemático, implicaria
pois se esgarçaram as névoas e, através dos dilacerados véus do conceitos além do nosso concebível, que não abarca senão as
mistério, o tremendo infinito continua a nos olhar. O pensamen- três fases , , , constitutivas de nosso universo.
to de Deus está presente, acumula-se e faz pressão. A mente en- O desmoronamento é para nós imaginável como a passagem
tumece e deve descarregar, exaurindo nos escritos os conceitos, de uma fase espírito a uma de energia e, depois, a uma de maté-
se não quiser explodir. Eles ardem, e não se pode contê-los por ria, com suas dimensões relativas: consciência, tempo e volu-
longo tempo na alma. São irrequietos, de um indomável dina- me, enquanto temos sob observação a evolução das dimensões
mismo, turbilhonam, esmagam, aturdem a mente, querendo ex- (A Grande Síntese, Cap. XXXV e seguintes) em sentido inver-
plodir e manifestar-se, e não dão paz enquanto não se fundirem so. Por outras palavras, vemos a matéria, completa na dimensão
no registro da palavra escrita. A voz interior troveja. Como fa- volume, evolver para energia (que se poderia denominar uma
zê-la calar? Todo o ser arde. Como parar? espiritualização em relação à matéria) situada na dimensão
Esta breve pausa é para que o leitor sinta em que atmosfera tempo, e a energia evolver para a fase vida, que culmina no
de incêndio nascem estes escritos. Podemos agora retomar o psiquismo humano, situado na dimensão consciência.
curso de nossa observação. Mas um desmoronamento a partir de dimensões superiores a
Quem tiver seguido todos os volumes da obra até aqui, po- estas e uma reascensão a partir de dimensões inferiores escapa
derá ter notado a crescente limpidez das visões e a precisão dos aos nossos meios conceptuais de representação. Evitamos, desta
seus delineamentos. Que extraordinário esforço de elaboração forma, recorrer a elas para não penetrarmos no inconcebível.
íntima foi necessário para chegar até aqui! De tudo quanto dis- É, todavia, necessário insistir que, na realidade, o desmo-
semos, pode-se concluir que nós, seres pensantes, enquanto ronamento não é apenas dado por , mas por +–,
corporalmente constituídos, situamo-nos no universo físico, que e, inversamente, a reconstrução (evolução atual) não é repre-
é o resultado do processo involutivo e, na criação, denomina-se sentada somente por , mas por – +. A figura 2
matéria. Estamos situados naquela parte do Todo que represen- de A Grande Síntese examina apenas o curso ascensional do
ta o desmoronamento do Sistema, mas já dirigidos para o cami- fenômeno: –+, isto é, um pormenor que aqui não interes-
nho oposto, o evolutivo, de sua reconstrução. Como espíritos, sa mais seguir, pois que já foi estudado em A Grande Síntese.
somos filhos de Deus, centelha Sua sempre, e, ainda que almas O processo destrutivo e reconstrutivo do Todo, como aqui o
em expiação regeneradora, destinadas à redenção final, não estudamos, dilata os seus limites bem além daquele que ali, re-
permaneceremos indefinidamente em um universo desmorona- ferindo-se ao nosso universo, foi examinado em particular, isto
do para sempre. Ao contrário, essa centelha, que no fundo de é, ele é mais do que = (A Grande Síntese,
nosso espírito trabalha para voltarmos a Ele, tem função sanea- Cap. IX – ―A Grande Equação da Substância‖), em que re-
dora. E em que consiste esse saneamento? Se a doença é repre- presenta o nosso universo. Ele é dado por =+–+,
sentada pelo processo 4, a cura representa o processo em que exprime o Todo, organismo de universos. Conside-
inverso isto é, , a espiritualização, cuja fase evolutiva rando em A Grande Síntese, observa-se apenas o progresso
culminante – a mística sublimação – estudamos aqui. evolutivo atual de nosso universo, isto é, –+. Somente no
A esta altura é necessário clarear a mente do leitor, no sen- presente volume – Deus e Universo – ser-nos-ia possível enca-
tido de que, se na queda dos anjos e desmoronamento do uni- rar todo o fenômeno completo no seu ciclo, que, partindo de
verso só levamos em conta o processo , foi somente +, completa-se pelo retorno a +.
para simplificar, tornando assim mais fácil a compreensão. Se Prossigamos. A queda do ser não significa somente desmo-
assim não fosse, poderiam surgir dúvidas em face da figura 2 ronamento de dimensões, mas também de todas as suas quali-
do Cap. XXII de A Grande Síntese, na qual, além das fases , dades na posição inversa. É, pois, natural que a primeira delas,
, , foram tomadas em consideração as fases superiores como a liberdade, se transforme em escravidão. Agora verificamos
+x, +y etc., assim como as inferiores –x, –y etc. Falando no precisamente isto: a característica da matéria, situada na dimen-
presente volume apenas de , , , fizemo-lo para que, com são inferior, volume, em que o espírito se despenha (forma es-
brevidade, tomássemos a grande equação somente na sua for- pacial), é justamente o determinismo; e a característica do espí-
ma mais simples (A Grande Síntese, Cap. IX). Desta forma, rito situado na dimensão superior, consciência, é exatamente a
ilustramos a fórmula do ciclo fechado, e não a mais complexa liberdade. Esta condição de determinismo na matéria represen-
do ciclo aberto (A Grande Síntese, Cap. XXIII), que nos per- ta, pois, a posição dos espíritos decaídos. Assim estes, de sua
mitiu, no gráfico da figura 3, a curvatura do sistema com a de- natural liberdade, são precipitados na prisão da forma, na con-
rivação da espiral pela linha quebrada. Todavia, havermos nós denação de não poder viver senão em um corpo. Evolver, espi-
limitado o campo de observação somente por comodidade de ritualizando-se, significa inverter a posição, isto é, aprender a
compreensão não impede que, saindo do ponto de vista espiri- viver sem ele, a dele desprender-se sem mais considerá-lo co-
tual para entrar no filosófico-matemático, possamos considerar mo a própria vida, mas apenas como uma negação desta. Se
a queda dos anjos a partir de fases superiores, como +x, +y, +z atentarmos para como esta é concebida em nosso mundo e que
etc., e a reconstrução, subindo de fases inferiores, como –z, –y, apego se tem neste pelo corpo e seus bens, compreender-se-á
–x. O fenômeno da queda e ascensão permanece idêntico qual- então quão longe ainda estamos de nos libertarmos do mal e da
quer seja a relação que se opere em suas oscilações interiores, dor. Para um espírito elevado, sujeitar-se a uma vida física hu-
pois que procede de + para – e ao contrário (como na refe- mana representa a maior pena, mas, mesmo assim, grandes es-
rida fig. 2), e isto se verifica entre o infinito positivo e o nega- píritos a aceitaram para nos ajudar a subir e redimir-nos. Ser
tivo, entre os quais podemos seccionar e assim isolar uma par- condenado a viver a vida eterna fragmentada em uma infinida-
te qualquer do fenômeno. Qualquer seja a amplitude que qui- de de pequenos ciclos, com a morte ao fim de cada um, é real-
sermos dar-lhe, ele se reduz sempre a um desmoronamento de mente a dor merecida para quem tentou despedaçar o Todo, ne-
dimensões e a uma reconstrução das mesmas. A queda dos an- gando a Deus e, por isso, a própria vida maior. Desta forma, ele
jos significa, em verdade, desfazimento do potencial da subs- se despedaça, sujeitando-se a despedaçar-se em cada morte.
tância da fase (espírito) para a fase mais involuída (ener- O desmoronamento do Sistema com a queda dos anjos
apresenta-se-nos como um processo pelo qual as criaturas são
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(alfa), (beta), (gama), (vai para). (N. da E.) projetadas do centro à periferia, distanciando-se de Deus. E vi-
174 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ver na periferia do Sistema quer dizer perda e inversão das pró- como fatal é a reconstrução do sistema desmoronado. Quanto
prias e melhores qualidades. Em tudo isto domina uma lógica mais involuído for o ser, havendo perdido no desmoronamento
tão sólida, que parece mecânica. Se o Sistema representa liber- a própria liberdade, tanto mais está sujeito ao determinismo da
dade no centro, mais determinístico se torna quando caminha- Lei, que quer a evolução, isto é, tanto mais é compelido pelas
mos para a periferia. Se no centro está a vida, na periferia en- forças da Lei a evolver, em face da sua ignorância. Quanto
contramos a morte; se no centro está a verdade, na periferia há mais evoluído for o ser, tanto mais terá retornado à liberdade,
erro e mentira; se no centro há paz, na periferia há guerra. Estas tendo adquirido consciência da Lei, seguindo-a espontanea-
afirmações se evidenciam na realidade de nosso mundo. Efeti- mente, sem mais constrições, porque compreendeu que nela
vamente, quanto mais periférico for o ser, isto é, mais involuído estão seu interesse e felicidade.
e primitivo, tanto mais precária lhe será a existência. A vida su- Deus, que respeita o princípio de liberdade, jamais obriga
pre essa precariedade com maior fecundidade, que redunda em alguém a aceitar a Sua lei; entretanto, nos graus mais involuí-
mais rápido ritmo vida-morte individual, isto é, em um fracio- dos, após a liberdade haver desaparecido pelo desmoronamen-
namento mais acentuado da única vida eterna. A existência tor- to, Ele prossegue impulsionando.
na-se, então, menos segura e garantida, com o ser mais sujeito à Mal, porém, ela começa a reconstruir-se e a criatura pode
dor da morte. Mas tal é o seu reino. A única via de evasão é re- compreender, Deus faz com que, através da própria experiên-
troceder para o centro, pelo caminho evolutivo, ao longo do cia, ela conclua que na Sua lei residem o interesse e a felici-
qual a natureza corrompida reconstrói as suas qualidades origi- dade e que fora dela existe apenas a dor. Assim, pois, qual-
nárias. E, quanto mais o indivíduo evolve, quanto mais se alça quer seja a posição em que o ser se encontre, quer de involuí-
aos planos superiores da vida, tanto mais esta tende a ser longa do, quer de evoluído, da pedra ao santo, uma impulsão existe
e segura, menos sujeita à dor e ao despedaçamento pela morte. sempre, que atua constantemente no sentido de sua evolução.
Mas esta não é a única aflição que constringe o ser. A fe- O sistema desmoronado tende sempre automaticamente a re-
roz lei da luta pela seleção, dominante no mundo animal e constituir-se automaticamente, porque a presença de Deus é
vegetal, a que não se furta também o homem, não passa de imanente no Sistema.
uma consequência da posição periférica. Só assim se com- Eis os maravilhosos resultados da evolução: espiritualizar-
preende o porquê da sua existência e de que modo se pode se, desmaterializar-se, sensibilizar-se, transferir o próprio cen-
superá-la. A observação nos mostra que ela é mais feroz tro de vida consciente cada vez mais para a profundeza do ―eu‖,
quando se desce nas posições involuídas ou periféricas, onde onde está a centelha divina, que é a causa da existência.
é maior o separatismo, a cisão, o antagonismo, a agressivida- Que ensinam todas as religiões senão um afastamento
de, consequências da fragmentação do Sistema com o afas- permanente do mundo periférico, para que nos avizinhemos
tamento do princípio Uno: Centro-Deus. do centro? É necessário compreendermos o que isto significa
Matar ou ser morto é a única razão possível, seja para o e qual a utilidade da virtude para que devamos segui-la. Trata-
animal, seja para o homem involuído. Lógica terrível, porque se de nos afastarmos das ruínas de um universo desmoronado,
ao ser não resta outra forma de vida, senão na matéria. Um in- no qual nos encontramos imersos corporalmente, de nos des-
falível índice das qualidades involuídas de um indivíduo está tacarmos de sua forma de vida animal, para aprendermos a vi-
no seu espírito de agressividade. O litigante, ainda que goste ver uma vida diversa, a vida do espírito, que contém a parte
apenas de polemizar, é sempre um primitivo. O evoluído, ao íntegra do ser, tanto menos corrupta quanto mais nos aprofun-
contrário, sabe compreender o inimigo, sabe perdoá-lo, procu- darmos ativamente, em plena consciência, no interior do ―eu‖,
ra fraternizar com ele e foge de disputas. Ele julga e busca os até encontrarmos aí Deus. Despertar até esse ponto, eis o pro-
pontos de contato para unir-se. O involuído agride antes de blema. E nada mais há de melhor que a dor para despertar a
compreender, porque a sua lógica é unicamente a luta, não sa- alma que, na realidade, deseja esquivar-se às provas, furtar-se
be pensar senão com o assalto para conseguir compreender. O ao esforço e aguardar no ócio.
sistema de Cristo é evidentemente o do evoluído, o Evangelho Quanto mais se descer na via involutiva, tanto mais profun-
ensina-nos o caminho de retorno ao centro-Deus, reconstruin- damente Deus se oculta na intimidade do ser. De fato, quanto
do-nos e libertando- nos. mais se involve, tanto mais desaparecem as qualidades de
Assim, também a ciência analítica e o sistema racional são Deus: liberdade, sabedoria, amor, que reaparecem com a evolu-
mais periféricos que a síntese e o método intuitivo, que concebe ção. Subindo do mineral à planta, verificamos o aparecimento
por visão. É evidente o processo de unificação conceptual que se de uma vida vegetativa mais ampla; com o animal, surge a vida
obtém subindo da primeira forma mental, mais separatista e fra- sensória e o movimento mais livre; com o homem desponta a
gmentária, à segunda, essencialmente unificadora. Somente esta vida psíquica, que alcança um conhecimento maior, e assim por
orienta cada problema no seu conjunto, desde o início. E um diante. Torna-se evidente o processo de libertação do espírito,
problema bem orientado e enquadrado já está meio resolvido. que volta a encontrar as suas qualidades originárias, reconquis-
Em suma, o homem periférico está mais deterministica- tadas pouco a pouco. O férreo determinismo da matéria atenua-
mente sujeito à Lei, dado que a ignora e a ela se sujeita sem se e, paralelamente, cresce o livre arbítrio, com um campo de
conhecê-la. É, assim, menos livre, menos provido de livre arbí- ação cada vez mais vasto. A matéria é um ciclo fechado de
trio, qualidade do evoluído. Enquanto este é autônomo, as energia, nela coagulada e aprisionada. Com a evolução da ma-
massas humanas, contrariamente, são como rebanhos impeli- téria para a energia, esse ciclo se abre. É a libertação do férreo
dos pelos instintos, fios através dos quais a Lei as dirige. determinismo das trajetórias atômicas. O processo é
Quanto mais evoluído for o indivíduo, tanto mais sabe manejar um processo de liberação e espiritualização, é a retificação da
estes fios que movimentam os instintos e paixões, dos quais é inversão e a reconstrução do edifício desmoronado. A ascensão
senhor. Desta maneira, torna-se independente da submissão e, culmina no estado , em que o edifício se reconstitui em unida-
se obedece à Lei, o faz porque a compreendeu e preferiu segui- de, como era no estado originário, o ponto de partida.
la. A sua harmonização na ordem é consciente e espontânea. Em todo esse processo, não nos esqueçamos de que Deus,
Obedece porque compreendeu. Torna-se ele, assim, um súdito que estava em todas as Suas criaturas, não cessou de existir ne-
de grau superior, que colabora conscientemente, não o fazendo las, mesmo na profundeza de sua decadência. Apenas Ele é
por força ou pelo temor de punição. Trata-se de uma posição mais ou menos latente nelas, está mais ou menos imerso no seu
inteiramente diferente na hierarquia dos seres, muito mais vi- íntimo, tanto mais distanciado de sua consciência ativa quanto
zinha do centro, resultando daí que todas as qualidades da cria- mais baixo elas se encontram, isto é, involuídas, mergulhadas e
tura se traduzem em bem e alegria. Esta transformação é fatal, presas em uma forma de matéria. A trajetória atômica fechada
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 175
exprime esse aprisionamento da liberdade de movimentos, que no multíplice, reconstitui-se pelo princípio das unidades cole-
é mínima aí, abre-se na energia e é máxima no espírito. É nes- tivas, refazendo-se com todos os fragmentos do multíplice no
sas trajetórias fechadas que a liberdade ilimitada do espírito Uno. Este processo é possível porque os fragmentos permane-
caiu e está aprisionada. A matéria, de fato, é o reino de Satanás, cem intimamente ligados por um fio, que é a imanência de
que aspira à Terra, e jamais ao céu, tendo-o Dante colocado no Deus. O segundo universo, o material, corrompido, não ficou
fundo, com seu inferno, no centro do planeta. Tudo isso tem um só, não foi abandonado por Deus transcendente, Que continua
significado, pois que para esse ponto convergem e nele se en- a considerá-lo o Seu universo e a trabalhar no seu íntimo para
contram todas as negações das qualidades de Deus e dos espíri- restabelecê-lo. O quadro é completo, o Sistema é perfeito.
tos eleitos, como sejam: escravidão, ignorância, ódio, trevas Somente com este quadro completo, colocado diante de
etc. O reino de Satanás está no relativo, no tempo, isto é, na nossa mente, podemos compreender tantos fatos, de outra
eternidade despedaçada. O reino de Deus está no absoluto, no forma inexplicáveis. Essa é indiscutivelmente a estrutura atual
eterno, fora do tempo que divide. do universo em que vivemos, são essas as razões que logica-
O desmoronamento do universo é, pois, a queda do espírito mente nos confirmam a gênese desse estado de fato. O dua-
na matéria, ou seja, a formação desse invólucro que aprisiona o lismo universal é a primeira consequência tangível que, assim,
espírito rebelde. A luta entre corpo e alma é, para o homem, a verificamos generalizada, cuja origem não se pode explicar a
luta evolutiva da sua liberação. Mais abaixo ainda existem seres não ser com os conceitos acima expostos. Desde a cisão má-
prisioneiros de formas bem mais densas, em que a escravidão é xima – Deus e Satanás, ordem e caos, amor e ódio, bem e mal,
cada vez mais pronunciada. Aí se encontram os animais, depois alegria e dor – até às mínimas coisas, cada unidade resulta
as plantas, depois as pedras. O homem está a meio caminho. composta de duas metades inversas e complementares. Já o
Outras criaturas, das quais os santos nos dão uma ideia, encon- havíamos afirmado, mas só agora podemos explicar a sua ra-
tram-se mais acima. Mas, em toda parte, mesmo no âmago do zão e a sua origem. É um fato que não se pode ter unidade se-
espírito de Satanás, Deus está presente e, com a Sua presença, não reunindo os dois contrários que a constituem, isto justa-
Ele impele todos os seres a retornar a Ele, estimulando-os, mente porque, pelo princípio dos esquemas de tipo único, o
atraindo-os, chamando-os. É esta Sua universal imanência que motivo fundamental da cisão se repete do caso máximo ao
torna possível o ser palmilhar de volta o caminho da evolução, menor caso, de modo que o motivo da queda retorna em tudo
para reconquistar o paraíso perdido. Toda a virtude do Sistema o que existe. Desta forma, o princípio fundamental do univer-
está em saber restabelecer-se. No íntimo da criatura, por mais so pode ser observado em qualquer parte, onde quer que
involuída, corrompida e entenebrecida que seja, por mais sepul- olhemos. E o fato de cada unidade, em todos os casos, só po-
tada que esteja na matéria, existe sempre a centelha originária der constituir-se pela união de dois opostos indica-nos justa-
de Deus – destacada do Pai, que a gerou – que constitui a razão mente que a unidade do universo, ou seja, o Uno, atualmente
de ser da existência. A antiga nobreza de origem pode estar re- cindido em matéria e espírito, não nos poderá ser dado a não
coberta de todas as imperfeições e de todas as culpas, mas per- ser pela união desses seus dois polos opostos.
manece indestrutível, porque é divina. Também o fato da ação humana assumir sempre a forma de
Tais são as criaturas! Eis o que é o homem! Por este moti- luta, que está presente em toda parte, tanto que parece ser este o
vo, todos os seres são irmãos, ainda quando o despedaçamen- único modo de afirmação, depende do conflito entre os dois
to do Uno no desmoronamento os tenha tornado inimigos. Ir- princípios contrários do universo. Assim, a percepção não é
mãos, pois tudo o que existe deriva de Deus e, gravitando em possível sem o contraste entre dois contrários. Tudo que é pací-
torno Dele, o centro, procura a Ele retornar. Deus, no Seu fico é estático, como coisa morta. E a gênese é luta, e esta é cri-
amor, não abandonou o universo – desmoronado por culpa da ativa, porque é exatamente no contraste que os dois universos
criatura – e continua a ser amor, apesar de tanta ingratidão. devem chegar a fundir-se, retornando ao Uno, centro genético.
Ao homem, ignaro, ávido apenas de gozo, desmemoriado da Sem dúvida, é de grande ajuda para a compreensão do sis-
revolta de que nasceu o mal e a dor, isto pode parecer vingan- tema do universo essa sua estrutura de repetição de esquemas,
ça e erro, ou injustiça de Deus. Porém a característica da invo- de modo que podemos reconstruir o máximo a partir dos meno-
lução é justamente a ignorância e a rebeldia. Ele desconhece res, feitos à sua imagem e semelhança e colocados sob nossos
como Deus está presente para defender-lhe a vida, para dosar- olhos. Podemos, assim, avizinhar-nos da compreensão do Todo,
lhe as dores de modo que o eduquem sem destruí-lo, para que, de outra forma, constitui para nós um sistema inacessível.
atraí-lo a Si, na felicidade eterna! Essa possibilidade, que aqui utilizamos largamente, seja para a
indagação, seja para a confirmação, nos mostra um outro aspec-
VII. A PERFEIÇÃO DO SISTEMA to do universo: a sua organicidade. Há no Todo uma grande
harmonia e correspondência de partes, que o mantém unitário e
Observemos, sob outros pontos de vista e sob outros as- compacto, não obstante a infinita multiplicidade das suas for-
pectos, a estrutura do sistema do universo, para melhor com- mas. Essa compactação deriva do fato de que a sua diferencia-
preender-lhe a perfeição. Esta representa o estado primeiro da ção, a que a vida tende, é uma ramificação que se inicia sempre
criação: o Verbo, isto é, o estado , um sistema espiritual na mesma raiz, onde está o tipo modelo da gênese, que, embora
pronto a transformar-se em ação, (energia), e depois na se diversifique em particulares, permanece sempre aderente aos
forma concreta, (matéria). Este é o estado em que nos en- princípios fundamentais que regem tudo. Assim, o pensamento
contramos hoje, depois da queda, isto é, em um universo ma- de Deus, que deu o primeiro impulso, ecoa no universo, chega e
terial. E nos identificamos tão profundamente com ele, que se repete em todos os seus recantos, por mais remotos que se-
supomos ser esta sua outra parte corrompida todo o verdadei- jam. Quanto mais periférico for o ser, quanto mais se distanciar
ro universo. Há, portanto, dois universos: o verdadeiro, de na- do centro, tanto mais o eco será amortecido e fragmentado em
tureza espiritual, perfeito; e uma contrafação sua, imperfeita, esquemas menores, mais relativos e mais particulares. Mas esse
de natureza material, em evolução para a perfeição. O primei- pensamento chegará sempre uno, na infinita multiplicidade, tu-
ro é absoluto, imóvel; o segundo é relativo, a caminho. Este do atraindo a si, e, assim, tudo, por mais pulverizado que esteja,
tanto ascenderá que, no final dos tempos, sobrepor-se-á ao mantém-se ligado à unidade.
primeiro e com ele coincidirá. Os dois universos existem para Quando um fenômeno, por evolução, chegou a se produzir
se fundirem, porque são um só que se despedaçou com o des- uma vez, esta nova posição se fixa na manifestação e o fenô-
moronamento e que agora volta à união. O Uno, fragmentado meno, quase que por lei de inércia (misoneísmo), tende a con-
176 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
tinuar reproduzindo-se (a ontogênese recapitula a filogênese) o mais poderoso, tanto que acaba vencendo. Este é o índice do
com um ritmo constante, isto enquanto a elaboração evolutiva, valor do Sistema, pois, apesar de tanto mal, o bem vence. Pode-
devido ao impulso divino interior, que compele à ascensão, rá parecer o contrário a quem vive imerso no momento de um
não o modificar através de pressão e martelamento constantes, caso particular. Mas assim não é nas grandes linhas.
vencendo, assim, o misoneísmo, que quereria persistir na linha O escopo, efetivamente, era levar o ser a Deus e, em ambos
de idêntica repetição. Assistimos, desta forma, a um ecoar fe- os casos, é atingido. No primeiro caso, isso acontece por via di-
nomênico, rítmico, musical que, mesmo nos contrastes, man- reta. A criatura reconhece o Pai, ama-O, segue-O e se harmoniza
tém uma harmonia maravilhosa, alcançando características es- com o Sistema. Temos o seu triunfo espontaneamente, em plena
téticas de suprema beleza. O dinamismo do universo assume, liberdade. No segundo caso, o fim é o mesmo, mas por via indi-
assim, formas que tendem a girar sobre si mesmas, em repeti- reta. A criatura rebela-se, separa-se, cai no caos, fora do Siste-
ção. E isto se dá por outra razão também: o retorno é o único ma. Por esse motivo ela sofre, aprende, expia, volve a subir e, se
meio pelo qual o absoluto pode continuar a existir no sistema não deseja morrer, deve retornar ao Sistema, isto é, coordenar-se
fragmentado do relativo, como um eterno retorno do espaço na sua ordem. Dessa forma, ela alcança igualmente a meta, ten-
sobre si mesmo, como espaço curvo – é a única forma pela do, todavia, de percorrer um caminho mais longo. O Sistema
qual o infinito pode vir a existir no finito. triunfa ao final. No primeiro caso, temos o ser que permanece
Assim, conjugando os pequenos esquemas do nosso contin- inocentemente perfeito. No segundo, teremos um ser igualmente
gente aos maiores esquemas do ser, podemos explicar a razão perfeito, mas que, chegando à perfeição através de uma via lon-
profunda de tantas coisas que todos fazemos sem saber e sem ga e dolorosa, conheceu o bem e o mal e se refez pelo sofrimen-
discutir, tomando-as por axiomáticas. Mesmo nós, em nosso to. No segundo caso, a evolução produzirá um anjo que, através
dinamismo moderno, agimos por repetição, rodando apenas de todos os erros e dores, chegará a ser conscientemente perfei-
mais velozmente do que no passado, em torno dos mesmos to, com uma sabedoria mais profunda do que a que possuiriam,
pontos. Toda a nossa vida percorre e volta a percorrer sempre se não se tivessem rebelado e Adão não houvesse comido o fruto
os mesmos círculos, repetindo vertiginosamente as mesmas proibido da árvore do bem e do mal. Sem tão dura experiência, a
coisas. Apenas turbilhonamos mais rapidamente, porém não criatura também seria perfeita, mercê de um conhecimento di-
nos deslocamos em substância, senão lentamente. Se atentar- verso, mas, com ela, o anjo decaído e redimido se torna detentor
mos para a imprensa, para o rádio, para o ciclo de nossa vida da prova do lado oposto do ser, do negativo. O Sistema é, pois,
individual cotidiana e para o das grandes cidades, assim como tão perfeito que, suceda o que suceder, o erro se transforma em
para o da agricultura nos campos e para os ciclos históricos, ve- conquista, a destruição em elemento criador, e o mal se trans-
rificamos que tudo é repetição, que nos movimentamos em der- muda em bem. Ele cria sempre o bem, mesmo no mal, na dor,
redor de certos pontos, para ficar ali. Parece que, ao lado da mesmo através de Satanás. Tudo o que nele pode aparecer de
curvatura do espaço, existe também uma curvatura do tempo, negativo, devora-se a si mesmo, destrói-se por si e gera o bem.
pela qual o que uma vez foi feito tende a ser refeito (tradição), Assim, o Sistema termina sempre na perfeição desejada. A pri-
ciclicamente voltando para si mesmo. meira, dada por um conhecimento intuitivo, sem a prova da dor;
Mas o aumento de velocidade de rotação não é estéril, por- a segunda, por um conhecimento experimental através do longo
que produz um mais rápido deslocamento dos pontos de refe- e estafante caminho da evolução. A primeira, permanecendo in-
rência, o que significa produzir a elaboração evolutiva, que antes tacta, imune à corrupção; a segunda, degenerando-se, para de-
era mais lenta. Se tudo tende hoje a repetir-se sobre o decalque pois curar-se. Não importa se o caminho é mais ou menos longo.
de velhos esquemas, o faz, no entanto, a maior velocidade, com Esta outra estrada conduz igualmente à meta.
o resultado de elaborá-los e determinar uma mais rápida matura- A própria queda dos anjos só pode ser atribuída à perfeição
ção de sua transformação. Isto porque, encontrando-nos no rela- Sistema, e não a uma sua imperfeição. Nas páginas preceden-
tivo, não é possível mudar um instinto, uma ideia de nosso ―eu‖, tes, assinalamos as seguintes palavras de Deus à criatura: ―Ofe-
ou seja, mudar o seu esquema, senão com este processo rotatório reço-te a existência como um grande pacto de amizade‖ (Cap.
em seu derredor, através de longa repetição, que nos transforma IV – ―A queda das anjos‖). O dom da liberdade, concedido por
por meio da aquisição de automatismos novos em lugar dos ve- Deus à criatura, para que ela se Lhe assemelhasse, era comple-
lhos. Hoje, corremos, pois, não por correr, o que de nada ser- to. Ela poderia aceitá-lo, grata, como poderia ter dito: ―Não!
viria, mas sim para aprendermos e maturar-nos mais rapidamen- não aceito‖. A revolta foi o primeiro passo no sentido desta re-
te, através de um acelerado ritmo de sensações e reações. cusa, visto que a tentativa de existência autônoma era, manten-
Voltemos, agora, a observar a estrutura do Sistema do-se negativa, uma primeira tentativa de não-ser. A insistência
sob o aspecto mais importante, que é o da sua grande perfei- definitiva na revolta significava o desejo de anular-se, ou seja, a
ção. Faremos isto em dois momentos, nos quais esta é posta recusa em aceitar o pacto da existência. É lógico que ficasse fo-
à prova e, por conseguinte, ressalta com mais evidência: ra do Sistema quem não aceitasse o pacto, no qual se anula a
primeiro no desfazimento da queda e, depois, na mecânica existência de quem não o aceita, retornando ao estado anterior à
da sua autorreconstrução. gênese, do não-existir. O existir significa a afirmação na ale-
No primeiro caso, a perfeição nos aparece na invulnerabili- gria, e o não-existir significa apenas uma negação crescente da
dade do plano, que, não obstante o erro, realiza-se da mesma alegria na dor. Pode o ser, mesmo livre, preferir a segunda via?
forma, persistindo intacto. O dano foi reservado somente à par- Tudo, pois, no Sistema, concorre para o seu bom êxito, pa-
te dos seres que o desejaram, prejuízo que, depois, em face da ra o triunfo do bem, mesmo o mal e o erro. Um sistema ex-
bondade inerente ao Sistema, reduziu-se a escola instrutiva aos pressão de um Deus perfeito não podia deixar de ser perfeito.
fins da reconstrução, em favor de quem praticou o mal. A per- A lógica impõe, de modo absoluto, a presença dessa perfeição.
feição do Sistema revela-se exatamente nesta retomada e auto- De outra forma, tudo se desmorona e nada mais se explica e
correção, neste sua arte de saber transformar um mal em bem. justifica. E, no fundo do universo atual, mesmo quando em
Isto demonstra que todo o Sistema é feito de bem, tanto que es- parte continue ele caótico, vemos uma sabedoria profunda, que
te é sempre seu resultado final, pois, ainda que o mal possa ter- rege a ordem e nela enquadra até mesmo esse caos, regulando-
se originado em seu interior, ele sabe reabsorvê-lo por comple- o. É a verificação dessa perfeição que nos impõe confiança,
to e reconduzi-lo ao bem. Justamente nesta luta entre o princí- porque nos diz que tudo quanto a criatura faça é por Deus uti-
pio negativo do mal, em que o Sistema se corrompeu, e o prin- lizado e guiado para o bem.
cípio positivo do bem, é que se vê ser este último o dominante, ◘◘◘
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 177
Verificada a perfeição do Sistema no desmoronamento da Estão em luta as duas forças, bem e mal, mas não perfeita-
queda, observemos agora a sua perfeição na mecânica da sua mente iguais. Pelo fato de que o bem é o centro, há uma superi-
autorreconstrução. oridade, posição da qual a revolta não o pode despojar. O atrito
O sistema de Deus é o sistema do ser, do ―eu sou‖, do qual desgasta os dois elementos, arrebatando do ―eu-centro‖ frag-
Ele é o centro. Dado este esquema do grande organismo, o po- mentos da sua parte periférica, detritos de substância espiritual,
sitivo, vemos que a rebelião tentou instaurar em seu seio, para dinâmica ou física, segundo o plano em que se observa o fenô-
submetê-lo, um sistema de esquema oposto, do não-ser, o nega- meno. Isto porque o modelo de cada elemento é feito de centro
tivo, que, sendo contrário, não podia representar senão a sua re- e periferia, repetindo-se, assim, no caso menor, o esquema do
viravolta, segundo o esquema do ―eu não sou‖. Então, deu-se a elemento máximo centro-Deus. Desta forma, quanto mais fortes
fratura. De um lado, o sistema do esquema ―eu sou‖, em Deus; o choque e o atrito, tanto mais acentuado o desgaste, o que re-
do outro, um contra-sistema do esquema do ―eu não sou‖, em dunda em pôr sempre mais a descoberto a natureza do centro do
Satanás. ―Eu sou o espírito que sempre nega‖, diz Satanás no sistema de cada elemento, ou ―eu‖, que assim, quando se trata
―Fausto‖ de Goethe. É a sua verdadeira natureza, isto é, a estru- de uma massa branca, faz-se sempre mais branco e, quando se
tura segundo o esquema do ―eu não sou‖, o princípio inverso, trata de uma negra, torna-se cada vez mais negro. O resultado
segundo o qual Satanás é construído, que lhe inquina o orga- do atrito desta luta é, pois, intensificar e fazer aflorar as caracte-
nismo até às raízes e que o mina sem cessar, impelindo-o à anu- rísticas, a verdadeira natureza de cada um. Assim, na luta, o an-
lação. Observemos a mecânica desse processo. jo se torna sempre mais anjo e o demônio sempre mais demô-
Este sistema rebelde é formado de muitos menores ―eu nio; o santo se aperfeiçoa e ascende, o mau piora e desce.
sou‖, que, ao invés de coordenarem-se hierarquicamente no Esse atrito é dor para ambas as partes. Mas a natureza ínti-
sistema de Deus, quiseram isolar-se, formando uma hierarquia ma, tão diversa para os dois tipos, faz com que as seus efeitos
oposta, de centros autônomos. Podemos imaginar o sistema sejam opostos, como opostos são esses tipos. Podemos ver o
positivo como um processo giratório dextrogiro. Ora, esses processo repetir-se na Terra, entre os seres que, tendo já per-
elementos rebeldes, constituintes do contra-sistema, podem ser corrido um certo trecho do caminho da ascensão, acham-se
imaginados como tantos outros centros menores que, em vez mais próximos dos elementos brancos. Sua dor, que decresce
de continuar rodando nesse mesmo sentido dextrogiro, como com a subida, é bendita e confortada por Deus, repleta de espe-
impunha o Sistema, harmonizando-se com o seu movimento e rança e sempre mais viva. Ela integra um sistema positivo, em
alimentando-o com o próprio impulso concordante, puseram-se que a dor está desaparecendo, enquanto o problema da felici-
a girar em sentido oposto, sinistrogiro, contra a corrente, dade se encontra em vias de solução, porque a vida está cami-
opondo-se ao seu movimento, na tentativa de gerar, assim, um nhando para Deus. Mais acima, os anjos não decaídos se apre-
movimento contrário, através do qual pudessem dominar o sentam imunes à dor, que adeja em torno de seus espíritos, in-
primeiro, para impor o próprio. Puseram-se, dessa forma, a capaz de excitar neles as dolorosas ressonâncias para as quais a
agir como freio, e não como impulso, intentando inverter a rota nossa natureza corrompida não pode fechar as portas. Contra-
das trajetórias, iniciou-se a desordem, a revolução, tendente a riamente, a dor dos espíritos inferiores, que permanecem na
transformar a ordem em caos, fenômeno que, daí por diante, revolta, é maldita, sem conforto, de esperança cada vez menor,
passou a repetir-se de acordo com o mesmo esquema, ainda dor que aumenta em cada queda do ser. Ela faz parte de um
que em escala menor, estando sob nossos olhos e reproduzindo sistema negativo, em que a dor se potencia e a felicidade se
o mesmo princípio, tanto no campo espiritual como no campo afasta, porque a vida está caminhando para Satanás. Duas do-
material, pois que ele continua o mesmo, agora como então. res opostas, em sentidos contrários. A do santo é sacrifício útil,
Os dois campos são conexos. E, como a criação física procede construtivo, de que se colhem frutos. A do mau é amarga con-
do pensamento, também o caos espiritual pôde logo transfor- sequência da destruição, que a carrega de mais ruínas. A dor
mar-se em caos físico, do qual nasce e continuamos a ver nas- do santo bendiz e cria; a do mau é feroz e destrói.
cer o nosso universo astronômico. Podemos agora imaginar essas correntes sinistrogiras do
A pretensão era inverter o Sistema. Mas esses elementos não mal navegando às avessas no Sistema, no sentido contrário às
eram o centro. Eram planetas, e não o sol. E, por mais que se dextrogiras do bem. Qual delas vencerá? Indubitavelmente a
coalizassem em um contra-sistema, não passavam do que eram, branca, porque é mais forte. A revolta padeceu de um erro fun-
isto é, centros menores, elementos periféricos. Por mais que pre- damental de estratégia: haver confundido semelhança com
tendessem ser sois, eram apenas planetas. Era, pois, impossível identidade. Deus, na Sua bondade para com a criatura e por
que o contra-sistema pudesse vencer o Sistema. Não lhes resta- amá-la, fizera-a semelhante a Ele, mas não idêntica, isto é, da
va, então, outra possibilidade senão funcionar como resistência, mesma natureza, mas não da mesma potência. A própria estru-
quais massas negras em um sistema de massas brancas. tura do Sistema implicava que Deus permanecesse centro, posi-
Continuemos. Resultou daí um atrito que representa perma- ção que nem mesmo Ele poderia ter cedido, ainda quando o Seu
nentemente a luta entre o bem e o mal. São estas as duas forças amor a tivesse desejado, porque então o sistema inteiro se teria
sempre em ação. O único sistema originário, positivo, transfor- alterado. O erro dos rebeldes estava justamente inserido em sua
mou-se então, reequilibrando-se em um duplo sistema, isto é, no natureza egocêntrica de ―eu sou‖, como uma consequência sua,
conhecido dualismo universal, que vai do plano espiritual ao fí- direta, pois consistiu na dilatação exagerada desta, a ponto de
sico, sistema que podemos conceber como uma quantidade de iludir a criatura, fazendo-a crer que semelhança pudesse vir a
massas negras navegando em um organismo dinâmico de mas- ser identidade. Efetivamente, a ela nada faltava como qualida-
sas brancas. Mas estas são mais fortes, porque o centro é branco. de, faltava porém como quantidade. Foi essa quantidade que o
É, porém, negro o anticentro, em torno do qual gravita o Anti- orgulho admitiu que pudesse criar por meio da potência do pró-
Sistema. Mas esse, pela própria natureza, só pode ser um centro prio ―eu sou‖, retirando-a desse ―eu‖ já tão divinamente pode-
negativo, isto é, periférico, uma paródia de princípio, um absur- roso. Porém enganou-se. Era absurdo o que pretendia. Mas a
do geométrico, que exprime exatamente, também no plano físi- identidade estava ali, a meio passo, tão vizinha da semelhança,
co, a ideia negativa do ―eu não sou‖. Este é Satanás! que o ―eu sou‖ da criatura se deixou arrastar pelo instinto inato
Agora que, com esta representação, uniformizando-nos de dilatar-se. Quis nivelar-se a Deus e, ao invés de engrandecer,
com uma lei de analogia, pudemos transportar para um terreno estourou. Eis o grande erro, causa da ruína. Tudo é lógico e
mais concreto o conceito abstrato da revolta dos anjos, veja- compreensível, especialmente a nós, criaturas, hoje numa situa-
mos o que sucedeu. ção que é oriunda desse erro, pelo qual, com tanta frequência,
178 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
somos ainda levados a repeti-lo, iludidos pela mesma ilusão do sistema, que fazem dele um ser enfermado de rebelião. Será
psicológica e colhendo os mesmos frutos dela. possível, então, que o ser possa resistir a todas as infinitas oca-
Isto esclarecido, podemos indagar que técnica é esta atra- siões que se lhe oferecerem, a todas as amorosas solicitações e
vés da qual o Sistema é tão bem capaz de reconstruir-se? A amparos, através dos quais os espíritos bons e eleitos se pres-
resposta, para ser dada, exige que, prosseguindo o exame inici- tam a sacrificar-se por amor à redenção daqueles seres que se
ado, perguntemos ainda aonde vai findar e a que ponto do Sis- transviarem? Será possível chegar a tamanho absurdo?
tema se dirige aquela parte de substância que, no atrito e na lu- Se isto se der, então o ser, que assim o quis, ficará no infer-
ta, se destaca da periferia dos ―eus‖ componentes? Ela assumi- no eterno da negação da existência, em que o ―eu‖ desaparecerá
rá naturalmente o sentido dextrogiro, que é a mais forte no Sis- consumido em pó e será refundido no sistema do bem. E, então,
tema, em virtude de ser a única alimentada pela irradiação di- assim como havíamos concluído que, na realidade, não existem
nâmica positiva do centro – Deus – que está pronta a atrair e dois sistemas contrários, mas um só – Deus – podemos concluir
arrastar em sua órbita tudo quanto ainda não se mantenha uni- também que o inferno eterno existe como possibilidade, mas
do à corrente oposta, visto que o contra-sistema também possui que, como disse um santo, não podemos estar certos de que ne-
o seu anticentro, antagônico, de ação inversa, cuja irradiação é le possa haver alguém. Ele existe, pois, como uma possibilida-
negativa, obscura, destruidora, atração invertida, que repele. de teórica do sistema, sem que estejamos em grau de saber se
Tal é Satanás. A substância, assim repelida pela atração nega- esta pode transformar-se em realidade (este assunto será melhor
tiva do anticentro, inverte a sua direção, tornando-se positiva, a desenvolvido no Cap. X – ―A teoria do desmoronamento e as
favor do sistema positivo (o primeiro germe destes conceitos suas provas‖). Sabemos, com certeza, apenas que Deus é a ab-
encontra-se no Cap. X – ―O Problema do Mal‖, no volume A soluta potência do bem. Devemos daí deduzir ser impossível
Nova Civilização do Terceiro Milênio). Sucede, então, que es- que, ao fim, o bem não sobrepuje todo o mal, tornando-se se-
sa poeira de substância que se destaca é atraída para Deus e in- nhor absoluto. Se do mal restasse um átomo que fosse, o plano
serida no circuito positivo do Sistema. O resultado final, assim, de Deus não teria vencido. Sabemos com segurança que Deus é
é que o contraste entre os elementos dos dois sistemas opostos bondade e que a criação é um ato do Seu amor, portanto, se um
só pode operar no sentido de um desgaste e empobrecimento só átomo lhe escapasse, Seu plano teria falido. Sabemos, assim,
crescente de substância do sistema negativo em favor do sis- ser impossível que, no fim, o Seu amor não vença a tudo e a to-
tema positivo, que cada vez mais ganha em substância. Isto dos, envolvendo no Seu amplexo todo o criado.
conduz o processo a propender fatalmente para o aniquilamen- ◘◘◘
to do sistema negativo e domínio absoluto do sistema positivo. A esta altura pode surgir uma objeção. É verdade que o
Como se vê, esta realidade é inerente à natureza do sistema po- universo está destinado à reconstrução e se reconstruirá. To-
sitivo, o primeiro a existir e o último a triunfar. O princípio e o davia, se o Sistema é perfeito, que garantia nos oferece ele
fim vêm, assim, a coincidir no imóvel absoluto do Deus trans- que a queda não se repetirá? Observemos. A parte caída está,
cendente, que está fora da forma e do tempo, independente da por enquanto, ligada ao processo evolutivo. Quem quisesse
Sua manifestação no universo criado. Em conclusão, podemos involuir, ao invés de evoluir, expor-se-ia ao aniquilamento
afirmar que não há dois sistemas iguais e contrários, mas, no como individualidade própria. Estaria, pois, eliminado. Mas
fundo, apenas um único sistema: Deus. temos visto (e ainda melhor o veremos no Cap. X) como o
Eis a maravilhosa técnica do processo de autorreconstrução egocentrismo de cada ―eu‖ deva terminar com a compreensão
do universo. Tudo desmoronou na caos, mas o caos sabe recons- de que este caminho é contraproducente e desvantajoso, já
truir-se na ordem. Que melhor prova existe para a imanência de que o ser está destinado à salvação.
Deus? O princípio positivo não abandonou o anti-sistema nega- Depois, há também a parte dos espíritos não decaídos, que,
tivo. De que outra forma poderia este, feito de substância nega- se permaneceram puros por obediência, aplicando em seu be-
tiva, somente capaz de destruição, reconstruir-se, isto é, agir in- nefício a sabedoria de Deus, que os guiava, estão agora assis-
teira e contrariamente à sua natureza? Assim, se o processo evo- tindo o calvário do ser decaído. Eles estão vendo as conse-
lutivo realmente funciona e determina o bem, o mal deve ser de- quências do desmoronamento e têm, diante de tal exemplo,
crescente. Este, vivendo, desgasta-se e tende a morrer. O bem, uma experiência própria adquirida indiretamente. Após essas
ao contrário, com a vida, revigora-se e tende à gênese. O mal duras verificações, é impossível que possam pensar em repetir,
pode parecer em crescimento num determinado ponto do univer- com seu prejuízo, uma tão terrível prova, sob a qual estão caí-
so, como a Terra, em consequência da ascensão e chegada de dos os espíritos seus semelhantes.
elementos inferiores. Mas, no todo, o mal, com a existência, de- Ao termo do processo reconstrutivo da evolução, a parte dos
vora a si mesmo, em razão da própria natureza e estrutura, e só espíritos caídos, agora redimidos, volta ao estado anterior atra-
mediante esta condição pode existir. O mal, assim como o bem, vés da experiência do bem e do mal, que serviu como exemplo
tanto no universo como na Terra, não está uniformemente distri- para todos, inclusive aos espíritos não caídos.
buído, e o aparecimento local do fenômeno pode iludir-nos Todos, pois, acabam adquirindo a mesma experiência. Ora,
quanto ao seu destino real, que está fatalmente traçado. a parte redimida não se cuidará de novas desobediências, por-
Então, surge naturalmente em nós uma última pergunta: que provou as suas consequências. Ela conserva um conheci-
qual a sorte final dos espíritos maus? O seu sistema os conduz mento direto. A outra parte – os não caídos – tem um conheci-
automaticamente ao aniquilamento, que representa o seu triun- mento indireto, reflexo. Não é possível que haja novas quedas,
fo, a morte da alma, verdadeiro inferno eterno, porque, para o embora todos permaneçam inteiramente livres. Chega-se, as-
ser, a pena máxima está no não-ser. E a criatura que renega a sim, a um determinismo superior, de um ser convicto, a quem o
Deus não pode ter outra sorte. Mas será possível que um ser li- conhecimento ensina que só há um caminho, também livre, a
vre queira, em seu prejuízo, fazer da liberdade um desastroso ser trilhado, que é a adesão à Lei.
uso? Será possível que ele queira agir tão loucamente, que pos- Podemos compreender tudo isto, reduzindo o fenômeno,
sa resistir à tortura crescente da dor máxima, que é a agonia es- que se situa para nós em planos inconcebíveis, às dimensões
piritual, sem mudar de rumo? exíguas da razão humana. Da maravilhosa perfeição do Sistema
O universo é um organismo em que, como no corpo huma- aparece-nos, então, um novo aspecto, onde o mal causado pela
no, uma solidariedade de todos os elementos componentes revolta se transforma em bem, o que constitui uma experiência
compele as células sãs e mais evoluídas a tentarem todos os vital também para os não decaídos, destruindo-se definitiva-
meios de conseguir a cura ou salvação das células patológicas mente ―para todos‖ qualquer possibilidade de novas quedas.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 179
VIII. SOLUÇÃO ÚLTIMA DO PROBLEMA DO SER ta-se de colocar, como no quadro de um grande mosaico, cada
peça no seu justo lugar, para obter a imagem perfeita.
Pouco a pouco, a nossa descrição progride, a visão se faz Por estas observações, o leitor poderá compreender como a
mais completa também no intelecto do leitor, a quem estamos exposição aqui realizada é uma tradução da visão em uma outra
aqui fazendo uma exposição racional. Não quisemos conferir a linguagem, adequada à forma mental racional. Poderá, ao mes-
esta uma forma sistemática, como sói acontecer quando se mo tempo, compreender que a psicologia de absolutismos axi-
apresenta um processo psicológico de quem escreve, cristaliza- omáticos, com que algumas afirmações são aqui feitas, não é
do nos seus resultados finais, sem demonstrar o seu desenvol- uma inconsistente pretensão de verdade, mas sim deriva da sen-
vimento genético. Preferimos aqui começar a descrever a visão sação do absoluto verdadeiro que se passa com todo aquele que
à medida que a observamos, de modo que o leitor pudesse se- contemple qualquer fato por percepção direta. Ora, quem aqui
guir o desenvolvimento segundo o qual ela, embora instantânea escreve não pode fazer sentir ao leitor esta sua sensação. Não
em sua natureza, apareceu progressivamente em nossa mente. lhe resta, então, outro recurso senão o raciocínio e a demonstra-
Assim procedemos não só para facilitar a compreensão, mas ção indireta, como quem tivesse de explicar a um cego um pa-
também para facilitar ao leitor acompanhar igualmente o fenô- norama que tenha diante dos olhos. O leitor poderá, assim,
meno psicológico do registro da visão, como ela ocorreu na rea- compreender quão estranho deve parecer, a quem se encontra
lidade. Tudo isto porque não significa que, por não ser sistemá- imerso em uma visão, ter de apresentá-la como hipótese de tra-
tica, a exposição não possua um encadeamento lógico, pois to- balho. Entretanto, ele deve saber exprimir-se também nessa
da a visão é substancialmente um processo lógico. forma, se quiser ser compreendido.
Certamente, a psicologia racional, que é a forma da menta- ◘◘◘
lidade hodierna e, por conseguinte, da maioria dos leitores, está Chegando a este ponto, podemos dizer que temos sob os
muito distanciada da forma mental intuitiva, por meio da qual olhos um quadro suficientemente completo da criação, para po-
as visões são percebidas. Por isso mesmo procuramos sempre der contemplá-lo no seu conjunto. Também A Grande Síntese
reduzir tudo aos termos da psicologia racional, a fim de nos co- nos apresenta esse quadro, mas dentro de limites mais restritos.
locarmos no plano mental do leitor. Na verdade, o crítico ex- Ela não vai além dos confins de nosso universo, não lhe aprofun-
tremado poderia objetar que os dois princípios fundamentais – da as origens. Comprovando a existência de uma lei cujo funcio-
amor e liberdade – sobre os quais se eleva o edifício conceptual namento e desenvolvimento estuda, não explica as razões pelas
atrás exposto, são absolutamente incontroláveis. Eles, aqui, são quais ele tenha tomado a sua forma atual. E, de A Grande Sínte-
aceitos como axiomas não demonstrados, consequência do mé- se, o volume Ascese Mística só aprofundou e desenvolveu o es-
todo intuitivo. Não é preciso demonstrar, a quem vê, que a luz tudo particular de uma fase da evolução: o superconsciente intui-
existe. Mas nós queremos aqui colocar-nos de acordo com a tivo, especialmente no misticismo. No presente volume, a visão
psicologia corrente. Limitamo-nos, pois, a aceitar a intuição se dilata para além da criação atual, da qual se veem os preceden-
apenas como hipótese de trabalho. Apresentar o pensamento tes, as causas e o significado, em um sistema mais vasto, qual é o
sob esta forma significa torná-lo mais compreensível e aceitá- sistema do absoluto, o sistema do Todo, o sistema de Deus.
vel em nosso tempo. Podemos, assim, encarar toda a visão co- Voltemos a contemplar a visão no seu conjunto, nos lampe-
mo uma hipótese de trabalho, onde o mais importante, indepen- jos da síntese. O homem racional, positivo, poderá tomá-la co-
dente da forma, é conseguir a exposição de um quadro comple- mo hipótese de trabalho, para fazer o seu controle nos pontos
to e pormenorizado, que resolva todos os problemas do ser. acessíveis ao homem, já que se trata de uma projeção análoga
Continuando a proceder com esta psicologia, poderemos di- do esquema universal em nosso plano de existência.
zer que só aceitaremos a hipótese como verdadeira quando os Fora do tempo, antes que qualquer coisa, nascida depois,
fatos a confirmarem. Teremos, assim, assumido a atitude que tivesse princípio, existia Deus, que foi, é e será sempre o Todo,
coincide com a psicologia hodierna, e o leitor poderá, então, ler ao qual nada se pode tirar nem acrescentar, mesmo em sua cri-
estes capítulos com esta mentalidade, sem que nada se altere. ação, que não pode estar acima ou além, mas sempre como Sua
Permaneceremos, desta maneira, obedientes aos requisitos cien- emanação. Sua característica fundamental é o amor, princípio
tíficos da pesquisa. O leitor que ama e escolhe esta forma mental pelo qual se exprime a natureza de Deus, de onde derivam to-
deverá, porém, admitir que, se tal via fosse seguida pelo escritor, das as outras qualidades: primeiramente a liberdade do ser e,
ele nada teria visto, chegando talvez a umas poucas conclusões depois, as demais, como o bem, a bondade, a harmonia, o po-
particulares, e quem sabe depois de quanto tempo! Se ele che- der, o conhecimento, a beleza, a felicidade etc., que exprimem
gou logo à visão completa do quadro resolutivo e das conclu- tudo o que de mais belo e melhor o ser possa imaginar. São
sões, é necessário aceitar que isto só se deu em virtude do méto- princípios que o homem encontra instintivamente em si mes-
do da intuição, através de concepções sintético-intuitivas, e não mo, aceita como axiomas e segue sem discutir, com ardente
analítico-racionais. A resultados tão amplos quanto estes não se anelo. Ninguém necessita de demonstração para obedecer a
chega nunca com a observação e a experimentação, através da tais impulsos, que são inerentes à natureza humana. Afinal, tu-
hipótese e da razão. É necessário admitir que, conquanto a solu- do isto faz parte do absoluto, que está além da razão e do qual,
ção dos últimos problemas deva aqui ser apresentada em forma com esta, só nos é dado controlar as consequências em nosso
racional, ela só poderia ser obtida por via intuitiva. relativo, que no-lo confirma. Admitido o princípio de amor,
Pode-se objetar, contudo, que a intuição também está sujeita tudo o mais procede logicamente. À razão não se pede mais do
a enganos, necessitando ser controlada e, por esse motivo, ela que admitir esse princípio, o que, aliás, é instintivo. É o quanto
não pode ser erigida em método de uso corrente. Mas também é basta para o desenvolvimento lógico ulterior.
verdade que o uso corrente bem pouco descobre de novo, limi- Deus, causa primeira sem causa, não tem princípio nem fim
tando-se frequentemente a demonstrar e a aperfeiçoar o que foi e tudo gera sem ter sido gerado. Deus simplesmente ―é‖, e tudo
apanhado pela intuição. Assim, só nos resta aceitar a intuição Ele ―é‖, não estando encerrado no limite de nenhuma dimensão.
quando o indivíduo sabe alcançá-la, submetendo-a depois ao As várias dimensões nascerão depois, entre as quais o tempo e
controle, para verificar se os seus resultados coincidem com a o espaço, apenas como limites do ser, enquanto Deus é o ser
realidade. Os exemplos que aqui aduzimos, retirados do mundo sem limites. Eis, então, que Deus transcendente, que ―é‖ acima
dos fatos, estão sempre a favor da visão. O leitor poderá buscar e independente de qualquer criação Sua, acima da atual, como
outros, contanto que antes cuide de compreendê-los bem, para de qualquer outra possível, eis que Deus realiza, com respeito à
enquadrá-los no sistema e verificar se há correspondência. Tra- atual, a Sua primeira criação, feita de espíritos perfeitos. Ele
180 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
destacou do Seu seio, por amor, seres feitos à Sua imagem e vel compreender ambas as metades da unidade e depois reuni-
semelhança, para amá-los, incluindo-os na Sua própria felicida- las. Compreender de Deus um só aspecto, qualquer seja ele,
de. Isto ocorreu segundo um sistema cujos princípios funda- significa atingir uma concepção falha e unilateral. Admitindo
mentais eram aqueles mesmos que observamos na natureza do Deus apenas como transcendência, o ser se defrontaria com
Pai, que os gerara. Neste sistema, tudo era feito à Sua imagem e uma abstração de tal forma destituída de expressão, que ela se
semelhança. Ele era único e tudo encerrava, nada havendo fora confundiria no nada. O universo lhe pareceria, então, um autô-
e além Dele e dos Seus princípios e perfeição. mato vazio de alma, um sistema estático, incapaz de reconstru-
Ora, dada a liberdade do ser, inata no Sistema, por ser da ir-se e reerguer-se até Deus. Admitindo Deus apenas como
natureza de Deus, de que ele proviera, essa primeira criação imanência, chegaremos a um universo preso num caminho sem
perfeita degenerou em consequência da revolta, examinada nos fim, não tendo ponto de partida nem de chegada, uma unidade
capítulos precedentes. Parte dos seres permaneceu íntegra, in- despedaçada, sem possibilidade de reconstruir-se.
corrupta, e assim se conservou sempre, mantendo-se no sistema É necessário compreender essa descida do Deus transcen-
perfeito originário, por haver aderido livremente ao Deus trans- dente na imanência, em seguida ao desmoronamento do Siste-
cendente; outra parte rebelou-se e, por isso, corrompeu-se, dan- ma. Quando este, por culpa da criatura, se cindiu em dois, Deus
do origem a um segundo sistema, derivado e imperfeito, inver- não quis abandonar o sistema invertido, conservando-se presen-
tido, de oposição a Deus, tendo o centro em ponto antípoda, em te nele (imanência), para poder realizar assim a sua salvação,
polo oposto, no anti-Deus, em Satanás. O sistema único cindiu- em um trabalho constante de reconstrução (criação contínua),
se então em dois – Sistema e Anti-Sistema – nascendo o dua- pelo processo que denominamos de evolução. Deus, em perfei-
lismo de dois sistemas opostos, um perfeito e o outro imperfei- ta coerência com o princípio fundamental do amor, acompa-
to, não mais segundo um esquema de unidade íntegra, como an- nhou o edifício desmoronado que permaneceu Ele mesmo, em-
tes, mas segundo um esquema de unidade cindida, que não po- bora em posição invertida, um Deus em negativo, como se Ele
de existir senão constituída de duas partes inversas e comple- mesmo se tivesse invertido. Desta maneira, Deus se faz, por
mentares, opostas e fundidas conjuntamente. De então por dian- amor, imanente e, neste Seu segundo aspecto, desce às formas,
te, a unidade não poderá mais ser obtida a não ser através da lu- à criação, que assim se tornam em Sua manifestação ou expres-
ta entre as duas partes contrárias, princípio universal, que en- são. Eis de que modo o universo é regido pelo pensamento de
contramos por todos os lados. Essa é gênese do principio da Deus (a Lei). No fundo do Anti-Sistema está sempre o Sistema,
unidade e dualidade, sumariamente exposto em A Grande Sín- no fundo dos espíritos decaídos está sempre a originária cente-
tese. Por esta razão o nosso universo é construído de acordo lha divina. Não pode existir no universo nada que não seja
com esse esquema, desde o caso máximo até ao caso mínimo. Deus. Será um Deus invertido, mas será sempre Deus.
Agora podemos compreender por que Deus transcendente, e Aproximamo-nos agora de nosso mundo fenomênico, mais
não somente pessoal, visto ser Ele um ―eu sou‖, assim como controlável pela observação. O desmoronamento do Sistema é
todas as criaturas feitas a Sua imagem e semelhança, mas que representado pelo processo involutivo, que procede de
também pode ser considerado acima e independente de qual- , isto é, do espírito à energia e desta à matéria. Assim
quer criação Sua, além do bem e do mal, isto é, fora do esque- nasce a matéria. Eis a criação de nosso universo dinâmico e fí-
ma dualístico em que está baseado o universo atual. O dualismo sico. Compreende-se, pois, como esta não foi a criação originá-
nasceu com o referido desmoronamento do Sistema em seu An- ria, perfeita, operada por Deus, mas apenas uma inversão e uma
ti-Sistema e está destinado a ser sanado, representando, portan- corrupção dela, operada pela criatura, em razão da sua liberda-
to, apenas um momento na Divindade. Deus ―é‖ sempre, antes de, e não por Deus. Porém Deus não abandona o ser aberrante,
do desmoronamento e depois da reconstrução, além deste perí- mas abre-lhe de novo os braços, apontando-lhe uma via de re-
odo dualístico. No absoluto, Deus ―é‖ simplesmente uno, acima cuperação e redenção. Desta forma, Deus o aguarda no ápice do
desta cisão, que concluirá na junção das duas partes e, por isso, caminho oposto, dado pela evolução, que se processa de
constitui apenas um episódio no divino e eterno existir. , o caminho de nosso universo no planos físico, dinâ-
Foi, então, justamente com o desmoronamento do Sistema mico e, para os seres mais evoluídos como o homem, espiritual
no Anti-Sistema que se formou a contraposição: transcendência (). Eis por que o nosso é um universo em evolução e o motivo
e imanência. Esta cisão do único aspecto, o absoluto, de Deus por que a lei de ascensão é a lei fundamental de nossa existên-
em Deus transcendente e Deus imanente representa justamente cia. Não basta, contudo, ter verificado o fato, como nos volu-
a cisão do Uno, que, como Uno absoluto, reúne em si os dois mes anteriores. Precisamos compreender por que este fato exis-
aspectos. Ele é ambos ao mesmo tempo, estando acima da ci- te nessa forma. Por isso a dor é herança da criatura, sendo a re-
são, sem poder ser um só deles, ou seja, não é exclusivamente denção através das provas da vida o seu necessário e fundamen-
transcendente nem exclusivamente imanente. Desta forma, tal trabalho. É por esta razão que Cristo desceu à Terra e consti-
compreenderemos que a visão dualística, do Uno bipartido, é tui a figura central na história da humanidade.
relativa à posição do ser no universo atual e no período da ci- Podemos agora compreender o nosso universo. Ele é uma
são, não possuindo valor absoluto. Em outros termos, se enca- criação negativa, não a originária, mas uma segunda, derivada e
rado do seio de nosso universo, Deus pode parecer à criatura corrompida, consequência da primeira. Aqui, o primeiro siste-
como imanente ou como transcendente, isto é, pode ser conce- ma se inverteu, e o vemos revirado. Aqui, o espírito eterno e
bido sob dois aspectos diversos; porém, desde que saiamos do perfeito se precipitou na matéria caduca e imperfeita. O amor
relativo para o absoluto, devemos admitir a existência de Deus tornou-se físico, de corpos prontos a entrar em decomposição.
em um Seu só e único aspecto, que está além de qualquer dua- Aqui, a existência eterna se despedaçou no ciclo, em que gravi-
lismo e criação, ao qual denominaremos Deus absoluto. tam como duas metades os dois opostos vida-morte, encerrados
O ser vive, presentemente, imerso na cisão. Se concebe a no tempo. A felicidade naufragou na dor, o espírito infinito se
transcendência, é porque se coloca no aspecto imanência e, se enclausurou no limite do finito. A medida originária, incorrup-
concebe a imanência, é porque se põe no ponto de vista da ta, do ser não é o tempo, mas a eternidade; não é o finito, mas o
transcendência. Uma presume a outra, e ambas são complemen- infinito; não é o relativo, mas o absoluto; e assim para cada
tares, como duas metades do Uno indiviso. O ser é incapaz de qualidade humana, das quais só restaram ruínas. Explica-se
conceber fora de relações. Desaparecida a contraposição dos desta forma por que o instinto mais forte e a maior alegria do
contrários, a sua percepção e concepção se anulam. Para com- ser sejam a superação do limite. É que eles significam a reapro-
preender, pois, o Todo Divino, o Deus absoluto, é imprescindí- ximação do centro e o reencontro com o originário infinito.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 181
O universo que a ciência estuda é exatamente este inverti- Vejamos, pois, o processo de desagregação do Sistema – a
do, em que o Uno está pulverizado na infinita multiplicidade involução – que, mais tarde, retificar-se-á no processo oposto, o
fenomênica do relativo. evolutivo. Movemo-nos, agora, apenas dentro dos limites de
Pretender, com essa poeira conceptual, reconstruir o princí- nosso universo, isto é, no interior dos dois sistemas dimensio-
pio unitário e o esquema universal, a síntese máxima, tomando nais trifásicos acima mencionados.
contato com o mundo fenomênico através da observação e da Eis que os espíritos puros rebeldes, isto é, colocados em
experimentação, é simplesmente uma louca pretensão. É isto o posição sinistrogira, no sistema dextrogiro, provocam uma
que deseja fazer a ciência. Já em outra ocasião o dissemos, mas contração ou curvatura cinética na substância, que estamos ob-
só agora podemos saber as razões de semelhante absurdo. servando sob o seu aspecto de movimento. Inicia-se, então, o
Uma das vantagens, e mesmo novidade, da presente con- desmoronamento do ser ao longo da escala das dimensões. A
cepção está em ser uma síntese que pode fundir em um só sis- intuição sintética (visão direta da Lei – pensamento de Deus)
tema unitário o mundo físico e dinâmico ao espiritual, até contrai-se na simples racionalidade analítica e sucessiva, à gui-
agora inteiramente distintos, isolados, senão inimigos (ciência sa de volume que se dissipa em uma superfície. Então esta di-
e fé) entre si, sendo o espiritual negado definitivamente pela mensão (consciência) contrai-se ainda na dimensão tempo,
ciência. Mas somente com estas concepções é possível com- como uma superfície que se desfizesse em uma linha. Tais são
preender de que maneira o desmoronamento moral possa ter- as primeiras três etapas da descida: a superconsciência (espíri-
se tornado físico; de que forma, de uma cinética de conceitos to) transmuda-se em consciência (vida), e esta em tempo
(revolta dos espíritos) tenha podido nascer uma cinética invo- (energia). Mais para cima existirão outras fases e sistemas di-
luída da energia, que, por sua vez, congelou-se na matéria. O mensionais, dos quais e através de que o espírito pode ter sido
desmoronamento é moral enquanto permanecermos na dimen- precipitado, mas que não nos é dado conhecer. Assim, o siste-
são , consciência. Ele torna-se dinâmico quando o Sistema ma mais elevado, o II Sistema Dimensional, é demolido, e a
involve na dimensão inferior (mais afastado de Deus) da consciência, reduzida à linha no tempo, precipita-se ainda para
energia. E, finalmente, transforma-se em físico quando o Sis- os confins do sistema dimensional inferior, o I Sistema Dimen-
tema involve na dimensão matéria. sional, e mergulha então no volume, que para ela significa uma
Eis como surgem e se resolvem múltiplos problemas, tanto não-dimensão, isto é, anulação como consciência. O espírito
espirituais como físico-matemáticos, tendo todos a mesma raiz deixa, então, de existir como espírito, isto é, perde a consciên-
comum, o mesmo tronco unitário, que os coliga à mesma sínte- cia, anula-se como tal. Isto não significa a sua destruição, mas
se e a um idêntico princípio. apenas a sua anulação como vida e consciência na sua atual
Observemos agora as particularidades desse desmoronamen- forma de existência, passando a um estado de latência, no qual
to, que vai do espírito à matéria por uma linha contínua. Desta permanece sepultado. Assim, chegamos à matéria.
forma, obteremos igualmente as características da fase atual, evo- Começa, agora, um segundo período de demolição. O vo-
lutiva, inversa da precedente, involutiva, apenas com a reviravol- lume se contrai na superfície e esta na linha, que se anula no
ta de posição. Para compreender o desmoronamento e o caminho ponto. Assim o sistema dimensional inferior é também destru-
por ele percorrido em descida, na demolição do Sistema, é neces- ído. Com isto anula-se o ser, não somente como consciência e
sário que nos reportemos aos capítulos que tratam da evolução vida, como foi atrás descrito, mas também como forma inferi-
das dimensões, exposta em A Grande Síntese (Cap. XXXVI – or de existência, único meio que lhe restava, no fim do des-
―Gênese do espaço e do tempo‖, e Cap. XXXVII – ―Consciência moronamento do sistema superior, para continuar a existir
e Superconsciência. Sucessão dos sistemas tridimensionais‖). Em ainda que em condições inferiores à da forma de vida. A ma-
nosso universo, o nosso poder de concepção não abrange mais do téria era o túmulo em que o espírito se sepultava como morto,
que dois sistemas dimensionais trifásicos que, escalonados em di- em letargia. Agora, o túmulo também se anulou, porque o sis-
reção ascensional (para Deus) ou evolutiva, são: tema espacial foi anulado no ponto.
I Sistema Dimensional Trifásico: Procuremos compreender esse processo, repleto de ensina-
(Início: Ponto – não dimensão, o nada espacial) mentos em qualquer campo. Os capítulos acima mencionados
1a dimensão – linha; (XXXVI e XXXVII) de A Grande Síntese nos explicam como
2a dimensão – superfície; se constroem evolutivamente as dimensões mais elevadas, er-
3a dimensão – volume. guendo-se das inferiores. Este é o caminho inverso ao que foi
II Sistema Dimensional Trifásico: acima examinado; é o caminho de retorno. Abordemo-lo, para
(Início:Volume – não dimensão, consciência nula) percorrer assim o processo em todas as direções. O ponto é a
1a dimensão – tempo (percepção = linha) dimensão espacial nula. O universo espacial, nesta fase, encon-
2a dimensão – consciência (razão, análise = superfície) tra-se no vazio. A 1a dimensão, a linha, obtém-se elevando-se
3a dimensão – superconsciência (intuição, síntese = volume) uma perpendicular sobre o ponto. Que queremos significar com
tal afirmativa, além de qualquer representação geométrica?
Dimensão 1a 2a 3a Queremos dizer que, quando o centro do Sistema, no seu aspec-
Sistema Dimensão Dimensão Dimensão to cinético em que é aqui considerado, isto é, como movimento,
Sistema Dimensional irradia um pouco de si mesmo até ao ser, transfunde neste parte
Linha Superfície Volume de sua natureza e atributo. Então o ponto se move, e desse mo-
Trifásico – I
vimento nasce a linha. É princípio geral que se passa da dimen-
Sistema Dimensional Super- são inferior à superior, em qualquer nível, através sempre deste
Tempo Consciência mesmo processo, que, geometricamente, representamos como
Trifásico – II consciência
uma elevação da perpendicular sobre a dimensão inferior, pelo
Além destes dois sistemas está o inimaginável para a mente que esta é abandonada. Isto significa tão-somente um desloca-
humana. Embora, como dissemos no início do Cap. VI – ―Des- mento, por imissão cinética, da dimensão inferior em uma nova
moronamento e reconstrução do universo‖, o desmoronamento direção fora dela, que a leva além dos limites que a constituem.
provenha de dimensões superiores ao superconsciente, não po- Basta mesmo um pequeno deslocamento, contanto que se pro-
demos lhe traçar a análise, porque, ainda que se possa em parte cesse neste sentido, para que sejam superados os limites da di-
atingir a abstração físico-matemática, o fenômeno nos escapa, mensão inferior e alcançada a dimensão superior. Este é o sig-
porquanto dele nos foge qualquer possibilidade de representação. nificado que emprestamos aqui à expressão geométrica empre-
182 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
gada – elevação da perpendicular – expressão que adotamos rizar-se, congelar-se; e as mencionadas perpendiculares se
porque é concisa e de mais fácil representação. abaixam, em vez de se elevarem. Tudo se inverte no negativo.
Eis que a 1a dimensão, linear, atinge a 2a, superfície, através Enquanto antes passava-se para uma nova dimensão superior
do mesmo processo – perpendicular elevada sobre a linha ou, por imissão, por irradiação, provinda do centro, de novas quali-
também, deslocamento da linha em uma nova direção, fora da dades cinéticas e, portanto, com um movimento em novas dire-
precedente e, por conseguinte, do seu limite linear, e isto sem- ções, agora, na fase involutiva, de desmoronamento do Sistema,
pre por imissão cinética, por irradiação do centro do Sistema, ocorre o contrário. Passa-se para uma nova dimensão inferior,
DEUS, motor universal. É facilmente imaginável, tanto no sen- não pela interrupção da irradiação central, pois que Deus é
tido físico como no moral, uma semelhante emanação dinami- sempre benéfico, para onde quer que irradie, mas sim por des-
zante que, alcançando o ser, seja qual for o plano em que este gaste do Anti-Sistema, em virtude justamente do atrito por ele
se situe, possa imprimir-lhe um novo movimento, que o eleva à sofrido nessa irradiação benéfica, de modo que o bem, para ele,
dimensão superior. Da mesma forma, é fácil imaginar que, agora, em posição retrovertida, transmuda-se em mal e a potên-
quando, ao contrário, o ser é posto à margem de semelhante ir- cia construtora torna-se destruidora.
radiação (veremos depois como), desenrola-se o processo in- Sob esse impulso dinamizante, assim invertido, em assalto
verso, dado pelo abaixamento da perpendicular, isto é, contra- destruidor para os anti-sistemas (cuja culpa só lhes cabe, por se
ção de dimensão, processo em que o ser cada vez mais se con- terem posto contra a corrente), eles, para continuar a existir, re-
fina nos limites do próprio plano, dos quais antes se estava li- sistem, conseguindo-o através da contração crescente em torno
bertando. Nasce, assim, a superfície. do seu centro, ―eu‖ do sistema. A universal substância anima-
Atinge-se a 3a dimensão espacial, volume, pelo mesmo pro- dora do Todo, que agora observamos na sua natureza cinética,
cesso. Eis o volume, estando completo o primeiro sistema. fica assim isolada nestes antissistemas, fechados em si mesmos
Da mesma forma, pelo princípio de analogia e dos esque- e arredados da universal fonte do ser: o centro – Deus. Não po-
mas de tipo único, segue o processo da construção do sistema dendo ela mais alimentar-se do exterior, porque o Anti-Sistema
trifásico superior. No volume ou matéria, dimensão espacial está fechado e isolado, a substância cinética busca alimento e
completa, a 1a dimensão conceptual superior é nula. Mas, ele- vida restringindo cada vez mais em derredor do único centro do
vando-se uma perpendicular sobre o volume, através da imissão qual possa recebê-lo e que representa tudo o que lhe restou da
de novo potencial cinético pelo centro radiante, o volume se divina potência de que se destacou. Mas ele não é Deus, e sim
move. Nasce a energia na sua dimensão tempo, a 1 a do novo um centro menor, que se exaure. Abaixam-se, por isso, progres-
sistema trifásico, correspondente à reta. Os esquemas se repe- sivamente, todas as perpendiculares, cuja elevação, sob a irra-
tem analogicamente nas fases correspondentes do sistema infe- diação divina, permitirá ao ser subir para Deus. O movimento
rior ao superior, seguindo os mesmos princípios. Chegamos, as- se retrai, involvendo; a substância tende a perder a sua originá-
sim, à consciência linear, que ainda não pode expandir-se além ria e divina natureza cinética, para congelar-se em uma imobili-
da linha do seu transformismo e só conhece o seu isolado pro- dade crescente. Os anti-sistemas ficam assim sujeitos a um pro-
gredir no tempo. Com o mesmo processo, que chamamos ele- cesso de contração progressiva. E que significa contração? Sig-
vação de perpendicular, isto é, por imissão cinética, atinge-se a nifica sempre maior curvatura cinética, isto é, curvatura das tra-
consciência (vida), correspondente à 2a dimensão do sistema jetórias constitutivas do sistema cinético de que se compõem
espacial: a superfície. Fase subumana e humana, em que a todos os seres, desde o plano físico ao espiritual. Eis a razão pe-
consciência linear se deslocou em novas direções laterais e pô- la qual o espaço é e deve ser curvo, posto que ele não represen-
de percorrer, além da própria, também o transformismo de ou- ta senão uma fase do ser, sujeito a esses processos. Eis por que
tros fenômenos; sabe distinguir-se deles, aprende a dizer ―eu‖, a ciência pode falar de espaço em expansão ou contração. Eis
projeta-se no exterior, observa e julga. Estamos na fase racional por que também o tempo deve ser curvo e retornar inteiramente
analítica. Movendo-nos ainda em novas direções, por meio do ao ponto de partida. Os retornos cíclicos e periódicos que se ve-
que chamamos elevação de perpendicular, isto é, imissão ciné- rificam por toda parte confirmam esse fato.
tica e novo movimento, entramos na 3a dimensão do sistema Agora podemos melhor compreender a técnica observada
conceptual, que corresponde ao volume. Atingimos o campo do no fim do capítulo precedente, pela qual se dá a destruição dos
espírito, da intuição sintética, da visão direta da Lei, do pensa- espíritos maus, nos quais se personifica o mal. Eles são anti-
mento de Deus. Por tudo isso, compreende-se como seja a ação sistemas que se isolam e se imobilizam cada vez mais, por
dessa irradiação do centro do Sistema, isto é, a imanência de progressiva curvatura, até se anularem. Há uma descida de di-
Deus nele, que opera a evolução, a reconstrução do universo, a mensão em dimensão, da fase superconsciência à nossa cons-
sua redenção. Vemos, assim, como a originária lei do amor ciência racional, à fase de consciência linear (tempo). Deste
atinge toda a sua plenitude e como o ponto de partida, Deus, modo, o espírito, reduzido de uma estrutura volumétrica à de
tudo reconduz ao ponto de chegada, Deus. superfície e, enfim, à linear, está definitivamente sepultado
O exame desse processo nos exprime claramente o desen- como consciência, anulado na matéria, sua última forma de vi-
volvimento do fenômeno. Podemos agora, invertendo o cami- da, sem consciência. Ele pode continuar a existir assim, nega-
nho, compreender melhor o processo oposto, do desmorona- tivamente, ou então, desde que o deseje, inverter a rota para
mento, do qual pretendemos ocupar-nos em detalhes, observan- subir e evolver. A fase humana do mal não é a dos níveis mais
do-o mais de perto. O Sistema é um edifício regido pela radia- baixos. Em qualquer deles, porém, o ser está sempre diante de
ção dinamizante que emana do centro. Quando, na ordem uni- uma alternativa: retroagir, voltando a subir para o bem e para o
versal dextrogira, os elementos se isolaram pela revolta, eles centro-Deus, ou então continuar a descer até ao aniquilamento.
então se tornaram sinistrogiros, arvoraram-se em centro, com a Neste último caso, por meio do habitual processo, abaixar-se-á
pretensão de irradiar, mas só conseguiram fazê-lo no exíguo a perpendicular, cuja elevação erguera da superfície ao volu-
círculo dos seus satélites ou elementos sequazes. A grande me, conduzindo de novo este, como por achatamento, à super-
emissão cinética dinamizante, emanada do verdadeiro e máxi- fície. Depois se abaixará a perpendicular que elevou a linha à
mo centro, Deus, não pode agir para eles como impulso dina- superfície, e esta, como que se achatasse, reduzir-se-á à linha.
mizante, pelo contrário, como eles se tornaram de sinal oposto, Finalmente se abaixará a perpendicular que elevou o ponto à
ela só pôde atuar como atrito, resistência, impulso frenador, isto linha, e esta, como que achatando-se, reduzir-se-á ao ponto.
é, como força não construtora, mas demolidora do Sistema. Estamos no final do processo. A contração se completou, o
Começou, então, ele a demolir-se automaticamente, plano por Sistema se anulou, todo o edifício se reduziu a um ponto, a
plano. Ao invés de expandir-se, contrair-se; em lugar de vapo- uma não-dimensão. O núcleo, último reduto do Anti-Sistema,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 183
continuará ainda como rebelde sinistrogiro, girando sobre si fenômeno expresso em termos geométricos espaciais. Mas, na
mesmo. Mas, por fim, mesmo essa reserva cinética será destru- realidade, a substância do fenômeno é abstrata; é um pensamen-
ída pelo atrito contra as radiações dextrogiras dominantes, e to reduzível a cinética, que pode involver no dinamismo linear
esta última substância componente também será retomada na da energia e aprisionar-se no dinamismo fechado da matéria.
corrente positiva do ―eu sou‖. É desta maneira que os anti- Então, o que se contrai nas demolições do espaço não é o volu-
sistemas que quiserem persistir como tais são submetidos a um me ou a matéria, mas sim a construção criada por esta ideia abs-
processo progressivo de achatamento até à sua destruição, en- trata e nela projetada. O que se contrai não é apenas o movimen-
quanto a substância que os compõe, sendo indestrutível, vem a to constitutivo da forma, mas o seu princípio abstrato diretivo, o
ser utilizada em favor do sistema Uno-Deus, pois que a des- pensamento que a isso preside. Como se vê, caímos em uma
truição é da individualidade (eu), e não da substância. terminologia que soa demasiado estranho à nossa mente habitu-
Essa é a técnica que garante a destruição do mal e a vitória ada a outras medidas e a outros conceitos. Estamos frente ao
final e absoluta do bem. inimaginável e inexprimível, isto é, à progressiva demolição do
◘◘◘ espaço por demolição do conceito diretivo do fenômeno espaço,
Para tornar compreensível um fenômeno substancialmente como se a fórmula matemática que o rege fosse gradativamente
abstrato, que abrange todas as formas do ser, do puro espírito à perdendo os seus elementos constitutivos, simplificando-se cada
matéria, recorremos a representações geométricas, que nos fa- vez mais, desprovida de seus componentes, até transformar-se
cultaram a possibilidade de formar uma imagem de tudo. Mas em ‗0‘. O zero seria o nada conceptual e matemático, o momen-
já é tempo de nos darmos conta de que elas não constituem a to final e conclusivo na anulação do desmoronamento do siste-
realidade, não passando de uma representação nossa. Cabe, en- ma sinistrogiro. Uma representação mais concreta do fenômeno
tão, indagar qual é a verdadeira fisionomia do fenômeno da é impossível. Esta é, talvez, uma prova em favor da tese aqui
destruição do edifício do ser, assim como a do fenômeno in- sustentada, pois nos diz que estamos absolutamente fora do an-
verso, de sua reconstrução. Será essa abstração facultada ao tropomorfismo, a que tudo tendemos reduzir para nossa como-
homem, de modo a fazê-lo apreciar o fenômeno em sua subs- didade de concepção. Na realidade, é lógico que as visões do
tância? Que haverá de verdadeiramente real por trás da repre- universo serão tanto mais verídicas quanto menos sejam antro-
sentação que dele demos? pomorficamente imagináveis. Assim deve ser para a demolição
Para sermos mais compreensíveis, tivemos de encarar o do espaço, visto que ela não ocorre na fase em que vive o nosso
Todo no seu aspecto cinético. Deste ponto de vista, o impulso universo e, como realidade inimaginável, está fora do alcance da
() representa um dinamismo livre em todas direções possí- experimentação e observação. Das coisas não podemos conceber
veis; a energia () representa um dinamismo encarcerado na a realidade absoluta, mas só em relação a nós mesmos.
transmissão linear por ondas; a matéria () representa um di- Concluamos. Embora por intermédio de representações de
namismo completamente fechado em trajetórias que retornam valor relativo, podemos formar uma ideia da real estrutura ín-
sobre si mesmas. Na realidade, então, também notamos um tima, funcionamento e transformismo de nosso universo e de
processo de curvatura do Sistema. Nas grandes dimensões, a nossa posição nele. Nós, seres humanos, estamos a meio cami-
energia segue linhas curvas até ao fim, e estas retornam ao nho, suspensos entre o abismo do aniquilamento e o cume da
ponto de partida. Assim, o espaço é curvo, como o é também a perfeição. Sendo livres, vamos para onde quisermos. Natural-
estrutura atômica e planetária. Portanto tudo é curvo, porém mente, vemos o universo consoante a posição que nele ocupa-
não com uma curvatura estática e constante, mas sim em ex- mos. Damos importância ao universo físico porque nele se
pansão e contração, por trajetória espiralóide. Eis a trajetória apoiam nossos pés, mas pouco discernimos o universo espiritu-
típica dos movimentos fenomênicos (vide A Grande Síntese, al, que, se quisermos evolver, representa a nossa vida de ama-
fig. 4, Cap. XXV). Tudo, pois, tende a expandir-se ou a contra- nhã. Mas, agora, em virtude do que dissemos, estamos aptos a
ir-se: esta é a respiração do universo, em dois tempos opostos. ter desta visão o panorama completo do Todo. Vejamo-lo.
E tudo isto confirma e explica a nossa precedente representa- Transpondo os limites da estreita visão focada somente no
ção geométrica. Mas o fenômeno, na sua substância, deve po- universo físico e dinâmico, veremos o Todo como um sistema
der assumir infinitas formas e ser susceptível de infinitas re- bipolar que – repetindo, como tudo o que existe, o esquema má-
presentações. Uma delas, porém, que tenhamos escolhido é su- ximo – pode deslocar-se para um ou outro dos seus polos e só
ficiente para nos fazer compreender o seu andamento e a sua existe realmente enquanto oscila entre os seus dois extremos
fisionomia. Qualquer seja o ponto de vista, trata-se sempre de opostos. O sistema do Todo possui, portanto, dois polos para os
uma inversão para o negativo, que pode manifestar-se como quais tende: um, para atingir a plena existência; outro, para atin-
congelamento ou solidificação cinética, como contração ou gir o aniquilamento. Esses polos podem chamar-se positivo e
curvatura do Sistema, como um aprofundar-se do espírito na negativo: do ser, em Deus; do não-ser, em Satanás. Ao primeiro
matéria, uma destruição da consciência, e assim por diante. se sobe evolutivamente, por . O sistema negativo não é
Certo é, no entanto, que pudemos aqui fundir em unidade to- senão a contraparte do positivo, com o qual forma uma unidade.
dos os fenômenos, desde o moral da queda dos anjos até à pro- Ele é, por sua natureza, destinado à anulação em favor do se-
gressiva demolição do espaço a um ponto; desde o da involução, gundo, que, por sua natureza, está fadado à afirmação e ao triun-
ou criação, até ao da evolução. Ora, o denominador comum en- fo final. O ser poderá oscilar, mas, no fim, deve tomar uma dire-
tre fenômenos para nós tão distantes um do outro, não pode dei- ção e sofrer as consequências da sua livre escolha. Os dois polos
xar de ser um conceito que, para ter valor universal, deve ser de são dois extremos a que tudo deve chegar. Quem sobe segue
natureza extremamente abstrata, além do concebível humano. uma curva que se abre, em expansão, dilatando-se a tal ponto,
Eis realmente o que existe por trás da representação que demos que atinge o infinito em Deus. Quem desce, segue uma curva
ao fenômeno: uma abstração que, para o homem atual, se perde que se fecha em contração e que, restringindo-se sempre, acaba
no superconcebível. A ciência se encontra em condições idênti- no vazio, em Satanás. Quer no positivo, quer no negativo, o Sis-
cas ao definir a substancial e última estrutura do átomo, só nos tema obedece ao mesmo princípio da curvatura cinética. Embora
podendo dar uma equação matemática. a representação geométrica não nos dê a substância do fenôme-
Deste modo, limitando-nos apenas à demolição do espaço no, ela, contudo, no-lo torna tão claramente imaginável, que po-
(volume) até ao ponto, o conceito de progressivo achatamento demos dele fazer um esquema gráfico. Devemos ao princípio
de dimensões é puramente representativo. Certamente é mais fá- das analogias e ao dos esquemas em tipo único a possibilidade
cil de imaginar, com a nossa psicologia concreta e sensória, um de reproduzir em nosso plano, ou seja, em nosso imaginável,
184 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
uma estrutura universal que, de outra forma, estando fora desta Como já foi dito em A Grande Síntese e pouco acima, em
idealização, na zona do inconcebível, seria para nós inacessível. nosso universo () e em nossa fase, que é a evolutiva (vai de
Temos, portanto, uma cinética, de um lado, em abertura e, – a +), os três estados sucessivos da substância S são: ma-
de outro, em convergência sobre si mesma, fechando-se. De um téria=, energia=, espírito=; que, com o simbolismo aqui
lado, o ser se dinamiza, potencia-se e se liberta. Eis o progres- adotado, serão respectivamente:
so, superação de dimensões (a técnica que progressivamente S0, S1, S2.
supera o limite espaço e tempo). Isto está no instinto e constitui
a alegria e o triunfo da vida. De outro lado, esta se contrai, con- O conjunto dos universos 1, 2, 3 etc. forma , que em
gela-se e imobiliza-se. Eis por que os anti-sistemas sinistrogiros símbolo será: =. Naturalmente, tudo isto não diz respeito à
se enfraquecem, por não poder, como negativos que são, usu- parte do Sistema que permaneceu íntegra, a que não desmoro-
fruir da divina irradiação positiva. Eles ficam, então, isolados nou pela revolta e queda dos anjos. Essa parte continuou na sua
no Sistema e imobilizados pela sua curvatura cinética progres- perfeição, sem tomar o caminho do vir-a-ser (transformismo
siva, acabando afinal desgastados pelo atrito contra a corrente, involutivo – evolutivo).
anulados e reduzidos ao ponto, não-dimensão. Assim consoli- Ora, pelo princípio de liberdade já admitido, que aqui é de
da-se a fratura e se dá a reabsorção do dualismo do Uno – triun- liberdade de movimento no transformismo em um instante
fo final do Sistema sobre o Anti-Sistema. Eis a visão completa genérico, encontraremos em todos os estados possíveis des-
do universo uno, regido por um princípio único, que se inverteu de S– até S+. Mas entre eles haverá a seguinte diferença: na
em consequência da revolta da criatura, mas apenas para endi- 1a fase, descida involutiva, os estados da substância se trans-
reitar-se de novo; que se despedaçou, mas somente para reuni- formam segundo a lei supradita de S+ para S–; na 2a fase, de
ficar-se ou, onde o ser não quiser a existência, anular-se. ascensão evolutiva, os estados da substância se transformam
Desta forma, foi enquadrada e ampliada a concepção de A de S– para S+.
