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UM DESTINO SEGUINDO CRISTO

PREÂMBULO............................................................................................................................................................. 1

I. O VOTO ................................................................................................................................................................... 4

II. O SIGNIFICADO .................................................................................................................................................. 6

III. POBREZA E EVANGELHO ............................................................................................................................ 11

IV. INCOMPREENSÃO E CONDENAÇÃO ......................................................................................................... 15

V. A VIDA É UMA ESCOLA .................................................................................................................................. 20

VI. O PROBLEMA DA JUSTIÇA E OS EQUILÍBRIOS DA LEI ..................................................................... 24

VII. SINAIS DOS TEMPOS .................................................................................................................................... 27

VIII. INVESTIMENTOS NO BANCO DE DEUS ................................................................................................. 36

IX. A UNIVERSAL BIPOLARIDADE DO SEXO NAS RELIGIÕES ............................................................... 40

X. O IDEAL E O MUNDO ....................................................................................................................................... 47

XI. A CRISE DA VELHA MORAL ........................................................................................................................ 53

XII. O PROBLEMA RELIGIOSO. A OBRA PERANTE A IGREJA ................................................................ 67

XIII. A OFERTA....................................................................................................................................................... 81

XIV. GÊNESE E SIGNIFICADO DA OBRA ........................................................................................................ 85

XV. O CALVÁRIO DE UM IDEALISTA .............................................................................................................. 89

XVI. O MEU CASO PARAPSICOLÓGICO ......................................................................................................... 93

XVII. O ÚLTIMO ATO. O HOMEM PERANTE A MORTE ........................................................................... 108

XVIII. LIBERTAÇÃO ........................................................................................................................................... 120

