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DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA:

ALGUMAS REFLEXÕES

Carla Maria de Araújo Viana Gonçalves Borges 

FDUNL N.º3 - 2003


Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Working Papers

Working Paper 03 / 03

Do Crime de Abuso de Confiança:


Algumas Reflexões

Carla Maria de Araújo Viana Gonçalves Borges

© Carla Maria de Araújo Viana Gonçalves Borges


Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de
textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como
Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de
textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-
Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Ana Cristina
Nogueira da Silva, ancs@fd.unl.pt ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa, Travessa Estevão Pinto, Campolide 1400-Lisboa.
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

Agradecimentos

Quero agradecer à Senhora Prof.ª Doutora Ana Prata e ao Senhor Prof. Dr. Luís da

Silveira o terem conversado comigo sobre alguns aspectos abordados neste trabalho, o que

contribuiu decisivamente para que pudesse formular uma opinião mais sustentada – e

também menos insegura (!) – sobre as matérias, especialmente as relacionadas com o

direito civil.

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

Introdução

Este trabalho tem como objecto o estudo do crime de abuso de confiança e pretende

fazer uma análise profunda do tipo legal, suscitando a reflexão sobre aspectos menos claros

do seu conteúdo.

A escolha deste tema deve-se a duas razões. Antes de mais, à sugestão da Senhora

Prof.ª Doutora Teresa Beleza, mas também ao facto de este tipo de crime levantar questões

dogmáticas interessantes, principalmente pelo facto de ser decisivo, quanto a muitos

elementos do tipo, o ponto de vista do direito civil.

Considerando que a configuração típica do abuso de confiança não tem sido

substancialmente alterada desde o Código Penal de 1886, optou-se por não fazer o percurso

histórico-legislativo do crime de abuso de confiança, antecedendo a exegese do preceito

que actualmente o prevê – o art. 205º do Código Penal de 1982 (versão de 1995).

Pontualmente, no decurso da análise do tipo incriminador, são referidas as (poucas)

alterações relativamente aos textos anteriores, assim como as consequências que daí se

podem retirar. Por outro lado, relativamente a questões mais discutidas, são também

referidas algumas decisões jurisprudenciais consideradas paradigmáticas.

Por último, importa dizer que foi adoptada a estrutura de análise seguida por Figueiredo

Dias, no seu comentário ao art. 205º, no Comentário Conimbricense do Código Penal, por

se entender que é a mais clara e a que permite uma melhor compreensão dos elementos do

tipo. Com efeito, impõe-se começar pela identificação do bem jurídico protegido, que é a

“chave” para a interpretação dos outros elementos da norma penal. Em seguida, faz-se a

incursão sobre o tipo objectivo, abordando os aspectos relativos ao objecto da acção e à

conduta típica, e o tipo subjectivo de ilícito do crime de abuso de confiança. São também

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objecto de análise as formas especiais do crime, o tipo qualificado do abuso de confiança, a

pena aplicável e o respectivo procedimento criminal, terminando com algumas conclusões.

I – O bem jurídico protegido

Numa perspectiva material, não há crime sem bem jurídico; “não há norma penal,
proibitiva ou impositiva, que não se destine a tutelar bens jurídicos” (Marques da Silva,
1998: 21). Esta é uma consequência do princípio da intervenção mínima do direito penal –
hoje imposto pelo art. 18º, nº 2 da CRP –, segundo o qual “o direito penal só deverá
funcionar, só deverá intervir, só deverá criminalizar, só deverá criar crimes, puni-los, etc.,
quando isso seja absolutamente essencial à sobrevivência da comunidade” (Beleza, 1980:
35).
Assim, para o estudo de qualquer tipo de crime, é essencial a identificação do bem
jurídico que este visa tutelar, não apenas porque é um elemento importante para a
interpretação do tipo legal, mas porque constitui “a primeira condição de legitimação da
norma penal” (Caeiro, 1996: 19).
O crime de abuso de confiança (art. 205º1) está previsto no Capítulo II (“Dos crimes
contra a propriedade”) do Título II (“Dos crimes contra o património”) da Parte Especial do
Código Penal (CP). Atendendo à integração sistemática do crime, o bem tutelado será o
património ou, mais especificamente, a propriedade – uma das “fracções” de património,
no seu sentido lato.

A este propósito justificar-se-ia uma análise cuidada da concepção jurídico-penal do


património, questão que suscitou, durante muito tempo, discussão acesa na doutrina
germânica2. Contudo, as limitações (quanto à forma e ao objecto) do presente estudo não
permitem realizá-la devidamente. Há, no entanto, alguns aspectos que não podem deixar de
ser considerados.
No CP de 1886, o crime de abuso de confiança estava previsto no Título V (“Dos
crimes contra a propriedade”) do Livro II (“Dos crimes em especial”). No CP de 1982, o

1
As normas sem indicação de fonte pertencem ao Código Penal português de 1982 (texto da Reforma de
1995).
2
Sobre a matéria, com grande desenvolvimento, cfr. Caeiro, Pedro, 1996: 49 e ss..

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conceito de “propriedade” é substituído pelo de “património” – o Título IV (Título II, após


a revisão de 1995) corresponde aos crimes contra o património (arts. 202º a 235º) e, dentro
destes, o Capítulo II prevê os crimes contra a propriedade (arts. 203º a 216º),
designadamente, o crime de abuso de confiança (art. 205º).
No CP de 1886, preponderava a concepção tradicional de património – a designada
“concepção jurídica” –, para a qual “o património, enquanto bem, não se autonomizava em
face da propriedade: os crimes patrimoniais eram crimes contra o direito de propriedade
stricto sensu ou contra a propriedade de outros direitos” (Caeiro, 1996: 65). Já no CP de
1982, foram consideradas as correcções da “concepção económica” e da “concepção
jurídico-económica”, e autonomizou-se o património “como um todo” da propriedade, pois
reconheceu-se que pode ser agredido sem que se produza, simultaneamente, uma lesão de
um direito subjectivo, nomeadamente de um direito de propriedade (ex.: expectativas).
Por outro lado, é de notar também que, na revisão de 1995, os crimes contra o
património foram sistematicamente deslocados do Título IV para o Título II, logo a seguir
aos crimes contra as pessoas (Título I). Perante esta nova organização sistemática, Teresa
Beleza identifica uma “arrumação bipartida de incriminações, tendencialmente
correspondente aos crimes contra bens jurídicos pessoais (pessoas e património: Títulos I e
II) e crimes contra interesses transpessoais (paz e humanidade, contra a vida em sociedade
e contra o Estado: Títulos III, IV e V)” (Beleza/ Costa Pinto, 1998: 43).
Com efeito, esta deslocação sistemática dos crimes patrimoniais não pode deixar de ser
vista como uma acentuação da concepção personalista de património. Nas palavras de
Figueiredo Dias, “o que se protege e constitui bem jurídico para o direito penal não é o
património em si mesmo considerado, mas como património de uma pessoa e portanto
ainda como valor eminentemente pessoal” (Figueiredo Dias, 1996: 28).
No mesmo sentido, Costa Pinto defende a concepção personalista de património – e da
teoria do bem jurídico, em geral –, demonstrando que é construída e legitimada à luz do
valor essencial do sistema político-legislativo – a dignidade da pessoa humana
(Beleza/Costa Pinto, 1998: 7 e ss.). Muito próxima desta linha de pensamento está a de
Pedro Caeiro, que procura evidenciar a conformação desta concepção personalista com os
princípios orientadores da CRP (Caeiro, 1996: 71 e ss.).