Grande Síntese, ficando completa a visão do Todo. Vimos que, em termos de dinâmica, a revolta consistiu em
◘◘◘ introduzir no sistema de forças originário dextrogiro (positivo)
Vamos agora retomar em síntese os conceitos até aqui ex- um vórtice de forças sinistrogiras (negativas), funcionando
postos, exprimindo-nos não com símbolos, mas com fórmulas como Anti-Sistema, menor no Sistema. Então, na 1 a metade do
matemáticas. Podemos, assim, contemplar de uma só vez toda a ciclo (fase involutiva, de desmoronamento) atua e domina o
visão da existência, do princípio ao fim. elemento negativo, tendente ao estado – (caos, plena realiza-
Todo o processo involutivo-evolutivo poderia ser represen- ção do Anti-Sistema), o que quer dizer que é este Anti-
tado por um círculo, cuja metade direita exprime o período ou Sistema, constituído de vórtices sinistrogiros, que desgasta em
fase de ida em descida ou desmoronamento do Sistema, e cuja seu favor o sistema dextrogiro de forças, enriquecendo-se com
metade esquerda exprime o período ou fase de retorno em as- esse desgaste. Atingido no ciclo, porém, o ponto crítico de sa-
censão ou reconstrução do Sistema. Neste, que é o ciclo do turação no negativo, o processo inverte-se. Na segunda meta-
transformismo, o ponto de partida e o de chegada coincidem. de, é ativo e domina o elemento positivo, oposto, tendente ao
Esse é o polo positivo do Sistema, do qual se parte e ao qual se estado + (ordem, realização plena do Sistema), o que signifi-
retorna, atravessando os seus antípodas no polo negativo. ca que é o sistema dextrogiro que desgasta em seu proveito o
Nas gravuras 1, 2, 3 etc. de A Grande Síntese, só foi anali- anti-sistema sinistrogiro, enriquecendo com o desgaste deste. E
sada particularmente a segunda metade do ciclo, a evolutiva, assim, após haver atingido no ciclo o ponto crítico de satura-
que vai de – para +, aquela que agora estamos vivendo, ten- ção no negativo, agora se alcança o correspondente no positi-
do sido deixado de parte o estudo da sua primeira metade, a in- vo, ponto que, como vimos, coincide com o de partida, mercê
volutiva, que vai de + para –. Mas o semiciclo evolutivo é do que, o sistema desmoronado acaba, finalmente, por encon-
composto de várias criações ou universos 1, 2, 3 etc., ex- trar-se em um estado em que tudo está perfeitamente refeito e
primindo-se por o seu conjunto ordenado ou organismo de reconstruído. É natural que as duas fases de desgaste e pro-
universos (cfr. Cap. XXIII de A Grande Síntese e suas figuras). gressão devam ser inversas e complementares, como as duas
Tendo presentes as referidas figuras e conceitos, procuremos metades que se equilibram e compensam em um sistema único,
desenvolvê-los com formulação matemática. Indicando por S a dividido em dois períodos equivalentes, um de ida e outro de
substância e com o índice numérico colocado abaixo o estado retorno. Isto corresponde também a uma necessidade lógica e,
em que ela se encontra, substituamos os símbolos usados em A além de tudo resolver, satisfaz a razão.
Grande Síntese pelos seguintes: Todo o processo se reduz a uma elaboração íntima de , que
do estado de + transforma-se, pelo desmoronamento, até che-
–y=S-2 ; –x=S-1 ; =S0 ; =S1 ; =S2 ; +x=S3 ; +y=S4 ; etc. gar ao estado de – e supera este, autorreconstruindo-se, até re-
Então o processo involutivo no tempo (tempo que já defini- tornar ao estado originário +. E sabemos que + significa o
mos como ritmo do vir-a-ser ou do transformismo fenomêni- estado orgânico de perfeição, de ordem, da criação originária,
co), para um elemento isolado, poderá ser representado assim em que Deus, o bem a felicidade e o amor triunfam; como tam-
(deve-se ler a expressão da direita para a esquerda, apresentada bém sabemos que – expressa o estado de desorganização, de
desta forma para melhor compará-la com as semelhantes das imperfeição máxima, de caos do universo desmoronado, em que
linhas seguintes): Satanás, o mal, a dor e o ódio triunfam. Assim como a criação
de origem foi uma construção orgânica feita por Deus em Seu
S– ... S–2 S–1 S0 S–1 S0 S1 S0 S1 S2 seio (o Todo no Todo), também essa elaboração do desmorona-
S1 S2 S3 S2 S3 S4 ... S+ mento e reconstrução, indo da ordem ao caos e do caos à ordem,
Esta expressão significa que o elemento substância se trans- ocorre sempre no seio de Deus (o Todo no Todo), ou seja, está
forma do estado de máxima evolução (S+) no de máxima invo- compreendida no âmbito da circunferência que fecha o ciclo de
lução (S- ). ida e volta. Em outros termos, é sempre a mesma substância do
De outro lado, o processo evolutivo poderá ser representado Todo-Deus que assume, nos vários estados de , nosso univer-
assim: so, as formas de , , , aparecendo-nos em cada um deles essa
substância segundo o seu estado de transformismo.
S– ... S–2 S–1 S0 S–1 S0 S1 S0 S1 S2
É assim, pois, que todo o processo se executa, aumentan-
S1 S2 S3 S2 S3 S4 ... S+
do sempre no semiciclo involutivo a transformação de S+
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 185
para S– e, no semiciclo evolutivo, a transformação de S – IX. CONFIRMAÇÕES EM NOSSO MUNDO
para S+. Deste modo, ao término do semiciclo involutivo, a
substância de terá assumido totalmente o estado S –; e, ao ―Portae inferi non preavalebunt‖ 5. Justo. Mas por que? Só
término do semiciclo evolutivo, a substância de terá assu- agora podemos compreender as razões. A concepção dualística
mido totalmente o estado de S+ (ordem). acima exposta nos revela que, ao lado das forças boas do Sis-
Analisando então nos instantes extremos (máximo e mí- tema, existem as satânicas do Anti-Sistema, que procuram in-
nimo) do ciclo e em um instante genérico situado tanto no se- verter todo o Sistema, para arrastá-lo igualmente na própria fa-
miciclo da sua involução como também no semiciclo da sua tal destruição. Mas em vão! A estrutura do Todo nos diz que o
evolução, que são representados com os símbolos: mal está irremediavelmente condenado em virtude da própria
(tp) = instante inicial (princípio) do ciclo de delta; posição por ele assumida no Sistema e pela própria natureza
(tgi) = instante genérico do semiciclo involutivo de delta; deste. O seu reino é periférico, está na forma. Ele pode encar-
(t max i) = instante máximo final do semiciclo involutivo niçar-se contra os efeitos, mas as causas primeiras estão além
e inicial do semiciclo evolutivo de delta; do seu assalto. Não ele, mas somente Deus detém o timão da
(tge) = instante genérico do semiciclo evolutivo de delta; grande nave do universo.
(t max e) = instante máximo final do semiciclo evolutivo e Na estratosfera do pensamento está, pois, a grande paz das
final também de todo o ciclo delta, instante em que tudo re- coisas eternas. Ali, Satanás não chega, e tanto mais lhe fugire-
torna ao estado inicial de perfeição; mos quanto mais subirmos. Mesmo no reino da matéria, a sua
vitória está encerrada no tempo. A eternidade supera e vence o
teremos os estados da substância de nos vários instantes da- tempo. Mas, por ora, a Terra é um dos seus reinos. O nosso
dos por: mundo faz parte do universo desmoronado, e, por este motivo,
(tp) = S+; isto é, toda a substância se encontra no estado a vida se desenvolve aqui em uma atmosfera de revolta, de mal
S+; e dor. Aqui, as forças satânicas podem manifestar-se, isto é,
(tgi) = S+ ... S4 S3 S2 S3 S2 S1 S2 agir em sentido sinistrogiro, e, por isso, as vemos exprimirem-
S1 S0 S1 S0 S–1 S–2 ...S–; isto é, em um ins- se na pulverização de tudo no relativo. Dividir a unidade, fraci-
tante genérico de involução da substância, encontramos oná-la cada vez mais, até à sua destruição, este é o impulso de
contemporaneamente todos os seus estados, que se trans- Satanás, com objetivo de demolir o sistema dextrogiro, unifica-
formam em S-; dor, retificador, tendente à plenitude da vida. Eis porque na
(t max i) = S–; isto é, toda a substância do sistema des- Terra se eleva a barreira do limite a cada passo, sufocando a
moronado encontra-se no estado S–; alma anelante de infinito, de que nasceu e de que é feita. Eis o
(tge) = S– ... S–2 S–1 S0 S–1 S0 S1 S0 espaço dividido, que nos torna rivais. E o espaço em si mesmo
S1 S2 S1 S2 S3 S2 S3 S4 ...S+; ou se- não tem limites! Eis o tempo seccionador, reduzido a medida de
ja, em um instante genérico de evolução da substância, en- esforço e de ganho (―tempo é dinheiro!‖) e o temor de que nos
contramos contemporaneamente todos os seus estados, que falte tudo. E o nosso espírito é feito para a eternidade! Eis a luta
se transformam em S+; pela riqueza e o anseio infinito da alma ligada às efêmeras ale-
(t max e) = S+; isto é, toda a substância do sistema des- grias de um corpo caduco, quando riqueza e alegria são infini-
moronado exauriu o seu ciclo, atingindo o estado final S+, tas em Deus! Eis a um passo, ao alcance da mão, uma abundân-
para refundir-se, porque se tornou idêntica à parte do Sis- cia sem par, mas ser dela separado pela incapacidade de con-
tema que, não se tendo revoltado, não desmoronou. Em ou- quistá-la! Deus aí está e nos aguarda, no entanto não sabemos
tros termos, a conclusão de todo o processo, o resultado fi- alcançá-Lo por preguiça, ignorância e incapacidade de compre-
nal, é que toda a substância que se corrompera se restabele- ender! Que barreira tremenda é a nossa involução!
ceu, do estado S- para o estado S+. Isto significa o triunfo Estamos no reino da subversão dos valores. Tudo de calmo,
final do bem sobre o mal, de Deus sobre Satanás, com a eterno e estável faz-se agitado, fracionado, incerto. Tudo se torna
anulação do aspecto negativo e a afirmação absoluta do as- calculado, pensado, pesado, medido, disputado. Assim nascem a
pecto positivo da substância. miséria e a dor. Aí está o império do contingente, o afã de subdi-
Em termos matemáticos, todo o processo pode ser represen- vidir a atenção em particularidades, na análise sem fim do relati-
tado pelas duas expressões limites: vo. Eis o vórtice da civilização moderna, que, com espírito satâ-
nico, porfia por triturar o espírito entre as engrenagens de suas
máquinas; que, com a miragem de umas tantas vantagens materi-
Lim = S– ais, destrói a maior riqueza da alma, que é a bondade. Vive-se,
assim, sob o terror de que falte tudo, quando tudo é infinito.
t max i
Se fôssemos capazes de compreender que somos criaturas
de Deus, isto é, filhos do Pai Supremo, que o universo é cons-
truído para a nossa vida, primeira necessidade, e que esta é, por
consequência, sumamente protegida por nosso Criador, que nos
Lim = S+ ama, não haveria razão para tantas e inúteis aflições.
t max e É o Uno íntegro que aterroriza Satanás, que, não conseguin-
do destruí-lo, procura demoli-lo, subdividindo-o o mais que
pode. Percebe-se nisto uma íntima vontade de pulverização, pa-
A primeira nos representa o universo no polo Satanás, po- ra chegar à destruição. Fragmentar, triturar, dividir e atirar um
dendo ser chamada a fórmula do desmoronamento, que o pro- 5
cesso apenas atravessa. A segunda nos representa o universo no A frase foi extraída da VULGATA: ―Portae inferi non preavalebunt
polo Deus, podendo ser chamada a fórmula resolutiva do uni- adversus eam‖; ―As portas inferiores (do Inferno, do Hades) não preva-
lecerão contra ela‖, isto é, as forças inferiores, infernais não vencerão as
verso, momento em que o processo, que teve um início, terá um do bem. Ela faz parte do contexto evangélico de Mateus, 15:20, quando
fim, reintegrando-se tudo no estado perfeito de origem. Assim, Jesus Cristo se dirigiu a Simão Pedro, em misteriosa e solene revelação,
o princípio e o fim se reúnem em um ciclo que se fecha sobre si dando-lhe ciência de sua futura missão na terra. Aqui, Pietro Ubaldi atu-
mesmo, e o Todo, o infinito, Deus, permanece o que sempre foi aliza o conteúdo dessa remota revelação, reafirmando que as forças do
e será, e simplesmente ―é‖. bem jamais serão vencidas pelo mal. (N. do T.)
186 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
contra o outro, a dissensão, a contradição, a ânsia, o tormento, a pelo mal e a perfeição está no caos. A grande luta em nossa fa-
guerra, tal é o ideal subvertido de Satanás. se se trava entre os dois princípios e hierarquias, pela recons-
Se descermos das grandes visões sintéticas para a realidade trução do estado originário orgânico, partindo do estado inor-
quotidiana de nosso mundo, veremos que elas também são verí- gânico caótico, em que caímos e do qual evolvemos.
dicas aí, onde as teorias acima expostas encontrarão contínuas Por este motivo, as nossas hierarquias humanas são falsas e
confirmações. Nem mesmo se pode mesmo explicar e compre- fictícias, não correspondendo aos valores intrínsecos, pois, ge-
ender a nossa realidade a não ser em função delas. Por que, por ralmente, elas expressam mais a anti-hierarquia do Anti-
exemplo, o homem é tanto mais destruidor quanto mais involuí- Sistema do que a hierarquia do Sistema.
do? De onde deriva o instinto vandálico dos primitivos? É que Mas, também em outros campos, a evolução procede do ca-
quanto mais involuído o indivíduo, tanto mais próximo está do os à ordem. No plano social, o legislador humano repete o gesto
pólo negativo do ser e tanto mais afastado do positivo. Quanto de Deus, que enquadra a Sua criação na Lei. Legislador a prin-
mais for involuído, tanto mais na periferia do Sistema se encon- cipio armado de sanções ferozes e do terror das penas, para de-
tra o ser, tanto mais distante do centro genético de Deus, tanto pois apoiar-se, cada vez mais, na convicção, na consciência da
mais invertido no sistema oposto, de destruição. Assim pode-se utilidade de seguir a lei. Assim avança-se para a livre e espon-
compreender como era fatal que Cristo encontrasse o martírio na tânea observância, que substitui a coação. Quanto mais o indi-
Terra. Que mais pode encontrar aí quem, provindo do centro, se víduo é capaz de compreender, tanto menos severa se torna a
lança para a periferia, reino do Anti-Sistema? Aqui, a manifesta- disciplina, transformando-se sempre o legislador mais em ami-
ção do ser é a agressão e a destruição. Elas tiveram de defrontar- go que ajuda do que em um opressor. Assim também a ideia de
se com o amor de Cristo, que, com o amor, deveria vencê-las. Deus legislador abranda-se nesse sentido, com o progresso da
Que o princípio da destruição seja próprio da periferia do consciência dos povos. Desta forma compreende-se como o ter-
Sistema e o princípio genético seja próprio do centro, prova-o ror de um inferno feroz e eterno – ainda que, em Deus, essa
também o fato de que as formas da vida, para sobreviver, têm ideia ofenda o princípio fundamental do amor – tenha sido e se-
que, continuamente, travar luta, resistir a assaltos, suportar um ja uma necessidade psicológica para disciplinar o involuído.
ambiente hostil, em que se faz sentir uma ação destruidora em A visão do Sistema acima exposta explica-nos também um
seu exterior, enquanto, de seu interior, onde reside o princípio outro fato, ao qual já acenamos no Cap. III – ―Egocentrismo‖.
genético, que todo ser possui no íntimo, elas recebem continu- Por que o método do mal é oferecer primeiro a alegria e depois
amente recurso de reconstrução (defesas orgânicas, reparação afogá-la na traição da dor, enquanto o do bem, ao contrário, é
de tecidos etc.). A vida se manifesta, efetivamente, do interior exigir primeiro o esforço, para em seguida dar a justa e propor-
para o exterior: esta é a direção do fenômeno. Este se nos apre- cional recompensa? Tudo agora se torna lógico, pois se trata de
senta como uma floração contínua, por obra de um influxo posições opostas, nos dois polos contrários do Sistema. Os mé-
emanado de um imponderável no íntimo do ser, que faz pressão todos, efetivamente, são de oposição entre si. O primeiro con-
para manifestar-se no plano físico. Uma vez neste, fica sujeito a siste em sacar o gozo a crédito, sem a intenção de pagar; méto-
contínuos atritos e assaltos (sistema sinistrogiro), num desgaste do desequilibrado, desonesto, irresponsável, adaptado à consci-
lento até à morte, mas, sustentado por um íntimo impulso vital ência do involuído, que, em sua ignorância, é levado a fraudar,
(sistema dextrogiro), luta pela sobrevivência e prepara ao mes- pois crê ser isto possível e útil. O segundo antepõe o esforço à
mo tempo, com a reprodução, a imortalidade. alegria, a fim de que tudo seja merecido; método equilibrado,
Por tudo isso, a fadiga e a luta de viver são necessárias, por- honesto, de quem se sente responsável; método consentâneo
que da experiência nasce a evolução, que leva o ser a nível su- com a consciência do evoluído, levado, por haver compreendi-
perior. Encontramo-nos no ponto de atrito (dor) entre os dois do, a proceder com justiça, certo de que só isto é útil e que o
sistemas, devendo ser nosso o trabalho de reconstrução com o contrário é nocivo. No primeiro caso, gera-se a confusão tanto
desgaste do sistema sinistrogiro (o mal) em favor do sistema para o indivíduo como para o Sistema; no segundo, a sincerida-
dextrogiro (o bem). Devemos restaurá-lo, porque nós o destru- de está em toda parte. Cada qual coloca-se em um dado ponto
ímos. E a justiça de nosso domínio sobre os seres inferiores se do Sistema, segundo a própria natureza. Se for involuído, per-
explica pelo fato de que, com o nosso esforço, mais temos manece na periferia, com um tratamento relativo ao seu nível;
avançado no caminho da reconstrução. se for evoluído, ascende ao centro, com resultados opostos. O
Este árduo trabalho não pode ser executado pelo espírito Sistema subverte-se tanto mais quanto mais periférico for o ser.
senão nas zonas periféricas da destruição, onde a matéria ofe- Avizinhando-nos do polo negativo do ser, a livre lei moral
rece mais resistência e o ambiente é mais hostil. Ele, aí, tem do evoluído involve de tal maneira, que se precipita no deter-
que se submeter ao sacrifício e à dor, para promover a evolu- minismo da matéria. Já no fim do Cap. V, dissemos que Dante
ção, isto é, aquela elaboração para a qual as zonas mais calmas colocou Satanás no fundo do inferno, no centro da Terra. Aqui,
do centro não poderiam oferecer nem a oportunidade nem o a condensação física é máxima, como o é a pressão gravífica,
material. Mas outra razão ainda existe para isso. A queda foi ao passo que o purgatório se eleva no sentido oposto, utilizan-
no estado de matéria, e o ser deve ressurgir dela, através dela, do, como na técnica reconstrutiva do Sistema, o material pro-
carregando-a consigo, como seu corpo. A carga só poderá ali- duzido pela ação do mal, para caminhar rumo ao céu, ao bem,
viar-se pela sua purificação e reespiritualização, operada pela espiritualizando-se, à medida que se distancia da matéria. As-
dor. Decaído na matéria, ele deve reerguer esta parte decaída sim, também na concepção de Dante, o abismamento de Lúci-
de si mesmo, reconduzindo-a, com o próprio esforço, ao primi- fer é um meio para a formação do purgatório, instrumento do
tivo estado de pureza e perfeição espiritual. Por este motivo, a bem, meio de expiação. Desta forma, o mal, em última análise,
evolução do ser se processa na matéria. Por mais afastada que torna-se um meio utilizado para a libertação do próprio mal.
seja, essa projeção na periferia tende e serve para elevar o ser Os produtos da ação do mal, que escavou o abismo na Terra,
até ao centro. O Sistema, contra todas as resistências do Anti- servem para a edificação de um monte fora dela, no qual se
Sistema, é sempre construtivo. prepara a realização dos fins do bem.
Essa evolução procede do caos para a ordem, em todos os Se soubéssemos ver em profundidade, poderíamos bem dar-
planos. A primeira criação de espíritos foi um estado orgânico nos conta deste fato, que se repete em tantos eventos de nossa
perfeito, onde reinava uma ordem hierárquica. O desmorona- vida, pelo qual o mal acaba por gerar o bem.
mento convulsionou essa ordem em uma hierarquia subvertida, Os nossos juízos sobre a ação divina se detém na superfície
uma anti-hierarquia do Anti-Sistema, contraposta à hierarquia e se limitam ao momento, mas ainda assim pretendemos com
do Sistema. Na anti-hierarquia, o deus é Satanás, o bem é dado eles concluir a respeito de problemas que desconhecemos. Fre-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 187
quentemente, não se pode conseguir algumas construções a não Que sucede, podemos agora indagar, quando um homem
ser por reação ao mal, que é o impulso a que o involuído mais pratica o mal? A técnica do Sistema, como acima foi observa-
obedece. Então, a força mobilizada não pode ser o bem, mas do, diz-nos que ele, na sua ignorância, crendo praticá-lo em
apenas o mal. Por isso, as guerras, que parecem tão inúteis e seu favor, na realidade opera em seu detrimento. Praticar o mal
homicidas, são muitas vezes úteis para determinar entre inimi- significa dispor-se a marchar contra a corrente do Sistema, in-
gos, que de outra forma se odiariam, a necessidade de coalizão troduzir-se na corrente inversa, isto é, enveredar pela via da
com o objetivo de defesa comum, levando-os à unificação, uma autodestruição. A vantagem imediata poderá dar-nos a ilusão
das grandes vias evolutivas que nos conduzem a Deus. de vitória, mas é necessário ver o que se paga por ela, o que ela
A sabedoria da Lei se revela com frequência ao excitar as nos vem custar em nossa ruína espiritual, isto é, em demolição
nossas possibilidades latentes, para que o bem, que está dentro de nosso ―eu‖. Isto significa inverter todos os valores da vida,
de nós, possa aflorar pelo nosso esforço. Por isso os assaltos ex- significa ser expulso e isolado do Sistema e assumir nele, uma
teriores do mal e da dor agem sobre todos indiscriminadamente. vez que dele não se pode sair, porque ele é o Todo – nem
O efeito é que difere, dependendo sobretudo da reação que a na- mesmo Satanás o conseguiu – uma posição inversa, em que a
tureza de cada qual estabelece. Se o indivíduo for um involuído, riqueza se transmuda em miséria, o conhecimento em ignorân-
tudo para ele pode tornar-se instrumento de perdição; ao contrá- cia, a liberdade em escravidão, a alegria em dor etc. E, efeti-
rio, se for evoluído, tudo se lhe transforma em meio de elevação. vamente, os triunfos do mal são efêmeros, ainda que as apa-
O primeiro, vendo-se acuado pelo mal, reage com o mal, des- rências momentâneas nos iludam. Não nos estagnamos no pre-
cendo mais ainda. O segundo reage com o bem, elevando-se. A sente. A vida eterna é longa, e em sua extensão tudo se paga.
mesma força pode, assim, produzir dois efeitos opostos, con- Quem entra na corrente sinistrogira, por mais que seja o seu
forme o ser com que colide, mas, em qualquer caso, põe a des- poder como centro autônomo, está sempre em uma corrente
coberto a natureza do indivíduo. Isto significa tendência a refor- que tem contra si todo o universo. Nem mesmo Satanás, o má-
çar-lhe as qualidades, sejam quais forem elas, para assim resol- ximo rebelde, pode vencer Deus.
ver o dualismo da existência, quer para o bem, volvendo a Deus, Vitórias encerradas no tempo, maculadas de traição e pres-
quer para o mal, onde o ser se anula longe de Deus. Isto nos evi- tes a ruir, porque fazem parte do sistema da revolta e do desmo-
dencia que a fratura dualista do Sistema tende verdadeiramente a ronamento. ―Portae inferi non preavalebunt‖. Quem pratica o
consolidar-se, fundindo-se no Uno originário, que se reconstitui mal isola-se no Todo e é envolvido pelo Sistema para corrigir-
integralmente na sua primeira unidade. É verdade que o Sistema
se ou combatido para ser anulado, qual tumor patológico. Qual-
fracionou-se, mas em seu seio permanece a imanência da causa
quer que seja a vantagem aparentemente obtida, a posição que
primeira que o gerou, que representa um impulso permanente-
dela resulta é um grande malefício para o ser que a escolhe. Eis
mente ativo na sua reconstituição integral.
como o mundo moderno, por não haver compreendido nada da
É assim que tudo, inclusive as forças negativas, é compelido
estrutura do universo, está laborando em próprio dano. E terá
pelo Sistema a cooperar na reconstrução positiva. Qual maior
de pagar por si mesmo, como é lógico no Sistema. Ainda não
prova do que esta apenas aparente corrupção do Sistema, esta
aprendemos a compreender que toda infração da Lei é uma
sua permanente integridade substancial? Se, em seu aspecto ex-
subversão parcial do Sistema, que toda culpa que se repete es-
terior, o nosso universo parece degradado, na sua estrutura ín-
tabelece a inversão das correntes das forças do bem nas do mal,
tima ele é, contudo, são e poderoso, equilibrado e sábio, incor-
em nosso prejuízo. Não conseguimos ainda entender que assim
rupto e perfeito, mesmo que os seus elementos negativos pare-
çam funcionar como resistência. Estes, em última análise, agem nos ligamos cada vez mais à dor, colocando-nos em uma posi-
como elementos positivos, colaborando à sua maneira, com sua ção revirada, de que não é possível sair senão endireitando-a
natureza invertida, efetivamente para o restabelecimento e com o próprio esforço. Explicam-se assim tantos destinos car-
triunfo do Sistema. Eis a que função criadora está votado um regados de impulsos negativos, que não podem parar de nos
erro que poderia se nos afigurar irreparável! A íntima e divina atormentar enquanto não forem completamente exauridos.
potência criadora não se extingue e tudo sabe criar de novo! O conhecimento da estrutura do Sistema e de nossa posi-
Neste sentido, dizemos que, em nosso universo, a criação é ção nele, explica-nos o porquê da forma que assume em nosso
contínua, isto é, Deus, no Seu aspecto imanente, está permanen- mundo humano esse fator fundamental que é o amor. É natural
temente em atividade na obra da sua reconstrução. que, em um sistema corrompido, tudo ofereça o seu contraste
Que maior maravilha do que um sistema invertido no exte- em mal e dor. Do eterno e divino amor, ao qual se deve a gêne-
rior, na forma, mas que possui em seu âmago uma alma, repre- se de todas as coisas, só ficou, no grande naufrágio do ser, uma
sentada por Deus e por Suas criaturas obedientes, capaz de en- pobre caricatura dele aqui na periferia, onde nos encontramos.
direitá-lo e restabelecê-lo, fazendo de uma ordem decaída no O seu produto tornou-se caduco; a vida que ele gera não é a vi-
caos um caos que se reconstitui na ordem de um sistema orgâ- da eterna criada por Deus, mas uma vida fragmentada, sempre
nico? Haverá algo mais extraordinário do que, num universo ameaçada de precipitar-se na morte – a vida do corpo, a vida na
em que tudo está fragmentado e degradado, fazer dos escom- carne. Do amor humano, que é uma corrupção, uma derivação
bros um excelente material de construção e erguer das ruínas involuída do amor-divino, só pode emanar uma gênese imper-
um esplêndido edifício? O bem é tão central e forte no Sistema, feita, continuamente contrastada pelo mal e pela dor. Mas não
que será sempre o senhor. E o pobre mal rebelde, acreditando- nos esqueçamos de que no interior da forma remanesceu no ser
se vitorioso, é reduzido a banca de prova na oficina do bem. a originária centelha da gênese divina, o espírito ―que não nas-
Outra alternativa não lhe resta senão anular-se espontaneamen- ceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do
te, reconhecendo-se errado, para aderir ao bem, ou então con- homem, mas sim de Deus‖ (João: 1–13). O amor, quanto mais
sumir-se até a anulação, cedendo toda a substância de que se evolve da matéria e sabe subir da forma corruptível ao espírito,
constitui ao seu inimigo, o bem. A rivalidade só colima um ob- tanto mais se avizinha da incorruptibilidade originária. Somente
jetivo: a pacificação. É assim que o erro da criatura é honesta- os produtos do amor feitos mais de alma do que de corpo po-
mente guiado para a sua automática superação. A criação des- dem resistir à destruição que o ser encontra na periferia, por se-
moronou nas trevas, mas em sua profundeza permaneceu muita rem o resultado de um processo genético menos periférico, qual
luz. O espírito caiu no mal, mas em sua intimidade ficou o bem. a carne, e mais central, qual é o espírito, mais próximo de Deus.
Satanás desviou de Deus muitas almas, mas, no interior delas, Só o amor feito de alma pode sobreviver à morte do corpo.
Deus continua vivo, impulsionando-as para reconduzi-las a Ele. A própria forma que o amor assumiu na criatura nos fala de
◘◘◘ um universo desmoronado. Com a queda tudo se desmoronou,
188 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
inclusive o amor. O indivíduo é, assim, incompleto, uma meta- Nessa zona do ser, o amor também assumiu a cor dominan-
de. O ser completo forma-se de dois sexos, as duas metades que, te. Como se vê, há uma razão profunda pela qual o parto deva
reunindo-se, reconstituem a unidade cindida. Sozinho, o eu deve ser doloroso, mas não de ordem apenas fisiológica. É que a
sentir-se mutilado e perenemente à procura do termo oposto, gênese criadora não somente tem que dar ao ser uma vida fra-
somente com o qual pode completar-se, voltando a ser uno. Só gmentaria, mas também cumprir-se em posição negativa de
assim se pode chegar à recomposição da unidade partida, atin- dor, isto é, às avessas da originária em Deus, em que a gênese
gindo-se, através do amor, a gênese criadora. Quanto mais peri- é alegria. E o pouco de prazer que ficou no amor sexual não
férico o ser, tanto mais separatista e, portanto, mais egoísta no passa de uma ruína, de um fragmento, de uma antecipação da
amor, que assim é sempre menos amor. Quanto mais central for originária felicidade de criar em Deus. A alegria vem antes, e a
o ser, tanto mais é unificador e, portanto, mais altruísta no amor, dor depois, por isso mesmo que continua a repetir-se aqui o
que assim é sempre mais amor. O amor é o centro do universo! motivo originário da inversão, em que a divina alegria de criar
O amor evolve do egoísmo para o altruísmo, em vastidão, foi substituída pela dor da queda. A dor é ulterior, como uma
profundidade, potência e prazer. Ele deve tornar-se cada vez traição, tal qual se deu com a revolta, segundo já vimos ser a
mais semelhante ao amor de Deus e, quanto mais se lhe apro- regra na periferia, reino da ilusão, onde o mal nos embala pri-
xima, tanto maior o seu poder criador. O amor egoísta, pelo go- meiro com a miragem do prazer, para depois nos abandonar
zo próprio, que o caracteriza, é um amor separatista, é a contra- em um corpo que, apesar de mantido unicamente por este últi-
dição de si mesmo, é um amor degradado, encerrado em si pró- mo raio da divina emanação, corrompe-se e não resiste. O nos-
prio, em um mar de ódios, um amor que, distanciado de Deus, so mundo, tão ávido de prazeres, mas ignorante na arte de sa-
cresce em poder destruidor e involve para a autodestruição. ber buscá-los, não imagina absolutamente que o místico, em
Quanto mais a criatura inverter o modelo que deve imitar, tanto seus amores espirituais para com Deus e Suas criaturas, é o
mais ela se põe fora da Lei. Esta, então, se houve abuso do pra- mais sábio e o menos iludido entre os gozadores.
zer, contrai-se e nega o amor, que então fica fragmentado, tor- Eis a grande condenação do ser decaído: só poder partici-
nando-se o outro termo inacessível. Nascem, assim, em ambos par da divina alegria de criar através da dor. ―Crescei e multi-
os sexos, os invertidos, cuja personalidade tem os sinais opos- plicai-vos‖, porém não para gozar, como crê o mundo, mas sim
tos aos do seu corpo. Deste modo a Lei se revolta contra eles, para atravessar a dor e, assim, percorrer o duro caminho da as-
como eles se revoltaram contra a Lei. censão. Cresça e se desenvolva a vida! Esta foi a lei que ficou,
Qualquer violação, seja qual for o gênero, nos coloca em mas triturada na dor! Sede falanges, atados à roda da vida e da
posição inversa, condenados à carência correspondente ao morte, e que o ser aceite o prazer sexual, que o convida a su-
abuso. O ser se deforma, não a Lei. Ele permanece estropiado portar as agruras restantes! Deus bendiz a união dos sexos,
no patológico, portanto vulnerável. O mal fere aquele que o mas... existe o grande ―mas‖, para que o homem inconsciente
faz, não aqueles para os quais foi feito. Pretender gozar farta e não suponha que, ao casar-se, vai ao encontro de alegrias da
ilicitamente significa privação futura, consequente e proporci- vida, mas sim do sacrifício de evolver e fazer evolver. O ver-
onado sofrimento de recuperação. Impõe-se depois a recons- dadeiro conteúdo do matrimônio é levar o amor a evoluir da
trução na Lei, em que se deu a demolição, reconstrução com a sua forma egoísta, que pede prazer, à altruísta que, em dor e
própria dor, que outra coisa não é senão a originária alegria de tormento, dá por amor não a si, mas aos outros. É desta forma
existir, invertida pelo ser rebelde. A via da desobediência à que o amor se avizinha de Deus, elevando-se do plano animal
Lei é a autodestruição, pois que a Lei é a atmosfera de Deus, à função evolutiva de reconstrução espiritual do ser. Quem cria
sem a qual falta ao ser a respiração da vida. E o homem, por- apenas para o próprio prazer, mergulhará cada vez mais na dor,
que mais evoluído, portanto mais livre que o animal, pode pe- cada vez mais repelido para a periferia do Sistema. Quem usar
car muito mais e, por isso, sofrer mais, porque mais conhece e a inteligência, centelha divina, para fraudar a natureza, acredi-
mais ainda deve aprender a conhecer, tornando-se cada vez tando que espertamente lhe possa furtar prazer, inverter-se-á
mais ativo e responsável na Lei, cada vez mais investido na ainda mais dentro do Sistema, e agora sabemos o que isso sig-
função de piloto da própria nave. nifica. Eis como, do grande movimento da criação acima exa-
A morte e a dor são o tributo de todas as formas periféricas minado, chegamos aos casos da vida que mais de perto nos to-
de vida e, por conseguinte, também da vida terrena. Não existe cam. Vemos, assim, de que longínquas origens cósmicas pro-
outro meio de fugir dessas trajetórias extremas do Sistema, se- vém a lei moral que regula a nossa conduta de cada dia.
não restringindo-lhe as órbitas com o avizinhamento do centro, ◘◘◘
isto é, com a retomada da posição direita. Em nossa zona de vi- Repetimos nestes livros indefinidamente a utilidade da
da, a corrupção do Sistema não permite a afirmação do ―eu dor, único elemento de redenção. Ela é o nosso tributo, tam-
sou‖, que constitui a existência, a não ser pela negação intermi- bém no amor, que é, no entanto, a nossa maior alegria. O ins-
tente desta, que é a morte. Não se pode chegar ao ser senão per- tinto fundamental do ser é criar, eco longínquo do primeiro
correndo o não-ser em etapas inexoravelmente ligadas à própria impulso que Deus imprimiu a todos os seres e que é por eles
inversão, qual se desejou. Mas persiste o ser, que não pode repetido, revoluteando continuamente no mesmo ciclo e es-
morrer, porque é eterna centelha divina. Não pode morrer defi- quema fundamental do universo. Instinto que termina na dor
nitivamente como tal. Contudo, se deve viver, só pode fazê-lo e, no entanto, é irrefreável. Mais não se poderia dizer sobre
de maneira fragmentada, periodicamente submetido ao retorno este impulso que leva à alegria, mas fatalmente conduz ao so-
agoniante da morte e do nascimento. Eis a vida, originariamen- frimento, pois que este é o fundo da taça de todos os prazeres
te una e agora assim despedaçada. Essa precariedade, contudo, humanos. Uma força irresistível nos impele para a vida, com-
é a qualidade que lhe faculta a evolução, como único meio para pele-nos a gerar, mas lhe obedecemos apenas para alimentar a
que, a cada vez, ganhe em perfeição. O dano é assim, ao mes- morte. Não é este o último termo de toda a gênese humana?
mo tempo, remédio. Eis o doloroso ciclo incessante da vida e Esta é uma gênese que se exaure, que se cansa, porque está
da morte, das sucessivas reencarnações, de que só a evolução ruída a originária potência divina que lhe concedia indestruti-
espiritual nos poderá libertar. Na Terra, o princípio do ―eu sou‖ bilidade. Tudo na Terra se desgasta e exige contínua restaura-
(vida) mesclou-se ao do ―eu não sou‖ (morte). A Lei impõe que ção. Iludimo-nos pensando em reviver nos filhos e nos netos,
a unidade fragmentada se deva refazer laboriosamente, através mas o tempo se encarrega de tudo destruir, tanto nós indiví-
da dolorosa operosidade da existência: nascer e morrer, para re- duos como nossa progênie, e tudo se desfaz no pó de todas as
nascer e tornar a morrer. Esta é a lei atual. coisas, até à última recordação.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 189
O ser, aterrorizado em face do sacrifício de viver em uma nosso erro, que se chama culpa. A ideia do pecado nos leva à
existência despedaçada, em que o instinto originário é permanen- concepção de que ele implica uma punição, quase uma vingan-
temente traído, poderia furtar-se à vida. Mas também deste lado ça de um Deus que, com isto, egoisticamente defende a Sua or-
não é possível evasão. Estaria na condição de um faminto que, dem violada e a justiça por Ele representada, defendendo mais a
não podendo saciar-se na copiosa refeição que anseia, recusasse Si próprio do que a criatura. E assim, para nós, explica-se a dor.
uma côdea de pão e preferisse morrer de fome. Uma recusa à Isto, porém, não basta. Agora podemos compreender melhor
própria vida ou a gênese de outras significa distanciar-se ainda que se trata de um remédio que nos cura e de uma escola que
mais do centro e aproximar-se do anticentro negativo, pondo-se a nos instrui. A reação da Lei significa a salutar intervenção de
caminho do aniquilamento. É culposa, por conseguinte, uma cas- Deus imanente a infligir-nos uma dor proporcionada e adequa-
tidade egoísta, cujo escopo é conjurar encargos e enfados, mas é da ao fim, para que, através dela, o Sistema possa reconstruir-se
santa uma castidade física que sacrifica os prazeres do sexo, para precisamente no ponto violado e, assim, o ser possa reentrar no
dar-se à gênese espiritual, em que a criação passará dos corpos caminho da sua salvação. Todos os nossos males não passam,
para a alma, elevando-a para o centro – Deus. Somente nesta pois, de expedientes corretivos para retificar posições erradas,
condição é lícito retirar-se da vida, porque realmente a ela se re- assumidas por nós, e para nos ensinar a viver na ordem divina,
torna em escala ainda maior. Assim um ser pode ter milhares de onde só pode haver felicidade. Assim, em qualquer campo, este
filhos, pois que a renúncia alcançará então uma proliferação cuja impulso divino interior e restaurador nos acompanha para nos
intensidade a natureza desconhece. Desta forma, entramos em curar. A própria moléstia é uma sua reação para curar o nosso
uma trajetória mais vizinha do centro, onde as posições inverti- corpo. E, quando o dano ultrapassou os limites permitidos e, as-
das começam a endireitar-se. Nela, o sacrifício vem antes da ale- sim, a ordem (saúde) não pode mais ser rapidamente restabele-
gria e a gênese produz frutos que não temem a morte, porque eles cida, essa mesma força, que denominamos natureza, resolve
mesmos continuam a gerar indefinidamente no tempo. O homem igualmente o mal, de maneira mais radical, por meio da morte,
que lança uma ideia para o bem do mundo é um pai espiritual de que permite recomeçar a vida sadia de novo.
uma capacidade genética desconhecida no plano material. Desta forma, no campo moral, todo excesso é compensado
Estas são as leis da vida. Violá-las só pode acarretar dano ao por uma proporcionada e específica carência. Mas não basta
violador. A vida é irrefreável impulso divino. O suicida é o mai- dizer que isto é justiça e reconstrução da ordem. É necessário
or negador de Deus, pois quem atenta contra a Lei é assassino dizer também o que mais nos interessa, ou seja, a razão pela
também da própria alma. A vida quer expandir-se para voltar a qual a dor nos flagela, e essa reside na operação do reestabe-
ser o que era – infinita. A vida quer retornar à unidade. A união lecimento de nós mesmos, para nos fazer voltar à ordem, so-
dos sexos tem o seu rito próprio e celebra, ainda que em forma mente onde podemos ser felizes. Com o erro não violamos
profundamente reduzida, a conjunção final na unidade dos dois apenas uma lei que pertence a Deus, mas demolimos a ordem
semicírculos do grande ciclo do ser: o involutivo e o evolutivo, em nós, a ordem que é a nossa felicidade. E Deus não pensa
o momento supremo da reconstrução, o triunfo final da gênese egoisticamente na reconstrução da Sua ordem violada, mas
divina. É assim que os seres, por instinto de unidade, se atraem. sim em nosso bem estar, obrigando-nos, pela dor, a reconstru-
A solidão é terrível. Por isto a vida procura a vida, as multidões ir a ordem e a felicidade.
atraem multidões. A segregação do convívio humano, como no Há uma consequência prática importante de tudo isto. É ve-
cárcere, é punição e dor. Quanto mais involuído for o ser, por- rídico que devemos nascer e viver, como já dissemos, quase
tanto mais fracionado, tanto mais se sente só e mais procura uma sempre para sofrer, porque esta é a escola da necessária recons-
companhia. Quanto mais espiritualizado for ele, por conseguinte trução que nos incumbe. É certo, também, que esta dor não é
mais evoluído, tanto mais sente a vida universal por toda a parte uma vingança, mas sim uma lição, desejada por um Deus bom,
e menos se sente só em qualquer solidão aparente. visando não o Seu interesse, mas sim o nosso bem. De tudo isto
◘◘◘ se depreende que ela deve ser dosada, isto é, diminuir quando
Ao concluir este capítulo, procuremos compreender o superiores às nossas forças, pois a vida, que é sagrada, jamais
grande alcance das consequências práticas a que nos conduz a deve ser ameaçada. Isto porque a dor não é reação cega, puni-
concepção deste volume. Tudo nos demonstra a verdade do ção que esfacela, mas constrição ao esforço que educa e endi-
quanto acima dissemos, isto é, que, apesar do Sistema ter des- reita. Em nossas dores, devemos ter sempre presente que não
moronado, permaneceu no fundo dele a imanência da causa estamos tratando com forças inimigas e inconscientes, mas com
primeira que o gerou e que está em nós sempre presente e ati- forças boas, justas e sábias. A dor, pelo contrário, se bem com-
va, para reconstruí-lo. preendida, deve fazer-nos sentir mais próxima a presença ativa
No piano físico, efetivamente, o que é, em última análise, a e salvadora de Deus imanente, à qual mais nos devemos unir.
―vis sanatrix naturae‖6, senão a expressão de Deus imanente? Que maravilha para o intelecto e que conforto para o coração
Ele está em nosso interior sempre atento à restauração da for- chegar a compreender que a dor é um ato de amor com que
ma, que é protegida, porque é manifestação de vida no plano Deus nos agracia, para nos induzir a retomar o caminho certo
em que devemos elaborar-nos, para reerguer-nos. No fim do de nossa felicidade, que havíamos abandonado!
Cap. XV – ―À procura de Deus‖, concluiremos descobrindo o Então, o intelecto compreenderá, efetivamente, por que as
divino na profundeza do nosso ―eu‖. Sabemos que não é pos- provas jamais podem superar as nossas forças e como elas se
sível existir em nosso universo a não ser como um vir-a-ser. A desvanecem tão logo se tenha realmente aprendido a lição.
criação não é um fenômeno estático, mas de incessante forma- Compreenderá por que a Providência costuma tardar tanto,
ção, que não se pode reger nem se explicar sem esta permanen- salvando-nos somente no último momento, ao cairmos sob o
te e operosa presença de Deus no Seu aspecto imanente. Quem peso da cruz, pois é necessário esgotar antes todos os recursos
mais poderia assim tudo reconstruir? É verdade que a morte na aprendizagem da lição. Uma Providência que no poupasse
ameaça continuamente a vida, mas é verdade também que a tal esforço trairia o nosso restabelecimento e prejudicaria a
vida acaba vencendo, reduzindo a morte a um meio de renova- nossa evolução. Enfim, o coração encontrará em meio à dor o
ção, sendo justamente isto o que determina a evolução, que imenso conforto do amor, sentindo Deus a seu lado; Deus, que,
avança para a superação da morte. no Seu aspecto de Filho, em Cristo, ampara a nossa cruz e a ar-
Esta presença de Deus patenteia-se não só no campo físico, rasta conosco, compartilhando de nossa dor. Pois que Deus
mas também no moral. Fala-se de impulsos reativos da Lei ao imanente desceu a sofrer na forma, no íntimo do ―eu‖ da cria-
tura decaída, para reerguer-se nela ao Seu aspecto originário e
6
―A força curadora da natureza‖. (N. do T.) perfeito de Deus transcendente.
190 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
X. A TEORIA DO DESMORONAMENTO E princípio destruidor que se aninha em seu seio! Certamente o
AS SUAS PROVAS Sistema, concebido desta forma, deve parecer bem pobre e mal
feito! No entanto ele é pleno de obras que revelam uma sabedo-
Procuremos neste capítulo responder, por nós mesmos, a al- ria tão grande, que nem podemos compreendê-la no seu todo.
gumas possíveis objeções ao sistema acima exposto. Este é um Repugna, de maneira absoluta, a um instinto fundamen-
controle racional a que submetemos os produtos da intuição ou talmente peculiar a todo ser de mente sã, admitir em Deus a
da visão. Por um momento, proponhamo-nos rejeitar esta teo- criação do mal. Este só pode ter surgido depois, por outras ra-
ria, que podemos denominar simplesmente teoria do desmoro- zões. Não se podendo conceber duas criações e, assim, tendo
namento, como explicação de nosso universo. que aceitar um única, como explicar que não encontremos tu-
Devendo axiomaticamente admitir que Deus não pode ser do em perfeição e bem ou, então, em imperfeição e mal, mas
imperfeito e mau, mas sempre perfeito e bom, e que, por con- sim perfeição e bem misturados com imperfeição e mal? É
seguinte, criou por amor, e não por ódio, como se pode explicar evidente essa duplicidade de princípios exatamente opostos.
a presença do mal e da dor em nosso universo? E, uma vez que Isto não se pode explicar a não ser como a inversão de uma
não se pode atribuir, em absoluto, ao Deus-Criador estas reali- parte do Sistema. E como, no fundo da imperfeição, encon-
dades, impõe-se procurar-lhes uma outra causa que não pode tramos a perfeição, isto é, uma sabedoria que possui a força de
ser Deus. Mas aqui o dilema é fatal: ou essas tristes verdades salvar a imperfeição da autodestruição e de purificá-la, recon-
são devidas à criatura, sendo forçoso admitir a teoria da queda, duzindo-a ao estado de perfeição?
ou, se Deus-Criador foi causa de tudo, Ele é imperfeito e mau. Evidentemente, deve ter ocorrido que Deus haja criado os
Uma bem triste cadeia de males pesa sobre o mundo. Este espíritos puros, tirando-os de Si (a técnica da criação será pro-
fato é indiscutível. Queremos buscar-lhe a causa, o responsável. gressivamente exposta neste volume e, depois, definitivamente
Podemos até chegar à monstruosidade de nos tornarmos acusa- precisada no início do Cap. XX – ―Visão-Síntese‖). Este era o
dores de Deus, como causa de todos os nossos males, e nos sen- sistema perfeito. Mas uma parte, como vimos, rebelou-se, for-
tirmos autorizados a amaldiçoá-Lo, como inconsciente e mau. mando o anti-sistema do dualismo. Ora, a parte incorrupta fi-
Mas isto só poderá fazer quem segue Satanás, imerso no polo cou a mais forte, porque com ela permaneceu Deus, a Quem
negativo, na ignorância e no mal. Jamais o fará uma mente ilu- ela ficou aderente. A outra parte não tem Deus consigo, no
minada, que sentiu a sabedoria, a perfeição e a bondade que sentido de que a sua transcendência não pode funcionar, já que
reinam no funcionamento orgânico do universo. o ser o renegou. Por isto o mal não pode vencer. A vitória fi-
Mas, ainda que a teoria do desmoronamento fosse errada, nal, é lógico, não pode deixar de caber ao único senhor do Sis-
que significação possui a lenda, tão difundida no mundo, da tema: Deus. Não importa que no Todo se agitem forças opos-
queda dos anjos? Poderá ter ela nascido do nada? E, com a Sua tas! O Sistema tornou-se inquinado de culpa, sofre para resta-
paixão, que poderia redimir Cristo, se a culpa era mais de Deus belecer-se, mas continua Sistema. Ele não desmoronou no seu
do que do homem? Por essa paixão a humanidade se redimiu, conjunto. Apenas uma parte dele, em seu seio, decaiu.
então, mais da falha de Deus do que das suas próprias. Isto sim Mas pode-se, então, objetar por que Deus, se é sempre o
nos parece verdadeiramente um esboroamento do bom senso, mais forte, o Senhor do Sistema, não sana de vez o mal, anu-
ao ter que admitir que a humanidade deva sofrer tanto, em vir- lando-o? Não basta uma coisa ser cômoda para se tornar lógi-
tude da insciência ou maldade de um Criador irresponsável ou ca e justa. Há necessidade de que seja compreendida por
perverso. Este seria o mais escandaloso triunfo da injustiça. quem a criou. Nenhuma força pode ser destruída, mas apenas
Mas, desta forma, colocamos um conceito negativo no centro corrigida. Subsiste a lei de equilíbrio e justiça, na qual se ba-
do sistema positivo do ser; dessa maneira tudo se subverte: a seia o Sistema, que exige a sua reconstrução. Não é com a
vinda de Cristo à Terra carece de qualquer sentido, e, onde tudo psicologia da própria vantagem imediata, relativa e utilitária,
é ordem, estabelecemos o caos de um universo em delírio. En- que se pode resolver tais problemas. Recordemos que nós não
tão, o primeiro pecado original teria sido de Deus, e não do somos punidos pelas nossas culpas por um Deus vingativo,
homem, e a rebelião contra um Deus imperfeito, injusto e mal- mas sim, automaticamente, por essas mesmas culpas, isto é,
vado seria mérito, e não culpa. E a redenção, que é a retificação pelas forças por nós movidas e pelas posições que quisermos
de uma posição invertida, que teria retificado? Talvez a justa assumir no Sistema. O mal não se pode extinguir por um ato
revolta de Adão contra um Deus criador do mal e da dor? Co- arbitrário, pois que a onipotência divina não é jamais arbitrá-
mo se vê, cai-se em um redemoinho de absurdos, em que tudo ria, mas sempre segundo a Sua própria lei. O mal só se pode
se subverte em uma horrenda concepção satânica. extinguir por reabsorção, isto é, por retificação, pela recons-
Devemos axiomaticamente admitir em Deus também a uni- trução daquilo que ruiu. Só assim se explica como a dor pode
dade. Ora, o universo é inegavelmente dualístico. Como se po- redimir. Trata-se de um processo de cura. Eis por que a luta
de explicar essa estrutura dualística em um universo cuja base contra o mal é virtude, ou seja, é qualidade reconstrutora de
deve ser unitária, se não com a teoria do desmoronamento? bem. Se o nosso universo fosse, no estado atual, consequência
Quem despedaçou o uno, como e por quê? É absurdo um uni- pura do primeiro ato criador de Deus, ele deveria ser perfeito.
verso dualístico desde a sua primeira essência, em seu centro. Não o é porque a criatura introduziu nele outras forças. É da
Se assim fosse, pelo menos os dois termos do dualismo – bem e lógica, justiça e equilíbrio do Sistema que a correção seja ope-
mal – deveriam ser iguais. Como se explica que, ao contrário, o rada nas próprias criaturas que representam tais forças. Assim
bem é mais forte e acaba vencendo e que o Senhor é um só – como delas foi a revolta à ordem, é justo que o labor da re-
Deus? Também aqui, se excluirmos a queda, tudo se confunde construção lhes caiba. Somente assim elas poderão verdadei-
no caos. Então Deus se transforma em artífice de uma obra dia- ramente aprender a conhecer a Lei, cuja compreensão já reve-
bólica, e confunde-se Satanás com Deus. laram não ter desejado. Como se vê, tudo se desenvolve com
Abolindo a teoria do desmoronamento, não se sabe mais cabal lógica. Muitos desejariam Deus como seu servo e se la-
justificar a origem e a presença de Satanás. Quem é ele então? mentam porque Ele não lhes poupa o incômodo de trabalhar,
Que significa no sistema do todo? De que nasceu, para o que lutar e sofrer, por isso O acusam. Mas é fácil compreender
tende e como acabará? Em um sistema lógico, como pode man- quanto é absurdo colocar as nossas pobres comodidades como
ter-se esse anti-Deus? Em uma construção equilibrada, que sig- centro do Sistema. Não é com tais medidas que se pode medir,
nifica a hostilidade desse contínuo atrito demolidor? E que im- nem com semelhante psicologia que se pode compreender.
perfeito universo seria este, sempre sujeito aos assaltos de um ◘◘◘
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 191
Prossigamos no controle racional, que nós mesmos estamos senão continuamente se despedaçando, por efeito da queda. Bas-
fazendo, dos produtos da intuição ou visão. taria apenas isto para provar a reencarnação. Mas, no fundo da
Alguma vez perguntamos a nós mesmos por que o estado morte (Satanás), está sempre Deus, que é a vida, o princípio pelo
primordial do universo é o caos? Se tivesse sido obra de Deus, qual ela jamais se extingue. Assim como o imutável absoluto
deveria ser obra perfeita, e não caos. E, pela evolução, esse ca- desmoronou no mutável contingente – que justamente por isso
os é o ponto de partida de um longo caminho que avança para a faz presumir a existência do primeiro – a existência eterna tam-
ordem. Somente com a teoria do desmoronamento, tudo isto se bém se corrompeu na existência no tempo, que a mede e a pulve-
torna compreensível. Satanás está nos antípodas de Deus, assim riza em um ritmo interrompido por pausas opostas.
como o caos está nos antípodas da ordem. O universo atual vai Eis, porém, que Deus, a força restauradora presente na evo-
do primeiro ao segundo, os dois polos do ser. Só com a prece- lução, tende para a correção do desmoronamento. A vida, evol-
dência de um desmoronamento, isto é, com a existência da ou- vendo, transfere-se cada vez mais do plano físico para o espiri-
tra metade do ciclo, inverso e complementar, pode-se compre- tual. Desta forma, há também cada vez mais tendência ao desa-
ender tudo. Isto implica que apenas uma parte ruiu, e não todo parecimento do seu lado negativo – morte – e igualmente do
o Sistema, e que, no fundo do caos, Deus – a única força capaz mal e da dor, com o retorno a Deus, na reconstituída unidade
de reconduzir a desordem novamente à ordem – continua a es- íntegra da vida, que não tem mais morte.
tar presente. A reconstrução, ainda que seja operada de fato pe- Mas tudo rui por terra. Cada alegria ameaça inverter-se em
la dor purificadora da criatura, é dirigida por Deus, o que é pro- dor, parecendo ter nascido envenenada pela recordação do pri-
vado pela descida de Cristo à Terra. Unicamente assim se ex- meiro desmoronamento. Para continuar, a vida deve refazer-se
plica o porquê da evolução e sua direção, bem como a grande desde o começo, na semente, no filho. Tudo nos dá ideia de al-
equação da substância (A Grande Síntese, Cap. IX). guém que, subindo uma encosta em terreno resvaladiço a cada
Agora podemos compreender melhor a fig. 4 de A Grande três passos para diante, dá dois passos para trás. Recua, mas ga-
Síntese, que indica o desenvolvimento da trajetória típica dos nha sempre um passo, e assim a evolução avança, avizinhando-
movimentos fenomênicos. Esse diagrama sintetiza também o se cada vez mais, ainda que lenta e fadigosamente, da libertação.
atual caminho da evolução, para reconquistar, entre dores e É longa e dolorosa a elaboração evolutiva. Mas é verdade tam-
provas, o paraíso perdido. Este é o diagrama da ascensão. O bém que o elemento negativo está submetido a um atrito contí-
desmoronamento ocorreu de +–. A reconstrução aqui nuo, em face da resistência que opõe à força de Deus, mais po-
sintetizada é de –+, ainda que, para o nosso concebível, derosa, motora da ascensão. O elemento negativo, assim, des-
ela agora seja limitada ao trajeto γ. Na fig. 4, o des- gasta-se, autodestruindo-se e cedendo, como já vimos, da sua
moronamento das dimensões reduziu o Todo ao nada, ao substância à parte positiva. A sensação desse atrito de forças
ponto, sem dimensão. É este – (infinito negativo), o ponto opostas chama-se dor. Mas, por isto, ela redime, mata o mal,
de partida da evolução, a segunda metade do ciclo, que vi- ilumina as trevas, reconduz à alegria, à unidade, findando o dua-
vemos atualmente. O ponto de chegada é + (infinito positi- lismo, retificando o negativo em positivo. É este atrito que se
vo), sendo todo o processo dado pela dilatação do ponto, não chama dor, que reconstrói o lado desmoronado do Sistema e, por
dimensão, na dimensão máxima, o infinito. Eis o mais pro- isso, constitui a base da evolução, ascensão para a felicidade.
fundo significado da abertura da espiral. ◘◘◘
Mas a maneira como se processa o seu desenvolvimento nos Tudo isto evidencia a necessidade de aceitar a teoria do
diz algo mais. Na sua tendência periódica para volver sobre si desmoronamento. Só ela pode explicar o dualismo dá árvore do
mesma em direção ao centro (v. a mencionada fig. 4 – A Grande bem e do mal; o pecado original, continuação da revolta dos an-
Síntese), expressa também na fig. 2 pela descida da linha que- jos e consequente queda; o pecado cometido por Caim contra
brada, vemos um rítmico, ainda que parcial, retorno ao desmo- Abel, primeira personificação da cisão e da luta. Só assim po-
ronamento, como que uma recordação sua ou tendência a repe- demos compreender Cristo e a Sua obra de redenção, destinada
tir-se, que no-lo revela em ação, imiscuído no funcionamento do a sanar este dualismo, e entender a inversão operada pelo
universo, desde a primeira revolta e desmoronamento. Essa ca- Evangelho, que é uma retificação dos valores. Só assim é pos-
racterística, impressa indelevelmente, nos fala como uma teste- sível explicar por que a Terra é o reino em que o mal triunfa e
munha. Todavia o movimento retoma sua direção e, no conjun- os bons sofrem; por que a seleção é nela operada pelo critério
to, consegue subir, sempre contrastado e em luta com a descida. selvagem do mais forte. Sem a teoria do desmoronamento nada
A subida prossegue, isto é, a evolução vence, ganhando terreno se explica, tudo é caos e mistério.
em cada ciclo, ainda que, em todos os ciclos, o primeiro desmo- Todavia, ainda pode-se levantar uma objeção. Pretendemos
ronamento volte a se fazer sentir como um assalto do mal, que é, complementar aqui os conceitos expostos no fim do Cap. VII –
porém, depois vencido e superado. Assim é porque o Sistema, ―A perfeição do Sistema‖.
no seu conjunto, não é o sistema de Satanás, mas sim o sistema Admitida a liberdade individual e a revolta, deve-se admitir
de Deus. Deus, como vimos, permaneceu centro de tudo, en- também que um espírito possa conservar-se eternamente rebel-
quanto o sistema de Satanás tem por centro o –, o nada, o pon- de. Ele teria, então, o poder de macular definitivamente o Sis-
to não dimensão, razão por que, para ele, a existência só pode tema, frustrando-lhe o restabelecimento e toda a obra de salva-
significar anulação. O sistema positivo de Deus, embora conten- ção de Deus e dos redentores por Ele enviados. A obra de Deus
do o sistema negativo de Satanás, é mais forte do que ele. O ou- não seria, então, sanável e, em última análise, estaria falida.
tro sistema está contido e é mais fraco, irremediavelmente mi- Tudo isso é lógico. Bastaria que se verificasse o caso para uma
nado pelo seu negativismo. Por isso se pode dizer que o bem de- só criatura, e o mal, em definitivo aninhado no sistema de
ve vencer e: ―Portae inferi non prevalebunt‖. Deus, não seria vencido, tornando-se parcialmente vencedor.
◘◘◘ Conclusão absurda. A solução do dualismo deve, pois, ser
O motivo do desmoronamento imprimiu-se, assim, tão pro- completa e, por conseguinte, para que todo o Sistema seja re-
fundamente no Sistema, que o vemos ressurgir em todo lugar, a construído e tudo retorne ao Uno, impõe-se a destruição final
cada momento. Um estigma dualístico inquina e fragmenta toda a do mal. A anulação é a única expulsão possível de um sistema
nossa vida. A vida una íntegra, esboroou-se no ritmo alternado de que é o Todo e, fora do qual, nada pode existir.
vida-morte; ao dia se contrapõe a noite; à luz, as trevas; a cada Agora, surge a objeção da impossibilidade de admitir-se a
afirmação, a sua negação. A vida não se pode prolongar no tem- destruição ou anulação do espírito rebelde. A isto respondemos
po senão continuamente invertendo-se no negativo, que a mata; que, como já vimos (Cap. VII), a mecânica dessa destruição se
192 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
realiza por um processo de choques e atritos de forças, em que Considerando tudo isto, o leitor poderá agora responder por
perece não a substância divina, indestrutível, que forma o espí- si à questão acima proposta. Mas é evidente que a solução cabal
rito, mas apenas a sua forma de individualização como ―eu‖ de qualquer problema não pode ser obtida encarando-o isola-
distinto, e isto em favor do sistema do bem, que se enriquece damente, mas somente quando ele tenha sido enquadrado em
dessa substância. O que se anula é a individualização, a perso- todo um sistema de que venha a fazer parte e em que todos os
nalidade rebelde, o tipo de forma revestida pela substância, e outros problemas do ser sejam harmonicamente resolvidos.
não propriamente a substância que a constitui. Trata-se, pois, Procuremos, todavia, precisar os elementos do problema.
apenas de uma destruição relativa ao indivíduo, e não em senti- Assim como, em um espelho partido, cada fragmento re-
do absoluto. Destruição como sua individualização, e não como produz a natureza do espelho inteiro, trazendo também em si
substância. Isto torna possível a anulação no caso extremo de os indícios do estilhaçamento, cada unidade individual, no sis-
uma revolta indefinidamente prolongada. tema desmoronado, também carrega consigo os sinais do di-
A esta altura, podemos perguntar qual poderá ser a sorte de vino princípio do bem e dos satânicos princípios do mal. Bas-
Satanás e seus demônios. Após haver tratado do problema do taria este fato – que é possível verificar a todo instante em nós
fim do mal no Cap. X do volume A Nova Civilização do Ter- mesmos, visto se encontrar profundamente impresso em nossa
ceiro Milênio, lançando ali a semente dos primeiros conceitos, natureza – para demonstrar que, nas raízes deste nosso estado
desenvolvidos melhor no presente volume; e após haver preci- e como explicação desta nossa estrutura, não pode deixar de
sado a técnica da destruição do mal em geral no Cap. VII – ―A existir uma queda original, da qual se gerou este modelo de
perfeição do Sistema‖, deste volume, podemos propor-nos ago- tipo dualístico, que se repete em todas as individualizações
ra o problema específico da sorte de Satanás, a propósito da menores. É assim que o princípio da queda se conservou pre-
anulação dos espíritos rebeldes. sente em todo ser decaído. E é lógico e justo que cada ser, já
No Cap. II do presente tomo – ― ‗O eu sou‘, esquema do que é um momento do sistema desmoronado, carregue consi-
ser‖, acenamos para Satanás como personificação das forças do go os estigmas do desmoronamento e a estrutura do sistema
mal. Mas será ele apenas uma individualização fenomênica desmoronado. É por isso, justamente, que toda personalidade
qualquer em tudo que é personalizado, ou Satanás é uma verda- está dividida em duas partes opostas, ativadas por um dina-
deira personalidade? Como personalidade queremos significar o mismo inverso, um divino e outro satânico, em contraste no
que ela expressa para o ser humano. O leitor que compreendeu campo do ―eu‖. Foi assim que a indivisível personalidade do
os elementos constitutivos de nosso sistema, de onde a lógica ―eu sou‖ originário cindiu-se no seu íntimo dualismo, e é exa-
não nos permite sair, pode responder por si. Nós simplesmente tamente aí que Satanás se aninha.
lhe propomos o problema. A única e verdadeira criação foi a dos Analisemos tudo isto para melhor poder compreender o que
espíritos puros, que Deus realizou em Seu seio, distinguindo-se deveremos realmente entender por personalidade de Satanás.
interiormente em muitos ―eu sou‖, feitos à Sua imagem e seme- Ele é personificado no sentido de que existe em todo ser como
lhança. O nosso universo físico não foi uma criação, mas sim princípio negativo, equilibrando em contraste o princípio posi-
um desmoronamento da criação. Os espíritos puros eram outros tivo, com o qual está sempre em luta, para dele se desvincular e
tantos ―eu sou‖, semelhantes ao tipo originário – Deus – isto é, se libertar. Esta luta é a base da evolução. A personalidade de
individualizações pessoais, como é o próprio homem. Todos os Satanás está presente em todos os seres como princípio de tre-
espíritos eram assim, e não há razão para que fossem diferentes vas, enquanto Deus está presente neles como princípio de luz.
os que depois decaíram com a revolta. O próprio homem atual Treva significa inconsciência, matéria, prisão na forma, estado
estava entre eles e, tendo uma personalidade própria, distinta, involuído. Luz significa consciência, espírito, libertação, estado
mostra-nos o que significa personalidade. O tipo fundamental do evoluído. Em outros termos, em nosso universo não se encontra
ser, como ―eu sou‖, não podia mudar apenas pela queda, como apenas a presença de Deus imanente, nele descido de Sua trans-
de fato não mudou para o homem, que é justamente um espírito cendência para salvá-lo, mas existe também o princípio oposto,
decaído e, algumas vezes, chegou até ao grau de demônio. O filho da queda, isto é, a presença do mal ou Satanás imanente,
desmoronamento do Sistema podia alterar a disposição e posi- sempre operante para tudo destruir e perder.
ção dos elementos do edifício, mas não o material, que perma- Em todo ser defrontam-se, em permanente contraste, o divi-
neceu o mesmo, pois, se assim não fosse, o edifício não poderia no princípio do bem, fazendo evolver e subir, e o satânico prin-
ser reconstruído; podia ofuscar, mas não alterar a essência indi- cípio do mal, insistindo no desmoronamento e na descida. O úl-
vidual do ser, porque isto teria significado destruir o tipo mode- timo serve, assim, de resistência à evolução. É esta resistência
lo, fato fundamental da criação. Não é concebível que a queda que procura demolir todas as nossas conquistas e que nós temos
possa ter produzido uma despersonalização, pois isto significaria de vencer com o nosso esforço, intentando espontaneamente re-
uma anulação da personalidade, isto é, da individualização ―eu fazer em ascensão o mesmo caminho que livremente percorre-
sou‖, o que só pode ser o último resultado para um rebelde inde- mos em queda. Somente com a queda é possível explicar como
finidamente em estado de revolta, com sua liquidação final. Não o princípio do mal se aninhou no âmago do ser e lá permaneça
se pode antecipar a sua destruição, sem comprometer todo o vigilante para impedir a ascensão. Este princípio, onipresente
processo de reconstrução e redenção. É absurdo, exceto no caso em nosso universo e personificado como o lado de trevas em
de tal liquidação final, a dissolução desse núcleo ―eu sou‖, desse qualquer personalidade, é o que entendemos por personificação
centro em torno do qual se desenvolve todo o processo do des- de Satanás, princípio que pode revestir-se de uma forma qual-
moronamento e da reconstrução. Somente um ―eu‖ pessoal, de- quer, assumindo consistência real. Não se trata de uma vaga
finido nos seus atributos, pode involuir e depois evoluir; pode abstração, mas de algo concreto, presente como força individu-
reconstruir-se, se quiser, ou então ser reabsorvido no Sistema, alizada no ser, que, pelo menos na Terra, sempre apresenta uma
pelo seu progressivo desgaste no atrito do Anti-Sistema com o certa dose dele, maior ou menor. A percentualidade é que varia,
Sistema, consoante expusemos no citado Cap. VII deste volume. sendo santo aquele em que ela for mínima ou nula, e demônio
Unicamente um ―eu‖ pessoal pode ser objeto de salvação ou ins- aquele em que ela se aproximar da inteireza. No caso máximo
trumento da necessária anulação do mal, sem o que Deus seria deste último tipo, quem sabe em alguma forma cósmica de vi-
vencido; sem um centro pessoal, um ―eu‖, não pode haver méri- da, teremos a personificação concreta e real de Satanás.
to ou demérito, culpa, responsabilidade, experiência, evolução e Efetivamente, pode-se idealizar dele um tipo biológico
retorno a Deus, ou, no caso contrário, anulação. Sem um ―eu‖, mesmo na Terra. E isto realmente foi feito pelo homem, repre-
tudo se dissolve no vago e nebuloso. sentando o demônio com as características dos animais dano-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 193
sos, mais inimigos e involuídos, agressivos, com chavelhos, ideia continua a avançar na direção em que foi lançada, enquan-
garras ou bicos, traiçoeiros como as serpentes venenosas, escu- to não encontrar uma força que a desvie ou um atrito que a freie
ros e peludos como o urso, com dentes de lobo, olhos ferozes e – Deus, assim como Satanás, continuam, em nós, a gritar ―eu‖.
cauda, lançando chamas e enxofre, na representação de um É assim que cada um de nós, mais ou menos, pode personificar
mais antigo e elementar adversário, qual o fogo vulcânico da um ou outro, segundo o grau de evolução. E, quando o homem
Terra. Tudo isto é lógico e se justifica, porque Satanás simbo- desce até ao delito, nele encontramos uma sempre maior perso-
liza a involução, isto é, a animalidade, que é o nosso passado, nificação de Satanás. É fácil assim imaginar uma hierarquia na
ou seja, a matéria e o caos num reino subterrâneo, onde ele gradação dos valores invertidos em negativo, no mal, da mesma
sempre se aprofunda, como nas representações que fazemos forma que há uma hierarquia dos valores positivos, no bem.
dele. Inimigo da evolução, que é progresso em direção a Deus Poderemos, desta maneira, idealizar, no ápice da pirâmide in-
e à felicidade, também é um inimigo da vida, representando vertida, um Lúcifer, qual sublimação do mal elevado à máxima
tudo o que é agressivo e mau. potência, assim como no ápice da pirâmide positiva está Deus,
Onde está este inimigo? Está em toda parte, como Deus; sublimação infinita das potências do bem. É como se pode ex-
junto de Deus, como Sua negação, assim como junto da luz es- plicar racionalmente a ideia tão difundida do anti-Cristo.
tá a sombra, sem o que não sabemos o que é luz. Satanás é a Parecendo-nos, por ora, bastante clara esta argumentação
treva que se aninha em cada ângulo, onde se ocultam o mal e a sobre a personalidade de Satanás e seus demônios, concluímo-
dor, para nos golpearem traiçoeiramente. Satanás é o veneno la com a verificação de estarmos assim diante de uma nova ma-
depositado no fundo de toda taça, a dor sempre pronta para ravilha do Sistema. Nele, de fato, o princípio do mal e da dor,
macular as nossas alegrias. É a moléstia que assalta a saúde, é que se faz sentir em tudo, é utilizado como uma dificuldade a
a morte que espreita a passagem da vida. É a traição que está superar, como uma escola para aprender e ascender. A realida-
no fundo da amizade. É o ódio em que está prestes a transfor- de é que, embora Satanás e seu poder pareçam espantosos, o
mar-se o amor. É o princípio de destruição que secretamente nosso universo está inteiramente impregnado da presença de
mina todas as construções humanas. É o princípio do mal que Deus imanente, de modo que a vitória está garantida e as portas
sempre busca manchar a obra do bem. É um princípio que to- infernais não prevalecerão. Todo o grande assalto de Satanás se
ma forma concreta em atos e pessoas. reduz a um exame das forças do bem, a um sangrento banho de
Durante as trevas da Idade Média, houve o domínio, inclu- purificação, do qual o espírito sairá triunfante. Desta forma, en-
sive no terreno religioso (inquisição, guerras santas, bruxarias) contramos não somente uma justificação para o mal e a dor,
desse princípio de negação, em que Satanás prevaleceu. Por mas também o segredo para demoli-los, transformando uma in-
dois milênios ele tem reinado com o terror do inferno, constru- felicidade em um meio para conquistar a felicidade. Assim, o
ção sua. Tudo isto está escrito na hora histórica, para todos, e tremendo princípio do anti-bem e do anti-Deus se pulveriza em
teve a tolerância da Igreja. E, até hoje, mesmo no que respeita a nossas mãos, e, se formos sábios, dele nada resta em meio a
Cristo, atentou-se principalmente para o lado negativo e destru- tanta ruína, senão um instrumento de salvação.
tivo da criatura humana na crucificação, que foi um triste espe- A esta altura, nós nos perguntamos se será possível uma re-
táculo de carnificina, em vez de se olhar para o lado positivo e volta eterna e definitiva? Agora podemos compreender o que
construtivo da ressurreição, eterna vida do espírito. Isto de- significa essa indagação, isto é, a possibilidade da personalida-
monstra como Satanás está vivo entre nós, personificado em de macular-se até que o percentual dos elementos componentes
correntes, ações e pessoas. Satanás, embora como força inverti- positivos seja reduzido a zero e o percentual dos elementos
da e negativa, está presente entre nós, como o está Deus, e eles componentes negativos seja elevado a cem. Quando o ―eu‖ fica
se defrontam e se batem em nós, seu campo de batalha. Ainda assim reduzido, em sentido negativo, ele se anula (=0), isto é,
que Deus, pela própria natureza do Sistema, venha a ser o ven- se autodestrói. Quando, ao contrário, o ―eu‖ se refez todo em
cedor, esta batalha existe e a vivemos em nós, sem sabermos sentido positivo, ele atingiu a salvação. No primeiro caso, ocor-
que ela é a maior batalha do universo, que repercute em nós. reu a morte total pela completa negação de Deus; no segundo
Em cada ato nosso, através da escolha que soubermos fa- caso, foi alcançada a vida total em Deus.
zer, amadurece o nosso ser e avança a grande marcha da evo- De tudo isso encontramos um paralelo na vida de nosso or-
lução. Em virtude dos atos e da livre escolha de todos os ho- ganismo, o que é lógico num universo dirigido por um princípio
mens, opera-se o resgate e assim a salvação. É graças a essa in- unitário. Antes de tudo, a difusa presença do espírito satânico
tensa elaboração em que se empenham todos os seres, que se do mal não nos deve espantar mais do que a presença dos mi-
dá a regressão, a estagnação ou a redenção do universo. Sata- cróbios patogênicos em nosso organismo. Quando ele está são,
nás exige que lhe paguemos em moeda sonante de dor o tributo os micróbios não perturbam, mas quando as portas estão aber-
de nosso resgate, porque quisemos cair e, com a queda, nós o tas, eles penetram o organismo no seu ponto vulnerável, porque
abrigamos em nosso interior. débil. Também Satanás só pode entrar quando encontra uma
Satanás está em toda parte do sistema desmoronado, é a do- porta aberta no espírito, isto é, um ponto vulnerável, porque dé-
ença do Sistema, que o acomete e faz todos sofrerem. Também bil. Se formos sãos e fortes no campo orgânico e no moral, po-
a parte incorrupta não se pode furtar a esta dor e, como fez demos mover-nos sem perigo entre os micróbios patogênicos e
Cristo, ajuda igualmente com o seu sacrifício. Mas é a parte di- as forças do mal. Em qualquer setor, a vida nos quer sãos e for-
vina, a originária centelha de Deus, não extinta de todo e ainda tes, para que a evolução prossiga, seguindo a Lei, que quer o
presente em nós, que deve lutar para restaurar a parte enferma ser caminhando para a perfeição e a felicidade. Quem deve, pa-
ou satânica, da mesma forma que no organismo a parte sã luta, ga, sendo o ser colocado pela dor no caminho reto, o de sua
com os recursos vitais provenientes de Deus, para recuperar a salvação. Tanto no terreno orgânico como no espiritual, a Lei
saúde e reconstituir o equilíbrio. Quando em nós se defrontam acorre para salvar, impelindo com as suas reações dolorosas o
em ação duas motivações opostas de bem e de mal, em que se indivíduo a salvar-se. A Lei se vale, indiretamente, de todas as
pesam a vantagem, em forma de alegria, e o dano, em forma de constrições compatíveis com o respeito à liberdade individual.
sacrifício, estamos diante do maior drama do universo, que con- Mas quando, apesar de tudo, o doente, seja do corpo ou do espí-
figurou o nosso tipo de existência e que retorna, repetindo no rito, não quer de forma alguma salvar-se – desejando assim fi-
caso menor a apocalíptica luta do universo entre o bem e o mal. xar em sua personalidade uma permanente violação da Lei, que
Por uma lei de inércia, que é verdadeira também no campo é inviolável – então ele é por ela eliminado. Em outros termos,
moral – segundo a qual, de modo semelhante a uma massa, uma a vida mata os que se voltam contra ela.
194 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Se assim acontece, então nos perguntamos: que probabilida- em Deus a sua causa que, por conseguinte, só pode estar na cri-
de existe no Sistema para que possa verificar-se, não para o Sis- atura. Sem a teoria do desmoronamento, teria sido Deus quem
tema, que é invulnerável, mas para o indivíduo, um desastre, determinou o semiciclo involutivo, isto é, a inversão do espírito
qual seja a sua anulação pela revolta definitiva? Prontamente na matéria, da liberdade na escravidão, da luz nas trevas, da fe-
respondemos que, embora a destruição de um espírito seja pos- licidade na dor etc. Como poderia o próprio Deus chegar a esta
sível, a probabilidade de semelhante destruição, na prática, é absurda contradição de querer subverter o sistema que Ele
apenas teórica. É verdade que o sistema é construído de maneira mesmo criou? O universo é também um conjunto lógico, no
que possa chegar até aí, mas não está na lógica das coisas que qual não há lugar para absurdos.
um espírito se deixe arrastar até esse extremo. E há razões para Do ponto de vista da criatura, não teria sido injusto e mal-
isso. Ser destruído é contra o interesse e a felicidade do ser, é doso (duas qualidades que Deus não pode ter) condená-la ao
agir contra o princípio do ―eu sou‖, que o mantém em vida. É sacrifício da ascensão sem que ao menos fosse justificado o
verdade que o rebelde, tendo-se colocado no negativo, automati- seu erro inicial? As mentalidades que se rebelam à ideia de
camente propende para essa anulação. Mas a arma da revolta ele uma reação da Lei pela queda na dor, em virtude do erro de
crava na própria carne e, quanto mais ele a utiliza, tanto mais in- origem, perguntamos se não se revoltariam mais ainda contra o
tensifica a própria dor. Ele tem de suportar um esforço cada vez conceito de um Deus que haja querido uma criação imperfeita
maior, uma luta sempre mais feroz, para insistir nessa via dolo- e progressiva, impondo ao ser inocente o tremendo esforço de
rosa, para contradizer o seu próprio instinto de felicidade, para construir a sua felicidade através da dor, por um preço tão du-
afastar-se do que constitui o centro para todos e também para ele ro, quando sabemos que o princípio de Deus, ao criar, é o
– Deus. Poderão impeli-lo por essa via de perdição o seu origi- amor, isto é, doação por ato de bondade. Nós podemos variar
nário orgulho, o espírito de revolta, a força da inércia lançada de hipóteses, repelir escandalizados uma e outra, mas há fatos
como massa em ricochete, o mal e o ódio do que ele está feito. positivos que não se podem discutir ou abolir, tais como o mal
Mas o fenômeno deverá também atingir um ponto de saturação ao lado do bem, a dor ao lado da alegria, a imperfeição junto à
em que o interesse egoístico deverá prevalecer, porque a dor, in- perfeição, ou seja, a existência de um lado desgastado e enfer-
tensificando-se sempre, superará o limite individual de tolerân- mo, de algo de corrupto, que repugna atribuir-se a Deus, pois,
cia, e uma existência de ódio e de mal cada vez mais distante de de forma alguma, podemos conceber seja Ele incapaz ou mau.
Deus, o centro de felicidade, acabará por tornar-se impossível. É absurdo colocar no bem a causa primeira do mal; na felici-
Este será o momento crítico da inversão de rumo, da direção in- dade, a da dor; na perfeição de Deus, da imperfeição. A causa
volutiva para a evolutiva. Então o ser por-se-á no caminho da deve estar na própria natureza do efeito. Dos dois termos com
reconstrução, no qual, à medida que é percorrido neste sentido, a que nos defrontamos, a um dos quais deve caber a responsabi-
dor irá diminuindo, e não aumentando como na direção oposta. lidade, somente a criatura pode errar, jamais o Criador. Poderá
Além disso, temos ainda que levar em conta a presença de desgostar-nos a ideia de sermos culpados, mas outra hipótese
Deus, que está, como dissemos, no seio da parte desmoronada não existe para explicarmos as causas.
do Sistema. Esta presença é uma força em ação, que envia ape- Na equação cuja incógnita procuramos muitos termos são
los, auxílios e esclarecimentos. Em imensos períodos de tempo, tomados como pontos fixos, inamovíveis, tais como a bondade
pela convergência de tantos impulsos, é impossível o ser não e a sabedoria de Deus, porquanto Ele não poderia deixar de
compreender o absurdo de laborar apenas em seu próprio dano, querer e das Suas mãos não poderia ter saído senão uma obra
que ninguém, por pior que seja, pode desejar. perfeita. Por outro lado, temos a existência da dor e do mal, o
Existe, afinal, um outro fato. A unidade entre os involuí- contrastante dualismo de princípios opostos e, enfim, a atual
dos, na zona corrompida do Sistema, quanto mais se desce, fase de evolução, que, em um sistema de equilíbrio, implica a
tanto mais pelo negativo é obtida, isto é, não mais como amor lógica necessidade de uma complementar, inversa e precedente
que unifica, mas como ódio que desagrega, como luta recípro- fase involutiva. A única solução que concilia e resolve tudo é a
ca e cisão, ao invés de como paz e fusão. Enquanto o sistema teoria da queda. Se a eliminarmos, acaba-se em um mar de
de Deus é centrípeto, o anti-sistema de Satanás é centrífugo. contradições e nada se resolve. É evidente que à incógnita da
Este, pois, em vez de centralizador, é autodispersivo. Tudo isto equação não se pode emprestar outro valor a não ser o de que a
constitui uma fraqueza que mina cada vez mais o indivíduo, causa está na revolta e que o nosso é um universo desmorona-
isolando-o, e acelera a chegada fatal àquele limite, em que se do. O leitor que deseja eliminar a teoria da queda procure outra
impõe a inversão de rota. que igualmente resolva tudo sem dúvidas. Parece-nos lógico
De todo o exposto, podemos concluir que, na realidade, to- que tenhamos preferência por uma teoria que resolve tudo –
dos deverão, mais cedo ou mais tarde, salvar-se. Os mais rebel- aceita por força dos fatos, e não por influência de uma escola
des sofrerão mais e também alcançarão os braços salvadores de ou religião – e deixemos de lado as que não resolvem.
Deus, porque, se um só não chegasse, a obra de Deus teria sido A primeira vez que começamos a encarar essas questões
imperfeita e seus fins de amor seriam frustrados. em nossos escritos foi nos capítulos XV e XVI do volume
◘◘◘ Problemas do Futuro. Ali, começamos a tatear o terreno, ou-
Retomemos mais uma vez em exame a teoria do desmoro- vindo as teorias contrárias, porém nos limitando mais a fazer
namento, para discuti-la ainda sob o fogo de todas as possíveis interrogações do que cuidar de dar respostas. Os problemas
objeções, com o objetivo de esclarecer os seus mais recônditos foram, então, apenas esboçados e orientados sob um aspecto
significados. Observemo-la dos mais variados pontos de vista geral, como germens de conceitos que seriam posteriormente
e focalizemos todas as suas particularidades. Só assim pode- desenvolvidos no presente livro, para o qual estes dois capítu-
remos chegar à mais clara visão dessa teoria e à sincera con- los referidos podem servir de introdução. Neles, começamos a
vicção da sua veracidade. assentar e agitar o problema na forma psicológica, como mui-
Se, para alguns, a teoria da revolta e da queda repugna, ex- tos o propõem, e dizíamos que o mal parece uma força negati-
perimentemos eliminá-la. Que resta, então? O semiciclo involu- va, que atenta contra Deus, uma imperfeição devida a um erro
tivo necessariamente tem de permanecer, pois sem ele faltará o Seu e que Ele, em dado momento, encontra no Sistema, apres-
indispensável e lógico complemento do inverso semiciclo evo- sando-se a remediá-lo. Se há um outro Deus que limita o pri-
lutivo, que nós vivemos atualmente. O mal e a dor são realida- meiro, então cai o conceito de um Deus absoluto e perfeito,
des indiscutíveis e características do ser decaído em planos in- restando para o homem a dor, punição de um Deus vingativo.
feriores de vida. É uma necessidade lógica que não possa estar Essa dor deriva da culpa do primeiro rebelde, que certamente
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 195
não podia ter consciência completa do bem e do mal, pois, se ada por Deus, então Ele, se não é capaz de extingui-la, não é
a tivesse, não teria se prejudicado com a revolta e mergulhado onipotente. Se Ele a criou, foi criada uma obra muito imperfei-
na dor. E como pode um inconsciente ser responsável e puní- ta, logo Deus não pode ser perfeito (na realidade o mal não foi
vel, se, ao procurar o próprio bem, erra, sem o saber? E em criado por Deus, Que o vencerá).
nome de que justiça, Deus, que tudo sabe, que de tudo tinha No fundo, tudo se reduz a compreender a psicologia desse
presciência, mesmo desse erro, pode condenar um ser que er- erro. Será a nossa psicologia humana capaz de compreender
rou por ignorância a pagar com a dor? Quando uma criança uma psicologia tão distante de nós? Podemos admiti-lo, não só
inexperiente cai, a culpa é dos pais, que, sabendo de antemão, porque os homens se incluem entre os espíritos que fizeram a
deveriam prever a queda; é dos pais, que têm o dever de edu- revolta (não sendo deles inocentes descendentes) mas também
car antes de punir e, ainda assim, apenas proporcionalmente à pelo fato do universo ser regido por princípios únicos, repetidos
experiência adquirida pelo filho. Quando este não tem conhe- em todos os níveis. Ora, então é possível que as posições dos
cimento, os pais não podem punir. E, então, que deveremos primeiros espíritos pudessem não ter sido apenas as expressas
pensar de um Deus que, contrariamente aos seus princípios de no dilema. Pode-se dizer que algo é branco ou preto, porém po-
amor, bondade, lógica e justiça, comporta-se dessa maneira de também ser verde, isto é, nem branco nem preto. Assim as
para com a criatura? causas também podem ter sido bem diversas das acima expos-
Assim falávamos naqueles dois capítulos. Esta é uma primei- tas. Podemos bem entender o conhecimento dos primeiros espí-
ra e elementar forma de plantar a questão. Mas já ali se viam ritos como limitado, em face do ilimitado de Deus. De fato, os
como eram absurdas as conclusões, visto que se voltavam contra espíritos, nascidos de Deus, como uma divisão orgânica em Seu
Deus. Isto é um assalto à lógica, que o evoluído não pode acei- seio, não podiam possuir o conhecimento do Todo, que só Deus
tar. Mas a maioria dos homens é presa de ilusões de ótica psí- possuía, porque só Ele era o Todo, enquanto eles eram apenas
quica e de perspectiva mental, porque neles, mais do que a lógi- momentos da Todo. Eles eram, certamente, perfeitos, mas den-
ca e o raciocínio, impera o instinto de auto defesa na luta pela tro do limite dado pelo fato de serem uma parte, e não o Todo.
vida. Ora, na procura do responsável pelo mal, pela causa da Somente a totalidade que eles formavam, isto é, o conjunto or-
dor, repugna a este tipo biológico admitir e confessar a própria gânico do Todo, de que eles eram parte no Sistema, podia coin-
culpa, porque sua vida gira integralmente em torno da seleção cidir, também no conhecimento, com o Todo – Deus. É assim
animal do mais forte, que é aquele que sabe vencer, não impor- que cada um deles não podia ser onisciente, porque a parte po-
tando os meios. Então confessar-se culpável é perder; defender- de ter um conhecimento perfeito, nos limites do próprio ser,
se é necessidade, ainda que, em plano mais elevado, semelhante mas não pode alcançar o conhecimento do Todo. É óbvio, pois,
modo de proceder se reduza a absurdo. Assim, para não acusar a que, para seres assim perfeitos, mas limitados em face de Deus,
si próprio, chega-se até mesmo a acusar a Deus. É somente a fal- Que, como é lógico, devia ser mais do que eles, pudesse existir
ta de capacidade de raciocínio que permite imaginar um absurdo uma zona que o seu conhecimento não podia atingir. Essa zona
tão incrível, como o erro e a culpabilidade de Deus. do ignoto foi o campo da queda.