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 1
pios da Obra, é feita para ajudar, não tendo a intenção de agredir
UM DESTINO SEGUINDO CRISTO ou destruir, como é hábito acontecer no mundo.
Se a primeira Obra pode ser definida como o sonho de um
místico solitário, a segunda representa a sua experiência terre-
PREÂMBULO na. Caído num terreno traiçoeiro, onde a cada passo se esconde
uma cilada, o anjo teve de se exercitar em coisas bem diferen-
Após uma longa e áspera luta entre as forças do bem e as tes daquelas do céu, para integrar o seu conhecimento nos fa-
forças do mal, as primeiras a favor da Obra e as segundas fir- tos de nosso mundo, que é bem distinto. Porém, mesmo nesta
memente dispostas a destruí-la, ela vai, milagrosamente, che- contraposição de opostos, quão maravilhoso equilíbrio de as-
gando ao fim. Isto é uma prova de que ela se encontra do lado pectos complementares se combinam mutuamente! Destarte,
das primeiras, as quais, por serem as mais fortes, são as vence- cada desordem termina enquadrando-se dentro de uma ordem
doras. Demonstra também a maior eficiência destas, que têm a maior, sendo o mal incluído dentro daquela ordem e colocado
firme intenção de alcançar seu objetivo, continuando a vencer a serviço do bem. O próprio AS fica prisioneiro da lei do S
quem quiser sufocar, corromper ou usufruir a Obra. (S=Sistema, AS=Anti-Sistema – Cfr. O Sistema ).
Com o presente volume, aproxima-se o término da segunda Disto somente pudemos falar agora, no fim de todo o traba-
parte da Obra, seu período brasileiro, referente aos últimos vin- lho, porque neste momento se tornou visível. E tudo se realizou
te anos da minha vida. Estamos chegando ao fim da segunda e automaticamente, sendo que não era possível ter sido previsto e
última fase de nosso trabalho. Na sua primeira parte, a Obra se preordenado antecipadamente. Temos uma vida de oitenta anos,
revelou em forma de poesia e de aspirações místicas, como um dividida em duas partes iguais, de quarenta cada uma: a primei-
ato de fé, no canto do poeta que sente a bondade de Deus e jul- ra de preparação e amadurecimento, a segunda de execução.
ga poder encontrar igual benevolência no mundo, cuja posição, Esta última, por sua vez, também está dividida em duas partes,
no entanto, está nos antípodas. Na segunda parte da Obra, ob- realizadas em dois hemisférios opostos e em dois períodos de
servamos seu aspecto oposto, no qual o ideal não é mais visto vinte anos cada: de 1931 a 1951 no Brasil (I Obra) e de 1951 a
na beleza de sua manifestação no céu, lugar ao qual ele perten- 1971 na Itália (II Obra), permitindo assim a manifestação da
ce, mas sim na dureza de sua luta, transplantado para um am- Obra em seus dois diferentes aspectos. Isto foi escrito por mim
biente hostil, que o rejeita e tenta adaptá-lo às suas próprias na introdução da II Obra, no início do seu primeiro volume,
comodidades, corrompendo-o, atraiçoando-o e emborcando-o. Profecias , e está sendo agora confirmado neste livro.
Vemos então que, em contato com a realidade do mundo, o Esta segunda parte da Obra entrou na vida pública, pene-
ideal se torna o sonho de um ingênuo que parece não conhecer trando na realidade representada pelo mundo. Desenvolveu-se
a vida. Esta é coisa bem diferente, constituindo uma luta feroz assim, traduzido em ações e reações, um diálogo que descre-
para dominar, na qual o ideal é muitas vezes usado para escon- vemos nos volumes precedentes, estando de um lado, as forças
der aquela realidade, com uma camuflagem de santo, a fim de do Alto e, do outro, as da Terra, ambas em duelo. Protegida pe-
enganar o próximo e vencê-lo. Quanta boa-fé e entusiasmo las primeiras, a Obra resistiu, percorrendo regularmente o seu
singelo a princípio, acreditando que a Terra fosse constituída caminho em direção às suas novas fases de desenvolvimento. A
só pelos bons! Foi assim que, perseguindo um grande sonho de estrada palmilhada ficou assinalada por mortos e feridos que,
bondade e de beleza, iniciou-se a Obra. Mas esta nova borbole- mesmo tendo-se feito donos de tudo anteriormente, caíram à
ta colorida, que esvoaçava ignara, era espiada pelo mundo, que sua margem e desaparecem, sem poder fazer nada.
pensava na melhor maneira de capturá-la, secá-la e, depois, en- Esse período de luta não foi inútil, pois, induzindo a uma to-
fiá-la num alfinete, para servir de adorno às suas coleções de mada de posição racionalmente mais sólida e definida, levou a
sonhadores idealistas. O mundo diz: “Voa borboleta! Canta e uma espiritualidade cientificamente mais positiva, feita não ape-
crê com a tua fé poeta. Aproxima-te de mim, que te abro fra- nas de misticismo e poesia, mas também de trabalho de controle
ternalmente os braços, pois também sou todo bondade e Evan- com base na lógica e na experimentação. Deste seu segundo pe-
gelho. É um idílio! Estamos de acordo, tu e eu. Vem!”. É as- ríodo, a Obra saiu vencedora de uma batalha que a reforçou e a
sim também que o passarinho se deixa meter na gaiola, sendo completou. O espírito saiu triunfante, não só como fé e ascensão
depois obrigado a cantar para quem o capturou e o colocou a para Deus, mas também como têmpera para a luta, tendo ficado
seu serviço. Um evangélico convicto é o melhor chamariz para mais rico em conhecimentos. Assim, o ideal pôde dar prova de
atrair outros bem intencionados! ser não apenas um belo sonho, mas também uma força viva e po-
Mas o ideal é uma força que possui as suas defesas, não po- tente, capaz de se impor à feroz realidade biológica. Na II Obra, a
dendo ser vencido por tais atentados. E entre os dois – o ideal de- fé se encouraçou contra todos os ataques, pois o ideal, armado de
sejando cumprir a sua função e o mundo procurando eliminá-lo – provas, tornou-se raciocínio e ciência, podendo desafiar o mundo
nasce inevitavelmente o choque, dando lugar a um estado de e cumprir o seu trabalho de civilização. Com isto, Cristo demons-
guerra, porque nenhum dos dois está disposto a se deixar destruir tra saber vencer não apenas nos céus, mas também em nossa Ter-
pelo outro. Foi assim que esta segunda parte, chamada de Segun- ra infernal. É possível assim verificar-se que as forças inferiores
da Obra, desenvolveu-se numa atmosfera feita de luta, bem di- não têm o poder de prevalecer contra as superiores.
versa daquela encontrada pela Primeira, envolvida toda em poe- O ideal resistiu a tudo, tendo sido confirmado, fortificado e
sia e doce harmonia. Graças a este fato, no entanto, podemos ter consolidado pela luta. Eis que esta segunda fase da Obra teve a
agora, diante de nós, o reverso da medalha e alcançar desse modo sua função, seguindo a técnica da descida dos ideais. A maior
uma visão não apenas unilateral, mas sim completa, na qual o comprovação da sua verdade está no fato de ter ela sobrevivido
idealismo da Primeira Obra se junta ao realismo da Segunda. às ameaçadoras tempestades, que pareciam capazes de destruí-
Deste modo, fundamentalmente, não houve qualquer prejuízo, la, resistindo ao assalto que o mundo desencadeia contra o ide-
pois foi produzida uma renovada complementação, na medida al, quando este desce à Terra. Trata-se também de uma vitória
em que isto levou a enfrentar e apresentar os mesmos problemas do S, que quer fazer o AS avançar e evoluir. E não poderia
sob aspectos diversos, observando-os em função de novos pontos acontecer de outro modo, pois a evolução, que é a lei funda-
de referência. Assim se explica o estilo diferente da II Obra, em mental da vida, não podia deixar de funcionar e, portanto, de
relação àquele da I Obra, sobretudo em sua finalização, feita de salvar a Obra, que lhe está estreitamente conexa.
crítica positiva do mundo, e não de exaltações espirituais. Trata- Assim esta sua segunda parte não expressa mais um homem
se naturalmente de uma crítica benéfica, que, sem trair os princí- ingênuo, que se deixa enganar por um mundo cuja intenção é
2 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
explorá-lo. Quem sofre pelo ideal tem paciência, enquanto os lógica. Discutindo-se a si próprio, ele contesta a forma mental e
outros se aproveitam do seu sacrifício, que exprime o indivíduo a conduta do mundo, sendo que, agora, no final do seu caminho
espiritual e batalhador. O idealista vê o jogo do mundo e acusa terrestre, ele pode somar as suas operações e concluir, para ver
aqueles que o praticam, explicando-o aos bons, para que estes se teve razão ou não. É certo que sofreu, mas isto não o preju-
não caiam na cilada. Ainda que o mundo queira o cúmplice e dicou, pelo contrário o melhorou, e quem fez mal a ele somente
ame o amigo aliado ao seu jogo, a verdade tem de ser dita, para fez mal a si próprio. No entanto o fruto de ter sabido lutar e so-
que os simples sejam esclarecidos. Desta vez, o ideal não se frer, evoluindo e purificando-se com isso, o nosso personagem
deixou torcer a serviço de outros interesses. Ele não se dobrou, leva consigo. Assim, o livro é construtivo, porque ensina a vi-
mesmo sendo condenado como erro e combatido em nome da ver com retidão, mesmo que agora faça isso de uma forma dura,
verdade. Pelo contrário, tornou-se ação. Então o céu se moveu, distante daquela ternura poética anterior. É por esta razão que
defendendo e salvando as posições. Se o mundo tem as suas ele é bom para persuadir não somente os crentes, que gostam de
forças, o ideal também tem as dele, cada um dispondo daquelas sonhar, mas também os descrentes, que querem raciocinar. Isto
inerentes ao seu próprio plano. Neste segundo período, estas porque, em vez de se limitar aos conselhos teóricos de costume,
forças, tomando a forma de luta, desafiaram-se e mediram-se de o livro explica os motivos pelos quais as coisas vão mal e como
ambos os lados, constituindo uma prova após a qual a II Obra se paga caro por isso. Esperamos que este escrito possa, pelo
reafirmou-se numa posição ainda mais consciente. menos, induzir alguém a enfrentar alguns de seus problemas
No fim do presente volume, o leitor assistirá à oferta simbóli- com sabedoria, para seu próprio bem e para o bem de outros.
ca da Obra àqueles que desejarem depois vivê-la e realizá-la. Da- Este volume pode ser útil não somente aos pobres que acre-
do que estamos na Terra, é natural haver alguém que se aproxime ditam na riqueza, como se ela pudesse ser a solução para todos
dela, julgando poder encontrar aí alguma coisa da qual possa os males, mas também aos ricos que se agarram a ela, sem poder
apoderar-se em seu interesse material. Mas isso, para quem o fi- resolvê-los, para mostrar quanto ela pode conter de veneno e a
zer, representa um perigo, porque, se a presa parece fácil e, por quais perigos se expõe quem não sabe fazer dela bom uso; quan-
isso, atrai os incautos, a Obra é uma dispositivo espiritual muito tos deveres ela implica e qual a dívida contraída para com a di-
potente, que pode trazer grandes benefícios, se for bem usado, vina justiça, que deverá ser paga, por quem não cumpre com
mas que pode explodir nas mãos de quem fizer mal uso dele. aqueles deveres. A riqueza é uma arma de dois gumes, que pode
É perigosíssimo maltratar as coisas espirituais. E neste erro golpear inclusive o seu próprio dono. Este livro mostra que é
caem facilmente aqueles que, acreditando-se astutos, acercam- danoso não só ter mais do que o necessário, mas também possuir
se delas com a mesma forma mental do explorador. Isto pode muito pouco. Assim é desgraçado não somente quem é excessi-
parecer uma traição, mas é justo que seja assim. Trata-se de vamente rico, mas também é pobre demais. Os bens são um
uma ação providencial, porque representa uma legítima defesa meio, e não um fim; um instrumento, e não um objetivo de tra-
da vida, uma vez que tais forças são fundamentais para a evo- balho. Este, portanto, é o motivo pelo qual se tem o direito de
lução. Por isso as coisas espirituais são protegidas por forças possuí-los, ou seja, para trabalhar e produzir, tanto na matéria
poderosas, que, apesar de invisíveis, garantem-lhes o triunfo, como no espírito, evoluindo em ambos os campos, e não para
deixando os assaltantes na ruína, para onde são conduzidos por entesourar com avareza ou para desperdiçar no prazer. A rique-
sua própria negatividade. za, quando é usada para trair os fins da vida, acaba por atraiçoar
O presente volume é apresentado numa forma quase auto- o incauto que acredita ser possível violar as leis com a astúcia.
biográfica, pois trata-se de experiências realmente vividas, Infelizmente, dominados por esta forma mental, ricos e po-
embora elas sejam utilizadas como tema para generalizações, bres, ansiosos de possuir e desfrutar tudo a qualquer custo, são
através das quais o assunto é ampliado até abranger problemas frequentemente equivalentes. Muitos pobres, no fundo, são ape-
de caráter social. Isto porque os casos da vida do protagonista nas ricos frustrados, desejosos de, em nome da justiça, agir de
aqui examinados não são considerados isoladamente, mas sim um modo pior do que aqueles, querendo ficar ricos, para praticar
orientados em função dos princípios gerais da Obra, dos quais uma injustiça ainda maior contra os desgraçados que ficaram
aquela vida pretende ser uma aplicação. Desse modo, os fatos pobres. As posições do satisfeito e do insatisfeito são diferentes,
são explicados através da respectiva teoria, que deles nos mos- mas a avidez de possuir e de gozar é característica humana. Para
tra o significado, justificando a sua presença e a forma na qual o pobre, mesmo as raras renúncias do rico são consideradas lou-
se desenvolvem. Assim, o livro é ao mesmo tempo teórico e cura e, se chegam a verificar-se, não lhe interessam de modo al-
prático, porque, se, de um lado, constitui o emprego de teorias gum, pois ele somente as toma a sério, se tiver alguma coisa a
já abordadas para o desenvolvimento de novas, significa tam- ganhar com elas. O pobre pode também ver naquela renúncia,
bém, de outro lado, a solução de muitos problemas da vida. que segundo ele é loucura, apenas o insulto que representa para
Dessa maneira, esta história se enxerta no mundo de todos, ele o fato de um outro ter nascido rico e poder, com esta finali-
porque o sujeito, com a sua conduta, mostra como entendeu a dade, permitir-se ignorar as dificuldades da vida, dando-se ao
vida e, assim, seguindo-lhe os princípios e conhecendo os seus luxo de, por esporte, fazer-se pobre, somente porque ele não ex-
fins, resolveu vários problemas, consciente da sua própria po- perimentou sê-lo de verdade. São heroísmos com os quais o po-
sição no seio das leis do universo. Depois de tantos volumes de bre se ofende, porque não o ajudam de forma alguma a salvá-lo
teorias gerais, este é um livro de realizações práticas. da sua pobreza. Fizemos estas considerações, para mostrar as
Neste escrito, falaremos bastante de pobreza, mas sem apre- diversas perspectivas com as quais pode ser visto este livro e os
sentá-la na forma de virtude, para suscitar admiração, como diferentes critérios com que pode ser julgado o que ele defende.
frequentemente se costuma fazer na Terra. Aqui, a pobreza não Um livro semelhante a este, também em estilo autobiográfico,
é um exibicionismo para se fazer venerar os santos. Os motivos faz parte da I Obra, sendo intitulado: História de um Homem.
são diferentes, sendo expostos tanto a favor como contra. Seria Mas existe uma diferença entre os dois. No primeiro, o protago-
pueril antepor como valor absoluto o juízo do mundo, uma vez nista observa a vida colocada no seu futuro, como uma antecipa-
que são possíveis diversas apreciações em função de outros ção e um pressentimento. No segundo, ele a olha situada no seu
pontos de referência, sem interesse imediato. Todavia não se passado, como uma experiência vivida. No primeiro caso, trata-
pode impedir que cada um veja a pobreza a seu modo e que se se de um jovem olhando de frente o início de sua vida; no segun-
encontre alguém para julgar aquele personagem um louco. Nes- do, tem-se um velho que olha para trás, terminando a sua. É as-
te caso, temos o fato de que ele tem Cristo ao seu lado. Além sim que, em cada um dos dois volumes, o ponto de vista não é o
disso, ele debate abertamente a sua loucura e nos mostra a sua mesmo. No presente escrito, o sujeito se encontra no fim, em po-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 3
sição oposta à precedente. Pode, portanto, por experiência pró- Tudo isso pode ser entendido como uma reação individua-
pria, dizer aquilo que, no outro livro, era apenas uma perspectiva lista ao moderno tratamento de massa, para afirmar, mesmo
futura, um plano de existência, e não uma vida completa. Não perante as religiões, a inviolável liberdade do espírito. Este es-
predominava então o atual sentido de abandono dado pela imi- crito pode provar que, se nos elevarmos a um mais alto plano
nência da morte, enquanto agora este outro tipo de vida, em vez de evolução, poderemos escapar de todas as coações humanas,
de ser uma espera longínqua, encontra-se batendo à porta. Esta porque se atinge um novo tipo de vida, ainda inconcebível para
posição diversa leva a situar os problemas sob outros aspectos, o homem atual. Superado o nível humano, estamos livres, con-
revelando-lhes outras facetas, ainda não examinadas anterior- dição que não pode ser alcançada por quem ficou para trás. O
mente. Por isso o presente volume completa o precedente. E o indivíduo então se afirma livremente, consciente e responsável
leitor poderá, confrontando os dois, ver o caminho percorrido, perante Deus, sem necessidade de consentimentos de nossa so-
desde então até hoje, de uma à outra das duas diferentes épocas. ciedade, encontrando-se fora dos grilhões deles. Não se dirige
Neste escrito, o leitor poderá ver o sistema filosófico de to- mais por imitação ou sugestão, porque sabe pensar, decidir e
da a Obra e a sua concepção evangélica levados ao campo prá- guiar-se por si. Tal é a posição de quem saiu da menoridade,
tico da realidade em nosso ambiente terrestre, para dar-se conta tornando-se capaz de funcionar autonomamente, com outra
do que realmente sucede em tais casos. Aqui se vê como verda- forma mental, proporcionada à sua natureza mais evoluída e
deiramente funciona o jogo das ações e reações na luta entre o apta para assumir suas próprias responsabilidades.
ideal e o mundo. Aqui, as teorias dos outros volumes se tornam Narraremos aqui a história desse homem, que construiu por
vida, realização e experimentação. Temos uma posição que vai si próprio uma vida assim fora de série. No fundo, não se tratou
no sentido oposto à corrente do mundo, contra a qual ela resis- de uma fuga para se isolar do mundo, mas sim de uma forma
tiu durante uma existência inteira, até ao fim. Mas, neste instan- para permanecer dentro dele, mas com um diferente espírito e
te, quando se enfrenta a prestação de contas, surge o emborca- conduta. Nisto então consistiu o seu isolamento: não aceitar na-
mento das posições, de modo que, perante os novos valores de da do que existe de atrasado no mundo. Fica-se dentro dele, po-
uma vida mais alta, para além da morte, o falido deste mundo rém em outra posição, seguindo outro padrão de vida, benefici-
transforma-se em triunfador. No fim, a experiência lhe dá ra- ando e amando, mas diferindo justamente por isso. Aqui se co-
zão, mesmo tendo-lhe faltado essa razão na Terra. Assistimos meça lançando à face do mundo os seus tesouros – os bens ma-
neste volume à história da experiência, coroada de sucesso, da teriais, a riqueza e o bem-estar, obtidos a qualquer custo, ideais
substituição dos valores do mundo pelos do espírito. supremos, sobretudo em nossos tempos – para conquistar novas
Depois de tantas teorias, devíamos mostrar alguma coisa de riquezas, nutrir-se de outros valores e levar um tipo de vida di-
real, de concreto e de vivido, com um Evangelho tomado a sé- ferente, superando aquele hoje imperante, cujo valor está em
rio, enxertado em nossa vida de cada dia, com as suas lutas e gozar a existência nas suas formas mais materiais. Lutar sempre
problemas; devíamos fazer sentir, de forma tangível, os resulta- para evoluir, em vez de se corromper no bem-estar. Esta é a
dos do choque entre os métodos do Sistema e os do Anti- moral do livro, contrária à dominante.
Sistema no campo de batalha, que é o nosso mundo; devíamos Ele é um grito de alarme em um mundo perdido nas miragens
apresentar tudo isso em ação, para constatar o que sucede oferecidas pelos prazeres e vantagens egoístas, como se a matéria
quando o ideal quer verdadeiramente realizar-se na Terra. pudesse bastar para resolver todos os problemas e satisfazer todas
Agora, já não é mais o momento para expor teorias de ori- as exigências da vida, cujo verdadeiro objetivo não é gozar, mas
entação geral. Este trabalho já foi feito, e dele se presume que o sim ascender. A Obra toda aponta para metas bem diferentes a
leitor tenha conhecimento. Estamos no terreno das aplicações, serem alcançadas, indicando outros fatos biologicamente impor-
de modo que, para se tornar concreto, o campo se restringe. tantes, fundamentais para o desenvolvimento da vida, constituí-
Aqui, temos um indivíduo que enfrenta o seu caso e o resolve dos pelas coisas do espírito, que hoje não são levadas em conta,
por si próprio. Situando-se perante as leis positivas da vida e como se estivessem fora da realidade. Usando uma linguagem
raciocinando com elas, ele se coloca em frente a Deus e fala positiva, provamos o valor do espírito em sentido vital.
com Ele. Para isso, ele tem de sair das fileiras, colocando-se fo- Este livro é uma reação para defender as qualidades morais
ra da corrente na qual as massas, utilizando produtos confecci- contra a atual valorização exagerada das coisas da matéria. Tra-
onados para seu uso e adaptados a elas, caminham em série. ta-se da afirmação de uma vida maior em sentido introspectivo,
Casos desse tipo são enfrentados e resolvidos sozinhos, deixan- espiritual. Cuida-se aqui da substância das religiões, transporta-
do que a maioria vá pela sua estrada. Então é o indivíduo que, da, porém, a um plano positivo racional. Não importa que tudo
colocando-se em risco e contando apenas com seus próprios re- isso esteja hoje fora de moda, indo contra a corrente. Aqui se
cursos, ousa lançar-se no futuro, aventurando-se pelo seu cami- mostra que interiorizar-se espiritualmente pode constituir um
nho, quando este, por estar fora das medidas correntes e longe meio para construir um estado de consciência no qual o ser, ao
do seu tempo, não corresponde ao da maioria. desencarnar, torna-se capaz de sobreviver desperto, lúcido men-
Assim, nesta história, o protagonista se encontra sozinho. talmente, sem cair no sono ou na inconsciência da morte. O in-
Na Terra, ele não tem companheiros. Todos o criticam e o con- divíduo sobrevive consciente somente na sua parte espiritual.
denam. Mas as leis da vida o aprovam, e ele, na sua grande luta Quanto mais ele for espiritualizado, tanto mais claramente per-
contra o mundo, sai vitorioso das ilusões, afirmando-se como ceberá a sua sobrevivência. Aqui se revela a razão pela qual o
conquistador de valores eternos. E estes valores são positiva- desenvolvimento espiritual pode representar uma grande vanta-
mente representados por um avanço conquistado no caminho da gem para cada um, mostrando também que saber viver com inte-
evolução. Este livro é a história de uma guerra conduzida com ligência exige uma arte e uma técnica que levam o indivíduo a
as armas do espírito, narrando o desafio de um indivíduo contra se transferir para um plano evolutivo mais adiantado e, portanto,
o mundo. Ele quer seguir o Evangelho e tem somente um com- mais feliz, o que significa realizar, mesmo em sentido utilitário,
panheiro: Cristo. Para isso, ele precisou isolar-se dos métodos a mais alta conquista da vida. Trata-se, na verdade, de uma aqui-
humanos, feitos com outro espírito e para outras finalidades; sição não só de potencial vital, mas também de felicidade.
afastar-se também das religiões oficiais, tão pouco vizinhas de Precisamente neste volume, momento em que o homem se
Cristo e do espírito de seu Evangelho; isolar-se dos santificado- encontra perante a sua morte e a queda de seu mundo terreno, o
res; libertar-se de qualquer reconhecimento humano, perigoso impulso ascensional de toda a Obra toca o seu vértice, no qual a
quando santifica; conquistar independência absoluta do mundo vida, emborcada no mundo em sua forma de AS, eleva-se para
e alcançar a sublimação da vida diante de Deus. retornar à sua posição, apontando em direção ao S.
4 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
Quem quiser entenderá. Mas não se pode mudar o fato de cida no silêncio da noite, tinha sido tomada sumariamente.
que o trabalho de compor a Obra e de viver-lhe os princípios Agora, à luz do dia, esperava a sua solene confirmação perante
constituiu para quem o executou um grande acontecimento bio- Deus. Aquele homem resolveu despojar-se das suas grandes ri-
lógico, porque isto o fez avançar na sua posição ao longo do quezas, das quais podia livremente dispor e com as quais pode-
seu caminho evolutivo. Aliás, seria impossível que tal trabalho ria ter gozado a vida. Tomara esta decisão, a fim de se adaptar a
não produzisse também algum resultado útil para quem o reali- uma simples e dura existência de trabalho material para viver.
za, que não poderia desejar um resultado melhor. Para os outros O seu objetivo, no entanto, era viver uma vida espiritual não só
restará o fato de que, seguindo a mesma estrada assinalada pe- para si, mas sobretudo para o bem dos seus semelhantes.
las leis da vida e utilizando técnica semelhante para a sua van- Mas despojar-se em favor de quem? Em tais casos, esta é a
tagem, nada poderá impedi-los de colher os mesmos frutos. primeira pergunta feita pelo mundo, que não se interessa de
modo algum em conhecer os problemas espirituais do próximo,
I. O VOTO mas somente em saber aonde foi parar o tesouro, sendo este
considerado a coisa mais importante na Terra. Aqui, delineia-se
Vamos contar uma história singular, procurando compreen- prontamente o desentendimento entre dois modos opostos de
der o seu significado íntimo. Observaremos o desenrolar de conceber a vida. Se ele era louco, pior para ele. Isto não interes-
uma vida, analisando-a, mais do que nos fatos externos, segun- sava. O maior problema para o mundo são os bens terrenos, e
do a luz interior que os une em um nexo lógico e que os faz não os espirituais, tanto que estes são postos a serviço daqueles.
convergir em direção a determinadas realizações espirituais. Neste caso, portanto, ele não precisava esperar consentimentos.
Era pouco mais de meia-noite e, no seu quarto sobre o mar, Por isso falou somente com Deus, seguindo outra moral, a qual
à beira do Atlântico, em terra brasileira, um homem de 77 anos não lhe permitia uma vida fácil à custa do trabalho alheio,
de idade orava, como era seu hábito, antes de se deitar. conscientemente convencido de que devia sustentar a si mesmo
Em vez da habitual série de lamentos e pedidos – dirigida, e à sua família exclusivamente com o fruto do seu trabalho.
sem receber resposta, a alguém escondido no mistério – a sua A perspectiva era dura, e a luta para vencer não foi fácil.
oração era um intercâmbio de sentimentos e pensamentos, um Mas o espírito venceu. Para ele, mesmo sabendo que aquele ato
colóquio. Alguém respondia do outro lado, onde estava presen- significava o início de outro tipo de vida – onde, em vez de go-
te outro pensamento, paralelo e sintonizado. O que era este ou- zar a existência do rico ocioso num bem-estar que não foi ga-
tro centro vivo e pensante? Seria ele o subconsciente do sujeito, nho, ele deveria ganhar o pão cotidiano com o seu próprio tra-
ou o superconsciente? Seria uma entidade espiritual distinta e balho – o Evangelho tinha triunfado. Era outro modo de vida,
pessoalmente individualizável, ou uma corrente de pensamen- ao qual ele permaneceu fiel até o fim.
to? Seria um desdobramento patológico da personalidade, ou Aquele homem subia a colina com o coração leve, envolvi-
pura criação do desejo e da fé, uma simples ilusão? Em nenhum do na euforia de um grande triunfo espiritual. Uma espécie de
outro campo é tão necessário manter o espírito crítico e positivo potente vibração em alta tensão se estava concentrando e acu-
como neste dos misteriosos fenômenos parapsicológicos, no mulando dentro dele. Ao mesmo tempo, ele sentia confusamen-
qual é fácil perder-se em fantasias, como, aliás, sucede frequen- te que alguma coisa, ainda não perceptível, estava condensan-
temente. Eis que, logo no início desta história, surge um pro- do-se à sua volta, sem forma ainda definida. A tensão ia-se tor-
blema para resolver. Ao longo do caminho, muitos outros apa- nando sempre mais intensa. Que estaria acontecendo? Algo de
recerão, e os iremos solucionando. irresistível se estava apossando dele. No entanto ele continuava
Um fato positivo ocorreu naquele momento, quando o pensa- bem desperto, em plena consciência. Caminhava lentamente,
mento interior se expressou assim, dizendo a quem estava a orar: via e observava, apercebendo-se de tudo. Não estava sonhando.
“Esta é uma noite de festa. Esqueceste, mas recordarás. Uma realidade nova o golpeava, diversa daquela sensória que
Exatamente há 32 anos, nesta mesma noite, nos primeiros dias bem conhecia. Então andava, observando e confrontando as du-
de setembro de 1931, tomaste perante Deus a maior decisão da as realidades, com atenção e plena lucidez da mente.
tua vida, iniciando com ela o desenvolvimento da tua missão e Uma capacidade perceptiva diferente da normal o advertia
o caminho do teu atual período terrestre de ascese espiritual, da presença de outros seres próximos a si, entidades vivas e
decisão à qual depois foste sempre fiel, realizando assim o teu pensantes como ele. Porém não lhe era possível ainda individu-
destino. Já que não recordas, procura entre os velhos papéis do alizá-las, nem perceber a forma e o pensamento delas.
teu diário aquele dia, mês e ano, onde encontrarás tudo descrito. Continuou a subir até desembocar numa larga vereda, no cu-
Com este assunto iniciarás assim um novo livro no final da Se- me da colina, que era agora um plano com algumas oliveiras es-
gunda Obra, falando do teu destino, que se desenrolou seguindo palhadas pela amplitude. Solidão silenciosa. Aqui, ele diminuiu o
Cristo. Começarás a escrever hoje mesmo.” Era pouco mais de passo. Eram quase onze horas da manhã. A natureza entoava
meia-noite, e o novo dia mal havia despontado. uma das suas imensas sinfonias, na qual, em sublime orquestra-
Surpreendentemente, tudo foi encontrado no diário, com ção, harmonizavam-se as multiformes vibrações do ser, que iam
exata correspondência de datas e fatos. Foi assim que nasceu de uma forma de vida a outra, das pedras às plantas, dos insetos
este novo volume, iniciado no princípio de setembro de 1963. aos passarinhos, das luzes e cores da Terra e do céu ao respiro da
Decidimos agora narrar esta estranha história, para compreen- atmosfera. Todos os seres, em harmonia com tudo o que existia,
der o seu íntimo significado, como dizíamos anteriormente. cantavam o próprio hino à vida. A hora e a estação eram propí-
◘ ◘ ◘ cias, proporcionando a base necessária para que tais fenômenos
Numa tranquila paisagem campestre da Úmbria francisca- espirituais pudessem surgir, até tomarem forma numa manifesta-
na, nas proximidades de Perugia, que está a um passo de Assis, ção sensível. Talvez o ambiente da natureza fosse igual ao que,
na Itália, sob o suave calor matutino do sol de setembro, um tantos séculos atrás, tornou possível para São Francisco, no Ver-
homem de 45 anos de idade subia sozinho a suave inclinação na, o milagre dos estigmas. Certas condições naturais devem ser
de uma colina. Estava perto de 14 de setembro, dia em que São necessárias para construir a trama fundamental do fenômeno, so-
Francisco, no ano de 1224, recebera os estigmas na montanha bre a qual, depois, o espírito traça a sua figura. Parece, por vezes,
do Verna (esta cena é descrita no volume A Nova Civilização que a manifestação deste fenômeno não pode verificar-se em ou-
do Terceiro Milênio ). tro lugar, a não ser no meio destas grandes orquestrações da natu-
Naquela manhã radiosa, aquele homem emergia de duas reza, sintonizado com elas, sendo erguido por elas e sobre elas se
noites de profunda luta espiritual. A grande decisão, amadure- elevando como motivo supremo, que domina toda a sinfonia.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 5
Ele caminhava lentamente, sem meta, como se fosse levado falar e dizer o que havia percebido. Mas era certo que demons-
por uma grande música que cantava no seu coração. De vez em trava haver sentido qualquer coisa.
quando, parava para melhor ouvi-la. Solidão e, tudo ao redor, Percorrido aquele trecho do caminho, durante aquele breve
silêncio. Nenhuma presença humana profanava o cântico imen- período de tempo, a alta tensão não pôde ser mais suportada, e
so da terra e do céu, nos quais se expressavam e fundiam a be- a visão se desfez lentamente. Não ficou senão o ambiente ex-
leza do criado, a sensibilidade do poeta, a paixão do místico, a terno, aquele que os sentidos físicos normalmente percebem,
suprema aspiração do espírito. constituído somente das coisas que todos veem e às quais, por-
Sentia como se sua alma saísse da prisão do corpo, que- que são vistas sempre, pouca importância se dá. O céu se fe-
brando a barreira do limite que divide as duas formas de vida – chou, e tudo voltou ao estado normal, como se nada tivesse
material e espiritual – para, uma vez rebentadas as portas e su- acontecido. A visão, no entanto, ficou indelevelmente, gravada
perado o plano físico, entrar em outro mundo, mais alto e lon- a fogo naquela alma, como uma queimadura de luz, deixando
gínquo, feito de outra realidade, na qual ele agora se movimen- uma ferida de amor que jamais o tempo poderá cancelar, feita
tava e vivia. Percebia então que, para ele, a comum percepção de saudade, numa contínua e angustiante espera para o reencon-
sensorial passava para segundo plano, prevalecendo em seu lu- tro. A visão passou como uma arrebatadora paixão, que quei-
gar um diferente tipo de percepção, realizada com outros senti- ma, mas fecunda, deixando uma semente em sua alma. Ela fi-
dos, agora interiores, capazes de sentir com a mesma potência e cou escondida, para germinar depois, durante sua existência ter-
segurança, se bem que em forma diversa. Experiência imensa e rena. Então cresceu e frutificou, produzindo novas sementes,
arrebatadora, que não se pode descrever, porque somente quem para que estas possam depois brotar, crescer e frutificar nova-
a viveu pode conhecê-la verdadeiramente. mente, em outro lugar e em outras almas, operando o milagre
Foi assim que, com outra visão, interior, diferente daquela da multiplicação da vida em um nível mais alto, no plano espi-
dos olhos físicos, e com outra audição, também interna, diversa ritual. A partir do momento em que aconteceu aquele fato inte-
daquela do ouvido físico, ele começou a perceber duas formas se rior, não visto talvez por mais ninguém a não ser ele mesmo,
definirem a seu lado. Tornava-se difícil para ele situá-las na di- aquele homem não parou mais. Aquele instante foi o ponto de
mensão espaço. Todavia, sob este aspecto, elas lhe davam a sen- partida da revelação de um destino, lançado naquela direção. E
sação de uma massa com a altura e a configuração de um ser de fato, seu destino se desenvolveu depois como se seguisse
humano, na qual se podia individualizar acima uma cabeça e uma fatal concatenação de eventos, pelos quais têm sido con-
embaixo um corpo, sendo o todo em si evanescente, como se firmada a verdade das inspirações interiores, que, derivando
fosse feito de neblina, tanto menos definido quanto mais embai- daquela primeira visão, continuaram a dirigir sua vida até o
xo, até se dissipar completamente na parte inferior. Parecia-lhe fim. Não se trata, portanto, somente de um momentâneo fenô-
estranho, porém, o fato de que, mesmo sem extremidades visí- meno de parapsicologia, mas também da realização de um des-
veis e sem nenhum movimento físico, estas duas formas, acom- tino que se firma sobre esse fenômeno e que, através de uma sé-
panhando-o uma de cada lado, caminhavam juntas com ele. Po- rie de fatos ligados a este, vem desenrolando-se em sequência,
dia observar com exatidão tudo isso, porque estava perfeitamen- como seu lógico desenvolvimento.
te lúcido, tendo plena consciência nos dois planos de existência: Aqui já se estão delineando alguns dos muitos aspectos de
o material e o espiritual. Distinguia e registrava assim tudo aqui- tal acontecimento. Mesmo que a ciência não nos saiba dar uma
lo que podia perceber, com os dois diferentes tipos de sentidos. explicação completa sobre ele, resta o fato de que o fenômeno
Continuou o seu caminho, enquanto as duas formas avança- ocorreu e as suas consequências se realizaram. Poderá ser jul-
vam com ele, em paralelo. Isto durou cerca de vinte minutos, gado sonho ou fantasia, alucinação histérica ou caso patológico,
período no qual teve tempo de controlar tudo, fixando o evento mas não há dúvida que ele constituiu a pedra fundamental da
em sua memória, para depois analisar o fenômeno com a psico- construção de uma vida, desenvolvida com precisa coerência
logia racional e positiva, independente de estados emocionais. para finalidades preestabelecidas, fixadas no momento em que
Ele não poderia fazer mais do que desligar-se do fenômeno, o fenômeno ocorreu. Ora, o acaso, a alucinação e o patológico
desdobrando-se nas duas posições, de sujeito e observador, não podem produzir uma inteligente coordenação de eventos
fundidas ambas, naquele momento, no mesmo funcionamento. para a execução continuada de um programa, como sucedeu du-
Continuou a observar. As duas formas não constituíam só rante 32 anos, até hoje. Além do fato parapsicológico, aqui se
uma indefinida manifestação de presença. Cada uma delas estuda o problema do destino, sem o qual não se pode compre-
transmitia à sua percepção interior uma típica e individual vi- ender por que, num determinado momento da vida de um ho-
bração, que a definia como pessoa. Foi assim que ele pôde logo mem, aquele fenômeno se verificou com a exata função de co-
sentir com clareza inequívoca que, à sua esquerda, estava a fi- locar, confirmando aquela visão, um ponto de partida decisivo
gura de São Francisco e, à sua direita, a de Cristo. Ambos se para o desenvolvimento de consequências de tal importância.
deslocavam com ele, caminhando, mas não havia colóquio ou O voto de pobreza não foi fantasia, porque foi mantido du-
qualquer transmissão de pensamentos em particular. A presença rante toda a vida. Duas semanas depois da visão, aquele ho-
deles se concentrava, acima de tudo, numa solene afirmação da mem, abandonando confortos e riquezas, estava ganhando, já
própria identidade individual. na condição de pobre, o seu pão em terra longínqua, vivendo
Não houve testemunhas humanas. Será que, se tivesse ha- como professor, num quartinho alugado, no interior da Sicília.
vido, elas teriam percebido? Ou fora bom que não tivessem Foi neste ambiente de pobreza que a visão continuou, mas de
existido, pois, neste caso, poderiam ter paralisado o fenômeno? outro modo, na forma de comunicação espiritual, como um co-
No entanto a observação foi exata, a ponto de ser notada por lóquio, que nunca mais parou, mantendo um contato incessante.
uma pequena testemunha, pois esta demonstrou ter sentido que Na primavera de 1932, quando nada se podia prever, a inspira-
alguma coisa estava acontecendo. Aquele homem estava ção traçou um plano de trabalho, anunciando a composição de
acompanhado do seu cachorrinho, que era acostumado a andar uma Obra, que já está agora no seu 20 o volume, com cerca de
em sua volta. Pois bem, naqueles poucos minutos, o cachorri- 8.000 páginas difundidas no mundo. Tudo isso que se previu
nho se comportou diversamente da maneira habitual. Ficou la- com tanta antecipação no tempo, realizou-se. É óbvio que as
drando em volta do seu dono, para alguém ou alguma coisa doenças mentais não podem produzir tais resultados.
que ele devia estar percebendo perto deles. Sem este fato não Caso se queira admitir que este empenho na pobreza tenha
se explicaria tal comportamento excepcional, que não tinha ou- sido uma loucura inútil, é também necessário reconhecer que,
tra causa aparente naquela solidão. Aquele cachorro não podia sem isso, aquela Obra não teria podido nascer e depois se rea-
6 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
lizar. Além disso, pelo fato de ter uma base e um significado modo que ele permaneça um elemento produtivo na sociedade,
moral, ela exigia, por coerência, que o exemplo fosse dado por em vez de se tornar um produto de refugo, capaz somente de
quem a escrevia, de modo que o Evangelho fosse realmente aproveitar-se dela e de corrompê-la. Empobrecer-se até tornar-
vivido, e não apenas pregado em retórica ou transformado em se miserável, para viver na ociosidade, transformado em parasi-
hipocrisia. Trata-se de uma verdade que, em vez de se basear ta, poderá ter sido um tipo de santidade no passado, em outras
na erudição teológica, é temperada pela luta e pelo sofrimento posições históricas e sociais, mas, hoje, constitui prática antivi-
da própria experiência, condição para se ter o direito de expô- tal, porque é contraproducente também espiritualmente. Hoje
la aos outros. Quem, com os fatos, não demonstra estar con- eliminam-se aqueles sacrifícios que não beneficiam ninguém e
vencido, não pode persuadir ninguém; quem não vive um prin- abaixam o nível mental de quem os realiza. Em vez de serem
cípio não pode pedir aos outros que o vivam; quem não de- julgados como uma forma de elevação moral, eles são atual-
monstra saber primeiro transformar-se a si mesmo não pode mente olhados com desconfiança, como pretextos para praticar
ensinar os outros a se transformarem. Se não for tudo assim, o lazer à custa do próximo, sendo considerados um convite à
será melhor calar-se, porque as pessoas compreendem o jogo, preguiça e um mau exemplo, cuja imitação é prejudicial.
onde o engano convida ao engano do qual se está dando exem- Não é esta pobreza que o Evangelho aconselha. Ele condena
plo. Então, em nome do Evangelho, está-se ensinando a men- o abuso, e não o bom uso dos bens. Ora, o nosso protagonista
tir. Essa Obra não é, portanto, um trabalho de literatura ou uma encontrava-se na situação mais adaptada para poder gozar im-
simples exibição de erudição, mas significa o cumprimento de punemente deste abuso, numa posição que lhe permitia, em ple-
uma missão espiritual, da qual aqueles livros são apenas um na legalidade civil e religiosa, viver do trabalho dos outros, co-
meio. E a execução de uma missão investe a existência inteira mo um parasita. Ele se rebelou contra as leis e os costumes que
de um indivíduo, exigindo o seu trabalho contínuo e o seu sa- lhe permitiam aquilo. Nisto consistiu o seu voto de pobreza, que
crifício, até o seu completo holocausto. poderia ser chamado, com maior exatidão, de voto de honestida-
Neste ponto se fecha a cena e termina a história. Alguma coi- de. Não queria aceitar um benefício que ele considerava ilícito.
sa aconteceu, mas ninguém sabe dizer exatamente o que foi. Os Não lhe importava se, para a moral do mundo, incluindo os pre-
juízos são diversos, conforme o ponto de referência em função gadores do Evangelho, aquilo fosse considerado lícito. Poderia
do qual são formulados. Neste voto há os que podem ver o su- ter gozado não só do ócio mas também do luxo e do respeito que
blime, mas há também quem possa ver a loucura ou mesmo a es- a riqueza, por conferir uma alta posição social, traz consigo.
tupidez de um inepto. Mas os juízos humanos são relativos e, de- Além disso, seria possível ainda usufruir das bênçãos de Deus,
pendendo dos resultados, as apreciações diferem. Assim o louco, se ele, com aquela riqueza – que não tinha sido ganha com o seu
se vence, é considerado com respeito. Porém, se perde, mesmo trabalho e, portanto, não lhe pertencia – tivesse realizado obras
que ele seja grande, é tido como tolo. Será que tais fenômenos de beneficência. Renunciou a esta felicidade do mundo e a subs-
podem ser julgados por uma humanidade na qual o único ponto tituiu pelo trabalho, adotando a parcimônia para si e a generosi-
de referência é dado pela lei animal da seleção do mais forte por dade para os outros, numa vida simples, sem compensações e in-
meio de uma feroz luta pela vida? Mesmo admitindo que este ca- telectualmente ativa para o bem do próximo. A fim de evitar
so represente uma utopia perante a realidade do mundo, ainda as- mal-entendidos, reafirmamos então que o voto não foi uma lou-
sim vale observar como tal utopia funciona na Terra e como, cura fora da realidade, mas sim um ato útil, racional e honesto.
apesar de tudo, já tenha sido ela vivida por indivíduos reputados Não é possível acreditar que tal plano de vida, despojado
excelsos, sendo proclamada como virtude de desprendimento e de heroísmos altissonantes, fosse de fácil realização. A vida é
superação, tanto pelo Evangelho como por outras religiões. Isso bem dura para quem pensa primeiro nos próprios deveres, nu-
nos permitirá não só assinalar vários aspectos de nossa vida indi- ma sociedade em que geralmente cada um costuma pensar an-
vidual e social, mas também descobrir verdades abrasadoras es- tes de tudo nos próprios direitos. Mas, para quem tem senso
condidas sob um manto de hipocrisia. É melhor, então, não ter moral, esse plano de vida representa um dever para com o ver-
pressa, guardando o juízo para o final desta história. dadeiro pobre, que permanece como tal, sem poder sequer
apropriar-se da glória da renúncia. Trata-se de um ato de justi-
II. O SIGNIFICADO ça social, pois vai ao encontro do pobre, em vez de injuriá-lo
com a opulência, o egoísmo e, por vezes, até mesmo o despre-
Encontro-me no mês de setembro de 1963. Já se passaram 32 zo, incitando-o assim à revolta. Para quem tem sentido de reti-
anos de quando nosso personagem tomou a sua decisão. Hoje, dão, tudo isso é simplesmente um dever, e não alguma virtude
em posição retrospectiva, é possível observar aquilo que não se notável que mereça auréola de santidade. Este voto é algo mui-
podia ver então, quando os fatos oriundos, em vez de se encon- to mais simples, pois significa apenas confraternizar com os
trarem no passado, estavam situados no futuro. Agora, é mais fá- deserdados de uma forma mais real. Não se trata, portanto, de
cil compreender o significado daquela decisão, porque é possível esbanjar beneficências do alto da própria posição social, dig-
verificar suas consequências. Mas é necessário, antes de tudo, nando-se a descer sem, no entanto, aproximar-se deles, humi-
explicar o que se entendeu, neste caso, por voto de pobreza. lhando-os assim com a própria esmola. Este voto significa re-
Aqui, este voto não quer dizer miséria, onde a falta do in- nunciar às próprias comodidades, para se colocar na situação
dispensável não permite o indivíduo sequer trabalhar, tampouco do pobre, vivendo a sua vida de limitações e preocupações.
exprime a clássica fuga do mundo, buscada pelos eremitas, para Nestas condições, tudo deve ser provido, para si próprio e para
viverem na renúncia e no ócio, mas expressa, antes, a decisão a família, somente com o próprio trabalho. E, quando este não
de viver exclusivamente do fruto do próprio trabalho, em vez baste, como sucede aos pobres, humilhar-se, pedindo ajuda e
de desfrutar o dos outros, para construir espiritualmente, apoi- ficando assim na dependência de quem dá, que o faz da forma
ando-se, em primeiro lugar, sobre a base da honestidade eco- como lhe convém e se isto lhe agradar. Para quem nasceu rico
nômica. Trata-se de levar uma vida na qual se reduz ao mínimo e se habituou ao regime de abundância, trata-se de mudar
as necessidades materiais, elevando ao máximo as espirituais e completamente de vida, invertendo a própria posição. E trata-
trabalhando neste terreno, gratuitamente, também para os ou- se de fazer isso num mundo em que o valor e a honra consis-
tros. Em suma, não se trata aqui de buscar condições nas quais tem em ser rico e tornar-se poderoso por quaisquer meios, e
o indivíduo é conduzido ao embrutecimento ou impedido de lu- não em ser honesto e sacrificar-se por um princípio idealista.
tar, mas sim de praticar a máxima pobreza possível para um Será tudo isso utopia? Em nosso mundo atual, certamente é.
homem civilizado que tem uma tarefa intelectual a cumprir, de Por outro lado, é certo também que, justamente por esse fato,
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 7
ele sofre as consequências. Assim, o caso aqui descrito supera existe um ponto débil, é inevitável que sobrevenha um ataque
os limites de simples fato individual para assumir um significa- contra ele. Mas o ataque depende do ponto fraco, que o atrai.
do muito mais amplo, fazendo parte do problema social dos Então não há outra alternativa, senão eliminá-lo. Mas isso se
nossos tempos. Uma coisa é certa: se esta utopia evangélica ti- faz localizando-o em si próprio, e não procurando o dos outros,
vesse sido vivida em grande escala, o comunismo teria sido in- para agredi-los. O mundo usa este processo, mas disso nasce
viável, pelo menos nos países cristãos. Isto porque ele já teria somente luta e destruição, de modo que nada é corrigido ou
sido aplicado da melhor forma, realizando-se de modo constru- melhorado. Este método, no entanto, apesar de primitivo, é
tivo e fraternal, através de uma colaboração pacífica, e não de adequado para o progresso nos níveis mais baixos, e a vida o
maneira destrutiva, através do ódio de classes e da opressão por utiliza. Assim, o micróbio ataca no ponto de menor resistência,
parte do Estado. Se os cristãos tivessem sido verdadeiramente para que o indivíduo, aprendendo a vencer na luta, torne-se
cristãos, como o foram nos primeiros séculos, o comunismo mais forte. Deste modo, eliminando os que não sabem vencer,
não lhes poderia ter roubado a ideologia da justiça social – a a natureza obriga os fracos a se fortalecerem. Também no pla-
sua maior força – e não teria, portanto, as massas ao seu lado. no da justiça social, com o assalto das camadas prejudicadas, a
Infelizmente, o cristianismo usou um método diverso. A re- vida tende a eliminar as injustiças, coagindo os imorais a se
ligião se aliou à classe dos dominadores, apoiando-a e, em tro- moralizarem neste terreno. É assim que os nossos pontos defei-
ca, compartilhando com ela os bens materiais. O método era tuosos, sejam eles físicos ou espirituais, vão sendo corrigidos.
submeter os deserdados, dando-lhes a esperança de uma com- Então o comunismo pode ser entendido como um processo de
pensação no além-túmulo, e o resultado foi que, em lugar de se purificação forçada do cristianismo, para levá-lo novamente à
chegar à fraternidade, confirmou-se a cisão entre interesses sua exata posição evangélica.
opostos e a respectiva luta de classes. Foi um programa de ego- Ora, o anticomunismo pode ser mais bem realizado, se a
ísmo, que, em vez do amor, fermentou o ódio na sociedade. Se Igreja mostrar ao mundo, sobretudo com fatos, a sua própria
o cristianismo não tivesse, para seu interesse, protegido estas posição moral e, com isso, sua invulnerabilidade contra acu-
divisões sociais, o comunismo não teria nascido. Estamos nos sações tais como a de que a religião não tem valor como fun-
antípodas do Evangelho. Mas isso não significa que o “Sermão ção social. É somente quando possuímos apenas valores falsos
da Montanha” não seja verdadeiro. Ele não foi feito, como su- que a vida procura eliminá-los. Mas, quando os valores que
cedeu, para ser utilizado com a finalidade de dominar os ingê- temos são verdadeiros, ela tende a conservá-los, a fim de uti-
nuos. Nesta distorção está a culpa, que tem de ser paga. Trata- lizá-los para o seu próprio objetivo, que é a evolução. O ideal
se de uma lei da qual ninguém pode escapar. e a espiritualidade são valores biológicos, que a vida leva em
Chegou, no entanto, o dia em que os simples compreende- conta. Se o cristianismo tivesse realizado o programa evangé-
ram o engano, e o belo jogo das esperanças celestiais não deu lico, teria havido um comunismo com base no amor, e não no
mais resultado. Então os pobres se uniram para exigir de fato, ódio de classes, um comunismo de paz, e não de guerra. Con-
imediatamente e com a força, aquela justiça social que os de- tra um cristianismo verdadeiramente cristão e aplicado, o atu-
tentores da fortuna, em vez de prometê-la, mas não realizá-la, al comunismo nada teria a fazer. Mas terminemos esta digres-
deveriam ter feito por amor. Para piorar as coisas, além de não são, à qual nos conduziu o caso em exame, e continuemos a
se realizar o Evangelho, ainda procurou-se aplicá-lo através da observá-lo sob outros aspectos.
violência, que é o método mais antievangélico possível. Postas Neste caso, a medida da renúncia é reduzida à posse do
de lado as consolações teóricas da religião, começou-se a co- mínimo indispensável para poder realizar o próprio trabalho,
brar imediatamente as contas na Terra, exigindo-se justiça sem útil tanto para o indivíduo como para a sociedade. A moral da
quaisquer protelações para o além-túmulo. vida é utilitária num sentido sadio, construtivo. Tudo que vai
A reação por parte da Igreja confirmou o erro e agravou-lhe contra este princípio, agindo em direção negativa, destrutiva,
as consequências. Em vez de reconhecê-lo e corrigi-lo, ela in- não é virtude segundo esta moral. Esta consiste sobretudo em
sistiu nele, mostrando assim as suas verdadeiras intenções. Em evoluir, de modo que massacrar em seu nome é loucura. Fi-
lugar de voltar atrás, regressando ao Evangelho, a Igreja se cam, portanto, excluídos todos os excessos antivitais realiza-
tornou rígida naquela posição e respondeu com as excomu- dos no passado em nome da santidade, que consistiam no
nhões, pondo-se em estado de guerra no mesmo plano do ata- tormento físico. Construir-se no espírito é tarefa positiva, que
cante, com base nos interesses, em vez de se colocar no seu não se realiza apenas pela destruição de si mesmo como maté-
próprio terreno, com base nos ideais. ria, labor este de caráter negativo. Mesmo que tudo isso se
Que isso tenha sido um erro fica provado pelo fato de já se explique como reação corretiva de abusos praticados em tem-
compreender hoje que o anticomunismo não pode ser obtido pos atrasados, não tem mais razão de ser numa sociedade mais
com o velho método das condenações solenes, mas somente evoluída. Continua-se ainda hoje, por inércia, a exaltar nos
através da lógica e da sinceridade, por pessoas honestas, cum- santos as virtudes proporcionadas às condições de vida que o
pridoras dos princípios proclamados, as quais não se impõem mundo oferecia então, adequadas para desempenhar a função
apenas por autoridade, com atos de força, que, por não prova- de equilibrar os vícios correspondentes. Neste sentido, a re-
rem coisa alguma, jamais convencem. Daí a nova tendência, núncia fazia parte do sadio e indispensável utilitarismo da vi-
depois do Concílio, de se orientar primeiramente para o diálo- da, sempre pronta a produzir o bem, mas rebelando-se a qual-
go. É possível que a Igreja tenha sido obrigada a isso, pois viu quer qualidade improdutiva e destruidora.
a impossibilidade de sustentar aquelas posições usando os ve- No passado, com a pobreza absoluta, reagia-se contra uma
lhos métodos. A tendência para uma nova mudança permane- riqueza que era então fruto de roubos e assassinatos. Revoltar-
ce. Não se vence um mal combatendo-o com outro mal, nem se contra ela significava ir de encontro a esses delitos. O poder
um erro com outro erro. Se ao abuso não se contrapõe a hones- e a glória eram concedidos ao cavaleiro vencedor, que os con-
tidade, todos se situam do lado do primeiro. Não basta, para ter quistava com a violência da espada, e não com o trabalho, enri-
razão, possuir e usar a força da autoridade. Havia apenas uma quecendo porque roubava e matava, e não por ter produzido,
única reação válida, e esta era não se opor à justiça social que porquanto o trabalho era considerado vergonha, deixado aos
o comunismo defendia e já tinha colocado em prática, a fim de servos e olhado com desprezo. O mesmo acontecia também
não lhe oferecer o flanco aos ataques. A verdadeira resistência com a prática do jejum e da castidade, porque se considerava
se faz com a afirmação de si mesmo, reforçando o valor pró- como máxima a alegria animalesca da gula e do sexo, realizan-
prio, e nunca negando os outros, para condená-los. Quando do-se neste campo todos os excessos. Foi por isso que, no pas-
8 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
sado, as virtudes eram desse tipo, exatamente com o objetivo de No fundo, trata-se de simples qualidades biológicas, baseadas
estabelecer uma compensação. Elas presumiam de modo suben- em princípios utilitários, entendidos no sentido não comum e
tendido a existência de vícios opostos a corrigir, para levar o egoísta, que leva dano ao próximo, mas sim naquele inteligente,
homem ao caminho da justa medida. que traz vantagem sem prejudicar ninguém. É justamente por tra-
Ora, é evidente que tal tipo de virtude, em outros tempos e zerem vantagens ao mundo que elas são consideradas virtudes.
ambientes, onde o homem, por se encontrar em outras posições Agir desse modo, para o nosso personagem, consistia em satisfa-
evolutivas, deve alcançar objetivos diferentes, torna-se inútil e zer seu interesse pessoal. Viver no ócio e no prazer pode repre-
absurdo, porque é biologicamente contraproducente. É exata- sentar um triunfo de momento, mas constitui engano, no qual os
mente isto que acontece atualmente, quando a ferocidade hu- ingênuos, que não enxergam longe, caem facilmente. Essa ma-
mana se torna mais sutil, nervosa e psíquica, menos material e neira de viver dá origem a ineptos, cria um hábito difícil de man-
grosseira, manifestando-se como agressão mental, e não como ter e faz desaparecer a arte de saber lutar para sobreviver. É evi-
violência cruel de açougueiros, à semelhança dos habituais es- dente que, por este caminho, o indivíduo acaba por se encontrar
quartejamentos na Idade Média. Portanto as qualidades correti- em condições desastrosas, tendo então de pagar duramente as
vas dos abusos do ambiente moderno devem ser de outro tipo, alegrias não ganhas, das quais desfrutou injustamente. Tais leis
se quisermos que elas cumpram a sua correspondente função são fatais para todos. A diferença entre o nosso personagem e o
saneadora e tenham, assim, a sua presença justificada. As virtu- mundo está no fato de que o primeiro conhecia essas leis e, por-
des modernas não podem ser repressivas na forma e nos pontos tanto, seguia o caminho de sua maior vantagem e menor dano,
em que elas o foram antigamente, devendo tornar-se positivas e fazendo um bom negócio, onde os outros faziam um péssimo.
ativas em zonas outrora desconhecidas. As grandes virtudes da ◘ ◘ ◘
contemplação, transformada em ócio, e da pobreza, convertida Observemos agora o significado do voto num sentido mais
em parasitismo social, são substituídas hoje pelo hábito do tra- vasto. Em substância, o problema aqui tomado em exame é
balho útil à coletividade; as virtudes da ignorância e da inércia aquele de toda a nossa Obra: a luta entre espírito e matéria, en-
mental são substituídas pelas da cultura e da atividade intelec- tre Cristo e o mundo, entre o ideal que antecipa a evolução e a
tual; a virtude para reprimir os prazeres animalescos é trocada realidade que vigora nos planos de vida mais atrasados. No ca-
por outra, para controlar as alegrias de natureza nervosa e cere- so observado e vivido revela-se o choque entre a moral de dois
bral; a virtude da pobreza-miséria, que impede de trabalhar, é níveis biológicos diversos: o do evoluído e o do involuído. Lo-
substituída, como no caso aqui examinado, por outra, que, sem go nestas primeiras páginas, este caso nos foi apresentado em
desperdiçar tempo nem destruir energias, não torne o indivíduo vários dos seus aspectos: como fenômeno parapsicológico, co-
um peso para o próximo. Hoje, a sociedade moderna organiza- mo desenvolvimento de um destino, como moral superior e
da está cada vez menos disposta a admitir em seu seio vaga- como um ato de adesão a princípios elevados, necessários ao
bundos incomodativos, fora do organismo coletivo, no qual o cumprimento da missão. À medida que avançarmos, desenvol-
indivíduo deve enquadrar-se para seu bem e de todos. veremos estes primeiros pontos já referidos, observando o caso
Tudo isso nos mostra como a ideia de virtude tem um signi- também sob outros aspectos, como experiência místico-
ficado e conteúdo proporcionados aos diversos tempos, segun- religiosa, realização evangélica, problema econômico, questão
do as condições de vida que oferecem e a posição evolutiva que ético social, afirmação de personalidade, reação individualista
representam. Não se pode compreender o indivíduo senão em ao coletivismo moderno, conquista de formas superiores de vi-
função de seu ambiente. O tipo de virtude que ele é chamado a da, superação da atual concepção hedonista da existência com
praticar e que justifica e valoriza o seu trabalho não só depende base no bem-estar material, etc. Como se vê, este caso pode ter
mas também não pode ser isolado da forma mental e das condi- vários e profundos significados, os quais procuraremos analisar.
ções de vida do seu tempo. O grande pecado do passado era a Isso nos colocará perante muitos problemas de importância in-
injustiça e a violência no plano físico; o do presente é a mentira dividual e social a serem resolvidos.
e a violência no nível econômico e mental. A qualidade com- Fundamentalmente, a vida pode ser conduzida de dois
pensadora não deve ser uma amputação da animalidade, mas modos diferentes, segundo o ponto de vista em função do qual
sim uma inteligente afirmação de honestidade, sinceridade e se vive. Eles dependem de duas maneiras diversas de conce-
justiça. No passado, em muitas ordens religiosas, voto de po- bê-la: a primeira considera que a existência constitui um fim
breza significava na realidade voto de ociosidade. Hoje, em em si mesma, originando, portanto, o desejo de alcançar van-
nosso caso, voto de pobreza quer dizer voto de trabalho, oposto, tagens de realização imediata (os bens e os gozos terrenos); a
como reação corretiva, ao abuso de quem vive na abundância segunda concebe a vida apenas como um meio para atingir
sem trabalhar, servido pelo labor dos outros. fins mais altos e longínquos, buscando vantagens de realiza-
Foi isso que significou para o nosso personagem o voto de ção no futuro (os bens e os gozos espirituais). No primeiro ca-
pobreza. Esse voto teve o sentido de trabalho e, como nos refe- so, a finalidade é estar bem no presente; no segundo, é cons-
rimos anteriormente, de honestidade, para cumprir um dever de truir as bases para um futuro melhor. Ora, esta segunda con-
justiça social, colocando-se no nível dos que nenhuma renúncia cepção é geralmente proposta de forma ascético-religiosa.
podem fazer, porque nada possuem para poder renunciar. Voto Aqui, porém, nós a propomos de modo racional-científico,
de honestidade num mundo de desonestidade, de justiça num utilizando o conceito biológico-evolutivo, o qual se verifica
mundo de injustiças. Tudo isso feito em obediência a um prin- na superação da atual fase de existência no plano animal-
cípio, renunciando às suas próprias comodidades e resistindo ao humano em direção a níveis de vida mais adiantados, fato este
método egoísta dominante da própria vantagem. Este é o signi- que, ao invés de transposição de realizações em hipotéticos
ficado do voto. Não se trata, portanto, de virtude heroica, mas mundos ultraterrenos, constitui fenômeno positivamente com-
simplesmente do cumprimento de um dever. A maioria, que se provado. Se tal superação é o motivo fundamental das religi-
esforça na sua existência de pobre, não é santa por esse motivo. ões, nós a apresentamos aqui não como o sonho de um místico
Seguir essa outra moral, diversa daquela do mundo, é fato es- ou a exigência de um moralista, mas sim como fenômeno ra-
pontâneo e irresistível para quem vive em um plano evolutivo cionalmente aceito pela ciência, dado pela superação da posi-
superior, onde domina a lei da justiça e do amor, em vez da lei ção biológica de cada um ao longo da escala da evolução, com
do egoísmo e da luta, que impera nos níveis mais baixos, no- todas as suas consequências, constituindo uma realidade im-
meadamente no humano. Tudo é, portanto, logicamente expli- plícita nas leis da vida, que colocam como finalidade da exis-
cado; tudo é natural segundo as leis da vida. tência a sua transformação em sentido evolutivo.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 9
Por esta razão, se a posição assumida pelo nosso persona- conduzido a abusar de coisa alguma. No princípio, aquilo que
gem, ao escolher uma vida de renúncia em vez de uma existên- faz nascer o excessivo desejo é a demasiada privação em que se
cia de fácil prazer, pode porventura parecer loucura segundo o encontra o primitivo. Depois, é a exagerada satisfação do novo
primeiro ponto de vista, que concebe a vida como um fim em si rico que faz surgir a náusea e outros sofrimentos. Chega-se as-
mesma, dirigida a realizações imediatas, ela surge, no entanto, sim à sabedoria do experiente, que não deseja o incômodo de ri-
como sabedoria previdente segundo o outro ponto de vista, que quezas supérfluas, pois sabe que elas exigem uma contínua luta
vê a vida como um meio para alcançar outros fins, dirigida a de defesa contra os ladrões do mundo e o cumprimento de mui-
realizações superiores. No primeiro caso, olha-se de perto, ven- tos deveres, para não sofrer as consequências. Trata-se, no caso
do-se somente a perda imediata que a renúncia traz. No segun- em exame, de uma virtude racionalmente calculada, fruto de
do, olha-se de longe, vendo-se a utilidade produzida a longo uma sabedoria que o mundo condena porque não a possui.
prazo por aquela renúncia, que é então aceita como vantagem. Mas existem ainda outras razões que justificam a conduta
Isto corresponde à psicologia do trabalhador econômico e pru- de nosso personagem. A preocupação do involuído é vencer na
dente, que poupa previdentemente, em vez de gozar a vida, es- luta pela vida com qualquer meio; a do evoluído é comportar-se
banjando. Assim se explica o nosso caso. Para quem conhece as conforme a justiça. Trata-se de duas morais diferentes, porque
leis da vida e a técnica de seu funcionamento, trata-se apenas de pertencem a dois diversos planos de evolução. O segundo bió-
um cálculo utilitário, logicamente preparado, que leva o indiví- tipo não permite os abusos que o primeiro, na sua ignorância,
duo a conquistar uma existência melhor. Isto não significa que reputa lícitos; não os realiza, porque conhece as consequências
se elimina da realidade do indivíduo o ideal, mas sim que este de cada ato executado contra a justiça.
abraça uma realidade muito mais vasta, superando aquela ofere- É por este princípio que o evoluído se recusa a gozar daqui-
cida pelo nosso mundo, limitada, na qual se esgota a existência lo que não é fruto do seu próprio trabalho, aceitando os bens
da maioria dos homens. Trata-se de duas visões: uma de curto somente na medida em que estes produzam frutos para serem
alcance, imediata; a outra de longo alcance, abarcando longín- dados à coletividade. Está, assim, fora dos equilíbrios desta mo-
quos horizontes. O involuído, porque vive na ignorância, é leva- ral receber por herança, pois trata-se de bens não ganhos. Há
do a seguir o primeiro método, enquanto o segundo presume no porém ainda, sobretudo a respeito das grandes fortunas, uma
indivíduo uma consciência da sua própria posição no seio do outra razão: um simples trabalho honesto é insuficiente para
funcionamento universal. O primeiro é levado, acima de tudo, a produzi-las. Na sua primeira origem, a propriedade é o resulta-
satisfazer o seu instinto fundamental, que o faz procurar a ale- do do esforço necessário para se apossar dela, praticado por
gria de qualquer modo, por tentativas, sem saber encontrá-la, fi- qualquer meio, que pode ser também o roubo. Com isto se che-
cando no fim desiludido e insatisfeito. O segundo, conhecendo ga ao fato tangível da posse. A legitimação vem mais tarde,
as leis da vida, sabe orientar-se com inteligência dentro da sua como um seu aperfeiçoamento. Esta é a fase jurídica do nosso
lógica e, assim, guiando-se conscientemente na direção de obje- mundo atual. Só numa sociedade mais evoluída se alcança o
tivos exatos, termina por alcançá-los. Este, em vez de gozar, de- conceito de uma justiça distributiva. Hoje, é ainda legalmente
cide evoluir, não se abandonando inconsciente na corrente, mas lícito tomar posse de uma riqueza por golpes de sorte, seguindo
navegando em direção ao Alto com plena consciência, seguran- hábeis atalhos, de modo que ela é o resultado mais de apropria-
do com a mão o leme do seu próprio destino. Sob o ponto de ção que de produção, porquanto o que se toma é muito mais do
vista biológico, a renúncia daquele homem assume valor positi- que aquilo que se dá com o próprio trabalho. Quem toma só em
vo. Surge então uma pergunta. No fim da vida, quando se faz a proporção do que produz dificilmente se enriquece. O trabalho
soma do trabalho realizado, levando em conta o resultado final, produz, e a esperteza enriquece.
quem estará em melhor posição: o indivíduo que gozou no ócio, É raro que nas origens de uma grande fortuna possa existir
aprendendo assim apenas a ser um inepto, ou quem se submeteu um ato de justiça. Um evoluído não pode, portanto, aceitá-la, e
a uma disciplina de trabalho, através do qual ele foi temperado isto não por motivos de uma ética abstrata, mas sim porque co-
para a luta e teve sua resistência fortalecida, enriquecendo-se de nhece as leis da vida. Ele sabe, então, que uma força manchada
qualidades que melhor lhe garantem a sobrevivência? Mesmo nas origens pela injustiça é, por sua natureza, doente e, por isso,
concebendo as coisas somente em termos utilitaristas, este traba- acaba arruinando quem a maneja. É uma questão de interesse
lho de construir com o próprio esforço uma personalidade sem- próprio. O evoluído considera-se um aproveitador, se aceitar
pre mais forte e evoluída significa conquistar um poder defensi- aquilo que não ganhou. É verdade que o nosso mundo admite
vo na luta, capaz de proteger a vida e garantir a vitória. Um muitos meios para adquirir a riqueza fora do trabalho, e isto de
bem-estar não compensado por um correspondente trabalho pleno acordo com a moral civil e religiosa, que bastam para jus-
produtivo conduz à putrefação. Vemos este processo na deca- tificá-la. O que importa é saber conquistar uma posição de do-
dência das aristocracias. No entanto quem não segue este cami- mínio, legitimando tudo. A lei do atual nível evolutivo humano
nho fácil e não se lança em tais aventuras é considerado bobo é a força e a astúcia, e não a justiça. Muitas vezes é o poder que
pelo mundo. Por quê? Isso é fruto de inexperiência, pelo fato de estabelece a verdade e o direito. Mas tudo isso se paga, e a dura
não se ter ainda atravessado a difícil prova da riqueza, com to- consequência é um estado de atrito contínuo. Agora podemos
dos os perigos que ela representa. Quem a conhece sabe que ela compreender a vantagem de ficar fora dessa engrenagem.
não existe somente para gozar, mas implica muitos deveres e Perante tal conduta, poderia objetar-se que o nosso perso-
traz graves prejuízos, golpeando quem, na sua inconsciência, nagem era um preguiçoso e, por isso, queria afastar-se da luta
não os cumpre. Então o melhor caminho para quem não quer do mundo Mas, na realidade, ele abandonou este tipo de luta
uma coisa ou outra é a justa medida: nem pobreza, que priva do evolutivamente inferior, para enfrentar outra mais adiantada.
necessário, nem riqueza, que traz consigo a escravidão do supér- No fundo, a luta no nível biológico do homem atual represen-
fluo, mas apenas o bastante para viver e executar em paz o pró- tava para ele o lado negativo da vida, de superação da animali-
prio trabalho, sendo isto um direito de todos, como será reco- dade, feita para ser abandonada ao longo do caminho da evo-
nhecido na mais adiantada humanidade do futuro. lução. Para ele, a parte positiva, onde ele queria afirmar-se,
Esta avidez de excesso em todas as coisas deriva de não se como os outros procuram fazê-lo no mundo, estava situada no
ter feito a experiência desse abuso e de, portanto, não se ter ain- plano espiritual. Para este mais alto nível tinha deslocado toda
da aprendido a relacioná-lo com a ideia do sofrimento a que ele a sua atividade e interesse, conduzindo assim a sua luta, tão
conduz. O homem evoluído do futuro, quando se encontrar com poderosa quanto a da Terra, com resultados mais sólidos e pre-
tudo à sua disposição, porque mais experimentado, não será ciosos. As suas conquistas não eram econômicas, mas sim es-
10 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
pirituais. Ele não se isolava deste ambiente para viver no ócio, como o ideal se realiza de fato no caso particular de um indiví-
sob o pretexto de espiritualidade, mas ficava nele para cumprir duo isolado. Assim, o contato entre ideal e realidade torna-se
todo o seu dever, conforme princípios diferentes daqueles do vivo, pois toma corpo nas vicissitudes de uma vida, de modo
mundo. A sua posição não era de inércia, mas sim de trabalho que as reações do mundo não são mais teóricas, mas se concre-
mais intenso e difícil. Ela não tinha nada de passiva e estéril, tizam em atos sensíveis. Aqui, de fato, vemos chocarem-se as
mas era ativa e vital, porque criava valores superiores. Integra- duas opostas vontades de formas de se viver: a inferior do pas-
do nesta nova tarefa, ele era completamente absorvido por ela, sado, que deve ser superada, e a superior do futuro, que quer
não lhe sendo possível gastar energias no trabalho material, nascer, observando como estas forças, através das quais se ma-
que, apesar de tão fundamental para os outros, perdia a impor- nifestam as leis de dois planos de evolução, fazem a sua guerra
tância para ele, perante horizontes tão vastos. dentro da consciência de um indivíduo e no plano dos fatos.
Eis uma outra razão ainda para não aceitar riquezas. Ele Não estamos expondo, como fizemos no volume Queda e Sal-
cuidava de se libertar da servidão que elas exigem e que, para vação, a teoria da ascensão da vida do AS para o S, mas sim
ele, adquiria sabor quase de prostituição do espírito com fins verificando como um indivíduo andou de fato um passo à fren-
materiais. Não se tratava de preguiça de quem quer fazer me- te, ao longo do caminho daquela ascensão. De abstrato, o fe-
nos, mas sim de febre de quem quer construir mais. A razão pe- nômeno se faz concreto, de modo que a teoria se torna prática,
la qual ele não aceitou a riqueza não foi, portanto, somente para ficando assim mais acessível. Mas não esqueçamos que, mesmo
se colocar numa sólida posição biológico-evolutiva e de justiça sendo reduzido às dimensões de um caso particular, o fenôme-
econômica, segundo uma moral superior, mas foi também para no expressa sempre a imensa luta entre S e AS, da qual ele não
alcançar, através de mais intensa e produtiva atividade, uma é senão um momento, estando ligado ao princípio central de
afirmação mais elevada da sua personalidade. Vamos, assim, nosso universo, que é o processo evolutivo, ao qual está confia-
explicando a sua estranha conduta, observando-a sob vários as- da a salvação do ser. Esta constatação dá um vastíssimo signifi-
pectos, para compreender a sabedoria que se escondia atrás da cado à experiência narrada, porque a enxerta no transformismo
sua aparente loucura. Destes primeiros relatos já se pode ter evolutivo universal, fenômeno de dimensões cósmicas.
uma ideia da consciência com que ele vivia o fenômeno, diri- Assim, podemos compreender a razão da loucura de nosso
gindo a sua vida. É certo que se trata de uma posição biológica personagem. O seu caso aparece como tal porque representa o
fora de série, mas isso não quer dizer que ela não esteja assina- reverso do raciocínio na Terra, embora, na realidade, constitua
lada ao longo do caminho da evolução e que não tenha, portan- um endireitamento em direção ao S e à sua lógica, que foi in-
to, de ser alcançada por todos, uns primeiro e outros depois. vertida pelo mundo para o AS. Justifica-se este caso porque ele
Encontrando-se tudo em marcha, um ponto que hoje está no fu- representa uma senda evolutiva, que deve superar o passado,
turo estará amanhã no presente e, depois, no passado. Tudo é de tipo AS, a fim de caminhar rumo ao S. Eis que imenso pai-
relativo. Aquilo que hoje é exceção amanhã poderá ser a regra. nel está escondido atrás do fato narrado. Desta forma demons-
A posição daquele homem não era a de quem está moldado a tra-se que não são loucuras certas pobrezas nem o Evangelho
viver no atual nível evolutivo humano, mas sim a de quem está que as aconselha. A nossa concepção de vida muda, quando a
maduro para se desvincular desta fase, porque nela não pode olhamos em função de finalidades a alcançar muito mais vas-
mais realizar-se. O seu triunfo, de fato, está na morte, como tas do que as do bem-estar imediato, quando se concebe a vida
vamos ver. Lá, onde a vida termina para muitos, começa para atual não como um breve programa que se esgota na Terra,
ele uma outra, maior. Perante as imensas visões de outros mun- mas como o trecho de um desenvolvimento que se percorre pa-
dos, os grandes problemas da Terra se reduzem à proporção de ra alcançar formas de existência cada vez melhores. Apesar de
meras preocupações do formigueiro humano. Mas narramos es- ser afirmado pelas religiões, tudo isto pode parecer um sonho,
ta história com aparência de fantástica justamente para mostrar porém, ainda que elas não o provem, trata-se de um fato posi-
como podem haver outras maneiras de viver além daquelas tivo para quem compreendeu a lei da evolução e o movimento
usuais, que se crê serem as únicas e definitivas. Assim como do universo do AS para o S. Isto pode parecer utopia para os
Galileu revelou o céu, Colombo descobriu os novos continentes homens práticos. Mas permanece o fato de que, com os méto-
e hoje se conquista o espaço, estamos aqui adentrando o supra- dos do mundo, não se conseguiu até hoje fazer outra coisa se-
normal, aventurando-nos nas superiores e inexploradas ampli- não criar um inferno de luta, insegurança e dor, comprovando
dões do espírito. Se, no mundo, vemos que a vida luta para re- com isso tratar-se de uma sabedoria às avessas, de tipo AS.
solver os seus problemas terrenos, aqui a observamos dirigindo Eis o que pode estar por trás destes casos isolados de emer-
o seu esforço num sentido totalmente diverso. Enfrentamos o são do plano evolutivo normal. Eles se assemelham a uma ilha
supranormal em vários dos seus aspectos, com a paixão do ex- erguendo-se do mar, mas que presume, como base de sustenta-
plorador, com o conhecimento que a experiência traz e com a ção, a presença de outras terras submersas, constituindo o cimo
mentalidade de controle racional. de uma das suas mais altas montanhas. Para compreender o ca-
Esta história é a de um pobre homem no meio do tempestu- so aqui narrado, não devemos esquecer esta sua parte escondi-
oso caos de nosso mundo, tentando a grande aventura da supe- da, dada pela sua estrutura interna, que prova a sua conexão
ração evolutiva, uma vez que, pelas leis da vida, não há outro com as leis da vida, em função das quais esse caso se desenvol-
modo de se libertar de tantos males. Ele se posiciona sozinho veu. É certo que se trata de posições de antecipação fora dos
perante estas leis, como uma emersão solitária do nível ascen- limites, dentro dos quais deve ficar a maioria, que não está
sional normal. Encontra-se numa atmosfera rarefeita, sem o pronta para tais deslocamentos, considerados loucura por ela. O
conforto de alguém que o acompanhe. Aqui, vemos o fenômeno seu amadurecimento biológico e respectiva capacidade intelec-
da superação conduzido experimentalmente e analisado racio- tiva não lhe permitem resolver problemas maiores do que os da
nalmente. Como pano de fundo, vemos avançar a imensa mar- sobrevivência no seu ambiente. De momento, este é o trabalho
cha cósmica da evolução. Esse fenômeno é vivido aqui num ca- que a espera, sendo o tipo de experiência proporcionada à sua
so concreto, no momento crítico da transição de um nível bio- posição evolutiva. A humanidade se encontra fechada ainda no
lógico a outro superior. Estamos assim observando a técnica âmbito da lei do seu plano no nível animal da luta pela vida.
desta transformação, reduzida aos termos de uma vida comum. Existem, no entanto, indivíduos que, por conta própria, anteci-
No volume precedente, A Descida dos Ideais, vimos como estes pam fases mais avançadas de evolução. São poucos, mas a vida
descem à Terra, sobretudo por meio das religiões, para que a os produz não como regra, e sim como exceção, à guisa de ten-
humanidade possa realizá-los. No presente escrito, observamos táculos lançados para a frente, a fim de cumprirem a função es-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 11
pecial de explorar o futuro. Naturalmente, as massas os julgam impulso filho do instinto, que depende, portanto, da estrutura da
segundo a sua forma mental, não podendo compreendê-los. Is- própria personalidade. O motivo emerge da profundidade do
to, no entanto, não pode impedir que eles surjam, distanciando- subconsciente, sendo um retorno daquilo que foi escrito nas vi-
se do nível da média. É algo inevitável, estando acima da sua das passadas e tendendo, portanto, a impor-se automaticamente,
própria vontade. A maturação evolutiva faz parte das leis da vi- como um sinal do destino. Tais problemas de psicanálise já fo-
da. Assim é natural que tais tipos escapem da órbita dentro da ram tratados por nós no volume Princípios de Uma Nova Ética,
qual se move a maioria, porque aquela maturação os lança fora e não podemos aqui voltar a eles.
daquela trajetória, ao longo de outra mais ampla. O fenômeno Em nosso caso, temos uma personalidade já formada, com
que estamos observando poderá parecer injustificado para quem as suas características bem definidas, resultado das experiências
está fechado numa esfera mais restrita, mas resulta lógico e jus- vividas, com as quais ela se construiu. Encontramo-nos aqui pe-
tificado para quem, dispondo de uma visão mais extensa, con- rante um fato consumado. Temos um indivíduo constituído de
templa outros universos, enxergando não apenas um plano de uma determinada forma mental, a qual estabelece para ele a sua
existência, mas também os diversos níveis ao longo dos quais particular visão da vida, que ele utiliza para dirigir as suas
estão dispostos os seres na escala evolutiva. ações, a fim de se satisfazer, realizando-se. Isto se deve à técni-
Como impedir que um indivíduo, após ter alcançado um ca construtiva da personalidade, que determina a estrutura e o
mais alto grau de desenvolvimento, encontrando-se em outra desenvolvimento do próprio destino, para o qual a semeadura é
posição biológica, na qual a vida funciona com outras leis, não livre, mas a colheita é obrigatória, estando em nosso poder as
deva conceber tudo diversamente e comportar-se do modo cor- causas, mas não os efeitos. Um impulso, uma vez lançado, deve
respondente? Sendo a sua personalidade de outro tipo, é lógico fatalmente alcançar o seu objetivo, fase final da sua realização.
que, na Terra, pelo fato de não se encontrar no seu ambiente, Ora, o que as experiências do passado tinham escrito com
ele viva completamente deslocado, mesmo tendo fisicamente caracteres indeléveis no subconsciente de nosso personagem,
um aspecto igual àqueles que se chamam seus semelhantes. As- em forma de qualidades agora definitivamente adquiridas e
sim se explica como surgem os santos e alguns seres de exce- exigindo satisfação, era uma norma fundamental de retidão, ba-
ção, que vivem de maneira tão diferente dos outros. Compreen- seada nos princípios do Evangelho, segundo a moral de Cristo,
de-se então a fatalidade de tudo isso, pois trata-se de uma con- nos antípodas à do mundo. A assimilação destes princípios ti-
sequência da estrutura das leis que regem a nossa vida. Assim nha chegado à sua fase mais profunda, constituindo seu instin-
como a criança é feita para vir a ser homem, o involuído tam- to. O indivíduo se encontrava perante algo que se tornaria dora-
bém deve tornar-se evoluído, atravessando ele também o fenô- vante inevitável, porque, para poder seguir uma conduta diver-
meno aqui observado. No entanto permanece inevitável o fato sa, ele teria que destruir ou pelo menos inverter o seu próprio
de que uma criança, tornando-se homem antecipadamente, num tipo de personalidade. Ninguém pode deixar de ser o que é e
mundo de seres que continuam infantes, não pode ser compre- agir conforme a sua personalidade. As nossas obras nos perse-
endida por eles. As coisas são as mesmas, mas a criança as vê guem, e somos feitos de nosso passado. Para outros, que per-
de baixo, enquanto o homem as observa do alto. É natural que correram um passado diferente e se encontram em outras fases
as duas visões tenham juízos e comportamentos opostos. e condições de vida, estando adaptados e, portanto, aptos a su-
Mas por que o evoluído se agita tanto? Quem o obriga a fa- perar inúmeras provas e a aprender várias lições, seguindo ou-
zer todo o seu trabalho, tão isolado e incompreendido assim? tros destinos, esta história pode não ter importância. Todavia,
Certamente, seria mais cômodo para ele satisfazer-se no nível para eles, algumas experiências, totalmente diversas, podem ser
da animalidade. Mas por que esta não o satisfaz, enquanto os fundamentais. Há existências conduzidas em função de outros
outros ficam satisfeitos? Atingido-se certo grau de maturação, pontos de referência e com um modo de concebê-las de forma
nasce uma fome de coisas diferentes, que os outros não conce- diferente. Mas o nosso personagem se encontrava em sua posi-
bem nem desejam. Existe o fato de que o evoluído, apesar de ção, na fase dos efeitos ou zona determinística do seu destino,
ser negativo relativamente ao mundo, é, no entanto, positivo sendo fatal, assim, que seguisse o seu impulso evangélico.
com respeito ao ideal, em relação ao qual tudo que é inconce- Esta premissa era necessária para explicar psicanaliticamen-
bível para os outros constitui para ele a mais viva realidade. A te esta tão estranha psicologia, que, sendo contrária aos gostos
sua posição não é apenas de repulsa perante o baixo, mas tam- da maioria, é considerada contraproducente para a sobrevivên-
bém de atração pelo alto. Trata-se, portanto, da mais potente cia e absurda perante a lei fundamental do plano humano: a luta
afirmação da vida, feita, muito mais do que pela renúncia com pela vida. Já sabemos qual foi a primeira causa determinante de
que se abandona o pior, pela conquista com que se ganha o um modo de pensar e de viver tão estranhos. Vemo-lo logica-
melhor. Deixar a Terra é dor para o involuído, que, neste mun- mente colocado no seio do desenvolvimento de um destino,
do, encontra a sua satisfação, mas pode conter alegrias para o como um seu momento, constituindo nele um elemento justifi-
evoluído, na medida em que tal renúncia represente um meio cado não só pelos precedentes de que deriva, mas também pelas
para encontrá-las mais no alto. Para ele, o fato de negar a ani- conclusões que de fato atinge no final.
malidade não é suicídio, mas sim superação; não é morte, mas No fundo daquela alma estava escrito o Evangelho, agora já
ressurreição. O evoluído poderá parecer negativo ao involuído, em forma de instinto, de maneira que ele não podia fazer outra
porque nega o mundo deste, porém, em si mesmo, é extrema- coisa senão segui-lo, como todos são levados a agir pelos seus
mente positivo, uma vez que não vai contra a vida, mas cami- próprios instintos. No seu destino, como premissa axiomática,
nha em direção a outra, mais alta. existia uma predisposição congênita para seguir Cristo e o Evan-
gelho, havendo também uma instintiva repugnância por todas as
III. POBREZA E EVANGELHO adaptações e contorções às quais o mundo os submete, para con-
ciliá-los às suas próprias comodidades e interesses. Assim, a po-
Analisemos agora o caso que estamos examinando sob ou- sição dele era clara, sem hipocrisia, cortes ou subentendidos, co-
tro ponto de vista, observando-o em relação ao Evangelho. mo aplicação íntegra, e não reduzida a limitadas percentagens.
Salta-nos aos olhos, como primeiro fato, que o nosso persona- Portanto, nenhum sentido de imposição forçada, mas sim adesão
gem o tomou a sério. Por que tão escandalosa revolta contra os convicta e espontânea a um processo salutar de superação.
hábitos do mundo? Eis o que diz o Evangelho:
A verdade é que a primeira origem de muitos dos nossos “Vai, vende tudo quanto possuis, oferece-o aos pobres e te-
atos é axiomática, antecedendo ao controle racional, como um rás um tesouro no céu; vem e segue-me”.
12 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
Depois acrescenta subitamente: “É mais fácil passar um no sentido da justiça social. Naqueles tempos, estes conceitos
camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no não existiam e não se podia, de modo algum, encontrar uma jus-
reino de Deus”. tiça neste sentido. Eis que era impossível propor aquela justiça,
Estas palavras são repetidas por São Mateus (XIX, 21 e 24), a não ser projetada como uma esperança em outros ambientes,
por São Marcos (X, 21 e 25) e por São Lucas (XVIII, 22 e 25), extraterrenos, porque, sendo impossível no mundo feroz de en-
de modo que, depois de tais confirmações, não pode haver dú- tão, era necessariamente condicionada à própria fuga. Assim,
vida sobre o seu significado. tendo em vista um tipo de vida maior, o Evangelho procura eva-
Em seguida, o próprio São Lucas confirma com as palavras dir-se do problema econômico, em vez de tratá-lo da forma co-
de Cristo: “Assim, quem dentre vós não renunciar a tudo isso mo hoje ele é entendido e enfrentado. Trata-o apenas sumaria-
que possui não pode ser meu discípulo” (São Lucas XIV, 33). mente, em proporção à fase atrasada daquele mundo, em que tu-
São Mateus (VI, 19, 21, 24 e 33) confirma: “Não acumuleis do se encontrava no estado rudimentar. A justiça social do
tesouros na Terra (...)”; “Onde estiver o vosso tesouro, aí estará Evangelho, ignorando qualquer técnica distributiva, fica limita-
também o vosso coração”; “Ninguém poderá servir a dois se- da aos elementos de base da economia, desenvolvendo-se, por-
nhores; ou amará a um e odiará o outro, ou se afeiçoará ao pri- tanto, em condições diversas. O fato de haver colocado o pro-
meiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e a blema no seu aspecto espiritual ao invés de no seu aspecto mate-
Mamom”; “Aproximai-vos acima de tudo do reino de Deus e rial, em função de um ponto de referência situado fora da reali-
da Sua justiça, e todo o resto vos será dado por acréscimo”. dade terrena e de suas leis, deslocou-o para uma posição longín-
A linguagem é bem clara, e é difícil invertê-la. Procura-se qua, em vez de uma realização próxima, imediata e concreta.
então silenciá-la ou fugir-lhe com qualquer escapatória lateral. A Nos tempos de Cristo, o trabalho era uma forma mais de es-
ação de interpretar, muitas vezes, tem a função de torcer o pen- cravidão do que um meio de produção. Naquele tempo, a posse
samento original, fazendo-o dizer aquilo que se quer. Procurou- significava uma riqueza nas mãos do dono, que a tinha consegui-
se, assim, entender a pobreza no sentido de desprendimento dos do através da força, submetendo outros à posição de seus servos.
bens, de modo que ela se reduz a uma pura atitude mental, en- Estava-se ainda em plena fase de banditismo, ignorando-se todo
quanto a renúncia torna-se uma posição puramente teórica, que e qualquer cálculo de direitos e deveres, pelo qual se tende à co-
oferece a imensa vantagem prática de conservar a própria rique- laboração produtiva no interesse comum. Nestas condições, o
za, sem nada perder. Desse modo, a finalidade alcançada é van- problema da justiça social somente podia ser enfrentado sumari-
tajosa, pois permanece-se dono, continuando a dispor e a gozar amente, com a condenação dos ricos e dos escravagistas opresso-
de tudo, enquanto, simultaneamente, qualificando-se de des- res, fazendo-os liquidar a sua riqueza, e, do lado oposto, com a
prendido, observa-se santamente o Evangelho. Estes são os pro- consolação dos servos, sem remédio como tais, prometendo-lhes
dutos da sapiência do mundo. O espírito é colocado a serviço do no além uma compensação à injustiça presente, mal inevitável,
corpo e vale como meio para vencer na luta pela vida. Repete-se porque, de fato, sabia-se muito bem que os ricos não obedeceri-
sempre o habitual emborcamento. Mas, para o homem comum, am ao Evangelho. Dessa forma se continuou ao longo dos sécu-
isto é normal, justo e moral. E ele está convencido disto, porque los. O pagamento da injustiça presente era lançado para o além,
esta é a ética do seu plano, necessária à sua sobrevivência. onde os ricos, que no entanto gozavam, deveriam ser castigados,
Todavia tão diferentes afirmações assim do Evangelho, pe- e os pobres, que todavia sofriam, deveriam ser premiados. Para
rante a riqueza, justificam-se na medida em que elas são enten- estes, paciência e resignação, restando por consolação a esperan-
didas não em relação à vida terrena, mas sim em função do de- ça de uma futura vida melhor, quem sabe onde, nos céus. Mas
senvolvimento espiritual, dado pela evolução em direção a pla- que outra coisa se podia dizer então? Estava-se ainda muito longe
nos superiores de existência. Podemos perguntar-nos, então, de se saber como se organizar em sistemas mais equitativos de
que significado aquelas afirmações evangélicas podem assumir, liberdade e valorização do trabalho, num regime de operosidade
se, ao contrário, forem observadas em relação ao nosso ambien- geral, onde quem possui é um trabalhador daquilo que possui,
te terreno? Pode parecer que Cristo, ao se opor à riqueza, tenha sendo isto também um meio de produção.
sido inimigo da produção dos meios de subsistência, tão neces- É natural que naquelas condições, nos tempos de Cristo, a
sários à vida, e tenha, portanto, sido inimigo da própria vida, riqueza fosse uma coisa maldita, porque era fruto de prepotên-
pelo menos no plano terreno. Como se justificam em nosso cia e servia como instrumento de opressão. Até hoje ela pode
mundo as condenações de Cristo, quando Ele fala de posse, de tomar esta forma, tornando-se maldição e sendo tratada como
riqueza, de tesouro, de apego às coisas materiais e de supérfluo, peste, tal como Cristo a tratou. Perante aquela estrutura social,
quando tudo isso representa afirmação neste mundo? Pareceria outro remédio não se podia oferecer. E isso foi aceito também
então que, no Evangelho, a colocação do problema econômico, pelos ricos, porque, para eles, era muito mais cômodo mandar a
tão importante entre os vivos, seja feita em forma negativa, não justiça para um outro mundo, enquanto gozavam neste a vanta-
a favor mas em oposição à vida, contra a qual aquele Evange- gem positiva da injustiça a seu favor. Ora, naquele ambiente,
lho tomaria uma atitude agressiva. É verdade que isso se faz em eles tinham plena razão na medida em que, como opressores,
vista de uma superação para atingir um tipo de vida mais alta. eram os mais fortes, e os oprimidos, os mais fracos. Era, por-
Mas será que se tem o direito de impulsionar o próprio esforço tanto, justa, segundo as leis da Terra, a sua posição de domínio.
evolutivo até ao ponto de liquidar a vida de tipo inferior, a úni- Naqueles tempos, entre capital e trabalho não podia haver
ca para a qual o ser se encontra maduro? Em que sentido Cristo outras relações senão as de vencedor e vencido, de patrão e
podia ter razão no seu tempo, perante aquele mundo, e como servo, de explorador e explorado, num estado de inimizade e
poderá tê-la perante o mundo de hoje? luta, de falta de compreensão e colaboração. Quando a socie-
Em primeiro lugar Cristo não era contra o uso de bens, mas dade se encontra nestas condições, a justiça econômica não se
contra o abuso que deles se costuma fazer. Também nós, quan- pode alcançar senão, como fez o Evangelho, aconselhando os
do vemos alguém fazer mau uso de uma coisa, somos levados, ricos a abandonar as suas riquezas, ou, como fez o comunismo,
para remediar o problema, a destruí-la e até a eliminar quem de suprimindo-as. Quando existe o mal, o remédio somente se
tal modo a usa. É por essa razão que, com o comunismo, parte pode aplicar onde o mal se encontra. Antigamente, era inútil
da humanidade queria abolir o instituto da propriedade em todo ensinar aos operários honestidade e operosidade, para atingir
o mundo e, onde pôde, eliminou os ricos. uma produção melhor e maior, quando isto se resolvia para seu
Acontecia então que, nos tempos de Cristo, com respeito ao prejuízo e para vantagem do seu inimigo, servindo para engor-
problema econômico, eram inconcebíveis as soluções modernas dar o seu opressor e, com isso, reforçar seus grilhões de escra-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 13
vos. Então o interesse do operário era trabalhar, mas produzin- qual ele não procura mais nada. O indivíduo mais evoluído vê
do o menos possível. Também, pela sua natureza, ele se encon- mais longe, surgindo para ele outros problemas, dos quais o
trava na fase da besta a ser domesticada, que não se movia sem mundo não se dá conta. Ele sente a necessidade de dar um obje-
o chicote. Havia, portanto, a necessidade de um patrão doma- tivo à sua vida e de viver em função de realizações maiores,
dor. Não podia existir senão um sistema econômico fechado que a superem. As atividades se deslocam para um nível evolu-
neste círculo. Patrões e servos estavam proporcionados uns aos tivo mais avançado. Alcança-se outra visão da vida e um con-
outros, ficando desse modo condenados ao método do chicote, ceito diferente de justiça e moral. Então, o Evangelho não é
bastante deplorável, porque gera ódios e destruições, tendendo mais um peso, um obstáculo de virtudes das quais buscamos
a paralisar em vez de produzir. Àquele povo Cristo não podia nos libertar, mas sim uma necessidade que devemos realizar
propor remédios realizáveis na Terra, uma vez que tanto a ri- através de nossa própria conduta. Eis a posição de nosso perso-
queza como o trabalho eram coisas malditas e não existia ne- nagem. A sua fome não era engordar, enriquecer e se reprodu-
nhum conceito de produtividade no interesse coletivo nem de zir, mas sim evoluir. Trata-se de uma febre que se apossa do
organização econômica para alcançá-la. indivíduo, quando este atinge o cimo de seu plano de evolução
O conselho, segundo o conceito moderno, de porem-se to- e é chegado o momento em que ele deve efetuar o salto, a fim
dos a trabalhar, ricos e pobres, para produzir, não podia existir de passar a um nível superior. A isto se pode chamar crise de
no Evangelho, porque, naqueles tempos, isto era inconcebível. maturação. É natural no desenvolvimento do ser e faz parte das
Vigorava naquela época o sistema escravagista que levava à re- leis da vida. Mas quem se encontra em outras posições biológi-
volta, e não à produção. Num tal regime de antagonismos, a cas, mergulhado no seu próprio ambiente, não pode possuir
maior parte das energias se utilizavam para lutar, e não para nem compreender uma febre assim, que, no entanto, irá alcan-
produzir. Hoje se procura, pelo contrário, lutar sempre menos, çá-lo quando chegar a sua hora.
para produzir sempre mais, o que é muito mais vantajoso para Procuremos aqui explicar, à forma mental do nível humano
ambas as partes. Há uma tendência ao colaboracionismo, no comum, o que o homem concebe e pretende realizar quando,
qual se harmonizam no interesse comum os dois termos opostos ao evoluir, atinge um plano mentalmente mais elevado. A lou-
e complementares: capital e trabalho. Fazendo deles duas for- cura de nosso personagem, assim como a do Evangelho, con-
mas equivalentes de atividade produtiva, ambas necessárias, siste precisamente nesta diferença de nível evolutivo. Para
compostas de duas especialidades, uma na parte de finanças e quem é mais evoluído, o ideal, que constitui uma antecipação
organização, a outra na parte de execução. de posições biológicas mais avançadas, torna-se realidade pró-
As condições da economia dos povos a quem Cristo falava xima, exatamente porque o ser subiu e esta, quanto mais perto
podem ser observadas ainda hoje, nos países subdesenvolvidos. estiver, tanto menos abstrata e teórica se torna, fazendo, por-
Neles vemos, de um lado, o senhor ocioso e inepto, que engor- tanto, cada vez mais pressão para se tornar realidade vivida.
da explorando os seus dependentes, e, do outro, trabalhadores Mas, para quem é menos evoluído, o ideal aparece como uma
preguiçosos, ineptos e ladrões, pagos com salários de fome e realidade distante, tanto mais abstrata e teórica, quanto mais,
revoltados contra o trabalho, que para eles é escravidão sem es- em virtude da involução do indivíduo, longínqua ela é e, por-
perança, um esforço inútil. Mas eles próprios são o fruto de tal tanto, menos pressão faz para se realizar.
sistema, que os educa para isto. O resultado é péssimo trabalho, É natural que o indivíduo, mergulhado na luta pela vida,
mínima produção, miséria e impossibilidade de se elevar o ní- não queira ter ideais que lhe impeçam o caminho. Ele os con-
vel de vida, porque fica dissecada ao nascer a primeira fonte de sidera obstáculos que lhe dificultam a sobrevivência e procura,
riqueza, que é o trabalho. Não se pode construir sobre o ódio, então, libertar-se deles por qualquer meio. O método mais se-
que, em vez de produzir, está ansioso por desabafar-se com atos guido, portanto mais fácil, não é enfrentá-los, porque são ofici-
de vandalismo contra qualquer forma de civilização. almente venerados e considerados superiores, mas sim iludi-
Cristo teria razão também hoje em condenar os ricos, se los com a hipocrisia. Assim, sem segui-los na realidade, pode-
andasse em países desse tipo, assim como em todos os casos se salvar os próprios interesses, fazendo ao mesmo tempo óti-
onde a riqueza não é honesta. Cristo fala de supérfluo ao tipo ma figura de santo idealista, como sensata pessoa de bem, me-
nababo de seu tempo. Mas é culpa de todos os tempos e luga- recedora de toda a estima e respeito. Mostrar a este tipo que o
res possuir riqueza daquele modo. Assim, possuir torna-se ca- Evangelho é outra coisa significa ofendê-lo, porque revela o
da vez menos culpa, quanto mais ele se organiza em trabalho jogo e tolhe a arma de astúcia com que o indivíduo se defende.
produtivo para todos, como é a tendência moderna. No caso O nosso personagem não podia usar esse sistema. As forças da
aqui tomado em exame, a renúncia aos bens materiais não sig- vida o lançavam em outro sentido, para fazer-lhe dar um salto
nificou retirar-se ociosamente, como se fora um convento me- que o levaria para uma fase mais acima.
dieval, mas sim entregar-se à atividade da mente, que também Continuemos a observar o assunto que estamos examinando.
é um tipo de trabalho útil à sociedade. Esta era a capacidade Se o nosso personagem era louco perante o mundo, ele tinha, no
daquele indivíduo, que servia para todos, conforme o poder de entanto, na sua loucura, Cristo do seu lado. Isto provava qual era
assimilação de cada um, e que lhe permitia obter o maior ren- a sua verdadeira posição. No plano do ideal, ele se encontrava
dimento. É oferecendo aquilo que de melhor se possui que ca- no seu próprio elemento. O Evangelho para ele era uma afirma-
da um pode enquadrar-se mais utilmente no organismo coleti- ção, uma conquista, um acréscimo de vida, uma expansão, e
vo. E os produtos espirituais também são necessários à vida. não, como significava para o mundo, uma repressão ou uma mu-
Não se vive apenas de pão. Além da meta do bem estar materi- tilação. Era por isso que ele vivia o Evangelho, fazendo-o não
al, existem metas mais altas e longínquas a alcançar, em dire- por um esforço de virtude, mas sim para sua satisfação. No fun-
ção às quais a evolução impulsiona. Eis que, no cálculo utilitá- do, ele se realizava conforme a sua natureza. Queria ser cristão
rio da vida, pode entrar, ao lado da sua concepção material, segundo Cristo, e não de acordo com o mundo. Uma paixão
também uma de natureza espiritual. A primeira se esgota na mística o dominava, numa ânsia de ascensão para viver o seu
Terra, e a segunda abre o caminho para mais vastos horizontes. ideal sempre mais intensamente. Tudo fazia sob o olhar de Cris-
Para o tipo comum, os problemas fundamentais são comer e to, sentindo o pensamento e o calor que emanava daquela pre-
reproduzir-se. Ele usa as suas faculdades mentais sobretudo pa- sença. Algo de indelével emergia do seu passado, impressões
ra estes dois objetivos. Como animal, uma vez resolvidos estes potentes que os milênios não tiveram a força de fazer esquecer.
dois problemas, ele não enxerga outros e se detém satisfeito. Por momentos aflorava da profundidade do seu espírito, como
Estes dois objetivos preenchem todo o seu horizonte, além do uma visão, a recordação de uma figura querida e sublime, que
14 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
encarnava o seu ideal e constituía o seu modelo. Contemplava-o, gélico, e não de luta de classes; como o rico que dá, e não do
reconhecia-o, não podia esquecê-lo. Ele era o centro da sua vida, pobre que assalta para tomar. Se a aristocracia da Idade Média
como um destino que não se pode deixar de seguir. tivesse feito isso, não teria ocorrido a Revolução Francesa. Se
Sob a irradiação de conceitos e sentimentos dos quais a burguesia capitalista que a substituiu tivesse feito o mesmo,
aquela figura o inundava, ele vivia para cumprir a sua obra e não teria nascido o atual comunismo. Aquelas riquezas esta-
missão. Trabalhava mergulhado nesta atmosfera. A realiza- vam envenenadas na sua origem e corromperam quem as pos-
ção dos seus sonhos estava situada muito longe da Terra. suía. A riqueza não poderá ser pacífica e segura enquanto não
Aqui, ele era apenas um exilado de passagem, dirigindo-se for sã, fruto de trabalho honesto. As leis de Deus e a Sua justi-
para outros lugares. Não vivia apenas uma breve existência ça dominam tudo, inclusive o campo econômico. Somos livres,
no mundo, porém uma vida imensa na eternidade. Ele tinha mas devemos sofrer as consequências de nossos atos. Julga-
nascido e existia para produzir uma obra de pensamento, que mos que podemos escapar-lhes, mas, depois, a lei de Deus nos
não era apenas uma construção espiritual para o bem dos ou- restitui toda a carga de nossos malefícios.
tros. Ela era também uma contribuição importante para o de- O nosso personagem colocou-se fora desse terreno, não es-
senvolvimento de sua personalidade, na medida em que ele- timulando tais reações. Se ele tivesse aceitado o compromisso e
vava para um plano mais alto o seu edifício espiritual. Aque- pactuado com ele, teria de pagar mais tarde. Conhecia as leis da
la obra representava a ascensão a um novo grau de evolução, vida e as vias da sabedoria, traçadas pelo modelo. Para libertar-
que o aproximava sempre mais do seu modelo. Havia entrado se das consequências, não havia senão a ausência de culpa para
no seu campo gravitacional, e a sua órbita já não podia girar com as causas. Sabia que tudo é dirigido por uma ordem na
senão ao redor dele, restringindo sempre mais as suas espi- qual Deus está colocado em primeiro lugar. Foi o primeiro a
rais. Encontrava-se na fase determinística dos efeitos, fatal dar o exemplo de que a liberdade não é capricho ou arbítrio,
consequência das premissas colocadas no passado. Não po- mas sim liberdade na ordem. Toda liberdade, quando feita de
dia, portanto, fugir ao natural amadurecimento do fenômeno. desordem, leva ao caos e pertence ao AS, nunca ao S. Assim,
Por isso, era prisioneiro do seu próprio destino. Deus não sai da Sua lei, criada por Ele mesmo, que é a Sua
Sem dúvida, para que pudesse cumprir o seu trabalho, era própria expressão. Fugir-lhe seria contradizer-se, ir contra si
condição indispensável ter as mãos limpas, ser livre das coisas mesmo. Sabemos que Deus deve ser algo justo, bom, lógico e
do mundo e, em primeiro lugar, das riquezas. Os bens em si perfeito, não sendo possível ser o contrário. Assim, se a desor-
mesmos não são maus, porém o mau uso deles é o pecado clás- dem existe em nosso universo, nós a vemos, no entanto, cir-
sico do homem. A sua posse, desde a sua primeira origem, está cunscrita, isolada no seio da ordem, que a domina, fechando-a
manchada por egoísmo, avidez, prepotência e injustiça. Estas dentro de confins bem definidos. Num mar de ordem, existem
características impregnam a riqueza, que as transporta consigo, ilhas de desordem. O próprio AS não é senão uma zona doente
infectando quem a possui, além disso são continuamente usadas no corpo do S, na ordem de Deus, responsável por tudo.
para conquistá-la e frequentemente necessárias para conservá- Assim, o nosso personagem procurou não entrar na faixa da
la. Assim, riqueza e honestidade nem sempre se encontram uni- desordem, permanecendo na ordem. Não obstante devesse viver
das. À volta da riqueza se soltam as maiores cobiças humanas. materialmente transplantado na Terra, procurou permanecer
Por isso, em relação a este assunto tão fundamental, o nosso aderente à ordem de Deus no grande organismo, porque sabia
personagem eliminou-o de sua vida, seguindo o Evangelho. que só Nele é possível encontrar a salvação. A Obra era feita
Existia também o fato de que ele não podia desperdiçar as desta ordem. Ela mostrava o funcionamento orgânico físico-
suas qualidades mentais, usando-as para fins materiais, porque dinâmico-espiritual do universo, dirigido por Deus. Depois de
deviam servir para outro tipo de trabalho. Assim como o ho- ter primeiramente compreendido tudo isso e explicado aos ou-
mem comum procura libertar-se do ideal, porque o incomoda tros, ele enxertara-se de fato nesta ordem, para viver dentro de-
na luta terrena, o nosso personagem também se libertava das la, em harmonia com o todo, como acontece no S, e não em po-
coisas mundanas que o incomodavam na luta pelo espírito. Não sição separatista de rebelde, como sucede no AS. Assim, ele se
há margem para lutar ao mesmo tempo em dois níveis diversos, propôs a viver orientado em direção ao S, e não ao AS, como
fazendo a guerra em duas frentes. Cada um se livra daquilo que elemento de ordem que faz parte do S, e não como um compo-
está fora do seu plano de trabalho e restringe a luta a uma só nente de desordem, fora do S, dispondo-se a viver em união
frente. Desse modo, o nosso personagem limitou-se ao nível com Deus e em sintonia com a Sua lei.
espiritual, por ele escolhido, abandonando o restante. Para poder caminhar em direção ao grande centro, ele se
Tudo isso para ele não era somente questão de moral, mas apoiava em Cristo como guia e ajuda, em Cristo que também é
problema de higiene espiritual, com finalidade protetora. Dis- Deus. Em que sentido Cristo é Deus vimos no Capítulo XIV:
semos há pouco que a riqueza, pelas qualidades das quais está “A Essência de Cristo”, do volume: Deus e Universo. Ele é
impregnada, pode infectar quem a retém. Se ela não foi adqui- uma criatura do S, não rebelde e não decaída, que ficou na or-
rida com justiça, mais cedo ou mais tarde termina escapando dem e pureza da criação originária. Portanto, é uma criatura
das mãos de quem a possui, corrigindo assim o mal realizado não inquinada de culpa, tendo permanecido íntegra na sua na-
para adquiri-la. Pode suceder ainda que uma riqueza, se estiver tureza divina, como foi criada. Assim, Cristo é verdadeiramen-
impregnada de forças maléficas, acabe envenenando quem a te um filho de Deus, mas não decaído como nós. Somos tam-
possui e quem está em contato com ela. Todas as coisas são vi- bém filhos de Deus, mas derrocados no AS. Cristo é um dos
vas e trazem consigo, restituindo a quem delas se aproxima, a elementos da multidão que constitui a terceira pessoa da Trin-
carga recebida no passado. Possuir significa identificar-se, co- dade. A primeira é Deus, no estado de pensamento: o Espírito.
mo um parentesco de sangue, com aquilo que se tem, assimi- A segunda é Deus no estado de vontade em ação: o Pai. A ter-
lando-lhe as qualidades e forças das quais foi carregado, que ceira é Deus no estado de obra realizada: a Criação. Ela foi
depois imantam quem o possuir. O nosso personagem não po- primeiramente pensada, depois desejada e, finalmente, realiza-
dia entrar nesse vórtice de ondas barônticas1. da. Tal obra é o Sistema perfeito da primeira criação, um orga-
Por isso, ele resolveu à sua maneira o grande e atual pro- nismo de criaturas, ainda não despedaçado pela queda no AS,
blema do mundo: a justiça econômica. Praticou-a em sentido que constitui o nosso universo de matéria, em antítese ao S,
evangélico, na forma de dever, e não de direito; de amor evan- universo do espírito. O S é o estado orgânico em que Deus se
transformou com a primeira criação, totalmente espiritual. Ne-
1
Vibrações inferiores. (N. da E.) la não existia ainda o nosso universo físico, resultado da que-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 15
da. Cristo é um dos muitos elementos do estado orgânico ori- Paralelamente, temos uma vida constituída de duas partes: a
ginário, na sua forma ainda íntegra, como foi criada por Deus. primeira metade ligada às coisas do mundo, a segunda dedicada
O fato de se apoiar em Cristo tinha para o nosso personagem à realização da obra espiritual, que foi iniciada na metade dessa
uma importância fundamental. Com isso ele vinha gravitando em vida, exatamente no fim do primeiro período e início do segun-
direção ao S, desvinculando-se do campo gravitacional do AS; do. Duas partes opostas, que, não obstante, completam-se reci-
orientando-se em direção ao primeiro, afastando-se do segundo. procamente, formando uma só existência. Esta, por sua vez,
Assim, biologicamente bem orientado, ele se dirigia para o polo complementa-se nos seus dois aspectos, de vida material exte-
positivo do ser, que o colocava numa posição de vantagem, por- rior, e de vida espiritual interior, formando somente uma.
que, dessa maneira, estava seguindo a lei de Deus, ligado à gran- Eis o que nos diz a história que estamos narrando. Nos fatos
de corrente da evolução, que tudo conduz para Ele. Isto o levava vividos, vemos repetidos e confirmados os princípios gerais ex-
para o alto, em direção ao bem e à alegria. Apesar de constrangi- postos na Obra. Assim, temos princípios e fatos, teoria e prática,
do a viver no mundo, ele se destacava deste cada vez mais, tor- abstração e realização, duas posições que parecem opostas, no
nando-se independente, cidadão da ordem, e não da desordem. entanto são a mesma verdade. Vemos sempre repetir-se o tema
Não se tratava de abstrações. Aquela ordem existia dentro da unidade que se despedaça no dualismo e deste se reconstitui
dele e como tal funcionava. Em vez de ser ignorância, egoísmo na unidade. Ecoa assim o princípio fundamental em todas as altu-
e guerra, era conhecimento, amor e paz. Mesmo com o mundo ras. Podemos, desse modo, ver de que forma o motivo central do
exterior permanecendo como tal, o nosso personagem mudava fenômeno resulta projetado na Obra. Num primeiro momento,
completamente o seu mundo interior, porque várias forças o ele nos aparece no ápice do ser. É o dualismo monista: S e AS.
atraiam, outras leis funcionavam em sua nova posição evoluti- Num segundo instante, ele se reflete na Obra, que o retrata, reve-
va, diferente reações eram provocadas pelos novos tipos de lando-o até ao ponto em que ela mesma se despedaça em duas,
movimentos. Ainda que lá fora reinasse a desordem do AS, para depois se reconstituir em unidade. No fim, a existência de
neste deserto ele tinha construído para si um oásis de paz inte- um homem se divide em dois períodos que compõem uma só vi-
rior, uma ilha emergindo do mar desse caos, na qual tudo era da, na qual se realiza um destino de redenção, onde se completa o
harmonia com Deus. Assim, podia viver a sua verdadeira vida caminho percorrido no passado, agora amadurecido até à catarse
ao lado de Cristo, diversa daquela aparente que vivia o mundo. biológica, dirigida para um plano mais alto de vivência.
Podia viver à vontade no seu mundo interior, no qual não era Eis que imenso conteúdo se pode dar a uma existência vivi-
mais um exilado, como o era na Terra. A segunda metade de da com consciência e conhecimento, em harmonia com o gran-
sua vida, empregada para escrever a Obra, ele a tinha vivido de plano da existência, em contato com as verdades supremas,
neste outro mundo do espírito; tinha estabelecido o contato e conforme a lei de Deus. Eis em que se pode tornar uma vida,
fixado um liame definitivo com a fonte da sua inspiração, que quando a abrimos para tão vastos horizontes, vivendo-a nas su-
representava mais uma experiência, como a outra, que os milê- periores dimensões do espírito, projetada para o centro do S:
nios não tiveram a força necessária para fazer esquecê-la. Deus – a unidade suprema na qual se resolvem todas as cisões
Se este era o resultado para o indivíduo, a Obra representa- do dualismo. Reunificar o que foi despedaçado, sanando o cis-
va o mesmo para a sociedade. Era uma semente que ficava no ma da revolta, a fim de passar do caos infernal do AS à ordem
mundo e para o mundo, depois que ele partisse. Mas, no perío- feliz do S, este é o objetivo da evolução, a último meta da exis-
do da sua formação, a Obra constituía, com a vida do autor, a tência. Dirigir-se com Cristo para Deus, a fim de subir até Ele,
mesma coisa. Tinha vivido para realizá-la. Era, por sua vez, o e não descer com o mundo para o anti-Deus; viver do lado de
fruto que valorizava a sua vida. Ter sentido a Obra como pen- Deus, unificado com Ele, conforme o modo do S, e não do lado
samento e, ao mesmo tempo, tê-la vivido como norma de con- oposto, separado Dele, segundo a maneira do AS; eis o fato que
duta constitui-se num todo único e compacto. Agora que esta- pode transformar uma vida de miséria em uma existência de ri-
mos chegando ao seu fim, é possível ver que também nela exis- queza. A solução do problema da salvação está em sair do esta-
te um princípio de unidade, dado pela fusão dos dois elementos do de separação (AS) para voltar à união com Deus (S). Com
do dualismo. De fato, por causa de vicissitudes terrenas, a Obra esse retorno se resolve, por si próprio, o drama cósmico da
(S), ao entrar no mundo (AS), partiu-se em duas, sendo escrita queda, porque, dirigindo-se para o ponto de chegada, o ser,
em dois hemisférios nos antípodas, como S e AS, para depois através da conclusão do ciclo involutivo-evolutivo e da reunifi-
se recompor em uma unidade; duas obras em uma, como o dua- cação com Deus, volta ao ponto de partida, onde encontra a sua
lismo S e AS é destinado a ser reabsorvido no S. Eis que a Obra originária perfeição e felicidade.
reproduz o motivo central do fenômeno cósmico que descreve e
que nela, deste modo, está refletido. IV. INCOMPREENSÃO E CONDENAÇÃO
Nos seus volumes conclusivos, a segunda Obra representa
uma descida ao mundo, no terreno do AS. Assim, depois de ter Vejamos agora a posição em que o nosso personagem se
exposto as verdades do S, ela nos mostra o que é a Terra peran- encontrou perante o mundo. Este o estigmatizou com três pala-
te o Céu, o mundo perante Cristo, fazendo-nos sentir o choque vras: é um imbecil!
entre os dois polos do dualismo. Dividindo-se em duas partes, a Desse modo, ele foi rapidamente espoliado na sua mais alta
Obra percorreu tudo, de um extremo a outro, permanecendo, virtude de acordo com o mundo: possuir riquezas. E foi assim
contudo, una, completando-se com a oposição de dois termos colocado na posição de derrotado, como a nossa sociedade es-
contrários e complementares. perava. Parece que, na Terra, os bons não podem ser utilizados
Olhando agora para o caminho percorrido, podemos com- senão para serem explorados, tendo a sua bondade aproveitada
preender o significado do trabalho realizado. Mesmo aqui, ve- pelos outros. Ele era um imbecil, que, socialmente, somente
mos um dualismo que se resolve em unidade. Temos duas coi- podia ser útil para ser vencido.
sas que se fundiram numa só: a construção de uma Obra e o Mas como se pode afirmar que o atual biótipo humano deve
cumprimento de um destino; um trabalho que justificou e pre- constituir a única unidade de medida dos valores da vida? Na
encheu uma existência, e uma vida que serviu para realizar esse verdade, ela pode ser preenchida com coisas maravilhosas,
trabalho. Dois termos que colaboram: um homem que construiu completamente diferentes daquelas do homem que só se inte-
uma Obra e uma Obra que edificou um homem. Tudo no fim se ressa por sexo, pela riqueza, pelo orgulho, pelo poder etc. Estas
recompõe em unidade. O mesmo homem que vive para pensar são satisfações elementares, própria de primitivos. Existem ou-
uma Obra, pensa-a para vivê-la e assim realizar-se. tras paixões, outros prazeres, lutas e conquistas. Quem assegura
16 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
que à vida não se possa dar outro conteúdo, a não ser das coisas Para o indivíduo espiritualmente mais avançado, há o tor-
terrenas? Quem pode afirmar que ela se exaure toda no plano mento de ter de se adaptar, ficando obrigado a usar uma medi-
físico e que não se pode concebê-la de forma muito mais vasta, da que não é a sua. A sociedade não admite em seu seio tais
em relação a outros pontos de referência? É lógico que a evolu- seres, porque eles, sendo construídos fora de série, não cami-
ção abra as portas para mundos e formas de vida que o atual nham na corrente comum. O tipo de inteligência que o mundo
homem comum nem sequer concebe. Então pode-se viver em exige é diverso do que ele possui. Pertence a um nível mais
função de realidades situadas além do período terreno, com fi- baixo, destinado para se realizar na Terra, no momento presen-
nalidades mais altas e longínquas, diversas da vantagem con- te, e não para se dirigir a um padrão de vida mais evoluído, a
creta e imediata. Quem permanece naquele primeiro tipo de vi- ser alcançado, quando se estiver maduro. Trata-se da inteligên-
da, primitiva, pode ser apenas um míope que enxerga somente cia-astúcia, adaptada a fabricar enganos, para neles enredar o
uma pequena vivência realizada no presente, um ignorante que próximo e vencê-lo, em vantagem própria na luta pela vida. A
desconhece como funciona o grande mecanismo da existência, outra é uma inteligência feita para descobrir aqueles enganos e
não se dando conta dos imensos poderes e desenvolvimentos não ficar preso em suas armadilhas, de modo a não ser vítima
contidos no processo evolutivo. Aquele homem os conhecia e dos poderosos deste mundo e, assim, evitar o próprio dano. Em
até os tinha explicado a quem os ignorava, não nos vagos ter- resumo, a inteligência do mundo é de guerra, egoísmo, rivali-
mos da fé, mas com a lógica positiva do raciocínio, das provas, dade, atrito e mentira, ao invés de ser individualmente constru-
da experimentação e da ciência. Ele tinha, portanto, agido raci- tiva e coletivamente organizada, sincera, colaboracionista,
onalmente, segundo uma visão profunda dos princípios da vida, iluminada, ordenada e consciente. Com o seu tipo diferente de
dirigindo através deles o caso particular do seu destino. Ele sa- inteligência, o evoluído busca conhecimento e evolução. Ele
bia por que tinha nascido e qual era o trabalho a realizar nesta não faz o jogo de conquistas de posições sociais, usando o
sua atual existência, e o executava. Tudo isso ele fazia com co- próximo para fazer carreira e ganhar dinheiro. A esta bravura
nhecimento e consciência das razões pelas quais se vive, para inferior a inteligência do evoluído não mais se adapta. Repug-
realizar um plano de construção da personalidade em sentido na-lhe desfrutar as suas capacidades espirituais, usando-as
evolutivo. Este era o homem que o mundo julgava um imbecil. egoisticamente. A muitos isso poderá parecer a atitude de um
Mas era natural que o condenassem, porque, para se corrigir aristocrata orgulhoso, que tem repugnância do mundo. Ainda
numa forma de vida de tipo S, ele tinha destroçado o modelo de mais quando ele é rico e poderoso, pois sabe como isso é al-
vida na Terra, de tipo AS. Tendo-se colocado contra as leis do cançado na Terra. Entretanto, mesmo o tipo comum, quando
plano evolutivo humano, para seguir outras mais elevadas, era enriquece, tende a se fazer aristocrata e a repelir a plebe. Isso é
óbvio que aqui fosse condenado. Para o mundo, a sabedoria es- fatal, porque qualquer ascensão provoca distância, estabele-
tá em saber enriquecer, não importando os meios, sendo o em- cendo divisão entre o alto e o baixo. Por isso, não se pode im-
pobrecimento considerado ignorância e derrota. Os valores são pedir que a separação surja automaticamente, mesmo no caso
imediatos e concretos, e não uma meta a alcançar com a evolu- da espiritualização, que representa um deslocamento muito
ção. A finalidade é gozar logo, mesmo que se fique devendo ou maior do que o enriquecimento e a respectiva aristocratização.
ainda que se retroceda, inconsciente das consequências longín- Observemos ainda outros aspectos de inconciliabilidade en-
quas. Não se pensa em criar formas mais avançadas de vida, tre as duas situações. Quando o homem espiritual abandona as
adquirindo-as com a ascensão espiritual. Quanto mais o ser é riquezas terrenas, empobrecerá ele verdadeiramente, ou isso
involuído, tanto mais tem vista curta e vive o dia-a-dia com re- acontece somente para o mundo, que não conhece outras? Se
ações imediatas; quanto mais ele é evoluído, tanto mais vê ao alterarmos o ponto de vista, pode suceder que a sua pobreza se-
longe e é previdente organizador do seu futuro. O selvagem vi- ja relativa à forma mental do mundo que o julga, e não em rela-
ve só o momento presente; o homem civilizado prevê por anos; ção à conquista de outras riquezas, ainda não compreendidas na
o evoluído antevê a sua evolução em outras vidas. Como se Terra. Os valores econômicos e os espirituais constituem dois
percebe, o problema da vida, nos dois casos, é colocado de diversos tipos de bens, situados em dois níveis evolutivos dife-
forma oposta. Além disso, é lógico que seja assim, dado que rentes, ambos úteis à vida, mas cada um tanto mais precioso,
existimos no dualismo, com a cisão em duas posições antagôni- quanto mais alta é a sua posição. Quando se abandona uma coi-
cas. Este condicionamento faz parte da própria estrutura de sa de menor valor, para conquistar outra de maior interesse, não
nosso universo, constituído do S e AS, do positivo e negativo, se pode negar que se trata de um bom negócio. E, neste caso,
do contraste entre contrários. É a esta estrutura cósmica que não era algo de maior valor abstrato, mas sim prático, em ter-
pertencem a contraposição Cristo e mundo e, no caso presente, mos de conhecimento, satisfação moral, resistência na luta e
a oposição entre o nosso personagem e o ambiente humano. Eis formação de personalidade. Tratava-se de uma economia diver-
a amplitude das bases da sua conduta e da sua moral. sa, sem furtos, enganos, desilusões, traições e semelhantes de-
É certo que neste mundo são mínimas as proporções em que sastres das riquezas terrenas. A essas conclusões, de fato, o
tão vastos princípios são reproduzidos, no entanto eles estão aí. nosso personagem chegou ao término da sua vida, depois de ter
Mesmo assim, o mundo gravita em direção ao polo oposto. É conduzido até o fim a sua experiência evangélica.
assim que tipos como o nosso personagem ficam isolados, fora No caso tomado em exame, as avaliações eram opostas.
da normalidade, cuja força do número decreta a verdade na Ter- O que, para ele, era positivo, para o mundo era negativo, e
ra. Tais tipos vivem como marginalizados num meio que lhes é ao contrário. Assim, na pobreza, o mundo via somente uma
hostil. O nosso mundo está organizado para satisfazer os gostos perda material, a coisa mais importante, enquanto ele via um
de determinado tipo médio, que se intitula de normal. Tudo se grande lucro espiritual. Julgamento inverso. A diferença en-
destina à sua medida. Os outros devem adaptar-se. E, se são tre os dois casos está no fato de que, para o nosso persona-
muito evoluídos, não têm outra alternativa senão animalizar-se. gem, a renúncia é sentida não como perda, mas sim como
Só assim serão considerados normais e poderão reentrar na sé- um meio de conquista espiritual. Não se trata de um fato ne-
rie, movendo-se de acordo com os demais. gativo, antivital, e sim positivo, em favor de uma vida mai-
Pouco a pouco o problema inicial desta história se dilata. O or. O mundo busca valores transitórios, aderentes somente à
voto de pobreza não é um fato isolado, pelo contrário está co- parte exterior da pessoa, da qual podem ser facilmente des-
nexo com outras questões, apresentando-se como uma emersão tacados. Em nosso caso, procuravam-se atributos interiores,
da profundidade de um mundo subterrâneo, constituído pela definitivamente unidos à pessoa como qualidades suas, que
personalidade humana, sua estrutura e seu destino. ela não pode mais perder, virtudes que não podem ser vendi-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 17
das, nem roubadas. Tudo depende da própria potência de vi- tante. Quem na Terra se encontra em sua casa, em seu ambi-
são e da amplitude dos horizontes que com ela se pode abra- ente e, pela força do número, estabelece as suas verdades não
çar. De resto, o fundamental impulso da vida é essencial- são os seres de exceção, super-homens descidos de outros
mente subir. E, neste caso, ascende-se a dimensões mais planos, exilados e solitários neste mundo, mas sim o involuí-
amplas, com resultados mais estáveis; realiza-se não uma re- do, que os julga com a sua forma mental e se limita a utilizá-
lativa elevação econômica, mas sim um verdadeiro cresci- los para os próprios fins imediatos.
mento biológico; não se acrescenta a si alguma coisa de fora, Ora, a função de adaptar as altas coisas do espírito, rebai-
mas torna-se absolutamente diferente, o que coloca o indiví- xando-as ao nível do involuído, vem sendo realizada pelas re-
duo em uma posição evolutiva diversa, conduzindo-o, por- ligiões. Este é o trabalho dos ministros de Deus, o qual é rea-
tanto, a um definitivo melhoramento de tipo de vida. lizado através de uma interpretação materialista do que é es-
Explicamos em outro lugar a função evolutiva do fenôme- piritual, encenando espetáculos com as representações do ri-
no da descida dos ideais na Terra. O nosso personagem a tinha to, adaptados às massas nos pontos onde estas não cedem.
compreendido e, por isso, seguia um ideal, para realizar o seu Poder-se-ia observar em que medida Cristo transformou o
progresso espiritual, vivendo-o por sua conta, em um ambiente mundo, ou até que ponto o mundo transformou Cristo. É pre-
social evolutivamente inferior, levando um tipo de vida supe- ciso, no entanto, reconhecer que não havia outro meio para
rior, a fim de se preparar para entrar individualmente em um chegar a essa simbiose, necessária para os fins da evolução.
mais alto plano biológico. Não podendo constranger o mundo Reduzido a essas condições, o produto espiritual é aceito no
a evoluir, não lhe restava senão abandoná-lo à sua sorte. Sendo plano humano, mas, apesar de evolutivamente degradado, é
este bem armado de resistência para permanecer no seu nível utilizável para os fins da vida.
atrasado, ao nosso personagem só restava limitar-se a evoluir Não se pode pretender que o homem mude de natureza,
isoladamente. Ele tinha o seu modo de fazer carreira, não pelas quando ele, como ministro ou como fiel, trata de coisas religi-
pequenas estradas do mundo, mas sim pelas grandes vias- osas. A substância da relação entre os dois é uma troca na qual
mestras da ascensão do universo em direção a Deus. cada um dá e recebe alguma coisa. No fundo, também aqui vi-
Também ele era um conquistador de riquezas, mas segundo gora a psicologia humana do “do ut des”. O bem, objeto do
um tipo de economia diversa daquela do mundo. Antes de tu- contrato, é a outra vida. O clero se apropriou dela e a usa em
do, sabia produzir e fabricava para si, oferecendo depois gra- regime de monopólio. Trata-se de uma mercadoria-esperança,
tuitamente aos outros, o fruto do seu trabalho. Por isso, era baseada na fé, de modo que os descrentes a deixam sobre o
contra os métodos do mundo, que, ao contrário, utiliza a troca balcão. Mas, para quem acredita nela e, portanto, a deseja,
egoisticamente calculada. É interessante observar então o que nasce a luta entre a procura e a oferta, como sucede com qual-
acontece, quando as coisas espirituais são oferecidas e têm de quer troca. Diz o fiel ao ministro: “Eu te presto obediência, se
passar do seu tipo de economia àquela da Terra. É natural que tu me deres o paraíso”. Diz o ministro ao fiel: “Se tu não me
este as trate com a sua forma mental do “do ut des”2, segundo prestares obediência, eu te mandarei para o inferno”. Deve-se
a qual a troca é de acordo com a lei da oferta e da procura, pagar com a obediência o paraíso que se adquire. Mas há aqui
pondo-se a utilizá-las, em primeiro lugar, como um meio para alguma coisa mais. Nas outras trocas, o adquirente não é casti-
realizar seus interesses materiais, e não para evoluir. Assim, as gado, se não as efetua. Neste caso, se ele não as realiza, fica
coisas espirituais são colocadas no balcão, como a mercadoria sujeito a uma pena, de maneira que não está livre para recusar.
comercial dos vendilhões do templo. Temos, assim, um mercado forçado em economia de monopó-
O caso em exame nos faz ver o choque que nasce, quando lio. A realidade é que o ministro quer a obediência a qualquer
um produto espiritual, filho das leis do seu plano, é transporta- custo e, por isso, utiliza os meios de que dispõe. No entanto o
do para o terreno do nosso mundo material, onde vigora outro jogo é totalmente psicológico, sendo descoberto na falta de
tipo de lei. Aqui o produtor de bens espirituais se encontra em crentes ou na ausência de fé. Tudo isso é inevitável num mun-
condições econômicas de imensa desvantagem. De tais bens do em que a troca, ao invés de ser um balanço de justiça, é di-
são poucos os consumidores e, portanto, os adquirentes. Então rigida por uma forma mental egoísta, pela qual cada um luta
a oferta se torna inútil e morre sem resultado, quando não lhe para extrair do próximo a maior vantagem possível.
corresponde uma procura proporcionada. O produto pode ser Esse é o mundo ao qual o homem espiritual oferece os seus
sublime, mas não é comerciável. Fazem-no, pois, desaparecer produtos. Tais bens superiores ele os oferta gratuitamente, nada
do mercado, e o problema fica resolvido. pedindo em troca. Estamos bem longe da psicologia econômica
As massas querem outros artigos, sendo que a procura re- da Terra, que o mundo compreende e sabe praticar. Este quer
gula a oferta e, portanto, a produção. Deixa-se de produzir bens adaptados ao seu gosto, não importando se para isso são
aquilo que não se vende. Há, no entanto, um meio para dar sa- adulterados. Se não são manipulados, mesmo que sejam precio-
ída aos bens do espírito, o qual consiste em rebaixá-los ao ní- síssimos, não lhe agradam, e ele não os aceita. Não os compre-
vel que satisfaça o gosto das massas. Quando se trata de coi- ende e volta as costas a quem os oferece. A moral é que a pro-
sas de primeira necessidade, sendo a procura assegurada pela dução de bens espirituais genuínos é restrita ao uso individual.
carência do consumidor, o produto pode impor-se a ele. Mas, O mercado público é invadido por artigos adulterados, apresen-
no caso contrário, é o consumidor que se impõe ao produtor, tados com infinitos objetivos por falsos profetas, em nome das
exigindo que sejam satisfeitos os seus desejos. Isto significa coisas mais elevadas. Sendo assim, ao homem verdadeiramente
que, em matéria espiritual, os caminhos são dois: ou quem espiritual não resta outra coisa senão isolar-se e viver a sua vida
oferece tais bens os rebaixa ao nível terreno, prostituindo-os interior, por si próprio, perante Deus.
com uma adaptação para satisfazer o gosto comum, em pro- É certo que devem parecer estranhos esses raciocínios para
porção à ignorância, às superstições e aos interesses do mun- quem se encontra satisfeito em nosso mundo e está a ele propor-
do, ou este fica com os seus interesses e o deixa só, voltando- cionado. Poderão até soar a escândalo, sobretudo para as almas
lhe as costas, para contentar-se com outros, que lhe agradam piedosas, peritas na arte milenária de conciliar, com boas manei-
mais. Passam pela Terra profetas, santos e gênios, mas ela ras, as coisas terrenas com as do céu, de modo que possam ir pa-
toma deles só o que lhe serve, adaptando-o às suas preferên- ra o paraíso, sem se incomodarem demasiadamente. Poder-se-ia
cias e necessidades, deixando de ver ou abandonando o res- continuar ainda por séculos o belo jogo, mas a verdade é que a
história está preparando golpes tremendos para quem usa tal mé-
2
"Dou para que dês". (N. da E.) todo, não mais tolerável. Portanto constitui dever de honestidade
18 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
falar claro, sem os tradicionais floreados, que, em certas horas espiritual o colocava numa posição de inferioridade material.
difíceis, podem significar um engano perigoso. Na prática, aquela superioridade se resolvia numa inaptidão pa-
Neste mundo, parecerá anormal esta nossa febre de evolu- ra viver e sobreviver neste planeta, onde devia permanecer. O
ção, esta mania de superação, sendo estranhada por muitos, so- mundo o fazia pagar aquela sua superioridade. Não era porven-
bretudo por quem se encontra bem acomodado no seu atual mo- tura honesto e pacífico? Mas para que podem servir na Terra
do de viver. Para quem não se inflama na alta-tensão da criação tais qualidades, senão para serem exploradas? Enquanto ele so-
espiritual, certas renúncias e revoltas contra o mundo parecem nhava com as superações, o involuído, perito em outra sapiên-
loucura, pois enriquecer é a maior causa da ambição e do traba- cia, era atraído a cuidar de espoliá-lo e esmagá-lo. Havia a reli-
lho. Na Terra, certos valores, considerados máximos, são mini- gião, a fé e os ideais, mas tudo isso, na forma em que existe no
mizados, enquanto outros, bem menores, são agigantados. No mundo, em vez de ser uma ajuda no seu trabalho de elevação,
fundo, o problema de nosso planeta é digno de piedade, porque a representava uma resistência a vencer, muitas vezes um inimigo
fadiga que ele suporta é árdua e traiçoeira. Mas, se o tipo corren- da espiritualidade, uma armadilha para pescar os ingênuos. As-
te é de tal natureza, como pode a vida destiná-lo a trabalhos sim ele devia defender-se, sobretudo dos crentes, das pessoas
mais altos? É certo que, em vez usar a inteligência para a guerri- de bem que, de forma mais sutil, com a astúcia coberta de vir-
lha quotidiana, seria mais belo utilizá-la em outro nível, mas ne- tudes e vestes evangélicas, fazem a mesma luta dos outros.
nhum trabalho pode ser feito sem o amadurecimento adequado. A posição dos dois termos é clara. Se o evoluído pode ser
