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ALGUMAS REFLEXÕES
Carla Maria de Araújo Viana Gonçalves Borges
Working Paper 03 / 03
Agradecimentos
Quero agradecer à Senhora Prof.ª Doutora Ana Prata e ao Senhor Prof. Dr. Luís da
Silveira o terem conversado comigo sobre alguns aspectos abordados neste trabalho, o que
contribuiu decisivamente para que pudesse formular uma opinião mais sustentada – e
direito civil.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
Introdução
Este trabalho tem como objecto o estudo do crime de abuso de confiança e pretende
fazer uma análise profunda do tipo legal, suscitando a reflexão sobre aspectos menos claros
do seu conteúdo.
A escolha deste tema deve-se a duas razões. Antes de mais, à sugestão da Senhora
Prof.ª Doutora Teresa Beleza, mas também ao facto de este tipo de crime levantar questões
substancialmente alterada desde o Código Penal de 1886, optou-se por não fazer o percurso
que actualmente o prevê – o art. 205º do Código Penal de 1982 (versão de 1995).
alterações relativamente aos textos anteriores, assim como as consequências que daí se
podem retirar. Por outro lado, relativamente a questões mais discutidas, são também
Por último, importa dizer que foi adoptada a estrutura de análise seguida por Figueiredo
Dias, no seu comentário ao art. 205º, no Comentário Conimbricense do Código Penal, por
se entender que é a mais clara e a que permite uma melhor compreensão dos elementos do
tipo. Com efeito, impõe-se começar pela identificação do bem jurídico protegido, que é a
“chave” para a interpretação dos outros elementos da norma penal. Em seguida, faz-se a
conduta típica, e o tipo subjectivo de ilícito do crime de abuso de confiança. São também
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
Numa perspectiva material, não há crime sem bem jurídico; “não há norma penal,
proibitiva ou impositiva, que não se destine a tutelar bens jurídicos” (Marques da Silva,
1998: 21). Esta é uma consequência do princípio da intervenção mínima do direito penal –
hoje imposto pelo art. 18º, nº 2 da CRP –, segundo o qual “o direito penal só deverá
funcionar, só deverá intervir, só deverá criminalizar, só deverá criar crimes, puni-los, etc.,
quando isso seja absolutamente essencial à sobrevivência da comunidade” (Beleza, 1980:
35).
Assim, para o estudo de qualquer tipo de crime, é essencial a identificação do bem
jurídico que este visa tutelar, não apenas porque é um elemento importante para a
interpretação do tipo legal, mas porque constitui “a primeira condição de legitimação da
norma penal” (Caeiro, 1996: 19).
O crime de abuso de confiança (art. 205º1) está previsto no Capítulo II (“Dos crimes
contra a propriedade”) do Título II (“Dos crimes contra o património”) da Parte Especial do
Código Penal (CP). Atendendo à integração sistemática do crime, o bem tutelado será o
património ou, mais especificamente, a propriedade – uma das “fracções” de património,
no seu sentido lato.
1
As normas sem indicação de fonte pertencem ao Código Penal português de 1982 (texto da Reforma de
1995).
2
Sobre a matéria, com grande desenvolvimento, cfr. Caeiro, Pedro, 1996: 49 e ss..
6
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
Por último, é de realçar um outro elemento que também entra na conformação do bem
jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança: a relação de confiança existente entre o
agente e o proprietário da coisa ou entre o agente e a própria coisa, e que o agente viola
com o crime. O abuso de confiança não protege apenas a propriedade, mas também aquela
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
1. O objecto da acção
O universo daquilo que pode constituir objecto do crime de abuso de confiança está,
prima facie, limitado às coisas. Seguindo a doutrina de Manuel de Andrade, vertida no art.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
202º CC, “[coisa] é tudo aquilo que, não sendo pessoa em sentido jurídico, pode constituir
objecto de relações jurídicas (direitos subjectivos)” (1960: 202). Nestes termos, para o
direito civil, como afirmam Antunes Varela e Pires de Lima, “tudo o que pode ser objecto
de uma relação jurídica é uma coisa, seja ela corpórea ou incorpórea, seja mesmo um
direito” (1967: 192).
Contudo, não pode ser este o sentido a atribuir à palavra “coisa”, que surge no texto do
nº 1 do art. 205º. Nomeadamente, porque não poderá constituir objecto do crime de abuso
de confiança um crédito ou outros direitos – não porque essas realidades não sejam coisas
em sentido jurídico, como afirma Figueiredo Dias (1999: 97), mas porque, para efeitos do
crime de abuso de confiança – tal como defende Costa Pinto a propósito do crime de furto3
– “coisa” será (apenas) toda a realidade que possa ser objecto da acção típica, isto é, de
apropriação. Trata-se de um conceito normativo e funcional, diferente do conceito
civilístico, que exclui, desde logo, coisas imateriais. Nada obsta, todavia, a que os
documentos em que os créditos ou direitos se corporizam sejam objecto do crime de abuso
de confiança4.