É aqui o caso de se perguntar se esta atitude mental não Essa zona desconhecida não somente faz parte da lógica e
constitui uma prova da queda, se ela não deriva da natureza do da estrutura do Sistema, mas também desempenhou um papel
rebelde e da persistência do originário espírito de revolta. Tudo específico em relação à liberdade do ser. A sua função foi servir
isto revela e confirma a perpetuação de uma corrente, de uma como meio de prova da amorosa obediência a Deus e da espon-
força que continua a manifestar-se na sua direção inicial. Ima- tânea e livre adesão à ordem da Lei, como era dever da criatura
ginar a possibilidade de culpa divina é prosseguir rebelando-se demonstrar para com o seu Criador. É lógico que a célula – fa-
em favor do próprio ―eu‖ e contra Deus, o que é culpa de ori- zendo parte de um grande organismo, nele e dele vivendo, co-
gem, o ponto de partida que torna e retorna na normal psicolo- mo sucedia aos espíritos puros no seio de Deus – deva aceitar e
gia humana de abuso. exercer as leis do organismo, mesmo quando, sendo limitada,
Diz-se também: ―Sim, o homem errou, mas a culpa é de não as pode conhecer e compreender. E, de fato, as células de
Deus, que o criou assim. Ele deveria criar um ser que não pode- nosso organismo humano, mesmo possuindo uma vida autôno-
ria errar‖. Como se vê, persistimos sempre na atitude de quem ma, obedecem à lei do conjunto orgânico – lei superior à delas,
pretende fazer uma escola para Deus, a fim de ensinar-Lhe a de simples células isoladas – e nelas se coordenam em obediên-
operar, sobretudo segundo as nossas próprias conveniências, cia. Obediência necessária, porque sem ela teremos uma anar-
que se cifram em gozar sem sofrer. Esta é uma concepção an- quia, o que faria ruir todo o Sistema. A coordenação na ordem é
tropomórfica, para uso e consumo exclusivo do homem. Encon- sempre indispensável em qualquer todo orgânico.
tramo-nos aqui nas últimas raízes da dor, nas suas causas mais Este confronto que fazemos aqui não é por acaso, porque a
profundas. Azorragado pela dor, o homem não quer compreen- estrutura de nosso corpo físico repete realmente o tipo de mo-
dê-la e, para livrar-se dela, sem nada haver compreendido, pro- delo originário, dado pela primeira criação, cuja estrutura nos
cura arredá-la de si e atirá-la nos outros, até mesmo em Deus, revela, ao mesmo tempo que nos explica, por que todos os or-
culpando-O. Como é raro encontrar o homem que reconhece ganismos, justamente por serem derivados do primeiro modelo,
em si as causas do próprio infortúnio, não as procurando nos são construídos segundo o mesmo esquema e correspondem ao
demais! A razão pela qual a tantos repugna a teoria da queda é mesmo princípio. É ele o princípio universal das unidades cole-
que ela humilha e nos induz a reconhecer os nossos erros. tivas, que já examinamos em A Grande Síntese. Este motivo
À medida que deixamos as causas acessórias e subimos pa- originário ou tipo construtivo fundamental da criação vai sendo
ra as mais remotas, o problema se concentra, por inteiro, no repetido, como um eco, em todos os níveis evolutivos, até nas
momento psicológico da revolta. Da forma como o homem menores criações, que são consequência da primeira, à guisa de
propõe comumente a questão, parece que não podemos fugir desintegração atômica em cadeia. É assim que as unidades
ao seguinte dilema: ou os espíritos eram sábios e, portanto, não maiores são formadas de agrupamentos de unidades menores, o
podiam cair, porque sabiam as consequências, ou eram igno- que explica o instinto de viver em sociedade, o espírito gregário
rantes e, então, não podiam ser culpados da queda nem respon- tanto entre os homens como entre os animais, para vencer na
sabilizados por ela; em outras palavras: ou Deus criou um espí- luta pela vida. É assim que, nas unidades maiores, as menores
rito que sabia e que, por isso, não podia cair, ou o criou insci- possuem funções menores, em que elas se especializam.
ente e, então, não o podia punir. Diz-se, igualmente, que o mal Foi assim, pois, que existiu para os espíritos puros uma zona
existe de fato, como força inimiga de Deus. Se ela não foi cri- situada além do seu conhecimento, zona reservada a Deus, na
196 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
qual eles não deviam nem podiam entrar, sem formar um estado mo para Deus, visto que assim Ele não cai no absurdo e na con-
de anarquia, que teria atentado contra o próprio Sistema. Era tradição, respeita a Sua lógica e, por conseguinte, a Si próprio.
essa uma zona em que se devia somente acreditar, obedecendo. Não sendo, então, possível, sem violar a ordem do Todo,
Ela possuía, desta forma, a função de propiciar um tipo de conceder um conhecimento direto e total, abrangendo também a
exame; um consentimento pedido e feito por amor, livremente; zona do desconhecido, Deus comunicara aos espíritos um co-
uma arguição em que o Criador interrogava a criatura, para que nhecimento indireto, isto é, advertira a respeito do que poderia
ela declarasse a sua aceitação, sem coação, permutando amor suceder. Por que os rebeldes não obedeceram? Por que não
com amor. Eis a zona em que podia nascer e nasceu o erro. acreditaram na palavra de Deus? Eis a culpa. Ademais, um co-
Alguns espíritos responderam com obediência, aceitando por nhecimento completo teria anulado a possibilidade de escolha,
amor e por fé, permanecendo fiéis a Deus, em Sua ordem. Ou- a prova, a aprovação, a aceitação por ato de obediência, en-
tros, todavia, sempre livres, desejaram ultrapassar o limite prefi- quanto a lógica do Sistema exigia uma aceitação livre, espontâ-
xado e, usurpando poderes, entraram no domínio proibido, re- nea, por obediência e por amor, porque era justamente sobre es-
servado somente a Deus. Eles quiseram usar a liberdade, o pode- ses alicerces que se erguia todo o Sistema e essas eram as con-
rio e a sabedoria recebidos de Deus para ainda ampliar o princí- dições necessárias para que se mantivesse. O ser era livre e sa-
pio do ―eu sou‖, que Deus havia colocado como base dos seres, bia, pois fora advertido. Ele, deliberadamente, não quis crer e
à Sua imagem e semelhança; quiseram ainda crescer, ao invés de obedecer. A escolha não estava vinculada a nenhuma força,
coordenar-se em obediência na ordem do Sistema; pretenderam porque Deus quis, acima de tudo, a liberdade do ser, para que
crescer além do limites da natureza de seu ser, que Deus lhes as- ele não fosse um autômato ou escravo. Nem era possível que do
sinalara. E o que sucederia se uma célula do corpo humano qui- Seu seio saísse uma criatura que Lhe fosse semelhante, se não
sesse equiparar-se ao nosso ―eu‖ e usurpar os poderes centrais, fosse livre. Com a revolta, faltaram ao edifício as bases da obe-
assumindo a direção de todo o funcionamento orgânico? Certa- diência, do amor e da ordem, e, onde eles faltaram, o edifício
mente, onde existisse desordem o Sistema desmoronaria. desmoronou. Então a zona de conhecimento que, sendo direta-
Não restou como um instinto fundamental da vida o impul- mente inacessível, fora indiretamente comunicada sob a forma
so de crescer além dos limites, invadindo, usurpando e impon- de advertência, para ser aceita por fé – zona que os espíritos
do-se? Assim ele se explica. E não sucede sempre a mesma coi- obedientes conquistaram por crer e obedecer – os espíritos re-
sa, isto é, que a Lei – o instrumento que exprime o pensamento beldes foram condenados a conquistar pela dor, através da dura
e a vontade de Deus – mantém todos os seres dentro dos devi- fadiga da reascensão pela evolução. Assim, o erro é reabsorvido
dos limites? Todos desejariam crescer ao infinito, como se pre- na dor, o mal é sanado, o edifício desmoronado é reconstruído.
tendessem escalar Deus, mas a Lei lhes serve de freio e os re- Por que é difícil a compreensão desse ato de revolta, se con-
põe em seus limites, disciplina-lhes o desenvolvimento, guia- tinuamente violamos a Lei, embora sabendo que devemos pa-
lhes a ação através dos instintos e os mantém no posto que lhes gar? Sabemos e, entretanto, nos iludimos, porque somos venci-
fora designado na estrutura orgânica do Sistema. E a realidade dos pelo instinto dominador e expansionista do ―eu‖. Como da
quotidiana da vida não repete aos nossos olhos as mesmas coi- primeira vez, o mesmo ato repercute e retorna em nossa experi-
sas? Nós também dizemos às crianças, ávidas de romper o freio ência cotidiana. E, por ventura, não comprovamos em nossas
do limite, para não fazer isto ou aquilo, a fim de evitar-lhes da- vidas que do erro nasce a necessidade de remediá-lo, nasce uma
no e, frequentemente, eles não obedecem e depois pagam com a dor pela qual expiamos e, expiando, aprendemos a não mais
dor, que é, quando erramos, a salutar lição para nos reconduzir cometê-lo? Não vivemos nós comprimidos nas malhas de uma
à ordem. Assim também, automaticamente, devem recair nos lei onde qualquer violação é erro, o qual pagamos com dolorosa
espaços vitais que lhes cabem todos quantos tentam evadir-se, experiência? Mas, apesar de tudo, continuamos a violar, sendo
violando a Lei. Quem espera vencer sem esforço, isto é, fora da a dor um tributo nosso. A Lei é perfeita, e quem a cumpre não
Lei, perde e paga. O prazer fora da ordem, no vício, acarreta so- pode deixar de ser feliz. Se a dor é um fato real, inserido em
frimento e obriga a pagamento. nossa vida como elemento inseparável e fundamental, isto só
Ora, os espíritos sabiam os seus limites e não deviam ultra- pode ser explicado como um erro proporcional à fundamental
passá-los; sabiam ser parte de um sistema a ser respeitado, com violação inicial da ordem divina.
cuja lei deviam harmonizar-se; sabiam que era dever não ir A dor é um fato inegável e tremendo, que, cedo ou tarde,
além dos limites assinalados nem invadir a zona reservada a atinge a todos, porque é inevitável. Sem a queda, a dor seria
Deus. Tudo isso sabiam bem. Não foi por ignorância que erra- uma condenação imerecida, o belo presente dado por um Deus
ram. O seu ato foi uma revolta consciente, feita, portanto, com que cria por amor! Seria, porém, um presente de ódio, ainda
plena responsabilidade. Os espíritos podiam ver escrita no pen- que nos servisse para pagarmos uma futura felicidade. A evo-
samento de Deus a norma que lhes era pedido – como seres lução é o necessário sacrifício da subida, se não quisermos
sempre livres, mas responsáveis – aceitar espontaneamente. agravar a nossa situação, descendo. Somente nesse sacrifício
Eles não a aceitaram. Ouviram a palavra de Deus e não quise- de ascensão está a salvação. Sem a queda, porque esse sacrifí-
ram acreditar. E nesse ponto deviam acreditar, pois não conhe- cio? Talvez para pagar a Deus o dom da vida? E onde está a li-
ciam todo o Sistema, já que o conhecimento total só cabia a berdade e o amor, quando se é constrangido pela força a pagar
Deus. Eles conheciam o Seu comando, a norma a seguir, mas tão caro essa vida, que o espírito não pediu a Deus? Mas que
uma coisa ignoravam, pelo menos por experiência própria dire- Deus seria esse que não saberia gerar senão na dor, não reser-
ta: a desobediência faria os rebeldes decaírem, gerando a dor, vando à criatura mais do que a dor?
que eles ainda desconheciam. Como se vê, se recusamos a teoria da queda, entramos nu-
Pode-se objetar: ―Mas Deus deveria ter dado esse conheci- ma insolúvel trama de contradições e absurdos, de que nasce
mento‖. Há, todavia, uma imprescindível necessidade lógica, uma triste ideia da divindade. O homem pode bem justificar-
que impede tenha o absurdo lugar no Sistema. Deus não podia se, fazendo do erro da criatura um erro de Deus, mas não há
tirar do Seu seio tantos deuses iguais a Si mesmo, pois, como quem não veja nisso um absurdo. Na vida, temos que nos re-
tais, seriam senhores de todo o conhecimento. Ele não podia de portar ao erro para explicar a dor, porque ele é essencialmente
Si mesmo, que era o Todo, tirar senão momentos menores que um estado de desarmonia na ordem da lei de Deus. Ora, pode-
o Todo, dotados, pois, de conhecimento menor e parcial, em fa- mos nós admitir um erro em Deus? Não, é absurdo. Então, on-
ce do Seu, o único que podia ser total. Tudo isto está implícito de poderá ele ter existido, senão na criatura? É inútil procurar
na lógica do Sistema e constitui, assim, uma necessidade, mes- mais, pois não há escapatória.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 197
Que resta, então, do dilema já proposto: ―Ou os espíritos existe justamente uma realidade para torná-las possíveis. E esta
eram sábios e, por conseguinte, não podiam cair, ou eram ig- realidade está em que o homem é realmente feito à imagem e
norantes e, nessas condições, não podiam ser culpáveis?‖. Que semelhança de Deus, porque é Seu filho, de origem divina e,
resta do outro dilema, pelo qual Deus não podia ser nem oni- ainda que filho degenerado, é sempre filho, semelhante ao Pai.
potente nem perfeito? Deus que nos salve dos dilemas, que pa- Ora, tudo o que houve na revolta e queda é igualmente pro-
recem uma tenaz de aço, mas que nada comprimem, porque, vado pelo fato de que, como também é lógico, tudo isso conti-
no fim, descobre-se que um dos seus braços era fictício. In- nua a ocorrer todo dia em nossa própria vida, em uma série de
cumbe-nos mostrar a lógica dos fatos. Os espíritos sabiam que maneiras de agir, verificada por motivos de um dado tipo, que,
a zona do ignoto era destinada à obediência. Eles sabiam, não de outra forma, ficariam sem ter explicação. Por que teria a con-
eram ignorantes, sendo, por conseguinte, responsáveis e culpa- duta humana assumido esta direção? Por que corresponde ela a
dos. Sabiam o quanto bastava para obedecer e não quiseram, tal ordem de princípios conhecidos, como o bem e o mal, a dor,
porque não acreditaram. Tudo foi merecido, segundo a divina o progresso, a ideia de Deus etc.? De onde surgiu este sistema,
justiça. Só assim poderia permanecer intacta a liberdade. E o que também é lógico para a humanidade inteira? Como explicar
amor de Deus persistiu, porque, no Seu aspecto imanente, Ele a gênese e o profundo significado de tudo isto? O hábito nos faz
desceu com a criatura, para ajudá-la a subir. Só assim se com- esquecer estas questões, por isso os simples não as propõem,
preende e justifica o sacrifício da evolução. Somente assim a achando tudo natural apenas porque sempre viram tudo assim.
dor nos revela a sua lógica gênese. Unicamente desta maneira Mas isto não basta para satisfazer a quem pensa. Somente este
se confere um valor lógico a todos os termos da equação, tor- conjunto de remotíssimos precedentes pode ter marcado a via e
nando possível coordená-los em um princípio unitário dentro a direção para um movimento ou desenvolvimento particular de
de um sistema orgânico. Caem assim apenas os rebeldes. Ex- fenômenos que, atualmente, por inércia, continuam a se desen-
plica-se então a gênese do universo físico, a evolução das di- volver justamente segundo o tipo com que nasceram. Somente
mensões, o espaço curvo em expansão, o processo evolutivo. assim podemos explicar porque continuamos a errar e sofrer ce-
Desta forma explica-se tudo; de outro modo, nada. O grande gamente, quando a felicidade está pronta na adesão à Lei. Con-
desmoronamento é um desastre, mas o Sistema é tão perfeito, tinuamos, porque somos filhos do erro.
que pode restabelecer-se. Tudo se reduz a uma lição instrutiva, Erro e dor são conexos em uma lógica de ferro. A dor é um
para que se aprenda a não mais errar. Compreende-se então o fato real. Há, pois, uma necessidade absoluta de admitir o seu
significado da dor, amarga medicina que cura o enfermo e eli- termo paralelo e complementar: o erro, sem o qual a dor não se
mina o mal, que restaura o ser no ponto em que se feriu ao er- explica e, num universo lógico, cairíamos num flagrante e in-
rar e o robustece nos lugares em que se revelou fraco e ignaro. concebível absurdo, um absurdo de tal ordem, que faria ruir a
Não é este o processo corretivo de todo erro nosso em cada re- lógica de todo o sistema, provocando o seu desmoronamento e
encarnação? Nada de vingança punição ou condenação, mas chegando mesmo a macular de maldade e incoerência o sem-
escola para a reconstrução da felicidade! blante de Deus. É tão grande a contradição, que nenhum ser ra-
Quisemos acrescentar tudo isto, mesmo repisando alguns cional poderá introduzi-la nas próprias conclusões. Entretanto
conceitos, a fim de que tudo seja exaustivamente controlado pe- se chega a ela, o que quer dizer que os termos em que foi colo-
la lógica e claramente demonstrado para todos. cado e desenvolvido o problema estão errados. A lógica tem
◘◘◘ suas exigências matemáticas, das quais o nosso pensamento não
Tudo que dissemos tem sua lógica. Logo, que as coisas se- pode fugir, porque ele se move num universo regido pelas ne-
jam assim, não padece dúvida. O nosso problema, aqui, reside cessidades matemáticas de tal lógica.
em fazer a psicologia moderna compreender que é realmente Compreende-se, todavia, que alguns se rebelem contra essa
assim, em termos que ela possa aceitar, dada a sua formação. teoria da queda e do desmoronamento. Para impressioná-los
Não há razão que nos leve a crer que o universo seja uma obra menos, poder-se-iam criar termos novos, mas seria trabalhosa
ilógica e que o pensamento de Deus, que tudo guia e sem o qual para o leitor uma terminologia nova. Contudo o conceito não
nada se explica, não deva ser um processo lógico. A mais avan- se alterará. Rebelam-se com razão, porque essa teoria foi até
çada ciência materialista, ela própria, já admite isto, que tam- hoje apresentada apenas como enunciado de revelação, e não
bém ressalta na presente obra. ―Mas que lógica?‖, poderemos explicada e demonstrada através de uma análise racional e ló-
indagar. A lógica de Deus não poderia ser um outro sistema de gica. Ela permaneceu, assim, como um ato de fé, como uma
lógica? O fato é que, em nosso universo, comprovamos um só lenda envolta no mistério.
tipo de lógica, que é também a humana, e é este fato que nos O problema, para sua explicação, foi enfrentado com as já
torna o universo compreensível. Se este correspondesse a um expostas objeções e dúvidas, que deixam tudo sem solução, qual
outro tipo de lógica, não lhe seriam aplicáveis os nossos siste- indagação feita pela metade na fase de interrogação, sem com-
mas matemáticos, aos quais, pelo contrário, ele corresponde plementar-se jamais na fase de resposta. É natural que, dessa
perfeitamente. Não existe, pois, razão alguma para crer que a forma, a teoria da queda permaneça como um esboço incomple-
lógica do pensamento de Deus deva obedecer a leis diferentes to, do qual se arredam entediadas as mentalidades racionais. É
daquelas a que obedece a lógica humana. Entre o pensamento cabível, então, que a elas repugne aceitar uma teoria que se
do homem, como função primeira do espírito (que vimos não apresenta vaga, incontrolável e contraditória. Responde-se: é
poder ter sido originado senão de Deus – espírito), e o pensa- mistério. Mas o fato é que a mentalidade racional moderna
mento de Deus deve existir um denominador comum, por mais abandona no vazio do incerto tudo o que ainda permanece inso-
remoto e profundo que seja, dado pela mesma substância que os lúvel, aceitando e tomando para exame apenas o que é positiva-
constituem. Há ideias axiomáticas, não demonstradas, com as mente compreensível, porque é racional. E aqui temos de falar
quais instintivamente toda a humanidade concorda. São concei- esta linguagem se quisermos despertar a mente moderna. É o
tos metafísicos, que não constituem resultado da experimenta- nebuloso, o desgaste pelo ilógico, que faz nascer nela fastígio e
ção biológica. O fato é que, no fundo do pensamento do ho- rebelião, quando ouve falar em queda dos anjos. É reportando-se
mem, quanto mais reto, evoluído e inteligente for ele, tanto aos velhos conceitos tradicionais que muitos ficam chocados.
mais fala o pensamento de Deus com a sua lógica. Na verdade, Mas aqui se trata de outra coisa. Nós não repetimos ideias
o homem tem de Deus uma representação à sua imagem e se- de nenhuma religião ou escola. Com o método da intuição, en-
melhança, criando-O dessa forma. Mas aqui se trata de uma das caramos os fatos – transcendentais, mas sempre fatos. Sem tê-
aproximações sucessivas, que só são possíveis quando sob elas los procurado, concordamos com os enunciados sumários da
198 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
revelação, o que é uma prova em favor, e não contra. Já que não da liberdade, pois que a criatura não podia ser um autômato, ain-
é possível dar ao leitor a sensação desta visão, procuramos des- da que perfeito. A prova era um exame lógico e necessário.
crevê-la com os únicos meios que temos à disposição: a lógica Pode-se objetar que Deus, por saber com antecipação que
e os argumentos, como só se pode fazer para explicar a luz a muitos falhariam na prova, devia impedi-la. Mas não se pode-
um cego. Acreditamos tê-lo conseguido. Mas se assim não foi, ria evitá-la, senão violentando a liberdade do ser, tornando-o
repetimos ainda: fatos são fatos. um autômato, incapaz de compreender e dirigir-se consciente-
Dizíamos que a Lei reage. Mas aquilo a que chamamos dor, mente. Significaria alterar todo o Sistema, abalando-o pela ba-
que crucia, é atribuído a Deus, a causa de tudo, culpando-O se. O raciocínio do homem preocupa-se, sobretudo, em como
também dela. Revoltam-se porque acreditam ver em tudo isto se poderia ter evitado a dor, que tanto o vergasta, mas não leva
uma punição, uma vingança divina. No entanto a queda não foi em consideração muitos outros elementos necessários. Como
vingança, nem punição. Deus é sempre amor. Deus jamais pu- podia Deus, logicamente, impedir pela coação semelhante ex-
ne. A punição é infligida pelo ser a si mesmo. Dada a estrutura periência? A prova consistia exatamente em uma livre adesão
do Sistema, ele, através da rebelião, lacerou as carnes com as por fé e obediência, na reciprocidade por amor. Se não entrava
próprias mãos. Quem compreendeu a estrutura do Sistema não na lógica do Sistema a possibilidade de tal constrição, Deus,
pode falar de vingança. Esta é uma concepção antropomórfica, que sabia da queda de muitos espíritos, não os deveria ter cria-
é como querer explicar o trovão como ira dos deuses. Se per- do então? Mas o Sistema é um organismo compacto, de férrea
demos o equilíbrio e quebramos a cabeça, não é porque as leis lógica, e nela não podia caber essa possibilidade, que teria sido
do equilíbrio e a gravidade nos tenham querido punir e vingar- um ato de flagrante injustiça. Por que tolher aos candidatos à
se. No campo moral é a mesma coisa. O universo é regido por queda o dom máximo da existência e a possibilidade de redi-
uma ordem, por uma lei. Quem a viola não violenta ou altera a mir-se, alcançando a felicidade eterna, ainda que através da
intangível ordem divina, mas gera apenas uma desordem em si dor? Que punição e que injustiça não teriam sido essas, pois
próprio; não subverte a Lei, mas inverte-se a si mesmo no seio que seria condenação antecipada de inocentes, antes de have-
da Lei. É necessário compreender que a criatura é livre, mas rem cometido qualquer erro! É lógico que Deus deixasse a es-
dentro de limites; livre para alterar-se a si mesma, mas não a ses espíritos a liberdade e a vida, que constituem sempre ato de
ordem universal. A criatura deverá, pois, sofrer as consequên- bondade e de amor, porque a escolha continuava entre a via
cias dessa alteração, que diz respeito só a ela, e sofrerá pela sua curta da felicidade pela obediência à ordem da Lei e a via lon-
desarmonia, que ela desejou, até reintegrar-se através do sacri- ga da redenção pela dor, após o erro da revolta.
fício na zona por ela violada, na ordem por ela alterada. Deus permitiu o erro justamente porque sabia. E sabia tam-
Dizíamos que a Lei reage. Mas aquilo a que chamamos rea- bém que esse não era um mal irreparável, mas apenas uma via
ção é uma sua resistência à deformação, uma resistência elásti- mais longa para alcançar a felicidade eterna. Vimos que o mal
ca que se pode comparar à da borracha, que cede, mas resiste, e ou se converte em bem, ou está destinado, pela férrea lógica do
que, quanto mais cede, tanto mais se retesa, para reconduzir tu- Sistema, à autodestruição. Deus sabia que a Sua criatura, qual-
do ao estado normal anterior. Assim a Lei, como norma, é invi- quer que fosse a via que tivesse escolhido para percorrer, alcan-
olável, determinística vontade absoluta de Deus. Mas essa Lei é çaria a felicidade. Eis que o amor, a bondade, a justiça, a lógica
dotada de uma certa elasticidade, no quanto basta para conter de Deus ressaltam sempre mais evidentes em cada caso. Fala-se
um dado âmbito no arbítrio e amplitude de movimento, que re- de vingança por cegueira, e não se vê que o amor de Deus foi
presentam a liberdade humana, isto é, a possibilidade de esco- tanto, que, como Filho, desceu ao nosso mundo para sofrer co-
lha e, por conseguinte, de erro, necessários para experimentar e, nosco e redimir-nos, ensinando-nos a subir! Foi tamanho esse
no caso de erro, para aprender. Compreende-se que a perfeição amor, que Ele quis descer dos céus, da transcendência à ima-
não pode deixar de ser determinística, no sentido de que só o nência, para permanecer em nosso contingente. Assim, o médi-
melhor absoluto pode ocorrer. Tal é o sistema incorrupto dos co vela e ajuda o enfermo de perto, até que ele se tenha restabe-
espíritos que não erraram e não caíram. Pode, pois, deste ponto lecido. Que mais se poderia pedir a este Deus, que muitos pre-
de vista, parecer mesmo que o arbítrio humano, além de ser um tendem acusar de injustas punições? Ao contrário, quanta sabe-
resíduo da liberdade originária, seja um produto da queda, visto doria, quanto amor, quanta bondade! Só mesmo uma grande ig-
que a escolha significa uma incerteza e uma procura do melhor norância pode concluir de maneira diversa.
absoluto, que se perdeu e ainda não foi reconquistado. Os ter- É o antropomorfismo que leva o homem a aplicar a Deus
mos do nosso estado de decaídos escalonam-se nesta ordem de os princípios do seu plano biológico. Repitamos: Deus jamais
sucessão: incerteza, escolha, experiência, erro, dor, prova, esco- pune. O que nos parece punição não é resultado de uma ativi-
la, conhecimento. Estes são os termos do desmoronamento e dade positiva de Deus contra a criatura – conceito absurdo –
reconstrução de consciência, termos que não podem existir no mas sim a automática consequência da ausência de Deus,
estado de perfeição e que a própria evolução, isto é, nosso re- quando Ele é repelido pela criatura. A causa determinante é a
torno a Deus, vai realmente reabsorvendo e eliminando com a recusa voluntária da criatura. Deus não inflige punições, mas,
progressiva conquista de consciência. No estado de perfeição quando a criatura O nega e repele, Ele respeita a liberdade que
dos espíritos que aderiram à Lei, só há uma liberdade possível: lhe deu e, assim, pela própria vontade, a criatura se afasta de
a absoluta adesão à Lei, que é a vontade divina; adesão livre e Deus, como se Ele se tivesse retraído. Ora, uma vez que Deus
espontânea, querida e consciente. Por este motivo os espíritos é vida, a maior punição é esse afastamento, porque significa
rebeldes deveriam ter obedecido e, como desobedeceram, caí- privação de vida. E, com a revolta, a criatura se privou da pró-
ram. Nessas alturas não podem subsistir os nossos conceitos an- pria vida, que é dada pelo espírito, tornando-se matéria, mas
tropomórficos de liberdade, arbítrio ou capricho. com possibilidade de ressuscitar da sua sepultura.
Mas esclareçamos ainda melhor. Quando Deus criou o ser Tudo isto demonstra como se fosse lógica e fatal a queda
puro espírito, deixou apenas um ponto incompleto na Sua obra, a após a revolta, porque esta significava um afastamento de
fim de que ela fosse completada pela livre adesão do ser. Este Deus, ou seja, da vida; significava, portanto, um suicídio, a
deveria, com a aceitação, harmonizar-se com o Sistema e, nele morte, ainda que a bondade de Deus lhe deixasse a possibili-
fixando-se em seu posto, dar prova de que sabia fazer bom uso dade de ressurgir para a vida, corrigindo o erro com a dor. Tu-
da liberdade e inteligência que Deus lhe dera, compreendendo do isto poderá agora nos permitir melhor compreender também
qual era o seu lugar na ordem da criação. Elevar o ser ao grau de aquilo a que já nos referimos precedentemente, no presente ca-
colaborador da obra de Deus foi ato de amor, ato paralelo ao dom pítulo, com respeito à anulação dos espíritos rebeldes, que in-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 199
sistem em permanecer na rebeldia. O espírito que recalcitra na orgânica, que a revolta não lhe afetou a perfeição, permitindo
revolta é anulado (ainda que o seja somente como individuali- que todos se salvem. Finalmente, desaparecerá qualquer traço
zação, e não como substância, porque esta, sendo de Deus, é de erro com suas consequências, sendo o mal e a dor elimina-
indestrutível), em virtude de que todo o afastamento de Deus dos do Sistema. A cruz que Cristo tomou sobre os ombros ino-
significa morte, porque Deus é vida. Negar Deus é o mesmo centes era o efeito do desmoronamento. Ele a carregou para
que negar a existência, porque só Deus é, e fora de Deus nada que todos, com Ele, reabsorvessem na dor a consequência do
mais pode ser. Deus é o Todo, e sair do Todo é cair no nada. erro. Que maior amor poderia revelar pela sua criatura um
Fora de Deus, que é o Todo, não pode existir senão o nada. É a Deus Que, após lhe haver dado a vida, desce a sofrer com ela
natureza de Deus e a própria estrutura do Sistema que, automa- para devolver-lha, quando ela já a havia perdido?
ticamente, sem nenhum ato ou intervenção de Deus, implicam É bom, é lógico, é satisfatório reconhecer no amor o centro
a morte de quem se afasta Dele. Somente em Deus é possível do Sistema. É este princípio de amor o princípio de coesão que
existir, no seu seio e na sua lei, e a Ele retornando, se a criatura mantém una a Divindade, ainda que, para criar, ela se cindisse
se afastou. Quem não estiver com Deus, afastando-se Dele e no seu íntimo (dizemos íntimo, porque nada se pode acrescen-
não mais retornando a Ele, perde a existência. tar ao Todo, e Deus é o Todo). É este princípio de amor que
A essência da queda não é, portanto, um ato de punição, também mantém unido o edifício desmoronado e o reconduz à
mas o afastamento de Deus, desejado pela criatura, que tem fa- salvação, mesmo que seja através da dor. Quanto mais se desce
tal necessidade de subir novamente a Ele, se quiser reencontrar nos planos da queda, tanto mais áspera é a dor e tanto mais
a vida. Como o edifício criado por Deus se poderá manter sem amarga de ódio. Quanto mais se sobe na evolução, tanto mais
Deus, seu princípio animador? Não será lógico o desmorona- dulcificada pelo amor ela será. Assim, a dor de Cristo na reden-
mento para os seres que se afastaram desse princípio? A revol- ção está baseada no amor, enquanto a dor de Satanás não tem
ta contra Deus significava revolta contra a própria vida do ser, esperança de ascensão e é baseada no ódio. Amor invencível,
contra a sua própria existência. O que poderia resultar desse que resiste à revolta da criatura. Amor que conserva, mesmo no
comportamento, senão a morte, um não-ser, como é para a universo decaído, o divino princípio positivo da reconstrução!
consciência (qualidade do espírito) a inconsciência (qualidade Amor que luta contra o satânico princípio negativo da destrui-
da matéria)? Assim a queda foi um desmoronamento de di- ção, e o vence. Amor que permanece, ainda que a revolta tenha
mensões em planos de vida inferiores, involuídos, em que to- sido a resposta da criatura com a sua negação! Amor que conti-
dos os dons de Deus se contraíram em um estado potencial, de nua a cimentar as partes do edifício desmoronado, fazendo dele,
latência, do qual só o sacrifício de ascensão do ser poderá reti- mesmo assim, um sistema orgânico como é o nosso universo!
rá-los, despertando-os para a atualidade. Ora, o ser, para curar- A criatura rebelde pretendeu atentar contra o Sistema para
se da desobediência, deve compensar a ordem com equivalente lhe alterar os planos hierárquicos, e ele, baseado em uma férrea
obediência à Lei, para que o equilíbrio seja restabelecido. Não lógica de amor, resistiu e a está salvando. E a pena para a re-
se pode em tal sistema restabelecer a harmonia de outra forma. volta é uma lição de amor, porque, se é dor, também é impulso
O homem deve, assim, provar o aspecto duro da Lei, mas esta e pressão para a reconquista da felicidade. O ser deverá sofrer
permanece sempre lógica, boa e justa. No fundo da descida es- até aprender a grande lição de amor, até saber como deveria
tá o inferno; no ápice da subida, o paraíso. De fato, quanto ter, no início, espontaneamente retribuído a Deus o amor que
mais se desce, mais aumenta o egoísmo separatista, a desar- de Deus recebeu. Sem o amor, o Sistema não se mantém, como
monia, a luta e a agressividade entre os seres, sempre dispostos efetivamente se verificou no desmoronamento, onde ele faltou.
a entredevorarem-se. Quanto mais se sobe, tanto mais a vida se Sem o amor, a criação teria sido uma cisão de Deus em partes,
harmoniza em paz e amor. e o Todo não poderia conservar-se, em Deus, um organismo
Eis, pois, tudo esclarecido até às origens. Assim se explicam uno. Daqui a necessidade absoluta da existência no Sistema da
as razões e as causas deste processo evolutivo, do qual, em A livre correspondência de amor, que era o conteúdo da prova
Grande Síntese, só se fez um exame objetivo, uma comprova- em que os espíritos rebeldes falharam. Tudo isto, repetimos,
ção do fato. A muitos poderá desagradar este destino de tão la- porque, sem amor, o Sistema não se mantém. Eis o que está
boriosa ascensão pela conquista da felicidade. Mas não está tu- em seu centro e lhe constitui a essência.
do agora lógico? A nossa miséria atual não é um defeito de cri- Temos observado o problema sob todos os pontos de vista e
ação, uma culpa de Deus. É uma mácula, uma chaga nossa, que sob o fogo de todas as objeções. Agora, o desígnio da obra di-
Deus está curando. A dor permanece, mas com uma interpreta- vina está claro. Dele, como a nossa mente exige, foi eliminado
ção tão otimista, que adquire um grande significado positivo e tudo que é negativo e absurdo, como erro, imperfeição, desor-
um poder construtivo em nossa vida. E a criação, que verifica- dem, injustiça, maldade, que não podem ser atributos de Deus.
mos ser contínua, é assim, na sua essência, uma obra de resta- Não restou senão o que é positivo e lógico, como perfeição, or-
belecimento contínuo, com a qual Deus auxilia o homem a re- dem, justiça, bondade, amor. Um sentido instintivo nos diz que
construir o edifício desmoronado. Assim, tudo se explica em é assim e não pode deixar de ser. Somente dessa forma o nosso
perfeita lógica de bondade. Se, nessa lógica do Sistema, colo- espírito se sente satisfeito, saciado e receptivo. Ele exige que a
carmos os conceitos fora do respectivo lugar, é natural que re- ideia de Deus se salve e se conserve. O resto não é explicação;
sultem quadros horríveis, monstruosos, como em um mosaico é blasfêmia! O princípio do amor está no vértice da criação, foi
em que as diferentes pedrinhas fossem assentadas ao acaso. o seu motor, é a força que rege. Deste vértice, o amor tudo
Mas respeitemos a lógica (o Sistema está saturado dela), e entre anima e sustém. Se em Deus existe o aspecto justiça, sabedoria,
nós aparecerá a maravilhosa beleza e perfeição do plano divino. bondade, lógica, ordem, poder etc., a última síntese do pensa-
Que maior maravilha do que o surgimento do aspecto ima- mento e vontade de Deus é dada pelo amor.
nência da Divindade, que assim permanece presente no univer- ◘◘◘
so desmoronado, nele descendo para animá-lo, curá-lo e salvá- Poderíamos, após o exposto, considerar exaurida a argu-
lo? Que perfeição no Sistema, fazendo com que um erro – a mentação e nada mais acrescentar. Queremos, todavia, ainda
revolta – ao invés de constituir um desastre irreparável, trans- esclarecer melhor qualquer dúvida, especialmente no que se
mude-se em um processo de restabelecimento semelhante ao refere à teoria, em que muitos creem, pela qual se admite, ao
que o poder curativo da natureza (imanência de Deus) exerce invés da queda dos anjos, uma criação progressiva, evolucio-
num organismo enfermo! Não. Não houve nenhum defeito de nista, no sentido de um universo criado imperfeito e a caminho
origem. Ao contrário, o Sistema é tão perfeito na sua estrutura de um aperfeiçoamento contínuo.
200 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Após ter submetido semelhante teoria a uma séria análise, sobre a criatura? O que se pode pretender de bom e o que pode
despidos de preconceitos, fomos obrigados a recusá-la, porque exigir o Evangelho de um ser criado em condições tão más,
ela nos levaria a cair numa série de absurdos, que nos permiti- quando a vida é uma condenação e a criação, um delito?
mos aqui sujeitar a exame. Não! Se verificamos que efetivamente a criatura sofre e pa-
Deus, sendo perfeito, não pode deixar de criar senão perfei- ga algo através de sua dor, devemos, por um senso de lógica e
tamente, mas teria feito uma criação imperfeita. Deus, Que é de justiça, admitir que ela deve pagar algo que lhe compete, um
Espírito e ordem, teria tirado diretamente da Sua essência a ma- erro ou uma culpa que seria absurdo atribuir à perfeição de
téria e o caos, que são o ponto de partida da evolução. Deus, Deus. Olhamos o efeito, e a sua natureza nos indica a causa que
que é tudo e representa toda a existência, pois fora Dele nada o produziu. Se tivesse sido o Criador a causa, Ele e ninguém
pode existir, faria derivar tudo do nada (a Sua negação, porque mais deveria expiar na dor. E como pode o Onisciente ter ne-
Deus é o ser), e a Sua grande obra criadora não passaria de uma cessidade da escola da dor para aprender?
inversão, restabelecimento ou reconstrução do Seu contrário. Como se vê, quanto mais se medita na teoria da criação
Isto presume um antagonismo, uma cisão e luta de dois princí- progressiva, mais se torna esmagador o acúmulo dos absurdos.
pios opostos na própria essência de Deus, independentemente e Se a alguém, por preconceito de grupo, pode desagradar a teo-
também anteriormente à criação. O ponto de partida desta esta- ria da queda dos anjos, apenas porque ela é admitida pela teo-
ria não em Deus, mas nos antípodas de Deus; não no absoluto, logia católica, incumbe-nos afirmar que nos preocupamos so-
no imóvel, no espírito, na perfeição – qualidades de Deus – mas mente em conhecer a verdade e que a aceitamos onde quer que
no relativo, no transformismo, na matéria, na imperfeição, que ela se encontre, desde que convença e satisfaça, independen-
são o oposto de Deus. É evidente que tudo isto não pode ser temente de qualquer preconceito de religião, escola filosófica
obra de Deus, pois Ele não pode errar, e sim obra de uma cria- ou grupo humano.
tura que podia e livremente quis errar. Tudo isto não podia nas- É oportuno indagar agora como pode ter surgido essa teoria
cer diretamente de Deus, mas somente em um segundo tempo, da criação progressiva, evolucionista, de um universo criado
posterior à primeira criação, por obra de um outro ―eu‖ e em imperfeito e em via de contínuo aperfeiçoamento.
consequência de uma outra causa. E, como tenha ocorrido isto, Essa teoria nasceu em virtude de corresponder à realidade do
procuramos logicamente demonstrar neste volume, de acordo que se observa, fornecendo-nos uma primeira explicação, embo-
com uma outra teoria, a da queda dos anjos, a única para nos ra superficial, do fato indiscutível da evolução, que realmente
salvar de tal cadeia de absurdos. leva o universo de um estado de imperfeição, caos, matéria, ao
Prossigamos no exame. Segundo a teoria da queda, Deus de perfeição, ordem, espírito. O fato existe. O erro está em sua
desce ao nosso universo por amor, para salvá-lo. De acordo interpretação. Ninguém ousará discutir o fato, porque é uma rea-
com a teoria da criação progressiva, Deus, Que é perfeito, põe- lidade. Se não quisermos, porém, cair nos absurdos menciona-
se – Ele, que é tudo – através de Suas criaturas, em um estado dos, impõe-se explicá-la não como consequência da obra de
de desmoronamento do ser, isto é, um estado em que a consci- Deus, mas como consequência do desmoronamento do Sistema,
ência, primeira qualidade de Deus, se anula na matéria. O ponto decorrente da queda por obra da criatura. O fenômeno da evolu-
de partida da criação progressiva seria um estado em que Deus ção não pode ser um absurdo e incompreensível caminho em
se autodestruiu nas Suas qualidades primaciais, estabelecendo a uma só direção, um semiciclo desprovido do seu semiciclo in-
própria negação na inconsciência, na dor e no mal, para iniciar verso e complementar, sem o que não se forma o ciclo completo
um penoso sacrifício de ascensão, cotidianamente imposto à e o fenômeno não se verifica nem se explica no equilíbrio divi-
criatura, certamente inocente de tudo isto. Os elementos fun- no. O fenômeno da evolução existe e é aceito, mas só se pode
damentais do Sistema, isto é, amor, bondade divina, liberdade compreendê-lo e admiti-lo como contraparte de um inverso pro-
da criatura, falhariam completamente desta maneira. E não se cesso involutivo, causado pela criatura. Esta devia necessaria-
poderia imaginar mais absurda violação da justiça no seio de mente ser livre, mas como não podia ser igual a Deus, era passí-
Deus, que não pode deixar de ser essencialmente justo. vel de erro e, por isso, embora advertida do perigo, quis por de-
O mal e a dor teriam sido, pois, obra direta de Deus e, por sobediência errar. É certo também que a criação é progressiva,
conseguinte, de Sua natureza malvada. Deste modo, a obra da mas não no sentido de uma nova criação, porque tudo já estava e
criação tornar-se-ia uma maldição para a criatura, uma conde- está em Deus sempre, e a Deus nada se pode acrescentar, assim
nação de que o ser inocente deve redimir-se à custa de um ili- como Nele nada se pode criar ou destruir. A criação é verdadei-
mitado tormento. Dever-se-ia dizer então não como escreveu ramente progressiva, mas no sentido de reconstrução de um edi-
São João: ―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com fício desmoronado, do qual estão sendo juntadas as partes desa-
Deus‖, mas sim: ―No princípio era o mal e a dor, e eles estavam gregadas e reedificados os planos afundados.
com Deus‖. A grande obra divina teria sido a criação de um in- Em nosso universo, é absurdo um fenômeno unilateral, de-
ferno, e à criatura só restaria o penoso encargo de redimir-se sequilibrado pela falta do seu complemento compensador; um
dele com a própria dor. E tudo sem liberdade de escolha, sem fenômeno que avance em uma só direção, isto é, apenas um
culpa alguma, como uma fatalidade sem apelo. Para condenar a semiciclo, um semicircuito, significando um semifenômeno.
criatura, Deus não lhe teria pedido permissão, nem lhe teria da- Todo fenômeno tem de volver sobre si mesmo para completar-
do a faculdade de escolher. Desta maneira, ela já se encontra no se, permanecendo sempre a mesma substância, ainda que mude
inferno ao nascer, sem saber por que, automaticamente. Se qui- a forma, porque ele é apenas um estado de vibração interior
ser e souber subir através de seu sacrifício, para lhe fugir, con- com finalidade de elaboração evolutiva, e não um deslocamen-
segui-lo-á; de outra forma, nele permanecerá para sempre. to real. A mobilidade é, assim, só aparente, situada no relativo
Mas eis que, um dia, desperto de tão horrível obra, exclusi- de um vaivém cíclico, enquanto, no absoluto, tudo permanece
vamente Sua, Deus se arrepende e, para remediar o mal, verifi- imóvel. Sabemos que o transformismo é filho da queda, pois
cando que o homem por si não consegue subir, envia Cristo, o em Deus não há mutação nem evolução, mas tudo simples-
filho dileto, também Ele inocente, para ser sacrificado por um mente é. Tudo, pois, no universo, deve completar-se no seu
Deus injusto e pagar um débito que ninguém contraiu, nem semiciclo e com ele volver ao ponto de partida, porém com um
Cristo nem a criatura, ambos inocentes. Como se pode então pequeno deslocamento, que constitui a evolução. Todos os fe-
negar razão ao homem que blasfema contra semelhante Deus, nômenos caminham em duas fases inversas e complementares,
quando Ele lhe é apresentado revestido de tais absurdos? Se o sem o que, no transformismo, não pode haver fenômeno. Efe-
mal e a dor foram criações diretas de Deus, como atirar a culpa tivamente, este pode ser definido como um momento particular
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 201
do transformismo evolutivo. Por esta razão o fenômeno não rá. O homem atual é analítico, vê as coisas da Terra e do plano
pode existir no absoluto. físico, que ele confunde com a realidade e acredita ser todo o
A própria teoria da reencarnação, realizando contínuas in- universo. Por ser periférico, vê o Sistema de uma posição peri-
versões entre vida e morte, entre erros e expiações, prova-nos o férica. De tal ponto de vista, tudo deve evidentemente parecer
princípio fundamental do ciclo completo, composto de dois se- invertido. Hoje, de fato, a superação é frequentemente tida por
miciclos: queda e ressurreição. Há absoluta incompatibilidade patológica. Tudo depende do ponto de referência, que, neste
entre a teoria da criação progressiva e a teoria da reencarnação. caso, é representado pelo tipo biológico corrente, ou seja, pelo
Uma exclui a outra. Se admitimos a reencarnação, temos que involuído. É natural, então, que a catarse biológica, que é supe-
abandonar o conceito de criação unicamente progressiva e acei- ração e sublimação, vista assim de baixo, de uma posição in-
tar a teoria da queda. Se aceitamos a criação apenas progressi- vertida, possa parecer deformação e regressão, quando é for-
va, é necessário abandonar o conceito de reencarnação. Isto mação e progresso de vida. Este problema já foi por nós exa-
porque, segundo o princípio de criação progressiva, que se de- minado no Cap. XXVI – ―Sexualidade e Misticismo‖, do vo-
senvolve apenas no sentido evolucionista, sem o precedente lume precedente, Ascensões Humanas.
semiciclo involucionista, o criado deve mover-se em uma única Para aprofundar o fenômeno da sublimação espiritual, co-
direção, devendo ser desconhecido no sistema, jamais apare- meçamos aqui a orientá-lo, enquadrando-o no esquema do uni-
cendo, o princípio do ciclo. Se este princípio surge em um caso verso atrás exposto, que aqui resumimos em relação ao fenô-
particular, num universo que sabemos construído num tipo úni- meno, submetendo-o ao habitual método da intuição.
co de sistema, depois repetido em todos os níveis e dimensões, Por criação entendemos aqui o processo , isto é, a
isto significa que o referido princípio do ciclo está também no transmutação da substância única divina, eterna, incriada e in-
caso geral do tipo-base do sistema. Se o fragmento que reco- destrutível, do seu estado de puro pensamento, no de energia e, a
lhemos reflete, verificamos claramente que a unidade de que seguir, no de matéria. Já examinamos esse fenômeno, através do
esse fragmento deriva era um espelho. qual Deus vem a manifestar-se na forma; o pensamento, na ma-
Concluindo, procuramos neste capítulo prever todas as ob- téria; o imutável no vir-a-ser; o uno, no multíplice, fenômeno a
jeções possíveis. Mas, na realidade, elas podem ser tantas quan- que se deve a existência de nosso universo. Assistimos a um
tas são as formas mentais humanas, o que é um número prati- movimento centrífugo que, do centro, projeta-se para a periferia,
camente infinito. Para as que não puderam aqui ser imaginadas, na matéria, invertendo todas qualidades do espírito. São muitos
asseguramos ao leitor que as coisas ocorrem como realmente os aspectos do processo, mas todos redutíveis ao conceito de in-
estão expostas neste livro e que, sobre estas bases, qualquer di- versão do positivo em negativo, ou de subversão de valores,
ficuldade pode ser logicamente resolvida. O leitor inteligente, conceito que se pode resumir em uma só palavra: involução. Es-
que se apossou da chave do sistema, poderá fazê-lo racional- ta pode apresentar-se a nós como um desmoronamento do uni-
mente, desde que pense sem preconceitos e sem pontos fixos verso perfeito, originado da primeira e verdadeira criação perfei-
inamovíveis. No entanto, já que uma das primeiras condições ta, e isto como resultado da revolta e queda, de que já falamos.
para a aceitação de uma teoria é a sua clareza de exposição e Deste modo, o universo perde e inverte a sua qualidade de ori-
facilidade de compreensão, procuramos aqui traduzir, na forma gem na atual. Podemos, assim, compreendê-lo melhor agora.
mais transparente e evidente possível, o pensamento recebido Tudo isso sucedeu em uma primeira fase, de ida. O universo
por intuição, que, provindo de outros planos, dificilmente se atual, em que existimos, encontra-se na fase oposta, de retorno,
traduz em palavras humanas. isto é, não involutiva, mas evolutiva, de forma que a verdadeira
criação que Deus, nela imanente, está processando agora, lenta-
XI. A CAMINHO DA SUBLIMAÇÃO mente, através da evolução, tendo todos os seres como operá-
rios, é a atual, e não a precedente e inversa fase de desfazimento,
Nos capítulos precedentes, fizemos algumas observações que, se observada de nossa posição periférica, onde a existência
sobre o nosso mundo, para comprovar a sua posição periférica, é material, pode parecer criação. Tudo depende do ponto de vis-
consoante o plano do universo. Os poucos fatos escolhidos não ta. O mesmo processo , se visto de , pode parecer des-
passam de uma exemplificação particular. Muitos outros pode- truição; mas, visto de , pode ser tomado como criação. E, real-
riam ter sido aduzidos para confirmar a concepção de que par- mente, o nosso universo, construído assim na forma física, pode
timos e que apresentamos aos racionalistas apenas como hipó- ser definido como uma criação, mas no sentido físico. É certo,
tese de trabalho. Procuremos agora, uma vez observado o Sis- porém, que, se considerado do ponto de vista central do Sistema,
tema na sua posição periférica, percorrê-lo em direção ascensi- é uma demolição como espírito, cuja inversão representa. É bom
onal. Isto é importante, porque ela representa a única via de esclarecer tudo isto, a fim de evitar mal-entendidos. O nosso ha-
correção do Anti-Sistema e de evasão das suas dolorosas con- bitual conceito humano de criação é, como todos os nossos con-
sequências. Avizinhamo-nos, desta forma, do problema central ceitos, relativo a nós. A primeira, única e verdadeira criação foi,
da presente terceira trilogia – o da sublimação (v. Introdução do não uma criação do nada, mas uma emanação do seio de Deus,
volume Problemas do Futuro). de puros espíritos, em que Deus, o ―Eu Sou‖ Uno, Criador, quis
Para poder enfrentá-lo e resolvê-lo, é necessário antes en- refletir a Si mesmo, nela amando uma Sua diversa individuali-
quadrá-lo em nosso atual e mais amplo esquema do universo, zação em miríades de ―eu sou‖, Suas criaturas.
como, aliás, seria necessário fazer para qualquer problema, O que depois nós passamos a chamar criação foi o des-
sem o que ele se torna de difícil compreensão e solução. E o moronamento na forma-matéria de uma parte, que se rebelou,
fenômeno da sublimação espiritual é agora, aqui, de um en- destes ―eu sou‖ criaturas. E o que chamamos de evolução seria
quadramento lógico em um sistema completo, harmonicamente a verdadeira criação, no sentido de reconstrução da originária
proporcionado em todas as partes componentes e aceitável pa- integridade espiritual, que foi, por sua vez, emanação, mais do
ra qualquer pessoa de bom senso. O fenômeno pode agora es- que criação do nada. Tudo isto está além das nossas habituais
tar situado logicamente no conjunto de um edifício conceitual, concepções, todas em função de nosso relativo. Assim é que,
do qual faz parte e que o sustém e demonstra. Isto não impede aqui, chamamos frequentemente o nosso universo de manifes-
que ele seja pouco consentâneo com a psicologia hoje domi- tação de Deus, o que pode ser verdadeiro para os nossos senti-
nante, porque esta constitui uma forma mental sediada em uma dos, relativamente à nossa posição periférica na forma-matéria,
fase particular destruidora de fim de um ciclo, ao passo que, que, ―para nós, é o que significa existir. Mas, para quem se en-
aqui, antecipamos a fase reconstrutiva que fatalmente se segui- contra no polo oposto, na posição central de puro espírito no
202 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Sistema, o nosso universo não é manifestação, e sim ocultação, mas somente lhe é oferecido um pão traidor, que não pode sa-
porque nele o espírito se aprofunda e é sepultado. Se este se ex- tisfazê-lo. E o pobre ser fragmentado tenta em vão, no amor fí-
terioriza nisto que chamamos de manifestação, parecendo, pois, sico dos dois sexos, a conjunção de ambos os semiciclos, em
tornar-se real, apenas o faz para os nossos sentidos, enquanto, que a unidade se cindiu. Ao contrário, o místico, que não teve
por si mesmo, o espírito entra na grande maya7 ou ilusão da vi- medo de atravessar a porta da dor, pelo menos através da re-
da corpórea. Aquilo que é verdade para quem é exterior, é men- núncia, pode celebrar bem mais no alto as suas núpcias de amor
tira para quem é interior. Tudo é relativo. O que para nós é vi- com Deus, isto é, a fusão bem mais perfeita das duas semicir-
da, para o espírito é prisão ou limite. Para ele, o nosso tempo é cunferências do círculo. Com isto, chegando ele, através da dor,
o fracionamento do eterno; o espaço, do infinito; o relativo, do a aproximar-se mais do centro, também alcança uma alegria
absoluto; o multíplice, do uno. A instabilidade do transformis- bem maior. Os pobres seres periféricos, apegados à forma, por-
mo, que deve sempre aperfeiçoar-se, envolvendo, é o desmoro- que não sabem sentir uma vida mais profunda, apegados assim
namento da originária e perfeita existência imutável. a uma existência de penas, alimento sobremodo escasso para
Esclarecidos, assim, estes conceitos, retomemos o nosso uma alma faminta de felicidade (alimento que entre si disputam
caminho. Se, na primeira metade do ciclo, temos o desmoro- encarniçadamente) – esses pobres seres fogem da sublimação e
namento na matéria, na segunda metade, em que ele se fecha a condenam, porque da sua posição periférica, situados na ma-
pelo retorno a Deus, ponto de partida, temos o processo inver- téria, a sublimação lhes parece anulação da vida, e não retorno
so, isto é, , ou seja, não de materialização, mas espiri- a ela. É natural que, para o ser subvertido, tudo pareça inverti-
tualização. Estamos na fase de reabsorção da forma em Deus, do, uma miragem traidora. Para enxergar a verdade, é necessá-
da matéria no pensamento, do mutável no eterno, do multíplice rio subir, atravessando a porta da dor!
no uno. Assistimos ao movimento centrípeto, que se projeta da Eis, pois, a posição agora do ser no universo atual: ele jaz
periferia para o centro, no espírito, invertendo todas as quali- entre as ruínas de si próprio, mas, em seu âmago, a originária
dades da matéria. Aqui, os valores subvertidos devem retificar- centelha de Deus – a alma – não está extinta e se conserva no es-
se segundo a Lei, de que o Evangelho é o código. Os aspectos tado de um anseio instintivo e irrefreável, com todas as caracte-
do processo são muitos, mas todos redutíveis à inversão do ne- rísticas originárias. Entre esse anseio, porém, e a sua realização,
gativo em positivo, conceito que se pode resumir em uma úni- existe a barreira da dor, interposta pela distância do centro à pe-
ca palavra: evolução. O transformismo tende à reconstrução, riferia, onde veio a cair o ser. A irresistível ânsia se bate conti-
de conformidade com o princípio das unidades coletivas (A nuamente contra essa barreira para evadir-se, no entanto é exa-
Grande Síntese, Cap. XXVII). Retornam à unidade todos os tamente através da barreira, isto é, através da dor, que se pode
fragmentos em que o Uno se havia pulverizado. O estado de evadir. Eis o grande drama do ser, vivido por todos em cada dia.
matéria transmuda-se no de energia, e este no de pensamento, Então Deus, que não nos abandona, vem ao nosso encontro
para retornar ao ponto de partida. para nos ajudar, enviando-nos em forma concreta, para que
Logicamente, é no plano desse segundo percurso, vivido possamos tocá-lo com as mãos, o exemplo vivo do método a
agora pelo ser, que ocorre o fenômeno da sublimação espiritual, usar para a evasão. É inútil debater-se. Não há outra via que
ou catarse biológica. O espírito não está morto. Ele é tão- não a do calvário para se atingir a redenção, e cada qual tem
somente prisioneiro. Deseja reconquistar consciência para re- que percorrê-la por si. Quem vencerá? As seduções do mal e o
tornar ao estado de origem. Por um instinto fundamental da vi- horror ao sofrimento, ou o grande anseio da alma, com seu ins-
da, ele odeia a prisão e quer a liberdade. Com esse impulso e tinto de ascensão e de vida, e o poderoso auxílio de Deus, que
para esse fim ele foi gerado: a liberdade foi a sua primeira qua- quer a salvação final? O caminho é longo. A criatura está retida
lidade. Tudo quer crescer, expandir-se, e toda a nossa vida so- entre as engrenagens de duas imensas rodas, triturada pelo atri-
mente triunfa com esse impulso. Este instinto fundamental do to dos seus dois movimentos contrários. Todavia as forças que
ser se debate contra todos os obstáculos que lhe opõe a sua po- as movimentam não são iguais, seus pesos não são idênticos. A
sição negativa em um sistema invertido. Mas eis que o amor, roda de Deus é a mais forte e tanto girará na eternidade, que
proveniente do centro positivo, vem em auxílio do ser no seu desgastará inteiramente a de Satanás, que terminará em pó.
esforço de redenção. Deus, do centro, estende-lhe os braços, di- A sublimação espiritual é o fenômeno pelo qual a evolução,
zendo-lhe: ―Sus, coragem, sobe, sobe! Eu te espero!‖. E os es- da fase biológica humana, através da catarse de todo o ser, con-
píritos não rebeldes e incorruptos descem com sacrifício, como duz a vida à fase super-humana. Já vimos que este é um mo-
Seus mensageiros, irmanando-se aos seres inferiores, sepulta- mento do grande processo de toda a ascensão, que vai de
dos na dor, abraçando-a juntamente com eles por amor. É assim . Isto é o que significa voltar a subir. São estas as
que a reconstrução do edifício desmoronado constitui um pro- grandes etapas, os degraus da escada que leva ao trono. Voltar a
cesso criador, através do sacrifício, de reabsorção do mal e do subir significa, pois, transformar-se da matéria em energia e
caos nascidos do desmoronamento. O amor permanece, porém desta em espírito, ou seja, um processo de espiritualização. Eis
invertido no sacrifício, que é amor na dor. Eis por que a reden- a que se reduz substancialmente todo o progresso. Esta é a fase
ção não pôde ser operada por Cristo senão através da paixão, e que a humanidade está vivendo. É verdade, sem dúvida, que ela
por que nenhuma redenção poderá ser operada de outra forma. ainda está imersa em noite profunda, mas nos encontramos em
Há, portanto, uma grande porta para a evasão de todos os so- uma grande volta da história, que anuncia iminente uma nova
frimentos do Anti-Sistema. Porta grande, mas pela qual nin- aurora. O homem hoje, pela primeira vez, sabe transformar a
guém quer passar, porque é feita de dor e esta afugenta. Afu- matéria em energia. Com isto, ele intervém nos processos cria-
genta justamente porque ela é o inverso da felicidade, para a dores de uma forma que se poderia chamar espiritualização da
qual o ser nasceu e para a qual se sente irresistivelmente atraí- matéria, que se volatiliza em energia. Processo que implica o
do. Mas o nosso não é um sistema pervertido? Portanto é natu- inverso da criação da matéria com a energia. Paralelamente, a
ral que, nele, a felicidade se tenha transformado em dor. Então, superação dos limites do espaço e tempo significa uma ascen-
o homem se atira ao encontro das derradeiras cintilações de são de vida em dimensões mais evoluídas. Ademais, o tipo bio-
alegria e de amor que o sistema desmoronado ainda contém, lógico se dinamiza, e a sua luta, de física, torna-se nervosa e
psíquica; as leis do ser passam a ser compreendidas; os misté-
7
Maya (maia) – vocábulo técnico sânscrito (a antiga língua Índia), rios se aclaram; aumenta o domínio sobre as forças naturais e
com a significação filosófica de ilusão, engano, aparência irreal da na- sobre a matéria; o indivíduo funde-se no conjunto de grandes
tureza ou envoltório fenomenal do Absoluto. (N. do T.) unidades coletivas. O homem, pois, embora recalcitrante, está
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 203
engolfado no tormento de novas criações e empenhado, no Reino dos Céus não é vã promessa que deva permanecer no
momento crítico, em uma catarse biológica. campo da utopia. Ele jaz no fundo das consciências e se realiza-
A luta pela vida sempre foi, mesmo na feroz fase animales- rá quando estas despertarem, quando nós pudermos compreen-
ca da seleção do mais forte, uma luta por subir. Ainda agora é der de que maravilhoso universo somos cidadãos.
assim. É a grande batalha da libertação da involução para o re- Trata-se de movimentos de grandes massas. Hoje, na Terra,
torno a Deus. Se, nos mais baixos níveis biológicos, essa bata- não existe mais uma classe social, uma aristocracia que se mo-
lha pela ascensão é imposta pela necessidade de viver em um vimenta para a conquista do domínio sobre camadas sociais
mundo em que vigora o lema ―comer ou ser comido‖, nos mais inertes e passivas. Hoje, a fermentação evolutiva investe toda a
elevados níveis da Lei, onde o ser se faz mais consciente, ela massa humana. Poder-se-ia dizer que ecoa no sentido , is-
pode suavizar-se e, assim, realizar-se pelas vias da compreen- to é, da vida para o espírito ou para a espiritualização da vida,
são. É a evolução que nos liberta de tão duras necessidades e desde o plano , com a desintegração atômica. Parece que
sanções. Nós vivemos explorando todas as vias da libertação, ambos os fenômenos moveram-se paralelamente, obedecendo
que, na sublimação mística, escancaram-se para o céu. A luta é ao mesmo impulso de Deus imanente, que, fazendo pressão de
um meio de despertar a consciência. O ser, submetido a uma dentro para fora, impõe à velha forma que ceda passagem a
vida de permanente ameaça, aguça a inteligência. As provas e uma nova, capaz de exprimir novos estados interiores, que con-
os insucessos o adestram, preparando-o para maiores conquis- tínua pressão interior matura em milênios de silenciosa ativida-
tas, aquelas que nascem da experiência e se fixam no espírito. de. Tudo deriva do princípio da vida inerente aos seres. Hoje,
Quer embaixo ou quer no alto, a existência é sempre uma ela- este princípio se lança em novas rotas.
boração evolutiva, seja revestindo formas mais ou menos fero- Basta-nos aqui, por ora, antes de prosseguir além, haver en-
zes, seja assumindo aspectos mais ou menos espiritualizados. quadrado o fenômeno da sublimação neste processo de espiri-
Elaboração evolutiva é o trabalho da matéria, desfeita no caos e tualização universal , que é o processo evolutivo. A
integrada nos fenômenos cósmicos, como é também, no extre- sublimação mística não passa da fase mais elevada da espiritua-
mo oposto, a atividade espiritual do gênio e do místico, que, lização em nosso planeta. Este é um fenômeno, como vimos,
desvinculando-se dos instintos da carne, transforma-lhes a po- universal na vida. É por ele que o mineral se eleva a vegetal, es-
tencialidade em manifestações espirituais. Todo o universo está te ao animal, o animal ao homem, e este ao super-homem. Tra-
empenhado neste esforço penoso da própria maturação evoluti- ta-se de um processo de sensibilização, que, nos graus superio-
va, que o deve reconduzir a Deus. res, chama-se consciência, processo que vai desde a existência
Hoje, a vida tenta na Terra novas formas de expressão, com destituída de sentidos e encerrada em si mesma, como é a da
um tipo mais evoluído – o homem. A luta humana não está atu- matéria, a uma existência que se expande cada vez mais, em
almente confinada no tradicional plano animal-humano, como uma vida a princípio vegetativa, depois sensitiva, a seguir raci-
até ontem, mas se agita para sair dele. Ela não se resume mais onal e finalmente intuitiva. Trata-se de uma gradual floração do
na vitória de um grupo humano sobre um outro, permanecendo espírito, que volta a encontrar a si próprio, expandindo-se sob a
sempre no mesmo nível e sistema de vida, mas colima a vitória irradiação do centro-Deus. Agora pode-se compreender que,
de um princípio sobre o outro, para fugir ao atual plano e siste- tendo a involução consistido na formação de invólucros cada
ma de vida. Em outros termos, encontramo-nos não em período vez mais densos em torno à centelha do espírito, que neles
de estagnação, mas de transformação. Todo o esforço da vida permaneceu sepultada, a evolução consiste, contrariamente, na
concentra-se hodiernamente, não na sistematização e consoli- progressiva destruição desses invólucros, que se tornam cada
dação de suas posições, mas na tentativa de novas. É por isso vez mais tênues, até à completa libertação. O ―eu‖ eterno, com
que o seu dinamismo é febril e tudo parece esboroar-se. Mas é o desmoronamento do Sistema, não foi destruído, mas apenas
justamente porque a vida está possuída de uma ânsia de cons- envolvido no princípio oposto, em que se invertem todas as di-
truir que ela se apressa em libertar-se, por toda parte, das aca- vinas qualidades de origem. A evolução é um processo de ma-
nhadas fórmulas do passado, das quais, assim ampliada, extra- ceração que consome os casulos, é uma chama lenta em que se
vasa de todo lado. Tudo tende no presente à superação; por to- evola a sua materialidade, facultando a evasão da sua prisão.
dos os cantos se anda à procura de novas fórmulas, que possam Eis o que entendemos por espiritualização.
dar expressão a uma vida que já não encontra espaço nas ve- Mas o fenômeno pode ser observado também de outros pon-
lhas. Jamais ela fervilhou tanto em criações. Quem quer que tos de vista. Se concebemos o Centro no seu fundamental as-
possua olhos de ver e ouvidos de ouvir, sente que o mundo está pecto cinético, poderemos dizer que involução é progressiva
vertiginosamente lançado em direção a um transformismo evo- imobilização no limite e que evolução é desvinculação do limi-
lutivo de uma intensidade e rapidez sem precedentes. E a vida, te. O aspecto de estado cinético pode significar, sobretudo, es-
num crescendo, absorve as etapas para concluir, porque tem tado vibratório, e a este é possível reduzir aquele estado do es-
pressa de resolver o problema que a agita e atormenta. pírito que se chama consciência. O estado oposto, de imobili-
Vemos, pois, nesta hora histórica, a realização não só do dade, de congelamento da vibração, significa então o estado do
transformismo , com a desintegração atômica e a gênese espírito que se denomina inconsciência. Que mais significa pre-
da energia da matéria, mas também um transformismo paralelo, cipitar-se nas trevas, senão decair da sensibilidade até à ceguei-
, em que a vida, embora ainda primariamente, tende a tor- ra? Assim, o desmoronamento do ser consiste na inversão do
nar-se cada vez mais nervosa e psíquica, isto é, tende a espiritu- estado cinético vibratório, ou de consciência e conhecimento,
alizar-se. Assistimos a um universal processo de espiritualiza- máximo no centro – Deus, em um estado oposto, de inércia, ou
ção no sentido lato. A plena realização está ainda distante, mas inconsciência ou cegueira. Na periferia embotam-se as qualida-
o germe já está lançado. Muitos são incapazes de ver uma árvo- des dinamizantes e vivificantes, máximas no Centro. Não foi a
re na semente, não conseguindo aperceber-se da sua existência, matéria definida como energia congelada? A energia é também
a não ser quando plenamente desenvolvida. Não importa! Eles pensamento congelado. Lúcifer, como dissemos, é por Dante
chegarão a compreender mais tarde, mas chegarão. Toda se- colocado no centro da Terra, imerso nas trevas, encerrado na
mente é um explosivo da vida, no qual ela se concentrou, imensa prisão da matéria, imobilizado no gelo, negação da mo-
aguardando o momento para explodir, e explodirá por força de bilidade e do calor, elementos de vida. Para voltar a subir, o es-
lei. E, no fundo, o ser humano está à espera de despertar aquele pírito tem de tornar à ordem, a fim de fundir esse gelo, quei-
divino eu sou, que vem de Deus. Os novos e maiores continen- mando no fogo da própria dor as escórias da forma que o en-
tes do espírito aguardam os pioneiros que os conquistem, ex- carcera. Tem que, como elemento primeiro de vida, reacender
plorem e colonizem para a própria e nova grandeza. O esperado por si a chama que se extinguiu.
204 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Temos até agora observado o grande desmoronamento do São João iniciou o seu Evangelho com palavras estranhas,
universo, para encontrar a gênese e a explicação do universo refertas de profunda significação e geralmente incompreendi-
atual. Mas isto não basta. Dado que este é um estado bem dolo- das. Ciência e filosofia, não conseguindo alcançá-las, negli-
roso, o que mais interessa ao ser humano é, sobretudo, saber genciam-nas e as resolvem ignorando-lhes a existência. Entre-
como sair dele. Eis por que é importante, no seio do universal tanto elas contêm a chave do universo. João, ao certo, ilumi-
processo da espiritualização, conhecer o processo humano da nado por Cristo, as havia compreendido. Procuremos compre-
sublimação, porque ele representa para o homem a única solu- endê-las nós também.
ção do problema da dor. Que significa Verbo? Encontramo-nos em alturas vertigino-
Desperta, ó homem, no espírito, porque neste, em teu âma- sas. Tentaremos uma resposta no próximo capítulo. Para alcan-
go, está o infinito. Sepulto em todas as coisas está o pensamen- çá-la, necessitamos passar antes por alguns degraus. Partire-
to divino que as rege. Mas em nada, como em ti, ó homem, esse mos, pois, de nosso concebível, com respeito a nós mesmos.
pensamento se potencializou tanto na ascensão, desejando hoje Pelo princípio da unidade do Todo e dos esquemas de tipo
dar mais um passo avante. Em , o processo evolutivo é único, segundo os quais o universo é construído, principio já
uma reconquista e reconstrução do estado cinético vibratório, alhures esclarecido, não é absurdo ver, também em nosso mi-
ou de consciência e conhecimento, que se perdera. Jamais, co- núsculo contingente, os grandes esquemas do ser refletidos
mo atualmente, a batalha entre matéria e espírito foi tão encar- escalonadamente, até ao máximo de Deus. Observemos então
niçada. Mas o espírito é o princípio do movimento e da força. o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, e, de como
Ele, no ser, está apenas adormentado. Abençoemos as grandes ele age, poderemos formar uma ideia aproximada de como
dores dos nossos tempos, que o despertam. também Deus deve agir. Tudo isto nos é repetido pela inscri-
ção encontrada no frontispício do templo de Delfos: ―Conhe-
XII. OS TRÊS ASPECTOS DA SUBSTÂNCIA ce-te a ti mesmo e conhecerás o universo‖. Afinal, a corres-
pondência entre microcosmo e macrocosmo é conceito que
Orientemo-nos, antes de passar adiante. Iniciamos o estudo vigora desde a mais remota Antiguidade.
do conceito central do esquema do ser – o ―eu sou‖. Isto nos Como age o homem, através de que processo, quando, à
conduziu a observar o fenômeno do egocentrismo, cuja signifi- imagem e semelhança de Deus, constrói alguma coisa? Qualquer
cação quisemos esclarecer. Por esta via, chegamos às portas do realização humana é retirada do íntimo de quem deseja criá-la.
grande drama da queda dos anjos, devida justamente à rebeldia Ele a tira de si, do pensamento, da sua alma. Cada qual pode ob-
do ―eu‖, por excessivo egocentrismo desvirtuado. Detivemo- servar em si próprio o fenômeno. Há sempre uma primeira fase
nos, então, a contemplar as suas consequências, estudando as no processo criador – mesmo nas mais ínfimas realizações hu-
origens do mal e da dor. Mas isto nos colocou defronte ao pro- manas – que consiste na formulação mental da ideia abstrata, que
blema inverso, de seu término. Entramos, assim, na visão do depois encontrará a sua concretização na forma. Todos nós sa-
grande ciclo constituído pelo desmoronamento e reconstrução bemos que nada se cria e nada se destrói, mas isto apenas no que
se refere à substância eterna, e não quanto à forma em que a ideia
do universo, ciclo que se reconstrói em unidade pela junção das
abstrata venha a se manifestar. Quando a eterna e indestrutível
suas duas fases inversas e complementares: involução e evolu-
substância é plasmada pelo pensamento de um ―eu sou‖ em uma
ção. Adentramos, desta forma, a visão da estrutura do Sistema e
dada forma, então temos uma criação que, no sentido relativo,
dos processos íntimos de seu transformismo, admirando-lhe a
como tudo o é neste mundo, é criação do nada. Isto em relação ao
perfeição. Pudemos seguir esse transformismo universal até às
seu estado anterior, de não existência nessa dada forma, que ain-
suas últimas conclusões, que sintetizamos em duas expressões
da não nascera como tal. Neste sentido, o nosso universo foi cri-
limites, uma das quais resolutivas do sistema positivo, e a outra
ado do nada, como anunciou a revelação.
resolutiva do sistema negativo, com o triunfo final do bem so-
Faz-se aqui necessária uma observação para prevenir dúvi-
bre o mal e a reconstituição do sistema desmoronado. Pudemos,
das que podem surgir do confronto entre o que acabamos de ex-
desta maneira, encontrar a solução final do problema do ser. por e o que se encontra no Capítulo XI, ―A caminho da sublima-
Descemos depois ao nosso mundo, para nele encontrar confir- ção‖. Ali se esclareceu o valor, sempre com respeito a nós, que
mações e demonstrações e, afinal, aplicações na sublimação. pode ter o conceito de criação do nada, qual foi a verdadeira cri-
Com esta, como conclusão moral das visões precedentes, é ação, de como ocorreu o seu ulterior desmoronamento, que pas-
apontada ao ser humano a via das ascensões espirituais, da re- samos a chamar criação, e de como a verdadeira reconstrução é
construção do universo desmoronado, a única que o pode guiar representada pela atual fase evolutiva. Isto foi dito para que se
na reconquista da felicidade perdida. pudesse compreender como realmente se passaram as coisas.
Este foi o caminho que percorremos até aqui. Mas aqui, neste capítulo, voltamos a nos colocar sob o normal
Havendo chegado a esta altura e completado a precedente ponto de vista humano, o bíblico, do nosso relativo, apenas com
ordem de visões e de conceitos, vemos desenrolar-se diante de o intuito de facilitar a compreensão. Chamamos de criação, no
nós uma perspectiva diversa dos mesmos fenômenos, pela qual sentido corrente, o que, ao contrário, foi um desmoronamento,
observaremos o Todo já não mais em relação à sorte da criação denominando-se manifestação o que, inversamente, foi uma
e das criaturas, mas em relação a Deus e à Sua obra. Sintetiza- ocultação. O leitor está apto agora a compreender o verdadeiro
mos atrás a última conclusão da precedente ordem de conceitos, significado dessas expressões de uso comum. Podemos, portan-
em duas expressões resolutivas do transformismo universal. to, retornar à psicologia normal, como esta se expressa na con-
Uma significando a destruição do ser, 0=0, o inferno eterno; a cepção bíblica. A presença de Deus criador nesta criação dada
pena máxima para quem assim a quis, renegando a existência; pelo desmoronamento explica-se em virtude de Ele ter-se man-
destruição do ―eu‖ como individualização espiritual; morte da tido sempre como senhor do Sistema, de não tê-lo abandonado
alma, que, negando Deus, nega a si própria até anular-se. A ou- na queda e de ter continuado a regê-lo e guiá-lo através de Sua
tra, no polo oposto, significando a plenitude do ser, =, a fe- imanência nele. Ainda que o seja como espíritos decaídos, a as-
licidade eterna, a alegria máxima, o triunfo da vida, a afirmação sim chamada criação está sujeita a Deus, que nela está presente
do ―eu‖ em Deus. Iluminados por estas precedentes visões, em toda parte, como seu criador. Ocupando-nos aqui de enfocar
busquemos agora penetrar ainda mais no íntimo do fenômeno principalmente o processo criador, passando por alto sobre a re-
universo, contemplando-o, mais do que em seu transformismo, belião e a queda, após haver explicado alhures a gênese do mal e
na sua real essência, na sua mais profunda substância. da dor, observamos agora o processo diretamente em relação
◘◘◘ àquela que permanece como a sua primeira fonte: Deus.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 205
Procuremos agora avizinhar-nos da compreensão da natu- vez lançados pelo primeiro motor, vemos transmitir-se em nos-
reza íntima do chamado processo criador, até ao seu caso má- so mundo, com dinamismo segundo os princípios. Ajudar-nos-á
ximo em Deus, cuja ação, embora a incomensurável distância, a compreender o grande fenômeno da criação observar o que se
o homem busca imitar no seio do mesmo Sistema, seguindo o passa em nossa mente, quando ela desenvolve impulsos seme-
mesmo esquema. A matéria prima da criação, como já expli- lhantes na sua manifestação, imprimindo-os no mundo exterior,
camos em outra parte e esclarecemos nas páginas seguintes, é pois que ela, da substância pensante do Todo, não é mais do
uma eterna e indestrutível substância de natureza pensante, is- que um momento que se isolou em um sistema menor, em um
to é, que possui como atributos fundamentais a inteligência e ―eu sou‖ subordinado ao máximo ―eu sou‖: Deus. Antes de
o conhecimento. Este é o estado originário de que derivou o agir, todos pensam na ação a executar, e este é o primeiro mo-
universo: a mente de Deus, como qualquer obra humana deri- mento, a fase da construção do esquema diretor, com que se
va da mente do homem. imprimem às formas novos estados cinéticos.
Qual é o estado do Todo antes da criação? Por Todo de- Cada forma do ser se reduz a um estado cinético diferente.
vemos entender Deus, porque nada pode existir além Dele. Deus criou, pois, pela transformação da substância prima pen-
Talvez fosse melhor criar uma outra palavra, de um significa- sante, o espírito (), em energia (), que representa a fase ci-
do mais preciso, e não como essa – Deus – ligada a significa- nética da ação e é expressa por nós com os verbos, fase de
dos tradicionais. Mas, com isto, correríamos o risco de nos querer e pôr-se em movimento, para depois chegar enfim à
tornarmos ainda menos compreensíveis. O Todo estava, pois, terceira fase do processo, a matéria (), a forma, a criação, a
num estado de quietude, o estado em que o homem se encon- obra completada. Neste sentido, podemos dizer que o criado
tra antes de empreender qualquer realização. Este é o estado contém e exprime o pensamento de Deus, como podemos di-
contemplativo, da concepção, sem forma ou expressão ainda; zer que toda obra humana contém e exprime o pensamento do
um estado abstrato, feito de puro pensamento. Nele, apenas se homem que a realizou.
desenha a ideia-mãe, o esquema ou modelo da forma, no qual Assim, Deus, através do dinamismo , por Ele mesmo de-
esta poderá depois configurar-se, refletindo-se, a partir do senvolvido, pôde retirar da fase conceito (), a terceira fase
primeiro impulso conceptual, em uma infinidade de exempla- conclusiva do processo, a forma na matéria (). Nesta, o livre
res. Esta é a primeira fase da gênese, a conceptual, que se de- estado cinético da fase energia concentrou-se nas trajetórias
nomina de concepção. Nesta fase, a criação ainda não nasceu; fechadas dos seus átomos constitutivos, e o primeiro pensa-
está somente concebida. mento pôde assim encontrar a sua expressão. Semelhantemente
Como nascerá ela? Passamos agora para a segunda fase, age o homem quando, por uma ação menos interior, mais su-
para o segundo momento do processo criador. Até este ponto, perficial e secundária, modela as coisas apenas na sua estrutura
a eterna substância pensante do Todo permanece ainda no es- exterior, e não na sua íntima substância constitutiva. Medeia
tado de quietude, imóvel, sem nada ter retirado de si, isto é, naturalmente imensa distância, mas o tipo do esquema criador
sem haver manifestado as suas possibilidades cinéticas, nela é o mesmo. Para operar de qualquer maneira, o homem, uma
jacentes em estado de latência. Entre as qualidades fundamen- vez concebido o plano, põe-se em condições de executá-lo, di-
tais inerentes à natureza da eterna substância pensante que namiza-o na ação, passando assim de , o estado espiritual da
constitui o Todo, está a capacidade de transformar, passando concepção, para , o estado cinético criador. Deste deriva, fi-
com isto ao estado atual, as qualidades antes adormentadas, la- nalmente, a última fase do processo, o ato completo, resultante
tentes no estado de quietude. Este puro pensamento, não exis- dos dois primeiros momentos, a obra concreta, que, na forma,
tente no momento do princípio, mas sim antes dele, represen- exprime a ideia originária. O nosso universo, a criação, repre-
tava o caso máximo do princípio da semente ou germe, esque- senta esta terceira fase. De tudo isto ele conserva traços, sendo
ma segundo o qual continuou, continua e continuará a gerar-se guiado pelo pensamento, movido pela energia, constituído pela
o universo após a primeira gênese criadora. Sabemos que este matéria. Assim também se dá com o nosso próprio organismo,
é um sistema ecoante, com repetições de ações e de esquemas. feito de espírito (funções diretivas), depois de um metabolismo
Neste estado de pensamento puro existia, pois, em germe, a e movimento (dinamismo da vida) e, finalmente, de um orga-
possibilidade latente de todos os futuros desenvolvimentos, nismo físico (baseado na matéria) 8. E assim como o universo
quais existiram, existem e existirão. se desenvolveu da sua causa primeira: Deus, também o feto, o
Inicia-se, então, a segunda fase do processo criador. A subs- corpo e todo o homem desenvolveram-se da causa primeira,
tância pensante do Todo desenvolve no íntimo as suas qualida- motor primeiro de tudo: o espírito.
des cinéticas, retirando-as do estado latente para o atual. Em ◘◘◘
outros termos, após a fase de concepção abstrata, de formulação Esta concepção da estrutura do Todo e do processo criador
espiritual dos esquemas que deverão depois guiar a ação, esta encontra confirmação não só na constituição de nosso univer-
se inicia. Com isto, a ideia, a princípio apenas abstrata, começa so, na natureza do homem e dos seus processos criadores, mas
a realizar-se, configurando-se na forma, que é filha do movi- também em algumas das mais recentes teorias científicas, co-
mento. Neste ponto, poder-se-á melhor compreender a signifi- mo a do espaço-dinâmico, em que se concebe o espaço não
cação de tantas referências que fizemos nos precedentes volu- como uma extensão geométrica, mas substanciado de uma
mes ao estado cinético do Todo. Que outra coisa exprime o densidade própria e dotado de uma mobilidade, como um flui-
verbo em nossa psicologia corrente, senão uma ideia abstrata do. O homem atribuiu ao espaço, de forma inteiramente arbi-
que se põe em movimento, rumo à sua atuação? Quando dize- trária, os atributos de vacuidade e imobilidade, sem saber se
mos verbo, falamos de agir, que é a segunda fase, de ação, que eles efetivamente correspondem à realidade física. Há, entre-
presume a primeira, de idealização. Quando falamos: ―eu olho, tanto, uma única realidade constitutiva do universo físico: o
eu falo, eu vou, eu trabalho‖, executamos a transformação que espaço fluido e móvel e o seu movimento. Os movimentos cir-
vai da primeira à segunda fase, passando do estado imóvel da culares desta substância conformam os sistemas atômicos e as-
concepção ao cinético da ação. Este último está ligado ao pri- tronômicos, de que resulta a matéria. Os seus movimentos on-
meiro como uma sua consequência. Ele é o mesmo ato em um dulatórios constituem a energia. Assim todos os fenômenos se
segundo aspecto. Representa um segundo modo de ser, uma reduzem a uma mecânica universal, dada pelo movimento do
transformação em que desenvolve aquilo que antes estava la- espaço, derivando deste fenômeno fundamental único e básico
tente, em quietação, pondo-se em movimento. A substância
8
pensante do Todo continha já em si estes impulsos, que, uma Para maior esclarecimento veja cap. XI de A Grande Síntese. (N. do T.)
