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Ana Paula Wagner*

O Império Ultramarino Português e o


recenseamento de seus súditos na segunda metade
do século XVIII

Resumo
A partir da dccada de 1770, os governadores de Moçambique, Angola, Macau, Piauí, São Paulo e de outros
territórios do ultramar português passaram a receber ordens, provenientes da metrópole, para que efetuassem
recenseamentos periódicos das populações residentes nas regiões subordinadas a eles. Essa prática indica que,
para o século XVIII, Portugal e seus domínios ultramarinos formavam um verdadeiro império, embora composto
por diferentes espaços geográficos e realidades sociais. Assim, consoante com princípios de governo que vinham
sendo colocados em evidência na Europa do Antigo Regime, a administração portuguesa interessou-se em
conhecer quantos e quem eram os súditos de seus domínios. E importante ressaltar que, apesar da busca por uma
unidade de ações administrativas e políticas e da tentativa de impor em todos os domínios um mesmo modelo
de recenseamento, observou-se algumas modificações moldadas pelas circunstâncias locais, como atestam os
levantamentos de habitantes realizados em territórios da América portuguesa e da África Oriental, nos quais
podemos notar algumas alterações no modelo geral proposto. Além disso, comparar os critérios estabelecidos
para indicar quem deveria ser contado nos dois territórios mencionados anteriormente, permite tecer algumas
considerações sobre o tipo de súdito que interessava a Coroa Portuguesa.
Palavras-chave: Império Ultramarino Português; População; Moçambique - século XVIII

Abstract
From the 1770's, the governors of Portuguese overseas territories began to receive orders to make periodical
census of the inhabitants of the regions under their rule. This practice indicates that, during the 18th Century,
Portugal and its overseas domains made up a real empire, although composed of different geographic areas and
social realities. Therefore, according to principles of government in evidence in Ancien Regime Europe, the
Portuguese administration became interested in knowing how many and who were its subjects. It is important
to point out that, despite the search for unity of administrative actions, one can observe some changes forced by
local circumstances, as shown by the inhabitant censuses made in Portuguese America and East Africa, in which
one can notice some alteration on the general model proposed by the Crown. To compare the criteria chosen
to indicate who should be counted in both territories allows raising considerations on what kind of subject the
Portuguese Crown was interested in.
Keywords: Portuguese overseas domains; Population; Mozambique - 18th Century

* Mestre em História/UFPR, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Bolsista CAPES.
Integrante do CEDOPE • Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses • UFPr.
Este artigo é fruto do apoio do CNPQ e da Fundación Carolina ao projeto "Los naturales de Brasil, criollos, cn el marco de las Ciencias
Naturales de la Ilustración Portuguesa"'.

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O Império Ultramarino Português e o
recenseamento de seus súditos na segunda metade
do século XVIII
A n a Paula Wagner