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Tendo como “pano de fundo” as breves considerações feitas a propósito do bem


jurídico “património”, convém retomar a análise do crime de abuso de confiança,
concretamente no que concerne à identificação do bem jurídico que visa tutelar.
Como já ficou dito, atendendo à integração sistemática do crime de abuso de confiança,
que pertence à subespécie dos “crimes contra a propriedade” (Cap. II do Título II da Parte
Especial do CP), o bem jurídico protegido parece ser, portanto, a propriedade. À mesma
conclusão se chega partindo da análise da essência típica deste crime, que consiste, nos
termos do nº 1 do art. 205º, na apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente
detém ou possui em nome alheio. Ou seja, conforme sintetiza Figueiredo Dias, abuso de
confiança é “violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse
ou detenção” (1999: 94).

A identificação do bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança permite,


desde logo, marcar a autonomia e especificidade deste crime em relação ao crime de furto,
que protege não só a propriedade, como no abuso de confiança, mas também a
incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel.
Assim, partindo desta diferença essencial quanto ao bem jurídico protegido, não são de
aceitar as teses que entendem o crime de abuso de confiança como uma modalidade de
furto. José Barreiros qualifica o abuso de confiança como um “furto especial” – um tipo de
ilícito que o legislador decidiu autonomizar relativamente ao furto, por causa do modo
específico como o crime é cometido (Barreiros, 1996: 82). Numa formulação um pouco
diferente, Carlos Alegre (citado por Figueiredo Dias, 1999: 95, e por Barreiros, 1996:82)
defende que o abuso de confiança é um “furto impróprio”.
Efectivamente, estas teses – que são actualmente minoritárias na doutrina portuguesa –
não parecem correctas, quer atendendo à diversidade do bem jurídico ou do modo de
violação em causa nos crimes de furto e abuso de confiança, quer constatando grandes
diferenças nos tipos objectivo e subjectivo de ilícito nos dois crimes, que ao longo deste
estudo serão enfatizadas.

Por último, é de realçar um outro elemento que também entra na conformação do bem
jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança: a relação de confiança existente entre o
agente e o proprietário da coisa ou entre o agente e a própria coisa, e que o agente viola
com o crime. O abuso de confiança não protege apenas a propriedade, mas também aquela

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relação de confiança. Aliás, a importância deste aspecto da confiança foi considerada na


escolha do nomen criminis (Machado, 1997: 494 e ss.).
Neste sentido, Figueiredo Dias chama a atenção para que “o abuso de confiança é um
delito especial, concretamente na forma de delito de dever, pelo que o autor só pode ser
aquele que detém uma qualificação determinada, resultante da relação de confiança (...) e
que fundamenta o especial dever de restituição” (1999: 97). Deve notar-se, porém, que a
mera violação deste dever de restituição é apenas civilmente relevante, se não se verificar a
intenção de apropriação do agente.
A este propósito, o mesmo autor sublinha ainda a ideia de que esta característica vem
acentuar uma das intenções mais marcadas da Reforma de 1995 – a “personalização” dos
bens jurídicos de natureza patrimonial.

II – O tipo objectivo de ilícito

A configuração típica do crime de abuso de confiança não tem sido substancialmente


alterada desde o CP de 1886 até ao presente. Há, no entanto, algumas alterações a
considerar, designadamente as introduzidas pelo CP de 1982, em relação ao CP de 1886,
que serão referidas ao longo da análise do tipo. A revisão de 1995 não alterou o tipo-base
do crime: o actual art. 205º, nº 1 corresponde ao art. 300º, nº 1 do texto de 1982.

1. O objecto da acção

O tipo objectivo de ilícito consiste em o agente “ilegitimamente se apropriar de coisa


móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade”. Assim, tal
como no furto, o objecto da acção no crime de abuso de confiança é uma coisa móvel
alheia. No entanto, a interpretação deste conceito levanta alguns problemas, para além de
se discutirem ainda outros aspectos relativos à coisa para efeitos do crime de abuso de
confiança (ex.: deve ter ou não valor patrimonial). Convém, então, definir com rigor o que
deve entender-se por coisa móvel alheia, a este propósito.

O universo daquilo que pode constituir objecto do crime de abuso de confiança está,
prima facie, limitado às coisas. Seguindo a doutrina de Manuel de Andrade, vertida no art.

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202º CC, “[coisa] é tudo aquilo que, não sendo pessoa em sentido jurídico, pode constituir
objecto de relações jurídicas (direitos subjectivos)” (1960: 202). Nestes termos, para o
direito civil, como afirmam Antunes Varela e Pires de Lima, “tudo o que pode ser objecto
de uma relação jurídica é uma coisa, seja ela corpórea ou incorpórea, seja mesmo um
direito” (1967: 192).
Contudo, não pode ser este o sentido a atribuir à palavra “coisa”, que surge no texto do
nº 1 do art. 205º. Nomeadamente, porque não poderá constituir objecto do crime de abuso
de confiança um crédito ou outros direitos – não porque essas realidades não sejam coisas
em sentido jurídico, como afirma Figueiredo Dias (1999: 97), mas porque, para efeitos do
crime de abuso de confiança – tal como defende Costa Pinto a propósito do crime de furto3
– “coisa” será (apenas) toda a realidade que possa ser objecto da acção típica, isto é, de
apropriação. Trata-se de um conceito normativo e funcional, diferente do conceito
civilístico, que exclui, desde logo, coisas imateriais. Nada obsta, todavia, a que os
documentos em que os créditos ou direitos se corporizam sejam objecto do crime de abuso
de confiança4.