206 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
de que tudo emana no universo: o estado cinético do ser, em matéria – em oposição apenas porque situados nos dois polos do
que vimos sempre a gênese de todas as coisas. mesmo sistema. A necessidade de contrapô-los com finalidade
Eis, pois, um espaço-substância que não é vazio nem inerte, evolutiva, na luta pela nossa ascensão, não deve violar a con-
mas é, por sua natureza, genético da matéria, isto é, possui as cepção unitária do Todo e precipitar-se no dualismo de um uni-
qualidades aptas à formação, no seu seio, das condensações ou verso despedaçado, feito de fragmentos. Isto seria satânico.
concentrações de substância que se denominam matéria. Ora, Assim, a Substância pensante pode transformar-se em espa-
uma das conclusões a que chegamos no fim do volume Pro- ço fluidodinâmico, quando, para manifestar-se, a ideia entra no
blemas do Futuro, é que a própria ciência, penetrando nos mais estado cinético da ação, involuindo da dimensão superconsci-
íntimos recessos da matéria, verificou que ela se dissolve em ência e consciência () na de tempo () e, finalmente, na de es-
energia, perdendo-se, por fim, no campo abstrato do pensamen- paço (). Este último deriva da Substância pensante, que assu-
to puro. Efetivamente, o elétron, último elemento a que se che- miu a posição cinética, a fim de que depois, no seio do espaço
gou até hoje na decomposição da matéria, segundo as mais re- fluidodinâmico assim formado, surja a matéria. E não só esta,
centes indagações físico-matemáticas, não possui mais nenhum mas todos os fenômenos que derivam do movimento deste es-
conteúdo físico, representando apenas um feixe de ondas. O úl- paço, isto é, deste fundamental estado cinético da Substância.
timo termo da realidade não passa, pois, de uma concentração Todos eles podem ser, desta maneira, reconduzidos a um fenô-
de energia ondulatória, tanto mais fácil e exatamente localizá- meno único, enveredando para o monismo universal de A
vel quanto mais diferem entre si as frequências componentes do Grande Síntese, para reencontrar finalmente, não só nas infini-
diminuto feixe de ondas. Eis, pois, que o extremo corpuscular tas modalidades do contingente mas também na própria ciência,
da matéria, o elétron, se desfaz em ondas. A substância funda- a fundamental unidade do Todo. Pode-se, pois, coligar em um
mental, material de construção do edifício das coisas, é um pu- único princípio tanto os fenômenos físicos como os biológicos
ro campo eletromagnético, desaparecendo toda ideia de substra- e psíquicos, porque tudo nasce desse espaço-cinético, que não é
to material. Cai, assim, qualquer significado físico real, restan- mais do que o estado cinético da originária Substância-
do apenas o recurso lógico de representar a probabilidade ma- pensamento, que, com a criação, foi posta em movimento na
temática de que o elétron se encontre, em dado instante, em um incessante marcha universal do transformismo, essência de todo
determinado ponto do espaço. E, se o próprio elétron é hoje o fenômeno e de toda existência.
concebido como uma concentração de energia, no que então se É possível, deste modo, formar uma representação mental
torna a matéria que dele resulta, se a própria energia se concebe da técnica da criação. Podemos compreender como no espaço-
atualmente como uma abstração matemática: ―a constante de dinâmico, fase em que a Substância se pôs em estado cinético,
integração de uma equação diferencial‖? pode originar-se qualquer fenômeno, seja como energia ou seja
Tudo isto para demonstrar como a própria ciência tende a como matéria, apenas pela diversa aceleração desse espaço. É
reconduzir o material constitutivo do universo físico à sua úl- sempre o estado cinético que constitui a gênese de qualquer
tima realidade, que é a de ser uma substância pensante. O uni- forma na matéria. Assim, os sistemas galácticos, planetários ou
verso, com efeito, não é explicável senão quando reconduzido atômicos vêm a ser constituídos por campos de espaço flui-
ao seu termo extremo, termo este entendido como um puro dodinâmico, girando em torno de um centro, isto é, por vórtices
conceito, único capaz de nos exprimir a essência das coisas. de energia cuja rotação é determinada pelo estado cinético, se-
Assim a indagação científica percorreu o caminho inverso ao gundo o esquema universal, segundo o qual tudo, em qualquer
que Deus seguiu para, com a criação, chegar à manifestação nível do ser, tanto no espiritual como no dinâmico, roda em
do Seu pensamento. Desta maneira, a ciência da matéria re- torno ao centro: Deus. O núcleo do átomo repete no plano o
tornou a Deus e, no fundo desta, encontrou o Seu pensamento esquema universal do ―eu sou‖, mas modificando, de caso para
animador, isto é, a presença de Deus imanente. Tudo isso cor- caso, o sistema único, fato de que depende a diversidade estru-
robora o processo acima exposto da criação e, ademais, nos tural dos diversos átomos. E todo o sistema material, do atômi-
auxilia a compreender, confirmando-a, a concepção de um es- co ao planetário e deste ao galáctico, é gerado como campo
paço-substância, por si mesma geradora da matéria, concep- centro-giratório, repetindo assim o esquema da gênese do uni-
ção que assim se enquadra em um sistema cósmico. verso, que se pode conceber como máximo centro-giratório,
Eis, pois, como, pelo físico-dínamo-psiquismo, concepção porquanto tem por centro Deus. Se, para o universo, no seu as-
fundamental de A Grande Síntese, podem ser orientadas, em pecto espiritual, Deus é o sol do sistema, que tudo gerou e tudo
um plano mais vasto, acessível apenas pela intuição, as últimas irradia – como o Sol em nosso sistema planetário – a esfera
conclusões parciais da ciência moderna, que da dispersão analí- central do espaço centro-giratório, na formação da matéria,
tica são reconduzidas à unidade, em estreito monismo. Pode- forma o núcleo central que gera e rege todo o sistema.
mos, assim, logicamente chegar ao conceito de espaço- Eis, pois, como , por sua exteriorização cinética, pondo-se
substância, derivando-o do conceito de energia-substância, e es- em ação, pode gerar , ou seja, o espaço fluidodinâmico, conten-
te do pensamento-substância. Temos, pois, uma eterna e indes- do em si os elementos para determinar em seu seio os vórtices de
trutível substância, que pode passar do estado de puro pensa- que nasceu a matéria (A Grande Síntese, Cap. LIII – ―Gênese dos
mento (espírito, ) ao de energia () e deste, finalmente, ao de movimentos vorticosos‖). Só neste sentido é possível dizer que o
matéria () involutivamente, e no sentido inverso, evolutiva- nosso universo nasceu do nada. Ele, embora existisse no Todo,
mente, permanecendo ela sempre a substância do Todo, o últi- como Substância em Deus, não existia na forma de matéria, por-
mo irredutível elemento da realidade, que só pode ser Deus, que a Substância estava no estado de pura ideia, de quietação,
centro do ser, princípio e fim de todas as suas transformações. não cinético, não fenômeno, não forma, não ser, não como nós o
Podemos, assim, compreender como a Substância, que agora concebemos de nosso relativo feito de matéria. Para o homem, o
escrevemos com S maiúsculo, de sua fase ou aspecto de puro que não é perceptível sob a forma de qualquer sensação ou regis-
pensamento, conceito abstrato, , pode mudar-se na sua segunda tro não existe. A criação do plano físico a partir do nada ocorreu
fase ou aspecto de energia, , e como desta transformação resul- quando a ideia, dinamizando-se, gerou centro-movimentos de po-
ta o espaço-cinético (a Substância-pensamento que se põe em tência variada, ou seja, vórtices ou condensações físicas de várias
movimento, encaminhando-se para a ação), de que deriva o es- densidades, segundo a grandeza dos impulsos transmitidos.
paço-matéria, fase conclusiva do processo criador. Só assim po- Eis no que consiste o processo criador. As suas três fases
demos abranger tudo o que existe em um só princípio unitário, são conexas por filiação, são três momentos de um mesmo fe-
máxima aspiração instintiva da alma. Somente assim podemos nômeno, três aspectos de um único princípio, indissolúveis,
conjugar em um e único ciclo os dois antagonistas – espírito e sem sentido se isolados; três modos de ser do Todo-Uno, que
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 207
não se podem cindir sem destruir todo o ser, como também não XIII. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM
se pode separar no homem o pensamento idealizador da ativi-
dade operante e da obra executada. Cada momento está no ou- ―In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et
tro e é o outro. Os três momentos são iguais e distintos. Cada Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum. Omnia per
um é o Todo, e o Todo está em cada um. Um descende do outro ipsum facta sunt; et sine ipso factum est nihil quod factum est‖9.
por gênese, como o filho do pai. Procuremos agora responder à pergunta proposta no início
Chegamos assim, talvez, à solução do problema máximo do do capítulo precedente: Que significa Verbo?
conhecimento, isto é, à compreensão do mistério da Trindade. Somente agora, após as preliminares desenvolvidas neste ca-
Buscaremos confirmação desta visão nas palavras de São João, pítulo, nos é possível começar a compreender. Vejamos se as
com as quais ele, no início do seu Evangelho, revela ter alcan- palavras de João realmente confirmam a visão precedente, se es-
çado a mesma solução. ta que vimos é a chave para explicar o misterioso sentido daque-
Ignoramos se tudo isto corresponde às concepções teológi- las expressões. Isto nos dirá se o pensamento de João, no seu
cas e filosóficas aceitas. É certo, porém, que a mente não pode Evangelho, coincide com a nossa própria orientação. A verdade
deixar de satisfazer-se com o conteúdo lógico de todo o proces- é que, como logo veremos, se partirmos desta nossa concepção,
so, como também com a concordância destas concepções com a obscuridade daquela incompreensível linguagem subitamente
os mais recentes rumos da ciência. Também não pode deixar de se ilumina e adquire um significado evidente. Então, se ambas
persuadir-se pelo evidente paralelismo entre elas e o exemplo as visões se sobrepõem e coincidem, clareando-se e confirman-
de nossa atividade criadora humana, que nos diz respeito de tão do-se reciprocamente, segundo as linhas de um mesmo sistema,
próximo e, por isso, tão compreensível a nós. Quem houver aí está a prova de que elas se originam de uma mesma fonte de
compreendido a estrutura unitária e hierarquicamente escalona- pensamento, de modo que ou se aceitam as duas ou se rejeitam
da do universo, achará lógicos estes paralelismos. Tudo isto ambas. E, se a concepção de João exprime a realidade, então a
constitui uma confirmação e convence, mesmo porque sacia o nossa visão deverá concordemente corresponder a ela, a menos
desejo instintivo de unificação. De fato, por instinto, o homem que se queira negar a revelação do Evangelho.
sente uma misteriosa potência nas grandes concepções unitá- Vimos que, para o homem, verbo significa conceito que se
rias, porque elas nos dão o senso de Deus-Uno, elevando-nos a torna ação, isto é, significa a ideia abstrata, o esquema feito de
Ele. Poder-se-á objetar que é presunção e profanação buscar le- puro pensamento, que se dinamiza e assim transforma-se em
vantar os véus do mistério. Mas o mistério é treva, e o homem é ato, dirigido no sentido da forma, pela qual ele se manifesta e
feito para a luz e para a compreensão. Deus nos concedeu a in- que o exprime na realidade sensível e concreta. Qualquer coisa
teligência para que a usemos e possamos nos avizinhar Dele, e feita pelo homem existe, num primeiro momento, em estado de
não para ignorá-Lo. A ignorância é devida à obnubilação na es- esquema abstrato, que é dela o modelo ideal, a concepção que
curidão. O ser decaído é feito para evolver, emergindo de novo antecede à gênese, a ideia-mãe. Mesmo sem ter nascido ainda,
no conhecimento. O progresso é lei, e o homem não pode per- tudo já existe em germe no pensamento do homem que cria.
manecer em eterna ignorância, mesmo das coisas transcenden- Num segundo momento, a ideia começa a surgir, tomando for-
tais, das quais depende a sua vida e a sua conduta. Diz-se tam- ma através do processo construtivo da sua gênese, em razão de
bém que investigar deve significar orgulho. Pode-se indagar um estado cinético assumido pelo ―eu‖ pensante, que passou à
com humildade e pode-se compreender com respeito, até mes- ação. Quando, com esse processo construtivo, o estado cinético
mo ganhando em veneração, não com espírito de revolta, mas se mescla inteiramente à ideia-mãe, o modelo ideal adquire a
para alcançar, ao contrário, uma evidência mais patente e uma sua completa expressão na forma, seu terceiro momento, que
obediência consciente. É neste estado de alma que contempla- contém os dois primeiros, como também está neles contido.
mos estas visões, o que por si mesmo expressa uma respeitosa Já vimos que este é o mesmo esquema que encontramos no
percepção conceptual, que é justamente o oposto de uma vaido- caso limite máximo em Deus, na criação do universo. O Verbo,
sa e egocêntrica indagação racional. Aqui a alma não desafia os pois, de que fala João é o segundo momento do processo cria-
mistérios de Deus, mas, diante deles, ajoelha-se, ora em agra- dor, a fase da gênese, onde o conceito se torna ação, fase em
decimento pelo dom da compreensão concedido. que o esquema abstrato formulado na mente de Deus dinamiza-
Na grande curva histórica da atualidade, o involuído está pa- se e se transforma em ato. Que João se refere à gênese está pro-
ra tornar-se evoluído. Ele deve entrar no conhecimento da Lei, vado pela primeira frase: ―In principio‖, logo repetida. Ela vale,
que é o código do Reino de Deus, conhecê-lo por completo, assim, como ponto de referência, o que é necessário ao se in-
porque daqui por diante impõe-se dar-lhe cumprimento, pois que gressar no relativo, onde tudo só existe desta forma, em relação
também na Terra ele deve realizar-se. É por este motivo que ela a outros pontos, e não é concebível senão assim. Então, com
se tornou compreensível. Todos os seres racionais devem cum- efeito, entram no tempo todas estas coisas existentes no primei-
pri-la por necessidade. A fase do terror está superada. A obedi- ro momento da concepção abstrata, precedente ao da gênese,
ência à Lei não se pode mais conseguir com tais meios, apropri- momento situado no absoluto e na eternidade. E João, logo a
ados apenas ao involuído e irracional. Aquele que desperta no
seguir, particulariza: ―Omnia per ipsum facta sunt; et sine ipso
espírito, como o iminente novo tipo biológico humano, só sabe
factum est nihil quod factum est‖ 10. Este ―factum‖, repetido três
obedecer por compreensão e convicção. Ao involuído não era
vezes, nos projeta de imediato na obra completa, que, se, em
possível desvendar o mistério, não só porque ele seria incapaz
um primeiro momento, estava apenas no estado de conceito na
de compreendê-lo, mas também porque está sempre pronto a fa-
dimensão consciência e, em um segundo momento, encontrava-
zer mau uso de tudo. No entanto o evoluído, quanto mais sou-
se no estado cinético de atividade construtora, atinge agora, na
ber, mais se sentirá pequeno e humilde no grande universo,
dimensão tempo, o terceiro momento do processo, em que ela
comparado ao infinito poder de Deus. Quanto mais se progride
se realiza, assumindo a forma concreta na dimensão espaço,
conscientemente na Lei, tanto mais se é tomado de sacro temor.
com a gênese da matéria. Eis o que significa ―factum‖.
À medida que avançamos no conhecimento, menos nos sentire-
mos sábios, menos acreditaremos possuir a verdade, menos nos 9
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
apresentaremos diante de Deus com o orgulho do fariseu, que Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por Ele; e nada
crê poder julgar a si mesmo e à Lei. Não. A verdade não é uma do que tem sido feito, foi feito Sem Ele – João, 1: 1-3. (N. do T.)
cômoda paralisação em posições estabilizadas, mas é o próprio, 10
Tudo foi feito por Ele; e nada do que tem sido feito, foi feito Sem Ele
exaustivo e incessante caminhar ascensional para Deus. – João, 1: 1-3. (N. do T.)
208 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
João sabe que está falando ao homem. Preocupa-se, pois, palavra Verbo por dinamismo, ou ação; a palavra Todo por
principalmente com o universo em que ele vive e que, por isso, expressão, obra executada, ou criação – então o processo a
mais lhe diz respeito. Para tornar-se compreensível, estabelece que se deve a criação, dado pela íntima distinção do Uno,
logo na sua oração este ponto de referência. E, porque deseja Deus, nos Seus três momentos, torna-se compreensível, por-
permanecer compreendido, João diz em seguida: ―in principio‖ quanto o processo se repete diariamente no homem que age e
e ―factum‖. Mal, porém, sobe às causas, eis que é constrangido cria. Assim, tudo quanto existe encontra cabal explicação na
a referir-se ao conceito que as expressões aludidas implicam e sua gênese. Deus permanece sempre Deus, em cada um dos
somente do qual elas podem derivar: o Verbo. Este representa o Seus momentos. É Deus no Seu primeiro momento de con-
segundo momento, o da ação criadora, a que se deve a gênese cepção abstrata, como ideia. É Deus em Seu segundo momen-
mencionada aqui. Ele, como autor desta criação, é o sujeito na- to de ação, a gênese, como Verbo. É Deus no Seu terceiro
tural da oração. Temos, portanto, aqui três conceitos logica- momento de obra realizada, como o Todo criado.
mente conexos: ―Verbum, principium, factum‖ 11. Por isto os Eis como encontramos em João a confirmação da verdade
encontramos aqui reunidos na lógica de uma mesma oração. do princípio fundamental da trindade da substância, afirmado
João, entretanto, não pode deixar de fazer algumas rápidas em A Grande Síntese. O mistério é, assim, explicado da mes-
referências a origens mais remotas, enquadrando o ato criador ma forma que a gênese de nosso universo, reportada até às su-
do Verbo no esquema máximo, que abrange os três momentos as primeiras origens, e isto não só de acordo com a lógica de
mencionados. Assim, enquanto nos diz que no início de nosso nossa mente e consoante os princípios desenvolvidos em nosso
universo, para nós início do ser, existia o Verbo, ação criadora, modo de agir, mas também com as conclusões da ciência.
e tudo era feito por Ele, diz-nos também que o Verbo estava Além da confirmação de João, que representa a Revelação, o
junto de Deus: ―et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Ver- sistema se apresenta racionalmente completo e persuasivo.
bum Hoc erat in principio apud Deum‖12. Eis os três momentos: Não remanescem resíduos, e a criação física não é excluída,
1) A formação conceptual do modelo: a ideia; isolada fora do Sistema, o que significaria desequilíbrio e de-
2) O processo construtivo da gênese: a ação; sarmonia inadmissíveis. A criação situa-se no Sistema como
3) A expressão da ideia na obra executada: a criação. seu último momento, da mesma forma que o corpo, no sistema
do ser humano – também ele composto, uno e trino, à imagem
O Verbo representa o segundo momento, o da ação ou gê- de Deus – é formado dos mesmos três momentos: 1) alma,
nese. O terceiro momento é dado pela criação, que vemos ex- ideia: 2) vida, a energia criadora; 3) corpo físico, a última ex-
pressa em: ―Omnia per ipsum facta sunt‖ 13. As palavras de São pressão concreta, o momento final do processo, derivado dos
João mencionadas no parágrafo anterior referem-se ao primeiro dois primeiros. Em todo o caminho percorrido até aqui, a com-
momento e não podem ser compreensíveis senão neste sentido. preensão da estrutura do universo, tão orgânica e harmônica,
E João explica, efetivamente, que tal como o terceiro mo- claramente nos indica que o princípio de analogia não é arbi-
mento deriva do segundo, assim também o segundo deriva do trário, pelo contrário, o seu concurso é probatório.
primeiro. É claro que a criação deriva do Verbo, a ação; mas o
Só assim se compreende como as religiões estão com a ver-
Verbo – ação – deriva da ideia, mãe da ação. O Verbo estava
dade quando dizem que o universo foi criado do nada. E, quando
de fato junto a Deus, isto é, a ação estava junto da ideia. O
a ciência afirma que nada se cria e nada se destrói, também ela
processo construtivo da gênese estava ainda latente no estado
diz uma verdade. As religiões viram o processo antropomorfi-
de formulação conceptual do modelo. E a ideia era a ação,
camente, referindo-se ao segundo momento, à ação criadora do
porque já a continha em si, em germe. E, no princípio, quando
Verbo, pela qual o universo físico tem princípio como tal, por-
a ideia se moveu em ato, tudo isto estava junto da ideia, que
que, neste sentido, ele antes era o nada. A ciência, ao contrário,
continha em si os três momentos em germe, como quotidiana-
teve que ouvir a voz da realidade, como lhe indicava a experiên-
mente sucede em nossa atividade humana. Se, pois, no princí-
cia, e essa voz lhe fala na indestrutibilidade da substância. A ci-
pio de nossa criação existia o Verbo (a ação), antes do princí-
ência, que não é intérprete antropomórfica da revelação divina,
pio existia Deus (a ideia), e junto a Ele estava o Verbo (a
mas aderente aos fatos, onde está impresso o pensamento de
ação). E a ideia era a ação. As expressões de João são, assim,
Deus, teve de enxergar mais a fundo. Desta diversidade de pon-
claramente compreensíveis. Aqui ele, em poucas linhas, planta
tos de vista derivam as dissensões. E, quanto mais a ciência
magistralmente o problema Deus-Universo. Em outros termos,
avança, desantropomorfizando-se progressivamente, tanto mais
estabelece seu ponto de partida, o conceito base da Trindade
profundamente deverá encontrar-se com este divino pensamen-
do Uno, nos seus três momentos constitutivos.
Nestas primeiras linhas de João, temos efetivamente três to. Ele é o Deus imanente, que é a alma das coisas e representa a
conceitos: 1 o) Deus, 2o) Verbo e 3o) o Todo feito por seu in- sobrevivência do primeiro momento até ao terceiro, isto é, a so-
termédio. Estas três unidades estão conectadas. O Verbo, que brevivência da ideia na obra completa, o criado, sua derivação.
estava junto de Deus, fez o Todo. Aqui há um conceito de de- Retirando-se de todas as coisas este seu íntimo pensamento ani-
rivação, de descendência, de filiação no seio do Uno, que se mador – o Deus imanente – elas cessarão de existir.
transmuda nestes seus três momentos. Ele permanece, assim, Pode-se agora compreender como a imanência de Deus no
invariavelmente Uno, mesmo vindo a existir em três aspectos criado é uma necessidade lógica de todo o Sistema, dada a sua
diferentes, que são sempre Seus e nos quais Ele continua idên- estrutura trino-unitária, uma vez que significa apenas a perma-
tico a Si mesmo. Exposto desta maneira e assim apresentado à nência do primeiro momento, a ideia, no terceiro momento, a
forma mental humana comum, certamente o princípio do Uno- forma. E não pode ser de outra maneira, pois trata-se de um
Trino permanece incompreensível e não pode deixar de ser processo único, cuja subdivisão em três aspectos não fragmenta
considerado um mistério. Mas se substituirmos aos três con- de modo nenhum a unidade do Sistema. Neles, a Substância,
ceitos acima expostos pelo seu valor equivalente, de acordo embora mude seu modo de ser, não deixa de ser sempre a mes-
com a nossa forma mental racional, então tudo se torna evi- ma Substância. É por isto que a ciência teve de comprovar,
dente. Substituindo a palavra Deus por concepção, ou ideia; a também em nosso mundo físico, a indestrutibilidade da Subs-
tância, que é uma característica do eterno e do absoluto.
11
Verbo, princípio, fato. (N. do T.) Até este ponto nos trouxe inexoravelmente a lógica, e não
12
―E o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. Ele estava no podemos desmenti-la, a menos que queiramos renunciar a resol-
princípio com Deus‖ ver o problema e a compreender o mistério. Assim tudo está cla-
13
―Tudo foi feito por Ele‖. (N. do T.) ro. De outra forma, tudo se confunde nas trevas. Agora, é fácil
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 209
ver que estes conceitos até aqui expostos são os que se ocultam constituir-se, voltando a evoluir, isto é, reconstruindo-se em
sob as três palavras: 1) Espírito, 2) Pai e 3) Filho, usados nas re- unidade através deles. A paixão de Cristo não seria, então, mais
ligiões. O Espírito representa o primeiro momento da Trindade do que um momento dessa paixão muito maior.
do Uno, o puro pensamento, a ideia não em ação ainda. Dele de- Mas esclareçamos ainda melhor. Vimos acima que, sem a
riva o segundo momento, quando a ideia, dinamizando-se, en- imanência de Deus em tudo o que existe, nada poderia existir.
caminha-se para a atuação. Eis o Verbo gerador, o Pai, de que E mais adiante, no Cap. XV – ―À procura de Deus‖, chegare-
nasceram todas as coisas. Do Pai deriva o terceiro momento, a mos à confirmação e conclusão de que, na profundeza do pró-
obra completada, a forma concreta em que a ideia-mãe encontra prio ―eu‖, o ser possui o divino. Ora, a presença de Deus no
a sua expressão final, o Filho. Cada momento está no Todo, e o Seu aspecto imanente, como alma das coisas, representa a so-
Todo está em cada um. Eis as três Pessoas componentes do Uno, brevivência do primeiro momento, a ideia, até ao terceiro mo-
iguais e distintas, mas cada uma sendo também o Uno. mento, a forma. Sem a ideia que define, sem a energia que
Prossigamos então na leitura do Evangelho de João, para constrói, não pode haver forma. A existência não pode ser da-
nele encontrar novas confirmações. Para facilitar a sua compre- da nem pode ser mantida senão por esta íntima e última subs-
ensão, traduzimo-lo agora, repetindo as palavras já transcritas: tância, por este ―eu sou‖ menor, centelha do grande ―Eu sou‖,
―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o ou seja, emanação de Deus!
Verbo era Deus. Ele no princípio estava com Deus. Tudo foi Ora, esta necessária imanência de Deus, esta permanência
feito por meio Dele. Sem Ele, nada do que foi feito seria feito. da Sua presença em tudo o que existe, sem a qual nada pode
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz res- ser, prova que Deus desceu com a criatura e na criatura, acom-
plandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam‖ 14. panhando-a em sua queda. Ainda que se conservando invulne-
Deus, como Verbo, é, portanto, o princípio da vida, aquilo rável e intacto em Seu aspecto transcendente, Deus desmoronou
que a medicina, retalhando os corpos, procura em vão, acredi- com o ser decaído, fundindo-se com ele na imanência, que re-
tando ser efeito, quando é a sua causa. Mas o princípio da vida presenta quase que um Seu aspecto de desfazimento, devido ao
é o Espírito, origem do ser, de cuja natureza a alma humana, desfazimento da criatura, emanação Sua, pois, não obstante tu-
que é uma centelha sua, conservou as características: pensar e do, Ele continua a existir nela.
conceber. Do Espírito derivou o Verbo, isto é, o dinamismo vi- Tal é a íntima afinidade entre Quem gerou e quem foi gera-
tal, a irrefreável potência criadora das formas. do, e o desmoronamento pela revolta não podia romper esta
Encontramo-nos ainda no início da criação: ―(...) Tudo foi substancial ligação. O anjo rebelde é sempre filho; não ficou ór-
feito por meio Dele (...), Nele estava a vida‖. Mas eis que, ape- fão nem foi relegado ao abandono. Os vínculos entre filho e pai
nas determinado no seio de Deus este impulso dinâmico, como ofuscaram-se, velaram-se, mas não foram destruídos. Não podia
segundo momento do Seu ser, João fala em seguida de luz e de ser permitido à revolta, pelo arbítrio da criatura, alterar o princí-
trevas. Por que? Aqui está o ser, recém saído do regaço da con- pio fundamental do Sistema: o amor. E o amor quis que Deus
cepção materna. Ele começa a viver, isto é, a existir como indi- seguisse a criatura na sua queda, para ajudá-la a ressurgir dela.
vidualidade autônoma. E este viver expressa o seu ser e é a sua Só assim é possível compreender por que Cristo encarnou na
luz, visto que, com a gênese, o espírito, tornando-se distinto no Terra e por que a sua paixão para redimir-nos. Ele, espírito puro
seio de Deus (cada um distinguindo-se dos seus espíritos ir- que não conheceu o pecado, Filho de Deus como nós, mas não
mãos), qual ―eu-sou‖, isto é, como indivíduo em si, adquiriu rebelde, emanação de Deus como todo espírito, quis seguir a
uma consciência própria. Eis que, tão logo isto ocorreu, ao lado criatura em sua queda, para redimi-la e permitir-lhe subir a
desta luz, que mal se acendera, surgiu a sombra, o oposto, o ne- Deus. E Ele, o Cristo, quis dividir o pão para sintetizar neste ato
gativo, que se contrapõe ao positivo. ―A luz resplende, e as tre- o seu sacrifício de, como criatura perfeita, seguir a criatura caída
vas não a compreenderam‖. Nasce no Sistema o Anti-Sistema, na imperfeição, no caso particular de nosso planeta e humanida-
a cisão, a queda dos anjos já descrita, o dualismo que dará de si de. Mas quis dividir o pão para nos dar em síntese a chave de
o cunho fundamental a esta vida que nasceu. Mal o Verbo entra um mistério ainda maior, para nos indicar um sacrifício mais
em ação, o Sistema se fraciona no dualismo luz-treva, bem-mal, amplo, do qual o Seu era apenas um momento: o sacrifício cós-
verdade-erro etc., e surge o nosso universo corrompido. mico de toda a Divindade, que divide a sua unidade nos seus três
Eis aqui enquadrada em visão ainda mais vasta, expressa pe- momentos; que se precipita do trono da sua transcendência, da
las palavras de João, as precedentes visões da revolta e do des- perfeição no absoluto, na imanência, no transformismo do rela-
moronamento. As trevas são os espíritos rebeldes que não com- tivo (v. início do Cap. – ―Visão-Síntese‖), que desce do seu as-
preenderam a luz. A palavra ―compreender‖ nos transporta, sem pecto de puro espírito até à forma, porque só esta Sua imanência
mais delongas, ao primeiro momento, o do puro pensamento, o pode operar a redenção pela evolução. Santa e bendita imanên-
do Espírito, em que os seres eram puras centelhas de Deus no cia por tantos negada, fruto de infinito amor, sacrifício cósmico,
Seu primeiro aspecto: a ideia. Neste primeiro momento, antece- ao qual a criatura deve a salvação. Tudo nos indica, juntamente
dente do segundo, o do Verbo, ocorreu a inversão da compreen- com esse ato de dividir o pão pouco antes do sacrifício, uma
são em incompreensão. Então podemos agora alcançar o mais paixão em que, mais do que Cristo na Terra pela humanidade, é
íntimo significado do Cap. XVI – ―Deus e Universo‖ (2a parte), Deus que se crava numa cruz cósmica para redimir o universo
do volume Problemas do Futuro, em que a presente e mais pro- desmoronado. ―O universo inteiro é a imensa cruz na qual está
funda intuição se encontra apenas em forma embrionária. Ali re- pregado o Pai‖ (G. Papini – Cartas do Papa Celestino VI).
cordamos que a Eucaristia, instituída com o partir do pão na Úl- Esta ideia do desmoronamento, em que a criatura arrasta
tima Ceia, representa a gênese. Esta distinção do Uno em três consigo na queda a divina centelha que a anima, pode parecer
momentos, pela qual o Espírito – a ideia – desce à ação, e esta à que não seja logicamente conciliável com a ideia da criação ope-
forma, pode coligar-se à divisão do pão, em que Cristo, o Verbo rada por Deus. Impõe-se compreender, porém, que, pelo contrá-
feito forma, o Pai no aspecto de Filho, dá-se em sacrifício. E po- rio, tal desmoronamento, confirmado por tantos fatos, implica
de representar também o mais amplo sacrifício da Divindade, justamente a ideia de uma criação operada por Deus, no sentido
que, seguindo na queda os espíritos rebeldes, fica entre eles; en- de que ele não foi abandonado a si mesmo, mas sim guiado e di-
trelaça-se ao seu trabalho de redenção, amparando-os e se unin- rigido sempre por Deus com a Sua imanência. Nela subsiste a
do a eles; deixa-se desmoronar na forma (imanência), para re- obra de Deus, salvadora por amor. Deus permitiu o desmorona-
mento de acordo com uma lei, que é a Sua imanência, a sua pre-
14
João, 1: 1-5. (N. do T.) sença salvadora. É este fato que faculta ao ser decaído reascen-
210 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
der do caos à ordem, reconstruindo o edifício desmoronado. precursor, que não era a luz, mas somente enviado de Deus para
Sem esta imanência de Deus no criado, o caos continuaria sem- testemunhar, aparece em nosso mundo, para alcançar a criatura
pre caos, ignorando não só o princípio da evolução, representado até ao fundo de seu desmoronamento, para atingir o espírito
pela presença de Deus nele, mas também o princípio da reden- aprisionado na matéria, eis que aparece na Terra a luz verdadei-
ção no sacrifício, como nos foi ensinado por Cristo. ra: o Cristo. Veio ao mundo, que fora feito por meio Dele, na
Fato maravilhoso é saber que, no fundo desse caos, está la- forma, que é a casa do espírito, habitação que o exprime, e essa
tente o princípio de ordem com a presença da lei de Deus, sem luz não foi reconhecida nem acolhida. Mas a quantos o recebe-
a qual ninguém atingiria a salvação. ram foi dado o poder de se tornarem filhos de Deus, isto é, os
O desmoronamento não ocorreu ao acaso, nem a criatura fi- espíritos que não nascem do sangue nem da vontade da carne
cou só. Deus guiou o desmoronamento com infinita sabedoria, ou do homem, mas somente de Deus, puderam assim redimir-se
permanecendo junto à criatura para reerguê-la até Ele. e refazer-se de sua posição invertida, retornando do Anti-
E tudo isto é a obra de Deus, é a grande maravilha da Sua Sistema, em que haviam decaído, ao Sistema pela via das as-
criação. censões espirituais, traçada por Cristo. ―Et Verbum caro factum
est, et habitavit in nobis; et vidimus gloriam elus‖16.
XIV. A ESSÊNCIA DO CRISTO Chegamos, assim, ao ponto central de uma questão tremen-
da: quem era o Cristo? Todos nós mais ou menos conhecemos a
Eis que, neste longo caminho, chegamos a esta grande figu- Sua figura humana, historicamente retraçável. Mas que haveria
ra central na história do mundo! Sinto que nestas páginas a vi- por trás dela? Eis o grande problema. Certamente, estes quesi-
são se avizinha da concepção da essência do Cristo em uma tos não se podem nem ao menos formular para a forma mental
primeira aproximação, prelúdio de uma compreensão mais da ciência moderna, pois, com os seus métodos de conceber,
profunda, que amadurecerá no último volume, com o qual será eles não são solúveis. As religiões não dão explicações racio-
coroada toda a Obra. Os escritores comuns das muitas histórias nais cabais e são obrigadas a recorrer aos únicos meios pelos
da vida de Cristo, que se fixam nos fatos da Sua existência fí- quais tais problemas se podem apresentar ao involuído atual: o
sica, sem ocupar-se do drama cósmico que está por detrás dela mistério e a fé. Procuremos, então, compreender.
e do qual esta não passa de uma ligeira emersão em nosso sen- A luz verdadeira é ―aquela que ilumina todo homem que
sível, não podem imaginar que falar de Cristo somente como vem a este mundo‖. É o espírito, a centelha de Deus, que se
documentação histórica ou obra literária ou filosófica é perma- manifesta como consciência, o saber-se ―eu‖, a fundamental
necer na superfície de abismos oceânicos. Para conseguir qualidade e sensação do ser. A treva é a inconsciência, a igno-
compreender um pouco da significação íntima da figura e das rância, que se torna cada vez mais densa à medida que se pre-
vicissitudes terrenas do Cristo, foi-nos aqui imprescindível ob- cipita no Anti-Sistema, involuindo na matéria. De onde pro-
servar antes a estrutura do universo através de muitos volumes, vém a luz verdadeira? De Deus, centro do Sistema, e ela o
percorrer em síntese o conhecimento humano e resolver os anima por completo. Ela é sinônimo de consciência e de vida,
maiores problemas do ser. Foi, assim, necessário o esforço de é o espírito, é a substância do ser, que permanece Substância
uma vida inteira e o auxílio de estados especiais de intuição. E em cada um dos seus três aspectos ou momentos. Cristo é,
nos encontramos ainda no limiar, sendo necessário percorrer pois, a luz irradiada por Deus, está conexo com Deus e provém
ainda outros volumes antes de nos ser permitido entrar no tem- do centro do Sistema. De fato, Ele mesmo, repetidamente, se
plo. E já a alma trepida consternada ante a potência titânica do declara Filho de Deus.
argumento e se abate no temor de ser por ele esmagada. Há vi- Mas não basta estabelecer essa origem e descendência,
sões supremas capazes de fulminar o ser, contudo impõe-se pois que todos os espíritos têm a mesma origem e descendên-
aceitá-las na hora que Deus quiser. cia. O difícil é precisar quais eram as relações entre Deus e
Eis, pois, que o nosso processo lógico nos conduziu até Cristo. Mas João acrescenta: ―E o Verbo se fez carne e habi-
Cristo. Também João aí chegou. Ouçamos as suas confirma- tou entre nós‖. Porém todo espírito se faz carne e anima um
ções. Do absoluto descemos até ao plano humano: ―Houve um corpo, e este, sem aquele, não tem sensibilidade nem consci-
homem enviado por Deus, cujo nome era João. Ele veio como ência, tornando-se um cadáver. Além disso, todos os espíritos
testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que por meio são filhos de Deus, visto que foram por Ele gerados e Dele
dele todos cressem. Ele não era a luz, mas veio para dar teste- provieram. Então que diferença há entre a natureza de um es-
munho da luz. Havia a luz verdadeira, aquela que ilumina todo pírito comum e o espírito de Cristo?
homem que vem a este mundo. Ele estava no mundo, e o mun- João fala claro: ―E o Verbo se fez carne e habitou entre
do foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu. nós‖. O espírito de Cristo era, pois, o Verbo. Já vimos que este
Veio à sua casa, e os seus não o acolheram. Mas a quantos o re- é o segundo momento da Trindade, em que a ideia (espírito),
ceberam, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus; deu-o dinamizando-se, encaminha-se à ação, o momento da gênese,
àqueles que acreditaram no seu nome, que não nasceram do do Pai, de que nascem todas as coisas, isto é, de que deriva o
sangue nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, terceiro momento, a obra completa na forma. Mas o Cristo,
mas somente de Deus. E o Verbo se fez carne e habitou entre aquele que o homem viu na Terra, era o Verbo feito carne, isto
nós. E nós vimos a sua glória, glória como de unigênito do Pai, é, o Verbo não mais como o segundo momento, mas como ter-
cheio de graça e de verdade (...), ninguém jamais viu Deus; é o ceiro, ou seja, era o Pai imerso na Sua manifestação em nosso
mesmo unigênito que está no seio do Pai, que o revelou‖ 15. plano físico, não mais apenas dinamismo sem forma concreta,
Aqui entramos no terceiro momento, e os fatos se desenro- mas sim revestido de matéria. Ele é, pois, o Filho derivado do
lam no plano humano, concreto, sensorialmente perceptível, na Pai, o unigênito do Pai, como lhe chama João. Tudo isto cor-
forma, que todos veem, tocam e, pelo menos superficialmente, responde perfeitamente à estrutura do Sistema, como acima
podem compreender. Chegamos ao plano da execução material, descrito, e representa a sua fase mais periférica, mais distancia-
último momento, derivado dos precedentes e compreensível da do centro, Deus, aquela em que o espírito, provindo do cen-
apenas se visto nesta sua cósmica preparação no imponderável. tro, submerge nos antípodas, na matéria.
O Sistema já se dividiu no dualismo, e o espírito já desmoronou João acrescenta: ―Ninguém jamais viu Deus. O Filho uni-
na forma material. Em relação a tudo isto, e só em relação a isto gênito, que está no seio do Pai, foi quem o revelou‖. Trata-se,
compreensível, aparece a figura do Cristo. E eis que, depois do
16
"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e vimos a sua glória" –
15
João, 1: 6-18. (N. do T.) João, 1:14. (N. do T.)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 211
pois, de uma manifestação de Deus, do Seu primeiro aspecto, verso da mesma Substância. Tudo o que é forma, porém, cons-
do espírito que, através do seu segundo aspecto, o Pai, projeta- titui esse terceiro momento ou aspecto, é a expressão do pen-
se na forma, tornando-se sensível ao homem, que assim pôde samento de Deus, sem o que nada pode existir. Então a diferen-
ter uma imagem concreta do invisível Deus. Portanto, se Cris- ça entre o ser humano comum e Cristo, encarnado na mesma
to, visto do centro, pode representar uma imersão do espírito forma, só pode estar em que o primeiro representa a imperfeita
nas trevas e na imperfeição da forma física, Ele, visto da peri- expressão do pensamento de Deus, com um espírito que se
feria, onde está o homem, representa uma revelação de Deus. ofuscou pela queda, e corrompeu-se na sua posição periférica,
Trata-se, assim, do sacrifício do espírito, que vem encarcerar- que é o seu ambiente devido e merecido naturalmente, enquan-
se no relativo, agraciando o homem com o dom de uma porta to Cristo representa a expressão perfeita do pensamento de
aberta para o céu, como uma via de comunicação com Deus. A Deus, com um espírito perfeito, incorrupto, projetado apenas
descida de Cristo à Terra representa, por conseguinte, a pene- por amor e missão de bem à periferia, que está nos antípodas da
tração de um intensíssimo raio de luz nas trevas, que se dissi- sua posição natural. E dizer expressão perfeita de um espírito
pam ante o seu ofuscante lampejo. Efetivamente, quantos espí- perfeito é aproximar de tal maneira Cristo do Centro, Deus, que
ritos não se puseram depois a seguir as pegadas de Cristo, no indagar se Ele se identifica ou não com Deus constitui uma su-
caminho da ascensão para Deus! tileza superior ao nosso concebível, que não pode alcançar a es-
Quem tiver compreendido o processo acima descrito do sência de Deus. Baste-nos, pois, ver em Cristo o nosso Pai pro-
desmoronamento do Sistema no Anti-Sistema e sua reconstru- posto de nossa evolução. Para nós, Ele representa a aproxima-
ção, poderá dar-se conta da capital importância da intervenção ção máxima que as forças humanas intelectivas podem atingir
da Divindade na salvação da humanidade. Só assim podemos da infinita perfeição de Deus; representa para as nossas possibi-
compreender o significado da redenção. A história do mundo lidades o limite máximo concebível em altura de qualquer mo-
não é somente feita de guerras e de impérios, mas também de delo que possa ser proposto ao homem, além do qual a nossa
imponderáveis impulsos espirituais. Céu e terra se tocam. Mui- acuidade nada mais sabe indagar. E se quisermos indagar, per-
tos se preocupam em definir se Cristo é Deus ou apenas um pro- der-nos-emos no incomensurável dos céus, na vertigem do su-
feta. Trata-se possivelmente apenas de palavras, atrás das quais perconcebível. Cristo provém de um centro que é luz tão ofus-
se oculta unicamente a preocupação da supremacia absoluta do cante, que o olho humano nada pode distinguir.
próprio chefe espiritual sobre todas as outras hierarquias e reli- Um outro problema, contudo, nos aguilhoa. Por que desceu
giões. Preocupações humanas. Baste-nos por ora ter estabelecido Cristo à Terra e por que quis redimir-nos com a Sua paixão? É
o princípio da proveniência de Cristo. Estamos em regiões suti- evidente que Cristo, estando no Sistema, provém do Centro.
líssimas, onde não sabemos se os nossos pensamentos egocên- Por que então quis imergir no Anti-Sistema? Por que desejou
tricos de personalidade subsistirão ou se, em tais alturas, não se- descer ao reino da criatura decaída, onde o espírito está involu-
rá provável que de todos os nossos conceitos não reste mais do ído na matéria; por que projetar-se no relativo, no limite e na
que um princípio abstrato, irredutível às nossas formas mentais. dor? Quem compreendeu a estrutura do Sistema pode conceber
Com o progresso da ciência, que aponta a nossa Terra ape- a imensidão da distância percorrida. Por que então inverter-se
nas como um ínfimo grãozinho de poeira cósmica, torna-se ca- com os invertidos, deixar-se desmoronar no íntimo, até nós, fi-
da vez mais inadmissível o antropomorfismo, que pretendia fa- lhos desfeitos pela queda? Por que o Pai envia este Seu emissá-
zer dela o teatro dos maiores acontecimentos da criação. Não é rio, que tão intimamente O representa, mandando-O ao martí-
concebível que a vida possa estar toda aqui. E, se Deus enviou rio, com uma incumbência precisa, e por que Cristo tão piedosa
Cristo como seu representante, torna-se cada vez mais difícil e espontaneamente atende? Que representam estes movimentos
que Ele se tenha ocupado apenas de nossa humanidade, esse cósmicos espirituais na economia do Sistema e na obra de re-
Deus que deve sê-Lo não apenas para nós, mas para todo o in- construção do Anti-Sistema? Seriam eles necessários e úteis,
finito universo, que escapa a qualquer medida e compreensão segundo a estrutura lógica do Todo?
nossa. Por que devemos acreditar que Cristo tenha sido o único Há pouco relembramos o conceito da divisão do pão na Eu-
meio da intervenção de Deus para salvar o ser decaído, quem caristia. Lá, entrevimos uma paixão maior do que a de Cristo na
sabe em quantas e variadas formas? Por que admitir que Cristo Terra, que foi apenas pela humanidade terrena; entrevimos uma
tenha sido o único raio enviado pelo Centro para reanimar e re- paixão cósmica, pela qual a Divindade, seguindo no desmoro-
construir o universo desmoronado? Deve-se acreditar ter Cristo, namento todos os espíritos rebeldes, deixa-se arrastar com eles
eventualmente, desempenhado também em algum outro lugar a para salvá-los. No fundo, o próprio Deus era o Sistema e, com o
sua missão redentora ou, ainda que o campo por ele escolhido Sistema, de uma certa forma, Ele mesmo desmoronava, pois que
tenha se limitado à Terra, que se tenha valido de outros colabo- Ele estava em Sua obra. Mas isto não é suficiente para nos ex-
radores, com Ele enviados por Deus a todo o universo, que plicar uma tão tenaz aderência a ela. É que esta era algo mais do
igualmente deve ser repleto de vida. Como separar os fatos da que uma obra Sua. Na primeira criação espiritual, a verdadeira,
vida terrena dos acontecimentos da vida cósmica? Deus se havia dado a Si próprio e, assim, Ele mesmo permane-
No Evangelho de João (Cap. 17: 1-2,4) estão as palavras de cera no sistema corrompido, em sua profundidade, latente, se-
Cristo dirigidas ao Pai: pulto, mas sempre imanente, qual única centelha, sem a qual não
―(...) Para que o Filho Te glorifique a Ti, porque Lhe confe- há vida. Na obra, Deus se dera a Si mesmo, como o pai no filho,
riste poder sobre toda a humanidade‖ (...). mas o universo desmoronado continua a conter Deus, que é a
―Eu Te glorifiquei na Terra, consumando a obra que me sua vida. O Todo permanece vivo somente enquanto Deus está
confiaste para fazer‖. nele. É necessário compreender como Deus criou os espíritos,
O mesmo Evangelho de João se reporta às palavras de Cris- para depois poder entender o resto. Deus, sendo o Todo, não po-
to, dizendo: de criar senão tirando de Si mesmo. Os espíritos puros da pri-
―(...) Quem me vê, vê o Pai‖ (...) – Cap. 14:9. meira criação provieram do seio de Deus, derivaram Dele como
―(...) O Pai, que habita em mim faz estas obras. Crede-me filhos. Daí surge um fato de alta relevância: todo espírito é da
que estou no Pai e o Pai está em mim‖ (...) – Cap.14:10-11. mesma natureza de Deus, como o filho é da mesma natureza do
―(...) O Pai, que me enviou‖ – Cap. 14: 24. pai – natureza inalterável. Poderá ela ter-se desvirtuado, decaí-
―(...) Eu e meu Pai somos um‖ – Cap. 10: 30. do, ofuscado, aprisionado no limite e na dor, imergindo na igno-
De tudo isso se poderia deduzir que se trata de uma incum- rância e na inconsciência. Todavia a sua qualidade originária de
bência recebida do Pai com respeito à humanidade, e que a centelha de Deus, diante de um incêndio cósmico, qual é Deus, é
identidade com o Pai é dada por representar um momento di- indestrutível. E assim ela permaneceu.
212 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Ora, essa natureza divina do espírito não se destruiu quan- penas. A nossa inconsciência, treva do espírito, impede-nos de
do ele se rebelou, convulsionando o Sistema. Desta forma, o perceber esta realidade. Basta, porém, o despertar da alma para
desmoronamento do Sistema é, também em parte, o desmoro- se sentir invadido pela universal presença de Deus.
namento de Deus, evidentemente não na Sua absoluta trans- Somos, pois, pobres seres decaídos no mal e na dor. Triste
cendência, que é inviolável por estar acima de qualquer cria- tributo este, que é justo porque foi desejado. Mas Deus está jun-
ção Sua, mas no Seu aspecto de imanência. Se este significa a to de nós. Ele está junto de nossa humanidade no Seu aspecto
presença de Deus no universo desmoronado, isto pode de al- de Cristo, que conosco colabora na reconquista do paraíso per-
gum modo ser tomado como um desmoronamento de Deus, à dido. Na imensa obra de reconstrução, todo o universo está em-
semelhança do que pode suceder com o homem que, embora penhado, sob o comando de Deus, no curso desta longa estrada
sendo espírito acima das necessidades do corpo, se este adoe- traçada pela Lei: a evolução. Deus coloca-se ao lado do ser se-
ce, também sofre na alma. pultado na dor e, com ele, põe-se a subir. Na profundeza só
Levanta-se, então, uma questão ainda mais relevante: se existe uma dor, que Deus e a alma sofrem juntamente, numa
Deus tudo sabia, por que se expôs a tal perigo? Trata-se, assim união que adulçora qualquer sofrimento. Mas disso apenas os
parece, da falência de toda a Sua obra, naufragada na dor e no espíritos despertos têm consciência. No esforço da reconstru-
mal. Não! Tudo é lógico e perfeito. A equação parecerá insolú- ção, não estamos sós, mas colaboramos com Deus, que assume
vel enquanto não soubermos dar à incógnita X, chave do siste- o grande encargo desse difícil trabalho.
ma, o seu justo valor. E este valor é representado pela palavra No Sistema deve existir para o ser também uma grande for-
amor. Este foi o nosso ponto de partida no início destes capítu- ça de coesão, inserida nele desde o seu nascimento, que, em
los. Ele é agora o nosso ponto de chegada. Inicialmente, acei- qualquer caso e a qualquer custo, impede a sua desagregação,
tamos este conceito como um axioma não demonstrado. Agora força essa que liga o Criador à criatura, pela qual Deus vem a
ele está demonstrado completamente. Ele é o vértice para o colaborar diretamente na reconstrução e, no caso da Terra, en-
qual convergem todas as linhas do edifício. viar Cristo para encarnar-se na involuída forma humana, assu-
Deus sabia que a criatura poderia cair e que Ele, nela Se mindo-lhe todas as misérias. E o que poderia ser essa força, se-
havendo dado, deveria segui-la na queda, porque ela é subs- não o amor, do que nos fala o universo inteiro e a que nos re-
tância da Sua Substância. Sabia-o bem. Mas Deus amava a cri- conduz cada momento seu? Se é verdade que há tanto mal e
atura que tirara de Si e não poderia deixar de a querer livre tanta dor, é porque tais são as qualidades do Anti-Sistema. Mas
como Ele. Uma criação de espíritos que não aceitassem a exis- este, com a ajuda contínua de Deus, está reconstruindo-se no
tência pelo mesmo amor e não aderissem livremente a Deus Sistema. Esse mal e essa dor vão se reabsorvendo por obra do
pela compreensão espontânea, teria sido uma criação de inferi- amor, de que, não obstante tudo, o universo está saturado. É
ores, servos ou escravos, delito que só a nossa mente aprofun- verdade que Satanás se conserva rebelde, em luta. Mas ele está
dada no mal pode conceber. Que sucedeu então? Sucedeu que, na superfície, na periferia. E é verdade também que Deus é ain-
quando o ser rebelde se precipitou, o amor de Deus, jamais da mais ativo e está presente em toda parte.
desmentido, sempre coerente consigo mesmo, seguiu a criatura Cristo veio à Terra a fim de sacrificar-se por amor. A sua
decaída e com ela desceu na matéria, para com ela sofrer a sua paixão é toda um mistério de amor. A Eucaristia é feita de amor
redenção. Eis o amor, sempre o amor, levado até às suas últi- imperecível. As suas últimas palavras foram de amor: ―Isto vos
mas consequências. Amor que em Deus, pelo erro do ser, que mando: amai-vos uns aos outros‖ (João, 15:17).
devia ser livre, torna-se sacrifício. ―Assim como o Pai me amou, também Eu vos amei; perma-
A Eucaristia, dividindo o pão, nos fala claro da paixão de necei no meu amor‖ (idem, 15:9).
Cristo, do Seu sacrifício pela redenção da humanidade. Tudo is- ―O Pai vos ama, porque me tendes amado‖ (idem, 16:27).
to nos demonstra que Deus segue o ser decaído, põe-se a seu Este amor é o raio de Deus, que ilumina e vivifica o universo.
lado, sob o peso da cruz, na subida do monte das perfeições, de Por amor, Cristo desceu ao mundo, reino de Satanás, que fez
onde se precipitou. Só assim se compreende a paixão de Cristo, dele um tormento. Mas Cristo venceu em espírito.
enquadrando-a em uma paixão maior, que abrange todas as O fato de Cristo nos ter trazido amor demonstra que Ele pro-
humanidades do cosmo, paixão da qual a de Cristo na Terra não vém do Centro e que é um reconstrutor. O amor na periferia, em
é senão um caso particular. É verdade que o reino da criatura que nos encontramos, despedaçou-se em ódio, fragmentou-se nas
decaída é o do mal e da dor, onde impera Satanás. Estas são as rivalidades egoístas que Cristo nos ensinou a reconstituir em uni-
características naturais de um universo decaído. Mas há nele dade, amando-nos uns aos outros. Com este seu mandamento
também, como motivo fundamental, a divisão por amor, o sa- fundamental, Cristo quer fundir os fragmentos do Uno, desmoro-
crifício, a existência por toda parte da divina virtude reconstru- nado com a queda do ser. Com o Evangelho, a Boa-Nova anun-
tora, que se chama redenção. Nesta paixão maior de todo o uni- ciada aos homens de boa-vontade, Cristo representa para a hu-
verso, não é apenas Cristo que morre na cruz, mas qualquer es- manidade o toque de pôr mãos à obra, sob a Sua direção, na re-
pírito em que Deus viva e que, encarcerado nas dores de uma construção de um novo e mais elevado plano do edifício desmo-
existência inferior e pervertida, submete-se a uma crucificação ronado do Sistema. Fenômeno biológico, pois, que diz respeito a
cósmica, onde o grande Centro também sangra e padece. toda a vida, em marcha evolutiva! Cristo veio, assim, revelar-nos
Eis a que ponto chegou o amor de Deus! Eis até que ponto uma vida nova; veio manifestar-nos um mais profundo e, conse-
Deus quis respeitar no ser a liberdade! Deus atingiu o extremo quentemente, mais real aspecto de Deus – de amor – verdade an-
de querer intervir para salvar, pagando com o que era Seu, as- tes ignorada pelo homem, que não sabia conceber a não ser o fe-
sim como do que era Seu havia dado ao criar! Altruísmo máxi- roz, ainda que justo, Deus dos exércitos da Bíblia. Na época da
mo, coincidindo com o egocentrismo máximo, pois Deus é tudo vinda de Cristo, a humanidade começava a evoluir um pouco ou
o que existe. O ser, ainda que decaído nas profundezas espiritu- se preparava para tanto. Estava, assim, à altura de receber princí-
ais, não pode deixar de sujeitar-se a Deus, o Pai, sua origem. pios mais amplos, inacessíveis antes à sua inconsciência demasi-
Assim, tudo o que ele sente e vive deve estar sujeito a Deus. O ado involuída. Logo que o terreno ficou preparado, uma nova
Sistema implica conexão e relações entre centro e periferia. A semente foi lançada para fecundá-lo. Faz dois milênios que ela
criatura se comunica com Deus através da oração, transmitindo- jaz sepulta, dois grandes dias da história. E está próximo o des-
Lhe as suas aspirações – inclusive as suas alegrias e dores – pontar do terceiro dia, da ressurreição, em que a semente, matu-
sentidas e registradas na profundidade do espírito, onde Deus rada sob a terra, na elaboração das almas, deverá germinar e em
está. Deus, que se encontra em nosso íntimo, vive tão junto a que o Evangelho, apenas pregado, deverá ser vivido. E, assim, o
nós, que partilha conosco as nossas alegrias e sofre as nossas templo será realmente reconstruído em três dias.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 213
Cristo, provindo do motor fundamental central, o amor, XV. À PROCURA DE DEUS
dinamiza o esforço do ser em nosso planeta, acompanha-lhe a
maceração, auxilia o homem a sair do seu grosseiro invólucro “Et multum laboravi quarens Te extra me, et Tu habitas in me”17.
material para a vida do espírito, repleta sempre de alegria. (S. Agostinho)
Assim, Cristo se entranha em nossa vida terrena, como o
mais poderoso fator de evolução, operando nos nossos mais Fundimos em um estreito monismo, em um só sistema, o
elevados planos biológicos. Ele nos dá a mão na exaustiva Todo, desde o seu polo espírito, até ao polo oposto, matéria.
subida para o centro, do ódio ao amor. Ele quis ensinar-nos Terra e céu assim se tocam e se fundem em um único universo,
alegrias maiores, mais reais, libertando-nos do truque ilusio- em que o espiritual e o material não passam de momentos ou
nista, próprio do Anti-Sistema, onde nos encontramos. Po- posições da mesma Substância. Podemos agora dizer ao homem
nhamo-nos ao lado do Reconstrutor, colaboremos! É do nos- imerso nas trevas: desperta e sentirás que Deus está a teu lado,
so interesse subir para a alegria e nos desfazermos da dor, está dentro de ti, é a tua vida, a vida de tudo. A grande desco-
apanágio natural das regiões inferiores. Este trabalho de re- berta que desloca o eixo do ser e que a ciência nem de leve sabe
construção do Sistema reverte inteiramente em nossa vanta- conceber é descobrir a própria imortalidade, o divino que está
gem, porque significa a evasão do Anti-Sistema e de todas as em nós, e com ele aprender a viver eternamente; é despertar a
suas aflições. O Sistema somos nós mesmos, e, reconstruin- própria consciência adormecida, para compreender que somos
do-o, reconstituímos o nosso poder, a nossa felicidade. A Lei filhos de Deus, imensamente amados por Ele; é entender que a
é a nossa vida. Conhecê-la e executá-la cada vez melhor re- causa de todos os nossos sofrimentos não reside numa defeitu-
dunda em viver mais intensamente sempre. Endireitemos a osa construção do Sistema, mas em nossa incompreensão da
nossa posição invertida, isto é, amoldemo-nos à vontade de perfeição de sua construção; é convencer-se de que o tremendo
Deus, em plena e espontânea adesão, invertendo assim a pri- destino de dor que nos aflige depende, sobretudo, de nossa ig-
meira rebelião do ser. Deus quer a nossa livre aceitação do norância e que ele somente pode transmudar-se em um destino
Seu amor, Ele a quer por compreensão, e não por força. Endi- de glória se soubermos superar os nossos baixos instintos e nos
reitemo-nos, rebelando-nos, ao contrário, contra a vontade de evadir de nossa natureza animal inferior; é entender que a vida
Satanás, que é a lei do Anti-Sistema.
não pode estagnar-se, deixando de avançar, e que a guerra não
Não nos esqueçamos de que Deus está conosco, por mais terá fim enquanto o homem não empreender formas de luta e
malvados que sejamos.
seleção mais evoluídas; é compreender que Satanás, a quem to-
Assim termina esta visão, primeiro germe de visões mais dos gostam de seguir, porque nos engoda, é antes inimigo de
vastas, da essência do Cristo. Ele nos aparece assim definido nossa felicidade, e que Deus, a quem relutamos em acompa-
em relação a Deus e ao homem, neste quadro cósmico. A Sua
nhar, porque primeiro exige de nós o justo trabalho, para depois
vinda à Terra significa a retificação do homem, que deve retor-
nos dar a alegria, é o nosso primeiro amigo e outra coisa não
nar à posição ereta, depois da queda pelo pecado original. Eis o
quer ou procura senão cumular-nos de felicidade.
conceito de redenção. Entretanto o pecado original não foi se-
Até aqui, temos procurado explicar, com o máximo de cla-
não uma consequência e continuação da queda dos anjos, foi o
reza, o fim do mal, sua autodestruição. As teorias não são nos-
caso particular de nosso planeta e de nossa humanidade. Então,
sas, mas as lemos no livro da vida, e o Evangelho (Lucas, 11:
assim como por trás do pecado original houve um desmorona-
mento muito maior, igualmente por trás da descida do Cristo à 17-18) no-las confirma, quando nos diz: ―Todo reino dividido
Terra, para retificar o homem caído, deve ter existido uma des- contra si mesmo será destruído, e as casas cairão umas sobre as
cida com uma redenção muito maior, para a salvação de todo o outras. Se, pois, Satanás está dividido contra si mesmo, como
universo. E, assim como o pecado original foi a consequência e subsistirá o seu reino?‖. O mal, portanto, como provém do An-
continuação da queda dos anjos, também a descida e a paixão ti-Sistema, é força negativa e está condenado ao aniquilamento
de Cristo, com a redenção da humanidade, foi a consequência pela sua própria natureza e qualidade. Pela mesma fatal lei das
da maior descida e paixão de Deus pela redenção de todo o coisas, o próprio espírito de separatismo que anima Satanás
universo desmoronado. Com essa obra imensa se coordena também o desagregará. E com Satanás se extinguirão a dor e a
Cristo. Eis o significado daquelas palavras, transcritas por João morte, resultando na vitória da vida, cujo centro se situa no es-
em seu Evangelho, dirigidas ao Pai: pírito, centelha pela qual Deus se manifesta em tudo o que exis-
―(...) para que o Filho te glorifique a Ti, porque Lhe confe- te. Não deve a compreensão de tudo isso encher-nos de alegria
riste poder sobre toda a humanidade, para que dê a vida eterna a e de fecundo otimismo em meio a qualquer dor? Esta é a psico-
todos os que Lhe deste. logia da superação, que vai além do miserável contingente,
―Eu Te glorifiquei na Terra, consumando a obra que me dando-nos a paz das coisas eternas e a segurança do amanhã.
confiaste para fazer‖. Tudo isto está amplamente exposto no Evangelho e foi por
Eis como do ponto de partida, o amor, tudo se desenvolve nós tentado, racional e cientificamente, ser demonstrado nos
necessariamente com lógica, até à descida de Deus, que per- esquemas expostos, a fim de conseguir tornar compreensível
manece imanente na forma – como seu espírito animador, por- esta boa nova, já proclamada por Cristo e aqui repetida por nós
que ela possui um pouco da luz originária – para que se possa identicamente, porque ela é a maior alegria da alma. Deus está
voltar a subir. No fundo do quadro da paixão de Cristo, há a conosco. Quando uma espiga de trigo se multiplica em centenas
cósmica paixão de Deus, que não abrange somente a Terra, de espigas e as messes aluem os campos para nos dar o pão,
mas todo o universo; há a crucificação de toda a divindade, Deus está conosco. Quando os rebanhos se multiplicam, os
que não abandona o ser caído, mas o segue no desastre, con- animais que nos fornecem alimento se desenvolvem e tudo na
serva-se em seu interior até no plano físico, em meio à treva e terra germina e cresce fecundamente, Deus está conosco.
à dor, porque Ela sabe que somente a sua íntima presença, que Quando nossos filhos se tornam grandes, Deus está conosco.
é vida, pode salvá-lo, redimindo-o e reconduzindo-o à vida. Só Deus é esse irrefreável impulso de vida, mesmo que ele possa
assim, de fato, será possível a reconstrução do Sistema pelo ser feroz nos graus inferiores, porque os seres não sabem ainda
Anti-Sistema. Somente desta forma o desmoronamento não se- aprender lições mais refinadas. Avançamos, contudo, no cami-
rá uma derrota, mas uma vitória. Por esse motivo é que Deus o nho ascensional. Já muitos homens têm terror desta vida inferi-
permitiu, por saber que, em qualquer caso, o Sistema seria o
17
vencedor. E a vitória final de Deus em todo o universo será ―E muito me fatiguei, procurando-Te fora de mim, quando Te en-
expressa pelo triunfo do seu princípio fundamental: o amor. contras em mim‖. (N. do T.)
214 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
or, em que muitos se sentem bem. É fatal que a evolução avan- va e solene pergunta: onde encontrar Deus? E se é verdade que
ce e produza um novo e mais civilizado tipo biológico humano. Deus está no íntimo do ser, então por que não buscá-Lo dentro
Ele talvez seja, como hoje, dado apenas por um em um milhão. de nós, e não fora? E como se pode alcançar Deus por essa via?
Amanhã estará na proporção de um por mil, depois será um em Tratemos agora de resolver o problema da procura de Deus, um
cem, e assim por diante, até que o homem novo seja maioria e dos mais árduos e importantes para o ser. Como podemos subir
se afirme. A natureza procede por graus e, antes de realizar o ao Pai que nos gerou e nos pormos em comunicação com Ele?
novo em grandes séries, experimenta-lhe os exemplares em Para bem compreender, reportemo-nos às primeiras origens,
poucos casos, explorando o terreno. conceito que depois desenvolveremos (Cap. XVII – ―Imanência
Quando os judeus quiseram lapidar Cristo – narra João e Transcendência‖).
(Cap. 10:33-34) – a acusação era de blasfêmia: ―(...) lapidamos- Deus, antes de realizar o ato criador, era o Uno-Todo, que
te por blasfêmia, porque sendo tu homem, fazes-te Deus. Jesus deveria ainda tudo tirar de si. Sobrevindo a criação dos espíri-
lhes replicou: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois tos, o Sistema desmorona, como já vimos, e com ele, de certa
Deuses?‖. Quando descobriremos a grandeza desta nossa natu- forma, desmorona também Deus, que, sendo o seu íntimo ani-
reza divina, que se filia a Deus? Quando os místicos falam de mador, não devia e, por amor, não podia separar-se dele, hou-
união, provam que a atingiram, ou pelo menos se avizinharam vesse o que houvesse. Por isso nasceu de Deus o aspecto de
dela. No íntimo de nosso ser, no espírito, há uma profundidade imanência, que o torna presente no Anti-Sistema ou sistema
de infinito, e é neste sentido que a evolução progressivamente desmoronado, como igualmente vimos. Mas, em Seu aspecto
nos desperta. É neste infinito que o nosso pequeno ―eu sou‖ transcendente, Ele está além de qualquer criação Sua e dos fa-
funde-se com: o ―Eu sou‖ do Todo. Quando descobriremos que tos a ela referentes. E a sua divisão nestes dois aspectos repre-
somos Deuses, que somos, mercê de nossa centelha originária, senta também a divisão do Todo no dualismo, que será depois a
hoje decaída nas trevas, formados da mesma Substância de que característica desse Todo, cindido daí por diante em Sistema e
Deus é formado? Como poderia deixar de sê-lo um filho do Anti-Sistema, entre Deus e Satanás, que nasceu então como an-
Pai? E que mais, além disto, poderia significar a imanência? tagonista. O ato de partir o pão na Eucaristia já vimos que signi-
O Evangelho é uma contínua luta para se fazer compreen- fica exatamente a divisão do Uno no dualismo, prelúdio da ima-
dido pelos seres inferiores. E os judeus pensavam, como tantos nência, pela qual o princípio fundamental e originário do amor
outros ainda hoje, em um Deus déspota, obedecido porque po- não pode subsistir a não ser como sacrifício. Eis a lógica conca-
de mais do que nós, fazendo-nos pagar a desobediência; um tenação que liga a divisão do pão à paixão de Cristo, cuja desci-
Deus de uma outra raça, que nos domina, nada tendo em co- da à Terra, em corpo humano, é um caso e prova fulgurante da
mum conosco. Há, contudo, um denominador comum, um imanência de Deus no Anti-Sistema, onde nos encontramos.
fundo comum, ainda que muitíssimo remoto, entre Deus Pai, Sem imanência, não poderia existir a paixão e a redenção maior,
Cristo e o homem: a natureza divina. A diferença apenas é que, que Deus realiza em todo o nosso universo, como já expusemos.
no ser humano, essa íntima Substância se aprofundou tanto na E a Eucaristia, para o caso particular de nossa humanidade e de
inconsciência, após a queda, que o ser dela nada mais sabe e Cristo, que a preside, representa justamente esta imanência. Isto
não consegue imaginar Deus, seu pai e amoroso amigo, senão quer dizer que Cristo não quis descer à Terra por uns poucos
antropomorficamente, como senhor feroz, qual ele seria se anos apenas, mas quis aí ficar permanentemente presente em es-
porventura viesse a tornar-se Deus. Para o ser, não é possível pírito, na Eucaristia, que expressa a imanência de Deus em nos-
formar de Deus uma imagem superior a que o grau de compre- sa humanidade, com finalidade regeneradora (redenção).
ensão atingido pela sua evolução pode permitir-lhe. Assim, es- E esta, que é a via da descida, representa também o canal
ta não é a psicologia dos judeus apenas, mas do tipo humano da subida, o fio de comunicação com a divindade. Que signifi-
involuído, que hoje impera. ca imanência, senão que Deus permaneceu no fundo de nosso
Quando imergimos o olhar na essência das coisas, vemos re- ser como espírito, para animá-lo e fazê-lo evolver, reconduzin-
velar-se-nos um mundo inteiramente diverso do que comumente do-o a Ele? O espírito, como já afirmamos, é o fundo comum
nos aparece na superfície, são esses novos continentes do espíri- entre Deus Pai, Cristo e o homem, e só através desse fundo
to que estamos descobrindo nestes volumes, traduzindo o que comum é possível a comunicação. Isto confirma ainda que
tão natural e evidente surge ao olho da intuição, em linguagem Deus realmente não pode ser alcançado senão quando desce-
racional e científica, reduzindo tudo à forma mental corrente, a mos conscientes à profundeza de nosso espírito. Veremos a se-
fim de nos tornarmos compreensíveis, mesmo por aqueles que guir o que significa ―conscientes‖.
não sabem enxergar senão com os olhos da razão. Encontramo- Ouçamos as confirmações que nos enviam as grandes almas
nos diante das mesmas dificuldades que na Terra encontrou o que souberam percorrer esse caminho de retorno. Diz-nos
Evangelho, na mesma luta por se fazer compreendido. O atual Agostinho: ―Est Deus superior summo, interior intimo meo 18‖.
homem comum está tão habituado a conceber qualquer manifes- E acrescenta, falando de Deus: ―Et multum laborav, quaerens
tação do ser somente na sua extrema forma exterior e sensória, Te extra me, et Tu habitas in me‖. Agostinho testemunha, por-
está tão convencido de que esta é a realidade e toda a realidade, tanto, que Deus está na intimidade do ser e que não deve ser
que quando deseja orar a Deus, projeta Dele uma imagem mate- procurado fora, mas sim dentro de nós. Paulo afirma a respeito
rial, a única que ele pode formar de Deus, e a adora. Ela não é de Deus: ―In ipso vivimus, movemur et sumus 19 (...)‖, S. Paulo
mentira consciente. É uma tradução da linguagem espiritual, que em Atenas – Atos, 17: 28.
lhe é incompreensível, em uma linguagem concreta, a ele aces- A Beata Ângela de Foligno ouviu Cristo lhe dizer: ―Eu sou
sível. Assim pode ver e tocar as imagens de Deus. Esta é uma mais íntimo de tua alma do que ela de ti mesma‖. Os místicos
ingênua necessidade de involuídos, que não conseguem pensar e cristãos, experimentados em semelhantes indagações, dizem
orar a não ser com o corpo, e com os sentidos. Mas, certamente, que: ―Deus é a nossa superessência‖, isto é, algo de tão íntimo
para quem sente Deus em Sua universal presença e potência, isto e profundo, a ponto de parecer a nossa própria sublimação.
pode parecer uma profanação, ainda quando, nos casos mais fe- Eis a palavra que nos traça a via de retorno: sublimação, isto
lizes, constitua um lampejo capaz de reavivar a centelha da arte. é, purificação e elevação de nossa personalidade. Esta é a estra-
◘◘◘ da que reconduz o ser ao ponto de partida, lá onde, após deter-
Assim foi que, da visão dos grandes problemas cósmicos,
chegamos à visão do problema espiritual do homem nas rela- 18
―Deus está nas supremas alturas e também no meu íntimo‖.
19
ções da sua alma com Deus. Agora podemos formular uma no- Nele vivemos, nos movemos e existimos. (N. do T.)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 215
minados períodos, a ascensão atingirá a meta, que é o ponto de transmitida, qualquer coisa que pensa, quer e reage depois, por
chegada. Então, o Deus imanente, que por amor se mostra pra- meio de outros órgãos. Eis o espírito, que se une a Deus. Ele
zerosamente no sacrifício, lado a lado com a criatura, com ela põe-se em comunicação com o mundo exterior por intermédio
carregando a cruz, terá refeito todo o caminho da descida. E, dos órgãos do corpo, os quais lhe transmitem sinais que ele in-
assim, o ciclo será completado, e o aspecto imanente de Deus terpreta e que lhe permitem registrar uma limitada gama de vi-
terá alcançado o aspecto transcendente de Deus, o imperfeito brações (som, luz, calor), necessárias à sua vida terrena, além
ter-se-á tornado perfeito e poderá fundir-se nele, o Uno ter-se-á das quais ele nada percebe do mundo exterior. O resto do uni-
reconstituído e a cisão do dualismo estará sanada. verso terá também ele a sua sensibilidade, pois que é igual-
É evidente que, hoje, o Todo está dividido em duas partes: o mente animado de vida, isto é, de espírito, de Deus imanente.
perfeito, que ficou como recordação no fundo do ―eu‖, como Mas qual seja ela, não o sabemos. Não podemos saber se a ma-
seu anelo e instinto fundamental; e o imperfeito, que evolve pa- téria, quem sabe de que maneira, sente a sua estrutura atômica;
ra a sua perfeição. Ora, se o imperfeito avança sempre para o se um cristal percebe a sua vibração molecular; a célula, o seu
perfeito, na progressão para o infinito, ele deverá reduzir as dis- metabolismo; uma planta, o mundo exterior. Não podemos pe-
tâncias a quantidades cada vez mais infinitesimais, até sobre- netrar nessas formas do ser tão distanciadas de nós, mas ape-
por-se e coincidir com o perfeito. Isto porque, se Deus, de um nas nas biologicamente mais semelhantes e próximas a nós.
certo modo, desmoronou no Seu aspecto imanente, Ele perma- Ora, a evolução é uma espiritualização, isto é, um despertar
neceu perfeito, sem desmoronar, em seu aspecto transcendente. para a vida do espírito, que é interior; é um aguçamento, uma
Este é o ponto de chegada que aguarda o imperfeito. Este é o precisão, um aperfeiçoamento da sensibilização. Isto é cami-
eixo íntegro de todo o Sistema, aquele que deve salvá-lo, mes- nhar para a vida, sentindo que se vive cada vez mais intensa-
mo no seu momento negativo de Anti-Sistema. mente. Significa uma acentuação da vida, isto é, uma revelação
Como se vê, o problema da ascensão espiritual ou sublima- crescente do espírito. São qualidades que não podem nascer do
ção tem suas raízes no cosmo e não é solúvel a não ser em fun- nada, pois se constituem apenas em despertar no consciente o
ção do grande problema do ser. Há, pois, um grande fio condu- que estava adormentado no inconsciente, qualidades que repre-
tor para a ascensão, dado pela imanência de Deus, que deriva sentam um progressivo revelar-se de capacidade sensitiva, que
da Sua transcendência, o imperfeito que deriva do perfeito. Ora, forma a divina essência do espírito. Este, despertando, põe-se
este último termo do ciclo, no qual o dualismo é sanado e as em união com Deus. Certamente, entendemos aqui sensibiliza-
duas metades do Uno se reúnem, está no fundo de nós mesmos, ção no sentido lato, e não só sensório, dado que é possível re-
e é nesta direção que devemos caminhar, se quisermos atingi- ceber novas impressões não só do mundo exterior, mas também
lo. E como se deve proceder para caminhar em direção à pro- do espiritual e sobretudo do moral, que impõem normas de vida
fundeza de nós mesmos? Isto significa o que já havíamos dito cada vez mais aderentes à Lei de Deus.
antes, em outras palavras, ou seja, ―descer conscientes na pro- É por intermédio deste processo que conseguimos sentir em
fundeza de nosso espírito‖. Palavras igualmente enigmáticas, nós e nas coisas a presença de Deus. Compreendida de manei-
que não sabemos como traduzir no mundo da ilusão, que cha- ras extremamente diversas no contingente, esta é a essência e o
mamos realidade! Trata-se de passar de uma linguagem verda- último significado da evolução: despertar em nós o Deus ima-
deira, onde tudo se faz com o espírito – a única realidade – para nente, oculto na profundeza do espírito; tornar de novo consci-
uma linguagem falsa, onde tudo se faz com o corpo e com os ente e vívido aquilo que, tendo sido invertido pela queda, tor-
seus sentidos, que criam a ilusão. O leitor, todavia, vê como es- nou-se inconsciente e morto. Todo o trabalho da vida, o sucesso
tamos assediando e envolvendo a fortaleza em que o problema ou insucesso, a alegria ou a dor, através de infinitas provas, tu-
se entrincheira, até poder finalmente penetrar nela. Primeiro o do se reduz a isto. Chama-se catarse ou sublimação, sensibili-
encaramos do alto das posições máximas do ser. Abordamo-lo zação sensória, psíquica ou moral, maceração ou maturação
agora de baixo, partindo de nosso corpo físico. evolutiva, superação da treva ou da ignorância pela luz ou co-
A primeira qualidade do existir, que chamamos de vida, é o nhecimento. Trata-se sempre do mesmo fenômeno, de infinitas
sentir. A insensibilidade é característica da morte, ausência do formas. A hierarquia dos seres é dada pelo grau deste despertar,
espírito. A sensibilidade é atributo do espírito, que é o existir. pois é ele que marca o seu valor, representado pela capacidade
Espírito significa o que é. Onde falta o espírito, não há exis- conseguida de vibrar; é dada pelo grau de consciência alcança-
tência, porque Deus é espírito, isto é, a plenitude do ser. A do, que os avizinha mais ou menos de Deus.
sensibilidade, ou seja, a aptidão de perceber, como nós a pos- As almas vão, assim, lentamente despertando, compelidas
suímos, é qualidade exclusiva da alma. Uma vez que esta se pela Lei, que expressa a imanência de Deus entre nós. Os invo-
destaca do corpo, este não mais sente, ainda que os seus órgãos luídos não passam de pobres adormecidos. Entretanto Deus es-
estejam intactos. O místico, arrebatado em êxtase, não percebe tá tão próximo, que realmente é o ―interior intimo meo‖! Co-
mais através dos sentidos, porque a alma está ausente deles. mo fazer, então, isto ser compreendido por seres que O sen-
Quando estamos distraídos, a mensagem sensória chega regu- tem, ao invés, tão distante, que chegam mesmo ao ateísmo?
larmente à alma, mas esta não a registrou e, assim, vendo, não Em que consiste essa proximidade e distância? A verdade é
enxergamos e, escutando, não ouvimos. Sabemos que os nos- que esta sensação possui um sentido de interioridade espiritual,
sos vários órgãos sensoriais não são mais do que aparelhos de e não espacial. Não é em quilômetros, como na Terra, ou em
captação e transmissão de ondas, nada além. Isto implica que anos-luz, como para as estrelas, que se pode medir essas dis-
existe um ponto de chegada da transmissão, ao qual estão liga- tâncias. O espírito não vive na dimensão espaço, mesmo que
dos esses aparelhos. O sistema central (cerebral) para o qual venha a manifestar-se nele.
converge o periférico, é apenas um órgão de seleção e coorde- Para compreender é preciso reportar-se à natureza do espí-
nação, ainda situado na dimensão espacial, enquanto o ―eu‖ rito, que não é matéria espacial, mas um imponderável, só de-
possui a faculdade de juízo e de síntese, próprias de outras di- finível, portanto, com outras mensurações. A presença de Deus
mensões, a que não pertencem nem o sistema central nem o no universo é dada pelo estado cinético, que vimos ser a nova
periférico. Trata-se de um ―eu‖, princípio unitário de todo o posição que Deus assume do absoluto imóvel, projetando-se na
organismo, que, como tal, permanece inalterável, não obstante gênese. A vida do universo se manifesta como estado mais ou
o crescimento e envelhecimento deste, que está sujeito a um menos complexo e evoluído, mas sempre com esta íntima na-
contínuo transformismo. Nesse princípio está o abstrato, o su- tureza. A vida do espírito é representada, então, por um estado
persensório, algo de qualitativamente diverso da vibração vibratório. E a vibração, pois, mais ou menos complexa e evo-
216 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
luída, é também a medida que o define. Ora, a proximidade ou Assim, tudo o que existe, inclusive os homens, escalona-se
distância entre uma alma e Deus é dada pelo grau de afinidade por degraus ao longo da escala evolutiva, representando a re-
de vibração atingido por ela em relação a Ele. Em outros ter- construção dos vários planos do sistema desmoronado. A escala
mos, a vizinhança é uma sintonização, uma vibração do mes- do que conhecemos vai da matéria ao super-homem. E tudo es-
mo diapasão, que, para os místicos, termina na unificação. Ora, tá a caminho. O termo fixo de comparação, o absoluto que, na
o involuído não vibra de modo algum com a vibração do divi- relatividade do Todo, permite estabelecer as distâncias é Deus.
no, isto é, não está fundido na Lei com toda a alma e, se vibrar, No mineral, o divino está tão profundamente sepultado em es-
vibra ignorando Deus, frequentemente contra Ele. Eis no que tado de inconsciência, que não se pode, de maneira nenhuma,
consiste a imensa distância. falar de consciência e espírito, pois que eles jazem como que
Daí os místicos sentirem a sua personalidade desfazer-se em anulados. Sem liberdade de escolha, nem luz de compreensão,
Deus, onde se anulam como egocentrismo separado, porque o ser aí se movimenta no determinismo que a Lei, completa-
vêm a assumir, cada vez mais, a vibração do Centro. E, assim, mente ignorada, impõe. Todavia a individualidade atômica,
quanto maior o progresso neste sentido, tanto mais difícil se molecular, química, planetária ou galáctica tem as suas caracte-
torna distinguir a si como ―eu‖, mas, em compensação, o ―eu‖ rísticas inequívocas, que lhe conferem como que uma persona-
se sente viver mais como Deus, isto é, como vastidão, potência lidade. E esta exprime uma estrutura tão complexa, que o ho-
e unidade. Por isso Paulo pôde dizer: ―Não sou eu que vivo, mem ainda não a decifrou. Há, pois, aí também, um grande
mas é Cristo que vive em mim‖20. É assim que a divindade pode pensamento, que não pode deixar de ser o de Deus imanente,
despertar em nós. Eis os resultados da evolução. E, quanto mais ainda que, por certo, essa individualidade o ignore por comple-
ela avança, tanto mais o egocentrismo separatista do ―eu‖, filho to. Não podemos admitir que o átomo saiba calcular a sua velo-
da fragmentação do Uno, atenua-se, irmanando-se em unidades cidade interior e trajetória. Ele é ligado a uma lei de ferro, da
coletivas cada vez maiores, e tanto mais se reconstitui a grande qual não tem consciência. Estamos nos antípodas do centro-
harmonia unitária do Sistema, rompida na queda. Deus, onde existe a plenitude da liberdade e da consciência. O
Eis o que significa o despertar de Deus dentro de nós. A ser deve reconquistar essa plenitude, que, neste caso extremo,
vibração Dele, estado cinético da vida, mantém-se em inativi- inverteu-se em uma carência completa. Evolvendo, ele deve re-
dade no involuído. Neste, a verdadeira vida está apenas latente, construir-se. Assim, sobe-se gradativamente. Na progressiva
em estado de inércia, à espera de desenvolvimento, como um conquista de mobilidade e de sensibilidade há uma libertação.
instrumento musical cujas cordas estão mudas. A vida do invo- A consciência, qualidade divina, revela-se cada vez mais, por
luído é uma vida animal, inferior, que a cada passo é contida graus, até ao plano do homem e do super-homem. Contudo ve-
pela morte e pela dor. Não é a vida verdadeira. Trata-se aqui mos que a inteligência de Deus existe mesmo nos graus ínfimos
de um despertar de consciência, que é justamente o estado ci- do ser. A diferença é que as formas, quanto mais ascendem na
nético, qualidade do espírito; trata-se de entrar cada vez mais evolução, tanto mais vêm a se tornar partícipes dessa inteligên-
nesse estado cinético, o que significa desmaterializar-se (sair cia, enquanto, nos níveis inferiores, embora ela exista dentro
da inércia da matéria), para espiritualizar-se (entrar no dina- dele, o ser encontra-se excluído dela. E o que mais significa en-
mismo do espírito). E retornar ao espírito significa retornar ao contrar esta inteligência senão tornar-se consciente, isto é, des-
divino, nosso estado originário, volvendo a ser consciente, vi- pertar no ser o Deus que, com o desmoronamento, permaneceu
vo e vibrante até na profundeza, onde está Deus. Eis qual é a nele imanente, mas sepultado na inconsciência?
via para reencontrar Deus. Quando o homem tiver se tornado É grave e de transcendental importância a conclusão deste
consciente da presença de Deus em si, o caminho da evolução capítulo, especialmente para quem está em condições de senti-lo
estará completado, o edifício desmoronado estará reconstruído, inteiramente, porque atingiu por si mesmo, através da própria
a natureza rebelde terá volvido ao Criador. maturação, a visão desta consciência. Constitui uma descoberta
O homem comum está em poder do jogo das suas ilusórias revolucionária chegar a saber que, na profundidade do próprio
sensações de superfície, ignorando que maravilhosos tesouros ―eu‖, possui-se o divino e que Deus, ignorado pelo animal e ne-
repousam inexplorados na intimidade do seu ser. Mas aqui estão gado pelo ignorante, está tão junto de nós. É deveras emocio-
descritos de forma racional as profundas mutações ocorridas na nante saber-se eterno cidadão do universo! É uma conclusão de
alma, quando um homem se torna santo. Poucos as reparam, incomensurável alcance, mas, por isso mesmo, perigosa, se não
porque a maioria vive de sensações das quais escapam tais inte- for encarada sabiamente, motivo pelo qual não pode ser dita in-
rioridades. Estes não estão em nível de compreender e admitir, discriminadamente a todos e manuseada pelo involuído. Quem
em absoluto, uma distância qualitativa – evolutiva – de tal natu- não estiver preparado, não pode receber a luz da verdade, tão
reza de tipo de vibração, e permanecem a uma imensa distância excessivamente ofuscante. A verdade deve ser dada proporcio-
de algo que, no entanto, nos é tão intimo. É inútil, pois, falar de nalmente a quem a recebe. Tais conceitos, postos na mente do
uma incompreensível imanência de Deus em todas as coisas e, involuído, são transviados e podem ser entendidos às avessas em
sobretudo, na profundidade de nossa alma. Quem não possui relação à sua posição, de modo que, ao invés de estimularem
meios para registrar uma vibração acredita que ela seja inexis- uma anulação do próprio egocentrismo, na fusão com Deus, po-
tente e a nega. Essa incompreensão, porém, explica-se facilmen- dem levá-lo a exalçar-se, erigindo-se em anti-Deus. A primeira
te. Da periferia, onde se está situado em posição invertida, é di- rebelião está sempre pronta a explodir de novo no Anti-Sistema.
fícil mover-se à procura de Deus. A ciência, em última análise, O indivíduo pode, assim, ser levado a crer-se Deus. Esta inter-
nada mais faz do que tentar essa procura. Ela não o sabe, embe- pretação, embora satânica, inversa da conclusão verdadeira, será
vecida pelas habituais miragens, mas, na realidade, é esse o seu quase certa. É por esta razão que o conhecimento de um fato de
verdadeiro e substancial objetivo. Na periferia, todavia, em meio tal alcance, como é a presença do divino em nós, é vedado à
a um sistema fragmentado em uma infinita poeira fenomênica, maioria, enquanto não houver alcançado o grau de evolução ne-
ela se perde no particular, condenada ainda à ausência de uma cessário. Ai de quem entender em sentido inverso a presença de
síntese total. Para voltar a encontrar Deus, seria necessário re- Deus em nós, porque, então, tudo isto, ao invés de servir para a
constituir no Uno essa infinita pulverização do ser, o que é im- ascensão, contribuirá para uma descida ainda maior. O místico
possível. Não é, pois, à ciência que podemos pedir tais resulta- jamais se ensoberba com essa descoberta; pelo contrário, vê nela
dos. São necessárias outras vias para que isto se dê. um motivo a mais de obediência e humildade. É necessário fazer
Deus crescer em si, mas não pelo caminho oposto da exaltação
20
Gálatas, 2:20. (N. do T.) do ―eu‖. Deus está em nós como princípio de amor, para que fa-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 217
çamos Dele o nosso centro, e não para que façamos de nós um to o homem, evoluindo, não passar a uma forma de atividade
centro contra Ele. Caso contrário, Deus se negará cada vez mais, biologicamente construtiva e superior. A Lei nos dá sempre,
em lugar de dar-se, e o ser precipitar-se-á ao invés de subir. segundo o nosso grau de evolução, aquilo que merecemos. Ora,
Estamos na Terra, em um reino periférico do Anti-Sistema, o evoluído, biologicamente mais avançado, não pode manifes-
onde é comum subverter a verdade no erro. Assim é fácil, neste tar a sua vida espiritual da forma que a maioria criou para si. À
reino, conferir à nossa fé e intuição da imanência de Deus uma parte a má fé de pseudos super-homens que, presumindo-se
interpretação de panteísmo impessoal, confundindo-o com o iluminados, pretendem evadir-se das formas comuns, mas inca-
unilateral, que exclui de Deus o aspecto pessoal e transcenden- pazes de qualquer vida espiritual no seu íntimo, a discrepância
te. Esta foi efetivamente a interpretação que emprestaram aos acima referida pode nascer. Quanto mais se avança, porém, tan-
volumes precedentes, especialmente em A Grande Síntese, da to mais se penetra nas realidades espirituais e tanto mais perde
qual este e os demais tomos não são mais do que o desenvolvi- importância a forma e ganha a substancial essência. Quanto
mento e a explicação. Ora, Deus estar em nós, presente em to- mais se progride, tanto melhor se compreende, mais tolerantes
dos os seres, pois sem Ele nada pode existir, é uma certeza, nos tornamos para os irmãos menores, que são incapazes de
uma realidade que jamais poderá se negada por quem a atingir conceber. Por isso jamais há luta nestes casos, ainda que seja só
por intuição. Depois, se corretamente interpretada, ela não leva polêmica. Pelo contrário, surge, no pleno respeito às formas,
a uma soberba deificação do nosso eu ou da natureza, mas de- mesmo quando se sabe que estas só servem para os seres menos
termina a fusão de nossa alma e do criado com o Criador aí evoluídos, uma nova vida espiritual, que lhes dá como conteúdo
imanente, sem o que tudo estaria órfão. Os conceitos acima ex- uma nova substância, que as vivifica, enchendo aquele vazio
postos não levantam o ―eu‖ contra Deus, mas tendem a diminu- substancial que elas geralmente revelam na alma de quem não
ir o ―eu‖, para deixar que Deus desperte nele e viva nele em lu- sabe pensar, sentir e manifestar-se a não ser com os sentidos e
gar do ―eu‖ separado, filho do desmoronamento. Não é mais o com o corpo. Surge, em outras palavras, o culto interior, dirigi-
―eu‖ rebelde que agora predomina, mas o ―eu‖ em sacrifício, do também no rito ao espírito, fugindo às manifestações religi-
aos pés da Lei. ―Os últimos serão os primeiros‖, isto é, quem osas rumorosas e profanas, que mais atraem as multidões. O
quiser ser o primeiro no Sistema deve ser o último no Anti- culto interior é um estado de alma que pode subsistir em qual-
Sistema, ou seja, servo do próximo, não em soberba, mas em quer forma, mesmo nas comuns, mas que não se exaure em
obediência e em humildade. Desta maneira não se aumenta a manifestações físicas, vocais ou impressões sensoriais e tende a
cisão, mas a unificação; não se caminha para o triunfo do ―eu‖, atingir no fundo do espírito a sensação da presença de Deus.
mas de Deus. É evidente que a via acima traçada não leva a Sa- Ocorre então um estranho fato: caem os absolutismos, a in-
tanás, mas sim conduz a Deus. transigência, a convicção de que o próprio ponto de vista possa
É assim evidente também o que diz o Evangelho sobre a ser o único para avaliar o infinito. Assim, da verdade se obtém
necessidade de se decidir na escolha, porque não é possível um conceito novo, no qual ela é algo de não codificado nem
servir a dois senhores ao mesmo tempo, isto é, prosperar con- codificável, mas infinito, para cuja aproximação é imperioso
comitantemente no Sistema e no Anti-Sistema. Se quisermos trabalhar e sofrer em cada dia. Concebe-se, desta maneira, a
realmente vencer, é de nosso interesse seguir o primeiro, e não verdade não mais como um cômodo assento em que nos refes-
o segundo. É natural, pois, que Cristo e o mundo sejam inexo- telamos para repousar, como o fizeram os nossos ancestrais,
ravelmente inimigos, mas também que Cristo, Senhor do Sis- mas como uma íngreme ladeira que importa galgar com a pró-
tema, vença o Anti-Sistema. Cristo não sofreu porque fosse pria boa vontade. Mas não é só, pois, ganhando em substância,
fraco ou vencido, como acreditou a estupidez dos seus algozes, podemos melhor compreender o valor relativo e transitório das
mas em razão de livre e deliberado sacrifício de amor. A pai- formas e nelas enxergar cada vez menos uma razão para dissen-
xão de Cristo situa-se logicamente no plano de salvação do sões ou antagonismo, isto é, para aquela cisão que representa o
universo, no plano de reconstrução do Sistema com o Anti- desmoronamento do Sistema e que justamente vai sendo absor-
Sistema em que ele desmoronou. vida na unidade. O evoluído, de fato, é um ser que subiu mais
Senhor deste plano, desdenhando os pobres meios humanos em direção a Deus, que é unidade, uma ascensão que não pode,
de ataque e defesa, Cristo, o cordeiro pacífico e inerme, ven- pois, deixar de implicar unificação.
ceu o mundo. Essa ascensão inclui naturalmente também uma conquista
em liberdade. Está na lei do processo. É liberdade que ao invo-
XVI. A PRECE luído pode parecer anarquia espiritual, mas que, contrariamen-
te, acarreta uma disciplina mais severa, não mais exterior, e sim
É natural que, para quem chegou à grande descoberta do interior, onde ela é mais rígida e sentida. O homem comum po-
―Tu habitas in me‖21, a vida espiritual se transforme. Nos vo- de, assim, muito bem acreditar ter cumprido todos os deveres
lumes anteriores, temos contraposto, nos campos mais díspa- espirituais, seguindo algumas práticas e observando uns tantos
res, as manifestações do tipo biológico evoluído às do involuí- preceitos, após o que sente-se livre para retornar aos seus ins-
do. Observemos agora como se conduz este mais adiantado ser tintos mais ou menos animalescos. O evoluído, ao contrário,
humano, ao qual pertence o futuro, nas suas relações para com sente sempre a presença de Deus e deve viver noite e dia em fa-
Deus. O nosso mundo e a sua ciência não se ocupam, embora ce de tal presença, que ele sabe que significa viver em contínuo
seja ele o problema central do ser, da maneira como pôr-se em controle de si mesmo e no domínio da própria natureza animal
contato com a fonte suprema e atingir os mananciais da vida. inferior. Ele pode, pois, assumir liberdades formais, que não
Podemos agora indagar se as formas de manifestação espiritual devem ser concedidas ao tipo comum, porque este, não pos-
praticadas pelas grandes massas são adaptadas a quem sente suindo na própria consciência o sentido da Lei, faria mau uso
Deus como acima descrevemos. delas. Quem possui esse sentido conhece as tremendas conse-
É evidente que, ligando-se a vida espiritual ao infinito e quências decorrentes de qualquer erro, porque, se o pode velar
sendo, pois, susceptível de evolução, a grande maioria tenha aos homens, não é possível ocultá-lo de Deus; sabe que é inútil
feito dela um tipo de expressão que indica o seu nível de de- procurar enganá-Lo com ardis ou escapatórias; sabe que é livre,
senvolvimento e se lhe adapte. Assim é para todas as coisas. por isso responsável, e que é impossível furtar-se às justas san-
Por exemplo, a guerra, assassínio legalizado, subsistirá enquan- ções. Se é verdade que ao indivíduo mais evoluído podem ser
permitidas mais liberdades formais, assim é porque também
21
―Tu moras em mim‖. (N. do T.) menos liberdades substanciais ele se permite. Evidentemente, o
218 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
primitivo, que não sente as forças espirituais, deve ser enqua- evolução conduz a substanciar cada vez mais o culto exterior,
drado em normas materiais, sua única regra de vida, pois que as que é veste, com o culto interior, que é alma. Tal é o futuro do
puramente espirituais lhe superam as suas qualidades percepti- homem e, por conseguinte, também das suas religiões, até que,
vas. Na evolução da vida espiritual sobrevém a inversão que no indivíduo espiritualizado, preponderará o culto interior. A
comprovamos na ascensão da matéria para o espírito, ou seja, evolução leva cada vez mais a sentir Deus não apenas trans-
uma desmaterialização, mercê da qual, quanto mais se conquis- cendente mas também imanente, até que o indivíduo espiritua-
ta em substância, vale dizer, em verdadeira espiritualidade, tan- lizado sinta a presença Dele não somente em si, mas em torno
to mais perde importância a forma. Tanto mais se tem necessi- de si. Então se descobrirá que Deus está em toda parte, que o
dade da forma, quanto menos se conquistou e se possui de Seu templo é tanto o universo como a alma, e que o Seu altar
substância, isto é, de verdadeira espiritualidade. pode ser o coração do homem.