N a década de 1770, os governadores de Moçambique, Angola, Macau, Piauí, São


Paulo e de outros territórios do ultramar português passaram a receber ordens, provenientes da metrópole,
para que efetuassem recenseamentos periódicos das populações residentes nas regiões subordinadas a eles.1
Essa prática indica a propriedade de se considerar que, para o século XVIII, Portugal e seus domínios
ultramarinos formavam um verdadeiro império 2 , embora composto por diferentes espaços geográficos e
realidades sociais. Conforme Hespanha, o reordenamento do mundo desencadeado pelas grandes navegações
possibilitou a construção de um outro conceito de império: diante das conquistas de territórios em diferentes
partes da terra, aquele pequeno reino da península ibérica formou um império fundado tanto no controle
do espaço terrestre, como no domínio e segurança de rotas marítimas. 3 Além da metrópole, os Estados da
índia 4 , do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará e outros e domínios designados como capitanias reuniam-se
debaixo de normas administrativas bastante similares, adaptadas aqui e ali ao sabor das especificidades
locais.
Na segunda metade do setecentos, a administração portuguesa, consoante com os princípios de governo
que vinham sendo colocados em evidência na Europa do Antigo Regime, interessou-se em conhecer quantos
e quem eram os habitantes de seus domínios. Sobre esse tema, Guillaume e Poussou afirmam que, "com
o desenvolvimento dos Estados e de seus administradores, os problemas de população tomam um aspecto
novo, no sentido de que pela primeira vez após séculos eles são encarados de um ponto de vista político
e laico" Os mesmos autores ressaltam que, desde meados do século XVII, diversos pensadores europeus
estabeleceram uma "ligação essencial entre economia e população", na medida em que os governantes
convencem-se de que a abundância de homens estaria relacionada à possibilidade de auferir grandes
riquezas, dada a necessidade de produção de alimentos. 5
Nesta comunicação trabalharemos com dois elementos principais: por um lado, o conceito de Império
Ultramarino Português, o qual busca dar conta da complexidade geográfica e social dos territórios sob
domínio da coroa portuguesa, particularmente nas décadas finais do século XVIII; de outro, a prática de
recenseamentos dos habitantes dos diversos domínios do Império Português, com especial atenção para
aqueles realizados na América Portuguesa e na África Oriental.
Nesse sentido, é importante considerar que, segundo Guillaume e Poussou, os recenseamentos do século
XVIII europeu surgem em um momento no qual as práticas administrativas passavam por "consideráveis
progressos", especialmente se se levar em conta o desejo dos governantes em "conhecer seus administrados e
conservar os instrumentos desse conhecimento". Assim, os quadros estatísticos e os cálculos populacionais,
para o pensamento europeu setecentista, constituíam-se em elementos essenciais para a administração, que
disporia, quando necessário, seus recursos de maneira mais efetiva e ajustada às necessidades. 6
Contudo, essa disposição em computar os habitantes de um dado território é observada desde o
século XVII. 7 Ou seja, muitos pensadores daquele século já se mostravam interessados em dimensionar o
tamanho das populações de seus respectivos estados: John Graunt (1620-1674), William Petty (1623-1687)
e Gregory King (1648-1712), por exemplo, acabaram por consolidar a prática de levantamentos censitários
periódicos e sistemáticos, 8 propiciando o desenvolvimento de um conhecimento estatístico que, com o
tempo, ganhou contornos mais nítidos, ao relacionar a administração dos bens públicos com a população
de determinado local.9 Porém, é necessário frisar que, inicialmente, eram arroladas apenas informações
gerais, na medida em que os levantamentos detinham-se em informar o total de habitantes de uma dada
localidade, ou classificavam a população por faixas etárias e sexo. Aliás, cumpre notar que essa forma de
recenseamento remete à antiga prática romana de registrar os homens adultos e arrolar as propriedades
(icensus), com o objetivo de efetuar a distribuição das obrigações militares e a cobrança dos impostos. 1 "
Ao acompanharmos a prática portuguesa de produzir "mapas de população", pode-se relacioná-la