Se não fosse o constrangimento das necessidades materiais, a logicamente superior, isso não interessa ao mundo, que evita
maioria não trabalharia. Tudo, portanto, está proporcionado. A roubar tesouros espirituais, porque não sabe o que fazer com
avidez é útil, assim como a miragem que a excita e a desilusão eles. O involuído pode ser inferior, mas isso não lhe importa,
em que tudo se resolve. O tipo de trabalho-engano, ao qual o porque possui aquilo que mais ama: as riquezas da Terra. Sa-
homem vive submetido, é adaptado à sua capacidade e necessi- be procurá-las, defendê-las e gozá-las. Se os anjos, para esta-
dade evolutiva. É natural também que tudo mude para os indiví- rem bem, têm necessidade do paraíso, os diabos sabem estar à
duos que se deslocam em direção a outros níveis de existência. vontade mesmo no inferno. Cada um está bem na sua casa, no
Explicamos assim o voto franciscano. Mas o mundo está ambiente que lhe é proporcionado, onde encontra satisfação
convencido de que tal pobreza é loucura, apesar de exaltá-la das próprias necessidades. Se os diabos não podem ir para o
com palavras. Faz-se boa figura, o que não custa nada. O ho- paraíso, é porque, também ali, eles se encontrariam muito
mem normal sabe muito bem que isso são belas coisas para se- pouco satisfeitos, não podendo exercitar-se na sua ocupação
rem ditas, mas não para serem feitas. No entanto elas podem ser preferida, atormentando o próximo.
utilizadas para outros objetivos. Se elas ainda são professadas, Tudo isso é justo, porquanto cada um, no final, recebe o que
significa que servem para alguma coisa, caso contrário teriam merece. O evoluído, hoje, sofre na Terra, onde se encontra exi-
desaparecido. Ora, encontra-se sempre alguém de boa-fé. Estes, lado, mas com a morte vai-se embora e, amanhã, estará melhor,
tomando para si a renúncia, oferecem aos outros generosamente num ambiente de maior progresso, ao qual doravante pertence
o que é seu. E o idealista cai nisso. Este é também um modo de por evolução. O involuído, hoje, está bem na Terra, mas, ama-
utilizar o ideal na Terra, ou seja, recomendá-lo elogiosamente a nhã, retorna para ela, sendo condenado a ficar aí até percorrer
quem possui, mas colocando-se do lado de quem recebe. Con- toda a sua “via crucis”, necessária para se tornar um evoluído.
siderando o comportamento humano, por que razão se poderi- Constata-se então uma grande diferença na hora da morte. En-
am fazer na Terra tantas glorificações, que em si mesmas não quanto para o evoluído se abrem os céus, o involuído se volta
interessam a ninguém? Conforme as leis biológicas do nível desesperadamente para trás, prendendo-se àquilo que mais ama:
evolutivo do homem, tudo deve ser útil à vida na Terra. Por is- a vida terrena que lhe foge. Assim a morte, para o primeiro,
so, em tal ambiente, até os ideais podem ser importantes. Isto abre a porta à luz e, para o segundo, constitui um pavoroso mis-
sucede em todos os campos. Tão logo um grupo se forma, ele tério, cheio de trevas. Mas a diferença pode ser vista mesmo em
glorifica o seu fundador sobre as virtudes baseadas em sua vida. Na Terra, tudo é instável e inseguro, sendo dependente
grandeza, exaltando os seus mártires, porque, com o seu sacri- das vicissitudes da luta e condenado automaticamente a se con-
fício, testemunharam a verdade sobre a qual esse grupo funda- sumir. Vive-se de um presente que, em contínua fuga, não se
menta a sua posição. Caso não haja mártires, então criam-nos, consegue apanhar. O amanhã é incerto, e a realidade está sem-
utilizando qualquer desgraçado que se tenha deixado matar pelo pre pronta a dissolver-se numa ilusão. Mas o que é de fato sóli-
ideal do grupo que o sustém. Isto é mais evidente em política, do não é o concreto, como se crê, mas sim o abstrato. Pelo fato
que está sujeita a rápidas mudanças. O partido dominante se de se encontrar em cima, o espiritual se subtrai ao vórtice do
apressa a fabricar os seus mártires, que duram enquanto aquela transformismo, que tudo arrasta.
agremiação continua existindo. Depois eles desaparecem, sur- Insistimos nesse tema das diferenças de posição evolutiva
gindo os do novo partido, e assim sucessivamente. porque nelas está o significado da história que narramos, além
Vamos refletir um pouco mais sobre as razões pelas quais o disso elas explicam o maior fenômeno biológico no qual a hu-
mundo julgava o nosso personagem um idiota. O que tornava manidade, sobretudo no momento atual, está empenhada, que é
fatigante a sua posição era o fato de ter de enfrentar simultane- a passagem da fase evolutiva animal-humana à do homem evo-
amente duas lutas: uma em alto nível, no plano espiritual, apro- luído e consciente. No fundo, durante a sua vida terrena, o evo-
priada para evoluir, e outra no baixo nível da luta material para luído é um desgraçado, porque não se encontra no seu ambien-
sobreviver na Terra, que, mesmo estando o indivíduo engajado te, mas está em posição de retrocesso involutivo, o que para ele
em outro tipo de trabalho, não o poupava. O que agravava a sua pode significar a condenação. No entanto é esta inconciliabili-
fadiga era a sua forma mental de bondade e amor, porém estava dade a sua salvação, porquanto, se ele pudesse adaptar-se, seria
imerso no ambiente humano, que, de outro lado, queria apro- um involuído, o que constituiria para ele a maior infelicidade. É
veitar-se de tudo. Estava empenhado numa tarefa complexa, natural, portanto, que, no mundo, ele se sinta no inferno, pois
num mundo em estado de guerra, com as mãos atadas pela ho- isto prova que não é cidadão deste plano. E isto o salva, porque
nestidade, desarmado pelo Evangelho, enquanto muitos outros, o constrange a realizar a sua redenção, que pouco interessa aos
sem escrúpulos e preocupações espirituais, livres de tal peso, outros, mas da qual ele sente urgente necessidade. Ele faz es-
podiam pensar somente em lutar e vencer. Ele era altruísta e forços desesperados para chegar à superação, fugindo do pior
praticava justiça. Os outros, com métodos opostos, confortáveis para conquistar o melhor. O seu drama está no fato de querer o
no próprio plano, facilmente o venciam. A sua superioridade céu, embora deva permanecer encadeado na Terra a uma lei fe-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 19
roz, que não é a sua. Entretanto ele sabe conceber formas de vi- do tipo de governo, em sua formação, funcionamento e queda
da superiores, das quais os outros nem sequer suspeitam; co- reencontram-se fatores que se repetem em cada caso, porque é
nhece a estrada para ascender àquele nível e luta para alcançá- sempre o mesmo tipo fundamental de elemento humano que
lo, dando um valor imenso ao seu esforço, enquanto os outros concorre para a formação do fenômeno.
se fatigam do mesmo modo, mas apenas para se esmagarem, Assim funcionam as coisas de nosso mundo. Opõe-se um
fechados dentro da mesma prisão. É interessante observar o que sistema político a outro, uma religião a outra, mas trata-se
está atrás do cenário, para ver o real funcionamento das leis da apenas de diferentes agrupamentos, que, sendo feitos com o
vida no plano humano. A riqueza no sentido de excesso, de su- mesmo material humano, lutam entre si, porque se baseiam
pérfluo não ganho, não correspondente ao próprio valor, consti- em interesses diferentes. A questão de princípio é puramente
tuindo, segundo as leis da vida, um desequilíbrio que traz con- teórica. Qualquer distinção é inútil ou, no máximo, apenas su-
sigo a reação corretiva. Tal riqueza excita o ataque de quem não perficial, porque o tipo humano básico, encontrando-se num
a possui e enche de saciedade e preocupações quem a obteve. determinado nível de evolução, regido por suas respectivas
Trata-se de uma atraente miragem, que, ao ser atingida, revela o leis, permanece o mesmo, sendo levado, portanto, a compor-
engano. Pode ser desejável para o pobre e inexperiente, poden- tar-se da maneira correspondente. Opõe-se, desse modo, o sis-
do satisfazê-lo no primeiro momento da sua aquisição, para tema democrático ao totalitário, como se fossem duas coisas
compensar as precedentes privações. Comer é agradável para substancialmente diversas. Mas o poder fica sempre nas mãos
quem tem fome, mas não para quem já está satisfeito. Eis que, daqueles especializados na obtenção do comando. Assim este,
para obter prazer pela posse das coisas, não basta possuí-las, com o método totalitário, é conquistado à força, por meio das
são necessários outros elementos, de caráter não econômico, revoluções, enquanto, com o método democrático, é conquis-
como a necessidade e o merecimento. Quem nasceu rico, não tado através da habilidade de granjear os votos, levando o po-
conhecendo a pobreza, com a qual pode fazer a comparação, vo para onde se quer. O poder é sempre o resultado de uma
não sabe apreciar a riqueza, portanto é um desgraçado, porque, conquista, significando a posição de vencedores sobre rivais
estando já satisfeito e não sendo habituado a lutar por ela, é em competição. Os princípios são teóricos e os programas são
inepto para defendê-la e, portanto, está destinado a perdê-la. superestruturas, para simples embelezamentos. As massas
Assim, a posse dos bens oscila como as ondas do mar, num respeitam o poder pela sua força material, pois trata-se do fru-
vaivém contínuo. Os que nascem ricos acabam perdendo tudo, to de uma conquista que coroa a vitória do mais forte. Então,
enquanto os que nascem pobres e que, por isso, são esfomea- quando este se enfraquece, é assaltado e liquidado, sendo to-
dos, acabam levando tudo, para condenarem depois os seus fi- mada a mesma atitude de respeito perante o novo vencedor.
lhos ao destino dos ricos. A sabedoria da vida parece consistir Rapidamente, todos esquecem o velho poder e se inclinam pe-
no fato de induzir propositadamente os ricos a criar um ambien- rante o novo, porque, em substância, trata-se do mesmo poder.
te feito para levá-los automaticamente à perda da riqueza. Eis A única diferença está no fato de que, agora, ele se encontra
uma forma de justiça social já realizada e funcionando há tem- em outras mãos. Mas isso diz respeito aos partidos em luta, e
pos imemoráveis, antes da chegada do comunismo. Por isso as não ao povo, que é mero espectador. Qualquer forma de go-
posições de rico e pobre são cíclicas, de modo que todos as per- verno é sempre constituída por um elemento dominante, sepa-
correm por turnos, sendo obrigados a fazer esforços e a apren- rado da massa, o qual pensa primeiramente em manter a pró-
der lições, num trabalho útil para evoluir, o que representa o pria posição. Neste ambiente restrito entram elementos diver-
precioso resultado final desse belo jogo. Também na Terra, in- sos, devido às vicissitudes políticas, mas trata-se sempre de
dependentemente do “Discurso da Montanha”, os pobres são especialistas por competência e longa preparação. Dessa ma-
destinados a enriquecer e os ricos a empobrecer. Sábios e justos neira, mesmo se, teoricamente, qualquer indivíduo pode subir
equilíbrios da vida, para os quais todo o excessivo esbanjamen- ao poder, na prática a escolha é limitada a um restrito círculo
to em um sentido tende automaticamente a inverter-se, para re- de candidatos elegíveis. São eles que tomam a iniciativa e di-
equilibrar-se, reentrando no seu contrário. rigem a própria luta para a conquista. O povo é apenas guiado.
O mesmo fenômeno se verifica no caso dos detentores do Assim, apesar de crer que possa escolher livremente, na reali-
poder. Parece que cada fenômeno, quando alcança uma fase de dade a massa aceita, porque só pode realizar a sua escolha no
excessivo desenvolvimento, esgota-se e regressa, por força das âmbito do que lhe é apresentado.
leis da vida, à sua posição de justo equilíbrio. Parece que os Em qualquer sistema político, o rebanho não pode perma-
fenômenos se cansam por excesso ou por carência, de modo necer senão rebanho. A luta é travada entre os pastores. A
que, quando se saturam num sentido ou noutro, a vida lhes massa é feminina, e o chefe, de qualquer tipo, é o macho que
freia o movimento desordenado, para reconduzi-los à ordem a domina. A luta acontece entre machos, para dominar a ma-
dos seus equilíbrios. Assim também, na história, a política flui nada das fêmeas. Naturalmente, o cuidado de cada um consti-
como as ondas do mar, num ir e vir contínuo. Coerente com a tui em fazer o rebanho acreditar que é livre, escolhe e coman-
baixeza do seu nível evolutivo, o homem está sempre fora da da. Mas, até no organismo humano, a parte óssea e muscular
ordem, sendo continuamente corrigido pelas leis da vida. Re- não poderá jamais assumir funções diretivas ou mesmo eleti-
gimes e governos se cansam e se sobrepõem sem pausa. Este é vas. As células cerebrais não são escolhidas pelas outras, mas
o fator constante, o denominador comum de todos os partidos constituem elementos especializados, fruto de uma longa se-
e de qualquer tipo de governo. Mas este fenômeno também se leção. Não se trata de células indiferenciadas, que lutam para
satura. Quando se move somente num dado sentido, o poder se conquistar uma posição de comando no organismo, mas sim
cansa e se esgota no seu funcionamento. Então se enfraquece e de tipos aperfeiçoados no seu particular setor, para executar
sucumbe ao assalto dos recém-chegados, repletos de forças e uma tarefa de interesse coletivo, na qual todos, dirigentes e
de desejos. No momento em que o velho governo cai e todos dependentes, concordam espontaneamente, porque trata-se de
lhe notam os defeitos, outros se apresentam com um novo pro- um trabalho organicamente recíproco, do qual depende a vida
grama, como reação corretiva, geralmente em antítese ao pre- de todos. Daí se vê quanto a sociedade humana está ainda
cedente, na ilusão de que basta fazer o contrário para ser per- longe de alcançar um verdadeiro estado orgânico.
feito. Na realidade, continuam a fazer as mesmas coisas, em- Neste capítulo quisemos apenas traçar alguns aspectos do
bora de forma e com nomes diferentes. O poder vai como um ambiente humano, no qual o nosso personagem se encontra vi-
rio, serpenteando pelo vale, procedendo por golpes e contra- vendo, para poder melhor compreender a sua psicologia e atitu-
golpes de correntes, mas é sempre o mesmo rio. Independente de perante o mundo.
20 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
V. A VIDA É UMA ESCOLA tes, cada uma afirmando ser ela a única. Por exemplo, nada é
mais relativo e contraditório do que o conceito de culpa e de
Na verdade, em nosso mundo predomina o princípio egoís- virtude no campo moral. A lei parece feita para ser violada. A
ta-separatista, próprio do AS, do qual derivam muitas conse- autoridade religiosa repetia o mandamento mosaico de “não
quências. Quando os elementos que compõem uma sociedade matar”, mas, em seguida, abençoava as armas. Na guerra, quem
não se coordenam para colaborar, é impossível se falar de orga- mata torna-se um herói e é glorificado, enquanto quem não ma-
nismo, pois trata-se apenas de um grupo que, para manter-se ta torna-se um covarde, sendo por isso desprezado. Por outro
unido e continuar a existir, tem necessidade do domínio impos- lado, no seio da sociedade, quem mata vai para a prisão e quem
to por um chefe. Realmente, a primeira coisa que se procura em não mata é um bom cidadão. Mas tudo se explica, quando se
qualquer associação é quem a comande, impondo a sua disci- põem de lado as superestruturas idealistas nas quais se escon-
plina, porque, sem este sistema forçado, o grupo se desagrega. dem essas contradições. O fato básico que se verifica nos dois
Nos verdadeiros organismos, onde – ao contrário das unidades casos, em função do qual tudo isso acontece, é biológico, e não
coletivas em formação, como é o caso da sociedade humana – moral, tratando-se de uma moral biológica elementar, constituí-
foi alcançado o estado orgânico, não existe chefe, mas somente da pela defesa da sobrevivência. Trata-se de uma moral egoísta,
um centro, em direção ao qual espontaneamente se orientam em para proteção do próprio grupo. Quando, na guerra, matar é útil
obediência todos os elementos componentes. A disciplina, que para a nação, isso é considerado virtude e, portanto, premiado.
é a base necessária da ordem, é automática, não havendo neces- Quando, no seio de uma sociedade, matar é prejudicial, porque
sidade de ser imposta à força por um chefe. Este grau de evolu- é praticado contra os componentes do grupo, e não contra ele-
ção já foi alcançado pelo corpo humano. mentos estranhos, isso é tido como culpa e, portanto, castigado.
O modelo perfeito do estado orgânico no plano espiritual é Em suma, o único problema é apenas o interesse próprio, em
o S. Quando se chega a este nível, a lei da luta, produto do se- função do qual a moral muda. A base é absolutamente utilitária.
paratismo do AS, desaparece. Assim, cada indivíduo, como su- A moral que prevalece no mundo é a do interesse, e não a
cede nas células do corpo humano, dirige-se livremente ao pos- da justiça. Assistimos ao belo espetáculo de um mundo dividi-
to que o espera, para executar o seu trabalho em função de todo do em duas partes: uma constituída pelos que podem abusar do
o organismo. É evidente que a sociedade humana está longe supérfluo e a outra por aqueles que ficam apenas olhando, ser-
desse regime de ordem. O que nela domina é o caos, dentro do vindo aos primeiros, muito embora, às vezes, esta desigualda-
qual se vão experimentando tentativas de ordenamentos parci- de possa corresponder a uma diferença de capacidade, prepara-
ais, isolados como oásis num deserto. Baseando-se na força, ção e atividade que a justifique. É certo também que, se os po-
eles nascem e caem em função desta, sucedendo-se em cadeia bres conhecem a necessidade e a preocupação para obter o ne-
ao longo da história. Daqui se pode deduzir o que significa a cessário, os ricos sentem outra miséria, dada não pela carência
palavra liberdade e o que dela pode advir. Num regime de caos, econômica, mas sim pela inquietação de poderem ser derroca-
ela quer dizer revolta contra a autoridade, em favor do indivi- dos a qualquer momento e terem, por isso, de suportar a menti-
dualismo separatista, que vê apenas o seu próprio eu contra to- ra em seu redor e de se expor à decadência resultante da vida
dos, e não em função da coletividade. Em tal regime, a liberda- improdutiva. Mas, se é justo que, em tal mundo, ninguém pode
de é um elemento de desordem, e não de ordem. Assim, para estar bem, não é boa, em compensação, a moral que ali se pra-
que não houvesse prejuízo, ela somente deveria ser concedida tica. Isso porque a forma das construções mentais e legais quer
aos povos maduros, que dela saem fazer bom uso. fazer-se passar por justa, enquanto, para ser honesta, bastaria
Esse é o mundo no qual o nosso personagem veio a se en- reconhecer ao menos que, dado o nível evolutivo alcançado
contrar, apesar de sua forma mental evolutivamente madura pa- pela humanidade, ela hoje não pode fazer mais do que isto,
ra viver à vontade no seio de uma ordem social do segundo ti- embora possa realizá-lo amanhã.
po. Não se trata de programa político, mas de posição biológi- O nosso mundo é feito de tentativas, instabilidade e luta.
ca. Daí a dificuldade de se adaptar a uma humanidade que, por Mas por quê? O que é injusto, exatamente por esse mesmo mo-
estar situada em outro nível, vive com uma psicologia diferente, tivo, não tem capacidade para se governar. Trata-se de uma lei
sujeita a outro tipo de leis, muito diferentes daquelas do seu universal, à qual ninguém pode fugir. Quando se tem uma cons-
plano. Enquanto ele se oferecia para aderir a um sistema de or- trução onde faltam fundamentos sólidos para sustentá-la, então
dem, seguindo espontaneamente seu impulso instintivo para co- ela se desmorona, pois o edifício não está equilibrado e, por is-
laborar numa sociedade que atingiu o estado orgânico, não en- so, cai. Isto se verifica em qualquer construção social. Quando
contrava senão normas impostas com sanções punitivas contra as forças que a constituem não estão em equilíbrio, de modo que
os desobedientes. Uma ordem imposta à força existia, mas era o impulso de cada necessidade não encontra satisfação, então es-
sempre violada, como se a maior aspiração do homem fosse re- te faz pressão num dado sentido, deslocando o centro de gravi-
belar-se, em vez da cooperar; afastar-se do próximo para agre- dade do edifício, até fazê-lo ruir. Isto sucede sempre que se veri-
di-lo, em vez de se unir a ele, para o bem comum. Tudo isso era fica o desequilíbrio provocado por uma excessiva abundância de
tão absurdo e contraproducente, que o nosso protagonista não um lado e uma correspondente carência do outro, estabelecendo
conseguia entender como a humanidade quisesse permanecer uma desproporção entre as partes, uma para mais e outra para
neste estado tão penoso, quando teria bastado apenas um pouco menos, as quais, por este motivo, tendem a se compensar reci-
de inteligência, para compreender o erro. Porém era precisa- procamente. Acontece que o impulso da Lei, ordenadamente,
mente esta inteligência que faltava. Parecia-lhe impossível que quer reconduzir tudo à estabilidade, em uma posição equilibra-
pudesse faltar esta percepção, quando era para ele uma fato tão da, deixando cair o velho edifício, para que em seu lugar surja
evidente. Assim, foi surpreendido pelos juízos estranhos a seu outro, são e forte, constituído por forças em equilíbrio.
respeito, que o qualificavam de soberbo, como se ele quisesse Também aqui assistimos à luta entre S e AS. O individua-
isolar-se em posição biológica privilegiada, desdenhando ficar lismo separatista do AS desejaria fazer prevalecer os interesses
no pântano de todos e, sobretudo, encontrando satisfação nisso, particulares, exercendo força para que cada um imponha o pró-
como se fosse dever de quem ama o próximo. De nada adianta- prio egoísmo e satisfaça assim o seu ímpeto separatista. Mas
va explicar. Certas verdades são axiomáticas, sendo produto do não está em jogo apenas o impulso do homem. Existe também
instinto, dado pela posição evolutiva de cada um. o impulso da Lei. Eis que esta intervém, para agir segundo os
Ele se encontrava perante contradições clamorosas, que ti- princípios imparciais do S e, assim, levar aqueles impulsos ao
nham como base uma série de verdades relativas e contrastan- equilíbrio, satisfazendo-os com uma distribuição equitativa. En-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 21
tão as forças da parte negativa, formadas pelo vazio da carên- cia que tenha força para suportá-lo. Os expedientes usados até
cia, investem contra as do lado positivo, estabelecidas pela ple- agora para encobri-lo não servem mais. Vem à superfície a
nitude da abundância, lançando-se em forma de assalto, para se verdade nua e crua, que é bem diferente daquela oficialmente
apossarem de tudo, enquanto a porção que está cheia não pode proclamada para se fazer uma boa imagem.
fazer outra coisa, senão transbordar para a parte que está vazia. Não se vem ao mundo para gozar, e sim para aprender. Mas
Assim, a vida, cada dia que passa, torna-se mais coletiva. Em aprender o quê? Aprender que existe uma ordem codificada
substância, a propriedade é uma passagem contínua de mão em numa lei, a qual, através de normas, equilíbrios e princípios, re-
mão, resolvendo-se num usufruto temporário. ge a vida, constituindo um todo não só abstrato e teórico, mas
Em nosso mundo, as construções sociais não duram, porque também real e vivo, cujo funcionamento se verifica nos fatos,
elas não se mantêm unidas por uma coesão íntima, determinada infligindo dor a cada violação. Ora, todas essas coisas não são
por um impulso unitário, existente dentro de cada elemento. Pe- explicadas pela vida, mas elas estão aí, agindo e golpeando-nos,
lo contrário, uma vez que este tende à revolta, elas são mantidas quando provocamos a sua reação. Este é o modo pelo qual elas
unidas pela imposição de uma força exterior, que constrange o falam e se fazem compreender, expressando-se não por raciocí-
indivíduo à obediência. Mas, tão logo o ímpeto dessa imposição nios, mas sim com fatos. Quem tem olhos para ver percebe tudo
se enfraquece, prevalece o impulso separatista característico isso. Quem não os tem continua sem entender coisa alguma, até
daqueles elementos, que então se desagregam, levando à queda que, à força de repetição, quando a coisa se torna evidente,
o edifício. Por instinto, ao invés de se atraírem, eles se repelem. aprende assim a ver e a compreender. Trata-se dos olhos da
Isto, como é lógico, tanto mais se verifica quanto mais o ho- mente, que desperta através do esforço e da dor. O trabalho da
mem é involuído, estando mais próximo do AS, condição na evolução consiste neste despertar. Com a queda, o homem ficou
qual é maior a necessidade de se aplicar aquela força, imposta ignorante. Agora, à sua custa, deve fazer o esforço de se tornar
de fora. Encontrando-se as coisas desse modo, tais derrocadas inteligente, sendo que, enquanto não alcançar esta condição, ele
são inevitáveis. Este é o resultado de todos os regimes coativos. deverá, com os seus sofrimentos, pagar os erros, fruto da sua
Mas também é verdade que, sem regime coercivo, é difícil, no ignorância. Ele deve reconquistar com o seu suor toda a sabe-
nível humano, construir seja o que for. Portanto não há como doria perdida. Há muitas regras a respeitar, se não quisermos
remediar. O defeito está na natureza humana, que somente po- sofrer. A cada erro chega uma chicotada da Lei, que reage. O
derá ser mudada através de lenta e fatigante evolução. Para mundo vive na escola dessas contínuas chicotadas.
construir com estabilidade, é necessário um novo tipo de ho- É interessante ver como funciona esta escola. É fácil imagi-
mem, que hoje existe em tão ínfima minoria, que não chega a nar o que deve suceder a um ser humano que, estando ansioso
ter importância social. Continuarão sendo construídos edifícios de possuir toda a felicidade do S, do qual é filho e se recorda, é
sociais em sentido descendente, elevados com métodos anti- livre para agir, mas ignora as consequências de seus atos.
Lei, de tipo AS, ao invés de no sentido ascendente, seguindo o Aquele seu desejo de felicidade o leva a todos os excessos, no
modelo do S. Mas ninguém poderá impedir que a evolução entanto, ao mesmo tempo, ele está enjaulado dentro de uma lei
avance conforme o princípio das unidades coletivas. onde cada erro – desvio da justa posição de equilíbrio – conduz
Ademais, o modo comum de conceber a vida revela que es- ao sofrimento. Esta é a sua posição, como é lógico, em virtude
tamos num mundo onde ela funciona ao contrário do que devia. da queda. Acontece que o homem se lança loucamente em dire-
Como podemos, então, exigir que os resultados não sejam in- ção aos prazeres, para os quais pensa que foi criado, mas acaba
versos? E depois se grita que a vida é ilusão e engano! Mas se chocando contra a Lei, que os nega sistematicamente para
como pode acontecer de outro modo, se é errado o princípio ele, até eliminar todos os caminhos do AS, deixando o indiví-
sobre o qual tal concepção se baseia! Imagina-se que se vem ao duo cercado somente pelos caminhos do S, feitos de obediência
mundo para gozar e pensa-se apenas no bem-estar. No entanto, na ordem, conforme a Lei, e não de revolta na desordem, contra
pelo contrário, a vida é uma escola aonde se vem para aprender, a Lei, como ele desejaria. O homem não gosta de permanecer
trabalhar, experimentar e, muitas vezes, sofrer. preso a uma disciplina que limita a sua liberdade. O seu sonho é
Durante milênios insistiu-se neste erro, produzindo continu- destruir a Lei, para substituí-la por si próprio, com o seu egoís-
amente uma tal acumulação de efeitos, que estes constituem ago- mo e a sua lei. No entanto isto é impossível, mas ele não sabe.
ra um enorme peso a suportar; uma lacuna que fará sofrer, en- Na sua ignorância, ele acredita que isto seja possível e insiste
quanto não for preenchida; um aumento constante de débito, que em se rebelar, julgando ser capaz de vencer mesmo a própria
deverá ser pago. É uma grande massa que a humanidade tem de Lei, contra a qual tenta se impor, dando uma demonstração de
arrastar sobre as costas. No passado, em outras posições biológi- força, como costuma fazer no seu baixo mundo. Então, a Lei
cas, era possível permanecer estagnado em condições mais ou continua a lhe infligir sofrimento, até que, à força de tanto pa-
menos estacionárias, nas quais o peso dos velhos erros se descar- decer, ele acaba compreendendo o absurdo de sua revolta, que
regava sobre as novas gerações, deixando-lhes depois a consola- não conduz à alegria desejada, mas somente à dor. Eis a escola
ção de fazer o mesmo sobre as sucessivas, e assim por diante. Se em que consiste a vida. O homem é como uma borboleta que,
o débito perante a Lei aumentava no decorrer do caminho, ele atraída pelo esplendor da chama, termina queimando as asas.
era, porém, um encargo para os outros, constituídos pela geração Não vê, não entende e não lhe interessa perceber, mesmo com
sucessora, enquanto aquela que o praticava recebia as utilidades explicações suficientes. Então ele se queima na chama, para
imediatas. Deste modo, o débito foi sempre aumentando. depois gritar e chorar, quando então começa a compreender. A
Ora, com o tempo, aquele peso se tornou esmagador, atin- lição não é de palavras, mas sim de sofrimento, sendo aplicada
gindo um ponto que as gerações de hoje, diferente do que na própria pele. E não poderia ser na dos outros, pois, deste
ocorreu no passado, não aceitam mais a herança transmitida modo a lição não seria compreendida.
pelas precedentes. Acrescente-se aí o fato de que a cultura, os Para poder gozar da felicidade do S, é necessário saber vi-
meios de comunicação e o progresso despertaram os adorme- ver conforme a Lei. Mas o homem não sabe nem quer fazer o
cidos, de modo que os jovens estão se revoltando contra as esforço para tanto, sendo levado a viver na posição antagônica
coisas velhas, repelindo-as, para se libertarem delas e sobrevi- de AS. Então é lógico que, em vez de alegria (S), ele não possa
verem. Atingimos assim o ponto crítico de uma explosão, por- obter senão o seu contrário, isto é, dor (AS). Outra coisa não
que a saturação do equilíbrio chegou ao máximo, e os velhos pode acontecer a quem, sendo livre, mas não sabendo agir,
edifícios não se mantêm mais. Não existe mais hipocrisia que quer fazer tudo a seu modo; a quem, sendo indisciplinado por
tenha o poder de esconder o peso do mal, nem há mais paciên- natureza, deve viver num universo feito de ordem, no qual esta
22 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
é obrigatória. A escola consiste no constrangimento a essa dis- rimentado as consequências da violação à Lei, ele já não co-
ciplina, até o ser aprendê-la toda. Ser astuto, para saber encon- mete o erro como anteriormente, sendo desta vez capaz de evi-
trar escapatórias e fugir poderão ter valor em nosso baixo tar o sofrimento. Eis que o indivíduo se libertou um pouco da
mundo, mas é completamente inútil perante a Lei. O homem ignorância, conquistando outro tanto de sapiência, o que signi-
pode lutar com o seu semelhante e vencê-lo, porque este se en- fica um passo à frente na ordem e, portanto, uma posição de
contra no seu nível, mas não pode competir com a lei de Deus, menor sofrimento e maior felicidade.
que está acima dele e de todos. Este procedimento se repete a cada imperfeição que nos in-
Temos, então, liberdade, erros e chicotadas. Esta é a história duz a um comportamento fora da perfeita disciplina exigida pe-
humana. Assim, uma a uma, vão sendo aprendidas todas as re- la Lei, a qual devemos seguir, se não quisermos sofrer as dolo-
gras do reto comportamento. A cada lição aprendida sobe-se rosas consequências resultantes de sua violação. A libertação da
um degrau. Por se ter adquirido um conhecimento, evita-se um dor e a conquista da felicidade são fenômenos que se realizam
novo erro e, portanto, outro sofrimento. Trata-se de um ser an- por graus, à medida que se sobe ao longo do caminho da evolu-
sioso por reencontrar a sua originária felicidade do S, para a ção. Para chegar à felicidade completa do S, é necessário haver
qual ele foi criado e que ele sente como coisa sua. No entanto, percorrido todo esse caminho de purificação e redenção, expe-
por causa da revolta, não sabe procurá-la senão no sentido con- rimentando tantos sofrimentos quantas são as imperfeições de
trário, em ambientes falsos, o que faz esta busca correr na dire- que é feita a nossa natureza de cidadãos do AS. A dor não po-
ção de uma miragem, a qual depois, na realidade, resolve-se em derá cessar, enquanto não houvermos aprendido a não cometer
dor. Este é o drama humano. Alucinado pelo sonho de felicida- mais erros e a viver em total disciplina dentro da Lei. A con-
de, o homem vai desesperadamente ao encontro dela, mas para quista da felicidade consiste no reordenamento do caos do AS,
achar apenas o oposto daquilo que procura. Julga que nasceu até se alcançar a reconstrução da ordem do S. Vemos que, geo-
para gozar, porém, ao contrário, existe para trabalhar duramente lógica e biologicamente assim como social e espiritualmente, a
dentro da escola da evolução. A cada passo um engano, a cada evolução é um processo de reordenamento contínuo, que cami-
engano uma dor, a cada dor uma lição. O mundo o atrai, e ele, nha da desordem para uma ordem sempre mais completa. A
na sua inconsciência, vai sendo atraído pelas miragens, enquan- moral aqui exposta se eleva sobre bases positivas de amplitude
to o alçapão o espera na passagem. Lá se encontra a mesa pos- cósmica, enquadrando-se perfeitamente no plano do funciona-
ta: sexo, riqueza, glória, poder etc., onde o incauto se precipita mento orgânico do todo. Este é o processo pelo qual cada indi-
para gozar. Mas, devido à sua condição de ignorante, ele abusa víduo, que se tornou de tipo AS por causa da queda, deve apa-
e se envenena. No fim da experiência, não lhe resta nem a pos- gar de si, uma a uma, todas as qualidades desse tipo, transfor-
se da coisa cobiçada nem o gozo, mas somente a desilusão e o mando-as em outras, consoante o modelo S. Este é o único ca-
sofrimento do veneno em ação. minho pelo qual se pode alcançar a libertação da dor.
Observemos agora, mais em particular, a técnica do proces- Tudo isso é claro, lógico e justo. Mas não agrada ao homem,
so de depuração. Ele se realiza através de três fases: porque, declarando-o culpável, exige dele trabalho e disciplina,
Num primeiro momento, o indivíduo busca o prazer, alcan- enquanto ele deseja ser quem faz a lei, tornando-se patrão e fi-
çando livremente, pelas vias travessas da astúcia e da força cando livre de tudo. Mas é precisamente este seu instinto lucife-
(como é usual na Terra) a satisfação não merecida. Com isso, riano que o revela como filho decaído pela revolta, com vontade
ele viola os justos equilíbrios da Lei, de modo que se endivida de substituir-se à lei de Deus, a fim de comandar egoisticamen-
perante ela e, portanto, prepara a sua correspondente reação. te, fazendo isso em um estado de ignorância e de incompetência
Num segundo momento, que pode ser uma vida sucedendo para se dirigir, razão pela qual não consegue fazer outra coisa,
a anterior, o indivíduo, viciado pela satisfação alcançada no senão cometer erros e atrair dores. O inferno que ele construiu
passado, convenceu-se de haver encontrado o caminho certo, para si na Terra, com suas próprias mãos, prova a verdade des-
acreditando possuir o método seguro para gozá-la. Então, com sas afirmações. E quando procura uma via de escape, ele o faz
base na experiência da vivência precedente, emprega o mesmo para baixo, em direção ao AS, e não para cima, rumo ao S. Co-
sistema, contando chegar assim aos mesmos resultados. No en- metendo este tremendo erro, julga ser inteligente, porque a sapi-
tanto a vitória obtida no primeiro momento foi de fato uma der- ência, para ele, consiste em saber defraudar a Lei. Tal psicologia
rota, porque, tendo confirmado este indivíduo na direção erra- poderá encontrar justificativa perante as leis da Terra, bastante
da, ela o impele a repetir o jogo na mesma direção, com ele se imperfeitas e também, frequentemente, injustas, contudo é lou-
encontrando agora em outras condições, as quais não irão mais cura ir contra a lei de Deus, que existe somente para o nosso
deixá-lo obter o que deseja, pois estão faltando as circunstân- bem. É justo que seja traído quem se aproxima da Lei com a in-
cias favoráveis, difíceis de se repetirem todas juntas. A moral, tenção de enganá-la. Arriscar-se para vencer as leis humanas
como é lógico e justo num mundo pelo avesso, de tipo AS, é que possam merecer isso ainda se compreende, mas não é ad-
que as coisas, quando parecem estar andando bem, estão de fato missível que o mesmo aconteça com a lei de Deus. É triste ver
indo mal e, quando parecem estar indo mal, estão de fato indo com que simplicidade de inconsciência o homem se engana ao
bem. Isto porque, quando se goza de modo errado, aprende-se procurar burlar a Lei. Depois desencadeiam-se as tempestades
de fato somente a errar, o que significa atrair a dor, mas, quan- pavorosas que vemos na história, e ninguém lhes entende as
do se sofre conforme a justiça, aprende-se a se corrigir, o que causas. Continua-se a semear como se nada tivesse acontecido.
significa salvar-se do sofrimento. Pretende-se chegar à felicida- No entanto este pobre ser, que, estando mergulhado no AS, de-
de, mas não se compreende que, pelo caminho da desordem, sejaria voltar ao S, permaneceu ainda dentro da lei do S, onde é
contra a Lei, não se pode alcançá-la. É assim que, neste segun- Deus que domina. Por isso a revolta foi o maior fracasso, resol-
do instante, aprende-se a não cometer mais o erro, pois experi- vendo-se não em felicidade, mas sim no seu oposto: a dor. E o
mentou-se que ele conduz ao sofrimento e sabe-se que a coisa caminho para sair desta condição é somente um: a obediência.
deve ser evitada. Esta é a lição vivida na segunda fase. Este é o fatal destino do homem, assim como de todos os
Numa terceira fase, que pode ser simplesmente uma outra seres decaídos. Explicamos tudo isso, para melhor esclarecer
vida, o indivíduo se encontra perante as mesmas tentações do também o caso em exame. O nosso personagem se encontrava,
segundo momento, das quais se têm em abundância e de todo com relação à riqueza, aos tesouros e às alegrias do mundo, na
gênero na Terra. Assim, cada um é atraído pelas tentações cor- terceira fase. Por já ter experimentado a queimadura que eles
respondentes ao seu tipo, sendo que delas se encontra sempre a produzem, não os aceitava mais. Naturalmente, tais fatos de-
quantidade suficiente para o seu caso. Pelo fato de haver expe- pendem da posição relativa de cada um ao longo da escala evo-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 23
lutiva. Conforme a natureza de cada um, os problemas a serem se girar em torno do Sol. É claro que nem a Terra parava nem o
resolvidos são diferentes de indivíduo para indivíduo, tanto se- Sol começava a girar ao redor dela apenas pelo fato de que, na
gundo as qualidades velhas e inferiores a serem postas de parte, Bíblia, Josué dizia isso e os teólogos desejavam assim. O fun-
como segundo as novas e superiores a serem adquiridas. Na cionamento da Lei não pode ser alterado somente em função de
Terra, nas mais diversas posições, há trabalho para todos. Aqui- se pensar que as coisas sejam diferentes. Tudo permanece justo
lo que, para uns, é conhecimento adquirido, depois de superada e benéfico, uma vez que, se a dor queima, ela também liberta da
a prova, pode ser para outros problema longínquo, do qual nem ignorância e, com isso, dela mesma, fazendo o ser adquirir a
sequer eles suspeitam a existência. O trabalho de polimento, em sabedoria e, portanto, a felicidade.
geral, começa por baixo, ao nível da animalidade do indivíduo. Com estes conceitos explica-se um fato que, em razão de
Nesse plano de vida, as provas são grosseiras e pesadas, para parecer uma contradição com a justiça de Deus, deixa muitos
que possam penetrar a insensibilidade do primitivo, infligindo perplexos. Vemos que na Terra, muitas vezes, tudo corre bem
os seus golpes no corpo, através de fome, miséria, morticínios e para os maus, enquanto, para os bons, tudo vai mal. Ora, po-
dores físicas, uma vez que os defeitos são do mesmo tipo e as demos compreender o que realmente acontece sob estas apa-
provas espirituais não seriam percebidas. Depois, à medida que rências de injustiça. A Lei deixa o ser livre para mergulhar no
o indivíduo se faz mais civilizado e intelectual, também as pro- mal à vontade. O sucesso que ele, seguindo esta direção, atinge
vas se tornam mais espirituais, até alcançar o nível do gênio e no mundo não o liberta de seus defeitos, mas pelo contrário o
do santo, onde se apressam em libertá-lo das últimas escórias, confirma neles, porque o convence de ter procedido bem, con-
destacando-o completamente das coisas do mundo. Estas nos ferindo-lhe assim um hábito e uma segurança que o conduzem
mostram qual a outra espécie de prazeres que o evoluído procu- a tentar de novo o mesmo caminho nas vidas sucessivas. Ora,
ra, a quem os deleites da Terra, além de não interessarem, po- já vimos que esse jogo não pode dar bom resultado. É nesta
dem, pelo contrário, despertar repugnância. segunda fase que encontramos tais indivíduos atribulados ao
Insistimos nestas explicações porque o problema é de fun- praticar o mal, caminho que buscam de novo, porque foram
damental importância, e não havê-lo compreendido significa afortunados anteriormente. Agora, porém, o insucesso forma
imensos sofrimentos. Mas, com exceção de poucos, que são le- uma conexão de ideias opostas àquela determinada pelo suces-
vados à compreensão pelo seu próprio sofrimento, este trabalho so precedente, pois o mal efetuado desta vez não resulta em sa-
talvez seja inútil para a grande maioria. O motivo é que uma es- tisfação, mas sim em sofrimento.
cola como esta não se faz com palavras, mas somente à força de Pode surgir, no entanto, uma objeção. Por que a Lei não im-
queimaduras na própria pele. É aí que se escreve, marcada a fo- pede então que se pratique o mal? Primeiro ela o permite, para
go, para todos, inclusive para o leitor destas páginas, a verdadei- depois aplicar o castigo. A resposta é que, sem atravessar a pro-
ra história da evolução e redenção de cada ser, porque somente va da dor – natural continuação do mal praticado – ninguém
com tal método estes escritos podem ser lidos e compreendidos. aprenderia. Eis a razão pela qual esta dupla experiência é neces-
Assim estão as coisas, e ninguém tem o poder de mudá-las. Dis- sária. No fundo, o mal é utilizado para chegar ao sofrimento,
to não pode ser culpado quem se limita apenas a expô-las. que, por sua vez, elimina o mal. Este é o resultado final de toda
Dissemos que o erro depende da ignorância. Pode-se obje- a operação. E isso é sumamente benéfico. Eis a razão pela qual a
tar, no entanto, que culpa há em quem não sabe? Como pode Lei permite que se pratique todo o mal desejado, mas impõe que
ele ser responsável, se agiu por falta de conhecimento? Ora, se o seja à própria custa e para ser resolvido em favor do bem. Não
o erro está sendo pago, onde está a culpa, sem a qual aquele pa- se pode negar que tudo isso, apesar de ser duro, é bom e justo.
gamento não se justifica? Que se trata de ignorância não há dú- Fica explicada assim a contradição acima. Os maus, para
vida, pois é evidente que, se o indivíduo soubesse quanto deve quem as coisas estão correndo bem, encontram-se na posição
depois pagar caro o seu erro, não o cometeria. Se ele o pratica, de pecadores, e os bons, para quem as coisas vão mal, estão na
é porque não lhe conhece as consequências. De fato, quando o situação de penitentes. Estes, apesar de parecerem infelizes,
conhece depois, porque o pagou, ele não o comete mais. acham-se, pelo contrário, num estágio mais avançado, em via
Para responder a essas indagações, é necessário reconstituir de redenção, porque estão pagando, enquanto aqueles, que se
o fenômeno em suas origens, a fim de verificar a causa desta afiguram afortunados, estão mais atrasados, em via de perdição,
ignorância. O ser foi criado sapiente, mas tornou-se ignorante porque estão contraindo dívida. Os primeiros ascendem rumo à
como consequência da queda, devida à culpa da sua revolta. alegria, os segundos descem em direção à dor. É claro que, li-
Demonstramos isso nos volumes O Sistema e Queda e Salva- mitando a observação a apenas uma existência, não se pode
ção. Ora, a revolta foi feita em plena consciência e, portanto, compreender todo o complexo jogo da vida.
responsabilidade. Eis como aconteceu a primeira culpa, da qual Em substância, trata-se de desaprender tudo aquilo que é
derivou depois, em cadeia, todo o restante, originando a involu- AS, para aprender tudo o que é S. Isto não significa que seja
ção e o atual esforço da evolução, por meio da qual, à força de negada uma oportunidade de boa conduta aos maus. É a sua na-
erros e dos consequentes sofrimentos, através da técnica que tureza de tipo AS que os leva a seguir o caminho oposto. Dada
vimos, reconquista-se o conhecimento, única via para evitar o a estrutura deles, isto é inevitável. Mas, na segunda vez, depois
sofrimento. Este é o destino ao qual o ser, enquanto não read- que a benéfica oferta não foi aceita, a lição chega em forma de
quirir totalmente o conhecimento, ficará inexoravelmente liga- martelamento. Assim, o que não foi aprendido através do amor,
do. Enquanto não se redimir, ele estará prisioneiro da atual en- é agora aprendido pela força. O mal formou sobre o nosso cor-
grenagem, que vai do AS para o S, percorrendo o caminho: re- po um grande manto de penas. É preciso arrancá-las todas, uma
volta, queda, ignorância, erro, experiência, conhecimento, or- a uma. Depois, à força de sofrimento, é necessário perder toda a
dem, felicidade. Cada termo é efeito do precedente e causa do pele e, por força de sacudidelas, toda a carne. Eis em que con-
seguinte. Uma vez movido o primeiro, todos os outros lhe su- siste a evolução. Com a queda, cada virtude se tornou defeito.
cedem logicamente, em cadeia. Com a evolução, cada defeito deve voltar a ser virtude. Que se
Desse modo, de agora em diante, o jogo da vida fica escla- trata do endireitamento de uma situação virada pelo avesso, po-
recido para todos, inclusive para aqueles que o ignoram ou não de-se ver, também, nas posições agora consideradas. Quem se-
querem admiti-lo. O funcionamento de tais fenômenos é inde- gue o AS encontra primeiro o prazer, mas fica com um débito
pendente da compreensão e da aceitação humanas, da mesma que deverá depois ser pago com o sofrimento. Quem segue o S
forma como, no tempo de Galileu, não era necessário que os não encontra encorajamentos traiçoeiros, mas sim um duro e
teólogos compreendessem o fenômeno, para que a Terra pudes- honesto esforço, que lhe assegura no fim o prêmio merecido. O
24 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
primeiro método, apesar de constituir um engano, agrada e trar senão a dor. E quanto maior é o esforço para achar a felici-
atrai. O segundo não encoraja e repele, mas é sincero. No pri- dade, movendo-se no sentido da revolta, maior é o sofrimento
meiro caem os preguiçosos gozadores, que fazem jus àquela li- que se encontra. O drama está em procurar obter com a força e,
ção, e não os segundos, que não a merecem. com isso, ficar depois esmagado; está em ser movido pela astú-
Assim caminha a massa humana ao longo da escala evolu- cia, julgando que se é capaz de obter tudo com o engano e, com
tiva. Há quem se encontre na primeira fase, gozando a satisfa- isso, terminar por ser enganado.
ção traiçoeira. Há quem se ache na segunda fase, recebendo a O conhecimento e a sabedoria da vida estão em compreen-
experimentação corretiva. E há quem esteja na terceira fase, der esses íntimos mecanismos da Lei, esta sua misteriosa técni-
aplicando o conhecimento adquirido. O jogador, atraído pelo ca interior, que arrasta às mais duras provas, enquanto estão à
ganho fácil, senta-se à mesa do jogo e nela perde tudo. Assim, procura de prazeres, aqueles que, obcecados pelo orgulho, jul-
reduzido à miséria, aprende a não jogar mais. A verdade é gam-se os mais hábeis. A grande armadilha foi desejada e, por-
simplicíssima: tudo aquilo que é obtido sem justiça é traição. tanto, merecida. Ela consiste no fato de que, levado pela própria
Mas como poderia o indivíduo aprender, sem jogar e sem per- miopia, o homem caiu, usando métodos para obter vantagens
der tudo? Custa caro adquirir o conhecimento, mas este vale o imediatas, que o iludem e, a longo prazo, acabam sendo-lhe da-
quanto custa, porque é a coisa mais preciosa da vida. Não se nosas. Ora, enquanto procura ardentemente a felicidade, ele
pode esterilizar o mundo, para viver como ingênuo, isolado continua pagando e sofrendo. Realmente, de outro modo não
dos ataques dos micróbios. É o organismo que deve ser forte, pode ocorrer para quem vive em posição emborcada. É assim
hábil e resistente, para não cair nos inúmeros perigos dos quais que ele, porque se movimenta em sentido inverso, não pode ob-
o nosso planeta está cheio. O homem experimentado enxerga ter senão o oposto do que deseja. Não se poderia explicar de
com olhos diferentes daqueles com os quais via antes da prova. outra forma o fato de que, em um mundo criado por um Deus
As astúcias do mundo são pequenos jogos de curta duração. O bom, que nos ama, o homem anda em busca de felicidade por
grande jogo da vida, aquele que dá verdadeiro fruto e que é toda parte e não recolhe como fruto senão o sofrimento. A
feito por quem entendeu, é absolutamente justo e honesto. So- quantos neguem a teoria da queda proponho que expliquem
mente este, porque está acima de todas as seduções e respecti- como, na lógica da criação, é possível existir tão gritante con-
vas traições, recebe frutos para valer. Depois destas considera- tradição. É evidente que uma obra de Deus deve basear-se na
ções, podemos compreender a conduta de nosso personagem, lógica, na justiça e na bondade. Sem tal premissa, seria necessá-
que o mundo julgava um imbecil. rio admitir que Deus é ilógico, injusto e mau, ou então que Ele
não existe, de modo que tudo se tornaria um caos, sem nenhu-
VI. O PROBLEMA DA JUSTIÇA E ma lei reguladora, o que não correspondente à realidade.
OS EQUILÍBRIOS DA LEI A nossa capacidade sensória oscila entre os dois polos do
dualismo: alegria-dor. A primeira é qualidade própria do S; a
Em nenhuma época se andou tanto em busca de justiça como segunda é qualidade própria do AS. O ser foi criado por Deus
hoje, especialmente no campo social. Assim, o mundo procura para a alegria, mas, com a revolta, caiu na dor. Com a evolu-
disciplinar de modo mais equânime, com base em mais justas ção, ele se redime do sofrimento e, reabsorvendo-o, regressa à
formas de convivência, os direitos e os deveres de todos. Mas é alegria. Isto constitui a penitência que corrige a culpa. Perante
interessante observar como, no âmago de tantas injustiças hu- a Lei, este é o pagamento que extingue o débito contraído para
manas que se procura corrigir, tenha existido a justiça de Deus, com a sua justiça. A dor é o chicote que conduz à força o ser
na qual aquelas injustiças terminam automaticamente por se re- para a salvação, é o remédio amargo que cura a doença. Trata-
solver. Isto se deve à presença no AS do Deus imanente, que se de uma escola para ensinar uma lição, de um tratamento pa-
impulsiona o ser a se dirigir à salvação, por meio da escola que ra curar uma doença, e não de uma vingança ou punição. O ob-
vimos no capítulo precedente. As atuais injustiças, no fundo, jetivo não é atormentar, mas sim ensinar. Matar não é objetivo
não são mais que efeito de uma causa, que pode ser a incapaci- da prova, que tende a não ultrapassar determinado limite. Se a
dade, a preguiça, a ignorância, a ausência de esforço e de mere- dor fosse somente destrutiva, sem desempenhar uma função
cimento etc. Aquelas injustiças, às vezes, são necessárias para criadora e salvadora perante os valores da vida, ela não subsis-
que uma determinada vantagem seja obtida. Mas não são virtu- tiria na sábia economia do universo, apesar de sua posição em-
des, porque, na realidade, faltam qualidades de esforço e mérito. borcada de AS. Qualquer sofrimento sempre encontra na morte
Se observarmos bem todo o mecanismo da vida, compreen- a válvula de segurança extrema que o faz cessar. É assim que a
deremos que, não obstante ser ele tão cheio de ilusões e de so- maior parte das dores é superada. Mas, para que se continue
frimentos, é precisamente por isso que está certo, porque, se vivendo e, deste modo, aprendendo, a alegria para sobreviver
não fosse assim, a vida não serviria para ascender, mas sim para chega, geralmente, no último instante, à guisa de oxigênio rea-
descer. Neste caso, ela seria o inverso de uma escola, destinada nimador. Isto, para os gozadores, pode parecer uma traição,
a confirmar os defeitos do AS, ao invés de corrigi-los com as uma crueldade para prolongar a agonia, mas constitui um meio
virtudes do S. Mas ao homem isto não agrada, porque a sua salutar para adiar a prova, que redime.
vontade é vencer como AS, e não como S. A sua desilusão está No fundo, alegria e dor são apenas duas posições opostas do
exatamente em não poder se impor com a revolta. Ele não mesmo fenômeno. Elas estão situadas ao longo da mesma linha,
compreende que, pelo contrário, a vitória do S seria uma derro- sendo comunicantes entre si, de forma que o mais (+) pode tor-
ta a menos que ele sofreria. Então, na realidade, tudo caminha nar-se o menos (–) e vice-versa. A sensibilidade do ser oscila
da melhor maneira possível. Isto parece uma traição, no entanto de um ao outro extremo, até um limite máximo, dificilmente al-
é uma boa obra, pois impede um louco de dar um passo em di- cançado, além do qual ocorre a morte. Há uma fase intermediá-
reção à sua própria ruína. Julga do primeiro modo quem pensa ria, neutra, de indiferença, na qual, num estado de quietude, não
com a forma mental AS, mas quem raciocina com a psicologia predomina nem um nem outro. Nestes deslocamentos há uma
de tipo S compreende que nisso está a sua salvação. Porventura, disciplina que tende a equilibrar os dois extremos, para que eles
não será um bem que fique enganado quem procura enganar, não prejudiquem por excesso, tanto num sentido como no ou-
para que assim ele não engane a si próprio? Não será justo que tro. A correção é automática. Acontece então que, quanto mais
a falsidade recaia em quem é falso, para que ele aprenda a ser se sofre, tanto mais diminui, com o hábito, a sensibilidade à dor
sincero? Eis o drama dos caídos no AS: querer reencontrar a e mais se adquire a capacidade de gozar. Desta maneira, o ser
alegria do S onde, em posição emborcada, não se pode encon- se imuniza um pouco contra o sofrimento e se sensibiliza para o
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 25
prazer, de modo que será necessária uma quantidade cada vez to a do rico que fica nauseado pela abundância, como a do po-
maior de dor, para ele sofrer na mesma proporção. Inversamen- bre que, faminto de mil desejos insatisfeitos, assalta-o para es-
te sucede que, quanto mais se goza, tanto mais diminui, com o poliá-lo de tudo. Assim acontece com todo aquele que, supe-
hábito, a sensibilidade ao prazer e tanto mais se adquire a capa- rando este plano, encontrou alegrias superiores no nível do es-
cidade de sofrer. Deste modo, o ser se insensibiliza ao prazer e pírito e luta para conquistá-las. Então, ao invés de regredir,
se sensibiliza para o sofrimento, de modo que, para gozar sem- guerreando, ele avança, como no caso de nosso personagem.
pre na mesma proporção, é necessário uma quantidade de pra- É por este processo de saturação que se verifica o fenômeno
zer cada vez maior. Em resumo, a abundância de qualquer coisa já mencionado no Cap. IV, segundo o qual ocorre a perda au-
satura e tende a eliminar a capacidade de assimilação, aguçando tomática da riqueza não ganha honestamente. Aqui, observa-
ao contrário, a sensibilidade em sentido contrário. Assim, no mos mais particularmente o caso mais comum, em que o ciclo
primeiro caso, a dor se torna mais suportável e passa a existir da riqueza, de maneira geral, dura três gerações. A primeira re-
maior sensibilização à alegria. No segundo, a alegria produz fere-se à condição de pobreza dos indivíduos, que, estimulados
maior indiferença ao prazer e maior vulnerabilidade à dor. pelo desejo, tornam-se ativos e inteligentes por causa da neces-
Como se vê, o deslocamento entre essas posições é canali- sidade, acumulando por qualquer meio um capital. Este é apre-
zado pela Lei ao longo de um binário, em virtude do qual o ciado por eles, pela satisfação que lhes dá a riqueza como com-
movimento não se realiza ao acaso. De fato, a primeira dose de pensação da pobreza precedente. A segunda geração, ainda com
determinado bem produz, por exemplo, uma dada satisfação. A a memória fresca da pobreza, corresponde à dos gozadores, que
segunda dose, porém, igual à primeira, não gera o mesmo con- se sentam à mesa para se banquetearem. Na terceira, crescida
tentamento, e sim, por exemplo, meia satisfação. A terceira re- na fartura, os indivíduos não se recordam mais de fome alguma
sulta em um terço, a quarta produz a quarta parte, a quinta não e, portanto, não apreciam aquilo que têm, deixando de defendê-
ocasiona nenhuma satisfação, a sexta faz mal e provoca a dor, lo e caindo, assim, vítima dos assaltos de outras pessoas, que,
a sétima causa uma dor ainda maior, e assim sucessivamente. tão ávidas como as da primeira geração, roubam-lhes tudo. Em
A razão desta descrente capacidade de gozar é dada pelo fato geral trata-se de gente ociosa, inepta e cansada, que a vida se
de que ela está enquadrada no AS, onde a alegria, em vez de apressa em liquidar. Isto sucede tanto às famílias como às na-
aumentar, tende a diminuir, invertendo-se na dor. Cada tentati- ções. Foi o que aconteceu na França com Luís XIV (1a fase),
va neste sentido, dirigida ao AS, conduz automaticamente a Luís XV (2a fase) e Luís XVI (3a fase), que caiu com a Revo-
uma progressiva diminuição da alegria, qualidade do S, e a um lução Francesa. Foi também o que ocorreu na Rússia, com a
gradual aumento da dor, qualidade do AS, até desaparecer a aristocracia do Czar. É assim que a justiça social resulta auto-
primeira e ficar somente a segunda. Com a revolta ocorreu que maticamente aplicada pelos equilíbrios da Lei, independente-
o ser, em vez de conquistar uma alegria maior, emborcou-se na mente das intervenções humanas.
dor, que constitui a lição salutar para forçá-lo a fugir do AS O que pode parecer uma traição, com esse doce convite a
através da evolução. A consequência disso é que, por este ca- uma vida fácil, levando ao enfraquecimento e, consequentemen-
minho, ele deve acabar por regressar ao S, para reencontrar o te, à ruína, é na verdade um ato de justiça, porque é justo que se-
paraíso perdido, sua meta constante, a qual ele procura em vão ja privado do gozo quem desfruta do que não merece. Assim,
alcançar no AS. Segue-se também que, quanto mais o ser acei- automaticamente, a Lei tende a eliminar os abusos. O hábito de
ta o merecido sofrimento do AS como expiação e pagamento viver sem fadiga fabrica ineptos para a luta, destruindo sua ca-
do seu débito, tanto mais endireita em direção ao S o seu em- pacidade de resistência, enfraquecendo-os e tornando-os vulne-
borcamento no AS, redimindo-se da dor e caminhando para a ráveis ao mínimo ataque. Ao contrário, viver afadigado e sem
alegria. Em cada caso, portanto, tudo tende para melhor. As- recursos torna o homem apto à vida difícil, fazendo-o adquirir
sim, Deus pode dizer à criatura rebelde: “Distanciai-vos de capacidade de luta e resistência, que o reforça contra os ataques.
mim se quiserdes, pois a mim devereis voltar, porque, fora de A vida é um jogo contínuo, e a fácil vitória cria a inconsciência,
mim, não encontrareis senão dor e morte”. que nos impele a enriquecer, tornando-nos imprudentes e levan-
Portanto o movimento que vai da alegria à dor, e ao contrá- do-nos à derrota. Os obstáculos, entretanto, criam a consciência
rio, é uma oscilação contínua, como entre dois vasos comuni- das dificuldades, tornando-nos prudentes e mais preparados para
cantes. As duas existem uma em função da outra. A mesma a vitória. Aquilo que se apresenta como uma cômoda ajuda para
percepção verifica-se no contraste entre posições opostas, que a vida faz perder as qualidades preciosas para a sobrevivência,
depende muito mais destas do que das intensidades em si. O enquanto o que parece entravá-la leva a adquirir aqueles atribu-
prazer se verifica, então, na medida em que elimina o sofrimen- tos. Logo é desvantajoso o que parece vantagem, enquanto é lu-
to de uma precedente necessidade insatisfeita, ao passo que di- crativo o que parece prejuízo. No fundo, o que domina é uma
minui com a sua satisfação. Assim, pode haver prazer apenas justiça superior, contra a qual o homem nada pode. Quem goza o
pelo bem-estar que se segue ao desaparecimento de uma dor, que não mereceu desvaloriza-se e se destrói. Quem se esforça
contentamento que, quando é contínuo, pode deixar-nos indife- por merecer valoriza-se e se constrói. Por isso ninguém é tão
rentes, sem a sensação de alegria. Esta, no entanto, quando fica desgraçado e votado à pobreza como os que nasceram ricos,
fora dos equilíbrios da Lei, pode transformar-se em veneno. Pa- que, parecendo os mais afortunados, são assim mais invejados.
ra esses equilíbrios, quanto mais ela se encontra em excesso, Considerando o fenômeno em escala social, vemos que a
tanto mais atrai o sofrimento que a compensa. Quanto maior a tendência da classe dominante é fixar para sempre a sua posi-
dor, tanto mais qualquer diminuta alegria tem o poder de com- ção em forma hereditária, apoiada pela adesão da classe ecle-
pensá-la. Por exemplo, para sentir prazer com a comida, é ne- siástica e protegida pelas leis do Estado. Esta foi a história da
cessário ter fome; para se contentar com a bebida, é preciso ter aristocracia francesa, russa e chinesa, até às respectivas revolu-
sede; para se satisfazer com o repouso, necessita-se de trabalho; ções. Mas, justamente por causa dessas leis, exatamente quando
para usufruir a riqueza, faz-se mister ter conhecido a pobreza; se julga ter levado o sistema ao máximo de perfeição, ele se
para ter satisfação com as honras, convém ter sido humilhado; desfaz pela reação que surge do lado oposto. Precisamente,
para valorizar a saúde, é preciso ter estado doente; para se apre- quando tudo parece definitivamente ajustado, é, então, que tudo
ciar a liberdade, é necessário ter sido escravo. Quem teve tudo desmorona, porque as aristocracias perderam as suas virtudes
está cansado e não sabe mais aproveitar coisa alguma, e quem de luta e, assim, caíram como fácil presa de quem as conquis-
nada teve sente prazer com qualquer coisa. Nisto consiste a tou, por se ter encontrado em opostas condições de vida. Mes-
grande justiça da Lei. Daí podem nascer posições diversas, tan- mo a queda das aristocracias e o triunfo das revoluções são de-
26 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
vidos aos equilíbrios da Lei. Assim se explica como as aristo- onde possa apoiar os seus pés com segurança. Isto torna débil
cracias tardam a desmoronar, dado que certo lapso de tempo é aquela sua força. Ele possui a potência do número, mas não a
necessário para que elas, corrompendo-se no ócio, percam as inteligência para saber utilizá-la com uma ação unida e conver-
qualidades de defesa e para que, do lado contrário, as classes gente. Enquanto os elementos de tipo mais evoluído se dispõem
pobres, no estado de opressão, carregando-se de revolta e de- organicamente integrados numa engrenagem, cooperando para
senvolvendo a mente, adquiram o poder de decisão e a capaci- uma finalidade única, os outros são dispersivos e gastam a sua
dade necessária para realizar o esforço da reação. força em atritos e rivalidades individuais. A classe dirigente,
Eis que o período de tempo dos sistemas de opressão de- apesar de ser da mesma raça, pelo menos se mantém unida por
pende da duração da inépcia dos submetidos que irão rebelar- espírito de grupo, o que a torna mais resistente na luta. Isso lhe
se. Isto porque, na vida, cada posição deve corresponder rigo- permite dominar as massas, enfraquecidas pela sua íntima de-
rosamente aos valores e capacidades que a justificam, razão sagregação. Elas são vencidas pelo fato de que, ao seu nível, as
pela qual, quando estes faltam, perde-se aquela, caindo-se na forças se apresentam divididas e em conflito recíproco. Não é
situação oposta, o que obriga a desenvolvê-los. Se os domina- surpresa, portanto, que a força, por ser dividida, seja abundante
dores, pelo fato de estarem vivenciando o que conquistaram e violenta. Ela não pode produzir coisa alguma, dispersando-se
como um esforço precedente, gozam das respectivas vanta- fragmentada em mil grupos rivais. A sua verdadeira potência
gens, eles as perdem, no entanto, quando aquele esforço cessa estaria em saber organizar-se inteligentemente, evitando os atri-
ou o seu resultado foi consumado. É justo, portanto, que eles tos do separatismo excessivo, para somar os esforços de todos
aproveitem enquanto têm o poder nas mãos. Mas, por outro la- os elementos em direção convergente, em vez de deixá-los anu-
do, é igualmente justo que os revoltosos, quando se tornam larem-se reciprocamente com os seus antagonismos em sentido
poderosos, também gozem por sua vez, assim como é legítimo divergente. Mas, para chegar a isso, é necessário certa dose de
que os servos permaneçam nesta condição, enquanto não ad- inteligência, consciência coletiva e espírito unitário, coisa que
quirirem a capacidade e a força necessárias para se tornarem as massas ainda não possuem, porque essas qualidades apare-
patrões. Estes, com seu próprio exemplo, ensinam àqueles, cem somente num estágio evolutivo mais avançado.
que, observando-os atentamente, estão ansiosos por aprender Tal sistema, biologicamente mais atrasado, encontra-se em
com eles e imitá-los. Ora, os mestres da injustiça, julgando-se posição de desvantagem perante a economia utilitária da vida
astuciosos com a sua pretensão de realizar o próprio interesse, e, por isso, fica vencido pelo outro sistema, evolutivamente
funcionam na realidade como mestres de justiça, oferecendo superior, que, por ser mais unitário, representa um valor bioló-
vantagens àqueles dos quais julgam estar-se aproveitando. É gico maior, razão pela qual a vida lhe dá direito à vitória. O
através da luta e compensação entre as várias injustiças que a método anárquico é formado de rivalidades, de modo que a sua
Lei atinge a justiça. Desse modo, permitindo que os egocen- própria natureza torna o seu trabalho destrutivo. O método uni-
trismos rivais se corrijam reciprocamente, ela alcança um fun- tário, pelo contrário, é feito de colaboração, significando soma
cionamento coletivo de colaboração entre inimigos. de energias em vez de subtração, de modo que a sua própria
Com este processo, eles realizam todos juntos o trabalho natureza torna o seu trabalho construtivo. O futuro da humani-
mais importante, que é evoluir. As aristocracias caminham à dade será representado pelo estado orgânico, sendo este o nível
frente, gozando o fruto do esforço realizado, mas, por fim, can- superior para o qual ela caminha evolutivamente. Tal unifica-
sam-se no bem-estar e decaem. No entanto elas descobrem e, ção representa uma potência de coesão e de resistência, que
sem querer, ensinam um tipo de vida mais adiantado aos atrasa- constituem uma superioridade de método na luta e maior ga-
dos. Estes assaltam, enriquecem e, imitando-as, avançam um rantia de sobrevivência. O primeiro procedimento não produz
trecho, para depois pararem e decaírem também. Assim, por on- bens, e sim guerra, realizando uma seleção de seres fortes e vi-
das, a humanidade toda progride, fazendo cada um a sua parte. olentos, que sabem somente matar. Desse modo não se pode
As aristocracias, no entanto, não descem ao mesmo nível do obter senão a luta infernal do involuído. Com o progresso,
qual partiram no início da subida, mas sim a um plano um pouco mais útil do que a forma de coragem física do guerreiro, de-
mais alto. É neste avanço que consiste o progresso, o verdadeiro senvolvem-se a inteligência, a organização e a técnica. Isto
fruto de todo este trabalho. Somente poucos indivíduos isolados vem-se verificando nas guerras modernas, onde o valor militar
não se esgotam no bem-estar, descendo tanto, porque, em vez de impulsivo está sendo reduzido a zero perante a potência calcu-
esbanjá-lo nos prazeres, utilizam-se dele para trabalhar e se de- lada das máquinas dirigidas pela mente do homem. Haver
senvolver em outro terreno, situado no plano espiritual. substituído a velha ferocidade sanguinária por este novo méto-
Poder-se-ia perguntar como é possível que os inferiores, do de luta já representa um certo progresso. Outro passo será
muito mais numerosos, possam permanecer por tão longo tem- dado quando força e astúcia, que hoje se usam em sentido des-
po subordinados a uma classe de dominadores, bem mais exí- trutivo (negativo), forem utilizadas no sentido construtivo (po-
gua que a deles? Isto se explica nos locais e nos períodos em sitivo). Quando se quer construir com estabilidade, não basta a
que as massas, mesmo sendo numericamente mais fortes, são força. É necessário que os elementos cuja união esta força quer
menos evoluídas e, portanto, biologicamente mais débeis. Ser estabelecer sejam amalgamados e mantidos juntos pela potên-
evolutivamente mais avançado constitui uma força que dá direi- cia de coesão de outra força igualmente potente: a justiça.
to à vitória sobre os mais atrasados. Uma grande massa de indi- Quando o homem for mais evoluído, ele conseguirá entender
víduos com ausência de valores pode menos do que uma pe- que, sem justiça, as construções não resistem e acabam por
queno grupo organizado. É assim que um pastor pode dominar desmoronar, como costuma acontecer no mundo atual.
um rebanho inteiro. Mesmo ao nível de luta egoísta no plano O fato de que, até ontem, as massas eram incapazes de se
animal, os vencedores, pelo fato de superarem como valores bi- fazerem valer é demonstrado pela sua atitude perante as clas-
ológicos as massas, que carecem deles, podem por este motivo ses dominantes. Ao invés de se organizarem em busca dos seus
dominá-las, pois elas são evolutivamente mais atrasadas. Mas direitos, cada indivíduo procurava subir sozinho, por sua con-
em que consiste esta sua inferioridade, se não se pode negar ta, arrastando-se aos pés dos mais poderosos, para, assim, infil-
que o primitivo seja um lutador forte e agressivo? É preciso ver trar-se no reino deles. Faltava uma consciência de classe, ne-
de que forma e com que métodos ele usa essa força. Trata-se de cessária para saber organizar-se. Faltava um sentido de coope-
um indivíduo egocêntrico, indisciplinado, desorganizado e an- ração, indispensável para conseguir a união. Assim, isolada-
tiunitário. Está em luta contra todos, encontrando-se isolado mente emergindo de baixo, somente poucos, os mais evoluí-
num oceano feito de guerra e de caos, sem um palmo de terra dos, podiam chegar à altura dos dominadores, enquanto as
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massas permaneciam dominadas. Mas não podia suceder de pode ser gozada nos limites estabelecidos pela satisfação das
outra maneira, pois aquilo que é evolutivamente superior tem suas necessidades. Tudo isso não termina em si mesmo, apenas
mais potência e, naturalmente, domina o que lhe é inferior. Isto como sabedoria para gozar melhor o viver, mas existe em fun-
porque o primeiro é positivo perante o segundo, que, em rela- ção da finalidade suprema da vida, que é evoluir. Esta condi-
ção a ele, é negativo. Sendo ele mais avançado na hierarquia e, ção não implica que, para ascender, seja preciso um maso-
assim, mais próximo do centro, funciona como polo de atração quismo martirizante. O trabalho da ascese já é bastante grave
para os menos evoluídos, que se encontram em posição perifé- por si só. Portanto é saudável a renúncia que ajuda à supera-
rica e, por isso, ficam-lhe submetidos. ção, e não aquela que a oprima, impedindo-a. Mas uma renún-
A lei geral é tanto mais visível quanto maior a diferença de cia decidida e enérgica, sempre no sentido de correção do abu-
nível. O indivíduo de um plano evolutivo inferior é, pela própria so precedente, pode ser conveniente para quem se excedeu. Em
ignorância e capacidade intelectiva, excluído da compreensão tal caso, que é comum, isto pode ser necessário, mas como cor-
dos acontecimentos num ambiente superior. Este permanece fe- retivo, para restabelecer o equilíbrio. Na Idade Média pratica-
chado para ele, não porque as portas de ingresso estejam cerra- vam-se excessos de ambos os lados: vida dissoluta e renúncia
das, e sim porque aquele plano lhe é inacessível. Não obstante absoluta, insaciabilidade e abstinência, ferocidade e santidade.
ser ali a vida mais feliz, ele não sabe conceber em que consiste A virtude está em usar tudo com medida e desprendimento, pa-
tal felicidade. Não saberia usá-la nem gozá-la, tal como aconte- ra a finalidade de viver, existindo com o objetivo de evoluir. O
ceria a um macaco retirado da floresta e instalado dentro de um vício está no fato de se usar tudo sem medida, com avidez,
apartamento luxuoso. É fácil admitir que os diabos não seriam somente para gozar e, assim, involuir. O erro está em fazer de
capazes de sair do seu ambiente infernal, mesmo que lhes fos- um meio um fim. Tratando-se de um emborcamento, é natural
sem abertas as portas do paraíso, assim como um peixe não pode que ele não possa produzir senão resultados invertidos, ou seja,
desejar sair da água – o habitat para o qual ele foi feito – a fim sofrimento. A evolução é uma dura necessidade, mas é tam-
de se aventurar no ar, onde certamente morreria. Para poder vo- bém uma arte que, se soubermos exercitá-la, pode dar resulta-
ar, é necessário primeiro se transformar em pássaro. Assim os dos mais facilmente, produzindo vantagens mais rápidas, com
involuídos ficam no seu inferno e não se apercebem da existên- menos dor e menos esforço. Mas o homem comum está bem
cia do paraíso, pelo menos enquanto forem atrasados. longe de conhecer esta arte e, portanto, de praticá-la! Ele deve-
Essas posições, no entanto, não são fixas, mas estão em rá, portanto, realizar a sua própria evolução de forma não inte-
contínuo movimento, acompanhando o valor de quem as vai ligente, caminhando às cegas dentro do mar de leis no qual es-
conquistando. Aquele que se encontra embaixo está sujeito a tá imerso. Isto significa que, ao invés de funcionar regularmen-
uma escola contínua, cuja finalidade é amadurecê-lo, até que te como uma máquina bem lubrificada, ele irá cometendo erros
um dia, uma vez realizada tal maturação, ele se torna apto a a cada passo, sendo obrigado depois a sofrer para corrigi-los,
subir. Como se vê, o ser vive dentro de uma rede de leis, sendo guiado pela força dos golpes das reações da Lei.
necessário que ele aprenda a conhecê-las, se não quiser sofrer.
Rede de leis significa uma malha de reações e sanções, dentro VII. SINAIS DOS TEMPOS
da qual o ser se encontra, livre e ignorante. A cada erro ele pa-
ga com o sofrimento, mas, sofrendo, ele aprende e, aprenden- Por mais que o homem procure fazer da sua vontade a lei das
do, erra e sofre cada vez menos, ao mesmo tempo que, evolu- coisas, ele não pode deixar de se chocar com a lei que existe em
indo, aprende também a saber usar e gozar de alegrias mais tudo. Esta impõe as normas, constrangendo-o a obedecer. Não
verdadeiras e menos traiçoeiras. obstante proclamar-se livre, o homem se encontra prisioneiro
As consequências de tais equilíbrios no terreno prático nas malhas de uma disciplina que ele não pode violar, sem cair
mostram que cada prazer somente pode ser obtido na justa me- num estado de desagregação que o golpeia, infligindo-lhe dano.
dida estabelecida por aquelas leis. É inútil, portanto, tentar for- Este fenômeno é tanto mais evidente, quanto mais se intensifica
çar a máquina do prazer, como o homem na sua ignorância a vida social, porque se torna cada vez mais uma função do nível
julga ser possível. A satisfação só recompensa uma função, de organicidade coletiva. Vemo-lo acentuar-se nas grandes ci-
quando esta é praticada dentro dos limites estabelecidos pela dades, onde só o fato de existir uma aglomeração urbana faz
finalidade que ela se propõe alcançar. Se estes são ultrapassa- surgir problemas antigamente desconhecidos. Esse estado de
dos, as leis avisam que se cometeu um erro, invertendo sempre convivência bastante compacto vai implicar certamente na limi-
mais a alegria em dor. É inútil, portanto, insistir na procura ar- tação de liberdade individual, bem como na necessidade de or-
tificial do prazer, porque os efeitos são decrescentes, até se in- dem e de disciplina. Vemos isso de modo mais evidente no caso
verterem em sofrimento. A moral disso é que tudo é equilibra- simples da circulação nas estradas. A contínua produção mundi-
do e nada se rouba, sendo tudo merecido e estabelecido em al de automóveis, à qual não corresponde uma proporcionada
proporções determinadas, que ninguém pode violar. Quando se ampliação de estradas para recebê-los, tende a gerar sempre
pretende demais, termina-se por obter o oposto do que se pro- maior congestionamento de tráfego, porque absorve e restringe
cura. O ser é livre e pode tentar qualquer excesso. Mas a rea- sempre mais o espaço disponível para cada indivíduo, que hoje
ção reequilibradora por parte de tais leis está sempre pronta a não ocupa mais o lugar de uma pessoa a pé, mas sim o de um
intervir para colocar cada coisa no seu lugar, naturalmente à veículo veloz. O resultado, então, é que se torna inútil possuir
custa de quem cometeu o erro. Caso se queira gozar, é neces- meios rápidos de locomoção, quando eles ficam imobilizados
sário procurar a alegria somente na medida estabelecida. O pela dificuldade de circulação. Outro exemplo ocorre na questão
método utilitário para obter a máxima satisfação possível, com da moradia, onde todos se empilham uns sobre os outros, em
o maior rendimento em termos de prazer, obtendo a maior van- vez de sobre o próprio terreno, com novos tipos de casas, que,
tagem e o menor dano, é manter as proporções entre o prazer e muito mais do que geminadas, são comprimidas não apenas late-
o esforço feito para obtê-lo, em função da necessidade que da- ralmente mas também verticalmente nos arranha-céus, deman-
quele prazer decorre para realizar um bom trabalho. dando muitos serviços em comum.
Assim acontece com o sexo, com a gula, com o orgulho, Em virtude deste imprevisto impulso em direção à organici-
com a riqueza e com o poder. São defeitos tanto o abuso como dade, produzido pela técnica e pelos novos tempos, o homem é
a negação completa, a qual se explica, no entanto, como reação constrangido a adotar um novo tipo de vida, no qual ele deve
àquele, para compensá-lo com o seu oposto. Isto não significa descobrir e observar leis que lhe eram desconhecidas antes,
que a vida se transforma numa penitenciária, mas sim que ela aprendendo a se comportar de acordo com as respectivas exi-
28 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
gências. Isto é verdade também no campo moral, ainda que o ria à vida, que deseja criar um novo tipo de sociedade, levando a
homem não saiba ver até esse ponto. Saber distribuir os meios humanidade ao estado orgânico unitário.
econômicos, assim como os direitos e os deveres de cada um Não queremos aqui observar o que divide o mundo, mas
nas relações sociais, é uma arte tão necessária quanto saber re- sim o que há de comum nas partes opostas, porque nessa apro-
partir o espaço na circulação das estradas ou estabelecer as ximação consiste o seu futuro. Existe um mesmo processo de
normas de convivência entre os apartamentos de um arranha- transformação tanto no Oriente como no Ocidente, constituindo
céu, para que um elemento não se choque com o outro. uma mudança com sentido determinado, que abrange tudo e to-
Independentemente de qualquer programa político, a ten- dos, incluindo as coisas que parecem muito distantes umas das
dência ao coletivismo é hoje fenômeno universal. Esta nova outras. Por toda parte, a técnica tende a fazer do indivíduo um
posição da humanidade em forma de sociedade orgânica não é átomo econômico automatizado, que desaparece como unidade
problema de democracia ou comunismo, mas sim uma questão nos grandes planejamentos de trabalho e produção. A vida se
biológica, que corresponde a uma fase de amadurecimento reduz a um método racional para satisfazer todas as necessida-
evolutivo, a qual está sendo atravessada por toda a sociedade des, sem qualquer outra meta. A hipertrofia do progresso técni-
humana, em todos os pontos do globo. A cisão entre o que pa- co produziu o enfraquecimento do desenvolvimento espiritual.
rece ser dois opostos, democracia e comunismo, é devida ape- Tanto no capitalismo como no comunismo, o homem está se
nas ao fato de representarem eles os dois extremos do mesmo tornando, como trabalhador, em simples instrumento de produ-
problema, tal como os dois polos do mesmo planeta. A futura ção e, como consumidor, em máquina de consumo. Ele é consi-
organicidade nascerá no seu equador, ponto intermediário que derado uma mercadoria racionalmente calculada, seja como
os une, onde os dois opostos se reencontrarão, depois de have- produtor ou seja como consumidor, sendo em ambos os casos
rem abandonado cada um os próprios defeitos e excessos, estudado e manipulado pelo psicólogo.
compensando-os e corrigindo-os com as virtudes assimiladas, Inserido nesta máquina, como se constituísse uma engrena-
para se equilibrarem na justa medida. gem dela, o homem se torna seu prisioneiro, tendo todos os
Hoje, o equilíbrio da justiça social ainda não existe em ne- seus desejos satisfeitos, mas ficando constrangido não só a tra-
nhum dos dois polos. Onde o indivíduo, em nome da liberdade, balhar para produzir, mas também a receber e consumir toda es-
pode legalmente apropriar-se daquilo que não é fruto do seu tra- ta produção, se não quiser ficar sepultado debaixo desta. Assim
balho, formando grandes riquezas, sendo-lhe possível também a vida, girando em torno de si mesma, é vivida apenas no pre-
acumular e gastar de qualquer modo, não pode haver a justiça sente, sem nenhuma razão que a justifique e valorize perante
social. Tampouco pode ela existir onde, em nome do bem cole- metas mais altas, em função das quais nos deveríamos preparar,
tivo, tolhe-se toda livre iniciativa ao indivíduo, retirando-lhe o para alcançá-las num futuro mais longínquo. Perante tal utilita-
prêmio da posse que o estimula ao trabalho, de modo a trans- rismo imediatista, até as religiões, assim como qualquer espiri-
formá-lo num robô, submetido à grande máquina do Estado. tualidade, tornam-se inúteis. Sem um ideal e uma fé que ilumi-
Nesses dois polos, cada um faz a exibição e gaba-se de suas nem o caminho da vida, abrindo-a em direção a mais vastos ho-
próprias virtudes, com as quais esconde os próprios defeitos. Se rizontes, ela se reduz a um simples instante sem significado,
a liberdade for colocada como ética absoluta, não se alcançará o que aparece encerrado entre dois abismos de tempo desconhe-
bem comum. Da mesma forma, se este último for posto como cidos, estabelecidos pelo nascimento e pela morte. Corremos
absoluto, não poderá haver liberdade. O erro está no exclusivis- para ganhar tempo e depois para desperdiçá-lo; para trabalhar e
mo, que, em ambos os casos, sacrifica tanto a liberdade quanto a depois para nos distrairmos; para produzir e depois para con-
justiça social, que deveriam se completar, e não se excluir. sumir; para ganhar dinheiro e depois para gastá-lo. Com isso,
É inútil, portanto, aplicar sistemas diversos, utilizando o privamos o espírito, que constitui o íntimo de nossa personali-
mesmo princípio de unilateralidade, dado que o biótipo humano dade, do seu alimento mais vital. Colocados assim neste vazio,
é o mesmo em ambos os lados e emprega substancialmente mé- procuramos atordoar-nos com a corrida, julgando que velocida-
todos idênticos. No exclusivismo está a raiz de todos os males. de e o barulho constituam vida, enquanto não são mais do que
A propriedade é ainda uma instituição sadia e necessária ao ho- agitação de superfície. A evolução conduz à conquista de novas
mem no seu nível atual, embora ele esteja sempre pronto a fazer qualidades, um setor de cada vez. É natural, portanto, que o
mau uso dela, condição na qual surge o comunismo, que a eli- progresso numa determinada direção anule o que foi realizado
mina, para corrigir o abuso. Disciplina e justiça econômica tam- em outra. A vida não pode proceder à criação de um número
bém constituem uma condição salutar e necessária numa socie- excessivo de coisas, avançando por diversas estradas ao mesmo
dade civil, ainda que o homem esteja sempre pronto a fazer mau tempo. Assim, quando tudo se torna ciência, técnica, trabalho,
uso delas com o escravagismo policial dos Estados totalitários. produção, industrialização e mercado, as qualidades espirituais
Por isso surgiram as democracias, que, para corrigi-lo, querem a tendem a se atrofiar. Hoje o homem se especializou na conquis-
liberdade. De um lado, goza-se da liberdade, mas com o perigo ta daquele tipo de valores, mas, obedecendo à mesma lei, assis-
da desordem, que conduz ao abuso. Do outro, usufrui-se da or- tirá à reação natural a este movimento, representada por uma
dem, mas com o perigo de que o peso da disciplina paralise no espiritualização em um plano racional e científico mais positivo
homem, que deseja ser livre, o impulso ao trabalho e produção. e aceitável do que o fideístico atual.
Em ambos os casos, falta igualmente o indivíduo equilibrado e Mesmo assim, a presente fase já significa um passo à fren-
consciente. No primeiro caso, para fazer bom uso da proprieda- te, pois corrige os defeitos e pecados do Século XIX, enume-
de e da liberdade, sem excesso de egoísmo. No segundo, para rados a seguir:
possuir um sentido unitário coletivo, que o faça renunciar ao seu 1) O autoritarismo resultante do egocentrismo abusivo, pe-
individualismo separatista. Quando não há equilíbrio e autodis- lo qual quem chegava ao comando se reservava o direito de
ciplina, isto significa que falta o homem maduro adaptado, não dominar os seus semelhantes. Daí a autoridade do homem so-
havendo sistema político que tenha o poder mágico de, somente bre a mulher, dos pais sobre os filhos, do clero sobre as cons-
com a aplicação de um método, transformá-lo em novo tipo bio- ciências, dos patrões sobre os empregados, dos estados sobre
lógico, que saiba comportar-se com inteligência. A evolução é suas colônias etc.
lenta. Vivemos, no entanto, em fase de transição de um nível 2) O egoísmo na posse da propriedade, que o indivíduo jul-
evolutivo para outro. Os dois polos se chocarão, para que, des- gava ser reservada exclusivamente para si.
truindo-se reciprocamente, nenhum deles possa assim dominar 3) A desigualdade em relação aos outros. Nascia-se e vivia-
sozinho o planeta. Mas isto será útil à fusão de ambos, necessá- se em posições diversas, de favorecidos ou desfavorecidos, de
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 29
soberba ou miséria – contrariando os preceitos cristãos – sendo de levá-los progressivamente para um estado de ordem dentro
tudo isso não somente fixado por leis civis e religiosas, mas da Lei, próprio do S. Caminha-se, assim, de um regime de riva-
também transmitido por herança, com a pretensão de preservar lidade, guerra e injustiça para outro, de colaboração, paz e jus-
esta condição eternamente. tiça. Hoje, a força bruta já aparece limitada, sendo que, mais
4) A exploração do trabalho alheio, com a finalidade de tarde, será a vez de circunscrever também a astúcia. Trata-se de
prover as próprias necessidades. aprender uma disciplina, como a do trânsito, também necessária
Essas culpas estão diminuindo hoje, através do controle e da para uma mais rápida e segura circulação mental no seio de
limitação de cada um dos quatro pontos examinados. Assim uma sociedade civilizada. Será do interesse de todos que isso
advém uma mudança radical do modo de viver e do tipo de re- aconteça, porque, em um mundo organizado, invadir o recinto
lações sociais. Aquela estrutura de base individualista, apoiada da liberdade dos outros será tido como furto de espaço vital em
sobre a injustiça do domínio do mais forte, que, sendo vencedor prejuízo de cada um. Dessa forma, está-se formando progressi-
do mais fraco na luta pela vida, tinha o direito de abusar, é afas- vamente uma consciência coletiva contra tais atentados.
tada, sendo substituída pelo sistema da justiça social. Ao méto- É isto que está sucedendo em nossos tempos. Um salto em
do do separatismo, baseado no egoísmo, que leva ao triunfo de frente quer dizer evoluir para novos estados de unificação co-
poucos, sucede outro unitário, que leva à coletivização. Deste letiva e orgânica, nos quais vai aparecendo mais evidente a or-
modo, indo ao encontro dos vencidos, a evolução se apressa a dem da Lei. Tal organicidade significa um tipo de vida mais
superar a lei animal da luta, que recompensa o forte e esmaga o complexo e completo. Para isso, a humanidade está-se prepa-
fraco. Assim, ela amplia o círculo da sua zona de atividade, rando laboriosamente. O movimento neste sentido está sendo
apossando-se agora daqueles que antes se encontravam mais iniciado hoje na forma de um nivelamento igualitário, que eli-
em baixo, inertes, esperando o despertar. mina as diferenças individuais das diversas personalidades, pa-
Acontece que, uma vez suprimidos aqueles vícios do Século ra fundi-las na uniformidade cinzenta do produto feito em sé-
XIX e eliminados seus respectivos males, aparecem os do Sé- rie. Ora, pode até ser mais cômodo e seguro para o indivíduo
culo XX. O perigo do primeiro era nos tornarmos escravos. O assemelhar-se aos outros, misturando-se na corrente geral, po-
perigo do atual é nos convertermos em robôs. Assim a evolução rém tal homogeneização, que reduz todos a um mesmo tipo,
ascende, corrigindo um defeito e imediatamente oferecendo ou- monotonamente repetido, não é ainda o estado orgânico para o
tro, mais avançado, para corrigi-lo depois. qual tende a evolução. O objetivo desta, ao contrário, não con-
Vemos que, na atual fase de transição, antes que os novos se- siste em sufocar e fazer desaparecer a personalidade, mas sim
jam fixados, os velhos instintos ainda resistem, porque a ciência em desenvolvê-la e acentuá-la, para depois coordená-la com
está transformando o mundo pelo lado exterior, sem que o ho- todas as outras, fundindo-as em seguida, para formar um corpo
mem tenha tido tempo de, paralelamente, mudar interiormente. coletivo. O movimento atual terminará, assim, por tomar uma
Explicam-se assim algumas posições contraditórias, próprias de forma diversa daquela pela qual ele está-se iniciando hoje. Tal
todas as fases de transição. Até há pouco tempo, o tipo mais processo evolutivo não consiste em suprimir as diferenças,
adaptado à sobrevivência era o primitivo forte, corajoso, astuto e mas sim em colocá-las de um tal modo, que colaborem entre
conquistador. Isto porque era necessário vencer isoladamente si. Portanto a especialização não prejudica, antes favorece o
em um ambiente inimigo. Este era o tipo admirado e premiado. fenômeno, porque, ao invés de afastar, ela avizinha, acabando
Hoje, o ambiente não é mais constituído por um terreno a ser por unir, e não por dividir. Esta união, porém, não é do tipo re-
conquistado, cheio de inimigos a serem mortos, mas é o vizinho presentado por um grupo composto pela soma de elementos
igual a nós, com o qual, mesmo sem amá-lo, como aconselha o homogêneos, mas sim de outro tipo, constituído por indivíduos
Evangelho, deve-se entrar em acordo, a fim de não se viver em diferentes, engrenados num conjunto orgânico, para realizar
regime de guerra e destruição recíproca. A vida moderna nos le- um trabalho coletivo, em que cada um, conforme as suas res-
va a viver cada vez mais comprimidos na cidade. E, quanto mais pectivas capacidades, traz a sua contribuição em função das
todos vivem juntos uns dos outros, tanto mais se reconhece a oferecidas pelos componentes do grupo. Eis a posição de orga-
necessidade de se deixar viver o próximo, para que ele também nicidade a ser alcançada pela futura humanidade, semelhante à
nos deixe viver. Nasce desse modo, à força, um estado de disci- situação das diversas engrenagens de uma máquina, para cujo
plina, que é tanto mais rígido quanto mais a vida se torna coleti- funcionamento todos elas colaboram, precisamente porque são
va e complexa, como é a tendência moderna. Ainda que nos diferentes. Não se trata de um aglomerado de elementos, mas
queiramos proclamar livres, caminhamos todos necessariamente sim da sua função em uma unidade coletiva.
para uma ordem social cada vez mais compacta. Então surgem O esforço para dar este salto evolutivo manifesta-se hoje,
leis de convivência, às quais somos constrangidos a obedecer, através de um confuso desejo de renovação. É natural que as
sendo elas inerentes a um mais alto nível evolutivo, no qual o suas primeiras manifestações sejam desordenadas, dirigidas
homem se prepara para entrar. As guerras não se fazem mais mais para destruir as velhas estruturas, das quais se conhecem
com a coragem física, mas sim com a inteligência, que garante a os defeitos e se está saturado, do que para construir o novo
organização econômica e técnica. O herói de antigamente hoje edifício, que ainda é ignorado. Diz-se que o mundo hoje é pi-
não seria mais o tipo adaptado para vencer numa luta, porque es- or. Mas isso é apenas porque os defeitos agora são visíveis,
ta se faz de forma totalmente diversa. Matar individualmente enquanto antigamente estavam encobertos. No entanto, assim,
não serve mais para coisa alguma. Isso constitui apenas um deli- varre-se melhor a casa do que quando a imundície estava es-
to, considerado doravante como inútil resíduo de instintos atávi- condida e a casa parecia estar limpa. A função da nova gera-
cos, que nasceram quando era necessário matar para sobreviver. ção é fazer a limpeza. O mundo está cansado de truques ca-
Hoje, por falta de outros mais evoluídos, procura-se desafogar muflados de verdade e quer ver a realidade, seja ela qual for,
tais impulsos agressivos através de competições desportivas, nua e crua como deve ser. Os jovens se puseram a varrer a ca-
aventuras arriscadas, romances policiais, crônicas de delitos e sa, limpando-a precipitadamente e, com isso, destruindo tam-
outros equivalentes materiais e mentais, com os quais é possível bém o que é bom e belo. Pode ser agradável tornar tudo asse-
satisfazer os instintos bélicos e sanguinários elaborados no pas- ado, porém acontece que, assim, as belas e boas coisas, por
sado. Procura-se, assim, limitar o desabafo ao plano emocional, não estarem limpas, também são jogadas fora. Com isso, é ne-
até que consigamos nos desabituar desta forma mental. cessário se recomeçar desde a primeira fase, tendo de se refa-
Este fenômeno faz parte de um processo de coordenação zer tudo. Uma vez estabelecido o vazio, outras gerações deve-
dos elementos que se chocavam entre si no caos do AS, a fim rão pôr-se a trabalhar para construir no terreno desimpedido.
30 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
O nosso trabalho é mostrar nestes escritos o que se poderá fa- muitos problemas não estavam de fato resolvidos, perceben-
zer em relação ao processo de reedificação. do-se que muitas vezes, a moral oficial é uma mentira, a auto-
Uma das inovações em que se baseia essa reconstrução con- ridade constitui um meio de comandar em vantagem própria, a
siste em substituir o princípio de autoridade – segundo o qual o religião é uma hipocrisia e assim por diante.
interesse de quem comanda é, em primeiro lugar, submeter seus Eis já um início de renovação contra o passado. Em alguns
dependentes, para conservar o poder – pelo da inteligência, o países, já se denunciam os erros dos adultos, que se tornaram
qual implica pensamento e consciência, para se chegar à com- mestres para ocupar posições de comando, e não para formar
preensão e cooperação. Em resumo, trata-se de passar do estado uma sociedade melhor. Denuncia-se a traição da missão com a
de luta separatista ao estado orgânico colaboracionista. Isto em qual os dirigentes procuram conservar a investidura, mostran-
todos os campos da estrutura social onde haja quem comande e do-lhes que a realidade é diferente daquela proclamada. Em vá-
quem obedeça, abrangendo a luta de classes, a política, o traba- rios pontos da Europa, já se vê despontar esta reação contra os
lho, a economia, a educação, a religião etc. Enfim, procurar o velhos métodos de vida. Procura-se, assim, quebrar a cadeia a
entendimento, reconhecendo as recíprocas necessidades e, as- que se deveriam sujeitar os ainda não saídos da menoridade, os
sim, entrando em acordo, a fim de satisfazê-las melhor, o que quais, uma vez adultos, dominariam a geração sucessiva. Pas-
não se pode fazer com o sistema de luta para se esmagar mutu- sava-se este peso de uma geração para outra, que, tendo venci-
amente. O progresso consiste em substituir o velho método por do na luta pela vida, deveria agora pensar primeiramente em si,
este novo. Hoje o espírito de luta invade tudo. Quem comanda se quisesse sobreviver. A revolução consiste em substituir a no-
peleja para manter a sua posição; quem depende se esforça para ção clássica de autoridade-direito, com fim egoísta, exercida
libertar-se de tal estado de sujeição. Há luta entre ricos e po- para vantagem de quem a possui e prejuízo de quem a ela está
bres; entre governantes e povos; entre patrões e empregados nas sujeito, pelo conceito de autoridade-dever, cuja finalidade é o
organizações de trabalho e produção; entre educadores, sejam bem coletivo. Neste caso, a autoridade, sendo também para
eles professores, moralistas ou progenitores, e os seus discípu- vantagem de quem dela está dependente, não gera a clássica re-
los; entre a autoridade religiosa e os seus fiéis etc. Sempre luta volta dos subordinados contra os patrões.
em cada campo. Ora, o novo homem, sendo mais inteligente, Com este novo estilo, a orientação educativa não se baseia
acabará por compreender que a opressão excita reações que ele mais numa imposição dogmática, assentada em temores reveren-
depois terá de enfrentar, entendendo que o tempo e o trabalho ciais. Pelo contrário, é eliminado tudo que provoca afastamento e
desperdiçados para litigar, bem como as energias gastas neste favorecido tudo que gera aproximação, de maneira a estabelecer
atrito, significam diminuição de riqueza, bem-estar, harmonia e não mais um relacionamento com base, de um lado, no comando
nível de educação, penalizando o progresso moral e espiritual. e, do outro, na subordinação, no temor e na mentira, mas sim na
Esta é a grande transformação que a humanidade deverá igualdade, na confiança e na compreensão, a fim de tornar possí-
iniciar neste final de século, preparando-se para colocá-la em vel um diálogo. Até agora, por causa da imaturidade geral, não só
prática, plenamente, no próximo milênio. Apesar de condenado dos educadores, mas também dos educandos, não se seguia como
hoje, pelo menos entre os indivíduos, o uso da força, que foi an- sistema educativo o método da compreensão, e sim o da imposi-
tigamente a base do Direito, continua a sê-lo no campo interna- ção. No regime de luta em que se vivia, o educador, para não ser
cional. Desta fase atual, que já é um progresso perante o estado vencido, era forçado a se tornar um domador. Mas, com este pro-
primitivo de pura violência, a humanidade passará a outra ainda cesso, a obediência que se conseguia era cheia de desconfiança e
mais avançada, na qual a mente será usada para fins mais altos, rancor. Então, se a personalidade do indivíduo, apesar de torcida
diferentes daquele que, tecendo enganos e mentiras em prejuízo pelo esmagamento, sobrevivia, ela ficava esperando o momento
do próximo, para conquistar vantagens, significa de fato usur- da revolta, sendo a sua obediência fingida, exterior e passiva. Se,
pação, sem nada ter de equidade. Então, a inteligência será usa- entretanto, aquela personalidade era destruída pela opressão
da menos estupidamente, de forma mais rendosa, para resolver exercida, ela aderia simplesmente como um autômato, ficando
os problemas do conhecimento e de nossa existência, a fim de sua obediência ainda mais inerte e passiva. O resultado era sem-
vivê-la de modo menos doloroso e mais proveitoso do que o pre uma destruição, e não uma criação de valores. Ora, a função
atual. Será, no entanto, necessário acabar com o sistema em vi- do educador não consiste em submeter outras personalidades,
gor, no qual o indivíduo, não se importando com o dano que a exercendo a sua profissão com a menor fadiga e a maior comodi-
própria vantagem pode acarretar aos outros, pensa somente em dade possível, mas sim em desenvolvê-las, a fim de que elas
si, sem compreender que, num regime de contínuas trocas, o cresçam e se aperfeiçoem. Deste trabalho depende a formação da
mal e o bem são comuns e acabam por voltar ao seu emissor. A humanidade futura. Ele é, portanto, de fundamental importância.
maior revolução deverá ser moral, como complemento da revo- No passado, agiu-se demasiadamente no sentido contrário, dei-
lução tecnológica atualmente em ação, que, sozinha, leva ape- xando como resultado os belos exemplares de hoje.
nas à transformação do homem em um robô mecanizado, e não Quantas energias se desperdiçaram e que prejuízo para to-
ao verdadeiro progresso, que está na espiritualização. dos, só porque cada um andava em busca da sua egoística van-
Nos países mais civilizados, já se começa a compreender a tagem! Deste modo, educava-se na realidade com hipocrisia,
grande utilidade que é ser honesto, ao invés de ludibriar o sendo esta a substância daquilo que se aprendia, porque esta era
próximo com astúcias. Os países mais atrasados, ao contrário, a essência daquilo que se ensinava. Assim se fabricava um tipo
por um feroz egoísmo e espírito de mentira, estão reduzidos a de indivíduo que ou mordia o freio, à espera de se revoltar,
um inferno onde não se pode produzir para melhorar, mas quando se tornasse adulto, ou se tornava um falido, incapaz de
somente roubar e fugir. No entanto, aqui e ali, em alguns pon- se afirmar na vida. Este é o resultado, quando o objetivo da au-
tos do globo, começam-se a manifestar sintomas de mudança toridade é fabricar seres obedientes. Em resumo, o mais bem
no método de vida. O movimento aparece entre os jovens, educado, segundo o velho sistema, era quem aprendia o jogo es-
porque é através deles que a vida se renova. Eles procuram condido, que consistia em saber conquistar a própria vantagem
clareza e sinceridade, colocando a nu os problemas, a fim de sob a aparência de pessoa de bem, como religioso praticante e
resolvê-los, em vez de escondê-los no silêncio. Os adultos são exaltador da virtude, passando-se por cidadão irrepreensível. A
ainda da velha escola e preferem ocultar a verdade, julgando autoridade tacitamente aprovava o sistema, porque detinha a
como inexistente aquilo que não se vê. Mas os jovens desco- parte que mais lhe importava: o respeito devido. Assim, educado
brem o jogo, porque querem ver, compreender e resolver. É na arte da hipocrisia, o indivíduo se encontrava em acordo com
neste momento que nasce o escândalo, porque se descobre que todos, sendo tolerante para com as fraquezas dos outros, as quais
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 31
cuidava de não denunciar, pois, com isso, também poria as suas sobrecarrega mais a inteligência com o peso de um árido amon-
a descoberto. Não incomodava ninguém e até se tornava simpá- toado de noções, para o que bastaria a técnica de pesquisa nas
tico, fazendo assim carreira no mundo, tudo isto de modo a al- bibliotecas. O ensino deixa de ser uma imposição de ideias, para
cançar um ideal de paz e harmonia. O que de melhor se podia se tornar desenvolvimento de personalidade, de capacidade de
desejar? Até agora, a sociedade tem avançado com esses acor- raciocínio e de juízo, passando a constituir um exercício que,
dos secretos, mas com os resultados que acabamos de ver. Como com o livre intercâmbio e o estímulo ao pensamento, tende à
por um tácito consenso, cada um podia infligir certa dose de da- formação de uma mente autônoma e madura. Então o professor
no ao próximo, para tirar disso a respectiva vantagem, de manei- não é mais um repetidor que, transmitindo noções recebidas,
ra que permitisse ao semelhante aplicar outro tanto de prejuízo a impõe ideias por autoridade, em vez de fazer demonstrações e
terceiros e, assim, colher também a sua própria vantagem. Dessa expor suas convicções; não é mais o sapiente absoluto que, em
maneira se praticava a arte da convivência pacífica. vez de discutir, apenas sentencia. O aluno, por sua vez, não é
Com tal método, no entanto, aquele prejuízo se transmitia mais um recipiente a ser preenchido com dados e informações,
de indivíduo a indivíduo, sendo passado por cada um ao seu vi- mas sim um ser que pensa também com a sua cabeça, faz per-
zinho, até chegar a quem deveria absorvê-lo e pagá-lo. Era na- guntas e critica, podendo inclusive não aceitar os pontos de vista
tural que existisse uma classe de prejudicados, adaptados à fun- do mestre, quando saiba apresentar justificativa. São essas as
ção de vítima. Assim os jovens, porque desarmados; os depen- qualidades que mais valem e que são desenvolvidas. É certo
dentes, porque sem meios; os crentes, porque simples, deviam, que, para o professor, é menos fatigante o método de ser apenas
pela sua posição de inferioridade, aceitar essa situação. Ora, o um repetidor de sabedoria, mas isso não basta para formar ho-
dano é sentido por todos, porque queima. Mesmo que não che- mens. A escola do futuro deverá cumprir a tarefa de preparar os
guem a descobrir de onde lhes é imposta a queimadura, para jovens para resolver os problemas da vida, e não fazer eruditis-
poder reagir contra a sua origem, forma-se nas vítimas um ódio mo ou formar colecionadores de noções, com as quais os alunos
tal, que procura todas as ocasiões para se desabafar, fazendo so- se tornarão cultos, mas permanecerão fora da realidade.
frer qualquer um. Até hoje, a sociedade viveu arrastando este Concluindo, vemos que a nova posição é oposta à preceden-
enorme peso de forças negativas, que a agridem a cada passo. te, isto é, a geração adulta não se ocupará apenas de manter,
O grande escândalo dos novos tempos é querer ser leal e ho- com base na autoridade, as suas posições, nem os jovens busca-
nesto, é pretender descobrir e denunciar tal jogo, é querer final- rão conquistá-las, tolhendo os meios aos detentores. Ocorrerá o
mente destruí-lo, para não ser mais vítima e, assim, truncá-lo de- contrário: a primeira se ocupará de educar a segunda, estimu-
finitivamente, impedindo que ele seja transmitido às gerações lando o que houver de melhor nela, e esta aceitará tal ajuda, pa-
futuras. É natural que tais pretensões incomodem o partido for- ra colaborar depois com os adultos no interesse comum, não
temente consolidado dos bens pensantes, acomodados nas suas mais pensando em se libertar deles, como se fossem um obstá-
posições, nas quais eles não querem ser perturbados. O proble- culo à sua própria expansão vital. O que nos conforta é ver que,
ma deles é assegurar o respeito, que é a garantia da sua defesa e nos países mais civilizados, várias ideias sustentadas no início
sobrevivência. Acontece que, descobrindo-se hoje o velho jogo, da Obra, olhadas então com desconfiança, começam agora a ser
ele não serve mais. Então quem o praticava com habilidade en- entendidas e postas em prática.
contra-se por terra, desarmado e, por isso, grita que é um escân- Um sinal evidente de tais mudanças pode ser visto nas no-
dalo. Assim, um dos elementos se deslocou, porquanto os que vas atitudes do Concílio Ecumênico Vaticano II. Na parte final
deviam submeter-se àquele jogo não o aceitam mais. Desse mo- do volume Constituição, Decretos, Declarações (Editora Ave,
do, a cadeia ficou rompida. Mesmo assim, o passado resiste den- Roma, l966), no Capítulo “Liberdade Religiosa”, aparecem
tro da sociedade, que já tem os pés no amanhã, mas, algumas textualmente estas palavras:
vezes, ainda pensa com a forma mental remanescente da Idade “Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem
Média. É necessário, contudo, libertar-se de tais erros, caso se o direito à liberdade religiosa (...) os seres humanos devem ser
deseje viver menos carregado com tantas lutas e dores. A moral imunes à coerção por parte de qualquer poder humano, de ma-
permanecerá, mas serão diferentes as culpas, cuja natureza não neira que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir
será de índole privada, relacionada somente ao indivíduo, mas contra a sua consciência (...). Cada um tem o dever e, portanto,
sim coletivo, caracterizando-se por toda ação que prejudique a o direito de procurar a verdade em matéria religiosa (...). Os
sociedade, como, por exemplo, viver sem trabalhar, possuir em imperativos de lei divina, o homem os colhe e os reconhece
excesso, praticar o parasitismo econômico, cometer abuso de au- através da sua consciência, a qual deve seguir firmemente para
toridade, realizar o furto que sabe fugir à lei, tudo enfim que seja alcançar o seu fim, que é Deus. Não se deve, portanto, cons-
contra a ordem coletiva e o bem alheio. Será uma moral que terá trangê-lo a agir contra a sua consciência (...). O exercício da
mais respeito pela liberdade privada, preocupando-se sobretudo religião consiste antes de tudo em atos internos, voluntários e
em satisfazer os interesses coletivos, o que significa satisfazer, livres, com os quais o ser humano se dirige diretamente para
através de uma justa distribuição, os interesses de cada um. Deus, atos que não podem ser impostos ou proibidos por uma
Ora, não se pode impedir que o mundo se vá transformando autoridade meramente humana.”
nesta direção, na qual se move o fenômeno da evolução. Já aqui Mesmo que tais disposições possam ter sido provocadas pe-
e acolá se nota este processo, tanto no plano político como no lo desejo de obter liberdade religiosa no seio de regimes que a
social, econômico, moral e religioso, através de tentativas de negam, elas representam, entretanto, um grande passo à frente
adaptação a novos tipos de vida. Procura-se desmantelar a hipo- no terreno da liberdade de consciência, que foi até ontem opri-
crisia, para se chegar a uma forma de coerência entre o que se mida a seu modo, assim como o comunismo também faz agora,
prega e o que se pratica, mesmo que, para chegar a isso, seja ne- de outra maneira particular. Isto, além de provar que a Igreja,
cessário modificar o que se prega, a fim de que tudo correspon- com a sua divina inspiração, não dirige os tempos, mas sim que
da à realidade da vida. Perante o homem novo, que será mais in- ela, na evolução de tudo, é dirigida por eles, demonstra também
teligente, o ardil da hipocrisia se tornará uma ridícula puerilida- que a verdade, mesmo a inspirada por Deus, é relativa e pro-
de. Vemos aparecer sinais de tal transformação no fato de que, gressiva. Por isso, embora as teorias de nossa Obra tenham sido
em alguns povos mais avançados, a mente – especialmente no até ontem condenadas, hoje é lícito ser convencido por elas e
ensino – não é mais usada nas suas qualidades inferiores, ser- professá-las, sem ter de se retratar, como antes havia sido orde-
vindo sobretudo como registrador mnemônico, mas sim nas suas nado pela condenação do Santo Oficio (ver mais à frente o Cap.
funções diretivas de compreensão e orientação. Assim, não se “O Problema Religioso. A Obra Perante A Igreja”). Assim, ar-
32 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
rastada pelo amadurecimento da vida, a Igreja teve de se atuali- Os refratários são forçados por esta onda evolutiva a se
zar à força, reconhecendo aquilo que, finalmente, era um fato atualizar, a fim de não ficarem ultrapassados. Assim, a vida
inegável e incoercível, ou seja, que com Deus se fala sozinho e impôs uma mudança à Igreja, que, na tentativa de se conser-
que o verdadeiro diálogo é feito somente com Ele, sem minis- var, queria deter, em nome de Deus, a Sua ação criadora no
tros intermediários e livre de qualquer opressão de consciência. mundo. Verificou-se, então, uma inversão de posições. Os que
Vê-se ainda outro sinal dos tempos, dado pelo novo ajuiza- haviam sido condenados se encontraram subitamente na van-
mento a respeito de Teilhard de Chardin, no mesmo ambiente guarda, enquanto a autoridade se pôs a correr, para não ficar
eclesiástico. Em certas conferências e revistas, depois de se ter superada. Este é o caso do personagem de quem aqui conta-
cuidado dos sofrimentos morais vividos por ele no longo exílio, mos a história. Amadurecido por si só, em antecipação ao
admite-se que tenha sido um “gênio religioso e um dos maiores grande movimento coletivo da onda histórica, ele o havia
cristãos deste século”. Tal mudança é intitulada: “Um Ato de anunciado e explicado nos seus escritos, mas, não podendo es-
Justiça”. O sistema é sempre o mesmo: primeiramente se marti- tabelecê-lo nem impô-lo, resolveu construir-se por sua própria
riza e depois se santifica. A autoridade, mais forte, salva-se, e o conta, vivendo rapidamente, incompreendido e sozinho, aque-
indivíduo, isolado e fraco, é esmagado. Depois ela se atualiza, e la tempestade evolutiva, que investirá a humanidade no Ter-
tudo fica em ordem. As coisas se passam como se um indiví- ceiro Milênio. E agora, na velhice, no fim do seu trabalho, ele
duo, após ter, segundo uma determinada lei, praticado o mal, se consola ao ver que também o mundo se move na mesma di-
sem ao menos reconhecê-lo, fosse depois considerado inocente, reção, iniciando o mesmo processo de transformação que ele
por ter sido mudada a lei, de modo que, segundo esta nova lei, terminava. Isto é natural, porquanto os vastos movimentos de
o ato praticado por ele não seria mais considerado mal, tornan- massa, que são os mais resistentes às mudanças, são também
do dessa forma o sujeito inocente. Admite-se então que ele, os mais lentos a se determinarem. No fundo, trata-se sempre
porquanto não fora punido e sendo agora reabilitado, não che- da mesma onda histórica, que, mais cedo ou mais tarde, arras-
gou a sofrer, sendo, portanto, a sua dor anulada. Quantas coisas ta todos. O fenômeno evolutivo, nas suas fases preparativas de
pode fazer a autoridade, porque tem a força do poder, as quais, amadurecimento, é o mesmo para todos.
no indivíduo, que não a possui, são condenadas como culpa! Tais afirmações não se baseiam numa filosofia pessoal, mas
Estes não são senão alguns aspectos do movimento evolutivo sim na demonstração da existência de uma lei que regula tudo e
que está deslocando as posições tradicionais do mundo, às quais na exposição do seu conteúdo, com o objetivo de podermos nos
este se havia adaptado durante séculos. Fala-se de diálogo, de en- comportar mais inteligentemente, evitando erros e, portanto, so-
contros de cúpula e de aberturas, tanto no campo religioso como frimentos. O nosso personagem tinha controlado experimental-
no político. A novidade é que se procura um entendimento atra- mente tudo isso durante toda a sua vida, colocando-se em arre-
vés de contatos. Em vez de se lutar sempre para prejuízo recípro- batado voo na direção de realizações futuras, no mais positivo
co, procura-se lançar pontes entre as partes contrárias, para resol- sentido da realidade. Ele tinha nascido do lado dos dominadores,
ver os problemas da vida, o que é interesse de todos. Começa-se e a sua salvação foi não ter cedido à tentação de aceitar esta po-
a compreender quão contraproducente é o método de lutas, e sição de privilégio. Ao se colocar contra o mundo, mas ao lado
procura-se assim um outro sistema, mais inteligente e rendoso. da Lei, ele tinha usado a sabedoria do evoluído, aquela que será
Não há dúvida que se trata de um método mais civilizado do que adotada pelo homem mais inteligente do futuro. Pondo-se a fun-
discutir e lutar, matando-se uns aos outros, para provar, com a cionar de acordo com a Lei, ele se viu imerso na correnteza da
supressão do adversário, que se tem razão. Estamos nas primeiras vida, que, por secundar os movimentos em direção aos seus fins,
tentativas, já tomando esta direção, fato que é novo na história e levou-o em frente. Assim, em vez de desperdiçar as suas energi-
que serve como prova irrefutável de inteligência. as em obras de destruição e correr atrás de miragens, como se
Encontramo-nos perante um processo de aceleração da histó- usa no mundo, pôs-se a construir a sua nova casa num plano
ria. Estes sinais dos tempos nos mostram que vivemos num pe- mais alto, onde a vida é menos dura. Ao trabalho negativo tinha
ríodo onde as mudanças se sucedem com uma velocidade não preferido o positivo, realizado em função do amadurecimento do
concebível no passado. Parece que hoje o fenômeno do trans- momento histórico, que ele tinha querido viver plenamente, an-
formismo evolutivo se encontra em fase de precipitação, mo- tecipando-o. Nascido no coração do velho sistema, ele o desafi-
vendo-se a passo acelerado. Assim, o velho conservadorismo se ou, recusando o banquete hereditário que o passado lhe oferecia.
extingue, apesar de, em outros tempos, ter exercido no caos das Em vez de se deixar seduzir, quis seguir um método diverso de
ideias uma grande função estabilizadora, protegendo os valores vida, aquele que temos ilustrado nestas páginas e que será o do
conquistados e as posições nas quais eles se entrincheiravam. homem evoluído de amanhã. Ele quis, em suma, viver com co-
Mas, no momento dos necessários deslocamentos do equilíbrio, nhecimento e consciência, sem enganar nem ser enganado.
quando a vida é tomada da febre de renovação criadora, aquele Sentia em volta de si as leis da vida funcionando efetivamen-
conservadorismo não serve mais, porque atua como freio e opõe te, constituídas por inúmeras forças vivas e pensantes, com as
resistência, sendo por isso posto de lado. Em matéria religiosa, o quais era possível raciocinar, sendo elas não somente estrutura-
Concilio não enfrentou nem resolveu nenhum problema de base, das por uma inteligência mas também dotadas de vontade própria
tendo apenas indicado que a Igreja começou a raciocinar. Ao fiel e potência de ação. Conhecendo-as, ele se entrosou com o funci-
foi reconhecido o direito de pensar, de modo que agora, mais do onamento dessas leis e, movendo-se de acordo com elas, era sus-
que acreditar, ele se pôs a pensar. De agora em diante vê-se que tentado por estas. Deste novo método de vida, num plano em que
a inspiração divina, tida como guia infalível, depende na prática se é consciente da atividade orgânica do universo, ele tinha feito
sobretudo da aprovação e aceitação da opinião pública. O gran- a sua arma de defesa na luta pela sobrevivência. Via que essas
de progresso atual está no fato de que, doravante, a adesão a forças teciam a trama interior da história, da qual podia sentir o
uma fé não se dará por obediência cega a uma autoridade, mas futuro desenvolvimento. Nesta urdidura, ele se integrava e vivia
sim com base nas comprovações da verdade daquela fé, que se- com antecipação tais acontecimentos. Assim, a vida se tornava
rá, portanto, seguida por convicção, e não por constrangimento. algo imenso, sendo transportada a outras dimensões, em direção
Hoje se começa a compreender que o ato de fé das religiões foi, a planos de existência mais altos. Aquilo que poderia parecer
pelo referido espírito de conservadorismo, cristalizado na forma loucura incompreensível era, ao contrário, a mais audaciosa
de um tradicionalismo consagrado, matando dessa forma a fé na aventura da vida, consistindo em tentar o grande salto em frente,
sua essência, que é crescimento, criatividade, vida e movimento, na direção de um nível de evolução mais avançado.
e não mumificação de antiguidades num museu. ◘ ◘ ◘
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 33
Enquanto estou escrevendo nesta primavera de 1967, um enquadrar o ser humano a seu modo, constituindo assim ver-
novo sinal dos tempos aparece, com a Encíclica Populorum dadeiros capuzes colocados sobre o homem, que, por sua vez,
Progressio de Paulo VI. Ela enfrenta os mais escaldantes pro- continua a andar pela sua própria estrada, adaptando-os e tor-
blemas atuais, tendo sido definida como o documento mais cora- cendo-os a seu modo. Esta é a realidade. O resto é superestru-
joso de nosso século, tanto que, nos ambientes imobilizados, pa- tura. Assim as teorias mudam com o tempo e com as necessi-
receu imediatamente como revolucionário. No entanto ele cons- dades do homem, conforme o seu grau de evolução e o mo-
titui uma série de tentativas de promover o diálogo, para alcan- mento histórico que as expressam.
çar um bom entendimento, colaborando de comum interesse, Ora, a diferença entre capitalismo e comunismo está em
conforme princípios de justiça, para resolver mais inteligente- considerar o homem como indivíduo ou como coletividade. De
mente os problemas, em vez de usar o tradicional sistema de lu- fato, a primeira posição corresponde àquilo que realmente é a
tas, que termina com o matar-se uns aos outros. A Encíclica é natureza humana, satisfazendo melhor a sua vontade. Conceber
um apelo à responsabilidade, implícita na nova liberdade conce- o homem em forma orgânica, como coletividade, pode repre-
dida, porque deveria corresponder a uma presumida maturidade sentar uma concepção evolutivamente mais avançada, mas, pa-
de consciência que o homem atual teria alcançado. A imprensa ra poder ser praticado por um biótipo ainda não maduro, tal
viu na Encíclica uma concessão econômica notavelmente avan- conceito tem de ser imposto coativamente. O primeiro sistema
çada, “quase marxista”, com um favorecimento em direção à então, por ser mais adaptado ao atual tipo de homem, oferece a
parte oposta, fato que escandalizou os velhos conservadores. Até vantagem de obter maior rendimento. Mas o segundo sistema é
a Igreja, através desse documento, mesmo que seja em sentido uma tentativa de realizar novas construções e, como tal, per-
Cristão, orienta-se para os programas de justiça social, que pare- corre os tempos e antecipa o futuro, oferecendo a vantagem de
ciam monopolizados pelo comunismo. Eles, no entanto, vão per- iniciar a evolução, para dar à sociedade uma estrutura orgâni-
tencendo sempre mais a toda a humanidade, porque representam ca, que representa uma fase de vida mais evoluída e perfeita.
o produto do momento histórico atual, estabelecendo um novo Ora, o comunismo é filho de uma revolução, cujo objetivo é
grau na ascensão evolutiva. Este documento corrobora as nossas sempre introduzir novos fermentos à vida. Mas a conquista é
afirmações e previsões a respeito das futuras relações entre capi- fatigante, cheia de lutas e contradições, de erros e excessos,
talismo e Igreja de um lado e comunismo do outro. como costumamos ver acontecer. É muito custosa a escalada
Não vamos analisar todo o documento. Desejamos tão so- para novas posições biológicas. A liberdade, indubitavelmente,
mente resumir e focalizar, para nossa orientação, alguns dos oferece vantagens, mas também implica um estado de discipli-
principais problemas tratados por ele, sobre os quais a Encíclica na que a limita, quando tal condição conduz à organicidade
chamou a nossa atenção. Conforme já dissemos em outro lugar, própria de uma civilização mais avançada.
capitalismo e comunismo não constituem senão as duas posi- Na verdade trata-se de um movimento que, emergindo da
ções extremas de uma mesma verdade, que se alcança tomando profundidade, tende a conduzir para novas formas de vida soci-
aquilo que de melhor cada uma tem e eliminando o restante. Is- al, penetrando hoje em toda a humanidade. O momento históri-
to é devido ao fato de que cada extremo tem os seus méritos co aceita tal movimento, consistindo isto uma prova de que este
num sentido e os seus defeitos no sentido oposto, justamente é oportuno, tendo chegado a sua hora. É certo que o velho ho-
porque cada um, como extremo, é unilateral, sendo feito, por- mem desejaria permanecer nos velhos esquemas do passado.
tanto, para ser compensado, isto é, corrigido com seu elemento Mas os princípios de justiça social estão-se expandindo em todo
oposto, que lhe é complementar. Trata-se de um processo que, o mundo, penetrando profundamente, em forma de previdências
em nosso universo, emborcado no AS, é utilizado pela vida pa- e providências até há pouco desconhecidas, nos mais diversos
ra formar uma unidade, através da utilização do método de con- países. Poder-se-ia dizer que o comunismo é um dos efeitos
fronto entre contrários, com o qual ela costuma realizar suas mais bem observados de um fenômeno de manifestação univer-
construções, colocando em luta entre si – primeiro com o conta- sal, sendo o resultado de um estado de maturação da humanida-
to, depois com o choque e, finalmente, através da luta demoli- de, que se prepara para assumir formas de vida social mais evo-
dora – dois termos antagônicos, para que cada um se compense luídas. De fato, este movimento não é isolado, sendo acompa-
e possa assim corrigir seus próprios erros. No momento atual, nhado por fatores de desenvolvimento paralelos – necessários
estamos ainda na fase do contato e do choque, no qual cada par- para o êxito de sua afirmação – tais como as descobertas cientí-
te permanece fechada no seu recinto, em posição de ataque e ficas, a rapidez nas comunicações, o aumento da cultura, a ele-
defesa, vendo e exaltando apenas os próprios méritos, mas sem vação do nível de vida etc. Assim tudo é rapidamente transmi-
reconhecer seus próprios defeitos, dos quais acusa a parte opos- tido e comunicado, encontrando os meios para se realizar.
ta, e sem admitir nesta os respectivos méritos. Assim, ouvindo Desse modo, aquilo que um lado tem de melhor é efetiva-
as duas partes, pode-se conhecer toda a verdade. mente assimilado pelo outro, estendendo-se até ao campo opos-
Quais são estes méritos e defeitos? O capitalismo exalta a to. O resultado que mais vale e serve à vida é então selecionado
livre iniciativa; o comunismo, a justiça social. Mas cada uma e utilizado. Assim os princípios de justiça social, lançados pelo
das duas afirmações tem as suas vantagens e as suas desvanta- comunismo, transmitiram-se aos países capitalistas, aperfeiço-
gens. A liberdade econômica, sustentada pelo capitalismo, ando-lhes o sistema de liberdade, através do reconhecimento de
conduz sem dúvida à produção, porque corresponde à natureza muitos direitos anteriormente ignorados. Ao mesmo tempo, o
egoísta do homem, que, quando se trata de seus próprios inte- princípio da livre iniciativa, lançado pelo capitalismo, começa a
resses, trabalha mais. No entanto este sistema resulta em uma ser reconhecido nos países comunistas, difundindo maior res-
injustiça, dada pela desigualdade econômica. Do lado oposto, a peito pelo indivíduo e pela liberdade. Assim, o comunismo ob-
justiça social, sustentada pelo comunismo, conduz a uma cole- tém maior rendimento humano, enquanto os países capitalistas
tivização, trazendo sem dúvida igualdade. No entanto tal con- vivem com mais justiça social. Ambos vão-se avizinhando,
dição suprime a livre iniciativa do indivíduo, levando à impo- compreendendo e assimilando um ao outro.
sição de um regime de produção forçada, ao qual a natureza O sentido profundo de todo este trabalho é chegar a amal-
humana se rebela, com resultado negativo, porque se trabalha gamar num só organismo esta massa humana, feita de elementos
muito e se produz pouco. ansiosos por se dominarem e destruírem reciprocamente, porque
A primeira coisa que se deveria ter em conta ao elevar o foram construídos assim pelo seu animalesco passado biológico.
edifício (tipo social) é o material (o homem) com o qual se de- Também aqui, outros fatores de desenvolvimento paralelos con-
ve construí-lo. Os sistemas econômicos e políticos procuram correm para alcançar aquela unificação, como a concentração do
34 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
poder mundial em duas ou três nações principais, em torno das melhores condições de vida obriga a um maior sentido de res-
quais giram todas as outras como satélites, de modo que o po- ponsabilidade, necessário para mantê-las. A coletivização à qual
tencial bélico atômico fique restringido a poucas mãos, para su- aspiram os que não têm nada significa vida responsável, e não
primir não somente as pequenas guerras, que não serão mais to- apenas assalto à propriedade de outrem, que se condena, quando
leradas, mas também as grandes, porque não haverá mais ven- pertence aos outros, mas que se está disposto a manter à maneira
cedores, e sim apenas perdedores, com a destruição de todos. capitalista, quando pertence a si próprio, seguindo assim o mes-
Ora, uma Igreja espiritualizada não podia ser contrária a es- mo instinto egoísta, o qual é condenado nos outros, mas consi-
te impulso ascensional que hoje domina o momento histórico. derado legítimo, quando se trata do próprio interesse. É assim
Este é o fato novo que aquela Encíclica representa. Procurando que o homem da rua entende a justiça social, embora ela seja ou-
realizar a justiça social, a Igreja não contradiz os seus princí- tra coisa. Não se trata de seguir o atávico impulso à conquista,
pios evangélicos. É verdade que, em tão vasto processo, ela mas sim de caminhar em direção a uma fase mais evoluída de
chega somente agora, atrasada. Mas é verdade também que so- convivência, numa posição de organicidade social, o que traz
mente o fato de possuir princípios eternos não é suficiente para consigo um estado de vida disciplinada, na medida em que é de-
poder realizá-los, sendo necessário ter chegado o momento his- ver trabalhar com responsabilidade e fazer planejamento famili-
tórico adequado, no qual se atinge o grau de maturação evoluti- ar, através do controle de natalidade. E isto é algo muito diferen-
vo requerido. Nada pode acontecer fora da sua hora, enquanto o te daquela fácil liberdade dos sonhadores do paraíso na Terra!
tempo não levar o transformismo até ao ponto devido, sendo es- Os fenômenos são conexos, de modo que o econômico está
te o único evento capaz de reunir todos os elementos necessá- ligado ao demográfico. Disso se ressentem sobretudo os pobres,
rios para a realização. Assim virá o dia, quem sabe ainda quão cuja primeira riqueza consiste na multiplicação da carne, o que
longínquo, da total aplicação do Evangelho. significa multiplicar as bocas cuja fome se deve saciar. O uso
O que dá razão ao capitalismo é a imaturidade do homem que os países subdesenvolvidos são mais prontos a fazer das
para saber comportar-se coletivamente. O que dá razão ao co- ajudas recebidas é utilizá-las para multiplicar ainda mais a sua
munismo é a necessidade de se recorrer à força para se conse- miséria, e não para trabalhar e produzir. O resultado da exces-
guir obter a justiça social. Tudo isto se justifica, porque o ho- siva proliferação é sempre um abaixamento do nível de vida.
mem deseja permanecer na sua posição. Que não exista outro Ora, o novo modo de viver deverá ser regulado para todos por
meio para impor a justiça social temos aí a prova, dada pelo fa- um princípio de responsabilidade. Os povos ricos terão o dever
to de que, com o amor e as boas palavras, bem pouco se reali- de ajudar os povos pobres. Estes, por sua vez, terão o direito de
zou do Evangelho até agora, nestes dois mil anos. Era necessá- ser ajudados, mas terão também o dever de fazer frutificar com
rio chegar à maturidade mental de hoje, para compreender que o seu trabalho as ajudas recebidas, para não permanecerem
o desinteresse pela sorte do próximo é um prejuízo coletivo, sempre como um peso, sendo que aqueles terão o direito de in-
que acaba por golpear também o indivíduo. Nos habituamos a tervir, para que, na sua inconsciência, estes não multipliquem
acreditar que, quando uma coisa pertence a todos, ela, justa- ao infinito as bocas para matar a fome. Em um regime de res-
mente por esse motivo, não é de ninguém, podendo ser, portan- ponsabilidade, com direitos e deveres, pelo qual somente se po-
to, negligenciada e destruída. Desta forma acredita-se que o de ter direito quando se admite a necessidade de se cumprir os
mal, quando é feito aos outros, não é mal, porque não foi contra próprios deveres, os irresponsáveis devem ser constrangidos a
nós. No entanto, pelo contrário, estamos todos no mesmo mun- reentrar na ordem. Assim, quem atenta contra o bem da coleti-
do, onde é sempre mais difícil nos isolarmos. Assim não pode vidade será considerado socialmente perigoso.
haver um rico feliz, enquanto ao seu lado existir um pobre. Por Quando a sociedade não assumia a obrigação para com os
isso as várias classes sociais tendem a se reagrupar em diversos deserdados, podia ficar livre da sua procriação, porque eles esta-
bairros urbanos. Mas a tendência moderna não é de afastar o vam abandonados e não recaíam no balanço coletivo. Eis que ao
pobre, ação que nada resolve, mas sim erguê-lo da sua pobreza, direito do pobre de ser protegido, corresponde o dever do traba-
de modo que ele não infete mais o corpo social com esta chaga. lho produtivo e da procriação proporcional aos meios de que
A tendência é no sentido de atingir uma homogeneização em dispõe. A justiça social não pode ser feita somente com os pró-
um nível médio, fazendo de um mínimo de bem estar um fe- prios direitos e os deveres dos outros. Fala-se muito de explora-
nômeno coletivo, resultado da colaboração. ção, no entanto, para ser imparcial, pode-se afirmar que também
Hoje ricos e pobres se opõem reciprocamente, em forma de é explorador o indivíduo demasiadamente rico e desonesto, que
luta de classes. Mas o tipo de homem que constitui estas classes monopoliza tudo para si, bem como o pobre desonesto, que
é o mesmo. Então condenar ou exaltar conforme a posição soci- aproveita da justiça social para ser sustentado por quem traba-
al, sem levar em conta os caracteres pessoais, não corresponde à lha. Até a beneficência, como tudo hoje, tende a tomar uma
realidade. Não se pode, portanto, tomar um atitude única e sim- forma organizada, que enquadra não só o benfeitor, mas também
ples a favor dos ricos ou dos pobres, porque todos são levados o beneficiado. Ela não é mais um ato desordenado de piedade, à
aos mesmos abusos, porém em posições diversas. Na prática mercê de impulsos emotivos, mas sim uma coordenação de pro-
pode tratar-se de um indivíduo demasiado rico e desonesto, ao vidências calculadas, que presume em todos uma consciência
qual é justo então privar do supérfluo. Mas pode também tratar- dos próprios direitos e deveres. É exatamente este novo aspecto
se de um indivíduo pouco rico e honesto, que, através do traba- orgânico da beneficência que impõe a necessidade de serem
lho, construiu uma modesta base para viver civilizadamente e, preventivamente eliminadas as causas deste mal econômico com
por isso, merece gozar o fruto dos seus esforços, não tendo ne- uma sábia conduta, para que ele não aconteça.
nhuma obrigação de distribuí-lo com os pobres, que, podendo Julgou-se resolver o problema econômico com a abolição da
fazer aquele trabalho, não o fizeram, porque não tiveram vonta- propriedade. Mas esta faz parte da natureza humana e da estrutu-
de de fazê-lo. Da mesma forma, é justo que o pobre zombador, ra do ambiente terrestre onde deve atuar. Assim, onde se aboliu
preguiçoso e desonesto, inclinado ao ócio, ao vício e ao esban- a propriedade privada, ela ressurgiu como propriedade de esta-
jamento, também sofra. Mas é necessário distinguir este caso de do. Aconteceu a mesma coisa com as ordens religiosas pobres,
um outro, definido pelo pobre cheio de boa vontade, que, verda- que resolveram o problema de igual maneira, conservando a
deiro desgraçado, não pôde por força maior sair de sua pobreza. propriedade, mas fazendo-a passar do indivíduo à coletividade.
Tudo isto nos mostra um outro aspecto da questão. Ora, se o Explica-se este impulso abolicionista como reação aos abusos
pobre está hoje adquirindo direitos, isto implica para ele também que se fizeram da propriedade no passado. Ela, de fato, era um
o cumprimento dos correspondentes deveres. A passagem para direito absoluto, que incluía até a escravidão sobre as pessoas.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 35
Para corrigi-lo, hoje se desejaria fazer o oposto. Mas o homem constrangendo os indivíduos a permanecer na ordem. Pelo que
se encontra a milhares de milhas distante da possibilidade de ser podemos observar, a condição de viver em uma estado sem vio-
conduzido a um evangélico desprendimento dos bens. Quando lência foi alcançada não por uma eficiente exortação evangélica,
na Idade Média se quis praticá-lo nas ordens religiosas, ele se mas sim pela presença de uma sanção penal. O uso da força não
transformou num meio de se fazer sustentar com as esmolas do se pode disciplinar senão com o uso de uma força maior.
trabalho de outrem. Assim a espiritualidade se tornou parasitis- Eis então que à paz entre as nações não se poderá chegar
mo e obstáculo ao trabalho produtivo. Tais renúncias podem in- senão com o mesmo sistema, através da formação de um poder
teressar ao evoluído, exceção na Terra, mas não ao tipo médio central superior a elas, capaz de impor a não violência. Hoje es-
normal, adaptado ao mundo e feito para permanecer nele. O ta nova posição política mundial está em formação, encontran-
desprendimento evangélico perante o trabalho e a produção, que do-se numa fase de tentativa, na qual as nações maiores procu-
são a base do bem estar, tornou-se negativo, assim como foi ne- ram sobrepor-se às menores, o que acabará por construir uma
gativa a abolição da propriedade nos países comunistas. Nos nova ordem mundial. Se esta conseguir formar-se e estabilizar-
dois extremos opostos, a mesma tentativa contra o instituto da se, como aconteceu com os indivíduos de algumas nações, te-
propriedade produziu os mesmos resultados. remos uma ordem pública internacional que tornará possível
A solução não está em nenhum dos dois extremos, não se uma paz mundial estável. Serão punidas como criminosas as
encontrando nem na propriedade absoluta, nem na sua abolição. nações rebeldes à lei comum, que será um consenso livremente
O problema se resolve conservando o direito a ela – dado que, aceito por elas ou, pelo menos, por uma sua maioria.
para fazer o homem se mover, é necessário deixar-lhe o fruto Hoje estas grandes unidades coletivas ainda vivem sem lei,
do seu trabalho, que ele por instinto sente como seu e sem o no estado anárquico do selvagem. No passado, o uso da força
qual não produz – mas ao mesmo tempo limitando aquele direi- entre os indivíduos, na guerra, era considerado um ato de valor,
to, de modo que este não possa tornar-se exploração e injustiça de modo que o desabafo dos mais baixos instintos era conside-
social. Em resumo, trata-se de uma propriedade correta e disci- rado um gesto heroico. Porém, quanto mais o homem se civili-
plinada, entendida como interesse não só individual mas tam- za, tanto mais ele vê que aquela glória, conquistada assim, ba-