1.1. Coisa móvel

Por outro lado, como resulta expressamente do texto da lei (art. 205º, nº 1), só as coisas
móveis podem ser objecto da acção típica. Faria Costa define coisa móvel como “toda e
qualquer coisa (...) que seja susceptível de ser deslocada espacialmente” (1999: 41-42) – o
que não corresponde à definição legal do art. 205º CC, que classifica como móveis, de um
modo residual, as coisas não consideradas imóveis pelo art. 204º CC, o que acaba por
abranger realidades diversas, designadamente alguns direitos. Efectivamente, já ensinava
Luís Osório, que “a expressão «coisa móvel» não deve, porém, ser aqui [art. 453º do CP de
1886] entendida no sentido do direito civil, mas no seu sentido vulgar de coisa que se pode
mover (...)” (1925: 240).
Uma vez mais, impera um conceito funcional sobre o conceito civilístico, o que
permitirá defender que são susceptíveis de apropriação, para efeitos do crime de abuso de
confiança, por exemplo, árvores, arbustos e frutos naturais – coisas imóveis nos termos da

3
Pinto, Frederico da Costa, segundo opinião defendida na aula leccionada, na FDUNL, no curso de Direito
Penal III, em Março de 2002.
4
No sentido de que os documentos podem ser objecto do abuso de confiança, v. Beleza/Costa Pinto, 1998:
48-49.

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al. c) do art. 204º CC – e partes integrantes de coisas imóveis – coisas imóveis nos termos
da al. e) do mesmo preceito –, pois depois de desligadas, respectivamente, do solo e das
coisas imóveis, essas coisas passam a ser móveis e, portanto, susceptíveis de apropriação.

1.2. Coisa alheia

Para que haja abuso de confiança, a coisa tem de ser alheia. Esta qualidade não é
expressamente exigida pela norma, mas deduz-se de vários elementos do crime, sendo que
a doutrina maioritária não questiona sequer este aspecto (cf. Sousa e Brito, 1982: 84;
Cavaleiro de Ferreira, 1989/90: 242; Machado, 1997: 495; Leal-Henriques/Simas Santos,
1996: 460).
José Barreiros é a “voz discordante” neste contexto, pois defende que também pode
haver abuso de confiança quando estejam em causa coisas da propriedade do agente,
apresentando um argumento de ordem literal – a lei não restringe o tipo incriminador às
coisas alheias – e defendendo uma “específica interpretação do conceito típico de
apropriação usado pelo art. 205º, em termos de legitimar como conclusão que o sujeito
activo se aproprie – através do abuso de confiança – de uma coisa de que já era afinal
proprietário” (Barreiros, 1996: 108).
Salvo o devido respeito, não parecem ser de sufragar os argumentos apresentados: o
facto de o texto da lei não referir expressamente o carácter alheio da coisa não impede que
isso se infira de outros elementos do tipo – com efeito, não é fácil configurar a
possibilidade de “apropriação de coisa própria”, pelo que, em princípio, o objecto da acção
só poderá ser uma coisa alheia (Figueiredo Dias, 1999: 98).
A propósito do crime de furto, Faria Costa define coisa alheia como “toda a coisa que
esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a
infracção” (1999: 41) – esta parece ser uma definição adequada também em relação ao
crime de abuso de confiança, permitindo configurar como objecto da acção, por exemplo,
coisas de que o agente é comproprietário (coisas que também estão ligadas a uma pessoa
diferente daquela que pratica a acção), e excluindo em definitivo as coisas de que o agente
é o único proprietário e também as res nullius – situações que têm dignidade penal
diferente e que não são abrangidas por este tipo incriminador, mas eventualmente pelo tipo
previsto no nº 2 do art. 209º, o crime de apropriação ilegítima em caso de coisa achada.

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No entanto, poder-se-á chegar à conclusão de que aquela definição de coisa alheia é


demasiado ampla, abrangendo coisas que não devem considerar-se alheias e que não
podem ser objecto do crime de abuso de confiança. É o caso das coisas postas – na
designação da doutrina alemã – na comunhão de mão comum (zur gesamthand). Os autores
portugueses costumam falar em “património colectivo”, sendo o exemplo mais referido os
bens comuns do casal (Andrade, 1960: 224-226; Mota Pinto, 1975: 349-351). Refere
Pereira Coelho que “os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único
direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal” (1965: 507). Sendo
assim, se estes bens já pertencem ao agente, não é possível existir apropriação dos mesmos.
Defende Figueiredo Dias (1999: 98) que só poderá verificar-se o crime de abuso de
confiança se, depois de feita a divisão desse património colectivo, o agente se apropriar de
coisa para além do que lhe cabe – por exemplo, depois da partilha de bens no divórcio.

Neste sentido decidiu o STJ, num seu Acórdão de 18-10-20005, condenando pelo
crime de abuso de confiança o arguido, cônjuge da queixosa, que se tinha apropriado
de quantias correspondentes a certificados de aforro, que eram bens comuns do casal.
Isto porque a partilha de bens já tinha sido feita pelos arguido e queixosa, estando
aquele ciente de que metade dessa quantia era pertença desta. Este é precisamente um
exemplo da situação configurada por Figueiredo Dias, que é inclusivamente citado a
propósito pelo tribunal.

No entanto, não será de considerar também a hipótese de existir abuso de confiança


antes da divisão – neste caso, antes da partilha de bens? Parece que sim, pois se um dos
cônjuges, por exemplo, levantar quantias correspondentes a certificados de aforro que
sejam bens comuns do casal e, depois, as depositar num banco na Suíça, sem o comunicar
ao outro cônjuge, estará efectivamente a “apropriar-se” dos bens, no sentido em que se está
a comportar como se fosse o único proprietário dos mesmos. E esta conclusão vale mesmo
nos casos em que o cônjuge tenha a administração desses bens, o que não poderá legitimar
uma tal conduta.
Assim, tendo em conta, nomeadamente, que o bem jurídico protegido pelo crime de
abuso de confiança é a propriedade, e também a relação de confiança existente nestes
casos, deve defender-se que estas situações são merecedoras da tutela penal, estando

5
CJ, III, 2000, p. 209.

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efectivamente abrangidas no tipo legal – isto, claro, sem perder de vista a necessidade de
existir intenção de apropriação do agente.
Posto isto, a definição de “coisa alheia” de Faria Costa não é criticável pelo facto de
abranger as coisas incluídas num património colectivo, pois que estas constituirão, em
alguns casos, “coisa alheia” para efeitos do crime de abuso de confiança.
Não obstante, parece ser mais adequada a definição de “coisa alheia” defendida por
Costa Pinto6: é coisa alheia a coisa – para efeitos do crime em causa, a coisa móvel – de
que o agente não pode dispor legitimamente. Trata-se de uma construção mais clara e mais
rigorosa do ponto de vista técnico, permitindo definir mais facilmente situações como as
dos bens comuns do casal, que em certas situações constituirão “coisa alheia” – perante
condutas similares à referida acima – e noutras não – quando o cônjuge dispõe dos bens
comuns do casal, dentro dos limites definidos na lei civil, não prejudicando o direito de
propriedade do outro cônjuge.