Por outro lado, como resulta expressamente do texto da lei (art. 205º, nº 1), só as coisas
móveis podem ser objecto da acção típica. Faria Costa define coisa móvel como “toda e
qualquer coisa (...) que seja susceptível de ser deslocada espacialmente” (1999: 41-42) – o
que não corresponde à definição legal do art. 205º CC, que classifica como móveis, de um
modo residual, as coisas não consideradas imóveis pelo art. 204º CC, o que acaba por
abranger realidades diversas, designadamente alguns direitos. Efectivamente, já ensinava
Luís Osório, que “a expressão «coisa móvel» não deve, porém, ser aqui [art. 453º do CP de
1886] entendida no sentido do direito civil, mas no seu sentido vulgar de coisa que se pode
mover (...)” (1925: 240).
Uma vez mais, impera um conceito funcional sobre o conceito civilístico, o que
permitirá defender que são susceptíveis de apropriação, para efeitos do crime de abuso de
confiança, por exemplo, árvores, arbustos e frutos naturais – coisas imóveis nos termos da
3
Pinto, Frederico da Costa, segundo opinião defendida na aula leccionada, na FDUNL, no curso de Direito
Penal III, em Março de 2002.
4
No sentido de que os documentos podem ser objecto do abuso de confiança, v. Beleza/Costa Pinto, 1998:
48-49.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
al. c) do art. 204º CC – e partes integrantes de coisas imóveis – coisas imóveis nos termos
da al. e) do mesmo preceito –, pois depois de desligadas, respectivamente, do solo e das
coisas imóveis, essas coisas passam a ser móveis e, portanto, susceptíveis de apropriação.
Para que haja abuso de confiança, a coisa tem de ser alheia. Esta qualidade não é
expressamente exigida pela norma, mas deduz-se de vários elementos do crime, sendo que
a doutrina maioritária não questiona sequer este aspecto (cf. Sousa e Brito, 1982: 84;
Cavaleiro de Ferreira, 1989/90: 242; Machado, 1997: 495; Leal-Henriques/Simas Santos,
1996: 460).
José Barreiros é a “voz discordante” neste contexto, pois defende que também pode
haver abuso de confiança quando estejam em causa coisas da propriedade do agente,
apresentando um argumento de ordem literal – a lei não restringe o tipo incriminador às
coisas alheias – e defendendo uma “específica interpretação do conceito típico de
apropriação usado pelo art. 205º, em termos de legitimar como conclusão que o sujeito
activo se aproprie – através do abuso de confiança – de uma coisa de que já era afinal
proprietário” (Barreiros, 1996: 108).
Salvo o devido respeito, não parecem ser de sufragar os argumentos apresentados: o
facto de o texto da lei não referir expressamente o carácter alheio da coisa não impede que
isso se infira de outros elementos do tipo – com efeito, não é fácil configurar a
possibilidade de “apropriação de coisa própria”, pelo que, em princípio, o objecto da acção
só poderá ser uma coisa alheia (Figueiredo Dias, 1999: 98).
A propósito do crime de furto, Faria Costa define coisa alheia como “toda a coisa que
esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a
infracção” (1999: 41) – esta parece ser uma definição adequada também em relação ao
crime de abuso de confiança, permitindo configurar como objecto da acção, por exemplo,
coisas de que o agente é comproprietário (coisas que também estão ligadas a uma pessoa
diferente daquela que pratica a acção), e excluindo em definitivo as coisas de que o agente
é o único proprietário e também as res nullius – situações que têm dignidade penal
diferente e que não são abrangidas por este tipo incriminador, mas eventualmente pelo tipo
previsto no nº 2 do art. 209º, o crime de apropriação ilegítima em caso de coisa achada.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
Neste sentido decidiu o STJ, num seu Acórdão de 18-10-20005, condenando pelo
crime de abuso de confiança o arguido, cônjuge da queixosa, que se tinha apropriado
de quantias correspondentes a certificados de aforro, que eram bens comuns do casal.
Isto porque a partilha de bens já tinha sido feita pelos arguido e queixosa, estando
aquele ciente de que metade dessa quantia era pertença desta. Este é precisamente um
exemplo da situação configurada por Figueiredo Dias, que é inclusivamente citado a
propósito pelo tribunal.