bém coletivo. A solução está no ponto intermediário, contendo seia-se em instintos que, durante a paz, são julgados delinquên-
o melhor de cada um, onde se possam encontrar, compensando cia. Temos então esta contradição, na qual o mesmo ato, tal
méritos e defeitos, os dois extremos opostos: capitalismo e co- como matar, é considerado delito no interior de uma nação, en-
munismo. Isto é o que de fato está acontecendo no mundo, con- quanto é julgado dever e heroísmo, sendo premiado, quando
firmando as observações com as quais iniciamos este tema. cumprido contra o povo de outra nação. No segundo caso,
Hoje a luta entre ricos e pobres não é mais uma restrita luta quem não cumpre tal dever é julgado vil, enquanto, no primeiro
de classes, mas sim uma luta entre povos. O problema não é caso, quem o pratica é condenado como um assassino.
mais de ordem interna, e sim mundial. Ele não está mais ligado Esta é a realidade da Terra. Ela nos mostra que o Evangelho
apenas à justiça social, pois dele depende a manutenção da paz. é uma outra realidade, muito diferente, cuja finalidade é levar ao
Isto porque os povos pobres assaltam os povos ricos, sendo este Céu, sendo adaptada a quem está maduro para atingi-lo, mas não
um argumento bastante persuasivo. Depois de dois mil anos de para quem precisa viver na Terra, pelo menos no mundo atual,
pregação evangélica, passa-se das palavras aos fatos. A ajuda que nada tem de civilizado. Aqui, aplicar o Evangelho a sério
aos necessitados não é mais uma generosidade do benfeitor, significa imitar o Cristo, alcançando uma gloriosa ressurreição
pois está-se tornando cada vez mais um direito do beneficiado. no Céu, mas sofrendo uma terrível crucificação na Terra. É des-
Hoje a norma evangélica se tornou ação, como jamais o tinha ta Terra que falamos aqui. As religiões fazem aquilo que podem
sido até agora, porque encontrou o modo de se fazer valer, im- para amenizar tais condições, mas com escassos resultados. Os
posta por uma autoridade competente. Desprovido de uma san- sistemas políticos e sociais, assim como as religiões, devem fa-
ção, aquele direito tinha permanecido somente como teoria. As- zer as contas com o mesmo tipo de homem. As leis do seu nível
sim, de simples exortação, o Evangelho pode tornar-se realiza- evolutivo dizem para ele não fazer nada, se isto não lhe trouxer
ção prática, porque os povos pobres estão se organizando con- alguma vantagem. Por isso, para fazê-lo mover-se, são coloca-
tra os ricos, levando o mundo para próximo de uma guerra das as miragens da vida. Assim, cada dia, ele pensa sobretudo
atômica. Com isto, os povos desenvolvidos sentiram o coração em resolver o seu problema fundamental, que é fazer avançar a
pleno de amor pelos subdesenvolvidos. sua vida, utilizando tudo para isso, Deus, o diabo, as religiões, as
Até mesmo o problema demográfico, examinado acima, to- antirreligiões, o cristianismo, a democracia, o comunismo e os
ma hoje dimensões mundiais, representando como tal uma outra ideais de qualquer tipo, sempre com a mesma finalidade. Deste
ameaça. Não se trata mais do indivíduo pobre que pede esmola, modo, transforma-se a religião em hipocrisia, a liberdade em in-
mas de massas enormes de povos esfaimados, que tendem a pro- justiça, a igualdade e a justiça social em regimes ditatoriais e po-
liferar e, com a anulação das distâncias, tornam-se vizinhos. O licialescos, submetidos a opressão política e trabalhos forçados.
seu aumento diário constitui um perigo crescente. A população Reaparece assim por toda a parte, em forma de força ou de astú-
mundial hoje é de cerca de três bilhões e meio. Calcula-se que cia, a lei fundamental da luta pela vida. O poder em qualquer re-
chegaremos a 4 bilhões em 1981, a 5 em 1999, a 6 em 2013, a 7 gime é sempre o resultado de uma conquista. A igualdade, pe-
em 2025 e a 8 em 2033. Se hoje a população cresce cerca de 45 rante a insuprimível realidade da vida, permanece sempre teóri-
milhões habitantes por ano, em 2.033 este aumento será de 100 ca. O operário, em vez de ser explorado por uma patrão, é explo-
milhões. Continuando ainda, seremos 10 bilhões de pessoas em rado pelo Estado. Muda a forma, mas permanece a substância.
2.050 e assim por diante. Com tão vertiginoso aumento de bocas Nada há de realmente novo, a não ser aquilo que pode conduzir
para matar a fome, a luta entre povos ricos e pobres, cada vez a evolução. Mas esta é hoje apenas progresso tecnológico, e não
mais armados de bombas atômicas, torna-se uma ameaça alar- moral, sendo portanto somente exterior, o que deixa o homem
mante. É sobre o fundo vertiginoso de tais previsões, que se de- como era antes. Ele é o último e o mais difícil de se modificar.
senvolve a Encíclica Populorum Progressio. Hoje, são pedidas e obtidas novas liberdades. Mas deve-se
O problema mais escaldante de nosso tempo, no qual se con- ainda atingir a maturidade necessária para saber fazer bom uso
jugam e culminam os outros, é o problema da manutenção da delas, condição sem a qual corre-se o risco de tudo se resolver
paz. A tendência e a esperança é chegar à supressão da violência no abuso e no dano que se lhe segue. O homem quer a liberdade,
entre as nações. Entre os indivíduos já se chegou a isto por meio mas apenas para se libertar da disciplina. Porém a liberdade pre-
da autoridade estatal, que, armada de força, pode impor-se, sume e exige, pelo contrário, uma disciplina maior, livre, mas
36 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
responsável, feita de autodisciplina interior, mais difícil de pos- mento, o qual se verifica sempre, não obstante, pelo fato de re-
suir do que aquela estabelecida pela obediência, que, submeten- presentar um emborcamento do tipo de economia vigente, seja
do-se a uma autoridade, é função desta, sendo somente exterior julgado um absurdo pelo mundo. Observemos o fato.
e irresponsável. Pediu-se e se obteve uma liberdade de consci- O fenômeno econômico, segundo o qual se pesam e mane-
ência. Será que esta cessão de poderes de autodecisão ao indiví- jam os valores necessários à vida, reflete a dupla estrutura de
duo, por parte da autoridade, encontrará nele a capacidade de nosso mundo, onde encontramos presentes duas leis opostas: a
saber assumir o comando de si próprio? A sua posição agora não lei do AS, que está radicada no passado e ainda sobrevive, e a
é tão fácil como ele poderia imaginar, porque evadir-se de uma lei do S, que está sendo formada e antecipa o futuro. Esta se-
disciplina terrena não significa de fato impunidade, quando se gunda lei entra em conflito com a primeira, a fim de substituí-
cai na desordem. As consequências das próprias ações se pagam la, ao mesmo tempo que, dentro desta última, os indivíduos
da mesma forma, mesmo que se suprima qualquer autoridade também se combatem entre si, para se esmagarem reciproca-
em pleno regime de liberdade. Paga-se até mais do que quando mente. Mas a luta serve à vida, porquanto, no fundo, significa
se estava sob aquela autoridade, pois não se pode descarregar a colaboração entre contrários, que, enquanto procuram elidir-se
própria responsabilidade, uma vez que, conhecendo-se mais, entre si, completam-se. Trata-se de destruir para reconstruir e,
tem-se o dever de se tornar mais consciente e responsável. Com assim, renovar-se e evoluir. Desse modo, o que é danoso não é
isso, a disciplina necessária para se manter dentro da ordem es- a peleja em si mesma, mas sim aquela luta de tipo inferior, tra-
tabelecida permanece sempre, porque trata-se de uma ordem in- vada no nível animal, quando ela tem de ser praticada pelo evo-
violável, fixada por leis invisíveis e interiores às coisas, as quais, luído, que se vê condenado a realizá-la nestas condições, ao in-
reagindo automaticamente, não admitem as escapatórias huma- vés de no plano intelectual e espiritual, onde ele é mais apto.
nas e respondem à nossa conduta, restituindo-nos em bem ou Esta oposição de leis coexistentes no mesmo terreno se
mal tudo que livremente desejamos. Mesmo que todas as autori- explica e é justificada, porque a humanidade se encontra nu-
dades terrenas fossem destruídas, as leis da vida permaneceriam. ma fase intermediária entre o S e o AS, dada por um contínuo
A existência é regida por uma ordem codificada numa lei escrita transformismo evolutivo, que a leva do AS para o S. Tudo
no íntimo das coisas, que funciona sempre automaticamente, re- pode ser entendido e utilizado de dois modos diversos, sendo
gendo e guiando os seus movimentos. A ilusão do homem está suscetível de constante emborcamento. Assim a moral, o
em crer que a disciplina esteja nas leis humanas, sendo assim le- Evangelho e o ideal podem ser compreendidos tanto como
vado a pensar que, uma vez afastadas estas, ele possa gozar de uma via de aperfeiçoamento, como um meio para desfrutar a
uma liberdade ilimitada. Falta-lhe compreender que a disciplina ingenuidade dos seus praticantes. Da mesma forma, a religião
sempre permanece e sabe fazer-se valer. pode ser entendida e usada como virtude apropriada para as-
Eis que, na verdade, conquistar liberdade significa dever cender, mas também pode ser empregada para descobrir os
formar para si uma consciência capaz de saber dirigir a si mes- defeitos dos outros e, assim, agredi-los nos pontos mais fra-
ma, assumindo as próprias responsabilidades em proporção à cos. Na Terra, uma lei, uma norma ou uma moral podem ser
independência conquistada, tanto mais quanto mais a autorida- usadas no sentido oposto ao verdadeiro, sendo possível inver-
de se retira para trás, deixando-nos livres. Assim a vida não se ter tudo que seja de tipo S, utilizando-o de uma forma negati-
torna mais fácil, e sim mais séria, com mais problemas para re- va, mesmo mantendo sua aparência de positivo.
solver, cada um por si, sob risco de ter de pagar pessoalmente Desse modo, segundo os princípios do S, defende-se a não-
as consequências em caso de erro. Então ninguém mais faz para resistência, como quer o Evangelho. Então, num regime de or-
o indivíduo o serviço de dirigi-lo, de modo que as consequên- dem, a defesa deveria ser confiada à justiça. Mas a realidade é o
cias não podem descarregar-se senão sobre ele próprio. Hoje o AS, onde a defesa é confiada às armas de cada um. Por isso,
homem se encontra sozinho com a sua consciência, no momen- quando se descobre que o vizinho não as tem ou, se as possui,
to crítico da escolha. A liberdade lhe permite o mais fácil cami- não as usa por amor ao Evangelho, então procura-se esmagá-lo
nho da descida, em direção à desordem, mas este caminho leva imediatamente, pois, uma vez que se pode agir impunemente,
à ruína e ao sofrimento. Ele deve saber resistir à tentação e es- acredita-se que não há razão para não fazê-lo.
colher o caminho da subida, em direção à ordem, que é o mais Não é verdade que o pecado é nefasto, sendo coisa santa ex-
difícil, porém conduz à salvação e à alegria. tirpá-lo? Por que então não fazer esta coisa santa, condenando e
Hoje para o homem começa a vida de adulto, de modo que perseguindo o pecador? Como é fácil e cômodo fazer o embor-
ele deve, portanto, começar a fazer à sua custa as experiências camento das coisas, que permite aplicar os princípios do S, dis-
do adulto. Ele verá então que a liberdade é um poço de perigos, torcendo-os na forma de AS!
cercado por uma jaula de responsabilidades, e entenderá que a Isto pode acontecer porque, devido à evolução, vivemos em
vida do homem livre, quando comparada à do menino que deve um mundo que não é de tipo único, mas sim composto por dois
obedecer, é muito mais difícil. Mas tudo isto é necessário para modelos contrários, com os quais se mede o valor de uma
o indivíduo aprender, sendo que, conforme está escrito nas leis mesma coisa. As duas apreciações coexistem e as encontramos
da vida, cada um deve evoluir à sua própria custa. presentes em cada ponto e caso. Tudo pode ser visto e utilizado
tanto em função do S, como do AS. Eis que, a cada passo, a re-
VIII. INVESTIMENTOS NO BANCO DE DEUS alidade pode ser interpretada de dois modos diversos, podendo
assumir, portanto, dois valores opostos. O dualismo a divide em
A história que estamos narrando foi vivida em função dos dois aspectos, fato que complica o jogo da vida, porquanto lhe
mais diversos problemas individuais e sociais, condição que a atribui um sentido duplo, deslocando continuamente o valor das
faz transcender os limites do fato pessoal, de interesse muito re- coisas. Se digo a verdade, ela pode ser entendida como mentira.
lativo. Para compreendê-la, é necessário aqui enfrentar e resol- Se digo uma mentira, posso conseguir que ela seja aceita como
ver tais problemas. Trata-se de um homem que viveu a seu mo- verdade. Assim, o mais alto ideal pode tornar-se hipocrisia,
do, contra a corrente, e que, tendo sido condenado por agir as- sendo possível também a virtude transformar-se em um engano.
sim, apresenta agora a justificação racional da sua conduta, ex- A religião pode ser compreendida, no seu verdadeiro sentido,
plicando quais são os erros da lógica do mundo. Assim, o tema como uma forma de aproximação do S, mas também pode ser
que estamos desenvolvendo aqui, ligados à renúncia aos bens entendida na direção oposta, em forma de AS, como um meio
materiais, leva-nos a observar, com psicologia positiva, um es- para desfrutar a ingenuidade dos crentes. Então não temos mais
tranho tipo de economia e das leis que lhe regulam o funciona- lobos e ovelhas, mas sim lobos camuflados de ovelhas, para
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 37
melhor devorá-las. Tais lobos são os mais zelosos pregadores O outro tipo de economia é regido por uma psicologia to-
do Evangelho. Gritam mais alto que os honestos, pois estes talmente diversa. Agora, em vez de trabalharem como rivais,
cuidam mais de praticar do que de pregar. separados pelo egoísmo, no qual se fecham um contra o outro,
Na prática a bondade evangélica pode ser reduzida a uma os dois termos cooperam, unificados pelo altruísmo, que os leva
técnica para formar desarmados, a fim de favorecer os devora- a se abrirem um para o outro. Segue-se daí que o método de
dores. Não é possível acontecer de outro modo num mundo que concórdia forçada, imposta num regime de discórdia e sempre
está cheio de lobos (AS) à procura das boas ovelhas de Deus pronta a se romper, é substituído pelo método de harmonia es-
(S), para devorá-las. A virtude dos melhores pode resolver-se pontânea, obtida por um processo normal, e não excepcional,
num lauto banquete para os piores. Então a não-resistência do tendo como consequência a fixação de um regime de ordem, es-
Evangelho serve somente para fabricar mártires, o que significa tável e definitivo. Ao regime de desconfiança se substitui um de
primeiramente alimentar o sadismo dos perseguidores, para de- confiança mútua, no qual desaparece a tendência à exploração
pois ser desfrutado pelos sectários da religião, que lhes glorifi- recíproca, de modo que todos se ajudam uns aos outros, toman-
cam a memória para a grandeza do próprio grupo, utilizando-a do em consideração não apenas o interesse próprio mas também
em sua própria vantagem. Mesmo o rico que renuncia, seguindo o alheio. Então, a ordem e a justiça não são mais alcançadas por
o Evangelho, pode parecer um perdulário, assim como a esmola imposição de uma disciplina forçada, sobreposta a forças rivais,
pode ser um estímulo ao ócio para o pobre. Em virtude desta para constrangê-las a ficar dentro de limites estabelecidos, que
duplicidade de apreciação, o santo pode parecer um louco se- elas procuram violar a cada passo. Não há necessidade alguma
meador de desordem, assim como quem renuncia pode tornar- de controles policiais e métodos coativos para conter os viola-
se um parasita que pesa sobre a sociedade. Da mesma forma, o dores. Em suma, vive-se uma economia aberta, nos antípodas
conselho evangélico: “Não vos preocupeis com o amanhã; a daquela que, mantendo suas portas fechadas, com barreiras le-
cada dia basta sua tarefa”, pode ser entendido como imprevi- vantadas a cada passo – necessárias para impedir aos desones-
dência de um inconsciente, assim como a expressão “jesuíta” tos violarem a ordem na qual se equilibram direitos e deveres
pode ter um significado diferente de “homem de Cristo”. Assim de cada um – é vivida atualmente.
um ato, quando visto em função do S, pode ser sublime, mas, se Os valores de troca na economia terrestre são representados
praticado como AS, pode tornar-se uma culpa. por vários produtos e mercadorias, sendo sobretudo o dinheiro
Depois dessas premissas sobre a dupla estrutura de nosso que destila em síntese a utilidade representada por eles. Surge
mundo, podemos compreender como, ao lado da economia vi- assim o problema da valorização, dado pela contabilidade com
gente na Terra, caracterizada pelas qualidades do AS, é possível a qual se dá a cada produto um determinado preço, conforme
existir outro tipo oposto, com tendência a assumir as qualidades seu custo de produção e sua utilidade de consumo. Os elemen-
do S. Este corresponde ao ideal, antecipação do futuro; o outro, tos constitutivos do outro tipo de economia também estão su-
à realidade atual, sobrevivência do passado. Os princípios sobre jeitos à valorização e contabilidade, mas segundo outros prin-
os quais se baseia a economia do mundo são o egoísmo, o sepa- cípios, devido à sua diferente natureza. Se ambas economias
ratismo e a rivalidade, enquanto a outra parte, que poderemos podem ter a sua contabilidade, devemos admitir também que
chamar economia do céu, fundamenta-se no altruísmo, na uni- cada uma possa ter o seu tipo de instituto bancário. Podemos,
ficação e na cooperação. Se a luta é a lei de nosso mundo, é na- assim, ter dois modelos opostos: um cujo ponto de referência é
tural que, neste plano, ela domine também o fenômeno econô- o AS, e outro cujo ponto de referência é o S. O primeiro pode
mico e que este, em cada um dos dois níveis, contenha valores ser chamado “banco do mundo”, o segundo, “banco de Deus”.
e se realize com métodos de tipo oposto. O fato de existirem dois sistemas nos permite observar o dife-
A economia terrestre apresenta-se dividida entre dois rente funcionamento de cada um.
elementos separados nos seus respectivos castelos, onde cada Nos dois casos, são diferentes as relações entre indivíduo e
um permanece fechado na torre do próprio egoísmo, por cu- banco, entendendo-se este último como o órgão ao qual o pri-
jas portas se faz o fluxo de qualquer coisa que saia dela ou meiro confia as suas economias e valores. Uma vez que cada
que entre, vinda do castelo constituído pelo egoísmo alheio. um dos dois bancos é regido pelo seu próprio tipo de economia,
Verifica-se então a troca, que é a base do fenômeno econô- AS ou S, é lógico que ele funcione conforme os seus respecti-
mico, a qual se realiza quando é reciprocamente vantajosa. vos princípios, acima expostos. O mesmo também ocorre com o
Por isso ela é bem calculada por ambas as partes, sendo pe- indivíduo, cliente do banco. Temos assim duas técnicas diferen-
sada na balança do “do ut des”. A troca se baseia no equilí- tes: uma vigente no mundo, praticada pelo banco do mundo e
brio entre duas forças rivais em luta, sendo que cada uma, seu cliente, e a outra num plano evolutivo mais avançado, utili-
embora tendendo a sobrepujar a outra, permanece reduzida à zada pelo banco de Deus e pelo seu depositante.
justa medida do constrangimento imposto pela reação da par- No banco do mundo vigora uma economia separatista, na
te oposta. Até mesmo o acordo é o resultado de um estado de qual, como vimos suceder com a troca, os dois elementos – in-
guerra, dado por um equilíbrio alcançado entre impulsos con- divíduo e banco – permanecem encerrados no seu próprio ego-
trários. Mais do que isso não é possível obter num regime de ísmo, de modo que a contabilidade se baseia exclusivamente no
luta. A equidade somente pode ser alcançada por mútuas cálculo do próprio interesse individual. A troca se realiza por
concessões do próprio egoísmo em favor do outro, sempre meio de uma ponte, através da qual se estabelece a comunica-
com vista à vantagem própria, ou então por compensação en- ção. Mas os dois castelos que ela une são fechados e armados,
tre direitos e deveres, equilibrando aquisições e concessões, não abrindo suas portas senão em medida calculada e com mo-
para satisfazer assim as exigências igualmente egocêntricas tivos visíveis, cada um no seu próprio interesse, prontos a rea-
dos dois termos opostos. Cada um dos dois procura tirar do gir e a fazer valer os seus direitos, quando estes não forem res-
próximo a maior utilidade possível e valor para si, enquanto peitados. A confiança não vai além desta estreita abertura, es-
o outro, por sua vez, luta para fazer o mesmo. A tendência de tando sempre armada e pronta para a luta. O cliente confia ao
cada uma das duas partes é se aproveitar da outra, tão logo estabelecimento de crédito os seus valores em forma de dinhei-
esta não lhe saiba resistir. Procura-se, todavia, regularizar tal ro, no qual aqueles têm sintetizada a sua essência no plano hu-
estado de luta, disciplinando-lhe os movimentos e estabili- mano, e exige garantias de segurança, que o banco, por sua vez,
zando-lhes os resultados com leis e normas administrativas. oferece para obter os depósitos de que tem necessidade. O titu-
Alcança-se assim uma ordem relativa, sendo este o máximo lar da conta reclama os juros pelo capital que dá, enquanto a
rendimento que se pode obter neste nível. parte contrária os apresenta, porque lhe são úteis os fundos,
38 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
com cuja colocação aufere lucros. O cliente é honesto, porque trativo, de coações disciplinares, de desconfianças e defesas. O
observa as regras impostas pelo banco. Este também é honesto, banco de Deus não engana, não comete erros e nunca entra em
visto que, de outra maneira, ninguém mais lhe confiaria os ca- falência. O interessado é garantido de modo absoluto.
pitais. É verdade que isso, dentro dos devidos limites, significa Embora os valores depositados ali não seja feitos de dinhei-
ordem, embora esta seja relativa, tendo em vista o que pode vir ro, nem por isso eles deixam de ter valor e, portanto, de estar
a ser rompido (por exemplo, o banco pode fechar as portas e sujeitos às leis econômicas. Eles representam um trabalho e,
não restituir o capital). Sucede, porém, que ainda se trata de portanto, um custo de produção; são suscetíveis de propriedade
uma ordem imposta de fora, por parte de cada um dos dois ter- a favor de quem se esforçou para conquistá-los; significam uma
mos sobre o outro, a qual, sendo forçada e mantida pelos im- utilidade para vantagem de quem a possui; podem ser deposita-
pulsos da parte oposta, não está inserida na natureza deste tipo dos no seio da justiça da lei de Deus, na qual se escreve o débi-
de economia, que, pelo contrário, é de rivalidade e luta, ao nível to e o crédito a cargo e a favor de quem os depositou. A conta-
de AS. Além da linha do interesse próprio de cada um dos dois bilidade fica toda registrada com exatidão nos equilíbrios da
termos, não importa nada do outro. Assim não interessa ao cli- Lei, que tudo regula e dirige. Neste grande livro está assinalada
ente se o banco vai à falência, nem importa para este se aquele a conta de cada um, conforme as suas obras, segundo os reais
morre de fome. O acordo de ambas as partes existe somente em valores que ele produziu, seja eles positivos (S) ou negativos
função do próprio egoísmo, rompendo-se tão logo este não seja (AS), calculados de acordo com a justiça divina.
satisfeito. Vemos realizada assim a economia de tipo AS. Não se trata de fantasia. Um dia a ciência descobrirá essas
No banco de Deus vigora uma economia do tipo S, de natu- leis e será capaz de medir esses valores. No volume Queda e
reza não separatista. Nela, os dois elementos, indivíduo e banco, Salvação, calculamos a reação da Lei para tais valores, tanto
não ficam cada um fechado no seu próprio egoísmo, nem res- em bem como em mal. Eles são investimentos que o cliente faz
tringem sua comunicação apenas à estreita ponte do interesse no banco de Deus. Esta reação representa o pagamento que ele
pessoal. Os dois castelos, ao invés de fechados e armados, são recebe no guichê do banco, conforme o valor de bens ou ativo
abertos e comunicantes, de modo que entre eles não passa so- depositado a seu crédito (capital), ou de mal ou passivo acu-
mente a pequena corrente permitida pela abertura apertada e cal- mulado como seu débito (dívidas), que deve ser restituído à
culada, mas todo o fluxo da vida, em qualquer das suas formas, justiça divina. Tais leis são tão positivas como as da Física e
estabelecendo uma troca contínua e universal de valores. Estes da Química, constituindo forças que podem produzir efeitos
não são somente econômicos, com os quais é possível a aquisi- terríveis. Trata-se de uma moral racional, de uma religião cien-
ção de bens materiais, mas também morais e espirituais, que são tífica, cujas leis permanecem verdadeiras e funcionando tanto
igualmente úteis e necessários para a sobrevivência. Trata-se de para os ateus como para quem não as conheça ou não acredite
uma economia mais vasta e completa, abarcando, além dos valo- nelas. Ignorar ou negar as leis da vida não pode impedir que
res do banco do mundo, aqueles mais altos, que são ignorados elas se apliquem aos fatos.
por este e somente podem ser encontrados no banco de Deus. É evidente que nos encontramos perante dois diferentes ti-
Neste banco, a confiança não é limitada, armada e sempre pos de economia, sendo que cada uma delas toma forma e fun-
pronta para a luta, como no outro. O cliente se oferece com ili- ciona no seu próprio banco. Trata-se de economias que perten-
mitada segurança, sem pedir em defesa própria controles e ga- cem a mundos diferentes, correspondendo a dois diferentes ní-
rantias da honestidade do órgão bancário, e isto de modo abso- veis biológicos ou planos de evolução. Constituem, portanto,
luto, pois tem certeza que, automaticamente, não será defrauda- expoentes de dois métodos diversos de vida: um segundo o céu,
do em coisa alguma. Ao invés do cálculo e da luta entre interes- praticado pelo homem justo; e outro segundo o mundo, baseado
ses opostos, tudo funciona dentro de um regime comum e unitá- no egoísmo, na rivalidade, na avidez e no engano. O primeiro é
rio, em perfeita fusão de vantagens, conforme a justiça. Os dois um sistema em equilíbrio estável, no qual basta ser honesto e
termos não são honestos de modo forçado, mas sim espontane- onde tudo funciona automaticamente, em perfeita justiça. O se-
amente, pois eles próprios são constituídos por uma ordem inte- gundo é um sistema de lutas, formado por equilíbrios instáveis,
rior, que, pelo fato de estar inserida na sua natureza, não pode cuja manutenção se dá pela força, que não pode garantir certeza
ser destruída. Com os métodos do S, a justiça não pode ser vio- alguma. No primeiro caso a ordem é alcançada de forma está-
lada. Não existem antagonismos, mas sim acordo completo, fi- vel, bastando se integrar nela pelo cumprimento do próprio de-
nalidades convergentes e funcionamento harmônico, resultando ver, para que tudo funcione bem por si só. Foi assim que o
em uma ajuda recíproca e constante. Evangelho pôde dizer: “Procura acima de tudo o reino de Deus
O banco de Deus atua com princípios diversos daqueles do e a sua justiça, que todo o resto te será dado por acréscimo”
mundo. Ele é amigo do cliente e o ajuda em tudo aquilo que es- (Mateus VI, 53). No segundo caso, a ordem ainda não foi al-
te precisa. Com previdência total, sustém-no em cada necessi- cançada, não existindo no caos outra garantia senão a própria
dade, seja ela qual for; acompanha-o no desenvolvimento de força, através da qual cada indivíduo busca impor-se a todos.
seu destino e no cumprimento dos seus deveres; conforta-o e No primeiro caso, ele vive num mundo de elementos amigos,
ilumina-o moralmente; procura o bem dele e lhe dá forças para no qual todos cooperam reciprocamente, de modo que basta se
que o busque para si, inclusive aquilo de que precisa para viver. unificar, para ter garantida sua sobrevivência, que é sempre o
O cliente, por sua vez, é amigo do banco e o segue, enquadran- problema fundamental. No segundo, o indivíduo está num
do-se disciplinadamente na sua ordem, confiando-lhe todos os mundo de elementos inimigos, com os quais deve ajustar as
seus valores, cumprindo todos seus deveres, obedecendo ao contas a cada passo, se quiser sobreviver. No primeiro caso, é
mesmo regulamento de absoluta honestidade que o estabeleci- função da Lei dar o que cada um espera, não sendo necessário
mento observa, tudo num regime de mútua confiança e de invi- pedir e exigir. No segundo, fica-se abandonado às próprias for-
olável justiça. Cada valor depositado no banco de Deus recebe ças, sendo impossível obter qualquer coisa, a não ser por impo-
os seus juros equitativos, não havendo, quando Ele concede sição, fazendo valer os próprios direitos.
empréstimos, qualquer possibilidade de usura. O valor de cada Usar um ou outro método, servindo-nos deste ou daquele
boa ação dá o seu fruto, que fica propriedade integral de quem a banco, depende do nível evolutivo em que o indivíduo vive e
praticou. Não há rivalidades, nem possibilidade de evasão da labuta. Em nosso mundo, cada um pratica o sistema que mais
justiça; não existe perigo de perda por furto, inflação, desvalo- se adapta à sua natureza e recebe o correspondente tratamento.
rização monetária, crises econômicas, erros de contabilidade, O fato é individual. Cada um põe em movimento o mecanismo
desastres ou guerras; não há necessidade de controle adminis- que deseja e recolhe por sua conta aquilo que semeia. Assim, o
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 39
banco de Deus pode funcionar também na Terra, para vanta- cia, pode ser resolvido de duas maneiras diferentes: ou segundo
gem do indivíduo, se este se encontrar no nível de saber com- a retidão, ou segundo uma guerra de competição contra todos.
portar-se conforme aquele tipo de economia. No entanto, se ele É fácil averiguar quais são os produtos do segundo método,
trabalhar segundo o tipo oposto, o banco também funcionará porque ele é normalmente praticado em nosso mundo, sendo
ao contrário, com todas as consequências desfavoráveis. No possível constatar a que resultados conduz.
fundo, esta ideia de banco significa a presença da Lei, cuja Agora podemos compreender em que consistia a força do
técnica de reações, como acima dizíamos, é representada pela método usado pelo nosso personagem, cujas vicissitudes esta-
respectiva contabilidade, constituindo fenômeno amplamente mos narrando. Se ele sobreviveu, isto foi devido à Divina Pro-
ilustrado por nós em outros lugares. vidência, que funcionou em seu favor, pelo fato de haver ele
Quem tem consciência e conhecimento sabe como funciona investido os seus valores no banco de Deus. Foi assim que ele
o banco de Deus e nele faz honestamente as suas operações, pa- venceu a batalha da sobrevivência, na qual todos estão empe-
ra sua vantagem. Muitos, ao contrário, ignorando tudo isso, nhados a fundo, representando este o maior objetivo a ser al-
aplicam o método terrestre, próprio do involuído, segundo o cançado na vida. A Providência funcionou porque, como se vê
qual o valor consiste em sobrepujar o próximo, prejudicando nesta história, ele havia colocado as causas necessárias para fa-
não somente os seus semelhantes mas também a si mesmos, zê-la funcionar. Sabemos que elas são retidão e espírito de sa-
porque, ao cometerem injustiças, estão defraudando a própria crifício, aliados à realização de um contínuo trabalho para o
Lei, sem compreenderem que, com isso, ao invés de alcançar bem, por um ideal superior. Bastou esta força imponderável pa-
alguma vitória, acabam por se endividar, para depois terem de ra salvar um indivíduo que, humanamente desarmado pelo
pagar tudo a Deus. Isso porque Ele é a própria Lei, à qual nin- Evangelho, estava no meio de uma batalha de avidez desenfre-
guém pode impor-se. Sendo assim, eles apenas se carregam de ada e de egoísmos ferozes. E a sua sobrevivência pode ser con-
dívidas perante a divina justiça, que depois exigirá a restituição siderada como uma grande vitória da vida, à qual, muitas vezes,
de tudo quanto, por lhe ter sido usurpado de seus equilíbrios, nem os mais fortes lutadores conseguem chegar. Eis, portanto,
agora lhe é devido. Em suma, o emprego dos métodos do AS é um fato experimentalmente controlado que vai contra os hábi-
totalmente vão no terreno do S, alcançando até mesmo o efeito tos da natureza no plano biológico humano, os quais consistem
oposto ao desejado, de modo que, em vez de se obter uma van- em liquidar rapidamente quem não aceita a luta e não sabe ven-
tagem, recebe-se apenas um dano, obtendo como resultado a ru- cer neste nível, onde, por enquanto, nosso personagem se en-
ína, e não a vitória. Então a astúcia se revela ignorância; a força contrava vivendo. Como poderia ele triunfar com a renúncia e a
demonstra fraqueza; roubar significa endividar-se; enriquecer é não-resistência, abandonando as armas necessárias e utilizando-
empobrecer; a vitória não é mais do que uma derrota; a utilida- se de meios tão antivitais? Então o método do Evangelho pos-
de não merecida significa uma perda, pois, perante a justiça, sui uma potência que, apesar de não ser enxergada pelo mundo,
constitui um vazio que, depois, é necessário preencher. É peri- conduz à vitória, e isto até mesmo no plano humano, onde tal
goso procurar lesar a justiça de Deus, gozando aquilo que não é método é abertamente repudiado pela vida como um absurdo
merecido. No princípio ou no fim, tudo se paga, como deseja o que leva à morte. Como é que, neste caso, o indivíduo se sal-
banco de Deus. A sua inviolável contabilidade funciona para vou? Existe certamente uma outra potência, mais elevada e
todos, a favor dos justos e em prejuízo dos desonestos. Quanto mais sutil, porém nem por isso menos forte, sendo ela capaz de
mais uma ação é pura, dirigida para o S, tanto mais acaba por vencer também onde vigora a força bruta do mundo.
trazer vantagem no sentido do bem. Quanto mais uma ação é Aqui nos encontramos perante o fato consumado de uma
corrompida, dirigida para o AS, tanto mais acarretará prejuízo inversão dos métodos terrenos e do êxito feliz deste emborca-
no sentido do mal. Esta é a técnica com que se manifesta a Di- mento. Vemos, em suma, o ideal triunfar na Terra, o que signi-
vina Providência. Ela funciona não só ao positivo, em favor de fica a vitória do S em pleno campo do AS. Esse homem teve
quem opera o bem e, portanto, deve receber ajuda, mas também uma esplêndida oportunidade para gozar a vida e não a aprovei-
ao negativo, contra quem pratica o mal e, portanto, merece cas- tou. Porém, mesmo assim, derrotado perante o mundo, não dei-
tigo. Isto é devido não a um Deus pessoal, que esteja ocupado xou de vencer a batalha da sobrevivência. Isto prova que, lá do
com cada um em particular, mas sim a uma lei onipresente, in- fundo do Anti-Sistema, o Sistema faz pressão para subir. Do
serida na vida, que provê automaticamente como tudo deve baixo nível evolutivo da luta, da força e da injustiça, querem
acontecer, de modo que, sobretudo, sempre se faça justiça. emergir a honestidade, a bondade e a justiça, com o propósito
Um exemplo terreno de depósito de valores calculados, não de se afirmarem, porque este é o conteúdo da lei de Deus, cuja
em dinheiro, mas sim como mérito e demérito, nós o encontra- vontade é triunfar sobre todas as potências contrárias. Eis o se-
mos no caso do aluno e do mestre. Se o primeiro estuda e gredo da força do cordeiro contra os lobos devoradores. É as-
aprende, o segundo é obrigado a premiá-lo com boas classifica- sim que o fraco, porque é forte num plano mais alto, consegue
ções e a promovê-lo. Neste caso, o aluno deposita os seus valo- vencer os poderosos da Terra. A arma que o defende é a sua
res intelectuais nas mãos do seu juiz, que constitui o banco no superioridade moral, é o fato de pertencer a um nível biológico
qual, de acordo com a sua contabilidade, tais valores estão de- mais elevado, próximo do S. Pode-se então verificar que o bem,
positados com segurança e podem ser retirados no fim do ano, a retidão e os valores espirituais são forças de tipo positivo e
assim como o homem justo também pode depositar e encontrar constituem também um potencial biológico, porque a vida está
os seus valores morais no banco de Deus. do lado do S, enquanto a morte está do lado do AS. Esta é a ra-
Mas o banco do céu não é apenas contabilmente exato e jus- zão pela qual os métodos do Evangelho podem vencer os méto-
to. Ele também pode antecipar empréstimos, assim como pode dos da Terra, permitindo Cristo afirmar que tinha vencido o
esperar, dilatando o pagamento, conforme as forças do indiví- mundo. Porque a lei de Deus é senhora de tudo, pode-se garan-
duo. Possui uma misericordiosa elasticidade na cobrança, assim tir que, no fim, o S prevalece sobre o AS, fazendo o bem triun-
como uma inteligente bondade em seus empréstimos. A sua fi- far sobre o mal. Quem segue a Lei acaba por personificá-la. En-
nalidade é sempre benéfica e construtiva, estando sempre a fa- tão, os princípios e as forças da Lei tendem a funcionar e a agir
vor da vida e da sua ascensão. A base de todos os direitos pe- sobre ele, tomando corpo na Terra, para se realizarem. Não obs-
rante o banco de Deus é ser um trabalhador honesto. O funda- tante todos os assaltos das forças do mal, a vitória final da vida
mento de todos os direitos diante do banco do mundo é ser forte está na superação e no êxito do espírito.
economicamente, hábil comercialmente e astuto na prática. Eis Este tipo de filosofia evangélica exposta neste volume pode-
que o problema da vitória, sobre a qual se baseia a sobrevivên- rá ser considerado apropriado apenas para os débeis e para os
40 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
vencidos, como consolação às suas custosas renúncias e fatigan- capaz de concebê-Lo. Tal conceito é considerado também um
tes virtudes, podendo ser olhado com desprezo pelos astutos e derivado daquela mente, porquanto ela só pode pensar conforme
pelos fortes, vencedores no mundo. Esta filosofia de bondade as suas qualidades e capacidades de compreensão, estabelecidas
poderá ser qualificada, juntamente com as religiões, como o pela sua própria natureza. Esta, porém, em correspondência ao
ópio dos povos, para fazê-los adormecer na tranquila aceitação dualismo universal, é bipolar, o que, no caso humano, significa
da sua escravatura perante os ricos e os poderosos. Das superio- uma divisão tipo macho e fêmea, cuja estrutura não é somente
res vitórias aqui explicadas o involuído não sabe o que fazer. sexo, mas se aprofunda no tipo biológico e na personalidade.
Então que ele permaneça feliz à sua maneira, no seu próprio Sendo assim, é natural que, em uma mente construída deste mo-
plano. Mas não pense ele que exista desse modo garantia de vi- do, o conceito de Deus também tenha tomado uma forma dupla.
tória, pois é inevitável acabar sendo derrotado. E, neste caso, es- Explica-se, então, a razão pela qual temos dois modelos de di-
ta é a única filosofia que lhe pode abrigar as ruínas, procurando vindade: o masculino e o feminino. Notamos, porém, que, se é
curá-lo novamente. A vida não é feita somente de vencedores, verdadeira esta redução do conceito de Deus ao nível humano,
como sonhava Nietzche na figura do seu super-homem. A maio- também é verdade que a divisão terrena dos sexos corresponde a
ria não é feita de gozadores, mas sim de débeis e vencidos, sen- um princípio universal de bipolaridade, de natureza central peri-
do composta por sofredores que necessitam de uma filosofia pa- férica, que se encontra até em Deus – egocentrismo e irradiação
ra sanear as ruínas, aliviar as dores e salvar os doentes. A vida criadora periférica – sendo esta posição repetida mais em baixo,
tem necessidade não só de vencer no presente, mas também de nos casos do Sol, em volta do qual giram os planetas; do núcleo
preparar o futuro; não só de se afirmar em baixo, mas também atômico, em torno do qual circulam os elétrons; do centro da es-
de subir mais alto. Se ela luta para se conservar, a única finali- fera, em torno do qual se estabelece a periferia; etc.
dade disto é subir, pois na subida encontra-se a salvação. A his- É certo que Deus existe por si mesmo, totalmente indepen-
tória que estamos contando poderá ser de péssimo exemplo na dente dessas concessões com que o homem, servindo-se para
Terra, onde se buscam coisas bem diferentes. Mas esta é a narra- isso dos seus meios intelectivos, pode imaginá-Lo para os fins
tiva de um homem que sofreu de olhos bem abertos, procurando da sua vida. Mas é também aceitável que o conceito de Deus
compreender e depois superar a dor, utilizando-a para o bem. feito pelo homem seja uma projeção do seu mundo biológico,
Por isso quem leva uma vida sem dificuldades, ainda que não se único campo de sua experiência e conhecimento. Isto estabele-
interesse por esta história, deve ao menos ter um pouco de res- ce os limites da sua capacidade de conceber. Assim, por im-
peito por aqueles cuja a existência é dura. E estes são muitos. pulso de evolução, temos certamente uma projeção dirigida pa-
ra o Alto, que não pode deixar de se ressentir do ponto de par-
IX. A UNIVERSAL BIPOLARIDADE tida do qual ela se eleva, determinado pelo ambiente terrestre,
DO SEXO NAS RELIGIÕES onde e segundo o qual o homem se formou. Foi desse modo
que ele concebeu Deus à sua imagem e semelhança, mantendo
Neste volume pusemos em discussão o homem evangélico e depois esta relação genética ou de derivação, quando inverteu
a sua conduta perante o mundo. Mas a questão ultrapassa em a ideia, imaginando um Deus que criou o homem à sua ima-
vastidão a vida de um simples indivíduo, porque se baseia em gem e semelhança. Assim, o homem se posicionou no conceito
princípios morais e religiosos seguidos por ele. Sendo assim, ao máximo concebido por sua mente.
colocar em debate o homem, implicitamente são postos em É evidente que o Deus dos hebreus, concebido por Moisés,
questão também os princípios aplicados por ele. Isto faz apare- é de tipo macho. A primeira coisa que Ele diz é: “Eu sou o Se-
cer contradições e contrastes, conduzindo a juízos conflitantes, nhor”. Prontamente Ele se faz centro, de sinal positivo, que ex-
o que é hoje bem atual, porque vivemos num momento de revi- clui qualquer outro do mesmo sinal: “Não tereis outros deuses
são de todos os valores do passado. Deseja-se esclarecer e diante de mim”. Os seus mandamentos são atos de comando,
compreender tudo, para viver com maior conhecimento e inte- estabelecendo o que se pode e o que não se pode fazer. Ele é o
ligência. Já tocamos em tais assuntos no capítulo intitulado: Deus dos exércitos, o conquistador, sendo o seu povo o povo
“Psicanálise das Religiões”, em nosso volume precedente, A eleito, que ele protege contra as outras nações. Ele fala sobre o
Descida dos Ideais. Agora continuamos a mesma indagação Sinai, entre trovões, raios e tempestades, incutindo terror. A sua
sobre o sentido íntimo de muitas das nossas atitudes mentais palavra é escrita na pedra. Para fazê-la ser respeitada com o
em matéria religiosa, observando-as sob outros pontos de vista. bom exemplo e aplicar o seu mandamento “não matar”, Moisés,
No estudo de tal fenômeno, sobretudo do cristianismo, to- ao descer do monte, manda exterminar os adoradores do bezer-
mamos como base os movimentos biológicos positivos da reali- ro de ouro, o deus rival. Mandou matar três mil. Em um mundo
dade que a vida nos mostra, dado que este é o método mais livre como o nosso, estes são os meios que o ideal necessita para po-
de preconceitos e superestruturas, mais retilíneo e claro, sendo der descer à Terra. Para os povos primitivos, eles representam a
portanto o mais adaptado a nos mostrar como as coisas se en- manifestação do elemento realizador, de tipo masculino, com-
contram de fato. Ora, o aspecto biológico tomado pelo dualismo plementar daquele de ação espiritual idealista.
universal em nosso mundo, cujo nível é o animal-humano, é a É evidente que Cristo é de tipo oposto. Ele faz tudo em fun-
distinção entre macho e fêmea, expressando neste plano os dois ção do Pai, em posição a Ele subordinada. O seu mandamento é
lados do dualismo: o positivo e o negativo, cada um reciproca- um ato de amor: “Ama o teu próximo; amai-vos uns aos outros
mente oposto e complementar ao outro. Observemos, portanto, como eu vos amei”. A sua batalha é feita com a não-resistência
como o ser humano, com a forma mental do seu nível de evolu- e com o perdão. A sua concepção não é restrita a um povo, mas
ção, entende o fenômeno religioso. A esta altura, constatamos é universal. A sua palavra não é escrita na pedra entre os raios
uma realidade psicológica que, pelo fato de estar afastada das do Sinai, mas no coração do homem, ditada na cruz. Para fazê-
abstrações teológicas, não as leva em consideração. la ser respeitada, Cristo não mata, mas se faz matar. Ele não é o
A primeira realidade objetiva, positivamente controlada, é a Deus dos exércitos, mas o herói do sacrifício.
existência da mente humana. Este recipiente estabelece a ampli- O Velho Testamento não é destruído, mas sim continuado.
tude dos conceitos que essa mente pode conter. Então a ideia de Primeiro apareceu o macho com a força, depois a fêmea com o
Deus não pode existir em nosso mundo senão na medida e for- amor, sendo que o segundo termo se acrescenta ao primeiro,
ma em que ela pode ser alcançada com tal meio. Mesmo que Ele para completá-lo. Chegou-se assim ao conceito de um Deus
exista de per si, de modo independente daquela mente, não po- mais completo, porque bilateral, em vez de unilateral. Os dois
demos encontrá-lo senão na medida e finalidade em que esta é polos, positivo e negativo, uniram-se como macho e fêmea, pa-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 41
ra formar o casal em que os aspectos opostos e complementares dência de outro eu. Ela obedece e suporta, recebendo a lei e a
se compensam e se fundem. A evolução conduz os elementos justiça das mãos de Deus. O macho conquista com a força e
separados do AS à unificação na ordem orgânica do S, consti- faz-se valer com a guerra, destruindo ele mesmo o inimigo para
tuindo um complemento que, aperfeiçoando e corrigindo a du- se afirmar. A fêmea, fazendo-se valer com a paciência e con-
reza feroz, tem função e finalidade civilizadoras. quistando com o amor, afirma-se ao negativo, esperando e adi-
Não se pode dizer que o positivo tenha mais valor do que o ando a sua reação, a qual ela confia nas mãos de Deus, para que
negativo, ou que o macho seja mais do que a fêmea. Cada um Ele castigue o inimigo com a sua potência e justiça. O macho
tem necessidade do outro, pois, sozinho, representa apenas a usa as suas armas para vencer. A fêmea, não sabendo lutar por
metade, que, sem a outra parte, não está completa. A vida tende si mesma, utiliza a religião para se refugiar nos braços de Deus.
a formar a unidade no circuito, conjugando e fechando as duas As concepções humanas são todas influenciadas por este prin-
metades complementares, como é necessário para se chegar à cípio da luta pela sobrevivência. O grande problema a resolver
gênese. Desse modo, os fortes atraem os fracos, que estão em é sempre a defesa de si próprio, ainda que o macho o resolva
busca de proteção, e estes chamam aqueles, que andam em bus- com as suas próprias forças e a fêmea recorra à força dos ou-
ca de vítimas. Os malvados atraem os bondosos e benéficos, e tros. O macho ataca e é atacado. A fêmea protege e procura
estes atraem os perversos e maléficos. Cristo atrai Judas, e Judas proteção. Ela espera da potência de Deus o milagre que, fugin-
atrai Cristo. Cada um tinha necessidade do outro, para cumprir o do às leis da vida, possa salvá-la. Assim, quanto maior a viola-
seu destino. Cristo tinha urgência de um traidor, para realizar a ção da ordem natural, tanto mais forte é julgada aquela prote-
sua paixão de amor. Judas precisava de um homem bom, que ção, pois isso lhe prova que Deus, em quem ela se apoia, é po-
por amor se deixasse trair e vender por dinheiro. Sem o outro tente e está habilitado a defendê-la. O macho, com a virtude da
termo oposto, nenhum dos dois poderia satisfazer-se. Sem bon- sua força, procura ele próprio a sua defesa.
dade de um lado, não pode haver traição do outro. Se Cristo ti- A ética do macho é completamente diferente da fêmea, con-
vesse sido como Moisés, ninguém teria conseguido traí-lo. Mas, sistindo em outro conceito de justiça e injustiça. Por isso com-
sem a traição de Judas, não teria sido possível manifestar-se a pete ao tipo feminino introduzir no cálculo econômico o estra-
bondade de Cristo. Se Judas tivesse atraiçoado Moisés, então es- nho sentimento de bondade presente tanto na esmola como na
te – assim como, para aplicar o mandamento de Deus (“não ma- ideia de uma providência, fatores que, em si mesmos, são im-
tarás”), matou os renegados que, no regresso do Sinai, encontrou produtivos. Para o tipo feminino, viver de esmola é honesto,
seguindo outra religião – também o teria matado. Desse modo, a pois trata-se do fruto da caridade de outrem, o que constitui um
traição de Judas, que teria sido morto como punição, serviria ato de amor e de bondade. A mesma coisa, para o tipo macho,
apenas para manifestar a potência de Deus, pois o mundo ainda significa ser mantido por outros, devido à própria inaptidão e
não era civilizado a ponto de perceber também o outro aspecto preguiça, o que merece desprezo. Na mente do macho, não há
da divindade: a bondade. Ora, com o cristianismo os dois termos lugar para uma economia tão imprevidente e elástica, que fun-
complementares se uniram, formando o circuito potência- ciona à mercê de gestos de bons corações, porquanto a vida é
bondade, cada um moderando o outro e integrando-se recipro- feita de necessidades intransponíveis, sendo constituída de exi-
camente. Isso foi possível porque, na realidade, não se trata de gências precisas e concretas, que não admitem esperas e incer-
cisão, mas apenas de oposição interna entre dois termos de uma tezas, pois estas perturbam a exatidão do cálculo econômico.
unidade bipolar universal macho-fêmea, que vai do sexo às mais Entrelaça-se o trabalho produtivo com elementos contraprodu-
altas manifestações da vida humana, como a moral e a religião. centes, o que, para o macho, significa uma danosa dispersão de
Até nestes mais altos níveis está projetada a natureza humana forças, e não virtude. No entanto isto é vantajoso para a fêmea,
em seus dois aspectos: macho e fêmea. que procura com isso afirmar-se no próprio campo do macho.
Vejamos agora como se comporta esta natureza, quando ela As virtudes dela são defeitos para ele, e vice-versa. O macho
não está encoberta, observando a forma pela qual ela expressa deve produzir mais do que amar, enquanto a fêmea quer mais
sua positividade ou sua negatividade, sobretudo no terreno éti- amar do que produzir. Até mesmo o trabalho ela o entende
co e religioso. No fundo, trata-se sempre da vida, que, em cada mais como um ato de amor, dedicação e oferta, do que como
caso, através do egoísmo individual, quer afirmar-se. Con- um ato de avidez, posse e domínio. O mesmo mundo pode ser
quanto eles tendam a se fechar e se separar, os dois tipos, por- diferente, dependendo dos olhos com que é visto.
que se afirmam reciprocamente, podem chegar a concordar, A máquina da produção é o macho. Portanto é absurdo para
pois dizem: “eu sou e eu quero” de forma oposta, constituindo ele introduzir nisto motivos de tipo fêmea. Não se concebe uma
dois egoísmos inversos, um ao positivo e outro ao negativo, indústria baseada na Divina Providência. Não estamos afirman-
feitos, portanto, para se completarem, acasalando-se. Se assim do aqui que ela não exista ou que não funcione. Dizemos so-
não fosse, a união seria impossível, porque ninguém está dis- mente a qual tipo biológico ela corresponde e como ela atua ou
posto a renunciar ao próprio egoísmo. Cada um dos dois ter- não, segundo a forma mental desse tipo. É nesse sentido que
mos se empenha para fazer a favor do outro a parte que lhe devemos entender o capítulo precedente: “Investimentos no
compete e que sabe fazer, cumprindo assim um aproveitamen- Banco de Deus”. O macho faz as contas do quanto o seu traba-
to recíproco. Por isso o macho toma as iniciativas e é realiza- lho rende. A fêmea, pelo contrário, confia em Deus, para que
dor, enquanto a mulher o segue e lhe é fiel. O macho, ao invés Ele faça as contas e as providencie. Cristo, com o seu conselho
de crer, raciocina. A mulher, ao contrário, não raciocina, mas de confiar em Deus – rejeitando o dinheiro, deixado para Judas
crê. O macho pensa por análise, sobrepondo racionalmente as em forma de culpa, e repudiando aquilo que é o tesouro do ma-
particularidades de que é feita a realidade. A mulher pensa in- cho – demonstra, com a sua condenação contra os ricos, que
tuitivamente, por síntese, da qual conhece os totais, mas não os segue o aspecto feminino da vida, no qual prevalece o senti-
termos componentes. O macho é positivo e aderente aos fatos. mento do coração sobre o previdente cálculo de quem conhece
A fêmea é idealista e sonha fora da realidade. Temos assim as reais dificuldades do mundo. Cristo condena Marta, que acu-
dois tipos de pensamento, um retilíneo, inerente ao macho, e dia à sua casa e fazia o trabalho. No entanto louva Maria, que,
outro curvilíneo, inerente à fêmea, correspondendo cada um ao contrário, estava seduzida a ouvi-Lo. Mas a realidade dá ra-
aos dois centros do ser humano: mente e coração. zão a Marta, porque era ela que provia o necessário para Maria
O macho comanda e faz a lei que expressa a sua vontade. e para Cristo, cujos pensamentos, embora fossem sublimes,
Ele faz a justiça com as suas mãos, tudo em função do seu eu. abstraíam-se em belos sonhos, pois aproveitavam-se das fadi-
A fêmea se coloca em posição subordinada e vive na depen- gas dos outros para as suas alegrias espirituais.
42 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
O fato, pois, de ser necessário o cérebro calculador do ma- inferno, fazendo das vítimas mártires e enviando-as para o pa-
cho, para completar a brandura da fêmea, fica provado pelo fato raíso. Quem, ao contrário, adota o princípio masculino não
de que, a fim de garantir a sobrevivência do ideal de Cristo na ama, não perdoa, não se deixa matar como vítima, não vai para
Terra, foi preciso confiar-se nas mãos da Igreja, que, sendo fei- o paraíso, nem manda ninguém para o inferno, porque se arris-
ta de machos, aplicou-lhe injeções de qualidades do termo ca a matar o inimigo, tendo em vista que as contas são imedia-
oposto, tanto intelectualmente, em termos de raciocínio, como tamente saldadas, sem apelos à divina justiça para punições no
materialmente, em termos de organização hierárquica discipli- futuro. É isto que se encontra por detrás da cena e que nos é
nada, para fazer leis, possuir bens e até mesmo ser guerreira, mostrado através da psicanálise das religiões.
servindo-se de uma política autoritária etc. Mesmo sendo um Nestas manifestações opostas cada um dos dois tipos se glo-
emborcamento do espírito do Evangelho, era inevitável que isto rifica e, assim, revela-se a si próprio, exaltando as suas qualida-
ocorresse. Só assim a ideia de Cristo poderia chegar até nós. A des: o macho enaltece a sua virtude, que é a força; a fêmea, o
mesma questão pode assumir aspectos diferentes, conforme a sacrifício. Porém, em ambos os casos, nenhum deles renuncia à
visão seja feita por olhos de tipo macho ou de tipo fêmea. Nesta reação defensiva, base da proteção para a sobrevivência. Am-
última parte da Obra, procuramos colocar em evidência, além bos realizam sua defesa, porém em forma diversa, a única que o
da visão concebida por Cristo, sustentada até agora, a concep- tipo sabe usar segundo a sua natureza. Cada um dos dois sabe
ção oposta, própria do mundo, buscando superar o antagonismo vencer com o seu próprio método, com o qual se sente forte e
segundo o qual Ele a concebeu e, assim, reduzir tudo à unidade, hábil, enquanto se acha débil e inepto em relação ao processo
em cujo seio elas não são mais inimigos que se excluem e se oposto. Isto sucede porque o ser humano é filho da sua história,
combatem, mas sim dois aspectos que, apesar de contrários, durante a qual ele se construiu com suas qualidades agora ins-
não são contraditórios, porquanto se contrapõem apenas por se- tintivas, que lhe foram necessárias para sobreviver. Quem não
rem complementares, sendo destinados a se completarem reci- as adquiriu foi liquidado. O macho, tanto para caçar o alimento
procamente, como duas metades de um mesmo circuito. como para se defender dos inimigos, tinha necessidade da for-
Um campeão humano do modelo macho pode ser visto no ça, vendo-se obrigado a desenvolvê-la. A fêmea, tanto para a
super-homem de Nietzsche, ideal vivido por Hitler. E podemos reprodução como para a criação dos filhos, precisava do amor
ver agora as consequências de tais atitudes. Ele matou tanto, sexual e materno, de dedicação e de sacrifício, tendo por isso de
que acabou por suicidar-se. Um campeão de tipo oposto não desenvolver essas qualidades. Cada um tem a sua tarefa, ha-
podemos encontrá-lo senão importado do céu ou de planos evo- vendo uma divisão de trabalho para o fim comum: a sobrevi-
lutivos mais avançados. Assim, ao Cristo se pode opor Hitler vência do indivíduo e da raça. Foi em função da necessidade
como Anticristo. E de fato, conforme aconteceu, Cristo, confi- dessa sobrevivência que o homem teve de se plasmar. Daí o fa-
ando no Pai, que o deixou morrer, aceitou ser morto como ino- to de termos até hoje dois tipos de atividade: o macho na guerra
cente, criando então uma multidão de pecadores responsáveis e no trabalho, e a mulher na casa e na criação da família.
por isso ou, mais diretamente, um povo de deicidas. Nos dois Com a civilização, o guerreiro e o caçador se transformaram
casos, temos igualmente uma reação, mas de tipo contrário. No em executores de atividade de interesse social, pelo que recebe-
primeiro, a reação é imediata na Terra. No segundo, ela é reme- ram a sua compensação econômica em um sistema organizado
tida para o Além. O primeiro tipo morre, depois de ter feito um de divisão de trabalho. Assim, à conquista guerreira se substituiu
morticínio neste mundo. O segundo tipo também morre, mas esse seu equivalente mais adiantado. O fato de que, com o civi-
enche depois o inferno de pecadores. Em ambos os casos, tudo lizar-se, o valor vem a consistir não mais na força física, mas
se paga, mas muda o tempo e a forma. No primeiro exemplo, sim na inteligência e na atividade mental, transforma as condi-
temos a punição do culpado após o morticínio de inocentes. No ções de vida e as qualidades necessárias para a sobrevivência.
segundo, temos a morte de um inocente, seguida pela punição Mesmo que isso tivesse permitido à mulher invadir o terreno do
dos culpados. Os dois termos opostos tendem igualmente a se homem, masculinizando-se e acrescentando novas qualidades às
completar, conjugando-se no mesmo circuito. antigas, permanecem, todavia, os dois tipos fundamentais. De
Isto é o que sucede num primeiro tempo. Observemos agora um lado, o amor; do outro, o dinheiro. O primeiro, virtude da
o que ocorre depois. Ao macho vencido não resta outra coisa fêmea. O segundo, qualidade do macho. Destarte, a humanidade
senão meditar na vingança e preparar nova guerra. Mas, para se divide em duas partes complementares. Cada uma, indepen-
compreender o comportamento das religiões, é mais útil obser- dente do seu sexo, pertence a um ou a outro tipo de personalida-
var o sutil processo de tipo feminino. Quando o princípio mas- de, possuindo as respectivas qualidades. Por amor se entende
culino se cansa, esgotando-se, o modelo feminino tira vantagem espírito de sacrifício, bondade, sentimento, paciência, religiosi-
dessa situação para tomar o predomínio e, por sua vez, também dade, altruísmo, desinteresse, intuição etc. A fêmea faz a sua
se esgotar, aproveitando o enfraquecimento do outro para reali- guerra com esses valores e a vence. Por dinheiro se compreende
zar a sua desforra. Isto porque o circuito não é só compensação espírito de iniciativa, realização, atividade, produtividade, apego
e complementação entre contrários, mas também luta para se aos bens, instinto de posse e de domínio, agressividade, egoís-
esmagar reciprocamente. O tipo feminino tenta a sua vingança, mo, irreligiosidade, raciocínio etc. O macho enfrenta a vida com
compensando a compressão sofrida por parte do princípio opos- esses atributos e triunfa. Ele calcula e exige como direito o pa-
to. Para aqueles que, pela sua natureza, posição e interesse, to- gamento do seu trabalho. A fêmea, como recompensa da sua ta-
mam posição a favor do inocente morto e, por isso, reagrupam- refa, faz-se manter por amor, com o qual ela se paga, consistin-
se ao seu redor, fazendo dele a causa comum, este se torna um do nisto a sua lógica e o seu direito. Assim ela aprecia a esmola
mártir. Os antigos romanos, como machos, simplesmente mata- gratuita, baseada não sobre o cálculo, mas sobre o sentimento. A
vam os cristãos. Entre estes, o grupo que formava a Igreja pro- mulher transforma o dinheiro em amor, enquanto o homem con-
duziu mártires e santos, enchendo com eles o paraíso, enquanto verte este naquele. Cada um dos dois termos paga ao outro o va-
tornava assassinos os romanos pagãos, povoando com eles o in- lor correspondente àquilo que tem para receber. O homem dá à
ferno. Tudo é deslocado para o além, em função não da própria mulher os meios para viver que ela não tem, enquanto esta ofe-
força, mas de Deus. O macho não renuncia, mas sim realiza; rece àquele o sentimento que ele não possui.
não adia, mas sim resolve rápido. No caso dos mártires, o que Este jogo de opostos investe todas as formas de vida. De
funciona é o método feminino. Quem o segue, ama e perdoa um lado, o macho trabalha à sua maneira; do outro, a fêmea.
primeiramente, deixando-se matar como Cristo. Com isso, ele e O primeiro, com a sua razão prática, domina a Terra; a segun-
a Igreja que o acompanha mandam depois os pecadores para o da, com a sua intuição, abre-lhe as portas do Céu. O macho,
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 43
forte no mundo, castiga. A fêmea, débil, perdoa evangelica- Quem se ocupava, porventura, antigamente dos problemas
mente. Esta, porém, idealmente mais forte, castiga no Além, da personalidade? Havia um sem-número de deslocados e de
onde o macho, positivo, perde-se no mistério. Ele pensa atra- aventureiros do trabalho, sendo que preciosos recursos perma-
vés da ação. O seu pensamento é concreto, materializado em neciam improdutivos em um ambiente hostil. Quanto dano com
fatos. Assim, ele avança. Se está em erro, conquista a justiça o método da luta, que é sufocar em vez de desenvolver, e quan-
matando o adversário; se tem razão, é porque sabe destruir o ta vantagem com o método da compreensão, que é chegar á in-
obstáculo. Compreende que errou, quando perde a batalha. Se teligente utilização das capacidades individuais! Somos herdei-
vence, isto lhe prova que pensou certo. Ele não tem recom- ros de um passado de ignorância profunda, quando o que tinha
pensas ou desforras além desta realidade, nem as espera. As valor era a posição social, e não as qualidades do indivíduo.
contas se fazem imediata e realisticamente: ou se torna um Valia não quem labutava e produzia, mas sim quem sabia tor-
vencedor, o que significa vida; ou se torna um derrotado, o nar-se e permanecer patrão de servos, que trabalhavam para ele.
que significa morte. A fêmea, porque é débil, não pode arris- A vida era feita de guerra, e não de trabalho; o bem-estar se al-
car-se na ação; deve, portanto, prever com antecedência, por- cançava com o domínio sobre os mais débeis, e não com o es-
que, se errar, não tem defesa. O seu pensamento é astuto, pru- forço produtivo. Aos nobres prepotentes e ociosos, apoiados no
dente, intuitivo. Sua prudência é devida ao fato de saber que valor da espada, opunha-se a vergonha de servos laboriosos.
não pode impor a sua justiça, a qual deverá esperar do bene- ◘ ◘ ◘
plácito do macho. Este tem a força. Ela não tem senão a astú- As observações das páginas precedentes nos podem fazer
cia. Se o macho erra, fracassa tudo, até ele próprio. A fêmea compreender o profundo significado do moderno fenômeno re-
sempre se conserva, sendo que, quando erra, procura juntar presentado pelo cristianismo e comunismo. A evolução leva a
com paciência os fracassos e reconstruir tudo novamente. O vida do AS para o S, isto é, de um estado de desordem para ou-
macho põe o terreno em desordem, a fêmea o cultiva. Nas tro, de ordem. O mundo passa, assim, por natural lei biológica,
guerras o macho – o vencedor – invade, conquistando e des- da força ao direito, da injustiça à justiça, emergindo sempre
truindo. A fêmea – o vencido – recebe o vencedor, acolhendo- mais do caos do AS, para disciplinar-se conforme os princípios
o entre os seus braços e reproduzindo a sua raça forte. do S. Desse natural processo biológico fazem parte as religiões,
Realmente, o mundo é dividido entre estes dois tipos opos- assim como as revoluções. Pode-se, deste modo, compreender
tos, cada um com a sua forma mental e diversa função biológi- por que o cristianismo, a Revolução Francesa e, agora, o comu-
ca. Temos Aristóteles e Platão, Santo Tomás e Santo Agosti- nismo se encontram ao longo da mesma linha evolutiva, que le-
nho, Santo Inácio e São Francisco, ciência e fé, técnica e arte, va a um progressivo melhoramento na estrutura social. No fun-
obras destrutivas de guerra e obras construtivas de paz, comu- do, não se trata senão de diversas formas segundo as quais se
nismo e cristianismo. Chega-se assim às grandes dimensões, desenvolve o mesmo processo de evolução. Em resumo, a vida
que, segundo esses princípios, abraçam povos e civilizações, cuida sempre de progredir, mesmo que isto se verifique de ma-
também com funções masculinas e femininas, dividindo-se em neira aparentemente contraditória, caminhando algumas vezes
trabalho de renovação ou de defesa da vida. Trata-se sempre de com Deus e outras vezes contra Ele. Na verdade, em ambos os
aspectos unilaterais, que necessitam se unir com a outra meta- casos, ela obedece à mesma lei de Deus.
de, sua parte oposta, sem a qual não se pode formar uma unida- Também aqui nos encontramos perante o mesmo fenômeno
de. Nós mesmos, para que a presente Obra, da qual este volume de bipolaridade constatado na contraposição dos sexos, com dois
faz parte, fosse completa, tivemos que utilizar ambas as formas opostos acoplados no mesmo circuito. Temos, portanto, uma
mentais: a intuitiva, fideística e idealista no seu início; e a raci- mesma e única lei de Deus, que se manifesta nos aspectos ma-
onal, crítica e realista, agora, no seu final. cho e fêmea, ambos válidos e fundamentais para a vida. Para
Estas qualidades correspondem a dois tipos de personalida- compreender o fenômeno, é necessário reduzi-lo à sua substân-
de, com atitudes próprias, que os tornam aptos para atividades cia biológica. O Evangelho, então, não é toda a lei de Deus, mas
diferentes no cumprimento de funções sociais, tanto de tipo apenas a sua metade. Ele é a voz do elemento fêmea, que diz ao
masculino como de tipo feminino, ambas necessárias numa co- macho: “Sede bom, não assalteis, não destruais, não abuseis do
letividade organizada, onde vigora o princípio da divisão do comando, sede justos; deveis construir, mas não com a violên-
trabalho por complementaridade de especializações. Indepen- cia, e sim com compreensão e bondade”. É a voz purificadora da
dentemente do sexo físico, há personalidades de tipo masculino fêmea que propõe a não-resistência. Pressupõe, portanto, do lado
ou feminino, destinando-se cada uma delas ao seu respectivo oposto ao qual se dirige, o macho, de quem é necessário frear os
tipo de trabalho. Ora, o segredo do rendimento deste trabalho instintos violentos. Sem isto o Evangelho não tem sentido. Seria
está em saber pôr o indivíduo no lugar que mais corresponde à como dizer a uma ovelha: “Não devoreis o vizinho”, conselho
sua natureza. Eis que o problema psicológico se torna questão que só vale para o lobo. No entanto, o Evangelho é útil às ove-
econômica de suma importância. Colocar um indivíduo fora da lhas, porque diz aos lobos para não as devorar.
sua justa posição conduz a um rendimento mínimo, resultando Na Terra, quem representa o princípio dominante da luta é
em dispersão de energias, o que significa uma perda para a co- o macho, porque ele é afirmativo e caracterizado pelo espírito
letividade. É necessário compreender quem é o sujeito que tra- de iniciativa. O Evangelho significa o modelo oposto, que o
balha e secundar-lhe as tendências, evitando situá-lo em condi- completa, já que lhe é complementar, como sucede no plano da
ções de desajuste, em posição irracional, lutando consigo mes- bipolaridade sexual. Mas, neste caso, ele reproduz o ideal, que,
mo e em atrito com o ambiente. Embora a luta seja necessária à descido de um nível evolutivo superior, tem a finalidade de se
evolução, ela representa, no entanto, um consumo de forças, cu- enxertar no plano terreno inferior para completá-lo. O princí-
jo desperdício é interesse coletivo evitar. Assim, a cada profis- pio masculino, neste mundo, quer dizer o desencadeamento
são e atividade social deveria corresponder o tipo a ela adapta- das forças primitivas, a matéria-prima da vida no estado caóti-
do. Verificou-se, por exemplo, que grande parte das vocações co de separatismo. O tipo feminino representa a sua reordena-
eclesiásticas desaparece, se analisada à luz da psicanálise. Exis- ção e aperfeiçoamento, disciplinando-o, para levá-lo ao estado
tem os simples, sem vocações destacadas, a princípio capazes orgânico unitária. O primeiro princípio é cisão, porque é ego-
de fazer qualquer coisa, mas há os que, distinguindo-se por ísmo e guerra. O segundo conduz à coesão, porquanto é altru-
qualidades especiais, são os mais preciosos. A sapiência das ísmo e amor. A religião presume a fera para amansar. Mas há
novas gerações consistirá em saber utilizar ao máximo, em cada momentos, no desenvolvimento evolutivo, em que é preciso
campo, a virtude produtiva do indivíduo. agir com violência para vencer resistências, quando o elemento
44 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
fera é chamado a funcionar com o objetivo de avançar, fazendo realizá-lo em larga escala, o ideal tinha de passar para as mãos
o mesmo trabalho em forma oposta. do macho. O modelo evangélico de justiça social é o mesmo,
A Igreja é fêmea, apesar de ser constituída por elementos mas, no primeiro caso, a sua efetivação é remetida ao além,
masculinos, que não podem fazer outra coisa senão usá-la como permanecendo no estado de intuição e esperando o futuro, en-
tais, apesar de se cobrirem de atitudes evangélicas. Mesmo que a quanto, no segundo, aquela justiça não fica somente teoricamen-
Igreja seja feminina num plano superior ao sexo, aquele é o seu te proposta em forma de ideal, à base de esperanças messiânicas,
sinal. O Evangelho defende a não-resistência, mas, para o ma- mas torna-se problema a resolver imediatamente na Terra, em
cho, o homem evangélico que o pratica é apenas um velhaco, o forma concreta. Eis um Evangelho tornado macho, ativo, violen-
qual se deve matar. Temos aqui duas virtudes igualmente exal- to, guerreiro e realizador, que aparece como uma explosão da
tadas, mas de sinais contrários: a bondade que perdoa e a cora- vida, dirigida à conquista de novas expansões, como acontece na
gem que vence para dominar; o herói do ideal, que se santifica primavera, quando as sementes germinam depois do longo in-
com o martírio, e o herói da guerra, que se glorifica com a des- verno de incubação, guardadas pela terra mater debaixo das ne-
truição do inimigo. Quem tem razão? Trata-se de duas vitórias ves. A forma mental do macho realizador está nos antípodas em
igualmente reconhecidas, mas que se condenam reciprocamente, relação ao do cristianismo, que vive de esperanças.
uma julgando a outra derrotada. A Igreja, quando fez as guerras, Mas até as santas aspirações são necessárias, porque servem
realizou-as na condição de atividade secundária, como um des- para amadurecer a semente e preparar o seu desenvolvimento,
vio introduzido pelo elemento macho no programa evangélico conduzindo-o à realização da fase sucessiva, condicionada à
original. Muitas vezes, ela se pôs a olhar para aqueles rudes fei- precedente, a qual, na economia da vida, tem o seu valor. Por
tos dos machos, abençoando-os, embora esperasse o seu fim, pa- isso, era indispensável o trabalho preparatório realizado pelo
ra se jogar, como faz a fêmea, nos braços do vencedor, que é o cristianismo, para que hoje fosse concebível em larga escala a
mais forte. Estas são leis biológicas a que ninguém na Terra po- ideia da justiça social, cuja aplicação, assim, tornou-se possível
de fugir, não existindo outro caminho para quem é desarmado hoje como um programa vivido de fato pelas massas, o que não
pelo Evangelho. Pelo fato de Cristo, através do Evangelho, ter seria possível acontecer sem aquela preparação. Em virtude
pregado outra lei, nem por isso o princípio terrestre da luta pela deste milenário trabalho interior, o feto ficou maduro. Então o
vida deixou de funcionar. O ideal, evidentemente, representa o Evangelho, elaborado inicialmente no seu aspecto feminino,
futuro, que se avizinha por evolução. Mas é verdade que o pre- poderá nascer no seu aspecto masculino, que romperá a tradi-
sente, bem diverso, construiu, com a dura experiência terrestre, ção da expectativa passiva e das esperanças, para nos fazer pro-
o homem para sobreviver neste mundo e enfrentar sua feroz rea- gredir, civilizando-nos em dimensões mundiais.
lidade, e não para se abstrair dela, sonhando com uma vida nos Assim, o cristianismo pode representar um período prepara-
céus. A sociedade humana é organizada para viver na Terra e tório do atual, que é de realização. Superada a sua fase feminina,
repele o homem do ideal que não se põe dentro desta insistente o Evangelho da justiça social entra hoje na sua fase masculina.
realidade. É a própria vida que o deixa fora da lei, porque ele se O macho se revolta contra uma filosofia que, negando com a re-
coloca distante das leis biológicas vigentes. núncia o seu tipo biológico e oferecendo-lhe como triunfo a gló-
Se a Igreja é fêmea, o comunismo é macho e faz a guerra por ria do sacrifício, para ele negativa, coloca-o numa posição em-
si, para aplicar os seus princípios. Aqui se exalta a virtude de si- borcada perante a realidade que ele bem conhece, impulsionan-
nal oposto ao precedente. Os princípios são aplicados aos fatos do-o assim a perder a batalha pela sobrevivência. É necessário,
por quem está decidido a vencer para dominar. O programa, no então, que o Evangelho, se quisermos realizá-lo, tome também a
fundo, é o mesmo do Evangelho, que a vida se pôs agora a apli- forma masculina, atuando neste outro estilo, com outros méto-
car com os métodos do macho, depois de o ter pregado por dois dos. A vida, para alcançar os seus fins, utiliza ambos os canais,
mil anos com os da fêmea. Trata-se do mesmo projeto de desen- tanto o da fêmea como o do macho, empregando suas respecti-
volvimento que a vida vai realizando na sua evolução, ora com vas virtudes para compensar os defeitos de cada um deles.
uma técnica, ora com outra, utilizando por turnos, segundo os Será que estes dois Evangelhos se encontrarão um dia, de
seus planos, os elementos de sinal oposto de que dispõe. Alcan- modo que, da pregação de um ideal a ser alcançado através do
çar a justiça social faz parte do processo de reordenação que in- amor, a justiça social se resolva em realidade, com a aplicação
cumbe à evolução cumprir. Aquela justiça deve, portanto, verifi- dessa justiça, atingida através da força? Conseguirão as duas
car-se, porque faz parte da realização de uma lei biológica. Para metades se desfazer, fundindo-se? Se isto acontecer, chegare-
chegar lá, a vida passa ora pelo caminho feminino, ora pelo mos a um cristianismo comunista, que terá ensinado o amor
masculino, mas quer atingir aquela meta. Seja em forma de capi- aos violentos, e a um comunismo cristão, que terá ensinado o
talismo, seja de comunismo, o mundo vai todo para este lado. Evangelho a atuar, em vez de somente a pregar; chegaremos a
Assim, estes dois opostos, tal como o macho e a fêmea no ma- um comunismo que reconhece o natural instinto humano de
trimônio, não são senão dois egoísmos rivais, que, no fim, aca- possuir, mas o limita, disciplinando-o para o bem coletivo, e a
bam por colaborar para o mesmo objetivo. Se o cristianismo um capitalismo que se torna mais justo, reconhecendo para to-
procura realizar a justiça social com o amor, o comunismo busca dos, e não somente para os ricos, o direito à vida. A atual difi-
realizá-la com a força. No primeiro caso chega-se àquela finali- culdade da compreensão recíproca reside no fato de que as du-
dade com a caridade, pela via da bondade e do sentimento; no as ideias estão incorporadas em grupos de interesses opostos,
segundo, com o trabalho obrigatório para todos, em posições que prevalecem sobre aqueles princípios. De um modo geral,
bem definidas de direitos e deveres. De um lado, uma economia em nosso mundo, não é o grupo que serve à ideia, mas sim esta
de generosos impulsos da alma, do outro, a parcimônia de férrea que serve ao grupo, em função do qual os princípios são utili-
disciplina. Dois métodos para alcançar o mesmo escopo. zados como meio de luta pela vida.
Parece que neste setor a vida tenha chegado a um estado de Em teoria, o comunismo é justiça social, mas, na prática, é
maturação, devendo passar da teoria à prática. Depois de haver violência, sem o que, no atual grau de evolução, não se faz na-
com o cristianismo difundido aquela ideia durante dois mil anos, da. Teoricamente, o cristianismo é justiça social, mas, na práti-
conseguindo realizar bem pouco, a vida, para aplicar a sério o ca, é hipocrisia, sem o que, no presente estágio evolutivo, o
seu programa de justiça social, em vez de o confiar à Igreja, en- Evangelho não poderia existir. No plano humano, sem uma
tregou-o às revoluções, primeiro à Revolução Francesa e depois arma para lutar, não se sobrevive. Assim, o comunismo e o
à Revolução Russa. É evidente que, enquanto se tratava apenas cristianismo têm cada um a sua arma. O primeiro, a do macho:
de pregar, bastava a palavra feminina, mas, quando se tratou de a força; o segundo, a da fêmea: a dissimulação. Isto porque,
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 45
em uma humanidade ainda de tipo involuído como é a nossa, o mas apenas enquanto esta e Deus estiverem incorporados nu-
ideal (S) não pode aparecer senão de forma emborcada (AS). A ma casta. Com o pretexto bem terreno de dominar, o clero se
solução só pode ser dada pela evolução. As duas ideologias faz, fora do seu setor espiritual, rival do comunismo no seu
são afins no plano teórico e deveriam, portanto, entender-se campo material. Desse modo, o cristianismo somente é seu
facilmente. Porém, no campo prático, elas são inimigas, por- inimigo, enquanto formar um grupo contra ele, defendendo os
que este não é terreno de princípios, mas sim, como já foi dito, seus interesses terrenos. O conflito nada tem de ideal. O co-
de interesses, unicamente em função dos quais os princípios munismo não luta contra Deus, mas contra o clero, que, a pre-
são ostentados. Trata-se de vantagens concretas e imediatas, texto de ser Seu ministro, quer dominar com as coisas do
aquelas mais bem compreendidas pelo involuído, enquanto os mundo. Ora quando, por evolução, os problemas religiosos
ideais lhe passam quase completamente despercebidos. Dada a passarem das mãos do clero às da ciência, para serem enfren-
natureza humana, na Terra não pode acontecer outra coisa. tados e resolvidos positivamente, e de Deus se tiver um con-
Somente por evolução é possível transformar a forma mental, ceito que possa ser aceito por todo aquele que saiba racioci-
o que permitirá então as coisas mudarem. nar, então o comunismo não poderá recusar-se a admitir o que
Vê-se claramente o que sucede, quando um ideal desce em está na lógica dos fatos. Será necessário um Deus e uma reli-
forma de religião à Terra. O evoluído o aceita para ascender. A gião com novas formas. Não haverá razão para que o comu-
maioria involuída, porém, sente-se agredida com a intervenção nismo, como qualquer outro regime, não aceite quem, em
que o ideal realiza para se impor através de sua presença e atua- consequência de tais convicções, for honesto e, portanto, mais
ção, modificando-a a seu modo e fazendo-a evoluir. Isto a leva- facilmente ajustável à ordem social.
ria para uma condição melhor. Contudo interessa-lhe mais a Voltemos ao presente. Do que ficou exposto podemos de-
vantagem imediata, que, na sua miopia, percebe melhor. Então, duzir várias conclusões. Hoje o comunismo nos mostra que o
dada a sua natureza, fruto de um ambiente de luta, a maioria en- cristianismo pode ser encarado também no seu aspecto mascu-
tende a ação salvadora do ideal como um assalto para subordi- lino, em forma de realização, e não apenas na sua forma fe-
ná-la a uma vontade inimiga, porque assim se costuma fazer no minina de expectativa. Isto prova que o Evangelho faz parte
mundo. Assim, seguindo os seus naturais impulsos de autodefe- da vida e tem uma função a cumprir, mesmo para os ateus.
sa, ela se rebela contra o ideal. Nisto cada um se expressa con- Colocados de parte os abusos dos seus representantes, ele sig-
forme o seu tipo. O método do macho é de revolta aberta, sendo nifica um valor biológico universal, sendo, portanto, de im-
que ele se faz audazmente ateu – comunismo. O método da fê- portância vital para todos. Purificado através do comunismo,
mea, pelo contrário, é o engano, simulando um consentimento o cristianismo poderá sobreviver como elevada norma de con-
obediente – cristianismo. Recusa frontal no primeiro caso; duta no seio da futura civilização do terceiro milênio. Em re-
adaptação torcida no segundo. Cada um, conforme a sua natu- sumo, a fêmea como tal, dada a sua natureza e função proteto-
reza, trava a luta a seu modo, com os meios que possui: um ra, terá conservado em forma de Igreja a ideia de Cristo por
com a força, o outro com a astúcia. Estes são os dois tipos de dois mil anos, porque, chegada a hora de amadurecimento dos
resistência que o ideal pode encontrar no ambiente humano, tempos, com a humanidade às portas de uma nova era, o ma-
dadas as qualidades que aí se verificam. Compreensão para o cho se apossa daquela ideia, para traduzi-la finalmente em
ideal não poderá existir senão da parte do evoluído, que é capaz atos e fazê-la produzir o seu fruto. Assim se compreende a
de entendê-lo e, devido ao seu amadurecimento, apto a realizá- função biológica da Igreja e da religião.
lo. O involuído não pode responder com compreensão, porque Podemos chegar ainda a uma outra consequência. A verda-
ele só tem resistência para oferecer. deira posição da Igreja, na sua luta contra o comunismo, não é
A evolução leva do sistema divisionista, feito de luta em re- resistir ao macho com golpes de autoridade, através de ameaças
gime de caos, ao sistema unitário colaboracionista, composto e condenações, prova de que ela não possui força para isso,
de ordem. É avizinhando-se dessa fase mais avançada que se porque a imposição forçada é adaptada à matéria, e não ao espí-
pode realizar a compensação e a coordenação entre qualidades rito, enquanto a utilizada no campo espiritual foi desacreditada
diversas, para chegar ao estado orgânico. Assim como o comu- pelo longo abuso, perdendo assim o seu poder persuasivo. A
nismo poderá ensinar ao cristianismo a aplicação da justiça so- correta situação é, pelo contrário, a de quem abre os braços ao
cial, este também poderá ensinar àquele que a vida não tem macho para compreender e colaborar, cumprindo a sua própria
somente metas próximas a serem alcançadas, de bem-estar eco- função, que é de fêmea, pacificadora. Isto significa interpor-se
nômico, mas também objetivos longínquos, de caráter espiritu- entre os machos guerreiros, para que eles não se matem uns aos
al. Porém, para que as partes contrárias possam avizinhar-se e outros, e salvar assim a humanidade de uma guerra de extermí-
estas trocas de recíprocos ensinamentos possam verificar-se, é nio. Para a Igreja, este é o momento apropriado para fazer valer
necessário um sentido humanitário de compreensão, um certo as qualidades que possui como religião, manifestando as suas
espírito de amor, que falta hoje ao mundo e sem o qual não se virtudes moderadoras, complementares às do macho. É certo
cimenta a união, base do estado orgânico. Ora, a esse nível de que a expressão deste é a violência e o comando. Mas, se esta é
entendimento e amor não se pode deixar de chegar, pois trata-se a sua natureza, com a qual ele representa uma força de vida e
de produtos da evolução, que tende à unificação. Todos irão en- uma função a cumprir, não se pode remediar este seu defeito,
tão do antagonismo ao colaboracionismo, dando cada um a sua comprimindo-a para eliminá-la, mas apenas corrigindo-a com
contribuição. O comunismo, no terreno econômico, contribui uma função que lhe seja complementar. Isto é verdadeiramente
com o trabalho e a justiça social. O cristianismo, no campo es- aquilo que hoje, por instinto, procura-se fazer, substituindo por
piritual, colabora com a boa ética, para, ao mesmo tempo, tor- uma nova atitude de bondade o método precedente, autoritário
nar o homem um ser trabalhador e honesto. e repulsor, feito de excomunhões e vinganças espirituais. Ex-
Estamos, hoje, ainda na fase caótica e primitiva de forma- plica-se, portanto, o novo estilo do diálogo, com o qual se
ção, na qual as forças elementares explodem desordenada- abrem as portas e se tenta a aproximação. No terreno da força, a
mente, à procura do caminho que as canalizará em direção a Igreja não pode lutar, porque esse campo não é o seu. E se, pelo
uma sistematização orgânica. Existe luta, porque nos encon- fato de ser composta por machos, cair na fácil tentação de ali
tramos em estado de involução. Mas, justamente porque a lei penetrar, ela utilizará meios e métodos de outros, o que a fará
é evoluir, essa luta deve ser superada, a fim de desembocar entrar em contradição consigo própria.
numa situação de ordem. Hoje, o comunismo é ateu, mas isto O mesmo sucede no terreno do pensamento. A fé tem a
acontece no atual nível biológico. Ele é inimigo da religião, função de penetrar por intuição no mistério, mas não pode
46 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
opor-se ao controle racional da ciência, da qual tem necessida- masculino de ver as coisas. Tal tipo não sabe pensar e proce-
de para adquirir a solidez positiva que lhe falta. Por seu lado, a der diversamente. Portanto, mesmo quando deseja servir a
ciência tem necessidade da fé e da intuição, para alcançar as Deus, não pode e não sabe entender isto senão como um meio
altas zonas misteriosas que escapam ao raciocínio frio e aos de domínio. De outro modo, não seria macho. Mesmo quando
métodos experimentais. Assim, fé e ciência são feitas para co- governa como ministro em nome de outros, ele só sabe fazê-lo
laborar, sendo matérias complementares. Malgrado cumprirem afirmando como autoridade o seu eu (sinal positivo). Isto por-
funções diversas, são constituídas para se integrarem recipro- que, para atingir o seu objetivo, ele vai encontrar o Evangelho
camente, dado que são insuficientes cada uma de per si. Para pregando exatamente aquilo que ele mais deseja que “os ou-
as necessidades da inteligência, como técnica produtora de uti- tros” façam, ou seja, acreditar e obedecer (sinal negativo). As-
lidades práticas, existe o raciocínio da mente, mas, para as do sim forma-se o acordo entre opostos.
sentimento, como formação de uma consciência moral, neces- Depois de havermos sustentado nos volumes precedentes a
sária para o comportamento social, existe o calor do coração. primeira interpretação, chegamos a esta, que é mais completa,
A dureza e rigidez masculina se amolecem na ternura e malea- porque explica a contradição que existe entre Cristo e a Igreja.
bilidade feminina, enquanto estas se fortificam na positividade Explica-a e justifica-a, até porque, quando se apossa da fêmea,
masculina. Com o polo oposto, cada uma das partes se comple- o macho, por tê-la feito sua, protege-a como sua propriedade, o
ta nas suas carências. A virtude está no equilíbrio, dado pela que constitui condição indispensável para que ela, na luta pela
compensação dos dois contrários. Na Idade Média, a religião vida, possa ficar a salvo. É por esta razão que a hierarquia ecle-
fazia da vida uma fuga em abstrações místicas, em busca de siástica defendeu a doutrina de Cristo das heresias e a levou
alegrias espirituais. Nos tempos atuais, tudo é atividade prática avante com o seu esforço, durante dois milênios, cumprindo,
e utilitária, dirigida a realizações imediatas, em busca de bem- com guerras, fogueiras e inquisições, fielmente a função do
estar material. No passado só se olhava para o além; agora macho, que é justamente proteger o que lhe pertence. Então
olha-se apenas para o que está próximo, ignorando o espírito. aquilo que podia parecer um emborcamento de princípios é
Mesmo aqui, temos duas metades, cada uma incompleta por si apenas um trabalho necessário de recíproca complementação.
só, mas feitas para trabalharem unidas em conjunto, cada uma Embora isto represente hipocrisia perante Cristo, porque se
cumprindo a sua função. Isolar-se unilateralmente seria, para faz o inverso daquilo que Ele ensinou, continuando-se a aceitar
ambas as partes, um erro. O fato de que um período de nossa o mundo e a usar os seus métodos, essa impostura humana é,
existência decorre no além, não implica que não se deva cuidar contudo, necessária ao princípio oposto da vida cristã, sendo
da fase que se vive na Terra, porque as duas vidas são com- colocada em ação para a sobrevivência do modelo evangélico,
plementares e nenhuma delas vale por si só. A cada uma o que que, se não for protegido pelo seu contrário, é imediatamente
lhe pertence. Nenhuma das duas vidas deve ser sacrificada pela liquidado na Terra, no meio da luta geral.
outra: nem a do paraíso, durante o período na Terra; nem a do Dessa forma tudo se explica. Mesmo sendo possível com-
Além, atormentando-se com o nascimento neste mundo. preender como realmente se encontram as coisas, também é
Só quando se consegue ver ao mesmo tempo os dois aspec- certo que muitos absolutismos serão destruídos, quando se
tos contrários do problema, é que se pode compreendê-lo intei- admitir que Deus não chega junto de nós senão segundo as
ramente. Perceber apenas um deles separadamente seria ter da nossas capacidades de concebê-lo e, portanto, em função de
questão uma visão unilateral. É este enfoque que faz o lado nosso nível evolutivo e tipo de personalidade. Não é preciso
oposto aparecer como contraditório e inimigo, enquanto, na fazer acusações, porque ninguém pode ser diferente de si
verdade, é complementar e colaborador. Agora, com o pano- mesmo, nem agir contra a sua própria natureza. Então é lógico
rama completo, compreende-se como o tipo masculino no cris- e não surpreende mais que o Evangelho seja vivido somente
tianismo foi levado pela sua natureza à construção de uma em parte, que a religião seja hipocrisia e que o método das
Igreja material em vez de espiritual, criando uma instituição acomodações triunfe. Em outros livros constatamos e lamen-
mais terrena do que divina e utilizando a segunda a serviço da tamos esses fatos. Aqui, reduzindo o fenômeno à sua substân-
primeira. Mas o macho só sabia fazer uma Igreja a seu modo, cia biológica, quisemos dar-lhe uma explicação e, finalmente,
conforme o seu próprio tipo biológico. Ele não podia adminis- uma justificação perante as leis da vida.
trar senão substituindo-se ao patrão; não podia representá-lo Se até ontem se vivia na beata aquiescência da ignorância,
senão tomando o seu lugar, afirmando-se a si próprio. Mas, que não considerava tais problemas, contentando-se em dirigir-
desta maneira, ele completava o princípio oposto, representado se através de fórmulas feitas, com base em normas consuetudi-
pela doutrina de Cristo. A religião do macho, muito embora nárias, transmitidas sem discutir nem compreender, hoje essas
com a finalidade do bem, consiste em tomar o poder. Tal bió- questões são enfrentadas, porque se pretende resolvê-las, procu-
tipo é construído para o comando, não podendo agir de outro rando evidência de fatos e clareza de ideias. Inicia-se assim um
modo. Se ele tiver que seguir princípios de outrem, não pode novo estilo de vida. Antigamente resolviam-se as dificuldades
deixar de lhes introduzir iniciativas próprias. Isto pode parecer através de subterrâneas evasões às normas postas em evidência;
traição, mas é indispensável para que o ideal possa descer ao agora elas são solucionadas com a compreensão. Quantas dis-
nível evolutivo humano e resistir aí. torções, mentiras e contradições poderiam ser evitadas, se nos
Pode impressionar ao tipo espiritual evangélico a resposta comportássemos com mais inteligência! Mas quantas verdades
que, para explicar tal materialismo religioso, foi-me dada pelo vieram à luz, embora estivessem escondidas atrás dos paramen-
bispo de uma diocese vizinha de Roma: “O Evangelho mata. E tos da religião e da moral oficialmente proclamada!
que morte! Então, para o fiel, só lhe resta escolher a autoridade O bem estar que a humanidade está procurando alcançar
da Igreja”. Quem concebe a religião somente do ponto de vista somente poderá dar resultados, se ele for utilizado com com-
de Cristo fica perplexo. O Evangelho, por ser considerado im- preensão e amor. Os meios materiais são completados com os
praticável, é posto de lado por quem o representa e Cristo é espirituais, que lhe são complementares, para formar o conjunto
substituído pela autoridade dos seus ministros. Isto pode pare- corpo-espírito, vida na Terra e vida no Além. Unilateralmente,
cer usurpação de poder e traição aos princípios. Mas, se impe- cada tipo de bem estar é, por si só, apenas metade. É preciso
dirmos que o Evangelho seja aceito a sério, isto significa que o equilíbrio e fusão entre os dois opostos. A solução não está em
cristianismo é falsificado nas suas raízes! opor o ateísmo às religiões, mas em compreender-lhes a função
Se pensarmos melhor, depois das precedentes observações, e saber usá-las mais inteligentemente, deixando-as sobreviver
compreenderemos que esta psicologia representa o modo numa sociedade cientificamente civilizada.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 47
O amor é tão precioso quanto o dinheiro. Este fornece o pela sobrevivência, imperante na Terra – o que significa ele e
necessário para viver, aquele gera a vida. O amor também qual o objetivo desta sua presença em nosso mundo?
existe no plano espiritual, acima do sexo e da gênese carnal. No capítulo anterior, o problema de tal dualismo foi enfren-
Mesmo no espírito, o Amor – e aqui com maiúscula – é sempre tado em sentido horizontal, permanecendo no mesmo nível evo-
criador. Sem ele, a força e a riqueza do macho podem ser ma- lutivo da bipolaridade macho-fêmea, como cisão e reunião des-
léficas. O elemento feminino é conjugado com o masculino; o ses dois opostos, mas ficando no plano de nosso mundo e
amor, sempre em sentido elevado, é aliado do trabalho produ- olhando a religião como produto da forma mental humana. O
tivo. Hoje, com o desenvolvimento da técnica, que elevou mui- nosso ponto de referência era a Terra, para compreender em
to o rendimento da atividade do macho, um paralelo progresso função dela todos os acontecimentos. No presente capítulo, a
da capacidade de compreensão do homem poderá levar a me- questão é encarada verticalmente, em diversos níveis de evolu-
lhores formas de convivência social, através do trabalho inteli- ção, relativamente à bipolaridade involuído-evoluído, no senti-
gente do seu princípio complementar. Esta poderá ser a mo- do de superação do plano terrestre, observando as religiões co-
derna função do cristianismo, ou seja, amalgamar os opostos e mo uma antecipação de progresso a ser realizada no futuro, re-
unificar os extremos, função de atualidade, que poderá ser sultante de uma psicologia super-humana. A nossa perspectiva
chamada princípio feminino da religião. não será mais este mundo, mas sim um nível evolutivo mais
Falamos assim de Deus nos seus aspectos masculino e femi- avançado, para compreender como o homem poderá alcançá-lo.
nino. Isto não significa que Ele seja apenas um ou outro dos dois No caso do capítulo antecedente, a complementaridade entre
termos. Ele é tudo, estando acima da cisão binária, que ele abra- positivo e negativo era entendida pelos tipos macho e fêmea.
ça na sua inviolável unidade. Mas pode ser visto dualistamente Agora, a mesma complementaridade é expressa pelos modelos
ou num só dos seus aspectos, conforme os olhos ou formas dos involuído e evoluído. Nos dois casos, permanece idêntico o
termos macho ou fêmea que o observam e concebem. Sendo as- principio dualístico da unidade bipolar, representada pelos dois
sim, Ele aparece a cada de um modo diferente, porque o tipo sinais + (mais) e – (menos). Aqui, porém, não observamos mais
masculino não sabe corresponder senão relacionando Deus à po- o choque entre eles no mesmo plano evolutivo humano, macho-
tência, enquanto o modelo feminino não sabe ligá-Lo senão ao fêmea, mas em dois níveis diferentes de evolução: ideal e mun-
Seu lado de amor. Com qualquer dos dois termos Deus fala do. Mudam as perspectivas, observando-se o fenômeno de ou-
igualmente e se faz compreender, embora na linguagem de cada tros pontos de vista, de modo que, proposta de outra forma, a
um deles. Sendo o Pai, fala no Seu aspecto de potência e, sendo exposição assume aspectos diferentes.
Filho, fala como Cristo, no Seu aspecto de amor. E o Filho se Cristo veio ao nosso planeta, propondo-se a inverter as leis
oferece em sacrifício ao Pai, que domina e exige um pagamento biológicas aqui vigentes. Ele disse: “Abandonai todas as armas,
para remir as culpas dos homens. No entanto, os dois termos não amai o próximo, sede ovelhas...”. Mas a vida replica: “... para
estão separados, porque são o mesmo Deus. que o inimigo vos vença, o próximo vos explore e os lobos vos
Como nos referimos anteriormente, nos volumes finais da devorem”. A conclusão é que os piores engordam à custa dos
Obra, podemos chegar a um mais completo conceito de Deus, melhores e que, deste modo, a seleção se realiza ao contrário, a
concebendo-O não só como ideal cristão de amor, mas também favor dos primeiros, aos quais é o próprio Evangelho que ofere-
como modelo masculino de atividade realizadora, que, rompen- ce o material para explorar. Esta seria, então, a verdadeira con-
do a resistência da matéria, impõe a ela a evolução, para elevá- sequência da vinda de Cristo à Terra. Aqui continuam a domi-
la em direção ao espírito. Teremos, assim, um Deus menos uni- nar as leis deste mundo, segundo as quais o mais forte vence e
lateral. A nossa perspectiva torna-se deste modo mais ampla, os bons – considerados débeis e ineptos para a luta, por segui-
alcançando também o aspecto oposto do apresentado por Cris- rem o Evangelho – são eliminados. O resultado é negativo, o
to. Esta visão nos permite compreender também o mundo que que significa falência do ideal.
Ele – do seu ponto de vista, naturalmente referindo-se ao céu – Estes fatos explicam a razão pela qual, na Terra, o Evan-
condenava. Mostra, além disso, a outra metade do problema, gelho não é de fato vivido e por que o cristianismo, à força de
fazendo-nos entender a realidade da vida, fato que não se pode adaptações, tornou-se uma coisa diferente daquela pensada
suprimir e que, se existe, deve ter a sua razão. Destarte, consta- por Cristo. Enquanto se afirma que Cristo venceu o mundo, na
tamos mais uma vez a lógica e o equilíbrio com que a lei de realidade este venceu aquele. As leis da vida, em vez de cede-
Deus funciona maravilhosamente em tudo. rem, reagiram e dobraram a seu modo o ideal. Mas, se a nega-
ção do que é inferior, por parte do que é superior, para condu-
X. O IDEAL E O MUNDO zir à superação, significa levar novos pesos à já dura vida do
inferior, é natural que ele se rebele e tenha repulsa pelo ideal.
Observando no capítulo precedente o fenômeno da universal Lamentavelmente, enquanto este sonha com o paraíso, tem di-
bipolaridade, explicamos algumas atitudes das religiões, sobre- ante de si o inferno. Perante as leis da Terra, deixar-se matar,
tudo do cristianismo. Examinando-as em função da positiva rea- mesmo que seja por um ideal, constitui derrota, sendo loucura
lidade da vida, e não de abstrações teológicas, foi possível com- propô-lo como exemplo a imitar. Tal proposta é apresentada
preender porque elas nasceram, como elas se manifestam, o mo- em nome de leis que, neste planeta, não têm sentido e condu-
tivo pelo qual existem e quais as soluções que pretendem alcan- zem à ruína. Todavia, aqui se introduzem com a pretensão de
çar. Assim explicamos que a contradição e a luta entre o Evan- ensinar, muito embora como estrangeiros em terra estranha.
gelho e o mundo não constitui de fato um antagonismo, mas são Mas aconselhar o perdão é encorajar os prepotentes. Deste
apenas oposição de dois termos complementares, feitos para se modo, favorece-se o desenvolvimento dos piores, sacrificando
compensarem reciprocamente. Perguntamo-nos, então, o que em favor deles os melhores. Esta é a moral dos fatos, bem di-
significa e que função tem, no campo do fenômeno biológico, ferente das palavras. O próprio Cristo com a sua bondade se
um Evangelho que aspira a inverter as leis vigentes em nosso fez crucificar, o que significa a vitória das forças do mal sobre
plano de evolução? Ora, não podemos negar a realidade que, as do bem, de Satanás sobre Deus. A desforra de Cristo, com
conforme os desígnios de Deus, existe em nossa própria nature- a ressurreição, somente pôde manifestar-se depois, através de
za, realidade na qual nos encontramos inexoravelmente imersos uma fuga para os céus, quando as forças do mal terminaram o
e prisioneiros, sem possibilidade de escolha. Se o Evangelho seu banquete, imperturbáveis no seu triunfo.
existe de fato – apresentando-se biologicamente como um ab- Compreende-se porque a Igreja teve o cuidado de não se-
surdo, porque julga possível nos evadirmos da lei animal da luta guir tal exemplo e de fazer de Cristo uma organização terrena,
48 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
transformando o céu e o ideal num cálculo de interesses cida é guerra, a lei da Terra, conduzida falsamente, pelas vias
econômicos e políticos. Com isso explica-se como a Igreja, que subterrâneas da hipocrisia, e tornada assim mais dura e pérfida.
proclama o Evangelho e condena a riqueza, possa economica- Se o indivíduo, por temperamento ou por educação recebida,
mente ser avaliada como a segunda potência financeira do acreditou no ideal fácil, tanto pior. Ele é um primitivo do espíri-
mundo, precedida somente pelos Estados Unidos, mas superior to e deverá aprender, mesmo no sentido do bem, a não ser um
a todos os outros países do globo, incluídas a União Soviética e ingênuo. O ambiente terrestre lhe ensinará que não se chega ao
a Inglaterra. Assim, o ideal desceu para inverter o mundo, mas céu só por ternura sentimental; que a descida dos ideais significa
foi emborcado por ele. Encontrando-se na sua própria casa, o dever imergir no pântano; que a cruz de Cristo não é só um belo
mundo colocou o ideal a seu serviço. Então o meio mais eficaz ato de amor, mas significa abraçar a fera humana, para ser por
e utilizado para fazer apreciar as coisas do espírito é pô-lo em ela dilacerado. O idealista deve conhecer o mundo em que vive,
evidência, revestindo-o com os valores mais apreciados em desconfiando e lutando antes de acreditar e amar. O próximo se
nosso mundo, como pedras preciosas e ouro, e tornando-o con- incumbe de ensiná-lo tudo isso à força de golpes massacrantes.
creto com meios materiais, como construções, estátuas e pintu- Quem se faz instrumento da descida dos ideais deve ser não so-
ras, sem o que o espírito, por sua natureza imaterial, perde-se mente anjo da paz, mas também, e mais do que todos os outros,
inatingível e despercebido. Verificam-se, assim, as contínuas forte lutador, porque o é em forma pacífica, sem armas; deve fa-
distorções com as coisas sagradas, feitas de matéria preciosa e zer guerra em duas frentes, uma na Terra, para sobreviver, e ou-
transformadas em tesouro que excita cobiças. Então os valores tra no céu, que confia nele para a descida do ideal.
apreciados do espírito também são cobertos com a cobiçada ri- Chega-se, destarte, a outro conceito de evoluído, dado por
queza, julgando-se que assim, através da pompa religiosa e com um tipo inteligente, devido ao fato de ter atravessado e expe-
apresentações mundanas, rende-se homenagem a Deus. rimentado a zona involuída da besta, conseguindo superá-la.
Em outros momentos de nossa exposição, observamos o Não mais o evoluído ingênuo e inocente, recém chegado ao
ideal se posicionando superior ao mundo, no instante da sua plano do espírito, mole e frágil, sonhador e enamorado, con-
descida, para realizar-se aqui. Examinemos agora o mesmo vencido de que se pode alcançar o céu com voos de fantasias,
fenômeno, olhando para baixo, em vez de para o alto, a fim de sonhos de poeta, evangelicamente terno para com o próximo,
verificar o que sucede, quando o ideal pretende entrar em am- porque ainda não lhe conhece a verdadeira natureza. Pelo con-
biente estranho, para transformá-lo a seu modo, fazendo do trário, temos um evoluído que subiu todos os Calvários e foi
indivíduo um evoluído. crucificado em todas as cruzes das muitas velhacarias huma-
Procuremos compreender o fenômeno deste outro ponto de nas. Portanto conhece-as todas e não cai mais nelas, dado que
vista. Já vimos em outro lugar a função biológica e a finalidade lhe deixaram o sinal na pele, para sua permanente lembrança.
evolutiva da descida dos ideais à Terra. Este trabalho não pode Um evoluído verdadeiro, tornado tal por ter amadurecido atra-
ser confiado ao involuído, que nada entende disso e se encontra vés de todas as provas. É assim aquele que leva consigo a ex-
bem à vontade em seu plano de vida animal. Esta tarefa deve, periência do mal superado, seja porque lhe foi feito pelos ou-
então, ser empresa do evoluído. É necessário definir o que en- tros, seja porque, tendo sido feito por ele, experimentou as du-
tendemos por evoluído, para evitar mal-entendido. O homem ras consequências a que conduz. Como vítima sacrificada, ou
que vive o Evangelho ingenuamente, obedecendo às suas nor- mesmo como carrasco convertido, deve conhecer todo o mal
mas, pode julgar-se como tal, mas engana-se, pois, embora de que transborda a Terra. Os ingênuos não vão para o céu,
imagine ser evoluído, ele é apenas um simples indivíduo hones- mas ficam neste mundo, para aprender. O paraíso não pode fi-
to, de boa fé. Assim é composta a grande parte dos seguidores car cheio de meninos que brincam de ideal. Deus os manda ao
de Cristo, de suaves ovelhas, ótimas para serem devoradas pe- nosso mundo, para que vejam do que se trata verdadeiramente
los lobos. É por isso que o tipo de pseudoevoluído serve sobre- e, depois de terminada a escola, voltem mais maduros.
tudo como pasto para os ferozes involuídos de que é constituído Trata-se de compreender que o bem e o mal não são somen-
o mundo, aqueles que o ideal pretenderia civilizar. Essas ove- te o próprio bem-estar ou mal-estar imediato, como crê o primi-
lhas não são adequadas para este trabalho. Seu destino é serem tivo, e que o verdadeiro bem pode ser dor e o verdadeiro mal,
derrotadas na luta pela vida. Eis que o ideal, para se afirmar na prazer. Quanta coisa é necessário experimentar e entender, para
Terra, tem necessidade de outro tipo de evoluído. ser realmente evoluído, soldado do ideal!
Quando, perante o homem do mundo – que sabe, por sua O santo que não conhece o mundo e não está encouraçado
dura experiência, qual é a realidade da vida – aparece um contra os seus assaltos, é eliminado pela vida como um inepto
exemplar de idealista que crê no Evangelho como num sonho que não ajuda a descer na Terra nenhum ideal. O verdadeiro
de fácil realização, ele o observa e, julgando-o de seu ponto de pobre, aquele que sabe o que é a pobreza e luta contra ela com
vista, pensa: “Este vive fora da realidade, não conhece a vida. É qualquer meio, pensa que fazer-se pobre por amor ao Evange-
simplesmente um ingênuo, um ignorante. Não pode servir se- lho seja um esporte de luxo para os muito saciados; julga tal ato
não para ser explorado. Interessa-nos, portanto, dar-lhe razão, um capricho dos ricos, uma aventura de gente que não conhece
alimentar o seu sonho, cultivar a sua ingênua ignorância, fazê- a realidade. Prepara-se, portanto, para derrotá-lo. Quem expe-
lo crer que o ajudamos a realizar o seu ideal, seguindo-o a seu rimentou a luta pela vida sabe que não há margem para brincar
lado. Poderemos, assim, melhor explorar a sua estupidez, trans- com os ideais e que, com eles, corre-se risco de morte. Cuida-
formando-a em nossa utilidade concreta”. do, portanto, os ingênuos, que acreditam facilmente, deixando-
Mas o homem do mundo também pode pensar de outro mo- se seduzir pela glória do guerreiro e do santo, sem terem estofo
do: “Este é um astuto que colocou a máscara de idealista, para para tal! A vida se baseia num jogo de força e astúcia, e não so-
melhor enganar o próximo. É necessário, portanto, secundá-lo, bre a justiça. Na Terra, quando alguém consegue devorar o seu
aprovando tudo, mas tomando cuidado de não acreditar nele, inimigo, diz que Deus o ajudou. Enquanto o idealista contempla
nem lhe cair na rede”. o seu sonho, o mundo prepara o assalto. A sua voz de sereia en-
Em ambos os casos, a verdade consiste em enganar, para cantadora fala em nome das coisas mais elevadas, mas ninguém
explorar. Esta é a verdade do involuído, aquela com a qual ele a escuta. E, se alguém a ouve, entende-a a seu modo, dando-lhe
se expressa, porquanto a sua natureza o leva a conceber tudo valor somente enquanto pode ser utilizada para explorar o can-
em função de sua vantagem egoísta, tanto que o universo não tor, dado que este é o único meio com o qual, aqui, ele pode
serve a ninguém senão a ele. Eis em que terreno traiçoeiro cai o servir para alguma coisa. Ele é uma flor frágil do campo, adap-
ideal. O mundo o espera para destruí-lo. O resultado desta des- tado ao céu, enquanto a Terra é feita de tempestades e de vida
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 49
dura, que não admite bondade. Entretanto julga poder encontrar enganando. O jogo deve cessar por falta de elementos com
em tal ambiente enamorados do ideal, que celebrem com ele o quem praticá-lo. É assim que o desonesto tem de se tornar ho-
seu canto sobre-humano! Neste mundo o homem não pode ser nesto, porque a resistência dos atingidos por ele faz com que
um honesto ingênuo, mas deve ser um honesto astuto, para não seja danoso para si ser desonesto. Com esta técnica, nos seus
ser enganado por nenhum astuto; um honesto lutador, para não níveis mais baixos, a vida, por meio da luta, impulsiona a su-
ser destruído pelas agressões de nenhum lutador. bir, levando ao encontro do ideal, que desce do Alto.
Conforme as leis do plano animal-humano, a vida coloca o Essa é a razão pela qual a vida expõe a inocência do primi-
problema em sentido completamente diverso. Para ela, o traba- tivo a todos os assaltos, a fim de que ele faça alguma coisa e
lho a realizar é a conquista do conhecimento terreno. Trata-se aprenda. É com esse objetivo que ela o deixa indefeso. Num
de uma atividade que procura o novo e explora o desconheci- plano superior, o super-homem pode dizer: “Eu sou honesto,
do, porque a sua finalidade maior é evoluir. Para isso experi- vivo o Evangelho e isto basta. Então Deus me recompensa. Se
menta todos os caminhos. E, mesmo se a tentativa foi mal diri- sou paciente e resignado, caminho com a minha virtude em di-
gida e resultou em erro, ela vale em todo caso mais do que a reção à felicidade”. No nível humano, pelo contrário, a vida
inércia, que não constitui experiência alguma. Se esta acabar diz: “Se não sabes defender-te, serás morto. Se fores paciente e
mal, poderá ser corrigida. Porém ela já é uma esperança, en- resignado, os outros aproveitarão disso para te explorar em van-
quanto a inocência do ignorante não representa coisa alguma, tagem deles”. O ideal diz: “Segue Cristo até ao martírio. Este é
sendo vazia de qualquer atividade, experiência e conhecimen- o triunfo do espírito”. A vida diz: “Acabar como Cristo signifi-
to. Para a vida, o inerte vale menos que o rebelde. Este ao me- ca uma morte horrível. Isto não é triunfo, como te querem fazer
nos se move, arrisca e luta, fazendo alguma coisa à sua custa. crer, mas a pior das derrotas. O homem é feito para viver, e não
Por este caminho, ele pratica o mal, mas se prepara também para seguir tal mortífero exemplo. Cristo é filho do céu e se
para aprender que aquele mal lhe cairá em cima e que, portan- apressou a voltar para lá; o homem é filho da Terra e aqui deve
to, será mais conveniente não repetir a experiência. Quem não ficar. Deixemos que os ingênuos caiam no engano e, por isso,
faz nada não se dispõe a aprender coisa alguma. Ele se afasta sejam eliminados. Mesmo encorajando-os a se sacrificarem,
da vida, porque nem sequer inicia a senda da experimentação. aproveita e engorda com a virtude e a renúncia deles”. Como se
O outro, ao contrário, mete-se na estrada e vai em busca de al- vê, trata-se de duas leis diferentes, cada uma própria de deter-
guma coisa. De algum modo ele tomou uma iniciativa e, por minado ambiente. O fenômeno da descida dos ideais se verifica
isso, caminha. Quem assim procede, uma vez que já se encon- desde o plano do evoluído até ao do involuído, ambos já descri-
tra em posição de marcha, tem mais probabilidade de chegar tos, tendo a função de transformar o segundo no primeiro e fa-
do que quem está parado. Quantos santos na juventude foram zê-lo, portanto, passar a um nível e lei de vida mais altos.
tristes indivíduos! A santidade não pode ser ignorância e inge- Este é o trabalho que espera o evoluído. É ele que deve tra-
nuidade, mas sim conhecimento por experiência adquirida. Pa- zer o céu à Terra, resistindo ao assalto de quem quiser destruí-
ra chegar aos altos níveis da vida e empreender a luta do santo, lo. Com o seu grande sonho no coração, ele deve descer até à
é necessário ter primeiro atravessado os planos mais baixos, a luta. Ao seu amor o mundo responde com a agressão; à sua ge-
fim de conhecer a luta que se trava neles. O santo não é um nerosidade, com a carência das necessidades materiais. A luz
débil, sem potentes impulsos, sem músculos e sem garras, mas do céu se torna sangue; o ideal, dor. O AS procura aniquilar o
sim um forte que, com ímpetos dirigidos para o alto, coloca a S, que pretende entrar no seu reino. A tentativa de endireita-
sua força a serviço do bem. Só assim se pode representar o mento é seguida de uma contínua e oposta vontade de embor-
ideal na Terra e ser instrumento da sua realização. camento. Antes de poder concluir com a ressurreição, o ideal
Para que isto suceda, o ideal não pode ser confiado a ove- deve ser crucificado. Ele é luz, mas deve mergulhar nas trevas,
lhas, que, não sabendo fazer outra coisa, senão deixar-se ma- para transformá-las naquela. É uma subida que implica uma
tar, servem apenas para fornecer alimento destinado a engordar descida, a fim de fazer ascender quem está em baixo. Para po-
lobos, pelos quais elas continuarão sendo devoradas, enquanto der existir na Terra, a ideia deve ser fechada numa camisa-de-
os convidarem com a sua bondade. A vida quer a evolução e o força que a defenda e a torne sensível aos outros, sem o que
esforço para executá-la, portanto não protege essas fugas. Ela não sobrevive ou sequer é percebida. Descer no mundo signifi-
quer que os bons lutem e construam uma barreira que sirva de ca ficar aprisionado dentro dele.
obstáculo ao avanço dos malvados. Por obra desta resistência, Para chegar a realizar-se, a intuição do evoluído deve sujei-
o número destes e dos seus golpes bem sucedidos deve dimi- tar-se a um retrocesso involutivo, através de uma queda de di-
nuir cada vez mais. E esta transformação a vida confia à ação mensões, adaptando-se a contorções e mutilações. O ideal deve
das próprias vítimas, que devem tornar-se sempre mais esper- penetrar num mundo antagônico, onde as virtudes se tornam
tas e inteligentes, de modo que não se deixem mais enganar. A fraqueza e defeito; a lógica do bem, um absurdo no meio do
evolução é uma arrancada da injustiça para a justiça. O ideal mal; a verdade, uma forma de mentira para enganar os ingê-
desce tanto para os justos como para os injustos, com o escopo nuos; a ordem, a paz e a felicidade, uma ilusão para esconder a
de levar todos em direção ao S. Para encontrar outras vítimas, realidade, que é caos, luta e dor. O mundo entende a seu modo
os astutos desonestos devem inventar sempre novos enganos, o impulso do ideal em direção ao Alto, considerando-o como
uma vez que elas, sofrendo-as, também as aprendem. É inevi- um assalto à sua integridade, ao qual resiste por legítima defe-
tável a chegada do momento em que, havendo elas experimen- sa e repele com as suas armas, porque deseja permanecer como
tado e aprendido todos os ardis, esgote-se o repertório, de mo- é. O mundo é dividido entre fortes e fracos. O evoluído que
do que nenhuma astúcia poderá mais servir, por falta de ingê- não entra em guerra e não vence é colocado entre os fracos e
nuos para crer nelas. Então, o mal, tornando-se cada vez me- liquidado. Enquanto ele oferece escola ao involuído, para civi-
nos produtivo, acaba por ser cada vez mais posto de lado, já lizá-lo, este mostra a prática ao primeiro, para fazê-lo compre-
que sempre traz consigo mais risco e falência. Chegando a este ender a realidade da vida. Se o ideal representa o futuro, o pre-
ponto, os bons terão vencidos os malvados. Estes, então, deve- sente é bem diverso; se aquele é uma esperança e uma expecta-
rão admitir que, doravante, a velhacaria não lhes pode trazer tiva, este é uma realidade dura e atual; se o primeiro é a coisa
senão dano. No final, os exploradores da bondade do próximo mais bela que pode existir, o segundo é o bruto que de fato
deverão reconhecer o seu erro e chegar a um acordo com os existe. Ai de quem não conhece esta realidade e se mete dentro
explorados, se quiserem viver. Quando não se encontrar mais dela desarmado! Isso lhe pode custar a vida. Fazer na Terra o
quem faça o papel do enganado, não será mais possível viver papel de evoluído é perder-se nos sonhos do céu, deixando-se
50 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
seduzir pelo encantamento do ideal; é ignorância que a vida, te elevado. Com esta palavra, contudo, entendemos todo tipo de
no nível do involuído, castiga sem piedade. evoluído ou super-homem, seja ele cientista, artista, pensador,
Procuremos aqui compreender o significado biológico deste filantropo, herói etc. Trata-se do indivíduo que levou ao estado
contraste entre o ideal e o mundo. Na Terra existe luta não ape- de sublimação o seu particular tipo de personalidade. A sua es-
nas em sentido horizontal, entre indivíduos do mesmo plano, porádica existência no mundo nos permite observar o seu espe-
mas também verticalmente, entre representantes de níveis dife- cial modo de se comportar, a sua luta para fazer descer na Terra
rentes. É natural que, sendo o existir transformismo, dado que uma realidade mais alta e a reação do mundo contra esta oferta.
tudo é evolução, também deve sê-lo a luta, que é necessária pa- Desta maneira, é fácil ver o contraste, porque os princípios
ra realizá-lo. A conclusão à qual somos levados pela constata- opostos dos dois planos podem apresentar-se em ação, encarna-
ção desse contraste entre os dois termos opostos, mundo e ide- dos em seres vivos que estão realizando a sua natureza. Eles se
al, é que ou o primeiro é feito de involuídos, não lhe sendo ain- guerreiam, usando duas formas mentais e seguindo duas estraté-
da aplicável o grau de civilização do Evangelho, ou então o se- gias diversas, o que gera um mal-entendido contínuo. Enquanto
gundo é uma utopia que a vida não pode aceitar, porque vai o santo se oferece para abrir o caminho a um tipo de vida mais
contra as suas leis. Se, de fato, esses dois constituintes são in- alto e feliz, o involuído, incapaz de compreender as vantagens
conciliáveis, o defeito que é causa disto deve estar em uma das de tais ascensões, revolta-se, buscando proteger-se de um peri-
duas partes. Mas ele também pode estar em ambas, no sentido go, pois julga tratar-se de um ataque, como é normal na luta pela
de que o mundo tem razão, mas só no seu nível animal- vida. Pelo fato de que se lhe pede esforço e renúncia, ele inter-
humano, e não no do ideal, e de que o Evangelho também está preta a oferta como se fosse uma tentativa de sufocação dos seus
certo, mas apenas no seu plano super-humano, e não no do impulsos vitais. Daí o mal-entendido e a reação, uma vez que o
mundo. Assim, é natural que cada um dos dois, transportado indivíduo quer o desabafo, e não a repressão dos instintos. Mais
para fora do seu ambiente, não seja realizável. do que o esforço da ascensão, ele prefere a cômoda via da desci-
Não há dúvida que o ideal na Terra representa um transplan- da; em vez do bem que pode conquistar com o seu trabalho, pre-
te em campo que não é seu. Assim se explica por que ele existe fere o mal obtido no prazer imediato e não merecido. Ora, se o
mais como aparência do que como realidade, mais pregado do santo já vislumbra outra forma de vida superior, o involuído só
que vivido. Compreende-se também o fato de ser ele uma adap- conhece a terrena e, não sabendo imaginar coisa melhor, porque
tação e um artifício; apenas uma bela “toilette”, com a qual o esta vida esgota todas as suas possibilidades e aspirações, agar-
orgulho humano procura esconder a sua animalidade; um artifí- ra-se a ela desesperadamente. Isto é natural, porquanto, perdida
cio com o qual se aparenta uma espiritualidade que não se pos- esta forma de existência, nele não existe o amadurecimento ne-
sui. É natural que o ideal, neste planeta, apareça sobretudo em cessário para fazê-lo ressurgir espiritualmente, em um nível
forma de mentira, aparentando aquilo que na realidade não é. mais alto, restando somente o vazio da morte. A sua capacidade
No entanto, se tudo é transformismo, esta posição não pode ser de existir está restrita apenas ao plano biológico humano. Assim
definitiva. Ora, o que significa isso? Se é verdade que, na Terra, ele se coloca contra o santo, para vencê-lo na luta pela vida, fi-
o ideal ainda não pôde penetrar plenamente, ele começa, no en- cando exclusivamente no âmbito dos problemas terrenos. Mas a
tanto, a fazê-lo cada vez mais. Trata-se, portanto, de uma pro- luta do santo é por outro tipo de existência. Privá-lo do mundo
gressiva percentagem de realização por lei de evolução. não significa tirar-lhe toda a vida, como sucede com o involuí-
Na verdade, o ideal está só tentando entrar no mundo, en- do, mas somente a sua vida inferior. Quando esta lhe é mutilada,
contrando-se apenas no início desta sua operação. Nosso ambi- ele se liberta de um obstáculo à sua ascensão, o que significa
ente terrestre ainda pertence ao nível evolutivo animal, e o ajuda para ascender, rompendo a casca da matéria, para sair do
Evangelho, a um plano superior. Partindo do seu estágio atual, cárcere da animalidade, reino do involuído.
o homem está destinado a alcançar essa realidade mais avança- Mas existe ainda outro fato. O santo exerce atração. O in-
da, guiado para isso pelo Evangelho, como por um farol de luz voluído sente isso, que se torna objeto de sua simpatia. O ins-
alta e longo alcance, que lhe mostra o caminho a percorrer e o tinto inconscientemente o leva a se submeter a este fascínio.
modelo segundo o qual se deverá construir. O Evangelho só é Isto tem a sua razão de ser. A beleza da mulher seduz, porque
hipocrisia nesta fase, mas tende sempre mais a tornar-se verda- isto serve à vida para a reprodução. O ideal se apresenta belo,
de vivida, deixando de ser utopia em sentido evolutivo, perante e a sua beleza encanta, porque serve à vida para a sua evolu-
o futuro, porquanto se tornará realidade. Então nossa fé no ção. Ele é um absurdo na Terra, mas corre-se para vê-lo, por-
Evangelho, em contraste com o mundo, não é ingenuidade de que é certamente uma maravilha sonhar com a possibilidade
inexperiente, mas antecipação evolutiva, pois corresponde a um de viver como ele ensina, quando a realidade na Terra é feroz
impulso da vida em sentido criador, que tende a civilizar um e assim quer permanecer. Também o involuído, por um obs-
mundo ainda selvagem. Isso, entretanto, só pode ser compreen- curo pressentimento, sente que o santo representa a realização
dido por quem está amadurecendo para superar o nível biológi- de uma fase evolutiva mais avançada, colocada no seu futuro,
co da humanidade atual, estando em via de transformação. So- aonde ele próprio um dia chegará. Esta ânsia de ascensão é
mente o indivíduo nesta fase pode entender qual é o tipo de vi- comum a todas as formas de vida, sendo sentida também pe-
da de um plano mais avançado, porque, com uma forma mental los seres inferiores. O santo apresenta o grande sonho alcan-
diversa, pode ver aquilo que o homem comum, bem instalado çado, que nele se encarnou, mostrando uma forma superior de
no seu nível, de onde não sabe sair, nem sequer suspeita que felicidade. E todos procuram ardentemente ser felizes. As
possa existir. Para ele, em plena consciência, mesmo que isso massas desejariam roubar-lhe essa felicidade, já que ele a pos-
seja hipocrisia, este é o melhor modo de atuar, estando, portan- sui. Avizinham-se dele, esperando por vias oblíquas poder pe-
to, convencido de estar fazendo o bem desta maneira. lo menos subtrair-lhe um pouco dessa alegria, sem compreen-
O tipo biológico que melhor pode fazer compreender o fe- der que cada satisfação não pode ser possuída, senão sujeitan-
nômeno do contraste entre ideal e o mundo é aquele que se en- do-se ao esforço individual necessário para merecê-la.
contra em fase de transformação evolutiva, através da qual ele é Existe ainda outra razão mais positiva e imediata pela qual o
levado à superação do nível humano, sendo preparado assim santo atrai. Ele é a boa ovelha que se deixa devorar. Oferece,
para entrar em plano mais alto. Ele pertence um pouco a ambos portanto, a satisfação mais ambicionada na Terra, que é poder
os níveis, estando suspenso entre os dois, que se podem mani- banquetear-se, devorando o próximo impunemente. Sufocando
festar encarnados nele. Nós o chamaremos de santo, porque é a si próprio em favor dos outros, o santo satisfaz o maior desejo
assim que se costuma designar na Terra este tipo espiritualmen- da vida no plano animal. Ele não reage e não faz guerra; ao as-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 51
salto responde com o perdão; em vez de luta e riscos de derrota, de conservação dado por Deus, com a finalidade de garantir a
oferece a outra face, proporcionando uma vitória fácil, que, sem sobrevivência? Devemos nós violar esta lei? Para a moral bio-
apresentar perigos ou fadiga, não exige pagamento pelo desaba- lógica, quem faz isso é um suicida, que, sendo considerado cul-
fo gratuito dos piores instintos. Que se pode desejar de melhor? pado por não a ter cumprido, como seria seu dever, é por isso
Cristo deu a maior satisfação possível à feroz cobiça dos seus expulso da vida. No plano humano, a vida não é celestial, mas
crucificadores. E eles puderam saciar-se sem arriscar ou pagar sim física e terrena. Ser privado aqui deste tipo de vida signifi-
coisa alguma, ao contrário do que acontece na guerra, onde, em ca perdê-la toda. Como exigir, então, que a vida humana não se
vez de uma vítima paciente, encontra-se um inimigo armado. rebele? Se o Evangelho, para quem segue o exemplo de Cristo,
Como se vê, ele também representa uma força na vida. E mata, como pode a vida aceitá-lo? Afinal, como se pode culpar
aqui o vemos em ação, cumprindo a sua função de fundamental um indivíduo por ser filho da moral biológica dentro da qual
importância biológica, para realizar a sua parte na técnica da cresceu, se ele deve a esta o fato de ter sobrevivido até hoje,
evolução. Estas observações nos permitem delinear a posição vencendo com tenacidade a luta pela vida? Para contê-lo um
do santo em relação ao mundo, quando ele entra em contato pouco dentro de uma disciplina moralizadora, necessária à con-
com este. O exame que agora fazemos se poderia chamar : psi- vivência social, foi preciso o terror do inferno, desenvolvendo
canálise do fenômeno da santidade. nele instintos de sadismo, enquanto do outro lado permanecia
O valor do trabalho que a vida oferece ao evoluído, através um paraíso pouco convincente, feito de nebulosos bens futuros
do qual ele desempenha sua função biológica de preparar a e de alegrias espirituais dificilmente compreensíveis.
realização da ascese evolutiva, não é reconhecido na Terra, Quando o santo, após terminar o seu trabalho terreno, vai-se
onde somente tem valor o trabalho que produz vantagens con- embora, eis que o mundo se põe a glorificá-lo, mas nem por is-
cretas e imediatas. Ele deve, portanto, executá-lo nas mais di- so muda a sua forma mental ou a sua atitude em relação a ele. É
fíceis condições. Se não é econômico e socialmente valoriza- assim que também nesta glorificação há um cálculo utilitário.
do, este trabalho é, todavia, entre todos os outros, o mais im- Fazer de outro modo seria contrário às leis da vida. Começa,
portante para os fins da vida. Uma vez que, por essa razão, tem pois, a indústria do santo, pois este utilitarismo, que é lei bioló-
de ser realizado, ele deve ser protegido por forças estranhas ao gica, leva a industrializar tudo: ideal, religião, espiritualidade,
nosso mundo, superiores às comuns avaliações humanas. Não salvação final etc. Na Terra, também essas coisas acabam sendo
é, pois, com o homem que o santo pode contar, mas somente revestidas de formas humanas, como fama, glória, meios
com Deus, isto é, com as forças inteligentes da Sua Lei. A ati- econômicos, poder psicológico, domínio de massas e assim por
tude do mundo em relação ao santo é totalmente negativa, pelo diante. Então os homens de ação se apossam daquele pedacinho
menos enquanto este vive e trabalha na Terra. A glorificação de céu que o santo trouxe à Terra. Tiram-lhe toda a utilidade
virá depois, quando ele não tiver mais necessidade de ajuda al- possível, usando-o para as finalidades do próprio grupo, como
guma. Mas, enquanto for vivo, terá de ser pobre, virtuoso e sua bandeira, para servir de exemplo aos outros e justificar as
crucificado. Porquanto deve ser pobre, ele é privado dos meios posições adquiridas. A morte emudeceu o santo, podendo-se
para realizar o seu trabalho, pois vive num mundo onde, sem o fazer dele o que se quiser. Ele arrastava as massas, que eram
estímulo do dinheiro, ninguém lhe dá atenção, sendo que, se atraídas por sua luz antecipadora da evolução, sendo possível
faltarem condições para viver, toda sua energia e tempo serão agora, por seu intermédio, o grupo continuar a atraí-las, para
empregados na necessidade de lutar para conseguir essas con- vantagem própria e à maneira de cada um. Isto significa adap-
dições, sem as quais não se vive. Ele deve ser virtuoso e traba- tação. Pode ser até desvio, mas trata-se também de um momen-
lhar com as mãos presas, enquanto os demais, que não são san- to do fenômeno da descida do ideal, porquanto o seu rebaixa-
tos, têm as suas livres. Ele, enfim, deve estar pregado numa mento é necessário, se quisermos que ele possa alcançar a Ter-
cruz de dor, sob condições nas quais é difícil trabalhar e pro- ra. Aqui, um ideal de absoluta pureza não consegue existir. Para
duzir para o próximo, mesmo que seja espiritualmente, restan- que possa resistir, é necessário um certo grau de acomodação, o
do-lhe apenas santificar-se e ir para o céu. que significa a sua corrupção. Para sanear o pântano, é preciso
O mundo funciona com outros princípios. Ele está organiza- que a pureza penetre nele e fique manchada.
do para outras finalidades e joga fora da sua corrente quem não Ocorre que o santo é incorporado ao grupo dos seus seguido-
a segue. O ideal na Terra é um luxo de ricos, que, por terem re- res, que o acompanham, levando cada um a sua vantagem. Em
solvido o problema econômico, podem abandonar-se a sonhos. geral, o santo atrai meios econômicos – como as esmolas por
O pobre, pelo contrário, assediado pelas necessidades materiais, exemplo – e o dinheiro constitui a suprema atração no mundo.
deve subordinar tudo a estas, inclusive o ideal. É natural, portan- Vemos isto atualmente, no caso do Padre Pio de Pietralcina, na
to, que ele procure utilizá-lo para sua vantagem em tudo que for Itália. O resultado foi a movimentação de milhões de liras, cons-
possível. É assim que a religião pode servir para tantas coisas truções, enriquecimento do lugar, fanatismo e aglomeração do
não religiosas, ou mesmo antirreligiosas. Quem vive num baixo povo. Para os outros, fica a indústria do santo; para este, as tri-
plano de vida não tem nem deseja ter oportunidade para se meter bulações. Transformando-o depois de morto numa preciosa e
a antecipar formas de vida mais elevadas, porque isto custa tra- rendosa propriedade do grupo, ele se torna em santuário, pere-
balho e sacrifício. Para ele, já é muito conseguir resolver os atu- grinações, esmolas etc. Eis em que o mundo transforma a santi-
ais problemas do seu nível. Ele tem outras necessidades e não dade. O dinheiro, por sua natureza, atrai os piores, de modo que
vai se preocupar com problemas futuros ou planos mais altos. à sua volta começam luta, rivalidade, irregularidade administra-
Não há lugar para enfrentar superações, quando se é martelado tiva, acusações, escândalos e algazarra humana. A autoridade
pelas exigências quotidianas. O mundo enxerga o santo através eclesiástica ora aprova, ora condena, mas somente consagrará o
de sua ótica e somente pode tratá-lo em função dela. santo depois da morte, se, apoiada por um consenso universal,
Na Terra vigora a moral da sobrevivência, e não a da supe- puder incorporá-lo sem risco de se enganar. Então intervém ofi-
ração. Portanto é justo e bom aquilo que serve para viver, en- cialmente e santifica. Com isso, a utilização do santo é legaliza-
quanto é injusto e mau aquilo que conduz à morte. Segundo a da e definitiva. Durante a sua vida, não lhe resta senão penitên-
moral biológica, a experiência de Cristo foi um erro e uma cul- cia, amargura, isolamento, incompreensão, exploração e, fre-
pa. E, de fato, essa moral o castigou com a morte. Ora, o ideal quentemente, condenação. Com mentalidade materialista, a espi-
desejaria derrubar essas leis. Mas é natural que, ao nível huma- ritualidade é relegada a último plano e, no caso acima, reduzida
no, a oferta da possibilidade de uma vida superior possa soar ao fenômeno físico dos estigmas, permanecendo no nível que o
como um engano e uma traição. Não foi, porventura, o instinto mundo compreende. Tudo fica reduzido então àquilo que a for-
52 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
ma mental do mundo exige para seu uso. Oferecem-se ao santo Isolar-se não significa consumir-se em favor dos outros, mas
glória e dinheiro, as coisas que mais lhe dão fastio, mas que me- sim estiolar-se na solidão, não sendo correspondido pela com-
lhor servem aos seus seguidores, cuja preparação é necessária preensão, bondade e comunhão da vida. É um extinguir-se que
para substituí-lo, a fim de se tornarem seus herdeiros e adminis- nos deixa ainda mais sozinhos. Mas outra coisa não se pode es-
tradores, fazendo da santidade uma coisa útil para eles, e não pa- perar de um mundo que se rege por outros princípios. No fundo,
ra o santo. A este se deixa o sacrifício de todas as virtudes, ex- permanece o fato indestrutível da distância evolutiva e da difi-
traindo dele a glória com sua redenção. Esta substituição é o culdade de preenchê-la. Ninguém pode deixar de ser aquilo que
primeiro passo do desenvolvimento do fenômeno da descida de é, nem pode pertencer a um plano evolutivo diverso do seu. A
um ideal. O instinto dos seguidores é utilizar o santo para si, to- verdadeira superioridade é um fato interior, que o mundo não
mando posse dele, a fim de submetê-lo às suas próprias finalida- vê, e quem a possui não deseja mostrá-la. Tal indivíduo baseia a
des. Tentaram assim envenenar São Benedito de Norcia, como sua avaliação sobre o que ele é, e não sobre o que aparenta ser.
também fizeram desaparecer as regras da Ordem de São Fran- De fato, não procura louvores e glória, porque a exaltação da sua
cisco, para tornar os discípulos fiéis na arrecadação de esmolas, pessoa não pode acrescentar nada àquilo que é. O santo baseia-
mas não na vida de penitência. se no consenso de Deus, não dos homens. No entanto é fácil cair
Pode-se ver a razão pela qual, no fenômeno da descida dos na lisonja da glória e ficar seduzido por ela, que está ligada à
ideais, como sucede com as religiões e a espiritualidade na Ter- fama de santidade. Portanto é sábio não mostrar virtudes, para
ra, é inevitável a luta entre dois níveis evolutivos diferentes: o não ser exaltado, pois o cheiro da bondade atrai imediatamente
plano do espírito e o plano do mundo. Ambos exigem satisfa- os astutos, que procuram explorá-la. Para trabalhar em paz, é
ção para as suas necessidades. O homem é involuído, diz o san- melhor confundir-se com a multidão e colocar as vestes de um
to, solicitando-o a subir. O ideal é utopia que mata, grita o pecador normal, mesmo não o sendo. A pessoa boa é presa fácil
mundo, que o adapta às suas próprias comodidades, freando o e gratuita, atraindo os caçadores. Dado o mundo em que se vive,
impulso do santo. Este se debate-se entre os liames da matéria, aparecer como santo também por fora pode excitar algum instin-
para se libertar dela, enquanto o mundo luta para não morrer na to inferior nos outros, que, vendo nisso a pretensão de ser santi-
atmosfera rarefeita do espírito. O santo quer amar com um ficado, reagirão contra. Em vez de estar numa atmosfera de espi-
amor diferente, mas, se o fizer, será destruído. O mundo cuida ritualidade, o santo se encontra imerso na baixa luta humana, cu-
de banquetear-se com a carne da doce ovelha que gostaria de ja tendência é conduzi-lo aos seus fins imediatistas, desviando-o
amá-lo. Grande parte da paixão de Cristo serviu para divertir as dos objetivos que ele pretende alcançar. Então o mundo preten-
feras humanas do seu tempo. derá julgar o seu caso, intrometendo-se nas suas relações com
Com a mente cheia de ideias e o coração repleto de paixão, o Deus, e ele será levado perante o tribunal da opinião pública, cu-
santo deve salvar-se dos mercadores do espírito e da involução riosa, vá e egoísta. Assim, oferece-se às muitas nulidades uma
das massas, que, com a força do número, como clientes compra- ocasião de se divertirem e desabafarem os próprios instintos,