Neste contexto, discute-se também se o comprador de uma coisa vendida com reserva
de propriedade pode cometer o crime de abuso de confiança, apropriando-se dela.
Figueiredo Dias (1999: 99) não tem dúvidas de que, à luz do direito penal, a coisa vendida
com reserva de propriedade constitui coisa alheia.
Na realidade, essa é a interpretação mais consentânea com a lei civil. O art. 409º do CC
prevê a possibilidade de o “(...) alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao
cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer
outro evento”. Pode defender-se que se trata de uma condição suspensiva do efeito
translativo da propriedade, até ao momento do cumprimento ou outro convencionado, e
que, nesse período, o proprietário continuará a ser o alienante. Ou seja, a propriedade da
coisa ainda não se transferiu para o comprador, pelo que, sendo em relação a ele uma coisa
alheia, pode existir apropriação ilegítima e, portanto, crime de abuso de confiança.

Neste sentido decidiu a Relação do Porto, num Acórdão de 4-11-19877, em que foi
condenada a arguida que tinha comprado um equipamento de salão de cabeleireiro a
prestações, com reserva de propriedade a favor do vendedor, e que, deixando de pagar
as prestações, desapareceu com o material comprado para local ignorado.

6
Pinto, Frederico da Costa, segundo opinião defendida na aula leccionada, na FDUNL, no curso de Direito
Penal III, em Março de 2002.
7
CJ, V, Ano XII, p. 221.

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Deve notar-se, porém, que nem sempre é assim. Nem sempre a coisa vendida com
reserva de propriedade poderá ser objecto do crime de abuso de confiança.
Figueiredo Dias (1999: 99) parece desvalorizar, quanto às dificuldades suscitadas a
propósito de coisas vendidas com reserva de propriedade, o contributo do direito civil.
Mas, deve ter-se em conta que há casos em que – atendendo às normas da lei civil –,
estando em causa uma coisa vendida com reserva de propriedade, não haverá crime de
abuso de confiança – por exemplo, quando o comprador, que tem o direito à entrega da
coisa antes do pagamento do preço, a obtém através da acção directa (art. 336º do CC);
quando o comprador tem um direito de retenção (art. 754º do CC); etc. Desde logo, no caso
da obtenção da coisa por acção directa, não se poderá falar em abuso de confiança, pois
falta um elemento do tipo objectivo deste crime: a posse anterior à apropriação – esta seria,
na realidade, uma situação de subtracção. No que toca ao caso do direito de retenção,
poderia questionar-se a existência da intenção de apropriação.
Mas estas situações serão objecto de maior análise quando se tratar de outro elemento
do tipo objectivo: a ilegitimidade da apropriação.

Pelo contrário, as coisas que são objecto de uma alienação fiduciária não poderão, em
princípio, fundamentar a possibilidade típica de um crime de abuso de confiança.
Neste tipo de contratos há, pelo menos em termos formais, a transmissão do direito de
propriedade sobre a coisa. Apesar de ser frequente a estipulação de uma cláusula resolutiva,
durante o período da sua pendência, o adquirente é proprietário – pelo que não haverá
possibilidade de apropriação. Deve, contudo, ter-se em conta que, no caso de o adquirente
estar vinculado a administrar a coisa para um determinado fim, poderá estar a apropriar-se
dela se a utilizar para um fim diferente do convencionado no contrato.

Outra questão geralmente discutida a este propósito é a da possibilidade de o agente se


apropriar de coisas suas dadas em penhor ou penhoradas, quando ele é o depositário. Ora,
nas situações descritas, não é afectado o direito de propriedade do agente, pelo que não
poderá haver apropriação – as coisas já são próprias – e, por conseguinte, abuso de
confiança – esta é a opinião defendida por Figueiredo Dias (1999: 112-113).
José Barreiros (1996: 108), argumentando no sentido da extensão do crime de abuso de
confiança em relação às coisas da propriedade do agente, defende que o tipo abrange

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

aquelas situações. O autor foi infeliz quando, para suportar a sua opinião, referiu que
aquela situação era punida como abuso de confiança no CP de 1886. Na verdade, este
diploma incriminava o proprietário no caso de descaminho de coisas próprias penhoradas
ou depositadas a ele entregues, mas não como abuso de confiança – no art. 453º – mas num
outro preceito específico, o art. 422º.
Todavia, há que reconhecer alguma pertinência no levantamento desta questão.
Com efeito, trata-se de situações que merecem também tutela penal. Põe-se é a questão
de saber se são situações abrangidas pelo tipo em análise – o abuso de confiança.
Quanto à possibilidade de o proprietário cometer este crime, “apropriando-se” de coisas
suas dadas em penhor, deve defender-se uma resposta negativa. Para além do argumento
supracitado, invocado por Figueiredo Dias – o proprietário não pode “apropriar-se” de
coisas suas –, parece determinante o facto de um descaminho das coisas empenhadas
pressupor uma subtracção por parte do proprietário, já que aquelas estão na posse do credor
pignoratício (arts. 669º e 670º CC).
Em relação às coisas penhoradas, também é pertinente o argumento de Figueiredo Dias,
porque o proprietário não perde o seu direito, nem as faculdades a ele inerentes, pelo facto
de os bens serem penhorados. Como esclarecem Antunes Varela e Pires de Lima, “o
devedor pode livremente alienar ou onerar os bens penhorados” (1967: 91). Assim, não
poderá haver abuso de confiança, porque não pode haver apropriação, quando estiverem
em causa coisas penhoradas e o agente for o seu proprietário. No entanto, vale a pena olhar
para a questão numa outra perspectiva. Se o proprietário alienar uma coisa penhorada a
terceiro de boa fé – isto é, que ignora a penhora sobre o bem – pode estar a praticar um
crime de burla, nos termos do art. 217º.

Também ainda relacionado com esta questão do carácter alheio da coisa é o problema
de determinar quem é o proprietário desta em cada momento, quando for constituída por
objectos fungíveis. No entanto, será mais conveniente tratar este problema a propósito do
estudo do que se deve entender por “título não translativo da propriedade” e “apropriação”.

1.3. Coisa com valor?

Para terminar o estudo relativo ao objecto da acção típica do abuso de confiança,


importa ainda referir um aspecto discutido por Teresa Beleza (Beleza/Costa Pinto, 1998:

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

47-51): o facto de “património” significar, para a lei civil, o conjunto de bens ou direitos e
obrigações avaliáveis em dinheiro implicará que só coisas com valor pecuniário possam ser
objecto de “crimes contra o património”?
Visto que a lei não faz nenhuma exigência neste sentido, em relação aos crimes contra a
propriedade parece que nada obsta a que uma coisa sem valor patrimonial seja objecto do
crime – nestes tipos de crime, o que está em causa é a protecção da propriedade privada, o
que não deve estar dependente do valor patrimonial da coisa8. Já os crimes contra o
património (stricto sensu), pelo contrário, na opinião da autora, estão construídos com o
pressuposto de o seu objecto ser coisa com valor.
Em relação ao CP de 1886, a resposta seria necessariamente diferente, pois para estar
preenchido o tipo do abuso de confiança, tinha que se verificar uma apropriação “em
prejuízo de proprietário, ou possuidor ou detentor” (art. 453º do CP de 1886) – esta é a
diferença essencial em relação ao tipo objectivo de ilícito do art. 205º. Ora, como bem
notava Luís Osório, “se a dissipação ou descaminho deve causar um certo prejuízo ao
proprietário, possuidor ou detentor da coisa, é pressuposto indispensável que a coisa tenha
um certo valor” (1925: 242).