5
CJ, III, 2000, p. 209.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
efectivamente abrangidas no tipo legal – isto, claro, sem perder de vista a necessidade de
existir intenção de apropriação do agente.
Posto isto, a definição de “coisa alheia” de Faria Costa não é criticável pelo facto de
abranger as coisas incluídas num património colectivo, pois que estas constituirão, em
alguns casos, “coisa alheia” para efeitos do crime de abuso de confiança.
Não obstante, parece ser mais adequada a definição de “coisa alheia” defendida por
Costa Pinto6: é coisa alheia a coisa – para efeitos do crime em causa, a coisa móvel – de
que o agente não pode dispor legitimamente. Trata-se de uma construção mais clara e mais
rigorosa do ponto de vista técnico, permitindo definir mais facilmente situações como as
dos bens comuns do casal, que em certas situações constituirão “coisa alheia” – perante
condutas similares à referida acima – e noutras não – quando o cônjuge dispõe dos bens
comuns do casal, dentro dos limites definidos na lei civil, não prejudicando o direito de
propriedade do outro cônjuge.
Neste contexto, discute-se também se o comprador de uma coisa vendida com reserva
de propriedade pode cometer o crime de abuso de confiança, apropriando-se dela.
Figueiredo Dias (1999: 99) não tem dúvidas de que, à luz do direito penal, a coisa vendida
com reserva de propriedade constitui coisa alheia.
Na realidade, essa é a interpretação mais consentânea com a lei civil. O art. 409º do CC
prevê a possibilidade de o “(...) alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao
cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer
outro evento”. Pode defender-se que se trata de uma condição suspensiva do efeito
translativo da propriedade, até ao momento do cumprimento ou outro convencionado, e
que, nesse período, o proprietário continuará a ser o alienante. Ou seja, a propriedade da
coisa ainda não se transferiu para o comprador, pelo que, sendo em relação a ele uma coisa
alheia, pode existir apropriação ilegítima e, portanto, crime de abuso de confiança.
Neste sentido decidiu a Relação do Porto, num Acórdão de 4-11-19877, em que foi
condenada a arguida que tinha comprado um equipamento de salão de cabeleireiro a
prestações, com reserva de propriedade a favor do vendedor, e que, deixando de pagar
as prestações, desapareceu com o material comprado para local ignorado.
6
Pinto, Frederico da Costa, segundo opinião defendida na aula leccionada, na FDUNL, no curso de Direito
Penal III, em Março de 2002.
7
CJ, V, Ano XII, p. 221.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
Deve notar-se, porém, que nem sempre é assim. Nem sempre a coisa vendida com
reserva de propriedade poderá ser objecto do crime de abuso de confiança.
Figueiredo Dias (1999: 99) parece desvalorizar, quanto às dificuldades suscitadas a
propósito de coisas vendidas com reserva de propriedade, o contributo do direito civil.
Mas, deve ter-se em conta que há casos em que – atendendo às normas da lei civil –,
estando em causa uma coisa vendida com reserva de propriedade, não haverá crime de
abuso de confiança – por exemplo, quando o comprador, que tem o direito à entrega da
coisa antes do pagamento do preço, a obtém através da acção directa (art. 336º do CC);
quando o comprador tem um direito de retenção (art. 754º do CC); etc. Desde logo, no caso
da obtenção da coisa por acção directa, não se poderá falar em abuso de confiança, pois
falta um elemento do tipo objectivo deste crime: a posse anterior à apropriação – esta seria,
na realidade, uma situação de subtracção. No que toca ao caso do direito de retenção,
poderia questionar-se a existência da intenção de apropriação.
Mas estas situações serão objecto de maior análise quando se tratar de outro elemento
do tipo objectivo: a ilegitimidade da apropriação.
Pelo contrário, as coisas que são objecto de uma alienação fiduciária não poderão, em
princípio, fundamentar a possibilidade típica de um crime de abuso de confiança.
Neste tipo de contratos há, pelo menos em termos formais, a transmissão do direito de
propriedade sobre a coisa. Apesar de ser frequente a estipulação de uma cláusula resolutiva,
durante o período da sua pendência, o adquirente é proprietário – pelo que não haverá
possibilidade de apropriação. Deve, contudo, ter-se em conta que, no caso de o adquirente
estar vinculado a administrar a coisa para um determinado fim, poderá estar a apropriar-se
dela se a utilizar para um fim diferente do convencionado no contrato.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
aquelas situações. O autor foi infeliz quando, para suportar a sua opinião, referiu que
aquela situação era punida como abuso de confiança no CP de 1886. Na verdade, este
diploma incriminava o proprietário no caso de descaminho de coisas próprias penhoradas
ou depositadas a ele entregues, mas não como abuso de confiança – no art. 453º – mas num
outro preceito específico, o art. 422º.