dores dos produtos espirituais, impõe os seus gostos. O mundo penetrando nos sagrados recantos de uma alma, para sujá-lo e
quer o ideal rebaixado ao seu nível, porque, de outro modo, não estragá-lo. Trata-se de uma verdadeira exploração, e o mundo
o entende e não o utiliza. Assim, também o santo deve acabar não merece tais sacrifícios. Mesmo os valores do espírito são
por tomar a cor da Terra, onde vive. Ambos não podem deixar preciosos e não podem ser desperdiçados.
de se manifestar segundo o seu ponto de vista: o santo, com inte- A santidade é um fato individual e interior, que vale por si
ligência e bondade; o mundo, com astúcia e egoísmo. Cada um mesmo, não tendo, para as suas finalidades, necessidade de ser
dos dois enfrenta o outro com os meios que possui! E para lutar reconhecida, glorificada e medida pela autoridade religiosa.
se abraçam. Deste modo se realiza o trabalho da transformação Quem faz o santo é Deus, e não os homens. Sabe-se lá quantos
evolutiva. Esta é a técnica da evolução, na qual o evoluído é santos são desconhecidos pelo mundo! E os que foram, até que
plenamente envolvido como instrumento realizador. ponto chegaram a ser reconhecidos de fato como tais! Poderá o
O contraste é evidente, sendo função da absoluta contradi- homem julgar esses casos? Serão adequados os pontos de refe-
ção dos princípios colocados como base da vida. Às vezes te- rência que ele dispõe? O consenso popular tem um valor relati-
mos vontade de perguntar se não é uma pretensão absurda in- vo, pois significa apenas corresponder a um desejo da massa,
verter as leis biológicas do planeta, para substituí-las. Como que o santo satisfaz. Mas o subconsciente coletivo não possui a
se pode pedir que se ame o próximo, quando cada concessão unidade de medida para julgar tais fenômenos, que superam o
feita em favor da vida deste, que é um inimigo, significa uma plano de evolução em que estão situadas as massas. O alto pode
limitação para a vida de quem concede? Não resta senão adap- julgar o que está em baixo, mas o contrário não é possível. De
tar o ideal, restringindo-o às formas externas na superfície, tudo isso a mediocridade não pode compreender senão a satis-
impedindo-o de intervir na substância, que, dessa maneira, fação dos seus instintos. Assim os concílios podem revelar
não é perturbada por ele. Este é o ideal que existe de fato no aquilo que a maioria pensa e quer. Mas a verdade está acima
mundo, falsificado e reduzido à hipocrisia. Como pode agir o desses acordos, não podendo ser construída por consensos cole-
evoluído, que é levado a tomá-lo a sério? O homem pode es- tivos. Estes oferecem uma verdade relativa, utilizada para os
colher entre estes quatro caminhos: 1) Concordar com o mun- fins da vida em um dado momento e sujeita à contínua evolu-
do e viver conforme a lei terrena, embora dissimulada com ção, como de fato acontece, servindo para a autoridade aliviar a
práticas religiosas, usando a inteligência para camuflar-se de própria responsabilidade e justificar assim as suas decisões.
pessoa de bem e manter-se formalmente no seu lugar; 2) Re- Neste estudo da técnica evolutiva, observamos a posição do
belar-se contra o mundo, colocando-se num estado de guerra mundo perante o santo, como instrumento realizador da descida
pouco evangélico, o qual requer um instinto de agressividade dos ideais. Assim, diante da função do santo, que é o elemento
que o evoluído não possui. Estas duas primeiras opções para a ativo e positivo, situado no ponto mais alto do fenômeno, exami-
difusão de um ideal, que implicam em absolutismo, intransi- namos a função do mundo, que, expressando-se com movimen-
gência, proselitismo e afins, somente podem agradar ao invo- tos de resistência, é o elemento passivo e negativo, situado no
luído; 3) Rebelar-se contra o mundo em forma pacífica, mas ponto mais baixo. O processo evolutivo se realiza com o contato
sofrendo-lhe a reação e acabando como mártir, para vantagem e a conjunção, em forma de luta, entre esses dois extremos de si-
dos sucessores; 4) Isolar-se do mundo, para seguir o seu pró- nal oposto. Desta maneira, o quadro completo resulta não apenas
prio caminho. Esta última alternativa é a única forma de evitar de como o ideal aparece, quando visto pelo mundo, mas também
a mentira, a guerra e a exploração. de como este é visto, quando observado pelo ideal. Vamos agora,
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 53
colocando-nos juntos do lado alto do fenômeno, situado no céu, Além destas formas híbridas de primeira aproximação, existe
analisar melhor a sua parte mais baixa, que está na Terra. o tipo evoluído, o genuíno homem do ideal, aquele que, em no-
O ideal, quando desce ao mundo, concretiza-se na forma de me deste princípio, luta na Terra para superar o mundo. O seu
um edifício constituído por elementos humanos, que, à guisa de jogo não é o comum, para vencer no plano humano, mas sim pa-
células, dispõem-se automaticamente, consoante a sua forma ra realizar um tipo de vida superior, mesmo estando em contras-
mental, valor e função, no seio do processo evolutivo vivido te com aquela vigente. Ele é suficientemente inteligente para
por todos. A base da pirâmide é a mais extensa, porém reúne os compreender tanto o jogo do mundo, como a sua baixeza e seus
tipos mais elementares. Esta é a parte que menos entende e que, perigos, sendo bastante honesto e forte para os repelir. O mundo,
sendo a mais passiva, apenas aceita. Trata-se da massa ignoran- porém, tem seu próprio método e, oferecendo-o, diz-lhe:
te, que segue por fé e sugestão, sem pensar nem compreender. “Deves ser astuto como eu. Mostra-te cheio de virtudes,
Ela crê e vai atrás dos pastores; tem necessidade de ser guiada e como pessoa de bem, digna de toda a confiança; poderás, deste
se deixa conduzir. Constitui o povo que forma o grande corpo modo, realizar melhor o teu interesse, enganando os ingênuos;
das religiões. O interesse dos dirigentes é tê-lo quieto e submis- utiliza esta sapiência que o mundo te oferece, já verificada por
so, para dominá-lo mais tranquilamente. Para este objetivo, a fé longuíssima experiência e, portanto, com resultados garanti-
é um ótimo calmante, aliviando as dores presentes com a espe- dos”. Assim lhe fala o mundo.
rança de um bem futuro acessível a todos, para que se prati- Mas ele sabe que se trata de uma ilusão traiçoeira e não cai
quem as virtudes da paciência e da resignação. na armadilha. Ele está nos antípodas do mundo. Este vê as coi-
A seleção produziu, contudo, uma classe mais desenvolvida sas em sentido oposto, enxergando no ideal uma miragem pela
em inteligência. Trata-se naturalmente do grau mais elementar qual é perigoso deixar-se enganar. Uma vez que é julgado um
da intelectualidade, dada pela astúcia para vencer na luta pela ingênuo quem crê no ideal, não se pode utilizar este de outro
vida. É uma das primeiras emersões evolutivas. Ela serve ape- modo, senão para explorar. Assim o ideal é sustentado, enquan-
nas para viver melhor na Terra, ignorando ainda o valor do ide- to é utilíssimo para realizar esta exploração. Haverá erro e cul-
al, o qual ela se limita a explorar. Trata-se, portanto, de astúcia pa nisto? É a própria vida que exige assim. Estas são as leis do
destinada somente a ser utilizada para finalidades terrenas. plano humano, e estes são os métodos que ele pratica para al-
Aparece então a classe sacerdotal, que, em todos os povos e cançar os seus fins. Não será utopia pretender inverter tudo is-
tempos, procura dominar em nome de Deus. Ela se instala na so? Não será próprio de um tolo ignorar este estado de fato? E
sociedade, colocando a religião como base do seu poder mate- não será justo que se paguem as consequências desta ignorân-
rial. Faz proselitismo, para aumentar com o número a própria cia? Na Terra, o ideal não pode existir senão enquanto serve pa-
potência, condenando as outras religiões e os respectivos sacer- ra viver, tronando-se neste caso um meio cômodo e sutil para
dotes, porque são rivais no domínio das massas. adormecer o próximo e, assim, enganá-lo melhor. Lança-se o
Tendo a religião entrado plenamente no jogo dos interesses anzol, usando o ideal como isca, para se pescar os crentes que a
terrenos, a ela se aliam os ricos e os poderosos, para utilizá-la mordem. Eis para que serve a fé.
naquilo que para eles também é premente: o domínio sobre as Na Terra existem somente duas posições: a do pescador e a
massas. Forma-se então, espontaneamente, segundo as leis uti- do peixe; a de quem pesca e a de quem é pescado. Os seres,
litárias da vida, o acordo e a simbiose entre as partes. Temos mesmo no nível humano, vivem comendo-se uns aos outros.
assim a classe dos bem pensantes, das chamadas pessoas de Paga por todos o peixe de boa-fé, que se deixa pescar. Quem se
bem, religiosas praticantes, que fazem grandes demonstrações sacrifica pelo ideal é liquidado, e o caso fica resolvido. Com o
de fé. Trata-se daqueles que, uma vez compreendido o jogo, seu exemplo, Cristo nos mostrou que o ideal mata. Não signifi-
aprovam-no e apoiam-no, juntando-se à classe sacerdotal, com ca que ele de fato mate, mas sim que o mundo destrói quem,
a finalidade de manter quieto o povo e, assim, não serem per- perdendo-se em busca da perfeição, esquece a luta pela vida. A
turbados em seu banquete. lei da vida é a luta, que está fora de qualquer ideal. Este, então,
Do nível dessas classes, formadas por indivíduos que, para ou é reduzido a uma arma para lutar e, assim, serve para viver,
sua conveniência, estão coligados em grupos, podem emergir ou é tomado a sério e, então, serve para morrer. O idealista é
outros tipos isolados, os quais se preparam para realizar um tra- um sonhador que não se dá conta do nível biológico em que vi-
balho pessoal. Pode surgir então o tipo idealista, que se diz in- ve o homem. Este, todavia, exalta-o e apresenta-o como exem-
vestido de uma missão. Podem ser de vários modelos e alturas. plo, a fim de criar outros idealistas e fazer deles um viveiro pa-
Há o tipo ligeiro e inexperiente, que se faz de idealista, para se ra os seus banquetes. Assim, faz-se do santo uma bandeira a se-
vangloriar. Usa uma auréola fingida de santo, buscando fazer os guir, utilizando-o como isca, para se pescar. Entretanto, se ele
outros acreditarem que seja verdadeira, para receber a venera- não se deixar aprisionar dentro dos interesses de um grupo,
ção. Nesse engano caem os ingênuos, que se tornam seus admi- querendo fazer-se de santo sozinho e independente, para não
radores, para depois, a seu serviço, exigirem dele as mais pesa- ser confiscável, então é combatido, porque não serve a nin-
das virtudes, como pagamento da homenagem tributada. guém. Do ideal existe na Terra apenas o uso que dele se faz.
Pode também haver o malandro, que se faz de idealista para Quando o céu desce à Terra, o homem o faz tornar-se mundo.
enganar o próximo, explorando a sua boa fé, quando, na verda- O santo, o verdadeiro evoluído, o genuíno representante do ide-
de, tem em vista finalidades materiais bem mais concretas. Ele al, está do lado de Deus, oposto ao mundo, tendo por isso o
se apresenta envernizado de santa virtude e de nobre espiritua- mundo contra ele. Ao lado de Deus, mas sozinho em tal ambi-
lidade, mas tem em mente apenas os seus interesses. Dada esta ente, ele deve cumprir o trabalho que a vida lhe confia.
premissa, pode-se imaginar o que ele poderá recolher. Preten-
dendo colocar-se ao lado dos ideais, a fim de invertê-los para XI. A CRISE DA VELHA MORAL
objetivos terrenos, ele se expõe às reações da Lei, contra a qual
se choca, porque ignora o seu funcionamento. A esta altura, a A moral é um instrumento de evolução, porquanto procura
hipocrisia, além de não servir, provoca o contragolpe, que des- educar o homem para uma forma de vida mais elevada. Para re-
trói da mesma forma o engano. alizar esta ascensão, o ideal, antecipando o futuro, toma forma
Uma posição menos perigosa perante o ideal, porque possui concreta em normas de conduta, cujo objetivo é, através de
ao menos a virtude da sinceridade, é a do ateu convicto, que re- longa repetição, fazer o indivíduo assimilar hábitos e, com isso,
conhece com franqueza as leis do plano animal-humano e repe- enriquecê-lo de novas qualidades, de modo a transformá-lo
le o ideal, julgando-o como utopia estranha à realidade da vida. num tipo biológico mais evoluído.
54 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
Ora, pode ocorrer um choque entre a vontade do homem de plena moral, triunfa a lei do mais forte, que é a lei da Ter-
superior, cuja meta é fazer evoluir, e o inferior, que resiste, re- ra, ficando o ideal aqui invertido e vencido.
cusando-se a realizar o esforço exigido por aquela vontade, para Isto é inevitável em um mundo de rivalidades, onde a van-
sua própria transformação. Temos uma luta entre o alto e o bai- tagem de um se paga com o dano do outro. O resultado de tudo
xo, envolvendo dois planos de evolução, um mais avançado e isso é que, imersa em nossa realidade biológica, a moral se re-
outro menos, o primeiro fazendo pressão para se impor ao se- duz a um meio para dominar, de modo que a bondade e a ho-
gundo, e este resistindo nas suas velhas e seguras posições, para nestidade se tornam defeitos punidos pela vida, enquanto a
fugir ao esforço de criar o novo e ao risco de aventurar-se no força e a astúcia são virtudes recompensadas por ela. Eis que,
desconhecido. Quem tem razão? Cada uma das duas posições perante a realidade da vida, muitas qualidades proclamadas pe-
está certa em relação ao seu ponto de referência, mas é errada la moral são atributos negativos e antivitais, enquanto qualida-
perante o outro. Se o evoluído, com o ideal, quer fazer a vida des como a revolta e o egoísmo são valores positivos e vitais.
avançar perigosamente, o involuído deseja, ao contrário, con- O homem religioso não luta, por isso a vida o deixa cair entre
servar as posições mais seguras, conquistadas no passado. A os vencidos, sendo que a própria fêmea, expressão das leis da
moral assume a tarefa de disciplinar e, assim, tornar possível a natureza na escolha sexual, repele-o. Assim, ao invés de um
transformação evolutiva. Deste modo, a moral está no meio do oásis de super-homens, a religião pode tornar-se um refúgio de
caminho entre os dois focos, sendo o campo de batalha onde se poltrões, que nela procuram proteção, mascarando sua fraque-
dá o choque entre as duas vontades opostas. za sob um manto de virtudes. Até para pecar é necessário ter
O contraste resulta evidente em nosso mundo. Aqui a reali- iniciativa e coragem, expondo-se a riscos e consequências,
dade biológica, em pleno vigor, impõe sua lei, bem diversa do muito mais do que para não fazer coisa alguma. A moral, en-
ideal proclamado pelas religiões. Não pregam estas, porventu- tão, é feita sobretudo para domar os fortes, que sabem lutar pa-
ra, que é necessário sermos bons? No entanto o choque surgiu ra sobreviver e superar as restrições à sua expansão vital. A
assim que o homem apareceu, quando, pelo menos de acordo eles, portanto, deveria ser dirigida a moral, e não aos fracos,
com a Bíblia, Caim matou Abel. Caim é mau, porém sobrevi- que, por sua própria natureza, já são submissos, necessitando
ve. Abel é bom, no entanto morre. A moral religiosa promete de defesa. Estes são simples e de boa fé, crendo com facilida-
justiça, remetendo-a para o misterioso além-túmulo. A moral de, enquanto a luta pela vida exige astúcia e desconfiança, so-
biológica, imediatamente e de fato, recompensa Caim com a bretudo com aqueles que aconselham a crer. Para este ingênuo
vida e condena Abel com a morte. Desde o início da humani- rebanho de crentes, seria mais conveniente uma moral de tipo
dade, vê-se qual o fim reservado para os bons. Ao idealista da oposto, não restritivo, mas sim estimulante, que, ao invés de
outra moral não resta outra coisa senão compensar Abel com ser uma escola de sofrimentos, desvendasse para eles todas as
luz celestial e punir Caim com trevas e terrores. Mas permane- velhacarias humanas. Uma moral que, além de virtude, hones-
cem os fatos, que dizem para não sermos tão bons a ponto de tidade e fé, ensinasse os fracos a descobrir todos os truques do
nos deixar matar pelos maus. Em suma, a vida é mais defendi- falso ideal, torcido pelos mais hábeis a serviço de si mesmos,
da pela moral inferior do que pela superior, cujo mandamento para enganar os bons, e que os salvasse, iluminando-os sobre o
é para nos sacrificarmos pelo ideal, com altruísmo e renúncia. que de fato constituem na Terra as verdades da fé. Seria neces-
Como pretender que a vida aceite isso sem reagir por legítima sário esclarecer, afastando as trevas da ignorância e apontando
defesa? Não é o martírio o fim natural das grandes bondades? a falsa religião, para mostrar qual é a verdadeira espiritualida-
Cristo é uma lição. Assim se explica a razão pela qual o invo- de. Mas quem fará uma escola assim para esses pobres hones-
luído se defende do ideal como se este fosse um inimigo, trans- tos? Eles devem aprender à sua custa, porque o interesse da
formando-o em hipocrisia e procurando todas as escapatórias classe dominante é esconder, ensinando a moral que mais lhe
para se evadir dele. Se isto acontece, então deve ter a sua razão convém. Se o rebanho for iluminado, o jogo será descoberto,
de ser. Desde os mandamentos de Moisés, não constitui por- então adeus às posições de domínio! Assim se cultiva a boa-fé
ventura a moral para o primitivo sempre uma série de cons- das massas, para que fiquem obedientes... Esta é a verdadeira
trangimentos, limitando-lhe a liberdade? É natural, pois, que moral da Terra, sendo este, muitas vezes, o objetivo para o
ele se rebele. Estes mandamentos insistem sobretudo no “não qual é usada a mais alta moral do céu.
fazer”. Pressupõem que o indivíduo quer fazer o mal e o proí- É este segundo tipo de escola que procuramos fazer agora,
bem de fazê-lo. Dirigem-se a um ser rebelde e querem cons- nesta parte final da Obra, em defesa dos honestos de boa-fé, fa-
trangê-lo à obediência. Esta é a atitude do domador. cilmente enganados pela velha moral. Mas a iniciativa não é
Penetrando assim no plano humano, a moral se encontrou apenas nossa. Estamos de pleno acordo com os tempos, porque
em um regime de luta e se enxertou nesta, fazendo-se instru- é exatamente agora que a nova geração está se levantando con-
mento dela. Absorvendo-lhe as qualidades, tornou-se um meio tra aquela moral do passado. Nós iniciamos este processo
de domínio e uma arma de defesa dos interesses da classe sa- quando ela se encontrava em pleno poder e tinha, portanto, toda
cerdotal e aristocrática. Temos uma moral levada ao nível da a razão. É certo que tais explicações não podem agradar àqueles
vida terrena, guiada pelo instinto de conservação e utilizada interessados em que o belo jogo fique escondido e continue.
em favor da vantagem egoísta de cada um. Com isso, o invo- Mas os tempos mudaram, e eles não governam mais. Então é
luído reage e toma a sua desforra, de modo que, em vez de as- caridade cristã esclarecer os ingênuos, mesmo que aqueles inte-
cender, corrompe o ideal, desfrutando-o para os seus próprios ressados se rebelem contra isso, com gritos de escândalo, por-
fins utilitários. Ele se justifica com o fato de que na Terra fica que, sem a boa-fé, perdem a clientela. Trata-se simplesmente de
dominado tanto quem não é forte e hábil para saber defender- abrir os olhos dos bons, para que não se deixem enganar.
se com a revolta ou a mentira, como quem, por ser bom e ho- Transbordam de boa-fé os primeiros volumes da Obra, que o
nesto, cede em favor do próximo. Consoante a moral da vida, mundo pode achar ingênua. Mas ele não poderá rir-se desta se-
há somente duas posições: a do forte, que vence e comanda, e gunda parte, que lhe descreve os truques. No final da sua vida,
a do débil, que, vencido, deve obedecer. Impondo-se à força, o autor teve de imergir na dura realidade, de modo que agora,
o primeiro se expande e se satisfaz à custa do segundo, en- nestes últimos volumes, já pode mostrar as coisas vistas tanto
quanto este, sendo fraco ou suportando por bondade, retrai-se em relação ao céu, como à Terra. E pode fazer isso não só res-
e renuncia a favor do primeiro. Então a moral favorece os for- peitando as verdades já enunciadas e demonstradas, mas tam-
tes em prejuízo dos fracos, servindo para impor deveres e re- bém denunciando as deformações com que elas são apresenta-
núncias a estes últimos, para vantagem daqueles. Em regime das no mundo. Enquanto se exalta a fé, a experiência da vida
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 55
ensina a não crer, porque tudo está coberto de enganos. Como poder enriquecer. O próprio Evangelho diz para dar aos po-
se costuma dizer, a verdade, muitas vezes, não passa de uma bres o supérfluo. Entretanto, para dar aos pobres, é necessário
mentira que ainda não foi descoberta. De fato, no mundo, atrás antes chegar a possuir. É evidente que não se pode ser genero-
de cada afirmação procura-se o que poderá estar escondida, não so se, inicialmente, não se acumulou fortuna. O pobre tem
se ficando tranquilo, enquanto não se descobre a verdade. coisas mais urgentes para pensar, do que fazer beneficência.
O leitor não encontrará nestes volumes finais o estilo dos Ele está suficientemente oprimido com a sua própria luta, para
primeiros. Entre aqueles e estes decorreram muitos anos de poder ocupar-se com a dos outros e ajudá-los. Assim, a virtu-
dura experiência. Mas isto foi útil, porque permitiu completar de da beneficência permanece um luxo dos ricos, um embele-
o quadro, fazendo ver também o outro lado da medalha. Pas- zamento reservado para lhes servir de adorno, constituindo
sar da posição de rico à de pobre faz compreender muitas para os pobres uma qualidade vedada, juntamente com a sua
coisas, que de outro modo não se poderia entender. Quando recompensa no paraíso, a qual, ao contrário, os ricos esperam
não se é protegido por meios econômicos e por uma posição como benefício adquirido por direito. Para aqueles que soube-
social, a vida se torna outra. Quando se possuem os meios ram enriquecer, levando uma vida abastada, cujas condições a
para pagar, tem-se sempre razão, mesmo que se erre; todos se beneficência não altera, há o paraíso merecido e a gratidão
inclinam e louvam, ainda que se trate de um idiota. Isto, no devida a eles pelos pobres que não souberam ficar ricos. Por
entanto, quando não se têm os meios para pagar, não é verda- isso, dando pouco em comparação com aquilo que tem para
de, então se descobre o verdadeiro rosto do homem. Por gozar, o rico resgata o seu pecado de origem, que deve ser
exemplo, Teilhard de Chardin tinha margem para sonhar, perdoado, pois é condição necessária para alcançar sua rique-
porque era protegido por sua Ordem. Sem isso, a vida o teria za, sem a qual não se pode fazer beneficência.
liquidado. O ideal, então, é um desporto reservado aos ricos. Hoje este elástico jogo de compromissos foi substituído pe-
No caso oposto, ele deve fazer-se de ferro, para travar no los direitos calculados do trabalhador. O pobre não confia mais
mundo a sua dura batalha. Assim, aos sublimes amores do no beneplácito de quem possui e já não se adapta a servir de
espírito sucede o terror da realidade; às visões celestes, a instrumento para que outros possam alcançar o paraíso. O po-
crucificação. Isto tudo se compreende quando, depois do so- bre, nos países civilizados, simplesmente conquistou com as
nho inebriante, trespassa a própria pele a queimadura provin- suas forças o direito de ser ajudado. A beneficência foi no pas-
da do contato com o que é de fato a vida. sado um modo de ir vivendo com pouco incômodo. Amar o
Nestes últimos livros, devemos mostrar também este outro próximo é outra coisa e implica em superar as distâncias, para
lado da verdade, que o mundo esconde, pois iluminar os bons é se avizinhar dos outros. A beneficência é o ato de quem está no
contraproducente para os astutos. Ora, que há de estranho nis- alto e, lá permanecendo, permite-se olhar para baixo, signifi-
so? A lei da vida não manda porventura que todos se devorem cando humilhação para quem está em baixo e aí continua. O
reciprocamente? Esta é a realidade que constatamos. Primeiro pobre não sabe o que fazer com o rico que se deixa empobrecer
eliminam-se os mais débeis. Depois se faz a guerra entre os for- para se irmanar com ele, porque tem necessidade de bens, e não
tes e, por último, também estes se matam entre si. Quantos deli- de amor. Se não existe coisa alguma para se apossar, esses he-
tos e quanta dor! Esta é a vida em nosso nível de evolução. Mas roísmos não lhe servem para nada.
deixar de ser ingênuo não significa que a bondade deva desapa- Observamos em outros casos as contradições da velha mo-
recer. Ver e compreender não implica suprimir a fé, pois conti- ral. Na vida dos santos, são exaltados, ou pelo menos não são
nua-se a crer, porém com os olhos abertos, controlando-se aqui- condenados, atos que, para um mortal comum, são considera-
lo que se julga corresponder à verdade, em vez de se engolir dos culpa. Por exemplo, São Francisco, para aventurar-se pelo
mistérios cegamente. O idealista não deve ser um ingênuo. To- mundo a fora, abandona o pai e a mãe, sendo esta inocente da
do o trabalho feito nesta Obra foi para se chegar a crer, mas perseguição paterna ao filho. A Igreja exaltou o santo, enquanto
através da razão, com uma fé positiva, aderente à realidade. este lhe servia para sustentar o Latrão em decadência, como se
Tudo é levado ao contato com esta, para então ser verificado. compreende da visão do Papa Inocêncio III no afresco de Giot-
Isto significa o contrário da comum tendência humana, que é se to em Assis. Mas à Igreja não interessou de modo algum o caso
declarar infalível, resolvendo dúvidas e problemas com afirma- da mãe, que ficou solitária na velhice, sem o direito de ser as-
ções pessoais, de caráter absolutista, impostas à fé dos outros, sistida pelo filho. Cristo, também, para discutir com os doutores
para assegurar assim a sua verdade e justificar a própria autori- aos doze anos, não se importou de maneira nenhuma com o pai
dade. Um idealista completo deve ver também o lado oposto à e com a mãe, que ansiosamente o procuravam. Serão estes,
verdade, o lado anti-ideal, feito de trevas e negação. porventura, exemplos a seguir? Outros poderiam ser citados.
É assim que, quando procura estigmatizar a imoralidade que Na Terra, ideais, princípios e moral são utilizados para fi-
o mundo esconde debaixo da sua moral, esta última parte da nalidades humanas. Observamos que isso se verifica em todos
Obra não contradiz nem renega a primeira, mas sim a confirma. os campos, tanto em relação ao cristianismo como ao comu-
Esta é uma renovação de estilo e de conteúdo expositivo, decor- nismo; tanto para os conservadores, como para os revolucioná-
rente de um modo diferente de vida do autor nesta sua fase fi- rios. Por exemplo, quão diferentes da santidade foram os obje-
nal, no país denominado “Coração do Mundo e Pátria do Evan- tivos a que se prestaram as Cruzadas! Tudo é utilizado para
gelho” (atendendo ao desejo de outros leitores que vão se bene- servir ao que mais convém: guerra, negócios, carreiras, con-
ficiar com esta referência). Mostra, finalmente, também o lado quista de posições, domínio, desabafo de instintos etc. Esta é a
da sombra do fenômeno, e não somente o da luz, completando- realidade basilar, que depois é coberta de santas finalidades. O
o. Dizia um astrônomo que, no cosmo, a luz é exceção, enquan- grande iniciador de cada movimento, com os seus métodos e
to as trevas são a regra. Este nosso trabalho não é para agredir princípios, é rapidamente posto de lado. Isto ocorreu com Cris-
nem para criticar com o objetivo de demolir. Ele é movido pela to e também com Karl Marx. Depois, por necessidade de adap-
boa intenção de secundar, com a finalidade de fazer o bem, a tação à realidade, surge o revisionismo, bem conhecido pela
mensagem esclarecedora dos nossos tempos. Igreja, que se dividiu entre católicos e protestantes, para que
Observemos, por exemplo, o que significa na realidade a cada grupo pudesse construir um Cristo diferente, de acordo
virtude da beneficência. Para poder fazê-la, é necessário ter os com as suas próprias necessidades. Russos e chineses fizeram
meios, ou seja, ser rico. No entanto, honestamente e apenas à o mesmo em relação a Karl Marx e Lenine.
custa de trabalho, é difícil tornar-se rico. Então não se pode No âmbito do cristianismo, para se poder falar da ajuda de
fazer beneficência, sem ter sido primeiramente desonesto para Deus, é necessário, na realidade, primeiro vencer. Só depois,
56 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
sobre este fato positivo, pode-se, como interpretação da vitó- Hoje, ao sonho para alcançar ideais de metas longínquas se
ria, construir o milagre. Uma guerra vitoriosa pode constituir a substitui a plena realidade de uma civilização de consumo. Te-
prova de que Deus se colocou do lado do vencedor. Deste mo- mos assim, de um lado, a busca por um resultado real e imedia-
do, uma guerra feita em nome de Deus está destinada a vencer. to, para levantar o nível econômico, e do outro, um cansaço
Naturalmente, isso é verdadeiro quando se verifica de fato e crônico de todo o idealismo, agora gasto por um longo e mau
quando existe quem acredite nisto, deixando-se sugestionar por uso. O homem tornou-se mais prático, querendo melhorar de
aqueles que, em sua própria vantagem, lançam tal ideia, ou fato e rapidamente as suas condições de vida. Com auxílio da
aceite isso por interesse próprio. Quando se vence, então o re- ciência e da técnica, ele possui os meios para chegar a isso. É
sultado foi indubitavelmente desejado por Deus. Quando se com esta finalidade concreta, por um princípio utilitário de
perde, então foi porque não era desejado por Ele, justificando- maior rendimento, e não por um ideal de honestidade, que hoje
se com isso a derrota. Com tal forma mental, na Idade Média, não se quer mais perder tempo, escondendo-se atrás da hipocri-
papas e antipapas se excomungavam reciprocamente, inclusive sia. Trata-se apenas de libertar-se de um estorvo.
os imperadores. Assim aconteceu com Henrique IV, que, hu- Este processo de renovação penetra em tudo, inclusive nas
milhado em Canossa, foi obrigado a se penitenciar. Também a religiões, sendo hoje um fenômeno universal, que atinge todas
Alemanha, na Segunda Guerra Mundial, tinha apregoado o as formas de vida, individual e social. Aumentou o sentido de
“slogan”: “Deus está conosco”. Se ela tivesse vencido, tal crítica, de autocontrole e de responsabilidade. A ciência, com
afirmação teria sido transformada em uma verdade. as suas conquistas, criou uma forma mental realizadora, segun-
Estes poucos exemplos, escolhidos ao acaso, podem parecer do a qual as vagas promessas incontroláveis e dirigidas ao futu-
uma crítica malévola. No entanto desejamos, pelo contrário, ro não são mais tomadas em consideração.
apenas assegurarmo-nos de que tudo fique bem sólido, para que O nosso tempo fez-se racional e quer coisas positivas. Por
resista a tais ataques. Estamos no fim da Obra e procuramos sa- isso os ideais não são tomados em consideração. A técnica
cudi-la, para fazer cair tudo que não seja forte e seguro, deixan- não somente oferece metas diferentes, de caráter utilitário e de
do permanecer apenas o que resiste e, portanto, é feito para du- atuação imediata, sem sonhos nem demoras, mas também as
rar. Trata-se de um controle, de uma verificação, de um exame está realizando, o que é mais convincente. O novo ideal é o
de consciência, de uma autoanálise, com a finalidade de de- bem-estar material, com a elevação do nível de vida, para tor-
monstrar que a Obra não é um ingênuo idílio espiritual fora da ná-la mais fácil e segura. Bem diferente de um progresso espi-
vida. Até agora, no entanto, as teorias, vistas num lampejo de ritual, trata-se de um programa pequeno e burguês, mas con-
fé, saíram consolidadas deste processo demolidor. As eternas creto, terreno e acessível. Restringem-se assim os grandes ho-
verdades tomaram nomes científicos e, sob esta nova veste, rizontes do espírito, em vez dos quais se preferem outros,
permaneceram as mesmas. Destruir a hipocrisia não é contra, mais limitados, porém com vantagens mais reais. Pelo fato de
mas sim a favor da religião. Mesmo que isto possa soar a es- ser conveniente, tudo isto é aceito. As pessoas se cansam me-
cândalo, surge uma religião mais pura e resistente, para maior nos, tendo uma vida mais cômoda e segura, mesmo que, para
glória de Deus. A fim de poder compreender bem um fato, é isso, o homem sacrifique a sua personalidade e se reduza a um
necessário analisá-lo sob todos os ângulos, observando não so- elemento anônimo na imensa multidão, economicamente en-
mente o seu lado positivo de bem, mas também seu lado nega- quadrada e valorizada sobretudo como consumidora de produ-
tivo de mal; não somente sua parte espiritual elevada, mas tam- tos. Mas ao indivíduo, ainda que esteja espiritualmente destru-
bém aquela material e utilitária. Se, no passado, a grande preo- ído, não falta nada, ficando resolvido assim para ele – embora
cupação era matarem-se uns aos outros e fazer filhos, é neces- a um nível mais baixo, de satisfação e proteção animal – o
sário que, no futuro, ela consista em pensar e compreender. tremendo problema da vida. Na verdade, ele pode até mesmo
◘ ◘ ◘ poupar-se da fadiga de formar a sua própria personalidade,
Antes de observarmos mais de perto o problema da crise da pois esta a sociedade já lhe fornece confeccionada e pronta
velha moral, vejamos de que revolução mental e social esta para uso com as instruções, sendo pré-fabricada conforme de-
transformação deriva, identificando de quais fenômenos subs- terminados modelos, de maneira que nada mais há para fazer,
tanciais ela emergiu, até se concretizar em uma nova ética. Qual senão endossá-la e servir-se dela. Isto é cômodo, pois simpli-
é hoje a posição do homem normal, do tipo mais comum, que fica e facilita, ao mesmo tempo em que enquadra todos numa
forma a maioria? Vivemos num período que, no seu conjunto, ordem, resolvendo assim o problema da convivência. Assim
do ponto de vista da espiritualidade, pode ser chamado de co- entra-se no rebanho, de modo que alma e corpo são massifi-
lapso. Os ideais eram antigamente uma forma de hipocrisia útil cados. Se isso oferece vantagens, não há razão para que a vi-
para cobrir a realidade com um belo manto. Parecia que salvar da, pelo fato de ser utilitária, não se adapte a esta nova forma.
as aparências era o suficiente para se ficar satisfeito. Salvava-se Possivelmente, porém, tudo responde aos mesmos fins, não
a coisa mais importante, que era poder, honrosamente, realizar constituindo senão uma fase de transição, na qual se dá um pri-
as suas próprias conveniências. Hoje, em um mundo de menta- meiro passo, necessário para poder depois, socialmente, evoluir
lidade mais positiva, não se perde mais tempo com esses jogos até ao estado orgânico. Provavelmente a vida executa de propó-
complicados – que não chegam a nenhum resultado, pois es- sito – pois faz parte dos seus planos – esta absorção do indiví-
condem o mal, em vez de eliminá-lo – dando-se primazia ao duo na coletividade, tendendo a realizar para a humanidade um
caminho mais rápido e produtivo de enfrentar os problemas e tipo de existência social unitária, através da qual é possível rea-
resolvê-los. Então, dado o uso que se fazia dos ideais, prefere- lizar conquistas que, no estado atual de separatismo e luta, não
se hoje colocá-los de lado e olhar a realidade como ela é, aber- seriam possíveis. Não podemos admitir, dada a lógica da vida,
tamente, com plena sinceridade, a fim de compreendê-la e pro- que tal anulação da personalidade, com a inserção do indivíduo
curar remédio para os males com uma conduta diversa, mais num tipo de vida mecanizada e em série, possa trazer um prejuí-
iluminada, evitando erros e os respectivos danos. Libertamo- zo definitivo, exaurindo-se em si mesma, sem produzir nada. Pe-
nos das superestruturas que não servem à vida e que lhe impe- lo contrário, por esta mesma lógica, devemos acreditar que se
dem o caminho. Paralelamente à decadência da fé religiosa, trata apenas de uma fase transitória, a qual deverá depois abrir-
corresponde a decadência da fé política. Mas não é esta ou se em direção a outro modelo de existência, onde o homem vol-
aquela fé que decai, e sim a atitude com a qual elas são conce- tará a afirmar a sua individualidade. Isto sucederá através de
bidas. Perante tal onda de realizações práticas, tudo é dominado uma revalorização do sujeito, cujo rendimento pessoal será mai-
pela indiferença e pelo agnosticismo. or do que aquele possível de se alcançar com o sistema separa-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 57
tista vigente, porque o indivíduo terá ao seu lado, em harmoni- a ascese evolutiva, aproveitando a preparação que abriu as por-
osa colaboração, o apoio de uma coletividade orgânica, enquan- tas para uma retomada. A explicação de como é possível acon-
to hoje ele se encontra em luta contra todos. Em um mundo de tecer isso, pode ser obtida com um exemplo tomado no próprio
rivalidades falta a contribuição das forças amigas, inexistindo progresso tecnológico. Este criou os computadores eletrônicos,
coordenação, confiança e segurança, qualidades necessárias para que, poupando muito trabalho mental, podem parecer um con-
poder dar o rendimento máximo ao trabalho humano. vite ao ócio. Existe, no entanto, um fato contrário. Pelo fato de
Hoje o ideal do homem comum abandonou os programas de permitirem resolver muitos problemas anteriormente incompre-
salvação eterna, reduzindo-se a um mínimo. Está limitado à dis- ensíveis, demasiado difíceis, essas invenções enfrentam hoje
tribuição de bens de consumo, como ter casa, comida, ordenado outros, mais complicados ainda, que se tornaram assim acessí-
e pensão, para satisfazer interesses particulares. Ao homem co- veis. Com isso, o resultado não é o ócio, mas sim um trabalho
mum não interessa de fato as grandes coisas, que estão fora do novo e mais complexo, com ampliação de horizontes.
seu alcance. O programa normal agora é seguir o caminho de A verdade é que a vida calcula e economiza as suas forças,
menor resistência, com o método da imitação; adquirir seguran- permitindo repousos, mas utilizando-os como fases transitórias,
ça, evitando fadigosas iniciativas; resolver o problema da vida, intercaladas no seu contínuo desenvolvimento. Ela existe como
com o menor risco e a maior comodidade possível; procurar a tendência constante em direção a um fim a alcançar e vale en-
vantagem própria, indiferente a todo o resto. Já se preocupando quanto é adotada como meio para realizar os seus objetivos. Se
bastante com seus afazeres, o homem médio limita-se a observar lhe retirarmos isto, ela se esvaziará de todo o conteúdo, cor-
com total indiferença o modo pelo qual os grandes, que estão rompendo-se e extinguindo-se. O necessário repouso para re-
por cima, resolvem os seus, rindo-se de suas dificuldades e di- tomar depois o caminho é uma coisa; a inércia, que não quer
vertindo-se com o espetáculo que lhe oferecem religião e políti- mais avançar, é outra. Por isso é inevitável que amanhã, quando
ca. O espírito, tomado a sério, traz exigências e incômodos. En- a vida tiver resolvido o fatigante problema animal das necessi-
tão, para não mentir, prefere-se colocá-lo simplesmente de lado. dades materiais, a evolução retome em seu turbilhão a humani-
Resolve-se a questão espiritual através de sua supressão, ado- dade, no plano espiritual, em maior escala e maior conhecimen-
tando-se uma atitude insensível a seu respeito. to que no passado. A vida é um organismo no qual aquilo que
A tendência geral, mesmo para os pregadores dos novos não funciona para o fim prefixado não tem direito de existir,
evangelhos econômicos, é desembocar no aburguesamento gastando-se e morrendo, já que ela o lança para fora da sua cor-
feito de bem-estar, ainda que, no início, a sua posição revolu- rente. No final, o que é inútil acaba sendo eliminado.
cionária condenasse isso. Mas as revoluções se estancam e o Estes fatos justificam a presença da dura lei da luta pela vida,
seu impulso acaba mergulhando no comodismo. Seus ideais porquanto ela impõe uma incessante atividade para a conquista
passam a ser então ganhar muito dinheiro e, com isso, uma evolutiva. Essa luta obriga a uma experimentação constante,
posição social. Os esfomeados se detêm naturalmente, quan- proporcionada ao nível biológico no qual vive o indivíduo. Se
do alcançam o bem-estar que os sacia. Esta é a lei do fenô- ela, no grau animal-humano, é destruição e construção no plano
meno, igual para todos. Depois de feito um esforço, a vida físico, representa, todavia, uma escola para levar à aquisição de
quer descansar, para lhe gozar o fruto. O belo ideal é risco e novas qualidades, que desenvolvem o ser mentalmente.
fadiga, estando longe demais para ser atingido, de modo que, Ora, o fato de se ter alcançado em alguns países um alto pa-
no fim, não resta senão o cansaço. Envelhece-se, mas não se drão econômico pode implicar o perigo de paralisar a função vi-
realizou quase nada. Então, apesar de ansiosa por subir, a tal daquela lei de luta pela vida, levando a tristes consequências.
evolução se detém, para permitir quem a seguiu tomar fôlego O fenômeno não é novo e, historicamente, verificou-se nas aris-
e avaliar as suas forças. A vida, que é econômica e utilitária, tocracias adaptadas ao bem-estar. Esta é a tendência atual. Higi-
calcula tudo isso. As revoluções se acalmam até o ponto no ene e Medicina se encarregaram de proteger a saúde. As guerras
qual acumulam as energias necessárias para realizar os novos não pedem mais ao indivíduo coragem ou qualquer ato de valor,
movimentos que a esperam. A vida coloca de lado as subli- porque a defesa não será mais individual, e sim nacional, confi-
mes aventuras evolutivas, dobrando-se sobre a pequena reali- ada a uma tecnocracia de especialistas. A organização social po-
dade terrena, em vez de enfrentá-la para superá-la, adaptan- derá garantir a segurança econômica. Muito trabalho será confi-
do-se e contentando-se em fazer dela, momentaneamente, seu ado às máquinas, e a automatização economizará toda a fadiga.
único fim. O grande ideal fica no estado de sonho e nostalgia Não faltarão alimento, repouso, meios de transporte e comodi-
da alma, porque é difícil realizar subitamente aquilo que está dades. Para os povos não preparados para fazer bom uso de tal
no alto e que – sem jamais deixar de exigir reais sacrifícios e condição, tudo isso pode representar uma mudança imprevista e
fadigas – em vez de pagar imediatamente, só promete que o perigosa, na medida em que pode conduzir a deformações suce-
fará, mas não se sabe quando, como e onde. Não se vive só dâneas, em vez de levar a mais altos tipos de trabalho. A história
de esperanças. Então vai-se embora, apagando-se a grande nos mostra qual o fim das aristocracias ociosas e adormecidas
luz do espírito, para nos tornarmos crianças, às quais restam nos prazeres. A vida as arrasta na dura mas vital corrente das
apenas os seus brinquedos terrenos. experiências às quais a luta pela sobrevivência conduz.
No fundo, esta adaptação à realidade significa a grande re- A existência é feita de tensão constante, dirigida para o fu-
núncia do indivíduo a se tornar super-homem, resignando-se turo. Se o repouso, após haver cumprido a sua função de retem-
assim a permanecer homem-animal. No entanto tal adaptação perar as forças, prolongar-se muito, então ele envenenará. Ve-
tem as suas virtudes. O indivíduo se torna tranquilo, convenien- mos isto também no plano físico, em nossa vida quotidiana.
te e racionalmente utilitário, sem o desespero e sem, pode-se Quem estaciona demais ao longo da estrada da evolução é cor-
dizer, a tristeza dos renunciadores, porque não tem a consciên- roído pelo grande vendaval do tempo, que continua a correr
cia da perda que isso tudo representa. Acaba-se vivendo em sem parar. Terminado um esforço criador, é necessário encon-
paz, sob um céu sem Deus, tendo uma vida cômoda, bem calcu- trar outro, mais avançado ainda no campo da criação. Tudo isso
lada, mas sem superações e sem esperanças, desinteressando-se está expresso nos instintos da própria insaciabilidade dos nos-
de tudo o que não seja vantagem imediata. Assim, ocupando-se sos desejos. A vida é feita para avançar; é uma estrada na qual
em produzir em vez de conhecer, paga-se com o sacrifício do todos estamos caminhando; é uma pista na qual nós somos os
espírito o bem-estar material. Para evitar tal suicídio, a salvação veículos. Os que não marcham devem ser colocados de lado,
e a sabedoria, bem como o bem-estar, consistiriam em não se fora do caminho, para não se tornarem um obstáculo nem aca-
entregar à preguiça, mas sim efetuar outro trabalho, neste caso barem, assim, sendo atropelados.
58 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
Com os povos e as classes sociais acontece o mesmo. Os es- quanto a população aumentou de 12 para 53 milhões. Se isto
fomeados assaltam os saciados, os pobres atacam os ricos, eli- aconteceu depois que a Igreja perdeu o poder temporal, quais
minando-os, se estes se deixaram enfraquecer. Assim todos são seriam as consequências se ela perdesse o poder econômico?
arrastados no turbilhão da vida, que quer experimentar para Quantas vocações restariam? O homem se tornou mais prático,
avançar. E, se os povos pobres encontram o bem-estar, a vida preferindo as vantagens terrenas às do além. É natural, então,
os investe subitamente de capital biológico, com o acréscimo imaginar-se e escolher-se carreiras mais rendosas, que custem
de população. Mas é lei econômica que o aumento da quantida- menos renúncias. Pensa-se que violar a castidade é considerado
de de um produto lhe diminui o valor. Então o homem vale ca- um sacrilégio. Pertencer a algumas ordens religiosas significa
da vez menos, até chegar a um ponto no qual, com a multidão, não poder possuir, comprar, vender ou creditar. O sacrifício é
torna-se um embaraço, o que leva às guerras. E, quanto mais real, enquanto o ganho é duvidoso. Assim, o fator utilitário não
aumentar o bem-estar, mais crescerá a população e, com isso, pode deixar de influir nas vocações. Em nosso tempo crítico e
as lutas armadas. No último conflito mundial, com todos os es- positivo, o problema de salvar e santificar alma tornou-se, pe-
tragos havidos, a população do mundo, no seu total, aumentou. rante os resultados tangíveis, muito menos importante.
Pode ser que a vida queira restabelecer o equilíbrio, utilizando a Existe, pois, o fato de que o público se tornou menos ingê-
arma mais decisiva, através de uma guerra atômica. O progres- nuo hoje e, por isso, não só percebe quando o sacerdote, com a
so atual a impede de usar os seus habituais expedientes, como a sua conduta, entra em contradição com os princípios que pro-
fome, as epidemias etc. Como se vê, encontramo-nos perante fessa, mas também exige que este os aplique e que prove com
um encadeamento de leis biológicas, que estabelecem o tipo e fatos acreditar verdadeiramente neles. Tal comportamento é
os limites dos nossos movimentos, não sendo possível ninguém bem diferente da conduta de um bom empregado da adminis-
fugir a elas. Neste pano de fundo verifica-se o fenômeno toma- tração eclesiástica. O fiel faz-se mais critico, exigindo que os
do aqui para exame: a crise da velha moral. pastores pelo menos pratiquem o que pregam. Isto pelo fato de
◘ ◘ ◘ lhe ser útil o que eles pregam. Para o fiel, isto significa colocá-
Observemos agora essa crise em seu aspecto mais vivo, los ao seu serviço, para lhe fazer gratuitamente o trabalho espi-
no seio da religião mais difundida no Ocidente: o catolicis- ritual. Ora, quem, para chegar a uma situação eclesiástica, teve
mo. Ela é confirmada por um fato novo e significativo, dado de realizar o esforço de superar muitas dificuldades, sendo de-
pela atualização que a Igreja, tão tradicional e conservadora, pois sobrecarregado de renúncias e de disciplina – sacrifício
vem empreendendo. Os conceitos acima referidos mostram- nem sempre bem retribuído – não pode arder de santo zelo pa-
nos, no atual momento histórico, as remotas razões biológi- ra salvar almas muitas vezes indolentes, que gostariam de ser
cas do fenômeno. Vejamos suas recentes consequências no servidas em nome de santos princípios. É humano, portanto,
terreno da moral religiosa. que o sacerdote se limite ao exercício das suas funções, como
Este desejo de modernização por parte do grupo eclesiástico faz qualquer bom operário na sua profissão, considerando ter
dirigente é devido a um instinto de sobrevivência, que o cons- feito sua parte, quando cumpriu o próprio dever. Surge assim
trangeu a isso, pois, sem esta necessidade, o clero teria ficado uma ruptura entre rebanho e pastor, cada um dos dois tratando
confortavelmente em suas velhas posições, agarrado aos velhos de resolver seus próprios problemas.
métodos. Assim esta atualização é um índice seguro para reve- Hoje se procuram outras técnicas de apostolado, assumindo
lar as profundas transformações que sucedem em nossos tem- uma nova estratégia de proselitismo religioso, a fim de não per-
pos. Certamente se trata de fatos novos e decisivos, uma vez der a clientela necessária para viver, feita de almas a serem sal-
que eles tiveram a força de mover o imóvel, vencendo resistên- vas. Assim vão procurá-las nas fábricas, nas profissões, nas
cias radicadas por milênios, já prescritas por longuíssimo uso e praças etc. É um ótimo serviço de massa, cuja finalidade é sal-
aprovadas pelas vantagens obtidas. var a instituição, para a qual o indivíduo não pesa. Entretanto,
Uma primeira mudança é automática e vem do exterior, se este quiser salvar-se, terá de fazê-lo por si próprio.
originada não por uma decisão da autoridade no sentido de se Até há pouco tempo, as vocações não eram submetidas ao
atualizar, mas sim pela imposição de impulsos cuja influência controle da moderna investigação psicológica. O próprio su-
ela não pode deixar de sofrer. O fato expressa os novos tempos jeito de boa-fé podia enganar-se sobre a verdadeira natureza
e diz respeito ao problema das vocações religiosas, ponto ne- dos seus reais sentimentos, ocultos no subconsciente. Este,
vrálgico para a organização eclesiástica. Veremos depois a através da memória de experiências passadas, conhece bem a
questão da confissão. Tanto a elevação do nível de vida como luta desesperada pela sobrevivência e esconde, portanto, a sua
a abertura de novos caminhos para resolver o problema eco- verdadeira razão de agir, a fim de que, a qualquer custo, a vi-
nômico influem sobre as vocações. É certo que, na prática, vo- da seja garantida. Hoje se constatou, através da Psicanálise,
cação e situação econômica são conexas. Muitas vocações nas- que fracassa grande parte das vocações. Estas, no passado, ti-
cem devido às condições econômicas. Acontece que, quando nham preeminência e cumpriam o trabalho prejudicial de cor-
se consegue encontrar mais facilmente essa condição em outro rupção interna da religião. Eram elementos que, depois, dedi-
lugar, não há mais razão para que deva nascer a vocação que cavam-se a um trabalho bem diferente, dirigido a outra finali-
lhe é conexa. O sacerdócio assegurará a vida futura, mas isso dade – já hoje, por mérito deles, bastante avançada – constru-
não evita que o indivíduo procure primeiramente cuidar da vi- indo os castelo das acomodações e da hipocrisia, com uma
da presente. Assim, o problema básico de mais urgente solução doutrina escondida, aninhada dentro da verdadeira, para inver-
é a conquista de uma posição social. Esta antigamente era ofe- tê-la segundo as próprias conveniências.
recida pela igreja, através do seu poder temporal e burocracia Nos dias atuais, uma nova penetração psicológica entrevê
estatal. O sacerdócio significava emprego e carreira seguros. muitas coisas que a ignorância do passado deixava encobertas.
Hoje temos, no entanto, uma sociedade secularizada e técnica. Os rígidos conservadores se puseram a caminhar depressa, pa-
Acaba-se, portanto, sendo levado a procurar a referida posição ra se atualizar, dado que hoje o mundo corre veloz. Este vai
por esta outra via, e não pela eclesiástica. adiante, e a Igreja, inspirada por Deus, chega depois. As mu-
Os fatos confirmam o nosso ponto de vista. Os dados indi- danças são estabelecidas e impostas pelo mundo. Eis que mui-
cam que setenta por cento do clero provêm da classe operária e tas afirmações absolutistas, lançadas antigamente, em momen-
de camponeses. Por causa das novas condições de vida já men- to de euforia, tornaram-se hoje insustentáveis e são cobertas
cionadas, as vocações na Itália diminuíram numa proporção que com o silêncio, esperando que a poeira do tempo as oculte sob
vai de 752.000, há cem anos, para 50.000 nos dias de hoje, en- o véu do esquecimento. Atualmente deve-se usar a prudência
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 59
ao assumir uma obrigação, pois sabe-se que tudo pode mudar mente perante o mistério do além. Nem todos têm a capacida-
de um instante para outro, sendo difícil depois manter o com- de de se autodirigir, assumindo a responsabilidade das pró-
promisso. Em matéria de verdade, sopra um vento de relativi- prias ações. Existe, então, o desejo de se recorrer a alguém,
dade. Exige-se, portanto, menos como princípio de autoridade em quem se possa descarregar as próprias aflições e, com ele,
e concede-se mais como respeito às consciências. Não se sabe realizar este labor. A Psicanálise, hoje, está em voga, porque
se as verdades de hoje serão válidas amanhã ou se novas atua- busca a mesma finalidade e realiza o mesmo trabalho da con-
lizações serão impostas. fissão. Existe afinidade entre Psicanálise e confissão, tanto
Presentemente, se alguém quiser encontrar um lugar em que esta foi chamada como “Psicanálise dos pobres”. Hoje,
nosso mundo, então deve ser útil e cumprir uma função na co- para fins de atualização, tende-se a uma confissão menos for-
letividade. Se a Igreja não encontrar ou reencontrar motivos mal e mais inteligente; com menos aplicação de fórmulas es-
que a tornem socialmente útil, ela poderá ser colocada, silenci- tereotipadas e mais penetração psicológica iluminada; com
osa e cortesmente, de lado, como se faz com os velhos, para menos preceitos e mais psicanálise.
deixá-los morrer. A Igreja se pôs a investigar estas causas, É, contudo, necessário reconhecer que o sistema preceptivo
através do apostolado na classe operária, mostrando como po- foi no passado, e pode ser ainda, o mais adaptado para o povo
de ser simples, sincera, pobre, mais espiritual e menos formal. ignorante, que é desprovido de uma consciência com a qual
Isto com o beneplácito divino. Por outro lado, a Igreja tem de possa orientar-se e de sentido de responsabilidade. A tal tipo
prestar contas às massas, porque estas, com a força do número, de homem não se pode conceder liberdade e autonomia, sendo
comandam tudo. É necessário, portanto, prover as suas exigên- mais conveniente enquadrá-lo na mecânica das regras formais.
cias, porque provoca descrédito cometer erros, caso no qual se Tais indivíduos são irresponsáveis, porque, inconscientes do
faz necessário um expediente para remediá-los, mesmo que te- dano que as suas ações podem produzir nos outros, são capa-
nha sido guiado por Deus. Toda obrigação equivocada pode zes de compreender somente em função do seu próprio prazer
levar à necessidade de que ela seja refeita desde o principio, e sofrimento. Eles são orientados apenas pelo medo do seu so-
com uma fatigante atualização, como sucede presentemente. É frimento e pela esperança dos seus gozos. Esta, no entanto,
difícil não cair em contradições, ficando-se imóvel, onde tudo também é a maneira pela qual se domesticam os animais, o que
se transforma, porque, na realidade, a tática humana explora o não resolve os casos de consciência nem elimina o pecado.
desconhecido. Somente não se pode errar, quando se trabalha Conquanto torcido pelas adaptações, o instinto permanece in-
numa atmosfera de infalibilidade, onde cada decisão fica esta- tacto em busca de desabafo, escondido atrás da hipocrisia. O
belecida por séculos. A fé dos primeiros tempos desapareceu pecado fica, mas tolerado como um mal inevitável, o que é
hoje, passando a haver nos pastores e no rebanho uma lingua- útil, pois serve não apenas para provar a misericórdia e a bon-
gem que não se entende mais. O mundo conhece muito pouco dade de Deus, que perdoa, mas também para justificar a exis-
de Cristo, sepultado debaixo de dois milênios de Igreja e cato- tência do clero e até mesmo satisfazer o próprio pecado. Mas,
licismo. Desenterrá-Lo é difícil. As superestruturas se substitu- se o problema foi assim solucionado no passado, ele não é
íram ao original, e somente Cristo pode resolver os problemas mais resolvido deste modo no presente, nem o será no futuro,
nos quais a Igreja se debate hoje. porque a moral mecânica se torna cada vez menos aceitável,
A verdadeira dificuldade da Igreja não é só atualizar-se, quanto mais o homem evolui. O número daqueles a cujo tipo o
mas também reencontrar Cristo, depois de dois mil anos de atual sistema de confissões se adapta diminui sempre mais,
história. O mundo se adaptou ao catolicismo, afeiçoando-se restringindo-se às classes menos evoluídas.
ao próprio comodismo, que, por intermédio de longa elabora- Como se posiciona hoje a confissão relacionada ao passa-
ção, conseguiu conciliar com a salvação, tendo o subconsci- do, já que os novos tempos a puseram em crise? Atualmente
ente coletivo absorvido e fixado tudo isso, de modo que hoje existe o fato de que nasceu outra psicologia, mais positiva,
resiste a tão grandes revoluções. Precisamente porque os va- feita de duas qualidades básicas: mais sinceridade e maior
lores espirituais estão em crise, faz-se necessário salvá-los. sentido de responsabilidade. Somos mais retilíneos. Mesmo
Sem eles morremos. Não se trata de atualizações. A doença é podendo parecer um abuso, há nisto mais pureza e mais ho-
mortal e exige o cirurgião. Aproveitando o silêncio de Cristo, nestidade, o que não constitui afastamento de Deus. Ora, a
o homem fez aquilo que lhe veio à cabeça. Realmente, para confissão para a moral é importante, porque está ligada ao
conquistar poder e tornar eternas as suas posições terrenas, problema da consciência e da culpa; da escolha entre o bem e
ele assumiu, em termos de absolutismo, sérias obrigações no o mal e da respectiva responsabilidade; da conduta e de suas
passado. Mas como renovar-se agora, para atender às exigên- consequências individuais e sociais. Hoje se está realmente
cias da evolução? Eis que a mistura do divino com o humano, formando uma nova ética, que, não tendo nada a ver com as
aquele colocado a serviço deste, quando as posições terrenas religiões, está pronta para resolver o problema moral da con-
se tornam insustentáveis, compromete também os princípios vivência, regulando as relações no seio da coletividade.
absolutos, usados para defendê-lo. Se ali estivesse Cristo, não Até agora esses problemas do catolicismo foram resolvidos
seriam necessárias atualizações, porque a Igreja, em vez de formalmente, com o mesmo método usado no Século XVI. Saí-
por último, teria chegado em primeiro lugar, mesmo nestes do do Concílio de Trento, aquele século absolutista acreditava
tempos de busca da renovação. Se o indivíduo quiser tomar a poder sistematizar tudo, concretizando formalmente a moral,
religião a sério, mas sentir hesitação entre a Igreja e Cristo, a através de uma codificação em normas exatas, com a qual ela
preferência deve ser por este, a fim de salvar-se com Ele, era reduzida a um elenco de pecados. Isto era simples e estava
embora respeitando esta última. proporcionado ao escasso desenvolvimento mental daqueles
◘ ◘ ◘ tempos, sendo mais adaptado às necessidades de um domador
Outro ponto nevrálgico do catolicismo, com tendência à de paixões primitivas do que às de um psicólogo da espirituali-
atualização, é a confissão. Procura-se adaptá-la aos nossos dade. Tinha-se, assim, uma moral feita de regras exteriores,
tempos, para fazê-la incluir a nova forma mental que se está bastando-se obedecê-las para se libertar de qualquer esforço de
constituindo, seja como responsabilidade moral, seja como análise e de toda responsabilidade. Uma ética superficial inco-
conceito de culpa. Se existe a instituição da confissão na sua moda menos do que uma profunda e penetrante, que, chegando
forma atual, isto ocorre porque ela satisfaz uma necessidade à substância e permitindo menos evasões, vincula bem mais.
humana, que é procurar apoio, receber conselho, tranquilizar a Porém, quando falta aquele sentido sutil, necessário para dirigir
consciência, buscar proteção e obter segurança, particular- com inteligência a própria conduta, sabendo ajuizar o valor dos
60 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
próprios atos, não se pode deixar de cair na superficialidade do usar o velho método preceptivo, o pecado e a confissão tornar-
preceptismo. Foi assim que este nasceu e funcionou como o se-ão outra coisa. Tradicionalmente entendido e medido com a
método mais adaptado à forma mental do fiel subdesenvolvido, regra da antiga doutrina, o pecado está em crise, ainda que não
a quem se pedia apenas uma obediência mecânica. À consciên- ocorra o mesmo com o problema da consciência. Outrora, a vir-
cia incapaz substituiu-se o formalismo, adotando-se uma moral tude consistia em resistir às tentações, simplesmente não fazen-
cristalizada, reduzida a uma lista de preceitos e de culpas. A fu- do o mal. Hoje o problema moral é colocado de modo positivo
tura ética será completamente diversa. Sem preceptismo e juí- em relação ao bem, e não apenas em posição defensiva contra o
zos para assumir o peso da responsabilidade, cada indivíduo se- mal, consistindo no cumprimento do dever em relação aos ou-
rá ele mesmo o seu juiz e tomará sobre si as suas responsabili- tros elementos da coletividade. Surgem assim pecados diversos
dades, sem pensar em fugir delas, porque já não será mais tão dos tradicionais, levando a confissão a tomar para exame valo-
inconsciente, a ponto de acreditar que se possa fraudar a lei de res diferentes e a entrar em outros terrenos, sobretudo no social.
Deus, fugindo às suas sanções, pois saberá que, uma vez feito o A culpa então não consiste tanto em ter ofendido a Deus, que
mal, é impossível evitar pagá-lo. Sobre este fato indiscutível os não sofre com isso, mas em ter prejudicado o semelhante. É
julgamentos dos homens, mesmo sendo feito em nome de Deus, inegável a relatividade do conceito de pecado, que varia no
não têm nenhum poder, uma vez que, sobre tais fenômenos, tempo e no espaço. Isto prova que ele existe não em função de
eles não podem trazer nenhuma modificação. Deus, caso em que deveria permanecer sempre e em qualquer
É verdade que o velho método, pelo fato de facilitar o tra- lugar invariável, mas sim em função do homem, que o constrói
balho de julgar, oferecia vantagens. Até mesmo o penitente em relação a si próprio, em diversas formas, consoante a época
encontrava vantagem, porquanto ele podia resolver os proble- e os lugares, de acordo com as suas condições da vida.
mas de consciência facilmente, com regras sobre o que devia Até agora o maior conteúdo da confissão era o sexo. Uma
ou não devia ser feito. Tudo era simplificado com a lista dos vez que a atenção do clero concentrou-se sobre este particular
pecados, acompanhando ao lado de cada um as instruções para aspecto da moral, formando assim uma mentalidade sexófoba,
aplicação das respectivas penitências. Assim, o formalismo não é estranho que a castidade da classe sacerdotal tenha tanta
moral deixou raízes, porquanto era conveniente para ambas as força. Esta é necessária, em virtude da luta pela sobrevivência
partes, que se colocaram tacitamente de acordo, satisfeitas pela do grupo eclesiástico, que, sendo um verdadeiro exército, não
conveniência comum. Fixou-se o método do preceptismo, que pode ir à guerra com crianças e senhoras, nem com elas pode
concordava com o comodismo do clero e dos fiéis. Tudo isso desperdiçar as suas riquezas. Uma necessidade humana de se
também triunfou porque oferecia outra vantagem ao pecador: o compensar, à custa de alguém, do sacrifício que tem de supor-
formalismo. Este, pelo fato de não penetrar em profundidade, tar deve ter levado o clero, inconscientemente, como por um
permanece na superfície e, através da hipocrisia, deixa aberta a sentido de justiça, a considerar o sexo como pecado também
cômoda via das escapatórias, permitindo uma conciliação per- para os outros. Apesar de não o ser, foi considerado como tal
feita entre a observância das formas e a inobservância da subs- por causa de problemas circunstanciais. Podemos assim expli-
tância. Acredita-se então que seja possível enganar a Lei e, ao car as razões daquela forma mental, compreendendo também
mesmo tempo, mostrar-se virtuoso. Desta tão enganosa solu- por que, além do sexo, não se tenha dado tanta importância a
ção os fiéis não deixaram de se aproveitar. De fato, para eles, a muitas ações graves praticadas em prejuízo do próximo, dei-
grande preocupação, no terreno da moral, era encontrar uma xando-as passar em silêncio, como se fossem lícitas. É natu-
forma de preservar a própria vantagem, mostrando ao mesmo ral, então, que a moral se tenha feito mais exigente, porquan-
tempo um perfeito cumprimento das leis. A sapiência consistia to, embora tenha aumentado o sentido de responsabilidade, a
em ter encontrado a maneira de salvar as aparências, para fazer paciência dos oprimidos diminuiu. Fala-se da abertura de di-
boa figura, apresentando-se como cumpridores da lei, enquan- reitos e deveres, enquanto os prejudicados em todos os cam-
to, em substância, fazia-se o contrário, satisfazendo os próprios pos reclamam e impõem justiça mais do que antigamente. Ho-
instintos. Antigamente, não se atacava os problemas de frente, je é muito menos tolerado o mal contra o próximo, porque se
para resolvê-los. Procurava-se, pelo contrário, a evasão. As está muito menos disposto a suportá-lo.
próprias leis eram feitas não para solucioná-los, mas sim para Nasce assim o pecado de caráter social, aquele que causa
favorecer os seus autores, cuja intenção era que os outros as dano aos outros, enquanto passa para segundo plano o do sexo,
observassem. Em suma, o que se fazia na realidade, atrás das que, quando não prejudica ninguém, não é pecado. Hoje o pon-
aparências, em ambos os lados, era praticar a mesma luta pela to de referência em função do qual se mede a culpabilidade
sobrevivência. Legisladores e súditos eram simplesmente ri- não é um teórico mal teológico, mas sim aquilo que os outros
vais, buscando ambos, com o mesmo método, a máxima van- sofrem com as nossas ações, coisa esta bem real. Pensa-se em
tagem a favor de si próprio. A imposição autoritária, a desobe- quem deveria ser punido conforme a justiça, como, por exem-
diência e a hipocrisia não eram senão diferentes expedientes plo, no caso da freira de Monza. Neste episódio, porém, não
para alcançar o mesmo fim, no mesmo plano. Deste modo, foram condenados os diversos responsáveis e culpados de fato,
aplicava-se a mesma lei da luta pela vida, segundo a qual, não constituídos pela família e pelos costumes daqueles tempos,
havia razão para que tais métodos não fossem usados. Biologi- aprovados pelas autoridades eclesiásticas, enquanto foi selada
camente, tudo se explica e se justifica. a fogo apenas a última consequência, que pagou por todos. Es-
Hoje, no entanto, verifica-se um fato novo. É exigida since- ta era a moral de então, sendo estes os resultados a que pode
ridade e honestidade por parte de quem deve aceitar a moral. Is- levar o preceptismo. Os verdadeiros culpados ficaram impu-
to não porque os indivíduos tenham ficado melhores, mas sim nes, tendo caído na armadilha apenas o ser mais débil, destruí-
porque se tornaram menos ingênuos, estando menos dispostos a do por ter procurado satisfazer um instinto da natureza, o que
se deixarem cair no engano e a aceitarem o jogo dos oportunis- ninguém tinha o direito de impedir.
tas. Atualmente não se admite mais o sacrifício sem lhe contro- Com a nova forma mental, tornam-se problemas de consci-
lar a utilidade, mesmo que ele seja apresentado como coisa su- ência e entram no confessionário muitas culpas comerciais, po-
blime. Tais métodos são herança do passado. Se a Igreja quiser líticas e sociais, frequentes na sociedade do passado e não con-
atualizar-se, deve libertar-se desses inconvenientes, embora is- denadas pela religião, que ficava satisfeita com o formalismo
so venha sendo sustentado há quatro séculos, o que não se ani- de seu preceptismo. Eram culpas das quais o penitente não pen-
quila tão facilmente. Ora, quando se enfrentar a moral com a sava acusar-se, arrepender-se ou corrigir-se, assim como o con-
consciência mais iluminada dos novos tempos, em vez de se fessor também não pensava em propô-las, para não entrar em
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 61
matéria considerada fora da sua competência e, assim, respeitar terferirem no problema da convivência e trazerem dano, estes
o silêncio do penitente, evitando o delicado assunto dos interes- são os pecados contra os quais todos se defendem, sendo mais
ses. O pecador, por seu lado, não admitia que o confessor se raro encontrar-se tal conteúdo no sexo. Dada a nova unidade de
imiscuísse nos seus negócios e comércio. Por isso o reconduzia medida usada para se fazer o julgamento, o sexo é culpa menos
ao seu terreno espiritual, dizendo tratarem-se de coisas que se importante do que qualquer pecado de caráter social.
fazem fora da Igreja, não competindo ao clero ocupar-se delas. Eis que também o confessor terá de se atualizar, tendo em
Evitava-se, assim, que este interviesse e fizesse de tais coisas conta este novo tipo de pecado. Hoje se procura muito a liber-
um problema de consciência. Mas também interessava ao clero dade, mas isto apenas no sentido de livre desabafo dos pró-
ser indulgente numa questão tão espinhosa. Não intervindo, prios instintos. Assim a liberdade, para a fêmea, significa li-
não chamava a atenção sobre negócios que não se podiam fa- berdade no sexo, enquanto, para o macho, representa liberdade
zer, a não ser quando ele próprio comerciava, podendo assim, para assaltar, apossar-se e dominar. Para se satisfazer, o instin-
sem prejuízo, concentrar a atenção sobre o sexo, atividade to procura a liberdade até ao abuso, violando a disciplina. A
mais facilmente ocultável sob uma castidade oficial, que lhe função do confessor moderno é não somente levar disciplina
permitia colocar-se do lado da virtude. Tudo isso convinha responsável e consciente a este novo setor masculino da moral,
também ao penitente, que aproveitava esta tolerância, respei- enfrentando-o em profundidade, mas também dar a devida im-
tando em troca os negócios do clero, retribuindo o mesmo res- portância ao aspecto feminino, quando este não acarrete con-
peito que este tinha pelos do penitente. sequências danosas individuais ou sociais.
Assim, o sacerdote foi repelido para dentro da Igreja, para É natural que as duas espécies fundamentais de pecado se-
que não incomodasse fora dela. A religião ficou, em parte, se- jam os de caráter econômico e os de fundo sexual. Elas corres-
parada de um setor prático da vida, que é a luta econômica, re- pondem aos dois impulsos fundamentais da vida, que visam à
nunciando a discipliná-la e dominá-la. Mas poderia a Igreja tê- conservação do indivíduo e da raça. Trata-se de dois fatos im-
lo feito? Sim, se tivesse ficado, como era de sua competência, prescindíveis, que implicam a urgência de procurar os meios
apenas na sua verdadeira posição: a espiritual, sobrepujando a tanto para viver como para procriar. Se a satisfação destas ne-
luta do mundo. Mas existia o fato de que se estava na terra, e cessidades não for reconhecida como um direito, então, mesmo
não no céu. Era inevitável, pois, que a Igreja, se quisesse sobre- sendo isto declarado culpa, será inevitável que o indivíduo con-
viver, tivesse de travar aquela luta, na qual estava imersa como tinue a procurar satisfazê-las. Mas a responsabilidade será, pelo
todos. Não podendo mudar as leis da vida terrena, a fim de não contrário, de quem declarou como culpa aquilo que é uma ne-
evidenciar a contradição entre a teoria evangélica e os fatos, en- cessidade do indivíduo, à qual ele deve sujeitar-se, porque estas
tão, para salvar ao menos as aparências, não lhe restava senão são as leis da vida. Tais problemas não se resolvem com a tole-
o caminho da hipocrisia, tentando aparentar que fazia aquilo rância, que é apenas uma tentativa para remediar-lhes a má co-
que, na verdade, não praticava nem poderia fazê-lo na Terra, locação. O novo moralista, para poder exigir que os outros
porque é contrário às leis biológicas do atual nível evolutivo cumpram o seu dever, tem de cumprir primeiro o seu, reconhe-
animal-humano. Neste plano, que nada tem de evangélico, a lei cendo o direito à vida. Se ele não se colocar num terreno de jus-
é a rivalidade e a luta, sendo, portanto, antivital renunciar à tiça, não poderá pretender obediência.
própria vantagem em favor dos outros. No passado, o legislador pensava primeiramente em si pró-
Sem dúvida, o Evangelho aponta para o centro da questão, prio, de modo que suas relações com quem dependia dele eram
mas isso não desloca o fato de vigorarem aqui leis biológicas impostas num regime de luta recíproca, na qual, em vez da jus-
situadas nos antípodas daquilo que ele proclama. Nem se pode tiça, vencia o mais forte e hábil. Depois, para viver tranquila-
pretender que o homem, filho deste mundo, tenha a capacidade mente, suavizavam-se os ângulos com as acomodações, que,
de invertê-las a favor de si. Esta tentativa custou a vida a Cris- apesar de tudo, eram necessárias para tornar menos fatigante a
to, que não conseguiu nada com seu sacrifício, pois são as leis convivência. Deste sistema nasceu uma moral fragmentada a
da terra, e não as do céu, que continuam, por enquanto, a domi- cada passo, como desejava o penitente, ao lado de outra teori-
nar o mundo. Todavia a hipocrisia representa uma primeira ten- camente íntegra, como pretendia o moralista. É certo que, deste
tativa de aproximação do ideal, já constituindo uma forma na modo, ficavam satisfeitas as duas opostas exigências. Nem a
qual este pode atuar, dado que não se tem ainda a força de apli- outro resultado podia conduzir o choque entre duas vontades
cá-lo integralmente. Trata-se de uma distorção inevitável, que contrárias. Mas é verdade também que, assim, chegou-se a uma
constitui uma primeira e indispensável fase de penetração por mistura de pecado e perdão em incessante contradição, configu-
parte do ideal, destinada a ser superada por evolução. rando um problema aparentemente insolúvel, cuja ocorrência,
Dizíamos, entretanto, que o principal domínio da confissão porém, justifica-se, na medida em que é destinado a solucio-
é o sexo. Não é necessário romper o segredo do confessionário, nar-se. Destarte, em vez de se conseguir a aplicação da lei, che-
para ver como é feito o mundo. O fato de que antigamente se gou-se à sua contínua violação, à qual se opôs o paliativo de
fazia escondido aquilo que agora se pratica a descoberto não uma constante reintegração, através do arrependimento e do
desloca a questão. Se hoje o problema do sexo fosse posto em perdão, o que não resolve, pois deixa abertas as portas a novas
discussão, também deveria ser discutida a questão do tribunal violações. Mas a outras consequências não se podia chegar,
regulador de suas funções em muitos países. Mas, presentemen- uma vez que se colocou a questão nos termos acima expostos,
te, a Igreja se encontra perante algo novo. Aqueles velhos tipos sem reconhecer os direitos do indivíduo. É natural, então, que
de pecado estão passando para o médico e para o psicanalista, este se defenda com a desobediência.
enquanto outros, diferentes do agora examinado, são tomados Mas tudo está previsto. Temos assim uma confissão feita
em consideração. Falamos dos pecados de caráter social. A ten- por reincidentes e para estes. É certo que ela fracassa no seu
dência atual é olhar sobretudo as culpas que prejudicam o pró- objetivo. Mas, deste modo, o penitente fica contente, porquan-
ximo, não perdendo mais tempo com aquelas que não fazem to pode satisfazer-se, ainda que seja com uma veste de peca-
mal a ninguém. Há ainda o fato de que vivemos uma fase de dor. Reconhecendo-se como tal, ele tem a vantagem de poder
masculinização, na qual os pecados de tipo feminino, como os continuar a pecar, optando pelo que mais lhe convém. Por ou-
do sexo, são julgados com a forma mental do macho, a quem só tro lado, o clero também fica satisfeito, porque o confessioná-
interessa a luta para a conquista. É assim que assumem impor- rio é frequentado. Naturalmente, o penitente devia descobrir
tância os pecados de tipo masculino, como usura, furto, explo- um meio que o permitisse viver a seu modo, continuando a pe-
ração, injustiça etc., todos eles de caráter social. Pelo fato de in- car. Encontrou-se então o método das evasões, em que o peca-
62 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
do ocasional é repetido com regularidade, mas sem premedita- fato de que tal solução é a mais fácil para o caso, mas também
ção, sendo praticado por incidente, e não por deliberação. Com porque, no nível humano, ela é preferida pela vida, que costuma
isso, o penitente ficou satisfeito. Chegou-se, por seguidas escolher a via de menor resistência, na qual se requer menor es-
adaptações, a um sistema conveniente para todos, feito de pe- forço. A castidade é adequada e dá resultado somente para os se-
cados contínuos e de pecadores que, por ininterruptas lavagens res maduros, prontos para a superação, quando ela pode então
purificadoras, podem ser salvos nos confessionários muito ser coisa sublime. Mas é aplicável apenas a uma exígua minoria.
concorridos. Assim tudo vai bem, porque a Igreja mantém a Assim, usada em larga escala por pessoas não maduras, ela só
sua autoridade sobre as consciências, enquanto o pecador tran- serve para a sobrevivência do grupo, uma vez que, para o indi-
quiliza a sua alma com uma penitência que lhe custa muito víduo, significa frigidez ou hipocrisia, isto quando não se resol-
pouco. Este goza também da vantagem ilusória de poder des- ve em desvios, o que faz dela sempre uma qualidade negativa.
carregar, com um ato formal de obediência, a sua responsabili- Este conceito de sexo-pecado coloca, nas próprias origens da
dade sobre a autoridade julgadora, acreditando ser capaz de vida, um sentimento torcido, uma vez que, somente pelo fato de
fugir à fatal necessidade de pagar as consequências das pró- se ter nascido, já se é pecador. O surgimento de tal psicologia se
prias ações. Em suma, elaborou-se por sucessivas acomoda- explica pelo desejo, mesmo que inconsciente, por parte do clero
ções, certamente sem premeditação, uma obra-prima de moral de atribuir para si, com a sua castidade oficial, uma posição de
elástica, que sabe conciliar os dois opostos: a salvação e a in- superioridade, base de domínio sobre a massa dos pecadores não
cessante repetição do pecado. E não foi difícil encontrar uma castos, condição pela qual ele satisfazia sua necessidade de justi-
solução que satisfizesse todos ao mesmo tempo. ficar e, assim, tornar indispensável a sua presença para salvar as
O resultado de tudo isso é uma observância formal, que salva almas. Todos deviam ser filhos de um ato de culpa, para que
apenas as aparências, mas que, em substância, constitui uma hi- fosse imprescindível o trabalho de quem depois viveria à custa
pocrisia, na qual naufragam a sinceridade e o sentido de respon- de redimi-las. Deste modo, o sexo tornou-se um mal tolerado,
sabilidade, devido à supressão da consciência do mal cometido, porque indispensável para se ter filhos. Mas, independente disso,
na ilusão de fazê-lo francamente. Hoje, pelo contrário, estas são ele também pode constituir uma necessidade para quem não é
exatamente as qualidades que precisam ser desenvolvidas, para capaz ou não considera conveniente ter filhos. Chega-se à hipo-
se chegar a compreender que, independentemente de qualquer crisia de dizer que se casa para cumprir o dever de procriar. Se-
clero ou religião, existem leis positivas, como as da ciência, às ria interessante observar quem teria tanto zelo de cumprir esse
quais ninguém pode escapar e pelas quais o mal feito recai au- dever só por imposição de uma moral, se não existisse a atração
tomaticamente, em forma de reação punitiva, sobre quem o pra- sexual. Se fosse assim, teriam o mais alto sentido ético os mui-
ticou. Esta será a moral científica de amanhã, sem hipocrisia, tos pobres inconscientes que geram, sem medida, filhos destina-
acomodações ou possibilidades de evasão. Infelizmente, cons- dos à fome. Foi assim que os castos, na verdade apenas frígidos,
truiu-se no passado um sistema de simulação que foi considera- foram vistos como virtuosos, enquanto os hipereróticos, tidos
do como sabedoria e habilidade em saber viver, o qual foi her- como grandes pecadores, eram passíveis de toda a condenação.
dado por nós e está hoje bem radicado em nossos hábitos. É uma Tentando-se superações através de imaturos, torceu-se e aviltou-
falsidade de linguagem e de costumes contra a qual as novas ge- se o amor. Forçando-se a evolução, produziram-se estados sexu-
rações, parecendo escandalosamente atrevidas, lutam para varrer ais patológicos aberrantes. Estes são os frutos da velha moral e
tudo, porque não representam mais a tradicional farsa, na qual o da forma mental que a construiu. A nova moral resultará de um
mal era escondido sob um manto de virtudes. Abrem-se as jane- grau de consciência mais desenvolvido, que trará à luz estas
las e entra o ar puro, mesmo sendo este a tempestade que levanta muitas contradições e suas danosas consequências.
turbilhões de poeira e rompe as delicadas teias de aranha, fazen- ◘ ◘ ◘
do estremecer os velhos adormecidos. Esta ventania entrará Continuemos a observar os contrastes e as implicações das
também nos confessionários, que, se quiserem sobreviver, terão duas morais nesta hora de transição, em que o mundo evolui da
de se atualizar. Porém não é um mal para as almas o escândalo primeira para a segunda. O advento de uma nova moral não é
de descobrir a realidade, porquanto, se esta permanecer escondi- um fato isolado, mas encontra-se conexo com a profunda reno-
da, elas poderão corromper-se muito mais facilmente. vação que se está verificando em todos os campos, através da
Chegou-se assim a dar um aspecto de virtude à assexualida- maturação psicológica produzida pela passagem de uma fase
de, enquanto se atribuiu um sentido de culpa à fundamental fun- evolutiva a outra superior. É o tipo mental que muda, com todas
ção que a vida confiou ao sexo. Se, espiritualmente, isto pode as suas consequências. Devemos, então, adaptar estas considera-
representar uma tentativa de superação da animalidade perante a ções ao pano de fundo deste fenômeno maior. O pecado de cará-
natureza, que exige a continuação da espécie, é por outro lado ter social não é senão um dos aspectos da atual transformação.
antivital e, portanto, biologicamente imoral. Esta identificação O grande fato moderno é que a nossa vida se socializa. An-
de sexo com culpa é contra a moral da vida, que, pelo menos no tigamente, a unidade máxima de organização coletiva era a fa-
atual plano humano, é a moral de Deus. O fato é que, dada a es- mília. Esta, hoje, parece desfazer-se, porque o seu grau de uni-
trutura do organismo no qual não podemos deixar de viver, é ficação, tornando-se menor, passou a um nível secundário, que
impossível nos evadirmos do nível terreno, a não ser por longa ficou incluído em outro maior: a sociedade. É natural que a
evolução. Biologicamente, a frigidez não é qualificável como unidade maior, tornando-se agora a principal, absorva no seu
característica de superioridade, representando na sua natureza seio a menor e que esta lhe fique subordinada. Nesta nova uni-
um fato negativo, que pertence mais ao lado patológico da vida. dade, a amplitude e o grau de organização coletiva dentro do
Assim, quando a castidade não advém da assexualidade ou da qual se estabelece a convivência é maior, porque o tipo unitário
frigidez inerente ao indivíduo, mas se verifica por pressão im- não é mais o pequeno núcleo familiar, mas sim a sociedade, que
posta, indo contra a natureza, então ela é obrigada a se manifes- passa agora do estado de rebanho ao estado orgânico de núcleo
tar em formas contorcidas. A castidade é útil para o interesse do social. Isto não significa que a família desapareça como unida-
grupo cuja conservação ela protege, mas não o é para o tipo co- de, mas sim que ela é absorvida numa mais vasta unidade cole-
mum do indivíduo. Trata-se de uma imposição inútil para os frí- tiva. O fato presente na base de tudo isso é o desenvolvimento
gidos, que nada podem sublimar através dela, pois nada têm pa- da consciência, que hoje se tornou capaz de abranger uma uni-
ra transformar neste processo. No entanto é perigosa para os eró- dade social mais extensa, e não apenas um grupo familiar. Com
ticos, que, ao invés de serem induzidos a sublimações, são leva- a compreensão de mais amplas relações, o ser humano começa
dos a contorções e às respectivas consequências. Isto não só pelo a se sentir ligado também a quem não é seu parente de sangue.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 63
Nasceram assim vínculos acima do nível da carne. Isto quer di- amor: “ama o próximo como a ti mesmo”. Agora, com a ciência
zer progresso, não só como amplitude de campo, mas também e o despertar intelectual moderno, passa-se a uma moral de tipo
como complexidade de estrutura. Vemos aplicado aqui o prin- cerebral e racional, situada num plano ainda mais alto, com ba-
cípio das unidades coletivas, já demonstrado em outro lugar. se em conhecimento, consciência e responsabilidade. Estas três
Tudo isso implica outras transformações, envolvendo outros fases da progressiva evolução da ética correspondem a três ti-
aspectos da vida. Um destes é a atual emancipação da mulher. O pos de civilização, dos quais elas são o produto: 1) A fase da
problema fundamental para todos, como vimos em relação às vo- força bruta, própria do primitivo; 2) A fase do amor, na qual se
cações do clero, é a situação econômica. Isto acontece também procura, com a bondade, domesticar aquela força; 3) A fase da
com relação à mulher. Antigamente, para uma jovem, essa situa- inteligência, na qual se busca, com o conhecimento, iluminar e
ção se resolvia com o matrimônio. Hoje, o mesmo problema se dirigir racionalmente aquele amor.
soluciona com o trabalho. Outrora, o sonho era o marido; hoje, é O valor de cada uma dessas posições não pode ser julgado
a profissão. Atualmente, para a mulher, que representa a metade equitativamente senão em função do momento histórico no
do gênero humano, a vida se assenta em outras bases. Disto deri- qual ele aparece, de acordo com a fase evolutiva que represen-
vam grandes mudanças. A sua existência não fica mais fechada ta e o trabalho que deve realizar. Não se pode, portanto, culpar
entre as paredes domésticas, reduzida a ser um apêndice do ho- o cristianismo por alguma das suas atitudes agressivas em re-
mem, seu único sustentáculo, mas se amplia na sociedade, de- lação à animalidade e ao aspecto inferior do homem, nas quais
sempenhando uma função importante, como é a de quem traba- empregavam-se formas de fazer penitência que nos parecem
lha, cuja posição está conexa com a produção, fato que se encon- ferozes. O cristianismo devia enxertar-se no primeiro tipo de
tra na base da vida. Então, conquistando sua independência eco- civilização e fazer o trabalho de transformá-lo no segundo.
nômica e, com isso, sua autossuficiência, a mulher se coloca ao Explicam-se assim a psicologia do inferno (hoje cada vez me-
nível do homem, tornando-se um elemento socialmente valoriza- nos persuasiva), a exaltação das torturas físicas do mártir como
do, que se enxerta com seu próprio peso na organização coletiva. meio de santificação, a repressão em vez da educação dos im-
Apesar de se encarregar de novas atividades e responsabilidades, pulsos naturais e os métodos brutais de espiritualização. Tudo
ela conquista a liberdade e, com o seu trabalho, a possibilidade isso se justifica, quando se pensa naquele tipo de homem que
de se desenvolver como inteligência, o que não era possível an- dirigia então a religião. Compreende-se também a razão pela
tes, quando a sua função era somente servir como instrumento de qual tais sistemas estão continuamente perdendo eficiência,
prazer para o homem ou como um meio para criar seus filhos. quanto mais o ser humano amadurece, para entrar no terceiro
O grande fenômeno ao qual assistimos hoje é um processo tipo de civilização. Hoje, usar aqueles meios para desenvolver
universal de socialização, que se verifica para toda a humanida- o espírito torna-se contraproducente. A religião deve descobrir
de, mesmo o sendo com programas políticos opostos. Tal pro- outros, se quiser ser útil à sociedade.
cesso influencia tudo, abrangendo a moral, a religião, a família, A velha moral, que pertence ao segundo tipo de civilização,
o desenvolvimento mental, a atividade produtora etc. Trata-se de deve lutar contra a ferocidade, enquanto prega o amor. Disto de-
um novo modo de conceber a vida, sob princípios diversamente rivam muitas contradições, que vão sendo eliminadas com o
orientados, conduzindo a outra moral, tema aqui tratado com a tempo. Hoje se começa a compreender que não convém desper-
devida precisão. A velha moral era empírica e instintiva; a nova diçar energias positivas, atormentando o sistema nervoso com
é racional e controlada. No primeiro caso, o indivíduo era movi- contrariedades e renúncias, quando aquelas energias devem ser-
do por impulsos do subconsciente, sendo guiado por atrações e vir para trabalhar e produzir. Em vez de negativa, opressiva e
repulsões, simpatias e antipatias. No segundo caso, ele é condu- antivital, a nova moral é racional, utilitária e vital. São elimina-
zido pelo pensamento e pela lógica, com os quais enfrenta os dos os sacrifícios improdutivos. Em compensação, pensa-se
problemas, para resolvê-los. A segunda é a moral mais evoluída mais no próximo, a fim de não o prejudicar, e menos egoistica-
de quem conhece e raciocina; a primeira é a moral impulsiva do mente em si próprio, para salvar-se. É um regime de maior or-
primitivo irracional e inconsciente, que é arrastado pelos instin- dem, liberdade e bem-estar, mas também de maior trabalho, res-
tos. Este era o tipo da moral sexual até ontem, que já está, no en- ponsabilidade e deveres. Mudam assim os pecados. Antigamen-
tanto, passando do tribunal do confessor e dos mexericos da te, conforme a religião, não era culpa encher o mundo de filhos
opinião pública para o juízo competente do médico, do psicólo- doentes, esfomeados e delinquentes. Hoje se pratica o controle
go e do sociólogo. A unidade de medida do pecado não será es- da natalidade, mas se assume a responsabilidade da educação
tabelecida de acordo com as reações do subconsciente instintivo, dos filhos. Assim os pais adquirem o direito de defender o seu
mas sim consoante um critério social, baseado no dano que esse sistema nervoso contra inúteis renúncias, mas assumem o dever
pecado acarreta ao próximo, sendo tudo isto observado com ló- de trabalhar ambos para o grupo familiar. Para a religião, era lí-
gica positiva. É assim que nasce outro tipo de pecado: o social, cito outrora viver de rendimentos e do trabalho do próximo,
que vai da evasão fiscal à imprudência ao volante, baseado no permanecendo ociosos, como parasitas da sociedade. Era justo
respeito que se deve ao próximo, para não prejudicá-lo, o que fazer-se de patrão sobre mulher e filhos, em nome da autoridade
representa uma forma positiva de amá-lo conforme o Evange- marital e paterna. Era permitido casar por interesse, e não por
lho. Eis um cristianismo racionalmente utilizado para chegar, amor, fazendo do matrimônio um mercado. Muitos outros peca-
como exige a hora histórica, a um estado social orgânico, feito dos não eram considerados como tais, sendo abençoados pelo
de uma ordem sempre maior. Trata-se de um modo inteligente e clero e santificados com os sacramentos. Mesmo assim, aquela
calculado de ser bom. Assim, em vez de uma moral religiosa, moral era santa para o grau de evolução do segundo nível. No
temos uma ética cristã e civil, que leva a uma disciplina cuja entanto, agora, quando se alcançou o grau de evolução do tercei-
adoção, apesar de significar perda de liberdade, também é vanta- ro nível, ela se tornou injusta e inaceitável.
josa, porque, se ela limita a minha liberdade, restringe igualmen- A grande diferença entre a velha e a nova ética está no fato
te a de outrem, a quem é vedado causar-me dano. de que a primeira é preceptiva e obrigatória, mas não é respon-
A moral, pelo fato de ser uma expressão da vida, também sável, enquanto a segunda não é mandamental, porém é livre e
progride com a evolução desta. Temos assim, codificada pela responsável. Para a primeira bastava a forma; para a segunda
religião, a moral de tipo mosaico, que permanece ainda no pla- importa a substância. É assim que, para a primeira, não é neces-
no animal do “não matarás” e “não roubarás”, adaptada ao de- sário ter alcançado o grau de consciência exigido pela segunda.
linquente. Depois, com a religião de Cristo, temos a ética de ti- No passado, a velha moral tratava só da observância formal da
po evangélico, que sobe a um degrau mais alto, com base no lei (farisaísmo), de modo que cada um sentia satisfazer sua
64 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
consciência, quando tinha cumprido o que era necessário para nar o legislador. Portanto não se faz o mal, porque sabe-se que
obter a sua salvação pessoal. Além desta finalidade egoísta, isso é uma tentativa inútil, uma vez que não se pode fugir ao
pouco interessava o resto, mesmo que prejudicasse o próximo. castigo. Ter a ilusão de que isso seja possível é coisa que só
O indivíduo não era sequer capaz de conceber a existência de pode pensar o homem da velha moral, ignorante das leis da vi-
qualquer outro bem ou mal de que devesse ocupar-se, além do da. Com a nova moral, a confissão deve assumir a função de
seu próprio. Vivia-se num regime de luta, no qual a morte dos educar para a vida social, constituindo-se num meio para de-
outros constituía a própria vida e vice-versa. Perante uma forma senvolver a consciência e o sentido de responsabilidade, e não
mental como esta, não podia funcionar senão uma moral precep- em um tribunal para perseguir e culpar, com base em artigos de
tiva, armada de sanções taxativas e punitivas, porque este é o código e listas de pecados. Este regime de castigo disseca a vi-
único meio persuasivo que, ferindo pessoalmente o primitivo, da, em vez de ajudá-la a progredir. É certo que pode ser o pri-
pode ser entendido por ele, induzindo-o a se comportar bem. A mitivismo dos fiéis o fato que impõe a necessidade de usar tais
ele nada interessa do próximo. Se o primitivo é bom, não o é por métodos. Mas é precisamente por isso que se torna necessário
amor aos outros, mas sim a si mesmo, para obter sua própria educar o penitente a compreender a lógica da nova moral. A
salvação. Esta é a fase em que inferno e paraíso são necessários aplicação dos velhos processos a um indivíduo maduro pode
para dirigir o homem, quando se torna bem compreensível para colocá-lo na situação de tomar a decisão de preferir acabar no
ele a ideia de um Deus-patrão, que castiga o servo desobediente. inferno como pecador do que submeter-se às velhas regras,
A nova ética diz respeito ao indivíduo consciente do mal que cumprindo um ato lícito para a religião, mas que para ele é
pode fazer ao próximo, procurando, portanto, não praticá-lo. Eis mau, ou realizando algo justo para ele, mas que para a religião
que a moral não é mais uma formal observância da lei (farisaís- é culpa. Por exemplo, um indivíduo que, por temperamento,
mo), com um objetivo egoísta, mas está ligada à consciência de não tem condições de se sujeitar a um regime de castidade, po-
um estado de ordem coletivo e à utilidade de se enquadrar nele, de renunciar ao egoísmo de sua salvação extraterrena, usando o
para o próprio interesse. Do farisaísmo, caracterizado pelo cum- controle de natalidade, de modo a não fazer mal a terceiros ino-
primento formal da lei, passa-se ao Evangelho, que é a aplicação centes, incapazes de se defenderem, evitando gerar filhos aos
substancial de um princípio de amor. Por isso o farisaísmo, em quais lhe seja impossível dar saúde, educação e alimento. O que
vez de perfeição, foi julgado hipocrisia. mais interessa hoje à vida social é a honestidade, que constitui a
O ponto de referência da nova moral não é um código frio, grande virtude de não prejudicar o próximo. E existem infinitos
feito por Deus, para os seus fins, o qual Ele impõe, porque, sen- meios de fazê-lo, considerados lícitos. Honestidade, em todos
do o mais forte, tem o direito de comando. Tal concepção mo- os campos, é a coisa mais necessária, porque é nela que se fun-
saica era proporcionada ao desenvolvimento mental daqueles damenta a convivência. A vida ainda se baseia demasiadamente
tempos. O ponto de referência da nova ética é o bem do próxi- na luta, posição que está nos antípodas. A religião cumpriria
mo, porque os outros fazem parte do mesmo organismo a que uma grande obra, se conseguisse levar o mundo, pelo menos
pertence cada indivíduo, de modo que, se este, mesmo o fazendo um pouco, para um estado de retidão, do qual ele tem extrema
em perfeita observância da lei, prejudicar aqueles, está causando necessidade. Mas, pelo contrário, prevalece excessivamente a
dano também a si próprio. O progresso mental dos nossos tem- convicção, escondida nas palavras e expressa em fatos, de que
pos levou a um conceito social da vida humana, antes desconhe- o maior pecado é ser honesto, porque este é esmagado, enquan-
cido. Tal princípio unificador e coletivista, enunciado pelo to a vida favorece os desonestos.
Evangelho há dois mil anos, mas não compreendido então, está Se esta é a forma mental da maioria, o que pode a religião
hoje, por maturação biológica, tornando-se realidade. fazer contra isso? Há uma complexa multidão de seguidores
Assim, se a velha moral era individualista e separatista num opondo-se a que se faça da religião uma coisa realmente séria,
mundo de seres isolados, cada um encerrado no seu egoísmo, sem escapatórias. Tais artimanhas são muito cômodas, sendo
hoje a nova ética é de tipo coletivista unitário. Atualmente, as- possível utilizá-las como disfarce na figura de ótima e santa
sistimos a um grande fenômeno biológico, segundo o qual as pessoa, para se poder agir como bem convier. O próprio méto-
células dos indivíduos isolados, até agora dispersas, reúnem-se do preceptivo habituou os fiéis a este sistema. São, portanto,
para constituir um organismo social, o que significa alcançar eles mesmos que não querem renunciar às vantagens oferecidas
uma forma de vida mais progressista. Por isso a nova moral a eles por tal método. Aprenderam a mentir e já estão viciados,
exige que o homem veja no interesse coletivo o próprio benefí- achando vantajoso o método da hipocrisia, do qual não tencio-
cio, fazendo-o compreender que evitar o prejuízo dos outros é nam de modo algum abrir mão. Trata-se de hábitos seculares,
afastar o próprio dano, alegrar o próximo é fazê-lo a si mesmo e profundamente assimilados. Preferem a tradicional lista de pe-
cumprir o próprio dever é utilitarismo egoísta. cados e o cumprimento formal do regulamento, evitando assim
O resultado das duas morais são opostos. A primeira deixa indagações que, perscrutando a fundo as suas vidas, possam
os indivíduos separados como inimigos, em estado de guerra; a descobrir outras coisas. Rebelam-se contra isso como se fora
segunda os confraterniza, para que colaborem em paz, com a uma intromissão. Assim, ao cumprirem o dever de se acusarem
finalidade de realizar a grande obra de fundir elementos huma- de acordo com as regras, não reconhecem ao confessor o direito
nos, hoje ainda ávidos de se sobreporem uns aos outros. Da no- de se imiscuir em seus outros assuntos. Consideram tais méto-
va moral nasce outro tipo de santidade, na qual, em vez de se dos um direito adquirido por longo uso, já estabelecido por
correr apenas atrás de miragens egoístas, vai-se em direção ao prescrição. Portanto não admitem que isto lhes seja retirado.
próximo, para ajudá-lo a viver. Assim, o santo não é mais aque- Assim os fiéis o defendem, mesmo que isso vá contra sua cons-
le que se isola para tratar da sua própria evolução, mas sim ciência, e continuam a preferir a velha moral mecanizada, for-
aquele que se oferece, colaborando para o progresso dos outros. necida em pílulas e com instruções para o seu uso.
Antigamente, mesmo sozinho, caminhava-se para Deus. Hoje, o Falamos acima de penitência fácil, por intermédio da qual,
trabalho é elevar os indivíduos, até que eles se tornem evoluí- com um mínimo de incômodo, expia-se o pecado confessado. À
dos. Presentemente, ao lado do santo, tem valor também o cien- parte o fato estranho de que a oração, cujo emprego deveria ser
tista, igualmente útil no meio social, porque ampliar a inteli- uma forma alegre de se elevar até Deus, seja usada não como
gência vale tanto quanto desenvolver a bondade. Com a nova um prêmio, mas sim como pena expiatória e castigo espiritual,
ética, ao método do irresponsável, que, uma vez praticado o o sentido de responsabilidade da nova moral faz compreender
mal, preocupa-se sobretudo em fugir ao pagamento da pena, que confissão e penitência não eliminam o malfeito, cujas con-
substitui-se o sistema do responsável, que não pensa em enga- sequências são inevitáveis, sendo necessário pagá-las. É, por-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 65
tanto, ilusão acreditar que se pode comodamente fazê-lo desa- Como se vê, nas bases da crise da velha moral, está outra
parecer com estes meios, deixando de pagá-lo. Mas a evasão é ainda maior, ligada à própria forma mental, que leva a conceber
aliciante, pois se mostra fácil e vantajosa. Então, por que não a vida de outro modo. É desta mudança de concepção que sur-
aproveitar? Com a nova moral, acaba a ingenuidade, compre- giu como consequência a crise da confissão, da religião e da
endendo-se que, para não sofrer, é preciso não fazer o mal, moral. Segundo esta nova psicologia, o conceito de culpa não é
pois, quando este foi realizado, não há outra salvação, senão dado por abstrações teológicas, mas sim pelo prejuízo que o ato
pagá-lo. A verdadeira absolvição é uma só: o pagamento. traz ao indivíduo e ao seu próximo, tornando-se mais convin-
Como se vê, trata-se de duas formas mentais completamente cente, porque corresponde ao interesse deles, já que não é para
diversas, com as quais se enfrenta a moral. No passado havia condená-los e puni-los, mas sim para defendê-los. Desaparecem
muita religião, que era em substância bem pouco ética. No futuro assim velhas culpas e nascem novas, pois assume-se pela pri-
haverá uma moral mais evoluída, porém em forma menos religi- meira vez uma atitude consciente.
osa. Em suma, com uma atitude de sinceridade, diminuirá a reli- A consciência do pecado em sentido social tende a tornar
gião como forma de hipocrisia e aumentará a ética. Se o cristia- sempre menos difícil a convivência, porquanto a humanidade,
nismo atual souber tornar-se útil à vida, acompanhando a trans- passando ao estado coletivo, faz-se sempre mais estreita. Até
formação neste segundo tipo de moralidade, então ele sobrevive- agora, o hábito de se incomodarem uns aos outros, em permanen-
rá, caso contrário, será colocado de lado entre as coisas inúteis. te estado de luta, era a principal ocupação do homem. Antiga-
Podem-se ver hoje as duas faces do problema, porque nos encon- mente, a moral era feita para que uma classe pudesse dominar os
tramos em fase de transição, na qual o velho e o novo estão pre- seus súditos. Hoje procura-se construir outra moral, que sirva pa-
sentes, contemporaneamente. Já existe uma tendência para se ra todos, sendo esta sua única forma pacífica, porque não gera re-
adotar uma moral de verdade, e não apenas fazer bela figura, exi- ações dos excluídos. Outrora, a ética era determinada pelos mais
bindo princípios teóricos de retidão. Através de um cálculo cor- fortes, que, como vencedores na luta, tinham conquistado poder e
reto, ficou comprovado ser mais conveniente assumir tal posição. autoridade, podendo assim estabelecer uma disciplina para van-
Com o velho sistema, a culpa, na realidade, consiste em se tagem deles, à custa dos mais fracos, submetidos a eles. Hoje
deixar ser pego em erro, por não ter sabido esconder-se sob um pretende-se uma moral menos idealista, mas também menos ego-
manto de virtudes. Com o novo método, a culpa não depende ísta em prejuízo do próximo, de modo que não contenha para al-
da aparência exterior e do juízo dos outros, mesmo que estes guns exclusividade de vantagens, cujo pagamento deve ser feito
sejam tribunais, mas sim do mal realizado e do juízo de Deus. com o sacrifício dos outros. Deseja-se, em suma, uma moral não
O primeiro método representa um estado de inconsciência, diri- mais de classe (mesmo que o seja em nome de Deus), mas sim
gido apenas com as regras da luta pela sobrevivência. O segun- equânime, a favor de todos, sem a injustiça de favorecidos e de-
do corresponde a um estado de consciência da lei moral e do serdados; não mais de domínio, mas sim de cooperação. Com
seu funcionamento, o que significa conhecer as fatais conse- uma ética assim, a autoridade existe não para comandar, mas sim
quências de cada violação. Neste caso, não se recorre a escapa- para cumprir uma atividade útil coletivamente; não para ser des-
tórias e mentiras, porque sabe-se que elas não resolvem. Neste frutada como direito individual, mas sim para ser exercida como
nível, a nova moral não significa a imposição de um patrão que função social, a única coisa que justifica a sua presença. Ora, se
o indivíduo, para se defender do seu domínio, julga conveniente tal função não for cumprida, aquele poder deve ser retirado de
desobedecer. Trata-se apenas de uma lei inerente à nossa vida, a quem o possui. Conceito novo, pelo qual o comando pertence
qual deve ser obedecida para o nosso próprio bem. Falamos da não ao mais forte vencedor, no seu interesse, mas sim ao mais
forma mental que dirige nossos atos, e não das belas palavras apto para executar, em vantagem de todos, a função social que
com as quais se cobrem nossos feitos. No velho sistema, o inte- lhe é confiada. A nova moral não tolera mais os que se aprovei-
resse do indivíduo é se defender das imposições da moral, de tam da sociedade e trazem prejuízo para ela, mas exige de cada
maneira que ele possa continuar evadindo-se. Com o novo mé- um o enquadramento na ordem coletiva, pelo cumprimento do
todo, ele tem convicção do quão mais vantajoso é seguir a lei próprio dever para com os outros. Cada um é obrigado a levar em
moral, pois sabe que, se esta lhe pede disciplina, isto é para seu conta as exigências do próximo, que, antigamente, caso não fosse
benefício, convindo-lhe, portanto, obedecer. Com o velho mé- suficientemente forte para se impor, acabava constituindo apenas
todo – num mundo de injustiças, baseado no princípio da luta – a massa, que devia ser submetida sem quaisquer direitos. Se ela
a moral, abstraindo-se desta realidade, pedia ao indivíduo que hoje é reconhecida, isto aconteceu porque os mais fracos se fize-
se comportasse de forma oposta, impondo-lhe deveres, sem le- ram valer como força, inteligência, número e organização. Pela
var em conta os seus direitos. Depois o deixava fazer o que ele mesma razão, nenhuma lei na Terra tem valor, se não for susten-
quisesse, porque era inútil fazer exigências a um pecador nato. tada por uma sanção punitiva contra os desobedientes. Explica-
Com a nova disciplina, os problemas são encarados abertamen- se, deste modo, a razão pela qual os deserdados, no passado,
te. Pede-se ao indivíduo aquilo que ele pode dar, impondo-lhe quando eram simples e pacientes, não tinham direitos, ao passo
deveres, mas tendo em conta os seus direitos. Depois se exige que hoje, porque os fazem valer, passaram a tê-los. Enquanto es-
dele conforme a ética, proposta para o seu bem. peraram o reconhecimento destes direitos pela bondade dos ou-
Com a nova forma mental, fazem-se e respeitam-se, dei- tros, em vez de impô-los com sua própria força, não os obtive-
xando bem claras para ambas as partes, as contas do dever e ram. Por isso está nascendo hoje um certo respeito, cada vez mais
do haver. Tem-se liberdade, mas com compromisso sério, sin- crescente, pelos direitos dos outros. Mesmo na Terra, portanto,
ceridade e responsabilidade por parte de seres conscientes. Na para gozar uma vantagem, é necessário merecê-la, conforme a
santa simplicidade e ignorância do chamado bom tempo de justiça e a capacidade de cada um.
antigamente, muitas coisas se faziam e passavam como lícitas, Reduzir a moral à simples condição de não prejudicar os ou-
para que não fossem vistas. Hoje, sem aquela santa simplici- tros, respeitando-lhe os direitos, pode parecer um regime mais
dade, muitas coisas não são mais tidas como justas. Assim livre. Trata-se, no entanto, de uma disciplina mais severa que a
não se faz o que é errado, por ser prejudicial. Com essa men- preceptiva do passado, pois esta, embora codificasse cada ato,
talidade consciente e utilitária, muitos dos velhos abusos, re- permitia, uma vez cumprido o dever formal, escapatórias e li-
conhecidamente contraproducentes, tornam-se absurdos. En- berdade hoje ilícitas. Hoje, com o conceito de pecado social, a
tão o atual destrucionismo contra o passado pode representar ética fica mais livre, porém se torna mais profunda, enquanto,
uma função social de saneamento moral. Isto representa pro- no passado, apesar de formalmente mais rígida, ela era mais
gresso, e a vida não pode deixar de aceitá-lo. superficial. A nova moral não se limita ao ato exterior, mas vai
66 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
às raízes de nossa conduta. Em vez de dirigir o homem mecani- mais humana e positiva, o que permite resolver melhor o gran-
camente nas suas manifestações, ela penetra na sua consciência, de problema coletivo atual da convivência pacífica. Hoje a hu-
exigindo-lhe um sentido de responsabilidade. manidade se avizinha cada vez mais deste estado orgânico.
Portanto será lícito o livre uso do sexo, quando ninguém fi- Quando se ofende a Deus, Ele não fica prejudicado pela nossa
car prejudicado, nem o indivíduo, nem o outro termo, nem ter- ofensa, sendo que o mal é dirigido para fora da realidade de
ceiros, nem os filhos já nascidos ou gerados. Com esta liberda- nossa vida. Mas, quando se ofende o próximo, este fica lesado
de, aparentemente tão grande, está implícito para os honestos o de forma concreta e imediata. O segundo tipo de ofensa é muito
dever da fidelidade e muitos outros que, no passado, não se le- mais positivo do que o outro, sendo muito mais convincente pa-
vavam em conta. No fundo, a nova ética, apesar de parecer mais ra a mente moderna. Existem muitas ideologias proclamadas
livre, é substancialmente mais rigorosa. Muitas coisas aceitas no pelo mundo. Mas aquela que vale na prática, sendo aplicada por
passado tornam-se agora culpa, como, por exemplo, degradar todos, é estabelecida pela própria vantagem ou prejuízo. Esta é
como bastardos filhos inocentes, por terem nascido ilegítimos; a moral que funciona em qualquer lugar, sendo compreendida e
viver em ociosidade, por dispor de patrimônios não ganhos pelo professada por todos. As outras, frequentemente, servem de
próprio trabalho, como aqueles herdados gratuitamente ou ad- camuflagem para esconder esta universal ideologia utilitária,
quiridos através do matrimônio; pôr em perigo a vida dos outros, que, em todos os lugares e tempos, está na base da vida.
conduzindo mal o automóvel; arruinar os negócios de outros, Neste nosso exame da posição da Igreja no momento atual,
administrando-os mal, por exemplo, estando no governo; não alguns poderão ver semelhança com o velho materialismo anti-
pagar ao fisco; enganar legalmente o próximo no comércio; clerical e tomar posição a favor ou contra. Aqui, entretanto, par-
aproveitar-se da boa-fé dos honestos; propagar doenças infecci- tindo de uma imparcial constatação de fatos, quisemos fazer um
osas; desfrutar a ignorância dos inexperientes; espalhar vícios lí- exame para ver e entender o significado do que está hoje suce-
citos e danosos, como fumo, álcool, etc.: aproveitar-se, consoan- dendo no mundo. Podemos, portanto, dizer que não compreen-
te a lei, do trabalho de outrem; deixar os próprios dependentes deu a nossa exposição quem nela viu agressividade contra a
em ociosidade e indigência, conduzindo-os ao furto. Para cada Igreja. Não estamos no terreno dos partidos, que se combatem
rico, será culpa a pobreza de qualquer um dos seus semelhantes uns aos outros, para vencer. Aqui não existe luta, porque não há
em relação ao qual ele não tenha cumprido o seu dever de pro- inimizade. Tais atitudes, mentalmente contraproducentes e de
ver, assim como, para cada pobre, será culpa não trabalhar e não natureza mais primitiva, estavam em grande voga no passado.
fazer o possível para não se reduzir a um parasita, pretendendo Hoje, o mundo resolveu começar a pensar, desejando antes de
viver à custa do rico. Será culpa capital viver do trabalho de ou- mais nada compreender, para poder depois agir com inteligên-
trem em vez do seu próprio, embora, antigamente, explorar os cia. Com desabafos de ódio, espírito de agressividade e desgaste
dependentes fosse distinção de aristocrata. de atritos, não se pode compreender nem resolver os problemas.
No futuro, será outra a lista dos pecados de competência do Hoje o mundo não é mais antirreligioso, e sim arreligioso;
confessor. Numa sociedade assim, os santos parasitas iriam pa- não é mais materialista, e sim realista. A crise não é apenas do
ra o inferno, e não para o paraíso. Certamente poderiam ser sal- catolicismo, mas de todo o pensamento humano, que se tornou
vos aqueles verdadeiros trabalhadores do espírito, o que é coisa reacionário contra qualquer modalidade de conformismo. A
diferente da mecânica das recitações vocais e dos exercícios Igreja esta envolvida num fenômeno universal, num momento
formais. Mesmo que, para os primitivos, incapazes de se dirigi- crítico da evolução humana, no qual se passa de um nível bio-
rem, fosse necessário fazer um preceituário, ela deveria ser feita lógico a outro. Para ela, tão conservadora, isto é um terremoto.
com outras vozes. Então, as penas do Código deveriam castigar Para se salvar e sobreviver num mundo que se transforma cele-
também os responsáveis, que são a causa dos delitos, e não remente, ela também teve de entrar na corrida. Este é o signifi-
apenas quem os comete. Deverá chegar-se a uma justiça de cado do seu desejo de atualização, com o diálogo e o Concílio.
substância, que, sabendo encontrar o verdadeiro culpado, mere- Mas ela é uma velha senhora, carregada de anos e de joias, com
ça confiança, pois não vai somente contra aquele infeliz perpe- as pernas atrofiadas, por ter andado com muita dificuldade.
trador menos hábil na arte da fuga, o qual é mais fácil de ser Agora, ela faz o que pode para avançar a tal velocidade. Mas a
apanhado. Deveriam, portanto, ser punidos todos os culpados, sua velhice merece respeito e também gratidão.
direta ou indiretamente, de violação da justiça social. Por dois mil anos, a Igreja lutou para sustentar um ideal, ain-
Estes são apenas alguns exemplos, escolhidos ao acaso, dos da que o tenha feito por interesses terrenos e que, às vezes, tam-
melhoramentos possíveis no futuro, quando o homem conceber bém o tenha traído. Mas não era fácil ser cristão na feroz Idade
religião e moral de um modo mais inteligente. Hoje, porém, já Média. Se ela quisesse sobreviver, deveria utilizar os meios que
se chegou a uma nítida contraposição entre a velha moral do os tempos impunham, os únicos persuasivos para aquelas men-
passado, conformista, burguesa e clerical, e a nova ética do pre- tes selvagens. Por isso utilizou como armas o inferno, as exco-
sente, consciente e responsável, que, opondo-se àqueles velhos munhões, a inquisição, as fogueiras, as alianças com o mais for-
esquemas, identifica-se com a disciplina laica atual. Julga-se te e as guerras, defendendo-se contra os contínuos perigos. É
como sendo de fato uma moral apenas aquela responsável de certo que não correspondia aos fins da vida e à missão da Igreja
hoje, e não a irresponsável do passado. Existe, portanto, tam- que ela fosse constituída de seres tão bons e santos, a ponto de
bém o fato inegável de que ela está-se desenvolvendo com sen- se deixarem matar como Cristo, pois isto teria servido apenas
tido de maior respeito pela personalidade humana. Se ela é hoje para liquidá-la. De fato, a realidade da vida é bem diversa da-
incorporada à coletividade, isto é para encontrar uma proteção quela sonhada pelo Evangelho. Enquanto tal estado não for al-
antes ignorada. Além disso, se este novo estado for alcançado cançado por todos através da evolução, um só grupo não pode
por imposição de um regime rígido, tal condição já representa separar-se do resto da humanidade para fazê-lo sozinho. A Igre-
uma estrutura orgânica, feita de previdência e providência, ini- ja não podia ser constituída por uma supremacia de santos, todos
cialmente inexistentes. Se a disciplina limita e pesa, ela consti- eles tendendo a alcançar isoladamente a sua salvação pessoal.
tui, todavia, ordem e defesa, sendo portanto aceita, pelo fato de Ela devia, ao contrário, enxertar-se na baixa vida de todos, para
ser útil à vida. O fato de se haver deslocado o conceito de culpa ajudar a ascensão dos outros. Foi assim que a Igreja se fez ins-
de um ponto de referência longínquo e incontrolável, como era trumento de progresso e realizou o seu trabalho de civilização.
a ofensa a Deus, para outro próximo e controlável, dado pelo Ora, não existe organismo que não envelheça com o tempo.
prejuízo causado a terceiros, permite alcançar resultados menos Então a vida, que não pode parar, renova-se, deixando morrer
teóricos e mais reais. Usa-se, assim, uma unidade de medida os velhos, a fim de poder caminhar em frente. Se tal fato é con-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 67
forme a natureza, nem por isso o ser velho e cansado torna-se XII. O PROBLEMA RELIGIOSO.
culpado, para merecer condenação e ataques. Faz-se a guerra A OBRA PERANTE A IGREJA
contra os jovens, mas não contra os velhos, o que é covardia.
Tanto mais que não é preciso matá-los, porque eles morrem por 1) Autoridade e Liberdade
si mesmo. Basta só esperar. Tem-se, pelo contrário, o dever de
amá-los, porque eles fizeram o seu trabalho, enquanto os jovens Veremos neste capítulo qual era a posição assumida pelo nos-
ainda não realizaram coisa alguma. A vida é justa, deixando a so personagem diante da Igreja. Isto nos permitirá examinar ou-
estes as novas fadigas e pondo de lado os velhos, em paz. É por tros problemas afins. Para ser honesto, ele definiu sua posição
isso que hoje não nascem heresias, pois ninguém se interessa antes de tudo perante Deus e a própria consciência. Na Terra, os
mais por problemas teológicos. As novas gerações pensam em dois termos da questão eram, de um lado, uma organização hu-
outra coisa, sendo o passado, para elas, coisa superada. Gravi- mana, armada de verdades absolutas, infalibilidade e autoridade,
tando em direção ao futuro, cujo panorama se apresenta bem com poder material e espiritual para impor o próprio domínio,
diverso, elas se preparam para explorações interplanetárias, exigindo obediência, sob pena de sanções neste e no outro mun-
constatando que a ciência, antigamente condenada pela religião, do; de outro lado, um indivíduo isolado, incapaz de pensar e crer
fez coisas que esta, desinteressando-se, mantendo-se orgulhosa por sugestão e coação, tendo absoluta necessidade de um conhe-
e sentindo-se autossuficiente, nunca soube fazer. cimento claro e lógico, adquirido por livre adesão, fruto de con-
Nestes escritos, não podemos mudar o momento histórico vicção sincera, e não de submissão cega. Duas formas mentais e
nem o seu conteúdo. Todos nós estamos imersos nele e devemos duas finalidades opostas, estabelecendo duas posições antitéticas,
vivê-lo. Aqui procuramos apenas compreendê-lo e explicá-lo. uma destinada a formar e a submeter o rebanho, e a outra, a al-
Por evolução, hoje mudam as forças da espiritualidade, de ma- cançar a compreensão através do raciocínio e do desenvolvimen-
neira que as velhas desmoronam. Ela se tornará científica, de- to espiritual, subindo em direção a Deus. De uma parte, uma or-
monstrada e racional. As suas obsoletas formas ainda não estão ganização gigante na Terra, cujo objetivo é conquistar adeptos;
mortas, mas a vida as deixa docemente padecer de morte natu- de outra, um pobre solitário que, pretendendo adquirir valores da
ral, não as reabastecendo de material vivo através da contribui- alma, vê-se, por isso, forçado a tomar, em face da autoridade,
ção das novas gerações, que vão na sua grande maioria alimen- uma posição de legítima defesa. Cada um tinha as suas armas. De
tar outros organismos, enquadrando-se em complexos esquemas um lado havia a imposição de verdades estabelecidas e imóveis;
sociais. Por isso diminuem as vocações e esvaziam-se os semi- do outro, o direito de evoluir e a inviolável liberdade do espírito
nários, de modo que o cansado organismo não encontra células na procura de verdades sempre mais avançadas. Num, a forçada
novas para substituir as velhas. Então o metabolismo nutritivo se interposição de intermediários entre a alma e Deus; noutro, a ab-
detém, os tecidos murcham e a arteriosclerose destrói a vida. soluta impossibilidade de impedir que a alma possa comunicar-se
Entretanto muda apenas o corpo da velha senhora, razão pela com Deus, sem intromissão de terceiros, intérpretes ou ministros,
qual ela não morre. A sua alma permanece. A natureza não mata que se autodenominam seus representantes. No primeiro, a impe-
a venerável dama, para sepultá-la no cemitério, mas lhe constrói riosa necessidade de manter unido o grupo sob o próprio domí-
lentamente um corpo novo, para substituir o velho. Aos de fora, nio, para impedir sua dispersão em cismas e heresias, acorrentan-
então, pode parecer que houve morte de uma pessoa e ressurrei- do o pensamento e paralisando a pesquisa; no segundo, a neces-
ção de outra, quando, na realidade, a mesma espiritualidade, na sidade de pensar, para compreender e viver conscientemente,
mesma alma, toma forma num corpo diverso, ficando mais viva persuadindo-se da razão dos próprios atos.
do que antes. Então morre somente a forma, e não a substância. Dissemos legítima defesa, porque, na Terra, todas as coisas
Por isso o corpo da Igreja grita, pois teme pela sua própria vida, funcionam em regime de luta. Esta é a lei do nível biológico
que ele pode perder. Mas o seu espírito, que não pode extinguir- animal-humano. Ora, era no seio de tal regime que existia,
se, não grita, porque não tem nada a temer. como poder social na Terra, a organização do catolicismo, sus-
A Igreja é princípio e forma. Ora, em tudo que existe, o tentada por meios jurídicos, econômicos e políticos, com plena
princípio permanece, enquanto ao seu redor muda apenas a autoridade, enquanto, do outro lado, encontrava-se o indivíduo
forma. Ninguém pode alterar estas leis, pelas quais, no interior isolado, desprovido de qualquer poder, pelo menos daqueles
de cada elemento, existe um conceito que o rege e que, moven- que têm valor neste mundo. Se ele o tinha no céu, isto cá em
do-se através de um transformismo contínuo, permanece cons- baixo não valia. Aqui falamos do jogo terreno, e não daquele
tante, enquanto vai deslocando este elemento para posições espiritual, diante de Deus, o que é outra coisa. A ele, na Terra,
sempre diversas, desenvolvendo-se ao longo de sua trajetória cabia apenas a obrigação de obedecer, enquadrando-se na or-
típica. O moribundo, quando, para não morrer, agarra-se ao dem estabelecida. Ora, isto podia convir à ovelha comum, feita
corpo, no qual ele vê a sua sobrevivência física, não compreen- para viver no rebanho, sob o jugo de um pastor, mesmo que es-
de que a morte é necessária à vida, porquanto esta precisa mu- te a abrace e proteja apenas para ordenhá-la. Mas ele não era
dar sempre de formas, para poder continuar. Se não fosse a ovelha. Tinha necessidade de pensar e compreender, pois não
morte, que nos liberta de uma forma velha e gasta, deveríamos podia simplesmente engolir, de olhos fechados, verdades já
fenecer presos a esta. No entanto é justamente por meio da confeccionadas em série para o uso comum, sem fazer a análi-
morte que pode acontecer o contrário. Com isso parece que não se profunda do produto oferecido.
somos donos de coisa alguma, sendo incessantemente despoja- Deste contraste de formas mentais, necessidades, objetivos
dos de tudo, até mesmo de nosso corpo. Igualmente verdadeiro e posições só podia nascer um choque, que iremos observar nos
é o fato de sermos a trajetória de um transformismo em cons- seus vários momentos. Isto nos permitirá colocar em evidência
tante movimento, o qual nos torna capazes de usufruir de todas alguns problemas. No volume precedente, A Descida dos Ide-
as coisas que encontramos ao longo de nosso caminho e do qual ais, no Capítulo “Psicanálise das Religiões”, observamos al-
somos artífices e proprietários absolutos. guns aspectos do catolicismo em si. No presente capítulo, ob-
Eis que as coisas não são como podem parecer. Deixe- servaremos o encontro entre o catolicismo e o nosso persona-
mos, pois, gritar quem acredita que, com a morte da forma, gem, caso que pode interessar, porque não é o único, se bem
possa perecer a substância. Quem pensa assim trata da sua que raro e fora de série. Pode-se dar a este fato um alcance mais
própria sobrevivência, a serviço do qual colocou o ideal, em vasto, dado pelo desencontro, que não é nada novo, entre a psi-
vez de se ocupar do triunfo deste, a serviço do qual deveria cologia de qualquer pesquisador livre e as verdades cristaliza-
ter colocado a si mesmo. das, as quais são obrigadas pela evolução a seguir mais adiante.
68 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
O fato de, na Terra, estarmos em regime de luta, onde nada vemos que, historicamente, a religião oficial, com a sua autori-
escapa, leva inevitavelmente muitos a interpretarem nossas ob- dade, serviu muitas vezes não para fazer caminhar, mas sim pa-
servações como uma crítica demolidora, dirigida contra a Igre- ra impedir que outros caminhassem.
ja. Aos seus grupos rivais, poderá parecer um convite a ser uti- É certo que tal conflito não deveria nascer, pois o homem
lizado para fazer guerra – o que mais se sabe fazer em nosso espiritual não pensa de fato em atentar contra a autoridade ter-
mundo – enquanto os problemas espirituais, que tanto interes- rena, pela qual não se interessa. Mas a luta surge, quando o
sam ao nosso personagem, têm bem pouca importância. Ora, é homem espiritual, apelando para Deus, foge ao domínio da au-
evidente a posição recíproca, pois, para quem está interessado toridade religiosa terrena. E esta é muito ciosa daquela prerro-
no conhecimento, bem pouco importa fazer guerra. Na Terra, as gativa em relação ao seu ideal, julgando-se atacada deste modo.
religiões tendem a se reduzir à luta de grupos. Para quem se Apelando diretamente para Deus, ele não apenas se liberta, mas
ocupa da investigação da verdade, isso representa uma fastidi- também dá um péssimo exemplo de insubordinação, ensinando
osa perda de tempo, enquanto, para o homem comum, que se aos outros que existe um meio para fugir daquele domínio.
interessa sobretudo pela supremacia do seu próprio grupo sobre Com o seu exemplo, ele os convida a fazer o mesmo. Em suma,
os outros, é a pesquisa da verdade que representa uma enfado- trata-se de um rival no mesmo jogo de mediação entre o ho-
nha perda de tempo. Mas ele deve demostrar que a cultiva, para mem e Deus, de um rebelde que quer substituir-se à autoridade
justificar assim o que de fato mais lhe interessa: a sua própria no monopólio de interpretar o pensamento e a vontade de Deus.
posição de domínio. Em nosso planeta, o problema maior não é Nessa regalia estão as raízes do poder, sendo preciso rompê-las.
o conhecimento da verdade, mas sim a autoridade e o poder. Cada tentativa de comunicação direta com Deus é conside-
A nossa análise trata de uma luta entre o Céu e a Terra, dada rada como sendo uma provocação ao seu intérprete oficial, con-
por uma reação do poder espiritual, para não ser liquidado pelo figurando um atentado ao monopólio sobre o qual se baseia essa
homem, que, estando aqui bem instalado, utiliza o espírito co- autoridade. Eis que este homem espiritual pode contradizê-la e,
mo meio para vencer no plano da luta animal e dominar materi- em nome de Deus, destruir aquele privilégio, empregando em
almente. Tratando-se de um indivíduo espiritualizado, era natu- seu próprio benefício o mesmo estilo e método da infalibilidade
ral que o choque se verificasse no terreno religioso, no qual se e inapelabilidade – já tão útil nas mãos da autoridade. Ele pode
dá a descida dos ideais na Terra, e não nos outros campos, co- insurgir-se diretamente contra ela, opondo-lhe outra autoridade,
mo o filosófico, o político, o social, o econômico etc., menos expedindo sentenças contrárias às suas com o seu próprio tribu-
próximos e de menor relação com o problema espiritual. Tal nal, que também não se discute. Por isso afirma-se que a palavra
choque se deve à impossibilidade do indivíduo rebaixar seu de Deus não pode ser verdadeira sem a aprovação eclesiástica. É
próprio tipo, fato que o torna incapaz de se enquadrar nas mas- necessário, para sua defesa, que a Igreja mantenha o exclusivo
sas, dentro do materialismo religioso ao qual o homem, para domínio dos contatos divinos, que justificam a sua presença no
sua comodidade, reduziu a religião. Tal indivíduo está dedicado mundo. Assim, ela permanece a única intérprete dos textos sa-
a outro trabalho, que não é prosperar na Terra, mas sim evoluir grados, mantendo a exclusividade de receber e transmitir o pen-
e subir espiritualmente. A religião, ao invés, ocupa-se de do- samento de Deus, para ser somente ela a depositária da verdade.
mesticar o ideal, para reduzi-lo aos limites da animalidade hu- Se surgem outros intérpretes, então nasce o conflito entre eles e
mana, transformando-o numa forma de hipocrisia, com a qual, a autoridade representante de Deus. Surgem assim a heresia e o
cobrindo-se de elevados princípios, pode esconder a própria in- cisma, resultando na cisão que, extirpando uma parte do corpo
volução e, ao mesmo tempo, eximir-se do esforço evolutivo, da Igreja, coloca em perigo o poder baseado na unidade do gru-
permanecendo comodamente no nível animal. Não importa a po. Então, trava-se a luta pela vida. A autoridade responde ao
verdade para a autoridade religiosa, que se preocupa sobretudo desafio, mobilizando todas as suas armas. Verifica-se, como em
com o seu poder e, por isso, luta contra a falta de fé, o erro e o todas as revoluções terrenas, o choque entre a autoridade consti-
rebelde à ordem. Esta é a substância do problema. tuída e os defensores de outros princípios e governos. A luta se
A primeira coisa proibida pela autoridade é que se procure desenvolve à semelhança de qualquer outra revolução. Se o re-
uma comunicação direta com Deus, porquanto isto pode signi- belde é forte pelo número de adeptos, então vence, como acon-
ficar uma tentativa de fuga do seu domínio, na qual o indivíduo, teceu com o protestantismo. Se é fraco, vence a autoridade, que
encontrando um tribunal superior a ela, pode tornar-se indepen- o liquida como herético na fogueira. Esta era a história até on-
dente. Disto surge a possibilidade de se liquidar os intérpretes tem. Se não fosse a atual maturação biológica, que fez o mundo
patenteados, adaptados a esta função, sobre a qual eles baseiam evoluir, a Igreja, por vontade própria, teria ficado naquelas posi-
as suas posições terrenas. Daí o temor de perdê-las, quando é ções. São vicissitudes humanas, praticadas com métodos huma-
suprimida a necessidade de depender da intermediação espiritu- nos, que nada têm a ver com o espírito e com Deus.
al, monopolizada nas mãos dos ministros de Deus. Eis a razão Tudo isso é natural e lógica consequência das leis biológicas
pela qual, para aqueles intérpretes, consiste em pecado mortal imperantes em nosso planeta, baseadas no princípio da luta pela
apelar para Deus, pois isso anula a autoridade deles, que deixa sobrevivência e no respectivo sistema de rivalidades entre indi-
assim de ser suprema, como último, absoluto e infalível juízo, víduos e grupos. Dado tal ambiente e tal nível de evolução, tudo
não questionável e sem apelação. Se a voz de Deus fala noutro isso se justifica. O homem espiritual, cujo caso estamos obser-
lugar, por outras bocas, podendo julgar de forma diversa e até vando, vive em outra fase de evolução, razão pela qual é gover-
mesmo condená-los, é natural que tudo isso os leve a desenco- nado por outras leis. Disto seguem dois métodos de ação total-
rajar os contatos diretos da alma com Deus, nos quais o indiví- mente diversos. O evoluído, para afirmar uma verdade, põe-se a
duo não se submete à intervenção dos seus representantes, o demonstrá-la, raciocinando e apresentando provas, a fim de
que significa voltar-lhes as costas, não lhes dando importância. convencer e alcançar uma adesão espontânea, que constitui um
Este contato direto, portanto, implica libertar-se do poder da au- resultado pacífico e duradouro. O involuído, por sua vez, põe-se
toridade, que pode assim ser colocada de lado por outros, cuja a agredir as outras verdades, acusando-as de erros e buscando
intenção também é comandar em nome de Deus. Estamos na assim destruí-las como rivais, a fim de colocar no lugar delas a
Terra e aqui o que domina é a rivalidade pelo poder. Esta foi a sua verdade, como única e absoluta. A consequência são a guer-
razão pela qual a Igreja condenou muitos que, falando em nome ra e a incerteza. Aqui vivemos num regime de luta, baseado na
de Deus, faziam pressão para ela evoluir, indo contra a própria força das próprias armas. O involuído não sabe fazer outra coisa.
autoridade, cuja pregação, feita em nome de Deus, era dirigida Constituirá neste caso arma sutil, que nem por isso deixa de ser
no sentido de deter a evolução, que é ascensão para Deus. E arma, empregando um terrorismo psicológico, com o qual se
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 69
aproveita da fraqueza mental ou do alto grau de sugestão e igno- do como poder terreno, estabelecendo uma organização hierár-
rância das massas. O inferno e os demônios são o equivalente quica sobre bases econômicas e exercendo autoridade para
psicológico da galera e dos esbirros. O fato de que, no campo dominar o seu rebanho, porque, sem usar os métodos do mun-
espiritual, possa haver valores capazes de impor a aceitação de do, ela não poderia subjugá-lo. Para melhor compreender esta
uma verdade – meios coativos e terrorizantes, como o inferno – conduta e ver mais em profundidade os aspectos deste grave
prova a imaturidade espiritual das massas religiosas, que só en- problema, observemos agora mais de perto a origem e a estru-
tendem os métodos terrenos de persuasão coercitiva. tura da Igreja e de sua autoridade.
Os resultados obtidos são proporcionais a tais processos. ◘ ◘ ◘
Através da imposição por autoridade e de ameaças de sanções, Quais são as origens da autoridade, a sua função e o seu sig-
empregando o regime da força, ainda que o seja apenas no pla- nificado nas suas várias formas? Pode se tratar de progenitores,
no mental, somente se pode obter reação e luta, e não convic- educadores, ministros de Deus, professores, superiores hierár-
ção, gerando tentativas de evasão através do engano. Tais atitu- quicos, burocratas, patrões, diretores e chefes de qualquer gêne-
des, no entanto, são justificadas pelo fato de que, em grande ro, sendo que em todos os casos há uma posição constante de
parte, o mundo é constituído de involuídos, com os quais é inú- domínio de uma parte e de sujeição da outra. Misturados, mas
til utilizar sistemas espirituais, porque tais homens procuram em luta entre si, temos, de um lado, a organização hierárquica,
somente a sua própria vantagem, compreendendo apenas a im- que representa o modelo de coordenação dos elementos em uni-
posição pela força e o temor do próprio dano. Desse modo, sem dade orgânica (princípio do Sistema); e, do outro, o dualismo
uma punição e uma autoridade que a aplique, não são conven- entre superior e inferior, constituído pelo antagonismo entre
cidos a frear os seus instintos ferozes. As massas anseiam por elementos contrapostos como rivais, que representa o modelo
fugir das sanções de qualquer autoridade, seja ela humana ou oposto (princípio do Anti-Sistema). Eis que o princípio unitário
divina. Eis que o evoluído fica sozinho contra o rebanho e seus no qual se expressa a tendência da evolução para a organicidade
pastores, enquanto estes permanecem reunidos à sombra dos (em direção ao Sistema) fica poluído pelo princípio oposto, de
ideais, em perfeita compreensão e acordo entre si. Nada disso caráter antiunitário e tendente à cisão (em direção ao Anti-
tem qualquer ligação com a verdadeira espiritualidade e reli- Sistema). Explica-se assim a contradição encontrada no fato de
gião. No entanto é o que funciona na Terra, porque corresponde que as tentativas de unificação em nosso mundo sejam feitas
ao nível mental do homem contemporâneo. através do uso da força, cuja aplicação representa um principio
Cristo pregou amor e paz. Mas o homem continuou a fazer desagregante e separatista, excitando reações e antagonismos.
guerras e, se chegar à lua e a outros planetas, também armará ali Acontece que todo impulso em direção ao Sistema é freado por
outros conflitos. O próprio cristianismo é feito de uma história outro contrário, proveniente da parte ainda não superada do An-
de heresias e cismas, num estado de guerra contínuo. Em tal ti-Sistema, cuja tendência, ao invés de ser no sentido da unifica-
mundo, cada ato construtivo acaba em litígio para destruir. Foi, ção, dirige-se ao emborcamento dela, com a luta e a cisão. A
portanto, natural que, neste ambiente, o desejo de nosso perso- unificação do mundo sob a direção de um só chefe foi sempre o
nagem, de encontrar verdades mais profundas e convincentes, grande sonho não só político mas também religioso, constituin-
provocasse como única resposta a condenação dos seus livros ao do uma ambição imensa desde o Império Romano até Carlos
Índex. As precedentes considerações podem explicar as verda- Magno, continuando com o Islã, o catolicismo e o comunismo.
deiras razões de tal atitude. Agora podemos compreender por- Toda construção unitária é sempre corroída interiormente pelo
que, neste caso, a autoridade pensou somente em se defender, princípio oposto (AS), constituído pela revolta, que procura des-