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a este quadro acima delineado." Para Antonio Cesar de Almeida Santos, esta prática estava ligada aos
fundamentos da Aritmética Política de William Petty, com os quais Sebastião José de Carvalho de Melo (o
Marquês de Pombal) havia tido contato na primeira metade do século XVIII.12 Segundo Tamás Szmrecsányi,
a Aritmética Política foi "uma escola de pensamento político e social que surgiu inicialmente na Inglaterra e
na Holanda, e mais tarde na França, e que logo se espalhou pelo resto da Europa. Seus adeptos professavam
uma abordagem quantitativa e contábil dos fenômenos socioeconómicos em geral, e dos demográficos em
particular."13 Nesse sentido, os dados populacionais recolhidos poderiam ser empregados de diferentes
maneiras, servindo para organizar, melhorar ou uniformizar a administração de um território.14
De modo estrito, Davenant, "um dos fiéis seguidores de Petty", definiu a Aritmética política como sendo
"a arte de raciocinar com algarismos sobre as coisas relacionadas com o Governo".15 Assim, Francisco Falcon
entende que os princípios desenvolvidos por Petty passaram a orientar as práticas político-administrativas,
de tal forma que o século XVIII assistiria ao "triunfo da aritmética política", expresso no desenvolvimento
de "novas técnicas de governo" marcadas por regulamentos excessivos e uma crescente profissionalização
na administração, "com a utilização de novas técnicas fiscais e estatísticas".16
De fato, essa preocupação com o computo da população não foi uma idiossincrasia pombalina. Oscar
Ramos Piñol, ao se referir ao "primeiro censo de população de Cuba colonial" informa que "durante seu
governo, Fonsdeviela desenvolveu uma fecunda iniciativa no campo estatístico". Necessário ressaltar que o
governo de Felipe Fonsdeviela ocorreu no período de 1771 a l 7 7 6 e que para a realização do recenseamento
da população cubana, produziu "instruções e formulários" que definiam a "forma de enumerar os habitantes
do local pela cor, sexo, estrato social e idade".17 Para a Europa, Jacques Revel, ao abordar a produção
do território francês, ocupou-se com o "nascimento da estatística" na medida em que percebeu que "o
conhecimento do território tornou-se inseparável do exercício da soberania", concorrendo para que, no
Antigo Regime, se passasse da peregrinação (as viagens do rei) "à estatística". Entre "descrever ou contar",
a estatística ganha espaço, integrando-se aos inquéritos e participando do destino da nação francesa.
O projeto estatístico "tenta impor em toda a parte um mesmo olhar e um modelo único de recolha de
informação e demonstrar a unidade administrativa e política da nação através da constituição de um corpo
de dados homogêneos". 18
O propósito francês é do mesmo tipo que o encontrado em Portugal, com a peculiaridade de estarmos
aqui privilegiando a prática de recenseamentos das populações dos domínios ultramarinos portugueses.
Nesse sentido, esses levantamentos tornam-se prática sistemática a partir da segunda metade do século
XVIII que, embora se perceba nela seu "espírito" pombalino, adentrou as décadas iniciais do século XIX.
De certo modo, num olhar enviesado, pode-se dizer que os governantes portugueses estavam, portanto, em
consonância com as preocupações típicas dos ilustrados setecentistas, conforme salientado por Kenneth
Maxwell:
A história da administração de Pombal é, por conseqüência, um antídoto importante para a visão excessivamente
linear e progressiva do papel do Iluminismo no século XVIII na Europa e da relação entre o Iluminismo e o
exercício do poder do Estado. A tradição histórica anglo-americana ainda tende a presumir que o Iluminismo seja
sinônimo de liberdade e de direitos que têm como objetivo fundamental proteger o indivíduo contra o Estado.
Na França, o Iluminismo ainda é visto como um antecessor, ou, na melhor das hipóteses, como um agente
condicionador da Revolução de 1789. Na verdade estamos começando a reaprender, na Europa central, oriental
e meridional, que o Iluminismo casou-se mais vezes com o absolutismo do que com o constitucionalismo. Aqui,
o século XVIII está menos caracterizado pelo indivíduo, que busca proteção do Estado, do que pelo Estado, que
busca proteção dos indivíduos muito poderosos."