2. A conduta típica

A conduta típica no crime de abuso de confiança consiste em o agente se apropriar


ilegitimamente de coisa que lhe tenha sido entregue por título não translativo da
propriedade.

2.1. A entrega / recebimento

O elemento característico do crime de abuso de confiança é, sem dúvida, a existência


de um acto de entrega da coisa (objecto da acção) ao agente do crime.
É este elemento do tipo que permite, desde logo, fazer a distinção clara entre este
crime e o crime de furto: enquanto no abuso de confiança, o agente, no momento da
apropriação, já tem a coisa em seu poder; no furto, o agente subtrai a coisa para, assim,

8
Pela posição contrária, v. Faria Costa, 1999: 45-46; v. também José Barreiros, 1996: 107, que afirma que o
objecto do crime de abuso de confiança tem de ser uma coisa móvel com valor.

16
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

poder apropriar-se dela (o que efectivamente até pode nem vir a acontecer – a apropriação
não integra o tipo objectivo de ilícito). Como sintetiza Cavaleiro de Ferreira, “a execução
do crime de furto realiza-se pela subtracção – desapossamento; e a execução do crime de
abuso de confiança realiza-se pela apropriação directa da coisa alheia enquanto esta já se
encontra na posse do autor do crime” (1989/90: 242).
Por outro lado, o facto de, no abuso de confiança, a coisa já estar em poder do agente
antes da apropriação ilegítima, permite distinguir este crime do tipificado no art. 209º –
apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada –, em que o domínio da coisa
não preexiste à apropriação.
Figueiredo Dias refere que o autor do crime de abuso de confiança, no momento da
apropriação, já tem a posse ou a detenção da coisa – mas esclarece que estes conceitos não
têm, a este propósito, o mesmo conteúdo jurídico que lhes é atribuído pelo direito civil,
mas antes devem ser entendidos num sentido mais lato, como equivalendo a uma “relação
fáctica de domínio sobre a coisa” (1999: 100).
Esta questão será abordada com maior desenvolvimento no âmbito da análise do
elemento típico essencial que é a “apropriação”, mas desde já pode dizer-se que não será
muito correcto falar em posse (para além da mera detenção) antes do momento da
apropriação, já que a maioria da doutrina identifica este momento com uma “inversão do
título da posse”, o que corresponde, exactamente, a uma das formas de o detentor – que não
tinha a posse da coisa – passar a tê-la.
Leal-Henriques e Simas Santos (1996: 461) sublinham a necessidade de o agente ter um
“livre poder de facto sobre a coisa” para que possa praticar o crime de abuso de confiança,
caso contrário, se a detenção da coisa ocorre ainda sob a vigilância do proprietário, o que
pode haver é um furto. Neste sentido manifesta-se também Barreiros (1996: 107), que faz
referência a um Acórdão da RL de 16-7-869, em que se declara que não comete o crime de
abuso de confiança, mas sim o de furto, o empregado de uma loja que consome bens
alimentares que tinha para vender, por se manter a vigilância do seu patrão.

Quanto ao acto da entrega, é de notar que pode ser feita pelo proprietário da coisa, mas
também por um terceiro mero detentor (Barreiros, 1996: 104; Osório, 1925: 243).
Por outro lado, como já resultava do art. 453º do CP de 1886, “não é necessário, porém,
que a entrega se concretize num acto material de entrega e recebimento, bastando que o

9
CJ, XI, 4, p. 178.

17
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

agente se encontre investido de um poder sobre o objecto que lhe dê a possibilidade de o


desencaminhar ou dissipar” (Duarte/Laurentino, 1966: 763). Beleza dos Santos salientou
este aspecto, defendendo uma “interpretação declarativa lata” das palavras entregue e
recebido do referido art. 453º (1949: 34). Mas, Campos Costa (1956: 404) fez notar que
nem isso seria necessário, visto que resultava claramente da letra da lei que a coisa podia
estar em poder do agente, por lhe ter sido entregue ou por ter sido simplesmente recebida –
o art. 453º empregava as expressões “que lhe tenham sido entregues (...) ou que haja
recebido”.
Este mesmo entendimento de “entrega” continua a fazer sentido face ao art. 205º e é
defendido pela generalidade da jurisprudência10 e doutrina, designadamente por Maia
Gonçalves (1998: 636), Leal-Henriques/Simas Santos (1996: 461), Figueiredo Dias (1999:
100), Barreiros (1996: 106) – questionando este último, porém, a constitucionalidade
material da norma, por violação do princípio da legalidade, uma vez que o tipo
incriminador apenas prevê a situação de entrega, quando o legislador devia ter optado por
uma noção mais abrangente.
Assim, a entrega não tem de consistir num acto material, podendo até tratar-se de uma
“entrega legal”, de que Figueiredo Dias (1999: 100) dá um exemplo: testamento que, por
morte do testador, é legalmente “entregue” ao testamenteiro. Também Sousa e Brito (1982:
84) defendia que, para o preenchimento do tipo do art. 453º do CP de 1886, bastava a
“entrega jurídica”, dando como exemplo a entrega das coisas ao cabeça-do-casal na
partilha.
Ora, este aspecto tem levado alguns autores, como Luís Osório (1925: 238) e, mais
recentemente, Leal-Henriques e Simas Santos (1996: 462), a destacar o facto de que o
crime de abuso de confiança pode existir mesmo que não haja um efectivo abuso de
confiança, isto é, sem que a detenção da coisa provenha de um acto fiduciário, mas
simplesmente resulte da lei – nestes casos, existiria unicamente uma apropriação indevida.
Daí que Luís Osório afirme que “a designação de «abuso de confiança» dada a este crime é
imprópria e induz em erro” (1925: 238), ao contrário, nomeadamente, do art. 408º do CP
napoleónico de 1810 – que inspirou o nosso legislador – em que a designação é fiel, pois aí
só são incriminados os “verdadeiros” abusos de confiança.

10
Neste sentido, v. Ac. STJ de 8-7-98, BMJ, 479, p. 244; Ac. RC de 23-4-98, CJ, 1998, 2, p. 60; Ac. RP de 9-
4-97, BMJ, 466, p. 582; Ac. STJ de 28-2-96, CJ, 1996, 1, p. 214.