A razão pela qual as religiões não podem e não devem con- É certo que o tipo do futuro buscará e orará a Deus de outra
ceder liberdade, mas sim exigir observância de disciplina, ainda maneira, obedecendo-Lhe com mais amor e convicção. Quem
que formal, está no fato de que a maioria é involuída e, para tal sente o Deus imanente sabe que Ele está sempre presente em to-
tipo, a forma é tudo. Suprimida a expressão material, única ca- das as partes, e não só nos templos, por conseguinte sabe que
pacidade de manifestação, nada mais fica. Todo ato do involuí- não é possível evadir-se à Sua Lei. A vida, assim, entranhada do
do é físico, mesmo tendo um conteúdo moral, que, sem um re- divino em cada ato e momento, transforma-se em algo diferente.
vestimento concreto, é inconcebível para ele. Por isto são ne- Como guia, está sempre presente no íntimo e afasta os perigos
cessárias nas religiões as representações sensórias, até mesmo do livre exame. O porvir está na interioridade, no desenvolvi-
as mais bombásticas, introduzidas pelo rito. As massas exigem- mento do ―eu‖. Hoje é necessário que os conceitos sejam encap-
nas, porque realmente necessitam delas para compreender al- sulados no invólucro protetor da forma, porque, sendo por natu-
guma coisa e encontrar nelas uma forma de expressar o seu sen- reza evanescentes, eles assim ficarão de algum modo fixados em
timento religioso. O homem normal não está ainda maduro para nosso mundo. Muitas vezes, porém, nem isto basta, porque a
o culto interior, feito sem atos sensoriais e físicos, que, para ele, evanescente e animadora espiritualidade, somente pela qual se
poderia desembocar na anarquia do livre exame. Se, todavia, justifica a forma, evapora-se e se esvai. E quando não arde no
não é possível conceder tais liberdades, ninguém sofre por isso, íntimo essa chama que dá vida às coisas, a forma se torna um
já que o espírito é livre por natureza, pois ninguém pode inter- cadáver. Então, novas formas de espiritualidade devem baixar
ferir nas relações diretas entre a alma e Deus. Ninguém pode, do céu, porque as religiões se fizeram necrópoles.
portanto, impedir que o indivíduo, evolvendo, possa sentir e A potência da vida interior dos santos nos mostra que a es-
praticar, ao lado do culto exterior, também e sempre mais o cul- sência da religiosidade está no espírito, na vida interior.
to interior, dando assim uma mais potente substância à forma. Quando o homem, evolvendo, atingir e fizer sua essa essên-
Quem realmente sente Deus, O vê e encontra por toda parte, cia, então cairão todas as divergências que dividem, e todas as
mesmo no contingente cotidiano. Quem não sente Deus, se não diferenças de superfície encontrarão a unidade no profundo.
for enquadrado em normas estabelecidas, não sabe o que fazer, Neste, que é o esperado Reino dos Céus, Deus residirá nas
pois não encontrou nela, com o despertar da consciência, o sen- almas e se manifestará nas obras do homem, que cumprirá
tido da Lei. É difícil estabelecer a medida das concessões, e es- consciente e espontaneamente a Lei. Também as religiões
ta deveria ser diferente de alma para alma, porque dois são os evolvem, pois as relações entre a alma e Deus, que elas ex-
escolhos em que é fácil colidir: de um lado, o materialismo re- primem, aperfeiçoam-se. Se bem que a cristalização do farisa-
ligioso e, do outro, a anarquia do livre exame. No primeiro caso ísmo seja a última fase do seu ciclo vital, o hálito divino sem-
se cai no farisaísmo, formalismo e politeísmo, ou até mesmo no pre sopra da profundeza dos espíritos, onde ele está, para rea-
íntimo ateísmo. No segundo, cai-se na desordem espiritual, no cender a sagrada chama, sem a qual tudo é cadáver. Assim, se
orgulho e na revolta. A regra é que uma disciplina é necessária as religiões passam, a ―religião‖ jamais passará.
para tudo, mesmo para as atividades espirituais. Dado isto, não ◘◘◘
é lícito libertar-se de uma forma de disciplina, senão no caso de Que é a prece? Que significa orar? Em que se tornará este
se ter conseguido uma outra mais avançada e poderosa, como é ato para atingir a vida interior? Orar significa colocar-se nu-
a interior. O primitivo não pode ser deixado em liberdade, por- ma atitude íntima, em que a alma busca comunicar-se com
que ainda não sabe dirigir-se por si, sendo perigoso conceder- Deus. Então ela, dirigindo-se a Ele, como uma planta para o
lhe qualquer autonomia espiritual. Por liberdade ele não sabe sol, que lhe dá a vida, inclina-se da periferia para o Centro. A
entender senão a sujeição aos seus baixos instintos animais. Ele prece é, pois, a posição espiritual orientada neste sentido,
não sabe conceber senão um Deus tirano, a que deve obedecer aquela que o ―eu‖ humano assume quando procura pôr-se em
apenas pelo temor das sanções, um Deus dotado dos sentimen- contato com o ―Eu‖ do universo, com a infinita consciência
tos humanos de domínio e vingança. A repugnância de tantos cósmica do Todo. E vimos que ela não é exterior, mas íntima
espíritos em admitir a imanência de Deus e a tendência em con- às coisas e a nós. Depois de tudo quanto dissemos, podemos
cebê-Lo somente em Seu aspecto pessoal e transcendente, deri- compreender que a verdadeira prece não se dirige ao exterior,
va desta forma mental, em que a imanência representa uma mas ao nosso interior. Se ela se dirige para o exterior, o faz
pulverização ilimitada no nada, uma incompreensível presença por concessão à materialidade humana, que tem necessidade
onde os sentidos não veem nem tocam nada mais do que maté- desta via mais longa, mas, para a alma que evolui, vai se tor-
ria bruta. E tanto mais se assemelha a absurdo a imanência na nando irreal como ilusão psicológica.
Terra, onde não se encontram senão seres que são constituídos A prece é um anelo da alma, instintivamente ansiosa por re-
por uma individualidade pessoal. encontrar Deus. Corresponde a uma necessidade de evasão e de
Assim, por mais que as religiões ditem normas iguais para ascensão, é a ânsia de luz que o cego busca distendendo os bra-
todos e todos possam igualar-se na forma, as profundas e subs- ços, é o anseio pela felicidade e conhecimento perdidos. A prece
tanciais diferenças existentes de alma para alma não podem se faz grito de invocação no perigo e na dor, clamando pela sal-
impedir que cada qual sinta e intimamente viva a religião de vação; transmuda-se no abandono entre os braços pródigos da
maneira diversa, segundo sua natureza, que vai do carola ao Lei, que nos dá paz e repouso; explode no pranto de nossas cul-
santo. A igualdade exterior cobre variadíssimas gamas de mo- pas, que mais ainda nos arredam de Deus, ou modula-se no can-
dos de sentir. Quem tem os pulmões conformados para o meio to de gratidão pelo amor e alegria recebidos. Ela se plasma e se
material, não pode respirar na atmosfera rarefeita dos anjos. A configura em cada ato de nossa vida, em cada atitude de nosso
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 219
espírito. Então, cada qual a seu modo, nós confessamos todo o Então resta um só sentimento: amar. Perdidamente se ama
nosso ―eu‖ de pobres criaturas perdidas no abismo da queda, no a Deus, em si mesmo e em suas criaturas, que são sua expres-
turbilhão da vida infinita, aprisionados no mistério; confessamo- são. Esta pequena palavra, Deus, que tantos pronunciam com
nos quais somos, como podemos, com o que somos, ao único indiferença, mesclando-a a tudo, e que tantos chegam mesmo a
que tudo sabe e que pode, por conseguinte, tudo compreender. insultar e blasfemar, esta pequena palavra revela tão podero-
Os modos de orar são muitos e diversos, ainda que a forma samente o seu profundo significado às almas sensibilizadas pe-
que os reveste possa ser igual para todos, porque cada ser está la evolução, que as convulsiona, como fazem a tempestade e o
diante do Absoluto apenas como um pobre relativo, que não sa- turbilhão para a pobre árvore só e indefesa. E a alma está só e
be além do seu ―eu‖ particular e não sabe, pois, dizer a Deus o indefesa porque Deus é o mais forte. E, na luta entre o ―eu‖
que ele sente e é. A mente do pensador penetrará o infinito, a da egoísta, que desejaria defender-se na forma, isolando-se, e
pobre velhinha pedirá graça para sua casinhola e para o netinho. Deus, que quer trazer para si a criatura, vence o mais forte.
Apesar disso, não obstante a acentuada diferença de substância Forte de bondade infinita, que deseja apenas desfazer a onero-
espiritual, velada sob as mesmas fórmulas da regra, cada oração sa bainha isolante, a prisão do ―eu‖, para tomá-lo por comple-
possui sempre um fundo inconfundível, comum a todos: o to, permeá-lo e saturá-lo com a divina linfa vital do seu amor.
mesmo anelo para com o divino. Seja qual for a posição do in- É o bem que quer triunfar e que, para benefício da criatura, usa
divíduo em face de Deus, ela é sempre uma aspiração, débil e da violência, sacode-a e a convulsiona, a fim de que o divino,
indistinta ou poderosa e consciente, para o infinito. Ela repre- oculto nas suas profundezas, desperte nela sob a forma de
senta sempre um apelo à presença de Deus e um brado da pro- consciência, e assim a alma reencontre Deus.
fundeza para reconduzir o ―eu‖, além de todas as ilusões da A tão potentes contatos com Deus, a prece abre a porta para
forma, a esta grande realidade do espírito. as almas amadurecidas; uma prece que se torna qualquer coisa
Deus! que palavra incomensurável! Como é oceânica, como de estranho para o homem comum. Ele não sabe, de fato, con-
é íntima, como é viva! Ela tenta a síntese do inexprimível e nos ceber este ato nesta nova forma, que oferece mais do que pede;
deixa estupefatos e embevecidos. Como é pejada de mistério! E que ouve mais do que fala; que é um estado de abandono e de
no mistério há tudo; há o terror das sanções que seguem o mal recepção mais do que uma atitude de conquista de bens futu-
praticado; há a alegria do bem praticado, que nos dá paz ao co- ros; um estado de expansão e de desfazimento do ―eu‖ em
ração; há toda a nossa infinita ignorância, que não nos espanta Deus mais do que de egocentrismo que pretende tomar Deus
porque a ignoramos; há o enigma do nosso destino, quase sem- para si. Como se vê, trata-se de atitudes opostas, porque, ao se
pre mais pejado de dores do que de alegrias; e há a grande tor- passar para um plano superior de vida, tem-se uma verdadeira
rente de muitos destinos, todos em marcha para Deus. inversão de valores. Não se pode pretender que o homem co-
Ora-se de modos diversos e por muitas coisas diferentes. Há mum ore assim. No entanto esta é a verdadeira prece, a que
quem não saiba fazê-lo senão com os lábios, desfiando uma lon- nos põe em contato com Deus, a única em que se ouve a res-
ga mecânica de repetições, apenas para conseguir formular um posta e com que se pode estabelecer um colóquio. A comum é
pouco de pensamento; há quem não o consiga senão mascarando um monólogo, uma exposição de desejos, sem conhecimento
o vazio interior com o manual de preces formais; há quem assis- de confirmação. Ela nos deixa a sensação de estarmos sós, di-
ta ao profundo simbolismo do rito como a uma representação ante do mistério, que emudece. Deus permanece então um
cujo significado não apreende, mas do qual tem, contudo, neces- enigma, o inatingível transcendente, que não é imanente entre
sidade para concentrar a atenção e localizar o pensamento que nós. Assim se explica, como acima dissemos, a repugnância de
vagueia pelas imagens do templo; há quem só saiba orar por su- algumas almas em admitir a imanência.
as pequenas coisas: a família, os negócios, a saúde, rogando al- Dessa oração superior, feita com o espírito, e não com o
gumas alegrias e alívio de pequenos males. São insignificantes corpo, nos fala o Evangelho (Mateus, 6: 5-8): ―Quando orardes,
coisas terrenas, e nada além. Certamente, o olhar de Deus é bas- não sejais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas si-
tante poderoso para, em visão microscópica, tudo observar e nagogas e nos cantos das praças, para serem notados pelos ho-
prover. Mas também há quem não saiba, não consiga orar assim, mens. Digo-vos, em verdade, que já receberam a sua recom-
não podendo pronunciar a palavra Deus sem sentir-se invadido pensa. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta
de uma sagrada perturbação. De quantos modos ela pode ser e ora a teu Pai em secreto, e o teu Pai, que vê em secreto, te da-
pronunciada! Mas há também os que a apoucam tanto, que po- rá a recompensa. Orando, não multipliques as palavras como
dem misturá-la em todas as minudências contingentes, de igual fazem os gentios, que deveras pensam extravasar virtudes pela
para igual, como se todas fossem da mesma grandeza. sua loquacidade. Não vos façais, portanto, semelhantes a eles,
À medida que a alma evolve, a ideia de Deus se amplia e se pois que o vosso Pai sabe o que vos é necessário, mesmo antes
potencia na multiplicação ao infinito de todos os grandes atribu- que lhos peçais‖. Palavras estas que nos apontam a prece interi-
tos concebíveis. Então, o despertar do divino, sepultado em nós or (em segredo), com poucas exteriorizações vocais e sem mui-
sob a forma latente, torna sempre mais pronunciada a sensação to rogar, porque Deus já sabe de que precisamos.
da presença de Deus, até que ela invade os horizontes do ser. As- Na prece, cada qual revela a própria natureza, isto é, de-
sim, para algumas almas, essa ideia se torna tão ofuscante como monstra neste seu ato para com Deus todas as qualidades do seu
o sol, poderosa como as massas cósmicas, tonitroante como o tipo biológico. O involuído não pode orar senão como involuí-
primeiro impulso da gênese, vertiginosa sobre todos os abismos do. Ele se faz centro de tudo. Para este ato, ele transportará,
do mistério, suspensa sobre a profundidade do inconcebível. A portanto, a sua normal psicologia de luta e de interesse, feita de
prece se transforma à medida que o ser evolui. Então, não poderá cálculo e desejosa de entesourar, mesmo no espírito. Para ele, é
mais ter importância a pequena graça a ser pedida, conexa a inte- inconcebível o absoluto desinteresse de lutar para arrebatar al-
resses terrenos aqui, na vida transitória de nosso pequeno ―eu‖. guma coisa. Ignora que a ascensão espiritual consiste exata-
Quando se superou o egocentrismo, anulando-se em Deus, essa mente no oposto dessa psicologia e que a alma evoluída se re-
psicologia não tem mais sentido. Não pode mais interessar nem conhece justamente por essa atitude diversa. O homem comum
ao menos o problema, tão inquietante para todos, da própria sal- ora encerrado na couraça do seu egocentrismo, que lhe parece
vação pessoal, do cálculo utilitário da recompensa ou da punição uma defesa, quando é uma prisão. O místico ora em um estado
e de tudo o que constitui apenas um egoístico interesse, ainda que de expansão, em que o ―eu‖ se afigura desfeito, mas somente
ultraterreno. Mal se sobe para Deus em espírito, essa psicologia, assim ele consegue atingir a sensação de Deus. O próprio inte-
inteiramente humana, se desfaz ao calor do incêndio divino. resse egoístico, que está em toda manifestação da vida da maio-
220 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ria, perde aqui qualquer sentido, porque a conquista se cumpre a morte. Se ele não enveredar pelo caminho oposto, que se ori-
expandindo-se em Deus, que é um pai que sabe de todas as nos- enta em direção à vida, ao que o seu próprio interesse deverá
sas necessidades, é riquíssimo e não deseja mais do que nos tarde ou cedo induzi-lo, receberá cada vez menos dela, até que
prover. O entesouramento não tem mais razão de ser quando o não mais despertará e passará por completo ao polo oposto de
―eu‖, expandindo, perde-se no ―eu‖ cósmico, que é senhor de Deus, isto é, passará do ser ao não ser, pois que o vazio e o na-
tudo e conosco tudo compartilha. da são a plenitude do Anti-Sistema. A punição de Deus consis-
A prece alcança então vastidão cósmica e profundidade te na perda de Deus. A expulsão do sistema afirmativo para o
transcendental, torna-se um turbilhão que arrebata, sublimando invertido ao negativo, até à anulação, eis o inferno eterno, o
em alta tensão toda a potência da inteligência e do coração, até mais terrível, lógica conclusão de uma vontade tenaz que, de-
tornar-se êxtase. A oração passa a ser uma coisa imensa, que liberadamente, quisesse negar Deus através de uma infinita sé-
nenhuma das formas de religião consegue mais contê-la, trans- rie de vidas. Há, então, entre punição e culpa, a proporção que
formando-se em algo de tão universal, que abrange toda aspira- não existe entre uma sanção eterna e uma só breve vida, por
ção superior da alma, seja do crente, do artista que cria, do ci- mais malvada que seja. Inferno não antropomórfico, mas meta-
entista que indaga, do gênio que desvenda o mistério, do herói físico, o mais implacável, dado pela morte da alma, pela extin-
que triunfa, do mártir que se sacrifica, do santo que tem a visão ção do ser no não-ser, no nada. No extremo oposto do dualis-
de Deus! Neste nível, tudo se muda em prece. A alma se avizi- mo, o santo caminha para o paraíso eterno. Aproximando-se
nha de Deus, e a criatura olha o Criador e Lhe estende os bra- cada vez mais das fontes da vida em Deus, ele se expande gra-
ços, sequiosa por fundir-se Nele e dilatar-se do pequeno cons- dativamente na plenitude do ser, afirmando-se no sistema posi-
ciente individual no infinito consciente cósmico. tivo, até ao triunfo da felicidade eterna em Deus.
Se esta é a verdadeira e grande prece, que aproxima a alma
de Deus, e se pode também haver uma prece menor, em que as XVII. IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
almas menos desenvolvidas fazem o que podem, que será dos
espíritos tão involuídos ou decaídos, que não conhecem ne- Levados por outros fios condutores, não foi possível, nos
nhuma oração? Que será daqueles que não oram mais ou jamais capítulos precedentes, abordar o problema da imanência e
oraram e que nem ao menos sabem conceber o que seja dirigir- transcendência, senão em relação com outros. Cuidamos agora
se a Deus? Que sorte aguarda esses ―eus‖ separatistas do ―Eu‖ de retomá-lo, para encará-lo diretamente, aclarando-o com mais
central, fonte da vida? Como poderá viver isoladamente, confi- exatidão. Antes, porém, de entrarmos em suas particularidades,
ado apenas em seus próprios recursos, esse fragmento rebelde, quisemos aplicar as concepções precedentes, orientando-as
expulso do Sistema? Como tal, ele é paupérrimo, logo extre- também como experiência, na vida espiritual de cada um.
mamente ávido. Somente quem está ligado ao Centro é rico. Ao Voltemos às primeiras origens, que já esfloramos no início
rebelde falta qualquer conhecimento da vida eterna, e a sua do Cap. XV – ―À Procura de Deus‖.
existência é somente a do corpo físico. E quem não possui se- Como já dissemos, antes de criar, Deus era o Uno-Todo,
não uma vida tão pobre, desesperadamente se apega a ela com que ainda tudo devia tirar de si. Não havendo ainda a criação,
feroz egoísmo, sendo capaz de qualquer delito para defendê-la. não nascera nem o Sistema nem o Anti-Sistema, isto é, não ha-
Pobre ser recluso no relativo e no tempo, sem esperança de in- via dualismo de aspectos, mas somente o Uno. Com a criação,
finito! Está sempre famélico, acuado pelo tempo, que foge e o Uno se distinguiu em Criador e criatura, então puramente es-
que lhe rouba a vida. O seu reino é a forma, a ilusão, o caduco. piritual, e nasceu o Sistema. Mas, com a queda, ele se dividiu
As suas construções esboroam-se sempre, e ele, porque tão dis- em dois: Sistema e Anti-Sistema, em que a criatura espiritual
tante do centro genético, tem que reconstruí-las continuamente. caiu na prisão da forma, ou corpo. Ora, acima de tudo isto,
Os tesouros desse reino não perduram como os situados no permanece o Uno no seu aspecto absoluto, que é, além de qual-
eterno. Ele se sente perdido, porque, destacado do Centro-Deus, quer criação ou manifestação. Este é o Deus no seu aspecto
fonte do ser, sua existência vai dissecando-se dia a dia. Na sua transcendente, sem dualismo e acima dele, invulnerável e per-
desesperação, ele se alheia a tudo, contanto que se conserve vi- feito. Deus, no seu aspecto imanente, não poderia existir a não
vo no corpo, único meio de alegria e de vida. ser em algo que não constituísse Ele mesmo, porque é óbvio ser
Mas a extinção o espreita. Ele está agora voltado para o polo imanente em Si mesmo. E Deus imanente se encontra na cria-
negativo do ser e, com isto, autocondenado. E sente que não há ção, quer no sistema conservado íntegro, onde Ele está em Sua
escapatória. Para salvar-se, ele teria não só que inverter a rota, perfeição, quer no sistema desmoronado, onde Ele, por amor,
mas também percorrer em subida todo o caminho feito em des- desceu à imperfeição, para reconduzi-la à perfeição originária.
cida e, então, após tanta faina, tentar comunicar-se de novo com Mais exatamente, a imanência e o dualismo transcendência-
a fonte da vida, para ser alimentado. Eis a oração. Mas o rebelde imanência nasceram no ato da criação. Somente se costuma
recusa-se justamente a curvar-se ante Deus; é exatamente essa chamar imanência à presença de Deus no nosso universo decaí-
harmonização com o Todo que ele não sabe e não quer fazer; é do, porque somente este percebemos, ao passo que a imanência
justamente essa sua posição de dependência do Centro-Deus que abrange também o universo feito de puros espíritos, conservado
ele não quer reconhecer. Deste modo, a descida precipita-se, e o perfeito. Em outras palavras, a imanência não é senão a perma-
pobre espírito, centelha de Deus, se não se resolve a inverter o nência do Criador na Sua criação, pelo que Deus permaneceu
caminho, então, de delito em delito e de desesperação em deses- presente tanto no Sistema como no Anti-Sistema.
peração, em agonia de alma, gradativamente tende a extinguir-se A coordenação destes conceitos, observando-os agora fron-
em nada, porque insistir no erro e, assim, confirmar a revolta de- talmente, e não, como nos capítulos anteriores, em perspecti-
fine a sua vontade de ser autodestruído. Que ele possa, depois, vas obliquas, em função de outras visualizações, aclarará me-
obstinar-se em persistir laborando inteiramente em seu dano, é lhor o nosso pensamento.
uma possibilidade teórica que já examinamos no Cap. X – ―A A transcendência é, pois, o princípio de natureza abstrata
teoria do desmoronamento e suas provas‖. que, no aspecto imanência, descerá às formas para animá-las,
O ateu, negando a Deus, nega a si próprio. Deus não pode mas que, como aspecto transcendência, permanece inalterado,
ser atingido pela negação do ateu. É golpeado apenas quem acima de qualquer criação. O fato de que, nesta criação, não
nega. Negando a fonte da vida em Deus, ele não saberá nem pode existir forma nem qualquer fenômeno, senão em conso-
conseguirá mais alcançá-la. Negando a vida depois da morte, nância com um princípio que lhe oriente o transformismo, de-
ele permanecerá inconsciente e não terá sensação de vida após monstra a existência de Deus transcendente. E o fato de que o
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 221
princípio transcendente não pode atuar a não ser assumindo pressão do Pai. Não que o nosso universo físico seja o Filho,
forma em qualquer ser ou processo fenomênico, revela a exis- mas, como forma material, ele é a expressão e a manifestação
tência de Deus imanente. É que o transcendente dirige o ima- da atividade genética do Pai aí imanente, que é um momento
nente. É o perfeito que guia o imperfeito, para levá-lo à perfei- derivado da Ideia, situada no Espírito. Eis o Todo coligado em
ção. Eis a razão e o íntimo significado do fato que verificamos estreito monismo, desde o Espírito, origem de todas as coisas,
em nosso universo, isto é, que ele está em evolução, ou seja, é a todas as coisas Dele originadas.
uma imperfeição que caminha para a perfeição. Assim se ex- Tais conceitos não podem ser entregues às mãos do invo-
plica como, em razão de sua estrutura, o universo se mantém e luído, que, julgando tudo sensorialmente, é capaz de dizer que
só pode manter-se devido à presença nele de um contínuo im- o Filho é a matéria. As mais recentes concepções da ciência,
pulso criador. Assim se explica também a individualização do que da última substância do mundo físico fizeram uma fórmu-
ser em infinitas formas, preestabelecidas segundo esquemas la abstrata, nos ajudam a compreender tudo isso. Foi assim
abstratos, que não existem no contingente, a não ser na última que, quando se quis ver a essência, a matéria foi reconduzida
fase da sua expressão material. Onde estarão elas antes de ma- ao Espírito. É necessário recordar que ela é uma pura ilusão
nifestar-se, senão no transcendente, que com elas se põe em dos nossos sentidos.
contato através do imanente? Quem estabelece no tempo os Por mais que possa parecer audaciosa semelhante concep-
ritmos de adolescência e velhice, a duração da vida de cada ti- ção, os fatos depõem em seu favor. A vida, expressão de Deus
po, o seu limite de desenvolvimento orgânico? imanente, tem um caráter inteiramente interior. Ela germina in-
Deus, pois, não apenas criou no princípio o seu universo de cessantemente, e só graças a essa imanência é que o ser pode
um estado de nada ―relativamente‖ ao novo estado, não deu viver, vencendo o desgaste imposto pelo ambiente. A medicina
somente o seu primeiro impulso de origem à gênese, mas per- não examina senão as manifestações desse Deus imanente, es-
maneceu depois nesse universo, não exteriormente, mas inti- tudando as formas construídas pela Sua inteligência. No cadá-
mamente, continuando incessantemente a criá-lo com a Sua ver, a medicina estuda os restos de uma vida que se retira de
presença. Esclarecemos, no fim do Cap. XIII – ―In principio sua manifestação. A vida lhe escapa, porque é de natureza espi-
erat Verbum‖, as razões e as origens dessa imanência. Ela é de- ritual, campo que ela ignora.
vida ao princípio fundamental da criação – o amor – pelo qual Toda forma provém do interior, de um germe, e se desen-
um verdadeiro Pai não abandona jamais o filho, faça ele o que volve em torno dele, por crescimento. Todo germe é filho de
fizer, e, justamente para salvá-lo, segue-o, livremente, em qual- outro germe e assim por diante. O ato originário da primeira
quer desventura em que ele tenha recaído, porque assim o exige gênese se repete no mesmo modelo, em continuação. O fato de
o amor. Essa imanência, ou presença de Deus, é o que se chama que tudo não pode existir a não ser por filiação, nos diz que o
vida, mas em senso latíssimo, pois é vida que anima igualmente nosso universo é regido pelo princípio do Filho. Todo esse pro-
a orientação das moléculas nos cristais, como o funcionamento cesso genético permanece, porém, um enigma indecifrável, se
atômico da matéria. Tirai de tudo o que existe essa vida, que não nos reportarmos ao primeiro ato genético, executado pelo
representa a imanência de Deus, e o universo recairá no nada, Pai. A vida é atributo da alma, que é interior ao ser. Aí está o
isto é, em um estado de não-ser ―relativamente‖ ao atual. Deus centro e a síntese de todas as sensações. Tudo caminha do am-
não criou, pois, como o faz o homem, mas de uma forma muito biente para o espírito e do espírito para o ambiente, e esta é a
mais profunda, isto é, não lavrou a Sua obra de fora, para de- base da experiência pela qual o ―eu‖ pode crescer e evolver. É
pois destacar-se dela, mas de dentro, para nela permanecer in- no interior da matéria que se encontram os velocíssimos circui-
destacavelmente. As obras do homem são, efetivamente, mortas tos atômicos que lhe emprestam a solidez. O crescimento por
e têm necessidade sempre de novas intervenções, que constitu- multiplicação celular, como a cicatrização das feridas por re-
em a manutenção. Somente as obras de Deus são vivas, e, se construção dos tecidos lacerados, provém do interior. A ―vis
parecem andar por si, é porque dentro delas está o Deus ima- sanatrix naturae‖22, que preside à conservação de nosso orga-
nente, que, como vida, age continuamente. Se deixarmos uma nismo, e todas as sábias diretivas de nosso funcionamento or-
casa, com tudo o que possui, entregue a si mesma, encontrare- gânico – tão automático, que o desconhecemos – tudo provém
mos após muitos anos tudo em decadência. Se deixarmos plan- do interior, dessa presença de Deus imanente. Esse pensamento
tas, encontraremos um bosque; se animais, um rebanho. De on- diretor está tão bem oculto nas profundezas, que a ciência não
de vem essa capacidade de multiplicação, senão de Deus ima- soube ainda encontrá-lo. Embora tendo sob as vistas sua ex-
nente? De onde promana a vida, a não ser dessa fonte que ali- pressão, só lhe encontra os efeitos. Ele está tão oculto, que se
menta todo o criado? Que imperfeita imitação da obra de Deus lhe ignora a presença, apenas porque se furta à análise sensória,
são as obras do homem! Mas mesmo estas, para conservar-se, dita objetiva, ao passo que nada é tão pouco objetivo quanto
reclamam aquela assistência que se chama de manutenção, que ela. E desta forma se chega até ao ateísmo, enquanto se mergu-
constitui uma espécie de imanência do homem nelas. lha nessa atmosfera divina, na qual se respira e se vive.
Podemos agora melhor compreender tudo isto, confrontan- Esta interioridade do Deus imanente em seu universo, que,
do com o que foi dito no Cap. XIII – ―In principio erat Ver- embora sendo imanente, nós concebemos como material, por-
bum‖. Deus, no Seu aspecto transcendente, é o Espírito, o pri- que a materialidade é uma ilusão, nos leva a considerar as rela-
meiro momento da Trindade do Uno, o puro pensamento, a ções entre a alma e o corpo no homem. Também este é a ex-
ideia ainda não em ação, anterior e acima de qualquer criação e pressão de um espírito animador, que se reveste de forma físi-
suas vicissitudes. Deus, no Seu aspecto imanente, é o segundo ca. Que assim seja, é lógico pelo princípio dos esquemas de ti-
momento da Trindade do Uno, aquele em que a ideia entra em po único. Da mesma forma se poderia conceber Deus, no Seu
ação e o Espírito se fez Verbo gerador, o Pai. Do Pai deriva o aspecto imanente, como a alma do nosso universo. Em ambos
terceiro momento, a criação, quer a que permaneceu perfeita os casos, a forma-matéria está na periferia, no exterior, alimen-
nos espíritos puros, o Sistema, quer a desmoronada na imper- tada do interior, em que se encontra o princípio: a vida. Em
feição da forma material, o Anti-Sistema. A imanência, surgi- ambos os casos, tudo é inteligentemente orientado e guiado do
da no segundo momento com o ato criador, que o conduz ao interior; a forma é gerada pelo espírito, isto é, o corpo humano
terceiro, a obra realizada, revela-se nesta. E nela vemos que o é constituído pela alma, seu princípio vital, como o universo
aspecto de imanência existe e tudo rege. A forma concreta de físico foi formado pelo Verbo, o Pai. A alma humana, como o
tudo o que existe em nosso universo não é mais do que a ex-
22
pressão de tal imanência. Em outras palavras, o Filho é a ex- ―A força curadora da natureza‖. (N. do T.)
222 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Deus imanente, estariam tão entranhadas na forma, que o fato relativo, na matéria, então conceberíamos o viver na matéria
de a primeira não poder viver senão em um corpo não repre- como um não-existir. Nestas condições, a atual criação nos
senta nada mais do que um caso particular da universal ima- pareceria a passagem do ser para o nada, porque não seria a
nência de Deus, que ela representa e constitui no seu caso par- transformação que se opera no sentido de nosso tipo de exis-
ticularizado. E que é essa substância pensante, matéria prima tência, mas algo que caminha para a sua negação. Se superar-
de nosso universo, senão o espírito? mos, porém, a relatividade destes pontos de vista, veremos
Prossigamos na observação do paralelismo. Suprimamos a que o referido término do universo físico e biológico não pas-
alma no homem, e teremos um cadáver. E que poderia restar do sa de uma mudança de forma, para retornar ao originário esta-
universo, se dele desaparecesse a projeção da inteligência dire- do espiritual, ponto de partida do atual universo desmoronado.
tora (o Espírito) e cessasse a presença do princípio vital (o Pai)? Concluímos, então, que só em nosso plano relativo é possível
De modo semelhante, ao fim da existência na forma, a alma ser ou não ser, e isto relativamente a uma dada forma assumi-
humana se retrai para o interior da sua manifestação, como o da naquele momento pelo ser. Mas o Todo – Deus – jamais
Deus imanente, ao término da vida do cosmo, retrair-se-á para pode não-ser na sua substância. Somente no relativo pode
o íntimo dessa Sua manifestação, para coincidir no fim do ci- ocorrer o não-ser, isto é, um não-existir parcial em relação a
clo, como já dissemos, com o ponto de partida: o Deus no as- outras formas de existir. O absoluto, que é tudo, não pode
pecto transcendente. E, assim como todo o universo, evolven- deixar de ser tudo eternamente.
do, exprime o gradual retorno da imanência à transcendência, O paralelismo entre a unidade alma-corpo e a unidade Deus
também a alma, evoluindo, aproxima-se sempre mais, em cada imanente-universo, ajuda-nos a compreender as relações entre
morte, do Deus transcendente, da perfeição de que se avizinha Deus transcendente, origem primeira de tudo, e esta sua inco-
gradativamente a imperfeição, para alcançar, na fonte primeira, mensurável criatura coletiva, que é o universo. Embora, neste
nova energia para uma nova vida. Isto porque, com a queda, os seu último aspecto, Ele seja invulnerável, acima de qualquer
espíritos se precipitaram na periferia, e não lhes é possível se- criação sua e de suas alternativas, é também através desse as-
não uma vida fragmentada, sendo necessário assim, a cada mor- pecto de imanência que Ele pode permanecer presente, agir,
te, que é inevitável nesse plano, voltar ao centro, para conseguir guiar e, assim, tudo reconduzir do imperfeito, em que o Sistema
um novo impulso dinâmico, sem o que não se suporta uma ou- desmoronou, para o perfeito, em que Ele ―é‖. Assim, torna-se
tra vida. Como já vimos, esta é a razão pela qual o desenvolvi- compreensível também a ação à distância, inimaginável de ou-
mento jamais ultrapassa as dimensões estabelecidas no esque- tro modo, que nos poderia mesmo induzir a pensar em um Deus
ma de um dado tipo de ser, portanto podemos também compre- ausente, desinteressado da sorte de uma criação abandonada a
ender agora porque a carga vital recebida – que o espermato- si mesma. Desta maneira explica-se também a imperfeição, o
zoide e o óvulo contêm, mas que não geram, porque a recebem estado de contínua formação e o fenômeno da evolução, que
do espírito para desenvolver-se – é de uma duração limitada, reinam em nosso universo. E compreende-se, então, que esse
exaurindo-se depois, na morte. transformismo é um estado transitório, decaído, impróprio do
Esses paralelismos nos permitem compreender também o ser perfeito, entrevendo-se a meta que nos espera a todos, o
porquê deste cíclico retorno da juventude e velhice, em todas as ponto de chegada de tanto trabalho.
formas da vida, seja no indivíduo, seja na família, nas nações, Pode-se agora alcançar a definição de uma importante ques-
nos impérios, nas civilizações ou na humanidade. Não se trata tão, perguntando se Deus é pessoal ou impessoal. O aspecto
senão de repetições, em dimensões menores, do ciclo máximo do transcendente leva à primeira concepção; o imanente, à segun-
aspecto imanência de Deus, que torna a coincidir com o Seu as- da. No primeiro, Deus é centro, um ponto, um ―Eu sou‖, o To-
pecto transcendência. Quanto menor a unidade da individualiza- do-Uno, possuindo todas as características da personalidade,
ção tomada para exame, tanto menor também o seu ciclo e mais semelhantes às que encontramos no menor ―eu‖ humano. No
rápida a sucessão deles. Mas, em cada caso, do homem às na- segundo, Deus é periferia, imerso na sua manifestação, pulveri-
ções, à civilização, à humanidade, ao universo, o esquema é zada em infinitos ―eu sou‖ menores, resultado do fracionamen-
sempre o mesmo. Temos, assim, dois momentos: no primeiro, é to do Todo-Uno no desmoronamento do Sistema, possuindo,
o espírito que trabalha para fazer uma forma para si, organizando portanto, todas as características do impessoal, como aquelas
uma expressão sua no plano exterior (o homem organiza um cor- que encontramos na massa de células componentes do corpo
po, as nações um governo, as civilizações uma ordem, as huma- humano. Tudo isto corresponde exatamente à universal lei do
nidades uma sede planetária, o universo um organismo cósmico); dualismo, pela qual toda unidade é constituída de duas partes
no segundo momento, inversamente, é a forma física que se con- inversas e complementares. E assim seria por toda parte, desde
some em favor do espírito, enriquecendo-o de todas as experiên- Deus-Universo até à alma-corpo.
cias realizadas na vida. Assim como, na juventude do indivíduo, A esta altura, poder-se-ia, contudo, objetar: existem então
temos um período de construção física, também temos no univer- dois Deuses? Respondemos: existirão, talvez, duas Terras só
so a formação de um substrato feito de matéria; e tal como, no porque a nossa tem dois polos? Existirão, porventura, dois seres
indivíduo, temos depois, com a velhice, o declínio da forma em em um homem, por ser ele feito de alma e corpo? E, se assim é
benefício do desenvolvimento da consciência, igualmente verifi- a constituição do esquema do ser, não nos é dado mudá-lo. De-
camos no universo um período de destruição física e de paralela vemos limitar-nos a comprovar que assim é. Caberia, contudo,
expansão vital, sempre maior, no plano espiritual. ainda objetar se o universo físico então é o corpo de Deus? De
Isto confirma o que já dissemos algures, afirmando que o novo respondemos: o que é o corpo para a alma, senão o seu
universo físico acabará por desintegração atômica () e o veículo e meio de expressão? Impõe-se, ao certo, conferir então
universo biológico (vida) findará com a espiritualização da à palavra corpo um sentido tão mais amplo, que nem ao menos
forma física (). Essa espiritualização pode parecer um poderíamos concebê-lo. E esta foi exatamente uma das conse-
fim para o ser situado na matéria, mas tudo é relativo ao ponto quências erradas do imanentismo: perder de vista o Deus-Uno e
em que se coloca o observador. Nós chamamos de existência vê-lo definitivamente fragmentado no panteísmo, como se do
a vida na matéria, porque a nossa vida se desenvolve na peri- ―Eu sou‖ central não tivesse restado mais do que uma poeira de
feria. Assim, também chamamos de criação, isto é, passagem Divindade, ficando ela dispersa em infinitos ―eu sou‖ menores,
do nada ao ser, à transformação que se opera em nosso tipo de sem possibilidade de reconquista do Uno e de conexão com
existência. Mas se estivéssemos situados no centro, no absolu- Ele. Mas o leitor já viu quão longe estamos de semelhantes
to, no espírito, ao invés de nos encontrarmos na periferia, no concepções (vide o fim do Cap. XV – ―À procura de Deus‖).
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 223
Trata-se, pois, apenas de duas posições diversas da Divin- ―Deus cria a cada instante o mundo apenas com o pensa-
dade. No polo transcendência, temos de Deus o aspecto unitá- mento (...). O pensamento da criação nos é familiar, mas o que
rio e estritamente pessoal. No polo imanência, temos Dele o nos é menos familiar é o pensamento da criação contínua, que é
aspecto multíplice, um pan-psiquismo, uma presença dada por a conservação do mundo. Pensamos demasiado frequentemente
uma pulverização no particular, até ao panteísmo, concepção que Deus criou este magnífico universo no princípio dos tem-
que é o resultado natural da cisão no desmoronamento. Pante- pos, limitando-se em seguida a dirigi-lo e governá-lo, como se
ísmo de fato significa presença de Deus na multiplicidade, ou ele pudesse subsistir por si, de modo mais ou menos indepen-
seja, na imanência. O erro está em se ter querido contrapor, ao dente de Deus. Ao contrário, a conservação do mundo é uma
invés de conjungir, estas duas verdades complementares, fei- criação contínua, que a cada instante pressupõe uma potência
tas para completar-se reciprocamente, único modo de recons- igual à que originariamente criou todas as coisas (...). Medimos
truir completamente o conceito de Deus. Resultou daí uma Deus pelo nosso gabarito...
unilateralidade de visão, fonte de polêmicas destituídas de ou- ―Quer executemos uma obra de arte, quer construamos
tro sentido que não seja alcançar, através da luta entre opos- uma edificação, uma vez completadas, estas coisas subsis-
tos, a compreensão da relatividade das nossas concepções. É tem independentemente de nós. No máximo, velamos pela
certo que Deus transcendente, situado acima de qualquer cria- sua conservação e manutenção. Da mesma forma, para mui-
ção, representa a centralização máxima no ―eu‖ pessoal. Mas tos homens, o mundo, uma vez criado, existe por si, não ca-
é também certo que o desmoronamento do Sistema, arrastan- bendo a Deus senão conservá-lo e defendê-lo. Na realidade
do consigo Deus transcendente na imanência, necessária para Deus faz o mundo a cada instante e cria sem cessar (...). Que
manter e salvar o Anti-Sistema, explica e justifica o panteís- ideia tão mais exata e benéfica teríamos da Potência Infinita,
mo. Este é verdadeiro, mas apenas no polo imanência, ao pas- se considerássemos o mundo sob este aspecto! Como sentirí-
so que é erro quando admitido no polo transcendência, como amos melhor a nossa dependência de Deus e a nossa neces-
também é verdadeiro o oposto princípio da personalidade, se sidade de gratidão, se tivéssemos maior consciência dessa
admitido apenas no polo transcendência, constituindo erro ação continuamente criadora de Deus sobre tudo o que nos
quando concebido no polo imanência. Afinal, o ser humano, rodeia, como sobre nós mesmos...
feito à imagem e semelhança de Deus e seu universo, reflete ―Deus fez e faz sem cessar todas essas maravilhas apenas
bem estes conceitos, mostrando-nos o ―eu‖ espiritual, pessoal com o Seu pensamento repleto de amor. Deus pensa e ama to-
e central, e o corpo físico, onde, em cada célula, esse ―eu‖ es- das essas coisas com um amor que cria. Pelo próprio fato Dele
tá imanente, como a origem das sensações e da vida. E tudo, pensá-las e amá-las, elas recebem o ser (...). Deus pensa todas
do caso máximo ao mínimo, corresponde à lei universal das essas coisas; cria, só com o pensamento, este mundo imenso...
unidades coletivas, lei pela qual todos os elementos compo- ―Todo o universo é o Seu pensamento...
nentes do Sistema convergem hierarquicamente para um único ―Vós somente, meu Deus, produzis, criais, fazeis existir
vértice, estritamente individualizado. Trata-se, pois, apenas de com o Vosso pensamento apenas (...). O mundo inteiro é um
dois aspectos, como sempre dissemos: o transcendente ou poema magnífico animado pelo Vosso pensamento...
inexpressado, e o imanente ou expresso na criação, que natu- ―Ele está presente em cada criatura (...), e para conservá-la
ralmente deve conter Deus, pois que é Dele a expressão. Te- no ser(...). Mas há uma coisa mais surpreendente ainda e bem
mos um caso semelhante no homem, que pode ter uma ideia e pouco conhecida. O Espírito Infinito, o ser sem limites, que
não expressá-la ou então projetá-la fora de si, na ação, e de- cria todas as coisas com o pensamento (...), não se separa da
pois na forma, podendo, assim, essa ideia coexistir ao mesmo sua criatura, que, sem o seu auxílio, cessaria de existir. A In-
tempo no aspecto inexpresso e expresso. Podemos muito bem finita Inteligência está e permanece no fundo de toda criatura,
conceber Deus não imerso na concatenação causal, na suces- no fundo de cada pensamento seu. Vem a ela, circula nela,
são dos atos no tempo, como é o homem antes de traduzir em embebe-a e a inunda de Si mesma a cada instante, mas Deus,
ato a sua ação. Os dois aspectos são conexos por toda parte. imanente e transcendente ao mesmo tempo, está na Sua criatu-
Assim é construído o Todo. Eles efetivamente assemelham-se ra (...). Todo ser é como um tabernáculo de Deus (...). Quan-
a dois amantes separados, uma unidade dividida, desespera- tos poucos, ó meu Deus, são aqueles que têm consciência dis-
damente desejosos ambos de um recíproco amplexo, para re- so! (...). A criação inteira é como um templo do Altíssimo,
constituir a unidade. Parece que o imanente persegue o trans- três vezes santa. Tudo está repleto de Deus, tudo está impreg-
cendente, cuja imobilidade atingirá após uma ilimitada corri- nado Dele (...). Deus inunda cada coisa. Como uma esponja
da. Ele parece uma imensa carência, que só findará quando se imersa no oceano, o universo inteiro está envolto na imensi-
completar na transcendência. É o vazio que está faminto do dão do pensamento de Deus.
pleno, é o pleno que tem necessidade de encher o vazio. É a ―Cada coisa é a obra-prima de Deus! (...), nada de imperfei-
universal complementariedade dos dois opostos do dualismo, to (...). O Deus que não posso ver daqui de baixo (...), está, to-
sobre o que se eleva a unidade. Como o macho e a fêmea, o davia, em toda parte. Ele me circunda no mundo (...). Eu estou
imanente corre e o transcendente aguarda. Aí está o princípio imerso Nele, o grande oculto e o grande presente‖.
das trajetórias espiralóides, que continuamente se reduzem, Não se poderia descrever melhor o que é o nosso monismo
até que, como se passa no correspondente esquema do plano e o nosso imanentismo, que foi confundido com panteísmo. O
físico, o imanente se precipitará no transcendente, anulando- nosso conceito, acima exposto, de um universo-manifestação é
se na identificação com ele. Então, o Deus transcendente terá mantido pelo Cardeal Nicola Cusano Venerável nestas suas pa-
reabsorvido em si a sua manifestação, que terá retornado pela lavras: ―Quid est mundus nisi invisible Dei apparitio, quid est
universal reespiritualização ao seio do Uno, do qual nascera, Deos nisi visibilium invisibilitas?‖23. E poderemos repetir vá-
desaparecendo a distinção entre os dois aspectos. rias citações já transcritas no Cap. XV – ―À procura de Deus‖.
Nada mais nos resta, para concluir a argumentação, senão Não faltam, pois, mesmo no campo ortodoxo, confirmações
ouvir a confirmação de tudo isto numa voz inteiramente orto- de nosso ponto de vista. Sem este conceito da imanência de
doxa, que reproduzimos de uma página da obra de Paulo de Ja- Deus, se entendido sem as aberrações do panteísmo, não se
egher S. J. – Confidência (Meditações), tradução do francês, explica o amor de São Francisco de Assis por todas as criatu-
vol. I, Ed. Marietti, tipografia pontifícia, da S. C. dos Ritos,
1934 (o escrito é de 1929, com Imprimatur). 23
―Que é mundo, senão a aparição invisível de Deus; quem é Deus,
O Cap. XIV, pág. 273 e seguintes, diz: senão a invisibilidade visível?‖. (N. do T.)
224 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ras, nem que Cristo pudesse repetir dos livros sagrados que nós funcionamento do grande organismo do universo, segundo es-
somos Deuses. É toda a lógica do Sistema, portanto, que prova se pensamento; pode, em outras palavras, ―sentir‖ a Lei. Estra-
a imanência. Ela aí está escrita, e não se pode deixar de lê-la. nho modo de explorar o ignoto! Método aqui regularmente
Além do mais, a criação contínua, que significa manutenção da usado, que está nos antípodas do método objetivo e experimen-
própria obra, de modo algum exclui uma criação originária e, tal da ciência, método que até agora nos forneceu, para qual-
no sentido relativo acima exposto, pode-se admiti-la também quer problema, aquela orientação geral que a ciência não pode-
do nada, sem lesar com isso o princípio da indestrutibilidade rá atingir com os seus meios. Mas é dos princípios gerais e da
da Substância. Também dissemos isto porque a alguns espíri- essência de nosso caso e do fenômeno da intuição que aqui
tos repugna admitir a imanência. Mas, assim como se obser- queremos falar, e não do seu aspecto contingente, que já foi
vam os olhos de uma pessoa para perscrutar-lhe a alma, assim contemplado na introdução do volume Problemas do Futuro.
como cada ser possui um semblante que exprime o espírito O fenômeno inspirativo apresenta-se-nos, pois, composto de
animador de sua forma e nos diz da vida que o anima, também tais elementos morais e espirituais, que a ciência moderna é in-
perceberemos, olhando o rosto e os olhos deste nosso universo competente para julgá-lo, já que ela ignora esses elementos nas
ilimitado, o seu princípio animador que tudo move: Deus. suas observações. A ciência da matéria não pode admitir nem
compreender a do espírito. Ela só se ocupa de especiais fins
XVIII. O FENÔMENO INSPIRATIVO imediatos, sem cogitar se a consecução destes é depois um bem
ou um mal para o progresso da humanidade. Não trabalha, as-
Desçamos das alturas do capítulo precedente para um terre- sim, pelo fim supremo para o qual trabalha a vida, que é a evo-
no mais vizinho nosso, do qual poderemos melhor compreen- lução. Em face da convergência de todo o criado com o fim de
der-lhe a estrutura, se a virmos à luz dos fatos mais elevados, ascender a Deus, a ciência permanece agnóstica, o que significa
acima descritos. Queremos agora focalizar a nossa atenção no sem orientação, porque não compreendeu qual é a meta de to-
fenômeno inspirativo, que, visto assim, tornar-se-á mais inteli- das as atividades do ser. No fenômeno inspirativo culmina, ao
gível. Só agora, depois de tais preliminares, estamos em condi- invés, o movimento da vida, na catarse biológica da sublimação
ções de aprofundar e resolver tão árduo problema. Em geral, é mística, a operar uma das suas maiores criações. Para julgar tais
inútil examinar uma questão isoladamente, porque ela perma- fenômenos de alma, não bastam os meios técnicos ou matemá-
nece insolúvel se não for antes orientada no todo e precedida da ticos, mas é indispensável um instrumento de igual natureza do
solução dos problemas fundamentais do ser. fenômeno. O espírito não se pode aquilatar senão pelo espírito.
O fenômeno inspirativo diz respeito às relações entre o ―eu‖ Para controlar um fenômeno de sublimação mística, como é o
individual e o ―eu‖ cósmico, entre a alma e Deus. No Cap. XV – da inspiração, seria necessário um santo, único competente na
―À procura de Deus‖, vimos como a evolução é um processo de matéria, porque só ele conseguiu atingir aquele grau de purifi-
desmaterialização ou espiritualização, que percebemos como um cação e, por conseguinte, de sensibilização imprescindível para
fenômeno de nossa sensibilização, liberação da forma física, poder perceber e medir as qualidades espirituais.
conquista de mobilidade e de consciência, revelação do Divino Dissemos aqui acima que o fenômeno inspirativo diz respei-
que em nós jaz latente. Esta é a via do retorno a Deus, que cha- to às relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmico. Esclare-
mamos sublimação. A todos estes conceitos, já desenvolvidos cemos também, no Cap. XV – ―À procura de Deus‖, que o grau
aqui, está conexo o fenômeno inspirativo, que deve ser observa- de proximidade entre a alma e Deus é dado pelo grau de afini-
do em função deles. Assim, ele fica enquadrado e inserido no fe- dade de vibrações conseguido em relação a Ele, isto é, de con-
nômeno da sublimação, da mesma forma que este, no início do sonância ou sintonização. Ora, a inspiração exprime a comuni-
Cap. XI – ―A caminho da sublimação‖, foi enquadrado no es- cação exatamente por consonância, que é uma sintonização pelo
quema do universo. A inspiração nos surge, então, como um caso despertar em nós daquele estado cinético da vida que, embora
de evolução, estreitamente conexo com a catarse biológica da su- originário, congelou-se na inconsciência (não vibração), com a
blimação; aparece-nos como um fenômeno ligado à ascese mo- queda ou desmoronamento do Sistema. Em outros termos, a ins-
ral, ao movimento centrípeto do espírito para o Centro-Deus, ao piração é um despertar consciente na profundeza em que está
misticismo. Assim, podemos dizer que o fenômeno inspirativo Deus. Então se atinge a sintonização, e esta é a base das visões
não passa de um momento ou aspecto de tudo isto e que só pode que nos revelam os grandes esquemas do pensamento divino. A
ser compreensível em função da sublimação mística. Ele faz par- visão é, pois, um problema de aproximação qualitativa. Eis a ex-
te do despertar da consciência e do retorno da alma a Deus. trema importância do aperfeiçoamento moral, da purificação.
Esta nossa colocação do fenômeno destaca-o definitiva- Falamos aqui do fenômeno inspirativo em relação justamente
mente dos símiles com os quais ele foi por outros até agora com o problema central da terceira trilogia: a sublimação.
confundido, pelo menos em nosso caso. Ele nada tem em co- Mas esse fenômeno pode ser observado também sob outros
mum com a mediunidade física, nem tampouco com a comum aspectos. O ―eu‖ individual aproxima-se do conhecimento do
ultrafania, em que o ser é instrumento passivo. Em nosso caso, pensamento do ―eu‖ cósmico pelo fenômeno inspirativo justa-
na sua fase atual, não se é mais inconsciente aparelho registra- mente porque a evolução pode ser concebida também como
dor de algum conceito, ainda que ele provenha dos mais eleva- uma expansão do primeiro no segundo. Esse despertar de zo-
dos planos do pensamento, mas se trata de um processo intei- nas interiores da consciência pode dar um sentido de expansão,
ramente diverso. O sujeito registra por si, com os próprios de dilatação do ―eu‖ individual no ―eu‖ universal. Assim,
meios intelectivos, visões que ele atinge justamente através do quanto mais o espírito do indivíduo se harmoniza com a Lei,
processo de espiritualização ou sublimação mística ou catarse isto é, sintoniza-se e entra em consonância com a vontade de
biológica, a que nos referimos acima. Então o despertar dos Deus, tanto mais, então, ele participa do pensamento da Lei.
profundos estados de consciência, antes latentes e adormecidos Quanto mais a alma se abre, tanto mais ela é inundada pela luz
no inconsciente, como se dá para a maioria, leva o eu a pôr-se que o Centro irradia sobre todo o Sistema. Conseguir sintoni-
desperto em dimensões conceptuais superiores, menos perifé- zar cada vez mais, pode significar também ascender em dire-
ricas e mais centrais no Sistema. Desta forma, ele vem a en- ção centrípeta, da periferia para o centro. Eis as múltiplas vias
contrar-se mais iluminado do que normalmente pelo pensa- que levam à inspiração. Em outras palavras, pode-se dizer que
mento de Deus, do qual assim pode perceber e ilustrar aspectos o superconsciente é mobilizado, ou seja, posto no estado ciné-
novos e inéditos, ainda ignorados pelo homem. Deste modo, o tico (consciente) ou vibratório do consciente universal, que é
sujeito pode contemplar, em visões sucessivas, a estrutura e o Deus imanente, adormecido no profundo de nosso espírito, cu-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 225
jo despertar constitui a evolução, que nos reconduz a Ele, nos- A esta altura podemos compreender a diferença entre o in-
sa meta. Então, deste ponto de vista, o fenômeno inspirativo tuitivo e o homem positivo de ciência. Este último, sobretudo
nos aparece como uma expansão ilimitada do pequeno consci- quando é matemático, procede encerrado em uma férrea lógica
ente individual no infinito consciente universal. É uma supera- e não concebe e admite senão o que pode ser aferido pelos mei-
ção de limites, no que consiste todo fenômeno evolutivo; é um os exatos de mensuração e demonstração. Mas nem todo o uni-
desembocar da forma-prisão na infinita liberdade do espírito. verso é suscetível de ser reduzido aos termos dados por esta
O fenômeno inspirativo pode então ser definido como: ―o fe- forma mental. Existem e valem também as ideias vagas, inafer-
nômeno da catarse biológica ou espiritualização ou sublimação ráveis como a névoa em formação, as quais, não podendo ainda
mística, visto no seu aspecto consciência‖. ser reduzidas e fixadas em medidas exatas e fórmulas definiti-
Ora, nem todos os fenômenos inspirativos são iguais, justa- vas, nos escapam para o superconcebível. E é este estado intui-
mente porque eles constituem um índice do grau evolutivo tivo e fluido da concepção a primeira fase da construção con-
atingido individualmente, pois, quando o limite do consciente ceptual, mesmo para o cientista ou matemático. Todavia, pela
individual ou forma-prisão se desfaz, a sua dilatação no consci- sua forma mental, tudo nos pode parecer mais visão de artista
ente universal se dá apenas na proporção da potência que o do que de cientista. Só assim posso explicar-me o juízo emitido
―eu‖ reconquistou por evolução, e esta é dada pelo grau de con- por Einstein em sua última carta, a respeito do meu volume de
sonância conseguido em relação a Deus, centro de vida. Se, na caráter científico, Problemas do Futuro: ―The danger in such
verdade, os vários fenômenos inspirativos são diferentes, o seu philosophical entreprises is that the word becomes dissociated
princípio e técnica, contudo, são idênticos, e todos são um mo- form the world of experience, so that the whole structure im-
mento do universal fenômeno da evolução. Por aqui se vê que presses me more as an independent work of art than as an intel-
profundas raízes na vida, mesmo nos seus planos superiores, lectual interpretation of something else‖ 24.
tem o fenômeno inspirativo. A este propósito poder-se-ia observar que o trabalho inspi-
É natural, então, pela sua estrutura, que a inspiração possa rativo, além de ser o mais livre e independente da vontade, é
representar um precioso método de indagação, ainda que a ci- também o menos exaustivo. Ele fatiga muito menos do que o
ência não o aceite, precioso porque ele pode revelar-nos coisas trabalho consciente, obrigado ou espontâneo. No primeiro ca-
que não estão no consciente individual, algo que nos permite so, somos como que rebocados pelo próprio trabalho, que nos
ultrapassar os limites deste, que é, todavia, axiomaticamente arrasta para onde quer. No segundo, temos de querer, impor-
colocado como medida de todas as coisas. Poder atingir o cons- nos, afadigar-nos. Poder-se-ia concluir daí que, para não nos
ciente cósmico – que, para o homem, está habitualmente sepul- cansarmos, bastaria que trabalhássemos com o subconsciente,
tado no inconsciente e representa, pois, um inatingível mistério isto é, no campo do consciente adquirido (ideias inatas), por
– e, por inspiração, até onde seja possível, apanhar-lhe o conte- automatismos. E é verdade, mas o problema consiste em pos-
údo e traduzi-lo em forma racional, acessível a todos, tudo isto suir um subconsciente que saiba trabalhar em um plano digno.
pode assemelhar-se a explorações efetuadas nas profundezas Todos sabem trabalhar com o subconsciente, mas ele é uma
abissais dos mares ou na estratosfera. E não se pode jamais sa- sobrevivência limitada e atávica de animalidade, e não um am-
ber o que isto poderá revelar-nos. plo despertar interior, pelo qual o ―eu‖ pode atingir o pensa-
Aliás, as intuições do gênio, os produtos da arte ou as des- mento cósmico. Geralmente confunde-se no próprio inconsci-
cobertas do cientista, quando representam uma desenvoltura do ente, fora da consciência normal, o subconsciente revivido do
pensamento no sentido da sua orientação original, constituem passado com o superconsciente, antecipação do futuro. Só este
sempre algo atingido não no consciente individual humano, é um despertar consciente na profundeza em que está Deus.
mas no consciente cósmico, que se encontra latente naquele, em Todos sabem trabalhar sem fadiga com os meios da primeira
estado de inconsciência. Efetivamente, quem alcança tudo isto espécie de inconsciente. Não é a ele que está confiado o nosso
por inspiração tem a sensação de defrontar-se com um pensa- funcionamento orgânico? Quanta gente, ademais, utiliza, sem
mento de estrutura e dimensão diversas do normal, com um esforço algum, tal patrimônio adquirido, nos atos instintivos da
pensamento que não se apresenta por sucessão lógica, mas por vida, que todos sabem fazer sem mestre! Assim, diariamente,
instantaneidade, como se estivesse além da nossa dimensão todos praticam um sem-número de atos que constituem tam-
tempo, limite que aqui é superado. O ―eu‖ então, na inspiração, bém uma forma de atividade, gratuitamente. Mas, para poder
não concebe mais sucessivamente, em encadeamento conclusi- trabalhar sem fadiga, com os recursos do inconsciente, é ne-
vo, como ao longo de uma linha, ainda que livre de mover-se cessário possuí-los, tê-los conseguido antes com o esforço da
na superfície, mas no lampejo de um conjunto, como que se en- aquisição. E ter adquirido tais recursos significa ter construído
contrando no interior de uma massa de conceitos que o envol- qualidades. Ora, esse difícil trabalho só o pode executar, com
vem por todos os lados ao mesmo tempo. E, assim, para tradu- esforço e tenacidade, o consciente, introduzindo, com sua or-
zi-los em termos racionais, ele tem de passar da dimensão vo- dem, hábitos novos no subconsciente e aí fixando-os pela repe-
lumétrica à linha e exprimir-se consecutivamente. Para recons- tição, até que eles sejam assimilados como automatismos.
truir o pensamento deste volume na sua primeira fase inspirati- Educar e transformar um subconsciente que resume impressos
va, o leitor teria que imaginá-lo reduzido a um relâmpago ins- em si impulsos atávicos, consolidados por experiência milená-
tantâneo, que iluminasse um globo dentro do qual, simultanea- ria e oriundos da animalidade, não é fácil. Para alguns seres
mente, está escrito e se lê todo o volume. mais evoluídos, como os santos, isto representou uma luta vio-
Nestas condições, querer indagar, refletir, concatenar ou lenta e terrível. Por certo, no fundo de nós está Deus, mas
controlar é impossível. Devemos limitar-nos a observar e regis- quem sabe despertar nessa profundidade, onde tudo jaz imerso
trar. Levados os produtos do superconsciente para o consciente, em um sono profundo? É inútil, pois, dizer que poderemos
teremos feito o mesmo trabalho que executa o cientista que car- poupar-nos o esforço do trabalho, confiando-nos ao nosso in-
rega os frutos das suas explorações abismais ou estratosféricas consciente. A maioria, pelo contrário, tem de lavrar no consci-
para o seu laboratório. Só aí poderá começar a analisá-los. Por ente, isto é, nas zonas de aquisição de novos instintos – zona
isso não podemos oferecer senão sínteses. Incumbe, depois, ao
pensador racional, controlar com os seus processos lógicos e 24
―O perigo desse tipo de reflexão filosófica é que a palavra se torna
experimentais esses produtos. Então, só então, podem intervir dissociada do campo cientifico, de forma que todo o seu conteúdo me
as faculdades humanas de vontade e atenção, que, na inspira- dá a impressão de um trabalho independente, mais de arte do que uma
ção, inversamente, possuem poderes negativos, inibidores. interpretação intelectual de alguma coisa mais‖. (N. do T.)
226 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
de vontade e de esforço – as qualidades e ideias inatas. Não se meno inspirativo, a consciência humana normal, naturalmente
podem usufruir os frutos do despertar interior, senão fazendo limitada às necessidades da sua vida e incapaz de compressões
preliminarmente o esforço de provocar semelhante despertar. mais amplas do que as adstritas à satisfação das suas necessida-
Agora que compreendemos, com a conclusão ―Tu habitas in des humanas, transpõe esse seu limite natural, para entrar no
me‖, que Deus é interior, e não exterior a nós, poderemos atinar consciente cósmico, de que faz parte, apropriado a um funcio-
o que se deve entender por fonte inspirativa. No volume As namento de muito maior envergadura, e pode assim, de forma
Noúres, a imaginamos como um transmissor, do qual o indiví- mais ou menos completa, tomar conhecimento também dele. Eis
duo era um receptor. Mas, após o caminho percorrido até aqui, o que representa o fenômeno inspirativo nas relações entre o
podemos ser bem mais precisos. ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmico, entre a alma e Deus.
Temos falado, nos capítulos precedentes, da interioridade De tudo isto se depreende a importância que pode assumir,
do Deus imanente, que se encontra também em nós. É, pois, pa- para o progresso da humanidade e para a defesa de sua vida,
ra esta interioridade que a inspiração se dirige; a entidade uma expansão além do limite da compreensão normal e a con-
transmissora é espírito e o espírito se alcança sempre andando tribuição que ela pode dar ao grande problema do conhecimen-
para o interior da forma física, que constitui a periferia, o seu to. Porque pouco conhecido e muito pouco adquirido e utiliza-
revestimento externo. Vimos também que as características da do, a humanidade não se dá conta de que resultados esse fe-
personalidade, do ―Eu-Centro-Uno‖, são encontradas no aspec- nômeno é capaz de oferecer na indagação do inexplorado, so-
to transcendente de Deus, em que Ele é centro de tudo, e que as bretudo no campo mais dificilmente explorável, porque mais
opostas características da impersonalidade são encontradas no distanciado de nosso contingente, como é o campo das grandes
polo oposto do ser, no aspecto imanente de Deus, em que o sínteses e das supremas abstrações, dificilmente acessíveis aos
Uno se pulverizou em infinitos ―eus‖ menores. meios da racionalidade comum. E a ciência é incapaz de, com
Eis o que então sucede ao nosso ―eu‖ humano. Se, na ver- seus métodos, atingir tais sínteses universais, que lhe são tão
dade, ele é pessoal relativamente ao seu pequeno ―eu‖ próprio, necessárias como orientação. Uma hipótese de trabalho possui
no mundo em que está imerso, na periferia do Sistema, ele re- muito mais probabilidades de estar nas pegadas da verdade
presenta, contudo, a pulverização do Uno, uma centelha de quando assim orientada; caso contrário, torna-se mera tentativa
Deus. Quando, pois, o nosso ―eu‖, pelo ato inspirativo, dirige- lançada ao acaso. Tudo isto é verdadeiro, pois não temos ne-
se para o centro, ele se desloca para o aspecto transcendente e nhum direito de acreditar que o método usado pela ciência de-
pessoal de Deus. Ora, esse centro, para ele que é periférico, re- va ser o único e o mais apropriado para alcançar a compreen-
presenta a reunificação, isto é, a reabsorção no Uno da sua per- são da natureza dos fenômenos. O fato de a ciência nos ter for-
sonalidade distinta, de modo que, na inspiração, o ―eu‖ perde as necido grandes resultados utilitários não é suficiente para dis-
suas qualidades, que como tais o distinguem e separam dos ou- sipar a suspeita de que o domínio exclusivo da experimentação
tros ―eus‖, e cada vez mais tende a fundir-se em Deus-Uno. As- pode mais facilmente afastar-nos do que aproximar-nos da vi-
sim se explica a anulação da própria personalidade na inspira- são da essência das coisas.
ção, tanto mais acentuada quanto mais poderosa for esta, e Enfim, tudo isto pode também interessar diretamente à vida.
também se compreende que todas as inspirações, embora diver- Possuir uma orientação pode ser a chave para resolver proble-
sas, se ligam a um único transmissor: o Centro-Deus. mas cuja solução, especialmente em dados momentos como o
Como se vê, o problema inspirativo tem as suas raízes na atual, é imposta pela evolução à humanidade como questão de
profundidade do Todo e não é solúvel a não ser em função do vida ou de morte. A vida, no seu desenvolvimento, propõe ao
Todo. Agora podemos compreender por que, nos seres elevados, ser sempre novos quesitos, e do saber respondê-los adequada-
é difícil, e tanto mais quanto mais elevados, encontrar os ele- mente pode depender a continuação ou o fim, bem como a for-
mentos distintivos da personalidade, como os entendemos em ma, da existência. Algumas espécies tiveram de desaparecer
nosso mundo. Quanto mais se ascende para Deus, tanto mais por não terem sabido resolver certos problemas. O conhecimen-
aumentam as Suas características de personalidade (da imanên- to é uma das armas mais poderosas para vencer também no ter-
cia=impessoal, para a transcendência=pessoal), e tanto mais di- reno biológico da luta nela vida.
minui a distinção, ou seja, a personalidade dos ―eus‖ destacados. Antes de encerrar este capítulo, analisemos a significação e
Então, pelo princípio das unidades coletivas, eles se reagrupam, valor do fenômeno inspirativo em face do problema do conhe-
formando esses ―eus‖ cada vez mais vastos e poderosos. A essas cimento. O homem utilizou três métodos para atingir o conhe-
alturas, não encontramos mais ―eus‖ isolados, que pensam sepa- cimento: 1o) a revelação (recepção mais ou menos passiva no
radamente, mas correntes de pensamento, Noúres, próprias de fenômeno inspirativo – método intuitivo); 2o) a lógica (constru-
espíritos sintonizados, consonantes, o que, para um espírito, sig- ção abstrata por esforço mental de pura racionalidade – método
nifica ser de igual natureza, porque o que define o espírito é o analítico); 3o) a experiência (controle pela observação da reali-
seu tipo de vibração. E quem é de igual natureza coincide com dade exterior – método sensorial).
os idênticos e neles se funde no mesmo ―eu‖, como duas notas O primeiro é o método aqui acima descrito. O segundo é o
idênticas formam a mesma nota. Isto corresponde à progressiva método dos processos matemáticos. O terceiro representa o
unificação, pela qual o Uno, que se fracionara no Anti-Sistema, único contato direto de que dispomos para alcançar a realidade.
vem a reconstituir-se integralmente no Sistema. Deixando de lado, porém, o método da intuição, que é inteira-
O fenômeno inspirativo, sendo a expressão da sublimação no mente excepcional, pode-se também enfrentar a realidade com
seu aspecto consciência, segue esse processo de unificação, que o pensamento puro. O conhecimento pode derivar não somente
é inerente à sublimação, culminante na união mística da alma da observação, mas também do esforço de construção lógica do
com Deus. Então aquela expansão do pequeno consciente indi- puro pensamento. Mas é sempre necessário que os seus resulta-
vidual no infinito consciente cósmico – o que constitui o fenô- dos sejam transportados e aprovados no plano da realidade ob-
meno inspirativo – pode ser comparada ao caso em que a cons- jetiva, que, embora ilusão sensória e limitada, exprime no seu
ciência de uma célula isolada, consciência naturalmente limitada plano uma verdade, ainda que relativa a ele. É necessário, em
apenas ao seu funcionamento, pudesse ultrapassar este seu limite suma, controlar tudo, observando o que corresponde aos con-
natural para alcançar a consciência de todo o organismo humano ceitos abstratos no terreno concreto. Depois, no sentido inverso,
do qual ela faz parte, consciência própria de um funcionamento as observações são interpretadas, correlacionadas e destiladas
mais amplo, e pudesse assim tornar-se mais ou menos comple- no essencial pela elaboração lógica da racionalidade, superando
tamente consciente também deste. Semelhantemente, no fenô- às vezes a própria racionalidade. E, para atingir o plano abstrato
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 227
da lei geral, o todo deve ser reconcebido em lampejos pelo mé- normal, tenta avizinhar-se do ―eu‖ cósmico, para coincidir o
todo da intuição. Os três métodos, sendo contíguos, podem mais possível com o pensamento e a vontade de Deus.
fundir-se e auxiliar-se mutuamente. Eis o que deveria ser a voz da consciência, para nos apontar
O certo é que o experimentador jamais poderá elevar-se ao a perfeita adesão à lei de Deus. Esta é a verdade que se encontra
campo das puras abstrações e generalizações, onde labora o teó- em nossa profundidade, porque Deus está em nós. Ora, o pro-
rico, terreno quase filosófico das formulações matemáticas, no blema então é saber quem é capaz de despertar, além da super-
qual somente aparecem as grandes leis unitárias. Assim como fície, em tais profundezas; quem consegue tornar-se consciente
numa casa de dois planos, também a teoria de Einstein da rela- da verdade universal? E, assim sendo, que aproximação essa
tividade generalizada, que abrange a gravitação, ergue-se e de- sincera voz interior – que chamamos voz da consciência e à
senvolve-se sobre a teoria da relatividade restrita. O valor de qual sentimos o dever de obedecer, como a qualquer coisa de
uma hipótese ou teoria está, pois, em poder abranger, com um sagrado que vem de Deus – representa e nos dá da verdade ab-
mínimo de axiomas, um máximo de conteúdo experimental. soluta, que está em Deus? Certamente, deveremos admitir que
Sobe-se, assim, do aspecto analítico e particular para uma con- não se pode tratar senão de aproximações maiores ou menores,
cepção sempre mais sintética e universal, até que, da mesma e estas dependem da evolução conseguida por cada um, isto é,
forma que a experiência deve ceder lugar à racionalidade, esta dependem do grau de sensibilização alcançado, que permite vi-
deve cedê-lo à intuição, se ainda quiser subir mais para o sinté- brar em sintonização com verdades sempre mais profundas,
tico e universal. Quanto mais se sobe, porém, tanto mais se ga- despertando consciente no interior divino.
nha em vastidão e tanto mais se perde em segurança experi- Se observarmos, então, ao redor de nós e atentarmos para o
mental na abstração; quanto mais se desce na realidade concre- nível espiritual da maioria humana, devemos afirmar que, não
ta, tanto mais se restringe o campo das nossas conclusões. podendo esta, dado o seu grau de involução, alcançar senão es-
Os dois caminhos são inversos: o primeiro vai da periferia cassas aproximações da verdade, a voz da consciência não re-
ao centro do sistema universal, para o absoluto; o segundo vai vela desta mais do que aspectos fragmentados, pequenas ver-
do centro à periferia, para o relativo. O primeiro certamente dades particularizadas, relativas a cada um, limitadas no con-
caminha para a verdade; o segundo, para a ilusão. Mas, ao se tingente e transitórias no tempo. Se, teoricamente, a voz da
subir, a verdade vai nos escapando, torna-se vaga, abstrata, in- consciência é sagrada, porque tende a dirigir-se para o Centro-
controlável, perdendo para nós, relativos que somos, a força da Deus, na maior parte dos casos é bem difícil que o atinja. Esta
verdade. Ao se descer, ela se torna mais palpável, mais concre- voz pode, então, ser apenas aquela da vida individual, claman-
ta, digamos mais verdadeira, ao mesmo tempo que nos encer- do somente em sua defesa e de seus interesses. Pode mesmo
ramos mais no limite do contingente e na ilusão do sensório. ser um longínquo eco da voz de Deus, porque todos têm o di-
Somos, desta forma, circundados por barreiras que nos obsta- reito e o dever de viver. Mas quanto estamos distanciados da
culizam o conhecimento por todos os lados. Nada mais nos universalidade do pensamento central, que protege toda a vida,
resta a não ser valer-nos dos três métodos, procurando a con- mesmo com o sacrifício da vida individual, pensamento que
cordância entre eles dos resultados obtidos com cada um e fa- está imensamente afastado do egoísmo exclusivista!
zendo com que cada qual forneça a contribuição de que é ca- É assim que estas ―verdades‖ individualizadas, particulari-
paz, ou seja: 1o) as diretrizes máximas da ordem universal, pe- zadas, embora sendo sinceras vozes de consciência, podem
lo método intuitivo; 2 o) a coordenação das observações e as di- entrar em conflito, provocando, em nome da verdade, o de-
retrizes menores, como uma ponte entre o primeiro e o tercei- sencadeamento de choques fratricidas, cada qual agindo em
ro, pelo método racional analítico; 3 o) o controle do resultado plena consciência. Bem poucos são aqueles que, no exemplo
dos outros dois, pelo método experimental. máximo de Cristo, sabem fazer coincidir a voz interior da
É certo que o governo do universo, a inteligência e o poder própria consciência com a voz do consciente cósmico, Deus,
que assumem a direção do funcionamento deste grande orga- voz que, mesmo procurando se fazer ouvir da profundidade,
nismo ou coletividade, não é exterior como o governo das quando tantos a interrogam, permanece às vezes sepultada e
nossas coletividades estatais, mas está no interior dos seres ou tão longe da normal consciência desperta, que dela não resta
fenômenos, de onde os guia. É indiscutível que o essencial, o senão um débil sussurro. Dela não nos chega, porque somos
que mais vale para o conhecimento, é o abstrato, dado que a surdos e involuídos, senão um balbucio tão incerto e às vezes
assim chamada realidade objetiva é superficial e secundária. contraditório, tão tímido e fragmentário, que mal percebemos
A verdadeira realidade não é exterior, mas sim interior, e tan- a voz de Deus e, mesmo assim, de tal forma humanizada atra-
to mais verdadeira e real se torna quanto mais interior, quanto vés de nossa consciência, que não conseguimos nem ao menos
mais distante da solidez do concreto. A chave dos mistérios reconhecê-la e a confundimos com os nossos desejos, que
está na abstração das grandes sínteses e não pode ser encon- qualificamos, então, como voz da consciência. E justamente
trada senão pela intuição. Assim, pois, os três métodos se es- os que assim a ouvem são os que mais alto gritam para melhor
calonam em três níveis diversos, como três graus do conheci- serem ouvidos! Daí, certa legítima desconfiança das autorida-
mento, com funções e resultados diferentes. Cada um necessi- des religiosas a respeito da voz interior, que, se em princípio é
ta ficar no seu plano, para fornecer, segundo a sua natureza e e deve ser sagrada, pode representar na prática apenas um ge-
potencialidade, o rendimento que pode dar. Eis a significação nuíno produto do ―eu‖ individual.
e o valor do fenômeno inspirativo em face da ciência e do É difícil julgar em tais casos. Mas é certo também que,
problema do conhecimento. existindo almas superiores, capazes de ouvir na própria cons-
Antes de deixar este argumento, observemos, transportando- ciência a voz de Deus, isto é, uma voz que se identifica, acima
nos para o terreno moral, um caso particular do referido fenô- do próprio egoísmo, com a vida universal, essas almas devem
meno, caso que podemos chamar de voz da consciência. Fenô- saber superar todas as resistências e obstáculos – indispensá-
menos de inspiração, pode-se dizer que se verificam todas as ve- vel barreira interposta a essas exceções para prová-las – cria-
zes que alguém consulta o próprio ―eu‖ profundo, para conhecer dos com a norma estabelecida pela maioria humana, que é de
a verdade em torno da própria conduta. Dissemos acima que as involuídos. De outro lado, as autoridades religiosas, que jul-
inspirações se ligam a um centro único – Deus – e que Deus é gam a matéria, defrontam-se com dificuldades nada pequenas.
interior, e não exterior a nós. Trata-se de uma ampliação da pe- É verdade que a voz da consciência é sagrada, mas, se exage-
quena consciência individual no consciente cósmico, na qual o rarmos na liberdade, caímos na anarquia do livre exame. É
―eu‖ superficial, feito de contingente, isto é, a nossa consciência também verdade que, frequentemente, o que denominamos de
228 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
voz de consciência pode ser um puro juízo pessoal. Urge, É este pensamento uno que reconduz as infinitas formas à
pois, uma norma à qual a consciência seja submetida, limitan- unidade do Todo e constitui a universalidade da Lei-Una. En-
do assim a sua liberdade. Mas, igualmente, se exorbitarmos na tão, que diferença existirá, por exemplo, entre a pedra, a árvo-
disciplina, caímos na tirania. É lógica, pois, a atitude inicial re e o gênio? Ela reside no grau em que a individualização do
de suspeita mantida pelas autoridades religiosas em relação a ser, segundo seu plano evolutivo, consegue participar desse
quantos se digam inspirados. A estes incumbe demonstrar, consciente universal, isto é, consegue despertar consciente-
depois, através de toda a sua vida, que a voz interior não os mente, ou seja, em consonância, no seio do pensamento de
enganou. É um controle necessário para eles mesmos. E se a Deus. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o universo é
voz realmente vem de Deus, ela encontrará tanta força nos fa- inteiramente feito dessa primordial substância conceptual, que
tos e sabedoria nos conceitos, que se imporá a todos, tanto ao é o pensamento de Deus, qual infinito oceano vibrante, em cu-
inspirado quanto aos juízes. E não faltam os exemplos que nos jo seio, porém, cada individualização do ser não vibra da
demonstram quantas vezes estes últimos tiveram, embora tar- mesma forma, sendo mais ou menos desperta e participe como
diamente e contradizendo as suas primeiras condenações, que estado de consciência dessa vibração. Em tudo o que existe,
reconhecer a verdade da inspiração. há a possibilidade de poder atingir toda a vibração do pensa-
mento de Deus, mas tal vibração não existe em atividade, ela
XIX. A ALMA E DEUS está latente, adormecida, à espera de gradual despertar. É a es-
te despertar que se denomina evolução.
O estudo do fenômeno inspirativo nos leva agora a conside- Podemos agora melhor compreender o significado dos con-
rar as relações entre a alma e Deus. Nas páginas precedentes, ceitos de subconsciente, consciente e superconsciente, já expos-
comparamos a expansão do pequeno consciente individual no tos no volume Ascese Mística. O consciente é a zona de traba-
infinito consciente cósmico, que constitui o fenômeno inspira- lho (com a experiência da vida), em que o ser desperta, para en-
tivo, com o caso em que uma célula individualizada pudesse al- trar em vibração no consciente universal. A evolução não é, as-
cançar a consciência de todo o organismo humano. Cabe agora, sim, um avanço cego, mas um despertar vibratório, segundo es-
aqui, indagar se estas relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ quemas pré-existentes, por conseguinte pré-estabelecidos, no
cósmico, isto é, entre a alma e Deus, serão as mesmas que ocor- consciente universal. O subconsciente é a consonância, a sinto-
rem entre uma célula e todo o organismo? nização já adquirida com esse consciente e estabilizada nos au-
É certo que, desde o átomo até à molécula, ao cristal, à célu- tomatismos (instintos, ideias inatas etc.). Ele abre o campo já
la e a todas as formas de vida individual e coletiva, se cada indi- explorado pelo ser na experiência realizada na vida, é sua pro-
vidualização do ser revela saber quanto lhe basta para existir, priedade e expressa suas qualidades. Ele coincide com o pen-
não tem, todavia, de modo algum, consciência do todo. O pró- samento de Deus, mas nos mais baixos planos de sua expres-
prio homem, que se situa no ápice da evolução biológica, não são, sendo, pois, guiado pelo consciente, que já começa a vibrar
tem consciência senão de uma parte mínima da sua vida, da qual nos planos mais elevados. O superconsciente é o pensamento
só possui muito limitadamente as diretrizes. Temos, então, que de Deus, ainda latente e adormecido no ser, que ainda não se
atribuir ao consciente universal esse conhecimento que as indi- pôs a vibrar em zonas evolutivas mais elevadas. Ele está, pois,
vidualizações isoladas do ser não possuem propriamente. Assim para o ser, ainda em estado de não-consciência.
se delineiam as relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmi- Poderemos dizer com o suave Virgílio: ―Mens agitat mo-
co, isto é, entre a alma (tomada no sentido lato, inclusive como a lem‖25, no sentido de que, dentro de cada forma e atrás de toda
alma das coisas) e Deus. Ora, imaginar que cada uma das várias aparência, há um proporcionado despertar, com relação ao di-
individualizações do ser representa a sede de uma íntima ima- vino, de um estado vibratório que a rege. Veremos, então, atrás
nência neles, no fundo e além do seu relativo consciente, do da hierarquia das formas, uma interior hierarquia de consciên-
consciente do ―eu‖ universal, que sabe e pensa em cada ser, den- cias, constituída pelos graus de consonância atingidos pelo ser
tro dos limites de sua natureza, provendo-lhe a vida – imaginar em relação com o pensamento divino. Desta forma, no consci-
tudo isto é mais plausível e convincente do que conceber um ente do indivíduo vão surgindo problemas cada vez mais vastos
universo regido, não se sabe como e por que meios, por um e complexos, à medida que ele sobe. A uma planta bastará re-
consciente ―eu‖ universal que lhe é exterior e estranho. Vimos solver o problema da assimilação e respiração. O gênio sentirá
que Deus não é exterior, mas íntimo do ser, e concluímos pela necessidade de resolver o problema do universo.