Todavia, há que reconhecer alguma pertinência no levantamento desta questão.
Com efeito, trata-se de situações que merecem também tutela penal. Põe-se é a questão
de saber se são situações abrangidas pelo tipo em análise – o abuso de confiança.
Quanto à possibilidade de o proprietário cometer este crime, “apropriando-se” de coisas
suas dadas em penhor, deve defender-se uma resposta negativa. Para além do argumento
supracitado, invocado por Figueiredo Dias – o proprietário não pode “apropriar-se” de
coisas suas –, parece determinante o facto de um descaminho das coisas empenhadas
pressupor uma subtracção por parte do proprietário, já que aquelas estão na posse do credor
pignoratício (arts. 669º e 670º CC).
Em relação às coisas penhoradas, também é pertinente o argumento de Figueiredo Dias,
porque o proprietário não perde o seu direito, nem as faculdades a ele inerentes, pelo facto
de os bens serem penhorados. Como esclarecem Antunes Varela e Pires de Lima, “o
devedor pode livremente alienar ou onerar os bens penhorados” (1967: 91). Assim, não
poderá haver abuso de confiança, porque não pode haver apropriação, quando estiverem
em causa coisas penhoradas e o agente for o seu proprietário. No entanto, vale a pena olhar
para a questão numa outra perspectiva. Se o proprietário alienar uma coisa penhorada a
terceiro de boa fé – isto é, que ignora a penhora sobre o bem – pode estar a praticar um
crime de burla, nos termos do art. 217º.
Também ainda relacionado com esta questão do carácter alheio da coisa é o problema
de determinar quem é o proprietário desta em cada momento, quando for constituída por
objectos fungíveis. No entanto, será mais conveniente tratar este problema a propósito do
estudo do que se deve entender por “título não translativo da propriedade” e “apropriação”.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
47-51): o facto de “património” significar, para a lei civil, o conjunto de bens ou direitos e
obrigações avaliáveis em dinheiro implicará que só coisas com valor pecuniário possam ser
objecto de “crimes contra o património”?
Visto que a lei não faz nenhuma exigência neste sentido, em relação aos crimes contra a
propriedade parece que nada obsta a que uma coisa sem valor patrimonial seja objecto do
crime – nestes tipos de crime, o que está em causa é a protecção da propriedade privada, o
que não deve estar dependente do valor patrimonial da coisa8. Já os crimes contra o
património (stricto sensu), pelo contrário, na opinião da autora, estão construídos com o
pressuposto de o seu objecto ser coisa com valor.
Em relação ao CP de 1886, a resposta seria necessariamente diferente, pois para estar
preenchido o tipo do abuso de confiança, tinha que se verificar uma apropriação “em
prejuízo de proprietário, ou possuidor ou detentor” (art. 453º do CP de 1886) – esta é a
diferença essencial em relação ao tipo objectivo de ilícito do art. 205º. Ora, como bem
notava Luís Osório, “se a dissipação ou descaminho deve causar um certo prejuízo ao
proprietário, possuidor ou detentor da coisa, é pressuposto indispensável que a coisa tenha
um certo valor” (1925: 242).
2. A conduta típica
8
Pela posição contrária, v. Faria Costa, 1999: 45-46; v. também José Barreiros, 1996: 107, que afirma que o
objecto do crime de abuso de confiança tem de ser uma coisa móvel com valor.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
poder apropriar-se dela (o que efectivamente até pode nem vir a acontecer – a apropriação
não integra o tipo objectivo de ilícito). Como sintetiza Cavaleiro de Ferreira, “a execução
do crime de furto realiza-se pela subtracção – desapossamento; e a execução do crime de
abuso de confiança realiza-se pela apropriação directa da coisa alheia enquanto esta já se
encontra na posse do autor do crime” (1989/90: 242).
Por outro lado, o facto de, no abuso de confiança, a coisa já estar em poder do agente
antes da apropriação ilegítima, permite distinguir este crime do tipificado no art. 209º –
apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada –, em que o domínio da coisa
não preexiste à apropriação.
Figueiredo Dias refere que o autor do crime de abuso de confiança, no momento da
apropriação, já tem a posse ou a detenção da coisa – mas esclarece que estes conceitos não
têm, a este propósito, o mesmo conteúdo jurídico que lhes é atribuído pelo direito civil,
mas antes devem ser entendidos num sentido mais lato, como equivalendo a uma “relação
fáctica de domínio sobre a coisa” (1999: 100).