permanecendo indiferente à sorte do indivíduo condenado. Uma pedaçar aquela unidade. A história nos mostra estes fatos, sendo
psicologia diversa desta pertence a níveis evolutivos superiores, que somente com tais conceitos podemos compreendê-los.
constituindo, portanto, um absurdo no atual plano humano. Realmente, o princípio de autoridade dirigido para a santifi-
Compreende-se agora o erro fundamental daqueles que pre- cada finalidade unificadora (S), apoiando-se na obediência, traz
tendem reformar a Igreja. Falta-lhes conhecimento de fato, dentro de si, em germe, aquele outro, oposto, de revolta divisio-
pois ainda acreditam na ilusão de que o homem, de um dia pa- nista (AS). Em suma, cada autoridade representa o princípio do
ra outro, possa transformar-se. É inútil procurar reformar a S, que tem Deus como centro do seu sistema. Essa causa primá-
Igreja, se, primeiramente, não se corrigir o homem, que é o ria, porém, em nosso universo decaído, não existe pura, mas sim
material do qual ela é feita, tanto na sua hierarquia quanto no corrompida, aparecendo, portanto, emborcada na forma de uma
seu rebanho. Com o indivíduo atual, mais do que já se adquiriu autoridade que comanda só para sua vantagem, acompanhada
até agora – o que é bem pouco – não se pode obter. Com o por seus elementos dependentes, que procuram somente revol-
homem de amanhã, que a evolução – servindo-se entre muitos tar-se contra ela. Eis em que se pode transformar – e frequente-
fatores também das religiões – terá levado mais adiante, será mente assim ocorre – o princípio da autoridade. Por isso aparece
possível conseguir algo a mais. O problema não é de religião, a lei da luta em todas as manifestações humanas. Assim a auto-
com base em verdades reveladas e nas suas respectivas organi- ridade, em vez de servir, à semelhança do Sistema, como centro
zações hierárquicas, mas sim de espiritualização por evolução, vital do organismo dos dependentes, é usada somente para ex-
o que constitui um trabalho biológico muito demorado. Trata- plorá-lo em vantagem de quem manda, de modo que a submis-
se de um fenômeno imenso, do qual o homem é mais efeito do são dos outros, tornada assim forçada, acaba reduzida a uma ex-
que causa e o qual é confiado à história, ao tempo e aos golpes pectativa de revolta. Isto é lógica e fatal consequência do fato de
tremendos do destino. Este é o caminho das massas. Se algum que, em nosso mundo, sobre o princípio altruísta, unitário e co-
indivíduo emerge, antecipando a sua evolução, isto é assunto laboracionista do Sistema, prevalece aquele oposto, egoísta, se-
que não interessa aos outros, pois estes, nem por isso, preten- paratista e individualista do Anti-Sistema.
dem mudar de vida. Tal indivíduo, pelo fato de ter analisado o Sendo o processo da vida implantado segundo o método da
fenômeno e compreendido que não é possível, só com dois luta, não se pode fugir às consequências que dele derivam.
braços, mover a inércia de uma montanha, avança sozinho, Ambos os termos se põem a lutar, cada um pela sua própria so-
respeitando a bem decidida vontade dos outros de permanece- brevivência. Tem-se então um estado de guerra. Da parte do
rem na retaguarda. Então ele não deve ser julgado um rebelde, mais forte (porque venceu, tornando-se autoridade), para de-
mas sim um homem prudente, que busca a ordem. fender e reforçar a sua posição de comando; da parte do mais
Estando as coisas assim, não foi culpa da Igreja, se ela, pa- fraco (razão pela qual se encontra na situação de dependente),
ra sobreviver, não teve outra escolha senão radicar-se no mun- para procurar, em sua legítima defesa, libertar-se de uma auto-
70 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
ridade que não é ajuda, mas sim peso, buscando destruí-la tão ser mais condescendente e honesta, os seus subordinados, que
logo esta perca a força sobre a qual apoia todo o seu poder. estão assim menos obrigados a se defender para a sua sobrevi-
Num regime de luta, a autoridade pode significar uma forma vência, também podem ficar mais respeitosos para com ela.
de agressão contra a liberdade dos dependentes, a qual essa au- Como consequência, ocorre que, quanto mais eles se tornam as-
toridade é naturalmente levada a limitar, porque, conforme está sim, tanto mais a autoridade – estando por isso menos forçada a
colocado o problema, eles não são seus colaboradores, mas sim lutar contra eles para a sua sobrevivência – pode fazer novas
seus rivais. Num sistema de cooperação, tal limitação deveria concessões a favor deles, porque isto é agora menos perigoso
resultar de um recíproco reconhecimento de direitos e deveres, para ela. É evidente que, quanto mais as massas são conscientes
por livre consentimento e convicção de ordem, para vantagem e menos rebeldes, tanto maior liberdade se lhes pode conceder,
comum. Mas, dado aquilo que é o homem, tal restrição tende a pois é menor o perigo que abusem dela. Então, quanto mais a
se reduzir à imposição forçada, o que produz a sua correspon- autoridade for leve e transigente, tanto mais os seus subordina-
dente reação. Este impulso serve para alimentar nos dominados dos poderão ser obedientes, porquanto agora o comando não é
certo fortalecimento, até levá-los ao ponto em que possam rea- exercido para oprimi-los, mas sim para ajudá-los, já que ela está
gir pelo enfraquecimento da autoridade. Entretanto, mesmo du- a favor da vida deles, e não contra. E assim sucessivamente.
rante a espera, aquela imposição serve para os súditos aprende- De tudo isto se deduz que, automática e gradualmente, a
rem alguma coisa, porque lhes ensina a encontrar, na hipocrisia sabedoria da vida leva a encontrar a solução. Mas, enquanto
e em mil outras astúcias, um modo de se evadirem, a fim de cada um dos dois termos não reconhecer o direito à vida da
poderem sobreviver da forma menos mal possível. Quem não parte contrária, esta a defenderá com todos os meios. Assim,
tem a força defende-se com o engano. E esse engano, por ínfi- enquanto este direito não for plenamente respeitado, autorida-
mo que seja, já constitui um trabalho mental, proporcionado à de e dependentes não terão paz. A solução não está em lutar
capacidade do involuído, servindo para desenvolver-lhe a inte- para se sobrepor reciprocamente, como se faz hoje, mas sim
ligência. Para o involuído isso já é uma conquista, exigência em chegar a um acordo. A tendência ao abuso de uma das par-
que a vida faz a todos, ainda que ao nível de cada um. A luta tes é o fato determinante da reação da outra, que luta para detê-
tem sempre uma função criadora, levando o fraco a se fazer for- la, pois não quer suportá-lo em seu prejuízo. Nestas condições,
te, o ingênuo a se tornar astuto e o ignorante a adquirir conhe- é inevitável o regime de ataque e defesa. Enquanto a sobrevi-
cimento. A sobrevivência é condicionada, e a evolução é o vência de um lado estiver ameaçada pelo ataque do outro, em
prêmio deste esforço. Quanto mais baixo é o nível de cada um, vez de ser garantida pelo reconhecimento do direito à própria
tanto mais caro se deve pagar o direito à vida. vida, haverá luta, porque permanece de pé o motivo da oposi-
Eis a que tende e para que serve a autoridade na Terra: exci- ção, dado pela necessidade de se defender contra um inimigo.
tar com a opressão a revolta dos súditos, constrangendo-os a de- Basta que este se torne amigo, para o caso ser resolvido. E não
senvolver qualidades que ainda não possuem, o que, na verdade, se pode resolvê-lo de outra maneira, a não ser chegando a um
constitui benéfica ação evolutiva para vantagem deles. Quase estado de justiça, no qual há o reconhecimento dos recíprocos
soa a escândalo reconhecer tais verdades. Mas não vemos que direitos e deveres. É o abuso de um lado que faz nascer a rea-
neste mundo cada autoridade, uma vez bem instalada, tende ao ção do outro. Suprimido um, desaparece o outro. Como se po-
abuso, com o qual é compensado quem fez o esforço de con- de notar, há todo um jogo de reciprocidade, envolvendo ações
quistá-la? E não vemos igualmente que ao abuso costuma se- e reações de ambas as partes. Começa-se com a imposição, a
guir-se uma reação revolucionária, que acaba destruindo aquela força e a guerra, mas chega-se no final à compreensão, à justi-
autoridade, substituindo-a por outra, a qual, por sua vez, tende a ça e à paz. Assim funciona a vida.
novo abuso, terminando em outra revolução? No entanto, assim, De tais princípios a própria Igreja nos oferece hoje uma
todos trabalham e aprendem sem trégua, de modo que a evolu- aplicação. Durante toda a Idade Média, ela usou os métodos da
ção jamais para. Na sabedoria da vida, tudo se torna um meio opressão, porém hoje, quando tais métodos, pela maturidade
salutar para evoluir. É para isso que serve esse jogo de comando mental dos fiéis, tornaram-se contraproducentes, tendo-se
e de obediência num mundo inferior, sujeito ao regime de luta. É compreendido que, dadas estas novas condições, a fé não se
assim que, com os métodos do AS, consegue-se subir para o S, afirma oprimindo, mas sim convencendo, a Igreja abandonou a
sendo que o próprio mal colabora para a ascensão em direção ao técnica dos anátemas e condenações, concedendo no último
bem. Desse modo, à força de injustiças de todos contra todos (da concílio maior liberdade de consciência. Mas isso pôde suce-
autoridade contra os seus súditos e destes, através da revolta, der somente agora, quando séculos de opressão impulsionaram
contra aquela), consegue-se uma aproximação sempre maior da a inteligência a se desenvolver e, assim, a se tornar indepen-
justiça. Assim, seres ignorantes das leis da vida as aplicam in- dente, de maneira que nada mais é aceito cegamente, apenas
conscientemente, corrigindo-se reciprocamente dos seus erros. por principio de autoridade.
Constrangidos pelos impulsos opostos, vão cometendo erros ca- O problema da autoridade passou a ser uma questão de
da vez menores, passando de um estado de injustiça a outro de emancipação e liberdade, porque ao conceito de autoridade do-
justiça cada vez mais completo. Gradualmente, a autoridade se minante veio juntar-se o de libertação da sua dependência. É as-
torna cada vez menos agressiva, enquanto os seus súditos se tor- sim que, em nosso mundo, a liberdade é concebida como uma
nam cada vez mais obedientes. Os dois termos contrários se revolta contra o poder, e não como um ato de pacífica coordena-
aproximam cada vez mais um do outro, educando-se mutuamen- ção no seio da ordem de um estado orgânico. Eis a imensa dis-
te, compreendendo-se e aprendendo a conviver, numa posição tância que separa a ideia de liberdade concebida pelo involuído,
de luta e de sofrimento cada vez menores. conforme o AS, daquela concebida pelo evoluído, segundo o S.
Sucede que, quando os dependentes, impulsionados pela Neste segundo caso, a autoridade não é, como no primeiro, uma
opressão, são obrigados por reação a se fortalecer, tornando-se imposição do mais forte para sua vantagem e prejuízo do mais
assim capazes de fazerem valer os próprios direitos, então a au- débil, pesando sobre o cidadão, no caso do poder político, ou
toridade se faz generosa, mais razoável e mais justa, entrando sobre o fiel, no caso do poder religioso. Quando o cidadão se
mais facilmente em acordo. Assim, quando os subordinados se fortalece pelo número e pela organização, então o Estado demo-
tornam bastante astutos, de modo que não se deixem mais enga- crático – como agora, com a pressão do comunismo – faz-se jus-
nar, a autoridade abandona o método da hipocrisia, agora con- to e respeitador dos direitos do cidadão. Da mesma forma,
traproducente, e se faz mais sincera e honesta. Entretanto, pelas quando o fiel se torna mais inteligente para desvendar os mitos
referidas razões, ao mesmo tempo em que a autoridade passa a da Teologia e as astúcias da hipocrisia, então a religião – como
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 71
acontece atualmente, por causa da indiferença geral – faz-se res, porém, ainda serão necessárias para que o homem possa vir
mais compreensiva com os direitos da consciência. Eis através a enxergar uma coisa tão lógica e evidente!
de que jogo de forças se realiza o progresso neste terreno e co- A esta nova posição se chegará, quando a autoridade com-
mo se passa, gradualmente, da fase da imposição que constringe preender a sua superioridade de comando não como um direito,
à obediência àquela da adesão convicta e espontânea. À força de mas sim como um dever para com os seus subordinados, e estes
fatigantes tentativas para se expandir um à custa do outro, auto- entenderem a sua obediência como colaboração, e não como
ridade e subordinados acabam reconhecendo os direitos da parte subserviência, sendo necessário, para isso, que a autoridade dê
oposta, aprendendo a arte da convivência pacífica. Vivemos o exemplo, assumindo o esforço maior desta colaboração, de
numa sociedade na qual, mesmo que se pregue o amor pelo pró- modo a levar os subordinados a se sentirem, por isso, obrigados
ximo, o vizinho é quase sempre, pelo menos potencialmente, um a fazer, no interesse comum, a sua parte do processo. Contudo a
inimigo, de modo que não se pode chegar àquele amor senão iniciativa deve partir da autoridade, que está mais no alto e co-
quando cada um impõe amor ao semelhante, exigindo respeito manda. No entanto, quando ela pensa somente em si, os seus
pelos próprios direitos e cumprindo os seus respectivos deveres. dependentes também têm o direito de fazer o mesmo, de modo
No atual baixo grau de evolução do ser humano, não se po- que tudo então se corrompe. Nesta nova posição, a autoridade,
de obter mais. Hoje, a vida ainda é concebida segundo a forma sem se impor, encontra obediência espontânea, porque esta não
mental do Anti-Sistema, como um individualismo separatista significa sujeição ao seu egoísmo, mas sim adesão à sua ordem,
colocado na desordem, sendo a liberdade concebida como um que convém seguir. Então essa autoridade não é um inimigo
direito à revolta, para cada um se impor sobre todos. No futuro, que desfruta, mas sim um amigo que ajuda. Para ela, não serão
a vida será concebida segundo uma outra forma mental, que se mais inimigos os seus dependentes, que não mais verão nela um
aproxima sempre mais daquela do Sistema, e passará a ser vista inimigo. Em vez de um monte de engrenagens inúteis devido à
como uma disposição de cada um na ordem coletiva, sendo a sua desordem, teremos uma máquina harmonizada, que trabalha
liberdade concebida como dever de obediência dentro do traba- e produz, gerando bem-estar para todos. Hoje o mundo está car-
lho comum de cooperação para o bem social. Assim se compre- regado de males produzidos por ele mesmo no passado. É ne-
ende por que a palavra liberdade é ainda hoje o grito das revo- cessário anulá-los à força de inteligência e retidão. Trata-se de
luções, revelando nisso o instinto de luta e de revolta. Isto pro- um trabalho de reabsorção coletiva, que exige a cooperação de
va que o poder, muitas vezes, reduz-se a uma forma de opres- todos. Mas nenhum de nós quer fazê-lo, estando cada um à es-
são, da qual o oprimido defende o seu direito à vida. Explica-se pera de que o vizinho o faça primeiro. Esses males formam
também por que hoje ainda domina tal conceito de liberdade. uma massa enorme, e ninguém quer fazer a sua parte, coope-
Esta é a história de todas as emancipações. Tem-se no iní- rando para destruí-la. A colaboração será o único modo para
cio a opressão e, no fim, a libertação, que pode ser do proleta- conseguir isso. Mas cada um procura, ao contrário, jogá-la em
riado contra o capitalismo dos ricos; da mulher contra a prepo- cima do outro, a fim de salvar a si mesmo. Desse modo, o mal
tência do macho; das consciências contra o dogmatismo e a in- recai sobre todos e ninguém escapa. Todos nós gozamos frater-
transigência religiosa etc. Cada liberdade deve não apenas ser nalmente o belo inferno que construímos com as nossas mãos.
conquistada, mas também representar o cumprimento de um Por tudo isto se vê quão inexorável é a lei que nos constran-
justo direito, sem cair no abuso. Se a luta não se concluir com ge a suportar as consequências de nossas próprias ações. O que
a justiça, mas sim com outra injustiça, isto provocará a reação semeamos devemos recolher. Ficamos assim encadeados a este
do prejudicado. Então a luta continuará, até que se encontre o estado de guerra, ainda que ele nos atormente. E são inúteis os
justo equilíbrio. O involuído atual ainda entende a liberdade nossos belos planos para fugir dele. Todos desejam o desarma-
não só como revolta contra a opressão, para obter justiça em mento, mas quem o fizer em primeiro lugar será morto. Quem
seu favor, mas também como uma vitória sobre o opressor, pa- não é forte, por não estar armado, não tem direito à vida, de mo-
ra se vingar e oprimi-lo, alcançando, deste modo, apenas outra do que é ridículo se pensar em renunciar as armas por um prin-
injustiça. Assim, se as partes apenas invertem suas posições cípio de paz. Procura-se, portanto, esmagar o vizinho, para que
durante a realização do mesmo processo, fica-se sempre no ele não possa reagir. Esta é a paz que se alcança com tal sistema.
ponto de partida, porque a injustiça, que é a causa da desor- Eis que nosso verdadeiro opressor é a nossa involução. Com
dem, permanece. Então, a série de revoltas pela liberdade e ela formamos a montanha de abusos acumulados no passado e a
justiça jamais acaba. Enquanto o egoísmo triunfar e cada um forma mental que procura continuá-los, feita de egoísmo, ins-
procurar somente a própria vantagem, espoliando o próximo tinto de domínio e injustiça, características pelas quais se for-
do seu direito à vida, continuará em cada um a luta para defen- maram os nossos hábitos de vida e se saturaram as nossas insti-
dê-la e o problema não será resolvido. tuições no passado. A verdadeira revolta pela liberdade deveria
Explica-se, desse modo, a forma predominante de desconfi- ser contra este enorme opressor. É desse peso que o homem de-
ança envolvendo todo tipo de autoridade, que o indivíduo, por ve emancipar-se, se quiser alcançar resultados sérios. A suble-
longa experiência histórica, é habituado a considerar como um vação deveria ser contra a baixeza de nossa própria natureza.
inimigo do qual ele tem de se defender. Foi assim que nasceu As outras revoluções, salvo pequenas alterações, deixam mais
não apenas a luta contra o governo pela evasão fiscal, com a fi- ou menos tudo como estava, reduzindo-se a uma mudança de
nalidade de eximir-se dos deveres de cidadão, mas também o ocupantes, que, ocupando as mesmas posições, possuem os
hábito da blasfêmia nos países católicos, onde a Inquisição mais mesmos defeitos e continuam a fazer as mesmas coisas. É por
dominou. Quando as várias partes do organismo social estão em isso que as revoluções não resolvem, ressurgindo sempre com a
luta, ele não pode funcionar. O estado de guerra contínuo não finalidade de limpar, sem conseguir fazê-lo nunca. De que ser-
permite que se construa, pois o trabalho maior, aquele no qual ve substituir uma forma de governo por outra, quando os ho-
são absorvidas todas as energias, é a guerra, não só entre povos, mens permanecem os mesmos e, em nome de outros princípios,
mas também entre indivíduos, no corpo a corpo, a todo momen- comportam-se da mesma forma?
to e a cada movimento. A inconsciência coletiva é um enorme Esta nova revolução ninguém quer aceitar fazer, porque
peso sobre todos. Somente à força de suportar os danos e as pe- ela não é dirigida contra as culpas dos outros, mas sim contra
nas consequentes de tal estado, é que se chegará a perceber o ab- as próprias. Ela é feita não assaltando, roubando e matando,
surdo do sistema atual, tornando-se possível então passar ao mé- mas sim pedindo satisfação à própria consciência. Não se trata
todo da colaboração, no qual cada um faz a sua parte, com espe- de conquistar direitos, exigindo justiça dos outros, para vanta-
cialização de funções e coordenação de atividades. Quantas do- gem de si mesmo, mas sim de reconhecer e cumprir os pró-
72 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
prios deveres, exigindo justiça, em primeiro lugar, de si mes- Esta maturação da forma mental, que conduz a um novo
mo com sacrifício pessoal. modo de conceber a vida e, com isso, a novas relações sociais,
Quão interdependente é tudo! Falar de autoridade nos levou é o resultado de uma aceleração da evolução num momento de-
a tratar de liberdade, emancipação e revolução, para acabar cisivo de sua trajetória. É assim que as relações sociais são
explicando o verdadeiro significado delas em relação aos mais sempre mais disciplinadas através de uma compreensão e justi-
altos fins da evolução. Sem dúvida, o homem chegará a reali- ça recíproca, em vez de serem estabelecidas, como no passado,
zar essa outra substancial revolução, que terminará por substi- por imposição do mais forte, que, como tal, usava todos os di-
tuir todas as outras, apenas formais, com as quais o homem de reitos a seu favor e todos os deveres contra o mais fraco. Hoje,
hoje se deleita. Mas quantas dores serão ainda necessárias para a tendência é regularizar aquelas relações sociais com uma de-
poder chegar a compreender como ela deve ser feita e como finição dos direitos e deveres recíprocos, procurando-se com-
adquirir a inteligência e a coragem para enfrentá-la e realizá- pletá-las por meio do diálogo, realizado com palavras, fatos,
la! Quantos vencedores de revoluções, que por sua vez se tor- choques, abalos, adaptações e acordos, que estão-se desenro-
narão depois tiranos, deverão ser mortos, em nome da mesma lando como fenômeno de grande importância na atualidade e
justiça pela qual eles mataram os seus opressores! Trata-se de cuja tendência é alcançar uma posição biológica mais evoluída,
uma interminável cadeia de débitos, que, em nome do mesmo na qual se realiza, através da superação do atual estado de luta,
ideal, são repetidos pelo mesmo tipo de homem, para alcançar uma convivência pacífica e fecunda.
o mesmo objetivo e acabar no mesmo abuso, provocando a Para se ter uma ideia do que foi a forma mental no passado,
mesma reação, com a geração de uma nova revolução! Assim basta observar o modo como, na religião, o homem concebia e
caminha o processo, lenta e dolorosamente, ficando o homem ainda continua, nas classes menos espiritualizadas, a conceber
encadeado ao duro esforço de percorrê-lo. Mas tais são as leis Deus. É natural que o homem faça de tudo, até mesmo de
da vida, que funcionam também para os que se colocam contra Deus, uma ideia própria, segundo as únicas medidas que pos-
elas em posição emborcada, ainda que estes, na sua inconsci- sui, estabelecidas pela dimensão, estrutura e, portanto, capaci-
ência, acreditem ser possível escapar de suas reações e não ter, dade de entender da sua forma mental. Ora, mudando esta,
assim, de suportar tais consequências. muda também o seu conceito da divindade. Representando
◘ ◘ ◘ Deus a autoridade máxima, é inevitável que o homem, quando
É um fato que a tendência moderna é passar de um tipo de Nele projeta o seu conceito de autoridade, comporte-se diante
autoridade, entendida como meio de domínio imposto, que se Dele como está acostumado a fazê-lo perante as autoridades do
torna fonte de revolta por parte dos dependentes, a outro tipo, seu mundo. Assim a ideia de Deus concebida pelo fiel comum
entendido como meio de coordenação com a finalidade de co- é semelhante àquela do servo para com seu patrão, paralela-
laborar, o que, pelo contrário, é fonte de convivência pacífica. mente àquela concepção que o súdito faz do seu governo, que
Passa-se assim de um sistema de opressão a um sistema de a mulher faz do marido que manda, que os filhos fazem do pai,
compreensão recíproca, da inimizade à concórdia, da luta à os alunos do mestre, os dependentes dos seus superiores, tudo
unificação, o que significa um regime utilitariamente muito isto significando autoridade, seja por parte do estado, do mari-
menos danoso e mais proveitoso. Tudo isto é o produto natu- do, do pai, do professor etc. Tem-se de um lado a posição de
ral da evolução. Observaremos agora a passagem do velho ao submissão e do outro a de comando.
novo estilo de vida. Trata-se de uma diferente orientação, re- Essa relação de domínio e dependência corresponde a uma
sultante da constituição de uma nova forma mental, o que leva natural graduação de poderes, segundo as respectivas capacida-
em cada campo a conceber e, portanto, a fazer as coisas diver- des, podendo, numa sociedade de seres conscientes e honestos,
samente, fato que desloca toda a estrutura de nossa vida indi- constituir a base de uma hierarquia saudável. Mas infelizmente
vidual e social. Em substância, trata-se de um salto evolutivo vivemos num mundo de tipo oposto, baseado na rivalidade e na
em frente, para se afastar-se mais um passo do AS e avizi- luta. Segue-se, então, que essa diferença de posições não gera
nhar-se outro do S. Isto significa um reordenamento do caos, coordenação, mas sim revolta e atrito. Predominando o tipo in-
uma reaproximação da cisão gerada no dualismo, uma reab- voluído egocêntrico, quem detêm a autoridade busca somente a
sorção do separatismo na unificação, uma pacificação do uni- vantagem própria, em prejuízo do rival a ele submetido, en-
versal regime de luta, uma superação do estúpido regime de quanto, do outro lado, quem lhe está submetido compreende
agressividade destrucionista (próprio do primitivo), para se como uma derrota a obediência, contra a qual é necessário se
chegar ao mais inteligente, proveitoso e construtivo sistema defender, para não permanecer vencido. Então quem vive neste
do amor (próprio do evoluído). nível evolutivo concebe as relações entre o homem e Deus co-
A grande nova construção dos nossos tempos é o organismo mo dois impulsos opostos, movidos por dois interesses inimi-
coletivo. É para chegar a este resultado que as relações sociais gos, entre quem quer se impor e quem procura rebelar-se; entre
hoje estão mudando de forma. Estas, antigamente, baseavam-se quem exige obediência, porque é o mais forte, e quem não quer
em dois princípios: o da autoridade de um lado e o da obediên- submeter-se apenas pelo fato de ser mais fraco.
cia de outro. Estávamos na era do patrão e do servo, da força e É assim que o homem, não podendo conceber tudo senão
da hipocrisia. Assim cada um tinha construído a sua própria com a sua forma mental, entende as suas relações com Deus de
arma de ataque e defesa, o que era necessário, pois se vivia modo semelhante àquelas que existiam entre escravo e senhor.
num regime de luta. Hoje, pelo contrário, tende-se a apoiar as Explica-se então as comuns atitudes psicológicas que se cos-
relações sociais sobre princípios diversos, tendo por base a co- tuma ter de Deus: 1) Temê-Lo, porque é mais forte e está ar-
laboração entre autoridade e súditos. Com isso, passa-se a con- mado de sanções punitivas; 2) Considerar que Ele, como tal,
ceber como função social, para o bem coletivo, a autoridade, à tem pleno direito ao comando, acreditando-se completamente
qual quem adere, submete-se espontaneamente, no seu próprio dependente do Seu beneplácito, pois Ele é poderoso e pode,
interesse. Hoje, em vez da autoridade que se impõe pela sua por isso, cometer qualquer arbítrio, até mesmo violar, com o
força e do servo que, vendo-se obrigado a obedecer, procura milagre, a lei estabelecida; 3) Humilhar-se para melhor obter o
fugir do jugo com escapatórias e mentiras, ambos utilizando favor do soberano, que concede a “graça” a quem quer e como
tais armas num sistema de guerra, existe uma tendência de se quer, por razões não passíveis de censura, as quais só ele tem o
fazer acordos claros, para se chegar a um método de sincerida- direito de conhecer; 4) Procurar escapatórias para fugir ao do-
de e pureza, resultando paralelamente em uma consciência mínio do patrão, que exercita o comando em seu interesse, pa-
maior dos próprios direitos e deveres de ambas as partes. ra afirmar a si mesmo em sua grandeza, com as quais se possa
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 73
enganá-lo, fingindo-se como seu súdito fiel, obediente e servi- atitude não tem sentido para quem tem consciência da sua posi-
dor, para conseguir, desse modo, evitar a pena e ganhar o prê- ção e nela se coloca livremente, sem pensar em extrapolá-la. O
mio. Eis a religião da hipocrisia. A ideia do amor pode até mu- indivíduo então, porque reconhece o seu direito, não pede favo-
dar esse sistema, mas não modifica seus defeitos básicos, que o res nem graças, mas espera com segurança o que merece, con-
fazem torcer e adaptar tudo a si mesmo. Tal sistema infeliz- forme a Lei, sabendo que, num regime de ordem, não se pode
mente é o resultado da psicologia instintiva do homem comum, apropriar-se de um direito, senão depois de ter cumprido o pró-
ainda que tenha de boa fé, sendo produto de um subconsciente prio dever. Tudo isto é de seu conhecimento, sem mistérios; 4)
coberto ingenuamente de hipocrisia pelo exterior. As nobres Não tem mais sentido em tal sistema, tornando-se absurdo e
aspirações podem ser diversas, mas esta é a realidade. A natu- loucura contraproducente, procurar escapatórias para fugir ao
reza humana no fundo é ainda de tipo AS. comando do patrão. Desaparece assim qualquer imposição, pois
Com a passagem por evolução a uma forma mental mais cada um sente a obrigação dentro de si como autodeterminação,
evoluída, tende-se a conceber Deus de um modo diferente, ven- fruto de uma exigência natural para cumprir seu próprio dever,
do-O de maneira semelhante ao novo conceito que fazem os ci- correspondente à utilidade do indivíduo, sem qualquer necessi-
dadãos de seus governantes (democracia), a esposa de seu ma- dade de constrangimento. Portanto nenhuma elasticidade e in-
rido (matrimônio como colaboração entre iguais), os filhos de certeza de normas que permita enganos, sendo tanto o prêmio
seus pais (compreensão recíproca), os alunos de seus mestres, como a pena calculáveis com antecedência. Deve assim, forço-
os dependentes de seus superiores (relação de direitos e deveres samente, desaparecer a religião da hipocrisia. É verdade que o
recíprocos) etc. Eis que a posição do indivíduo, tanto do lado homem atual não atingiu ainda este ponto, mas ele já está-se di-
do comando como do lado da obediência, faz-se completamente rigindo para este novo modo de conceber a vida. O homem,
diversa, não sendo mais de imposição e obrigação, mas sim de apesar de estar gravitando ainda em direção ao AS, é arrastado
consciência e responsabilidade. Então, uma vez suprimida a po- em direção ao S pela evolução, que é um impulso irrefreável.
sição de dominador, o problema é colocado diversamente por No futuro, Deus não será mais concebido antropomorfica-
quem se submete, pois lhe falta a causa provocadora da revolta. mente como hoje, mas sim cientificamente, como um organis-
O chefe permanece, mas como função diretiva, necessária para mo conceitual de princípios e leis sempre em ação – positivos
os outros, e não como meio de puro domínio, imposto aos ser- e universais como os já descobertos pela ciência – que execu-
vos. Eis que, também neste caso, forma-se uma hierarquia, mas tam uma vontade sempre presente em todos os campos. O con-
ela se avizinha do tipo S, tornando-se livre e convicta, e não ceito de Deus-Lei é muito mais avançado do que o atual mode-
mais, como no passado, escravagista e inconsciente, de tipo AS. lo antropomórfico, oferecendo a vantagem de não admitir
Neste novo estilo de vida, as relações sociais são estabeleci- acomodações e hipocrisias, porque, perante uma lei íntima em
das por direitos e deveres exatos, sem lutas, sem vencedores, tudo o que existe, presente em toda a parte e sempre funcio-
sem vencidos e sem opressões escravagistas. Cada um se coor- nando, é absurdo excogitar fingimentos para se evadir, como
dena espontaneamente com o outro elemento, consciente da po- normalmente pode ser feito com as leis terrenas. A tendência
sição que lhe corresponde, colocando-se no seu respectivo lu- atual do indivíduo é acreditar-se livre das leis e da sua disci-
gar, porquanto sabe que colocar-se fora da ordem é antiutilitá- plina, porque a mitologia do cristianismo, que fixava as nor-
rio e contraproducente para si mesmo. Ele sabe que a melhor mas da conduta humana, está perdendo força. Ora, um dia o
posição para si, assim como para todos, está no cumprimento homem vai se defrontar com as mais exatas exigências e os
do próprio dever, porque esta é a única legítima e, portanto, se- mais graves deveres morais, quando, como um ser livre, mas
gura para ele se tornar senhor dos direitos que lhe dizem respei- responsável, estiver sozinho com a sua consciência perante a
to. Alcançada essa forma mental, as relações entre o homem e Lei. Então, através da sua dura experiência, ele aprenderá que
Deus não são mais concebidas como dois egoísmos rivais, mas não se brinca com a lei de Deus e que paga-se caro as atuais
sim como duas posições complementares no mesmo organismo, alegres evasões, mesmo encobrindo-as espertamente.
pelo qual elas são mantidas unidas em colaboração no mesmo Trata-se de uma lei universal, mesmo se cada religião viu
interesse, para atingir as mesmas finalidades. nela aspectos e aproximações diversas e se, no relativo do espa-
Eis então que a concepção das relações entre o homem e ço e do tempo, ela se mostra em seus momentos diferentes. Por-
Deus tendem a uma forma diversa da precedente. Muda assim a tanto nada mais de favores, graças e milagres entendidos como
atitude psicológica que se tem perante Deus: 1) Não se teme violação daquela lei, nem atos arbitrários, mas sim um regime
mais Deus como uma autoridade egocêntrica, que se impõe de ordem, no qual a própria vontade se integra à de Deus, fi-
com promessas e ameaças, sobrepostas aos nossos desejos, para cando regulada por Ele. Então o homem se transforma como
dobrá-los à Sua vontade. Pelo contrário, sente-se Deus vivo em mente e ação. De rebelde à procura de evasões, forçado à obe-
nós, porquanto somos parte do seu ser e seus verdadeiros filhos, diência pelo medo de um castigo ou pelo desejo de um prêmio,
que, portanto, em vez de temê-Lo, O amam. Então todo anta- ele se torna um consciente operário de Deus, aderindo esponta-
gonismo se torna absurdo, como aconteceria se os órgãos do neamente à Sua vontade, porque se sente pensamento do seu
corpo se rebelassem contra o cérebro que os dirige, condição pensamento e célula do seu corpo. Tudo está estabelecido na
possível apenas num estado de caos, e não em um organismo, Lei, e todos naturalmente colaboram para a sua atuação. Então
como é a criação de Deus. A desordem somente pode existir o indivíduo se encontra perante Deus numa posição diversa. Is-
para os seres que, estando num estado de revolta, ainda gravi- to lhe confere direitos claros, que ele pode chamar a si, não por
tam em direção ao AS; 2) Não se vive mais no arbítrio do be- espírito de revolta ou de orgulho, mas sim porque, estando
neplácito de um Deus que pode tudo, até mesmo fazer qualquer consciente da lei que os estabelece, sabe o que espera a cada
desordem arbitrariamente. Pelo contrário, tudo é dirigido por um, quando se cumpre os próprios deveres. Trata-se da mesma
uma lei que é o próprio Deus, o Seu pensamento e a Sua vonta- lei que autoriza e satisfaz os seus direitos. Esta é a técnica de
de, lei estabelecida por Ele, feita de normas conhecidas, às um sistema mais avançado do que o atual, tendo por base a or-
quais Ele é o primeiro a ser fiel, sujeitando-se somente àquilo dem e sendo mais evoluído em direção ao S. Assim o homem
que Ele mesmo fixou, condição indispensável para que cada ser tem elevada sua dignidade, porque é conduzido a um estado de
tenha, de modo previsível, a garantia dos efeitos de cada ato consciência mais profunda, sendo precisamente por isso obri-
seu, vivendo de clareza e sinceridade, e não de nebulosidade e gado a uma mais exata observação da Lei. Viver num regime
de mistérios; 3) Não se faz mais necessário humilhar-se, como de clareza, onde se admite tais direitos, significa que não se po-
é necessário para quem deve vencer o próprio orgulho, pois tal de esconder mais nada e que não há fingimento capaz de permi-
74 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
tir o ser fugir ao cumprimento dos próprios deveres. Não mais não restava ao patrão, com o chicote na mão, senão ser detesta-
palavras, apenas fatos; não mais tentativas para propiciar-se o do e mal servido. Estes são os resultados do velho regime, do
favor por intercessão (a recomendação do amigo), apenas o real qual hoje o mundo procura libertar-se.
valor do mérito e das obras realizadas. Restam o amor e a mise- Tudo isso cai com o novo sistema de clareza, no qual são de-
ricórdia de Deus, não para violar a justiça como se desejaria, finidos direitos e deveres, que a Lei reconhece e fixa para todos.
mas sim para suavizar e adiar oportunamente os pagamentos. A cada uma das duas partes a mesma liberdade e responsabili-
A este novo modo de conceber as relações com Deus se de- dade, em posições diversas como tipo de trabalho, mas iguais
verá chegar como consequência da nova psicologia, que já está- em valor como função social, ambas indispensáveis para o bom
se realizando nas relações sociais. A hierarquia, na medida em funcionamento do organismo coletivo. O mundo está ainda
que constitui princípio de coordenação orgânica, permanece no cheio das escórias produzidas pelos métodos do passado, mas
campo eclesiástico, civil, político, familiar, econômico etc., vai-se libertando delas. O mal se desenvolveu subterraneamente,
mas sendo dirigida por um espírito diverso. Nunca antes a auto- escondido dentro do sistema, que, por isso, corrompeu-se interi-
ridade do velho tipo foi tão discutida e a paciência dos subordi- ormente. Assim qualquer clareza ainda soa a escândalo, quando
nados foi tão diminuída, tendo a inteligência se aguçado e se denunciam certas verdades, agora já evidentes e de conhecimen-
adestrado ao ponto de se tornar capaz de descobrir tudo o que to de todos. Estas são as verdades que não se deviam dizer.
se encontra atrás da cena da arte de dominar, de modo que o ve- Quem se aninhou no velho sistema quer conservá-lo. Conforta,
lho sistema já não vigora mais. Os demasiados abusos de que porém, o fato de que, no momento histórico atual, constata-se
ele se carregou no passado o fazem desmoronar. As grandes pa- uma tendência para uma profunda transformação, sendo fatal a
lavras altissonantes soam agora a falsa retórica. Exige-se serie- superação do passado, porquanto ninguém pode impedir que o
dade no comportamento. Assim, ambas as partes se tornam impulso da evolução triunfe e a luz vença as trevas.
mais razoáveis. Convém aos dois lados abandonar a luta e pôr-
se de acordo. Mas até hoje a inteligência humana ainda não ha- 2) A Condenação ao Índex
via se desenvolvido ao ponto de compreender uma coisa tão
simples. Eis que nasce a ideia do diálogo. É mais útil de um la- Quisemos anteriormente observar a fundo o problema da au-
do abandonar o chicote e do outro a rebelião, para fazer o con- toridade. Podemos agora compreender melhor o significado do
trário, estudando inteligentemente o que mais convém a todos. caso de que estamos tratando. Falando dele anteriormente, colo-
Começa-se aqui a compreender que o atrito da luta não traz ne- camos os dois termos um em frente ao outro: de um lado a Igre-
nhum proveito, mas somente prejuízo. Assim se estuda a técni- ja, como organização e poder, provida de autoridade; do outro, o
ca da convivência pacífica, buscando-se o entendimento. indivíduo isolado, obrigado à obediência. Podemos, assim, ver
Então o conceito de trabalho se altera. Antigamente ele era implantado, segundo os princípios expostos, o problema da au-
escravidão para vantagem exclusiva do patrão; agora ele é um toridade neste caso particular. Referimo-nos à condenação ao
meio de produção para vantagem tanto de quem dirige o traba- Índex. Eis que nasce o choque entre os dois termos. A autorida-
lho, como de quem o executa. Assim o cristianismo concedeu a de se sente lesada e condena. É justo. Trata-se de um ato de legí-
liberdade de consciência ao fiel que reclamava, mas atribuiu- tima defesa das suas próprias posições terrenas, baseadas sobre
lhe também o peso da responsabilidade de dirigir a si mesmo princípios teóricos. À autoridade pareceu que aqueles escritos a
com a sua própria consciência. De agora em diante, o crente ameaçavam. Tal situação constitui fato positivo e não admite
não poderá mais responsabilizar a autoridade e ninguém o aju- discussões. Ela se baseia sobre premissas espirituais, que, por-
dará a carregar este fardo. Para a autoridade, o comando era fá- tanto, não devem ser discutidas, para não abalar a solidez das
cil, quando todos lhe obedeciam. Hoje, porém, quando cada um posições que delas dependem. Obrigação, assim, de fé cega e de
se sente no direito de pedir-lhe que preste contas da sua condu- aceitação incondicional daqueles princípios, mesmo para quem
ta, não é mais. Antigamente, o mal se curava com o método de tem necessidade de conhecimento para evoluir e não pode crista-
não se deixar que ele fosse visto. Bastava escondê-lo. Mas, ho- lizar-se na imobilidade. Eis que, neste caso, o indivíduo se en-
je, isto não é assim tão fácil. Antigamente, as massas se conten- contra impedido no seu progresso espiritual por aquela autorida-
tavam com as aparências. Hoje, elas se tornam críticas e muito de, cuja função deveria ser exatamente encorajá-lo nessa dire-
menos crentes. Haverá menos fé, mas tudo isso é a morte da hi- ção. Porém, dados os princípios acima expostos, com o tipo
pocrisia. Para afastar a mentira não há outro meio senão o de- normal humano dominante, isto é natural. Podemos agora esta-
saparecimento do ingênuo, que acredita nela. belecer a posição entre os dois termos e compreender o seu
Cabe perguntarmos quais foram as causas que fizeram nas- comportamento, para fazer a análise do caso sob exame.
cer essa triste planta da hipocrisia. Ela é uma lógica consequên- A posição de um desses dois termos é estabelecida pela auto-
cia do método vigente no passado, feito de absolutismo e de ridade, que, devido às razões já mencionadas, sente-se no direito
egoístico espírito de domínio. Assim se explica o fato de que de proibir qualquer pesquisa que possa colocar em discussão
antigamente se exaltava a obediência como grande virtude, so- aqueles princípios. Mas é exatamente o trabalho dessa pesquisa
mente porque ela servia a quem queria dominar. Infelizmente, que conduz ao desenvolvimento espiritual do escritor condena-
para o primitivo, a autoridade apenas serve se é entendida em do. Ora, a autoridade, lançando a culpa sobre um sincero inves-
sentido egoísta. Quais os meios de defesa que ficavam então tigador da verdade e proibindo assim a pesquisa, paralisa tal de-
nas mãos dos dependentes? Eles tinham como escolha: 1) A senvolvimento, que representa o objetivo da instituição, defen-
força, rebelando-se. Mas isto significa guerra, e o mais débil dido por ela, o qual consiste na realização de suas finalidades
não pode fazê-la contra o mais forte, que possui a autoridade; espirituais. Com tal atitude, ela comete o pecado de sufocar a
2) A aceitação, submetendo-se. Mas, dado o sistema, isto signi- espiritualidade, contradizendo-se e renegando o seu fim maior.
ficava renunciar à própria vida em favor do patrão; 3) O acordo, Observemos agora o termo oposto. Perante uma autoridade
negociando. Mas tal posição, dado o tipo de impulsos opostos que procede assim, terá o indivíduo o dever de obedecer? Surge
em ação, era impossível, pois cada um olhava somente o seu in- subitamente o problema de consciência. Então ele apela inti-
teresse, não estando disposto a reconhecer os direitos do outro; mamente para Deus. Mas vimos que tal apelo não é aceito pela
4) A hipocrisia, resistindo. Sendo esta a única saída viável ao autoridade, pois isto significaria admitir a decisão de um tribu-
servo, de joelhos, isto significava fugir aos seus deveres, fingir, nal superior, que, sem servir-se de outros intermediários, pode-
bajular, talvez roubar e trair, para enfim rebelar-se, tão logo, no ria estabelecer sentenças inclusive contra as normas instituídas.
lugar da força do comando, encontrasse fraqueza. Desse modo Diante do perigo e da ameaça, nasce a legítima defesa. A auto-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 75
ridade não apenas proíbe a pesquisa para o desenvolvimento religião, constituindo necessariamente um modelo, foi feita pa-
espiritual, mas também condena os contatos diretos e livres da ra satisfazer a maioria, não se adaptando à exceção. Esta, assim,
alma com Deus. Então, em sã consciência, deve-se ainda obe- é destinada a andar sozinha com Deus.
decer? O indivíduo sente-se paralisado no próprio campo espi- Ora, tudo isto não suprime o caso do qual estamos tratando,
ritual daquela autoridade, cuja atitude, segundo os princípios ainda que o relegue para fora das regras normais. Mas, se ele
que lhe são específicos, deveria ser, ao contrário, encorajá-lo a permanece, devemos examiná-lo, para compreendê-lo. Não se
trabalhar naquele sentido. Pode ele nestas condições, colocado deve descurar da questão, apenas por não se encaixar na norma-
contra a sua vontade, renunciar à sua vida espiritual tão criado- lidade, já que ela representa uma tentativa de emersão evolutiva
ra, sacrificando-se neste ponto fundamental do seu ser, para do nível animal, onde a normalidade repousa feliz e tem o cui-
prestar obediência a uma autoridade que, contrariando o seu dado de não fazer tais tentativas para sair dele. Vejamos, pois, o
próprio dever, procura deter os crentes no caminho da espiritua- que sucede no referido caso. Se era legítima a defesa que a auto-
lidade, a fim de não ser incomodada, ao invés de encorajá-los? ridade fazia dos seus interesses contingentes, também o era a do
Se o problema for colocado em outras bases, o que vale de fato indivíduo, quanto às suas pretensões espirituais. De um lado,
é o princípio de legítima propriedade, segundo o qual cada um havia uma autoridade que não queria ser incomodada; do outro,
é senhor na sua própria casa. Com isso, a Igreja tem pleno di- alguém que desejava trabalhar com a mente, para resolver os
reito de expulsar da sua casa quem entra ali sem se submeter a seus problemas do espírito, base da sua vida, mesmo que isso
ela, reconhecendo-a como dona. Assim tudo é justo. Mas, en- pouco importasse àquela. Que tal fosse da parte dela a ordem de
tão, adeus espiritualidade! Não se tem mais direito de falar de- ideias determinantes ficou provado pelo fato de, com a condena-
la, que permanece apenas como uma forma de hipocrisia. ção ao Índex, ter sido sumária a sua liquidação, sem nenhuma
No desenrolar concatenado dos referidos momentos do pro- explicação no ato, o qual não demonstrava qualquer interesse
blema, chegamos ao ponto onde a autoridade fez o que mais lhe paternal pela sorte espiritual do condenado (o documentário des-
convinha, levando em conta apenas os seus interesses, e não os sa condenação, publicado no “Osservatore Romano”, Roma, 15
do seu subordinado. Este se vê então forçado a escolher entre de novembro de 1939, é reproduzido na íntegra no 1o volume da
ela e a espiritualidade, entre o dever formal e a consciência, en- II Obra: Comentários). Vê-se que o objetivo era afastar um per-
tre o tribunal dos homens e o de Deus. Uma vez tendo o indiví- turbador, e não iluminar um espírito ansioso de verdades. A me-
duo tomado, em última instância, a sua posição, que é de resis- dida era friamente administrativa e burocrática. À ovelha extra-
tência, a autoridade se fecha atrás da barreira das suas proibi- viada só se transmitia a condenação. Mas estava-se no ano de
ções, com as quais detêm a entrada do invasor no seu terreno. 1939. Hoje a mesma autoridade compreendeu como tais méto-
Isto prova que o objetivo é apenas a sua defesa. Uma vez que o dos, no seu próprio interesse, são contraproducentes.
alcançou, ela não tem mais nada a fazer e não faz coisa alguma. É assim que, agora, tudo está mudando. O período dos
Quem tem muito a realizar, preso como está pela ânsia da as- anátemas parece ter acabado com o Concílio Vaticano II. A
censão, é o nosso personagem. O seu comportamento está nos Congregação do Santo Ofício mudou de nome, tornando-se
antípodas do precedente. A Igreja apenas proíbe, sendo o seu uma entidade com muitas funções e setores, um dos quais des-
único movimento no sentido de defesa da sua imobilidade. A tinado à censura dos livros, que funciona na prática o menos
sua atitude é passiva. Ela fica na defensiva, negando uma afir- possível, existindo apenas em teoria. Atualmente, nem todos
mação oposta. Ele, ao contrário, é dinâmico, ativo e afirmativo. concordam com a utilidade de tais condenações, tendendo-se
Se a autoridade tivesse seguido este caminho, teria respondido mesmo para uma reforma geral da censura religiosa. De fato,
com uma verdade mais comprovadora e convincente, de manei- de algum tempo para cá, o Índex condena cada vez menos.
ra a poder impô-la ao erro, depois de tê-lo demonstrado. No en- Depois da edição de 1948, apareceu apenas um folheto su-
tanto a autoridade limitou-se a retirar-se em silêncio às suas po- plementar, em 1964, com 14 nomes. Eis uma função que, em
sições. A iniciativa de escolha, portanto, ficava nas mãos do ou- silêncio, sem ser notada, vai-se apagando3.
tro termo. É a própria atitude tomada por cada uma das partes Hoje, encontrando-se num período de escassez em matéria
que conduz automaticamente a este resultado. Então o nosso de fé, a Igreja, para não perder os fiéis, mudou de tática e se
personagem, querendo avançar, porque encontrava pronta a im- tornou generosa. Ao método dos anátemas substituiu o “diálo-
pulsioná-lo para frente a corrente da evolução, era obediente à go”, que hoje parece o melhor meio de defesa, dada a atual cri-
Lei, mas ficara abandonado pela autoridade, espiritualmente se de fé, de que falaremos mais adiante. A mudança é imposta
ausente de seu caso. Assim ele se precipitava na estrada da as- pela nova forma mental dominante, crítica e analítica, sensível
censão espiritual, por sua conta, mesmo sendo condenado pela ao raciocínio, que convence, e indiferente aos anátemas, que
Igreja. Veremos agora as consequências de tal atitude. não assustam mais ninguém. Então a Igreja, que, inspirada por
Neste ponto pode nascer uma dúvida no sentido de que todo Deus, deveria antecipar a evolução, acaba chegando, penosa-
este raciocínio se baseia num mal-entendido. Ao homem nor- mente, em último lugar, rebocada pelo progresso do mundo. O
mal, de tipo comum, que constitui a maioria, os problemas espi- que evoluiu então foi a vida, toda ela em direção a Deus, le-
rituais e a pesquisa da verdade, assim como a necessidade de se vando nessa trajetória tudo quanto ela contém, incluindo as
avizinhar de Deus (para Lhe sentir a presença, e não para pedir nossas instituições, que a seguem.
graças) são coisas que de fato não interessam. A religião, em Ora, mudar de rota, dizendo que é para se atualizar, pode
geral, é outra coisa, sendo usada sobretudo para satisfazer o de- parecer fácil, no entanto, mesmo sendo oportuno e necessário,
sejo egoístico da própria salvação pessoal. A espiritualidade é é uma tarefa difícil. Aqui se trata de uma instituição na qual
entendida no sentido utilitário. O problema mais evidente para se incorporaram uma serie de ideias, que eram outrora eficien-
esse tipo biológico está ligado ao estômago e ao sexo. Satisfei- tes, por serem úteis à vida, cujo desenvolvimento pertencia a
tos estes seus instintos, ele só deseja gozar a vida no ócio e en- outras fases, hoje superadas pela evolução. São milênios de
gordar. Ora, a Igreja, para poder cumprir a sua função, deve ser história, com um passado imenso e diverso, o qual, mesmo
adequada a tal tipo, que constitui a massa. E isto acontece de sendo hoje incômodo, em virtude do dogmatismo, não se pode
fato, porque aquele é o seu rebanho. Não se trata de algo difícil, mais eliminar. O problema não é só mudar conceitos que, ho-
pois o tipo biológico dominante em ambos os lados é o mesmo, je, não correspondem mais ao novo grau de evolução e à res-
não se podendo pretender que fosse de outra maneira. É natural, pectiva forma mental, mas também trocar hábitos seculares, já
portanto, que, quando a Igreja se encontre perante tipos fora de
série, surja um conflito derivado da incompreensão, porque a 3
O Índex proibitorium foi extinto em 1983. (N. E.)
76 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
assimilados pelos fiéis e fixados na raça. Tal mudança não é viveu no período da condenação, fato este que permanece, não
uma tarefa fácil. Até ontem, a posição do fiel foi de imposição podendo ser suprimido pela mudança atual. Dois volumes 4 de
e cega aceitação das verdades religiosas, que lhe eram forne- sua Obra, primeira explosão de uma alma em direção a Deus,
cidas daquela maneira, sem admitir discussão. Dominavam foram condenados ao Índex. Segundo a injunção do Santo Ofí-
métodos inquisitoriais, baseados na coação psicológica. Os cio, o fiel cristão deveria ter cessado a publicação e sobretudo
crentes eram proibidos de debater os seus problemas de fé, o desenvolvimento da Obra em novos escritos. Desobedecer
que eram deixados exclusivamente aos competentes executo- era pecado, mas obedecer significaria paralisar a atividade es-
res deste “trabalho”, constituídos por teólogos que faziam e piritual de uma alma, congelando o seu desenvolvimento, que
desfaziam tudo entre eles, expulsando os não especializados. se realizava através da pesquisa necessária para chegar à solu-
Ora, com a declaração de infalibilidade, não havia outra coisa ção, considerada urgente por ele, de problemas cujas explica-
a fazer senão aceitar. Quem queria pensar por si próprio, du- ções a Igreja não lhe oferecia. A fim de não pecar, devia cortar
vidando e indagando para saber, pagava caro a sua atitude. sua própria cabeça, para não pensar, aceitando com a inércia
Exceto por poucas mentes eleitas, não interessavam de fato à mental o suicídio do espírito, imposto em nome de Deus, para
grande massa, preocupada sobretudo com os seus problemas que os adormecidos não fossem perturbados por quem tinha a
materiais, essas outras questões, custando-lhe pouco renunciar febre de conhecer e progredir.
a realização de um esforço mental que ela tinha em pouca Hoje a posição é diferente e a autoridade segue outros méto-
conta. A grande maioria se habituou a obedecer voluntaria- dos. O pecado do indivíduo foi apenas ter agido daquela forma
mente, renunciando a pensar, o que, no fundo, correspondia à num dado período de tempo, porquanto o mesmo comportamen-
sua comodidade. Afinal, este era o caminho de menor resis- to, se tivesse sido realizado em outra época, não teria sido con-
tência para se conseguir viver em paz. Ela aprendeu então, siderado pecado. Portanto a salvação ou a perdição são relativas
educada pela Igreja, a não fazer mais perguntas, limitando-se ao tempo, dependendo das mudanças das vicissitudes humanas.
a observar preceitos e práticas exteriores, os quais, exigindo O erro foi ele ter-se antecipado aos tempos, porque hoje as teo-
pouco esforço, bastavam para alcançar a própria salvação, seu rias condenadas encontraram apoio em vários cientistas, a
objetivo final, que era atingido assim a baixo preço. Isto era exemplo do jesuíta e paleontólogo Teilhard de Chardin. Entre-
conveniente e, portanto, bem aceito. Tal quietismo servia tanto o mesmo tribunal que condenava está abstendo-se de fazê-
também para evitar sanções eclesiásticas, já suficientes para lo. Teremos de nos perguntar, então, como se resolve o caso de
tolher qualquer veleidade indagatória ao fiel. Este, tendo sido condenações que até ontem mandavam para o inferno os atingi-
bem educado a resolver tudo apenas acreditando, obedecia, dos. Um belo dia a Igreja se atualiza e tudo se cancela. Mas po-
sem levantar problemas espirituais. Dessa forma se obtinha a derá esse cancelamento ter efeito retroativo perante um inferno
vantagem de não ficar exposto a operações perigosas, ao eterno? Se o castigo é eterno, aqueles que nele se fizeram cair
mesmo tempo em que se satisfazia a própria preguiça mental. não poderiam mais sair de lá, ainda que o pecado deles, hoje,
O resultado de tudo isso foi a formação do hábito, agora já não fosse mais considerado como tal. Para estas almas restariam,
inveterado, do desinteresse pelos problemas religiosos, que fi- portanto, duas opções: ou sofrer para sempre, o que não é justo
caram reduzidos a ritos e práticas exteriores, porquanto este perante os que hoje podem cometer o mesmo pecado sem puni-
caminho, não causando aborrecimentos nem fadigas mentais, é ção, ou sair do inferno, que então não seria mais eterno. É certo
o mais fácil. Fica-se em paz com a autoridade e salva-se a alma. que a autoridade se salvou, adaptando-se aos novos tempos,
Conseguiu-se assim esquecer Deus, religião e espiritualidade, mas, em relação a salvar os réus do passado, nada se fala. Será
caindo-se num estado de feliz e inerte aquiescência. Sucede justo perante Deus que eles sofram dano tão imerecido, quando
que, neste momento, quer-se inaugurar um novo estilo do diá- hoje quem pratica o mesmo pecado não é mais culpado? Con-
logo, propondo-se uma livre discussão sobre temas vinculados forme a justiça, quem golpeia por uma culpa que não existe deve
à ideia de proibição e perigo de dano. Como anular, porém, de indenizar os danos. Mas a autoridade não tem esses deveres,
um golpe uma conexão tão cristalizada de ideias? Como fazer porque, sendo a mais forte, tem o direito de fazer o que lhe con-
renascer hoje um interesse que se procurou apagar forçosamen- vém. Tem-se então uma multidão de condenados da Idade Mé-
te? Como reanimar uma fé adormecida e educar no sentido dia que foram lançados no inferno eterno e que, por isso, devem
oposto ao de uma religião formal, feita de ritos, reconstruindo permanecer ali para sempre, muito embora sejam julgados ino-
no lugar dela outra, feita de convicção e paixão? Não basta que centes hoje, pois seus atos não são mais considerados como pe-
uma nova direção convenha à autoridade, para que ela resulte cados. Eis de que contradições nasce a descrença.
aplicável e eficaz. Além disso, quando esta indiferença foi pro- No caso de nosso personagem, resta o fato de que dificil-
vocada por aquela mesma autoridade, como pode esta pretender mente seria condenado hoje quem o foi em 1939. Qual é, por-
evadir-se da lei universal segundo a qual ninguém pode fugir às tanto, a sua justa posição? Certamente não é mais a de outrora.
consequências das próprias ações? Se a autoridade pensa ape- Antigamente não se gozava da moderna liberdade. A proibição
nas na sua sobrevivência, sem se preocupar com o fiel, é natural vinha da autoridade sem qualquer explicação. Assim, num in-
que este não se importe com os interesses daquela. Se uma e divíduo consciente e por sua natureza amante da ordem, podia
outro viveram separados nas suas finalidades e se foi cultivado surgir a dúvida de se encontrar em culpa e, portanto, a convic-
nos crentes sobretudo um estado de sujeição, é natural que am- ção de ter não apenas de se arrepender por haver desejado pen-
bos tenham-se tornado, intimamente, dois termos vinculados sar e compreender mas também de se empenhar em não cair
apenas por uma relação de antagonismo. E que tipo de colóquio mais em tal erro. Ora, não obstante isso, o autor não obedeceu.
se pode realizar nestas condições? A voz da consciência foi mais forte do que a da autoridade.
Fizemos esta exposição, para mostrar sobre que fundo e em Chegando a este ponto, podemos perguntar, então, se ele fez
relação a que fenômenos maiores se desenvolve o caso por nós bem ou mal. Só agora, após a Obra ter terminado, pode-se fazer
observado aqui. A recente abertura do diálogo chegou demasi- um juízo que, na época da condenação, não era possível.
adamente tarde para trazer qualquer deslocamento. Um fato Em primeiro lugar, não se pode negar que ser catalogado no
ocorrido no passado permanece, não sendo possível, nem Índex constituía no passado um grande meio de propaganda edi-
mesmo para Deus, fazer com que ele não tenha acontecido. torial, potente e gratuito. A ele deve a Obra o seu impulso edito-
Trata-se de algo que não pode ser anulado, reduzindo-se um rial no estrangeiro, onde se pôde desenvolver definitivamente.
estado de existência a outro de não-existência, mas somente
corrigido e, assim, neutralizado com impulsos opostos. O autor 4
Ascese Mística e A Grande Síntese.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 77
Deste modo, o mundo se servia do Índex para os seus fins utili- lóquio não pode deslocar mais nada daquilo que foi dito e fei-
tários, resolvendo aqueles casos em favor dos seus objetivos. to, estando agora tudo já encerrado dentro daquela vida. Um
Mas a condenação produziu ainda outro efeito salutar. Ela diálogo se faz entre iguais, que, por isso, podem avizinhar-se, e
obrigou o autor a aprofundar o seu pensamento e a intensificar os não entre dois termos de dimensões completamente diversas,
seus controles, para assegurar-se de estar com a verdade, poten- colocados em posições tão distantes, como é neste caso aquela
cializando a sua espiritualidade, a fim de superar os obstáculos e entre um pobre indivíduo e uma autoridade situada no alto de
resistir aos ataques. Enfim, a condenação funcionou como resis- todo seu poder. Esta se ocupa com a massa, que tem grande
tência a vencer, para avizinhar-se mais ainda de Cristo, também peso, enquanto o indivíduo por si só nada representa. Assim,
pelas vias da razão e da ciência, segundo os novos tempos. cada um ficou com o que é seu: a autoridade, com a sua potên-
Hoje, depois de terminado o trabalho, pode-se ver não so- cia; e o indivíduo, com a sua fé. Já faz muitos séculos que
mente o vazio espiritual em que teria ficado nosso personagem, aquela autoridade obrigou seus subordinados à obediência pas-
se tivesse obedecido à autoridade, deixando-se paralisar na sua siva, educando-os neste sentido, em vez de no da colaboração,
atividade intelectual, mas também a vantagem que lhe adveio como já dissemos. Para que eles possam ser educados em dire-
por haver desobedecido. Isto lhe prova que não procedeu mal. ção oposta, outros tantos séculos correrão. Hoje, no entanto,
Agora ele está com um grande trabalho realizado, constituído não existe a confiança necessária para um diálogo, nem se po-
por uma Obra que, de outra maneira, não teria sido produzida e de reconquistá-la de um dia para o outro. Vimos qual a posição
que, tanto para ele como para quem dela têm necessidade, pro- tradicional do indivíduo perante a autoridade. Que mais se po-
põe uma religião sólida e positiva, capaz de satisfazer razão e de obter, quando se emerge de tal passado?
sentimento, sendo demonstrável até mesmo para os ateus, de Agora a Obra já está escrita, impressa e difundida. Qual-
acordo com a realidade dos fatos. Foi assim enunciada, desen- quer intervenção é inútil. Ela surgiu num momento histórico
volvida e logicamente provada uma teoria sobre a gênese e o de grandes maturações, em plena crise do cristianismo, cuja
funcionamento orgânico do nosso universo físico-dinâmico- revalorização se fazia então necessária perante a ciência e o
psíquico, partindo da primeira criação de Deus, da qual teve pensamento moderno. A nova linguagem da Obra perturbou
origem a existência das criaturas, e percorrendo o fenômeno de os incomodados. Mas a corrente do transformismo evolutivo
sua queda e redenção, até regressar a Deus, depois de ter con- impõe que se corra, sendo isto difícil, quando se está sobre-
cluído o ciclo involutivo-evolutivo. No seu caminho foram carregado de superestruturas medievais. O mundo de hoje tem
atravessados os mais diversos campos: científico, filosófico, re- necessidade de se libertar de tais obstáculos. Ele se pôs a pen-
ligioso, teológico, místico, ético, psicológico, biológico, social, sar e quer compreender. A fé em velho estilo atrapalha, por-
histórico, jurídico etc. Sua aplicação é positiva, porque se dirige que se fez dela um instrumento de proibições, como se o ato
à forma mental moderna, de tipo laico-racional, e não fideísti- de querer compreender fosse culpa. Atualmente, o rebanho é
co-tradicional. Tudo é explicado nela de modo claro, dando-se diferente, não se sugestionando mais à força de mistérios. Co-
as razões últimas pelas quais tanta coisa acontece de determi- loca-se de lado, como coisa que não serve, tudo o que respeita
nada maneira. Emprega-se nela uma linguagem translúcida, à fé, à religião e aos mistérios. Hoje o incompreensível não
como exige a gravidade do atual momento histórico em sua ve- atende mais à vida. Esta se encontra perante problemas bem
loz precipitação, o que não permite qualquer perda de tempo ou diferentes, graves e urgentes, que ela deve resolver, estando
atenuações com mentiras e hipocrisias. habituada a solucioná-los por sua conta.
Sucede que, hoje, as questões religiosas são apresentadas O Concílio Vaticano II não abordou senão questões super-
ainda numa linguagem convencional e com a forma mental su- ficiais. É como se ele também estivesse de acordo com o
perada dos séculos adormecidos, tendo por base pontos decla- mundo, que considera melhor não tocar nos problemas de
rados imóveis, que estão simplesmente colocados de lado, fora substância. Assim, a própria Igreja, para evitar o perigo de se
da vida. Somente apresentando o ideal cristão de uma forma di- meter em questões espinhosas, para as quais não possui saída,
versa, como se faz aqui, ele não poderá mais ser ignorado pela concorda com os fiéis, encorajando-os a se desinteressarem
ciência, pelo positivismo ateu e pela lógica materialista, porque dos problemas de base. Mas que pode ela fazer, se, perante as
ele se revela então como fenômeno de evolução, no qual se rea- perguntas mais simples, não sabe dizer nada de positivo, ten-
liza a superior biologia do espírito. Deste modo, Cristo fica vi- do que receber ou esperar resposta da ciência materialista, até
vo no mundo, não sendo mais possível ignorá-Lo. A religião ontem condenada por ela? O mundo vê que, ao contrário, a ci-
regressa ao seio da vida como fenômeno biológico, do qual não ência caminha e vai resolvendo os seus mistérios. Quem hoje
se pode prescindir. Com isso, a atual tendência de se liquidá-la, fala de problemas de fé com o mesmo interesse com que se re-
simplesmente ignorando-a, não é mais racionalmente justificá- fere a problemas de ciência?
vel. Veremos mais adiante que, hoje, um dos maiores perigos As pessoas veem esta posição de inferioridade das religiões,
da religião é precisamente a ausência de interesse por ela. Esta a qual é muito difícil hoje a Igreja superar, porque, no passado,
nossa visão positiva da religião, assentada sobre a realidade bi- ela se aventurou e se comprometeu com afirmações definitivas,
ológica, incomodou tanto, que foi condenada. No entanto, este estando agora comprometida em mantê-las, mesmo sabendo
modo de concebê-la pode representar talvez o único meio, não que estas não são mais racionalmente aceitáveis. Todo este ma-
obstante o Índex, de fazê-la sobreviver no futuro. terial a Igreja tem de arrastar consigo, ainda que isto lhe parali-
Trata-se, portanto, de uma atitude construtiva, constituindo se cada movimento. É assim que, para ela, torna-se difícil atua-
uma tentativa de revalorização da religião, feita a favor, e não lizar-se e acompanhar o ritmo do mundo, onde a ciência, hoje,
contra ela. Hoje já sopra uma grande tempestade, não havendo lançou-se vertiginosamente para frente. Ocorre então que a re-
mais lugar para os adormecidos. Tais atitudes não se conde- ligião, em vez se desenvolver e se expandir em novos campos,
nam mais. Abrem-se as portas à compreensão, admitindo-se o está, cada dia mais, sendo invadida pela ciência naqueles seto-
diálogo. Em nosso caso, porém, isto chega muito tarde. A res outrora reservados exclusivamente a ela, sendo continua-
compreensão póstuma não serve mais. Agora, aquele homem mente expulsa deles. Antigamente, a religião era tudo: governo,
já viveu, tendo formado por si próprio uma fé em Cristo, a qual tribunal, direito civil e penal, ética, medicina etc., constituindo
ele demonstrou aos outros e publicou em uma Obra de dez mil poder político, econômico e espiritual. Hoje, ela se retrai sem-
páginas, imprimida também em sua alma, sendo estes os resul- pre mais, perdendo terreno perante o Estado e a ciência, que
tados nos quais se fixaram definitivamente seu passado. As avançam, o primeiro ampliando o seu poder, e a segunda apro-
portas de uma existência quase no seu termo se fecham, e o co- priando-se, com nova competência, dos problemas religiosos e
78 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
dispondo-se a resolvê-los sem a Igreja, considerada incompe- vida. Exigindo que a sigam, a vida caminha por sua conta, não
tente para tanto. O conhecimento se abriu de muitos lados, sub- podendo ser detida por ninguém.
dividindo-se em tantos setores de especialização, que não é É interessante observar o movimento forçado de quem gos-
mais possível reduzi-lo apenas aos limites de uma religião. taria de ficar para trás, imóvel no caminho, mas que, apesar de
Assim, não foram enfrentados pelo Concílio muitos dos tudo, deve caminhar para ascender; de quem, à força de negar,
problemas que a ciência encara corajosamente, para encontrar acaba por afirmar; de quem, resistindo ao progresso, termina
respostas cuja obtenção não se alcança pela divina inspiração, progredindo; de quem chega afinal a fazer aquilo que proibia,
nem pela revelação. E tais respostas são necessárias para se re- acabando por evoluir, enquanto condenava a evolução. É por
solver seriamente também outras dificuldades de nossa vida esta via tortuosa e contraditória que, não obstante a fé e os mis-
quotidiana. O Concílio se limitou a questões mais próximas, de térios, passa-se ao conhecimento. As verdades chamadas abso-
ajustamento e administração para predomínio da Cúria Roma- lutas e imutáveis avançam, como acontece com toda verdade
na, tratando de matrimônio, controle da natalidade, celibato dos relativa, completando-se com as novas descobertas humanas, de
sacerdotes, deicídio dos hebreus, unificação dos cristãos sepa- modo que até mesmo o eterno imóvel, como todas as coisas,
rados, reforma litúrgica, liberdade de consciência etc. Retoques transforma-se por evolução. Em nosso universo relativo, nem
e detalhes, com maior amplitude de visão. Já é muito haver mesmo as verdades absolutas escapam ao transformismo evolu-
compreendido que a fé não se propaga por imposição, mas sim tivo, que tudo arrasta em direção a Deus. Nem pode suceder de
por convicção. Porém a velocidade na qual o mundo avança é outro modo. E à Igreja, como tudo o que existe, não é permitido
bem diferente. A ciência conquista o espaço interplanetário, colocar-se fora das leis da vida.
mudando com suas descobertas a nossa maneira de viver. No- Ora, a evolução não representa um perigo para a religiosi-
vas teorias de justiça social se sobrepõem às religiões, invadin- dade, que sabe transformar-se com a vida e permanece, assu-
do o mundo, para realizar aquilo que estas não souberam fazer. mindo formas cada vez mais perfeitas. A evolução representa
um perigo apenas para a forma particular em que, num dado
3) A Crise da Fé momento, aquela religiosidade se expressa. Tal forma, porém,
deve ser superada com o progresso. Portanto é fatal que ela e
A crise é profunda, sendo não apenas do cristianismo, mas sua respectiva instituição sejam deixadas para trás. Existe esse
de todas as religiões. Ela é devida a uma mudança de forma perigo para a Igreja, como organização terrena, sobretudo por-
mental, envolvendo tudo. Procura-se resolver de modo positivo, que esta sua parte está hoje tomando a dianteira. O perigo é
por outras vias, os problemas que a religião não sabe esclarecer. grave, porque a religiosidade, que não pode morrer, extinguiu-
Os sucessos obtidos nos ensinaram que o desconhecido pode se nas velhas formas de religião, exigindo outras, novas. Quan-
ser sistematicamente explorado e descoberto. Então, o sistema do a religiosidade se afasta de uma religião que, tornando-se
fideístico de crer sem compreender é colocado de lado, sendo formal, ficou reduzida a prática exterior, ela acaba renascendo
considerado inútil para alcançar o conhecimento. Hoje o mundo noutro lugar. As massas já se ajustaram comodamente ao mate-
não tem mais necessidade de tal método, porque é penoso e pe- rialismo religioso, o que na prática vale tanto quanto ser ateu. E
rigoso mover-se nas trevas dos mistérios. A grande crise da a religião se tornou política, ação social, problema financeiro,
Igreja, da qual o Concílio nem sequer se abeirou, está no fato autoridade e poder. A espiritualidade é a coisa de que menos se
de que o tradicional método psicológico fideístico, cujo funcio- fala. O perigo se torna mais sério, porque tudo isso pode dar
namento se deu até ontem, vale cada vez menos hoje e não fun- uma ilusão de força, já que hoje a parte terrena está no apogeu.
cionará mais amanhã. A realidade é que poucos creem seria- A Igreja triunfa como potência político-temporal, afirmando-se
mente, ficando a religião reduzida a práticas mecânicas, destitu- não no poder espiritual sustentado por Cristo, mas no seu polo
ídas de espiritualidade, o que significa falência no próprio ter- oposto, no terreno mundo, condenado por Ele. Não poderá en-
reno, onde sobretudo ela deveria afirmar-se. tão essa vitória constituir um grande perigo, já que, na realida-
Isto não quer dizer que a religiosidade morreu. O risco pa- de, ela representa o estado de maior fraqueza, não do corpo,
ra uma determinada religião é tomar outras formas, quando a mas do principio espiritual animador de todo o organismo?
atual não satisfaz mais, muito embora a religiosidade continue Estas palavras poderão ser entendidas como uma crítica
a se expressar. Isto é fato comum na história. Mas, para uma demolidora. Mas elas são motivadas apenas pelo desejo de
dada forma de religião, significa a sua liquidação. Aquela compreender, em profundidade, o que está sucedendo hoje, em
forma então se modifica, embora a religiosidade, que não é tão grave momento. Acontece que o súdito obediente deve
uma religião codificada, mas sim uma permanente necessida- sempre concordar, pois, caso se mostre dissidente, ainda que
de humana, permaneça, expressando-se de maneiras sempre seja visando a um fim melhor, isto o torna suspeito de orgulho e
novas. As religiões envelhecem, mas não a religiosidade. Infi- insubordinação. Mas esteja tranquilo o leitor. Aqui não fala um
nitos são os caminhos que conduzem a Deus, e cada um é le- reformador, um revolucionário, um rebelde à ordem. Um indi-
vado a seguir aquele mais proporcionado ao seu tipo individu- víduo sozinho não pode fazer nada perante a vastidão de tais
al e ao seu grau de evolução. fenômenos. Ele se inclina diante da autoridade, como exigido
O transformismo evolutivo está hoje em fase de aceleração. por quem a detém, e não pretende transformar nada. Ele sabe
Ficará para trás quem não for capaz de acompanhar a velocida- que, se algo tiver de mudar, então o fará por si próprio, não
de com a qual a vida se pôs a correr. Quem viveu a sua juven- existindo poder humano capaz de impedir isto. Apenas não po-
tude no início deste século recorda os anátemas eclesiásticos de deixar de usar os olhos para observar e a mente para pensar.
contra o evolucionismo darwiniano. O princípio da evolução fi- Feita a sua parte, que é respeitar a autoridade, ele se põe a ob-
cou, e hoje até a Igreja se adapta a ele. Com o jesuíta Teilhard servar, enquanto ela tenta resolver seus problemas, que não são
de Chardin, a evolução se tornou um processo de espiritualiza- de fácil solução. Aqui não se trata de acusação, mas apenas de
ção da vida. A geosfera evolui para a biosfera, que, por sua vez, pensamentos que um solitário troca com a sua própria consci-
ascende até à noosfera. Da civilização da matéria se sobe para a ência. Não se trata de uma atitude de oposição, mas sim de uma
“hominização” da vida. Eis incorporada assim a proibida teoria exposição um pouco triste, que um nostálgico da plena realiza-
evolucionista, que é levada às suas mais altas consequências, ção do Cristo faz consigo próprio, para não morrer sufocado na
com a espiritualização. Então a ciência entra na religião, que cristandade oficial praticante e em geral descrente.
primeiramente a negou, para deter-lhe o avanço, mas depois te- A crise é grave, tanto mais porque está escondida sob as
ve de aceitá-la à força, para não ser superada pelo progresso da aparências enganosas de triunfo. O Concílio não apresentou as
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 79
tão agudas e comuns divergências doutrinárias, como ocorria ção de muita desvantagem, porque a ciência está provando o
no passado. O tempestuoso período das heresias parece ter aca- quanto ele é improdutivo. Assim a religião está ameaçada nos
bado. Em questões de fé, não se eleva mais grito algum no seus fundamentos, pois cai o processo sobre o qual ela se baseia
mundo. Eis finalmente alcançada a concórdia, com a unânime para manter o seu domínio psicológico sobre as consciências.
adesão às verdades da religião, levando ao estado do seu com- Pela amplitude do fenômeno, não limitado a poucos descrentes,
pleto triunfo. Trata-se, verdadeiramente, de um fato novo na facilmente isoláveis com condenações e expulsões pelo grupo,
história, e não podemos deixar de nos alegrar. vê-se que se trata de movimentos de massa, cuja ação a autori-
Na realidade, as coisas não estão assim. O catolicismo, que dade não tem mais força para deter e, portanto, não pode deixar
conseguiu tornar-se independente do judaísmo, superando, ao de suportar. Desta maneira, a defesa da religião como organis-
longo de sua viagem de dois mil anos, muitos obstáculos, co- mo humano se torna cada vez mais difícil.
mo a gnose, os arianos, o islã, os cátaros e a reforma protestan- O trabalho dos séculos passados era diverso. A forma men-
te, encontra-se hoje perante uma crise maior, diferente das ou- tal humana se havia estabilizado conforme certo modelo fun-
tras. Os tempos mudaram. Os perigos que ameaçavam a fé em damental, não saindo dele senão para pequenas variantes, en-
outras épocas já desapareceram. De fato, o atual Concílio de- quanto hoje se tentam caminhos completamente novos. No pas-
correu numa atmosfera de administração normal, sem conflitos sado, o trabalho principal era descobrir o modo de adaptar a fé
de base no terreno espiritual. Isto pode parecer um estado de às próprias comodidades, e não resolver racionalmente os pro-
segurança, finalmente alcançado, com a definitiva eliminação blemas da vida, como se faz hoje, enfrentando-os com cora-
do erro. Mas pode tratar-se da paz do cemitério, no qual está gem. O trabalho não era encontrar qualquer coisa de mais posi-
sepultada a espiritualidade. tivo que a fé, mas sim adaptar as exigências da vida às da fé e,
A controvérsia religiosa pressupõe um interesse de mesma dentro desta, fazer espaço suficiente para que aquelas exigên-
natureza. Ora, ela não existe mais hoje, pois tal interesse mor- cias fossem satisfeitas. O problema, bem mais do que desen-
reu. Não despontam mais heresias. Não porque se tenha for- volver, era assimilar os conceitos da religião. Mas tudo girava
mado um acordo em matéria de fé, mas sim porque chegou-se em torno dela, que era o eixo central da vida. Hoje este eixo se
a um consenso coletivo em sentido oposto, dado pela indife- deslocou e o mundo gira à volta de outros conceitos. Nisto con-
rença por tais problemas. Não há mais heresias, porque já não siste a grande revolução, que é a mais radical e profunda, por-
existe o substrato comum de fé sobre o qual discutir. Hoje não que expressa um deslocamento de fase evolutiva por maturação
há mais divergências teológicas, porque ninguém se interessa biológica. E o fenômeno investe toda a humanidade, porquanto
mais por essas questões. Assim, nem sequer a polêmica religi- é determinado por movimentos da vida que arrastam todos.
osa nasce mais, porquanto não podem surgir dissidências sobre Hoje, muitas estruturas milenares se tornaram obstáculos,
ideias abandonadas e mortas. sendo a tendência atual jogá-las fora, para se olhar de frente a
Diferente das outras, que eram de luta vital, a crise atual é, realidade da vida. Estão se deslocando os pontos de referência
ao contrário, uma pacífica crise de morte. A posição atual das pelos quais se fixavam os conceitos de bem e de mal. A blas-
massas é de se ocuparem de outras coisas e desinteressar-se das fêmia está desaparecendo na Europa latina, onde ela era fre-
verdades religiosas, simplesmente liquidando-as como elucu- quente, porque, com a nova forma mental, não há motivo para
brações inúteis, porque situadas fora da realidade e ligadas a desabafar uma reação contra seres que não interessam mais.
conceitos que, tendo esgotado sua função, não são mais aceitos Antigamente, vivia-se em um estado de quietude mental. As
pela moderna forma mental. É por isso que desapareceu todo o ideias eram poucas; os cérebros, adormecidos; a preguiça,
sentido de agressão, todo o esforço demolidor. Trata-se da au- grande; a credulidade, imensa; as consciências, muito elásticas.
tomática extinção de um velho que se deixa morrer em paz, A ignorância permitia fusões estranhas entre religião e explora-
porque morre naturalmente, não sendo necessário matá-lo. Sin- ção, entre fé e comodismo individual, entre ideal e ócio, entre
toma grave, já que se trata de uma indiferença em larga escala. coisas santas e sujas. Hoje as pessoas já não são tão simples, a
As iniciativas maiores, nas quais palpita e se manifesta a vida, ponto de não poderem ver e aceitar tais contradições. Outrora, a
estão nas ideologias econômico-políticas e na ciência. A reli- religião era reduzida a clericalismo, não sendo possível ser bom
gião se encontra na defensiva, subordinada àqueles movimen- católico, a não ser que se fosse clerical. Acreditar em Deus sig-
tos, em posição secundária. Parece que a vida se retrai de um nificava crer também no poder temporal da Igreja. Hoje, o ab-
terreno agora já gasto por demasiadas contorções e adaptações, surdo de tais posições salta aos olhos de todos, fazendo-se outro
onde se produzem somente frutos falsificados, os quais não são raciocínio. Aos pregadores da verdade colocam-se os proble-
aceitos por ela, porque não alimentam mais. O sintoma é grave, mas em forma positiva. Aos construtores de teologias opõe-se a
uma vez que revela uma atitude da própria vida para com certos moderna exigência de cada um ter de justificar, com o próprio
conceitos abandonados por ela. Como objetos de museu, eles trabalho, a sua posição na sociedade. Então se lhes diz: “Vocês
não têm senão o valor histórico, que pertence ao passado. Não comem, mas o que produzem? Que oferecem à coletividade em
ganhamos nada nos agarrando às verdades eternas, para nos troca do que consomem?”. Ninguém pode aproveitar-se de refe-
podermos instalar comodamente seduzidos, ao lado da grande rências a longínquas origens divinas, para deixar de fazer cla-
estrada evolutiva. É precisamente este fato que as cristaliza, ramente as contas e, assim, viver sem trabalhar, fazendo-se
acabando assim com a sua vitalidade. Então a vida avança, dei- manter à custa do trabalho dos outros.
xando para trás não as verdades eternas, mas sim o ataúde das Para melhor compreender a distância entre a psicologia do
formas humanas no qual elas foram sepultadas. Como dizía- passado e a atual, tomemos um exemplo. Trata-se de um passa-
mos, é o fim de uma religião, e não da religiosidade. Será este do recente. Era caso comum na Itália, até há poucos anos, que
fim, causado pela velhice, o verdadeiro significado da crise atu- um proprietário agrícola vivesse de rendimentos na cidade, sem
al do catolicismo? E a Obra, nascida exatamente neste momen- fazer nada. Feitores e colonos trabalhavam para ele. A religião
to, não poderá, entre outras coisas, representar uma tentativa aprovava plenamente, até porque muitos dos seus representan-
que emerge do inconsciente da vida, para salvar a religiosidade tes viviam igualmente no ócio, à custa do trabalho dos outros.
no instante em que a religião declina? Portanto ninguém era obrigado a se confessar de tal pecado. De
No passado se discutia sobre uma ou outra modalidade de resto, tudo era legítimo, conforme as leis divinas e humanas.
fé, representando a heresia uma delas, mas se permanecia sem- Certamente, a primeira aquisição de uma riqueza nem sempre é
pre no mesmo terreno e com a sua respectiva forma mental. lícita, presumindo assim alguma culpa. Mas tudo isso é imedia-
Hoje, este pensamento está sendo posto em discussão, em posi- tamente legalizado e, dessa forma, integrado na ordem, sendo
80 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
assimilado ao sistema, transformando-se em direito reconheci- com astúcias. Hoje não há mais tempo para tais jogos. No fun-
do, correspondente à justiça. Deste momento em diante, tal le- do, há mais sinceridade. Atualmente, tende-se a encerrar a reli-
gitimidade, sendo cercada do respeito que o nosso mundo tribu- gião no seu campo espiritual, julgando-o, da forma como ele é
ta a quem tem posses, é confirmada e legalizada cada vez mais, apresentado, algo fora da realidade da vida, na qual se permite
podendo continuar indefinidamente de pai para filho. Com tal cada vez menos a sua intromissão. Assim, com métodos radi-
sistema podia-se ter uma série de gerações legitimamente em- cais, são rapidamente resolvidos muitos problemas com os
possadas num regime de ócio e bem-estar, com base na explo- quais se deleitavam os nossos avós. Já não se combate a reli-
ração do trabalho dos outros. A Igreja, por sua vez, aprovando gião, porque ela, na medida em que se mantém no seu terreno
tudo e até se aliando aos exploradores, dava abertamente o espiritual, não interessa mais. No entanto, quando sai daquele
exemplo, tratando de garantir o paraíso para tais indivíduos, campo, para entrar no econômico e político, ela é combatida
considerados honestos por ela. como um inimigo. Toma-se em consideração nela somente
Do outro lado, administradores, operários e colonos traba- aquilo que, significando invasão no setor laico e social, não
lhavam para o seu patrão. Naturalmente, eles também desejavam constitui religião. Esta, assim, vai-se tornando cada vez mais
entrar no paraíso. Mas eram pobres, e roubar – em forma ilegal um fato privado, de caráter pessoal, abrindo caminho para o
– levava para o inferno. Então, para não serem somente eles a princípio de liberdade de consciência, que respeita o indivíduo.
suportar todo o dano, puseram-se à procura de um pouco de jus- Hoje o impulso não se verifica no terreno religioso, mas
tiça, buscando compensar-se da injustiça do patrão com outra a sim no econômico e político. O poder temporal da Igreja não
seu favor. Era necessário, então, encontrar um modo de roubar, foi de modo algum desfeito no episódio de Breccia de Porta
mas permanecendo como bons cristãos. A escapatória era roubar Pia. Esta história é velha, remontando ao período constantinia-
e pôr-se de lado, para depois se confessar e se arrepender, vol- no, quando a Igreja se transformou de comunidade espiritual
tando em seguida a roubar e a colocar-se à parte, continuavam em organização econômico-política. Desde aquele momento,
assim sucessivamente. Os primeiros que enriqueceram foram os começou o seu poder temporal à custa da espiritualidade. O
administradores, que, frequentemente, numa só geração de ab- ideal, para se implantar na Terra, deixou-se cortar as asas e se
senteísmo do patrão, compravam a sua propriedade, substituin- afundou no charco dos interesses e lutas do mundo. Tornada
do-o. Às portas da morte, com uma boa confissão e arrependi- assim construção terrena, a Igreja desceu ao plano das outras
mento, remediava-se tudo. Assim, além da riqueza, conquistava- estruturas humanas e viu-se obrigada a competir com elas no
se a salvação. Operários e colonos, por falta de forças, permane- mesmo nível, passando a ser sua rival no mesmo campo. Era
ceram pobres, tendo de se contentar com as beatitudes longín- inútil alegar direitos divinos, para obter vantagens materiais.
quas do paraíso. Eis porque muitas vezes são pregadas as bem- As autoridades não estavam de modo algum dispostas a se dei-
aventuranças do Sermão da Montanha por aqueles que vão asse- xar dominar em nome de princípios divinos superiores, que fo-
gurando uma boa vida para si aqui mesmo, na Terra. ram utilizados para objetivos imediatos.
Assim, durante esse tempo, todos conviviam. Reuniam-se Foi assim que, desde a época constantiniana, a Igreja, ten-
ao anoitecer, na capela da vila, para pregarem juntos o Evange- tando disciplinar de alguma forma este impulso, teve de fazer
lho, cada um a seu modo e para sua própria vantagem, vivendo ou suportar concordatas, através das quais regulava as suas re-
todos em acordo entre si. A pregação do patrão era feita para lações com o poder civil, de quem se tinha feito rival. Então, o
que ele pudesse gozar a sua vida de ócio, à custa do trabalho problema ficou colocado ao nível de duas potências humanas
dos outros. A pregação dos administradores e dependentes era que definem as suas posições, direitos e deveres no plano terre-
no sentido de conseguir perdão pelos seus furtos, para poderem no. Isto deriva do fato de ter o poder religioso saído do seu âm-
assim, sem perder o paraíso e num estado de constante arre- bito, que é espiritual, para entrar no campo do poder civil, con-
pendimento, continuar a praticá-los pelo maior tempo possível. tra o qual começa a lutar, por ter se tornado seu rival.
Patrões e subordinados permaneciam unidos na mesma fé, na A espiritualidade se transformou num instrumento de domí-
qual haviam encontrado por fim uma forma de convivência pa- nio terreno, tornando-se um meio para adquirir direitos e pode-
cífica, com os servos respeitando os patrões e estes dedicando res materiais. As origens sobrenaturais da instituição são utili-
o devido amor aos servos. zadas para exigir que o Estado a reconheça e faça de sua parte
Este era um método comum até há pouco tempo. No fundo, as respectivas concessões. Mas este, por sua vez, sente-se lesa-
ele constituía uma obra-prima de equilíbrio entre forças opos- do por esse pretenso poder temporal que a Igreja, atribuindo-o à
tas, com um ajustamento recíproco pacífico, no qual, de comum sua posição em relação a Deus, alega para sua vantagem, em
acordo, dava-se lugar a um regime de bondade, até onde isto prejuízo do Estado. O dissídio nasce, porque a Igreja utiliza o
era permitido pela lei fundamental da vida, que, sendo lei de lu- espírito para receber vantagens no plano da matéria, entrando,
ta, não permite a obtenção de uma utilidade, senão em função assim, no terreno do Estado, que, estando na sua própria casa,
do merecimento, conforme a própria capacidade, força e traba- retém para si o pleno direito de cassar o intruso. O Estado não
lho executado. Para além das injustiças humanas, permanecia teria ficado ofendido com o fato de a Igreja alegar origens so-
íntegra no fundo a justiça de Deus, porque o furto atual do ad- brenaturais, se esta não fizesse delas pretexto para adquirir po-
ministrador compensava aquele outro original do patrão. O ad- deres terrenos. A resistência do Estado provém do fato de que
ministrador, pelo fato de trabalhar, tinha mais direito a compen- ela, em nome do espírito, solicita privilégios temporais. Ao re-
sações do que o patrão, que vivia no ócio. Até da religião ele dor deste conflito, originado pelo pretenso poder temporal em
recebia a sua recompensa, conforme a sua posição, porque lhe terreno de outrem, gira a história da Igreja na Idade Média. E a
era reservado o posto de honra, em lugar superior, sendo objeto luta ainda continua. Parte da crise atual da Igreja é devida ao
de veneração. Mas, em substância, funcionava encoberto um domínio do Estado, que prevalece cada vez mais forte, porque
regime para vantagem própria, o qual abrangia todos. Tratava- está sempre menos disposto a tolerar invasões no seu terreno.
se de um trabalho escondido, que, sendo também necessário pa- É por isso que o espírito animador de uma instituição reli-
ra viver, tinha o consentimento implícito dos ministros de Deus. giosa muito ligada ao plano material desaparece. Hoje as
Até mesmo nisto se via a justiça de Deus, porque a religião era construções teológicas sobre as quais ela se baseia são consi-
tratada com a mesma hipocrisia por ela distribuída, recebendo deradas como mitologia superada, sendo vistas como fantasia
em troca a mesma forma de pagamento. histórica, situada fora da realidade positiva da ciência. E o or-
Este era o nível mental de muitos crentes no passado. Então, ganismo material que restou da Igreja é avaliado com a mes-
quando não se combatia a religião, procurava-se domesticá-la ma medida aplicada a todas outras organizações terrenas, por-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 81
que é feito dos mesmos elementos, funcionando com os mes- teza que está hoje encabeçando o progresso humano, enquanto
mos métodos e tendendo aos mesmos fins. o modelo de verdade revelada permanece inerte e dessecado,
A estas condições internas do organismo correspondem as sem perspectiva de progresso, restando-lhe agora apenas seguir
do ambiente que o rodeia, decaído em plena crise de fé. Esta é o outro, constrangido a pôr-se de acordo com ele, se não quiser
uma resposta à crise interna, sendo que as duas se ligam, so- ficar para trás e não ser mais tomado em consideração. Esta é a
mando-se em uma única. O velho sistema das condenações não verdadeira crise religiosa moderna.
serve para dobrar as inteligências, mas sim para afastá-las, fa- O erro não está nas verdades reveladas, mas sim em haver
zendo-as procurar outras soluções. A Igreja se encontra perante transformado a sua natureza absoluta e eterna em imobilidade,
uma transformação do modo de pensar, pelo qual o homem, ten- recusando assim à maior lei da vida: a evolução, que é ascensão
do-se tornado adulto, enfrenta e resolve os problemas por si em direção a Deus. Portanto a crise não está nas verdades reve-
mesmo, utilizando a sua própria mente, em vez das regras da ladas, mas sim na instituição que, para fins terrenos, pretende
tradição. Está superado o sistema dos irresponsáveis, que pen- reduzi-las a um estado de quietismo. A história nos mostra que
sam por delegação e por sugestão, para se pouparem de qualquer pode morrer uma religião, mas não a religiosidade. As religiões
fadiga, engolindo um alimento já mastigado, fornecido por uma não podem subtrair-se do universal transformismo evolutivo,
autoridade que não prova coisa alguma. Hoje, cada um deve que renova tudo o que existe. As verdades eternas permanecem,
descobrir por si mesmo a verdade propriamente dita, pois, em aperfeiçoando-se a sua compreensão. Elas tendem a se avizi-
caso de erro, deve ser responsável por todas as consequências. nhar cada vez mais daquela verdade. Da visão nebulosa da fé
O sistema das condenações não demonstra nada, não prova passa-se àquela mais clara da ciência. A sucessão das verdades
e não convence, podendo servir para um primitivo sugestioná- humanas relativas constitui apenas a série dos progressivos des-
vel, mas não para um ser racional. Não se demonstra um teore- locamentos que, fazendo avançar sempre o conhecimento, avi-
ma com ameaças ou por princípio de autoridade. Entretanto, até zinham-se cada vez mais da compreensão da verdade absoluta,
ontem, pretendia-se a adesão dos fiéis com tais meios. Aquele colocada ali como meta suprema do percurso da evolução. Isto
sistema prova, inversamente, que se teme a discussão. Esta não constitui, de uma forma diversa, a própria série das fases de as-
seria temida, se houvesse segurança nas verdades que se afir- censão para Deus. Ora, quando se alcança os pontos mais avan-
mam. Se existissem provas dessas verdades, não haveria neces- çados da evolução, a vida abre novas portas. Então por que
sidade de anátemas para defendê-las. A comprovação se apoia fechá-las ou recusar-se a entrar, se elas conduzem a Deus?
sobre fatos e sobre raciocínio, que cada um pode sempre con-
trolar. Serão tão frágeis assim as verdades da religião? Por que XIII. A OFERTA
a Igreja sempre teve medo de que as suas verdades não fossem
reais, a ponto de se bastar discuti-las ou apresentar uma dúvida Podemos agora deter-nos em outro momento, numa curva
para ofendê-la? Coisas como o uso do princípio da autoridade, da história que estamos narrando. A primeira fase, de afasta-
o método das condenações e a declaração de infalibilidade re- mento do mundo, exposta no início do presente volume, já se
velam faltar à Igreja a segurança que ela, pelo fato de basear encontra distante, tendo-se passado 35 anos (1931-1966), e o
sua posição terrena em tal condição, deveria demonstrar possu- trabalho de nosso personagem no cumprimento do seu destino
ir. Como podem as verdades absolutas, transmitidas por revela- se encaminha para a sua conclusão. O que era um programa
ção, ter medo das teorias de qualquer mortal que as observe tornou-se agora fato consumado. Chegou, portanto, o instante
mais de perto? Será o pensamento de um escritor tão ultrapo- de observar e ver, depois de percorrido o caminho, o fruto re-
tente, a ponto de provocar aquele medo, ou trata-se de verdades sultante daquele primeiro impulso inicial.
fideístas tão débeis, que temem a mínima voz discordante? O Com este objetivo, vamos transcrever a conferencia proferi-
que é forte não tem necessidade de ser tão protegido. O fato é da pelo autor da Obra em Brasília, centro do continente sul-
que se tratam de verdades apresentadas de forma nebulosa, ne- americano, lida depois por um parlamentar na Câmara dos De-
cessitando, se lhes quisermos conhecer o verdadeiro significa- putados e publicada no Diário do Congresso Nacional Brasilei-
do, esclarecimento e confirmações por parte da Igreja em seus ro, em março de 1966, com o título:
concílios, através de seus teólogos e doutores, que são as men- “A NOSSA OFERTA SIMBÓLICA AO BRASIL E
tes humanas encarregadas de traduzir e interpretar tais verda- AOS POVOS DA AMERICA LATINA”
des, sujeitas no tempo às oscilações do pensamento humano em Nessa reunião, na Capital do Brasil, participaram amigos
evolução. Neste processo, porém, não é possível saber se a ver- provenientes de vários pontos do continente sul-americano,
dade resultante é produto humano ou divino, ou seja, se ela de- bem como dos Estados Unidos, todos juntos em estreita colabo-
riva de uma revelação ou de toda uma elaboração que o homem ração. Chegaram também mensagens de adesão do Japão e de
faz dela depois, com o seu pensamento. outras partes do mundo. Eis o texto da conferência:
A gravidade do momento crítico atual consiste no fato de Queridos amigos,
que o catolicismo se encontra numa bifurcação. Se ele souber Contar-lhes-ei uma estranha história. Há trinta e cinco anos,
tomar a nova forma mental racional e científica, demonstrando um homem, atingindo a metade de sua vida, sem preparação al-
suas afirmações, poderá continuar a desenvolver nesta direção guma e sem plano de trabalho, começou a escrever, obedecendo
os seus princípios e prosseguir cumprindo uma função. Se, ao a um impulso interior. Desde o Natal de 1931, ele nunca mais
contrário, ele quiser permanecer cristalizado, repetindo o pas- parou. Sem conhecer quais seriam os futuros desenvolvimentos
sado, então será abandonado como uma velha mitologia, fican- do seu labor, ele o foi executando dia após dia.
do fora de uso, como ficou a pagã. O desenvolvimento do pen- Hoje, aquele trabalho encontra-se quase terminado, encon-
samento humano segue fatalmente a lei da evolução. As religi- trando-se visível na sua estrutura orgânica, no seu desenvol-
ões que não acompanham este processo ficam para trás. Não se vimento lógico e na sua arquitetura harmônica. Trata-se de
transformou o hebraísmo, com Cristo? Hoje o problema não é uma Obra de 24 volumes, com cerca de 10.000 páginas. Ela
mais de ortodoxia ou heresia. Estas são velhas distinções, em- explica a origem, a estrutura e o funcionamento orgânico de
pregadas no tempo em que o ponto fixo de referência era dado nosso universo físico-dinâmico-psíquico, indicando a nossa
por verdades estabelecidas pela fé. Agora o ponto de referência posição dentro dele e revelando o significado e a finalidade de
do pensamento humano não é mais a indiscutível revelação, nossa vida, para chegar, no fim, a conclusões práticas, mos-
mas sim os fenômenos, os fatos, que nos dizem uma verdade trando qual deve ser a nossa conduta, se não quisermos pagar
mais restrita, porém mais positiva e segura. É esse tipo de cer- com sofrimento os nossos erros.
82 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
A finalidade desta Obra é oferecer um conhecimento que o ritualmente presentes nesta hora, como testemunham cartas e
mundo ainda não possui, necessário para o indivíduo se condu- mensagens por eles enviadas. Estas nossas palavras serão le-
zir com sabedoria e poder, assim, viver de forma menos bárbara vadas ao seu conhecimento no seu próprio idioma, e a distân-
do que aquela vivida hoje pelo assim chamado homem civiliza- cia física não impedirá a união espiritual.
do moderno. Nesse sentido, esta Obra contém as bases sobre as Logicamente, as forças que quiseram a realização da pri-
quais se poderia apoiar uma nova civilização, aquela que, por meira fase do trabalho, desejam agora fazer cumprir também a
lei de evolução, o homem deverá seguramente realizar no III sua segunda parte, sem a qual aquela não teria sentido. No perí-
Milênio. Trata-se de viver melhor, o que só é possível através odo inicial, muitas provas concretas nos demonstraram que este
de maior inteligência e bondade. A finalidade maior da Obra é movimento é vontade do Alto e que não tenciona parar, sendo
fazer o bem, mostrando como se pode viver uma forma de exis- que nenhuma força até agora teve o poder de detê-lo. Ele não
tência menos feroz, mais civilizada e, portanto, mais feliz. confia nos falsos métodos do mundo. Aqui não se trata de baru-
A Obra é um projeto de ação, destinado a quem quiser exe- lhentos e rápidos sucessos, com tangíveis e imediatas realiza-
cutá-lo, porém não é a ação em si mesma. Constitui uma luz ções, mas sim de fenômenos de grande amplitude e, por isso, de
que ilumina e orienta, mas não é o movimento que realiza. Esta lenta maturação, cujas realizações – ao contrário do que ocorre
outra parte pertence aos executores, que poderão chegar num com o homem, fechado numa só vida – não têm pressa; trata-se
segundo momento. Os que ficarem inertes, esperando que tudo de desenvolvimentos que se projetam no tempo e no espaço,
caia do céu, não gozarão das vantagens que a ascensão evoluti- não precisando, portanto – como sucede para quem enxerga
va contém. De resto, a divisão do trabalho, conforme a especia- somente de perto, não se apercebendo deles – atingir rápidas
lização e as particulares capacidades de cada um, é uma neces- conclusões. Ultrapassando o interesse do indivíduo e do mo-
sidade prática. Assim como o engenheiro, que faz o projeto de mento, é um movimente de grandes proporções, que se entrosa,
um edifício, não pode fazer o trabalho de construção do pedrei- juntamente com outros movimentos paralelos, no desenvolvi-
ro, o pedreiro também tem necessidade de encontrar o projeto mento da história. Que cada um, então, cumpra espontaneamen-
feito, para saber como construí-lo. te a sua parte, aquela para a qual se sinta chamado. Depois che-
Encontramo-nos hoje numa posição em que o projeto está garão outros. O artífice de tudo isso está no Alto, possuindo
quase terminado, chegando à sua última fase, na qual ele será inesgotável reserva de instrumentos humanos. Assim aconteceu
concluído. O autor cumpriu a sua missão. Muitos falam de mis- até agora e terá de ocorrer no futuro.
sões e se dizem missionários, mas poucos conseguem chegar ao Eis que esta oferta significa a Obra terminada e entregue
fim. Podemos aqui falar de missão, porque ela foi cumprida. O hoje aos seus continuadores. Duas vezes essa oferta foi feita e,
autor terreno fez a sua parte. Ele está, ao mesmo tempo, chegan- em ambas, providencialmente rejeitada. Dizemos “providenci-
do ao fim de sua vida e atingindo o seu objetivo. O primeiro ato almente”, porque cada recusa lhe abriu as portas para uma ex-
do drama se encerra. Desce a cortina, e o autor, satisfeito, desa- pansão maior. A primeira, a recusa de Roma, abriu-lhe as por-
parece na sombra. Ele só deseja ser esquecido ao término deste tas do Brasil; a segunda, de alguns no Brasil, as da América
labor. O que tem valor e utilidade é a Obra, e não o operário. Latina. Assim a finalidade a alcançar foi atingida. Mas para
Neste momento, ele pede uma graça, solicitando que lhe sejam quê? Qual seria essa finalidade?
poupadas exaltações pessoais e honras inúteis, porque elas per- Se o comunismo representa a ideia asiática e a democracia
tencem somente à Obra; pede que lhe permitam retirar-se em si- capitalista o sistema anglo-saxônico, eis que a América Latina
lêncio da cena do mundo, a fim de se preparar para viver o novo pode ter uma terceira ideologia, de cunho cristão – como cris-
tipo de existência que, em breve, o espera no além-túmulo. tãos são os latinos, filhos de Roma – baseada não sobre proble-
A Obra permanece, e isto é o que mais interessa. Ela não é mas de expansão territorial e predomínio econômico, o que con-
um produto de literatura morto, mas sim uma semente viva, que duz às guerras, mas sim sobre princípios espirituais, que afir-
cai agora no terreno do mundo, para germinar. A vida a gerou mem e difundam a paz. Eis por que a Obra se dirigiu automati-
para que ela viva. As ideias da Obra foram formuladas para se- camente para o Brasil, dele se espalhando pela América do Sul.
rem transformadas em fatos. Eis que, neste momento, entra em De fato, o plano da Obra é essencialmente pacífico. As suas
cena outro tipo de trabalho, próprio dos homens de ação, dos bases são evangélicas e as suas conclusões levam a uma moral
realizadores, aos quais pertence cumprir o segundo ato. de compreensão e colaboração recíproca. Tudo isso se coloca
Hoje se realiza a passagem do projeto das mãos do projetis- decididamente nos antípodas do estado de guerra no qual, em
ta para as dos construtores. O primeiro terminou sua parte e outro hemisfério, vivem as mais poderosas nações do mundo.
vai-se embora. Este é o momento da entrega do projeto. É isto Na realidade, o hemisfério norte é um campo minado, tendo
que estamos fazendo, juntos, aqui em Brasília. Hoje é o dia des- suspensa sobre si, como uma espada de Dámocles, presa por
ta entrega. A partir deste momento, a Obra entra em sua nova um fio, a arma atômica. Grande importância pode ter no mun-
fase, que se desenvolverá paulatinamente, como ocorreu no iní- do o poder bélico e econômico, mas ele tem necessidade tam-
cio, para continuar em seu novo ciclo. Temos, assim, dois mo- bém de paz, sem o que – mesmo se produzindo muito, como
vimentos opostos. De um lado, o autor se retrai, afastando-se e grandes trabalhadores – tudo acabará sendo destruído. Precisa-
desaparecendo, para seguir noutro lugar o seu destino. De outro se de paz, sobretudo neste momento em que se vive sob contí-
lado, a Obra, como um feto recém nascido, toma vida própria e nua ameaça de guerra nuclear.
começa, por sua conta, a caminhar pelo mundo. A nossa Obra ensina a viver outro tipo de vida, baseando-
Os senhores, a quem hoje falo, são os operários aos quais a se sobre princípios de um nível biológico mais evoluído, para
Obra está confiada. É por isso que estamos aqui reunidos. Este levar o homem a um maior grau de adiantamento, que será a
encontro tem um importante significado, exatamente pelo fato nova civilização do terceiro milênio. Pela lógica do processo
de que nele se realiza esta nossa oferta, neste lugar e momento. evolutivo, é fatal que se deva chegar até lá. O problema é prá-
Trata-se de passar das mãos do compilador às dos seus herdei- tico e utilitário. Trata-se de ter suficiente inteligência para
ros espirituais. Oferta gratuita, para o bem de quem a recebe. compreender a vantagem de viver organicamente na ordem,
Isto acontece em Brasília, Capital do Brasil, no coração do em vez de lutando no caos; viver com base na compreensão e
continente sul-americano. Como diz o título da conferência, na coordenação de esforços, em vez de na rivalidade e no sepa-
esta é a nossa oferta simbólica ao Brasil e aos povos da Améri- ratismo egoísta. Estas são as conclusões da Obra. Nela estão
ca Latina. Aqueles que, de outros países dos continentes ame- demonstradas as suas razões profundas, oferecendo soluções
ricanos, não puderam chegar até aqui pessoalmente, estão espi- até para a origem de nosso universo. Evidencia-se claramente,
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 83
sem se exigirem atos de fé, o porquê de nossa existência, quais É assim que, em função do momento histórico no qual ela
as leis que a regem e como a dor surge pelo fato de não se se realiza, a Obra oferecida se funde totalmente com o fenô-
obedecer a elas. Explica-se como funciona o imenso organis- meno evolutivo, tendo pleno conhecimento dos objetivos que
mo do todo, dentro do qual estamos situados e com o qual nos ele quer e irá alcançar. Em suma, reunindo todas as distin-
devemos coordenar, se não quisermos sofrer. Cada erro é como ções humanas que produzem separações, a nossa palavra é no
uma doença nesse organismo, uma enfermidade que causa so- sentido de não entrarmos nesse separatismo. O nosso princí-
frimento e que percebemos, porque a dor atinge cada célula pio é a unificação. Não aquela em torno do grupo – que,
doente daquele organismo. Quando se sai da ordem, aparece a apoiando-se em sectarismo e proselitismo, é feita para lutar,
enfermidade e, com ela, manifesta-se a dor. Pode-se estabele- dividir e vencer alguém – mas sim a unificação com a lei de
cer a seguinte equivalência: ordem na Lei=felicidade; desor- Deus, para aderir à sua harmonia universal e ordem suprema.
dem fora da Lei=sofrimento. Então, sabemos por que existe a O homem só entende a unificação como um agrupamento
dor e como evitá-la. Sua função é nos fazer voltar à ordem pa- contra outros. A isto, muitas vezes, reduzem-se as religiões.
ra nosso bem, porque na ordem não existe dor. Por unificação, porém, entendemos adesão à lei de Deus,
Alcançamos assim uma moral racional, positiva e demons- saindo de todos os agrupamentos humanos, que acabam por
trada, que por isso mesmo não é suscetível de hipocrisia. Não se se dividir. O homem que usa as coisas espirituais com méto-
trata de um produto fideísta, feito por um grupo político ou reli- do sectário, separatista e agressivo contra o próximo revela a
gioso em seu próprio interesse, mas sim de uma ética universal, sua involução. O evoluído, para não entrar em luta, afasta-se
não ligada a interesses, verdadeira em todo tempo e lugar, sem dele em silêncio, respeitando-lhe a ignorância.
escapatórias, como são as verdades científicas. Ninguém pensa Uma vez, ao procurar explicar esse tipo de universalismo,
que a lei de gravitação possa mudar pelo fato de se pertencer a responderam-me: “Entendi. Trata-se de um novo partido: o dos
este ou àquele partido político, a esta ou àquela religião. Assim, universalistas”. Isto nos mostra como o homem não sabe con-
a Obra nos oferece uma moral biológica, que funciona para to- ceber coisa alguma a não ser em forma de separatismo egocên-
dos, acredite-se nela ou não; uma regra de vida armada de san- trico. E como é difícil para ele superá-lo em sentido universa-
ções, que está pronta para reagir, quando a violamos, e à qual lista unitário! Mas é exatamente nesta fundamental renovação
ninguém pode fugir, assim como não se pode impedir o desen- de mentalidade que consiste a nova civilização do terceiro mi-
cadeamento de uma reação química ou de uma doença, só pelo lênio, porque é dela que depende a nossa conduta e, portanto,
fato de se professar uma fé em vez de outra. Hoje o homem, toda a orientação da vida na sociedade humana. O que mais in-
como indivíduo e como sociedade, sofre imensas dores em con- teressa ao involuído atual é a rivalidade e a luta. O que mais
sequência da ignorância dessas leis, não podendo impedir que interessará ao evoluído de amanhã será, ao contrário, a unifi-
elas existam e golpeiem quem, por não as conhecer, comete o cação e a colaboração. Esta vai ser a maior revolução do novo
erro de as violar. Tais conceitos podem parecer utopia atualmen- milênio. É para ela que a Obra nos vai preparando. Assim,
te, porém, muitas vezes, o ideal de hoje torna-se a realidade de desde agora, quem a compreendeu, começa a praticar este no-
amanhã. O ideal é uma antecipação da evolução, sendo que, no vo método de viver, que não é uma egocêntrica vontade de so-
mundo atual, dores imensas estão prestes a se desencadear, para brepor-se aos outros, mas sim uma disposição de entendê-los,
apressar o desenvolvimento da mente e o amadurecimento da para cooperar. Trata-se de tornar finalmente em realidade o
consciência, condição necessária para se chegar à compreensão. lema evangélico: “ama a teu próximo como a ti mesmo”, até
Eis o conteúdo e a finalidade da Obra, que oferecemos hoje, hoje reduzido apenas a pregação e teoria.
neste local. Uma vez que nos explica como funciona a vida, ela Com esta Obra nos projetamos no futuro. Ela foi escrita pa-
não pode deixar de ser, como a ciência, imparcial e universal. O ra as gerações que chegarão, às quais os senhores a confiarão, a
seu objetivo não é constituir um grupo e com ele lutar contra fim de que possam vivê-la. Os senhores têm – e elas também
outros, para vencê-los, como é hábito em nosso mundo. O seu terão – a missão de realizá-la. Lembrem-se, porém, que uma
método não é impor para dominar, produzindo rivalidade e ci- missão não existe para ser somente proclamada, como se cos-
são, mas sim demonstrar para convencer, gerando concórdia e tuma fazer, mas sim para ser cumprida. O nosso trabalho não é
unificação. É por isso que a Obra, hoje, não está sendo ofereci- de palavras, e sim de obras. Agora, a oferta está feita. Assim
da a um grupo particular. Ela não pode ficar fechada em ne- como foi com trabalho que se realizou a primeira fase, já termi-
nhum setor particular ou partido, seja político ou seja religioso, nada agora, também será com ele que se poderá realizar a se-
assim como as leis da vida e as verdades universais da ciência gunda, ainda a ser feita. Trata-se de construirmos a nós pró-
não podem ser submetidas a nenhuma divisão humana. Isto não prios. O edifício a levantar é interior. Mas nada cai do céu gra-
significa uma tentativa de nos colocarmos acima dos grupos tuitamente. Todos, tanto o indivíduo como a humanidade, têm
humanos, em nome de Deus, como fizeram algumas religiões. de subir a montanha da evolução com as suas próprias pernas.
Apenas estamos fora deles. Explica-se, assim, como faliram as Mudam-se os operários, e a obra continua. Eu lhes mostrei a
tentativas dos grupos que procuraram absorvê-la para suas fina- meta a atingir. O homem é livre e pode também recusar. Neste
lidades particulares. Ela não expressa uma opinião particular, caso, porém, ele nada colherá e, em vez de ganhar, elevando-se,
não é um ato de fé cega, nem constitui uma teoria para esconder ficará em baixo, nas velhas posições atrasadas.
e defender interesses. É simplesmente a explicação de como Por isso, hoje, trata-se de uma oferta, e não de uma ordem;
funciona a lei de Deus nos seus diferentes níveis; é somente um trata-se de uma dádiva que a vida oferece para o bem da huma-
pensamento que, expressando verdades, quer oferecer o conhe- nidade, e não de uma imposição para constrangê-la. Está sendo
cimento e o estado de consciência necessários para uma vida oferecido aqui uma ajuda, uma orientação, um convite para
mais elevada, na qual o sofrimento é menor. Por essa razão não evoluir. A vida, nesta hora, deseja convencer quem tem capaci-
lhe servem os poderes do mundo, seja ele político, econômico dade de compreender, mostrando o caminho aos homens de boa
ou bélico, pois estes são apenas engrenagens da máquina de vontade. Para quem não quiser entender, há outros meios, mais
Deus, da qual fazem parte como elementos subordinados, sendo persuasivos, como a imensa destruição causada pela guerra. Is-
que esta máquina já se encontra funcionando, não precisando to não é novidade na história da evolução. A dor foi sempre o
do consentimento humano para atingir os seus objetivos. Quan- meio clássico com o qual a vida se faz presente àqueles que não
do se entendeu este mecanismo, sabe-se aonde a vida quer che- querem compreender outra linguagem. Só assim, para o bem
gar e fatalmente acabará chegando, dirigindo com a sua inteli- deles, ela consegue fazê-los evoluir.
gência o homem ignorante daquelas metas. ◘ ◘ ◘
84 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
Estabelecemos nitidamente a posição da Obra perante o seu afirmações, ficamos aderentes aos fatos, porque queremos ser
futuro desenvolvimento e explicamos qual a função que ainda entendidos pelas mentes racionais, permanecendo positivos,
tem de cumprir. Mostramos qual o seu conteúdo e expusemos o como é necessário para quem deve realizar tal tarefa. Exata-
significado desta nossa simbólica oferta feita hoje, aqui em mente porque a composição da Obra foi em grande parte um
Brasília, dirigida ao Brasil e aos povos da América Latina. Va- trabalho de parapsicologia, tive de me impor uma disciplina
mos esclarecer agora por que todas essas coisas aconteceram, mental que cumprisse um contínuo e rígido controle, necessá-
acontecem e se concluem hoje, neste momento e lugar. rio aos que trabalham neste terreno, no qual é fácil se perder
Tudo isso corresponde às atuais condições do mundo e em fantasias e aceitar por verdades aquilo que é produto do
aparece justamente para satisfazer uma necessidade urgente. subconsciente. É certo, no entanto, que, se tivesse de fazer
O desenvolvimento da técnica está pronto para fornecer o uma confissão, deveria dizer que fiquei maravilhado em cons-
bem-estar material. Porém, para completá-lo e equilibrá-lo, tatar não somente na composição da Obra, mas também nos
falta um paralelo desenvolvimento moral e espiritual, para di- fatos que determinaram sua difusão até aqui, a presença de
rigi-lo no sentido do bem, e não do mal, que pode significar uma inteligência diretriz e de uma vontade realizadora, sem a
hoje a ruína para todos. Se o homem não chegar a possuir es- qual tudo o que foi alcançado até hoje, neste ponto culminante
tas outras qualidades, o programa material por si só poderá em Brasília, não poderia ter sido realizado. Também para os
levar a um desastre. Estes podem ser os resultados de uma ci- céticos a lógica é lógica e os fatos são fatos. O conhecimento
ência que não seja guiada por princípios superiores. Vimos pormenorizado do caminho até aqui percorrido pela Obra me
isso com a descoberta da energia atômica. Eis a função sal- fala claramente, obrigando-me a concluir que seria absurdo ter
vadora da terceira ideia. seguido esta trajetória inutilmente, sem que ela continuasse a
Ora, esta ideia não é somente, como explicamos acima, se desenvolver, até atingir seus objetivos.
uma verdade válida para todos, porque racionalmente positi- Agora que o trabalho foi realizado, pergunto-me como foi
va, biologicamente evolucionista e cientificamente universal. possível executá-lo, seguindo um plano lógico de desenvol-
Ela é também cristã. E isto no mais profundo sentido unitário vimento sem o conhecer com antecedência? Como foi possí-
e substancial, porquanto nela podem, juntos, encontrar-se ca- vel chegar ao ponto conclusivo desta oferta em Brasília, no
tolicismo, protestantismo, espiritismo e espiritualismos afins qual tudo fica confirmado, quando não se dispunha de meios
de fundo cristão. Para esta ideia já se estão encaminhando as adequados para tanto e tudo parecia estar em poder de vonta-
filosofias e religiões de tipo cristão no seu presente trabalho des alheias discordantes, muitas delas dirigidas para objeti-
de atualização. Ela constitui um produto típico da raça latina vos bem diferentes? Foi um caminho tortuoso, através dos
e direcionado para a raça latina, irradiando de Roma um novo mais diversos ambientes. Porém o ponto de chegada foi atin-
modelo da mesma civilização cristã que, por dois milênios, a gido sem contradições nem desvios, sem concessões nem
Cidade Eterna espalhou pelo mundo e que, agora, desloca-se adaptações, mantendo-se substancialmente retilíneo, apesar
para outro centro, chegando ao país que foi chamado “Nova de ter percorrido uma floresta cheia de obstáculos e enganos.
Pátria do Evangelho”. Os sintomas e os efeitos desta nova O milagre está no fato de os ter vencido com a sincera sim-
amplitude de visão, encaminhada para a unificação dos ir- plicidade de uma criança. Que longa história vejo para trás! É
mãos separados, já apareceram em atitudes ecumênicas, no a história de minha vida.
seio da mais dogmática das religiões. É evidente que esta é a Agora observo que as afirmações sustentadas no Cap.
tendência de nosso tempo. Outros, menos ágeis, chegarão XIII: “A Minha Posição”, num dos primeiros livros da Obra,
mais tarde, mas terão de progredir no mesmo sentido de uni- Ascese Mística, nunca foram desmentidas, tendo sido confir-
ficação. Nós podemos vê-la na política, no fato de estar o madas no livro A Grande Batalha. Aquele método, que pare-
mundo reduzido a duas ou três grandes potências, ao redor ce loucura para o mundo, de se confiar sobretudo nas forças
das quais se agrupam todas as demais. espirituais, demonstrou-se experimentalmente válido e nos
Esta nova ideia aparece em um momento histórico gravís- levou até as conclusões de hoje. Se não se admite uma inter-
simo. Há um século, ela teria sido considerada absurda e ina- venção que esteja acima dos comuns recursos humanos, nada
plicável. Hoje tudo se move para novas posições, vivendo-se disso pode ser explicado.
uma febre de renovação. Em sua grande parte, porém, tal pro- Cumpre-se por fim o que foi dito no Cap. V do volume
cesso é assistido apenas no seu primeiro momento, que é ne- Profecias, a respeito da “Função Histórica do Brasil no Mun-
gativo e destrutivo, como vemos no existencialismo e simila- do”. Quando escrevi aquelas páginas, ainda não existia Brasí-
res. Mas isto implica a fase inversa e complementar, que é po- lia, e elas nos explicam por que hoje estamos realizando aqui
sitiva e reconstrutiva. Eis a função da terceira ideia. Tudo o esta oferta da Obra. É com o livro Profecias que a Obra inicia
que for deste tipo torna-se hoje de primeira necessidade, sen- a sua segunda parte, escrita no Brasil, chamada brasileira por
do indispensável para a continuação da vida, porque a sua ve- esta razão, em homenagem a este pais. Há uma convergência
lha casa, na qual os homens se abrigaram por dois mil anos, de muitos fatos para este momento que agora vivemos! Ele
está agora caindo de velhice, sacudida até aos alicerces pelos encerra um caminho e inicia outro. Um pobre homem chegou
terremotos de revoluções mundiais. Eis que a Obra oferecida de longe, do centro da civilização cristã, velho e esgotado, pa-
está proporcionada ao nosso tempo e vice-versa. Tudo está ra entregar hoje o fruto de sua vida a um mundo jovem e
conexo e chega na devida época, compondo partes correspon- imenso, ao qual pertence o futuro. Esta semente, levada pelo
dentes e entrosadas umas às outras. vento de mil aventuras, chegou até aqui e parou neste lugar,
Tudo isso deixa supor a existência de um plano preestabe- nesta terra virgem, no centro de um novo continente. Mil
lecido, tanto mais que não se podia prevê-lo, quando a Obra acontecimentos milagrosamente concordaram para se obter
foi iniciada, aparecendo visível somente agora, depois do tra- este resultado. O acaso não poderia tê-lo produzido. Não se
balho terminado. Outra mente que sabia deve, portanto, ter pode deixar de ver em tudo isso a mão de Deus, explicando-
preparado e organizado este labor. E, se essa mente tanta coi- nos porque hoje estamos aqui realizando esta oferta da Obra.
sa soube fazer até hoje, isto nos autoriza a crer que ela conti- É evidente a Sua vontade no sentido de que esta semente cres-
nuará a saber executá-lo também no futuro, porque é inadmis- ça e se desenvolva, para a afirmação espiritual desta nova
sível que, de repente, quem deu provas, num determinado pe- grande Terra, para que ela, no Terceiro Milênio, cumpra a sua
ríodo, de ser inteligente, torne-se o oposto, desinteressando-se missão no mundo, conforme o seu destino, que não é de guer-
de um trabalho tão cuidadosamente elaborado. Com estas ra, mas sim um destino evangélico de bondade, amor e paz.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 85
XIV. GÊNESE E SIGNIFICADO DA OBRA meno consiste no fato de que ele interessa de perto à evolução,
porquanto se verifica entre dois planos diversos. Estabelece-se
Realizou-se a oferta da Obra, dando-se um novo passo em assim uma comunicação através da qual se realiza a descida de
frente na sua longa viagem do céu à Terra. Agora o seu caminho valores ideais do Alto, sendo que o indivíduo funciona como ca-
no mundo toma uma forma cada vez mais autônoma. O filho nal para esta descida. Então, ele se eleva do plano físico até à
concebido pelo pai e gerado pela mãe, que lhe deu, através de fonte, para captar-lhe o pensamento e, depois, transportá-lo à
longa elaboração interior, um corpo na Terra, tirando-o da pró- Terra, absorvendo-lhe o valor espiritual em primeiro lugar para
pria carne, começa a caminhar, com as suas pernas, como criatu- si mesmo. Temos, portanto, um caso de telepatia entre dois cen-
ra independente. É neste momento que resumimos aqui a sua tros pensantes, situados em dois níveis diferentes, sendo que
posição, para defini-la sobre o fundo do quadro geral de todo o deste contato resulta também uma escola de ascensão do inferi-
fenômeno. Mais adiante, em outros capítulos, observaremos este or, por obra do superior e na direção do nível deste. Aqui, a fun-
caso mais exatamente no plano parapsicológico. Queremos ago- ção evolutiva assume uma tarefa de primeiro plano, tanto como
ra, sobretudo, orientar-nos, para compreender a sua origem, sig- um meio de descida dos ideais à Terra, para realizar o progresso
nificado e desenvolvimento, no momento desta encruzilhada em da humanidade, como uma forma de ascensão espiritual do indi-
seu percurso. Depois de haver compreendido como tudo isso víduo através do qual, graças a tal estado de contato e colabora-
funciona, poderemos melhor avaliar as consequências. ção, a comunicação se realiza. De fato, a fonte é conhecida, sen-
A respeito deste caso falou-se muito de mediunidade. Ora, do uma só e sempre a mesma. A constância da relação é devida
se de fato é assim, isto ocorre de uma forma tão diversa da co- a uma estabilidade na sintonização, da qual nasce uma espécie
mum, que chega a ser difícil catalogá-lo sob este nome. Segun- de convivência espiritual, gerando uma condição permanente e
do o tipo corrente, a mediunidade é: passiva, inconsciente, ir- bem definida, correspondente a fins preestabelecidos.
responsável, genérica, promíscua. Em nosso caso, pelo contrá- O fenômeno resulta, portanto, do concurso de várias condi-
rio, a mediunidade é: ativa, consciente, responsável, específica, ções: a sensibilização do sujeito por evolução; o contato com a
exclusiva. Como se vê, estamos nos antípodas. fonte de pensamento, situada num plano mais elevado; a sinto-
Expliquemos. Isto não significa que, neste caso, o sujeito nização com ela; a estabilização de um contato telepático, atra-
não seja um receptor. Ele funciona como instrumento, mas de vés do qual se fixa a ponte da comunicação. Tudo isso deixa in-
forma diferente. No caso comum, o médium adormece, abando- tactos e livres os dois centros de pensamento comunicantes, de
nando-se na passividade, como instrumento cego e irresponsá- modo que cada um permanece íntegro, inconfundível e inde-
vel, nas mãos de qualquer entidade espiritual que queira apos- pendente em sua personalidade, não havendo qualquer abdica-
sar-se dele, para que ela transmita a seu bel-prazer uma comuni- ção, confusão ou mistura de tipo mediúnico. Forma-se, assim,
cação qualquer, sem que o sensitivo possa intervir, seja como um elo permanente entre duas consciências, estabelecendo-se
escolha autônoma da comunicação, seja como consciência do uma união entre dois elementos complementares, tal como pode
seu conteúdo e da técnica do fenômeno. Em nosso caso, ao in- suceder na Terra, no plano físico, com o matrimônio. Fazemos
verso, o médium, colocando-se num estado de superconsciência, esta aproximação como comparação, porque a tendência do fe-
mais ativo do que o normal, sabe com quem se comunica e o nômeno aqui em exame é justamente chegar a uma fusão está-
que lhe é transmitido, assumindo disso, depois de o ter bem vel e profunda de almas, que se ligam para fazer em um traba-
compreendido e examinado, toda a responsabilidade. Ele se co- lho espiritual conjunto, sendo este o fruto gerado por esta uni-
loca livremente neste estado receptivo, com o objetivo de execu- ão. Por isso falamos de colaboração.
tar um trabalho conceitual específico – somente esse, e não Não se pode dizer que o princípio da união pai-mãe, do
qualquer outro – com fins espirituais determinados, e não apenas qual nasce o filho, deva ficar limitado ao nosso plano físico,
para se comunicar. Por fim, ele limita o contato, de forma a sem poder repetir-se em formas paralelas mais altas, no plano
mantê-lo somente com a fonte de pensamento conhecida por ele, espiritual, onde os dois elementos geradores do produto de
não se submetendo a nenhuma outra. Em nosso caso, o sensitivo sua união são de natureza exclusivamente conceitual. Cada
não é um instrumento puramente mecânico no nível físico, como um dos dois contribui com suas diferentes qualidades com-
é a mão do psicógrafo. Ele permanece no plano mental, onde plementares. Vemos, na natureza, que a centelha da gênese
funciona como colaborador encarregado de executar a parte criadora nasce sempre desse tipo de fusão entre dois elemen-
mais simples da obra, que consiste em expressá-la com palavras, tos opostos. Ora, se é difícil que tais uniões espirituais pos-
traduzindo-a na forma mental própria do estágio evolutivo hu- sam realizar-se no tipo corrente – que fica saciado no seu
mano. Encontrando-se o médium totalmente desperto e contro- próprio nível, pois, neste plano, é mais fácil ele encontrar o
lando tudo, esse caso possui a vantagem de tornar impossível seu termo complementar – elas são mais fáceis de se verificar
que a sua mediunidade, ficando livre no estado de transe com a em um nível mais evoluído. Em tal condição, isto constitui
fonte inspirativa, seja utilizada como desabafo do subconsciente. uma necessidade, dado que, pela sua própria natureza, o ou-
A superioridade desse tipo de contato espiritual reside no tro termo, para se completar, tem necessidade de encontrar o
fato de corresponder ele à finalidade da evolução, que consiste seu elemento complementar, situado evolutivamente mais no
em desenvolver a consciência, e não em paralisá-la, colocando- alto. Isto pode acontecer sobretudo para quem, no momento
a a serviço de desconhecidos, cuja identidade e valor moral se em que tenha amadurecido o suficiente para poder dar o salto
desconhece. Elementos ruins já temos bastantes na Terra, para evolutivo que o leva a um nível biológico superior, procura
que seja necessário ir à procura deles noutro lugar. O objetivo juntar-se a qualquer coisa na Terra, no plano humano, mas
da vida é avançar, e não retroceder. O que não serve para o fim não consegue encontrar aí nada que o satisfaça.
principal, que é evoluir, tem importância secundária. Esta relação pode ser comparada também àquela que existe
Ora, a primeira coisa que se realiza nos casos de nosso tipo é entre mestre e discípulo. Porém, em nenhum dos casos, jamais
justamente a ascensão espiritual do sujeito. Assim, o fenômeno uma das duas personalidades se apossa da outra, para substituí-la.
através do qual ela se realiza poderia ser melhor chamado de Todavia a diferença de nível evolutivo não impede a aproxima-
“telepatia”. Trata-se realmente de uma comunicação consciente ção e a colaboração, que se realizam sempre com o maior respei-
entre duas fontes de pensamento: uma espiritual e a outra encar- to pela personalidade um do outro. O mestre transmite e fecunda,
nada no plano físico, sendo a primeira tão imaterial, que pode mas, nem por esse fato, apossa-se do discípulo, para lhe substitu-
ser individualizada somente como corrente de pensamento ou ir. De acordo com a Lei, quanto mais se evolui, tanto mais se
centro conceitual irradiante. O maior valor, porém, de tal fenô- respeita, como coisa sagrada, a personalidade do próximo.
86 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
Tal fenômeno não pode surpreender, porquanto vemos que 2) O ser humano, que é o elemento subordinado, funcio-
ele não é excepcional na natureza, onde existe este princípio de nando como instrumento de recepção, mas em posição de cola-
dependência e subordinação de um elemento em função de ou- borador livre e consciente, que se liga à fonte por adesão espon-
tro, de tipo complementar, sem que isso signifique a sua dimi- tânea, para cumprir o mesmo trabalho, embora de forma com-
nuição, mas somente a sua complementação. Vemos então que plementar. Este elemento funciona como canal de descida para
em torno do Sol giram os planetas; do núcleo do átomo, os elé- os princípios ideais, tornando possível a expressão deles no
trons; das nações potentes, as mais débeis; do chefe, os seus su- plano humano. Para fazer isso, ele deve não só receber, mas
bordinados; do macho, a fêmea etc. Em todos os casos, verifi- também captar, pensar, interpretar e traduzir, fazendo tudo o
ca-se sempre o mesmo fenômeno, pelo qual, tão logo surge um que é necessário para executar a parte do trabalho que lhe com-
indivíduo de tipo centro, dispõem-se ao redor dele e se põem pete. Neste sentido, ele é fecundado, mas não passivamente. Pe-
com ele a funcionar aqueles que lhe são complementares. Esta é lo contrário, sendo o elemento complementar, ele coopera com
uma técnica que a vida adota, para coordenar os seus movimen- o primeiro na execução da mesma Obra, ainda que seja em po-
tos e organizar os elementos menores em unidades coletivas sição subordinada. Assim, o elemento que está no alto se abai-
maiores. Ora, é natural que o ser evoluído também seja envol- xa, enquanto aquele que está embaixo se eleva, até os dois se
vido nesta técnica e a siga, pondo-se a operar em relação a um encontrarem e se fundirem num mesmo circuito. Conforme se
centro proporcionado ao seu grau evolutivo, constituído neste pode ver de tudo isso, a importância do fenômeno reside sobre-
caso por uma fonte espiritual situada acima do plano humano. tudo no seu aspecto evolutivo, e não tanto no telepático, sendo
Forma-se um elo de relações, num tipo de acasalamento en- este somente um meio para alcançar o fim maior da vida: a evo-
tre o elemento periférico e o central, com funções recíprocas e lução, que é, neste caso, realizada pelo elemento humano coo-
integradas. Não podemos aqui aprofundar o estudo desta técni- perador. Trata-se, de fato, como referimos acima, de uma apro-
ca, que, neste momento, observamos só para explicar o caso ximação entre dois níveis evolutivos diferentes, para estabele-
tomado em exame. Tudo isso sucede de forma espontânea e au- cer uma comunicação que se resolva num curso de espirituali-
tomática, em obediência a determinadas leis. Querer violá-las, dade, cuja inevitável tendência é fazer a parte inferior subir.
falsificando e usurpando posições não correspondentes à verda- 3) A Obra, que é o terceiro termo, resultante da fusão dos
deira natureza do indivíduo que as ocupa, é loucura cuja reali- dois elementos anteriores em um mesmo circuito. Trata-se da
zação somente a inconsciência do involuído pode julgar possí- criatura espiritual gerada pela união espiritual, o filho dela nas-
vel. Tal acasalamento é tanto mais livre e consciente, quanto cido, ao qual o primeiro termo deu a alma e o segundo o corpo,
mais evolutivamente se sobe. Nos planos superiores, ele se al- revestindo-o de uma forma no plano sensório humano.
cança por consentimento recíproco, implicando depois a obser- Podemos ver que, neste caso, o processo da gênese tam-
vância dos compromissos que cada um tomou em relação ao bém é trino, tal como o modelo da criação universal, no qual
outro, conforme a própria natureza e posição, assim como fa- temos os seguintes termos: 1) O pensamento criador, que for-
zem o pai e a mãe em relação à parte que respeita a cada um no nece a centelha iniciadora; 2) A ação realizadora, que gera a
trabalho comum de formar uma família. Tal como neste caso, sua forma; 3) A Obra criada, que resulta da cooperação dos
forma-se então um círculo fechado, baseado na cooperação e dois primeiros elementos.
defendido pelo dever da recíproca fidelidade, sem promiscui- Isto corresponde à natureza trifásica do universo: 1) Espíri-
dade de relações estranhas. Nestas uniões espirituais, tal situa- to; 2) Energia; 3) Matéria; estrutura trina na qual se projeta a
ção de exclusividade é imposta pela necessidade de coordenar o Trindade máxima: 1) Espírito; 2) Pai; 3) Filho.
trabalho comum e de construir um único sistema de forças. Este fato não é de se admirar num universo que funciona
Nos contatos espirituais, tal exclusividade também é ne- por tipos ou modelos fundamentais, repetidos em todas as altu-
cessária, porque a passagem de outra personalidade através da ras e dimensões. Depois destas observações, podemos compre-
que recebe deixa sempre vestígios. Daí a necessidade de uma ender a técnica da gênese de nossa Obra. No seu início, os vo-
fonte pura e bem individualizada, capaz de fechar as portas ao lumes Mensagens Espirituais e A Grande Síntese, representam
ingresso de quaisquer outras entidades desconhecidas, que a primeira manifestação de uma forma de contato na qual o re-
não tenha sido joeiradas e livremente escolhidas. Em suma, a ceptor é em grande parte passivo, enquanto a outra individuali-
casa de nosso espírito não se pode deixar aberta a todos. A dade fala. Mas depois, rapidamente e cada vez mais, nos escri-
posição da mulher é sã e honesta, quando ela se oferece no tos sucessivos, esse receptor se transforma em elemento ativo,
matrimônio para formar uma família, mas não quando intro- abandonando o método receptivo, para assumir o papel de co-
duz na sua intimidade qualquer macho que queira dispor dela. laborador que capta e interpreta. No momento em que, desapa-
Nesta condição, a casa se torna uma estrada suja, pela qual to- recida a sua forma mediúnica passiva, o fenômeno passou a se
dos passam, tornando-se impossível ela ser habitada. Então, o desenvolver na sua plenitude, cumprindo assim a sua função
contato é provisório e estéril, de modo que dele não nasce coi- fundamental, ele deixou de interessar ao espiritismo, porque fo-
sa alguma, a não ser um fugaz prazer, não se chegando a ne- ram ultrapassados os seus limites formais.
nhuma construção espiritual como fruto da união. Uma vez Este processo de comunicação foi preparado por duas pro-