Sua imanência neste. Isto tanto mais se tornará convincente Assim, pois, vemos que as posições de subconsciente, cons-
quanto mais percebermos que ela, se parece conduzir-nos à im- ciente e superconsciente são relativas ao grau de evolução de ca-
pessoalidade de Deus e ao imanentismo panteísta, de fato não da ser. Para o homem racional, o subconsciente representa apenas
exclui nem lesa o conceito do Deus pessoal e transcendente. o pensamento sensitivo do animal e vegetativo da planta. Para o
O consciente universal é, pois, íntimo ao ser, representan- animal, é subconsciente este último, enquanto para a planta é
do o imenso fundo de sabedoria que guia toda a sua vida, sem subconsciente o pensamento molecular, isto é, aquele que preside
que ele se aperceba de nada. Neste campo se incluem o funcio- à construção e funcionamento dos elementos químicos compo-
namento orgânico e tudo o que é guiado pelo instinto, como o nentes; para estes, o subconsciente é o pensamento atômico, que
desenvolvimento das alternativas coletivas que constituem a his- estabelece os diferentes edifícios eletrônicos componentes.
tória. Também se incluem a Lei, que enquadra os nossos atos li- E, na direção oposta, podemos dizer que, assim como, para
vres na férrea concatenação causal e depois se desenvolve no o homem racional, o superconsciente é o pensamento intuitivo
destino individual e coletivo, e a oportuna intervenção da Provi- sintético do super-homem, o superconsciente, para o animal, é
dência, como guia e ação situadas além do conhecimento e das o pensamento racional humano; para a planta, é o pensamento
forças humanas, e assim por diante. Se o universo foi gerado, sensitivo do animal; para a molécula da química inorgânica, é o
como vimos, por uma substância pensante, o que vale dizer, feito pensamento celular vegetativo da planta e, para o átomo, é o
de divina imanência, então todo ser, justamente por esta razão, é pensamento molecular da química. Assim se pode compreender
por ela constituído, ou seja, é pensante na sua profundidade. Se o sentido que está no fundo das palavras de Sertillanges: ―na
ele não tem disso consciência, não importa. De como ele vive e natureza tudo tende a subir. A apoteose da matéria está no ve-
funciona devemos deduzir que este pensamento está nele, mesmo getar; a do vegetal, no sentir; a do animal, no pensar‖.
que ele não o note, como também está até nas mais involuídas
25
formas da matéria bruta, e não apenas nos seres evoluídos. ―O espírito move a matéria‖. Eneida, VI: 727. (N. do T)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 229
Como se vê, o ser, da mesma forma que o homem, move-se de todos os esplendores do concebível. Estamos encarcerados
em um ilimitado oceano de pensamento, em que o seu próprio na matéria. Em torno, tudo nos empareda nas barreiras de nos-
avança e se expande mais ou menos, conforme o estado de sa insensibilidade. E o involuído não arde senão na ânsia de re-
consonância que ele, evolvendo, consegue atingir. O pequeno focilar na lama das suas baixezas, porque aí estão os seus atra-
―eu‖ individual tem de se haver sempre com este consciente tivos, porque essa é para ele a vida. Que pobre vida, quando
universal, que é o Deus imanente, onde ele está imerso, como somos feitos de infinito e para o infinito! Pobre involuído, ma-
em uma atmosfera de pensamento, que ele respira com o seu nobrado como um fantoche pela Lei, crendo comandar, quan-
pensamento e com o qual se comunica por um contato que do, no fundo, mais não faz senão obedecer, porque é ela que o
constitui a vida. Para o homem, o Deus imanente é uma zona comanda e deve comandar como a um títere, pois ele nada sa-
ilimitada, situada além da sua consciência, e qualquer processo be e não pode de fato nada dirigir!
evolutivo, até à fulguração do gênio, constitui uma aproxima- Mas observemos ainda as relações entre o ―eu‖ individual e
ção Dele por progressiva consonância. Estamos circundados o ―eu‖ cósmico. Já idealizamos o consciente individual, sedia-
pelo mistério. Mas a evolução consiste justamente na expansão do no consciente universal, como as células no organismo hu-
de nosso consciente individual no infinito consciente cósmico. mano. Já conhecemos a estrutura hierárquica piramidal dos se-
Poderemos imaginar o primeiro como uma pequena circunfe- res, pela qual, consoante o principio das unidades coletivas,
rência que, partindo do mesmo centro, se dilata no seio da in- passa-se a um número crescentemente reduzido de individuali-
finita circunferência do consciente universal. Podemos tam- zações sempre mais sintéticas, partindo de uma incomensurá-
bém representar a substância pensante do Deus imanente, vel quantidade de individualizações, tanto mais particulariza-
constitutiva do Todo, por um inflamar-se de estados vibrató- das e analíticas quanto mais descemos na escala dos seres. As-
rios mais ou menos intensos e complexos em vários pontos, sim, da célula se desce à molécula, depois aos átomos, aos elé-
que formam, deste modo, os centros pensantes que constituem trons etc., ao passo que se sobe para o órgão, para o organismo
o consciente dos vários ―eu‖ individualizados. O fenômeno completo, para o grupo familiar, nacional, para a humanidade
inspirativo não passaria, então, de um índice que nos revela etc. O mesmo se dá no plano da matéria inorgânica e na cons-
haver sido realizado pelo ser, através de um despertar vibrató- trução dos universos estelares. Esta, em cadeia, é a técnica
rio, mais um lanço evolutivo, uma dilatação de consciência, construtiva dos edifícios do ser.
expressão de uma catarse biológica. Ora, dissemos que, por trás dessa estrutura física, existe
O que espera o homem ao despertar no superconsciente é o uma outra mais real que a rege, a espiritual, animadora dessas
Deus imanente, o consciente cósmico. Ali já está escrita a res- unidades, uma estrutura hierárquica piramidal, feita de pen-
posta a todos os porquês, feitas estão todas as descobertas, evi- samento. O universo não será inteligível se, atrás da hierar-
dentes são todos os mistérios. Segue-se daí que o problema do quia exterior das formas, não enxergarmos essa outra hierar-
conhecimento é, sobretudo, uma questão de maturação bioló- quia de motivos conceptuais ou de modelos abstratos, que são
gica. É principalmente esta, e não as elucubrações racionais, aqueles segundo os quais as formas se plasmam. Por trás dos
que inflama o lampejo ao gênio, porque, sendo evolução, leva planos biológicos existem planos conceptuais que se sobre-
o homem a vibrar harmonicamente mais próximo do pensa- põem e se escalonam ascendentemente, numa hierarquia de
mento de Deus. Então, entrando num plano de vida mais alto, princípios espirituais que culminam em Deus, vértice da pi-
nasce uma nova sensibilização espiritual; o que antes era um râmide ou centro da circunferência. Segue-se daí que, com o
superconcebível, torna-se espontaneamente inteligível e se re- progresso da evolução, se a forma muda é porque, sobretudo,
vela. Quando não é o indivíduo isolado que avança (o gênio), muda a natureza do pensamento que ela expressa, assim como
mas um grupo ou mesmo a massa humana, então o fenômeno muda a consciência do ser em consequência da elaboração do
inspirativo se generaliza segundo a potência de cada um, sur- viver. O que existe, portanto, de substancial no substrato da
gindo a era das conquistas do pensamento, os grandes séculos evolução e no que a rege é o progressivo despertar do ―eu‖ em
construtivos, as descobertas em cadeia, como hoje. Tudo ex- um estado vibratório cada vez mais elevado.
plode, assim, em um surto evolutivo, em todas as partes do Estamos, agora, em condições de encarar a evolução de
mundo, quase contemporaneamente, acreditando cada célula um modo mais substancial, isto é, mais correspondente à ver-
da humanidade haver feito uma descoberta com seu engenho. dadeira realidade, que é interior à forma. A evolução não é,
Todavia trata-se apenas de uma maturação biológica geral. Es- pois, um aprimoramento de organismos, a não ser como últi-
ta é a razão pela qual somente hoje se fizeram descobertas an- ma consequência. Ela corresponde, pelo contrário, a um con-
tes julgadas impossíveis e inconcebíveis pelo homem. E logo ceito metafísico: despertar o espírito, mobilizando as qualida-
chegarão novas orientações sobre aquilo que atualmente é to- des adormecidas e latentes no inconsciente, para, com isto, re-
mado por superconcebível. No fundo, trata-se tão somente de construir, através da experiência na matéria, o sistema espiri-
sensibilizações progressivas, de que nascem mais elevadas tual desmoronado, até que o Deus imanente, nele incorporado,
consonâncias ou sintonizações com o pensamento de Deus. retorne ao estado de origem e coincida com o Seu aspecto
Toda a evolução se reduz, assim, a um problema de sensi- transcendente. Assim, a formação das unidades coletivas em
bilização nesse sentido. As janelas de nosso consciente sobre o dimensões cada vez mais vastas, não constitui apenas uma
mundo hoje são limitadas. E é preciso ser bastante involuído, agregação de elementos, mas uma organização dos mesmos,
isto é, adormecido, para sentir-se bem satisfeito em uma casa de modo que cada unidade superior represente uma perfeição
tão pequena e escura. A conquista da verdadeira liberdade não maior, conseguida por efeito de mais profunda manifestação
está na liberdade de mostrar-se animalesco, mas em despertar a do espírito, mais profundamente desperto.
consciência, que nos permite sair da tremenda prisão da igno- Não se trata, pois, de ver no universo somente um infinito
rância e da inconsciência. Quantas mensagens, constantemen- oceano de pensamento, uma infinita atmosfera pensante, de que
te, o consciente universal não enviará ao nosso minúsculo tudo vive. Isto é verdade, mas é insuficiente. Nela se formaram,
consciente individual! Maravilhosos apelos, e nós continuamos como dissemos, núcleos de consciências individuais, assim co-
surdos, sem compreender! Tudo vibra de pensamento e freme mo no espaço cósmico, paralelamente, formaram-se núcleos de
de vida em derredor de nós, e não sabemos pôr-nos em contato matéria. Ora, em nosso universo, o aspecto mais preciso do
com este maravilhoso universo saturado de Deus, porque não Deus imanente, que não pode ser uma uniforme e informe at-
estamos sensibilizados, não sabemos vibrar em uníssono, para mosfera pensante, é estar individualizado em infinitos núcleos
ouvir e responder. E permanecemos mudos e inertes no vórtice de consciência ou ―eus‖ pensantes.
230 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Eis no que consiste a imanência de Deus em nosso universo: aspecto negativo de sacrifício. Este, de fato, representa para a
ter querido, por amor, seguir o Sistema no seu desmoronamen- criatura decaída a única forma de verdadeiro amor construtivo.
to! Eis no que consiste a maior paixão de Deus por todo o seu O amor-gozo é apenas uma recordação da sua origem; gozo li-
universo: a sua encarnação e crucificação além do Gólgota! Eis mitado, fugaz, ilusório, quase que somente tolerado como mera
como se explica o ―Tu habitas in me‖, como a presença de introdução ao amor-sacrifício, que não é efêmero nem ilusório,
Deus é íntima a nós e às coisas! Eis porque Cristo pôde dizer: mas o único verdadeiro e construtivo. Fragmentação, reunifica-
―Vós sois Deuses‖. Poderá parecer audaciosa esta concepção, ção. Deus está sempre presente, é sempre o Todo. Reunificar-se
mas é a única que tudo aclara em profundidade. é o grande propósito de todo o universo, porque no fundo de
Vemos, efetivamente, que cada unidade coletiva superior todas as formas há um pequeno fragmento de Deus, que tem
não representa somente a soma das suas unidades componen- fome de voltar a ser Uno. Se o universo é todo um desencade-
tes, mas alguma coisa a mais. Nela há coordenação e organiza- amento de antagonismos, desde o plano físico ao espiritual (re-
ção da atividade dos elementos constitutivos, criação, por con- pulsão-ódio), ele é também um anseio de amplexo em todos os
seguinte, de qualidades que eles não possuem isoladamente, planos (atração-amor). Fragmentação significa a revolta e o
execução de encargos que eles, sozinhos, não poderiam reali- desmoronamento, terminando no caos. Reunificação significa a
zar. Com a fusão das unidades menores em unidades coletivas, obediência e a reconstrução, terminando na ordem do Uno.
nasce algo de novo, que antes não existia em nenhuma delas e Este é também o caminho de nosso mundo. Se descermos
que elas somente conseguem com essa união. Isto tem um pro- aos graus e tempos mais involuídos da humanidade, encontra-
fundo significado. Antes de tudo, o nascimento dessa qualquer remos aí o politeísmo. Deus estava fragmentado também como
coisa de novo não pode deixar de ser um desenvolvimento do concepção e vinha sendo, desde os tempos da Grécia e de Roma,
latente, como vimos, porque, de outra maneira, ele seria inex- adorado por fragmentos. Mas deu-se a superação na unificação,
plicável. E desenvolvimento do latente não pode significar se- passando-se ao monoteísmo. Então a humanidade volveu o olhar
não maturação evolutiva no espírito, isto é, o despertar do ser mais para o alto, deixando a dispersão divina pelo Centro-Uno,
no seio do Deus imanente, como vimos. Mas há mais. É que e, mais amadurecida, pôde compreender melhor a unificação.
tudo isto só se verifica com a técnica das unidades coletivas. Mas não basta. O politeísmo está para o monoteísmo, como este
Logo, esse desenvolvimento do latente e o despertar do Deus para o monismo. Atentemos para este fundamental conceito do
imanente no espírito de cada ser não ocorre senão por reunifi- Uno, e não apenas para o significado que se pode dar a esta pa-
cação dos fragmentos de um sistema desmoronado, senão por lavra, por ter sido usada por esta ou aquela escola filosófica.
irmanação e fusão, em organismos superiores mais vastos e Monismo aqui significa ter compreendido não somente a unida-
orgânicos, dos diversos ―eus‖, em que o Ser-Uno se fragmen- de de Deus, mas também a unidade do Todo, pela qual tudo o
tou originariamente. Podemos então dizer que a lei das unida- que existe forma um sistema único, do qual Deus é o centro.
des coletivas, por nós algures mencionada e demonstrada, nos A vida do indivíduo se torna grande quando ele compreende
prova que a reunificação é o sistema de reconstrução, assim que é, no sentido exposto, o filho de Deus. Grande coisa se torna
quem se reunifica se reconstrói. Eis, portanto, a técnica do re- a organização da sociedade humana, quando é concebida como
torno do Anti-Sistema ao Sistema. um momento do processo de reorganização do universo, que se
Concluímos, agora, com uma grave afirmação, levando até está reconstituindo para retornar a Deus. Eis o grande sentido
às últimas consequências os motivos acima assinalados. As di- teológico que se pode conferir à política e ao Estado moderno. O
ferentes almas individualizadas são fragmentos do Espírito e indivíduo é uma célula sua, e esse Estado é uma célula da hu-
constituem cada individualização decaída em toda forma exis- manidade, que é célula da vida. E ai de quem falsear os valores
tente. O que anima o ser e sem o que não pode haver existência substanciais e usurpar, perante a hierarquia que se inicia em
é a doação por amor do Deus-Criador, que não abandonou a Deus, uma posição que não corresponde aos valores intrínsecos.
criação, mas nela permaneceu em seu aspecto de Deus imanen- Permanece para todos, crentes ou ateus, a imanência de Deus, e
te. Foi dessa doação por amor que nasceram os diferentes espí- quem forja mistificações ou falseamentos experimenta na pró-
ritos, não apenas os incorruptos do Sistema, mas também os pria carne o punhal da dor. Mas nem por isso a reconstrução es-
corruptos do Anti-Sistema. E estes, no plano humano, somos taca. Perde-se o indivíduo, mas o Sistema se reconstrói da mes-
nós, homens, como almas. Quando, pois, chamamos estas de ma forma, porque esta é a Lei. O ser tem de se reconstruir plano
centelhas divinas, devemos subentender fragmentos de Deus. E, por plano. E quando dizemos ser, dizemos a nossa alma, ou seja,
enquanto os espíritos incorruptos permaneceram unidos em centelha de Deus em nós imanente. E sofremos juntamente com
Deus, nós, espíritos rebeldes, ficamos isolados. Cada espírito Deus, porque, em sua profundeza, o nosso espírito é Deus. A
entre nós é um fragmento do Espírito-Deus, que, pulverizado alma sofre em Deus, e Deus sofre na alma.
em nós, no Anti-Sistema, precipitou-se conosco na forma. Eis Mas, cada vez que uma alma se irmana a uma outra, é um
em que sentido nós somos Deuses. E o somos! fragmento de Deus que se uniu a outro fragmento, e um passo
Explica-se, desta forma, por que essas centelhas têm tanta foi dado para a reunificação. O incêndio originário começa as-
fome de unidade, atraindo-se e rejubilando-se quando, superadas sim a reacender-se aqui e acolá pelas fagulhas semiextintas. Ca-
as resistências do Anti-Sistema, conseguem irmanar-se, como da duas chamas que se unem não ardem por duas, mas por qua-
recomenda o Evangelho. E a razão é justamente que, por mais tro. Satanás, força do Anti-Sistema, desesperadamente lança
que a rebelião do Anti-Sistema queira o contrário, elas se sentem água no fogo com a cisão, procurando frear a reconstrução, por-
dispersas, insuladas, e procuram na união recuperar a potência, a que esta significa o fim do seu reino, que é o caos. Mas, ascen-
inteligência, a vida. Por isso a unificação é criadora, pois ela é, e dendo assim, com a elaboração de cada célula e a fusão com ou-
só agora podemos entender, a reconstrução do universo desmo- tras células, as consciências individuais se reorganizam para re-
ronado, ou seja, do Deus-Uno, que se fragmentou em infinitos construir o ―eu‖ cósmico, a consciência do universo. Como dis-
―eu‖ menores e, do Seu aspecto imanente, reunifica-se para semos, cada consciência inferior, em face da superior, é sempre
atingir novamente o Uno, representado por Deus no Seu aspecto de caráter analítico, enquanto a superior, diante da inferior, é de
transcendente. Todo o grande drama do ser decaído pode, assim, caráter sintético. A superior adquire funções de coordenação pa-
resumir-se em duas palavras: fragmentação e reunificação. ra fins mais elevados, antes ignorados. Uma célula se torna dife-
Fragmentação, reunificação! A potência reconstrutora do rente quando faz parte de um organismo, assim como um ho-
Todo é dada pelo mesmo amor que caracterizou a primeira gê- mem, quando integra um exército ou qualquer organização soci-
nese, mesmo quando, na reconstrução, ele devesse assumir o al. Ele então age e produz de outro modo. Há uma sublimação e
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 231
valorização do seu ―eu‖, assim enquadrado em funções mais al- lutivas, já que menos ferozes ele não sabe praticar, e as atuais
tas, flanqueado por outras funções que o completam na colabo- são as de que ele necessita, sendo elas proporcionadas ao seu
ração. Colaborar é muito mais do que trabalhar, quer pelos fins, grau de inconsciência. Porém, quem tem ouvidos para ouvir
quer pelos meios, seja pela unidade coletiva, seja pelo indivíduo. que ouça e quem tem intelecto para compreender que compre-
Quanto mais orgânica se torna a vida, tanto mais altos, vastos e enda, pois que o quadro da visão do ser está completo e é che-
poderosos são os fins que se podem atingir. gada a hora em que a verdade será dita abertamente sem véus,
Com esta orientação cósmica, podemos apreciar o valor de pelo menos aos mais evoluídos, que podem compreendê-la.
cada ato nosso, quer como indivíduos, quer como sociedade. Quem chegar a compreender tudo isto, sabe que é uma eter-
Tudo evolve, e nós evolvemos como indivíduos e como socie- na, indestrutível, centelha de Deus. Sabe também que, no seu
dade, em demanda de sínteses mais vastas, profundas e com- aspecto imanente, Deus está presente em nosso universo, até
preensíveis. Nós, centelhas de Deus, somos os operários de em nossas menores coisas, e que nós não só podemos senti-Lo
Deus para a reintegração do Deus imanente. A nossa vida não espiritualmente, mas igualmente vê-Lo. Se não nos é dado con-
pode ter significação a não ser quando nos colocamos em fun- ceber o Deus transcendente, podemos, no entanto, ver o sem-
ção desta reconstrução. O Deus imanente dorme em nossas pro- blante do Deus imanente, pois que toda forma de existência é
fundezas. Despertando-nos ou ressurgindo Ele – o que é a uma expressão do pensamento e da vontade Dele, é uma mani-
mesma coisa – na profundidade do nosso espírito, reconstruir- festação do seu ser. Certamente, sendo Ele um infinito, nós não
se-á o estado de consciência daquele universo (o Espírito) que podemos limitá-lo no relativo de uma forma particular. Ele
agora jaz no estado de inconsciência em que o homem se en- permanece um infinito e tem, pois, infinitos rostos, que vere-
contra hoje. Isto não significa que o ser, o nosso minúsculo mos expressos em tudo o que é beleza, bondade, floração de vi-
―eu‖, se torne Deus, mas sim que Deus volta a ser qual era an- da e de alegria. Esta é, efetivamente, a manifestação do Sistema
tes do desmoronamento do Sistema. Não somos nós, insignifi- no lado positivo do ser. Esse sistema, tão logo floresce, já é mi-
cantes homens, que de novo nos devemos encher de orgulho, nado pelo Anti-Sistema, negador e destruidor de beleza, de
mas é Deus que em nós deve despertar cada vez mais, a fim de bondade, de vida, de alegria. É assim que tudo se estiola, cor-
que o nosso ―eu‖ desapareça reabsorvido Nele. Por isso, nos rompe-se e morre. Mas o Deus imanente, sendo a alma das coi-
capítulos precedentes, insistimos na atitude a assumir, e que o sas, continua do íntimo delas a manifestar-se numa incessante
místico assume, pela qual o desenvolvimento do ―eu‖ humano floração, e, assim, embora tudo feneça, corrompa-se e morra,
consiste na sua anulação em Deus. Isto porque, compreendamo- tudo de novo refloresce e revive. Desta forma, o Sistema, não
lo bem, não é o nosso ―eu‖ egoísta e separatista, filho do Anti- obstante os contínuos assaltos do Anti-Sistema, venceu, vence e
Sistema, cindido e rebelde a Deus, que devemos desenvolver; vencerá sempre, sendo o mais forte.
devemos, isto sim, despertar justamente o nosso outro ―eu‖, di- Esta é a significação de tudo o que existe em derredor de
vino, que dorme nas profundezas de nosso espírito. Se agirmos nós, de tudo o que nós mesmos vivemos. E, quando o homem
noutra direção, caminharemos, ao invés, para a destruição, e peca, ele se coloca no campo do Anti-Sistema, ao sabor das su-
não para a reconstrução; em lugar de seguir a via: ―fragmenta- as forças, das quais nada mais pode esperar, senão dor. Toda
ção, reunificação‖, seguiremos a oposta: ―fragmentação, frag- vez que praticamos o mal, renovamos a primeira revolta com as
mentando-nos mais ainda‖. suas consequências. E temos de subir até nos havermos reequi-
Concluindo, procuremos penetrar esta estupenda realidade librado na Lei, reingressando na sua ordem, por ter seguido as
em profundidade. Todos os seres são uno, isto é, na íntima es- suas normas de harmonia e de amor.
sência espiritual de todas as individualizações existe uma Somente o homem que sabe tudo isto, compreendendo a vi-
substância que as funde em unidade, pela qual todas elas re- da, orienta-se no Todo, deixando de ser um cego entregue a
tornam ao centro comum, que tudo irradia e tudo atrai, o Cen- forças ignotas, para se tornar senhor de si e do seu destino.
tro-Uno, Deus. No fundo de todos os seres está este centro, no
qual cessa qualquer distinção e a infinita pulverização dos XX. VISÃO SÍNTESE
―eus‖, separados na periferia do Sistema, reencontra a sua
unidade em um só ―Eu‖. Por isto, amando o seu próximo, o Antes de terminar definitivamente esta argumentação, fa-
indivíduo caminha para Deus; por isto a via que o conduz a çamos um seu resumo completo, a fim de que fique inteiramen-
Deus é a unificação. O ser avizinha-se tanto mais do Centro- te claro o nosso pensamento em uma visão de conjunto, em um
Deus quanto mais sente que a sua alma e a dos outros seres panorama sintético, partindo do começo.
são uma só coisa. Assim, pois, evolução, espiritualização e Já vimos que três são os aspectos da Substância, ou três são
unificação caminham paralelamente. Hoje, quem ama a Deus os momentos da Trindade de Deus: 1o) o Espírito: a concepção;
O ama em todas as criaturas, e quem vive em todas as criatu- 2o) o Pai: o Verbo, a ação; 3o) o Filho: a criatura. Todos são o
ras vive em Deus, ao passo que, quanto mais egoisticamente mesmo Deus em Seus três momentos. No primeiro momento, a
se vive, tanto mais se vive distanciado de Deus. criação é concebida; no segundo, executada; no terceiro, acaba-
Não se deveriam dizer estas coisas abertamente ao mundo da. Neste terceiro momento, o incêndio de todo o ser como que
involuído de hoje, porque ele está sempre pronto a dar a elas se dividiu em infinitas centelhas: as criaturas. Temos de recor-
uma interpretação às avessas, satânica. Não se deveria dar ao rer a essas representações antropomórficas, para tornar inteligí-
público a solução dos mistérios obtida aqui por intuição, ina- vel o processo. O que nós, filhos do relativo no espaço-tempo,
cessível pela via racional, solução que deveria ser, pois, natu- apresentamos como uma divisão, deu-se por amor, que é o di-
ralmente proibida. Poder-se-ia repetir: ―não atireis pérolas aos vino princípio da criação. Já vimos (Cap. IV) que foi só e ex-
porcos, a fim de que não as pisem com os pés e se voltem con- clusivamente neste único princípio de amor que se baseou a
tra vós, para dilacerar-vos‖26. Por isto tais coisas são ditas em criação, a ele podendo-se reduzir todos os outros, que nada
livros de complexa concepção, que os cérebros preguiçosos e mais são do que derivação dele. Por criação entendemos aqui a
ignorantes repelem e que a maioria dificilmente penetra, justa- originária dos espíritos perfeitos, e não a nossa atual, que é uma
mente para que poucos as conheçam, mas as possam encontrar deformação daquela. Nessa primeira criação ―perfeita‖, as cria-
prontas quando hajam amadurecido. Ademais, é necessário dei- turas, centelhas em que o incêndio divino se dividiu por amor
xar o mundo de hoje entregue às suas ferozes exercitações evo- (criação), continuam ―Uno‖, porque estão fundidas em um só
organismo unitário – Deus – que se cindiu para dar por amor o
26
Mateus, 7:6. (N. do T.) ser às criaturas espirituais, mas cindiu-se apenas no Seu interi-
232 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
or, permanecendo como um todo orgânico, uno e indivisível, do espírito, energia, matéria, para depois se recompor no trans-
qual as criaturas, espíritos perfeitos, fazem parte. formismo evolutivo: matéria, energia, espírito. (Para nós, seres
Até aqui, a unidade do Deus trino, nos seus três aspectos, decaídos, o espírito é também o ponto de chegada, por isso o
está intacta. A criação puramente espiritual ocorreu no seio do concebemos por último na Trindade).
Todo-Uno, e nele permanece. Deus quis multiplicar-se em in- Somente agora poderíamos chegar a compreender a origem
finitos seres, permanecendo ―uno‖. Com tudo isto, as concep- e a significação das três formas: , , , expostas em A Grande
ções antropomórficas, relativas à nossa posição humana, que é Síntese. Elas, realmente, nada mais são que uma posição inver-
completamente diversa, nada tem a ver e obstaculizam mais do tida e decaída da primeira e originária Trindade perfeita. Fala-
que facilitam a compreensão. Em outras palavras, poderemos mos aqui da primeira criação e também da segunda, sua contra-
imaginar esse processo criador como uma elaboração íntima fação, advinda com o desmoronamento do Sistema após a que-
pela qual um Deus uniforme, indistinto, se transformou em um da, quando vimos (final do Cap. XIII – ―In principio erat Ver-
organismo que, permanecendo ―uno‖, diferenciou-se no seu ín- bum‖), na distinção de Deus-Uno em três momentos sucessi-
timo em elementos diversos, mas tão exatamente coordenados vos, o Seu sacrifício cósmico por amor à criatura, precipitando-
em hierarquias e funções, que mais contribui para reforçar do se com ela e nela, no Seu novo aspecto de imanência, nos antí-
que para demolir a originária unidade de Deus. Poderemos podas da Sua originária transcendência.
conceber esse processo criador como uma passagem, no seio É assim que até ao nosso universo se projeta o originário
de Deus, de um estado homogêneo e simples do Todo para ou- sistema uno da Trindade, conservando o seu esquema originá-
tro, diferenciado e orgânico, fato do qual deriva a estrutura or- rio, em forma de contrafação e inversão, como que contraído no
gânica do Sistema, que vemos conservar esse tipo de esquema sistema cindido, que foi expresso em A Grande Síntese, segun-
em todas as individualizações menores. Essa primeira criação, do a grande equação da Substância, pela fórmula:
puramente espiritual, consistiu, pois, justamente numa trans- =, que exprime a imensa respiração do trans-
formação do Todo em sistema orgânico e hierárquico, princí- formismo do universo. Só aqui poderíamos expor tudo isso, ha-
pio estrutural esse que depois todo ser repete, princípio do qual vendo amadurecido estes conceitos. E somente agora se pode
ele nos põe a prova sob os olhos, demonstrando-nos também compreender o verdadeiro valor dado à palavra Trindade (isto
que todo ser é feito à imagem e semelhança de Deus. Mas a es- é, ), em A Grande Síntese, em que , , representam
trutura orgânica e hierárquica da criação originária não é pro- a projeção invertida – portanto cindida em três momentos di-
vada apenas pela estrutura semelhante que cada individualiza- versos – no Anti-Sistema, da Trindade una do sistema íntegro.
ção do ser repete depois, em ponto menor, mas também pelo Assim desmoronaram também as centelhas de Deus, da cri-
fato de que, nos antípodas, o Anti-Sistema, em que tudo se in- ação de origem, que continuam ainda a animar a criação cor-
verteu, oferece, justamente na maior profundidade de seu des- rupta. Desmoronou, também em parte, o terceiro aspecto, o Fi-
moronamento, as evidentes características do caos. Só assim lho, agora não mais incorrupto, uno com o Pai, mas junto às
este se explica como polo exatamente oposto ao estado orgâni- criaturas decaídas; um momento cindido, que se esforça e sofre,
co-hierárquico do originário sistema íntegro. com a ajuda de Cristo na Terra, Ele próprio Filho de Deus, para
Esta trindade compreende, pois, a primeira criação perfeita reascender à antiga perfeição, como nos aponta a cruz do Gól-
de puros espíritos existentes no seio de Deus. Dela faz parte gota. Compreende-se, deste modo, como Cristo, um dos espíri-
Cristo, Neste sentido é compreensível como Ele seja o Filho e a tos perfeitos – todos são o Filho – conservando-se unido com
terceira Pessoa ou momento da Trindade. Somente assim é Deus, tenha querido fundir-se na dor humana, encarnando na
compreensível que Ele seja Deus e uno com o Pai, que é o Ver- criatura terrestre imperfeita, ou seja, no Filho, aqui não mais in-
bo criador, a ação a que o Filho deve a sua gênese. corrupto e uno com o Pai, mas separado Dele, na humanidade
Até aqui temos, pois, três momentos. No primeiro, o Espí- de seres decaídos, exilados na matéria. Cabia não ao Espírito
rito pensou e concebeu; no segundo, o Pai, ou Verbo, agiu, cri- Santo ou ao Pai, mas ao Filho perfeito, socorrer o Filho imper-
ando; no terceiro, o Filho, íntima multiplicação, por amor do feito, criatura decaída, mas sempre criatura irmã.
Deus indistinto, teve existência. Mas tudo se deu sempre no Por essa razão Cristo nos ensinou a orar: ―Pai Nosso‖, en-
seio de Deus, que assim se conservou ―Uno‖, o Todo, intacto. quanto ele chamava: ―Pai Meu‖, com a mesma palavra que ex-
A referência contínua de Cristo ao Pai, com sentido de unida- prime a mesma relação de filiação perante o Pai comum, pelo
de, o retorno ao seio Dele, após a descida à Terra, nos dizem qual todos foram gerados. Assim, o Filho perfeito, sem culpa,
que os espíritos perfeitos estão sempre em Deus, no Seu tercei- quis permanecer irmão do filho decaído, para redimi-lo e fazê-
ro aspecto de Filho. Até aqui, tudo é Deus e perfeito. Logo lo retornar à antiga perfeição.
Cristo é espírito perfeito, é Deus, mesmo sendo Filho, o tercei- Isto implica a imanência de Deus também em todo o uni-
ro aspecto ou momento. verso, que deve ser dirigido e redimido por uma encarnação
◘◘◘ mais vasta do que a de um só espírito perfeito em favor de
A esta altura intervém um fato novo, acima descrito. Em uma só humanidade, ou seja, encarnação de todo o Filho (ter-
virtude do mau uso que a criatura fez da sua liberdade, ocorreu ceira pessoa da Trindade-Una, constituída pelos espíritos per-
a queda dos anjos. Parte dos espíritos se rebelou contra o Sis- feitos do sistema íntegro), para a salvação de todo o Filho
tema. O nosso universo não é a criação, mas o desmoronamen- (terceira pessoa da Trindade fragmentada, constituída pelos
to da criação, que foi espiritual e se tornou material; que foi de espíritos imperfeitos, pelas criaturas do sistema desmorona-
caráter infinito, mas decaiu na involução de dimensões cada do), de modo que o universo possa assim reerguer-se como
vez mais limitadas. Entendamos bem este conceito, pois que Filho, terceiro aspecto, do estado de Filho decaído e imperfei-
ele pode aparentemente parecer contradição com o que disse- to ao originário estado de perfeição, ou seja, do estado de Fi-
mos no final do Cap. XIII – ―In principio erat Verbum‖. A lho separado ao de Filho-Uno em Deus.
primeira criação, a verdadeira e perfeita obra de Deus, foi a ◘◘◘
espiritual. A nossa, material, é uma segunda criação, posterior Desçamos agora ao nosso universo. Ele, em sentido absolu-
e imperfeita contrafação da primeira. Na material, a originária to, não é o Todo, porque além dele há Deus, nos seus três as-
Trindade, em que Deus permanece Uno nos três momentos, pectos. Trata-se aqui de um organismo imperfeito no seio do
como já dissemos, se subverte em unidade fragmentada, cujos maior e perfeito organismo do Todo-Uno-Deus; trata-se de uma
três momentos: 1) a concepção, 2) a ação e 3) a obra, separam- unidade cindida, enferma, de uma criação destorcida, corrupta,
se em um transformismo sucessivo; primeiramente involutivo: desmoronada na forma-matéria; trata-se de uma criação contra-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 233
ída por involução e que, por evolução, deve novamente expan- Sem este mínimo de prazer (gula na alimentação e sexo para a
dir-se até Deus, de quem tentou destacar-se. Aqui, a originária reprodução), a carne recusar-se-ia a viver, não podendo, conse-
centelha espiritual está envolta nas trevas da forma-matéria, da quentemente, preencher a necessidade de sofrer. Deixemos,
qual deve, evoluindo, ressurgir, libertando-se dela. pois, os ingênuos crerem que viver seja alegria e que dar a vida
Somente assim é possível compreender o nosso universo seja dar alegria. Não! A vida é dor. O seu primeiro objetivo é
como uma contração de , em que o estado cinético evoluir, que é sofrer, ainda que para conquistar a felicidade. É
ondulatório da energia se enclausurou, fechando-se em si necessário viver, mas somente porque é necessário sofrer. Entre
mesmo, no estado cinético vorticoso, gerando a matéria, con- pais e filhos só há um traço de união: a comum dor humana. Ao
centração do espaço-fluido-dinâmico. Houve, assim, o desmo- corpo são concedidos alguns prazeres para estimulá-lo a viver e
ronamento das dimensões, de que nasceu primeiro o tempo e a sofrer. E os ingênuos, que não entenderam a estrutura do Sis-
depois o espaço, que se pôde contrair até ao ponto. Os fenô- tema, acreditam poder basear neles a sua felicidade. Ilusão! Os
menos de nosso mundo, os que a ciência objetiva toma pôr ba- prazeres, tão cobiçados na Terra e pelos quais tanto se luta, são
se e que reputa verdade, são posições contraídas, involuídas, por sua natureza limitados ao bastante para fazer viver e sofrer,
contorcidas e falseadas da verdade, que só se encontra no espí- o que parece uma traição. Mas como o escopo é evoluir, com a
rito em estado de perfeição em Deus. O que a ciência estuda é reconquista da felicidade perdida, deixa de haver traição. Por
o universo desmoronado em dimensões involuídas, é um esta- aqui se vê quanto otimismo há no fundo de nosso pessimismo.
do particular contraído do ser decaído. Somando os totais do cálculo utilitário das consequências de
Fundamentar-se no concreto como em uma base segura e tudo isso em relação ao homem, podemos dizer que, se a posi-
objetiva, denuncia uma fase espiritual involuída, que não sabe ção da criatura em um universo desmoronado é bem dura, por-
conceber senão em função da ilusão dos sentidos, aprofundan- que o seu destino é a dor na obrigatória fadiga de evoluir para
do-se assim nos mais baixos planos de vida, nos planos satâni- redimir-se, todavia, por mais decaída que ela esteja, resta-lhe
cos. E esta é uma razão pela qual a ciência permanece encerra- sempre o dom supremo da existência, que lhe ficou intacto,
da na análise e no relativo, sendo incapaz, pela própria nature- apesar de tudo, além da liberdade de aceitá-lo ou não. Na sua
za, de atingir as grandes sínteses universais com o seu método dor, ela é assistida sempre por aquele amor, permanente e divi-
de orientação. A ciência, fechada com o seu positivismo neste no princípio do ser. Ela pode recusar, se quiser, a existência,
universo, jamais poderá, sem o lampejo intuitivo que lhe revele mas certamente essa recusa lhe custaria o que chamamos de in-
conceitos para ela inacessíveis, compreender e admitir que o ferno, isto é, muita dor, com afastamento de Deus e imersão
mundo que ela aceita por verdadeiro não é senão um mundo às cada vez mais no mal, de modo que ela veria a conveniência de
avessas e negativo. Sem as grandes orientações, acessíveis só mudar de rota, recomeçando o esforço da ascensão. Todavia lhe
por intuição, ela tateia sempre no escuro. resta também a evasão da existência, ainda que não convenha,
Só assim tudo é logicamente inteligível. O egoísmo repre- com a precipitação no vazio. Mas à criatura, mais que essa li-
senta a contração do Sistema, que do infinito se fragmenta no berdade de escolha, reserva-se-lhe o dom da existência, tão
finito, em partes cada vez mais isoladas, isto é, egoístas, quanto grande que, se ele hoje, por causa da revolta e do desmorona-
mais ele se afunda no desmoronamento, na direção de Satanás. mento, significa dor, implica de outro lado a possibilidade de
Os espíritos não rebeldes, que se mantiveram perfeitos, ficaram recuperação, representando um absoluto direito à alegria. Ale-
fundidos em união com Deus. Os espíritos rebeldes fragmenta- gria remota, mas direito inalienável.
ram essa unidade em múltiplos ―eus‖ separados, até Satanás, Eis a posição do homem diante de Deus. Ela é o que é, e
que, no polo oposto de Deus (dualismo), representa a máxima ninguém pode mudá-la. O ser é livre e pode escolher. Há muita
contração do ser no egoísmo separatista. E o retorno a Deus é dor, mas existe a escada para subir, muito auxílio de amor, mui-
um afastamento de Satanás, expandindo-se no altruísmo. ta felicidade no alto. Há igualmente a escada para descer, que
A prisão em que desmoronou o espírito do homem é o seu nos dá uma ilusão de evasão, mas que, ao contrário, agrava a
corpo. Para reascender a Deus, o espírito do homem deve con- dor, até à infinita dor da anulação.
sumir na dor este seu invólucro, feito de carne-matéria, que é a (Só nesse sentido se pode falar de inferno eterno).
sua animalidade, a sua parte inferior, que pertence aos planos ◘◘◘
mais involuídos da existência. Temos vergonha de nossa nudez Quisemos, deste modo, esclarecer melhor e resumir o nosso
porque ela descobre a nossa animalidade, que nos torna seme- pensamento sobre o tema deste nosso livro, Deus e Universo,
lhantes aos animais, e a velamos para esconder e idealizar a em um quadro sintético, que vai de Deus ao homem, numa úl-
nossa miséria. No caminho evolutivo, há luta entre essa anima- tima síntese, que abrange e enquadra no infinito A Grande Sín-
lidade, que se encontra na cauda, e o espírito, que está na cabe- tese, nosso primeiro volume.
ça. A dor é o sacrifício da ascensão, que finda na libertação do
espírito. À animalidade é concedido, contudo, um pouco de
prazer, necessário para induzir a carne a viver. E a sua vida é FIM
necessária, a fim de que possamos suportar essa dor criadora.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 235
A CONDENAÇÃO – Nesta parte, é tratada a questão da
COMENTÁRIOS condenação ao Índex dos dois volumes: A Grande Síntese e
Ascese Mística. Não o apresentamos com espírito ou finali-
PRIMEIRA PARTE – O FENÔMENO dade de polêmica, sentimentos que não existem, em absolu-
to, no ânimo do autor. Se aqui desenterramos e resumimos
PREFÁCIO esta questão espinhosa, é com o único objetivo de uma do-
cumentação exata, feita na forma mais objetiva e imparcial,
Com o presente trabalho, Comentários, apresentamos o com duas finalidades:
1 o volume da ―Introdução à Segunda Obra‖, que chamamos 1) Fornecer aos leitores, reunido neste volume, um comple-
brasileira, porque nasceu e se desenvolveu no Brasil, depois to e preciso material para julgamento, porque é preciso esclare-
que para cá se transferiu seu instrumento humano, em de- cer tudo. Assim poderão julgar melhor, tendo diante dos olhos
zembro de 1952. os mais variados elementos, cujo conhecimento é indispensável
Explicaremos no princípio do 2o volume desta obra, Profe- para chegar a uma determinada conclusão.
cias, como ela nasceu em 1955 e 1954, o seu novo estilo, sua 2) Fixar num livro estes elementos, imparcialmente e sem
significação e conteúdo. preconceitos, de modo que outros, mais tarde, não se apos-
Esta nova Obra surge seguindo o esquema da primeira, de- sem deles, desvirtuando-os, para chegar em conclusões que
senvolvendo o mesmo pensamento em novos aspectos, ao não existem de forma alguma no pensamento do autor. Ne-
mesmo tempo em que acompanha o desenrolar-se da missão nhuma questão que lhe diga respeito ele deixou em estado
por ela expressada e o amadurecimento do espírito de seu ins- nebuloso e à mercê de interpretações alheias. Não são poucos
trumento, assim como do destino do mundo. os casos em que, por espírito de partidarismo, acontecimen-
◘ ◘ ◘ tos como esses são deformados, porque usados como bandei-
Esta segunda obra é a continuação da primeira, com a qual ra de reações e em defesa de ideias preconcebidas. Enquanto
se funde, formando uma obra maior, que representa não apenas o mundo procura reação e polêmica, o autor busca em toda
a construção de um sistema científico-filosófico-ético, como parte compreensão e união. Com esta documentação, deseja
ainda o amadurecimento do destino de um homem que é seu prevenir qualquer tentativa alheia de exploração do caso, pa-
instrumento, e do destino do mundo na hora histórica atual. ra fins particulares, contra esta ou aquela instituição, qual-
Se o leitor, aqui também, não viver esta maturação, dificil- quer que seja ela, pois, de acordo com os seus princípios, ele
mente poderá compreender e recolherá fruto bem mesquinho de não se sente inimigo de nenhuma delas.
sua leitura. Ater-se apenas à estrutura conceptual significa per- ◘ ◘ ◘
manecer na superfície, sem penetrar o sentido destes escritos, Assim, poderá o leitor brasileiro achar neste livro uma his-
que representam a ascese do homem para Deus, o progresso tória documentada do período incandescente da gênese e explo-
são do fenômeno inspirativo do sujeito, história muito diferente
cósmico do ser que evolve; observá-la sem vivê-la, não produ-
desta no atual período brasileiro. Desenvolveu-se ela num am-
zirá fruto. Aqui, não apresentamos literatura nem erudição. Es-
biente em que o Kardecismo era quase desconhecido e os pon-
tes livros foram todos vividos, foram escritos com sangue, dian-
tos de referência e de julgamento eram a ciência, a psicologia, a
te de Cristo, numa vida de tormento e de holocausto, numa hora
metapsíquica, a filosofia, o catolicismo etc. Era esse o ambiente
de redobrada dor para o instrumento e apocalíptica para o mun-
europeu, e o sujeito não podia modificá-lo.
do, ele também pregado, por causa de seus erros, à cruz da dor,
Poderemos, assim, nestas páginas documentárias, reviver
única que o pode redimir e salvar.
esta história, que, mesmo pertencendo ao passado, lança, no
Nestes novos volumes, o fenômeno intuitivo do instrumento
entanto, muita luz no presente preparado por ela e o explica,
– primeiramente enquadrado na mediunidade, a seguir na ultra-
mesmo sendo este tão diverso. História útil para fazer com-
fania, mais tarde como inspiração livre e consciente, que se tor- preender que outra longa e complexa história viveram estes
nou verdadeiro método de pesquisa filosófica e científica através livros antes de entrar no ambiente brasileiro, em que outro
de visões – tende cada vez mais a concluir-se numa catarse bio- mundo se moveram e que outros ambientes os influenciaram.
lógica, em que toda a personalidade do sujeito, ao emergir do História útil para mostrar a dificuldade que existe em incluir
plano normal evolutivo humano, se sublima na dor, por meio do e encerrar exclusivamente no espiritismo kardecista brasileiro
misticismo, que é sua fase final. Portanto a conclusão lógica de uma obra absolutamente universal, reduzindo esta a um sim-
toda a Obra que escreveremos será a ideia de Cristo, assim como ples produto mediúnico e o seu instrumento a um médium
a unificação com Ele é o objetivo final da vida do instrumento. adaptado à doutrina; história útil para demonstrar, a quantos
◘ ◘ ◘ acreditam que o mundo todo seja igual ao seu país, o grande
Procuremos, agora, resumir o significado e o conteúdo do esforço de adaptação que o sujeito teve de fazer para transfe-
presente volume, Comentários. Divide-se ele em três partes: rir-se, material e espiritualmente, para este hemisfério, que
O FENÔMENO – História e crítica. Nesta parte, está re- está, na realidade, nos antípodas do setentrional, tanto física
sumida a história da primeira manifestação do fenômeno, das como espiritualmente.
mensagens mediúnicas de terceiros que acompanharam seu Por isso, no limiar desta nova e Segunda Obra, que pertence
nascimento, além dos estudos críticos da Sociedade Italiana de ao período brasileiro, quisemos, antes de nela entrar, resumir e
Metapsíquica e de outros técnicos a respeito do fenômeno e do documentar o período precedente, concluindo-o com este vo-
sujeito e das relações entre A Grande Síntese e a última teoria lume, que pode assim definir-se como o elo de união entre as
de Einstein. duas, a Primeira e a Segunda Obra.
CRÍTICAS – Nesta parte, recolhemos todo o material aces- Com o volume que a este se seguirá, Profecias, deixaremos
sório, como o prefácio às várias edições das Grandes Mensa- para trás esse mundo passado, a que pertence a Primeira Obra,
gens e de A Grande Síntese, as apreciações e os principais co- e entraremos decididamente no período brasileiro, que constru-
mentários da imprensa. Poderá assim o leitor conhecer o pensa- irá a Segunda em novo ambiente, com novos elementos e psi-
mento dos outros a respeito destes escritos e também, em parte, cologia, trabalho inédito, que, no entanto, é sempre o desen-
uma interpretação sua, procurando orientar-se entre os diversos volvimento lógico e necessário, consequência do anterior tra-
julgamentos. Reunimos tudo aqui, para não sobrecarregar A balho já realizado.
Grande Síntese com outros textos fora de seu próprio conteúdo. São Vicente, Natal de 1955.
236 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
HISTÓRIA DE UM CASO VIVIDO A ideia central da revelação aparecera-me, mas eu ignorava
os pormenores: como harmonizar esse transformismo em seus
Nasci na terra franciscana da Úmbria, em Foligno, a 18 de pontos extremos, como definir as passagens, preencher as
agosto de 1886, às 20:30 h. Era eu desconhecido de Mário imensas lacunas, como tecer toda a trama deste conceito gigan-
Guzzoni Segato, de Turim, quando, ele, baseado na data e na tesco e afirmar tudo em termos exatos, diante de uma ciência
hora do meu nascimento, extraiu um horóscopo, em que me re- cega e inconcludente? No âmago da filosofia indiana, através
tratou com surpreendente exatidão. A primeira sensação de vida da teosofia, eu intuía verdades profundas, mas apareciam-me
humana de que me recordo (teria talvez três anos) foi de vazio e escondidas numa terminologia exótica, que as afastavam de
tédio. Desde criança não me identifiquei com meu corpo físico, mim e de meu mundo.
que sempre explorei como veículo de minha viagem. Parecia- Comecei timidamente a expressar-me num opúsculo que
me estranho e oprimente o vínculo do tempo, que liga os fenô- saiu em trechos na antiga revista Ultra, de Roma, de maio de
menos e seu desenvolvimento em sucessão. Nasci sensitivo, 1928 a dezembro de 1929, mais tarde editado, em 1932, em
tendo no coração, por instinto, o Evangelho; nasci para amar e Buenos Aires pela Casa Editora Constancia: ―Evolução Espiri-
perdoar. É óbvio que, no mundo humano, a vida para esses tual‖ (Veja o volume Fragmentos de Pensamento e de Paixão).
temperamentos só pode constituir um lento martírio. Minha Entretanto, sentia nascer em mim, gradativamente, A Gran-
personalidade era demasiadamente complexa para poder ama- de Síntese, através da lenta incubação de 20 anos. Entendamo-
durecer rapidamente e brilhar superficialmente, seja na escola, nos. O amadurecimento não veio por meio de verdadeiros estu-
seja fora dela. Era medíocre, muito medíocre. Olhava para mim dos realizados, porque sempre li ao acaso e apenas como pre-
mesmo, observava, refletia, e nada me escapava: eu julgava. Era texto para escutar-me. A Síntese não me veio de livro algum,
lenta a maturação espiritual, porque desde os primeiros anos mas surgiu toda do mistério de minha alma. Eu li, é verdade,
sentia confusamente subir em mim mesmo as camadas profun- mas nada encontrei que já não existisse em mim. Reconheci nas
das da consciência. Na escola, estudava apenas para passar nos leituras o que já sentira ser verdadeiro, e repudiei o que já sabia
exames, porque não acreditava naquilo que me ensinavam, e que ser falso. É verdade que, durante alguns anos, escrevi várias
eu sentia truncado, inútil, sem base substancial. A verdade esta- páginas de apontamentos, mas eram caóticos, discordantes e fo-
va em mim, eu a procurava dentro de mim. Rebelde a qualquer ram julgados uma tempestade que ameaça e nunca desaba.
guia, lançava-me aos conhecimentos humanos ao acaso, procu- Além disso, foram escritos quase sempre à noite, motivados
rando secretamente a minha verdade. Narro minha história inte- mais por um impulso interior invencível do que por minha von-
rior, porque a exterior é insignificante. Tive sempre o instinto de tade, num estado de consciência todo especial. Eram meus pri-
olhar o mundo e as coisas por dentro, nas causas e nos princí- meiros exercícios; o impulso me submetia a uma escola de pre-
pios, e jamais nos efeitos e nas utilizações práticas. Da mesma paração e treinamento, para a grande recepção, escola que devia
forma que os volitivos e práticos podem considerar-me incom- formar em mim o instrumento. Aquele manuscrito foi apenas
petente na exploração utilitária da vida, posso eu considerá-los coleta de material e, quando escrevi a Síntese, senti náuseas da-
incompetentes diante da solução dos problemas da consciência. queles primeiros abortos de pensamento e que muitas vezes re-
Minha primeira revelação interior me foi feita ao ouvir meu neguei por completo. Sofrido aquele processo de maturação e
professor de ciências, no Liceu, proferir a palavra ―evolução‖. após alguns anos de inatividade, meu pensamento recomeçou
Meu espírito teve um sobressalto; brotara ao vivo uma centelha, tudo desde o início, seguindo um fio seu, interior, e não outro.
sentira uma ideia central. Tornei-me, a seguir, estudioso de Esta verdade, eu a quis dizer, mesmo arriscando-me aos que
Darwin, mas só para completar seu pensamento. acreditam que eu haja preparado a Síntese através de estudo.
Na Faculdade de Direito, em Roma, disseram-me um dia Venho, ao contrário, demonstrar a verdadeira natureza de mi-
que, antes de agir e viver, era necessário conhecer os princípios nha mediunidade inspirativa e intelectual. Esta, nascida comi-
e orientar-se, sem o que não se poderia realizar com consciên- go, mas mínima, se agiganta com o tempo. Mediunidade a prin-
cia e retidão o mínimo ato. Mas, então, como agiam meus se- cípio rudimentar, intermitente, a lampejos, como se vê pela nar-
melhantes sem sabê-lo? Por instinto, como os animais. Eu esta- ração de meus primeiros anos, porém progressiva, até tornar-se
va, pois, sozinho e em trevas. em mim uma qualidade estável, uma segunda natureza.
Defendi com louvor o doutorado, por ser de tema livre, mas Essa progressividade é a característica fundamental que de-
não acreditava no Direito, nas teorias jurídicas, nem na orienta- fine o meu fenômeno. E isto é lógico e corresponde aos princí-
ção filosófica e científica da época. Antes de doutorar-me, pios da ascensão espiritual das religiões, assim como aos da
aprendi rapidamente, como se recordasse um sonho longínquo, evolução biológica Darwiniana. Portanto a mediunidade, em
o francês, o inglês e o alemão. Realizara particularmente meus meu caso, significa não o fenômeno isolado, sem raízes e sem
estudos de piano. Na música e nos músicos, assim como na arte razões, de manifestação do supernormal, mas de amadureci-
e na poesia, eu acreditava profundamente. Chopin e Wagner, mento profundo e revelação de minha personalidade eterna e de
como Dante e Goethe foram revelações para mim. suas capacidades. Religando-me aos conceitos conhecidos e
Começou a vida. Fiz uma longa viagem aos Estados Uni- aceitos da evolução biológica Darwiniana, eu, na Síntese, con-
dos da América do Norte, até o Pacífico. Casei-me. O turbi- tinuei essa evolução no campo espiritual – pois seria truncada e
lhão das existências exteriores batia sem trégua, reclamando a absurda se assim não fora – harmonizando a afirmação da ciên-
atenção de meu espírito, que, ao contrário, queria viver a vida cia com a afirmação da fé, sustentando a ascensão espiritual.
verdadeira. Acumularam-se as experiências humanas, quase Esta minha progressividade de mediunidade inspirativa é, pois,
todas duríssimas. A dor martelava minha alma; sob seus gol- para mim, um fenômeno biológico normal, porque está coloca-
pes, era feito o amadurecimento. Um dia, à beira-mar, em Fal- do na linha de evolução psíquica que os homens, antes ou de-
conara, contemplando o encantamento da criação, senti com pois, percorrerão naturalmente, enquanto eu me acho percor-
evidência, numa revelação rápida como o raio, que tudo tinha rendo agora, apenas antecipando um pouco a maioria. A me-
de ser Matéria, Energia e Conceito ou Espírito, e vi que esta diunidade intelectual é para mim o estado normal de um futuro
era a fórmula do universo: psiquismo mais sensibilizado, de uma percepção anímica direta
(M=E=C)=S supersensória mais apurada, é uma fase superior de consciência
em que M = Matéria, E = Energia, C = Conceito ou Espírito e S e dimensão conceptual perfeitamente normais na evolução, mas
= Substância. E esta é a grande equação da substância, isto é, o que hoje, na Terra, constitui posição de exceção em virtude do
mistério da Trindade, em que se move toda A Grande Síntese. estado relativamente involuído da raça humana.
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Portanto nada há de anormal, de extraordinário ou milagro- sinceridade e simplicidade, incapaz de definir melhor, para di-
so. É questão de caminho percorrido. Coloquei o problema as- zer: a voz daquele que ouço.
sim, porque assim o vivi e o resolvi. Caminho aberto a todos e Ela mesma me dizia naquela sua linguagem: ―não perguntes
que se percorre através de uma purificação de espírito e de meu nome, não procures individualizar-me. Não o poderia, nin-
corpo, de pensamento e de nutrição, que impõe um regime es- guém o poderia; não tentes hipóteses inúteis‖.
piritual e dietético em que as substâncias psíquicas e físicas de Em outro lugar (volume As Noúres) estudamos o problema
nível inferior, de vibração lenta e grave, devem ser expulsas. da individuação da fonte e da paternidade da Síntese.
Medicina e misticismo devem colaborar neste ponto. Purifica- Avizinhara-se aquela voz, falando-me como falava no
ção que se atinge lançando-se a própria natureza inferior ani- Evangelho a doce voz do Cristo, aconselhando-me e guiando-
mal e seus instintos e paixões no fogo lento do desapego, da me. Mas era interior, pelo menos eu a atingia por caminhos
sublimação e sobretudo da dor. interiores, íntimos. Manifestava-se em mim como uma audi-
A dor sempre teve uma parte importantíssima em minha vi- ção interior de conceitos, num contato tão direto, que estes
da, cobrindo-a, muitas vezes, quase totalmente; e posso afirmar nem sequer eram formulados em palavras. Sem dúvida, era
que ela foi o fator mais ativo na formação de minha inspiração distinta de mim, de minha consciência normal cotidiana, por-
e espiritualidade. Parece impossível, mas foi a dor, mais do que que me guiava, governava, pregava, e meu eu normal seguia e
a cultura, que me esclareceu a mente, que me deu ideias, justa- obedecia; porque surgiam também discussões e divergências
mente porque tudo já estava no fundo de minha alma, e bastava entre as duas personalidades, nas quais meu eu normal cedia
torná-la transparente para que elas aflorassem. sempre, vencido e convencido por uma superioridade esma-
Foi justamente a dor que, aparecendo na forma mais intensa gadora de bondade e sabedoria. E, naquele inverno siciliano,
e profunda, preparou e determinou a passagem desta fase ob- na solidão de minha dor, aquela voz esteve sempre perto de
servada por nós até agora, que pode chamar-se ―preparatória‖ mim, único amigo a sustentar-me a cada passo e a guiar-me
de minha mediunidade, à fase de sua explosão decisiva. É atra- em todos os atos, impondo muitas vezes novas doações e re-
vés da dor que o fenômeno entra no período de sua plenitude. núncias, naqueles pontos em que minha natureza humana não
Essas relações entre sofrimento e mediunidade confirmam mi- o desejaria. Uma correspondência frequente com a Senhora
nha interpretação anterior: trata-se de um fenômeno evolutivo Luísa Carocci Govean, de Turim, está cheia de narrações des-
de mediunidade progressiva, em que o espírito revela seus po- sas minhas primeiras impressões virgens e maravilhosas. Esta
deres interiores através da purificação de seu veículo humano, e Senhora apresentou-me, na primavera de 1932, à escritora
tanto mais claramente se manifesta quanto mais este se torna Laura Lègrange Bussolin, diretora da revista Alfa, de Roma,
sutil e deixa transparecer sua luz. na qual se iniciou imediatamente a publicação das Mensagens.
Estava em Assis, em 1931, quando os maiores golpes me Com efeito, ―Sua Voz‖ sempre teve essa característica: ao
atingiam em cheio. Devo observar aqui que a Divina Provi- mesmo tempo em que ditava a mensagem, abria os caminhos
dência é, para mim, uma força real e sábia, cujos impulsos nas para sua divulgação. E a divulgação foi rápida, pois eu, des-
vicissitudes de minha vida senti continuamente. Se ela, para conhecido como escritor, vi essas Mensagens saírem nos prin-
minha evolução, deixou sempre a porta de meu destino escan- cipais centros do mundo, espalhando-se por sua força intrín-
carada à dor, no entanto sempre dosou as provas, que jamais seca, sem que eu quase nada pudesse fazer para isso.
superaram minhas forças, e, no momento da real necessidade, Era por certo um fenômeno já muito surpreendente para
enviou a ajuda indispensável. Verifiquei que essa força não mim, ser arrastado, sem preparação e de surpresa, por um fio de
quer ociosos; procura constranger ao progresso, mas jamais conceitos que se desenrolavam automaticamente, como por im-
abandona, ainda que dando o auxílio mínimo necessário, para pulso próprio. Agora somava-se outro fenômeno: sua divulga-
que este não seja um estímulo ao ócio. Minha hipersensibili- ção rápida, abrindo-se as colunas das revistas mais longínquas e
dade toca essas forças do imponderável, que parecem inexis- inacessíveis. No entanto eu duvidava, temia enganar-me e pedia
tentes para muitos que não as sabem perceber. Durante o ve- conselhos; mas constantemente, de todos os lados, desde aquele
rão, minha família transferiu-se para o campo, em Colle Um- princípio, só me vinha encorajamento. Nunca uma dissonância.
berto di Perugia, e eu, deixando Assis, a cidade de Francisco, Levantava-se em redor de mim um coro de vozes concordes
que eu tanto amava, abandonando minha casa, ninho de paz, e (veja mais adiante: ―Mensagens mediúnicas dirigidas a P.
afastando-me da família, de que tanto gostava e pela qual con- Ubaldi‖). Da primeira gênese dos conceitos à sua difusão au-
tinuei sempre a velar, caí, pobre e sozinho, no fundo da Sicí- tomática, até à concórdia dos aplausos, movia-se tudo numa
lia, em Módica, triste, destruído. Conhecendo o inglês e di- harmonia que parecia obedecer a um plano pré-estabelecido.
plomado em leis, vencera no verão um concurso e obtivera Todavia eu só tinha conhecimento disso dia a dia, no momento
aquela longínqua cátedra de língua inglesa. Tendo renunciado da realização. O pensamento de ―Sua Voz‖ começava a reali-
aos bens hereditários, tive que ganhar minha vida. Caí num zar-se; surgiam fatos concretos em redor de mim, provas evi-
quarto paupérrimo, entre pessoas ávidas, desprovido de tudo, dentes, e eu me dei conta que havia passado imediatamente do
aturdido, acabado. Só então meu espírito pôde revelar-se. E, campo do pensamento ao da ação.
debaixo do tremendo golpe, explodiu. Foi esse o período dos mais íntimos e afetuosos contatos
Era a noite Santa, Natal de 1931, e minha pena começou a com ―Sua Voz‖, assim como também dos maiores sofrimentos
primeira Mensagem: e isolamentos do mundo. Foi também o período em que se tra-
―No silêncio da sagrada noite, ouve-me. Deixa toda a sabe- çou a rede que me prende indissoluvelmente, há tantos anos, a
doria, as recordações, a ti mesmo, esquece tudo, abandona-te à esta fonte de vida.
minha voz, inerte, vazio, no nada, no silêncio mais completo do Mister se torna contar tudo, para esclarecer o fenômeno e
espaço e do tempo. Neste vazio ouve a minha voz que diz: le- seu desenvolvimento; o fenômeno desta minha mediunidade
vanta-te e fala. Sou eu... Não temas; escreve (...)‖. inspirativa e consciente, progressiva e ativa, porque aqui co-
Aniquilado, eu tremia. Depois levantei-me transfigurado. meçam a delinear-se as características típicas que mais tarde a
Havia em mim uma força nova e eu tinha que segui-la. Final- definirão.
mente explodira minha mediunidade em sua plenitude, e desde Rapidamente, eu fixava nos escritos minhas impressões, a
aquele dia eu firmei ―Sua Voz‖. fim de que não se perdesse nada do que ocorria dentro e fora de
Chamei assim a essa fonte de pensamento, de vontade, de mim. Como continuação da ―Evolución Espiritual‖, publicada
ação e de afeto, que me inundava todo; chamei-a assim, com na revista Constancia, de Buenos Aires, e a seguir em volume
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separado, publiquei na mesma revista, como apêndice ao volu- pobreza, a renúncia, a perfeita alegria de Francisco, que tanto
me, um artigo: ―Experiências Espirituais‖ (veja o volume Fra- amara em Assis. Eram contínuos os colóquios íntimos com Sua
gmentos de Pensamentos e de Paixão), em que estudava objeti- Voz, agigantava-se seu poder, seu amor me sustentava. Conse-
vamente o comportamento das forças espirituais que tão decisi- guira descobrir, fora da cidade, numa colina, mirrada moita de
vamente intervieram, modificando a linha de meu destino. Sen- alfarrobas, que, entre gigantescas figueiras da Índia e muros
tia com evidência que operavam em mim forças superiores e baixos divisores de campos, proporcionavam um pouco de
observava, procurando compreendê-las. sombra e a ilusão de um bosque. Para lá me retirava a orar. Já
Mas tinha que me apressar, porque o amadurecimento se de outra vez, nos suaves campos da Úmbria, em Perúgia, depois
precipitava. Às ―Experiências Espirituais‖, publicadas em de- de uma grande promessa, sentira tão perto de mim o espírito de
zembro de 1931, enquanto Sua Voz já ditava sua primeira Cristo e de Francisco, que fiquei sem saber se suas diáfanas
Mensagem, seguiu-se logo um artigo em Constancia, de Bue- formas corpóreas caminhavam plenamente a meu lado, num
nos Aires: ―Como oí Su Voz‖ (Como ouvi Sua Voz), em feve- trecho de estrada do bosque. Fazia uma prece imensa, à qual
reiro de 1932. O rápido suceder-se dos acontecimentos não toda a criação respondia; anulava-me, para sentir-me renascer
me dava tempo de publicar esses trabalhos, mesmo na Itália. em todas as coisas. Lá escrevi o ―Canto das Criaturas‖, visão
Nesse artigo, expus minhas primeiras impressões, fixando- poética, publicada em Milão e Buenos Aires. A inspiração fran-
lhes as notas básicas. Dizia: ―una voz interior me habla, me ciscana exprime bem minha alma. Hoje, na vida tão diferente
dicta, me ordena de escribir. Siento que me dictará muchas do mundo, muitos podem sorrir deste misticismo. Parece que a
cosas que tendré de escribir‖. Essa publicação era composta sociedade trabalha depressa e com força, a fim de destruir em
de duas partes: a primeira, ―Mi razón‖, observava e explicava seu seio estes sensitivos, dando a vitória aos volitivos imperio-
o que acontecia; a segunda, ―Su palabra‖, transcrevia a pri- sos e egoístas. Mas é um fato: quem mais aparece, menos vale;
meira Mensagem de Natal de 1931. Estava feita a primeira quem mais grita, menos pensa; quem mais se impõe, menos
afirmação. Não podia mais retroceder. sente; quem mais se afoba no campo da atividade exterior, se
Desde o princípio de 1932, saía a mesma Mensagem em ita- acha mais vazio e arruinado no campo das construções internas
liano, inglês, francês, nos principais centros do mundo. Vasta do espírito. Este período das Mensagens pode ser chamado o do
correspondência crescia em torno de mim, em que figuravam sentimento e do coração, ao passo que a Síntese representa o
Bozzano, Schaerer de Bruxelas, professores de Universidade, período da mente e do pensamento. Primeiro calor, depois luz;
médicos, entre os principais expoentes do mundo espiritualista. primeiro amor, e depois vontade; primeiro o coração, depois a
A 1o de junho, escrevia-me Bozzano: ―A Mensagem obtida com inteligência. Sua Voz tocou todo o meu ser humano. Admiro
sua mediunidade provém indubitavelmente de origem transcen- também essa sua riqueza de formas, essa sua plenitude, essa to-
dental, e mais ainda, de elevadíssima inspiração‖. E mais tarde, talidade de seu poder. Período este de profundas emoções. E eu,
a propósito da Mensagem do Perdão: ―Estupendo! Há nela tre- enquanto me abandonava a ele, ia realizando a minha atividade,
chos sublimes em sua grandiosidade única, que provocam qua- sem perceber que desenvolvia um plano lógico.
se um sentimento de sagrada surpresa‖. Eu orava. Naquele refúgio campestre e solitário houve um
E Bragadin escrevia, em sua revista Ali del Pensiero, em fe- dia um colóquio profundo, íntimo, que não sei descrever, en-
vereiro de 1934: ―Enquanto as coisas fortemente queridas e te- tre Sua Voz e eu, de alma para alma, um daqueles colóquios
nazmente preparadas, muito raramente têm no mundo o êxito que não se esquecem mais por toda a eternidade. Chorei. A
merecido, um médium desconhecido, não preparado, cético por vontade que está no centro do universo estava perto de mim,
muito tempo de sua mediunidade, sem meios nem apoio, sem fulgurante e boa; inclinava-se para mim em homenagem ao
nenhum objetivo de interesse, viu em pouco tempo suas men- seu princípio: liberdade e responsabilidade do ser. E pediu o
sagens, numericamente reduzidas, darem volta ao mundo e di- meu consentimento. Mergulhei naquele mar de resplendores e
fundirem-se rapidamente, automaticamente, sem nenhuma in- anulei-me numa promessa incondicional, numa dedicação
tervenção sua, como que dotadas de uma força secreta própria, completa. Respondi: Sim! Desde aquele dia, minha vontade
emanada daqueles trabalhos‖. foi a Sua, e não mais podia desobedecer. Iniciada aquela rota,
E verdadeiramente sentia-me cada vez mais aniquilado e teria que continuá-la até o fim.
tímido, e teria voltado atrás se, ao contrário, Sua Voz não me Eu ressuscitara. Possuía-me a potência dessa nova persona-
houvesse impelido para frente. lidade. O destino flagelava, impassível, com a dor. Era um ven-
Mas abandonemos esta história exterior, de que a contragos- to frio que me enregelava, enquanto no coração ardia um in-
to tive de falar, e voltemos à história interior, menos conhecida cêndio. O amor dos místicos é um fato real, conhecido, tão fre-
e mais importante. A fase preparatória fora superada. Achava- quentemente vivido, que ninguém deve admirar-se disso. Só
me, plenamente, no primeiro período das manifestações, que uma ciência com premissas materialistas e, portanto, incompe-
pode chamar-se das Mensagens. Ele vai do Natal de 1931 à tente nesse campo da espiritualidade pode contentar-se, para re-
Páscoa de 1933 e aqui se fecha para entrosar-se e transformar- solver o caso, com uma negação sumária. Mas também esse
se no que chamaremos de A Grande Síntese. amor tem um seu pudor sagrado, em que se escondem os segre-
A verdadeira história, a mais poderosa e mais trágica para dos mais profundos das leis da vida. E eu me calo.
mim, é a interior. Quem a preparara? Como podia nascer assim, Retomava a primavera. Certa noite fria, entre 9 e 10 de
do nada, um mundo novo, denso de atividades e acontecimen- maio de 1932, pelas duas da madrugada, na hora antecrepuscu-
tos? Não houvera nenhuma preparação visível. Até o verão de lar dos maiores silêncios, acordei bruscamente, por causa de
1931, eu estudara literatura inglesa e alemã, preparando-me pa- uma movimentação insólita de conceitos em minha psique. Li,
ra o concurso a ser realizado. A dor que me golpeara e a pobre- maravilhado, dentro de mim. Tinha que escrever, e escrevi rá-
za a que me havia devotado não eram, de certo, uma preparação pido e com segurança, na sonolência, como quem copiasse um
cultural. Sigamos esta história íntima, em que se encontra a texto, duas mensagens breves, incisivas, poderosas. Uma era
fonte de tudo, das Mensagens e da Síntese; procuremos, agora, para Mussolini, outra para o Sumo Pontífice; pessoais, particu-
permanecer próximos ao princípio genético do fenômeno, de- lares, que eu devia enviar e que diziam respeito a cada campo
pois que lhe observamos os efeitos. de ação política e religiosa (Veja nas páginas seguintes: ―Men-
Estava ainda em Módica, no quente inverno siciliano. Em sagens particulares de P. Ubaldi‖). Tendo escrito, readormeci
torno a mim, insipidez, tristeza e desolação de espíritos selva- no meu cansaço pelo trabalho do dia. Depois, no dia imediato
gens, desolação de campos verdes. Eu obedecia. Realizara a e, enfim, à noite, reli-as. Eram belas. Fiquei maravilhado. Co-
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mo haviam nascido? No dia anterior, ocupara-me de coisas in- tenário das Grandes Mensagens. Essas harmonias só foram no-
teiramente diversas; à noite, até às 23 horas, ficara corrigindo tadas e compreendidas depois que tudo ficou terminado.
exercícios e tirando médias escolares. A coisa tomara-me de Nessas Mensagens – apelos supremos ao mundo – numa
improviso, e agora atemorizava-me a ordem: ―Entrega-as‖. linguagem que seria loucura atribuir a mim, são tratados os
Mas ―como posso fazê-lo?‖, perguntava. ―Os caminhos serão pontos nevrálgicos dos mais atuais e vivos problemas religio-
abertos diante de ti‖, respondia-me a Voz. E, o que é surpreen- sos e políticos, com conexão e desenvolvimento lógico, de
dente, por si mesmos se abriram os caminhos, e as mensagens, modo completo e com um conceito central diretivo que eu,
estas e outras sucessivas, chegaram ao seu destino. O chefe de acompanhando separada e particularmente, só pude descobrir
governo, na Itália, a 2 de março de 1933, agradecia-me publi- depois de tudo terminado. As Mensagens são um apelo direto,
camente e comigo se congratulava por meio do Prefeito de Pe- um toque de recolher, que, harmonizando-se em perfeito equi-
rúgia e do Chefe Municipal de Gúbio, onde então me achava. líbrio entre temporal e espiritual, culminam no problema da
Meus escritos mediúnicos, produzidos de modo tão estranho, salvação espiritual do mundo. Palavras inequívocas dão vivís-
não eram, pois, o resultado de desequilíbrio nervoso. sima impressão – confirmada especialmente pela imprensa da
Após breve intervalo, voltei ao trabalho das Mensagens pú- América do Sul – de tratar-se de uma fonte que, não sabemos
blicas, nascendo então a segunda, a ―Mensagem da Ressurrei- por quais caminhos e de que forma, se prende ao pensamento
ção‖, na Páscoa de 1932. A mesma divulgação rápida. Esta che- de Cristo. E foi isso o que senti. Afirmar algo mais seria audá-
gou, por si mesma, até Saigon, na Indochina, onde foi publicada. cia; quanto a mim, seria presunção. Neste campo, devo humi-
Terminado o ano escolar, deixei Módica e voltei a Perúgia lhar-me, calar, obedecer. Esta fase está terminada. Sobrevive
(Colle Umberto) com a família, no campo, sendo depois apenas o eco dos comentários da imprensa.
transferido em setembro para Gúbio, onde ensinei durante Não finalizara ainda esse período, mas em seu declínio
vinte anos. transformava-se em outro, que vinha sendo preparado desde
No verão, nasceu a ―Mensagem do Perdão‖, no dia do per- 1932. Podemos chamá-lo período de A Grande Síntese. Não
dão da ―Porciúncula‖ de São Francisco de Assis, a 2 de agosto mais sentimento, mas sabedoria; não mais apelo, mas revela-
de 1932. Fui tomado de improviso pela manhã, com tal ímpeto ção. No outono de 1932, conheci a nova revista que surgia: Ali
de emoção, que, entre lágrimas, mal conseguia ver o papel em del Pensiero (Asas do pensamento), de Milão, e seu diretor, Sr.
que escrevia. Escrita, como as outras, de jato, completa, sem M. A. Bragadin. Em mim nasce um impulso gigantesco: reto-
qualquer arrependimento, nítida e segura desde a primeira có- mar a ideia base das Mensagens e desenvolvê-la em profundi-
pia, esta é a mais bela, a mais vibrante e poderosa das Mensa- dade. Essa ideia me domina, me entusiasma e lanço-me ao tra-
gens, e em pouco tempo fez também a volta ao mundo (calcula- balho sem plano algum, sem refletir; ai de mim se tivesse refle-
ram que tivesse aparecido meio milhão de cópias). tido e compreendido o que devia fazer: teria ficado esmagado.
Na Páscoa de 1933, XIX centenário da morte de Cristo, em Sua Voz mandava e guiava. E eu estava calado. Minha natureza
Gúbio, nasceram juntas duas Mensagens: a ―Mensagem aos apaixonada pelo Cristo, por Seu amor, por Sua dor, por Sua
Cristãos‖ e a ―Mensagem aos Homens de Boa Vontade‖. bondade, transforma-se em grande máquina de pensamento que
Fechava-se, assim, o primeiro período das Mensagens. As abarca todo o saber humano, o supera, o contém. Sucede à lin-
revistas me pediram depois outras. Mas elas correspondiam a guagem do sentimento, às horas de emoção (Mensagem), a fria
um plano bem diferente do que a simples colaboração de im- e cortante linguagem da ciência, a hora da profunda absorção
prensa. Não nascem a pedido, mas quando querem. da visão imensa do infinito. Muda o plano de ação. Falo agora
Neste ponto, cabe falar de outra Mensagem, transmitida na ao outro mundo, científico, filosófico, religioso, intelectual.
Páscoa de 1943, após dez anos de silêncio. Trata-se da ―Men- Preciso saber tudo, resolver tudo, mas Sua Voz me orienta, e eu
sagem da Paz‖, escrita exatamente na noite de Quinta-Feira caminho seguro. De Milão, Bragadin escreve-me que conhecia
Santa, no monte sobre o Santo Sepulcro (Arezzo), diante do a médium Valbonesi e que ela havia recebido uma comunica-
Verna1. Apareceu em plena guerra mundial, para fazer ouvir, ção de seu espírito guia, chamado ―O Mestre‖, dizendo que eu
entre o ribombar da destruição universal, a palavra equilibrada devia colaborar por meio de comunicações de ordem científica.
de paz, de orientação, de encorajamento. Nossos pensamentos, encontrando-se sob um guia único, apre-
Após outros dez anos de silêncio, apareceu a última, cha- sentavam coincidência que dava o que pensar. Ainda não co-
mada ―Mensagem da Nova Era‖, no Natal de 1953, no Brasil, nhecia a revista nova de Bragadin, que não me conhecia e mui-
na praia de São Vicente, em Santos-SP. Com esta, fecha-se a to menos sabia da minha maturação, no entanto tudo se harmo-
série das sete Mensagens. nizou com coincidências de ambos os lados, que faz crer terem
Observemos sua harmonia. As primeiras cinco estão dispos- sido criadas para reunir-se.
tas em três anos, de 1931 a 1933, isto é, com a primeira, revela- Sem dúvida, bem estranha coincidência foi esse encontro e a
se Sua Voz, na noite de Natal de Cristo, em 1931, para anunciar série dos fatos, aparentemente casuais, que, no entanto, soube-
a ideia central da Obra; depois um grupo de duas, no ano se- ram convergir para a publicação de A Grande Síntese. Para mim,
guinte, e as últimas duas, unidas como uma estrela dupla, na foi sempre um fato humanamente inexplicável que o diretor da
Páscoa de 1933, XIX centenário da morte de Cristo. Assim, do revista Ali del Pensiero, sempre tão severo e prudente para acei-
seu nascimento à sua morte, completou-se o primeiro grupo, em tar colaborações, tenha tido para mim, desconhecido, a mais ab-
três anos, e, pode dizer-se, em três termos. soluta e imediata confiança e tenha aceitado um trabalho aparen-
Sobre este primeiro ritmo ternário, fundamental, desenvol- temente utopístico, não escrito ainda, mas apenas imaginado, e
ve-se outro ritmo ternário mais amplo; sobre este primeiro gru- tenha empenhado, com tão poucos elementos em mãos, a si
po de base, eleva-se como segundo termo, após um silêncio de mesmo e sua revista, numa obra que poderia ter naufragado após
dez anos, na Páscoa de 1943, a ―Mensagem da Paz‖, e a seguir, poucas páginas. E sua confiança, ainda que ilógica, foi logo total
um terceiro termo, também, depois de dez anos de silêncio, pa- e completa, mesmo depois de lhe haver revelado eu que não sa-
ra concluir, no Natal, como no Natal começara, em 1953, com a bia qual o futuro desenvolvimento do trabalho. Sem essa confi-
―Mensagem da Nova Era‖. Assim, neste segundo e terceiro ança, que tanto me sustentou, não teria tido a coragem de em-
termos, ecoa o primeiro grupo e se fecha e termina o ciclo sep- preender e levar a termo uma obra de tão grande monta.
Comecei, em janeiro de 1933, na Ali dei Pensiero, a publi-
1
A colina do Verna foi onde São Francisco de Assis recebeu os estig- cação de A Grande Síntese, tendo em mente apenas o esquema
mas da Paixão de Cristo. geral. No início, foi publicado um roteiro muito sumário, mas
240 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
abandonei-me ao fio do novo pensamento. Durante quatro anos A médium Valbonesi, em várias mensagens, encorajava-me,
ocorreram regularmente a publicação e a compilação do texto. aprovando e sustentando-me. Uma mensagem de outubro de
Só pude dedicar-me ao trabalho de escrever nos dois meses de 1932, da parte do ―Mestre‖, dizia entre outras coisas: ―Ouves... e
férias de verão, único período em que a escola me deixava livre tu que escutas a ordem, vai e dize aos povos que Cristo ressusci-
e era possível concentrar-me em paz. Utilizei, assim, mais três tou. Serás o apóstolo simples, que opera a caridade em nome de
verões de férias para completar o trabalho: de 1933, 1934 e Cristo (...). Assim diz aquele que envia tua voz ao mundo‖. Mé-
1935. O verão de 1936 dediquei-o a escrever As Noúres. diuns de incorporação e médiuns psicógrafos confirmavam-me
Com A Grande Síntese verificou-se, quase automaticamen- sempre o caminho iniciado. A médium Giselda Smiles, de Ro-
te, o mesmo fenômeno de divulgação que ocorrera para as ma, foi constrangida a mandar-me uma mensagem assinada:
Mensagens. Concomitantemente com a edição italiana, na re- ―The Spirit of Innocence‖, em que afirma uma missão minha.
vista de Milão, surgia a edição espanhola na revista Constancia, Traduzo o texto inglês: ―O Espírito daquele que multiplicou os
de Buenos Aires, e as duas edições portuguesas do Rio de Ja- pães e os peixes está contigo, dentro de ti, em redor de ti. Estás
neiro, no Correio da Manhã, diário de grande circulação, e no agora unificado com Deus, com o bem existente em toda a cria-
Reformador, mensário da Federação Espírita Brasileira, que, ção. Sê fiel à promessa que a Ele fizeste, de seguir Sua inspira-
paralelamente, publicou a primeira edição da obra acima citada. ção. Não temas, pois que és Pedro, a rocha novamente escolhi-
Outras edições se fizeram também na Europa. da, sobre a qual Ele edificará uma nova fundação e Sua ressur-
O novo caminho de A Grande Síntese estava traçado, que se reição, e nada prevalecerá contra ela. Sua Luz derramará Seu
inicia com estas palavras: resplendor em tua mente (...). Em nome do mesmo te abençôo, ó
―Em outro lugar e de outra forma (v. Grandes Mensagens), Pedro, e através de ti Ele abençoa o mundo. (...). The Spirit of
falei especialmente ao coração, usando linguagem simples, Innocence, in the name of † (O Espírito de Inocêncio, em nome
adaptada aos humildes e aos justos, que sabem chorar e crer. de †)‖. Que significam esses rodeios em torno de mim, com
Aqui falo à inteligência, à razão cética, à ciência sem fé, a fim mensagens encorajando-me, provenientes de um ambiente de
de vencê-la, superando-a com suas próprias armas. Foi proferi- médiuns, entre os quais eu era totalmente desconhecido?
da a palavra doce que prende e arrasta para si, porque comove. Paralelamente, Bozzano, indiscutível autoridade mundial
Indico-vos agora a mesma meta, mas por outros caminhos, fei- nessa matéria, acalmou minhas dúvidas, garantindo-me a ori-
tos de ousadias e potência de pensamento, pois quem pede isso gem transcendental dos escritos e aproximando minha mediu-
não saberia ver de outra forma, por faltar-lhe a fé ou por inca- nidade da de Miss Cummins, a médium pela qual se manifesta
pacidade de orientação para compreender‖. a famosa e extraordinária personalidade de Patience Worth. O
Estas palavras unem a Síntese às Mensagens, como continu- professor Schaerer, de Bruxelas, escrevia no Bulletin du Con-
ação de trabalho e de programa. Explicava-me depois, a mim seille des Recherches Métapsychiques que eu era ―um médium
mesmo, estas orientações, em dois artigos: ―Apresentação‖ e extraordinariamente dotado para recepção de comunicações de
―Programa‖, que apareceram na ―Revista Espírita do Brasil‖, ordem científico-filosófica‖. A comunicação de A Grande Sín-
do Rio de Janeiro, em maio e dezembro de 1934, e que foram tese trata de uma concepção monista-naturalista de caráter estri-
inseridos no livro Fragmentos de Pensamento e de Paixão. O tamente científico, cujo valor, indiscutivelmente, ―é muito
plano diretivo continuava, portanto, a desdobrar-se, guiando-me grande‖. No entanto, por outros, A Grande Síntese era definida
e preparando os meios. No volume As Noúres, estudamos o fe- como ―uma nova e completa revelação‖. Em seu volume Espi-
nômeno e os escritos que foram por ele produzidos, olhando-os ritismo Moderno – Os Fenômenos, Trespioli fala a meu respei-
de dentro, como os vivi, para que nos revelassem o segredo da to em várias páginas, que eram publicadas em revista especiali-
técnica da recepção mediúnica inspirativa. Mas, aqui, queremos zada. O mesmo Bozzano me escreveu, em outubro de 1935: ―eu
notar e afirmar a contínua correspondência entre todos estes fa- soubera com que admirável constância e a custa de quanto sa-
tos interiores e exteriores, para lembrar que o subconsciente e o crifício e dispersão de energias físico-psíquicas, conseguira sua
patológico – se alguém quiser recorrer a semelhante explicação nobre finalidade. Não se lamente, pois realizou obra meritória,
do fenômeno – não podem conter a presciência de um plano ló- cujo valor científico, filosófico, metapsíquico aumentará com o
gico, nem podem os fatos exteriores e a vontade alheia concor- passar do tempo... Mas A Grande Síntese é tão densa de pen-
dar em colaborar com eles. Essas concomitâncias, também têm samento, de ciência e de sabedoria, que não é possível pronun-
seu peso científico. Não me dirijo ao público leviano dos nega- ciar a respeito um julgamento sumário, enquanto não for publi-
dores fáceis; falo aos cientistas sérios que, por mil fatos objeti- cada em volume‖. Na carta de fevereiro de 1935: ―... a onda su-
vos, são induzidos à persuasão de que nos circunda um mundo pernormal inspiradora foi a que lhe ditou a mais extraordinária,
imenso que ignoramos e de que nada se pode negar ―a priori‖. concreta e grandiosa mensagem mediúnica de ordem científica
Há outras concomitâncias menores, mas comprobatórias, e que se conhece na casuística metapsíquica‖.
que me incitaram: médiuns longínquos, desconhecidos, que Não é para engrandecer-me que recorro a estas citações,
apareceram num átimo em meu horizonte, só para dizer-me pa- mas para dar-me o apoio moral que necessito no meu trabalho,
lavras de confirmação e depois desaparecerem. Quem os mo- em que apenas tenho fadiga; para aliviar um pouco a grande
veu? Tenho que contar tudo, ainda que a simples título de crô- responsabilidade moral que, sem dúvida, assumo; enfim, para
nica, deixando toda apreciação ao leitor. A médium Marjorie I. esclarecer melhor, com julgamento de quem é mais sábio do
Rowe, em junho de 1932 recebeu uma mensagem dirigida a que eu, este estranho fenômeno de mediunidade, esta vida no
mim, de ―Imperator‖ (veja-se nas páginas seguintes: ―Mensa- imponderável, em que já agora me movo habitualmente, tão in-
gens mediúnicas dirigidas a P. Ubaldi‖), e a endereçou-me para tensa que entontece um homem normal.
Módica. Como me achou? Nela me confirmava todo o trabalho Nestes casos, para não se perturbar, é mister tal força ner-
que tinha de fazer, acrescentando, como prova, revelações de vosa, tal equilíbrio moral e tal objetividade científica, que nem
pormenores íntimos, que só eu sabia e que era absurdo que uma sempre se encontram no tipo médio. Isso porque, nesse mundo
pessoa desconhecida, em Londres, pudesse imaginá-los. Falava de realidades materiais, eu tinha que permanecer objetivo. No
do lugar acima descrito, em que eu me retirava no campo para entanto iniciei a obra A Grande Síntese num estado de comple-
orar, incluía palavras em que eu reconheci meu pai, já falecido, ta confiança para com o invisível, abandonando-me a um fio
e me predizia: ―(...) a desordem do mundo faz parte daquilo que condutor que também se poderia ter rompido; empenhei-me
escreverás (...). E uma entidade mais alta concluía: Sejas aben- moralmente a desenvolver um programa imenso, só sabendo
çoado, meu filho, que ouviste minhas palavras‖. com segurança que dispunha de muito pouco tempo e de pou-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 241
quíssimas forças. E, coisa única para um escritor ainda não co- MENSAGENS PARTICULARES DE PIETRO UBALDI
nhecido, quatro editores se empenhavam, de um hemisfério a
outro, na publicação em larga escala, antes que eu escrevesse o As duas mensagens particulares mencionadas no capítulo
texto, antes que eu mesmo pudesse imaginar exatamente o que ―História de um caso vivido‖, neste volume, dirigidas uma ao
haveria de escrever. Mas esta certeza de divulgação, o empe- Pontífice e outra a Mussolini, foram escritas de improviso na
nho que me prendia, a certeza de que cada palavra escrita seria noite de 9 de maio de 1932 e a eles remetidas. Esta última foi
publicada sem modificações e seria ouvida no mundo, tudo is- entregue na tarde de 5 de outubro de 1932 ao destinatário, que a
so só podia impelir-me ao esforço intenso, realizado enquanto leu. Seu conteúdo e estes fatos estão documentados em cartas e
um trabalho ingrato para ganhar a vida me sufocava e atordoa- pela imprensa de então. A estas seguiram-se outras. Eis algu-
va meu espírito com barulheira absurda. Minha fé, a fé dos mas frases mais importantes:
editores, a fé de quem me compreendera me sustentavam; ―(...) Trata-se de ajudar a nascer a nova humanidade que
sempre é a fé a base da criação de tudo. nascerá da conturbação do mundo (...). Evita com todas as tuas
Agora, eu amo a Síntese como uma criatura que veio de forças qualquer guerra. Não há razão humana que possa justifi-
Deus, mas que pôde nascer aqui só através de minha dor e de car hoje uma guerra, que, com os meios modernos de destrui-
meu amor, a criatura pela qual daria a vida, para que triunfe. ção, poderá ser uma destruição tão grande, que assinalará o fim
Escrevi esse livro com meu destino, e ele jamais será cancela- da civilização europeia e atrairá a invasão asiática, forçando a
do, por toda a eternidade; essa é a produção que me valoriza to- emigração, após tremendos cataclismos, para as Américas (...)‖.
talmente; por sua causa, não vivi em vão; ele é o pensamento e Outras continham certas frases proféticas, como estas:
a paixão em que meu pensamento e minha paixão sobreviverão ―(...) O momento histórico está maduro para grandes acon-
à minha morte. Admiro e exalto esse livro, como se pode exal- tecimentos (...). Soou a hora histórica, porque hoje fala a dor. É
tar a obra de outra pessoa, apenas pela alegria de sua beleza, no grave o momento histórico, porque a dor falará ainda tremen-
entanto há nele muito de mim, porque nele me empenhei todo damente, como nunca (...). A civilização europeia, que é a civi-
inteiro. A verdade é que ele é um penhor de aliança entre mim e lização cristã, ameaça ruir (...). A presente tranquilidade apa-
as forças superiores; ele é o sinal que permanecerá da passagem rente é a calma que precede as grandes tempestades (...). Hoje o
delas por mim e de nossa união secreta, é o cadinho de fusão de mundo joga tudo por tudo (...)‖.
almas. No silêncio de meu gabinete, ninguém poderia traçar a Estes conceitos confirmam os extraídos de outros trabalhos
gênese da Síntese, nem saber a técnica particular de minha re- e mensagens, reunidos no Capítulo XVIII, ―Comentários e pre-
cepção; e eu teria podido facilmente fazer passar o livro como visões‖, do volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio.
obra de minha sabedoria. No entanto aqui estou a humilhar-me Citamos, enfim, alguns conceitos de A Grande Síntese, para
diante da fonte de meu pensamento, porque isto é mais verda- esclarecer àqueles que quiseram ver aqui espírito partidário,
deiro, é maior, é uma potência que supera toda afirmação hu- enquanto, ao contrário, trata-se de princípios gerais da vida,
mana. E, se deixo louvarem e se louvo a Síntese, é para oferecer aplicáveis a todos os tempos: ―São as forças biológicas, que
este novo tributo àquela fonte a que tudo devo, após ter-me ofe- conferem o poder, as mesmas que o tiram logo que termine a
recido a mim mesmo por inteiro. sua função‖, Cap. XCIX – ―O Chefe‖. ―(...) As forças biológi-
Só se podia realizar aquele trabalho apoiado no sentido de cas não garantem o homem, mas a função, e o derrubam logo
missão, na força que vem apenas da pureza de intenções e no- que ele não mais corresponda a ela (...). Por isso a história sem-
breza de objetivos, numa paixão pelo bem. As finalidades hu- pre chama os seus homens (...); rejeita-os sem lamentações logo
manas não têm o poder de manter a tensão necessária ao esfor- que cesse sua função, ou então logo que caiam no abuso ou na
ço para sustentar o espírito naquela atmosfera; as compensa- fraqueza (...). Só quem tenha substância de valores intrínsecos
ções humanas tornam-se irrisórias, desproporcionadas a um sabe compreender e constranger as forças que o circundam, ao
trabalho em que se empenham todos os recursos da vida e se invés de ser arrastado por elas (...) Assim Napoleão foi jogado
navega no infinito. Quando somos tocados por esses aniquila- fora pelo destino como um trapo, logo que esgotou sua função‖
mentos sublimes da mão de Deus, não mais se pode caminhar (...), Cap. CXVI – ―Concepção Biológica do Poder‖.
pelas tortuosas estradas humanas nem mais pensar em si mes-
mo. Logicamente não tenho merecimento por isso. O ser fica MENSAGENS MEDIÚNICAS DIRIGIDAS
mudado após esses anos de contato com o infinito. Quem tre- A PIETRO UBALDI
meu sozinho diante dos abismos do mistério em novos estados
de consciência, superou as dimensões de nosso universo e teve Trechos de mensagens mediúnicas recebidas pela médium
uma visão direta da verdade, não pode novamente descer à vida Gisela Smiles (Via Aureliana, 63 – Roma) e transmitidas a Pie-
normal, mesmo se for constrangido a viver nela e a servir-se de tro Ubaldi, em Gúbio (tradução do inglês).
sua psicologia, sem dar a seus pensamentos, a seus atos e às ―Pedro, a luz do Espírito Santo te ilumina. Assim diz o
coisas um valor diverso. A visão foi vivida e permanecerá eter- Espírito.
namente em minha retina. ―Pedro, o Espírito de Cristo vive em ti, e tu te tornaste com-
Hoje, tudo isso constitui uma recordação, em que novamen- pleto porque ele afastará o mal do teu centro e de tua família. O
te mergulho para vivificar-me. A grande hiperestesia superou Espírito daquele que multiplicou os pães e peixes está contigo,
seu clímax. Aquela primeira fase foi vivida, mas ainda conti- dentro de ti e de tudo em redor de ti, aumentando em ti a subs-
nua. Sobrevive como que um eco daquele trabalho realizado e o tância e te provendo de todas as tuas necessidades. Estás agora
desejo intenso de progredir cada vez mais no caminho iniciado. unificado com Deus, com o bem existente em toda a criação, e
Agora, a Síntese pertence ao mundo, a quem a ofereci. Em mim sua vontade para ti é prosperidade e bom êxito. Pedro, tu és rico
permanece a expectativa obediente, porque do mistério do ser porque teu Pai celestial é rico. Não és governado por nenhuma
continuarão a nascer ordens e auxílios para que a missão seja lei de temor, doença, limitação ou falência. O princípio do bem
desempenhada até o fim. te governa, a ti e a tua vida, providenciando tuas necessidades.