Esta questão será abordada com maior desenvolvimento no âmbito da análise do
elemento típico essencial que é a “apropriação”, mas desde já pode dizer-se que não será
muito correcto falar em posse (para além da mera detenção) antes do momento da
apropriação, já que a maioria da doutrina identifica este momento com uma “inversão do
título da posse”, o que corresponde, exactamente, a uma das formas de o detentor – que não
tinha a posse da coisa – passar a tê-la.
Leal-Henriques e Simas Santos (1996: 461) sublinham a necessidade de o agente ter um
“livre poder de facto sobre a coisa” para que possa praticar o crime de abuso de confiança,
caso contrário, se a detenção da coisa ocorre ainda sob a vigilância do proprietário, o que
pode haver é um furto. Neste sentido manifesta-se também Barreiros (1996: 107), que faz
referência a um Acórdão da RL de 16-7-869, em que se declara que não comete o crime de
abuso de confiança, mas sim o de furto, o empregado de uma loja que consome bens
alimentares que tinha para vender, por se manter a vigilância do seu patrão.
Quanto ao acto da entrega, é de notar que pode ser feita pelo proprietário da coisa, mas
também por um terceiro mero detentor (Barreiros, 1996: 104; Osório, 1925: 243).
Por outro lado, como já resultava do art. 453º do CP de 1886, “não é necessário, porém,
que a entrega se concretize num acto material de entrega e recebimento, bastando que o
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CJ, XI, 4, p. 178.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
10
Neste sentido, v. Ac. STJ de 8-7-98, BMJ, 479, p. 244; Ac. RC de 23-4-98, CJ, 1998, 2, p. 60; Ac. RP de 9-
4-97, BMJ, 466, p. 582; Ac. STJ de 28-2-96, CJ, 1996, 1, p. 214.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
Por último, quanto à entrega da coisa, deve ainda apontar-se um aspecto importante e
que será decisivo para a verificação da apropriação por parte do agente: a entrega deve
“implicar a afectação da coisa entregue a uma causa ou finalidade determinada ou a sua
oneração à obrigação de a restituir, isto é, a sua titulação” (Barreiros, 1996: 104). Não é
suficiente a constatação da entrega para fundamentar um abuso de confiança. Nas palavras
de Leal-Henriques e Simas Santos, este crime supõe que “não se justifique a apropriação,
antes se constituindo a obrigação de afectação a um uso ou fim determinado, ou de
restituição” (1996: 461).
Deste modo, é de concordar com o Ac. STJ de 23-9-9311, em que se decidiu “se
não se sabe a que título foi feita ao arguido a entrega do dinheiro, e qual a finalidade a
que se destinava tal entrega, não pode ter lugar a condenação pela prática do crime de
abuso de confiança”.
11
Não está publicado, sendo referido por Leal-Henriques e Simas Santos (1995: 560).
12
Figueiredo Dias refere-se à possibilidade de “ilicitude” do acto da entrega e/ou recebimento, derivada da
eventual nulidade do contrato, no entanto, é mais correcto falar em nulidade, neste caso.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
É certo, porém, que podem surgir aqui problemas de concurso de crimes que devem ser
considerados, que só serão suscitados nos casos de ilicitude penal da entrega.
Figueiredo Dias (1999: 101) dá o exemplo em que o agente, num primeiro momento,
furta a coisa e, só depois, a usa ou oferece a outra pessoa, para demonstrar que, em certas
situações, o facto de a entrega ter origem num crime – neste caso, um furto – impede que se
verifique posteriormente o tipo objectivo de ilícito do crime de abuso de confiança. Uma
vez que com a pretensa “nova apropriação” não se lesa um bem jurídico diferente e
autónomo, deve reconduzir-se essa conduta à figura do “facto posterior não punível”, sendo
o agente incriminado apenas pelo crime de furto, seguindo a regra do concurso aparente.
Por outro lado, se é o próprio agente a furtar a coisa, nunca se poderá defender que existiu
uma “entrega” para efeitos de um crime de abuso de confiança.
Na verdade, será difícil existir um crime de abuso de confiança em relação a coisa
furtada, ou mesmo em relação a coisa que tenha sido objecto de um qualquer crime contra
o património, dado que a apropriação nesse caso consistirá num crime de receptação, nos
termos previstos no art. 231º, como realçam Leal-Henriques e Simas Santos (1996, 462).