que não se forma o sistema centro-periférico, tudo se dispersa vas no período que vai dos 25 aos 45 anos do autor. Superada
sem fecundação nem criação. A vida repudia esses namoros esta fase de maturação, despedaçou-se o diafragma que dividia
vazios, que não servem para os seus fins. Desse trabalho, na os dois termos, estabelecendo-se com as “Mensagens” o pri-
verdade, não nasce um fruto orgânico, mas apenas detritos de meiro contato. Neste instante, rompendo toda a ligação com o
pensamento, como células espalhadas, não se gerando um fi- mundo, aparece o voto de pobreza, necessário para que aquele
lho completo, feito para crescer e viver. contato pudesse fixar-se com estabilidade. Vê-se logo a impor-
Eram necessárias essas premissas para compreender o nosso tância desta decisiva tomada de posição perante todo o desen-
caso. Podemos assim entender como o fenômeno se produz pe- volvimento do fenômeno. Em consequência desta sua primeira
la conjunção de três elementos. Então a Obra resulta constituída fase, como foi mencionado no final do Cap. I deste volume, foi
pela fusão dos seguintes termos: traçado, na primavera de 1932, o plano de trabalho do qual de-
1) A fonte de pensamento – fonte inspirativa ou centro irra- pois nasceu a Obra. Naquela ocasião, foi livremente fixado um
diante – que, constituindo o ponto de origem do fenômeno, co- compromisso de ambos os lados, com um pacto de fidelidade
mo o elemento positivo, ativo, dinamizante e fecundador, inicia recíproca. O centro irradiante, se bem que superior, desejava
o movimento, situado no plano espiritual. respeitar totalmente a liberdade do instrumento, apenas ofere-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 87
cendo, e não impondo, o referido trabalho, condicionando-o a que foi gerada, encerra-se toda a atividade genética. Uma vez
uma espontânea aceitação. (Grandes Mensagens - vol. 1). tendo ela dito aquilo que devia dizer, é natural que se emude-
A gestação da Obra durou quase quarenta anos, e o feto se ça. Seria absurdo voltar a falar em lugar e época diferentes, de-
formou e nasceu. É neste momento que queremos nos orientar sordenadamente, pela boca de incompetentes, estranhos ao fe-
aqui, para compreender o que sucedeu. Tudo foi previsto há nômeno, contradizendo os princípios de harmonia e organici-
muito tempo, quando parecia impossível a sua realização, e se dade observados tão rigidamente em toda a Obra.
cumpriu segundo um processo lógico, desenvolvendo-se har- Com isso, esclarecemos as posições da fonte inspirativa e
monicamente, com proporções de períodos de tempo e de do seu instrumento humano, os dois elementos de geração do
meios adaptados ao fim, de modo que não se pode deixar de trabalho. Falta agora, no momento de conclusão da Obra, esta-
reconhecer, escondida na profundidade do fenômeno, a pre- belecer qual é na Terra a situação deste fruto, que, tendo nas-
sença de uma inteligência diretora. E a constatação da exis- cido da fusão entre os dois, constitui o terceiro termo, cuja gê-
tência de um plano preposto à sua execução, o qual se desen- nese agora se completa. Cessa o trabalho inspirativo, e os dois
volveu depois com regularidade, é confirmada pela observa- primeiros componentes desaparecem da cena. Resta somente o
ção agora, já depois dos fatos consumados, de toda a arquite- seu produto no ambiente terrestre. Entra em ação agora um
tura do fenômeno, concebido e depois realizado em forma de novo fator: o mundo, que é por sua vez ativo em outra direção,
ritmo musical, de modo que a verificação desses fatos nos im- aquela contra a qual, tão energicamente, Cristo se declarou. De
põe chegar a tão surpreendentes conclusões. agora em diante, a execução do trabalho não depende mais dos
Tal compreensão do fenômeno, através da visão do seu pas- três termos: fonte, instrumento e Obra, mas se compõe apenas
sado, é importante, porque nos leva ao conhecimento do signi- de dois: a Obra e o mundo.
ficado da Obra, bem como da sua posição atual e seus prová- Observemos o que acontece. Explicamos no citado volume
veis desenvolvimentos. O processo que vemos aqui em ação é anterior o fenômeno da descida dos ideais. Estes representam
um caso particular da descida dos ideais à Terra, o qual estu- novas perspectivas biológicas, antecipações de evolução, tenta-
damos no volume anterior, que tem por título este fenômeno. tivas de realizações futuras, lançadas à frente, para explorar o
Com a técnica aqui examinada neste caso, uma ideia de um desconhecido e preparar o ingresso da vida em mais altos pla-
plano superior desceu ao mundo, formalizando-se numa Obra nos de evolução. Trata-se de projetos de tipos de existência
escrita. Mesmo estando no estado de pensamento apenas es- mais adiantada, descidos daqueles planos, como sucedeu para
crito, e não vivido, ela já é uma criatura completa, constituindo cada verdade revelada. O nosso mundo vive em outro nível, si-
um organismo que funciona, move-se, vive e quer viver, sendo tuado embaixo e regulado por leis mais vizinhas da animalida-
esta a razão pela qual nasceu para continuar a existir no mundo. de. No referido volume, observamos como o mundo reage con-
A Obra é de tipo crístico, evangélico, tal como a fonte da qual tra estes impulsos ascensionais, seja rebelando-se abertamente
ela deriva, mesmo tendo de ser depois revestida por uma forma contra eles, seja torcendo-os, para adaptá-los às suas próprias
racional e científica, para poder ser aceita no mundo. Esta cria- comodidades. Então o ideal, ao descer à Terra, encontra-se su-
tura, nascida assim, tem agora uma personalidade bem definida bitamente perante um inimigo que, em vez de aceitá-lo, procura
e, conforme sua natureza, começa a sua peregrinação na Terra. destruí-lo ou explorá-lo. Isto porque esse mesmo ideal exige
Deste fato resultam algumas consequências. um fatigante esforço ascensional, que o involuído não tem ne-
Trata-se de um sistema conceitual, amplamente explicado nhuma vontade de realizar. Daí o ideal ser assediado como um
nos seus detalhes, até às suas últimas conclusões. Conforme se inimigo, porquanto ele também nega as leis daquele nível infe-
depreende disto, não há necessidade de interpretações que lhe rior de vida, propondo-se a substituí-lo. Os objetivos são opos-
alterem o sentido, para adaptá-lo aos interesses de um grupo, tos. O ideal quer, à custa de sacrifícios, a evolução em direção
seja ele qual for, como se costuma fazer em nosso mundo. A ao espírito; o mundo deseja, para satisfazer os seus próprios in-
Obra se estendeu até à sua atual amplitude, precisamente para teresses e prazeres, ficar onde está. Assim, a primeira coisa que
que pudesse também conter toda a sua interpretação. a Obra encontra na Terra é o choque com o mundo. Neste mo-
A técnica da gênese da Obra nos mostra que ela é completa mento, o fenômeno que vimos até agora desenvolver-se de de-
nos seus limites estabelecidos, porquanto, uma vez tendo che- terminada forma toma outra, tornando-se luta entre o ideal e o
gado à sua última palavra, ela se fecha, o fenômeno da comu- mundo, que são agora os seus dois elementos constitutivos.
nicação telepática se detém, a fonte inspirativa emudece e, No fundo, trata-se do mesmo processo anterior, que conti-
tendo o seu canal exaurido a sua tarefa, a transmissão se inter- nua, pois agora a Obra, na sua forma escrita, toma o lugar da
rompe, calando-se definitivamente. A criatura nasceu e, agora, fonte inspirativa, da qual contém fixado em si o pensamento,
é um ser vivo, a cujo organismo não se pode mais acrescentar enquanto a humanidade receptora assume o lugar do instrumen-
modificações. Ele é defendido pelas forças do Alto, que reagi- to registrador. Assim como acontecia no caso precedente, entre
rão contra qualquer atentado em tal sentido. A responsabilida- a fonte de pensamento e a Obra, também ocorre agora entre es-
de e as consequências recairão sobre quem perpetrar tal ato. ta, que funciona como elemento fecundador, e a humanidade,
Com o término da Obra, o instrumento humano esgota toda a que é o termo fecundado. Tal como no caso anterior, ambos de-
sua função. Não há, portanto, nada a modificar, acrescentar ou vem combinar-se, porém, desta vez, o objetivo não é elevar um
retirar àquilo que já foi escrito e que, como tal, permanece. O indivíduo e produzir uma Obra, e sim oferecer uma contribui-
caminho daquele instrumento o leva agora, fatalmente, para ção para arrastar o ser humano ao Alto e criar um mundo mais
longe da Terra, onde, por mais de oitenta anos, ele sofreu e adiantado. O resultado da primeira fase do processo foi a Obra,
trabalhou bastante. É lógico que ele se dirija para o outro ter- enquanto o da segunda será um novo tipo de vida, mais civili-
mo, com o qual se ligou, agora já definitivamente. Segue-se zada. Há, contudo, uma diferença: apesar de, neste caso, a ofer-
daí que qualquer tentativa de contato por via mediúnica será ta respeitar a liberdade do receptor, tal como aconteceu por par-
inútil, pois toda comunicação obtida desse modo será ilusão, te da fonte inspirativa perante o seu instrumento – estando o
constituindo um desabafo incontrolado do subconsciente do mundo, portanto, livre para aceitá-la ou não – esta espontanei-
médium, mesmo o sendo de boa-fé. Dizemos isto claramente dade de adesão não existe por parte deste, de modo que o fe-
neste livro, para que fique escrito, a fim de evitar qualquer nômeno toma, ao contrário, a forma de choque e de luta. É na-
equívoco. Dado que o exato escopo de todo o processo foi a tural que, de modo diferente do caso precedente da criação da
criação da Obra, então, uma vez alcançado este, é lógico que o Obra, tal descida encontre resistências bem maiores, porque
fenômeno deva se fechar, assim como, quando nasce a criatura agora o Alto deve descer até se enxertar na matéria. Assim, a
88 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
primeira fonte deve não apenas revestir-se, como no caso da não educando-o e convidando-o a evoluir, porque nisso consiste
Obra, de uma forma de pensamento, mas também tomar corpo o seu verdadeiro bem. Entretanto o involuído o entende ao con-
no plano concreto da vida humana, tendo de penetrar nela, para trário. Ele, de fato, não quer ser educado, a fim de subir em seu
vivificá-la com um novo sopro espiritual. próprio benefício, preferindo dominar o evoluído, para colocá-
Se estas resistências terrenas, devidas à maior profundidade lo a serviço da sua involução. Então, as relações entre os dois
de desnível a superar na descida, representam o aspecto nega- não podem ser senão de luta, sem possibilidade de compreen-
tivo do fenômeno, há nele, todavia, também a parte positiva, são e colaboração, tendendo à violência. Neste caso, há duas al-
constituída pela filiação de todo o processo a partir do seu ternativas: 1) Ou o evoluído desce ao mesmo nível do involuído
primeiro elemento genético – o centro irradiante e o ponto de e põe-se a travar a luta terrena, até que um dos dois submeta o
origem, como já dissemos – que, dotado de natureza positivo- outro; 2) Ou o evoluído não se rebaixa a fazer isso, ensinando
ativa (dinamizadora, fecundadora e iniciadora do movimento), com a palavra e com o exemplo, deixando-se depois, para não
está situado num plano espiritual mais elevado e, portanto, entrar em luta com o involuído, ser eliminado, para ir viver no
mais potente do que os níveis evolutivos inferiores, os quais céu. Este último é o caso de Cristo, que rejeitou o reino terreno
não podem deixar de lhe ficar sujeitos. oferecido a Ele pelos hebreus, aceitando ser rei apenas nos do-
Ora, esta positividade é uma das características fundamentais mínios de Deus. O outro caso, no sentido oposto, refere-se a
da Obra, constituindo a sua força no ambiente humano, que se quem entra em luta no plano terreno, procurando utilizar o ideal
mostra negativo em relação a ela. De fato, ela existe apenas co- para satisfazer os seus próprios interesses. Para isso, é usado o
mo afirmação, sem luta e agressividade. O mundo, pelo contrá- método mais fácil, que é o da hipocrisia, explorando a boa-fé
rio, existe como revolta, feita de embate e violência. A primeira dos honestos. O involuído se veste de evoluído e, mascarado,
é simplesmente construtiva, sem impulsos negativos. O segundo trava a luta do involuído. É assim que na Terra se usa o ideal
é destrutivo, impregnado de negatividade. A primeira se mani- pelo avesso. O sacrifício para se elevar é transformado em hi-
festa na forma de oferta, como uma dádiva gratuita, que respeita pocrisia para explorar. Quisemos esclarecer estes pontos, para
a liberdade do próximo. O segundo, na sua posição de receptor, mostrar o que espera a Obra no seu primeiro contato com o
rebela-se para não aceitá-la, tentando sujeitar e explorar a doa- mundo e o que ela terá de enfrentar para descer e se realizar.
ção. Assim como o fato de ser mais evoluído significa estar mais Mas, antes de observar estas suas novas vicissitudes, para me-
próximo do S, que é positivo, e portanto possuir maior dose de lhor lhe compreender o significado, focalizemos outros aspec-
positividade, também o fato de ser mais involuído quer dizer, ao tos do fenômeno, analisando a natureza e os movimentos das
contrário, estar mais próximo do AS, que é negativo, e portanto forças que encontramos em ação neste caso.
conter maior grau de negatividade. Tudo isso está escrito nas Falamos acima de positividade da Obra. Ela, sendo sobretu-
leis da vida. Assim cada coisa, não obstante todas as resistên- do afirmativa, diz: “Os fenômenos funcionam de tal modo; ob-
cias, só pode terminar por se colocar no seu respectivo lugar, servem-nos; isto corresponde à realidade; eis aí as provas”. Esta
conforme a sua natureza e o seu real valor, porquanto este é o positividade coloca a Obra em uma posição central, porque, da-
fator determinante da função que ela deve realizar na fenomeno- da a sua natureza e qualidade, esta é a situação que a espera, e
logia universal e da sua relativa posição dentro desta. não poderia ser outra. A sua natureza lhe advém da fonte que a
Para quem compreende e aceita esta realidade, não faz sen- gerou, sendo estabelecida pelas virtudes do seu centro irradian-
tido falar de superioridade ou inferioridade. Tal valorização dos te, que vimos ser positivo, ativo, dinamizante, fecundador e ini-
referidos conceitos em sentido humano somente pode aparecer ciador de todo o processo. Estes atributos se tornaram assim ca-
num plano onde funciona a forma mental de luta, violência e racterísticas da Obra, sendo eles que lhe conferem e automati-
orgulho para vencer, ideias que não têm mais sentido, tão logo camente a fazem assumir uma posição central.
este nível seja superado. A Obra está fora disso. Por este moti- Até agora, não tinha sido possível ela se definir, porque tudo
vo ela se apresenta apenas como afirmação de verdades, e não isso não tinha aparecido, dado que a Obra ainda não tinha nasci-
como agressão para demolir outros sistemas. Se há debates, isto do. Na fase de gestação, ela necessitava de paz e silêncio, por-
é apenas para oferecer melhoramentos, e não para mostrar uma que o trabalho era interior e profundo, devendo ser protegido de
superioridade terrena qualquer. Em nossos livros, usamos fre- intromissões por parte de estranhos, inconscientes a seu respeito.
quentemente as palavras evoluído e involuído. Seja qual for o Era necessário que apenas poucos a compreendessem, para que
modo pelo qual o leitor as queira entender, elas não são usadas muitos, sendo desviados para outras miragens, não perturbassem
com nenhum sentido de orgulhosa superioridade dominante ou com seus instintos agressivos. Assim protegido, o instrumento
de humilhante inferioridade subordinada. De fato, todas as po- pôde trabalhar, e a Obra, permanecendo no terreno teórico e ide-
sições são relativas, de modo que, ao longo da escala da evolu- al, como simples exposição, que não toca em interesses concre-
ção, não há quem não tenha um seu superior e um seu inferior. tos, deixou a maioria indiferente, sendo julgada por esta apenas
Além disso, quanto mais se sobe, tanto mais se afirma o amor, como inócuo exercício filosófico. Este mal-entendido foi uma
que, sendo o princípio da unificação, qualidade do S, faz a su- defesa necessária no período de formação da nova criatura.
perioridade consistir num dever de ajuda em relação aos inferi- Aconteceu, no entanto, que esses conceitos chegaram de-
ores. Infelizmente, porém, quanto mais se desce, tanto mais pois a formar um corpo em uma Obra completa, a qual, por ter
domina o egoísmo e a rivalidade, que, correspondendo ao prin- assim tomado configuração, tornou-se visível na Terra, sobre-
cípio separatista, qualidade do AS, fazem a superioridade ser tudo por ingressar na sua fase de realização. Nesse momento,
conceituada como domínio que subordina e esmaga os inferio- ficando perceptível como um novo impulso em ação, buscando
res. Assim se explica por que, em nosso mundo, pode nascer a penetrar no terreno humano, era natural que este, bem como as
ideia de que à distinção entre evoluído e involuído corresponda outras forças presentes neste campo, fossem induzidos a tomar
um sentido de orgulhosa superioridade. a posição correspondente, conforme sua própria natureza. Isto
Estas observações nos mostram quais os tipos de forças que porque, daquele momento em diante, os conceitos da Obra não
entram em luta no fenômeno da descida dos ideais à Terra, do eram mais apenas afirmação teórica, mas se tornaram forças em
qual a Obra, cujas vicissitudes estamos estudando, não é senão ação, perante as quais surge a necessidade de se definir atitu-
um caso. O que sucede quando, nesta descida, o evoluído entra des. Entre as forças da Obra e as do ambiente, nasce o choque
em contato com o involuído? Como vimos no caso da oferta, o para decidir se elas devem repelir-se, para se afastarem, ou che-
elemento superior é levado, pela sua natureza, a se colocar a gar a uma coordenação de movimentos, para se disciplinarem
serviço do inferior, mas não tem outra forma para fazer isto, se- reciprocamente, uma em função da outra. De fato, quando estes
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 89
impulsos surgem, cada um dos outros reage a seu modo, de Esses movimentos, no início, são desordenados, como suce-
modo que uns se rebelam contra o intruso, enquanto outros de na fase caótica da primeira formação de qualquer sistema de
concordam com ele, sentindo-se atraídos. No primeiro caso, a forças, até que se disciplinem, fixando-se em órbitas exatas e
centralidade da Obra manifesta-se com efeitos negativos; no construindo-se em forma orgânica. A ideia é livre, mas a maté-
segundo, com resultados positivos. Neste último, em vez de ria é prisioneira. E quando a ideia desce à matéria, deve enqua-
causar dispersão, ela unifica, porque leva os outros elementos a drar-se dentro das normas impostas pela Lei. O dever de obede-
se aproximarem dela. Sucede então que eles são incluídos no cer a ela, quanto mais se sobe para o S, tanto mais é confiado à
seu campo de ação, dispondo-se nele numa posição periférica consciência do ser. Porém, quanto mais se desce para o AS,
em relação ao centro em torno do qual começam a girar. tanto mais tal obediência constitui coerção determinística. Isto
Como se vê, tudo se desenvolve, desde o primeira fase de porque os elementos do S são criaturas conscientes da ordem,
todo o processo, por concatenação lógica, estabelecida pela obedecendo espontaneamente à Lei, enquanto os do AS são se-
sua origem inspirativa, da qual depois tudo derivou. É essa res inconscientes na revolta, rebeldes à Lei. Esse estado de co-
fundamental qualidade da Obra que fixa esta sua centralidade, erção é devido somente ao desejo de revolta do ser. Uma vez
com todas as suas consequências. Desta sua primeira tomada afastada esta, tal estado não tem mais razão de existir. Quando
de posição ela vai depois descendo, por graus, até à atual con- um cidadão é consciente dos seus deveres e espontaneamente
dição, na qual as relações entre o centro e os outros elementos os cumpre, não há mais motivo para que eles sejam impostos
podem ser de dois tipos: por coação policialesca. Dado o seu tipo, as forças que consti-
a) Se os elementos do ambiente já tem uma natureza central, tuem o fenômeno não podem alcançar outras posições.
então são levados a resistir contra este novo impulso rival. As- Vivemos num universo onde o movimento de cada força,
sim, ou travam uma luta para tentar submeter e absorver o novo tanto no plano físico como no espiritual, é regulado por leis,
elemento como subordinado na própria órbita, ou, caso não sendo utilizado para cumprir a sua própria função, que é a mais
consigam isto, procuram destruí-lo, paralisá-lo ou repeli-lo. adaptada a ele. Assim, cada elemento tende a realizar os movi-
b) Se os elementos do ambiente são de natureza periférica, mentos necessários, a fim de se colocar no posto que, segundo
então são atraídos e levados a se introduzirem em situação su- as suas qualidades, corresponde a ele no organismo universal.
bordinada na órbita do novo centro, para girar ao seu redor e Então, ai de nós quando surge inimizade entre centro e perife-
formar com ele um sistema de forças do tipo supracitado, como ria, entre sol e planetas, com os elementos dependentes se sen-
sol-planetas, núcleo-elétrons, macho-fêmea, governo-povo etc. tindo traídos por um chefe que não cumpre mais a sua atividade
Tudo isso ocorre conforme um modelo único, que vemos repe- vital a favor deles, justamente a tarefa que lhe compete executar
tido em todos os campos. Esta disposição em sistema circular como centro do sistema. Quando um chefe deixa de exercer as
centro-periférico, de acordo com o sinal positivo ou negativo de suas atribuições para o bem do seu povo, este se rebela e o li-
cada um, assumindo um movimento rotatório, constitui uma lei quida. Cai o liame que mantém unido o sistema e este se des-
geral, pela qual cada elemento, consoante a sua natureza, de sol faz. Cada posição permanece estável e pode resistir somente
ou planeta, automaticamente se coloca na única atitude que lhe enquanto representa o cumprimento de uma função. Isto acon-
é adaptada: ou central ou periférica. teceu com a Revolução Francesa e ocorre todas as vezes que a
Tudo isso acontece sem que os executantes sejam conscien- classe dominante vive à custa do país. A mesma coisa sucedeu
tes destes seus movimentos e lhes compreendam o significado. no fim da última guerra, quando as nações vencidas se rebela-
E não pode ser de outro modo, porque esta é a lei do fenômeno, ram contra os seus chefes, para se libertarem de centros de sis-
de modo que eles ou se fundem em um sistema rotatório, se os temas que, com a derrota, haviam-se transformado de positivos
sinais são opostos, ou se repelem, se os elementos são do mes- em negativos. Fizemos estas alusões em campos afins, para
mo sinal. Isto, de fato, foi o que se verificou com a Obra nos mostrar que as leis às quais a Obra está sujeita são universais,
seus primeiros contatos com os outros centros de sistemas que não se limitando somente a este caso particular.
ela encontrou no seu caminho. Com eles ocorreu logo o cho-
que. Isto prova que a Obra é centro, sendo esta posição estabe- XV. O CALVÁRIO DE UM IDEALISTA
lecida pela sua natureza. Foi assim que o catolicismo, porque
mais forte, armado da sua autoridade, súbita e definitivamente Nestas pesquisas, permanecemos no terreno positivo. A
liquidou a Obra, repelindo-a com a condenação ao Índex. Por evolução é um fato aceito, sendo uma verdade amplamente
sua vez, o espiritismo brasileiro procurou introduzi-la na sua demonstrada que o seu desenvolvimento caminha em direção à
órbita, aceitando-a como satélite e procurando absorvê-la como espiritualidade. O conceito de evolução implica na ideia de vá-
uma contribuição. Porém depois, quando alguns se deram conta rios planos biológicos e na possibilidade da existência de seres
do perigo de acabar assumindo uma posição de satélite ou, pelo mais ou menos adiantados, situados nesses níveis. É lógico
menos, de que parte dos seus planetas abandonassem a velha que, quanto mais se sobe, tanto mais eles se tornam seres pen-
órbita para aderirem à nova, eles também rejeitaram toda a santes e tanto mais o seu conhecimento aumenta, em propor-
oferta de colaboração. É exatamente esta reação de repulsão, ção ao seu grau de evolução.
esta recusa de aproximação por parte de outros centros, a maior Em nosso ambiente terrestre, é conhecida a telepatia. Não
prova de que a Obra centraliza uma ideia, constituindo um ter- há razão para que tal fenômeno de transmissão do pensamento
mo que não pode, por sua natureza, assumir posição de com- não se deva verificar também fora do restrito campo terreno, no
plementaridade perante outras ideias. qual o vemos funcionar. Não se pode negar “a priori” a possibi-
Isto é provado também por outro fato em sentido oposto, lidade de uma comunicação telepática entre seres pensantes si-
pois a Obra já está funcionando como centro, na medida em tuados em diversos planos de evolução.
que tem atraído vários elementos de tipo periférico, os quais se Tal hipótese é corroborada pelo fato de tal processo se de-
puseram a girar à sua volta. Com isso ela manifesta que a sua monstrar útil aos fins da evolução, que, através dele, aproveita-
natureza é de tipo positivo. De fato, ela é viva e dinâmica, cheia ria a inteligência e o conhecimento conquistados pelos mais
de pensamentos e de germes fecundadores; toca à mente e ao avançados, colocando-os, com a finalidade de ensinamento e
coração; agita, sacode e atrai. Não se consegue sepultá-la no si- como guia de orientação, no nível e à disposição dos menos
lêncio. É necessário reagir de algum modo e tomar posição, re- avançados. Outra confirmação encontramos na Terra, onde é
pelindo-a ou aceitando-a, não se podendo ficar indiferente. Dis- conhecido e historicamente tem funcionado o fenômeno da in-
to se pode deduzir qual seja o seu destino. tuição e da inspiração profética, das quais derivou a revelação,
90 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
sendo um acontecimento espiritual de tal importância, que xou-se assim de observar o fenômeno principal, cuja natureza é
constitui as bases das nossas religiões, nas quais é Deus quem espiritual, e deu-se mais atenção ao seu componente menos im-
fala. Quando se diz que estas vozes descem do Alto, entende-se portante, em detrimento do fenômeno em si, atribuindo-se à
que provêm de seres situados em planos superiores de existên- parte observada de sua manifestação somente as características
cia, de pleno acordo com a teoria da evolução. Este tipo de que eles estão habituados a perceber.
transmissão telepática, que estamos aqui observando a propósi- Trata-se de uma visão sem muita profundidade. Esboçou-se
to da Obra, já existe, portanto, no funcionamento de nosso então o movimento rotatório. Mas ele não foi senão um desor-
mundo espiritual. Assistimos finalmente ao fato de que a ciên- denado amontoar de borboletas em torno da luz, de gente atraí-
cia está utilizando largamente tal sistema de transmissão por da pelo barulho, formando um agrupamento caótico, que não se
radiação, com a televisão, as transmissões de imagens da Lua, o organiza nem se estabiliza num sistema. Uma tal estabilidade
rádio etc. No futuro, a transmissão do pensamento como ener- somente pode verificar-se ao redor de um verdadeiro centro,
gia radiante será um fato verificado positivamente. por parte de elementos que tenham olhos para vê-lo e mente pa-
Do conjunto destas constatações se deduz não ser absurdo ra compreendê-lo. Assim se explica este mal-entendido, que é
pensar que a vida utilize também o meio de transmissão telepá- natural no caso da descida dos ideais, porque se trata do abai-
tica, a fim de realizar dessa forma o fenômeno da evolução, xamento de um nível evolutivo superior até outro inferior. O
para ela importantíssimo, utilizando a técnica da descida dos que está mais embaixo é incapaz de compreender o que se en-
ideais aqui examinada. contra mais acima. Só há um remédio, então, ver a parte espiri-
Foi neste sentido que falamos da Obra-centro, consideran- tual no lugar da material e pôr-se ordenadamente a girar ao re-
do-a uma tentativa para realizar aquela descida de ideais, como dor do verdadeiro centro, no plano espiritual, em vez de o fazer
meio de evolução. Mas, independente de querermos ou não desordenadamente em torno de um pseudocentro, no plano ma-
admitir as suas origens supernormais, permanecerá o fato posi- terial. Isto significa, então, procurar a potência no espírito, e
tivo da existência desta Obra e das soluções que ela oferece pa- não nos meios humanos. Este é o segredo da força.
ra muitos problemas do conhecimento, que eram até agora inso- Da natureza dos elementos do fenômeno deriva outro
lúveis. Este já é um resultado que a torna útil, conforme os fins mal-entendido, dado pela mesma incapacidade de compreen-
aos quais ela se propõe. Aqui desejamos esclarecer que, no der. Assim como alguns puderam ver na afirmação espiritual
conceito de Obra-centro, entendemos como centro apenas o sis- da Obra uma vontade de determinação terrena por parte do
tema conceitual e espiritual, e não, em sentido algum, o instru- seu instrumento, a atual oferta da Obra também pode ser en-
mento terreno que a compilou. Aliás, esta sua posição de nuli- tendida não no sentido de doação espiritual, na qual é ofere-
dade perante o valor da Obra, bem como a sua firme vontade de cida uma ideia para ser assimilada, a fim de melhorar o pró-
não se fazer chefe terreno de nenhum grupo humano e de seus prio tipo biológico, colocando-se evolutivamente mais no al-
interesses, foram declarados muitas vezes (cfr. Vol. Profecias – to, mas sim no sentido material, como uma cessão de propri-
“Gênese da II Obra”), para que não pudessem surgir quaisquer edade e de direitos de exploração de uma ideia, para extrair-
dúvidas a este respeito. Tivemos de insistir neste conceito, por- lhe vantagens materiais e obter assim uma utilidade concreta.
que esta superioridade, toda espiritual e impessoal da Obra, va- No entanto, na conferência, fala-se de herdeiros espirituais e
lorizada sobretudo por ser posta a serviço dos outros, foi muitas de oferta simbólica. Mesmo neste caso, o mal-entendido pode
vezes entendida como uma afirmação de supremacia humana ser total, dependendo igualmente da diversa forma mental
individual por parte do instrumento. Assim, ele foi condenado usada na maneira de julgar. Dada a natureza dos elementos
por alguns, os quais deram prova, com isso, de não ter compre- em campo, não podia acontecer de outra forma. Aqui, não
endido coisa alguma do que estava efetivamente acontecendo. podemos senão fazer as constatações necessárias para com-
Infelizmente, cada um não tem outro meio para julgar senão preender o desenvolvimento do fenômeno e vivê-lo segundo
a forma mental que possui, conforme o seu nível evolutivo, sua orientação, conhecendo-lhe o funcionamento e podendo,
sendo bastante difícil sair dela. Para quem pensa de certa ma- deste modo, prever os seus futuros desenvolvimentos. Pode-
neira, é natural ver tudo com a sua ótica, mesmo que isto não se, neste caso, controlar experimentalmente o modo pelo qual
corresponda de fato à realidade. O que vemos não depende so- se verifica o fenômeno da descida dos ideais.
mente do objeto observado, mas também dos olhos que usamos Estamos no momento em que o foguete desce em direção à
para observá-lo. Em nosso caso existe um centro de tipo espiri- Terra, entra na atmosfera e se incendeia. Encontramo-nos na úl-
tual, formando um campo de forças ao redor do qual se puse- tima fase do fenômeno, no plano humano, onde se trava a luta
ram a girar elementos de sinal oposto. Mas os olhos comuns pela sucessão. Então, não há mais Cristo, mas sim o papado e o
não veem as coisas espirituais, senão enquanto revestidas de Vaticano, que lutam para conquistar e manter o poder; não exis-
uma forma material. Tal forma, no caso em questão, era repre- te mais o santo, mas sim a ordem religiosa, que em Seu nome
sentada pelo instrumento humano daquele centro. Então o tro- administra a vida de uma comunidade. Ao iniciador se substitui
caram pelo centro, quando este era tão-somente a Obra. Con- o grupo dos seguidores, que o utilizam para os seus próprios
fundindo-o com a ideia, começaram a circular em volta dele, fins. Termina o trabalho no plano espiritual e, em seu lugar,
como se ele, e não a ideia, fosse o centro, acreditando que a aparece a administração e a burocracia, entrando-se na fase da
veste fosse a pessoa, o tradutor fosse o autor, o meio de expres- autoridade, das leis, dos regulamentos e da adaptação à realida-
são constituísse o conceito expresso. Tínhamos assim uma situ- de material. A ideia se materializa de forma concreta, com tem-
ação completamente invertida. Outra coisa, porém, os elemen- plos, obras, instituições etc., pois, agora que desceu à Terra, ela
tos periféricos não podiam fazer, porque não tinham olhos para deve tomar um corpo, tal como faz a alma em nosso organismo
ver a ideia, mas somente a sua forma. animal. Começa a exploração e a degradação, até que a ideia,
Aconteceu então que o ponto em volta do qual se movimen- tendo consumida a pureza do seu impulso de origem, devido ao
taram não era um centro, mas sim o pseudocentro. Como cida- constante uso, corrompe-se e torna-se inutilizável pela série das
dãos do AS, não podiam ver as coisas senão pelo avesso, de adaptações que a torceram, ficando agora sepultada sob as su-
modo que procuraram inverter o centro espiritual, concebendo- perestruturas humanas. Neste momento, desce ao mundo outra
o como matéria, conforme a sua forma mental. Atribuíram-lhe ideia, para recomeçar desde o princípio, percorrendo o mesmo
as características do plano humano, como egoísmo, avidez de caminho e cumprindo a mesma função, num processo que se
domínio e outras semelhantes. Eis a que erros se pode chegar, repete em ondas sucessivas, operando na humanidade uma
julgando as coisas do espírito com a psicologia corrente. Dei- transformação em sentido evolutivo.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 91
Esta descida é como a queda de uma estrela luminosa que se ço, abandona-se confiante nos braços do próximo. Encontrará,
projeta nas águas do oceano. O momento que observamos aqui então, uma fileira de salvadores e libertadores, que lhe retri-
corresponde a essa queda. À ideia se substitui o grupo que a re- buirão o abraço fraternal e amorosamente o espoliarão de tu-
presenta. Ela passa a ser o grupo, que a incorpora e se torna o do. A primeira coisa de que um ideal necessita ao descer à
seu corpo humano. Esta é a primeira fase de sua realização na Terra é a sua defesa contra os assaltos da força e da mentira,
Terra, correspondendo àquela na qual nos encontramos agora, armando-se com a jaula da disciplina, dentro da qual deve en-
no caso tomado em exame. Estamos no mundo, no polo oposto quadrar direitos e deveres. O anjo, se quiser sobreviver em
ao ideal. Encontramo-nos embaixo, onde reinam a revolta e a nosso mundo e nele trabalhar, deve induzir o homem a um re-
desordem, e não a obediência e a ordem. Assim a primeira ne- gime de ordem, usando os meios adaptados à sua compreen-
cessidade que surge, ao se descer a este plano, é formar e defen- são, que são os da Terra, e não os do céu.
der um centro de disciplina e de ordem. Para que seja possível Apliquemos agora esses princípios gerais ao caso particular
um regime de liberdade, é necessário o estado de consciência e de nosso protagonista. Hoje, o autor terreno da Obra está velho,
coordenação próprios de níveis mais evoluídos. Num ambiente terminando a sua missão, após o que vai-se embora. Ofereceu
de insubordinação egocêntrica, a liberdade é anarquia, condu- ao mundo o fruto do seu trabalho. A Obra, por sua vez, encon-
zindo à dispersão e à destruição. Em nosso planeta, dada a sua tra-se em uma nova fase do seu caminho, diferente das prece-
natureza, surge prontamente a necessidade de impor a ordem dentes, na qual o ideal desce à Terra e toma contato com um
com uma regra. É por isso que a cada passo encontramos leis plano diverso do seu. Mas, pela própria natureza do mundo, não
que traçam as normas de conduta e se fazem valer por meio de se estranha que a oferta possa vir a ser entendida como um
sanções punitivas. Tendo em vista que o homem é naturalmente convite a se tomar posse dela, no sentido de uma simples aqui-
rebelde, sendo levado a abusar de tudo, é preciso em primeiro sição em sentido material, e não espiritual, podendo despertar
lugar enquadrá-lo dentro dos limites exigidos pela ordem. Eis uma cupidez bem terrena, como acontece quando surge uma
que, ao lado da lei, surge, imediatamente, o seu sistema defensi- herança ou um lugar se torna vago, abrindo a sucessão ao po-
vo, que impede as evasões e lhe garante a aplicação. Infelizmen- der. É necessário definir e disciplinar tudo imediatamente, por-
te, numa selva povoada de animais ferozes, não se pode ir ao que já não estamos no céu, mas sim na Terra, onde o mais ur-
encontro deles de braços abertos, para amá-los, sendo indispen- gente é estabelecer a ordem para evitar abusos.
sável, pelo contrário, estar armado e ameaçá-los de morte, se Quem fez a Obra disse claramente que se tratava de uma
não se quiser ser morto por eles. Esta é a lei de nosso meio, e a oferta simbólica e de herdeiros espirituais, o que significa a dá-
ela o ideal não pode deixar de se sujeitar, se quiser civilizá-lo. diva de uma ideia, e não uma cessão de negócios. Isto é eviden-
A descida de um ideal ao nosso plano inferior de vida cons- te, porque os legítimos herdeiros neste sentido já existem. Este
titui um retrocesso. Esse ideal deve ser fechado dentro dos es- problema já está, portanto, automaticamente, por lei, resolvido.
treitos horizontes de um mundo que nem sequer suspeita a exis- Depois, uma vez que a Obra não é uma mercadoria – e a sua
tência de outros mais vastos, e cuja sapiência consiste em des- oferta foi espiritual – querer colocar o problema no terreno
frutá-lo para fins terrenos, com a astúcia, que dele faz uma econômico e comercial significa, por parte dos que acabaram de
máscara para melhor enganar o próximo, assaltando-o para ser chegar, deslocar a questão. Quando se dedica um livro a al-
o vencedor. É com esta forma mental que o ideal se encontra guém, isto não significa que caiba ao destinatário apossar-se da
constrangido a chocar-se. De fato, ele pretende iluminar e edu- edição, para fazer dela um negócio.
car, mas se acha perante um mundo de rebeldes que lhe resis- Não podíamos deixar de nos encontrar, também neste caso,
tem, porque querem, ao contrário, impor o próprio eu. Eis por- perante a habitual tentativa de emborcamento, explicada aci-
que o ideal, para não se destruir nem ficar prejudicado, deve ma, que se verifica, quando um ideal desce à Terra. No entanto
armar-se de normas reguladoras que imponham a obediência tudo isso foi previsto, e a nossa atitude anterior, diametralmen-
através do meio de que dispõe o homem para melhor compre- te oposta, previu esses fatos. Portanto o que aconteceu hoje
endê-lo. Nasce, assim, o inferno, a galera do espírito, semelhan- não é novidade, tendo sido definido já há muito tempo na
te àquela criada por nós, porque só assim o ideal civilizador Obra, dado que faz parte da sua orientação geral. Desde um
pode sobreviver e funcionar em nosso mundo, onde a tendência dos primeiros volumes da Obra, Ascese Mística (cfr. Cap. XIII
é virá-lo pelo avesso para colocá-lo a seu serviço. – Segunda Parte – “Minha Posição”), já tinham sido expostos
O ideal é um centro. Mas, para poder funcionar como tal em estes princípios diretivos. Quem tiver dúvidas pode reler aque-
relação aos seus satélites, não pode deixar de levar em conta a le trecho. Estávamos então apenas no início de todo o trabalho.
natureza deles, que corresponde a um plano biológico inferior. Depois, o livro foi condenado pelo Índex, tribunal hoje já de-
Para que eles possam colocar-se na órbita daquele centro, é ne- saparecido. Naquele capítulo foi dito: “Nenhuma posse (...),
cessário um estímulo adaptado e proporcionado a eles, para que nada que possa solicitar os baixos instintos e excitar a sempre
possam senti-lo em seu próprio nível. Aquilo que exigem e mais demasiadamente rápida resposta dos inferiores instintos do
apreciam é uma prova de força, porque, para eles, isto é o que homem comum; nenhum cheiro de dinheiro, que tanto atrai os
mais vale e merece respeito. Este é o tipo de superioridade que ávidos e sórdidos mascarados (...). Esta é a minha garantia (...).
eles compreendem, com base não na inteligência ou na bondade, Esta é a minha força em face do mundo”.
mas sim na imposição do domador. Para eles, quem não possui Repetimos estas palavras, em 1955, na introdução ao livro
ou não usa estes meios não é forte, não vale e, portanto, não po- Profecias, acrescentando: “Desejo que se compreenda clara e
de ser centro. Eis como, nas religiões, nasceu a ideia de um inequivocamente o meu método, que é de nunca procurar di-
Deus armado de vingança contra os rebeldes. Não existe outro nheiro, de nunca pedi-lo e de nunca organizar propaganda,
modo para se fazer compreendido por involuídos. Quem não usa comissões etc., para arrecadá-lo. Quem o fizer em meu nome,
tais expedientes, como o indivíduo bom, é um fraco, porque um fará isto sem o meu consentimento, contra a minha vontade e a
tipo bom, não aceitando agir como um forte, para infligir penas seu risco e perigo”. O tema foi retomado na conferência “O
que façam valer a sua vontade, não reage. Então, ele é escarne- Nosso Caminho” (1957), na qual se diz: (...), “devemos fugir
cido, como aconteceu com Cristo, que não quis reagir. da dependência dos bens materiais, porque a sua tendência é
Na Terra, sem uma sanção punitiva, não há poder nem au- conduzir a Obra pela via dos enganos e, assim, da falência (...),
toridade. Para que serve a bondade em nosso mundo de luta, as grandes coisas fazem-se sem dinheiro (...), os meios materi-
senão para nos aproveitarmos dela, a fim de explorar o bem e ais estão colocados no último lugar da Obra (...), começa-se
submetê-lo? Ai do indivíduo que, em um momento de cansa- com uma grande propaganda e faz-se uma campanha para re-
92 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
colher fundos (...), forma-se, assim, uma montanha de interes- ce, tanto mais verificamos que vêm ao nosso encontro as goelas
ses individuais, onde importa tudo, menos a Obra (...), os que devoradoras da voracidade humana. Na Terra, então, não se po-
mais são atraídos pelo cheiro do dinheiro são os desonestos e de dizer à vontade que se ama o próximo. É perigoso amá-lo de
os interesseiros (...). Tudo o que fizemos, foi com o nosso tra- verdade. E quem tentar isso irá fazê-lo com risco e perigo para
balho, sem o barulho da propaganda, campanhas ou recolhi- si, porque a lei aqui é lutar para vencer e dominar. Será possível
mento de fundos”. Por fim desenvolvemos amplamente este que se deva sempre suportar a condenação de viver entrinchei-
tema no volume A Grande Batalha (1958). rado em castelos cercados de egoísmo, armado contra todos? Se-
Pode-se usar um regime de liberdade, quando a disciplina é rá possível que, em nosso mundo, não se pode viver senão na
espontânea consequência de uma convicção de autocontrole. Só amargura das portas fechadas, como em uma prisão?
quando ela já existe interiormente, torna-se desnecessário a im- Eis que no país tão amado por mim, a Obra, na sua meta-
posição externa. Mas, quando a disciplina interna não existe, a de, já foi dilacerada. A marca ficou. E agora, quando ela se
liberdade pode tornar-se abuso e, por isso, aquela disciplina de- conclui, tentou-se novamente despedaçá-la, vestígio este que
ve ser invocada. Então, é necessária a exata definição dos direi- permanecerá nestas páginas. Embora, depois, isto tenha sido
tos e deveres, estabelecendo as respectivas posições. Assim, impedido de se realizar, é triste ver que a oferta haja sido in-
não se pode admitir que elementos estranhos à Obra possam terpretada assim por alguns, vendo ser tratado deste modo a
aproveitar-se da liberdade, para substituir pelas suas próprias coisa que mais se quer e mais se ama na Terra. A nova juven-
finalidades os objetivos da Obra e dos seus legítimos herdeiros. tude já começou a fazer as contas com os métodos da velha
Em primeiro lugar, seria preciso ter confiança nos novos ele- geração, sujeitando-se assim a um novo julgamento. Quantos
mentos, a qual só se adquire, quando se dá prova de merecê-la. pecados o homem mais civilizado do futuro não encontrará no
Os atalhos para se chegar mais rapidamente, sem fadiga, mundo atual, que julga estar procedendo com consciência, de
não constroem coisa alguma. Abusa-se repetidamente, nas reli- acordo com a própria moral? De que forma poderá ser denun-
giões, do método humano de se deslocar a posição do plano es- ciado este tratamento sofrido pelo idealista, julgado culpado
piritual para o plano econômico e político, transformando-a, as- de pretender fazer progredir um pouco os seus semelhantes?
sim, num meio de domínio. É antigo o processo de administrar Compreender-se-á então, em pleno Século XX, por que te-
em nome do dono, para acabar apossando-se da sua autoridade nham havido calvários e cruzes e a razão pela qual isso deixou
e meios. É velha a indústria de glorificar o santo pelas suas vir- a sociedade indiferente, assim como, em outros tempos, os
tudes e martírio, para utilizá-lo depois como bandeira, com a suplícios deixavam apático o meio social de então.
qual se esconde a prosperidade dos interesses de um grupo de Para poder oferecer, teve de ficar reduzido à pobreza; para
seguidores. Trata-se de um fenômeno humano de todos os tem- poder continuar a produzir, teve de pedir esmola, submetendo-se
pos e lugares. É para isto que pode servir o ideal, quando desce à contínua incerteza do amanhã e, ainda assim, realizando um
à Terra. Parece que, num ambiente de luta, não pode acontecer grande trabalho, sem compensação alguma. Depois, ver o fruto
de outra maneira. A culpa está no baixo nível evolutivo de nos- de tudo isso a serviço de outros grupos, que, tendo-o repelido
so meio humano. Esse é ainda o método vigente. Aqui, mesmo anteriormente, por não considerá-lo utilizável, demonstravam
se, por este motivo, tivermos de ir contra a corrente, tendo de agora muito interesse, porquanto, com a oferta, surgira a possi-
lutar, para não seguir tal processo, lutaremos para que isso não bilidade de se apossarem dele. Eis o que pode ser hoje, na Terra,
venha a acontecer com a Obra. Quem quiser levar a sério o que o calvário de um idealista. Para poder publicar a Obra, sem ne-
é do céu não pode deixar de se encontrar fora do trilho sobre o nhum lucro, que seria necessário para viver, tinha primeiro de
qual caminham as coisas da Terra. Mas esta revolta contra o vencer o assalto da cupidez dos editores, depois pedir ajuda por
mundo, que se respira em cada página da Obra, é realmente a compaixão e, no fim, dar-se por feliz com o fato de ter conse-
sua maior força, a força do céu, aquela que a fará vencer. guido publicar a Obra, sem que ela fosse confiscada por aqueles
É nesta fase do fenômeno que se inicia o calvário do idea- grupos e subjugada aos seus interesses. Eis a “via crucis” de
lista. Enquanto fazia o seu trabalho, ele vivia na embriaguez quem luta para construir um mundo melhor. É triste ver que,
que lhe dava o contato com o seu mundo superior, onde se neste mundo, não existem verdades, mas sim interesses, e que
sentia em sua própria casa e podia viver conforme a sua natu- elas valem somente em função destes, sendo sustentadas sobre-
reza. Mas, uma vez terminado o seu trabalho, se não se apres- tudo enquanto podem ser colocadas a serviço do grupo que as
sar a morrer, deverá assistir à degradação do ideal, presenci- proclama. O calvário do idealista consiste em ver o ideal ser in-
ando o seu emborcamento no plano humano, quando apare- vertido, em ver a sua verdadeira finalidade ficar reduzida a um
cem então os mercadores do templo. Este é o ponto no qual a meio para alcançar o objetivo oposto. Eis o anjo lançado de ca-
crucificação de Cristo se torna estado pontífice e a pobreza de beça para baixo no pântano. Ter lutado toda a vida para afirmar
São Francisco se transforma num convento que vale milhões. um ideal, para encontrar apenas indiferença e exploração! Ser
Esta é a técnica do fenômeno da descida dos ideais à Terra. sincero, mas não poder falar de Cristo sem ter de se misturar e
Em geral o idealista já morreu, não sendo obrigado a ver tudo se ver confundido com uma multidão de exploradores que falam
isso. Mas, se não tem essa sorte, ele deve suportar o tormento em seu nome! Oferecer o fruto do próprio tormento criativo e
de ver o fruto da sua vida ser tratado assim e ficar reduzido a vê-lo esmagado! Não encontrar para a própria paixão de ascese
isto. Nos honestos nasce então uma revolta, como a de Cristo, outra resposta senão o cálculo utilitário! Querer trabalhar para o
que perdoou aos seus crucificadores, mas não aos vendilhões templo de Deus e lá encontrar os mercadores! Detestar o dinhei-
do templo. É uma revolta que nasce irresistivelmente ao se ver ro e chocar-se com indivíduos que andam em busca dele! Ver
assim tratadas as coisas sagradas. Cristo enganado a cada passo; o seu sacrifício emborcado, sendo
Quando constatamos esses resultados, depois de tantos so- colocado a serviço de interesses humanos; o seu pensamento
nhos e esperanças, depois de tantos impulsos em direção ao Al- desfigurado; o seu amor dilacerado pelos seus representantes e
to, tentando elevar também os outros, somos invadidos pela tris- seguidores! Eis o tormento do homem espiritual.
teza. Aquilo que havia acontecido, por ocasião da primeira re- Será que é sempre necessário reduzir o ideal a uma religião-
núncia evangélica ao patrimônio terreno, com o voto de pobreza, jaula, na qual os seguidores estejam submetidos à força da dis-
repetia-se agora, nesta segunda doação, referente ao patrimônio ciplina, estabelecida pela psicologia da sua utilidade, através de
espiritual, resultando no mesmo assalto e destruição. É duro es- prêmios, ou do seu dano, por meio de um sistema policial de
tar sempre a oferecer e encontrar todas as vezes o mesmo tipo de sanções? Mas, então, onde está a religião espontânea e consci-
homem, na sua mesma insaciável avidez. Quanto mais se ofere- ente, à qual se possa aderir livre e sinceramente? Pobre espírito,
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 93
reduzido a tão pouco e preso em cadeias! Que prisão é esta! íntima e secreta atividade com a qual a vida costuma operar,
Mas como permitir a liberdade a seres que não têm consciência para gerar as suas formas externas.
da verdade, sendo destituídos do sentido natural de ordem e Assim, quando o idealista, tendo cumprido a sua função, ti-
disciplina? Chegou-se ao ponto de ver o grande amor de Cristo ver morrido e todos os assaltos contra o ideal se esgotarem – os
ficar reduzido e não poder ser aplicado na Terra senão na forma quais, na verdade, são resolvidos em prejuízo somente daqueles
de terror do inferno, com a bondade de Deus sendo transforma- que os lançam, pois os danos recaem sobre eles – parecendo
da num tribunal do qual emanam apenas condenações. Pobre que tudo já está sepultado no passado, então, numa manhã de
Cristo! Por maior que seja a Sua felicidade na glória dos céus, primavera, no momento azado, despontará do segredo da terra
como poderá Ele não se entristecer, ao ver quão pouco o seu um broto, que começara a crescer. Neste instante, a onda do fe-
martírio ajudou e constatar que a sua paixão e sacrifício deixa- nômeno, depois de ter sido obrigada a imergir na Terra, come-
ram escancaradas as portas do inferno, verificando que Deus, çará a subir em direção ao Alto, seguindo a sua natureza ascen-
não obstante a descida do Filho, tenha sido impotente para sional. A positividade do princípio genético que se transfundiu
fechá-las? Para que serve a religião neste mundo, se ela, como na semente tomará a dianteira sobre a negatividade do plano in-
sucede com todas as instituições, é reduzida à arte de escapar ferior ao qual aquele princípio desceu, atuando nele como im-
ao cumprimento de suas leis? pulso de correção, a fim de arrastar consigo para o Alto, e as-
Eis que o exemplo nos vem do caso maior. Como se pode sim os redimir, os elementos de tipo AS que encontrou. Deste
pretender que, num caso muito menor, como é o da Obra, não modo, a semente cresce sempre mais e o ideal cumpre a sua
se repita a mesma lei que regula o fenômeno da descida dos função. A semente, por fim, torna-se árvore e produz os seus
ideais? Esta é a roupagem que eles devem vestir, quando vêm frutos. Realiza-se então todo o fenômeno, sendo alcançada a fi-
ao mundo; este é o tipo de leis a que eles devem sujeitar-se. En- nalidade para a qual ele nasceu; seu desenvolvimento se com-
tão a liberdade deve tornar-se obrigação; a convicção, ser subs- pleta com a realização do plano preestabelecido, segundo o
tituída pelo cálculo; a adesão espontânea, reduzir-se a sistema qual, desde o início, tudo aconteceu.
policialesco; o amor, precipitar-se numa prisão. Mas compre- Vê-se então que caminhou no vazio toda a tentativa de
ende-se que isto seja natural, quando se sabe que, para os ide- destruição do ideal, o qual soube superar todos os obstáculos.
ais, sua descida significa, como já dissemos, um retrocesso a Isto, de resto, é natural que suceda, porquanto é consequência
um plano de vida inferior, uma degradação biológica, o que da sua natureza de tipo S, condição pela qual ele se torna des-
implica eles serem submetidos a um processo de corrupção. tinado a vencer tudo aquilo que é inferior, de tipo AS. O me-
Tudo isso faz parte do fenômeno e envolve também o idealista, canismo da evolução é tão maravilhosamente concebido, que,
que o incorpora e o vive. Nisto constitui o seu sacrifício, neces- apesar dos obstáculos, tudo termina bem. Estes contribuem
sário para que, através dele, a animalidade humana possa entrar para o bom termo, realizando apenas a necessária função de
em contato com algo superior e, assim, progredir. Eis o que resistência. É assim que o mal, em última análise, trabalha a
custa aos mais adiantados a ascensão dos menos avançados; eis serviço do bem. Profunda verdade que Goethe faz Mefistófe-
o preço que o evoluído paga pelo aperfeiçoamento do involuí- les enunciar, quando afirma: “Eu sou o espírito que procura
do. Este é o escopo e o sonho do idealista, e não a glória do sempre o mal, mas que produz o bem”. Isto pode parecer uma
mundo, a qual, tão logo venha a emergir, passa a ser invejada peça que Deus prega em Satanás, mas trata-se, na realidade,
pelos outros, pois julgam que tal indivíduo queira fazer-se che- de um logro que Satanás, dada a sua natureza emborcada, por
fe de um grupo, para se tornar poderoso e comandar. Assim, ele próprio desejada, não pode deixar de pregar em si mesmo.
ainda que ele declare quão absurda seja tal atitude, poucos Não obstante todas as resistências, é a vida que vence a morte;
acreditam, imaginando tratar-se de um artifício para esconder é o espírito que vence a matéria; é o S que, por fim, vence o
suas verdadeiras intenções. Vê-se então quão longe a comum AS. Isto porque só Deus é o senhor de todos os fenômenos,
forma mental está de conceber a vida daquela maneira. conduzindo-os de acordo com a Sua vontade. Ele é o último
Mas deverá tudo parar neste ponto, deixando de se resolver termo que todos devem alcançar, pois tudo é feito para se re-
com uma conclusão mais digna, após tão longo caminho? Não é solver Nele: o supremo e definitivo vencedor de tudo.
possível que a negatividade do ambiente ao qual a semente des-
ceu tenha o poder de vencer a positividade da qual esta é cons- XVI. O MEU CASO PARAPSICOLÓGICO
tituída. A parte reservada ao instrumento, enquanto este assiste
ao desenvolvimento do fenômeno segundo a Lei – cuja vonta- No Capítulo XIV, “Gênese e Significado da Obra”, tínhamos
de, como nos ensina Cristo, é o sacrifício daquele indivíduo – é visto de relance que, na base daquela gênese, encontra-se o fe-
somente uma: o sofrimento! Esta é a sua contribuição. O fenô- nômeno parapsicológico, concebido como um caso de comunica-
meno, enquanto movimento, não termina aí, porque, sendo feito ção telepática consciente entre uma fonte de pensamento, que
de constante transformismo, continua a se desenvolver. Por funciona como centro irradiante, e um correspondente instrumen-
meio do esforço do instrumento, uma semente desceu à Terra e to humano, que funciona como receptor e colaborador. Deste
jaz aí viva, contendo fechada em si mesma, trazida consigo de acasalamento, semelhante àquele entre pai e mãe, nasceu um fi-
planos superiores, uma concentração de energia explosiva, que lho: a Obra, que cresceu depois, através da colaboração entre os
ela quer irradiar no novo ambiente. A semente é uma força car- dois termos. Tratamos deste caso inspirativo no final do livro O
regada de dinamismo criador, tendo descido ao terreno pelo Sistema e em vários outros pontos da Obra. Mas estas referências
qual foi acolhida para que pudesse tornar-se árvore. Esta é a não bastam para esgotar o assunto e nos mostrar toda a arquitetu-
vontade da semente, que está carregada da potência e sapiência ra do fenômeno. É por isso que, neste capítulo, voltamos a obser-
necessárias para realizá-la. Entretanto ela está escondida no ter- vá-lo, para dar-lhe uma completa e conclusiva interpretação, so-
reno e espera em silêncio. Na superfície passam nevascas e mente possível agora que estamos chegando à última fase do seu
tempestades, calor e frio, chuvas e ventos. Enquanto isso, a se- contínuo desenvolvimento, momento no qual a Obra chega ao
mente permanece quieta, esperando que chegue a sua hora. fim e, junto com o seu trabalho, termina a vida do instrumento.
Como ninguém a vê, então ninguém se aproxima, de modo que De fato, não se trata de um fenômeno estático, porque ele
a voracidade do próximo não perturba o seu trabalho interior. foi transformando-se, enriquecendo-se e aperfeiçoando-se pou-
Liquidado o instrumento, que, sendo um homem, dá aos seus co a pouco. É assim que dos vários pontos da Obra foram dadas
semelhantes a ilusão de ser o expoente principal, nada mais res- interpretações correspondentes ao grau de desenvolvimento al-
tará no exterior. No entanto aquilo que não se vê trabalha com a cançado pelo referido fenômeno, no momento em que ele era
94 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
tomado em exame. Receptivo e passivo na sua forma inicial, a Segundo a nossa visão, o esquema de Assagioli não é mais
sua tendência foi tornar-se cada vez mais ativo e consciente, em estático, como um edifício, mas torna-se uma cadeia de elemen-
razão do incessante contato do instrumento com a fonte, condi- tos em ascensão, envolvidos num transformismo evolutivo que
ção pela qual aquele foi educado a viver com esta sempre mais vai do AS ao S, apontando em direção a Deus. Como médico,
em estado de união, dada pela completa sintonização de pen- Assagioli quis ficar no terreno positivo-psicanalítico, com fina-
samento. Desta maneira, o fenômeno teve um duplo significa- lidades terapêuticas, não podendo, portanto, divagar em tão
do: produzir a Obra e fazer evoluir o instrumento. Dois resulta- vasto campo filosófico. Mas conforta-nos a confirmação, por
dos alcançados agora, depois de aproximadamente quarenta parte de tão ilustre cientista, da teoria esboçada por nós resumi-
anos de ininterrupto funcionamento. damente, a qual foi controlada através dos nossos escritos, du-
Além do ponto de vista espiritual, observemos o caso tam- rante mais de quarenta anos de experiência.
bém à luz da moderna Psicanálise e Parapsicologia. Dado que, Podemos, portanto, ter uma distinção não só estrutural mas
em nosso caso, trata-se também de um fenômeno de sublima- também dinâmica, o que nos permite traçar os três planos nos
ção espiritual, comecemos por analisá-lo segundo os conceitos quais a personalidade humana pode funcionar e os quais ela,
sustentados por nós e confirmados pelo Dr. Roberto Assagioli, segundo um esquema preestabelecido, deve atravessar na sua
do Instituto de Psicossíntese de Florença, Itália. Ele, mais do evolução. Nesta classificação, então, o involuído encontra-se
que outros especializados em Psicanálise, viu e pôs em evidên- situado no primeiro grau; o tipo médio normal, no segundo; e
cia o aspecto sublimação das energias biopsíquicas, tanto sexu- o evoluído, no terceiro. Eles mostram de fato as seguintes ca-
ais como combativas, tomando em consideração a zona superi- racterísticas: 1) O involuído, no nível subconsciente, manifes-
or do ser, aquela que mais nos interessa neste caso e que é dada ta-se no campo da matéria, como corpo e sentidos; 2) O tipo
pelo inconsciente superior ou superconsciente. Esta parte do mediano normal, no plano de consciência média, manifesta-se
campo psicológico começa hoje a ser objeto de pesquisas cien- no terreno da energia, como vontade e ação; 3) O evoluído, no
tíficas (psicologia do alto). Procura-se assim penetrar no misté- âmbito do superconsciente, manifesta-se no campo espiritual,
rio do inconsciente, levando em conta os seus valores superio- como intelecto e pensamento.
res, que é em nosso caso a parte mais importante, na qual o fe- Com isso, temos as seguintes posições:
nômeno se desenvolve no superconsciente, enquanto a Psicaná- 1) O involuído não é controlado pela razão, sendo instinti-
lise corrente toma em exame sobretudo o inconsciente inferior, vo, impulsivo, emotivo, sugestionável e receptivo, apenas regis-
que constitui a parte mais baixa do ser humano. trando impressões e experiências.
A teoria do superconsciente já foi por nós traçada no volume 2) O tipo médio normal não é mais dirigido apenas pelos
Ascese Mística, Cap. XIX (“O Subconsciente”) e Cap. XX (“O apetites nem movido automaticamente por atrações e repul-
Superconsciente”). Assagioli, no seu livro A Psicossíntese (Flo- sões, em função de prazer ou dor, mas também raciocina, cal-
rença, 1966), bem como na edição inglesa Psychosynthesis (New cula, prevê, dirige, organiza e atua. Todavia, muitas vezes, ele
York, 1965), expõe a teoria mais detalhadamente, como segue. se deixa usar como instrumento colocado a serviço do nível in-
Num esquema gráfico, ele mostra que os elementos e fun- ferior, do qual realiza os impulsos. Ele é o meio realizador,
ções da psique são constituídos por: adaptado à ação. Pode, excepcionalmente, seguir os impulsos
1) Uma zona mais baixa ou inconsciente inferior, comu- do nível superior, fazendo-se dirigir pelo superconsciente em
mente chamado de subconsciente. vez do subconsciente.
2) Uma zona mediana ou inconsciente médio, que contém o 3) O evoluído, no ápice da escala, por visão interior dos
campo da consciência normal, ou consciência individual, em princípios diretivos, possui o sentido da orientação e é levado a
cujo centro está situado o eu consciente ou ego. dominar os outros dois termos, para fazê-los avançar, procu-
3) Uma parte mais alta ou inconsciente superior, que cha- rando superar o subconsciente instintivo e dirigir o consciente
mamos superconsciente, em cima da qual brilha o eu superior. racional. Assim, coloca tudo em marcha no caminho da evolu-
Usaremos neste capítulo os termos subconsciente e super- ção, reduzindo o corpo (animal), que passa a ser apenas a parte
consciente no sentido que lhes é dado pelo uso comum, recor- material, e transformando a vontade (ação) em meios para che-
dando, no entanto, que eles não significam um consciente, mas gar a um plano de existência superior. Neste terceiro nível é o
sim um inconsciente inferior e superior, dado que a zona da anjo que deseja substituir-se ao animal.
consciência humana é limitada, estando situada à altura e no Estes dois extremos lutam entre si, o primeiro para eliminar
campo do inconsciente médio. o segundo, e este para não se deixar destruir. O grau de evolu-
À volta deste organismo psíquico assim individualizado se ção é assinalado pela medida em que o anjo consegue substituir
expande a atmosfera do inconsciente coletivo ou mundo psíqui- ao animal. É natural que o involuído gravite mais em direção ao
co, metaindividual. AS e que o evoluído gravite mais em direção ao S, sendo natu-
A nossa concepção foi expressa no volume Ascese Mística, ral, portanto, que o conteúdo e a finalidade de suas vidas sejam
em 1939, com as seguintes palavras (Cap. XX, “O Supercons- opostos um ao outro. O primeiro vive em função da Terra e o
ciente”): “A consciência humana se divide em duas partes: o segundo, em função do céu; duas concepções contrárias, que
consciente e o inconsciente. O primeiro é a consciência conhe- vemos existir em nosso mundo e que podemos explicar.
cida, normal, racional e prática que todos conhecem. O segundo Colocada assim a questão e explicado o papel do super-
se compõe de duas zonas: o subconsciente, que pertence ao consciente, torna-se bem mais interessante, no caso parapsico-
passado, e o superconsciente, que pertence ao futuro (...). O lógico aqui tomado em exame, o fenômeno inspirativo, que se-
subconsciente contém e resume todo o passado, levando-o ao rá agora o foco da nossa atenção. Conforme o próprio Assagio-
limiar da consciência; o superconsciente contém em embrião li nos adverte, o Eu superior não é uma simples “função trans-
todo o futuro, que está à espera de desenvolvimento”. cendental”, mas sim uma realidade psico-espiritual, da qual se
Como se vê, a visão da estrutura do organismo psíquico nos pode ter uma experiência consciente. Ele considera que, entre
seus pontos fundamentais é a mesma. Nós a tínhamos visto an- as várias áreas ou campos, podem verificar-se – e na verdade
tes no seu movimento evolutivo, que tende, através da experi- acontece continuamente – passagens e trocas entre os “conti-
ência da vida, a deslocar continuamente a parte média (zona da nentes psíquicos”. Aceita também que elementos e funções cu-
consciência, em cujo centro está o “eu consciente”, ou ego) em ja sede seja o superconsciente, como as intuições, as inspira-
direção ao campo superior (zona do superconsciente), afastan- ções, as experiências religiosas e os êxtases místicos, possam
do-a sempre mais do campo inferior (zona do subconsciente). descer no terreno da consciência e que tais fenômenos sejam
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 95
fatos psíquicos reais, sendo, por isso, susceptíveis de observa- submetê-las a controle experimental. No meu caso, tomei nota
ção e experimentação com método científico. delas sempre por escrito, porque ideias e soluções chegam nos
Podemos, deste modo, chegar à psicanálise do supranormal momentos mais impensados, como conclusão de um trabalho
e estudar seu funcionamento como fenômeno e realidade obje- que se realiza no inconsciente, posto em movimento por uma
tiva. É possível então usar a Psicanálise também no campo da colocação de problemas em busca de resolução. Eis que a expe-
Parapsicologia, que abrange os mais altos estados de consciên- riência me confirma a teoria de Assagioli.
cia no nível espiritual. Isto significa que a Psicanálise pode ser Podemos obter assim uma concepção do fenômeno intuitivo
levada do terreno do subconsciente ao do superconsciente. Por mais completa do que simplesmente apresentando-se sob o as-
essas novas vias, o fenômeno que há tantos anos estou vivendo pecto mediúnico, como recepção passiva de transmissões prove-
e ao qual devo a produção da Obra poderá ter uma explicação nientes de uma entidade espiritual. O fenômeno é mais comple-
que não seja a de simples fenômeno mediúnico, alcançando xo e rico de elementos. O contato é ativo e consciente, e não
uma interpretação mais exata e positiva, através da qual será somente de tipo conceitual. O pensamento que nos invade em
possível fazer a psicanálise deste caso parapsicológico. É meu estado inspirativo é profundo, estando no íntimo das coisas e dos
dever investigá-lo sempre mais a fundo, para compreendê-lo fenômenos. Ele se encontra em incessante dinamismo, e não
cada vez melhor, na sua estrutura e no seu significado. apenas em posição estática, de modo que além de dirigir tudo,
Mas já nos orienta em nossa pesquisa esta distinção entre também potencializa seu funcionamento. Assim aquele pensa-
consciente e superconsciente, bem como o conceito de uma mento não aparece apenas como conceito, mas é sentido tam-
comunicação entre eles, que representam dois diversos planos bém como vida, operando continuamente, revestido de energia e
de evolução ou níveis de consciência. Adverte-nos Assagioli de forças em ação. Isto porque ele, ao mesmo tempo, é a ideia e
de que a intuição não caminha da parte ao todo, como faz a a sua realização fundidas numa só. Outra das suas características
mente racional analítica, mas abraça diretamente o todo em fundamentais é ser positivo, de tipo S, ou seja, ser construtivo e
síntese. Isto corresponde ao meu sistema de conceber as idei- benéfico, no sentido de sanear o mal, corrigindo erros e desvios,
as. Não as alcanço através de uma subida do particular ao levando sempre a dirigir o transformismo em sentido vital, na
universal, à força de lógica e raciocínio, mas sou imediata- direção de melhores soluções. Esse pensamento é também uma
mente levado ao resultado final, através da visão instantânea força viva e protetora, que existe em nós, para nos salvar e nos
de uma verdade conclusiva, que explica com uma afirmação levar sempre mais para o alto. No fundo, percebê-lo por intuição
decisiva, semelhante ao resultado de uma operação já conclu- significa sentir a presença de Deus em nós mesmos e em todas
ída, mas que tem lugar fora do consciente. as coisas. A isto pode-se chamar também como a presença do S
Continua Assagioli, dizendo que há fatos e funções de tipo no AS, alimentando ininterruptamente a vida (S), para fazê-la
superconsciente – em geral excluídos do campo da consciência – vencer a luta contra a morte (AS), recuperando os tecidos lesa-
que, algumas vezes, realizam uma espontânea e inesperada ir- dos e saneando as doenças. Ela é a voz da consciência que nos
rupção no campo da consciência, de modo semelhante, mas em aconselha o bem; é a força que faz as formas nascerem e se de-
sentido inverso, àquelas que, no mesmo terreno, emergindo do senvolverem, impulsionando a evolução para frente; é a voz de
subconsciente, geram forças e impulsos emocionais ou instinti- Deus, que nos chama, para subirmos até Ele.
vos. Ele explica que, partindo dos planos do superconsciente, o Então, a inspiração, mais do que somente de conceitos, é
material chega já confeccionado, como algo novo, sem relação feita de uma presença viva e vivificante, na qual eles se perso-
com precedentes experiências que possam tê-lo preparado. Pare- nificam como emanações de um ser que se torna nosso compa-
ce que a transmissão se realiza melhor, quando o consciente é nheiro e amigo. Sentimo-lo junto a nós, pondo-se a trabalhar
tomado desprevenido, de porta aberta, não estando defendido conosco na Obra, para realizar o melhor labor da vida. Ele se
por poderes inibitórios ou pela tensão da espera. Trata-se apa- torna um fiel colaborador, o fio condutor de nosso destino, o
rentemente de uma energia com frequência mais alta do que modelo ideal a alcançar, a meta de existência. Isto é o que sig-
aquela do inconsciente médio ou inferior. De uma outra fonte, nifica sentir a presença de Deus. Ela não é somente conceito-
leio que foram encontradas no ser humano duas voltagens diver- guia, mas também força-ação. Não podemos alcançá-la, procu-
sas de eletricidade, sendo uma mais baixa, nos tecidos do corpo, rando agarrá-la para nos apossarmos dela, como se usa para as
e outra mais alta, no cérebro. Assim o ato de pensar implicaria coisas da Terra. Estes são os métodos invertidos do AS. So-
uma atividade elétrica de voltagem superior à das forças vitais. mente podemos alcançá-la, colocando-nos em estado de calma
Assagioli nos diz, depois, que a intuição é um meio de co- e confiança, em posição de humildade e bondade, sintonizando-
nhecimento superior à inteligência. A mente normal é aderente nos no sentido de melhorarmos, requintando-nos até perceber-
à realidade exterior, sensória, sendo feita para funcionar na pe- mos, como um sentido interno, o mundo do espírito. Estes são
riferia do mundo fenomênico. Para chegar aos conceitos direto- os métodos do S, que conduzem a Deus.
res centrais, ela deve subir através de esforço, observando pri- Assagioli insiste no aspecto da sublimação dos impulsos
meiro o terreno por análise, para depois, apoiando-se nela, ten- movidos pelas forças emergentes dos planos inferiores. Ora, em
tar hipóteses e, em seguida, teorias parciais, que vão se tornan- nosso caso, não há somente o fato da recepção conceitual. É
do depois sempre mais vastas e sintéticas. Caminho lento, como necessário ter em conta que esta se verifica através de uma co-
de um cego que inspeciona a estrada. Com tal forma mental, municação na qual está implícito o estabelecimento de um con-
parece que as últimas conclusões são inalcançáveis. Este méto- tato entre o inconsciente médio e o superior. Realiza-se assim,
do se destina a nos fazer conhecer sobretudo os caracteres sen- através da repetição, uma descida habitual do superconsciente
síveis da realidade, para fins de utilização prática, enquanto a no consciente, que lhe vai absorvendo e assimilando o conteú-
intuição nos faz penetrar na íntima natureza dessa realidade. do, produzindo uma transformação evolutiva, uma catarse as-
Deste modo, o método intuitivo pode alcançar até aonde não censional da personalidade. Como o citado autor afirma, a su-
vai o método racional. A intuição funciona não por análise, mas blimação é um processo natural, de modo que muitas vezes,
sim por síntese, através de rápidos lampejos, que iluminam à como em nosso caso, ela é espontânea e fatal. Aqui, então, me-
guisa de uma luz instantânea e vivíssima. Uma característica diunidade inspirativa significa também um processo de ascese
das intuições é o fato de que elas são fugidias, como uma cente- espiritual. Em suma, o uso constante do estado inspirativo –
lha de luz, não obstante serem muito vigorosas no momento em como aconteceu na composição da Obra – feito através de um
que penetram no campo da consciência. É necessário, portanto, contínuo contato com o superconsciente, habituando o indiví-
apressar-se a registrá-las na mente, para depois analisá-las e duo a viver conscientemente naquele plano, não poderia deixar
96 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
de transformar em sentido evolutivo a sua consciência normal, plano mais alto, que não é o seu. É assim que, em vez da subli-
tornando-o assim apto a continuar a sua vida futura num nível mação, pode-se obter uma contorção como sucedâneo, reduzin-
mais alto. Resultado imenso, no qual, como já referimos, reali- do-a a um ato de orgulho, na presunção de uma superioridade
za-se algo mais do que uma obra, com a consolidação de um perante os outros, atitude esta não de superação, mas sim de
destino, de modo que os dois fatos são estreitamente conexos. substituição de um baixo impulso por outro equivalente. É ne-
Pode-se compreender então a que consequências levará o fato cessário ter em conta que não é fácil educar o subconsciente,
de se passar uma existência vivendo tão frequentemente no pla- pois este é forte na resistência e hábil nas escapatórias, estando
no do superconsciente, que é superior àquele no qual o indiví- fixado em posições estratificadas num longo passado. Em su-
duo teria vivido em condições normais. ma, o fenômeno da sublimação não se improvisa, muito menos
Tal sublimação é possível, porquanto se baseia numa fun- ainda pela imposição de métodos e práticas exteriores, aplica-
damental propriedade das energias biológicas e psicológicas, das a qualquer pessoa, como um remédio qualquer. Tal fenô-
consistindo na possibilidade da transformação destas. Isto ocor- meno, para o involuído, pode constituir um inconcebível. As
re em todas as formas de energia. Freud diz (Weber, Psycho- qualidades da personalidade são construídas lentamente, traba-
analyse, Leipzig, 1910): “Os elementos do instinto sexual são lhando-se em profundidade, para realizar o maior fenômeno da
caracterizados por uma capacidade de sublimação, caso se tro- vida, que é a transformação evolutiva.
que a finalidade sexual por outra de gênero diferente e social- Tais considerações, em princípio, mostram-nos quão mais
mente mais digna. À soma das energias ganhas assim, para a complexo é o meu caso parapsicológico em relação à sua in-
nossa produção psicológica, devemos provavelmente os mais terpretação inicial, quando foi definido simplesmente como
altos resultados de nossa cultura”. mediunidade inspirativa, ativa e consciente. A este respeito já
O próprio Assagioli estuda o processo de transformação e nos referimos no Cap. XIX: “Gênese e Significado da Obra”.
sublimação das energias sexuais, combativas e psíquicas. Estes Em relação aos perigos de se entregar passivamente a qualquer
são, de fato, os fundamentais impulsos do ser humano. No pla- entidade espiritual, perdendo a consciência, Assagioli confir-
no normal: o sexo (mulher), para a reprodução, e a agressivida- ma: “Abrir-se sem uma sapiente discriminação e vigilância aos
de (macho), na luta pela sobrevivência; no âmbito supranormal: influxos psíquicos que procuram penetrar em nós, seria como
a espiritualidade (super-homem), para realizar a evolução. Tra- deixar aberta a porta de nossa casa a qualquer um que nela qui-
ta-se, neste último caso, de uma transmutação em sentido verti- sesse entrar. É fácil imaginar como possam insinuar-se facil-
cal, evolutiva, interior, substancial, de tipo biológico. Assim, o mente hóspedes pouco desejáveis... Não nos deixemos, portan-
amor pode dirigir-se para seres mais altos, como Cristo ou to, atrair pelo fascínio do desconhecido, seduzidos pela natural
mesmo Deus, que se tornam um modelo ideal do qual podemos curiosidade suscitada por aqueles fenômenos. Deixemos que
avizinhar-nos sempre mais e que funcionam como polo positivo eles sejam investigados por quem, tomando para si e para os
masculino, mais potente, porquanto mais avançados em sentido outros as necessárias precauções, estuda o fenômeno de modo
positivo, na direção do S. Este é o polo de atração para o bióti- sério e científico, correndo conscientemente os riscos daquelas
po normal, que, relativamente àquele, é negativo, feminino, experiências... É perigoso penetrar diretamente naquelas regi-
mais débil, porque mais submerso na negatividade do AS. Eis ões desconhecidas e pouco seguras”.
os dois extremos de tal fenômeno de transformação. É por isso que, no meu caso, está excluída a mediunidade
Não se creia, no entanto, que o misticismo seja um simples de portas abertas, sendo a comunicação canalizada somente
sucedâneo ou derivado do sexo, pensando-se que, para amadu- num sentido, em direção a uma só e bem definida fonte espiri-
recer tal estado, baste uma compressão daquele instinto. As tual. Entendida dentro desses limites, a interpretação mediúni-
transformações biológicas não se improvisam. Assim, se o in- ca do fenômeno não contrasta com a compreensão psicanalíti-
divíduo não for maduro para realizar essa passagem ao nível ca da comunicação com o superconsciente, sendo este justa-
superior, não tendo começado a despertar no superconsciente, mente o plano biológico superior no qual existem as mais al-
não haverá compressão que possa despertá-lo e impulsioná-lo a tas correntes de pensamento (noúres), que podem ser concebi-
realizar o esforço de superação. Produzir-se-á, ao contrário, das e mesmo personificadas como uma entidade ou centro
uma contorção do instinto, mesmo estando este coberto de conceitual transmissor. Neste caso, de fato, o sujeito fica
pseudomisticismo. Cada tipo de força pertence a um dado nível completamente desperto, funcionando não em uma condição
biológico. As energias que saem de baixo podem fornecer vita- de instrumento passivo, mas sim num estado ativo e conscien-
lidade e calor como matéria-prima para o desenvolvimento do te, o que significa captar e receber ao mesmo tempo, manten-
fenômeno, mas não bastam para determiná-lo, porque são de do um contato e um colóquio, numa colaboração com troca de
outro tipo, inapto para construir formas de vida mais altas. O atividade diversa e complementar.
desenvolvimento interior pode utilizar estas energias, mas, por A simples hipótese mediúnica não é mais suficiente para
si sós, elas não são suficientes para realizá-lo. O agente trans- nos dar uma exaustiva explicação deste caso, que é mais com-
formador, dinamizante do fenômeno evolutivo, está no polo su- plexo, tendo outros elementos concorrendo com ele. O instru-
perior, sempre mais em direção a ele. Os impulsos que saem de mento não é cego nem passivo; em vez de receber, ele capta;
baixo atraem em sentido de retrocesso, porque provêm do lado seu contato com a fonte inspirativa sucede em perfeita consci-
do AS. Certamente, para realizar o fenômeno da sublimação, há ência. O trabalho realizado é uma colaboração entre dois ele-
catalisadores que, à semelhança de processos químicos, favore- mentos complementares, cada um dos quais cumpre a sua fun-
cem com a sua presença o precipitar da transformação. Mas, em ção específica. Segue-se então que o fenômeno se verifica por
cada caso, o elemento básico determinante é a maturação evolu- uma aproximação entre os dois termos, de modo que, se o supe-
tiva do indivíduo, alcançada em razão de ter ele vivido e assi- rior, para avizinhar-se do inferior em sentido evolutivo, deve
milado as experiências necessárias. Isto, porém, não em sentido descer, este último, para aproximar-se do primeiro, deve subir
genérico, com provas iguais para todos, mas sim de modo espe- evolutivamente. Isto significa funcionar mentalmente desperto
cífico, segundo a natureza do indivíduo, que deve aperfeiçoar- no superconsciente, que não é neste caso, como normalmente
se como tal, conservando o seu tipo de personalidade. sucede, um inconsciente, mas sim um consciente superior. Eis
Quando se chegou a esta maturação, o fenômeno da subli- já uma imensa diferença com a mediunidade comum, na qual o
mação verifica-se espontâneo e fatal. Porém, quando ela falta, o estado de inconsciência leva antes a fazer funcionar o subcons-
subconsciente resiste por inércia, para ficar no seu próprio ní- ciente em vez do superconsciente, podendo, portanto, represen-
vel, reagindo contra qualquer deslocamento em direção a um tar uma função involutiva em vez de evolutiva.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 97
Na mediunidade comum a portas abertas há, portanto, o fato receptor deve vibrar em uníssono, porque os conceitos são
de que o estado de inconsciência e passividade permite toda e transmitidos em ressonância por via telepática, é necessário sa-
qualquer promiscuidade de relações, o que deixa o indivíduo in- ber trabalhar consciente naquele nível. Num segundo momento,
defeso, expondo-o a qualquer contato, mesmo de tipo involuído. uma vez que a transmissão deve manifestar-se nas condições do
Em nosso caso, com uma mediunidade a portas fechadas, em es- consciente humano normal, é preciso saber trabalhar consciente
tado ativo e consciente, não é permitido tal mistura e intromis- também aí, para poder formular em palavras os conceitos trans-
são de estranhos no canal, que fica defendido, sendo o contato mitidos. É imprescindível possuir uma amplitude de atividade
realizado somente em direção ascensional. Então a comunicação consciente que abrace o consciente normal e o superconsciente,
se realiza em função de duas finalidades precisas, que ela alcan- porque o instrumento deve saber funcionar em ambos os planos:
ça: a composição de uma obra para o bem da humanidade e a 1) Para captar no nível do superconsciente, onde ele escuta; 2)
sublimação do instrumento, levando-o a viver num plano evolu- Para se expressar à altura do consciente normal, onde ele fala.
tivo superior. Em nosso caso, o fenômeno acompanha toda a vi- Encontramos esses conceitos confirmados nos escritos de
da do autor, fazendo parte integrante do desenvolvimento do seu Assagioli – Grupos de Meditação Para a Nova Era, Florença –
destino e realizando-se em função da lei fundamental da vida, nos quais se reconhece a existência de uma função cognoscitiva
que é evoluir e ajudar a progredir. Em suma, suas raízes são tão superior, com a qual se alcança uma direta e íntima compreen-
profundas, que tocam as primeiras razões da existência, ligando- são da realidade. “Este órgão de conhecimento direto”, diz ele,
se à ascensão do ser, do AS para o S. “é a intuição. Ela não é irracional, mas sim super-racional. Nem
É certo que, neste caso, também pode-se falar de entidade por isso a cooperação da mente deixa de ser necessária para sua
transmissora, a qual pode ser individualizada não segundo o correta utilização. É bom ter uma ideia clara de quais devem ser
conceito de personalidade que se tem em nosso mundo, mas as justas relações de cooperação entre as duas. A esse respeito
sim como um dado tipo de vibração e uma certa ordem de sen- as funções da mente são: 1) Reconhecer a intuição e as suas
timentos e ideias. Então por entidade se entende apenas a cor- mensagens; 2) Interpretá-las corretamente; 3) Formulá-las e ex-
rente de pensamento com a qual o instrumento, harmonizando- pressá-las com as palavras”.
se com ela, está sintonizado e com a qual, em consequência, ele Ora, as afirmações de Assagioli descrevem exatamente o que
se comunica normalmente, por via telepática, pois, tendo assi- acontece em nosso caso, correspondendo àquilo que a natureza
milado o novo tipo de existência e forma mental, vive em unís- do fenômeno instintivamente nos levou a fazer. De fato, neste
sono com a individualidade transmissora. Assim é lógico que caso, realiza-se fora da consciência uma elaboração íntima dos
esta, nestes mais altos planos, não tenha nome, ao contrário do conceitos no nível do consciente superior ou superconsciente,
que ocorre em geral com os desencarnados presentes nas ses- cujos resultados me são apresentados no consciente médio, situ-
sões mediúnicas. Em nosso caso – e esta é a sua característica ado no cérebro, através do campo de consciência normal. Nesta
mais importante – a verificação do fenômeno arrasta o instru- passagem deve-se verificar não somente um abaixamento do po-
mento para um nível evolutivo mais alto, no superconsciente, tencial e da frequência por parte da mais sutil energia do super-
afastando-o exatamente dos contatos inferiores, que em geral consciente, para que ela possa descer ao nível dinâmico da ener-
não faltam nos ambientes mediúnicos. gia do consciente, mas também uma elevação do potencial e da
◘ ◘ ◘ frequência por parte da mais pesada energia do consciente, para
Estendendo-se o fenômeno até ao superconsciente, ele que esta possa subir ao plano dinâmico da energia do supercons-
abraça uma vasta gama de ressonâncias, alcançando uma am- ciente, de maneira a se encontrar, no momento do contato tele-
plitude biológica que atinge vários planos de evolução. Sabe- pático, em um mesmo nível e assim poder comunicar-se. Trata-
mos agora que, quanto mais se sobe para o S, tanto mais a evo- se de dois tipos de pensamento e técnicas mentais, que, no mo-
lução tende a absorver e fazer desaparecer a visão do dualis- mento do lampejo no consciente, devem-se igualar, condição
mo, avizinhando-se sempre mais, por uma recíproca comple- sem a qual não se verifica a comunicação e nada daquele mais
mentação entre opostos, da reconstrução da unidade originária. alto tipo de pensamento se revela no consciente.
Segue-se que o instrumento não pode funcionar sensibilizado O fenômeno inspirativo resulta, portanto, composto de três
apenas de um lado do dualismo, que corta o ser humano nas momentos.
duas metades macho-fêmea, entendido neste caso não no plano 1) O primeiro se desenvolve fora do campo da consciência
animal-humano, mas no elevado nível biológico das suas pro- do sujeito, no silêncio do seu inconsciente superior. Aqui, a
priedades espirituais. Torna-se necessário aí um biótipo com- ideia pode aparecer por três vias: a) O sujeito a capta com o seu
pleto, que possua uma personalidade estendida a ambos os superconsciente, por iniciativa própria, nas correntes de pensa-
campos. Isto significa possuir: 1) As qualidades femininas de mento existentes naquele nível; b) O sujeito a recebe telepati-
tipo emotivo e intuitivo, necessárias para poder realizar a re- camente, por iluminação, pelo fato de estar sintonizado com
cepção, sendo elas os fatores de sensibilização que permitem aquelas correntes; c) O sujeito a obtém no armazém do seu pró-
perceber o estado vibratório da fonte transmissora, tudo isso si- prio conhecimento, em seu superconsciente, onde um indivíduo
tuado no nível supranormal; 2) Os atributos masculinos voliti- evoluído, mesmo o fazendo inconscientemente, já sabe funcio-
vo-racionais e ativo-realizadores, necessários para poder captar nar. Os fatos nos mostram que existe um processo interior,
aquelas vibrações, entendê-las no próprio superconsciente e, constituído por um trabalho mental realizado no inconsciente,
depois, transportá-las ao plano do consciente, traduzidas na tanto no superior como no inferior, porquanto os seus resulta-
forma mental humana, em forma de lógica e de palavras. dos são vistos aparecer no campo da consciência. O pensamen-
É preciso, em suma, realizar duas funções opostas: 1) No to pode, portanto, funcionar também fora deste campo, oculto
plano do superconsciente, saber comportar-se com sensibilidade de nós, de modo que não nos surpreendem essas afirmações.
receptiva, para realizar a parte passiva, adaptada a auscultar e Assim, a primeira origem da ideia pode ser devida a três fa-
registrar o pensamento da fonte inspirativa, incorporando-o, des- tos: 1) O eu que capta; 2) O eu que recebe; 3) O eu que recorda
sa forma, em nosso plano material; 2) No âmbito da consciência e elabora. Nascida de tal modo a ideia no superconsciente do
normal, saber funcionar racionalmente, afirmando-se como parte sujeito, este material, se já não está no estado conclusivo de
ativa, sendo capaz de transmitir aos outros na forma mental a produto-síntese, pode ser elaborado naquele nível, no seu cons-
eles acessível, expresso em palavras, aquele conceito, primeira- ciente superior, pelo próprio sujeito, com a técnica de pensa-
mente incorporado. Num primeiro momento, dado que a trans- mento daquele plano, para ser amadurecido, até chegar à sua fa-
missão se verifica no nível do superconsciente e que o sujeito se final. Com isso se conclui o primeiro período do processo
98 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
inspirativo. Neste momento, ele alcançou e nos apresenta, pron- Cumpre-se assim, nos três momentos acima descritos, todo
to e destilado, o total de toda a operação, sendo este o resulta- o ciclo do fenômeno. Nesse processo, as formas de funciona-
do-síntese que a contém e resume. Temos, desta maneira, a so- mento ativo e passivo se alternam. Quando o sujeito funciona
lução dos problemas através da visão de um determinado setor no âmbito do inconsciente superior, ele pode receber passiva-
da verdade, como fase conclusiva de todo o processo interior, o mente ou captar ativamente as correntes de pensamento. Quan-
qual, no entanto, não deixa ver analiticamente a técnica de seu do o sujeito funciona no ambiente do consciente normal, ele
funcionamento. Este produto sintético final é então transmitido pode receber passivamente ou captar ativamente o conteúdo da
ao campo da consciência normal. gama de conceitos que o dominam no plano superconsciente.
2) Superado o primeiro momento, constituído pela con- Depois, no período final, o sujeito torna-se ativo no ambiente
cepção e primeira elaboração da ideia, passa-se ao segundo, do consciente normal, trabalhando para elaborar aqueles con-
no qual esta é transmitida do superconsciente ao consciente. ceitos neste nível, sendo esta a fase que, em nosso caso, com-
Trata-se da passagem de um plano evolutivo mais alto a outro, preende a compilação escrita da Obra.
mais baixo. Este é o momento no qual se verifica o contato Neste processo há sempre uma troca entre polaridades
necessário para haver a comunicação. A fim de que esta se re- opostas, entre um elemento que funciona ao positivo, como fe-
alize, é preciso chegar a uma recíproca aproximação, cuja cundador, dinâmico e propulsivo, e outro que funciona ao ne-
função é reduzir os dois polos ao mesmo nível dinâmico, con- gativo, como fecundado, receptivo e elaborador. Eles são cons-
dição sem a qual eles não podem juntar-se. Este nivelamento tantemente complementares, mesmo nesta última parte, na qual
de potencial psíquico consiste em uma descida do mais alto o instrumento receptor, em posição de fecundado perante o su-
(superconsciente) e de uma subida do mais baixo (consciente perconsciente fecundador, faz-se centro transmissor e fecun-
normal), envolvendo assim o deslocamento de ambos em di- dador em relação aos leitores de sua Obra, sendo estes fecun-
reção a um ponto comum, a fim de que possam encontrar-se. dados por sua vez, enquanto recebem o pensamento que lhes é
É por meio desse deslocamento de ambos os lados que se transmitido. Em substância, no entanto, esta posição de negati-
chega ao contato, mesmo quando este, por longa repetição, vidade receptora não é de passividade, mas sim de comple-
tornou-se habitual. Chega-se assim ao momento no qual se re- mentação entre trabalhos de tipos opostos, ambos ativos, como
aliza a comunicação, que é irrupção e penetração do super- ocorre entre macho e fêmea, mas em sentido inverso. O ele-
consciente na esfera do consciente. mento passivo não é inerte. O instrumento receptor atua como
Neste ponto, a ideia muda de forma e se veste com outra téc- a fêmea, que, ao receber o impulso dinamizante do macho,
nica de expressão, passando da técnica conceptual intuitivo- elabora-o e desenvolve-o, fazendo dele uma criação sobre a
sintética, própria do superconsciente, à racional-analítica do qual eleva uma construção, representada neste caso pela Obra
normal plano mental humano. Neste instante, funciona a mente escrita. Esta, por sua vez, é dinamizadora e fecundadora de
comum do sujeito no seu nível natural e, com isso, entra-se na almas, porquanto o autor, recebendo este impulso da Obra, po-
terceira fase do processo. Mas, aqui, trata-se de uma posterior de elevar o edifício de sua nova espiritualidade.
elaboração conceptual da inspiração. Esta, na sua chegada, ainda Eis a cadeia de momentos sucessivos do processo segundo o
não é um pensamento diluído analiticamente e traduzida dessa qual se realizou o meu fenômeno inspirativo e a forma concre-
forma, mas sim um pensamento concentrado em síntese, em for- tizada da Obra. Para explicar tudo isso, era necessário, todavia,
ma de conclusão completa, com a visão direta de uma verdade. colocar cada elemento na sua devida posição, mesmo que isso
Do modo como tal tipo de pensamento se apresenta no conscien- pudesse parecer autoexaltação do instrumento. Conforta-me
te depende a sua instabilidade mnemônica, quando ele aparece no neste caso, porém, a constatação de que, para despertar no su-
nível cerebral, daí a necessidade já referida de tomar prontamente perconsciente, não se faz mister ser perfeito; de que o fenôme-
nota por escrito de tais conceitos, que parecem ansiosos para fu- no vivido por mim não implica nenhuma superioridade, afirma-
gir de um plano mental ao qual eles não pertencem. ção esta provada pelo fato de seres muito mais elevados, cujos
3) O terceiro momento é aquele no qual a ideia, tendo pene- trabalhos realizados foram bem maiores, nem por isso foram
trado e se revelado no consciente, fixa-se ali, para ser assimila- isentos de defeitos. É precisamente para o nosso aperfeiçoa-
da na evolução do sujeito ou para ser racionalmente elaborada mento que acontecem tais fenômenos.
e, depois, exposta à compreensão dos outros no plano humano, É justamente pelo fato de desejar fugir ao desgosto de falar
em favor da ascensão destes. Nesta fase, o conteúdo do concei- de mim, que procuro despersonalizar o caso aqui examinado,
to inspirativo é transportado à forma racional humana, sendo expondo-o como algo vivido por outros e referindo-me sobre-
este trabalho confiado ao sujeito que recebe. Então, a ideia sin- tudo à parte teórica e explicativa do fenômeno. O leitor pode
tética e abstrata é analiticamente desenvolvida ao longo de pas- imaginar a experiência espiritual que é escrever tal Obra nas
sagens lógicas e sucessivas, sendo revestida de palavras escritas condições descritas aqui por mim, e pode também compreen-
e de imagens, que se referem ao ambiente terrestre e à sua res- der que as ambições nascidas depois de tal experiência não po-
pectiva psicologia. Trata-se da tradução de uma linguagem para dem ser aquelas do normal tipo humano. A grande aspiração é
outra. Nesta etapa, então, o instrumento cumpre a função espe- ficar em contato permanente com aquelas altas correntes de
cífica que lhe espera no plano do consciente normal, confiada a pensamento, vivendo definitivamente consciente no super-
ele, realizando um trabalho de natureza oposta àquele realizado consciente, num tipo de vida muito mais intenso do que a do
no inconsciente superior. Assim, ele entra em ação com as suas plano físico, para continuar a contemplar as visões da Obra e
normais qualidades mentais, para realizar um trabalho de elabo- outras mais profundas ainda, sentado ao banquete do conheci-
ração do material em seu poder, adaptando-o, desenvolvendo-o, mento, saciando a fome do espírito de tudo compreender. Vi-
expondo-o logicamente, demonstrando-o e controlando-o raci- vendo minha velhice, sinto que tanto mais luminosamente se
onalmente, conforme as exigências da forma mental corrente. sobrevive, quanto mais para o alto se transferiu o próprio cen-
No meu caso, tive de realizar estes dois trabalhos: assimilar tro de consciência, o que confirma as teorias expostas. As mi-
o conteúdo da inspiração, para a minha própria evolução, e ex- nhas satisfações nunca foram aquelas do mundo e, pelo fato de
pô-lo na Obra, para torná-lo conhecido dos outros. Alcançada me afastar deste sempre mais, cada vez menos podem sê-lo. A
esta sua última fase, o processo inspirativo atingiu os seus obje- minha grande festa está em constatar que, enquanto o corpo
tivos e se fechou. De todo o fenômeno, ficou, para a Terra, a vai lentamente morrendo a cada dia e, assim, perdendo a vida
Obra e, para o autor, a sua ascensão evolutiva, porque ele leva no nível matéria, torna-se cada vez mais clara e potencializa-se
consigo o fruto do seu trabalho. sempre mais a minha existência no plano mental intuitivo de
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 99
tipo superconsciente. Isto representa uma imensa alegria de vi- ção, é preciso que os dois polos se ponham à mesma altura. No
ver, dada pelo fato de não me sentir morrer com o corpo, mas caso do evoluído, ele não encontra na Terra o seu termo com-
sim de sobreviver a ele num tipo de vida superior, mais inten- plementar. Deve, portanto, procurá-lo num plano mais alto. Pa-
sa. Trata-se de uma ressurreição no espírito, de uma sensação ra ambos os termos, a união constitui uma função vital, porque
de ascensão e imortalidade, de uma plenitude vital que não há corresponde à necessidade de cada um se completar, unindo-se
riqueza ou potência humana que possa igualar, perante a qual à parte oposta. Existimos num universo despedaçado, no qual
todos os triunfos humanos são miséria. cada elemento do dualismo, por si só, sente-se incompleto e
Como se vê, o fenômeno, além do aspecto parapsicológico, está, portanto, ansioso por se reconstruir em unidade, juntan-
possui também um sentido de catarse, porquanto cumpre uma do-se com o termo contrário. Por isso, em cada ser há uma ne-
função evolutiva na personalidade do sujeito. Em nosso caso, cessidade fundamental de integração, que ele alcança ao se
não se trata apenas de pensar no nível mental da fonte, mas tam- unir à sua parte inversa, sem a qual ele fica somente metade.
bém de viver no seu plano moral. Compreende-se assim a razão Esta disposição no sentido de formar o casal representa uma
pela qual, para poder cumprir o trabalho de escrever a Obra, foi necessidade basilar da vida, à qual ninguém pode fugir.
necessário seguir um tipo de vida adequado. Sendo a referida Em nosso caso, a união, a fecundação e a filiação verifica-
fonte algo vivo, ela passou a constituir para o instrumento, pelo ram-se no plano mental e espiritual, mas sempre como aplica-
fato de estar ele em incessante contato emotivo e mental (senti- ção do referido princípio. A estrutura do fenômeno é resultante
mento e pensamento) com a mesma, um modelo de existência, de uma lei universal, também presente nele. Mas aqui não se
tendo-se tornado uma função vital para ele, que passou a neces- trata de junção de corpos em ambiente físico, mas sim de união
sitar do alimento extraído daquele contato. Temos, pois, um fe- de espíritos no nível mental. Neste caso aparece também o lado
nômeno rico de conteúdo. Ele não apresenta apenas o aspecto te- sublimação mística, próprio das religiões. Esta é a forma que,
lepático de transmissão conceitual, mas preenche também uma para os sensibilizados, toma o amor nos estágios evolutivos
função de ascensão espiritual e de transformação de tipo bioló- mais altos, mais próximos do S e mais afastados do AS.
gico do instrumento. Todo o fenômeno é impregnado de finali- Tal constatação convalida a técnica de sublimação da ener-
dade evolutiva, que se revela também nos seus efeitos, porquan- gia sexual através da canalização desta para funções criadoras de
to a Obra, através da iluminação mental, tem também como ob- mais alto nível, no mundo espiritual, utilizando em forma mais
jetivo a catarse e o progresso espiritual do leitor. evoluída a mesma carga energética e dinamismo criador. Trata-
Neste caso, ocorre um fenômeno semelhante ao verificado, se de evoluir. Estamos na estrada da reunificação entre S e AS,
num plano mais baixo, na fecundação do óvulo por parte do es- caminhando para o saneamento da cisão dualística. Seguir este
permatozoide masculino. Quando o indivíduo, por evolução, impulso constituí a alegria máxima, porque é a reconstrução e a
chegou ao grau de amadurecimento que o torna apto ao salto cura do universo fragmentado, dividido contra si mesmo, doente
evolutivo, então, tendo o invólucro de involução ficado tênue, o de separatismo. Assim a união e a gênese são alegria em todos
princípio superior pode rompê-lo e penetrar dentro dele, para lugares, porque elas sucedem em função do processo reconstru-
cumprir a sua função. O impulso positivo dinamizante, de tipo tivo da unidade no S. Da mesma forma, o problema da sobrevi-
S, vence as resistências do AS, podendo enxertar-se no terreno vência material, que, no plano normal, é fundamental, torna-se
negativo deste, para fecundá-lo com a sua potência e levá-lo pa- secundário, enquanto aquele de deslocar-se até ao supranormal,
ra mais alto, em direção ao S. A fecundação, neste caso, conduz realizando a ascensão evolutiva em direção à espiritualidade, o
à unificação, mas não segundo um dualismo horizontal, situado que, no nível normal, é menos importante, passa a ser essencial.
no mesmo plano, como no caso macho-fêmea, e sim no sentido Num estágio mais alto, super-humano, aquilo que, no plano
vertical, entre dois estágios diversos, supranormal e normal. animal-humano, é loucura, converte-se em sabedoria. Assim, o
Todavia, em ambos os casos, o fenômeno se verifica conforme que era perda vem a ser depois vantagem, enquanto aquela lou-
o mesmo princípio de fecundação, concluindo com a gênese do cura passa a constituir utilitarismo da vida. Esta, então – mesmo
terceiro elemento: o novo ser, fruto da conjugação entre ambos, a tendo repelido primeiramente, num nível mais baixo, por ser
seja ele o filho ou a Obra criada. desvantajosa – acaba por aceitá-la.
Neste campo, tudo é analogicamente regulado nos seus res- A lógica destes esclarecimentos justifica, mesmo em sentido
pectivos níveis pelas leis da vida, de modo que, quando o fenô- prático-utilitário, a conduta de nosso personagem, explicando
meno amadurece, o indivíduo, conduzido por seus impulsos ins- por que o mundo o condenava. Em certos momentos da evolu-
tintivos, com os quais aquelas leis o manejam, é atraído para o ção, há posições biológicas em que a vida tem necessidade de
outro termo, em conjunção com o qual deve cumprir a sua fun- arriscar a parte pelo todo, pois trata-se de alcançar finalidades
ção criadora. Então, no plano humano, ele é atraído para o outro mais importantes que as da conservação individual. Então ela
sexo, enquanto, no âmbito super-humano, o é para centros de permite que o indivíduo se sacrifique. Vi peixes que, por re-
vida superiores, com os quais também se une, mas em forma es- montarem cascatas, a fim de colocarem seus ovos mais perto da
piritual, com núpcias em outro ambiente. A lei de atração para fonte, acabaram despedaçando-se contra as pedras. Assim,
alcançar a unificação de objetivo genético, como atividade cria- quando, ao longo do caminho evolutivo, chega a hora decisiva
dora, é regra universal, estabelecendo em todos os planos da da maturação, na qual é exigido o salto em frente, a lei da so-
existência o esquema ou modelo de técnica genética, que assu- brevivência cede passo à da evolução, que toma o domínio. En-
me a forma sexual somente no baixo reino animal-humano. tão sacrifica-se tudo, contanto que se avance. Nestes momentos,
O princípio de que dois polos opostos e complementares se a luta pela vida é substituída pela evolução, para alcançar uma
conjugam para formar um circuito é verdadeiro em todos os vida maior em mais adiantado nível ascensional. Torna-se as-
níveis. Ambos se aproximam, para se fundirem e formarem sim sabedoria arriscar aquilo que, para o homem normal e esta-
com as duas metades a unidade completa. Mas, para poder fa- cionário, representa uma loucura. Cada um é sábio a seu modo,
zer isso, eles devem ser afins, coexistindo no mesmo ambiente tanto quem sabe conservar as velhas posições, apegando-se às
evolutivo. Em nosso caso, é necessário alcançá-lo, porque o coisas da Terra, como quem sabe conquistar novas posições,
contato é mental, sucedendo telepaticamente. Isto exige, por- com desapego completo, indiferente às coisas do mundo. O
tanto, um estado de ressonância que só pode ser verificado en- progresso é devido à coragem daqueles que quiseram, a seu ris-
tre afins. Sem afinidade, não há possibilidade de haver uma fu- co, explorar o inexplorado. No presente caso, trata-se precisa-
são unificadora. E, se não existe fusão, nada se cria. Para ser mente de se evadir da normalidade, aventurando-se nas ignotas
possível lançar a centelha criadora, consequência da unifica- zonas do supranormal, para conquistá-lo no vértice, com um ti-
100 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
po incomum de experiências. Trata-se de uma conquista por Com a revolta, nada, em matéria de conhecimento ou cons-
parte do consciente, porque constitui uma sua dilatação, através ciência, foi destruído no S. A perda dessas qualidades, derroca-
da qual ele penetra na zona da superconsciência. Esta luta, dife- das nas trevas da ignorância e no respectivo estado de cegueira
rente do tipo normal, é dirigida a outras finalidades. E o evoluí- inerente ao AS, verificou-se apenas para as criaturas rebeldes.
do deve realizar a sua luta no seu próprio nível, mesmo estando Esta é a razão pela qual a evolução constitui um fenômeno de
num mundo involuído, que faz a sua guerra no plano humano. recuperação daqueles atributos perdidos, processo ao qual está
Tais fenômenos espirituais eram antigamente tratados so- submetido somente o ser decaído, que assim retorna ao S, re-
mente pelas religiões e de modo empírico. A ciência não os conquistando a sua originária natureza de ser iluminado e cons-
tomava em consideração, porque não os julgava positivos. Mas ciente. A evolução se processa do AS para o S, levando, portan-
hoje se começa a admitir que considerar o supranormal como to, da ignorância ao conhecimento, do inconsciente ao consci-
anormal não é científico. Tende-se, então, a tomar em exame a ente. Assim como a unidade do S se despedaçou no dualismo S
“psicologia do profundo”, dirigindo-se a investigação do in- e AS, a unidade do ser também se fragmentou em consciente e
consciente não apenas à zona do subconsciente, mas também à inconsciente. Com a queda, apareceu uma cisão na bipolaridade
do superconsciente, ou seja, não apenas à zona animal do ho- positivo-negativa, pela qual, junto ao consciente, que no todo
mem, mas também à super-humana, de muito maior importân- era somente positivo, apareceu o seu oposto negativo: o incons-
cia como valor biológico para a evolução. Esta psicologia do ciente. De fato, o consciente é positivo e pertence ao S, enquan-
alto é aquela que contém os superiores valores da humanidade. to o inconsciente é negativo e faz parte do AS, sendo a evolu-
Dessa forma, como já referimos, a indagação psicanalítica é ção uma conquista de positividade ou consciência.
levada ao campo da Parapsicologia, sendo isso precisamente o Este processo de recuperar a consciência perdida, libertando-
que mais interessa no estudo de nosso caso. O superconsciente se das trevas da ignorância, realiza-se por meio da experiência da
contém em embrião o nosso futuro, para onde as religiões, a vida. O subconsciente é a zona já reconquistada no passado,
ciência, o progresso e os ideais tendem a nos levar. Ele é o ter- constituindo um primeiro trecho percorrido na reconstrução da
reno no qual jazem os germes de muitos futuros desenvolvi- consciência do homem, ainda mal saído da animalidade. Os ins-
mentos. Trata-se hoje de algo supranormal, mas que está à es- tintos representam a sapiência já readquirida, fato este que prova
pera de se tornar amanhã normal. o atraso mental do homem. O consciente é a zona na qual ele tra-
Foi com base nesses conceitos que nos foi possível melhor balha, para reconquistar com a sua experiência o conhecimento
compreender o caso parapsicológico aqui tomado em exame. perdido. O superconsciente é a faixa ainda ignorada, escondida
Agora que ele está-se aproximando da conclusão do seu percur- no inconsciente, como conhecimento futuro a ser recuperado. A
so, tornam-se mais visíveis o seu significado e os seus resulta- sabedoria do S, escrita na Lei, permaneceu intacta na consciência
dos. O centro de consciência do autor habituou-se a funcionar, dos não decaídos. De fato, as diretivas do funcionamento do todo
em grande parte, ao nível do superconsciente, tendo-se desloca- ficaram intactas. O conhecimento se deslocou para fora do cons-
do, portanto, em direção a um plano evolutivo mais avançado, ciente somente para o ser decaído, que, por isso, encontra-se ro-
no sentido do S. O tipo de vida do sujeito se transformou, tor- deado de mistérios, com grande parte de seu eu imerso nas trevas
nando-o, por isso, apto a continuá-la em forma diferente. Ele se do inconsciente, constrangido à fadiga de descobrir e reaprender
destaca do ambiente terrestre, que é deixado para trás como ex- tudo, sendo obrigado com a evolução a reconstruir a sua consci-
periência superada, juntamente com as coisas más contidas nela. ência. De fato, a evolução é um progressivo despertar consciente
A transformação consiste no fato de que ele, de agora em diante, no inconsciente, uma conquista de luz, para sair das trevas. A sa-
em vez de empregar a velha forma mental racional-analítica, sa- piência ficou, mas fora do consciente, que deve desenvolver-se, a
berá pensar de modo intuitivo-sintético, em função de outro tipo fim de reencontrá-la. As provas da vida são os choques adequa-
de consciência, que constituirá a sua nova forma de existir. Mu- dos para despertar o adormecido. Vive-se e sofre-se com a finali-
dando assim sua própria natureza, em função da qual tudo se dade de, através da compreensão do porquê de tudo isso, desper-
concebe, ele terá a sensação de viver imerso em outro universo, tar na zona mais alta do ser, o lado referente ao S, que constitui o
porque este se lhe manifestará de maneira diferente, estabelecida superconsciente relativo à evolução do indivíduo. Assim, para
pelos seus novos meios de percepção e compreensão. um macaco, um simples raciocínio nosso pode estar situado no
Com tudo isso, vimos a estrutura e a função evolutiva do seu superconsciente, ou seja, no seu inconsciente superior.
fenômeno inspirativo. Tratemos agora de lhe compreender o O subconsciente é o depósito onde se conserva registrado,
significado biológico, tanto genericamente, em relação ao fun- como qualidades individuais adquiridas, formadoras da perso-
cionamento da vida, como especificamente, em relação à exis- nalidade, todo o material conquistado com o trabalho da expe-
tência do sujeito, a exemplo do nosso caso. rimentação biológica realizada no passado. O produto útil das
Aqui, como já dissemos, concebemos a distinção entre sub- vidas sucessivas é composto por zonas de conhecimento que se
consciente, consciente e superconsciente em função do movi- estratificam umas sobre as outras, as mais recentes sobre as
mento ascensional da evolução, através do qual, com a experi- mais antigas, em planos de consciência sobrepostos, percorri-
ência da vida, o ser adquire conhecimento sempre maior e, por dos novamente no início de cada nova vida, numa síntese tão
meio da atividade no consciente, avança do subconsciente em mais rápida, quanto mais distantes, portanto repetidos e assimi-
direção ao superconsciente. É assim que o subconsciente repre- lados, são eles. É sabido que a ontogênese repete a filogênese.
senta o passado, o fundo do AS, do qual se emerge, e o super- Eis, então, que o subconsciente humano é de natureza instinto-
consciente constitui o futuro, a meta situada nas alturas do S, animal. O superconsciente, pelo contrário, contém as experiên-
em direção à qual se ascende. O superconsciente está situado do cias do futuro, mais avançadas, que estão destinadas um dia,
lado do S, formando a posição alta da existência, enquanto o depois de terem sido vividas no consciente, a descerem e serem
subconsciente fica do lado do AS, constituindo a parte baixa, assimiladas, estratificando-se no subconsciente, para formar a
oposta. Deste modo, através da evolução, assim como se cami- personalidade do indivíduo, que está assim em processo de con-
nha do AS para o S, vai-se também do subconsciente para o su- tínuo enriquecimento. As religiões e os ideais constituem o guia
perconsciente. Que significa isto? Como é que se entende o fe- deste trabalho mais avançado. Os seus princípios são vividos
nômeno da queda em termos de psicanálise? Os dois fenôme- para serem, depois de longa repetição consuetudinária, absorvi-
nos devem ser conexos, uma vez que, na queda, fala-se de co- dos no subconsciente e, assim, transformados em novas quali-
nhecimento e ignorância, enquanto, na psicanálise, fala-se, com dades formadoras da personalidade, que, deste modo, sempre
termos equivalentes, de consciente e de inconsciente. mais se enriquece e se desenvolve, subindo em direção ao S.
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 101
O subconsciente pode ser considerado como uma película ci- Esta é a análise do fenômeno que foi experimentado no meu
nematográfica na qual fica registrado todo o passado. Em cada caso. Estas são as conclusões para a vida do sujeito que as viveu.
vida se grava uma determinada metragem do filme virgem, de Enquanto as religiões, através de constrangimentos espirituais,
maneira que, nele, permanece escrito todo o trabalho de uma vi- intrometem-se nas relações entre a alma e Deus, enquanto os Es-
da. Os velhos se dobram sobre si mesmos e passam o tempo a re- tados coletivizam o indivíduo, reduzindo-o a uma peça da grande
lê-lo, recordando. Os jovens pensam no futuro; os velhos, no pas- máquina social, o indivíduo ainda assim, perante todas estas ten-
sado. Trata-se de duas posições opostas perante a vida. Aqueles tativas de enquadramento e incorporação, pode evadir-se para
olham para frente, na direção de um caminho a percorrer; estes além dos limites do ambiente terrestre, ficando fora do alcance
olham para trás, na direção de uma estrada já percorrida. Todo o dos poderes do mundo. Por haver superado tudo isso, livre de to-
processo evolutivo realizado até o presente momento está regis- das estas pressões, ele pode alcançar uma forma de vida mais
trado num imenso filme, que nos mostra toda a história vivida. elevada, mais civilizada, mais feliz. Também o indivíduo, consi-
Enriquecendo-se sempre de novas experiências, este filme está derado como tal, tem os seus direitos de independência. Quando
em constante crescimento, continuando assim até abraçar todo o estes lhe pertencem perante as leis da vida, esta os reconhece e,
caminho da evolução, o que significa reconquistar todo o conhe- mesmo que o mundo não os reconheça, dá-lhe autorização para
cimento perdido com a queda no AS. Evoluir significa emergir fazê-los valer. O mundo não leva em conta o fato de que, por ci-
laboriosamente das trevas da ignorância para a luz do conheci- ma de todos os seus poderes, existe – comandando tudo e todos
mento. O inconsciente representa a parte de ignorância ainda não através de sua Lei, inclusive quem, devido à sua ignorância, nega
destruída pelo conhecimento. A evolução é uma progressiva in- tudo isso – o poder de Deus. Há um grande e inalienável prêmio
vasão do consciente no terreno do inconsciente, para transformá- para o trabalho individual de superação evolutiva, constituindo
lo em consciente, o que leva a uma diminuição dos espaços do- ele um tipo de propriedade reservada, que não se pode roubar, ta-
minados pelo inconsciente e a um aumento daqueles ocupados xar ou coletivizar. Este prêmio consiste em poder evadir-se de
pelo consciente. O subconsciente é um inconsciente inferior, fei- um plano de vida inferior, como o da humanidade atual, para ir
to de material já conquistado, que o ser possui em síntese, como viver no meio de outros mais avançados.
sua sabedoria adquirida. O superconsciente é um inconsciente ◘ ◘ ◘
superior, ainda a conquistar, que constituirá a sua sabedoria futu- Se tal experiência tem um profundo significado biológico
ra. O primeiro transmite ao consciente os resultados das suas ex- para o indivíduo, ela pode ter um sentido também para a huma-
periências em forma de impulsos sintéticos. O segundo transfere nidade, porquanto pode ser entendida como uma antecipação do
ao consciente os seus pressentimentos, como antecipações situa- futuro desenvolvimento desta. Observemos, portanto, o fenô-
das fora das suas experiências, pelas quais ainda está à espera. meno também sob este outro aspecto.
No meu caso, a coisa mais importante que filmei na minha Dissemos que o superconsciente contém em germe o nosso
vida atual foi a Obra. Cada um registra algo diferente. O filme futuro e que o atual supranormal está à espera de se tornar nor-
dos jovens ainda é virgem, mas, no fim da vida, nada mais resta mal amanhã. Assagioli afirma que “A Nova Era atestará o flo-
senão a película gravada. Então, já não se podem registrar novos rescer da intuição”. A construção da nova civilização dependerá
acontecimentos, restando apenas olhar as fotografias dos anti- muito do aprofundamento da investigação psicológica. A con-
gos. Próximo agora ao fim, estou olhando o meu filme. O meu formação de nossa vida depende muito de nossa conduta, cuja
cérebro foi a máquina de filmar. Acabando a minha vida atual, primeira raiz é de natureza psicológica. O nosso mundo é feito
desfaz-se aquela máquina e fica a película. Agora, o trabalho de de determinada maneira, porque também o pensamos e o cons-
registração está para acabar, mas tenho comigo todo o material truímos assim. Isso diz respeito à nossa natureza, pela qual a
gravado. Depois da morte, levarei comigo o filme impresso no sociedade humana é criada à sua imagem e semelhança. Quan-
meu espírito, para poder olhá-lo ainda melhor, a fim de compre- do soubermos pensar melhor, dispondo de uma mente diretriz
endê-lo e assimilá-lo. Depois da fase extrovertida, entro agora diversa, poderemos plasmar um mundo diferente.
na introvertida, trabalho inverso e complementar daquele terre- Hoje, a humanidade vive no caos. Qualquer tentativa de or-
no. Mais tarde, inverterei novamente estas posições, renascendo dem não tem valor, se não se apoiar na força. A lei não é cum-
e construindo-me outro cérebro – nova máquina de filmar – para prida, se não for armada de sanções. A ordem tem de ser im-
fazer outro trabalho em continuação ao precedente. A filmagem posta de fora, porque o indivíduo é naturalmente rebelde. As di-
da Obra está pronta. De agora em diante, trata-se de experiência retivas da ação não são espontaneamente coordenadas, como
vivida, que é patrimônio adquirido e inalienável, constituindo fruto de conhecimento e convicção. Os pensamentos que guiam
ponto de partida da nova experimentação na vida sucessiva. a nossa conduta são de egoísmo e de luta. A grande ocupação
Agora, posso compreender o que ganhei com o fato de não do homem é procurar a vitória sobre o próximo, e não compre-
ter querido perder tempo, ocupando-me de riquezas. Se tivesse endê-lo para chegar à colaboração. Tal caótico modo de pensar
corrido atrás delas, não teria em mãos senão um filme de expe- leva a uma conduta que faz de nosso mundo um inferno. A nos-
riências terrenas, envolvendo negócios que me teriam pregado sa sociedade pode ter algum sentido, se olhada com a visão se-
neste ambiente inferior. Seria um triste resultado. Hoje, muito paratista do indivíduo isolado, mas representa o absurdo de
pelo contrário, encontro-me tendo nas mãos uma riqueza mi- uma loucura autodestrutiva, se vista coletivamente. As energias
nha, que me leva um pouco mais para diante, em direção ao S. psicológicas antepostas à ação, ao invés de serem inteligente-
Isto muda a minha posição evolutiva, impelindo-me para um mente guiadas para a criatividade, convergindo em direção ao
mais alto plano de existência, o que constitui o máximo resulta- bem de cada um e de todos, são usadas na luta para a destruição
do obtenível em uma vida. Na próxima existência, com um cé- recíproca, dissipando estupidamente, em inúteis atritos e com
rebro mais aperfeiçoado, órgão adequado às novas capacidades imenso dano, valores preciosos. À força de lhes sofrer as con-
mentais adquiridas e produto de um ambiente mais adiantado, sequências, deveremos sair desse estado de inconsciência e de
poderei dispor de meios de compreensão e expressão mais evo- barbárie. Já há muito se iniciou, aqui e ali, a desconfiança de
luídos, para satisfazer ainda mais a minha máxima aspiração, que não somos de fato civilizados.
que é evoluir. Com uma máquina de filmar mais aperfeiçoada, A futura humanidade se organizará de modo a obter de ca-
poderei realizar novas filmagens, para revelar o pensamento da indivíduo o máximo rendimento possível, indo ao encontro
que tudo move. Poderei assistir a novas expansões do conscien- dele e sabendo utilizar as suas qualidades, para colocá-lo no
te num sempre mais alto superconsciente, para embriagar-me lugar que lhe é mais adaptado no organismo coletivo, em vez
com a luz que desce do S, ou seja, de Deus. de deixá-lo só, obrigando-o a desperdiçar as suas energias na
102 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
luta para subir, enquanto poderia usá-las no trabalho para pro- e se integram numa ordem coletiva. Em resumo, caminha-se pa-
duzir. Então, a penetração psicológica da personalidade terá ra um estado orgânico. Por isso o atual nivelamento deverá ser
uma função fundamental. Construir o homem é problema bási- corrigido, para se tornar uma coordenação que conserve as dife-
co e trabalho dos milênios futuros, sendo que estamos ainda no renças, mas organize as funções específicas, levando-as do esta-
início. É necessário educar, selecionar e guiar no seu desen- do caótico ao orgânico, da posição de anarquia e desordem à de
volvimento os elementos constitutivos da sociedade, que hoje disciplina e ordem. Isto, biologicamente, é normal. Este fato já é
nascem e crescem ao acaso. verificado no organismo humano, no qual as células não são
A grande lição a ser aprendida é a arte da convivência, que elementos homogêneos, mas sim especializados por diversas
permite a coexistência pacífica. Muitas vezes, a confraterniza- funções, que cada uma delas cumpre em harmonia com as das
ção é, em grande parte, apenas retórica. O impulso mais forte é outras células. Conforme esta divisão de trabalho, as células es-
o egoísmo, que se torna um obstáculo à compreensão. Atual- tão agrupadas para formar tecidos, órgãos e grupos de órgãos,
mente não se chega à confraternização senão pelo motivo ego- todas funcionando disciplinadamente, segundo a natureza espe-
ísta de defesa contra um perigo comum. Assim é o perigo co- cífica própria de cada uma. Tudo isso acontece consoante o
munista que faz os cristãos se unirem, os quais somente hoje se princípio das unidades coletivas, já largamente ilustrado por nós,
intitularam de irmãos separados. De igual modo, é o perigo segundo o qual a evolução avança em direção ao S, constituin-
chinês que avizinha comunismo e capitalismo, os dois grandes do, através do agrupamento de elementos menores, unidades co-
inimigos. Também é o perigo universal da bomba atômica que letivas sempre maiores. Estas, todavia, não são apenas o conjun-
faz o mundo, para sua própria sobrevivência, tender a se unifi- to dos indivíduos componentes, mas constituem uma nova cons-
car. Esta é uma confraternização cuja base está no egoísmo, e trução, dada pela organização deles.
não na compreensão recíproca. Por outro lado, faz-se necessá- Depois desta digressão sobre as bases de nossa futura hu-
rio compreender que é indispensável deixar a cada um, tanto manidade, voltemos ao caso aqui tomado em exame. Ele nos
indivíduos como povos, o suficiente espaço vital, sem oprimi-lo oferece um exemplo, mesmo o sendo como antecipação em re-
e, portanto, sem lhe excitar as inevitáveis reações. Estas, uma lação às massas, que poderá ser depois seguido por todos, es-
vez postas em movimento, transmitem-se em cadeia, provocan- tando inicialmente limitado a indivíduos isolados, através dos
do contrarreações que se manifestam como revoltas à ordem e quais se pode ver qual é o caminho da evolução que nos leva
revoluções, no permanente estado de guerra que delicia a nossa para graus de civilização mais avançados. Não se trata, portan-
humanidade. Isto significa dar e receber golpes contínuos, re- to, de um caso esporádico da realidade biológica, mas sim de
sultando num prejuízo coletivo constante e num peso enorme a um despertar natural, que se verifica com qualquer pessoa cuja
arrastar. Quão absurdo e contraproducente é este método de maturação evolutiva tenha alcançado determinado nível.
usar as próprias energias para fabricar sofrimentos! Isto somen- A atual maioria humana, que impõe e estabelece o seu tipo
te é admissível nas humanidades primitivas, explicando-se ape- como normal, sem outra justificação a não ser a força do nú-
nas para os involuídos, que gravitam ainda em direção ao AS. mero, fazendo, em função dessa sua normalidade, leis e nor-
Não se trata, portanto, senão de seres destrutivos, feitos de ne- mas de conduta para todos, vive equilibrada e fechada no cam-
gatividade, que exaltam como vencedor quem se afirma sobre po de consciência situado no centro do inconsciente médio, re-
um cemitério de vencidos. Mas a vida evolui em direção ao S, e cebendo nele apenas os impulsos do inconsciente inferior ou
isto significa formar seres construtivos, feitos de positividade, subconsciente, sem suspeitar qualquer possibilidade de supera-
que usam suas energias utilmente, para criar o bem, e não o ção que desloque a sua consciência ao nível do superconscien-
mal. Eis que o maior problema da humanidade está em evoluir, te. É com tais elementos do consciente ao nível médio que
para alcançar formas de vida mais elevadas. funciona a nossa vida social.
A nova civilização consistirá em saber compreender-se e in- Assim se pronuncia Assagioli no seu opúsculo, Os Símbolos
terligar-se reciprocamente, considerando o próximo como um do Supranormal (1965): “(...) considera-se „normal‟ o homem
colaborador no mesmo organismo, movido pelo mesmo interes- médio, aquele que observa as normas sociais, o „conformista‟.
se. Compreensão significa procurar não impor aos outros os Esta normalidade é uma mediocridade que condena tudo o que é
próprios gostos e ideias em nenhum campo, como se fossem fora das normas e que, portanto, é considerado „anormal‟, sem
verdades absolutas, mas sim respeitá-los, estando cada um livre levar em conta o fato de que muitas das assim chamadas „anor-
para viver conforme sua própria natureza, contanto que isto não malidades‟, na realidade, são começos ou tentativas de superar a
traga prejuízo a ninguém. Então não se pretenderá converter mediocridade”. Agora, porém, começa-se a reagir contra este
ninguém à própria fé, proclamando-a como única verdadeira e mesquinho culto da “normalidade”, contra o qual pensadores e
condenando as outras como erro. cientistas de nosso tempo se opuseram com decisão. Entre os
A Psicologia estudará os vários tipos de indivíduos segun- mais autorizados, pode-se citar Jung, que não hesitou em dizer:
do uma nova “tipologia”, de modo a prever e controlar a rea- “para aqueles que têm possibilidades muito maiores que as do
ção que cada um, conforme o seu temperamento, oferece ao homem médio, a ideia ou a obrigação moral de serem somente
mesmo fato, condição ou relação. Conhecendo a técnica psi- normais constitui a tortura de um leito de Procusto, um aborre-
cológica do comportamento, será possível prever as conse- cimento insuportável, um inferno sem esperança” (O Homem
quências dos vários movimentos, provocando os bons e evi- Moderno em Busca de Uma Alma – Nova Iorque, 1935).
tando os maus. Num regime de inteligência, as atividades dos Outro estudioso, o Prof. Gattegno, da Universidade de
elementos da coletividade poderão obter maior rendimento Londres, avançando mais, acrescentou que ele considera o
utilitário, desenvolvendo-se em sentido convergente, ao invés homem médio ordinário como um ser pré-humano, enquanto
de divergente, como atualmente. reserva a palavra “Homem” (com “H” maiúsculo) só para
A atual tendência ao nivelamento é um primeiro passo neste aqueles que, tendo transcendido o nível ou estágio comum,
rumo. Tal inclinação à igualdade nasceu e se explica como rea- são em relação a este supranormais.
ção aos abusos de desigualdade cometidos pelo velho método da A tudo isso acrescenta Humberto Rohden no seu volume Fi-
injustiça social. No entanto a posição futura não será de nivela- losofia Cósmica do Evangelho:
mento, pois ela não consiste numa homogeneização que suprime “Todo homem, depois de certa altura de experiência espiri-
o diferenciado, mas sim numa síntese coletiva que o respeita, tual, entra, fatalmente, num ambiente de antítese com a socie-
coordenando os diversos elementos com funções diferentes em dade em que tem de viver. O grosso da humanidade vive num
uma unidade estrutural, na qual as suas distinções se interligam plano de evolução apenas físico-mental, guiando-se pelo teste-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 103
munho dos sentidos e do intelecto e ignorando os altos ditames evoluído, durante suas superações, afasta-se demasiadamente
da razão espiritual. Quem se eleva nas superiores vibrações es- das bases sólidas da animalidade, sobre as quais se apoia a vi-
pirituais, corre sempre perigo de sofrer uma espécie de interfe- da humana, então torna-se indefeso para a luta, que, para cada
rência ondulatória, que, em geral, manifesta-se em forma de um, seja qual for o lugar onde viva na Terra, é lei fundamen-
conflito de ideias e ideais, acabando por criar em torno desse tal. Para sobreviver na floresta, entre as feras, de nada serve
bandeirante do infinito uma atmosfera de frieza, hostilidade e ser gênio ou santo, sendo necessário, isto sim, estar bem ar-
incompreensão. Esse ambiente ingrato leva o homem espiritual mado, para defender-se. Esta é a razão pela qual, no nível atu-
instintivamente a um desejo de solidão e isolamento, onde pos- al, a vida tende a eliminar os melhores, que são feitos para
sa cultivar desimpedidamente essas coisas belas e queridas que, ambientes mais civilizados.
em horas de profunda contemplação, descobriu e que ama com Já explicamos quais são as qualidades do indivíduo que al-
todas as veras de sua alma. Esse homem anda mal acompanha- cançou semelhante estado de consciência. Sua moral é diferen-
do na sociedade e bem acompanhado na solidão. te da comum, que é imposta por autoridade e seguida pelo te-
“Os profanos e inexperientes, por via de regra, interpretam mor de um prejuízo próprio, enquanto se procuram todos os
esse isolacionismo como „orgulho‟ (...). Para o homem espiritu- caminhos para fugir-lhe e assim desobedecer impunemente su-
al, porém, esse retraimento é uma válvula de segurança, um ins- as normas. Trata-se de outro tipo de moral, que não é de luta,
tinto de autoconservação espiritual (...). mas sim de convicção; livre, mas responsável. Enquanto o in-
“Uma vez que essa alma criou em si, pelo diuturno contato divíduo normal vive satisfeito na ignorância dos últimos por-
com o mundo divino, uma antena de extrema vibratilidade, é quês do existir, saciado com as pequenas coisas da Terra, o
natural que o mais ligeiro contato com as rudezas e baixezas do mais evoluído não pode viver sem alcançar para aqueles por-
mundo profano lhe causem grandes sofrimentos e lhe ponham quês uma resposta com a qual possa dirigir inteligentemente a
em chaga viva o delicado Eu espiritual. sua vida, consciente da função que lhe espera no organismo
“A espiritualidade é a nossa maior glória e, também, o nos- universal, no qual ele vive enquadrado. No seu nível psicoló-
so mais acerbo sofrimento (...)”. gico, ele sente a necessidade premente de tudo compreender.
É deste modo que tais indivíduos, porque fora da comum Não se trata de uma conversão a esta ou àquela religião ou fi-
medida em que todos devem uniformizar-se, auscultam o super- losofia, mas de uma mudança da ignorância para o conheci-
consciente, mesmo estando expulsos da sociedade. Assim como, mento, tomando consciência do pensamento que dirige o fun-
na primavera, alguns frutos nascem antes dos outros, a vida cionamento universal. Com isso, as relações com o mundo se
também costuma produzir alguns indivíduos mais avançados, tornam diferentes. A vida passa a constituir não mais um fim
que chegam à maturação antecipadamente. Eles constituem as em si mesma, limitada à Terra, mas sim um trecho do caminho
primícias da evolução, as suas vanguardas, a serem seguidas de- da evolução, que faz a preparação da sua continuação em ou-
pois pelas massas. O seu despertar é isolado, sendo caracteriza- tros ambientes. A morte, então, torna-se outra coisa. Tudo mu-
do pelo fenômeno da penetração e irrupção do consciente na es- da, quando é visto deste modo, em função de outros pontos de
fera do superconsciente. Isto pode acontecer tanto de improviso, referência. O despertar consciente no superconsciente, atingin-
depois de lenta e subterrânea preparação, como por gradual ma- do uma consciência mais elevada, transforma-nos em elemen-
turação, mentalmente controlada, como em nosso caso. Nada tos conhecedores da harmonia cósmica do todo vivente, afas-
disso está fora da lógica do desenvolvimento da vida, dado que, tando-nos do tenebroso caos do AS e elevando-nos em direção
de agora em diante a evolução é de tipo nervoso e psíquico. Tu- ao luminoso tipo de vida universal e unitário no S.
do isso está de fato acontecendo. Vemos, portanto, que a evolu- O nosso caso, que foi definido como mediunidade, baseia-se,
ção, ao chegar em um dado nível, realiza-se pela ativação do su- pelo contrário, no fenômeno biológico evolutivo do despertar no
perconsciente, ou seja, da zona superior da psique, que se encon- superconsciente. Somente depois dessas explicações, pode-se
tra em estado de inconsciência para os normais, ainda adormeci- compreendê-lo na sua essência, diferenciando-o dos comuns fe-
dos. A função de tais antecipadores em relação à evolução da nômenos mediúnicos por dois fatos já estudados: 1) A produção
grande massa humana é agir como antenas aptas a captar os de uma Obra; 2) A transformação de um homem no cumprimen-
mais longínquos horizontes, que não são vistos. Assim, as mas- to de um destino. Este, e não a mediunidade, é o aspecto mais
sas são ajudadas a avançar na grande marcha da evolução. importante do caso parapsicológico aqui tomado em exame.
Muitos já sentem que vivemos no limiar de uma nova era. O que nos interessa, pelo seu grande alcance biológico, não é
Nesse mundo do futuro, em vez de se sufocar a vida de tais se- provar a sobrevivência, comunicando-nos com os desencarna-
res fora de série, procurar-se-á criá-los e formar deles uma elite, dos, dado que essa sobrevivência é um fato inegável, mas sim
reconhecendo a preciosa função biológica que lhes pertence afirmar o fenômeno do crescimento espiritual, sobre o qual se
cumprir para o progresso da humanidade. Quantos gênios hoje baseia a evolução. Ele representa a solução do grande problema
não deixam de produzir por falta de compreensão! No entanto da redenção; a eliminação de toda a negatividade que, devido à
eles representam valores biológicos de grande utilidade coleti- queda no AS, passou a fazer parte da existência; a libertação da
va, que são desperdiçados, por serem obrigados a se normali- dor, para alcançar a felicidade. É assim que a análise do fenô-
zar, tendo de enfrentar a vida no nível da luta de todos contra meno parapsicológico se resolve no estudo do fenômeno da evo-
todos. Impedidos de se realizarem e tolhidos de criarem, eles se lução da personalidade humana. O nosso caso, em vez de modo
tornam indivíduos desajustados e são obrigados a se isolarem, fideísta, é visto por nós sobretudo com os métodos positivos da
tornando-se assim improdutivos para a sociedade, o que signifi- investigação psicanalítica. A nossa interpretação inicial do fe-
ca uma riqueza perdida para todos. Mas isso é inevitável no nômeno, analisando-o como mediunidade ativa e consciente, de-
atual estado de egoísmo e caos em que vive a humanidade. En- senvolveu-se também sob esse outro aspecto psicanalítico.
quanto não for alcançado um grau mais avançado de civiliza- Isto tem a sua importância. O inconsciente, embora esteja
ção, a tais elementos não restará outra coisa a não ser adapta- fora do campo da consciência, existindo numa forma inconce-
rem-se, reentrando nas filas da gente comum e desperdiçando a bível para o indivíduo, realiza um constante trabalho, enviando
sua capacidade num regime de competição, pois a agressivida- do inconsciente – tanto do inferior, evolutivamente mais baixo,
de normal do involuído, sendo este o mais forte, pode facilmen- como do superior, evolutivamente mais alto – ao consciente as
te vencer a bondade do homem genial. suas conclusões e impulsos, conforme a sua natureza, estabele-
Quem é mais avançado em relação à Terra não deve ja- cida pelas qualidades constitutivas da personalidade. Ora, se es-
mais esquecer que vive numa humanidade de outro tipo. Se o ta, como sucede apenas raramente, é desenvolvida no lado do
104 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