Enfim, para a administração pombalina, a população constituiu-se em objeto de política de Estado, de


tal forma que, em maio de 1776, o secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, Martinho
de Melo e Castro, ordenou aos governadores das capitanias do Brasil que os mesmos fizessem a remessa
anual da relação do número de habitantes de suas capitanias, "ponto de tanta importância, como é o de saber
sua Majestade o número de Vassalos que habitam o seu Domínio".20 Como argumenta Tarcísio Rodrigues
Botelho, percebe-se, nessa ação, que a administração portuguesa entendia que se tornava
importante uma compreensão melhor da realidade das colônias (e mesmo da metrópole) a fim de que pudessem ser
implantadas as reformas necessárias ao engrandecimento do império. Estas reformas eram tanto administrativas
quanto econômicas e sociais. [...] neste contexto, proliferaram as tentativas de contar a população portuguesa,
tanto metropolitana quanto colonial. Conhecer o tamanho da população e compreender suas transformações
tornava-se uma necessidade premente para os condutores dos negócios do Estado. 2 1

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Observe-se que a idéia de Império Ultramarino Português, não obstante a existência de uma desejada
base comum, manifestava-se mesmo pela heterogeneidade de situações, mesmo se estivermos pensando
este conceito na segunda metade do século XVIII: período caracterizado por profundas mudanças na ordem
política portuguesa, envolvendo aspectos econômicos, administrativos, sociais e culturais.
Antonio Manuel Hespanha defende a tese de que, pelo menos até meados do século XVIII, não
houve a adoção de uma sistemática de administração que abrangesse todos os domínios portugueses,
argumentando que a heterogeneidade de laços políticos impedia o estabelecimento de uma regra uniforme
de governo, ao mesmo tempo em que criava limites ao poder da Coroa.22 Porém, a partir do início da década
de 1760, Pombal passou a agir no sentido de consolidar o monopólio do poder, promovendo significativas
reformas que abrangeram "a propriedade, o domínio da organização familiar, o campo religioso, o fomento
da agricultura e da indústria, a laicização da prática social e a formação de novas elites económicas e
políticas". 23 Notadamente, o alcance das reformas pombalinas não se restringiu ao território metropolitano,
mesmo porque está evidenciada a existência de uma ação política cujo objetivo foi o de assegurar a
posse dos domínios ultramarinos portugueses. Essa política, que mesclava centralismo e uma crescente
especialização de funções, caracterizou-se pela formação de vassalos úteis à grandeza do reino português;
"úteis" no sentido de que cumprissem com suas obrigações em relação à sociedade, particularmente para o
engrandecimento econômico de Portugal. Aliás, como já indicamos, a administração portuguesa comungava
do entendimento de que existia uma "ligação essencial entre economia e população". 24
De fato, a atenção da administração metropolitana para com a população de seus domínios ultramarinos
merecia cuidados especiais. Inúmeras vezes, as ordens originadas de Lisboa lembravam a seus prepostos que
os habitantes dos territórios postos sob sua administração eram o "objeto muito mais importante, pelas suas