Todavia, não deve afirmar-se que a impossibilidade típica de um abuso de confiança nestes
casos se deve ao facto de a detenção ou posse ser ilícita, como fazem estes autores, mas
estritamente pelo facto de ter uma origem criminosa e, especificamente, derivada de crime
contra o património, situação tutelada pelo crime de receptação. Em todos os outros casos
de detenção ilícita de uma coisa – por exemplo, derivada de uma entrega nula, imposta por
um contrato nulo – poderá existir um crime de abuso de confiança.
Nos termos do art. 205º, nº 1, para haver abuso de confiança, é necessário que a coisa
tenha sido entregue ao agente “por título não translativo da propriedade”. Assim, uma vez
mais, para interpretar um elemento deste tipo legal, é necessário recorrer ao direito civil.
No CP de 1886, foi utilizada uma diferente técnica legislativa, que consistia na
enumeração exemplificativa dos títulos que podiam estar na origem de um abuso de
confiança – “que lhe tenham sido entregues por depósito, locação, mandato, comissão,
administração, comodato, ou que haja recebido para um trabalho, ou para uso ou emprego
determinado” (art. 453º) – embora no final estivesse prevista uma cláusula geral que a
doutrina, já na altura, entendia dever interpretar-se no sentido de remeter para os títulos não
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
translativos da propriedade: “ou por qualquer outro título, que produza obrigação de
restituir ou apresentar a mesma coisa recebida ou um valor equivalente”. Quanto à
interpretação desta norma, dizia Eduardo Correia (1954: 63) que a “última parte (qualquer
outro título) só pode entender-se relacionada com a razão por que os títulos concretamente
referidos possibilitam o abuso de confiança, o que restringe a sua referência aos possíveis
efeitos daqueles títulos enumerados, ou seja à hipótese de não transferência da
propriedade”.
A partir do CP de 1982, é mais fácil e mais rigorosa a identificação dos títulos que
podem estar na origem de um abuso de confiança, bastando aferir se, no caso concreto, há
ou não transferência da propriedade da coisa para o agente.
Posto isto, não poderá existir abuso de confiança quando a coisa é entregue ao agente
no cumprimento de um contrato de mútuo, pois, nos termos do art. 1144º do CC, a
propriedade das coisas mutuadas – coisas fungíveis – transfere-se para o mutuário pelo
facto da entrega – o mútuo é um contrato real quoad effectum. O mesmo se aplica ao
contrato de depósito irregular, que é regulado pelas normas relativas ao mútuo (art. 1206º
CC), pelo que também aqui há transferência da propriedade da coisa entregue. Figueiredo
Dias (1999: 102-103) refere ainda a este propósito o depósito bancário de coisas fungíveis.
Num Ac. da RL de 17-10-8413, foi decidido que o réu não cometera o crime de
abuso de confiança, precisamente pelo facto de ter havido transferência da propriedade
das importâncias que recebeu a título de adiantamento de vencimentos, tendo
posteriormente rescindido o contrato a que respeitava o adiantamento. Também este
aspecto foi decisivo num Ac. da RP de 11-11-9214, em que a propriedade da madeira se
havia transferido para o comprador por mero efeito do contrato, apesar de este não ter
cumprido as suas obrigações, pelo que não era possível um crime de abuso de
confiança.
2.4. A apropriação
13
CJ, IX, 4, p. 150.
14
CJ, XVII, p. 251.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
uma operação pela qual o detentor obtém, ex novo, uma situação possessória, com
referência à coisa que já detinha” (1997: 105). Portanto, antes da inversão do título da
posse, antes da apropriação, o agente é um mero detentor, possuindo em nome daquele que
lhe entregou a coisa, segundo o art. 1253º, al. c), CC.
Todavia, a ponderação destes conceitos no contexto penal tem de fazer-se, obviamente,
com distância relativamente às exigências de validade das situações perante o direito civil.
Nomeadamente, pode falar-se em “inversão do título da posse” a propósito do crime de
abuso de confiança, mas pretendendo fazer apenas uso do “mecanismo” para demonstrar
em que consiste a apropriação, já que, em rigor, tratando-se até de um crime, não pode
dizer-se que nestas situações haja efectivamente uma inversão do título da posse
validamente constituída. Isto não significa, porém, que estes conceitos não mantenham o
seu conteúdo preciso e que possam ser utilizados sem critério.
Assim, deve evidenciar-se a síntese feita por Cavaleiro de Ferreira, que exprime, muito
correctamente do ponto de vista técnico, quer no âmbito penal como civil, o que deve
entender-se por “apropriação” para efeitos do crime de abuso de confiança: “descaminho
ou dissipação são os modos de inversão do título da posse, de posse legítima em nome
alheio ou para fim determinado, para posse ilegítima em nome próprio, isto é, são os
modos que reveste a «apropriação»” (1989/90: 243).