inconsciente superior, em vez de na parte do inconsciente infe- possa conceber com clareza, encontrando fadiga apenas no tra-
rior, então, depois de uma silenciosa elaboração, irrompem na balho de tradução verbal dos conceitos, preocupado com a exa-
consciência conceitos elevados, de nível intelectual, moral e tidão fotográfica da expressão. Constato, pois, o fato de que es-
espiritual evolutivamente avançado. Mas, se, inversamente, a se pensamento mais alto, jorrando do superconsciente, causa
personalidade é mais desenvolvida no plano do inconsciente in- em mim uma sensação de potência, dinamismo e intensa vitali-
ferior, como é mais comum, surgem na consciência os produtos dade, numa estranha e crescente expansão à medida que o or-
ou impulsos inferiores do subconsciente. E isso tanto mais fa- ganismo físico se enfraquece. Tudo isso me faz sentir também
cilmente, quanto mais o indivíduo se abandona no transe medi- como seja absurdo pensar que a morte possa matar-me, porque,
único, deixando de lado o seu autocontrole consciente. com a aproximação de tal estado de consciência, ao invés de
Assim, o grande perigo da mediunidade de efeitos psíquicos haver enfraquecimento, como acontece com o restante, ocorre
é constituir-se num desabafo do subconsciente ou de correntes revigoramento. Este trabalho, para mim, é vital, dando-me um
de pensamento inferiores do nível do subconsciente, o que re- sentido de alegria, direi até que ele é nutritivo, como se eu me
presenta um subproduto sem valor ou francamente prejudicial alimentasse dele, absorvendo-o de uma fonte de vida. Este ali-
aos fins evolutivos. O que mais vale e interessa funcionar é o mento fortalece a minha parte não humana, aquela na qual sinto
superconsciente, para a manifestação, através da consciência, do que sobreviverei sem ser perturbado pela morte, que, neste meu
seu alto plano psíquico ou de correntes de pensamento do seu lado, não me pode alcançar. Doravante, para mim, a passagem
estágio evolutivo. Por isso, em nosso caso, evitamos que surja a outro tipo de vida, ficando desperto no superconsciente, não é
de baixo uma inundação de animalidade. Controlamos bem des- mais apenas teoria, e sim sensação. Já tenho em mãos o resulta-
pertos o fenômeno a cada passo, para que isto não aconteça, do preciso de todo o fenômeno, que é o fato de ter-me avizi-
aceitando das transmissões do inconsciente somente aquilo que nhado, no longo caminho da minha evolução, um passo a mais
a nossa zona de consciência receptora julga ser puro e elevado em direção à vida feliz do S, afastando-me daquela do AS, feita
produto do superconsciente ou de correntes de pensamento pro- de dor e de morte. Realizar em si mesmo uma parte da reden-
venientes de centros espirituais do seu nível. É necessário sem- ção, por pequena que seja, representa a máxima valorização do
pre controlar qual a altura evolutiva do inconsciente de onde próprio trabalho. O meu ponto de partida na vida foi a procura
provém ou através do qual passam as transmissões, verificando do seu significado; o conteúdo dela foi ter-lhe dado um sentido
se ele é superior, médio ou inferior, para aceitar apenas as supe- e haver vivido para realizá-lo; o resultado final é havê-lo cum-
riores, de alto valor ético, intelectual, artístico e religioso. A nós prido e possuir-lhe as respectivas vantagens.
interessa sobretudo o que serve para evoluir, porque subir é o A luta por uma compreensão do significado da vida tive de
objetivo supremo da vida, de modo que fugimos de tudo quanto empreendê-la sozinho, no início deste século, quando o poder
esteja em baixo, porque conduz ao sofrimento e à morte. temporal dos papas ainda era problema importante para o cristi-
Isto é o que sucede em nosso caso. Assim, vou aprendendo anismo e o materialismo definia o pensamento como uma se-
e assimilando o significado do que escrevo, à medida que faço creção do cérebro. Entre os dois extremos opostos, cuidava-se
este trabalho. De fato, trata-se de uma ordem de ideias que apa- sobretudo de litigar, sem nem ao menos haver compreendido o
rece no consciente como já pré-fabricada, construída fora dele. assunto. Somente hoje religião e ciência se avizinham, come-
Não preparo com esforço consciente o desenvolvimento dos çando a compreender o maior valor e a verdade do conceito de
temas, mas me confio a uma corrente autônoma, pela qual sou mente espiritualizada, no sentido de que esta não é apenas uma
arrastado e a qual eu sigo. Este é um modo bem estranho de alma, uma abstração teológica, nem é somente uma função ner-
pensar, segundo o qual leio dentro de mim um pensamento já voso-cerebral, mas também espiritual, supercerebral. O cérebro
escrito, que surge conforme o vou lendo. As ideias nascem es- é reconduzido à sua justa posição de instrumento do pensamen-
pontâneas, como por impulso próprio. Caso eu intervenha com to, como seu órgão não somente de produção, mas também de
um ato volitivo, elas desaparecem imediatamente, rebelando-se atividade espiritual, na dependência de outra fonte superior, e
a qualquer obrigação. Mas sou eu que as leio, compreendo-as e não como única matriz de pensamento.
depois as expresso em palavras. Portanto devo estar bem calmo Destarte, o espírito se torna um fenômeno acessível à pes-
e concentrado; abstraído do mundo exterior, mas com o ouvido quisa científica (Psicanálise, Parapsicologia etc.). De forma po-
psíquico bem atento, para perceber tudo passivamente; sensibi- sitiva podem ser estudados os fenômenos não só cerebrais, mas
lizado a ouvir, mas ativo como atenção viva; dinâmico no cap- também espirituais, de natureza superintelectual, manifestados
tar, mas não como vontade de domínio. Neste trabalho tenho a através do cérebro, que funciona como instrumento. É possível
sensação de me transferir consciente para o inconsciente supe- estudar os mais altos processos criadores do pensamento, supe-
rior, a fim de captar os resultados de um seu precedente traba- riores aos que podem praticar um cérebro entendido apenas
lho secreto, mas sem poder analisá-lo nem dominá-lo, receben- como máquina biopsicológica autossuficiente. Hoje, com a dis-
do dele apenas as conclusões elaboradas. Isto me dá a impres- tinção entre funções cerebrais e espirituais, alcançou-se do pro-
são de possuir um sentido de orientação na pesquisa da verda- blema espiritual uma colocação mais exata tanto em relação à
de. Sinto que a consciência normal irrompe para além dos seus ideia abstrata e nebulosa da alma, segundo a concepção religio-
limites, em outro mundo imenso, do qual, primeiramente, como sa, como em relação ao conceito puramente físico, segundo o
num estado de exaltação mística, capto os lampejos, que de- materialismo negador do espírito, no caso da ciência.
pois, seguindo um desenvolvimento ordenado, procuro sistema- Num ambiente dividido entre religião e ciência, ambas
tizar racionalmente. Com tal método, quanto mais leio em mim mais decididas a lutar do que a resolver tais problemas, era di-
sobre determinado assunto e, familiarizando-me com ele, me- fícil no meu tempo, sozinho, saber como eram de fato as coi-
lhor o compreendo, tanto mais facilmente consigo continuar a sas. O mundo, por seu lado, quanto à realidade que o cerca,
ler. Assim, fui lendo um volume após outro, como se subisse ocupava-se mais de outras coisas do que dos problemas do co-
degrau após degrau a montanha do conhecimento, com cada nhecimento. Formou-se então – e depois não foi mais preen-
iluminação me elevando em direção a outra mais alta, até me chida – uma cisão entre mim e o mundo, do qual eu não podia
encontrar com a Obra completa nas mãos. aceitar a forma mental e os respectivos métodos de vida invo-
O que me deixa maravilhado é o fato de que eu – apoiado luídos. Descobri também em muitos pensadores o mesmo de-
num corpo de oitenta anos em natural desfazimento, com um sentendimento, que foi aprovado e definitivamente aceito por
cérebro fisicamente anquilosado por células paradas e tendentes mim, quando o vi propugnado por Cristo no Evangelho. Então
à inércia, sempre menos adaptado à ágil função de pensar – o fiz meu, em nome do espírito. Mas, sendo necessária uma re-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 105
ligião para viver com consciência, construí uma outra para É urgente, então, aprofundar o estudo das ciências psicoló-
mim, científica, seguindo Cristo, aquela que o cristianismo de- gicas, para guiar o homem com inteligência, compreendendo o
verá alcançar, superando a sua forma atual, se quiser sobrevi- modo como ele é feito interiormente, as forças pelas quais ele é
ver. Esses problemas hoje em discussão já eram os meus no movido e as leis do funcionamento mental através do qual ele
princípio do século, quando em relação a eles ainda se perma- dirige sua ação. Nós somos conscientes apenas de uma zona li-
necia indiferente. Não acreditava nos meus olhos ao ver como mitada de nosso ser. Com apenas este pequeno centro de cons-
se conseguia viver tranquilo nas trevas da ignorância, sem ter ciência pretendemos guiar-nos, ignorando o que existe nas pro-
uma resposta segura para os fundamentais porquês da vida. Ao fundidades de nossa psique, oculto nos abismos do inconscien-
contrário, cuidava-se muito do respeito para com as autorida- te, de onde provêm impulsos não controlados, aos quais obede-
des e a ordem constituída, a fim de que as posições fossem es- cemos, mas cuja origem e técnica funcional ignoramos. Numa
táveis e a vida continuasse tranquila. Não se suspeitava que a civilização superlativamente extrovertida, na qual se vive psi-
vida social, na verdade, pudesse funcionar de modo totalmente cologicamente projetado para o exterior, ignorando-se a si pró-
diverso, como hoje se está experimentando. prio, a introspecção e a respectiva pesquisa interior são uma la-
Toda a Obra reflete este meu dissídio com o mundo, na ân- cuna que o homem moderno deve preencher. Invade-se a maté-
sia de superar os seus velhos métodos, respondendo ao desejo ria, mas não se sabe penetrar no homem. Exploram-se os espa-
de conquista do conhecimento, para alcançar um tipo de vida ços externos, mas não se sabe fazê-lo nas amplitudes interiores.
mais evoluída. Iniciei a Obra recomeçando tudo desde o princí- As grandes descobertas do futuro – necessárias para poder dar à
pio, partindo do nada. O seu desenvolvimento expressa o cres- nossa semicivilização da técnica uma alma, sem a qual ela é in-
cimento do meu espírito, que a seguiu na sua ascensão. O mun- completa – virão da exploração do inconsciente, através da
do esteve sempre do lado oposto (AS), mas em formas diferen- pesquisa daquele grande mundo interior que, sem termos co-
tes. Nos primeiros volumes da Obra, o antagonismo se manifes- nhecimento dele, trazemos conosco.
tou como fuga do mundo, no espírito, e prevaleceu a visão do O homem é ainda manobrado pelos impulsos instintivos
ideal, no qual me refugiei, fazendo dele o centro da vida, sem emergentes de tal inconsciente. Eles plasmaram a sua ética em-
tomar em consideração o nosso meio, que, nesta fase, foi visto pírica e ilógica, impulsionando-o para formas de ações contra-
não como negação do ideal, mas apenas como ambiente da sua producentes e muitas vezes desastrosas, como no caso das guer-
realização teórica. A primeira fase da Obra, plena de fé e ímpe- ras. Estas, assim como a delinquência, o vício e tantos outros
to espiritual, manteve-se no plano místico. Mas, atravessada a males são devidos a um modo errado de pensar, resultando de
primeira etapa, devia-se chegar à segunda fase, que, em vez de reações loucamente provocadas por uma absurda conduta, in-
contemplação dos princípios ideais, exige agora, para não per- consciente das suas consequências, com profunda ignorância da
manecer em vão, uma realização na Terra, proposta não muito arte de saber comportar-se inteligentemente. Será possível que
agradável ao homem. Foi assim que, nos últimos volumes, após a humanidade ainda deve funcionar com tanta estupidez, a pon-
ter chegado às conclusões práticas, os dois opostos, ideal e to de usar as conquistas da ciência para se autodestruir? Quan-
mundo, tiveram de se avizinhar até se tocarem, para se fundi- do poderá o homem sair de tão desastrosa inconsciência?
rem, o primeiro penetrando no segundo. Então, veio o choque. É necessário aprendermos a agir diversamente, instruindo-
O ideal, não podendo atraiçoar-se a si mesmo, devia per- nos com a arte do pensamento correto, que está na base da ação
manecer coerente. Por lei de evolução, ele é feito para ser rea- e sem o qual cometeremos erros, gerando sofrimentos. Pensar
lizado. Mas o mundo não quer ser incomodado. Enquanto o corretamente significa ser consciente do pensamento que dirige
tratado permaneceu longínquo e teórico, foi aceito como inó- o funcionamento orgânico do todo, dentro do qual existimos e
cua exercitação filosófica ou literária, fora da realidade da vi- nos movemos. Enquanto não pensarmos e vivermos de acordo
da. Mas, quando desceu ao plano das realizações práticas, com a Lei, seremos continuamente feridos pelas suas reações.
sentiu-se-lhe então a queimadura, e veio a reação. O mundo Os maiores valores que sustentarão a nossa civilização não se-
funciona com outros princípios e não quer ideais que incomo- rão técnicos, mas sim espirituais. E eles serão descobertos pe-
dem. Em dois mil anos, com escapatórias e hipocrisias, con- netrando no mundo da psique, e não da matéria. Não se trata de
seguiu-se domesticar a religião, a fim de que ela não pertur- uma conquista de meios materiais, com o domínio das forças da
basse. É, portanto, irritante uma denúncia dos próprios erros. natureza por parte de quem permaneceu espiritualmente um
Por isso repele-se o médico que diagnostica uma doença e selvagem, incapaz de saber fazer bom uso daquelas forças, mas
propõe uma cura fastidiosa. Todavia, em certos momentos sim de uma conquista de consciência, com a ampliação do do-
históricos graves, é necessário falar. Daí não haver mal ne- mínio daquele que se tornou evoluído, sendo capaz de compre-
nhum, pois trata-se apenas de falar. A parte mais importante ender o verdadeiro significado da natureza e de enquadrar-se no
do discurso, Deus a pronuncia com fatos, através de aconte- seu inteligente funcionamento, para fazer uso benéfico dela.
cimentos apocalípticos que estão amadurecendo, dado ser esta É certo que o atual domínio sobre as forças da natureza
a única linguagem compreendida por todos. conquistado pela ciência já é um início de civilização. No en-
O estilo de vida proposto pela Obra na sua parte final, no tanto, se isto é a sua base material, não é ainda a civilização. A
sentido de realização, com seu modo de entender e dirigir a nova espiritualidade que a formará não será de tipo religioso fi-
existência, pode parecer estranho ao nosso tempo, que é ativo deístico, empírico, baseada ainda em instintos de exclusivismo,
sobretudo em direção extrovertida, no plano físico, para fina- proselitismo, fanatismo, absolutismo etc., sobre os quais, em
lidades materiais. O homem, tal como a ciência, voltou-se pa- grande parte, estão apoiadas as religiões atuais, mas sim de tipo
ra o domínio do seu mundo exterior, mas ignora ainda o seu científico, racional, demonstrado, positivo e universal, como é a
universo interior. Uma vez que não abrange todo o campo da ciência. Em vez de se apoiar sobre afirmações teóricas por
vida, a visão da ciência é insuficiente. Se ela modifica o am- princípio de autoridade, ela será baseada sobre a realidade do
biente a favor do homem, deixa-o, no entanto, no estado de mundo interior, que, apesar de ignorada hoje, é tão objetiva
consciência do involuído, dominado prevalentemente pelos quanto a do mundo exterior, agora colocada em evidência pela
impulsos emergentes dos baixos níveis da animalidade. É as- ciência. Está provada a possibilidade da transmutação como
sim que da descoberta da energia atômica, obra de grande gê- propriedade fundamental das energias biológicas e psicológi-
nio, o maior uso pode resultar em prejuízo em vez de vanta- cas, fenômeno sobre o qual se apoia a evolução, sem o que ela
gem, resolvendo-se num retrocesso, de modo que teria sido não se poderia realizar. A ciência estudará a química daquele
mais útil não ter avançado neste sentido. processo de sublimação, substituindo o velho método da repres-
106 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
são no subconsciente pelo da canalização das energias vitais em jam antagônicos e se elidam, porque a intervenção consciente
direção ao Alto. Compreender-se-á então, entre outras coisas, do pensamento cerebral paralisa o funcionamento do intuitivo.
que o misticismo não é um sucedâneo ou um subproduto do se- Este foge a qualquer intervenção, desaparecendo ao ser forçado.
xo, como foi entendido por certa posição do materialismo, que Parece que teme a luz, a exemplo do ectoplasma, que se escon-
está desaparecendo, mas sim um estado avançado de evolução de, quando é observado na sua misteriosa técnica funcional,
em direção espiritual, resultado da sublimação vertical de todas como se a vontade de dominá-lo constituísse uma vibração vio-
as qualidades constitutivas da personalidade. lenta que o destruísse. Ele é um pensamento autônomo, com
◘ ◘ ◘ uma personalidade e vontade sua, que não é a do sujeito, de cu-
Continuemos a observar esses fenômenos também sob ou- jas opiniões independe, pensando com sua própria mentalidade.
tros aspectos, para penetrar sempre mais a fundo, através do Quando se põe a desenvolver um tema, não o demonstra anali-
estudo de nosso caso, no mistério da psique e de outros pro- ticamente, mas simplesmente o expõe, resumindo-o, condensa-
blemas afins. Para o biólogo, habituado a constatar que o fun- do numa série de sínteses. Se não tomo nota imediatamente, ou
cionamento psíquico é ligado aos órgãos nervosos e cerebrais, uma delas me foge, o discurso continua deixando o vazio no
torna-se difícil conceber o primeiro isolado e independente do lugar da proposição faltante. Se procuro encontrá-la, recordan-
funcionamento dos segundos, de modo que possa sobreviver do ou esperando que se repita, não acho mais aquela ideia, mas
depois da morte destes. Isto porque a vida não oferece exem- sim outra, que continua o desenvolvimento da precedente. En-
plos de pensamento sem cérebro. Ora, o fato de haver no caso quanto tudo isso sucede, o meu pensamento normal procura ver
que estamos estudando aqui a presença de um pensamento de como funciona o outro. E é assim que posso expor aqui estas
tipo intuitivo, diverso daquele normal ao nível cerebral, pode observações. Procuro colhê-lo de surpresa, para apreender-lhe
avizinhar-nos da compreensão da possibilidade de separação os segredos. Mas estas minhas intervenções cerebrais o emba-
entre as funções psicocêntricas e as cérebro-cêntricas. Tal pos- raçam, paralisando-o. Para uma melhor recepção é conveniente
sibilidade implica uma vida mental independente do órgão ce- me manter ocupado, para desviar deste modo minha atenção,
rebral e da morte física. Esta poderia ser uma prova da sobre- por exemplo, com boa música, harmoniosa e elevada, ou então
vivência do espírito. É exatamente neste sentido que estou rea- olhando reprodução de quadros de alta concepção ou de paisa-
lizando tais experiências, possíveis no meu caso parapsicológi- gens bem sintonizadas. Isto não significa inércia da mente nor-
co porque uso uma técnica de pensamento supranormal, po- mal, mas sim, uma quietude contemplativa, um estado de vigi-
dendo libertar-me um pouco das normais funções cerebrais e, lância tranquila, harmonicamente ajustada ao ambiente espiri-
ao mesmo tempo, observar, além daquelas, uma atividade tual em que estou submerso, num processo calmo, para tornar
mental isolável e independente. mais aguda a sensibilidade, porém num sentido diverso da co-
Já explicamos as diversas características que individualizam mum percepção sensória. Trata-se de uma experiência estranha,
estas duas formas mentais e técnicas de pensamento. A intuiti- se confrontada com o modo normal, que conheço e uso comu-
va, sem dúvida, transcende a normal, sabendo funcionar por mente, de perceber e de pensar. Tenho a sensação de que isso
conta própria, separada e autônoma, tanto que a psicologia seja uma comunicação telepática com correntes de pensamento
normal confia a ela um trabalho diverso do seu, executado de individualizadas, de maneira que dão a sensação de personali-
modo diferente. Evidentemente, a personalidade humana possui dade, com a qual o contato se faz tanto mais claro e intenso,
ainda outras qualidades, além daquelas ligadas aos órgãos do quanto mais exato é o grau de sintonização alcançado.
corpo. Eis, então, que ela pode funcionar também além dos li- Tudo isso me prova experimentalmente a possibilidade de
mites dados pela capacidade daqueles órgãos. Deduz-se que um pensamento não cerebral, elaborado no inconsciente, no
eles – neste caso, o cérebro e o sistema nervoso – constituem o plano espiritual, independente dos meus elementos mnemôni-
menos subordinado ao mais, sendo um instrumento que o indi- cos e de minha precedente e consciente preparação mental. Tais
víduo utiliza para produzir um tipo de pensamento proporcio- experiências confirmam a minha convicção da sobrevivência da
nado ao ambiente terrestre, a fim de poder viver aqui, embora personalidade depois da morte. O estudo do meu caso parapsi-
ele seja capaz de uma espécie de pensamento superior a este. cológico me ajuda a resolver também este problema, que deve,
Existe o fato de que o efeito deve ser da mesma natureza da no entanto, ser enfrentado não apenas genericamente, mas tam-
causa e proporcionado a ela. Ora, matéria e espírito são de es- bém em sentido específico, sendo preciso ver de que forma se
trutura diversa, e um funcionamento cerebral não é proporcio- sobrevive. São necessárias, então, outras observações.
nado a efeitos mentais que o transcendem em potência e quali- A oposição cérebro-espírito corresponde ao contraste maté-
dade. Um caso semelhante é representado pela impossibilidade ria-espírito, sendo ela também um caso do dualismo universal.
de se admitir que o tipo de personalidade seja o produto dos Aqui temos novamente uma bipolaridade de opostos inversos e
cromossomos e genes encontrados pelo nascituro nas células complementares. Se observarmos como se desenvolve a vida do
germinais dos genitores. Deveremos, ao contrário, admitir que a homem, constataremos claramente um dualismo de contrários.
personalidade não deriva do desenvolvimento desses elemen- No período jovem, temos um dinamismo físico, uma efervescên-
tos, não sendo a formação do seu tipo um efeito causado por cia sensória, uma exuberância no plano matéria, para nosso de-
eles, mas sim que ela é preexistente ao nascimento e que, se- senvolvimento e afirmação. Mas a carga vital se esgota com os
gundo o seu tipo já definido, escolhe nas células germinais dos anos. O impulso evolutivo do jovem vai-se cansando, diminuindo
genitores os elementos mais assemelhados e, portanto, mais até parar. No período senil tudo se inverte, temos calma, silêncio,
adaptados a si, para continuar a se desenvolver consoante o repouso. A vida, que primeiramente se projetava toda em direção
próprio tipo. Tal fenômeno acontece por afinidade e sintonia. ao futuro, ansiosa de desenvolvimento, transfere-se para o passa-
Só assim a evolução pode seguir um desenvolvimento lógico, do, não restando dela senão recordações num cérebro cansado.
não confiado ao acaso através de tentativas. Passa-se, assim, à posição oposta e complementar. Tal é o aspec-
Na minha registração inspirativa, sempre observei que a to bifrontal da vida normal no plano físico e mental.
técnica funcional do pensamento é, neste caso, diversa daquela Ora, se a personalidade e o corpo fossem uma única coisa,
utilizada por mim no estado normal, para os comuns trabalhos indistintos entre si, de modo que a primeira dependesse do se-
mentais da vida. O primeiro é um pensamento espontâneo e au- gundo, ela deveria seguir o mesmo ritmo deste. Mas, pelo con-
tomático, que foge ao controle e à análise, sendo independente trário, a vida psíquica segue um caminho diferente, o que nos
da minha vontade de pensar e do meu esforço de raciocínio pa- mostra tratar-se de um fenômeno de outro tipo, separável do
ra compreender. Parece até que os dois tipos de pensamento se- corpo, podendo subsistir isolado, mesmo depois da morte. Eis
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 107
que o ciclo mental não corresponde ao físico. Cada indivíduo consciente. A constatação destes fatos permite prever, confor-
chega ao máximo do desenvolvimento da sua personalidade em me o tipo do indivíduo, qual será o gênero de morte que o es-
períodos diferentes do seu ciclo físico, e isto conforme o nível pera, ou seja, se ela será uma queda na inconsciência ou uma
evolutivo alcançado. Assim, um primitivo involuído se desen- morte lúcida, sem perda de consciência e conhecimento. Para
volverá, como faculdades mentais, até aos vinte ou trinta anos. quem conhece quais são os resultados da evolução, é lógico
Sendo baixo o seu nível evolutivo, o ponto máximo é rapida- que aconteça assim. Deste modo, ele se liberta cada vez mais
mente alcançado, depois do qual as faculdades mentais perma- da morte, na medida em que dilata e potencializa a faixa do
necem estacionárias e, tão logo decai o cérebro – o órgão da sua consciente à custa da zona do inconsciente.
expressão, do qual elas não transcendem as possibilidades – en- Este é o fenômeno que, agora, estou experimentalmente con-
tram em declínio. Um tipo normal, de nível evolutivo mediano, trolando com aquela morte lenta trazida pela velhice. Estou es-
mais alto que o precedente, subirá, como faculdades mentais, crevendo estas últimas páginas na idade de oitenta e um anos,
dado que elas são mais elevadas, até um nível superior e poderá em plena lucidez, com técnica inspirativa supercerebral, utili-
alcançar o seu ápice de maturação mais tarde, por volta dos zando o tipo de pensamento que não se ressente da natural disso-
cinquenta anos. Um evoluído supranormal continuará a ascen- lução senil do cérebro. Constato o fato de que, apesar do meu
der, como faculdades mentais, uma vez que estas são ainda cérebro envelhecer, dando-me sinais disso no seu nível funcio-
mais elevadas, até um plano mais alto, e isto levará mais tempo, nal, as faculdades intuitivas não sofrem as consequências desse
de modo que o ponto máximo de maturação poderá ser alcan- processo e continuam a operar em seu plano, independentes da-
çado próximo aos oitenta anos. quele fato. Isto me prova que o pensamento ativo no supercons-
O que acontece em geral com os três tipos, na velhice e na ciente não depende do órgão físico ao qual se encontra ligado,
morte, com relação às qualidades psíquicas? Aqui, vemos que quando funciona no nível normal. Ora, estar habituado a pensar
os decursos das suas vidas física e psíquica não coincidem. O em forma mental supercerebral significa ter conquistado um tipo
órgão cerebral começa geralmente a decair entre os cinquenta e de pensamento não ligado ao cérebro, de modo que a personali-
sessenta anos. No tipo involuído, as faculdades do pensamento dade não sente os efeitos do desfazimento daquele órgão. Este
se desenvolvem até ao seu máximo em vinte ou trinta anos, es- pensamento, portanto, sabe sobreviver intacto, em plena eficiên-
tando, assim como as do tipo normal, na dependência do órgão cia e lucidez, ao aniquilamento do corpo depois da morte. Agora
cerebral e diminuindo com este. Em ambos os casos, a velhice que a velhice me está progressivamente matando no plano físi-
física comumente conduz à velhice mental. Isto porque a parte co, o fato de que posso continuar a viver plenamente no nível
espiritual do indivíduo se apoia toda no cérebro que a expressa, mental me indica a continuação deste tipo de existência espiritu-
não transcendendo os poderes do instrumento. Então a psique, al também depois da morte. Se esta, que já está demolindo meu
pelo fato de não ser bastante potente para formar uma vida au- corpo e cérebro, não altera realmente o meu pensamento, isto
tônoma independente, capacidade acima das possibilidade do quer dizer que ele lhe escapa e que poderá sobreviver intacto.
órgão que a expressa, é obrigada a decair com este. Teremos Tal convicção me é confirmada ainda por outro fato, pois a natu-
assim, na velhice, aquilo que geralmente acontece, ou seja, uma ral anulação senil cerebral não somente deixa intacto esse pen-
descida mental progressiva, culminando na morte, que será um samento, mas o liberta definitivamente das coações de caráter
extinguir-se da consciência até aos níveis do subconsciente al- material, tornando-o cada vez mais límpido e profundo, o que
cançados pela personalidade do indivíduo. faz presumir ser esta a forma na qual ele sobreviverá.
Nos primitivos, ainda não desenvolvidos no superconscien- É nesta fase final do fenômeno que, podendo observar o en-
te, ativos somente no plano físico, a vida é apenas corpórea, de fraquecimento senil do órgão cerebral, posso melhor isolar e
modo que a morte dá a sensação de anulação final. Esta é a ra- distinguir as duas formas de pensamento que vejo funcionarem:
zão pela qual ela é olhada com terror. Mas isso não quer dizer a cerebral e a intuitiva. No atual período, a primeira se faz mais
que eles não sobrevivam. A sobrevivência acontece, mas cain- cansativa e a segunda, mais evidente. Durante quase quarenta
do na inconsciência ou ficando com a capacidade de pensar anos de uso, conheço bem estas duas formas mentais, com as
apenas no nível do subconsciente animal. Faz realmente sofrer quais construí a Obra. O pensamento cerebral tem sido não
aquela sufocante diminuição vital, o que torna temível a morte. apenas um meio de registração e fixação do lampejo intuitivo,
Uma vez extinto o cérebro, que era a zona dentro da qual estava mas também um instrumento de tradução deste na forma mental
limitada toda a consciência que o indivíduo possuía, tudo se segmentada, feita de anéis encadeados na sucessão lógica do
passa como se este fosse mentalmente finito, mesmo que so- pensamento racional. O pensamento intuitivo era, ao contrário,
brevivam no seu subconsciente resíduos de reminiscências ter- imediatamente resolutivo. Fornecia, já elaborados, os totais das
restres. Para tais indivíduos, a vida é somente aquela do corpo operações, recebidos em seguida no pensamento cerebral, que
no plano físico. Por isso temem perdê-la e, quando a perdem, devia depois, para torná-los compreensíveis ao leitor, realizar e
procuram-na imediatamente, reencarnando-se para tornar a vi- mostrar o desenvolvimento sucessivo daquelas operações. O
ver no seu ambiente físico, o único em que se sentem vivos. Ao pensamento cerebral é extrovertido, feito para entrar em contato
contrário, no indivíduo que alcançou um desenvolvimento men- com o ambiente terrestre e nele resolver o problema da sobre-
tal e nível de consciência psicocêntrica mais avançado que o vivência. O pensamento intuitivo é introvertido, dirigido ao
normal, a sobrevivência da personalidade no momento da morte domínio de si mesmo e das íntimas forças da vida, estando li-
advém em estado lúcido, sem nenhuma perda de consciência e gado a outro mundo, submerso e profundo, invisível na superfí-
sem a sensação de anulação na morte. Isto corrobora nossa cie. Conforme posso constatar agora, é a primeira forma de
afirmação de que a evolução conduz em direção ao S, levando à pensamento que envelhece, e não a segunda, fato pelo qual te-
superação de tudo o que é negativo, próprio do AS, como a ig- nho motivos para crer que a primeira possa morrer com o cére-
norância, a dor e até mesmo a morte. bro, mas não a segunda. Tenho a sensação de que, quanto mais
Na velhice, que é o período no qual se começa a morrer nos avizinhamos do superconsciente, tanto mais se pode atra-
gradualmente, pode-se constatar e controlar não só a realização vessar a morte em estado de lucidez e consciência, sendo possí-
deste processo de desfazimento mental que acompanha o de- vel, assim, continuar-se além dela. A tendência atual é funcio-
clínio do cérebro nos indivíduos cérebro-cêntricos, de desen- nar cada vez mais consciente no superconsciente, que já está
volvimento mental inferior ou médio, mas também a ausência observando a lenta morte do meu pensamento no nível cerebral.
deste enfraquecimento nos indivíduos psicocêntricos, habitua- Isto me mostra as respectivas trajetórias dos dois fenômenos,
dos a funcionar mentalmente no nível supercerebral do super- segundo a qual cada um deles se desenvolve. O fato assistido
108 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
agora por mim na velhice é que o pensamento não para, mas corrente de pensamento constituída pela Lei, que percorre oni-
muda de forma. Ele se interioriza, vendo as coisas sempre mais presente todos os caminhos do universo, para lhes reger o funci-
por dentro, em vez de por fora; concluindo, em vez de analisar. onamento. Não é possível deixar de encontrá-la e de nela sub-
Parece que ele adquire em qualidade aquilo que perde em quan- mergir, tão logo a intuição nos faça penetrar na profundeza do
tidade, porque torna-se mais agudo e profundo. Ocorre algo se- ser. Assim, bem mais do que uma simples exercitação literária, a
melhante a um processo de destilação, para chegar a um estado Obra é vida ansiosa por se desenvolver, é vibrante vontade de
de concentração e de potencial que o cérebro não tem mais a ca- subir e de conquistar sempre maiores espaços. Não obstante a
pacidade de sustentar. Parece que o pensamento foge do plano queda, nela grita a voz do Sistema, que está na divina substância
cerebral, explodindo para além dos limites deste, a fim de trans- da qual estamos feitos e que permaneceu indestrutível em nosso
ferir-se a outra dimensão. Sinto, então, que estou pensando o universo reduzido a Anti-Sistema. Ela é a voz do Deus imanen-
inexprimível e fico mudo, impossibilitado de traduzi-lo em pa- te, que ficou neste mundo derrocado para reconstruí-lo, dando-
lavras que não encontro na forma mental humana. Assisto, por nos, de dentro, o impulso para emergir do AS em direção ao S.
um lado, ao fenômeno de uma extinção e, por outro, ao de uma
iluminação, que lhe toma o lugar. Trata-se de uma substituição, XVII. O ÚLTIMO ATO.
com a qual não se perde, mas sim ganha-se. Porém o trabalho de O HOMEM PERANTE A MORTE
transportar os conceitos ao normal nível cerebral torna-se cada
vez mais difícil, porque, quanto mais se abre o novo mundo no Neste mundo, a carne, plasmada pelo espírito para agir e se
alto, sinto que tanto mais se afasta o velho mundo em baixo. desenvolver, torna-se fatalmente, cedo ou tarde, uma prisão
Tudo isso me faz supor que, estabilizada de agora em diante esta onde a alma fica sufocada. Para os organismos naturais, per-
trajetória no desenvolvimento do fenômeno, tal transformação tençam ao indivíduo ou à humanidade, só há uma saída para a
continuará até à morte, prosseguindo também depois dela, e que vida maior: a morte. (A Grande Mônada)
este será o tipo de pensamento em que sobreviverei. Assim, por Pierre Teilhard de Chardin
natural maturação evolutiva, estarei morrendo ao nível mental
normal, relativo ao ambiente terrestre, e ressuscitando no plano O cristianismo afirma solenemente o fato da sobrevivência
mental do superconsciente, provavelmente próprio de outros es- do espírito, mas apresenta-nos o fenômeno de forma racional-
tágios de evolução. Em outros termos, depois de uma exercita- mente não admissível, e isto pelas seguintes razões:
ção de quarenta anos, a que devo a elaboração da Obra, verifi- 1) A alma não pode ter origem numa criação a partir do na-
car-se-ia a estabilização definitiva do fenômeno inspirativo, da, porque tal fenômeno não existe e não pode existir no uni-
transformado por longo uso em qualidade adquirida. verso, seja no estado de S, seja no de AS. Há uma única possi-
Tudo isso significa uma futura transferência para outro pla- bilidade, que é dada pela transformação da substância, de uma
no biológico, dando-se agora a respectiva adaptação ao diverso forma em outra. Aquele conceito de criação é puramente antro-
tipo de vida e de pensamento próprio daquele novo ambiente. pomórfico, admissível somente no relativo, onde o ato de criar,
Trata-se, portanto, de uma transformação justificada pela lei da dado pela transformação de um estado em outro, é concebido
evolução, segundo a qual, quanto mais se sobe, tanto mais se como a derivação de um novo estado a partir de um precedente
tende à espiritualização. Nesses mais altos níveis, o trabalho do que, em relação a ele, é o nada. A lógica confirma o absurdo do
ser já não consiste na luta para selecionar um tipo forte, o mais conceito de uma criação a partir do nada. Tal processo produ-
apto a sobreviver, mas baseia-se na conquista do conhecimento ziria algo novo, que se acrescentaria a Deus. Se isso fosse pos-
e na expansão da consciência, fato que, na Terra, interessa ape- sível, Ele não seria mais o todo, pois outra coisa poderia existir
nas a uma minoria. Mas, para a evolução deste nosso mundo, o fora e além Dele. Então, Ele não seria mais Deus.
futuro da civilização está nesta interiorização do pensamento, 2) Com a criação da alma no ato da concepção física, Deus
nesta penetração introvertida, dirigida para a descoberta de rea- deveria estar à disposição do homem que a exigisse, sendo
lidades espirituais hoje desconhecidas, nas quais está a chave obrigado a criar somente quando e se este quisesse.
do mistério da vida. Assim como sucede com o indivíduo na 3) Dado que Deus não pode ser injusto, as almas, sendo cri-
velhice, a maturação também levará a humanidade à introver- adas ao nascer, deveriam ser todas iguais, com as mesmas qua-
são, no sentido de uma sempre maior penetração no mundo in- lidades e destino. Ao contrário, sem justificação alguma, os ti-
terior. No fim de cada ciclo evolutivo, ao longo do caminho pos de personalidade e ambiente nos quais se nasce são diferen-
projetado para frente pela evolução, quanto mais se amadurece, tes, estabelecidos antes que o indivíduo possa conhecê-los e,
tanto mais, seja na vida do indivíduo como na dos povos, veri- portanto, tornar-se responsável pela maior parte das causas e
fica-se o fenômeno pelo qual o impulso extrovertido, próprio da efeitos que lhe vão trazer uma eternidade de alegria ou de dor.
juventude e dirigido à experiência terrestre, é no final desta re- 4) A criação da alma ao nascer significa uma quantidade
absorvido em sentido introvertido, para depositar-lhe os resul- de tempo infinita no futuro e nula no passado, a menos que
tados nas zonas interiores da vida, onde está a substância da não se queira admitir nenhum tempo também no porvir, ne-
evolução e se processa o íntimo trabalho do seu desenvolvi- gando a imortalidade. O que tem um início deve ter um fim, e
mento. É nestas camadas profundas que a vida se retrai, para se este não existe, também não pode haver aquele. Não é ad-
realizar as suas elaborações no período pós-morte. missível o desequilíbrio resultante de tal desproporção de par-
Como se vê, o estudo de nosso caso parapsicológico nos le- tes. A natureza do fenômeno deve ser uma só, a mesma de
vou bem longe, mostrando-nos que se tratou não somente, como ambos os lados, e não apenas na parte de tipo oposto àquela
já foi explicado, de escrever uma Obra, mas também de realizar na qual ela é do outro lado.
o trabalho de maturação de um destino, tarefa que investe toda a 5) Trata-se de algo fora de toda proporção entre causa e
personalidade humana e penetra, até às mais profundas raízes, efeito, porquanto, com uma vida de cem anos no máximo, po-
no fenômeno da vida, da redenção e da evolução. O nosso caso de-se determinar as causas suficientes para justificar como
contém muito mais do que um fenômeno parapsicológico, por- consequência uma eternidade de prêmio ou de castigo, de ale-
que a Obra foi não somente recebida telepaticamente ou captada gria ou de dor. Uma só vida, conduzida em particulares e limi-
como pensamento, mas também seguida como missão e vivida tadas condições, não é suficiente para completar a construção
como redenção. A comunicação telepática não foi apenas com de uma personalidade, que, tendo atingido seu estado final,
esta ou aquela particular corrente de pensamento, mas sim – não estaria mais sujeita a evoluir. Como pode o indivíduo,
ainda que limitada a alguns dos seus aspectos – com a imensa possuindo somente o resultado de uma tão escassa experiên-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 109
cia, ter alcançado uma forma na qual possa ficar definitiva- Poder-se-ia dizer que, no primeiro caso, vê-se o fenômeno nos
mente fixado para toda a eternidade? seus efeitos; no segundo, nas suas causas. É natural que a ciên-
6) Se o mal é devido à queda no AS, sem a qual a sua exis- cia tenha preferido a primeira via, porque a sua objetividade a
tência não se explica, pois ele não pode ser obra de Deus, é ab- torna exterior, enquanto a subjetividade do segundo caminho o
surdo que a redenção desse mal, com o retorno ao S, possa ser converte em interior. Mas é evidente que se trata de dois méto-
cumprida utilizando o sacrifício de outros, não culpados – neste dos complementares, para atingir o conhecimento do mesmo
caso, o de Cristo – em vez de o ser com o esforço próprio, ou en- fenômeno, que será visto na sua totalidade e completo somente
tão fugindo, de um golpe só e com apenas uma breve vida, à lon- se observado de ambos os lados, sendo penetrado pelas duas
ga maturação evolutiva, que constitui lenta transformação, a úni- vias. Assim o método psíquico-espiritual pode ser concebido
ca maneira que pode logicamente permitir o regresso ao estado de forma cérebro-cêntrica e psicocêntrica, sendo que uma sua
de origem no S. Que dizer então, quando essa vida é só de pou- visão total não pode ser dada senão através de uma observação
cos meses, totalmente insuficiente para experimentar ou apren- ampla, capaz de abraçá-lo em toda a sua extensão, de um ao
der? Em suma, a criação da alma ao nascer exclui a evolução, outro dos seus dois polos.
sem a qual não se pode realizar uma justa e merecida redenção. Perguntamo-nos, então, por que a ciência deve limitar-se
7) A construção da personalidade humana se explica apenas apenas ao uso do primeiro sistema de observação, não utili-
como resultado de uma transmissão e acumulação de qualida- zando na pesquisa também os recursos da intuição? É certo
des adquiridas. Ora, isto é possível somente por via espiritual, que esta deveria dar somente a orientação, mas com isso terí-
através da reencarnação, não podendo acontecer pelas vias da amos uma investigação guiada, e não cega como hoje, abando-
hereditariedade fisiológica, porque esta se transfere na juventu- nada à tentativa de hipóteses lançadas ao acaso. Assim se faria
de, quando os genitores não viveram ainda experiências para mais completo o método da sondagem do ignoto. Por que se
transmitir, e não na velhice, quando eles, tendo-se enriquecido, recusar a ajuda que pode vir deste lado? Porque o conceito ma-
teriam material para propagar. terialista diz que mover-nos no campo metafísico nos conduz
8) Em nosso universo, tudo deriva de um seu precedente, para fora da realidade? Na verdade, tudo seria controlado, de
que lhe é a causa, sendo o efeito desta. Também a personalida- maneira que a intuição não se resolvesse em fantasia. Trata-se
de humana é um fato positivo. Ora, se ela existe, deve ter um de juntar duas vias de pesquisa complementares, ligando-as em
seu precedente do qual ela deriva e que é a causa da sua exis- colaboração, para cada uma funcionar na sua justa posição.
tência. Se nada se cria e nada se destrói, ela deve preexistir ao Não foi dito que a metafísica, apesar de constituir uma realida-
nascimento físico e continuar a existir depois da morte. Sem re- de diversa daquela objetiva e experimental da ciência, não se-
encarnação a personalidade humana seria um efeito sem causa. ria uma realidade. Porquanto se trata de dois pontos de vista e
E esse efeito não é genérico, mas bem definido nas suas quali- métodos complementares, não há razão para que, com vanta-
dades individuais, que revelam uma história passada. gem comum, eles não se devam auxiliar reciprocamente, con-
Sustentamos aqui o fato de vivermos num universo dirigido ciliando a natureza abstrata do primeiro, para alcançar a visão
por uma lógica que exclui a possibilidade de ser violada por ab- de conjunto, e o caráter concreto do segundo, para fazer o
surdos. Eis que o problema da sobrevivência, conforme o esta- exame particular. Deste modo, lançar-se-ia a antena em dire-
mos colocando, implica o da preexistência; que o desencarnar ção à exploração do ignoto, para encontrar paralelamente uma
traz consigo o encarnar; que a saída e a entrada na forma de vi- confirmação experimental e analítica no terreno concreto. Fa-
da terrestre se condicionam reciprocamente, compondo um fe- remos a seguir uma aplicação desses conceitos.
nômeno único, visto em duas posições diversas. Tivemos de es- O problema da sobrevivência depois da morte física não é
clarecer estes conceitos, porque, somente desta forma, é logi- facilmente solúvel, se permanecermos na parte externa do fe-
camente concebível a sobrevivência do espírito. nômeno, realizando observações dos casos nos seus efeitos ex-
Do lado oposto ao das religiões, vemos que a ciência, de- teriores, por via extrovertida, ao invés de penetrar na sua ínti-
pois de ter, na sua fase materialista, negado a existência do es- ma estrutura psíquica, por via introvertida. Tomemos como
pírito, agora, quando se pôs seriamente a indagar no campo psi- exemplo neste campo as recentes investigações de Rhine, que
cológico e parapsicológico, permanece ainda titubeante, estan- utiliza o primeiro destes dois métodos. Em seu longo caminho
do longe de saber concluir. É certo que a ciência tinha o dever por via analítica, ele não chegou senão a conclusões parciais,
de ser positiva, ficando no terreno objetivo e experimental. Mas tendo-se limitado a confirmar a presença de uma percepção ex-
isto tornou inevitável a limitação do seu campo de indagação ao trasensorial (ESP) e de uma psicocinética (PC), que designa as
aspecto material do fenômeno. Ora, o fato de lhe ter escapado a modificações extramotores no ambiente devidas à energia psí-
parte psíquico-espiritual – que realmente existe, apesar de não quica (o espírito que atua diretamente sobre a matéria). Res-
ser reduzível ao plano físico – não a deixou obter senão uma vi- tringiu-se assim a constatar haver penetrado num terreno extra-
são unilateral e incompleta. físico, que transcende as leis físicas.
Além disso, no próprio ato da observação, é bem estranho A respeito da sobrevivência, diz J. B. Rhine no seu volume:
ter em conta somente o fato exterior, que representa apenas a The Reach of the Mind (O Alcance da Mente), Cap. XII:
metade do fenômeno, e não também a outra, constituída pelo “A única espécie de percepção possível no estado de desen-
seu lado interior, através do qual a visão e a interpretação da- carnado seria a extrasensorial (ESP), sendo a ação psicocinética
quela parte exterior é obtida em função da natureza psíquica e (PC) o único meio para influir no universo físico, fosse este qual
espiritual do observador. Portanto a atual objetividade científica fosse (...)”. Rhine coloca o problema da sobrevivência em fun-
é incompleta, sendo que uma técnica experimental mais perfeita ção da ESP e da PC, enfrentando-o por essas duas vias. Ele
deveria abraçar ambos os momentos no ato da observação. A permanece em nosso plano de existência, fora daquele no qual
análise lógica do fenômeno psíquico pode ser feita não apenas se realiza o fenômeno, portanto trabalha em forma sensória ex-
por via extrovertida, observando uma vasta casuística, reco- trovertida, em vez da espiritual introvertida. Sua pesquisa, diri-
lhendo fatos e procurando descobrir as leis reguladoras do seu gindo-se à matéria, onde aquele fenômeno não aparece senão in-
funcionamento, mas também por via introvertida, pela qual o cidentalmente, pois esta não é o seu meio, não investiga no espí-
indivíduo pensante observa como está funcionando nele seu rito, onde o fenômeno funciona normalmente, pelo fato de ser
próprio pensamento, enquanto está pensando. este o seu ambiente natural. Assim, Rhine vê somente o aspecto
Nos tratados de Psicologia e Parapsicologia, usa-se em ge- negativo do fenômeno, a sombra projetada por este no plano fí-
ral o primeiro método. No presente escrito, usamos o segundo. sico. Desta forma, não vai além da constatação do fato de que a
110 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
ESP e a PC revelam existir, na profundidade, um funcionamento indagação para formular hipóteses de trabalho e submetê-las
não pertencente ao mundo material no qual vivemos. Mais além depois a controle experimental, verificando-se através da ob-
ele não vê, e o aspecto positivo do fenômeno lhe escapa. servação se os fatos confirmariam a intuição, concordando
Rhine, para ser coerente, não podia colocar o problema se- com ela. Assim a investigação poderia ser orientada em parte,
não no plano da existência humana, que é o material, pois, se o mas não como preconcepção, e sim como hipótese, o que pou-
tivesse colocado ao nível próprio do fenômeno, que é espiritual, paria o trabalho inerente à pesquisa, quando esta avança por
não teria sido positivo, como deve ser um cientista. A ciência, tentativas. Isto poderia constituir a primeira parte da investiga-
para ser fiel aos seus métodos, neste caso, ficou longe do centro ção, consistindo na projeção de um pensamento antecipador da
do fenômeno, razão pela qual, por mais que ela procure agarrá- solução do problema tomado em exame, projeção obtida com o
lo, este lhe foge na sua essência. Aqui vemos como são grandes lançamento dos tentáculos da intuição em frente, para depois
os limites da ciência e dos seus métodos positivos de pesquisa. avançar com mais segurança, utilizando os meios positivos do
Isto nos faz pensar a priori numa incompetência congênita normal controle racional e experimental.
da ciência oficial, para penetrar na substância dos fenômenos, o Apresentamos agora um exemplo no qual aplicaremos os
que a constringe a permanecer na superfície deles. É assim que princípios acima expostos. Enfrentamos o problema da sobre-
se explica como ela pode chegar, como sucede de fato, a cons- vivência depois da morte com o método da intuição, segundo
truir uma técnica praticamente utilitária, para desfrutar em sua um caminho diverso do seguido pela ciência. Vamos expor
própria vantagem as leis da natureza, enquanto não sabe chegar aqui os resultados, traduzidos em termos de raciocínio normal.
à compreensão da substância dos fenômenos nem possui uma O fenômeno é, em primeiro lugar, enquadrado no sistema filo-
orientação universal que resolva o problema do conhecimento. sófico já exposto e demonstrado em outro lugar, utilizando de-
Com o método intuitivo, nós não estamos observando os le aqui as conclusões. Assim, o problema é desde o princípio
reflexos que da profundidade do fenômeno irradiam na super- orientado em relação a pontos de referência estáveis, já fixados
fície exterior em nosso ambiente terrestre, para deduzir, com em outros escritos. Já sabemos que nenhum fenômeno é com-
nossa respectiva forma mental periférica e analítica, o que pletamente solúvel nem compreensível, se não for visto em re-
acontece no interior dele. Ao contrário, aprofundamos o olhar lação aos outros. Tomemos, então, como ponto de partida, para
e, com outros sentidos e instrumentos mentais, olhamos o que depois proceder por sucessão lógica, o fato de que espírito e
acontece por dentro e por quê. Isto pode parecer fantasia para matéria são os dois polos do ser, opostos e complementares,
as mentes positivas. Mas aqui, aplicando os princípios expos- interdependentes e comunicantes. Eles são um aspecto do dua-
tos no capítulo precedente, explicamos a que conclusões se lismo do universo, despedaçado e reconstituído em unidade no
chega com o método introspectivo e como o mesmo problema mesmo ciclo. O polo espírito significa também S, e o polo ma-
é enquadrado e resolvido. Pode-se, assim, confrontar os resul- téria quer dizer AS. Estes são os dois extremos do ciclo involu-
tados dos dois sistemas de pesquisas. tivo-evolutivo, que solda a fratura do dualismo, reconduzindo
O método da intuição não nos conduz, através de uma casu- tudo à unidade originária no S.
ística e de um processo analítico, a uma interpretação do fenô- O método do ciclo é universal e corresponde ao sistema ro-
meno em forma de hipóteses e de tentativas para formular de tativo, segundo o qual se move o universo físico. Este é feito de
uma teoria. Simplesmente nos explica como ele funciona, ofe- elementos de tipo esférico, de retornos cíclicos, de trajetórias
recendo-nos o resultado final da pesquisa com a solução do fechadas, de espaço curvo. Este método do ciclo consegue,
problema. Trata-se de um produto-síntese, obtido com uma ou- através da complementaridade, compensar e conciliar a oposi-
tra técnica de pensamento. Enquanto a comum psicanálise se ção dos dois termos do dualismo, chegando, assim, a reconstru-
ocupa dos fenômenos que acontecem nos substratos do incons- ir em unidade a cisão e a pôr de acordo os dois opostos modos
ciente, aqui se trata de uma psicossíntese que lhe observa os as- de existir em um dualismo unitário, constituído por um circuito
pectos superiores. Segundo Jung, “a intuição é a função medi- que, fechando-se em si mesmo, reúne as duas metades na uni-
ante a qual surgem percepções por via inconsciente (...)”. Na dade oferecida pelo próprio ciclo. Assim, a cisão se resolve em
intuição, um conteúdo qualquer se apresenta como um todo uma pulsação de ida e volta, pela qual o afastamento do ponto
completo. O conhecimento intuitivo possui um tal caráter de de partida é compensado e equilibrado por uma aproximação de
segurança e de certeza, que induziu Spinoza a considerar a “ci- retorno no sentido oposto, gerando um movimento inverso que,
ência intuitiva” como a mais alta forma de conhecimento. apesar de ser a continuação do primeiro no mesmo rumo, tem o
Similarmente Assagioli admite “a existência de uma função poder de anulá-lo em direção contrária.
cognoscitiva superior com a qual se consegue uma direta e íntima Este modelo universal se repete na série vida-morte e mor-
compreensão da realidade. Este órgão de conhecimento direto é a te-vida, na qual ecoa o circuito maior: S e AS. O primeiro perí-
intuição. Ela não é irracional, mas super-racional. Não obstante, a odo do ciclo, que corresponde à fase involutiva, é representado
cooperação da mente normal é necessária para o seu correto em- pela descida ao plano físico, na forma de um corpo, à guisa de
prego. E é bom possuir uma ideia clara do que constitui as justas queda na matéria (AS), para realizar ali o esforço de evoluir e
relações de cooperação entre as duas. A esse respeito as funções redimir-se, dele voltando a subir para o espírito (S). Deste mo-
da mente são: 1) Reconhecer a intuição e as suas mensagens; 2) do, encarnar-se representa a condenação do decaído, porque
Interpretá-las corretamente; 3) Formulá-las e expressá-las em pa- conduz para a matéria, levando a uma forma de vida que obscu-
lavras. A Nova Era atestará o florescer da intuição”. rece o espírito ao nível sensório no plano físico. Ao contrário,
Estas palavras de Assagioli confirmam plenamente o méto- desencarnar-se tende para o lado oposto, elevando ao plano es-
do da intuição que eu usei na composição da Obra, exatamente piritual, em direção ao S. A fase terrena da vida é feita de luta,
nas suas três fases, como foi explicado no capítulo precedente. de provas e de fadiga para subir, deslocando para o alto a pró-
Esta coincidência, de que só agora me apercebi, é uma nova pria posição ao longo da escala da evolução. O período de vida
confirmação. Assim, posso dizer que apliquei experimental- no além é, entretanto, de tipo contrário, representando a segun-
mente, sem conhecimento prévio, a teoria do Dr. Assagioli. O da parte do circuito, a qual corresponde à fase evolutiva, ou se-
meu caso não é, portanto, mediunidade no comum sentido da ja, não de queda na matéria, mas de ascensão para o espírito.
palavra, mas pode ser antes definido como penetração consci- Depois de haver vivido uma existência em forma extroverti-
ente na esfera do superconsciente. da, é necessário um período de introspecção, havendo duas ra-
Ora, tudo isso, mesmo que pudesse parecer não científico, zões para isso: 1) Compreender por que se viveu e o que se fez
poderia ser utilizado de forma subordinada, como método de de substancial, num mundo de ilusões, tanto em bem como em
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 111
mal; 2) Avaliar o sentido das experiências atravessadas e apos- uma sua inversão ao negativo, constituindo o resultado do seu
sar-se do seu fruto, assimilando-o, para fixar-lhe os resultados na desfazimento com a queda do S no AS.
própria vida, como continuação do trabalho já realizado. Em su- Este fenômeno se explica em função do universal e já ad-
ma, nas duas etapas, temos uma elaboração com a mesma finali- mitido fenômeno da evolução. Podemos ver todo o caminho
dade evolutiva, a qual se cumpre de formas opostas dentro do percorrido pelo consciente original, seja na sua fase involutiva,
mesmo ciclo de ida e volta, seja como vida que caminha para o de descida, até chegar à posição de inconsciente total na pleni-
plano matéria, seja como existência que se dirige para o nível es- tude do AS, seja no seu período evolutivo, de retorno, até re-
pírito. Temos uma fase de trabalho na matéria, feita de luta, e ou- construir-se na sua originária situação de consciência e conhe-
tra de trabalho no espírito, composta de reflexão e compreensão. cimento total na plenitude do S. Podemos saber porque exis-
Estas observações tratadas pelos nossos escritos preceden- tem no ser essas duas posições opostas – uma ao positivo e ou-
tes permitem orientarmo-nos perante o fenômeno da sobrevi- tra ao negativo – do fenômeno da consciência. Podemos tam-
vência, fornecendo-nos os princípios sobre os quais ele se ba- bém compreender por que, com a evolução, muda a amplitude
seia. Não corresponde à realidade considerá-lo isolado no seio do campo abrangido pelo consciente em relação àquele domi-
da fenomenologia da qual ele faz organicamente parte. É ne- nado pelo inconsciente. É fato que o maior resultado da evolu-
cessário ter resolvido primeiro o problema maior, caso se quei- ção é a conquista de consciência através do desenvolvimento
ra depois solucionar as questões menores nele contidas. Neste nervoso, cerebral e mental, com o qual ela se dilata sempre
caso da sobrevivência, trata-se de uma oscilação do polo maté- mais no campo da personalidade, conquistando cada vez mais
ria ao polo espírito e ao contrário. Tal flutuação matéria- espaço, até sua total inversão, repelindo gradualmente o in-
espírito, que neste caso toma a forma de vida-morte, é possível consciente, até eliminá-lo. O período involutivo do grande ci-
porque neste dualismo, no fundo, está contida a unidade fun- clo é representado pela descida espírito-energia-matéria, até à
damental do ser. É essa unidade que permite o trasbordamento plenitude do AS e da negatividade do inconsciente. O oposto
do espírito no âmbito da matéria, com a ESP e a PC. Mas tam- período evolutivo é representado pelo regresso ascensional
bém existe um contato em sentido oposto, porquanto o pensa- matéria-energia-espírito, até à reconstrução do S e da positivi-
mento, para se manifestar no plano material, tem necessidade dade do consciente. Sabemos que o trabalho da existência ser-
do órgão cerebral. Assim, espírito e matéria são dois aspectos ve para o desenvolvimento da consciência e que a vida evolui,
extremos de uma fundamental unidade da substância, tanto espiritualizando-se. O grau de evolução atingido é demonstra-
que, nesta, a involução constitui o processo de transformação do pela extensão da zona de consciência conquistada no campo
espírito-energia-matéria e a evolução o processo inverso, maté- do inconsciente. Por isso falamos tanto aqui de superconscien-
ria-energia-espírito (V. A Grande Síntese). te, que é constituído por forças positivas, cuja ação é no senti-
Então psique e corpo, ou seja, o lado espiritual e o lado ma- do da evolução. O escopo desta é destruir a zona negativa do
terial, dos quais resulta constituído o nosso ser, não são senão inconsciente, levando-nos à sua meta, que é a plenitude da
duas fases diversamente avançadas do transformismo, posições consciência e conhecimento em Deus. Somente a intuição, e
entre as quais, ao longo da escala da evolução, está situado e não a ciência, pode dar-nos esta orientação, dizendo-nos por-
contido o ser humano. A psique está à cabeça e se move para a que existe o inconsciente e qual o significado do fenômeno de
conquista dos estados mais avançados; o corpo fica na cauda, seu desenvolvimento. Sabemos também que o consciente, no
representando um passado do qual a vida, ainda que conservan- seu nível atual, representa aquela zona da originária centelha
do-o, tende a se afastar, retomando-o em sínteses sempre mais divina que, tendo-se apagado até ao inconsciente total na fase
rápidas, destilado em forma de valores sempre mais concentra- matéria, no fundo da involução no AS, foi despertada e reacesa
dos. É sempre a mesma substância do ser que se transforma ao pelo ser com o trabalho da sua evolução, até formar esta pe-
longo do seu caminho ascensional. Neste processo, a psique re- quena luz, que é a nossa consciência atual, em constante ex-
presenta a parte alta do fenômeno, onde se está operando a pansão, até retornar à sua plenitude no S, isto é, em Deus.
construção futura com a subida em direção ao S, e o corpo Julgo que somente assim orientados, conhecendo a íntima
constitui o lado inferior do mesmo fenômeno, constituindo o natureza das coisas que se está estudando, e não apenas obser-
caminho já percorrido nos mais baixos planos da evolução, si- vando as suas manifestações exteriores, é possível resolver es-
tuados em direção ao AS. Quanto mais tendemos para o alto, tes problemas da psique, do espírito e da sobrevivência. Desta
por sermos evolutivamente avançados, tanto mais vivemos no forma, conhecendo o fenômeno até às suas raízes, pode-se me-
nível espírito, mais vizinhos do S; quanto mais nos inclinamos lhor entender-lhe o significado e tirar suas consequências e
para baixo, por sermos involutivamente atrasados, tanto mais aplicações. É devido a esta fundamental unidade do ser, a qual
existimos no estágio matéria, mais próximos do AS. Assim, ca- se estende de um a outro dos seus dois polos, espírito-matéria,
da ser, em alturas diversas, ocupa um trecho do caminho ascen- que pode existir uma medicina psicossomática, baseada na ca-
sional. Evoluindo, ele se desloca em subida, distanciando-se pacidade do espírito curar o corpo ao qual está unido. A psico-
sempre mais do AS e avizinhando-se do S. Veremos, agora, cinese (PC) prova que existe uma possibilidade para o espírito
como se verifica este deslocamento para o alto. penetrar no seu campo oposto, a matéria. Há uma força psico-
Estas observações nos permitem focalizar melhor o pro- cinética no espírito, como existe uma força atômica na matéria.
blema do inconsciente. Por que ele existe? O que significa a Mas, se em dadas circunstâncias, entre os dois estados opostos,
sua presença tão extensa em comparação com a zona muito há possibilidade de intercâmbio, pelo fato de constituírem os
menor, coberta pelo consciente? Somente com a orientação extremos da mesma unidade, isto não suprime a sua recíproca
exposta por uma filosofia universal, que remonta às primeiras independência e separabilidade no momento da morte. Tanto
origens, como aquela desenvolvida nos volumes precedentes, mais que essa separabilidade é apenas uma manifestação do vi-
pode-se dar uma resposta a esta pergunta. Deus não poderia ter ver por turnos nas duas formas contrárias de uma única lon-
criado o ser senão como criatura consciente. O inconsciente, guíssima vida, uma em estado de repouso, enquanto o lado
ao contrário, sendo negativo, está do lado oposto à origem, oposto trabalha. Trata-se de uma oposição de modos de existir
que, derivando diretamente de Deus, não pode ser senão posi- em posições diversas, para se permanecer sempre vivo e ativo
tiva. Eis que o inconsciente só pode ser o produto de um des- em cada uma das duas, ligadas em colaboração, visto que o sis-
moronamento, inversão ou queda, fenômeno que explicamos tema é dualístico e uno ao mesmo tempo. Há apenas uma bipo-
largamente nos volumes O Sistema e Queda e Salvação. O in- laridade da mesma unidade. O ser humano é precisamente essa
consciente, então, é um obscurecimento da luz da consciência, unidade bipolar, na qual, durante a fase de encarnado, prevalece
112 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
o lado inferior ou matéria, correspondente à posição involutiva nalidade da vida é evoluir, e não quisemos de forma alguma
em direção ao AS, enquanto, no período de desencarnado, pre- nos opor a esta finalidade. De fato, evolução significa toda am-
domina o aspecto superior ou espírito, correspondente à proje- pliação, desenvolvimento ou expansão de consciência, enquan-
ção evolutiva em direção ao S. A emersão da parte baixa se rea- to involução significa toda diminuição, restrição ou supressão
liza através desta oscilação por ondas, partindo de um vértice dessa consciência. É por esta razão que cair nas trevas da in-
sempre mais alto. Sucede então que, em toda encarnação, des- consciência é um retrocesso. A evolução consiste em se tornar
ce-se cada vez menos para a matéria e, em cada desencarnação, mais consciente, e não menos, subindo se possível ao super-
ascende-se a uma posição mais elevada no espírito. consciente. Então abandonar o controle consciente, para se per-
Ora, como negar a sobrevivência do espírito, quando, deste der no inconsciente, como sucede no transe, significa descer in-
modo, é possível ver o seu mecanismo em ação, as suas razões, volutivamente. Quem é mais evoluído não tem necessidade do
a sua função equilibradora perante o oposto tipo de vida terrena transe para se comunicar com os desencarnados, porque ele,
e, finalmente, a necessidade lógica de tal sobrevivência, dada a sendo sensibilizado, pode fazê-lo em plena consciência, saben-
estrutura do fenômeno vida e de sua evolução no seio do orga- do perceber a sua presença espiritual como pensamento e sen-
nismo do todo? Não será essa convergência de argumentos timento. E isto sintonizado telepaticamente, por afinidade.
mais convincente do que a casuística na qual se dilui o pensa- Eis, então, que Rhine confirma as nossas conclusões, expos-
mento da ciência? Vemos, deste modo, que tudo tem a sua cau- tas no capítulo precedente, sobre o fenômeno inspirativo, a res-
sa no esquema geral do ser. As duas vidas, de encarnado e de- peito do contato telepático com a fonte de pensamento geradora
sencarnado, alternam-se, sustentando-se reciprocamente, para de nossa Obra e da possibilidade de continuar a manter aquele
subir em direção ao S, uma no estado matéria, para executar o contato também depois da morte. Pudemos observar experi-
trabalho complementar ao que é realizado pela outra em posi- mentalmente, neste caso, o funcionamento de um pensamento
ção espiritual. Cada encarnação é, à guisa de um recuo involu- por via não cerebral, independente do seu órgão físico e da
tivo, uma descida na matéria, para lhe suportar as provas, morte deste, não ligado à matéria e à sua decadência senil. Ter
aprender e assim progredir. Cada vida de desencarnado destina- experimentado durante quase quarenta anos o funcionamento
se a dar um salto para frente, digerindo e assimilando as experi- de um pensamento supercerebral e, agora, constatar que ele não
ências vividas. O primeiro tipo de vida vai para o AS, repetindo envelhece com o corpo nos indica que tal pensamento deverá
em descida, embora sempre de forma mais fraca em cada en- sobreviver também depois do desfazimento do cérebro. É certo
carnação, o motivo da queda e experimentando os castigos nu- que, se este estiver cansado ou doente, o pensamento não con-
ma forma de vida dura. O segundo modo de existência caminha seguirá expressar-se. Mas isto não implica que o pensamento
para o S, como tentativa de ascensão, colocando-se sempre seja um produto cerebral. Também um automobilista, se o seu
mais alto em cada desencarnação, provando as alegrias do novo carro estiver muito usado, não poderá desenvolver muita velo-
estado em uma forma de vida melhor. Ora, sem a sobrevivência cidade. Mas isto não significa que ele não saiba dirigir ou ma-
depois da morte, não se poderia realizar o longo caminho da nobrar rapidamente. Ele poderá fazer isso, tão logo disponha de
evolução, necessário para que se possa regressar ao S, atingindo um outro automóvel, que não esteja naquelas condições.
assim a salvação final, o que constitui o objetivo da vida. Com Por estas vias, chegamos à conclusão de que a personalida-
estes conceitos, tudo tem um sentido lógico, justo e convincen- de sobrevive depois da morte. Para quem está escrevendo estas
te. Se os suprimimos, a vida se torna um esforço duro e inútil, páginas, não se trata somente de fé, de esperança ou de simples
enquanto o universo, que é um organismo funcionando com resultados de raciocínio, mas sim de uma sensação da indestru-
imensa sapiência, permanece sem significado nem objetivo, em tibilidade do eu pensante. Hoje estamos habituados a querer
pleno caos. É impossível uma tal sapiência, que os maiores in- verificar tudo, antes de admitir alguma coisa. A aceitação pela
telectos humanos vão fatigantemente descobrindo, resolver-se fé ou pela autoridade está fora de moda. Impor verdades dog-
naufragando deploravelmente no absurdo. É absurdo que a ló- máticas, como durante tantos séculos se usou, sem provas ra-
gica e a profundidade do pensamento que vemos presente em cionais positivas, já não serve como defesa da verdade. Diz
tantos fenômenos se desmintam depois no plano geral, no qual Rhine no seu citado volume: New World of the Mind (O Novo
eles devem ser coordenados para uma finalidade única. Mundo do Espírito), Cap. VII: “Se assim (impondo verdades
É esta visão de conjunto que nos impede de cair na concep- dogmáticas) se comportasse, em vez de um grupo, um simples
ção unilateral do materialismo científico, pela qual o homem é indivíduo, este seria julgado louco, dado que estaria recusan-
levado a se tornar um autômato cérebro-cêntrico, e que nos do-se ao contato com a realidade, aceitando fantasias não veri-
permite ver também o homem psicocêntrico, regido por leis de ficadas”. As nossas afirmações aqui expostas respondem à ló-
outro tipo, superfísicas, de natureza psicológicas, em vez de fi- gica de um plano universal. Foram controladas por longa expe-
siológicas, não como extensão destas, mas baseadas em princí- rimentação, de acordo com aquela lógica, em contato com uma
pios independentes no seu campo. Em suma, à ciência da ma- realidade vivida, e são agora confirmadas por quem aqui as
téria opomos uma ciência do espírito, que podemos atingir sustenta, através de um íntimo sentido da verdade, dado pela
com meios de pesquisa adequados, penetrando num terreno sensação da indestrutibilidade da parte espiritual da pessoa,
que se encontra além da matéria. não obstante o fim já iniciado da sua parte material. O resulta-
A este respeito, no seu citado volume The Reach of the do a que chegamos não é uma hipótese ou teoria, mas a segu-
Mind (O Alcance da Mente), Cap. XII, Rhine nos diz: (...) “a rança de que as coisas são como aqui afirmamos.
telepatia figuraria como o único meio de intercomunicação do ◘ ◘ ◘
qual poderiam dispor as personalidades desencarnadas, seja Todos estamos enquadrados dentro da lei do ciclo vida-
com os vivos, seja com os não vivos”. No seu livro New World morte e não podemos existir senão como transformismo. Tudo
of the Mind (O Novo Mundo do Espírito), Cap. X, Rhine diz: é feito da divina substância incriada e indestrutível. Nada se
(...) “qualquer transmissão do pensamento de uma pessoa de- cria, nada se destrói, tudo se transforma. Como poderiam, en-
sencarnada para outra, desencarnada ou encarnada, deveria rea- tão, a personalidade humana, entidade definida por si própria, e
lizar-se de forma telepática” (...). Então, se o fenômeno da co- o espírito, forma de energia superior, anularem-se com a morte?
municação com os desencarnados se verifica telepaticamente, Como poderia aquela personalidade, quando aparece na vida,
ele é independente do transe mediúnico, que não se faz necessá- ser um efeito sem causa, um fato sem continuação e conse-
rio para a comunicação. Nós sempre fugimos persistentemente quência? Mas em que outro lugar vemos os fenômenos funci-
de toda forma de perda de consciência. Isto porque a maior fi- onarem nesse sentido? Não acontece sempre que o sucedido no
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 113
passado fique abandonado, sendo esmagado pelo futuro, que tisfeito no máximo bem-estar deste mundo; o segundo dirige-
surge para lhe tomar o lugar e é, por sua vez, rapidamente con- se para formas de vida mais altas, superando a terrestre. Esta
sumido pelo presente, para se tornar subitamente passado e ce- aspiração, para aquele, é sonho e utopia, mas, para o último,
der passo a um novo amanhã, que quer substituí-lo? Assim constitui a mais alta realização, porque corresponde ao maior
ocorre com a morte. Como é possível mutilar no seu desenvol- impulso da vida, que é a evolução. O primeiro quer gozar no
vimento o transformismo de um fenômeno? Como se pode pa- presente; o segundo pretende ascender, projetado para o futuro.
rar o fluir do tempo, que marca inexoravelmente o ritmo daque- Aquele triunfa em vida, quando se encontra no seu ambiente,
le transformismo? Como pode existir um fato sem amanhã, fe- mas é derrotado pela morte, quando tem de sair desta existên-
chado em si mesmo, completo em uma só fase do seu desen- cia. O último, embora lute e sofra em vida, exilado na Terra,
volvimento? Como pode haver algo que se esgota sem deixar vence na morte, quando pode libertar-se desse mundo. É este
resíduos, traços ou consequências, detendo o seu curso sem segundo caso que estamos narrando aqui.
qualquer continuação? A estas leis universais a morte teria de Assim como é lógico e justo, para quem a vida é positiva no
fazer exceção. Mas por que haveria um tal desvio da fenomeno- plano terreno e negativa no espiritual, que a morte se apresente
logia universal? O que justificaria tão flagrante violação da or- negativa, também é lógico e justo, para quem a vida se mostra
dem das coisas? Como poderia somente este caso fugir à apli- positiva no plano espiritual e negativa no ambiente terreno, que
cação dos princípios vigentes? Já dissemos que o conceito do a morte seja positiva. Para este, a morte não é o fim, mas sim o
nada não pode existir senão relativamente ao modo preceden- início de outra vida maior. É lógico e justo que as posições fa-
temente assumido pela substância, que continua a existir sem- voráveis e contrárias se compensem e que, nas relações entre os
pre a mesma através de todas as formas. bons oprimidos e os prepotentes dominadores, elas se invertam.
Cada um nasce com a sua personalidade já elaborada e, con- Se a existência atual constituísse toda a vida, o mundo teria ra-
forme a natureza desta, escolhe o ambiente, para depois plas- zão. Mas, se ela fosse completa, seria um absurdo o fato de se
mar a sua vida segundo o que escolheu e viveu, tendo morte e exaurir num espaço de tempo tão breve. Então, vencer na Terra
enfrentando o além de modo diverso. Assim, cada um realiza o seria algo apenas momentâneo. Será que a existência pode ser
princípio geral do transformismo universal a seu modo no fe- anulada? Não! Será que se pode deter o tempo? Também não!
nômeno vida-morte, cada tipo de personalidade realizando-o de É necessário forçosamente continuar e prever, preparando essa
maneira diferente. Acontece que, se, para os extrovertidos, que continuação. Que sucederá a quem não o tiver feito ou, pior en-
têm facilidade de viver projetado para o exterior no ambiente tão, tenha realizado tal preparação de modo emborcado? Não
terrestre, faz-se escuro, quando o tipo de vida se inverte com a queremos com isso depreciar o homem de ação, dirigido a fina-
morte em direção ao interior, para o introvertido, que tem difi- lidades práticas. Tudo isso não significa inevitavelmente que
culdade de viver nas condições oferecidas por aquele ambiente, ele esteja em erro, mas apenas que o seu campo de trabalho co-
faz-se luz, quando ele sai da prisão da matéria, para se lançar no bre um espaço limitado, além do qual existem outras possibili-
mundo interior. Colocar-se ao nível da vida humana pode, para dades imensas em bem e em mal, as quais ele não leva em con-
um indivíduo proveniente das proximidades da animalidade, ta, pois lhe escapam, sendo ignoradas por ele. Assim, aquele
significar um salto em frente, constituindo uma ascensão espi- homem permanece fechado no ambiente terrestre, sem vislum-
ritual, mas, para um ser evoluído, pode querer dizer um retro- brar a vida maior que existe além deste.
cesso. No primeiro caso, a existência terrestre pode ser uma O homem da Terra se identifica com o corpo e se prende
alegre expansão vital; no segundo, uma dolorosa sufocação. àquilo que este pode possuir, anexando-o a si. O homem do
Por isso a vida pode ter, para os indivíduos, significados, fina- espírito sente-se como personalidade distinta do seu corpo e
lidades e resultados vários. Para quem o nascimento representa daquilo que a este se pode juntar com a posse, à qual, portanto,
uma ascensão, isto pode significar entrar num paraíso, mas, pa- não se liga como coisa própria. Trata-se de duas formas men-
ra quem o nascimento significa uma descida, isto pode repre- tais diferentes. Para o primeiro, tudo aquilo que a vida oferece
sentar ir para o inferno. A alegria da vida está em seguir a lei constitui um fim; para o segundo, é apenas um meio. Para
da evolução, que conduz ao S. Por isso, quando a vida no nível aquele, a morte é morte, significando uma anulação final; para
humano constitui uma subida, porque se parte de mais baixo, o último, ela é o início de uma nova vida, representado uma
ela pode ser tida como alegria, apesar de ser alegria de primiti- passagem e uma transformação. Apenas este último sente-se
vo. Quando, porém, a vida é uma descida, porque se inicia de permanecer íntegro na sua personalidade, completamente vivo,
um nível mais alto, então ela se torna sofrimento, significando na morte, porque é impossível morrer. Então, ele se libertará
padecimento para o evoluído. Tudo é relativo à posição que se do escafandro que teve de vestir para poder descer até à pro-
ocupa ao longo da escala evolutiva. fundidade do plano físico, a fim de entrar em contato com ele.
Assim se compreendem as diversas atitudes dos indivíduos. O involuído identifica-se com o escafandro, interessando-se
Do comportamento de cada um, conforme a sua natureza, de- apenas por este tipo de vida, como se fosse o único e o melhor.
pende o seu tipo de vida e de morte. Se, para o involuído, o Em vez de se apressar a subir à superfície, procura tornar-se
nascimento no plano físico, por levá-lo a viver em mais alto mais pesado ainda, carregando-se de todas as possíveis reves-
estágio evolutivo, pode significar uma melhoria e a morte pode tiduras, como riqueza, honras e poder terreno, com domínios
constituir, portanto, uma perda, para o evoluído tal nascimento sempre mais vastos em todos os campos. Mas estas coisas são
pode comportar condições piores de vida em um mais baixo acrescentadas do exterior e, portanto, destinadas a serem aban-
ambiente evolutivo e a morte pode ser considerada uma liber- donadas com a morte. Com o indivíduo fica somente aquilo
tação. É natural que se encontrando eles em posições opostas, que é verdadeiramente seu, ou seja, as suas qualidades, dadas
aquilo que para um é afirmação, seja para o outro negação de pelo que ele é, e não pelo que ele possui.
si próprio, e ao contrário. Para quem é matéria, a vida se en- Acreditar na possibilidade de crescer e se tornar maior so-
contra na matéria, mas esta, para quem está no plano do espíri- mente pelo que se possui é uma ilusão, porquanto, em realida-
to, significa a morte. Para quem é espírito, a vida se encontra de, a existência é uma contínua transformação. Querer subir é
no espírito, mas este, para quem está na matéria, representa a um impulso evolutivo sadio, mas possuir não é o caminho.
morte. Há um abismo insanável entre o homem do mundo e o Onde tudo continuamente se transforma, a estabilidade de uma
do espírito. O primeiro vive para realizar no meio terreno; o posse definitiva é utopia, constituindo um absurdo, porque se
segundo, no campo ideal. Eles enfrentam a vida de maneiras torna uma atadura que paralisa a ascensão, atraiçoando o esco-
opostas. O primeiro quer multiplicar-se na carne, para viver sa- po da vida. No seio de tal sistema, onde, nascendo-se e mor-
114 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
rendo-se, tudo muda sempre, pode-se ter apenas um usufruto lho da construção espiritual, de maneira que nos tornemos ca-
temporário ou um empréstimo, mas não uma propriedade defi- pazes de saber viver em um nível evolutivo mais alto.
nitiva. Somos viajantes ao longo do caminho da evolução, Pode-se cair nesse erro, renunciando-se à vida e às suas
constrangidos a nos mover incessantemente em direção ao seu provas, como acontecia frequentemente com os religiosos me-
vértice. As bagagens constituem um obstáculo ao avanço; dievais, os quais se isolavam em penitências, julgando que se
aquelas comprometem, enquanto este é o que tem mais valor, espiritualizavam apenas pelo fato de atormentarem o corpo.
porque nele está a salvação. Prender-se às coisas é produto do Não basta morrer em baixo. É necessário saber reviver mais no
AS, precisamente para frear a ascensão ao S. Trata-se de um alto. A ascensão ao céu não é uma fuga, mas sim uma lenta
método emborcado de crescer, porque se pretende engrandecer preparação através de aproximações graduais. Eis, então, que,
aprisionando-se, em vez de libertando-se para poder voar. O para entrar ali, faz-se mister ter atravessado e superado todas as
verdadeiro enriquecimento se alcança pela via oposta. Quanto fases do caminho que conduz até lá. Só alguns indivíduos iso-
mais nos livramos de uma prisão particular, tanto mais nos en- lados estão maduros para tais superações. As massas, na Terra,
riquecemos com a capacidade de possuir universalmente. Se- encontram-se no seu elemento, proporcionado ao seu ambiente,
guindo o primeiro método, as coisas se afastam de nós, porque, onde acham as provas adequadas, necessárias para evoluírem.
desejando agarrá-las, queremos constrangê-las à nossa vonta- Entre os dois tipos, maduros e imaturos, é difícil a compreen-
de, fora da natural corrente das suas leis. Aplicando o segundo são. Por isso os primeiros devem sair da Terra e os segundos
método, as coisas vêm a nós, pelo fato de nos colocarmos no têm de ficar ali, para continuar a construir, com os seus pró-
fluxo das suas leis, na via do seu natural traçado. A nossa avi- prios esforços, cada vez mais altas formas de civilização. Cada
dez nos afasta do sucesso, o nosso desprendimento o atrai. A elemento tende e acaba por se colocar no lugar que lhe compe-
posse de uma coisa qualquer, embora pareça nos engrandecer e te, conforme a sua natureza, merecimento e trabalho a realizar.
nos dar poder, tende de fato a nos fazer seus servos. Então is- A herança do homem é estar condenado a construir nas
so, em vez de ser útil à pessoa para evoluir, prende-a, parali- areias movediças, traído pela ilusão e pela paixão de produzir
sando-lhe os movimentos e o progresso. obras estáveis. A caducidade de todas as coisas é a regra neste
Aquilo que verdadeiramente podemos possuir são as nossas planeta. À sua natural deterioração, em função da qual se ne-
virtudes. Elas representam o nosso maior tesouro e é por meio cessita de certa manutenção, para lhe consertar o contínuo
delas que verdadeiramente podemos ser donos das coisas, as transformismo, acrescenta-se o instinto de agressividade e o sis-
quais somente quem tem aquelas qualidades sabe produzir e tema de luta em que o homem vive, para melhor destruir tudo.
conservar. Nossas virtudes são a nossa única verdadeira e inali- Nem o fruto de nosso trabalho é estabilizado e pacificamente
enável propriedade, indissoluvelmente ligada à nossa pessoa, nosso. Dele não resta senão o fato de que tê-lo realizado nos
enquanto as coisas vão e vêm à mercê dos acontecimentos. To- constrangeu a aprender. Esta é a única coisa que, fixando-se na
da atividade humana para se apropriar do mundo se reduz a personalidade como qualidade adquirida, resta do passado. As-
dispor diversamente o material que se encontra na superfície da sim, ao lado dos escombros e ruínas, resta uma habilidade cria-
Terra, sem lhe poder acrescentar um só grama que seja. Depois dora sempre crescente. Ora, o que interessa é o que permanece
de nossa temporária intervenção, tudo fica mais ou menos onde em nós, e não o que desaparece. E o que transportamos conosco
estava, para retomar o curso das suas espontâneas transforma- não é o instrumento usado para aprendê-la, que regressa ao de-
ções, estabelecidas pelas suas leis. É assim que de todas as pósito das coisas, mas sim a lição aprendida. O progresso, de
grandes obras humanas não fica outra coisa dentro do homem fato, não consiste em acumular os produtos do trabalho realiza-
senão a técnica que ele aprendeu para construí-las, como se elas do no passado, mas sim em aprender a arte de produzi-los sem-
fossem só um material de exercitação para aprender. Das coisas pre mais, melhores e com menor fadiga. Às vezes, as obras do
edificadas, de estável restam unicamente as qualidades adquiri- passado e os métodos usados para produzi-los representam até
das para construí-las. É por isso que temos o direito de nos um obstáculo de que é útil nos libertarmos. Aquilo de que ver-
moldarmos na escola da vida, mas apenas como meio, ou seja, dadeiramente somos donos não são, portanto, as coisas, que,
temos o direito de dispor de tudo aquilo que é necessário para a mais cedo ou mais tarde, acabam por cair na ruína, mas sim a
nossa evolução, mas só até aí. Tudo vale e nos é dado enquanto capacidade de saber construí-las. O progresso consiste não em
serve de instrumento para caminhar rumo ao ponto final da reunir posses, mas sim em apropriar-se de uma sempre mais ri-
evolução, ao qual tudo tende e em volta do qual gira o universo, ca e perfeita técnica produtiva, que, utilizando os recursos do
ou seja, enquanto serve para regressar ao S. ambiente, supra o nosso consumo.
Estamos explicando as razões da renúncia e o justo sentido Então, a coisa mais produtiva de que nos tornamos donos é
em que ela deve ser entendida e praticada. Se isto não acontece, a técnica construtiva, sendo esta um bem em movimento, que
ela pode representar somente um impulso negativo, dirigido a se enxerta no transformismo universal, na corrente do qual nos
construir qualidades de ócio e inaptidão. A renúncia pode ser colocamos. O domínio maior consiste em possuir as causas que
entendida como uma indiferença em relação a problemas terre- geram as coisas, mais do que estas, que delas são o efeito. E as
nos, para nos eximirmos do esforço de enfrentá-los e resolvê- causas estão dentro de nós. São as nossas habilidades. Assim,
los, numa santa preguiça, evitando que nos construamos através um rico preguiçoso e inepto é mais necessitado do que um po-
da luta pela vida. O ginásio das nossas exercitações é a Terra, e bre ativo e inteligente, porque o primeiro acabará pobre e o se-
devemos atravessá-la para depois subir ao céu, e não fugir-lhe gundo, rico. Que se nasça para gozar ou que se possa obter algo
nas solidões do deserto. Ausentar-se da vida com a renúncia, não merecido, porque não ganho à própria custa, é coisa que só
saltando para um plano superior de vida, a fim de livrar-se de os primitivos podem crer. A vida, pelo contrário, é uma escola
percorrer toda a transformação evolutiva, não é um atalho para para os voluntariosos, mas também pode ser uma penitenciária
evoluir. É necessário entrar em contato com as dificuldades ter- para os rebeldes, tornando-se uma casa de correção, onde a lei
renas, para lhes suportar as respectivas provas. Portanto, voltar de Deus ensina com os trabalhos forçados e o chicote.
as costas à Terra, acreditando que basta isso para ganhar o céu, Quem conceber a vida conforme esta ordem de ideias sabe
sem primeiro haver amadurecido, por ter aprendido todas as du- que a morte não lhe pode levar coisa alguma, se ele se enrique-
ras lições de nosso baixo mundo, é leviandade de inexperientes, cer de valores seguros, que são os inerentes à personalidade.
ignorantes da técnica progressiva da evolução. Voltar as costas Mas isso pode suceder apenas quando se compreender que o
à Terra representa somente o lado negativo do fenômeno, que verdadeiro escopo da vida é construir-se a si próprio. Então,
deve ser completado pelo outro positivo, constituído pelo traba- tanto mais se vale e se é poderoso, quanto mais se sabe e se é
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 115
melhor, e não quanto mais se possui. Quando se soube viver, ele cumprirá depois da morte, quando então realizará o trabalho
morre-se satisfeito, levando consigo o fruto do próprio trabalho. introvertido de elaboração do material ingerido, para assimilá-
Quando não se soube viver, morre-se tristemente, com as mãos lo e, com ele, ir construindo a própria personalidade. Por isso,
vazias, sem levar coisa alguma consigo. Em cada vida se na velhice, não se ingere novo alimento, mas rumina-se o ve-
aprende mais e, quanto mais se aprende, tanto mais nos torna- lho, vivendo-se de recordações, e não mais de experiências.
mos sabedores e potentes. Quando, no fim do caminho da vida, A juventude é a alvorada na qual se inicia a tarefa, cheio de
chega-se perante a morte, fazem-se as contas e fecha-se o pró- forças; a velhice é o ocaso da vida, quando se repousa, cansado.
prio balanço, tanto no ativo como no passivo. Se tivermos esco- Na juventude, encontramo-nos cheios de energia, com todo o
lhido as coisas ilusórias, poucos serão os valores verdadeiros serviço ainda para fazer, e temos necessidade das coisas materi-
que ficarão conosco. Se nos tivermos dedicado aos tesouros da ais para fazê-lo. Na velhice, achamo-nos esgotados, mas com o
Terra, teremos de restitui-los todos, inclusive o nosso corpo, trabalho feito, e precisamos das coisas espirituais, para realizar
que é parte do material vivo, obtido em usufruto pela duração um trabalho no sentido oposto, em outro tipo de vida. Ao nas-
de nossa vida. Tanto maior será a ruptura e o engano, quanto cer, encontramo-nos ricos de potencialidades, ansiosas por ex-
maior for o apego. Porém a dor dessa ruptura constituirá o en- plodirem no plano físico, mas somos pobres de conhecimento e
sinamento mais útil que trouxemos da posse das coisas da Ter- qualidades mentais, em confronto com aquelas que adquirimos
ra, porque assim aprendemos a não nos ligar mais a elas, liber- na velhice, onde somos mais ricos dessas virtudes, porém po-
tando-nos da ilusão que elas representam. bres de energia. Este princípio se aplica igualmente para todos.
◘ ◘ ◘ Os fatos confirmam a nossa interpretação do escopo da vida.
Caminhando, caminhando, chega-se ao fim da vida. Então Ela se manifesta como uma descarga dinâmica (atividade no
ela fica pertencendo toda ao passado, onde permanece cristali- plano físico) e uma recarga psíquica (aquisição de conhecimen-
zada. Doravante, ela representa algo já realizado, que não está to). A vida no além deverá ser no sentido contrário, constituin-
mais em nosso poder. Na verdade, ela se encontra em nossas do-se de uma recarga dinâmica no repouso e uma descarga psí-
mãos apenas enquanto necessitamos dela como instrumento de quica na meditação, no sentido de que o consciente se verá ali-
trabalho, fugindo-nos tão logo a construção esteja terminada. viado do material mental acumulado em vida, transmitindo-o ao
Incumbia-nos apenas atravessá-la, para realizar algumas expe- subconsciente, depósito de experiências adquiridas. Acontece à
riências e aprender algumas lições. A jornada terminou, aquela guisa do estômago, que, através da digestão, enquanto se esva-
vida não é mais nossa. É nosso apenas aquilo que ela produziu. zia para enfrentar outra refeição, leva o organismo a assimilar o
Agora, tudo já foi feito e ficou para trás no nível das coisas pas- alimento, transformando-o em sangue.
sadas. De tudo isso nos restam nas mãos apenas os efeitos, se- O ser, quanto mais é involuído, tanto mais se sente vivo nos
mente que, sendo fruto de nossa planta, voltará a nascer, para planos que se dirigem para o AS e, quanto mais é evoluído, tan-
gerar novos efeitos na forma de outras plantas e frutos. to mais se sente vivo nos estágios que caminham para o S. No
Aquilo que já foi feito nem Deus pode mudar. É da Lei que primeiro caso, a posição de encarnado na matéria é positiva pa-
as consequências das nossas ações sejam fatalmente nossas. No ra o indivíduo e a de desencarnado, negativa. No segundo, a si-
final, chega a hora em que não se pode mais escolher ou querer. tuação de encarnado é negativa e a de desencarnado, positiva.
Tudo já foi suficientemente selecionado e desejado em plena li- Assim, para o encarnado, é vivo quem existe no seu plano físi-
berdade. A saída está fechada. Entra-se no domínio da Lei, fi- co e morto quem vive só como espírito; enquanto, para o de-
cando-se preso na sua corrente e sendo por ela arrastado, con- sencarnado, é vivo quem existe como espírito e morto quem vi-
forme a posição em que nela nos colocamos e as reações que ve no ambiente físico. Isto será tanto mais verdadeiro quanto
provocamos. O que constituiu livre escolha se torna de agora mais o encarnado for involuído e quanto mais o desencarnado
em diante fatal determinismo, que nos cairá nas costas, ligando- for evoluído. É por isso que a morte inspira tanto mais medo,
se a nós como destino em nova vida. Ainda poderemos escolher quanto mais se é involuído, e tanto menos, quanto mais se é
livremente, mas permanecemos dominados pelos impulsos dos evoluído. Isto também porque, quanto mais se é evoluído, tanto
movimentos já iniciados no passado, os quais, por inércia, ten- mais se é espiritualmente forte e, assim, tanto menos a morte é
dem a continuar na sua direção. queda no inconsciente, na qual se perde a consciência, isto é, a
Caminhando, caminhando, chega-se ao último ato. Apare- sensação de viver. E, ao contrário, quanto mais se é involuído,
ce o extremo horizonte, para além do qual cai o pano. Na ve- tanto mais se é fraco espiritualmente. Consequentemente, tanto
lhice, quem viveu apenas para o presente, na matéria, olha pa- mais a morte é queda no inconsciente, constituindo perda de
ra trás com saudade, agarrando-se ao passado que lhe foge. consciência, ou seja, da sensação de viver. É assim que poten-
Quem viveu em função do futuro, no espírito, olha para frente cializar-se espiritualmente, subindo em direção ao S, implica
cheio de esperança, na direção da nova vida que o espera. O uma progressiva vitória sobre a morte, no sentido de que ela
primeiro é verdadeiramente velho, tanto no espírito como no perde o poder de nos mergulhar nas trevas do AS, tolhendo-nos
corpo. O segundo é velho apenas no corpo, pois é jovem na a consciência e, com isso, a sensação de ficarmos vivos. Se a
alma. Para quem viveu preso à Terra, é o fim. Para quem vi- potência da morte é máxima no polo negativo do ser, no AS,
veu olhando para o alto, é o princípio. ela é nula no polo positivo, no S.
Na corrente universal do transformismo evolutivo físico- No momento da morte, não há mais nada a fazer, senão
dinâmico-psíquico, a função da vida é transformar a energia em abandonar-se no seio da lei de Deus, que sabe fazer e prover as
psiquismo. É assim que se nasce inexperiente, mas cheio de condições para que tudo seja feito em perfeita justiça. Não se-
energias juvenis, ansiosas por fazerem experiências, enquanto remos defraudados de nenhum mérito. Tudo o que foi ganho
se morre cansado, porém pleno de conhecimento, adquirido nos será pago com exatidão, tanto em bem como em mal, na
com aquelas experiências. Isto é o que cada um faz no seu ní- forma de alegria ou de dor. Então as distâncias, sempre mais
vel. Para o mais evoluído, um trabalho de tipo mais elevado; débeis e longínquas, desaparecem, assim como os juízos do
para o menos evoluído, um trabalho mais baixo. Mas, para to- mundo, com seus louvores e condenações, que outrora pesavam
dos, a vida é uma escola de experiências. Este é o seu escopo, tanto, mas que já não valem nada. O que conta agora é apenas o
de modo que cada um realiza, à altura do seu plano evolutivo, juízo de Deus, com o qual nos encontramos finalmente sós. To-
um trecho do seu transformismo dinâmico-psíquico. De fato, na do o resto não nos serve, não nos interessando mais. Então,
velhice, após ter executado o labor extrovertido da experimen- passa-se em revista o passado, que retorna perante a consciên-
tação, o indivíduo espontaneamente se prepara para aquilo que cia, no fundo da qual está Deus, falando e julgando, porque a
116 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
centelha originária criada no S se ofuscou, mas não se extinguiu espontâneo de quem ama uma religião é defendê-la. É estranho,
com a queda no AS. Faz-se, então, a soma do dever e do haver porém, como fui mal interpretado. Alguns tomaram como um
perante a Lei. Deste modo, espontânea, automática e fatalmente assalto contra a religião aquilo que constituía uma defesa da
cumpre-se o juízo de Deus por sobre todos os julgamentos do mesma contra os falsos religiosos – e estes são tantos! – para
mundo. Vê-se, então, afastar-se e perder-se à distância a esfera que ela fosse levada a sério num momento tremendamente crí-
da Terra, com o seu formigueiro humano. Torna-se pequeno o tico, sobretudo para a cristandade, no qual se prestam as contas
que parecia tão grande e importante: suas glórias, suas riquezas, e, portanto, devem ser pagos os tantos erros e abusos acumula-
seu poder, seus tribunais! Perante a eternidade, visto em função dos no passado, pelos quais ela é responsável.
de outros pontos de referência, tudo adquire um valor diverso. Em virtude deste mal-entendido, quem observar para onde
Caminhando, caminhando, também estou chegando ao fim conduz fatalmente o desenvolvimento da trajetória deste fenô-
do percurso terreno. A longa vivência está para terminar. O meno deve antes calar-se. Isto porque os bem pensantes, falsos
meu trabalho está feito. A Obra está chegando ao fim. Cumpri a crentes, cobertos de religiosidade e, com isto, convencidos de
minha promessa e realizei a missão. Por mais de oitenta anos, terem sabido conciliar Cristo e Evangelho com as suas comodi-
até hoje, tive de ficar imerso no pântano do mundo. Mas, fi- dades e negócios, não desejam ser perturbados. Eles se sentem
nalmente, chegou a hora da libertação. Cada um andará pela sua ofendidos por quem lhes parece ter a intenção de descobrir as
estrada, conforme as suas obras. Os aproveitadores do ideal suas mentiras, para denunciá-los, quando, na verdade, a preo-
continuarão nas suas façanhas. Eu me retraio ao seio da fonte cupação é apenas a salvá-los.
de pensamento que me iluminou por toda a vida. Cada um con- Que fazer então? Salvá-los não se pode, pois: 1) Não o
forme o destino que desejou. Afasto-me sempre mais do mun- querem e, reagindo como se tivessem de resistir a um ofensor,
do. Cada um pela sua estrada. A qualquer um deixo a Obra. Por impedem isso; 2) Trata-se de grandes fenômenos históricos,
isso foi feita a oferta. Fiz a minha parte. Cada um é responsável sobre os quais um indivíduo isolado não representa nada; 3)
apenas pelas próprias ações. Em relação a eles, o indivíduo não espera erigir-se em juiz e
A Obra é um plano de trabalho que pode ser usado como re- condenar, mas somente perdoar e tolerar; 4) Incumbe somente
curso para subir, ou como um ideal a ser explorado. No primei- a Deus fazer justiça. Estas grandes responsabilidades não per-
ro caso, será um precioso instrumento de evolução; no segundo, tencem a quem não tem os correspondentes poderes e autori-
para quem quiser usá-lo emborcado, um perigoso meio de invo- dade. O indivíduo não é obrigado a responder além dos limi-
lução. Tudo na Terra pode ser usado em duas direções, no sen- tes do seu caso e posição individual.
tido positivo, caminhando para o S, ou no sentido negativo, Conclui-se daí que, assim, ele está proibido de cumprir o
aproximando-se do AS. A Obra não é um cômodo ascensor pa- dever de intervir, sendo-lhe imposto abandonar os irmãos ao ju-
ra nos elevarmos sem esforço, mas sim um traçado no qual se ízo de Deus e à reação de Sua Lei. Será esta uma dura fatalida-
mostra a escada que cada um tem de subir com as próprias per- de imposta pela tremenda justiça da Lei? Dependerá isto do fa-
nas. Todas as tentativas de desfrutar a Obra para finalidades to de que Deus não permite uma fácil e gratuita evasão das con-
humanas recairão em cima de quem quiser fazê-lo, para seu sequências merecidas, pelo que tudo deve ser pago por quem o
próprio dano. Isto já ocorreu e continuará a se verificar. Com mereceu? É assim que Deus torna os homens surdos aos conse-
isso, realiza-se simplesmente o que a própria Obra explica, lhos com os quais se desejaria salvá-los, de modo que, quando
quando demonstra o funcionamento da Lei. Quem quiser traba- for chegada a hora do ajuste de contas, eles, não podendo usu-
lhar com a Obra terá primeiro de ler e compreender ela toda, fruir de ajuda alguma, não possam fugir.
para não cair nos erros e danos de que ela própria nos adverte. A minha posição, então, é respeitar e calar, deixando os
Esta será uma conta dos continuadores com Deus, na qual não responsáveis entregues ao seu próprio destino, enquanto per-
entro. Cada um é livre, mas deve depois recolher conforme as maneço como imparcial, de fato benévolo, espectador, mas
suas ações. Será perigoso, como se costuma fazer com os ideais separado da responsabilidade deles. Dado que avisar pode ser
e como já foi tentado, emborcar para outras finalidades a fun- mal interpretado, devo, sem me envolver, ficar somente
ção da Obra. Quantos já foram jogados ao chão ao longo do seu olhando a maneira pela qual Deus, como sempre acontece
caminho! É perigoso ignorar e desafiar a potência invencível com a dura lição da dor, disporá as coisas. É triste não poder
dos defensores das coisas do espírito. gritar que a casa está pegando fogo, para salvar quem a está
A Obra está aí escrita. As pessoas têm quanto tempo quise- habitando. Mas, em consciência, não se pode fazer de outra
rem para compreendê-la. Isto já não é meu trabalho, que era maneira. Portanto constitui dever o mais completo respeito
apenas expor tudo, para permitir sua compreensão. Tarefas e pela liberdade de escolha do próximo.
responsabilidades estão bem definidas para cada um. Eu vou- De minha parte, a Obra foi realizada e oferecida. O que res-
me embora, com o meu esforço realizado, para recolher o fruto ta fica para os outros. O trabalho de sua compilação foi execu-
em outro lugar. Os outros ficam com o seu trabalho para fazer, tado nas mais difíceis condições, porque a Terra não é lugar pa-
se lhe quiserem colher o resultado. No final se dividem os cam- ra contemplações idealistas e realizações evangélicas. Aqui
pos, e cada um permanece sozinho diante da Lei, na posição domina a lei da luta pela vida. O mundo é um campo de bata-
que lhe compete. Os princípios expostos na Obra não são so- lha, onde, para se sobreviver, torna-se indispensável possuir
mente teorias. A Lei não pode ficar em vão e, também neste ca- uma forma mental adequada, completamente diversa daquela
so, põe-se logo a funcionar. As minhas contas com Deus são necessária para saber executar um trabalho espiritual. Quem é
coisa minha, e ninguém pode imiscuir-se nelas para retirar ou feito para este trabalho deve adaptar-se a viver em tal ambiente,
acrescentar coisa alguma, assim como as contas do mundo são que nem por isso o poupará. O homem voltado às coisas do es-
com Deus, e delas também ninguém pode subtrair ou adicionar pírito, se quiser sobreviver, deve entrar em guerra e fazê-la co-
nada. As contas do mundo são com Deus, e não comigo, assim mo todos, porque, se ele se distrair, olhando para o céu, o mun-
como as minhas não são com o mundo, mas apenas com Deus. do aproveitará para devorá-lo. Eis o que espera quem se perde
O momento histórico é grave para todos, e cada um deve cha- na visão dos grandes problemas e esquece a realidade torturante
mar a si as suas responsabilidades. de cada dia. Esta exige capacidade de assalto e defesa, muito
Nestes volumes conclusivos da Segunda Obra, falei também mais do que qualidades intelectuais e morais.
do cristianismo, dos seus deveres e destinos, examinando as su- É lógico que tudo seja assim. Na Terra, são negativas as
as responsabilidades perante o problema moral e espiritual que virtudes evangélicas, que, num plano superior de organicidade,
o espera em nossa civilização ocidental. O primeiro impulso são positivas, enquanto, neste nível mais elevado, são negati-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 117
vas as qualidades do animal lutador e egoísta, as quais, no ressa, e sim como construção de personalidade. A vida assume,
mundo, são positivas. Isto porque o nosso planeta, em grande então, outro sentido. Fazem-se as contas do que realmente se
parte, ainda gravita em direção ao AS, baseando-se, portanto, produziu e o tanto que se percorreu. E, se não derivaram valo-
nos princípios e métodos involuídos deste, e não naqueles mais res construtivos em sentido evolutivo, mas somente sucessos
evoluídos, pertencentes ao S. Assim, para viver no ambiente terrenos, que agora são abandonados, não resta outra coisa se-
terrestre, está mais adaptado o involuído egoísta e lutador do não um vazio e o sentido da inutilidade de tanta fadiga. A vida
que o evoluído altruísta e pacífico. só será plena e bela no seu final, se a tivermos enchido de valo-
A Obra foi escrita no meio dessa tempestade, aproveitando res substanciais, aqueles que servem para evoluir. No entanto,
os momentos de trégua, quando ela afrouxava para golpear se a tivermos recheado de valores falsos, de tipo AS, que ser-
noutro lugar, mas sempre vivendo em estado de tensão. Isto vem para descer involutivamente, ela será, pelo contrário, oca e
implicava um grande desperdício de energias, que eram sub- triste. No primeiro caso, sentimos que nos dirigimos para a luz;
traídas à produção. Quão maior não teria sido o rendimento, no segundo, que caminhamos para as trevas.
se tivesse sido possível trabalhar num ambiente de tranquili- No fim, eis-me sozinho perante a Lei. Refugio-me nos bra-
dade, como seria necessário para se poder pensar! Talvez o ços do S e de sua justiça. Através de toda a Obra, observei o
acontecimento mais prodigioso tenha sido o fato de poder ter funcionamento dessa Lei. Sinto-a operar à minha volta, dentro
sido a composição da Obra levada a cabo em tais condições. de mim. Ela me expressa o pensamento e a vontade de Deus.
Daí se pode ver em que dificuldades deve encontrar-se sub- Estou imerso plenamente nesta atmosfera feita de vida, da qual
mergido na Terra quem luta pelas coisas do espírito, compre- se alimenta o respiro do universo. Extinguem-se os sentidos fí-
endendo-se como é justificada a sua alegria ao avizinhar-se a sicos, fecham-se as portas que eles abriam para o exterior, rom-
hora da libertação. É lógico e biologicamente justo o sistema pem-se os contatos com o mundo da matéria, mas eu continuo a
da luta pela vida, como sucede no plano humano, para um sentir e a pensar. O cérebro envelhece e desaparece, mas eu fi-
biótipo que deve realizar a seleção do mais forte ou astuto, co. O corpo morre, mas eu vivo. A minha vida se desloca do
porque esta, no seu nível, é a forma de evolução adequada que plano físico ao espiritual, concentrando-se na sua parte mais al-
ele deve executar. Mas tal sistema, para quem quer realizar ta, que não morre. O meu ser se enfraquece em um nível e se
uma tarefa de outro tipo, pois lhe é mais adaptada, é absurdo e fortalece em outro, no qual sobrevivo. Quanto mais o corpo de-
contraproducente, já que paralisa o seu trabalho. finha, tanto mais me fortaleço no espírito. Morro de um lado,
Todavia, quase como conforto na hora de desalento, chega- para ressuscitar do outro. Tenho a sensação de morrer só na
me, enquanto escrevo esta página, uma carta de uma pessoa ca- parte inferior de mim mesmo. É uma separação que não dá ne-
paz de julgar5, que emite o seu julgamento sobre o primeiro vo- nhuma sensação de perda, pois a parte que se adquire vale mais.
lume da Obra, A Grande Síntese, do seguinte modo: “Ao finali- Como é belo morrer, quando se viveu assim! Fica-se na parte
zar a leitura desta obra (A Grande Síntese), temos a impressão mais profunda e vital do próprio ser!
de haver ressurgido no Século XX um dos grandes profetas bí- Ao concluir o meu ciclo terrestre, depois de tanto pensar e
blicos. Igualá-la é difícil. Superá-la, impossível. Negá-la, ab- escrever, para executar o trabalho que me tinha sido confiado,
surdo. Discutí-la, loucura. Mas aceitá-la e senti-la são a prova volta a amiga voz interior – agora já bem conhecida por mim –
de que em nós há uma centelha da divindade. Merece realmente a fazer-se diretamente sentir como no início da Obra. Sinto esta
ser encadernada no mesmo volume que o Novo Testamento, voz emergir da profundidade da alma, dizendo-me: “Permanece
como coroamento das obras dos grandes e primeiros apóstolos. calmo. Sabe que eu sou Deus. Sou o Deus dentro de ti, como o
A força e a segurança fazem desta Grande Síntese uma conti- sou dentro de todos e de todas as coisas. Quem segue a Lei não
nuação natural das Epístolas e do Apocalipse, nada ficando a tem nada a temer. Confia no meu poder. Seja qual for o assalto
dever a eles (...). Quanto à confirmação de sua Obra, a cada dia do mal, Eu tenho o poder de salvar-te”.
que passa sinto que cresce em todos os pormenores. Realmente Pergunto o que significam essas palavras e como pode ser
a sua Obra é toda inspirada na espiritualidade maior, filtrando possível de fato o que elas dizem. Então ouço a explicação. O
com fidelidade o pensamento crístico, que constitui a noosfera universo está em evolução. Isto nos dá a entender que ele não é
mais elevada do nosso planeta”. perfeito e que se move em busca de perfeição. A meta é Deus,
Permanece, no entanto, o fato de que a diminuição de pro- no centro do S, e a evolução é o caminho que, depois de ter ha-
dução representa um dano ao interesse coletivo, que, assim, ob- vido o afastamento, leva ao retorno. A imperfeição é o estado
tém uma produção útil menor. Pelo fato de ter de realizar o tra- de ruína derivado da queda e a evolução é o trabalho de recons-
balho em condições tão adversas, devendo vencer dificuldades, trução da perfeição perdida. O homem se encontra na periferia
o indivíduo que o executa fortifica-se espiritualmente, o que o do S, situado, poder-se-ia dizer, no seu exterior, que é o plano
torna mais apto a ascender. No final da vida termina a batalha, da ilusão sensória, no qual o espírito é envolvido pela forma na
e a Lei se apossa de nosso destino, qual o quisemos construir. matéria. Várias são as imagens com que se pode expressar esta
Então, já não podemos funcionar como causa determinante de ideia. Tal periferia, que constitui o AS, é feita de caos, mas
acontecimentos. Devemos, pelo contrário, continuar fatalmente
dentro dela, no centro, que é o S, permaneceu íntegra a ordem,
como consequência de nosso passado. Termina a hora da livre
que é indestrutível. O homem se encontra do lado do caos, mas,
experimentação, uma vez que está exaurido o seu escopo. O
dentro desta periferia caótica, regendo-a e guiando-lhe os mo-
passado retorna a nós, vivo e gigante, mas agora já imobilizado
vimentos em direção à reconstrução do organismo original,
na forma em que foi vivido, e nele ficamos suspensos, como se
existe aquela ordem. É por este fato que o caos, embora seja
estivéssemos fora do ciclo da transformação. É como se o tem-
feito de negatividade – fato pelo qual, naturalmente, ele não
po tivesse parado, não sabendo mais criar nada novo. Inclina-
poderia conduzir senão à autodestruição – é movido, contra a
mo-nos sobre o passado, e ele, agora pleno de outros significa-
sua vontade, por um impulso de positividade, que o leva por
dos recônditos, antes não suspeitados, enche a nossa vida. Vi-
fim a se reconstruir na ordem. Esta é a razão pela qual o mal,
vemo-lo de novo, agora não mais exteriormente, e sim interi-
nascido como contradição, porque representa o emborcamento
ormente; não mais nas vicissitudes materiais, e sim no seu sig-
do bem no AS, é constrangido a continuar sempre a seguir este
nificado; não mais como conquista terrena, que já não nos inte-
mesmo tipo de trajetória, vindo assim a se contradizer, de modo
5 que, no fim, acaba por se tornar um instrumento de bem nas
Prof. Carlos Torres Pastorino, diplomado em Filosofia e Teologia pelo Colé-
gio Internacional S. A, M. Zaccaria, em Roma; professor titular de Latim e mãos de Deus. É evidente que, mesmo assumindo uma posição
Grego da Universidade Federal de Brasília. (N. do A.). emborcada na revolta, ninguém pode fugir ao poder de Deus,
118 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
centro e origem de tudo. Deste ponto, que permaneceu vivo e felicidade, que, de outra maneira, deveria ser desconhecida de-
ativo também no mais íntimo do AS, deriva o impulso da evo- les. Tal impulso, proveniente das profundidades do inconscien-
lução, que leva todos a ascenderem. te, prova esta recordação do ser, levando a presumir que se tra-
O AS não está sozinho. Dentro da sua casca podre reside ta de coisa conhecida. Faça-se, então, uma pesquisa profunda
uma alma sã e potente, que o sustenta e o guia para a salva- dentro de si mesmo, mas não no inconsciente inferior ou sub-
ção. Ele não é senão um membro corrompido de um grande consciente, que contém os produtos dos mais baixos planos
organismo (S), que permaneceu sadio e continua a irradiar sa- evolutivos em direção ao AS, percorridos no retorno, mas sim
úde para a parte doente, a fim de curá-la. O AS não se separou além deles, mais profundamente, em direção ao inconsciente
de Deus, fonte primeira da existência. Os raios divinos che- superior ou superconsciente. Isto no sentido de procurar ali as
gam também aonde a criatura, por sua livre vontade, colocou- longínquas reminiscências de outro tipo de existência, de altís-
se em posição emborcada. E tudo o que existe os recebe. A simo nível evolutivo, com as quais o S tenta fazer reaparecer,
grande consolação do indivíduo que, condenado ao retrocesso em forma de pressentimento, o futuro maior que nos espera.
espiritual, tem de se encarnar no ambiente terrestre, é reen- Religião e espiritualidade vêm a ser, então, um ato de profunda
contrar esta íntima ligação sua com Deus, é rever na profun- autoanálise psicológica, que investe sobretudo no superconsci-
didade das trevas do AS um raio da luz divina, é ouvir a voz ente. Assim elas significam um trabalho de alta intelectualida-
de Deus e sentir a Sua presença. de, sendo este o sentido no qual as apresentamos aqui. Com is-
Vão-se embora as formas instáveis, ultrapassadas pela cor- so, elas assumem um caráter mais racional e positivo, o que as
rente do transformismo, batidas pelo ritmo do tempo, acossadas torna mais acessíveis e aceitáveis pela ciência.
pelo contínuo movimento do relativo à volta do absoluto, eterno Quanto mais o ser evolui, tanto mais ele reencontra estas
e imóvel. A evolução não avança ao acaso. Dirige-lhe o desen- realidades profundas e se liberta das ilusões do mundo. O ser
volvimento, regendo-a interiormente, o pensamento de Deus, fio humano é uma reprodução em escala microcósmica do grande
condutor do transformismo, ao qual é dado um desenvolvimento modelo macrocósmico do organismo universal. O nosso espíri-
lógico, desde o ponto de partida até ao de chegada. É feliz quem, to eterno está dentro de nosso corpo, que está sujeito a contí-
mesmo estando mergulhado na profundidade dolorosa da vida nuo metabolismo, assim como o S se encontra imutável no ín-
terrena, compreendeu que um Pai celeste nos espera ao final do timo do AS, que está submetido ao constante transformismo.
longo calvário da evolução redentora. É feliz quem sabe vê-Lo Depois destas explicações, podemos compreender o significa-
vir ao nosso encontro com os braços abertos, incitando-nos a as- do daquelas palavras: “Sabe que Eu sou Deus. Sou Deus den-
cender, para reencontrar Nele a felicidade. tro de ti”. Compreendemos também que “Permanece calmo”
“Eu sou apenas uma gota num oceano e, por isso, não sou significa fazer silêncio, porque a voz interior é sutil e difícil de
nada na sua imensidão. No entanto, faço parte dele e, por esse ouvir. Isola-te, portanto, dos rumores do mundo que te percu-
motivo, sou um de seus elemento constitutivos. Eis de que tem do exterior e aguça o ouvido, para ouvir esta outra voz. O
maneira sou oceano”. Isto é o que cada um de nós pode dizer homem ainda ignora o universo interior, que é tão vasto quanto
em relação ao que somos perante Deus. Mas não basta sê-lo. o exterior, cujos confins ele desconhece.
O problema é saber e sentir isto. Ora, como Deus está dentro Justificando e confirmando tais palavras, há também o fato
de tudo o que existe, pois, caso contrário, nenhuma coisa po- de São Paulo nos dizer, em sua Primeira Carta aos Coríntios:
deria existir, então Sua presença ali é tanto mais evidente e “Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito
perceptível, quanto mais o ser é espiritualmente evoluído, o Santo habita em vós?” (3-16); “Não sabeis vós que o vosso
que significa ter-se libertado dos invólucros obscurecedores corpo é o templo do Espírito Santo que está em vós (...)?” (6-
produzidos pela involução e, assim, estar mais vizinho Dele 19). Além disso, São Lucas, no seu Evangelho, acrescenta: “O
no caminho de regresso. Eis que a fundamental unidade da na- reino de Deus está dentro de vós” (17-21). Então, se esta é a re-
tureza entre criatura e criador é diversamente sentida pelo ser, alidade, como impedir que ela às vezes aflore e que alguém se
conforme o grau de evolução alcançado pelo indivíduo. É in- dê conta da sua existência?
discutível a existência desta unidade, que, estando escondida Perguntamo-nos se tudo isso pode ser entendido como um
no mais profundo e sendo capaz de resistir a qualquer erro ou desejo de tomar uma atitude orgulhosa de superioridade. É
revolta, constitui uma qualidade indestrutível do ser. Ela era certo que, neste caso, trata-se de um crescimento que, natu-
indispensável para que se pudesse cumprir o ato da criação, ralmente, não pode deixar de abrir uma distância. Mas trata-se
com a qual Deus gerou a criatura, extraindo-a de Si mesmo, de um crescimento positivo, de tipo S, não sendo, portanto,
da Sua própria substância, dado que de outra maneira não po- simulado, egoísta e separatista, antivital para os outros, mas
dia acontecer, porque Ele era tudo. É assim que o evoluído, sim verdadeiro, generoso e unitário, vital para todos, porque
pelo fato de ser espiritualizado, pode às vezes encontrar na implica um amplexo para elevar juntamente consigo os pró-
profundidade de si mesmo, emergindo do inconsciente em que prios semelhantes. De tal crescimento a sociedade não poderá
ficou sepultado, um eco daquele pensamento divino originário sentir senão vantagem. A humanidade, toda inclinada para
do qual derivou a sua existência. Se Deus não é percebido, is- conquistas do mundo exterior, tem necessidade de quem se
to se deve à surdez do ser, consequência da involução, e não à dedique à obtenção dos ilimitados continentes do espírito. O
mudez da voz de Deus. A involução podia mudar o que per- ateísmo é simples miopia mental. As construções mitológicas
tencia ao ser rebelde, mas não aquilo que é de Deus. das religiões ameaçam não se manter mais. Para que elas pos-
Ora, pelo fato de ser esta a estrutura do fenômeno, é evi- sam sobreviver, é necessário saber ver com outra mente as
dente que ele não pode ser senão de tipo introspectivo. Eis que profundas verdades que elas contêm.
só podemos encontrar Deus dentro de nós, e isto em proporção O homem, como qualquer célula do todo, traz dentro de si,
ao grau de espiritualização atingido. A sensação da presença e impressos na sua própria natureza, os sinais da estrutura bipo-
do pensamento de Deus dentro de todas as coisas é encontrada lar do todo. Como já sabemos, o dualismo, que está na base da
interiormente, na alma, na raiz do nosso ser, e não exterior- estrutura de nosso universo, é derivado da revolta, pela qual
mente, por meio dos sentidos. Trata-se de escavar nos estratos se despedaçou em duas a originária unidade do S. O homem,
mais profundos do ser, onde deve ter ficado qualquer recorda- devido ao fato de se encontrar em um todo bipolar, pode
ção das primeiras origens. Do contrário, não se explicaria co- avançar por evolução e retroceder por involução. Assim, ele-
mo podem seres provenientes dos planos baixos do AS, onde vando-se espiritualmente, ele pode projetar-se em direção ao
não se conhece senão morte e dor, procurar com tanta paixão a S, enquanto que, seguindo os seus baixos instintos, pode in-
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 119
clinar-se para o AS. A função da evolução é justamente levar terra é justo que fique aí. Mas o que pensei, desejei e fiz neste
da cisão dualista à unificação de tudo em Deus, através de trajeto é meu e levo comigo. Com o avizinhar-se da hora su-
uma progressiva reaproximação, que tende a encurtar as dis- prema, aproxima-se sempre mais a figura de Cristo, que me
tâncias entre criatura e criador. Quanto mais elas diminuem, sustentou neste longo esforço. Sei que O verei na hora da mor-
tanto mais se pode ouvir e compreender aquelas palavras: te, ao cumprir-se a minha missão, como chancela final do meu
“Sabe que eu sou Deus. Sou Deus dentro de ti”. A altura da trabalho, para tudo confiar nas Suas mãos. Ele apareceu no
evolução não é espacial. O baixo é a besta; o alto é o anjo. É começo desta Obra e reaparecerá no fim. Com Cristo se inici-
por uma transformação da própria personalidade neste sentido ou a narração deste volume e com Ele se fechará.
que a ascensão se realiza. Há pouco falei de Deus, agora falo de Cristo. Poderiam
Na Terra, vemos os dois polos sempre se ladearem em ex- perguntar-me como entendo estes dois conceitos e que rela-
pressões paralelas. Nos velhos castelos e cidades, as duas rea- ção vejo entre os dois, se os percebo distantes ou unificados,
lidades se encontravam vizinhas. Havia as muralhas e os fos- se creio em Cristo-Deus ou apenas em Cristo-homem. Não
sos para fazer a defesa e a guerra, mas também havia a Igreja tenho dúvida alguma sobre a divindade de Cristo, fato lógico
para falar com Deus. Em escala maior, temos o Estado e a e racionalmente sustentável, quando é entendido no seu justo
Igreja, o primeiro representando a Terra, apoiando-se na reali- significado. Perante o homem, Cristo e Deus representam a
dade da vida, a segunda simbolizando o Céu, pregando o ideal. mesma meta a alcançar, a mesma direção do caminho evolu-
Estes são os dois polos que, coexistindo no mesmo terreno, tivo, o mesmo ponto final deste trajeto, a solução do ciclo in-
disputam entre si o homem. volutivo-evolutivo, ou seja, o S. Neste sentido unifico os dois
As formas da conduta do idealista perante o mundo podem conceitos: Cristo e Deus. Mas os distingo enquanto entendo
resumir-se em três fases: 1) A juvenil, na qual ele, cheio de fé e Deus como o Pai, o Criador, que permaneceu no centro do S,
de entusiasmo, acredita sinceramente nas belas coisas que lhe e Cristo como seu derivado, como diz a própria palavra filho,
ensinam; 2) A adulta, na qual ele, ao entrar em contato com a que é a criatura gerada por aquele Criador. Embora distintos
realidade e descobrir nos fatos quão longe o mundo está dos neste sentido, os dois são unificados novamente pelo fato de
princípios ideais que são proclamados pelo próprio mundo, es- ser o Filho constituído da mesma substância do Pai, de modo
candaliza-se e reclama contra a mentira, para que os princípios que Cristo é também Deus.
sejam vividos a sério; 3) A madura, na qual ele compreende a Ora, se Cristo é o Filho, o fruto da criação do Pai, o concei-
inutilidade dessa boa vontade e desse esforço honesto, contra os to de Cristo coincide com o de S, porque a criação do primeiro
quais o mundo reage, pois tais atitudes são consideradas como volta a entrar na do segundo. O nosso universo é tão imperfei-
agressividade e os acomodados não querem ser perturbados. to, que seria loucura acreditar na possibilidade de ter ele saído
Assim resolve-se aquela boa vontade, recaindo na luta geral pe- das mãos de Deus como Sua obra direta. A primeira criação,
la vida. Então o homem honesto termina separando-se do mun- assim como é Deus, foi espiritual e perfeita, formada de puros
do e do destino deste, cuidando de se pôr no seu caminho, para espíritos, extraídos exclusivamente da Sua substância, porque,
ir viver em ambientes superiores, longe da Terra. além do Todo-Deus, nada podia existir. Deste modo, nasce a
Quando se chegou a esta fase final, não se perde mais terceira pessoa da Trindade, o Filho, ou S, sendo a primeira o
tempo em fazer o trabalho negativo de condenar o mundo, Espírito, ou pensamento; a segunda o Pai, ou ação; a terceira o
tanto mais que, se fosse preciso fazer o livro das acusações, Filho, ou obra realizada. Eis que, na lógica da estrutura da
um milhão de páginas não bastariam. Trabalha-se, então, em Trindade e do processo criativo, Cristo não pode estar situado
outro sentido, para se desprender de baixo, afastando-se da senão no S. O resultado da criação foi um só, que se pode
Terra. No final da vida, isto é lícito, quando o trabalho a exe- chamar Filho, Cristo ou Sistema.
cutar já foi devidamente cumprido. A libertação está na supe- Tudo isso é Deus, porque foi construído com a divina subs-
ração. Quanto mais se está vizinho do S, tanto mais indubitá- tância do Criador e é constituído por ela. O S representa a subs-
vel é a sensação de que se é indestrutível e de que é impossí- tância do Pai, transformada, através da criação do diferenciado,
vel uma anulação. Alcançar a imortalidade através da evolu- em organismo ou unidade coletiva, composta de muitos ele-
ção não pode levar senão para uma felicidade maior. Que se mentos, que formam aquele organicidade do S, do qual o Pai fi-
pode desejar mais? Apenas por ignorância de primitivo pode- cou no centro, assim como o nosso espírito está no cerne de
se acreditar que a queda na inconsciência seja tombar no va- nosso organismo. Caso se pudesse fazer uma comparação de-
zio, apenas por ser ela um nada como sensação de vida. Isto é masiado grosseira, poder-se-ia dizer que, na encarnação de
natural para quem confunde a percepção da existência com o Cristo na Terra, sucedeu como se Deus tivesse deixado que
existir em si, erro no qual caem os extrovertidos, que vivem uma célula do Seu corpo se destacasse Dele, para se fundir com
da vida dos sentidos. Para eles, a inconsciência é o nada. Mas a nossa carne e, assim, agir em nosso mundo.
não há razão para que o existir não deva estar sujeito ao dua- Aqui desponta outra diferença. Enquanto os elementos do
lismo no qual tudo se encontra cindido em nosso universo. É S, incluindo Cristo, que ficaram isentos da revolta e da queda,
assim que esse existir pode oscilar do estado de consciente ao permaneceram na sua pureza originária, as criaturas de nosso
de inconsciente e ao contrário, dado que estes são os seus dois universo caíram no polo oposto e se corromperam no AS. Eis
polos da existência: o positivo e o negativo. É absurdo admitir o que nos distingue e nos separa de Cristo. Ele permaneceu
que um fenômeno, pelo fato de entrar na sua fase negativa, verdadeiramente Deus, porque a substância do Pai que o cons-
deva cessar de existir. Trata-se evidentemente de um erro de titui ficou íntegra, tal como no momento da criação, idêntica
percepção, que a lógica descobre e elimina. àquela da qual derivou. A mesma coisa ocorreu para os outros
Com este conhecimento do fenômeno, vou ao encontro da elementos do S. As referidas criaturas decaídas também tive-
morte. Não se trata de fé ou de esperança, mas de convicção ram a mesma origem e foram feitas da mesma substância, es-
racional e de segurança positiva. A voz de tudo isso que existe ta, no entanto, ofuscou-se com a queda, de modo que a divina
me grita que nada pode ser anulado como verdadeira morte. centelha ficou aprisionada no ciclo involutivo-evolutivo, ten-
Vejo-a, assim, avizinhar-se para me abrir as portas de uma vi- do de se submeter ao processo do transformismo necessário
da maior. Não a sinto como negação, mas sim como uma mais para retornar purificada ao S.
potente afirmação. O seu verdadeiro conteúdo é libertação. Não obstante estarmos separados de Cristo por esta imen-
Restituirá à terra tudo aquilo que esta me deu, inclusive o meu sa distância, que vai do S ao AS, o fato de todas as criaturas,
corpo, dentro do qual fiz tão longa viagem. O que pertence à mesmo as decaídas, serem filhas de Deus nos avizinha Dele.
120 UM DESTINO SEGUINDO CRISTO Pietro Ubaldi
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Esta qualidade de origem não se pode cancelar. Então, se o XVIII. LIBERTAÇÃO
ponto de partida do nascimento é igual para cada um, há na
base da existência de todos os seres uma fraternidade univer- Encontro-me em plena solidão, numa praia deserta. O
sal, que liga em parentesco, como dentro de uma mesma fa- mundo, as suas imagens e as suas coisas, tudo está longínquo.
mília, as criaturas do S às do AS. Eis o fato que nos aproxima Nem o eco dos seus rumores, problemas e paixões atinge este
de Cristo. Assim temos de um lado, no S, as criaturas sem imenso silêncio. Aqui, assim como o céu, a planície e o mar
mácula, que ficaram unidas a Deus, e do outro, em nosso são infinitos, também os pensamentos se tornam sem limites.
universo, ou AS, as criaturas culpadas e decaídas, separadas Neste lugar, tudo é tão simples e grandioso, que parece ter
de Deus. Porém todas as criaturas saíram da mesma criação, acabado de sair das mãos de Deus. A laboriosa cisão do dua-
ainda que depois, num segundo tempo, tenha surgido a cisão lismo, na contínua luta entre contrários de que é feita a vida,
entre os elementos que permaneceram com Deus e aqueles procura aqui pacificar-se, para se desvanecer na unificação su-
que se afastaram Dele. prema de todas as coisas em Deus.
Os cidadãos do S são, no fundo, irmãos dos que se encon- Aqui existo fora dos confins do espaço e do tempo, pois
tram no AS. Também Cristo é nosso irmão. É esta fraternidade não há no céu, na planície e no mar pontos de referência, sen-
que nos explica a razão pela qual ocorreu e a maneira como foi do todos dias transcorridos de modo igual, sem medida. Sinto-
possível a aproximação Cristo-humanidade. Foi assim que a me fora das dimensões terrestres. Não adianta caminhar, por-
presença ou imanência de Deus pôde realizar-se de modo tan- que o deserto jamais muda, permanecendo sempre sob o
gível em nosso mundo, com a descida no AS de um dos irmãos mesmo céu e em frente ao mesmo mar. O movimento tem re-
não decaídos. A sua função ou missão, como no caso de Cris- lação com o limite. No espaço e tempo infinitos, a velocidade
to, consiste em descer nas várias humanidades dos decaídos, nada modifica, anulando-se no vazio. Por falta de um ponto
cada vez para um tipo diverso de trabalho, seja ele de poder, de de referência, não havendo ponto de partida ou de chegada,
inteligência ou de amor, mas sempre para funcionar como pon- toda velocidade é inútil. Mesmo o passar do tempo nada mu-
te entre as criaturas decaídas e o Pai, mantendo, assim, o con- da, porque espaço e tempo não faltam. Acima de todos esses
tato sensível e impulsionando à solução do separatismo, para infinitos – do céu, do deserto, do mar, do tempo – Deus os
se realizar o regresso ao S, através da evolução redentora. En- contempla imóvel, ao se fundirem Nele.
tendo o Cristo, então, como um grande irmão que nos salva, Esta é uma atmosfera diferente que respiro, outro ambiente
fazendo-nos voltar a subir ao S e reconduzindo-nos a Deus. em que penetro, outra dimensão em que existo. Superei os limi-
Falei de diversos tipos de trabalho. Isto é possível, porque, tes do plano físico, ultrapassando a barreira da forma, das ilu-
sendo o S um organismo, ele resulta composto de elementos sões, das aparências. Sou apenas um pensamento que observa o
especializados em várias funções complementares, que se in- pensamento contido em tudo o que existe. Uma força me arras-
tegram reciprocamente. É assim que, através das diversas tou para fora das dimensões terrestres, em direção à vibrante
criaturas do S, Deus pode assumir inúmeras formas de mani- imutabilidade do absoluto.
festação, para se realizar nas diversas humanidades dos decaí- Estou vivendo em uma casinha humilde, onde a vida, tor-
dos, empenhando-se na evolução, que é o caminho do retorno mentosamente complicada pela civilização das metrópoles,
ao S. Para mim, Cristo representa o ser ideal, o modelo que a tornou-se simples e calma. Assim, o espírito se liberta das mui-
evolução me apresenta e me propõe realizar para retornar ao tas necessidades materiais artificiosas e pode viver a sua vida
S. Poderei dizer que Ele é o meu tipo, assim como, para ou- maior, em contato com as coisas eternas. Surpreende sentir
tros indivíduos, existem outros padrões, adaptados cada um ao quão pouco necessitamos para viver. É admirável o particular
próprio temperamento e especialização pessoal. Estes mode- sabor que tudo adquire, quando representa um produto da bon-
los não são abstrações fora da realidade. São criaturas de dade, da sinceridade e do amor! Então, a pobreza se torna ri-
Deus, cidadãos do S, que existem de verdade, mesmo sendo a queza, enquanto a avareza e o egoísmo transformam a riqueza
sua existência apenas espiritual. em pobreza. Se, em meio à pobreza dessa riqueza, o espírito se
O impulso evolutivo em direção ao S leva o indivíduo a se atrofia, envenena-se e morre, é no meio da riqueza daquela po-
avizinhar sempre mais do seu próprio paradigma. Isto porque breza que o espírito se expande, vive e triunfa. Pela lei da
a evolução também é um processo de unificação. A vida mai- compensação, para alcançar e possuir o que se encontra mais
or que nos espera é aquela do eu unificado, e não mais a do eu no alto, é necessário libertar-se do que está em baixo. É no
separado. Transforma-se, então, a visão da vida, operando-se meio da riqueza espiritual dessa pobreza material que vivo
uma espécie de transfiguração. A medida fechada de nosso agora, como um grande senhor.
pequeno eu, para nós tão grande, dentro da qual vivemos, tor- É neste vazio das coisas terrenas que atinjo a plenitude das
na-se um tipo de existência restrita, como se fora um cárcere, coisas do céu. Quanto mais me afasto do que é humano, tanto
isolada do imenso pulsar de toda a vida do organismo univer- mais me avizinho das coisas divinas. Delas se enche esta imen-
sal. Quanto mais se evolui, tanto mais se sente que todos os sidão deserta, para que se abram as portas do céu e apareçam as
seres são verdadeiramente irmãos. Em nosso baixo nível, as grandes visões. Elas constituem já uma aproximação e uma an-
outras formas de vida são nossas inimigas, porque estamos do tecipação da libertação, uma tentativa e um ensaio para viver a
lado do AS, onde domina o egoísmo, que divide, levando à lu- vida maior que me espera. Nesta paz infinita se vai formando
ta entre rivais. Mas, num plano evolutivo mais alto, em dire- pouco a pouco a grande corrente, que se agiganta e se torna po-
ção ao S, prevalece a unificação, de modo que as outras for- derosa, tomando-me e absorvendo-me em seu seio, para depois
mas de vida são nossas amigas e nos ajudam a viver. Quanto me envolver como num turbilhão e me arrastar consigo para
mais se sobe, no sentido da amplitude desta união em amor longe. Para onde? Não sei. Leva-me para outro plano de exis-
recíproco, tanto maior e mais bela se faz a vida. Quando se é tência, onde já não sou eu que penso, mas sim o universo. É a
lançado nesta direção, a morte significa libertar-se do estágio
inferior da vida terrena, de tipo antiunitário, livrando-se de 6
Este capítulo foi escrito na praia deserta de Grussaí, perto de Campos, Estado
uma existência de prisioneiro do separatismo. Entra-se, então, do Rio de Janeiro, em janeiro de 1964, ao iniciar-se o presente volume (depois
na vida maior, que se espraia no amor universal. Tal vida não interrompido para escrever outro livro: A Descida dos Ideais). O referido texto
significa mais viver como fragmento de uma humanidade é como um pressentimento da visão final que me espera ao entrar na nova vida.
Quando a hora chegar, não poderei mais escrever e transmitir. Será, então, a vi-
despedaçada, mas sim existir unificadamente, como elementos são do Cristo só para mim, em silêncio, sem testemunhos humanos, fora do
conscientes da organicidade do todo. mundo, nas profundezas da minha alma. (N. do A.)
Pietro Ubaldi UM DESTINO SEGUINDO CRISTO 121
sua vida que pensa dentro de mim, porque não existo mais co- Assim estou vivendo nesta casinha humilde à beira do mar,
mo eu separado, que vive e pensa isoladamente, mas sou um eu num deserto povoado de pensamentos, no meio do vento e das
unido ao todo, um elemento que vive e pensa como um mo- ondas, hospedado graças à bondade e ao amor de um amigo
mento da vida e do pensamento do existir universal. Encontra- sincero. Assim estou vivendo aqui, livre e despreocupado, lon-
mo-nos, então, verdadeiramente fora do mundo, para além dos ge do inferno humano. Passo as noites escrevendo, ocupando-
seus limites e das suas dimensões. me de Cristo, como O sinto a meu lado. Ele está olhando para
É uma imersão no infinito, saindo fora do espaço e do tem- mim, e eu leio nos Seus olhos o pensamento de Deus.
po. Não tenho mais consciência do que deixei para trás. Sinto Quando não me é mais possível encontrar palavras para di-
apenas o que me espera em frente, na vertigem de uma vida no- zer o que sinto, dominado pela emoção e pela alegria, deixo
va e imensa para a qual me precipito. Eis-me ressuscitado mais cair a pena e choro. O meu trabalho para, mas, sob o olhar de
no alto, transformado em outro ser, perdido numa dilatação sem Cristo, o livro continua a escrever-se, sem palavras, na minha
limites, na vibrante imobilidade do absoluto. alma e no meu destino.
Eis que a solidão deste deserto de céu e mar se enchem de
vida. Na noite profunda, vejo uma luz imensa e a ela me entre- São Vicente, São Paulo Páscoa /1967
go. Leva-me para fora do mundo, onde a visão se torna real, cla-
ra e perceptível, com novos sentidos. Contemplo-a extasiado.
Observo-me, para controlar tudo com a razão. Olho e registro FIM
em pensamento, depois transporto tudo o que vejo para o meu
cérebro, para as dimensões terrestres, traduzindo-o na linguagem
humana, para fixá-lo por fim com palavras nos escritos.
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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