conseqüências, que todas as outras riquezas", pois segundo os "mais sólidos princípios da boa Aritmética
Política" os homens são a mais importante riqueza de um Estado. 25
Deve-se ressaltar que, a partir da segunda metade do século XVIII, a Coroa Portuguesa procura adotar
um sistema administrativo que pretendia abranger todos os domínios ultramarinos, como demonstram os
levantamentos populacionais que se tornaram recorrentes a partir do período mencionado. Tarcísio Botelho
Rodrigues argumenta que, embora existam levantamentos censitários anteriores a segunda metade do
século XVIII, é só a partir de 1776 que ocorre uma primeira tentativa do Estado português de efetuá-los
simultaneamente em toda a América Portuguesa. 26 Para outros domínios portugueses, sabe-se da existência
de prática semelhante quanto ao recenseamento sistemático dos habitantes: existe um corpo documental
para Moçambique (1777 até 1805), há registros para Angola (1778, 1779, 1781, 1799), São Tomé e Príncipe
(1771 e 1778) e documentação semelhante para as freguesias de Macau (1774).
Entretanto, é importante ressaltar que, apesar da busca de unidade de ações administrativas e políticas
e da tentativa de impor em todos os domínios o mesmo modelo de recenseamento da população, notam-se
algumas modificações moldadas pelas circunstâncias locais, como atestam os levantamentos dos habitantes
realizados na América Portuguesa e na África Oriental.
Em abril de 1777, Lisboa ordenava que fossem realizados levantamentos do número de habitantes da
Costa oriental da África. 27 Segundo as ordens enviadas ao governador de Moçambique, os levantamentos
deveriam ser confiados ao pároco de cada localidade, que organizaria as informações conforme um modelo
pré-determinado. A população seria dividida em dez "classes", a saber: as quatro primeiras referiam-se
aos homens, a primeira composta por meninos até idade de 7 anos completos, a segunda classe englobava
os jovens com idades entre 7 e 15 anos, a terceira seria composta pelos "adultos" entre 15 anos e 60 anos
de idade, a quarta classe referia-se aos "velhos", aqueles com mais de 60 anos (existia a recomendação de
que todos os homens com idade superior a 90 anos deveriam receber "especificação particular"; a quinta
classe referia-se a meninas até a idade de 7 anos completos, a sexta seria composta pelas jovens entre 7 e
14 anos de idade, a seguir, seriam contempladas todas as mulheres, aquelas com idades entre 14 e 40 anos,
a oitava classe seria composta pelas mulheres com mais de 40 anos, fazendo-se a "especificação particular"
para todas as que tivessem passado dos 90 anos. A nona classe correspondia à indicação do número dos
nascimentos e, a décima, aos óbitos ocorridos no ano a que se referia o levantamento dos habitantes.
Sobre as classes enunciadas, não obstante a falta de maiores discussões sobre os porquês, a preocupação
da administração portuguesa com o número de mortos (mortalidade) e de nascimentos (natalidade) no
interior de uma dada população aponta para dois dos elementos fundamentais dos estudos demográficos.
Deve-se também salientar o interesse em dispor a população em diferentes faixas etárias, o que possibilitaria
perceber a estrutura populacional de uma dada localidade, 28 informação particularmente importante, na
medida em que ressaltam questões econômicas e militares - braços para o trabalho e para a defesa.