Por isso, considerou a RE, num seu acórdão de 24-11-8715, que cometeu o crime
de abuso de confiança o empregado que recebeu um veículo para entregar na empresa
em que trabalhava e, em vez disso, passou a utilizá-lo como se fosse seu, nas suas
deslocações normais, em passeio, etc.
15
CJ, XII, 5, p. 281.
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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões
Para que o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança esteja preenchido, é ainda
necessário verificar se a apropriação é ilegítima, caso contrário, não há abuso de confiança.
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Figueiredo Dias defende que a apropriação deve ser considerada ilegítima quando
acarreta uma “contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade” (1999: 105).
Por isso, se o agente que se apropria da coisa tem uma pretensão jurídico-civilmente válida
sobre o desapropriado, a sua conduta não corresponde à conduta típica do crime de abuso
de confiança, nos termos do art. 205º.
Apesar de não se encontrar jurisprudência que considere esta questão, podem
equacionar-se várias situações em que o agente se apropria de coisa alheia, que lhe foi
entregue por título não translativo da propriedade, e que não constituem crimes de abuso
de confiança, porque a apropriação é legítima. Por exemplo, se A vende a B um livro a
prestações, com reserva de propriedade, tendo a obrigação de entregá-lo no momento da
celebração do contrato e, algum tempo depois de o entregar, decide recuperá-lo sem o
consentimento de B, este poderá por meio da acção directa (art. 336º CC) apropriar-se do
livro, contra a vontade do seu proprietário, sem cometer um crime de abuso de confiança –
aliás, neste caso há total inexistência de tipicidade penal: não se trata de um crime de abuso
de confiança, porque, para além do facto de não haver apropriação ilegítima, não há posse
anterior à apropriação – há uma subtracção; não se trata de um crime de furto, porque não
há intenção de apropriação.
Outras situações similares podiam ser referidas, como os casos em que a apropriação é
legítima pelo facto de o agente ter um direito de retenção (art. 754º CC), porque agiu num
estado de necessidade jurídico-civil (art. 339º), etc., mas também estas poderiam ser
situações de atipicidade penal pelos motivos referidos.
Atendendo ao art. 13º e a que não está especialmente prevista a punibilidade do abuso
de confiança negligente, o tipo subjectivo de ilícito no abuso de confiança é apenas o dolo,
ou seja, o conhecimento dos elementos do tipo objectivo e vontade de praticar a acção aí
descrita (art. 14º).
No furto, a intenção de apropriação é um elemento subjectivo específico, enquanto que
o elemento subjectivo geral é o dolo de subtracção. Mas, quanto ao abuso de confiança,
como salienta Teresa Beleza, “(...) a intenção de apropriação não é aqui um elemento
subjectivo da ilicitude que caracterize a acção além dos elementos do tipo objectivo, mas
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antes a própria essência do elemento volitivo do dolo (...)” (Beleza/Costa Pinto, 1998: 73).
Deste modo, se não existir dolo de apropriação, não há crime de abuso de confiança,
mesmo que se verifiquem todos os elementos do tipo objectivo, porque o agente não quis
ficar com a coisa e usá-la como um proprietário – o “abuso de confiança de uso” não está
criminalizado pela nossa lei penal, apesar de existir o crime de peculato de uso, previsto no
art. 376º, que é um crime específico impróprio que corresponde, materialmente, a um caso
agravado de abuso de confiança.
Deve entender-se, seguindo a doutrina de Eduardo Correia (1960: 38-39), que a
intenção de restituir – estando o agente seguro de que restituirá a coisa recebida, no prazo e
nas condições devidas – exclui o dolo de apropriação e, por consequência, o tipo
subjectivo do crime de abuso de confiança.
1. Tentativa
2. Comparticipação
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3. Concurso
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V. Supra II.2.b), p. 16.
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Nos termos do art. 205º, nº 4, o crime de abuso de confiança pode constituir um crime
qualificado em função do valor da coisa apropriada, seguindo o esquema de dois níveis de
agravação do furto: se a coisa tiver um “valor elevado” (al. a) ou “consideravelmente
elevado” (al. b) – atendendo ao art. 202º. O art. 300º, nº 2, al. a), da versão original do CP
de 1982, só previa um tipo agravado – no caso de o prejuízo não ser reparado até ser
instaurado o procedimento criminal e a coisa ter um valor consideravelmente elevado.
O nº 5 do art. 205º prevê também como agravante a circunstância de o agente ter
“recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão,
ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial”, que já constava do anterior art.
300º, nº 2, al. b).