Neste capítulo, delineamos com sinceridade total a história Lembra-te que, para os que o amam, todas as coisas cooperam
interna e externa do fenômeno, no período de sua gênese e em para o bem. Sê fiel, pois, à promessa que fizeste: seguir suas
seus primeiros desenvolvimentos. É a história daqueles primei- inspirações; então, e somente então, a vida será tão clara como
ros anos, escrita na Itália, em ambiente tão diferente do atual o meio-dia; mesmo se houver escuridão, ela será mais clara que
brasileiro, história que no presente volume documentamos. a manhã. Não tenhas ansiedade por coisa alguma.
242 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
―Porque és Pedro, a rocha de novo escolhida sobre a qual ―A prova de fogo supera-a e mantém-na. As centelhas do
Cristo construirá Seus novos fundamentos e Sua nova ressur- Eterno descem agora; apanha-as como se apresentam. Leão!
reição, e nada prevalecerá contra ela. Sua luz derramará seus Leão! Não fiques pasmado! És tomado como instrumento não
raios em tua mente e está iminente em sinal exterior que te será inconsciente, mas consciente da missão. Confia, porém, Naque-
dado: verás com os olhos internos. Ele revelará a ti teus verda- le que opera.
deiros recursos espirituais, e te alegrarás imensamente em sua ―Abraço-te‖.
generosa bondade. Sê, pois, fiel a Ele e não temas nada. Mensagem recebida em 7 de abril de 1935.
―Eu, o Espírito Inocência, em nome de †, ao nosso amado ―O porvir espiritual é o eterno presente que pulsa. Quando
Pedro‖. os braços eternos envolvem, só uma coisa se deve fazer: aban-
Mensagem recebida em Roma, em julho de 1932. donar-se. Tu, filho do Pai, colocado no enredo do tempo, so-
―(...) Sê forte e não duvides. Foste guiado nas grandes estra- fres necessariamente as contorções da vida humana. E o marte-
das da luz e da justiça. Teu objetivo é olhar em frente, para a res- lo ―tempo‖ que bate, quebra as energias e quase as quer destru-
plendente meta que sem dúvida atingirás (...). Lembra-te da cer- ir. Mas sabes que outro martelo poderoso bate continuamente
teza de que Sua Voz te deu. Vive contente, para que não se perca, para consolidar a estrutura de tua alma. Não perguntes: o que
nem te venha a faltar, ainda que seja a menor partícula da sabe- farei? Já te disse: abandonas-te em Cristo. Receberás outras
doria que te envolve de todos os lados. Não temas, mas deixa ordens. Repetir-se-á a ti o ‗vai, Francisco, (...). Restaura minha
resplandecer toda a riqueza da coragem dos santos em teu rosto, casa‘ (...). Portanto, restaurarás o que o Eterno disser. Teu re-
como um sol flamejante. Sê poderoso com a grande energia das fúgio é inabalável, um nicho luminoso espera-te; é a fulgura-
forças que são enviadas para tua renovação, pelo supremo amor ção de Cristo Jesus, o Ressuscitado, Aquele que está com o
(...). Se foste escolhido, por que temes? E por que caminhas tre- Pai, Aquele que está no Pai e é Pai de amor. Podes gritar, pois:
mendo? Acaso te abandonará ou deixará de proteger-te o Centro tenho uma casa que é um palácio, pois o Eterno aí colocou seu
da Luz Maior? (...). Tudo o que te foi dito é, e jamais será pisado ouro. Esse ouro chama-se a verdade!‖
e ridicularizado pelas almas que conhecem a realidade da vida Mensagem recebida em 13 de outubro de 1935.
eterna. Deixa os outros que ainda estão vivos na Terra e não nas- ◘ ◘ ◘
ceram pelo espírito, rirem em sua ignorância e zombarem de ti. A ―E agora digo a ti (Pietro Ubaldi): Amigo, da aspereza saíste
noite deles já passou, e está próxima a aurora do nascimento es- renovado, da fadiga saíste para entrar na obra eterna. O mundo –
piritual; então compreenderão e verão a luz que agora rejeitam, por necessidade humana – te reterá durante o tempo em que de-
porque não são capazes de discerni-la, e ainda não é chegado o ve ser dada tua contribuição de homem. Tomou-te o Eterno, ba-
seu tempo. Fica tranquilo e sente a eterna presença daquele que é tizou-te com Seu fogo, e a chama está acesa; chama de filho tra-
balhador. Por vezes, arderás consumindo-te dentro do próprio
nossa vida e nosso sol, a vida e o sol de tudo o que é criado. Em
calor desse fogo; gritará tua carne pelas queimaduras, enquanto
nome do mesmo, eu te abençôo, Pedro, e, através de ti, ele aben-
o espírito cantará os louvores do Eterno. Revestirás o pensamen-
çoa o mundo, com o poder de seu amor espiritual.
to que chega a ti com a palavra que o Eterno colocar em tua
―Eu, o Espírito Inocência, em nome de †, ao nosso amado
mente, e daí a passarás aos homens, que são muito duros de ou-
Pedro‖.
vir. E assim, viandante amado, continuarás o teu caminho.
Mensagem recebida em Roma, em 26 de dezembro de 1932.
―(...) Não ficarás isolado; os poucos, os amados do Pai, vi-
◘ ◘ ◘
rão a ti sempre. Acharás almas compreensivas. Arderás, mas
Trecho de Mensagem mediúnica recebida pela Senhora não consumirás a parte intrínseca. Quando o mundo tiver entra-
Marjorie I. Rowe (35, Lindore Road, London, S.W. II – Ingla- do na fase de maior dor, mais do que nunca hás de gritar a to-
terra), da entidade ―Imperator‖, em 12 de junho de 1932, para dos: ‗néscios, não ouvistes! O aviso foi dado a tempo, lamentar
Pietro Ubaldi e transmitida a ele de Londres, sem ser solicitada, agora não adianta‘. Haverá um átimo de possibilidade de reco-
e sendo ele desconhecido da médium. Tradução do inglês. meço, e tu o dirás, enviando tua palavra para cá e para lá, nos
―(...) Há uma grande luta em redor de ti (...). Deves liquidar pontos designados pelo Eterno. Envolve-me em Meu Amor de
dúvidas nas mentes de muitas almas que necessitam de chuva es- Amigo; usa de Mim, Eu te estou próximo‖.
piritual no árido deserto de suas vidas (...). O Cristo aparecerá em Pergunta de P. Ubaldi – ―És tu a Sua Voz?‖.
toda a Sua Majestade aos que prepararam suas vestes nupciais Resposta – ―Eu Sou Aquele que Sou, amigo, e tu o sentes.
(...). Amigo, o ‗maelstrom‘ (o vórtice) das condições mundiais Sentir-me-ás, assim, um pouco mais materialmente, porque
faz parte do assunto sobre que escreverás. Assim fui mandado desço entre os homens que estão em luta. Não podes parar, tu o
para dizer-te. E já registraste muitos pensamentos a esse respeito. sabes e o vês; a hora é intensa. Rever-nos-emos, rever-me-ás,
Desejo dar-te ulterior mensagem de amor e aproveito este ensejo mas não assim; ver-me-ás como luz e, quando me vires, tua al-
para entrar em contato contigo (...). Minhas palavras são de vida ma ficará queimada. Mas isto não é dor – é glória. Permanece
e são a essência da Graça Divina. Sou a voz que fala das belezas na humildade, na simplicidade, e deixa que o mundo espiritual
do universo, do Reino de Deus na face da Terra, ainda que os em convulsão, grite. Tu permanecerás firme, lembra-te...‖.
homens a considerem uma arena de lutas. Bendito sejas, meu fi- Pergunta de P. Ubaldi – ―Quem sou eu?‖.
lho, que ouves minhas palavras. Cristo abençoe a ti e a mim‖. Resposta – ―Quem és? Donde vens? Qual é tua passagem
◘ ◘ ◘ mais intensa? Eu disse uma vez: Leão, mas és alguma coisa
Trechos de Mensagens mediúnicas recebidas pela médium mais dentro de ti mesmo. É preciso retroceder no chamado
Bice Valbonesi, de Milão, para Pietro Ubaldi, transmitidas pela tempo, e então te recordarás de ter-me visto, de ter-me ouvido,
entidade ―O Mestre‖. de ter-me amado‖.
―Ouves (...). Obra conscientemente, como homem que sabe Pergunta de P. Ubaldi – “Como e quando Te vi?‖.
muito; usa a sabedoria. A fonte inspirativa que possuís te diz Resposta – ―Neste momento não podes orientar-te; tornarás
tranquilidade. Eis que a voz diz: os mortos estão ressuscitados. a pensar nisso e te acharás de novo. Por que perturbar-te então,
E tu, que ouves a ordem, vai e dize aos povos que Cristo res- se as pegadas são claras? Muitas coisas ignora o teu eu quando
suscitou (...). Serás o apóstolo simples, o que faz a caridade em está fechado em ti mesmo. O que não sabes e não assimilaste,
nome de Cristo (...). Eis teu trabalho; procura os necessitados e desfolharás, assimilarás e então te acharás‖.
feridos pelo peso da vida e dá a eles o pão. Assim diz aquele Pergunta de P. Ubaldi: – ―Também caí mais em baixo?‖.
que manda a ‗Sua Voz‘ ao mundo‖. Resposta – ―Por isso te disse: ressuscitaste. Pagaste e estás
Mensagem recebida em 19 de outubro de 1932. pagando. Deves servir ao Eterno e então, servindo ao Eterno,
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 243
tornar-te-ás instrumento de eleição. Todas as vezes que titubea- tunidade para revelar-se, porque o nativo tem mais merecimen-
res e estiveres para precipitar-te, Eu virei ao teu encontro (...)‖. tos e qualidades do que ele mesmo sabe. É um pioneiro em
Pergunta de P. Ubaldi – ―Por que fui escolhido?‖. qualquer coisa por que se interesse. É afirmativo, independente,
Resposta – ―Francisco dizia: ‗Por que eu? Por que eu? Por ativo. Terá fama durante a vida. Dentro de três anos, fatores físi-
que eu?‘. Repete-o também tu, com a mesma dedicação, e então cos e psíquicos se harmonizarão e Deus falará nele.
verás que o Eterno, para maior confusão dos homens, escolhe ―(...) Seus companheiros são Jesus e João. Ele estará ligado
seus instrumentos entre eles. Dá graças ao Eterno‖. ao despertar da humanidade. Deve unificar-se com Deus através
Pergunta de P. Ubaldi – ―Mas eu não me sinto digno‖. da dor. É um espírito doente que, numa vida precedente, deso-
Resposta: – ―Por que queres repeti-lo ainda? Sabes que o bedeceu ao Eterno, perturbando as leis de amor, de harmonia e
Eterno vai e procura a ovelha transviada: os justos já estão sal- de compaixão, e que deve sofrer para recuperar o equilíbrio per-
vos. É o pecador que o Eterno procura, é o doente que precisa dido e servir para regressar à luz que se tinha escurecido‖.
de médico, é para ti que vem o Seu amor‖. O mesmo Senhor Mário Guzzoni Segato colocou em mãos
Pergunta de P. Ubaldi – ―Que acontecerá comigo?‖. da Senhora Pia Reggidori uma carta de Ubaldi e teve a seguinte
Resposta: – ―Não temas. Não podes vê-lo, ainda que te es- resposta mediúnica (em transe), ditada ao senhor Segato e diri-
forçasses. Não ergas um muro diante de ti, mas quando estiveres gida a Pietro Ubaldi, por uma entidade não identificada:
para cair e tiveres medo de bater, então o muro cairá. Vês que ―Quem és tu? Vejo-te no deserto, com as mãos voltadas pa-
não tem limites o campo que deves arar; então trabalha (...)‖. ra o Sol, cheio de aspiração a Deus, com uma sede insaciável
Mensagem recebida em 5 de março de 1937. de amor divino, longe da vida e das coisas. Vestes um hábito
―(...) E Pedro, que fará? Há ainda algumas perplexidades a branco e estás desfigurado; tens imensa sede de amor. Amas o
superar. Vencer! Vencer! Arrancar os tentáculos que refreiam Cristo e o invocas. És profeta da Palestina. Esta sede da tua vi-
os passos, para que, quando vier o dia de prova para Pedro, ele da te persegue; aguardas, é um tormento. Mas o Deus que invo-
não venha a repetir: Senhor, não Te conheço! O selo está posto. cas tanto está em ti e te dirá várias vezes: ‗estou aqui‘ (...). A
Ai de quem o romper antes que chegue o anjo!‖. matéria te pesa porque a renegaste, mas, ao invés, Deus quer
Referindo-se a Pietro Ubaldi: ―Não indagar muito sobre ti luz através dela (...). Muitos homens voltarão a ti e tu voltarás
mesmo; humilha-te. Renascerás por virtude substancial. Disse como profeta (...). Cristo e João são teus amigos‖.
aos maus: sois usados como instrumentos, quando o espasmo ◘ ◘ ◘
da humanidade tiver chegado à convulsão. Assim te digo: o Trechos da mensagem mediúnica (ultrafânica), ditada e ta-
nome não tem importância, é a ação que cinzelará sobre ti a fi- quigrafada em presença de Pietro Ubaldi, recebida pela Senhora
gura, é a ação que fará de ti o servo do Senhor. Reedificar de M. Guidi (Via Labicana, 134, Roma), em 14 de julho de 1946,
acordo com a ordem, erguer as colunas minadas na base. O de uma entidade não identificada:
cristianismo está a descoberto, entre o céu estrelado e a Terra ―Irmão, que chegaste de longe, eis que te digo, em verdade,
ameaçada. Então, soldado de Cristo, não terás espada; terás fo- que estas palavras não são novas para ti, que vibras sem cessar.
go e o vomitarás segundo a Vontade Eterna. Enquanto aguar- Acreditas, às vezes, que seja teu cérebro que as recolha; elas,
das, purifica-te; deixa falar os que estão a teu lado, mas não ve- porém, são luz, a minha luz mesma que desce sobre ti e que,
em nem ouvem! Aguarda! Repito-te: a rede está pronta; lançá- através da palavra e da pena, tu transmites. Muito fizestes, mas
la-ás onde te for indicado; não por alucinação, mas pela reali- estás apenas no início de tua tarefa; muitas verdades foram por
dade (...). Não é hora de repouso; trabalha para o Eterno, e a ti compreendidas, muitas daquelas verdades que transcreveste
mercê descerá do céu. Por isso estás vinculado àqueles que são são justas e, se os homens te ouvissem totalmente, então tería-
também os meus escolhidos. Não poderás voltar atrás, não po- mos o início de uma nova era de fé, que prepararia a nova alma
derás escapar. Para e ouve-me! A Voz continuará‖. luminosa, que será verdadeiramente transmitida aos homens de
Mensagem recebida em 25 de abril de 1937. amanhã (...). Não temas, porque os homens não poderão fazer-
◘ ◘ ◘ te mais mal do que já te fizeram (...). E digo-te: Pedro, tu tam-
Julgamentos a respeito de Pietro Ubaldi, tirados do horós- bém és pedra milenária da nova fé que arrastará os homens de
copo que lhe foi enviado em abril de 1935, sem ser pedido, pelo amanhã. Escreve; receberás ainda mais profundamente, com
Senhor Mário Guzzoni Segato – Via Saluzzo 23, Turim – que harmonia infinita. Lembra-te de que os acontecimentos urgem e
não o conhecia, nem sabia nada sobre ele. tu o predisseste; tu o sentes (...). Deter essa onda de ódio que
―Pietro Ubaldi, nascido a 18 de agosto de 1886, às 20h e envolve a humanidade é a tarefa de teus escritos; não pares,
30min, em Foligno, L. 42o57‘. Tipo zodiacal: Áries, com in- mas, ainda hoje, lança tuas mensagens (...). Em verdade, não
fluência de Leão. Tipo Planetário: Marte-Lua. Planetas domi- pares (...). Continua. Continua. Preciso de ti (...). Olha que, den-
nantes: Saturno, Urano e Júpiter. Aura: vermelha brilhante. tro em pouco, outra tentativa será feita, a fim de parar tua pena.
―(...) O princípio vital da força solar que passa pelo Leão, Não pares, não temas. Estou perto de ti e te darei tal força, que
torna-o de bom coração e generoso. Profundas emoções e cons- teu ser físico melhorará. Estás ainda cansado e esgotado‖.
tantes procura de harmonia (...). Caráter interiormente generoso, ◘ ◘ ◘
sincero, ardente, perseverante e muito inclinado a aperfeiçoar- Mensagem transmitida, sem ser solicitada, a Pietro Ubaldi,
se. Há um grande amor pela justiça (...). Educado, não combati- pelo Professor Salvato Carmicelli (Rua Prof. Gabizo 295, Rio
vo, mas persistente, será quase irremovível nas próprias opini- de Janeiro), recebida em 28 de setembro de 1946, de uma enti-
ões. Tende ao ocultismo, inclina-se para o lado místico da vida, dade não identificada.
tem os meios para descobrir o encanto do destino dos homens. O ―(...) Diga a Pietro Ubaldi que sua missão é de transmitir
Sol testemunha esplêndidas qualidades mediúnicas, mas estas se ao mundo os prolegomenos da Nova Era. A Grande Síntese é
resolvem através de terríveis sofrimentos, com dores e penas obra ditada pelo alto. É realmente a voz do todo que fala. Ele
verdadeiramente tantálicas. O nativo pode adjudicar-se uma co- é um instrumento e, como tal, tudo deve fazer pela divulgação
lossal máquina psíquica, que entra em ação através da dor. Dor de todas as outras obras. Elas constituem os novos livros da
física, que pode dizer-se aparente, se bem que tremenda, mas na Nova Era. Vários são os canais (...). Trata-se de erigir o edifí-
realidade será um bem. Tendência ao isolamento e à solidão, cio de um mundo novo. Pense, Pietro Ubaldi, que a Obra foi
que trará grandes frutos espirituais. Sente alegria quando pode toda ditada pelo alto e deve ser divulgada em todo o mundo e
dar felicidade a outros. Trabalha muito para desenvolver uma em todas as línguas‖.
missão alta. Há muita coisa que está latente e espera uma opor- ◘ ◘ ◘
244 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Trechos de mensagem mediúnica recebida pelo médium Ser luz para as sombras, fraternidade para a destruição, ter-
Betti, sob a direção do Senhor Sante Crosara, em Livorno, em nura para o ódio, humildade para o orgulho, bênção para a
23 de dezembro de 1945, de uma entidade não identificada. maldição.
―(...) A coletividade espiritual do sujeito (P. Ubaldi) é consti- Ama sempre.
tuída por uma esfera muito elevada, onde os chamados santos É pela graça do amor que o Mestre persiste conosco, os
vivem em harmonia. Desta constituição entélica, partiu a perso- mendigos dos milênios, derramando a claridade sublime do
nalidade de Ubaldi (...), que já conseguiu e desempenhou o pró- perdão celeste onde criamos o inferno do mal e do sofrimento.
prio programa (...). Aquele ‗quid‘ que constitui a manifestação Quando o silêncio se fizer mais pesado ao redor de teus pas-
terrena de Ubaldi é apenas uma missão espiritual que tomou sos, aguça os ouvidos e escuta!
forma e personalidade num indivíduo. Este, no entanto, parece A voz Dele ressoará de novo na acústica de tua alma, e as
um ser comum e normal, mas já desempenhou determinada mis- grandes palavras, que os séculos não apagaram, voltarão mais
são, pela qual os germens disseminados em sua esfera terão pro- nítidas ao círculo de tua esperança, para que as tuas feridas se
lificação estupenda e tangível, para glória do Eterno (...). Quan- convertam em rosas e para que o teu cansaço se transubstancie
do tiver desencarnado, voltará a retomar seu posto e, desta vez, em triunfo.
numa esfera verdadeiramente superior e digna (...). Em pouco O rebanho aflito e atormentado clama por refúgio e segu-
tempo, abandonará vosso ambiente, mas somente depois que ti- rança.
ver desempenhado aqui, completamente, sua tarefa (...). O so- Que será da antiga Jerusalém humana sem o bordão provi-
frimento é o esporão e o principal incentivo de seu fervor ope- dencial do pastor que espreita os movimentos do céu, para a de-
rante (...). Assim a Mente Criadora prodigaliza, através de Ubal- fesa do aprisco?
di, a graça do conhecimento supranormal (...). As sensações que É necessário que o lume da cruz se reacenda, que o clarão
ele percebe são inerentes ao seu grau de consciência, que não é da verdade fulgure novamente, que os rumos da libertação de-
mais infantil, mas adulta, e mesmo diria velha, ou seja, carrega- cisiva sejam traçados.
da de experiência e de maiores percepções e considerações. Ora, A inteligência sem amor é o gênio infernal que arrasta os
tratando-se de uma consciência velha, é mister que suporte essas povos de agora às correntes escuras e terrificantes do abismo.
vibrações de perturbação e de desânimo, porque ela está às por- O cérebro sublimado não encontra socorro no coração em-
tas da Luz, no limiar de nova existência, imensamente superior; brutecido.
está diante de uma porta fechada, além da qual sabemos existir A cultura transviada da época em que jornadeamos, relega-
uma escada luminosa que leva à extrema felicidade, isto é, à Luz da à aflição, ameaça todos os serviços da Boa Nova, em seus
Suprema do conhecimento e da verdade. Essas sensações devem mais íntimos fundamentos.
ser aceitas com serenidade e até com alegria, porque é prenúncio Pavorosas ruínas fumegarão, por certo, sobre os palácios
de uma promessa certa e próxima de bem supremo. Há uma cer- faustosos da humana grandeza, carente de humanidade, e o ven-
teza maravilhosa, ofuscante. Aceita-se o fenômeno com sereni- to frio da desilusão soprará, de rijo, sobre os castelos mortos da
dade e com a certeza de que constitui uma promessa segura de dominação que, desvairada, se exibe, sem cogitar dos interesses
uma passagem sublime. Já desempenhou sua tarefa dignamente, imperecíveis e supremos do espírito.
e quando estiver diante do dia do desencarne, sua obra e sua É imprescindível a ascensão.
missão estarão definitivamente realizadas‖. A luz verdadeira procede do mais alto, e só aquele que se
instala no plano superior, ainda mesmo coberto de chagas e roí-
MENSAGEM DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS do de vermes, pode, com razão, aclarar a senda redentora que as
gerações enganadas esqueceram.
Pedro, Refaze as energias exauridas e volta ao lar de nossa comu-
O calvário do Mestre não se constituía tão somente de secu- nhão e de nossos pensamentos.
ra e aspereza... O trabalhador fiel persevera na luta santificante até o fim.
Do monte pedregoso e triste jorravam fontes de água viva O farol no oceano irado é sempre uma estrela em solidão.
que dessedentaram a alma dos séculos. Ilumina a estrada, buscando a lâmpada do Mestre, que ja-
E as flores que desabrochavam no entendimento do ladrão e mais nos faltou.
na angústia das mulheres de Jerusalém atravessaram o tempo, Avança... Avancemos...
transformando-se em frutos abençoados de alegria no celeiro Cristo em nós, conosco, por nós e em nosso favor é o cristi-
das nações. anismo que precisamos reviver à frente das tempestades, de cu-
Colhe as rosas do caminho no espinheiro dos testemunhos... jas trevas nascerá o esplendor do Terceiro Milênio.
Entesoura as moedas invisíveis do amor no templo do coração!... Certamente, o apostolado é tudo. A tarefa transcende o qua-
Retempera o ânimo varonil, em contato com o rocio divino dro de nossa compreensão.
da gratidão e da bondade!... Não exijamos esclarecimentos.
Entretanto, não te detenhas. Caminha!... Procuremos servir.
É necessário ascender. Cabe-nos apenas obedecer, até que a glória Dele se entroni-
Indispensável o roteiro da elevação, com o sacrifico pessoal ze para sempre na alma flagelada do mundo.
por norma de todos os instantes. Segue, pois, o amargurado caminho da paixão pelo bem di-
Lembra-te, Ele era sozinho! Sozinho anunciou e sozinho vino, confiando-te ao suor incessante pela vitória final.
sofreu. O Evangelho é o nosso código eterno.
Mas erguido, em plena solidão, no madeiro doloroso por Jesus é o nosso mestre imperecível.
devotamento à humanidade, converteu-se em eterna ressur- Agora é ainda a noite que se rasga em trovões e sombras,
reição. amedrontando, vergastando, torturando, destruindo...
Não temos outra diretriz senão a de sempre. Todavia, Cristo reina, e, amanhã, contemplaremos o celeste
Descer auxiliando, para subir com a exaltação do Senhor. despertar.
Dar tudo, para receber com abundância.
Nada pedir para nosso eu exclusivista, a fim de que possa- Esta Mensagem foi psicografada por Francisco Cândido
mos encontrar o glorioso NÓS da vida imortal. Xavier, dirigida a Pietro Ubaldi em 17 de agosto de 1951, na
Ser a concórdia para a separação. residência de Dr. Rômulo Joviano, em Pedro Leopoldo, MG,
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 245
na presença de doze pessoas, ao mesmo tempo em que, sentado pois sabes que também isso é necessário, a fim de que se
à mesma mesa, Pietro Ubaldi recebia a mensagem de SUA cumpra tua missão. E isso bastará para transformar esta tua
VOZ. (Nota de C. T.) nova dor em alegria.
Teu corpo cansado desejaria repousar. Quão grande o cami-
MENSAGEM DE “SUA VOZ” nho já percorrido e quão grande a distância ainda a percorrer! A
vida, porém, é uma caminhada contínua. Tens sobre os ombros
Pedro, não só tua vida, mas também a de muitos outros, que amas e de
Estás sentindo aqui, nesta noite, minha presença. Aquele cuja salvação quiseste assumir a responsabilidade. Aceita, pois,
que está diante de ti2 e que, ao mesmo tempo que tu, está escre- tudo por amor de mim. Aceita-o, ainda que os três votos de re-
vendo, sente neste instante o meu pensamento, e o que ele es- núncia e de dor agora se transformem, tomando posições opos-
creve to confirmará. Ele sente contigo a minha presença. tas, isto é, não mais de renúncia, porém de afirmação.
Pedro, não temas. Estás cansado, eu o sei, como também sei Pedro, confio-te esta nova terra, o Brasil, a terra que deves
quanto te esforças por sentir-me neste ambiente tão novo para ti cultivar. Trabalho imenso, mas terás imensos auxílios.
e distante de onde estás habituado a ouvir-me. Estás exausto pe- Estou contigo e as forças do mal não prevalecerão.
lo muito falar e viajar. Estou contigo, porém, junto a ti e ―Eu‖ Agora, uma palavra também para os teus amigos, uma pala-
sou a grande força que sempre te tem sustentado. Agora me es- vra de gratidão e agradecimento, uma palavra de bênção por
tás sentindo com a mesma potência com que já me sentiste no sua cooperação, com que eles, ajudando-te, tornam possível a
momento da 1a Mensagem de Natal, de 1931. E isso porque, realização de tua missão. Falo neste momento ao coração de
agora, a uma distância de vinte anos, se repete o início do cada um deles, sem que lho digas por escrito.
mesmo ciclo num plano mais elevado. Una-vos a todos minha bênção, no mesmo amor, para vossa
Já me ouviste na noite de 4 de agosto, quando, pela primeira salvação e a salvação do mundo.
vez, falaste em S. Paulo e se iniciou a tua vida pública de apos-
tolado. Estavas cansado e não tinhas certeza. Mas, hoje, és por Esta Mensagem foi recebida por Pietro Ubaldi, a ele mes-
mim impulsionado e já não podes deter-te. Já te disse, antes de mo dirigida, em 17 de agosto de 1951, na residência de Dr.
tua partida, que aonde não pudessem chegar teu conhecimento Rômulo Joviano, em Pedro Leopoldo, na presença de doze pes-
e tuas forças, chegaria eu, e encontrarias tudo preparado. E vis- soas, ao mesmo tempo em que, sentado à mesma mesa, o mé-
te que tudo quanto te havia predito realmente aconteceu. dium Francisco Cândido Xavier psicografava a mensagem de
Tremes, eu o sei, diante de um plano cuja vastidão te sur- São Francisco de Assis. (Nota de C. T.)
preende. Quarenta anos de humilhações e de dores foram ne-
cessários ao teu preparo para esta missão e deixaram em tua na- SOBRE DEUS E UNIVERSO DE PIETRO UBALDI
tureza humana uma sensação de desânimo e uma convicção
profunda de tua nulidade. Hoje, porém, é chegada a hora, e eu Introdução
te digo: Ergue-te! Há vinte anos eu te disse: ―No silêncio da
noite sagrada, ergue-te e fala‖. E agora te digo, no silêncio da É meu primeiro impulso. Sinto-me devedor a DEUS, antes
noite tranquila de Pedro Leopoldo: ―Ergue-te e trabalha‖. Eis de tudo, do inestimável prêmio de ser contemporâneo de Pietro
que se inicia uma nova fase da tua missão na Terra e, precisa- Ubaldi e, mais ainda, de haver sido o primeiro brasileiro, tal-
mente, no Brasil. É verdadeiro tudo quanto te foi dito, eu to vez, a conhecê-lo pessoalmente em Gubbio, onde fui para lhe
confirmo, e assim sucederá. apertar a mão e lhe ouvir a palavra.
O Brasil é verdadeiramente a terra escolhida para berço des- Alguns espíritas compreenderão de pronto o motivo desta
ta nova e grande ideia que redimirá o mundo. Agora tua missão ufania mística.
é acompanhá-la com tua presença e desenvolvê-la com ação, de Para os homens amadurecidos de nossa geração, Pietro
forma concreta. Todos os recursos te serão proporcionados. Ubaldi não é só um homem que toda a gente pode conhecer. É
Ama com confiança estes novos amigos que eu te mando. também o gênio que teve a missão de sintetizar a filosofia re-
Tudo já está determinado e não pode interromper-se. As forças ligiosa do porvir, cujos primeiros fundamentos foram lança-
do mal vos espreitam e desejariam aniquilar-vos. Sabes, porém, dos de 1857 a 1869 em Paris, por outro gênio missionário, Al-
que as do bem são mais poderosas e têm de vencer. Confia-te, lan Kardec. O gênio só alguns espíritas podem conhecer, pois
pois, a quem te guia e não temas. Confirmo tudo o que tens es- isso não depende de vontade, mas de amadurecimento. Não
crito, não o duvides. basta, de fato, ser chamado à crença espírita para conhecer o
Dentro de poucas horas se completarão 65 anos de teu nas- nosso missionário, mas ser escolhido. Sei de muitos que tei-
cimento. O tempo assimila com o seu ritmo o desenvolvimento mam em ignorar o valor da obra de Pietro Ubaldi e o refutam.
dos destinos. Esses, naturalmente, ignorando o assunto, não compreenderão
Pede-te a Lei, agora, esta outra fase de trabalho, diferente e o motivo de minha ufania. Nem lerão estas linhas, aguardando
nova para ti, tão distante da precedente, que te surpreende. Acei- o seu ensejo. É para estes que escrevo, dizendo-lhes quem é o
ta-a, como antes, no espírito de obediência, aceitaste a outra. Não autor e a obra ainda marginada.
tem sido tua vida uma contínua aceitação? Não tem sido comple-
ta tua adesão à vontade de Deus? Não recordas nosso grande co- O autor
lóquio de Módica, na Sicília, há vinte anos? Tua própria razão
não pode deixar de reconhecer a lógica fatal de tudo isso. Segue Principiou a ser conhecido de nome nos meios literários íta-
pois confiante o caminho assinalado. Não te admires se tudo em lo-brasileiros em 1914, quando editou A Expansão colonial e
torno de ti se contraverte, se a dor se transforma em alegria, se te Comercial da Itália para o Brasil, desenvolvimento da tese de
arranco do silêncio de Gubbio para lançar-te no mundo. doutor em Direito que ele defendeu com distinção em 1910 na
Não representa isso a realização daquilo para que nasceste e Universidade de Roma.
por que tens vivido e sofrido? No mundo filosófico apareceu em 1928, com L'Evoluzione
Eu sei: a glória, os louvores do mundo, a notoriedade te Spirituale, ensaio publicado em série na revista romana Ultra.
repugnam. Compreendo que isso te é uma nova dor. Aceita-a, Conquanto os espíritas experimentados já pudessem aí perce-
ber o ―médium‖ e a sua ―crença espirítica‖ – pois o articulista
2
Referência a Francisco C. Xavier. afirmava ser ―tangido a escrever em virtude dum impulso inte-
246 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
rior misterioso e indefinível‖, e sentir ao escrever que ―as idei- No mais completo silêncio do tempo e do espaço.
as lhe acudiam como a revelação duma recôndita entidade‖ E assim, vazio, escuta a minha voz,
existente dentro ―dele‖, como revelação dum ―arcano íntimo‖, Ela te fala: ―Surge! E diz: sou eu‖.
conservado na memória subconsciente ou anterior à vida atual Foi assim que principiou o seu mandato. ―Surge‖. E ele sur-
– a explicação do seu fenômeno e da sua crença podia encon- giu de fato nessa obra. Esta primeira e outras Mensagens Espi-
trar-se, conforme o próprio autor do ensaio, dentro da filosofia rituais lançaram Pietro Ubaldi à missão reveladora. E isso se
clássica, da psicologia comum ou, se mais, do misticismo reli- deu – como estava previsto na história oculta e ainda inédita do
gioso. Sua vocação missionária de médium revelador só se espiritismo kardecista – ao fim da terceira geração espírita. Pu-
tornou positiva três anos depois. Antes e primeiramente, ele blicada em março de 1932, na revista Alfa de Roma, essa en-
teve de fazer duas renúncias. Renunciou aos bens da fortuna, cantadora comunicação, cujas primeiras linhas traduzimos aci-
que passavam de uma centena de milhões de liras, bem conso- ma, assegurou desde logo a Pietro Ubaldi lugar de destaque na
lidados, abrindo mão de seus direitos de coerdeiro, entregando vanguarda do movimento espírita mundial. Analisada especi-
seu quinhão de herança à família, a fim de ficar, ele só, fran- almente pelos dois mais abalizados e doutos espiritualistas da
ciscanamente pobre e cristãmente livre para seguir a Jesus. Itália – Bozzano e Trespioli – foi considerada, pelo conteúdo e
Renuncia ao múnus de advogado, que seu título de doutor em pela forma, de pura origem espirítica e de elevada procedência
Direito lhe assegurava em qualquer foro italiano, a fim de me- espiritual, acima da fonte comum. Daí por diante, a fama do
lhor servir ao Mestre, sem outros clientes. E, assim, pobre, so- médium foi de ―crescendo em crescendo‖. A segunda mensa-
zinho, sem profissão privilegiada, confiando em sua intuição, gem, na Páscoa de 1932, e sobretudo a terceira, no dia do ―Per-
partiu certa manhã como um apóstolo, levando apenas a túnica dão da Porciúncula‖ (2 de agosto de 1932), ressoaram de ma-
e a sandália. Partiu no mesmo dia em que deliberou a dúplice neira inusitada. Jornais e revistas profanos e folhas espíritas e
renúncia. Subiu para o seu misterioso destino, em que só ele na espiritualistas de vários pontos da Europa transcreveram essas
Terra acreditava. E o mundo o julgou a seu modo, segundo a comunicações superiores, atribuindo-as sem a menor reserva à
aparência. E, como simples peregrino penitente, ganhou ao en- inspiração de Jesus. A própria Igreja Católica, por seus mais al-
tardecer a estrada de Colle Umberto, destinada a entrar para a tos dignitários italianos, as aprovou. No Brasil – onde se dará a
história do espiritismo com o mesmo signo de luz da Estrada eclosão da Reforma – tiveram ampla e profunda repercussão.
de Damasco na história do cristianismo. Essas três Mensagens, depois de transcritas no Correio da Ma-
Pela madrugada, exausto de forças físicas, sentou-se numa nhã, em A Pátria, noutros diários estaduais e em quase todas as
pedra do caminho. E orou. Estava só, dentro da noite estrelada folhas espíritas do país, apareceram em livro em 1934, editado
e do silêncio ambiental, e sem rumo. Abrindo depois os olhos pela Federação Espírita Brasileira e espalhado gratuitamente.
úmidos, para contemplar o céu imensamente distante, viu des- Na Itália, a exemplo do Brasil, também se enfeixaram num fo-
cerem duas estrelas que, ao pousar no chão, tomaram a forma lheto em 1935. Mas, a par das Mensagens, que falavam ao co-
humana, transcendente e luminosa. As duas entidades celestes ração, começou Pietro Ubaldi, em janeiro de 1932 (início da
caminharam em direção a ele. Não tardou a reconhecê-las, quarta geração espírita), a receber e a publicar em série, na re-
graças à memória espiritual. Foi a sua primeira visão na série vista milanesa Ali del Pensiero (Asas do Pensamento), a obra
missionária. Convidado, caminhou entre elas, tendo à direita monumental e inigualável intitulada A Grande Síntese, com a
Jesus e à esquerda Francisco de Assis. E, caminhando, ouviu qual ingressou brilhantemente no rol dos grandes filósofos da
bem nítida e inconfundível a voz do Cristo, que, daí por dian- atualidade e dilatou as bases científicas do espiritismo. A pri-
te, em seus escritos, passou a designar ―Voz Dele‖ ou ―Sua meira edição italiana, em 1937, esgotou-se rapidamente e cons-
Voz‖. Ficou desde então garantido quanto ao alimento do es- titui hoje preciosidade de colecionadores. Vieram em seguida
pírito. Para ganhar o pão diário do corpo ―em trabalho materi- outros livros, outras mensagens, outros escritos, tudo visando à
al‖, obteve em concurso a cátedra de inglês, em ensino secun- exegese e à complementação dos diversos tratados existentes
dário. E foi designado para o Liceu de Módica, no sul da Sicí- em gênero ou em germe em A Grande Síntese. E agora foi im-
lia. Ali, sozinho, completamente desconhecido por fora e sem presso no Brasil, em primeira mão, a obra marginada, Deus e
se dar a conhecer interiormente a ninguém, era para todos Universo, décimo livro da série, que acabo de ler em original,
uma figura apagada, um simples mestre-escola ginasial. Um por finíssima gentileza e alta deferência do autor.
modesto ―Chico Xavier‖ italiano. O que veio a lume com o título Deus e Universo, é uma
E ali esperou ordens do Mestre, para iniciar a missão esbo- grande ―síntese teológica‖, cuidando das causas primeiras e fi-
çada na estrada de Colle Umberto. Nas horas vagas, afastava-se nais. A meu ver, constituirá o ―elo central‖ que ligará A Gran-
do centro para um horto distante, onde se quedava, pensando em de Síntese ao livro prometido, ainda não escrito e intitulado
Jesus e nos grandes problemas teológicos ainda a resolver. Um Cristo. Esses três livros monumentais – A Grande Síntese,
dia, quando ali orava a Ave Maria, o Mestre lhe apareceu e lhe Deus e Universo e Cristo – serão, penso eu, os vértices do tri-
falou. Conversaram. Selaram uma aliança. Trabalhariam em so- ângulo religioso da III Revelação, que será simultaneamente
lidariedade, um no Céu, outro na Terra, visando ao preparo da científica, teológica e cristã.
humanidade ―espiritualizada‖ e destinada a ingressar no Tercei- De tal livro, minha estultícia não me leva sequer ao ponto
ro Milênio Cristão. Na noite de Natal de 1931, Ubaldi recolheu- de tentá-la.
se a seu quartinho de pensão familiar; no qual havia apenas uma
cama, uma cadeira e uma pequena mesa. O frio era forte, e a ce- A Crítica
la não tinha lareira. Pensou em deitar-se para desprender-se. Deus e Universo é obra acima de minha capacidade de
Mas veio-lhe o impulso irresistível para escrever. Sentou-se à compreensão. Cada homem tem seu limite de entendimento. E
mesinha e orou. E suas ideias se foram dissipando como trevas o meu limite é demasiado estreito para apreender em espírito e
espantadas suavemente por uma luz que se aproxima. De repen- verdade as lições profundas desse trabalho transcendental. Li-o
te, ouviu aquela voz inconfundível, a ―Voz Dele‖. com emoção crescente. Li-o mais com o coração que com os
―No silêncio da Noite Sacrossanta, olhos. Reli-o mesmo em parte; continuarei a lê-lo na tradução.
Escuta-me! Relaxa tudo o mais, Mas (ai de mim) como o transeunte pobre que para extasiado
O saber, as lembranças, a ti próprio. diante duma vitrina de joalheiro, não sabendo sequer avaliar o
Esquece tudo! Entrega-te vazio, preço das preciosidades, namora-as por fascinação; cobiça-as
Sem nada, inerte, à voz que é minha, por ambição; pode até pensar em furtá-las. E afasta-se pesaroso,
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 247
com a mente cheia de fantasias, ciente de que não tem a moeda ―leitura‖ dos objetos (criptestesia pragmática). E isto se realiza
necessária para a aquisição. Sinto, porém, que todas as lições de vários modos: com objetos pessoais, com fotografias e com
são da mais pura qualidade. textos manuscritos. Vários indivíduos, incluindo quiromantes,
E sei, por intuição e pela história oculta, que vieram uma a radioestesistas ou grafólogos, são verdadeiros sensitivos, capa-
uma, diretamente do Céu, trazidas ao mundo pela própria ―Voz zes de descrever as personalidades alheias integralmente, ainda
Dele‖, destinadas a enfeitar um dia o templo espiritual que o que as modalidades técnicas com as quais se explicam as suas
Cristo erguerá no Terceiro Milênio. Templo onde ―Sua Voz‖ faculdades divinatórias sejam diversíssimas. Citemos o caso do
será ouvida por muitos, e não, como hoje, apenas escutada por grande e bem conhecido grafólogo Padre A. M. Moretti, do
Pietro Ubaldi. E, ao ouvi-la, muitos crentes ficarão em dúvida qual nos servimos com resultados brilhantes em muitos casos.
se escutarão a voz do ―Eu sou‖ – ego central do universo, ou o Naturalmente, é necessário proceder com muita cautela e
―Sou Eu‖ – ego do Cristo. Pois um e outro serão talvez a mes- experiência, para evitar fáceis erros, fugas sensoriais, param-
ma pessoa para a humanidade espiritualista e remida do porvir. nésia, truques etc., bem conhecidos de quem experimenta no
(a) Canuto De Abreu terreno parapsicológico. Consultando mais indivíduos sensiti-
vos, observo uma determinada pessoa. Ao registrar as diversas
A VERDADEIRA E INTEGRAL respostas com o magnetofone ou estenograficamente, obtém-se
REALIDADE DE PIETRO UBALDI um quadro poliédrico dessa pessoa no seu ambiente habitual e
POSTA EM EVIDÉNCIA COM O MÉTODO nos seus aspectos mais diversos (cada indivíduo revela de pre-
PARAPSICOLÓGICO – PSICODIAGNÓSTICO “BLASI” ferência um aspecto ou vários lados da personalidade consci-
ente e subconsciente). Portanto, comparando os vários dados
Dr. Gaetano Blasi, médico cirurgião e parapsicólogo. Ex- obtidos e confrontando-os entre si e com a realidade, podemos
sócio fundador da S. I. M. (Sociedade Italiana de Metapsíquica) estabelecer um juízo positivo do valor objetivo deles e possuir
e Diretor do Centro Experimental de Roma. Sócio correspon- um quadro completo da personalidade sob exame, integral tan-
dente da Associação Médica Metapsíquica Argentina. ―Láurea to do aspecto consciente e subconsciente como das caracterís-
d'onore‖, em medicina cirúrgica, Universidade de Roma, 1915. ticas da eventual qualidade de mediunidade que ela possui.
Professor do Curso Internacional de Parapsicologia da Funda- A ninguém pode escapar a importância que assume tal mé-
ção Científica Romana Humiastowska. Professor do Curso Bi- todo, seja do ponto de vista científico, teórico, pragmático ou
enal de Parapsicologia da Universidade Popular Romana. empírico. Informamos acerca de algumas das experiências re-
alizadas diretamente por nós em Roma, no centro experimen-
Preâmbulo tal da S. I. M. (Sociedade Italiana de Metapsíquica), com a as-
sistência e colaboração de distintas e qualificadas personali-
Dados sobre o Método Comparado “Blasi” de Psicodiagnose dades: Profs. Pende, Ponzo, Mendicini, Cantelli, do Ateneo
Paranormal. Romano; Leleza da Universidade Polaca; Canavesio da Uni-
O problema gnoseológico e psicológico do descobrimento versidade da Argentina; P. Alighiero Tendi S. J., Vice presi-
objetivo da personalidade humana integral (consciente, social e dente da Universidade Gregoriana.
o eu subconsciente profundo) não se resolve com os métodos da
psicologia normal (testes e similares), nem com os psicoanalíti- A Personalidade Integral Do Professor Pietro Ubaldi.
cos, já que ambos se limitam aos extratos superficiais do eu, ou Nota: Peço licença ao ilustre amigo por me ver obrigado a
são condicionados pela boa vontade do sujeito e pela interpreta- referir o seu caso detalhadamente, porque comprova, fora de
ção subjetiva dos dados por parte deste ou daquele investigador. toda a possibilidade de dúvida, a eficácia do meu método, dado
Para obviar tais inconvenientes, idealizamos e experimen- a prova testemunhal que nos proporciona.
tamos em muitos casos e durante vários anos um novo método A experiência iniciou-se há vários anos, isto é, 1948, em
parapsicológico, que nos permite o estudo objetivo da persona- forma inopinada. Não conhecia pessoalmente Ubaldi. Ignora-
lidade humana e não requer o concurso direto do sujeito, a ela- va tudo acerca dele ou da sua vida privada. Por meio de pes-
boração subjetiva dos dados e, portanto, não está sujeito à inse- soas conhecidas em comum, entrei em relações epistolares
gurança aleatória dos mesmos. Os dados que nos proporciona o com ele, oportunidade em que me solicitou que lhe desse, a tí-
nosso método são positivos, objetivos e controláveis. O pro- tulo de prova, os resultados de um exame metagnômico de
blema gnoseológico assinalado permanece dentro daquele co- seus escritos e de uma fotografia sua da juventude (os dados
nhecimento intuitivo paranormal ou metapsíquico mais geral, que forneço são essenciais – por razões de brevidade omito os
que postula a existência potencial na psique humana subconsci- de menor importância).
ente de novas funções de E. S. P. (percepção extrasensorial) pe- a) Minha resposta grafológica a um escrito autógrafo de
la qual todo o real (psicológico e físico) pode ser conhecido in- Ubaldi, quando ainda não o conhecia pessoalmente:
tuitivamente. O nosso método dá ótimos resultados, seja nos ―Profundidade de intelecto que penetra minuciosamente nos
casos normais de personalidades ordinárias, seja naqueles mui- problemas, quase cinzelando o pensamento, que se destaca pela
to mais difíceis, paranormais, de personalidades complexas ou pulcritude e comunicabilidade, com equilíbrio, equanimidade e
múltiplas histéricas-sensitivas-médiuns. objetividade nos juízos sobre os demais. Tendência à especula-
O método pode definir-se: ―Psicodiagnose Paranormal‖ do ção com poder inventivo e construção lógica; muita memória,
tipo metodológico-qualitativo-comparativo-múltiplo de E. S. P, não apenas conceptual, mas também verbal, o que o torna apto
em contraposição ao quantitativo Rhüne. Este se vale precisa- aos estudos de idiomas (ignorava que ensinava o inglês, sabia
mente daquelas funções de E. S. P. (intuitiva – metagnômica – apenas que era um literato).
telepática – criptestésica – pragmática – psicométrica) que hoje ―Muita sensibilidade e delicadeza de sentimento, com ten-
muitos indivíduos sensitivos ou médiuns apresentam de modo dência à sensualidade, corrigida e sublimada com a tenacidade
mais ou menos destacado e especializado, utilizáveis facilmente de uma vontade superior. Pode haver mudanças e ceder até a
por um perito parapsicólogo, quando tenham sido dirigidas e um certo ponto a sugestões alheias mais fortes. Preponderân-
oportunamente fundadas ou especializadas na descrição da per- cia dos fatores psíquicos do inconsciente, com introversão de
sonalidade, seja isto diretamente, colocando o sujeito na sua tipo místico‖.
presença, seja indiretamente, através de um objeto ―testemu- Com relação à fotografia da juventude, a minha resposta foi
nho‖ que haja pertencido à pessoa – método psicométrico ou de a seguinte:
248 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
―Personalidade dupla, olhar penetrante. Forte vitalidade, enquanto a outra personalidade, a social, a que ele mostra, é
através das oposições! Mas quanta tristeza! Nota dolorosa. fria, e ele sofre porque não pode conduzir-se e viver conforme a
Fronte alta, espaçosa, que fala por si mesma; há nela uma luz; sua personalidade verdadeira, mais bela, que – fato estranho –
contraste com a firme acentuação labio-mental, índice de forte tem megalomania, mas apenas com finalidade benéfica; queria
vontade e energia vital também em sentido físico‖. ser grande somente para fazer muito bem à humanidade. Tem
b) Resposta da sensitiva (curandeira) M. Lombardi, tendo muito discernimento. Agora parece ter-se tornado mais inteli-
presente Ubaldi, mas sendo-lhe este absolutamente desconheci- gente e refinado espiritualmente‖.
do. Encontrava-se por casualidade de passagem e tinha vindo O presente ensaio foi publicado pela Revista Le Vie Dello
pela primeira vez à minha casa. Spírito, (ano IV No 1, 2, 3, 1947, Roma), com o título: ―O co-
―É uma pessoa que lutou e sofreu muito por injustiças pade- nhecimento metapsíquico e o método comparado de psicodiag-
cidas; aos 9 anos salvou-se por milagre de morrer afogado em nose da personalidade‖, onde se referem mais detalhadamente
água não corrente, num lago ou no mar; tiraram-no pelas per- às particularidades relacionadas com a luta espiritual de Ubaldi
nas; vejo sua mãe que lhe queria muitíssimo. Em 1941 grande e com as autoridades eclesiásticas, individualizadas com exati-
susto, e luta por acusações injustas. Em 1942, fora de sua casa, dão pela Senhora Lombardi.
teve uma desgraça que o fez sofrer muito. Todos os anos tra-
zem vicissitudes e desgraças que sobreleva; sofrimentos com Análise Comparada Das Várias Respostas Parapsicológicas.
um pouco de luz. Também agora está em luta espiritual; não As várias respostas parapsicológicas – as minhas, as de
sabe o que fazer; muitos projetos para realizar. Por agora silen- Lombardi e de Menozzi – concordam nos dados em muitos
cia, depois virá a luz. Há uma entidade do além que o ajuda. pontos, o que, mesmo prescindindo das declarações do próprio
―É são e viverá muito tempo. Conduziu-se sempre bem, mas Ubaldi de que resultam verdadeiras quase em 100%, comprova
foi mal recompensado. Encontra-se no caminho justo, mas terá que elas não são somente o resultado de uma indução conscien-
que lutar muito. Encontra-se entre a bigorna e o martelo, que te do plano racional, mas também um conhecimento paranor-
golpeia sobre a bigorna abrasadora. Tem uma força de espírito mal, intuitivo, diapsíquico e, caso se queira, telepático, metag-
excepcional, com uma luz que desce do alto e o guia. Luz den- nômico, por parte dos sujeitos sensitivos, pelos quais o ―livro
tro da cabeça que sairá como uma auréola; mas não de santo. da vida‖, a constelação pessoal e a personalidade integral de
Esforça-se por despojar-se da materialidade e elevar-se espiri- Ubaldi são revelados na sua realidade vivida, independente-
tualmente sempre mais. Vejo-o subir por uma escada que chega mente das limitações cronotópicas espaço-temporais do conhe-
ao Céu, conduzido por um anjo. No alto espera-o Jesus com os cimento normal racional. A afirmação de que não se pode reba-
braços abertos, que lhe diz: ―Vem, cumpriste bem a tua mis- ter não é válida, muito embora as condições em que se desen-
são‖. Como os eleitos, traz a imagem de Cristo no peito. A for- volveram as experiências com os diversos sensitivos (ignoran-
ça espiritual o sustém, mas teve que se adaptar a penitências‖. tes por completo de qualquer dado sobre a personalidade de
c) Resposta psicométrica do sensitivo C. Menozzi, sobre um Ubaldi e independentes uns aos outros) não se possa contestar,
manuscrito de Ubaldi: porque tem sua validez paranormal indiscutível. Outra é a ques-
―A letra é corrente, e isto me diz pouco. Escrita de noite, tão da fonte da qual os sujeitos extraíram as suas informações
numa grande mesa, com lâmpada portátil que dá pouca luz, pelo paranormais, que entra no caso geral ontológico do conheci-
que distingo pouco o ambiente, uma grande sala com móveis cor mento metapsíquico. Perguntamos: trata-se de uma fonte trans-
de mogno. Enquanto escreve, respira fatigosamente. Chamam- cendente da entidade sobre-humana ou de uma visão ―in specu-
no, levanta-se e sai. Escreve com facilidade, pessoa culta. En- lum Dei‖, segundo a explicação espírita ou teológica (de místi-
quanto escreve, tem um gesto habitual característico: volta a ca- cos-profetas)? Ou vem do plano natural do ―psiquismo coleti-
beça de lado, para o lado direito e para cima, como para ver algo vo‖? Ou como é nossa tendência, da comunicação interpsíquica
que não distingue e que chama a sua atenção (Imagem de Cristo humana, conforme a qual a ―Mônada Leibniziana‖ não é mais
que crê o acompanha como seu guia). Vejo a figura de um mor- incomunicável, mas tem no plano do inconsciente as suas boas
janelas do subconsciente? Os fatos tornam mais atendível a ex-
to, de cuja morte se entristeceu pouco por crer que passou a me-
plicação da ―comunhão dos vivos‖, destacada no campo religi-
lhor vida. Vejo um lago, não sei a que se refere. A sua mãe está
oso pelo conceito do ―corpo místico de Jesus‖. Esta vai integra-
aqui, não é alta, tem ainda muito cabelo, muito ligada ao filho‖.
da com a doutrina do subconsciente e com a da ―Imago‖ 3 psi-
d) Segunda Resposta de Menozzi, sobre um escrito de
canalítica de Jung, completada por mim com a ―memória cós-
Ubaldi, mas desta vez compilado em estado inspirativo:
mica‖, gonzos, da ordem cósmica e do mecanismo do universo.
―Grande transformação na personalidade do escritor, o que
É um dado positivo e comprovado experimentalmente que
o faz parecer outra pessoa. É uma mudança que não foi devida
todo acontecimento, em cada fato físico ou psíquico, em deter-
à diferença do tempo, mas ao modo de encarar a vida. A do
minado ambiente, através de um ato ou um gesto, num estado
primeiro escrito é mais dura, menos elevada do que esta, que
de consciência, pensamento ou imagem, não se anula; pelo con-
trata, dentro dos limites do possível, de fazer o bem. A primei-
trário, deixa uma marca perene no tempo, suscetível de ser cap-
ra apresenta-o como mais nervoso, devido às preocupações,
tada ou reevocada, vivida ou vista e percebida paranormalmen-
fastios e quebra-cabeças que o fazem descontente. De caráter
te pelo sujeito humano sensível.
fechado, não ri mais; sempre desgostoso, encontra-se desloca-
Nos estados hipnóticos, no sono normal, no transe e nos
do; perdeu a fé em si mesmo, está à espera de um aconteci-
êxtases místicos, o psiquismo humano subconsciente entra, por
mento, de uma mudança.
uma parte, em relação com o psiquismo subconsciente dos ou-
―Agora encontra-se no seu estado de ânimo atual. Tornou-se
tros indivíduos da coletividade humana e, por outra, em certos
muito mais sensível do que antes, até ao paradoxismo, quase
casos de indivíduos particularmente dotados, que chamamos
mórbido, e sofre tremendamente; mas não é um neuropático;
todo espiritualidade, cada vez mais complexa. Só por momen- 3
O termo ―Imago‖, que se refere ao conceito psicanalítico introduzido
tos é assim tão sensível. Então tem duas personalidades: a ver-
por Jung, daquela representação ou complexo psíquico ―dominante im-
dadeira, íntima, é como uma personalidade de sonho, da qual é presso no inconsciente‖, altamente dinâmico e auto-sugestivo que, com
muito zeloso e que não quer de maneira alguma dar a conhecer. meios paranormais, trata a todo o custo de realizar-se e se realiza em
Uma pessoa que já não é jovem, mas de características juvenis. muitos casos forjando o nosso destino, que de certo modo vem ―pré-
Creio que esta seja a sua verdadeira personalidade: requintada- estabelecido por tal determinismo interior‖ (Allendy). A imago de Ubal-
mente boa, altruísta, generosa, espírito apaixonado realmente, di é a Missão Crística‖. (N. do A.)
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 249
sensitivos ou médiuns, com o plano transcendente no campo Ubaldi, que sobe e leva a ―Imago‖ crística no peito, com a par-
psíquico interindividual e memória cósmica. Daí toda a reali- ticularidade percebida em visão – exatamente por Menozzi – do
dade fenomênica, presente, passada e, em alguns casos, futura gesto habitual de Ubaldi de olhar de lado para contemplar uma
(para esta há outra explicação exposta por nós noutro lugar) es- ―Imago‖ que o acompanha sempre. Ubaldi precisou que tem a
tá impressa, e o sensitivo é capaz de revelá-la, assim como pa- sensação de uma ―presença mística‖ que o acompanha e que ele
ra a memória mecânica ou cibernética ocorre com a fita mag- atribui a Cristo, motivo por que tem esse gesto habitual, feito
nética dos magnetofone ou na máquina eletrônica. As vibra- por ele e sendo zelosamente escondido e, por conseguinte, ig-
ções etéreas luminosas, radiantes, viajam no espaço intereste- norado de todos. Também a visão simbólica da Senhora Lom-
lar milhões de anos-luz, praticamente um tempo infinito, e são bardi, do martelo que golpeia sobre a bigorna candente, está
suscetíveis de serem reveladas por um detector adequado; cha- certamente em relação, conforme referiu o próprio Ubaldi, com
pas fotográficas, radiotelescópios etc., com os quais nós, os uma mensagem da famosa médium Valbonesi, que, no distante
terrestres, alcançamos a imagem viva e real de uma estrela ano de 1935, lhe falou do martelo que golpeia a bigorna para
longínqua dos confins do universo quando esta talvez não exis- consolidar a estrutura de sua alma. A concordância de palavras
ta mais. Assim pode ocorrer com o sensitivo que se colocou, e significado são, portanto, características para excluir a coinci-
com o seu psiquismo inconsciente, em relação ao plano psíqui- dência fortuita entre as duas mensagens, e surge da visão atual
co cósmico, com as vibrações registradas nele pela personali- de uma realidade mnemônica passada, registrada no subconsci-
dade vivente (longínqua ou morta) – psicofísicas – e deixadas ente de Ubaldi. O mesmo pode dizer-se sobre o dado particular
em tal plano da memória cósmica; é como se estivera ainda vi- e significativo acerca da ―Luz‖ mística que ilumina a mente de
va e, por conseguinte, susceptível de uma quase contingente Ubaldi, estabelecido por mim e pela senhora Lombardi, que
ressurreição integrada pelos elementos psicológicos do sensiti- pode vincular-se, como depois me afirmou Ubaldi, a uma men-
vo que a captou, personalizando-a. sagem mediúnica recebida em 1932 – ―A Luz do Espírito Santo
O mistério do conhecimento paranormal com o meio cha- te ilumina – A sua Luz espalhará os seus raios na tua mente‖.
mado impropriamente ―psicométrico‖ ou da leitura do objeto Confirmando a nossa teoria ―psicométrica‖, está o fato de
―testemunha‖ (criptestesia pragmática), que, de algum modo, que Menozzi individualizou exatamente a influência diversa
registra ou facilita a comunicação paranormal com as citadas que tem o objeto testemunha, em nosso caso os escritos de
vibrações da realidade psicofísica fenomênica passada, não po- Ubaldi, sobre as qualidades das informações paranormais que
de interpretar-se senão mediante esse mecanismo das marcas ou proporciona. O primeiro escrito, corrente, sem alma, diz pouco
vibrações mnemônicas cósmicas, que implicam um ―campo à sua intuição; ao passo que o segundo, carregado de espiritua-
psíquico‖ transcendente, uma influência direta do psiquismo lidade, revela-lhe plenamente a dupla personalidade de Ubaldi.
sobre a matéria, assimilada por Panghestecher e outros, a uma Julgamos, então, que nosso estudo é merecedor de medita-
impregnação psíquica da matéria. ção. Será justo, ou pelo menos oportuno, que uma personalida-
A nossa interpretação natural do fenômeno metagnômico, de ―delicadamente boa, espiritualmente elevada, que traz em si
compartilhada pela grande maioria dos parapsicólogos, encontra a imagem de Cristo‖ – coisa que se não poderia afirmar, com
confirmação no caso de Ubaldi, quando Menozzi, na sua respos- tanta segurança, de muitos religiosos – deva ser rejeitada da
ta, afirma: ―(...) Não vejo a cor da gola da pelica que veste a mãe comunhão dos fiéis? Isto somente porque, obedecendo ao seu
de Ubaldi, porque a sua mente não está nela‖. E assim são todos impulso interior, que vem de tão expressiva ―Imago‖, expande
os numerosos dados positivos, reais, concordantes nas várias sua alma em obras que ele mesmo não atribui a seu merecimen-
respostas. O aspecto físico juvenil (como aparece na fotografia to pessoal. ―O Espírito do Senhor sopra quando quer e onde
de há mais de 20 anos), observado em visão pelos sensitivos no quer‖, e este é o caso de Ubaldi. Ubaldi também, em sua opini-
momento da experiência, se exprime por uma ―leitura‖ quase ão e na dos sujeitos, tem missão a cumprir no curso de sua vida,
mecânica, como se, perante a visão de cada um deles, visão inte- missão apostólica que lhe foi confiada pelo Alto. Os céticos
rior ou ―espelho‖ anímico subconsciente, fosse exibido um filme podem considerá-la como autossugestão, mas a personalidade
eletrônico registrador da individualidade psicológica de Ubaldi, fundamental de Ubaldi, como nos foi provado pela pesquisa
da qual, no entanto, eles não percebiam senão fragmentos de ân- metapsíquica, é de nível ético-religioso tão superior, que nos
gulos visuais diversos a cada um, conforme as suas equações deixa perfeitamente tranquilos quanto às consequências de seu
pessoais, especializações e afinidades psicológicas. apostolado, mesmo se ontologicamente não transcendente. O
Daí que a Senhora Lombardi, sujeita de tendências místicas, mesmo não se pode dizer quanto ao que se refere indubitavel-
haja posto bem em relevo o lado místico da personalidade de mente à mediunidade profissional, quando estamos diante de
Ubaldi, a sua luta interna de ascetismo espiritual e a luta externa ―sujeitos‖ que escondem personalidade muito equivoca e peri-
num período particularmente crítico nas suas relações com o gosa, coisa que ocorre com grande maioria dos médiuns de
ambiente hostil, principalmente religioso oficial, e não destacou, efeitos físicos e mesmo com alguns ―ultrafanos‖ (...).
como o fez Menozzi, as características psicológicas da dupla
personalidade de Ubaldi. A descrição exata das particularidades Conclusões
do ambiente – gabinete de estudo, gesto, aspecto físico de Ubal-
di e da mãe – feita por Menozzi é devida à sua particular sensi- Concluímos nosso trabalho julgando haver demonstrado que
bilidade perceptiva e à instrução que lhe dei de permanecer o o método de psicodiagnose comparada metapsíquica, proposto
mais possível no terreno dos detalhes positivos controláveis. A por nós, dá resultados satisfatórios e de alto valor técnico psico-
senhora Lombardi precisou que, quando Ubaldi tinha 9 anos, lógico, susceptíveis de aplicação prática em todo campo que
ocorreu o perigo de afogar-se num lago, sendo salvo pela mãe, requeira o exame da personalidade humana, através de exame
enquanto que Menozzi viu apenas a imagem mental de um lago por sensitivo e por médium, bem como de qualquer outra per-
e da mãe, sem compreender a relação e o acontecido. Tudo isto sonalidade que também interesse do ponto de vista teológico,
não será talvez uma prova evidente de que, em ambos os casos, jurídico e social, e não apenas científico.
tratou-se de uma visão paranormal da mesma imagem virtual, No caso específico de Ubaldi, já que não se pode conside-
vista parcialmente, com ―lentes‖ diferentes, por dois sensitivos? rar definitiva a condenação ao Índex de dois livros seus, pois
Particularmente instrutivo e importante do lado teórico é a a autoridade eclesiástica não possui os dados suficientes para
concordância através da visão da senhora Lombardi, da escada fazer um julgamento de toda a sua personalidade como nós a
mística (escada de Jacob) com Jesus no Alto, que espera por possuímos, convidamos os que têm autoridade na matéria a
250 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
exprimir seu julgamento sobre nosso trabalho e a respeito das ver a personalidade de Pietro Ubaldi em sua verdadeira luz.
conclusões que dele tiramos. Com essa expectativa e esse propósito, entramos no assunto.
Baseados na pesquisa científica metapsíquica que referimos, Quem é Pietro Ubaldi? Há quem o defina um santo, outros
concluímos que Ubaldi possui duas personalidades, das quais a um médium, alguns um gênio, outros ainda um visionário. Fisi-
mais importante, a verdadeira, tem alta espiritualidade e mora- camente é alto, fronte muito desenvolvida, algo encurvado, ati-
lidade comparável à dos maiores místicos e ascetas. Concluí- tude humilde e austera, expressão doce e triste, olhar vivo e pe-
mos que ele não é um médium no sentido comum; antes, suas netrante. Homem que, para seguir o ideal evangélico nas pega-
manifestações exteriores e sua constituição psíquica mais pro- das de Cristo, renunciou a todos os bens econômicos, que a sorte
funda diferem totalmente, mesmo no inconsciente, daquela que lhe concedera abundantes, e vive de modesta renda proveniente
costumamos encontrar nos médiuns. do ensino da língua inglesa no ginásio de Gúbio. Passa os dias
Não há automatismos nem privação de vontade para subme- no trabalho e na meditação, na renúncia quase completa a todas
ter-se a influências psíquicas extrínsecas perniciosas, com subs- as alegrias terrenas. Escreve muito. Prova-o sua copiosa produ-
tituição de personalidade: a personalidade mediúnica e de transe. ção literária. Temperamento profundamente místico desde tenra
Mesmo no estado inspirativo-criador, ele permanece sem- idade, dos místicos se diferencia pelo caráter próprio de raciona-
pre consciente, em relação com o ambiente que o cerca, e, se lista sem preconceitos, rigorosamente objetivo. Pode afirmar-se
sua personalidade aparece transformada, não é nova personali- ser sua exaltação mística do mesmo grau de sua potência racio-
dade que se impõe de fora, mas a sua própria, que ordinaria- nal. Nele, misticismo e racionalismo, ao invés de se excluírem,
mente está encoberta pela personalidade fictícia e social. Não completam-se e se vivificam mutuamente. Tem poucos amigos,
se exclui uma influência transcendente que se exerça às vezes vive vida prevalentemente solitária, mas não chega a ser misan-
nele, mas, de qualquer modo, dados os frutos que lhe advêm, tropo. Alma doce e tempestuosa a um tempo, temperamento ir-
não pode ser de natureza perniciosa e ―vitanda‖. Admitida essa requieto e voltado constantemente para Deus; passa entre os
influência, pode ser considerado um verdadeiro asceta-místico, homens sofrendo, dando-se todo a eles, na forma permitida por
ou então um místico natural. sua natureza, para realizar o que julga ser sua missão.
(a) Gaetano Biasi Com isto, pouco dele se diz. Notável contribuição para seu
conhecimento é-nos dada por sua obra História De Um Ho-
UM CASO DE BIOLOGIA SUPRANORMAL mem, cujo protagonista é ele mesmo. Mas essa obra é pouco
romanceada para podermos avaliá-lo bem. Não porque aí seja
A personalidade de Pietro Ubaldi velada a personalidade do autor ou, menos ainda, alterada, mas
Este artigo foi publicado nas revistas: Constancia – Buenos unicamente porque descreve o fenômeno biológico da criatura
Aires, de 1o de junho a 16 de novembro de 1949; La Idea – Bu- sem subir às causas do próprio fenômeno; e, sem elas, este não
enos Aires, outubro e novembro de 1948, e Estudos Psíquicos – pode explicar-se. As Noúres, A Grande Síntese e Ascese Místi-
Lisboa, de março a julho de 1948. ca, todas obras suas, lançam, porém, muita luz sobre as causas
Certo dia de outubro de 1945, num modesto restaurante de e permitem individualizar muitos aspectos da personalidade do
Gúbio, encontramos pela primeira vez Pietro Ubaldi. Foi um autor. Mas o leitor dessas obras ver-se-á logo a braços com no-
dia inesquecível, um daqueles que parecem amadurecer o desti- va e embaraçante dificuldade. A concepção científica e filosófi-
no de um homem. Acháramos o amigo da alma, a luz procurada ca, tal como é delineada, por exemplo, em A Grande Síntese,
por toda a existência. que, sem dúvida, é a obra mais importante, é de tão grande al-
Com a mente educada na ciência e na filosofia, dotados de cance, que torna difícil o enquadramento nela do autor e a in-
temperamento racional e místico ao mesmo tempo, rebeldes a terpretação do mesmo.
qualquer imposição ideológica, não podíamos aceitar uma fé re- Tendo como base essas obras e servindo-nos de nosso co-
ligiosa dogmática, porque a isto se rebelava nossa consciência. nhecimento pessoal com o autor, proporcionado por longa e
Pedíamos inutilmente à ciência e à filosofia que nos dissessem profunda amizade e simbiose espiritual mútua, esperamos tê-lo
a verdade, mas nosso grito perdia-se em infinitos labirintos e bem compreendido, e ele nos confortou respeitando nossas
becos sem saída; sangrava a alma em estrada sem objetivo. convicções a seu respeito. É óbvio que, para interpretar a per-
Aproximava-se o desespero. Tínhamos vago pressentimento de sonalidade de alguém, mister se torna enquadrá-la dentro de
que um dia acharíamos a luz da verdade, mas não sabíamos uma concepção ideológica séria e aceitável, a fim de que sua in-
quando nem de onde viria. Sentíamos, no entanto, que só a ci- terpretação seja lógica. Tudo isso tem importância fundamental,
ência poderia dar-nos resposta e não nos enganamos. Através porque a personalidade estudada adquire valor muito diverso de
da ciência, Pietro Ubaldi guiou nossa mente à verdade, lançou acordo com o sistema ideal em que seja enquadrada. Já que as
um raio de luz nas trevas, e nossos olhos extasiados enxerga- concepções humanas da verdade são infelizmente disparatadas
ram. Entrava em nossa mente aquela luz que tanto buscáramos, e mais ou menos limitadas, as definições que do estudado se
descia em nosso coração a paz para a qual dolorosamente es- podem dar, podem ser várias. A concepção dos ignorantes e
tendíamos os braços há longos anos. presunçosos pode defini-lo um louco; a concepção cristã-
◘ ◘ ◘ católica, um herege condenável; a ciência experimental, um in-
Feita esta premissa, seja-nos permitido dizer algo sobre Pie- divíduo interessante para estudos de psicanálise; e outras final-
tro Ubaldi. Perdoe-nos ele se nossa palavra não for adequada, e mente, um gênio, um santo, ou um visionário.
perdoe-nos o leitor se nossa linguagem for insuficiente para sua Estudá-lo-emos à luz da concepção geral de A Grande Sín-
mente e seu coração. Particularmente difícil é o assunto que nos tese e dos poucos mas seguros bruxuleios que nos oferece a ci-
propomos tratar, sobretudo porque rebelde às palavras comuns. ência. Como toda a ciência moderna experimental é acolhida
De qualquer forma, pode o leitor ficar certo de que tudo o que em A Grande Síntese, o julgamento mais amplo e cabal será
diremos deriva de profunda convicção pessoal, que, portanto, dado com base na concepção ideológica dessa obra. À luz da
ainda que não seja aceita, ao menos deve ser respeitada. Neste ciência, diremos apenas o que nos for dado dizer, pois nessa es-
trabalho, falaremos da personalidade de Pietro Ubaldi, diremos trada não se pode necessariamente esgotar o assunto. Julgamos
tudo o que sabemos e pensamos dele. Cremos útil para conhe- razoável caminhar nessas duas estradas, porque estamos persu-
cimento objetivo deste homem, que é pouco compreendido. Jul- adidos de que são as mais seguras, por estarem iluminadas pela
gamos poucos terem colocado Ubaldi, até aqui, na posição que mais viva luz, e porque abertas para horizontes sem limites.
lhe cabe. Esperamos fazer-nos compreendidos por quem deseja Rapidamente mostraremos as razões, persuadidos de que o lei-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 251
tor só poderá compreendê-las por si quando, para além da letra, a linguagem humana mais adequada à finalidade, e julgou opor-
tiver penetrado o espírito de A Grande Síntese. Dela não fala- tuno empregar a linguagem científica, por ser a mais séria e evo-
remos, por ser de natureza que não se pode explicar e, muito luída. Falou nessa linguagem e foi compreendido por muitos.
menos, resumir. Diremos apenas que nela achamos uma con- Teve o mérito de tornar acessível a muitos o que era privilégio
cepção da verdade que satisfaz plenamente a razão e o coração, de poucos iniciados, revelou o que o ocultismo de todas as épo-
concepção que, na Terra, nem a ciência, nem a filosofia, nem a cas e lugares conhecia, mas escondia. Nada de novo disse, por-
religião destroem. Nela, cada aspecto do pensamento humano que a verdade é una e indivisível. Compreendeu que a mente
acha seu lugar no plano que lhe compete. O conjunto resulta humana saiu da menoridade e está em grau de olhar o mistério e
harmônico, lógico, perfeito, indestrutível. Se fosse possível cri- estudá-lo. Com efeito, a ciência bate à porta dos mistérios, e
ar uma linguagem em que cada conceito correspondesse a uma Ubaldi, com sua obra, apresenta a chave à ciência.
palavra apenas e vice-versa, se compreendêssemos que só no Portanto a função biológica do escritor é muito importante.
absoluto existe uma verdade absoluta – enquanto no relativo, Mas, do mesmo modo e pela mesma razão que os grandes artis-
em que necessariamente vivemos, só existem verdades relativas tas são compreendidos por poucos, assim Ubaldi, até agora, foi
e progressivas – se, com segurança, compreendêssemos tudo is- insuficientemente e, sobretudo, mal compreendido. Claros e in-
so, seria fácil perceber que o erro é uma verdade parcial, muito dividualizáveis são os motivos. Sua concepção ou é compreen-
frequentemente um equívoco. Se cada palavra contida em A dida em suas linhas essenciais, ou não é absolutamente com-
Grande Síntese fosse interpretada em seu verdadeiro sentido, preendida. Para compreender suas linhas essenciais, é necessá-
todos ficariam persuadidos, como nós. Os homens não se en- rio ter o preparo do homem de ciência e, ao mesmo tempo, as
tendem, especialmente porque falam linguagens diferentes, ou faculdades psíquicas do místico. Sabem todos quão difícil é en-
seja, conceitos muitas vezes diversos são expressos com a contrar em igual medida e de forma acentuada as duas qualida-
mesma palavra. Todos sabemos pronunciar a palavra DEUS; des. O místico desconhece a ciência, e o cientista não compre-
mas o conceito é diversíssimo, conforme saia da boca de um ende e não aprecia o misticismo. Pode dizer-se que os dois se
místico ou de um involuído. O que deste conceito dissemos, repelem. Há entre eles o mesmo contraste que existe entre ma-
pode aplicar-se a todos os outros, que constituem os tijolos com terialismo e espiritualismo, de que tanto se fala hoje com con-
que se constroem os edifícios filosóficos, religiosos e mesmo vicção ou má fé, ou seja, o contraste entre matéria e espírito.
científicos. Infelizmente, não é possível realizar universal inter- Considerando-se bem, esse contraste, que cria entre os homens
pretação de todos os conceitos, dada a impossibilidade de todos ódios e lutas por vezes ferozes, deriva apenas da ignorância do
os homens realizarem os conceitos em si mesmos, já que alguns próprio homem ou de seus equívocos. Que matéria é essa que
só podem ser compreendidos à proporção que o indivíduo for se dissolve nos laboratórios da ciência, e que espírito é esse,
evoluindo. Por exemplo, o conceito de Deus, para um santo, só inimigo da matéria? Cremos que esse contraste nasce apenas da
pode ser compreendido por outro santo. Poderíamos continuar a insuficiência da mente humana. Fala-se com efeito de matéria e
discorrer, mas talvez não seja necessário. de espírito sem que se tenha o justo conceito de matéria e de
Voltando ao livro A Grande Síntese, acrescentaremos que espírito. É uma luta absurda, porque nem existe a matéria nem
não é difícil experimentar essa concepção, achá-la resistente e o espírito, mas apenas a substância, sobre cuja natureza nin-
totalmente satisfatória, quer através da análise como da síntese, guém sabe dizer a última palavra. Infelizmente, porém, na men-
seja pelas infinitas provas de dedução como de indução. Muitos te dos homens, se agita essa luta absurda, que leva à divisão
não se persuadirão, mas isso não admira; admiraria o contrário. também absurda dos ânimos, de que derivam as lutas visíveis,
Nela não faltam lacunas e incertezas, mas de valor não substan- sobretudo em nossos tempos, com o que lucram apenas a deso-
cial, que não infirmam, pois, as linhas mestras da própria con- nestidade e a ignorância. É mister destruir esse dualismo absur-
cepção e, muito menos, as destroem. É uma concepção vital do, só então o cientista poderá levantar seu olhar para o céu do
que traz luz à mente e paz ao coração e que nada destrói, mas misticismo e crer, e o místico poderá olhar para a ciência com
tudo vivifica, porque é universal. De qualquer forma, no fim olhos fraternos, e ambos, abraçados, poderão suscitar com esse
deste estudo, trataremos da personalidade de Ubaldi à luz da ci- abraço de amor a centelha divina que iluminará o mundo e en-
ência, embora pouco seja possível dizer, porque as conquistas sinará aos homens seu grande destino.
da ciência são muito limitadas. Só então poderá o pensamento de Ubaldi ser compreendido
◘ ◘ ◘ em sua natureza íntima. Tem muitos admiradores em todas as
Dito isso, procuremos interpretar a personalidade de Ubaldi partes do mundo. Mas quantos o admiram porque o compreen-
à luz da concepção geral de A Grande Síntese. Mas antes é mis- deram verdadeiramente? Ubaldi mesmo reconhece que pou-
ter distinguir bem a personalidade do escritor e a daquele ―Eu‖ quíssimos o compreenderam de fato. Muitos fizeram dele uma
que fala em A Grande Síntese. A voz que troveja e repreende em ideia contrastante com a realidade. Imaginam-no um semideus,
A Grande Síntese não é a voz de Pietro Ubaldi, mas a voz im- enquanto é apenas um homem. Estes provavelmente ficariam
pessoal da verdade. Desta voz, o escritor foi apenas o receptor e muito surpreendidos se o conhecessem pessoalmente, não por-
o tradutor fiel e eficaz. Em outras palavras, Ubaldi escreveu A que ele seja um homem de pouca valia, nada disso, mas porque
Grande Síntese por força inspirativa. Nas fases de máxima ex- incorreram no erro de formarem dele um conceito fantástico e
pansão de consciência, ele viu (intuiu) a verdade em suas linhas irreal. Tem períodos de depressão psíquica, durante os quais so-
mestras, perlustrou horizontes imensamente vastos e traduziu no fre de modo inaudito. Toca a beatitude do êxtase místico e o
papel e com linguagem humana, conforme a dialética da razão abismo da dor mais atroz, sai dos excelsos cumes da especula-
também humana, a verdade que vira. Traçou o quadro geral após ção da mente e desce ao abismo da sufocação de consciência.
a visão direta do mesmo, assim como o artista reproduz e mate- Observamos nele o homem dotado de poder psíquico gigantes-
rializa a própria visão estética e a torna acessível aos outros co e o homem fraco. Jamais, porém, se observa vulgaridade e,
através de estímulos aptos a impressioná-los pelos sentidos. As- muito menos, imoralidade. Notamos que apresenta dúvidas e
sim como a visão estética, se não fosse materializada na obra de incertezas que, no entanto, são resolvidas com absoluta clareza
arte, desapareceria secretamente na mente do artista e nada dela em A Grande Síntese. Mais de uma vez convidamo-lo a escla-
se escoaria para fora, igualmente a visão da verdade se teria recer as próprias dúvidas lendo suas obras, e muitas vezes o
apagado na mente de Ubaldi, nada dela saberíamos, se ele mes- confortamos com o conforto que dele recebêramos.
mo a não tivesse materializado e exteriorizado de tal maneira Mas, bem considerado, isso não deveria admirar. Ele, como
que a tornasse acessível à nossa mente. Esforçou-se ele em achar qualquer de nós, embora em planos diferentes, não é nunca
252 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
igual a si mesmo. Seu dinamismo biopsíquico é cíclico e, por- quico e, em certos momentos de esforço máximo, parece esfa-
tanto, sujeito a fases espetaculares de subida e descida. Segue- celar-se. Isto não ocorre nem pode ocorrer, pela razão que,
se daí que o mesmo acontece com suas faculdades conscientes, atingidos os limites extremos de resistência, ele reage automati-
ou seja, intelectivas e sentimentais. É um homem cuja persona- camente e cede, arrastando consigo o organismo psíquico, ana-
lidade está ligada à terra e ao céu ao mesmo tempo. Sua perso- logamente ao que ocorre na fase mística.
nalidade biopsíquica oscila, vibra, segundo um movimento cí- Nestas fases realiza-se a maior e mais elevada produção li-
clico ondulatório irregular, mas não casual. Em seu eterno di- terária ubaldiana. Nestas fases, o organismo físico sofre esfor-
namismo, sobe e desce de acordo com uma trajetória cujo vérti- ços e conturbações verdadeiramente apocalípticos, e, em certos
ce positivo está no plano místico e o negativo no plano huma- momentos, tudo parece desmoronar e incinerar-se. Isso não
no. Sobe e desce de um a outro plano, passando, naturalmente, ocorre pela automática autorregulação de que falamos. A sua
através de planos intermédios de que falaremos. produção literária nasce prevalentemente nesses momentos e
Esse fenômeno não deveria maravilhar ninguém, porque é representa um parto muito doloroso. As páginas de seus livros
comum à psique humana. Todos nós temos estados de ânimo são pedaços de carne, são escritos com seu sangue, são momen-
diferentes, períodos de sensibilidade e insensibilidade, de oti- tos de vida vivida em grandeza e dor excepcionais. Nem sem-
mismo e pessimismo, de expansão e compressão de consciên- pre ele escreve nesses momentos particulares, porque às vezes
cia; não obstante, estamos em ato ou em potência sempre suas condições psíquicas não lhe permitem escrever. Frequen-
iguais a nós mesmos. Ele difere de nós unicamente por maior temente confia à pena a lembrança fiel de uma visão preceden-
acentuação do fenômeno. A potencialidade biopsíquica dele te. Indispensável acrescentar que, no âmbito dessa fase, sua
viveu, naturalmente, momentos diversos mesmo no passado, e consciência não se mantém estática, mas está sujeita a flutua-
os viverá no futuro. Em sua presente vida, conheceu momentos ções mais ou menos intensas, pelo que ele vê em lampejos, e
psíquicos diferentes. Começou com a inconsciência da vida não continuamente. Atravessa momentos de máxima exaltação
embrional, passando daí à fase de consciência média normal e e momentos de repouso. Nem poderia ser diversamente, por
aos poucos à mediúnica, à ultrafânica e enfim à fase mística. que a economia biológica o impõe. Naturalmente, ele também
No atual período de sua vida, seu dinamismo biopsíquico osci- não pode subtrair-se de todo à influência do ambiente, que age
la da fase de consciência normal à de consciência mística. sobre ele, embora em medida e com efeitos mais limitados do
Concluindo, a evolução biopsíquica de Ubaldi é caracterizada que normalmente. Basta então um momento ocasional, ainda
por uma trajetória progressiva ondulatória. Trajetória análoga, que mínimo, para suscitar ou para acelerar nele um determina-
ainda que em proporção diversa, caracteriza o dinamismo bi- do estado de consciência, pois, às vezes, basta uma leve força
opsíquico da generalidade dos homens. externa para completar maturações íntimas adiantadas.
Dissemos que Ubaldi, em seu dinamismo biopsíquico, osci- Da fase de ultrafania, por processo natural de compressão
la entre o plano biopsíquico humano normal e o plano biopsí- de consciência, Ubaldi desce à fase ―de mediunidade‖, onde
quico místico, atravessando os planos intermédios. Agora dire- adquire as faculdades próprias do médium. Não tivemos ocasi-
mos que sensações ele experimenta nos diversos planos de ão de observar pessoalmente nele essa fase e, por isso, não es-
consciência e quais são suas manifestações externas. Comece- tamos em condições de ilustrar convenientemente suas manifes-
mos da fase mística. É a fase de máxima expansão da consciên- tações específicas mediúnicas. Não obstante, cremos poder
cia. Dura pouco, porque se durasse muito tempo, o mataria fisi- afirmar que pertencem à ordem dos fenômenos mediúnicos
camente. É um estado de suprema beatitude, de suprema cons- normais, a respeito dos quais está à disposição do leitor uma li-
ciência e de supremo amor. O organismo físico permanece au- teratura copiosa e com os quais se ocupa seriamente uma nova
sente da consciência dele, mas sofre as consequências do for- ciência, a metapsíquica. Resta-nos apenas salientar que as fa-
midável desequilíbrio que se produz em tais momentos entre culdades mediúnicas são contidas e disciplinadas pelo equilí-
ele e o organismo psíquico. É como se fora imerso numa chama brio e pela superioridade moral do próprio Ubaldi e que, de
que o queima sem dor, mas que o consome. Segue-se daí que, qualquer forma, elas são um estado biopsíquico de breve dura-
atingido o esforço limite, ele rui e, em seu desmoronamento, ar- ção e estranho, como veremos, à característica biológica pre-
rasta consigo o organismo psíquico, porque o organismo psíqui- dominante de Ubaldi. Não nos delongaremos neste argumento,
co e o organismo físico representam respectivamente o polo po- mesmo que pareça a muitos leitores ser o mais sugestivo, pri-
sitivo e o polo negativo do organismo humano, os quais devem meiro porque nada temos que acrescentar de novo ao que já se
coexistir em complementaridade harmônica. Na fase mística, o conhece dos fenômenos de mediunidade, e também porque,
organismo físico sofre e se adapta, em virtude de sua notável como dissemos, não tivemos a possibilidade de fazer observa-
elasticidade, à extrema tensão psíquica. Mas, atingidos seus li- ções pessoais e particularizadas neste assunto. A gigantesca
mites extremos de elasticidade, reage violentamente e rui, arras- personalidade psíquica e o superior equilíbrio intelectual e mo-
tando consigo o organismo psíquico. Portanto os momentos mís- ral de Ubaldi não o consentem. De outra parte, exibir essas fa-
ticos são breves, mas de intensidade máxima. Esses momentos culdades seria atrair a vulgar e patológica curiosidade do públi-
são possíveis apenas em condições de quietude, de recolhimento co. Tudo isso pode adaptar-se a um médium de salão, mas não
e isolamento. Deles, ele sai fisicamente esgotado e se precipita se adequa certamente à figura gigantesca de Ubaldi.
nos planos mais baixos de consciência. Não pudemos observar Do estado de mediunidade, por ulterior compressão de
pessoalmente o escritor em seus momentos místicos e, portanto, consciência, decorrente da diminuição do potencial biopsíqui-
não estamos em condições de dizer mais do que isso. co, ele desce ao estado próprio à generalidade dos homens.