18
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

Por último, quanto à entrega da coisa, deve ainda apontar-se um aspecto importante e
que será decisivo para a verificação da apropriação por parte do agente: a entrega deve
“implicar a afectação da coisa entregue a uma causa ou finalidade determinada ou a sua
oneração à obrigação de a restituir, isto é, a sua titulação” (Barreiros, 1996: 104). Não é
suficiente a constatação da entrega para fundamentar um abuso de confiança. Nas palavras
de Leal-Henriques e Simas Santos, este crime supõe que “não se justifique a apropriação,
antes se constituindo a obrigação de afectação a um uso ou fim determinado, ou de
restituição” (1996: 461).

Deste modo, é de concordar com o Ac. STJ de 23-9-9311, em que se decidiu “se
não se sabe a que título foi feita ao arguido a entrega do dinheiro, e qual a finalidade a
que se destinava tal entrega, não pode ter lugar a condenação pela prática do crime de
abuso de confiança”.

2.2. A “ilicitude” da entrega/recebimento

A esmagadora maioria da doutrina tem-se pronunciado no sentido em que o crime de


abuso de confiança supõe uma entrega e/ou um recebimento lícitos ou legítimos da coisa,
designadamente, referindo-se ao art. 453º do CP de 1886, Eduardo Correia (1954: 62), e,
quanto ao art. 205º, Leal-Henriques/Simas Santos (1996: 460), Barreiros (1996: 103),
Machado (1997: 495).
No entanto, parece mais coerente a posição de Figueiredo Dias (1999: 100-102), que
admite o preenchimento do tipo do abuso de confiança, mesmo que a entrega e/ou o
recebimento sejam ilícitos. Com efeito, para além de a lei não exigir a licitude, nos casos de
ilicitude da entrega ou recebimento justifica-se também a tutela penal do bem jurídico
“propriedade”, que nestes casos pode também ser posto em causa. Do mesmo modo, haverá
também uma relação de confiança a tutelar, que pelo facto de a entrega ou o recebimento
serem ilícitos não deixa de existir – por exemplo, no caso de uma entrega nula12, derivada
da nulidade de um contrato, em que ambas as partes estão de boa fé.

11
Não está publicado, sendo referido por Leal-Henriques e Simas Santos (1995: 560).
12
Figueiredo Dias refere-se à possibilidade de “ilicitude” do acto da entrega e/ou recebimento, derivada da
eventual nulidade do contrato, no entanto, é mais correcto falar em nulidade, neste caso.

19
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

É certo, porém, que podem surgir aqui problemas de concurso de crimes que devem ser
considerados, que só serão suscitados nos casos de ilicitude penal da entrega.
Figueiredo Dias (1999: 101) dá o exemplo em que o agente, num primeiro momento,
furta a coisa e, só depois, a usa ou oferece a outra pessoa, para demonstrar que, em certas
situações, o facto de a entrega ter origem num crime – neste caso, um furto – impede que se
verifique posteriormente o tipo objectivo de ilícito do crime de abuso de confiança. Uma
vez que com a pretensa “nova apropriação” não se lesa um bem jurídico diferente e
autónomo, deve reconduzir-se essa conduta à figura do “facto posterior não punível”, sendo
o agente incriminado apenas pelo crime de furto, seguindo a regra do concurso aparente.
Por outro lado, se é o próprio agente a furtar a coisa, nunca se poderá defender que existiu
uma “entrega” para efeitos de um crime de abuso de confiança.
Na verdade, será difícil existir um crime de abuso de confiança em relação a coisa
furtada, ou mesmo em relação a coisa que tenha sido objecto de um qualquer crime contra
o património, dado que a apropriação nesse caso consistirá num crime de receptação, nos
termos previstos no art. 231º, como realçam Leal-Henriques e Simas Santos (1996, 462).
Todavia, não deve afirmar-se que a impossibilidade típica de um abuso de confiança nestes
casos se deve ao facto de a detenção ou posse ser ilícita, como fazem estes autores, mas
estritamente pelo facto de ter uma origem criminosa e, especificamente, derivada de crime
contra o património, situação tutelada pelo crime de receptação. Em todos os outros casos
de detenção ilícita de uma coisa – por exemplo, derivada de uma entrega nula, imposta por
um contrato nulo – poderá existir um crime de abuso de confiança.

2.3. O título não translativo da propriedade

Nos termos do art. 205º, nº 1, para haver abuso de confiança, é necessário que a coisa
tenha sido entregue ao agente “por título não translativo da propriedade”. Assim, uma vez
mais, para interpretar um elemento deste tipo legal, é necessário recorrer ao direito civil.
No CP de 1886, foi utilizada uma diferente técnica legislativa, que consistia na
enumeração exemplificativa dos títulos que podiam estar na origem de um abuso de
confiança – “que lhe tenham sido entregues por depósito, locação, mandato, comissão,
administração, comodato, ou que haja recebido para um trabalho, ou para uso ou emprego
determinado” (art. 453º) – embora no final estivesse prevista uma cláusula geral que a
doutrina, já na altura, entendia dever interpretar-se no sentido de remeter para os títulos não

20
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

translativos da propriedade: “ou por qualquer outro título, que produza obrigação de
restituir ou apresentar a mesma coisa recebida ou um valor equivalente”. Quanto à
interpretação desta norma, dizia Eduardo Correia (1954: 63) que a “última parte (qualquer
outro título) só pode entender-se relacionada com a razão por que os títulos concretamente
referidos possibilitam o abuso de confiança, o que restringe a sua referência aos possíveis
efeitos daqueles títulos enumerados, ou seja à hipótese de não transferência da
propriedade”.
A partir do CP de 1982, é mais fácil e mais rigorosa a identificação dos títulos que
podem estar na origem de um abuso de confiança, bastando aferir se, no caso concreto, há
ou não transferência da propriedade da coisa para o agente.
Posto isto, não poderá existir abuso de confiança quando a coisa é entregue ao agente
no cumprimento de um contrato de mútuo, pois, nos termos do art. 1144º do CC, a
propriedade das coisas mutuadas – coisas fungíveis – transfere-se para o mutuário pelo
facto da entrega – o mútuo é um contrato real quoad effectum. O mesmo se aplica ao
contrato de depósito irregular, que é regulado pelas normas relativas ao mútuo (art. 1206º
CC), pelo que também aqui há transferência da propriedade da coisa entregue. Figueiredo
Dias (1999: 102-103) refere ainda a este propósito o depósito bancário de coisas fungíveis.

Num Ac. da RL de 17-10-8413, foi decidido que o réu não cometera o crime de
abuso de confiança, precisamente pelo facto de ter havido transferência da propriedade
das importâncias que recebeu a título de adiantamento de vencimentos, tendo
posteriormente rescindido o contrato a que respeitava o adiantamento. Também este
aspecto foi decisivo num Ac. da RP de 11-11-9214, em que a propriedade da madeira se
havia transferido para o comprador por mero efeito do contrato, apesar de este não ter
cumprido as suas obrigações, pelo que não era possível um crime de abuso de
confiança.