Esta agravação tem como fundamento o facto de, nestas situações, como afirma
Figueiredo Dias, existir uma “especialíssima relação de fidúcia intercedente entre o agente
e a coisa, que cria para aquele um especialíssimo dever de garantir a não apropriação
desta” (1999: 110-111).
Todavia, não se pode acompanhar este autor quando afirma ser necessário, para fazer
funcionar a circunstância agravante, que a coisa seja confiada ao agente a título de depósito
imposto por lei (1999: 111). Com efeito, na Reforma de 1995, introduziu-se uma vírgula a
seguir a “em razão do ofício, emprego ou profissão”, o que permite separar a última parte
do tipo da referência ao depósito imposto pela lei, que assim só se refere ao primeiro grupo
de situações. Esta é a opinião de Leones Dantas (1998: 523-524), que chama a atenção
para que seria contraproducente exigir que a coisa fosse entregue ao tutor, curador ou
depositário judicial em depósito imposto por lei para que funcionasse a agravação. A
agravação deve subsistir mesmo nos casos em que o depósito não é imposto por lei, tendo
em conta o estatuto de quem a recebe.
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VI – A pena
A pena para o caso de abuso de confiança simples é de prisão até 3 anos ou multa
alternativa (art. 205º, nº 1), o que se mantém desde o texto original de 1982. Só o abuso de
confiança de valor elevado constitui uma novidade relativamente ao anterior art. 300º,
sendo a pena aplicável a prisão até 5 anos ou multa até 600 dias (art. 205º, nº 4, al. a). Para
os casos de abuso de confiança qualificado em função de valor consideravelmente elevado
ou da especificidade do título da entrega, a pena correspondente será de 1 a 8 anos de
prisão, sem possibilidade de ser aplicada pena de multa (art. 205º, nºs 4, al. b), e 5) – trata-
se de uma moldura penal demasiadamente ampla, que merece a crítica da doutrina,
designadamente de Teresa Beleza (Beleza/Costa Pinto, 1998: 72) que questiona a sua
compatibilidade com o princípio da legalidade.
No texto de 1982, o art. 300º, nº 2, al. a) previa como agravante a não restituição ou
reparação do prejuízo, até ser instaurado o procedimento criminal, no caso de apropriação
de coisa de valor consideravelmente elevado. Essa agravante foi suprimida pelo legislador
de 1995. Agora, o regime da restituição ou reparação (art. 206º) funciona de uma maneira
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Conclusões
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2. O objecto da acção no crime de abuso de confiança é uma coisa móvel alheia: “coisa” –
conceito normativo e funcional – toda a realidade que possa ser objecto da acção típica
(apropriação); “móvel” – afastamento do conceito civilístico – coisa que seja susceptível
de ser deslocada espacialmente; “alheia” – toda a realidade de que o agente não pode
dispor legitimamente. Estando em causa a protecção da propriedade privada, esta não deve
estar dependente do valor patrimonial da coisa.
4. No momento da apropriação, o agente tem um “livre poder de facto sobre a coisa” que
lhe foi entregue, pelo proprietário ou por um terceiro detentor, sendo que esta entrega pode
não consistir num acto material. A entrega deve implicar a afectação da coisa a uma
finalidade determinada ou a sua oneração à obrigação de restituir.
6. Para haver abuso de confiança, é necessário que a coisa tenha sido entregue ao agente
“por título não translativo da propriedade” – necessidade de recurso ao direito civil.
7. O crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente, que recebeu a coisa por
título não translativo da propriedade e para um fim determinado, dela se apropria, actuando
como se a coisa fosse sua – adoptando comportamentos concludentes do animus rem sibi
habendi.
8. Para estar preenchido o tipo objectivo de ilícito, é ainda necessário que a apropriação
seja ilegítima – esteja em “contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade”.
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13. O crime de abuso de confiança pode constituir um crime qualificado em função de dois
tipos de circunstâncias: em função do valor elevado ou consideravelmente elevado da
coisa; e em função da especificidade do título de recebimento. A apropriação ilegítima e o
peculato são dois crimes específicos impróprios que correspondem, materialmente, a casos
agravados de abuso de confiança.
14. A pena para o abuso de confiança simples é de prisão até 3 anos ou multa; para o abuso
de confiança de valor elevado é de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias; e para o abuso
de confiança qualificado, em função do valor consideravelmente elevado ou da
especificidade do título da entrega, é de prisão de 1 a 8 anos. Estas penas podem ser
especialmente atenuadas no caso de restituição ou reparação, nos termos do art. 206º.
15. O crime de abuso de confiança simples é um crime semi-público; nos casos do art.
207º, passa a ter natureza particular.
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