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Para a realização do recenseamento dos habitantes de Moçambique, alguns critérios deveriam
ser observados: o primeiro deles é que as informações seriam recolhidas pelos párocos das igrejas. 0
recenseamento, entretanto, deveria ser restrito a um grupo específico, do qual estavam excluídos os "cafres"
e seus filhos ("cafre" era a designação genérica que os portugueses davam para os africanos que viviam na
região da Costa Oriental da África), ainda que estes se convertessem ao cristianismo. É importante ressaltar
que essa recomendação (excluir pessoas mesmo batizadas) conflitava com ordem régia emitida em abril de
1761, na qual informava-se "ao Vice Rei da índia e ao governador geral de Moçambique, que os súditos
asiáticos e africanos orientais da Coroa Portuguesa que tivessem sido batizados cristãos devia ser atribuído
o mesmo estatuto legal e social que os brancos nascidos em Portugal." 29 Além dos cafres, os escravos, assim
como os mouros também estavam de fora do levantamento dos habitantes. Era imperativa a ordem de que
as pessoas a serem contadas fossem apenas as livres e sujeitas à Igreja.
Quanto à execução do recenseamento, era sugerido que os párocos reunissem as informações sobre os
habitantes a partir dos assentos de casamento, batismo e óbitos reunidos nos livros paroquiais. Recomendava-
se, finalmente, que os párocos executassem suas tarefas sem qualquer tipo de interpretação, que as relações
de habitantes fossem "distintas, verbais, e juradas sem interpretação, mais que de seu literal contexto sobre
a dita relação régia".3"
Assim como a partir do ano de 1777 os governadores de Moçambique tiveram a tarefa de enviar para a
Coroa Portuguesa informações sobre seus habitantes, empreitada similar foi solicitada aos governadores das
capitanias gerais do Estado do Brasil já no ano de 1772. Quanto à estrutura do recenseamento, observou-se
a mesma tipologia das classes: distribuição por sexo e faixa etária. Todavia, as semelhanças pararam por
aí.
Enquanto para Moçambique a coleta de dados deveria ser feita pelo pároco, na América portuguesa havia
a recomendação de que os recenseamentos fossem efetuados pelas autoridades civis de cada municipalidade,
e não pelos párocos locais. Outra alteração, refere-se no entendimento da palavra habitante. Por exemplo,
em 1776, o governador da capitania de São Paulo informava que "na palavra habitantes compreende todos
os indivíduos vassalos de S. Majestade que vivem nesta capitania, pelo que se devem meter todos nas
Relações atuais, e de cada ano, com a declaração, porém, que os índios se deve declarar nelas [como] o são;
como também os Sacerdotes de toda a qualidade, para tudo ser presente ao dito Senhor, em virtude de Sua
Real Ordem [de maio de 1776], São Paulo a 5 de dezembro de 1776."31 Já para a região de Moçambique,
habitantes "não entendem cafres, nem filhos de cafres, nem cativos, nem mouros, e somente habitantes
livres, assim pardos ou brancos"32 Estas distinções que a Coroa Portuguesa circunscreveu no entendimento
da palavra "habitante" nos permite tecer algumas considerações sobre o tipo de súdito que lhe interessava.
No caso da América, o que se percebe é a existência de um projeto político da Coroa Portuguesa
voltado para a conquista e efetivação da posse de seu domínio ultramarino. Para Antonio Cesar de A.
Santos, "ao se considerar a aplicação de determinadas ações administrativas direcionadas ao Brasil, é
possível perceber o exercício de uma política de povoamento cujas ações abrangiam a instalação física
de novos núcleos urbanos e a institucionalização dessas povoações e de outras já existentes, buscando a
fixação de um contingente populacional administrado por normas gerais de convívio, comuns a todos os
súditos portugueses". 33
Nota-se, no caso da América Portuguesa, a existência de uma política voltada para infra-estrutura da
população, uma "política de povoamento" direcionada para as recomendações sobre a relação existente
entre homens e riquezas, ou seja, os princípios da Aritmética Política. Nesse sentido, o que estava em jogo
era, em certa medida, a quantidade de pessoas residentes na América, não importando a "qualidade". Até
porque se fizermos uma comparação das áreas geográficas, Moçambique e a América Portuguesa, era muito
mais trabalhoso para a Coroa proteger e garantir a posse do segundo território mencionado, que no caso era
bem maior. Também é preciso levar em conta que, a partir da segunda metade do século XVIII, havia na
América a disputa de espaço e estabelecimento de fronteiras com a Espanha.34
Já em relação a Moçambique, mesmo ocorrendo urna alteração da organização política e administrativa
daquele território na segunda metade do século XVIII, que procurava "enquadrar" aquele domínio numa
política voltada para a efetivação da posse daquela região e uma eficaz exploração de suas riquezas, o
que se observou é que por lá as ações de concretização de posse do território estavam pautadas em outros
elementos.
A posição geográfica estratégica da região de Moçambique conduziu a expansão portuguesa naquele
domínio tendo como princípio o desenvolvimento de atividades mercantis. Deste modo, a partir dos seus
portos, inúmeros produtos foram negociados e transportados para as diferentes partes que compunham
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o Império Ultramarino Português. Salienta-se, entretanto, que as atividades ali desenvolvidas estiveram
muito mais voltadas para a movimentação de mercadorias do que para a sua produção.
Além do mais, havia, por parte da administração portuguesa, o reconhecimento de que a situação
da África Oriental, ao longo da segunda metade do século XVIII, mostrava muitas dificuldades para o
implemento de uma política que ali efetivasse sua presença econômica, política e militar. As preocupações
da Coroa Portuguesa deixam evidente que o que realmente interessava era o controle das atividades
mercantis e não o povoamento da região a todo custo. Adverte-se que nos momentos que foram redigias
queixas sobre a falta de população na Costa Oriental Africana, estas foram sempre feitas no sentido de que
a ausência de um maior número de habitantes acabava prejudicando o comércio na região. Como se nota
neste comentário de Francisco Innocencio de Souza Coutinho, de 1779, em documento enviado para o rei:

sobre a povoação de Mossambique ha hum notável descuido contra o que se acha estabelecido a este respeito.
Sua magestade tem ordenado que a cada filha daquella terra, ou as outras que para ellas forem, se dem terras,
para cazarem com portuguez, porem esta ordem se não pratica, porque a huns se dão muitas terras e a outros
nenhuma. [...] Daqui se segue que se não observarem as ordens de Sua Magestade, nem se pode povoar, nem
jamais se povoará Mossambique, que pode apostar ventagens com as melhores colônias que temos, pois se com
200 portuguezes chega a produzir mais de 3 milhoens [em ouro, marfim, escravos e outros gêneros], povoada
produzirá immenso cabedal. 35

Observe-se que a preocupação com o reduzido número de habitantes só era lembrado por conta da
possibilidade de aumento dos lucros nas atividades mercantis: "pois se com 200 portuguezes chega a
produzir mais de 3 milhoens [em ouro, marfim, escravos e outros gêneros], povoada produzirá immenso
cabedal".
No momento, em caráter provisório, o que se pode inferir que o que é, apesar de uma base comum
nas ações da Coroa Portuguesa, estas foram modificadas de acordo com cada realidade social que formava
os diferentes territórios que compunham o Império Ultramarino Português. Embora vários domínios
portugueses (Moçambique, Angola, Macau, Piauí, São Paulo, entre outros) tenham recebido ordens,
provenientes da metrópole, para que efetivassem recenseamentos periódicos das populações residentes nas
regiões subordinadas a Coroa, elas sofreram algumas alterações.
Como procuramos discutir, no caso da América Portuguesa, nenhum grupo de moradores foi excluído
dos recenseamentos. O que se notou foi a conformidade dos critérios estabelecidos para indicar quem
deveria ser contado em terras americanas e os pressupostos de que os habitantes dos territórios eram o
"objeto muito mais importante, pelas suas conseqüências, que toda as outras riquezas", pois segundo
os "mais sólidos princípios da boa Aritmética Política" os homens são a mais importante riqueza de um
Estado.36 Além disso, a urgente necessidade de delimitação de fronteiras com a Espanha, levou a Coroa
Portuguesa a considerar habitante, "vassalos do Rei", até mesmo os naturais da terra, os indígenas.
Em Moçambique, as especificidades da ocupação e administração daquele território, acarretaram na
exclusão de todos os moradores que não fossem portugueses dos recenseamentos. Podemos conjecturar,
provisoriamente, que apenas interessava a Coroa Portuguesa saber quantos eram os súditos que estavam em
atuando em nome do rei na Costa Oriental Africana.

Notas
1
Parte dos resultados destes recenseamentos ainda hoje são encontrados em arquivos portugueses e de suas ex-colônias, constituindo-se em
importantes fontes para o estudo da história do Império Ultramarino português e de seus antigos territórios coloniais.
2
N o Paralello de Augusto Cesar e de Dom José, o Magnanimo Rey de Portugal, publicado na década de 1770, fica patente que a noção de
império era corrente na política portuguesa da época. Ver SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Observações sobre a teoria e a prática política
pombalina: 'em busca da harmonia e consonância da sociedade civil', ANAIS DA XXIV REUNIÃO DA SBPH, Curitiba, 2004, p. 129 - 136.
3
I I E S P A N H A , António Manoel; SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num império oceânico. In: História de Portugal. O Antigo Regime
(1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa. 1998, p. 351-366. p. 351.
4
" O s portugueses utilizavam a expressão 'Estado da índia' para descrever as suas conquistas e descobertas nas regiões marítimas situadas
entre o Cabo da Boa Esperança e o Golfo Pérsico, de um lado da Ásia, e Japão e Timor, do outro". BOXER, Charles. O império colonial português-.
1415-1825. Lisboa: Edições 70, 1981. p. 59.
5
G U I L L A U M E , Pierre; POUSSOU, J.-Pierre. Demographie historique. Paris: Armand Colin, 1970, p. 238-240.
6
G U I L L A U M E ; POUSSOU, Op. cit., p. 71.
7
Ver SMITH. T. Lynn. introdução à análise das populações. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, 1950, p. 14.
8
Ver S Z M R E C S Á N Y I , Tamás. Da aritmética política à demografia como ciência. REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS
POPULACIONAIS. Brasília. 16 n. 1/2 jan./dez. 1999.
9
G U I L L A U M E ; POUSSOU, Op. cit., p. 244-245.