2.4. A apropriação

O abuso de confiança consiste essencialmente numa apropriação – na apropriação


ilegítima de coisa móvel alheia que foi entregue ao agente por título não translativo da
propriedade. Assim, diferentemente do que acontece com o furto, em que a apropriação

13
CJ, IX, 4, p. 150.
14
CJ, XVII, p. 251.

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

integra apenas uma direcção da vontade, constituindo um elemento do tipo subjectivo de


ilícito, no abuso de confiança, a apropriação integra o tipo objectivo de ilícito – tem que se
verificar uma “acção de apropriação” e não apenas uma “intenção de apropriação”.
No CP de 1886, o art. 453º falava em “desencaminhar ou dissipar” a coisa e, embora a
dissipação fosse sempre um caso de descaminho, a doutrina “esforçava-se” por distinguir
estes conceitos. Sousa e Brito ensinava que “descaminho em sentido estrito é o uso
abusivo da coisa; aquela forma de uso abusivo que se traduz no seu consumo ou na sua
disposição é a dissipação” (1982: 85). Já Luís Osório (1925: 250-251), Eduardo Correia
(1960: 35-36) e Beleza dos Santos (1949: 18) recorriam à doutrina francesa – visto que
aquelas expressões do art. 453º foram “importadas” do art. 408º do CP francês de 1810 –
que equiparava os termos descaminho e dissipação a apropriação. Deve realçar-se,
contudo, a importância daquela definição de Sousa e Brito que, por ser tão analítica, pode
inclusivamente servir para interpretar o conceito de “apropriação” hoje utilizado no art.
205º.
Mas em que consiste a apropriação?
Numa formulação mais simples, dizia a doutrina que a apropriação consistia em “actos
em que se exterioriza o propósito do agente de dispor da coisa como se fosse própria”
(Beleza dos Santos, 1949: 18). Mas, mais recentemente, para identificar o momento da
“apropriação” para efeitos do crime de abuso de confiança, autores como Cavaleiro de
Ferreira (1989/90: 243), Figueiredo Dias (1999: 103), Leal-Henriques/Simas Santos (1996:
460), Barreiros (1996: 109) e Maia Gonçalves (1998: 636) têm recorrido a uma figura
típica do direito civil e do instituto da posse: a “inversão do título da posse” – o crime de
abuso de confiança consuma-se quando o agente, que recebeu a coisa por título não
translativo da propriedade e para um fim determinado, dela se apropria, actuando como se
a coisa fosse sua, isto é, adoptando comportamentos concludentes do animus rem sibi
habendi (art. 1251º CC).
Este apelo aos conceitos de direito civil parece ser uma opção correcta, pois permite
um maior rigor na interpretação do tipo incriminador. Contudo, o facto de se utilizar esses
conceitos acarreta uma maior preocupação por parte dos penalistas na utilização de
determinadas palavras, como posse ou detenção. Figueiredo Dias, que também afirma que
a apropriação se traduz na inversão do título da posse (1999: 103), diz, no entanto, que no
momento da apropriação o agente já tem a posse ou a detenção da coisa (1999: 100). Estas
afirmações não são coerentes, pois, como ensina Menezes Cordeiro, “a inversão do título é

22
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

uma operação pela qual o detentor obtém, ex novo, uma situação possessória, com
referência à coisa que já detinha” (1997: 105). Portanto, antes da inversão do título da
posse, antes da apropriação, o agente é um mero detentor, possuindo em nome daquele que
lhe entregou a coisa, segundo o art. 1253º, al. c), CC.
Todavia, a ponderação destes conceitos no contexto penal tem de fazer-se, obviamente,
com distância relativamente às exigências de validade das situações perante o direito civil.
Nomeadamente, pode falar-se em “inversão do título da posse” a propósito do crime de
abuso de confiança, mas pretendendo fazer apenas uso do “mecanismo” para demonstrar
em que consiste a apropriação, já que, em rigor, tratando-se até de um crime, não pode
dizer-se que nestas situações haja efectivamente uma inversão do título da posse
validamente constituída. Isto não significa, porém, que estes conceitos não mantenham o
seu conteúdo preciso e que possam ser utilizados sem critério.
Assim, deve evidenciar-se a síntese feita por Cavaleiro de Ferreira, que exprime, muito
correctamente do ponto de vista técnico, quer no âmbito penal como civil, o que deve
entender-se por “apropriação” para efeitos do crime de abuso de confiança: “descaminho
ou dissipação são os modos de inversão do título da posse, de posse legítima em nome
alheio ou para fim determinado, para posse ilegítima em nome próprio, isto é, são os
modos que reveste a «apropriação»” (1989/90: 243).

Tendo, então, por base as considerações feitas, analisar-se-á no caso concreto se a


conduta do agente corresponderá ou não a uma apropriação, podendo fundamentar a
existência de um crime de abuso de confiança. Há situações em que essa análise é mais
fácil, designadamente quando o agente aliena, doa ou consome a coisa que lhe foi entregue
– é aqui mais evidente que o agente está a utilizar a coisa como se fosse sua. Mas, deve
entender-se que o agente dispõe da coisa ut dominus também quando demonstra que tem o
propósito de não a restituir, quando não lhe dá o destino ou o fim pré-determinado, ou
sabendo que já não o pode fazer.

Por isso, considerou a RE, num seu acórdão de 24-11-8715, que cometeu o crime
de abuso de confiança o empregado que recebeu um veículo para entregar na empresa
em que trabalhava e, em vez disso, passou a utilizá-lo como se fosse seu, nas suas
deslocações normais, em passeio, etc.

15
CJ, XII, 5, p. 281.

23
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

É de salientar ainda uma observação de Cavaleiro de Ferreira (1989/90: 243) no


sentido em que a apropriação não tem de consistir numa conduta positiva (acção), podendo
também consistir numa omissão – como por exemplo, a omissão do pagamento devido,
tendo sido o dinheiro entregue ao agente com esse fim.

Por último, é imprescindível a referência aos problemas suscitados pela apropriação de


coisas absolutamente fungíveis, como é o caso do dinheiro.
Levanta-se a questão de saber se a mera confusão no património do agente de dinheiro
que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, ou mesmo o seu uso,
constitui já uma forma de apropriação, integrando o tipo objectivo de ilícito do crime de
abuso de confiança. Para além do facto de esta conduta ter de ser acompanhada pelo dolo
de apropriação para poder existir um crime de abuso de confiança, deve entender-se que tal
actuação não preenche o tipo objectivo de ilícito do art. 205º, na medida em que, sendo as
coisas absolutamente fungíveis (por natureza ou porque assim foi convencionado – art.
207º CC), a sua substituição ainda é possível, de modo a restituí-las no tempo devido ou a
dispor delas para o fim convencionado.
Conclui-se, portanto, que o tipo objectivo de ilícito do crime de abuso de confiança só
estará preenchido se ao uso ou à confusão da coisa fungível no património do agente se
seguir a não restituição ou a impossibilidade de afectação da coisa ao fim a que se
destinava – por exemplo, a dissipação do dinheiro entregue ao agente, que não o pode
substituir, para fazer o pagamento devido.
De ressalvar, porém, a situação referida por Eduardo Correia (1954: 65-66), em que
haja um especial interesse pelas coisas fungíveis entregues – por exemplo, as notas
depositadas tinham pertencido a uma pessoa célebre. Visto que não são susceptíveis de
substituição, devem considerar-se como coisas infungíveis, por convenção das partes, para
efeitos do problema ora discutido.