Na fase de ultrafania, Ubaldi apresenta excepcional sensibi- Nesse estado, personifica sucessivamente os tipos biopsíquicos
lidade e potência de gênio. Tem a visão direta e consciente da humanos que, em progressão regressiva, unem o plano biológi-
verdade, participa intimamente da vida do universo, e sua cons- co mediúnico ao biológico médio normal humano. Adquire, por
ciência dilata-se em horizontes sem limites. Desses momentos isso, primeiro as características e manifestações do homem de
inspirativos saiu, de jato, A Grande Síntese. Nos momentos de gênio, ou seja, notável poder racional puramente humano, viva-
inspiração ou de ultrafania e sobretudo nos místicos, a natureza cidade de inteligência, a que se seguem características menos
humana de Ubaldi acha-se superada. De humano, sobrevivem pronunciadas, isto é, menor potência racional e intelectiva. E,
apenas as funções reduzidas do organismo físico, que, obvia- assim, gradativamente descendo, chega a adquirir as capacida-
mente, não pode subtrair-se de todo às leis que o governam. O des intelectivas do homem médio normal. Não nos consta tenha
organismo físico acompanha dolorosamente o organismo psí- ele jamais descido abaixo desta última.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 253
Importa acrescentar que tudo o que dissemos refere-se uni- zaria com este, desmaterializando-se e fixando-se em estado
camente ao potencial biopsíquico ou de consciência. No que diz evoluído mais avançado. Parece que fenômeno semelhante nos
respeito ao estado afetivo e sentimental, ou seja, a seu estado de seja dado observar nas funções físicas e psíquicas da biologia
felicidade ou de dor, a coisa se passa diferentemente. Com efei- do homem normal. Nem de outro modo poderia ser, pois a lei
to, ao dizermos que, no plano humano, Ubaldi apresenta facul- que governa a vida dos homens é una, universal e necessária.
dades racionais e intelectivas puramente humanas, não significa É mister observar ainda que, superado o vértice negativo da
que experimente estado de ânimo próprio da generalidade dos onda biológica, Ubaldi sobe mais forte e mais seguro, conquista
homens normais. Grave erro seria supô-lo, erro que impossibili- mais luminoso estado de consciência e volta novamente à visão
taria uma avaliação realística do mesmo. Quem compreende da verdade. Retoma o dinamismo biológico que lhe é próprio,
perfeitamente o fenômeno biológico que ele vive, chegaria por atingindo com menor esforço possibilidades superiores às que
si às mesmas conclusões. O estado de felicidade e infelicidade, antes alcançara. Indispensável agora precisar o que entendemos
de alegria e dor, próprio a cada ser humano, tem causa em sua por visão da verdade. O vidente não vê a verdade com os senti-
relatividade. É universalmente sabido que a dor deriva de ne- dos humanos normais, mas com a percepção extrasensorial, ou
cessidade insatisfeita, bem como a necessidade só surge da ex- seja, a vê dentro de si, sintonizando o próprio EU psíquico com
periência. Quando uma experiência agradável falta em nosso a própria verdade, mediante um sexto sentido que a evolução ne-
ânimo, nasce a necessidade de repetição da mesma. Essa neces- le criou. Considerando o organismo humano um aparelho recep-
sidade insatisfeita é, por sua vez, causa de sofrimento. Por tor, pode dizer-se que o organismo de Ubaldi é um aparelho
exemplo, quem experimentou o prazer de vida cômoda e abas- mais aperfeiçoado, mais sensível, isto é, apto a perceber sensa-
tada, sofre quando perde a comodidade e a abastança. Muito ções que, por sua natureza, um aparelho normal não pode perce-
menos sofre quem não fez essas experiências, ou mesmo nada ber. O aperfeiçoamento dos sentidos humanos está em relação
sofre. Igualmente, quem experimentou as alegrias do afeto hu- com as necessidades biológicas correspondentes ao plano evolu-
mano sofre quando este lhe falta. Menos ou nada sofre quem tivo e ao ambiente próprio de cada plano. Sabe-se que o ambien-
nunca as experimentou. Citamos dois exemplos, mas podería- te e a função criam o órgão; é lei universal e, portanto, vale tam-
mos continuar indefinidamente. bém para o ser que estudamos. Resulta que, exercitando ele uma
Dito isto, que dizer de quem experimentou a felicidade su- atividade biológica precipuamente psíquica, própria dos planos
prema, isto é, o êxtase místico? Evidentemente, nenhuma outra biológicos supranormais, e tendo-se subtraído à influência do
experiência pode proporcionar felicidade tão grande, e daí se ambiente propriamente humano, participando de um ambiente
deduz que quem experimentou essa suprema felicidade está super-humano, conquistou diversas características e possibilida-
condenado a não mais achar felicidade em coisa alguma. Quem des biológicas diversas das nossas. As suas características bioló-
viu, por um instante sequer, o Paraíso, jamais poderá esquecê- gicas harmonizam-se, portanto, com as leis da natureza e nelas
lo e procurará sempre revê-lo. Compreende-se, portanto, que têm sua justificação e explicação. Então, durante a fase de ex-
Ubaldi jamais poderá saborear as alegrias desta Terra. Só é feliz pansão da consciência, quando os centros psíquicos estão em
quando vive no plano místico. No plano ultrafânico é parcial- função, ele tem percepções extra-sensoriais da verdade, nela se
mente infeliz; aumenta sua infelicidade no plano mediúnico e funde em simbiose mútua, que se vai tornando aos poucos de fa-
se torna máxima no plano humano normal. E, como os momen- cultativa em obrigatória. Vive em harmonia com a lei universal,
tos místicos, únicos capazes de fazê-lo feliz, são de duração isto é, com o pensamento de Deus; supera a própria natureza
breve, segue-se que ele vive prevalentemente na dor. Ele paga a humana e realiza uma natureza super-humana. Vive uma reali-
visão fugaz do paraíso com longas e persistentes fases de pro- dade que não pode ser compreendida por homens normais, nem
funda dor, que mantém em ebulição todo o seu ser. Esta sua dor expressa pela linguagem comum. Análogo a isto é o que ocorre
imensa é, por sua vez, causa de sua progressiva catarse espiri- aos cegos de nascença, que não podem compreender a natureza
tual, catarse que o leva cada vez mais para ulterior superação de das diversas cores, por mais que lhes sejam descritas.
si mesmo. Está, pois, destinado à dor, cortou as pontes atrás de O fenômeno biológico vivido pelo nosso estudado é indubi-
si, e não mais pode tornar a viver nesta Terra nem obedecer às tavelmente muito interessante e revela-nos até que ponto pode
leis biológicas que a governam. Está suspenso entre o céu e a avançar o poder psíquico. A Grande Síntese foi escrita de jato,
terra. O paraíso apresenta-se-lhe só por instantes fugazes, a Ter- sem que o autor possuísse adequada preparação científica. Pode
ra lhe é inóspita. Drama tremendo e grandioso ao mesmo tem- parecer um prodígio, mas é apenas um fenômeno natural, ainda
po. Ele vive sua suprema ventura biológica. que raro; é a realização de uma possibilidade humana normal.
Atingindo a profundidade da fase humana, após período Não há prodígios na natureza, mas existe uma lei biológica de
mais ou menos longo de dor, a onda biológica de Ubaldi se in- que apenas conhecemos pequena parte. Ilimitadas são as possi-
verte e retoma seu ciclo ascendente. Ele regressa aos primeiros bilidades da ascensão humana, a força que as gera é aquela cen-
planos de onde descera, reproduzindo o fenômeno biológico telha divina que arde em cada um de nós, os motores são a dor
idêntico e inverso ao descrito. Qual a íntima razão biológica de e o amor. É necessária a força corrosiva da dor para quebrar o
tudo isso? Não a conhecemos. Indubitavelmente, isto se relaci- invólucro que nos mantém prisioneiros, assim como o fogo do
ona com as leis que governam a evolução nos planos biológicos amor para fundir a enorme couraça que nos separa da verdade.
supranormais, e difícil é percebê-las com clareza. Julgamos que Rasgam-se os véus do mistério só pelo mágico toque do amor,
as fases de depressão de seu dinamismo biológico sejam um êx- e vão seria agir diversamente. Característica peculiar dos pro-
tase; após a expansão, uma contração necessária para a consoli- dutos mais elevados da evolução humana é, com efeito, a nota
dação de seu organismo físico e psíquico, em novo equilíbrio dominante do amor, de um amor sobre-humano e ilimitado. Es-
de forças, através das íntimas reações biológicas, ligadas às sa é a característica fundamental de nosso estudado. Amor e dor
funções de trocas, portanto fenômeno comparável ao cansaço são a inesgotável fonte de sua grandeza
que se segue a um estado de intenso trabalho, que impõe ao or- Dito isso, compreende-se que seu poder intelectivo e vital
ganismo o estado de repouso e que, ao mesmo tempo, determi- está caracterizado por notáveis variações e que as experiências
na o refazimento dos órgãos que trabalharam. Tratar-se-ia então que o interessam são de natureza diversa e contrastam entre si
de um trabalho involuntário, que se desenrola na intimidade do vivamente. É fácil imaginar que desse contraste se origina um
organismo físico-psíquico para consolidar um equilíbrio bioló- complexo de ações e reações psíquicas e físicas que o mantêm
gico mais elevado. O organismo psíquico se consolidaria numa em estado de perene dinamismo, motivo de evolução e razão de
fase biológica mais adiantada, e o organismo físico se harmoni- alegrias sobre-humanas e de sobre-humanos sofrimentos. Com-
254 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
preende-se ainda quanto sofre ele no plano humano, quando sua rança, é sem dúvida notável. Sabemos, além disso, que ele
consciência experimenta participações medonhas. Não admira permanece no plano ultrafânico durante metade de seu tempo,
que, em tal estado de consciência, ele duvide, que considere es- ou seja, em um ano, permanece seis meses em estado ultrafâni-
tranha a verdade vista e descrita; não admira que seja atormen- co. Na outra metade de seu tempo, está em condições normais,
tado por incertezas, incorra em erros e despreze a si mesmo. mediúnicas e místicas. Não podemos precisar quanto tempo
Tudo isso pode parecer desequilíbrio patológico. Na realidade, permanece em cada uma dessas três fases. De qualquer forma, é
é desequilíbrio, mas criativo, porque sua personalidade o com- certo que as experiências místicas são de duração breve e de in-
preende, o enquadra e o domina, e dele se serve para a própria tensidade excepcional. Com esses poucos elementos, é sem dú-
subida. Demonstra-o sua autocrítica, serena e sincera. vida impossível deduzir conclusões precisas. Aliás, esta ativi-
Percebe-se ainda que, dada a particular excepcionalidade do dade biológica particular de Ubaldi não se presta a medidas e
drama, bem dificilmente pode Ubaldi receber válido auxílio dos análises mais minuciosas, pois, embora possíveis, de pouco
homens. Estes não o compreendem nem o podem, porque a serviriam ao nosso objetivo, desde que os momentos biológicos
compreensão só é possível entre os semelhantes, e ele é muito têm valor próprio intrínseco, que não pode ser apreciado pela
diferente de todos. Ubaldi vive uma vida que os outros desco- medida do tempo. Poucos minutos de suprema tensão mística
nhecem e deve amadurecer sozinho sua grande aventura. En- têm um significado biológico que transcende qualquer aprecia-
trou só nesse atalho árduo, cujo objetivo é uma vida maior. ção humana e não podem ser avaliados em confronto com os
Cortou as pontes atrás de si e não pode voltar. Seu único con- momentos de atividade biológica normal.
forto são entidades superiores, e a elas estende dolorosamente Tudo considerado, cremos poder concluir que a atividade
os braços. A visão de Cristo sustenta-o no esforço sobre- biológica do ―sujet‖ transcende a atividade biológica do homem
humano. Poucos homens o compreendem, ainda que muitos o normal. Além disso, julgamos não ser arriscado afirmar que a
exaltem, e só os primeiros podem trazer-lhe um pouco de refri- evolução biológica da personalidade estudada superou de modo
gério à sua grande paixão. Os segundos, com sua exaltação in- notável o plano biológico próprio do homem normal e que, por-
considerada, muito frequentemente lhe fazem mal. tanto, nos achamos diante de um caso interessante de homem
Ilustrado o fenômeno cíclico da vida de Ubaldi, aparecem supranormal. Não estamos em condições de dizer com precisão
lógicas e justificadas todas as manifestações de sua personalida- até que ponto supera ele o plano normal, mesmo porque não
de. Erros, dúvidas, incertezas, gênio, mediunidade, ultrafania, conhecemos a unidade relativa de medida, nem sabemos – co-
vertiginosas ascensões místicas, santidade, tudo isso constitui o mo talvez nem ele mesmo o saiba – a que grau de amadureci-
conteúdo do caso biológico de Ubaldi, assim como sentimentos, mento esteja ele chegando. Para não incorrer em erros prová-
possibilidades intelectuais e volitivas diversas, constituem a per- veis de avaliação, limitamo-nos, pois, a definir Pietro Ubaldi
sonalidade de cada um de nós. Se observarmos objetivamente e como um tipo biológico super-humano.
de perto a vida dos grandes homens que a humanidade venera e Pietro Ubaldi é um super-homem. Definir Pietro Ubaldi um
coloca nos altares, mesmo neles achamos também grandes e pe- super-homem talvez pareça arriscado. Talvez alguns se escan-
quenas coisas. Segue-se que, por causa das múltiplas e contras- dalizem. Não é razoável, porém, que isso aconteça, como não o
tantes manifestações de sua personalidade, nosso estudado pode seria se disséssemos que o homem civilizado é um super-
parecer, conforme o aspecto em que seja considerado, um santo, homem comparado ao troglodita, ou que fulano é mais evoluído
um gênio, um médium, um homem normal ou um doente men- que sicrano. O super-homem não é um ser privilegiado que sur-
tal. Pode, pois, inspirar admiração, amor ou compaixão. Essas giu prodigiosamente neste mundo, dotado de qualidades e me-
definições estarão certas se as olharmos em seu conjunto. Então, recimentos excepcionais por concessão do Alto. É um homem,
quando quisermos fazer um juízo sintético e realístico de Ubal- apenas um homem, que, em sua evolução, precedeu os seus
di, precisamos considerar suas múltiplas e contrastantes mani- semelhantes, porque, mais que eles, soube lutar e sofrer, pelas
festações, sem considerar o tempo de cada uma delas. Só assim mesmas razões que nos fizeram seres mais evoluídos que os
teremos uma visão objetiva e sintética dele. Fora disso, nos per- selvagens. Ele pagou e paga duramente o preço de sua superio-
deríamos num labirinto do qual seria muito difícil sair. Julgá-lo- ridade. No altar da Divindade, sacrificou sua personalidade
emos, pois, em função de todos os seus atributos, ou melhor, se- humana, para realizar a super-humana. Tem o que deu, nada
gundo a soma algébrica, se assim podemos dizê-lo, de seus valo- mais, porque a Lei é justa. Qualquer um de nós pode chegar
res positivos e negativos. Não é fácil esse cômputo, inútil dizê- aonde ele chegou e superá-lo no curso da evolução individual.
lo, sobretudo porque é extremamente difícil estimar o valor bio- Todos podemos transformar-nos gradualmente em santos e an-
lógico de cada qualidade, tratando-se de avaliações muito incer- jos, todos podemos realizar nossa natureza divina. Todos a rea-
tas e totalmente subjetivas. Não obstante, tentaremos uma apre- lizaremos, e então terá descido à Terra o Reino de Deus.
ciação desse gênero; ainda que não seja exata, será pelo menos Tudo o que até agora dissemos de P. Ubaldi só tem valor,
suficiente para orientar o julgamento num plano que se afaste o naturalmente, enquanto não sejam falsas suas manifestações ex-
menos possível da realidade. Esclareçamos que nossa apreciação ternas. Se mentido houvera, tudo quanto dele dissemos automa-
se refere à sua personalidade tal qual se apresenta no momento, ticamente cairia, e quem julgamos um super-homem seria, ao
sem nenhuma relação com o passado. invés, o mais miserável dos homens. É possível que P. Ubaldi
Dissemos que a personalidade de Ubaldi oscila entre o pla- nos tenha mentido? Decididamente o recusamos. Tudo dele se
no normal e o plano místico. Acerca deste, fazem prova as vi- poderá pensar, menos que tenha mentido toda a sua vida. Para
sões e estados de êxtase. Convenhamos que não existe um pla- atingir um ideal de vida evangélica, voluntária e consciente-
no místico do qual se possa tratar em sentido bem definido e ao mente abraçou uma vida que seria rejeitada por qualquer ho-
qual nos possamos referir, pois, como ensinam as doutrinas mem normal nesta Terra. Aceitou uma vida de dor e sacrifício,
esotéricas, existem muitos planos místicos, sendo eles mesmos consumiu sua vida em nome de um ideal. Que aspiração pura-
planos biológicos. Não estamos em grau de estabelecer até que mente humana teria podido impeli-lo até este ponto? Cremos
plano místico tenha Ubaldi subido e portanto, prudentemente, que, qualquer coisa que dele se pense, não se pode pôr em dú-
queremos supor que seu potencial biopsíquico possa erguer-se vida que ele seja um homem inteligente. Ora, como poderia um
até ao primeiro plano místico. Aceita essa suposição, segue-se homem inteligente abraçar uma vida de dor, só pelo gosto de
que sua personalidade pode considerar-se oscilante entre o pla- mentir? Poderia ter escrito tudo o que escreveu, se verdadeira-
no normal humano e o primeiro plano místico. A distância entre mente não o tivesse sentido? A dor arranca do rosto qualquer
esses dois planos, mesmo se não podemos apreciá-la com segu- máscara; quem sofre não sabe mentir. De qualquer modo, não
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 255
seria racional levar a desconfiança até este ponto, mesmo por- doenças e os em perene estado patológico são em pequeníssimo
que não há provas que autorizem uma suspeita, e ainda porque número, ao passo que a grande maioria é constituída de pessoas
não basta negar uma verdade para destruí-la. que adoecem irregularmente. Sabemos mais, que os indivíduos
◘ ◘ ◘ fortíssimos e os fraquíssimos são exígua minoria, enquanto a
Passemos, agora, a examinar sua personalidade à luz da ra- grande maioria se compõe de indivíduos medianamente robus-
zão normal e da ciência. Este é um método de pesquisa particu- tos. Poucos são os gênios, os santos, os imbecis, e os delinquen-
larmente seguro, mas de possibilidades muito limitadas. Admi- tes, numerosíssimos os medianamente bons e medianamente in-
tindo que a ciência aceita a evolução biológica de todos os seres teligentes. Análogo fenômeno estatístico deve ser necessaria-
vivos, é mister, para avaliar o valor biológico de P. Ubaldi, es- mente encontrado também em relação com a potencialidade bi-
tabelecer se ele pode ser considerado um tipo biológico desti- ológica, na qual se exercita o trabalho seletivo que realiza a
nado a ser esmagado pela evolução, ou para triunfar com ela. evolução. A expressão gráfica do fenômeno é uma curva em
Tem isto importância fundamental. Aliás, nisto reside todo o forma de sino, também chamada Curva de Gauss.
problema. Não é fácil apresentar uma resposta aceitável, por Daí se deduz que, em cada raça, existem três grupos de in-
muitas e óbvias razões, mas sobretudo porque atualmente é di- divíduos, entre os quais um pequeno, constituído por indivíduos
fícil, senão impossível, conhecer as características biológicas dotados de baixo potencial biológico, destinados a serem esma-
do homem que será criado pela evolução. De fato, não se pode gados pela evolução e a extinguirem-se; um segundo grande
saber a priori como será o homem do futuro, como há séculos grupo, constituído por indivíduos dotados de potencialidade bi-
atrás não teria sido possível imaginar as características do ho- ológica média, destinados à conservação da raça; e, enfim, um
mem do século vinte. Tão pouco conhecido é o homem, tão terceiro pequeno grupo, dotado de potencialidade biológica su-
obscuras as leis e causas da evolução, que qualquer previsão te- perior, destinado a criar lentamente uma raça superior, isto é, o
ria sempre sabor pessoal e seria, portanto, muito incerta. Nos produto da evolução. Verificado isso, deduz-se que os pioneiros
organismos humanos há caracteres recônditos e forças poten- da evolução pertencem à anormalidade, ou seja, são anormais.
ciais de que nenhuma pesquisa poderia hoje fazer o levanta- Visto que existe uma anormalidade positiva e uma negativa,
mento e a interpretação. Possui a ciência formidável método de resta-nos examinar quais são as manifestações biológicas que
pesquisas, conquistou posições soberbas, mas – mister é reco- caracterizam as duas anormalidades opostas. Uma descrição de
nhecê-lo – ainda é criança, tem as possibilidades de um infante, caráter geral seria quase impossível e não adiantaria nem à cla-
a quem pertence o futuro, mas que ainda está relativamente reza, nem à exatidão. Seria mister então descer à particularida-
inexperiente e mesmo, às vezes, teimosa. Defeitos da juventude de de cada raça e de cada indivíduo, e aí fazer as próprias ob-
que o tempo liquidará, mas defeitos notáveis, especialmente servações e apreciações. No estado atual de conhecimento da
quando se lhe pede a explicação de problemas da natureza do matéria, cremos não seja possível agir de outra forma.
que estamos estudando. Feita esta necessária digressão de caráter geral, retomemos o
Dito isso, conclui-se que existem raças e indivíduos que es- estudo de nosso ―sujet‖. Não há dúvida de que as manifestações
tão destinados a ser eliminados pela seleção da evolução, por- biológicas deste, e de modo particular as psíquicas, pertencem à
que são fracos, e outras raças e outros indivíduos que, ao con- mais nítida anormalidade. Achamo-nos, então, diante de uma cri-
trário, estão destinados a sobreviver, porque são dotados de su- atura que representa o produto ou o refugo da evolução. A qual
periores possibilidades biológicas. Desde que as novas raças das categorias pertence ele? Não é possível dar uma resposta
dominantes, lentamente, surgem das raças pré-existentes e do aceitável se antes não o analisarmos em todas as suas peculiares
seio destas saem triunfantes, por fenômeno natural da seleção, é manifestações biológicas. É o que agora tentamos fazer, por meio
claro que em cada raça existem indivíduos de possibilidade bio- de um exame atento de suas características físicas e psíquicas.
lógica superior e outros de potencialidade biológica inferior, ou O funcionamento do organismo físico de P. Ubaldi não se di-
seja, que existem exemplares destinados a propagar-se no futu- ferencia de forma acentuada dos homens normais. No entanto
ro e outros destinados a desaparecer. A potencialidade biológi- existe uma diferenciação, mas de caráter positivo: ele é particu-
ca dos indivíduos que constituem qualquer raça é, pois, muito larmente resistente aos agentes patógenos e aos esforços físicos.
diversa, e os próprios indivíduos, a esse respeito, são distribuí- Tem sessenta anos completos e goza de ótimas condições de saú-
dos na raça de acordo com uma gama de valores biológicos de. Prova-o o fato de que, normalmente, jamais se utiliza de mé-
progressiva ou regressiva, como se queira chamá-la. Estudando dico. Seu aspecto exterior não denota nenhum depauperamento,
estatisticamente o fenômeno, pode observar-se, além disso, que mas, ao contrário, tem características relativamente juvenis. E is-
em cada raça existe um grupo muito numeroso de indivíduos to, não obstante o regime dietético extremamente parco e o maior
dotados de características biológicas médias e dois outros pe- descuido com que trata seu organismo. É fora de dúvida que
quenos grupos com caracteres opostos, porque de qualidade su- qualquer organismo humano normal sofreria inevitável depaupe-
perior ou inferior aos do grupo biológico médio. Os indivíduos ramento orgânico se fosse explorado tanto e tão sumariamente
pertencentes ao primeiro grupo são os chamados normais, os alimentado e tão mal guardado. Surpreende em verdade, como,
componentes dos outros dois grupos, anormais. nessas condições, possa seu organismo manter ótimo seu funcio-
O que ficou dito vale para as características morfológicas e namento. Normalmente, alimenta-se apenas uma vez por dia. Sua
as funcionais. Cremos, pois, razoável estender a apreciação alimentação é muito frugal, e podemos testemunhá-lo, porque,
também pelo que diz respeito à potencialidade biológica dos durante vários meses, sentamos com ele à mesma mesa. Trata-se
indivíduos. Mesmo sendo dificilmente apreciável e cognoscível de uma refeição rigorosamente racional, segundo as leis dietéti-
a potencialidade biológica dos exemplares de uma raça, acredi- cas e a preço fixo. Às vezes toma, à noite, uma xícara de leite ou
tamos que, analogamente ao que se observa nos caracteres mor- pouco mais, às vezes nada. A quantidade de calorias que fornece
fológicos e funcionais, possa afirmar-se que em cada raça exis- a seu organismo é, indubitavelmente, uma fração exígua do mí-
te um grupo muito numeroso de indivíduos de potencialidade nimo necessário para o homem normal. Isto não o impede de ser
biológica normal e dois pequenos grupos de potencialidade bio- dinâmico mesmo fisicamente, e de suportar esforços materiais,
lógica anormal, de valor oposto. Tudo isso teria de verificar-se como o de ir visitar sua família, pedalando setenta quilômetros de
necessariamente, dada a relação de estreita interdependência bicicleta, de Gúbio a Santo Sepulcro.
que parece existir entre os caracteres morfológicos e funcionais Desenvolve concomitantemente três profissões, cada uma
e os caracteres biológicos mais profundos, que individuam cada das quais poderia bastar para um homem: 1 o) o ensino; 2o) a
personalidade. Sabemos todos que os indivíduos não sujeitos às produção literária e o cuidado da impressão de seus trabalhos
256 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
no mundo, com uma correspondência epistolar em seis línguas por isso, aliás de pouco valeria se esse homem não soubesse
diferentes, em média com cinquenta cartas por semana; 3 o) o viver as ideias que professa e se elas não fossem capazes de in-
trabalho doméstico para si mesmo, pois vive só, sem emprega- fluenciar outros homens. Vive Ubaldi suas ideias e são elas
dos. Desprovido de todo auxílio, de toda assistência, tem que compreendidas e vividas por outros homens? Sem dúvida. To-
fazer tudo por si mesmo. Quando tem febre ou qualquer indis- da sua vida é a exteriorização prática das mesmas, o plebiscito
posição, suporta seu mal sem ir à cama, em plena atividade. de concórdia e amor que a ele chega de homens de todas as
Muito raramente, e só em casos graves, resigna-se a ir para o partes do mundo, demonstra que essas ideias já tiveram sua
leito. Suporta indiferentemente calor ou frio. No inverno, ja- grande função biológica. Denota isso que elas não são apenas
mais aquece sua casa, apesar do excepcional rigor da localidade literatura ou força potencial de possibilidades problemáticas,
em que habita, particularmente fria e sujeita a neves. Vive em mas já são uma força real em ato. Sem dúvida, elas caíram em
pobreza voluntária, abolindo até as mais elementares comodi- quem, por sua natureza psicológica, estava preparado para per-
dades, não só para atingir seu ideal de vida evangélica, como cebê-las; mas isso não impede que uma ação específica possa
pela satisfação de vencer todas as dificuldades. Seu caráter é igualmente a elas atribuir-se, ainda que como função comple-
indubitavelmente forte, e seu organismo também. É evidente, mentar. É suficiente um lampejo nas trevas para nos indicar o
pois, que possui qualidades intrínsecas que o diferenciam da caminho, e isso tem grande importância, mesmo se o resto do
normalidade no sentido positivo. caminho tiver que ser percorrido com nosso esforço. As quali-
Sobretudo, porém, surpreende como seu sistema nervoso dades morais de Ubaldi são certamente muito diferentes das do
possa manter, sem quebrar, o ingente trabalho a que está sem- homem normal de hoje e de ontem. A vida que exterioriza na
pre submetido. Bastará recordar que só conhece o repouso das substância dos atos é a vida segundo a moral evangélica, a prá-
horas de sono, muito pouco aliás, pois, durante todo o tempo tica cotidiana e inteligente das bem-aventuranças anunciadas
restante, fica submetido a incessante tensão, que enfraqueceria por Cristo na montanha. Pode mesmo dizer-se que a concepção
qualquer sistema nervoso normal. Trabalha durante várias horas ideológica e moral de Ubaldi é a concepção profunda e subs-
à noite, que para ele são as melhores, porque todos dormem e tancial do cristianismo, do cristianismo bebido em suas fontes
estão em silêncio. Só de vez em quando lhe aparecem pequenos mais puras, livre das mortais dentadas dos dogmas, das tradi-
períodos de cansaço, dos quais prontamente sai sem chegar a ções e dos formalismos, que, através da letra, matam o espírito.
ter verdadeiro esgotamento nervoso. Esses momentos de de- Essa concepção não contrasta aliás, antes, harmonizam-no, em
pressão verificam-se após períodos de trabalho intelectual ex- suas linhas essenciais, com as profundas concepções esotéricas
cessivamente intenso; às vezes os precedem, como se a vida se de todas as religiões da Terra. Caminha na esteira moral dei-
preparasse por si mesma, ao esforço que depois terá de fazer. xada pelos santos e iniciados de todas as crenças do mundo.
Tudo considerado, pode verificar-se que nele prevalece o traba- Com esta afirmação, permanece bem afastado de nós a inten-
lho intelectual e espiritual, sustentado por um sistema nervoso ção de enquadrá-lo em qualquer grande organismo religioso, a
particularmente poderoso, resistente e hipersensível. Lembre- fim de valorizar-lhe a personalidade a preço baixo. Pensamos
mo-nos também que, durante os períodos de atividade mística, em fazer apreciações críticas dessa forma de moral, para pes-
seu sistema nervoso é obrigado a suportar fortes comoções, em quisar se ela é a moral dos homens superiores ou a dos homens
virtude dos grandes deslocamentos em seu potencial, em con- fracos, que vivem à margem da coletividade como refugo pato-
sequência do que, ao sair deles, se encontra parcialmente per- lógico. Observemos de perto esses homens, chamados santos,
turbado e alterado, tal como sucede a qualquer sistema nervoso estudemo-los no ambiente biológico humano, tal como a nós
normal submetido à ação de poderosas comoções emotivas. se apresenta neste ambiente em que vivemos.
Após longas e intensas experiências místicas, o sistema nervoso O ―modus vivendi‖, o hábito moral, as aspirações e as idei-
apresenta anomalias e alterações particulares, as quais, entre- as desses homens excepcionais, são totalmente opostos aos dos
tanto, desaparecem em pouco tempo. homens normais. Ao egoísmo, à violência, ao ódio, à busca
Falou-se de neurose. Mas que é neurose e, sobretudo, a neu- dos prazeres materiais, eles contrapõem o altruísmo, a mansi-
rose de nosso estudado? Julgamos que qualquer neurológico dão, o amor, a busca das alegrias espirituais. É uma verdadeira
capaz e honesto, em semelhante caso, seria ao menos prudente e própria inversão de valores, é a revolução moral, cujo conte-
antes de exprimir um diagnóstico conclusivo e uma apreciação údo está substancialmente traçado nas bem-aventuranças
do mérito. Cremos que seja mister muita cautela ao sentenciar a anunciadas por Cristo. Eles, voluntariamente, renunciam aos
respeito desta matéria, porque podemos incorrer no erro de prazeres que outros, com ingentes sacrifícios, buscam, e, acima
considerar patológico o que seja natural manifestação biológica desta renúncia, procuram e encontram alegrias espirituais co-
supranormal. Do que dissemos, conclui-se que o organismo fí- nhecidas só por eles. São homens dotados de grande força de
sico de P. Ubaldi pode ser considerado, por motivos óbvios, caráter, de máxima sensibilidade, bondade e poder de intuição.
mais do que normal e dotado de qualidades intrínsecas que o di- E já que esses homens têm necessidades, desejos, aspirações e
ferenciam de modo positivo do homem normal. finalidades opostas aos da generalidade dos homens, segue-se
Feito este breve exame das qualidades físicas, passemos a daí que entre as duas partes não há razões para luta e hostilida-
observar suas qualidades psíquicas. Diga-se de início que as ca- des. O santo apresenta-se à sociedade como ser inócuo; pode
pacidades intelectuais do mesmo podem considerar-se, sem despertar incompreensão ou desprezo, mas, materialmente, não
sombra de dúvida, superiores às que são próprias do homem é combatido. Esta é uma forma de incolumidade que represen-
normal médio. A esse respeito, racionalmente não se pode duvi- ta privilégio de grande valor. Como seria possível combater
dar. Por exemplo, a concepção geral de A Grande Síntese, qual- um homem que passa entre nós amando e beneficiando, que
quer que seja o juízo que dela se faça, é sem dúvida o produto de nos ama quando o odiamos, que faz o bem mesmo quando lhe
uma mente incomum. Já que universalmente é conhecido e acei- fazemos mal, que tudo dá sem nada pedir para ele? Poderemos
to que o poder do gênio é um fator de importância primordial e considerá-lo um louco, mas não teremos motivos para comba-
ao mesmo tempo índice do valor intrínseco do homem, segue-se tê-lo e, muito menos, para liquidá-lo.
daí que, mesmo sob este aspecto, ele apresenta uma nítida supe- Só em circunstâncias particulares pode ocorrer que eles se-
rioridade em comparação com o homem normal. jam combatidos ou até liquidados. Isso aconteceu no passado e
Reconheçamos que não basta alguém saber escrever um li- poderá ocorrer no futuro. Diz-nos a história que alguns desses
vro ou livros diversos e geniais, para que se possa considerar homens extraordinários sofreram o martírio, e as razões são evi-
superior aos outros. O valor de um homem não é constituído só dentes. Santos particularmente dinâmicos, com imenso amor aos
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 257
oprimidos, encontraram-se com os opressores e pagaram com a ção. É óbvio que se o não fora, estaria errado tudo quanto
vida. Outros suscitaram sentimentos novos na massa, de equida- acima afirmamos. Preciso é notar, antes de tudo, que homens
de e justiça, contrastando com privilégios de organizações soci- desta espécie não podem ser considerados parasitas da socie-
ais particulares, que reagiram suprimindo ou perseguindo o ad- dade, pois que trabalham e, com seu trabalho, ganham o pró-
versário. Sucedeu ainda que esses homens colidiram contra os prio sustento. São homens que trabalham com inteligência e
privilégios ou a corrupção de comunidades eclesiásticas e foram abnegação, que dão de si mesmo, contentes por ter apenas o
por estas direta ou indiretamente suprimidos, perseguidos, ou de quanto lhes basta para viver modestamente. Não são, portanto,
qualquer forma impedidos de agir. Mas que ocorreu quando eles contemplativos estéreis, mas ótimos trabalhadores, voltados
subiram ao patíbulo ou foram perseguidos? Nesse momento, para o progresso. Estamos também persuadidos de que uma
eles conquistaram a coroa do martírio, que, com sua ressonância sociedade constituída por homens que trabalham com muita
sentimental nas massas, assinalou a condenação dos opressores. vontade e inteligência, em que cada um ama seu próximo co-
Portanto, ou não são perseguidos e gozam do privilégio da imu- mo a si mesmo; em que cada um dá tudo aos outros, só pre-
nidade, ou são combatidos e, então, conquistam os louros do tendendo o estritamente necessário; onde se ama e ajuda a
martírio, fator psicológico de poder inimaginável. Temos que quem sofre; onde não se mata nem se rouba; onde existe li-
considerar, de fato, que os princípios morais encarnados nesses berdade e fraternidade; onde o pensamento é livre; onde a dor
homens são, consciente ou inconscientemente, sentidos pela é recebida como instrumento de libertação e de evolução; on-
consciência das massas, que intuem neles a presença de um de se sofre com o sorriso nos lábios; onde se desconhece a vi-
―quid‖ imponderável, que as sugestiona poderosamente. A his- olência e se ignora o arbítrio, estamos persuadidos de que só
tória ensina que, quando um santo sobe ao palco do martírio, as- essa seja a sociedade perfeita; a sociedade que todos os ho-
sinala esse dia o seu triunfo e a derrota dos carrascos. mens bons e inteligentes da Terra queriam realizar para si e
Tais seres, portanto, não podem ser golpeados eficaz e im- para seus filhos. Estamos persuadidos de que uma sociedade
punemente. Isso representa para eles uma vantagem digna de assim constituída seja aquele paraíso perdido, para o qual se
nota. Os homens normais não a têm. A moral praticada por es- voltam todas as ânsias da humanidade atormentada desta Ter-
tes os leva ao ódio, à luta, à supressão e à neutralização recí- ra. Considerado tudo isso, parece-nos razoável concluir que o
proca estéril. Poderão objetar que as massas sentem o fascínio tipo biológico representado por P. Ubaldi seja um tipo que a
desses homens porque são ignorantes ou supersticiosas; mas is- evolução não pode destruir, mas terá de conservar.
so é falso e não subsiste diante da realidade evidente de que o De outra parte, não será difícil observar que a humanidade,
progresso da civilização humana conduz a um aperfeiçoamento mesmo através de seus erros e torpezas, tende a envolver para
moral que faz apreciar cada vez mais o amor, a bondade, o al- este tipo biológico. Pode observar-se, com efeito, que, no cora-
truísmo, características predominantes nos santos, em propor- ção das massas humanas, surge consciente ou inconscientemen-
ções excepcionais e heroicas. te uma necessidade cada vez mais sentida de bondade, de bele-
Mas há mais ainda! Só entre esses homens achamos os tau- za, de verdade. Sob as agitações da superfície, as grandes leis
maturgos, ou seja, os homens que conquistaram o poder de fazer biológicas exercitam um trabalho subterrâneo preparatório e de
os chamados milagres. Convenhamos que esses poderes perten- maturação e, cada vez mais, exteriorizam a necessidade de
cem à biologia natural, mas precisamos convir que também eles bondade, de amor, de altruísmo. Hoje, mais do que nunca, po-
são o índice de um poder biológico extraordinariamente superi- demos constatá-lo, se, sobrepujando as aparências, penetrarmos
or, que a generalidade dos homens ainda não possui. Notemos, na realidade mais profunda que agita o coração das massas. Os
ainda, que só esses homens têm, por vezes, possibilidades profé- políticos, os demagogos, os agitadores, só acham eco duradouro
ticas e outras manifestações de clarividência. São manifestações entre as multidões quando fazem brilhar uma miragem de amor,
que maravilham profundamente e que, por sua vez, são o índice de bondade, de liberdade, de altruísmo, de fraternidade. Os ho-
de possibilidades intelectivas verdadeiramente superiores. Esses mens bons, altruístas, sábios, gozam de respeito e da veneração
poderes ultrafânicos não podem ser apreendidos através da cul- universal. O homem hipócrita veste-se com esses atributos para
tura, e isto também demonstra que eles pertencem à ordem das ocultar suas misérias morais e tornar-se agradável a seus seme-
características biológicas intrínsecas, próprias apenas desses lhantes. As multidões anônimas e silenciosas trazem essa ne-
homens extraordinários. E a pessoa que estudamos é dotada de cessidade no coração. E elas compreendem a quase totalidade
poderes ultrafânicos. A produção de A Grande Síntese, escrita dos homens. Comovei-as com a palavra que vem do coração e
de jato, sem adequada preparação científica, as previsões da da alma, falai-lhes de amor e fraternidade, agi de modo a so-
guerra recente, contidas nessa mesma obra e na Ascese Mística, brepujar sua instintiva desconfiança, fruto de seculares enga-
são prova disso. A avultada anormalidade que encontramos em nos, e as vereis chorar comovidas.
Ubaldi pertence, por suas características específicas, à natureza No entanto estes são os tempos em que triunfam os assassi-
própria dos homens de que vimos falando. Julgamos, pois, que nos, os prepotentes, os ladrões, os hipócritas, os astutos, os de-
possa considerar-se uma anormalidade de caráter positivo, ou sonestos de todas as formas e cores, em que se troca por dinhei-
seja, uma anormalidade que se tornará normalidade, quando a ro tudo o que é sagrado, em que nada mais parece ser respeita-
evolução humana tiver caminhado mais um pouco. do. Mas este, como dissemos, é um fenômeno visível de super-
Concluindo: considerando-se que Ubaldi apresenta qualida- fície; a realidade profunda é diferente. Do atual espasmo surgi-
des físicas mais do que normais, poder intelectual superior ao rá a reação, e a última palavra será dita pela alma coletiva. Os
normal, qualidades psíquicas e morais de natureza tal que o maus serão destruídos por seus próprios delitos. O ódio e a
subtraem quase completamente das influências negativas do maldade geram ódio e maldade, que se destroem mutuamente; a
ambiente e o fazem dominar sobre elas; considerando-se que bondade e o amor são por sua vez a gênese de mais elevado
ele não pode ser eficazmente golpeado, mas, ao contrário, pode amor e de mais generosa e iluminada bondade. Pode-se dizer
exercitar sobre os homens uma profunda função biológica, que perfeitamente que o mal tem uma função biológica negativa e
interessa à parte mais importante da natureza humana, ou seja, destruidora, e que o bem tem uma função biológica positiva e
a psique, pode-se racionalmente concluir que nos achamos di- criadora. É por isso que estamos persuadidos de que o trabalho
ante de um caso de anormalidade positiva, isto é, de verdadeira da evolução conservará as qualidades biológicas do santo e des-
e própria superioridade biológica. truirá as opostas. Concluamos, portanto, que nosso estudado
Ocorre agora perguntarmos se uma sociedade de homens pode considerar-se um pioneiro da evolução.
desse gênero seria compatível com o progresso e a civiliza- ◘ ◘ ◘
258 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Estamos no fim deste estudo, e só falta dizer o que pensa que humana. Muitas de suas partes parecem dirigir-se mais aos
Ubaldi dele mesmo. Substancialmente, ele tem consciência de homens do futuro do que aos de hoje. Mas as profundas verda-
representar o que até agora dissemos dele. Ele se aprecia ou de- des expostas pertencem a todos os tempos. A nota chave do li-
precia, de acordo com o termo de sua comparação: o homem ou vro é a ascensão espiritual.
Deus. Diante do homem normal, ele se considera superior; di- O Professor Bozzano, que vem acompanhando a mediuni-
ante de Deus, uma coisa bem miserável. Não deve surpreender- dade de Ubaldi desde seus primórdios, tem a mais elevada opi-
nos, pois, que ele fale aos homens com a linguagem do mestre nião do homem e de sua obra. Escreveu ele: ―Está redigida em
e, ao mesmo tempo, se humilhe e aniquile diante de Deus. Tudo termos rigorosamente científicos, estando de completo acordo
isso é profundo conhecimento e autocrítica serena e objetiva. com as atuais concepções filosóficas, matemáticas e geométri-
Que função biológica julga ele ter? Ajudar aos homens em cas sobre o mesmo assunto‖.
sua evolução para uma vida superior. Ele vive para cumprir es- O Dr. Estoppoloni, professor de Anatomia da Universidade
se seu extraordinário dever que as leis da vida, o pensamento de de Camerino, escreveu: ―Essa publicação feita por quem pouco
Deus, lhe teriam confiado. Consome-se nessa função, que, com ou nada sabe de química, é verdadeiramente espantosa, porque
sua linguagem mística, chama de missão. Crê firmemente nesta as ideias são realmente científicas, tais como podiam ser formu-
sua missão e nela empenha todas as suas forças. Com o exem- ladas por competente estudioso de química‖.
plo de sua vida, dá testemunho de tudo quanto diz; fala pela O Professor Schaerer, filósofo belga, confirmou: ―Conside-
imprensa e raramente de viva voz aos amigos e discípulos. Ao ro-o utilíssima demonstração de que as comunicações mediúni-
conversar, jamais assume o tom de pregador. Sua linguagem é cas podem produzir obras de alto valor científico e racional‖.
dialética. Discute com muita seriedade e paixão; gosta mais de Grande foi o esforço para receber as comunicações, tendo
ouvir do que de falar. Sua dialética é serena e persuasiva, seu Ubaldi a princípio duvidado de seus poderes; mas diversos mé-
pensamento é límpido, sem preconceitos e profundo; capta o diuns dele desconhecidos recebiam espontaneamente mensa-
pensamento do interlocutor com perspicácia e intuição surpre- gens incitando-o e encorajando-o a continuar a todo custo a
endentes. Dir-se-ia que sabe compreender até o pensamento que obra para a qual havia sido chamado; e ele prosseguiu, a des-
não foi expresso. Gosta de ouvir o opositor, jamais se detém em peito das dificuldades de toda ordem; vivendo com simplicida-
posições preconcebidas, é verdadeiramente um livre-pensador. de franciscana, ganhando seu pão cotidiano como mestre-
Às vezes, mostra-se feliz por haver achado algo que aprendeu e escola, passando longas horas sozinho nas fraldas da montanha,
toma notas. Interessa-se com grande paixão pelas questões ci- escrevendo à noite e nas férias estivais. Assim foi produzida A
entíficas, que ele interpreta e enquadra com máxima precisão na Grande Síntese, volume de cem capítulos e quase quatrocentas
vasta visão da verdade que nele está presente por visão intuiti- páginas. Sempre muito consciente, Ubaldi teve a capacidade de
va. Confia à imprensa toda sua personalidade, seus pensamen- observar minuciosamente e analisar sua própria mediunidade,
tos, suas visões, seus dramas. Com a copiosa literatura, dá sua tendo já publicado outro volume, As Noúres, no qual relata
alma à humanidade e a projeta no futuro. Seus escritos estão, já pormenorizadamente como A Grande Síntese foi escrita.
agora, lançados em todas as partes do mundo, traduzidos nas Julga que seu tipo de inspiração muda de acordo com sua
línguas mais difundidas, são acolhidos e compreendidos por própria evolução espiritual. Afirma que as faculdades intuiti-
homens de todas as raças. Um plebiscito de amor e de gratidão vas, cujo uso em criações artísticas e poéticas é um fato acei-
levantou-se para ele. Muitos foram os beneficiados, e quem es- to, também devem ser usadas em estudos científicos, pois só
creve isto, está entre eles. Arrastado por esta sua tarefa de bem, por meio delas podem ser resolvidos os maiores problemas
que se tornou a finalidade de sua vida, movido por este ideal de da filosofia científica. O espírito humano deve sintonizar-se
bem e de amor, dá-se todo com ardor. Sua pessoa humana se com as correntes mais altas (noúres), sendo indispensável a
consome queimada nessa chama de amor, e só sobrevive a al- fusão da fé com a ciência.
ma, que encontramos palpitante em todos os seus escritos. Ele Para receber e transmitir ao papel as mensagens das esfe-
se dá a si mesmo por um ideal grande; sua alma pertence à hu- ras mais altas, o médium deve sensibilizar-se até ao mais alto
manidade e a Deus. E caminha dolorosamente entre os homens, grau, viver uma vida de renúncia e purificar-se de toda man-
amando e beneficiando, criatura celestial mais do que humana, cha de materialismo. Ubaldi crê que o sofrimento é o grande
com o olhar dirigido às estrelas. elemento purificador, e ele mesmo muito tem sofrido ao per-
Verona – Itália, Páscoa de 1947. seguir seu ideal.
(a) Paolo Soster Quanto à entidade inspiradora, que assina com ―Sua
Voz‖, foi dito ao médium: ―não pergunte meu nome nem
PIETRO UBALDI E SUA OBRA procure identificar-me. Nem você nem ninguém poderia fazê-
lo‖. Acredita que as mensagens se originam de esferas muito
Da Revista Light – Londres (Inglaterra), 27 de janeiro de elevadas e são transmitidas não por um só comunicante, mas
1938. por um grupo. Sua participação na obra é manter o canal
Em modesta casa, às margens de um desfiladeiro, logo às aberto, com a elevação de suas próprias vibrações, de modo
portas da cidadezinha medieval de Gubbio, vive Pietro Ubaldi, que possa encontrar seus comunicantes. Diz ele: ―É ousadia
o médium cuja obra inspirada vem suscitando grande interesse pensar na normalização desses métodos, mas estou convenci-
na Itália e no estrangeiro, nestes últimos seis anos – e não só do de que a cultura, no futuro, consistirá numa sensibilização
nos círculos psíquicos, mas também entre os cientistas, por cau- da psique, a fim de receber ondas de pensamento‖, ou seja, os
sa do livro A Grande Síntese (recentemente publicado num vo- fenômenos inspirativos, experimentados hoje por poucos mé-
lume, após ter aparecido em série em Ali dei Pensiero). É pro- diuns altamente desenvolvidos, como ele próprio, será um dia
dução deveras notável, tratando de modo científico de assuntos o método normal de obter conhecimento. ―A nova filosofia
de que o autor pouco ou nada conhece em sua vida normal. da ciência está ligada tanto ao pensamento religioso como ao
O conteúdo desse livro não pode ser resumido em poucas científico – tanto com a Gênese Mosaica quanto com a Evo-
palavras, pois oferece solução plausível a todos os problemas lução Darwiniana. É uma verdade; unificação, a ascensão é
do universo: desde a estrutura do átomo e a composição quími- progressiva. O mineral se orienta; a planta sente; o animal
ca da vida, até aos métodos de ascensão mística; desde o pro- percebe; o homem raciocina. Podíamos continuar com as hie-
blema matemático da relatividade e a gênese do cosmos, até às rarquias dos seres mais elevados‖.
mais novas questões religiosas e sociais e os mistérios da psi- (a) Isabel Emerson
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 259
PIETRO UBALDI, PROFETA DO ESPÍRITO bria, de Perúgia (31 de janeiro); La Setímana, de Piacenza (13
de março); a revista Quaderni dei 2000, de Milão (mês de ju-
Da Revista La Fraternidad, Buenos Aires – Argentina, lho); na revista Estudos Psíquicos, de Lisboa, Portugal (mar-
maio de 1949. ço/abril de 1950), apareceram ―De Ubaldi a Einstein‖ e ―O Ca-
Nos campos da filosofia universal apareceu, aproximada- so A Grande Síntese e a nova teoria de Einstein‖; o jornal Diá-
mente há duas décadas, a inconfundível figura de Pietro Ubaldi, rio de São Paulo (2 de julho de 1950) publicou: ―Antecipação
que provocou verdadeira revolução na teoria do conhecimento. mediúnica da descoberta da chave do universo por Einstein‖; a
Segundo o parecer de eminentes críticos, entretanto, esse pensa- revista La Idea, de Buenos Aires, Argentina (maio de 1950),
dor não pode ser comparado ao homem que filosofa, atendo-se apresentou: ―El Caso La Gran Síntesis‖; a revista Constancia,
unicamente às essências racionais das coisas. Mais do que filó- também de Buenos Aires, e outras dos Estados Unidos, deram
sofo, Ubaldi é um profeta que revela o conhecimento, e não um amplo destaque ao fato. Este caso foi intitulado ―A Grande Sín-
forjador de conceitos e dilemas metafísicos. Nisto consiste a tese e a Nova Teoria de Einstein‖. Vou resumi-lo, apoiado nas
original característica que tanto o distingue dos pensadores con- revistas e jornais acima, além de A Grande Síntese.
temporâneos, que muito poucas vezes se arriscaram ao que po- Uma notícia sensacional percorreu os jornais nestas últimas
deríamos chamar Filosofia da Revelação. A obra filosófica sem- semanas: o grande matemático Einstein formulou uma teoria,
pre foi considerada puro fruto da inteligência racional ou do es- pela qual se teria descoberto o elo que faltava para a concep-
forço pensante. E, se alguma vez aparecesse um pensador que ção unitária do universo. Com sua famosa teoria da relativida-
pudesse refletir formas de conhecimento que ultrapassassem os de, só mais tarde experimentalmente confirmada, Einstein já
métodos comuns, imediatamente o colocavam no campo da ilu- demonstrara, por meio da matemática, a estreita relação qua-
minação mística. Deste modo, a filosofia da revelação era quase dridimensional entre as duas dimensões: espaço e tempo. Fal-
sempre excluída dos quadros clássicos da metafísica, porque se tava ainda, entretanto, a demonstração matemática da relação
julgava que a obra filosófica pertencia apenas ao mundo do ra- entre todas as forças cósmicas e, portanto, de sua unidade. Isto
cional, que era considerado a única fonte de saber humano. En- foi conseguido com a nova teoria que Einstein definiu: ―teoria
tretanto, como uma faísca de fogo, Ubaldi incide nas formas generalizada da gravitação e teoria do campo unificado‖, que
conceptuais, transfigura a natureza em puro espírito e se lança a conclui com quatro equações todas iguais a zero. Com ela,
um trabalho que reúne num só feixe os instrumentos do conhe- quer explicar a origem de todo o movimento do universo.
cimento, até ao ponto de unificar definitivamente as duas gnose- Achou-se, dessa forma, uma relação íntima entre a eletricidade
ologias fundamentais da humanidade: a ciência e a religião. Seu e a gravitação, que assume então um conceito completamente
trabalho profético, entrosado com os planos divinos da história, novo, que não é mais o da física mecanicista Newtoniana, ad-
torna-se uma prolongação do Logos, ou Verbo Encarnado, rea- mitida por todos até ontem. Essa afinidade faz da eletricidade e
firmando dessa forma, com heroica habilidade, o mesmo traba- da gravitação duas forças afins, irmãs, derivadas de um único
lho de São Tomás de Aquino, que, da mesma forma que ele, re- princípio unitário. Eis o elo que faltava para poder demonstrar
conciliou para todos os tempos a fé com a razão. a concepção monística e unitária do cosmos.
Mas a originalidade de Ubaldi consiste no fato de que ele Em nosso caso, o fato é simplesmente o seguinte: o que os
―possui outro mundo sobre seus ombros‖, do qual está totalmen- jornais anunciam ter sido descoberto agora pelos caminhos da
te consciente. Sabe que sua natureza metafísica não opera com matemática, já fora descoberto pelos caminhos da metapsíqui-
elementos racionais apenas, mas que há, em sua criação filosófi- ca há 18 anos, e publicado pela primeira vez na revista Ali del
ca, uma poderosa intervenção do espírito, que faz sua pena dizer Pensiero, de Milão, em 1932, na obra que depois apareceu em
verdades não comuns para a inteligência racional do homem. volume, A Grande Síntese, e que agora está editado em Roma,
Creio firmemente que Ubaldi representa em nosso século em terceira edição, além de em Buenos Aires, no Rio de Janei-
uma ressurreição dos antigos profetas de Israel, que tiveram a ro e outros lugares.
missão de preparar o terreno para a chegada do Cristo encarna- Ora, qualquer pessoa pode verificar que lá está desenvolvi-
do. O filosofo de Gúbio executa, em nosso tempo, trabalho si- da não só a teoria da evolução das dimensões, que filosofica-
milar: prepara as inteligências para a recepção do Cristo invisí- mente completa e enquadra, em toda a escala das dimensões, a
vel, que há de reunir em um só rebanho e um só pastor a huma- concepção matemática de Einstein, do ―contínuo‖ espaço-
nidade da Terra, já que o fim dos tempos, isto é, o fim da histó- tempo, mas também a própria afinidade entre eletricidade e
ria, se aproxima apocalipticamente. gravitação; desta última até a íntima natureza já havia sido ex-
Em nosso tempo, Ubaldi representa uma demonstração real plicada. No capítulo XXXVIII de A Grande Síntese – ―Gênese
da unidade que deverá existir entre a religião e a ciência e, ao da gravitação‖, vamos encontrar:
mesmo tempo, uma antecipação dos novos caminhos que serão ―Eis-nos às primeiras afirmações, novas em vosso mundo
seguidos pelo espiritualismo moderno. Em sua correspondên- científico. A gravitação, mais exatamente a energia gravífica, é
cia, manifesta-me sempre que seu espiritualismo é cristão e que a protoforma do universo dinâmico. Sendo energia, é radiante e
toda a sua produção filosófica desemboca na sabedoria cristã. se transmite por ondas. Tem uma velocidade sua de propagação
Com efeito, Ubaldi não lega apenas um saber filosófico às ge- (...), máxima no sistema. Aqui são completados os conceitos da
rações atuais; ele entrega ao espírito contemporâneo uma sabe- teoria de Einstein. A gravitação é relativa à velocidade de trans-
doria, isto é, a sabedoria da revelação. Por isso Ubaldi ―não é só lação dos corpos. A massa varia com a velocidade, de que é
um fato ou processo científico, mas um verdadeiro ato místico e função. O peso aumenta por novas transmissões de energia e
religioso‖, fundamentado nas eternas realidades do espírito. vice-versa. O conceito de transmissão instantânea cai para todas
Buenos Aires, maio de 1949. as forças. A gravitação emprega tempo, ainda que mínimo, para
(a) Humberto Mariotti transmitir-se; ela tem, como todas as formas dinâmicas, um
comprimento típico de onda, que lhe é próprio.
A GRANDE SÍNTESE E ―A lei de Newton, da gravitação universal, apenas indica o
A NOVA TEORIA DE EINSTEIN (Esclarecimentos) princípio que mede a difusão da energia gravífica, o qual é ape-
nas um aspecto do princípio que regula a difusão de qualquer
Tenho diante de mim vários jornais italianos, de 1950, forma de energia e que demonstra sua origem comum: o princí-
abordando ―Il Caso La Grande Síntese e la nuova teoria di pio da onda e de sua transmissão esférica. As radiações conser-
Einstein‖. La Nazione, de Florença (26 e 31 de janeiro); L'Um- vam todas as suas características fundamentais de energia ciné-
260 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
tica, da qual nasceram, e é essa identidade de origem que esta- explica porque A Grande Síntese pôde atingir as mesmas con-
belece entre elas essa afinidade de parentesco. Outra prova des- clusões 18 anos antes, pois, pela rapidez, a intuição está para o
sa afinidade entre as formas dinâmicas reside na qualidade da raciocínio como a luz está para o som. Mas é inegável que as
luz, próxima derivação, por evolução, da energia gravífica. teorias de A Grande Síntese tiveram uma confirmação podero-
Nesta forma de energia radiante luminosa, achais, em parte, as sa com o raciocínio einsteniano, ainda que esse raciocínio es-
características da forma originária da energia radiante gravífica pere, agora, a confirmação experimental, que, para ambas as
(...). Poder-se-á dizer que a luz pesa, ou seja, a luz sofre o in- formulações, que agora estão emparelhadas, será decisiva. Isto
fluxo dos impulsos atrativos e repulsivos de ordem gravífica; e pode forçar à reflexão quem, a princípio, julgou A Grande Sín-
que existe uma pressão das radiações luminosas. Direi mais: tese cheia de erros. Enquanto isso, a formulação filosófica
todas as radiações exercitam, ao propagar-se, uma pressão de prova a formulação matemática, porque a enquadra num siste-
natureza gravífica e apresentam fenômenos de atração e repul- ma universal, em que achamos posta, orgânica e logicamente,
são em relação direta com sua proximidade genética, na suces- a explicação de todos os fenômenos conhecidos; em contrapar-
são evolutiva, com sua protoforma dinâmica, a gravitação‖. tida, a formulação matemática, rigidamente conduzida pela ló-
Esse capítulo assim concluía: ―dirigi as pesquisas neste sen- gica do grande cientista, prova a formulação filosófica. Ambas
tido, analisai com o cálculo estes princípios (...)‖, quase pre- parecem completar-se e complementar-se.
vendo que, só com o cálculo, seria possível iniciar a demons- Devo agora focalizar outro ponto, o mais complexo. Como
tração, como agora ocorreu. cheguei a esta formulação filosófica sem possuir os meios cul-
Neste ponto, a imprensa que se ocupou com o caso pergun- turais de Einstein? Que se entende por método de intuição? A
tava-se como tinha sido possível uma tal antecipação de con- Grande Síntese apareceu, em seu tempo, como devida a um fe-
clusões, mas não pôde dar uma resposta satisfatória. Senti-me, nômeno inspirativo, super-racional. Apareceu como um produ-
por isso, no dever de expor diretamente meu ponto de vista. to de estados de consciência supernormais, enquanto, por mi-
Disseram: como é possível que um homem desprovido de cul- nha conta, eu continuava indagando e controlando com a mais
tura específica matemática e científica, que não estava ao cor- severa crítica psicológica e científica, para ver se explicava o
rente dos processos einsteinianos, pôde antecipar dessa forma fenômeno. Percebi de imediato não só que este fenômeno era
suas conclusões? Falou-se de intuição filosófica. Que podemos mais complexo do que parecia mas também que a concepção
entender com isso? espírita de uma entidade que transmitia e de um indivíduo que
Aqui há dois problemas a esclarecer: o matemático e o psi- recebia, mais ou menos em transe, era por demais elementar pa-
cológico. Quanto ao primeiro, para evitar equívocos e exageros ra poder explicá-la. Eu mesmo iniciei o estudo deste meu caso
reclamísticos, digamos logo que ninguém pretende que A Gran- no volume As Noúres e, desde então, muito tenho progredido,
de Síntese tenha dado a fórmula matemática expressa por Eins- seja pela evolução do próprio fenômeno inspirativo, que, no
tein, em sua ―Teoria generalizada da gravitação e teoria do cam- meu caso, está em contínua ascensão, seja pelos meios cada vez
po unificado‖. Nossa atitude nada tem de polêmica, nem preten- mais completos de pesquisa que esse fato me dava. Hoje, a so-
de reivindicar prioridades neste campo. Cabe a A Grande Sínte- lução corrente de mediunidade não se adapta mais, nem é sufi-
se, ao invés, a formulação filosófica dos mesmos princípios, e é ciente. Precisamos, aqui, não de uma solução isolada do pro-
nesse sentido que se deve compreender sua prioridade. Trata-se blema, mas sim em função da solução do problema cósmico,
da descoberta e exposição das mesmas verdades, mas de forma em que todos os outros se equacionam e se resolvem. E isto,
diversa, o que pode ter alcance e consequências diversos, até muito mais para o problema do espírito, que resume em si tan-
maiores, não, de certo, no campo físico-matemático, mas no fi- tos outros, como numa síntese. Nenhum problema se resolve
losófico. Aqui não é possível aprofundar isto, mesmo porque a isoladamente, e, para compreender este, tive antes, em sete vo-
imprensa não deu a conhecer as particularidades das novas teo- lumes até hoje, que resolver muitos outros. Procuremos pois,
rias einsteinianas. No entanto é certo que a formulação que elas hoje, superado o simplismo do conceito mediúnico, resumir em
realizaram é muito mais profunda nos particulares e está de- poucas palavras a complexidade do fenômeno.
monstrada, ao menos como processo lógico-matemático. Em A mais avançada ciência moderna leva-me, de todos os la-
compensação, só a formulação de A Grande Síntese está enqua- dos, à mesma conclusão (veja-se Problemas do Futuro, ―a úl-
drada num sistema filosófico universal, que está preso aos fe- tima substância do universo é de natureza abstrata, é um pen-
nômenos, justifica e prova aquela formulação filosófica, mesmo samento, aquilo que as religiões chamam Deus‖). Este pensa-
do ponto de vista racional e científico e, assim, indiretamente, mento, que agora a ciência, pesquisando cada vez mais no fun-
prova também a formulação matemática de Einstein. Isto até ao do, foi obrigada a encontrar, está escrito em todos os fenôme-
ponto em que, enquanto esta espera sua confirmação experimen- nos, está no âmago das coisas, é o princípio vital que tudo ani-
tal para ser provada, a nós ela já aparece perfeitamente verdadei- ma, é a consciência do universo, é o Deus transcendente que,
ra, tanto que pode desde agora ter a segurança de que os fatos no ato em que Ele tudo rege e guia, assume o aspecto imanente.
com que entrará em contato só poderão demonstrá-la. Ora, a pequena consciência individual é um pequeno círculo
Esclareçamos agora o outro problema, o psicológico, que que, como ―eu‖, evolui e se distingue de todos os ―eus‖ dos ou-
mais de perto diz respeito ao caso atual e à gênese. O fato é tros seres, neste ―todo‖ pensante. Por isso ele se dilata e extra-
que ambas as formulações são devidas a um processo de intui- vasa cada vez mais na consciência universal, que normalmente,
ção. Na profundidade das operações da lógica matemática de para ele, está fora de seu consciente, ou seja, é para ele uma zo-
Einstein, há um ato de intuição que sustentou e guiou o racio- na de inconsciente, embora manifestando-se através dele por
cínio dele até o fim. O mesmo ato de intuição, levado até ao sínteses e comandos, como os instintos, as intuições etc.
método super-racional, foi usado regularmente ao ser concebi- Que é então a inspiração? É um extravasamento da consci-
do e exposto o sistema filosófico-científico de A Grande Sínte- ência individual em expansão, por evolução, nos campos do
se. Só com a lógica racional, demonstra-se, mas não se cria. Se consciente universal, Deus. Evolução implica sensibilização.
há alguma diferença entre os dois casos, é que, nos processos Esta implica em novos olhos, que se abrem para ver mais longe.
einsteinianos aparece a lógica matemática, mais do que a intui- E olha-se não em transe, mas de forma altamente consciente e
ção; ao passo que, em A Grande Síntese, dominam os proces- duplamente atento. O pensamento desta consciência universal
sos intuitivos, usando-se a demonstração racional como uma já está escrito em todos os fenômenos, que, com seu funciona-
descida necessária para fazer-se compreender numa dimensão mento, mostram-no a quem saiba abrir esses novos olhos do es-
conceptual inferior, que é a do homem atual. É por isso que se pírito. As descobertas já estão todas feitas e se encontram em
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 261
ação no universo, os problemas estão todos resolvidos, porque outros nove volumes – o décimo está em preparação e outros a
tudo está funcionando como consequência. As descobertas apa- eles se seguirão. Experimente lançá-los em 18 anos, por entre
recem concomitantemente, nos pontos mais diferentes do glo- uma guerra como a última, nos dois hemisférios, em várias lín-
bo, porque são o resultado de intuições dadas pela maturação guas e edições, que, para alguns escritos, atingiram meio milhão
biológica. O mistério existe apenas em nossos olhos míopes. Às de cópias. Faça isso sozinho, sem preparação e sem meios, des-
vezes, não é raciocinando nem estudando nos livros, mas abrin- conhecido e estorvado, sem representar nenhum interesse nem
do esses novos olhos, por evolução – muitas vezes feita apenas grupo humano que o lance e sustente como seu expoente. Expe-
de dor e maceração – que se pode chegar a ver. Então, é por ca- rimente conceber um plano do universo, em que os problemas
tarse do ―eu‖ que se fazem descobertas. Eis a intuição. do espírito estejam resolvidos ao lado das últimas concepções fí-
É este o meu caso. Estudando-o, vi como funciona a evolu- sico-matemáticas e, mais tarde, se enquadrem também, de per si,
ção e os processos intuitivos que com ela estão conexos. A nas teorias de Einstein. Experimente fazer tudo isso e poderá en-
princípio, utilizei-os instintivamente, ou seja, sendo eu mano- tão, somente se tiver êxito, rir destas coisas. Porque os fatos são
brado como instrumento do consciente universal, sem que eu fatos e não são destruídos pela psicologia materialista com um
soubesse exatamente como. Mas, observando e examinando sorriso cético. E, excluindo a intervenção de forças super-
cuidadosamente, consegui perceber a técnica do fenômeno. humanas, como explica isso a psicologia materialista?
Tendo-a assim analisado, formulei o que hoje chamo o ―método Gúbio, março de 1950
da intuição‖, que, ao menos para mim, constitui hoje um ins- Pietro Ubaldi
trumento regular de pesquisa e produziu um original sistema
orgânico que já está em seu nono volume. Achei com isto a ENCONTROS COM EINSTEIN (I)
chave de todos os problemas do universo. (O Homem)
Só assim posso explicar-me como minha pesquisa científi-
ca caminha ao lado da espiritual e como os problemas einstei- Estava no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, de saída
nianos estejam, para mim, conexos e coordenados com os do para o interior, quando os jornais trouxeram a notícia da morte
misticismo. Goste-se ou não da palavra ―monismo‖, o fato é de Einstein.
que o pensamento de Deus é uno. Goste-se ou não das palavras Até a chegada do avião, foi uma contínua tempestade em
―mediunidade‖, ―ultrafania‖, ―inspiração‖ etc. (as palavras são minha mente. Quantas lembranças! Ele tinha tido a paciência de
palavras), o fato é que a maceração evolutiva está operando ler alguns de meus livros e de manifestar, nas suas cartas, o seu
neste caso a catarse biológica que leva minha consciência in- julgamento a respeito. Pensei nesse meu grande amigo que, no
dividual a realizar um ainda que mínimo extravasamento além século da ciência experimental, tinha ido além do telescópio e
da média normal, na consciência universal. Assim, sem estudo do microscópio, tendo por único laboratório o seu cérebro. Com
específico nem processos racionais, nasce no indivíduo um re- ele, o homem havia voltado a vencer no terreno do pensamento
lance de visões que ele, simplesmente olhando com esses no- puro, na forma da lógica matemática, que é sempre lógica como
vos olhos espirituais de sensibilizado, registra com rapidez. aquela dos maiores pensadores, filósofos ou teólogos do mundo.
Nascem assim os meus volumes em continuação, um depois do E isto aconteceu em nosso mundo moderno, para esclarecer a ci-
outro, sem preparação e sem pausas. Nesses, não sou eu que ência positiva, demonstrando-nos que se pode chegar ao conhe-
falo, mas é a vida, é essa consciência universal, como acontece cimento não somente pelo caminho da observação e experimen-
todas as vezes em que o homem cria na Terra coisas novas, tação, mas também pelas abstrações do pensamento puro.
porque elas só podem provir daquela fonte. É natural, então, Além disso, Einstein lançou a ideia da relatividade. Só ele
que a ciência que daí nasce esteja saturada de sentido religioso demonstrou matematicamente que não há uma medida absoluta
e místico e dos estados de consciência a ele inerentes, e que a de tempo e espaço, porque os corpos no espaço estão em mo-
exposição possa chegar a todos os campos e resolver todos os vimentos relativos uns aos outros; e este princípio veio conta-
problemas sempre orientada dentro do todo. Eis a síntese, por- giar os princípios afins e se espalhou até atingir um sentido
que o pensamento parte do Uno. Trata-se de um pensamento mais universal a respeito de todos os nossos conhecimentos. A
que está nos antípodas da ciência atual e que poderá ajudá-la a ideia, que já aparecera com Bergson, acabou por nos fazer, as-
salvar-se da especialização, que, tendendo a dispersá-la nos sim, admitir que não podemos conceber senão verdades relati-
particulares e nos múltiplos, constitui o reino satânico da pul- vas em evolução.
verização do Uno e está em seu antípoda. Demonstrando-nos que as leis que regem os mínimos elétrons
Concluo. Eu tinha o dever de dizer isso, já que, na imprensa são as mesmas que regem os sistemas planetários e galácticos,
e numa multidão de cartas, muitos vão admirando em mim – ele nos guiou à ideia da unidade do todo, unidade conclusiva e
quem sabe – algum engenho. Porém nada há de engenho. A substancial, decorrente de ser a matéria, nas suas próprias con-
única coisa que faço é ler no livro da vida, e sou apenas um po- clusões, apenas uma forma de energia. A sua Teoria Geral da Re-
bre amanuense que procura transcrevê-lo fielmente. Isto será latividade constitui o maior triunfo da mente humana até hoje.
supernormal, mas apenas em relação ao normal humano. Dian- E esse homem teve a paciência de ler alguns dos meus li-
te, porém, do consciente universal, do infinito pensamento de vros e a humilde bondade de me escrever. Eis como aconteceu,
Deus, o que é um infinitésimo a mais? porque ele não costumava, nem o poderia, responder às cente-
Estas minhas conclusões, provenientes da infinita miséria nas de cartas que lhe chegavam pelo correio.
que, naturalmente, todo ser deve sentir de si mesmo quando se Um dia – era 12 de março de 1951 – estava escrevendo no
avizinha do pensamento diretivo do universo, podem ser uma meu quarto solitário de Gúbio, na Itália, quando um rapaz bateu
prova da genuína realidade do fenômeno. Trata-se, se assim à porta para me informar que no hotel da cidade havia chegado
possa chamar-se, de um caso natural de evolução, que, como é um casal norte-americano à minha procura. Fui para lá, pensan-
lógico, é lei igual para todos e a todos espera amanhã, pois a do que precisassem de um intérprete. Mas não era isso. Eles
evolução significa justamente expansão da consciência indivi- haviam lido alguns artigos meus numa revista de Londres e em
dual na universal, ou seja, ascese da alma para Deus. outra de New York, e quiseram ver a cidade de Gúbio. Tratava-
Quem quiser sorrir ceticamente destas coisas, que lhe pode- se de Mr. Gerold M. Lauk, de New York, que tinha outro apar-
rão parecer loucuras segundo a psicologia materialista hoje em tamento em Nassau Street, Princeton, New Jersey.
voga, experimente antes ler as 3.000 páginas dos nove volumes Assim fomos, no carro dele, visitando as antiguidades da
já publicados, compreendendo-as. Depois experimente escrever cidade de Gúbio e logo nos tornamos amigos. O que mais me
262 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
interessou nele foi vir a saber que vivia na cidade de Princeton, ma. Também perante as maiores verdades do espírito, ele perma-
nos EUA, onde morava o prof. Albert Einstein. Era seu amigo e necia um matemático, um grande matemático que não podia re-
tomava chá na casa dele e da filha, Margot Einstein, na Mercer solver as grandes equações do espírito. Assim explicam-se as su-
Street. Começou, assim, a relatar-me uma porção de pormeno- as duas cartas. Mas, de outro lado, ele respeitou e admirou as re-
res da vida de Einstein, dizendo-me que este não pensava em ligiões como a coisa mais nobre. E quem respeita, como verda-
dinheiro e ficava sempre abstrato, na maior simplicidade de há- deiro cientista, que não pode aceitar o que não é demonstrado po-
bitos e de roupas, parecendo por fora um homem qualquer. Ein- sitivamente, merece, pelo fato de respeitar, todo o nosso respeito.
stein, que Mr. Lauck chamava ―o professor‖, lecionava na Assim, sem procurar, tive a sorte de conhecer o Prof. Eins-
―School of Mathematics of the Institute for Advanced Study‖. tein. Visitei depois, novamente, em Roma, Mr. Lauck, estrei-
Pouco a pouco eu ia, assim, conhecendo mais de perto, pe- tando sempre maior amizade. Entregava-lhe os meus livros e
las palavras de um seu amigo, esse homem extraordinário e, cartas para o Professor Einstein, e ele entregava tudo nas mãos
cada vez mais, alimentava maior simpatia para com ele e maior dele, ou colocava-as sobre a sua mesa de trabalho. Eu ficava ar-
admiração pela sua simplicidade, pelo seu gênio. Se eu fosse a repiado, especialmente pensando que meu inglês, talvez, fosse
Princeton, Mr. Lauck ter-me-ia apresentado ao Prof. Albert errado; se teria ele colocado o seu cachimbo para marcar as pá-
Einstein. Assim me prometera. ginas, como era de seu hábito, perto do quadro negro cheio de
Embora, no terreno puramente matemático, eu nada enten- fórmulas matemáticas, sobre a grande desordem dos papéis es-
desse de suas teorias, só acessíveis a cientistas especializados, palhados na mesa de seu escritório. Penso com tristeza nesse
eu percebia que concordávamos plenamente no terreno filosófi- grande desaparecido, que teve tanta bondade e humildade, a
co, filosofia da ciência, não obstante ele não chegasse ao plano ponto de se interessar pelo meu trabalho tão pobre.
espiritual, que estava além de suas pesquisas. Pietro Ubaldi
É assim que se explica como Einstein tivesse gostado dos ◘ ◘ ◘
meus livros nas partes em que eu ficara no terreno positivo da
ciência e como os julgasse, no mais, qual obra de arte, leve e Cartas de Albert Einstein a Pietro Ubaldi
estranha, quando se tratava de problemas espirituais.
Explica-se, pois, perfeitamente, a sua primeira carta, de 2 de The Institute for Advanced Study
maio de 1951, que aqui reproduzimos, traduzida do inglês, no Princeton, New Jersey – May 2nd, 1951
final deste capítulo. Nela, ele me agradece um livro meu que School of Mathematics
Mr. Lauck lhe havia entregado em mãos, dizendo-me que havia Prof. Dr. Pietro Ubaldi
estudado parte dos meus livros e ficara admirado pelo poder da Gubbio, Italy
linguagem e a vasta extensão dos assuntos tratados (ele era mais
analítico que sintético). Mas, quando não se refere mais, como Caro Professor Ubaldi,
aqui, à parte puramente científica, porém à outra, filosófica e es- O senhor Lauck foi muito gentil trazendo-me seu livro e
piritual, concluiu na mesma carta que não sabe se concorda ou sua carta. Estudei parte dele e admirei a força da linguagem e a
não com ela, porque, tratando-se de um trabalho filosófico, me vastidão dos assuntos ali tratados. Inicialmente, achei uma es-
afastava do mundo do controle da experiência, de modo que o pécie de pessimismo em relação à filosofia de Herbert Spencer
assunto parecia-lhe um trabalho independente, de arte. e uma ênfase bastante acentuada na evolução do homem atra-
Esta ideia está confirmada na outra carta, de 2 de julho de vés do esforço individual. Creio que este tipo de apresentação
1952, também aqui traduzida do inglês e publicada no final des- não faz justiça ao fato de que o homem é, predominantemente,
te capítulo. Os dois livros de que ele fala não tratavam de as- um animal social. Com seu empenho para encontrar uma solu-
suntos científicos, mas principalmente filosóficos, morais, reli- ção geral, em um nível mais abrangente, não me é fácil con-
giosos e espirituais. E ele conclui com estas palavras: ―Para o cordar ou discordar. O perigo de tais tentativas filosóficas está
meu velho cérebro, treinado no racionalismo, tudo isto me pa- em que as palavras se tornam dissociadas do campo experi-
rece estranho, porém agradável‖. mental. Toda a estrutura me impressiona mais como um traba-
Falei de tudo isto, dando provas, para explicar a mentalida- lho de arte independente, como uma interpretação intelectual
de dele, incrivelmente poderosa no terreno positivo, racional de alguma coisa a mais. Cordialmente seu
matemático; verdadeiro gênio aí, mas homem comum fora dis- (a) Albert Einstein
so. Ele foi assim um verdadeiro filho de nosso século, isto é, o
cientista profundo e especializado, mas primeiramente analítico The Institute for Advanced Study
e só depois sintético; grande matemático, cuja maior grandeza é Princeton, New Jersey – July 2nd, 1952
de ter a honestidade e sinceridade de reconhecer que o seu cé- School of Mathematics
rebro está treinado pelo racionalismo, campo além do qual, ele Professor Dr. Pietro Ubaldi
não se acha num terreno que possa aceitar como positivo. Mas Gubbio, Italy
isto não nos deve surpreender, porque esta é a forma mental de
nosso pensamento científico moderno. Caro Professor Ubaldi,
Apesar disto, a matemática é tão alta, que se poderia chamar Muito obrigado pelos dois livros que o senhor Lauck, gen-
também filosofia, porque ela se dirige no fim a alcançar a solu- tilmente, me entregou. Tentei ler seu livro sobre filosofia da vi-
ção de problemas filosóficos. A Teoria dos Quanta, de Planck, da. Para meu velho cérebro, treinado no racionalismo, tudo isto
havia ensinado que o universo físico seria feito de pequenas me parece estranho, porém agradável.
porções (quanta) governadas não por uma causa feita de ordem, Com minhas recomendações. Cordialmente seu,
mas pelo acaso. Einstein reagiu dizendo: ―Eu não posso acredi- (a) Albert Einstein.
tar que Deus esteja jogando dados com o universo‖. E sempre
procurou demonstrar a unidade do todo e, com isso, a presença ENCONTROS COM EINSTEIN (II)
de um único princípio central dirigente. (O Pensamento)
Ele penetrou na profundidade dos maiores mistérios do ser
com olhos de matemático. Mas os mistérios são os mesmos para Aproximando-me do Prof. Einstein e de seu pensamento,
todos. Mr. Lauck dizia-me que Einstein, muitas vezes, dava a compreendi uma coisa: a alta matemática está muito próxima
impressão de não poder aceitar a doutrina da imortalidade da al- das especulações filosóficas. Isto, para mim, estabeleceu uma
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 263
ponte entre a ciência e o espiritualismo. Desde então encarei os todas as forças do universo. Encontrou-se, assim, íntima rela-
problemas do espírito não somente como biológicos, sociais, ção entre a eletricidade e a gravitação, que, dessa forma, assu-
artísticos, místicos, espirituais, filosóficos, religiosos etc., mas me um conceito completamente novo, muito diferente daquele
também como problemas estritamente científicos. dado pela física mecânica Newtoniana, que, até hoje, havia si-
Comparando os resultados atingidos por Einstein com os do aceita por todos. Essa afinidade faz da eletricidade e da
atingidos pelos outros cientistas modernos, cheguei à conclusão gravitação duas forças afins, irmãs, derivadas do mesmo prin-
de que, de tanto aprofundar as suas pesquisas, a mais adiantada cípio unitário. Eis o elo que faltava para demonstrar a concep-
ciência materialista haveria de encontrar o espírito. Achei que a ção monística e unitária do cosmos.
ciência, estudando sempre mais a fundo o nosso mundo psico- Em nosso caso, o fato é simplesmente este: aquilo que os
dinâmico, não poderá deixar de descobrir nele o pensamento jornais disseram ter sido então descoberto pelos meios matemá-
que o dirige, a inteligência que a lei dos fenômenos nos revela. ticos, já havia sido afirmado pelo caminho metapsíquico, dezoi-
Einstein ensinou-me que a nova física deve confiar sempre to anos antes, sendo publicada a descoberta em 1932, pela pri-
mais nos matemáticos, que elaboram sobre abstrações, afastan- meira vez, na Revista Ali del Pensiero de Milão e, depois, inse-
do-se do velho conceito do materialismo científico. A ciência rida no volume A Grande Síntese, bem difundido na Europa e
atual, de fato, abstrai-se cada vez mais da realidade sensória, nas Américas do Norte e do Sul.
numa constante diminuição de contatos, construindo numa es- Todos podem verificar que ali estão desenvolvidas não só a
pécie de vácuo, feito de uma realidade mais verdadeira, porque teoria da evolução das dimensões, que, filosoficamente, comple-
mais profunda, na forma da lógica matemática. Este progressi- ta e enquadra em toda a escala das dimensões a concepção ma-
vo afirmar-se do pensamento puro, denota uma efetiva elevação temática de Einstein do ―continuo‖ espaço-tempo, mas também
em direção ao espírito; quer isto dizer que a ciência está che- a própria afinidade entre a eletricidade e a gravitação, que, com
gando, por si só, sem intervenção espiritualista, a admitir que a a íntima natureza desta última, já tinham sido explicadas no
última realidade do universo é o pensamento, um pensamento Cap. XXXVIII de A Grande Síntese: ―Gênese da Gravitação‖.
cósmico, em que o homem está mergulhado, de que faz parte, Ali, entre outras coisas, diz-se: ―As radiações conservam
mas que existe independentemente dele. todas as características fundamentais da energia cinética que
Esta é a revolução que se está operando no próprio seio do lhes deu movimento e é essa comunidade de origem que estabe-
materialismo; este é o maior valor das descobertas modernas, lece entre elas afinidade de parentesco. Outra prova do paren-
porque nelas se encontra completa a semente de um futuro de- tesco das forças dinâmicas está na qualidade da luz, derivação
senvolvimento da ciência no espiritualismo. Este não se apoi- próxima, por evolução, da energia gravífica (...). Poder-se-ia
ará mais apenas sobre a fé e a revelação, mas alicerçar-se-á dizer que a luz pesa, isto é, que a luz sofre o influxo dos impul-
em provas positivas, racionalmente demonstradas. Hoje, che- sos atrativos e repulsivos de ordem gravífica; existe uma pres-
gamos a um ponto que não oferece outra saída; eis que o últi- são das radiações luminosas. Direi mais: todas as radiações
mo elemento da matéria, o elétron, é reconhecido como um exercem, em sua propagação, uma pressão de ordem gravífica;
aglomerado de ondas, provando que a última substância da re- apresentam fenômenos de atração e repulsão, em relação direta
alidade é mera concentração de energia ondulatória. Qualquer com as suas proximidades genéticas, na sucessão evolutiva,
substrato material desaparece, e a solidez sensória do mundo com a sua protoforma dinâmica, a gravitação‖.
físico fica assim reduzida, por puro processo lógico, a uma E conclui assim: ―Orientai as vossas pesquisas neste senti-
simples representação relativa à possibilidade de nossa per- do; analisai por meio do cálculo estes princípios, e a ciência
cepção, também relativa. Hoje se compreende que a última chegará a descobertas que a revolucionarão‖. Isto como se pre-
essência da matéria é abstrata, um imponderável, puro pensa- visse que só pelo cálculo se poderia iniciar a demonstração,
mento da mente diretiva do universo, o pensamento que pode como depois aconteceu.
criar, como sua expressão, o universo físico. O controle experimental, realizado com as medidas tomadas
Assim a concepção materialista ficou reduzida a quase na- e nas fotografias batidas em vários eclipses do Sol, confirmaram
da, por obra do próprio realismo, e não do idealismo. Pene- tudo isso, junto com a teoria de Einstein, isto é, que os raios lu-
trando em maior profundidade, o materialismo acabou por se minosos ficam curvados pela atração gravitacional. Embora hoje
confundir com o espiritualismo. No fundo, há apenas um o Dr. Freundlick, já colaborador de Einstein no observatório de
―quid‖ que, quando assume a forma sensória, chama-se maté- Potsdam, ache que a curvatura dos raios luminosos supera de
ria. E, um dia, a ciência verá que esse ―quid‖ é o puro pensa- 30% a previsão teórica, o principio geral fica sempre o mesmo.
mento, que constitui o elemento genético da criação da matéria Também, embora hoje pareça que a luz emitida em campos
de nosso universo físico. gravitacionais intensos seja deslocada na direção do vermelho
Foi Einstein que me mostrou essa ponte lançada pela Física do espectro, e o valor da derivação seja diferente daquele pre-
no campo do espírito. Daí nasceu a possibilidade de uma con- visto pelas fórmulas de Einstein, o princípio geral permanece
cordância entre as conclusões dele e as do sistema explanado também sempre o mesmo.
nos meus livros. E, embora a teoria da relatividade generalizada esteja adqui-
◘ ◘ ◘ rindo maiores desenvolvimentos com os retoques dos novos ci-
No começo do ano de 1950, os jornais publicaram uma no- entistas, a primeira grande descoberta de Einstein nunca perde-
tícia sensacional: O grande matemático Einstein descobriu rá o seu valor fundamental.
uma nova teoria, pela qual teria sido encontrado o elo que fal- Aqui, por amor à verdade, preciso esclarecer, para evitar
tava para a concepção unitária do universo. Com a célebre teo- equívocos, que ninguém afirma que A Grande Síntese houves-
ria restrita da relatividade, Einstein já havia demonstrado, por se antecipado a fórmula matemática expressa por Einstein na
meios matemáticos, mais tarde confirmados experimentalmen- sua Teoria Generalizada. Ninguém quer reivindicar a priorida-
te, a estreita relação quadridimensional entre as duas dimen- de nesse campo. A Grande Síntese só focalizou os conceitos fi-
sões – espaço e tempo. No entanto, faltava ainda a demonstra- losóficos dos mesmos princípios e, tão só nesse sentido se en-
ção matemática da relação entre todas as forças cósmicas e, tende a sua antecipação. Trata-se da descoberta e enunciação
por conseguinte, da sua unidade. Isto se conseguiu com a nova da mesma verdade, mas por forma diferente, uma no campo fí-
teoria, que Einstein chamou ―Teoria generalizada da Gravita- sico-matemático, outra no campo filosófico. A primeira é um
ção‖ e ―Teoria do Campo Unificado‖, que termina com quatro produto particular de uma profundíssima especialização, a se-
equações todas iguais a zero. Essa teoria explica a origem de gunda faz parte de um sistema e fica enquadrada numa filoso-
264 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
fia universal. Assim as duas conclusões se apoiam e demons- polo negativo da destruição no mal e do esmagamento do espí-
tram uma à outra, a analítica de Einstein e a sintética de A rito nas trevas da matéria. Esta pode ser chamada a fórmula da
Grande Síntese. Assim concordaram, chegando ao mesmo descida ou da derrocada.
ponto, quem seguiu o caminho do raciocínio e aquele que es- A segunda expressão representa o mesmo universo, que, no
colheu o caminho da intuição inspirativa. Dessa forma, a lógi- extremo limite da segunda metade do ciclo, evolutiva, chegou
ca matemática concordou com os processos intuitivos, e ambos ao polo positivo (que foi ponto de partida e agora é de chega-
se compreenderam reciprocamente. da), o polo da reconstrução cumprida no bem e da libertação do
Por dois caminhos diferentes, a alma humana procurou espírito das trevas da matéria, na luz da verdade, no seio de
atingir o mesmo centro da unidade do todo, seja por meio da Deus. Esta pode ser chamada a fórmula da subida ou reconstru-
formulação filosófica, seja por via matemática. Isto quer dizer tiva. Ela é também a fórmula resolutiva do universo, porque, no
que todo pensamento provém do ―uno‖ e que não pode ficar final, o fim e o princípio coincidem no mesmo ponto, reunindo-
orientado senão numa direção: a do ―uno‖. se em um ciclo só, que se fecha sobre si mesmo.
Assim, antes de ler A Grande Síntese, (1951), o Prof. Einstein A primeira fórmula pode-se ler assim: no limite do universo
confirmava com a demonstração matemática um dos conceitos ou organismo de universos () a substância, pelo vir-a-ser, ou
fundamentais do sistema filosófico desse livro. Quando, no ano transformismo fenomênico, chegou no instante máximo final
de 1950, Einstein deu a conhecer a sua nova ―Teoria Generaliza- do semiciclo involutivo (inicial do semiciclo evolutivo), onde
da‖, numerosos jornais trataram do caso. O agora falecido Enrico ela se acha toda no estado de infinito negativo.
Fermi, da Universidade de Chicago, ―Institute for Nuclear Studi- A segunda fórmula pode-se ler assim: no limite do universo
es‖, numa carta pessoal, deu confirmação da demonstração ma- ou organismo de universos () a substância, pelo vir-a-ser, ou
temática, reportando-se à supra citada antecipação filosófica. transformismo fenomênico, chegou no instante máximo final
Mas o ponto final, para ambos os pensamentos, era a ideia do semiciclo evolutivo (final também de todo o ciclo, instante
central da unidade do todo. A ideia última, alvo tanto de Einstein em que tudo retorna ao estado inicial), onde ela se acha toda no
como de A Grande Síntese (permito-me essa aproximação, uma estado de infinito positivo.
vez que esse livro não é obra minha), é a mesma, embora expres- Assim as duas fórmulas, a primeira, da destruição, e a se-
sa em fórmulas diferentes. Pelo desenvolvimento dos conceitos gunda, da reconstrução, completam-se num só ciclo, feito de
de A Grande Síntese no volume Deus e Universo, também foi duas metades inversas e complementares.
possível chegar até uma fórmula matemática que é sintética e Desse modo, a pesquisa científica do grande matemático da
conclusiva de todo o sistema filosófico universal de A Grande teoria restrita e da teoria geral da relatividade, aprofundando o
Síntese. De modo que podemos confrontar, uma perto da outra, seu olhar racionalista nos abismos do mistério, alcançou a
estas duas fórmulas matemáticas que, num espaço mínimo, ex- mesma unidade e percebeu um lampejo da Verdade, pela mes-
pressam, concentrados, os mais vastos e poderosos conceitos que ma presença da inteligência de Deus, quando ele concluiu com
sintetizam os maiores processos fenomênicos do cosmos. este pensamento: ―A minha religião consiste numa humilde
Einstein concentrou as conclusões da sua teoria generaliza- admiração pelo ilimitado Espírito Superior, que se revela nos
da com as quatro equações seguintes, todas iguais a zero: mínimos pormenores, que nós podemos perceber com as nossas
frágeis e fracas mentes‖.
São Vicente – abril de 1955
Gik,s = 0 Ti = 0
Pietro Ubaldi
Rik,l + Rkl,i + Rli,k = 0
Rik = 0 SEGUNDA PARTE – CRÍTICAS
Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra ―evolução‖. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício ―Iguaçu‖, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício ―Nova Era‖ (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – ―Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra‖): dos 5 aos 25 anos formação; 25 aos 45 anos maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.