124
10
SMITH, Op. cit., p. 14.
" Segundo Tarcísio Botelho Rodrigues, embora existam levantamentos censitários anteriores, a partir de 1776 ocorre uma primeira tentativa
de realizá-los simultaneamente em toda a colônia: ou seja, "estaríamos assistindo à extensão para todas as partes da América portuguesa dos
procedimentos previamente tentados no Pará, Goiás e São Paulo em anos anteriores". BOTELHO, Tarcisio Rodrigues. População e nação no Brasil
do século XIX. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História Social). Universidade de São Paulo. p.16-17.
12
Santos constrói seu argumento à medida que observa na prática administrativa pombalina a importância dada ao saber estatistico-
matemático no estabelecimento de medidas para o desenvolvimento das atividades econômicas e dos negócios políticos do Império Português. Ver
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para viverem juntos em povoações bem estabelecidas: um estudo sobre a política urbanística pombalina.
Paraná, 1999. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal cio Paraná, p. 31-33.
13
SZMRECSÁNYI, Op. cit., p. 5. Para Franklin Baumer, Petty construiu um sistema que aliava o raciocínio baconiano com o matemático,
de tal forma que, "por meio da análise quantitativa, de estatísticas da população, propriedade das terras, negócios, clima, e quejandos, os governantes
pudessem obter as informações necessárias para a tomada de decisões políticas". BAUMER, F. O pensamento europeu moderno, volume I, séc.
XVII e XVI11. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 134.
14
Cf. LE BRÁS, Hervé (dir.). A invenção das populações. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. p. 25.
15
Apud CAMPOS, Roberto. Apresentação [às Obras econômicas de William Petty). In: Petty [e] Quesnay. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
(Coleção Os Economistas), p. 8.
16
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina : política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. p. 134.
17
RAMOS PINOL, Oscar. El primer censo de poblacion de Cuba colonial. Havana: Comitê Estatal de Estatísticas, 1990. p. 7. O censo em
questão foi efetivado entre 1774 e 1775.
18
REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 121 e 131-132.
19
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 171-172.
20
Apud BOTELHO, op. cit., p. 17.
21
BOTELHO, op. cit., p. 16.
22
HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João;
BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). O antigo regime nos trópicos; a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI
- XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167.
23
SUBTIL, José. No crepúsculo do corporativismo. Do reinado de D. José I às invasões francesas (1750-1807). In: História de Portugal. O
Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa. 1998. p. 415-429. p. 419.
24
Ver GUILLAUME; POUSSOU, Op. cit., p. 239.
25
O enunciado deste princípio da Aritmética Política está expresso em carta de 03 de março de 1755, dirigida ao governador do Estado do
Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, pelo então secretário da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, Tomé Joaquim
da Costa Corte Real. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Vadios e política de povoamento na América portuguesa, na segunda metade do século
XVI11. ESTUDOS IBERO-AMERICANOS. PUCRS, V. XXVII, n. 2, p. 7-30, dez. 2001, p. 12.
26
BOTELHO, op. cit., p.16-17.
27
É importante registrar que, em alguns ofícios da região de Moçambique, existe referência a uma ordem de maio de 1776. Para o Brasil,
ordem semelhante tem a mesma data (21 de maio de 1776); o mesmo ocorrendo para Angola. Cf. ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO.
Angola, caixa 61, documento 81, 15 jul. 1778. Microfilme. (CEDOPE).
28
GUILLAUME; POUSSOU, Op. cit., p. 136-196.
29
Ver BOXER, Op. cit., p. 248.
30
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Moçambique, caixa 40, documento 61, 12 dez. 1782. Microfilme. (CEDOPE).
3I
. DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO, v.77, p. 34. Apud SANTOS (2001), Op.
cit., p. 29.
32
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Moçambique, caixa 40, documento 6 1 , 1 2 dez. 1782. Microfilme. (CEDOPE)
33
SANTOS (1999), p. 45.
34
Ver: CORTESÃO, Jaime. O Tratado de Madrid. Brasília: Senado Federal, 2001. 2 v. (edição fac-similar).
35
Relação do commercio em os diferentes portos da Azia (incluindo) breve e util idea de commercio, navegação e conquista d'Azia e
d'Âfrica, escrito por meu pay, Dom Francisco Innocencio de Souza Coutinho, 1779, Códice do Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Apud:
AHMAD, Afzal. Os portugueses na Ásia. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1997, p. 117.
36
O enunciado deste princípio da Aritmética Política está expresso em carta de 03 de março de 1755, dirigida ao governador do Estado de
Grão-Pará c Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, pelo secretário da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, Tomé Joaquim da Costa
Corte Real. SANTOS (2001), p. 12.

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