2.5. A ilegitimidade da apropriação

Para que o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança esteja preenchido, é ainda
necessário verificar se a apropriação é ilegítima, caso contrário, não há abuso de confiança.

24
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

Figueiredo Dias defende que a apropriação deve ser considerada ilegítima quando
acarreta uma “contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade” (1999: 105).
Por isso, se o agente que se apropria da coisa tem uma pretensão jurídico-civilmente válida
sobre o desapropriado, a sua conduta não corresponde à conduta típica do crime de abuso
de confiança, nos termos do art. 205º.
Apesar de não se encontrar jurisprudência que considere esta questão, podem
equacionar-se várias situações em que o agente se apropria de coisa alheia, que lhe foi
entregue por título não translativo da propriedade, e que não constituem crimes de abuso
de confiança, porque a apropriação é legítima. Por exemplo, se A vende a B um livro a
prestações, com reserva de propriedade, tendo a obrigação de entregá-lo no momento da
celebração do contrato e, algum tempo depois de o entregar, decide recuperá-lo sem o
consentimento de B, este poderá por meio da acção directa (art. 336º CC) apropriar-se do
livro, contra a vontade do seu proprietário, sem cometer um crime de abuso de confiança –
aliás, neste caso há total inexistência de tipicidade penal: não se trata de um crime de abuso
de confiança, porque, para além do facto de não haver apropriação ilegítima, não há posse
anterior à apropriação – há uma subtracção; não se trata de um crime de furto, porque não
há intenção de apropriação.
Outras situações similares podiam ser referidas, como os casos em que a apropriação é
legítima pelo facto de o agente ter um direito de retenção (art. 754º CC), porque agiu num
estado de necessidade jurídico-civil (art. 339º), etc., mas também estas poderiam ser
situações de atipicidade penal pelos motivos referidos.

III – O tipo subjectivo de ilícito

Atendendo ao art. 13º e a que não está especialmente prevista a punibilidade do abuso
de confiança negligente, o tipo subjectivo de ilícito no abuso de confiança é apenas o dolo,
ou seja, o conhecimento dos elementos do tipo objectivo e vontade de praticar a acção aí
descrita (art. 14º).
No furto, a intenção de apropriação é um elemento subjectivo específico, enquanto que
o elemento subjectivo geral é o dolo de subtracção. Mas, quanto ao abuso de confiança,
como salienta Teresa Beleza, “(...) a intenção de apropriação não é aqui um elemento
subjectivo da ilicitude que caracterize a acção além dos elementos do tipo objectivo, mas

25
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

antes a própria essência do elemento volitivo do dolo (...)” (Beleza/Costa Pinto, 1998: 73).
Deste modo, se não existir dolo de apropriação, não há crime de abuso de confiança,
mesmo que se verifiquem todos os elementos do tipo objectivo, porque o agente não quis
ficar com a coisa e usá-la como um proprietário – o “abuso de confiança de uso” não está
criminalizado pela nossa lei penal, apesar de existir o crime de peculato de uso, previsto no
art. 376º, que é um crime específico impróprio que corresponde, materialmente, a um caso
agravado de abuso de confiança.
Deve entender-se, seguindo a doutrina de Eduardo Correia (1960: 38-39), que a
intenção de restituir – estando o agente seguro de que restituirá a coisa recebida, no prazo e
nas condições devidas – exclui o dolo de apropriação e, por consequência, o tipo
subjectivo do crime de abuso de confiança.

IV – As formas especiais do crime

1. Tentativa

No art. 300º da versão original do CP de 1982, a punibilidade da tentativa não estava


expressamente prevista como agora está no nº 2 do art. 205º - mas, não houve aqui
qualquer alteração de regime, apenas foi necessário fazê-lo devido à alteração do limite da
pena máxima da pena aplicável ao crime consumado no art. 23º (de 2 para 3 anos).

2. Comparticipação

Para analisar as eventuais situações de comparticipação no crime de abuso de


confiança, Figueiredo Dias (1999: 109) defende que deve ter-se em conta que este crime
pressupõe a prévia entrega da coisa ao agente, por isso, só poderá ser qualificado como co-
autor aquele que, para além do domínio do facto, já era co-detentor antes da apropriação.
Luís Osório (1925: 263-264), referindo-se ao art. 453º do CP de 1886, defende a posição
contrária, pois entende que podem ser co-autores deste crime aqueles a quem a coisa não
foi entregue. Contudo, os exemplos apresentados não são muito felizes, pois

26
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

consubstanciam em todas as situações crimes de receptação, como por exemplo, no caso


em que, sendo o acto de apropriação a venda da coisa, o comprador sabe do descaminho.
Parece fazer mais sentido a posição de Figueiredo Dias, ponderando também o bem
jurídico tutelado por este crime: não só a propriedade, mas também a relação de confiança
existente entre o agente e o proprietário da coisa ou com a coisa em si. Poderá ser autor
deste crime, então, apenas quem puder pôr este bem jurídico em causa.

3. Concurso

Já algo foi dito em relação à possibilidade de concurso entre o crime de abuso de


confiança e os crimes de furto e receptação16.
Quanto a saber se poderá verificar-se um concurso entre os crimes de abuso de
confiança e infidelidade (art. 224º), é fulcral o facto de este pressupor a inexistência de
apropriação, o que leva Figueiredo Dias (1999: 109) a defender que entre estes dois crimes
há uma relação de alternatividade – não podem estar preenchidos em simultâneo, tendo em
conta aquele elemento do tipo objectivo. Taipa de Carvalho (1999: 371) também rejeita a
possibilidade de concurso efectivo entre estes dois crimes, defendendo que há aqui uma
relação de subsidiariedade.
Uma outra possibilidade a considerar é a da existência de concurso com o crime de
falsificação, que consistirá, na maioria dos casos, num concurso aparente, pois a realização
do crime de abuso de confiança implica, muitas vezes, a realização do crime de
falsificação – há uma relação de consunção entre estes dois crimes, sendo o segundo um
meio de cometimento do primeiro crime.
Figueiredo Dias (1999: 109) refere ainda que poderá existir concurso efectivo entre
abuso de confiança e crimes como o de violação de segredo de correspondência (art. 384º).
Mas, sendo este um crime cometido por funcionário, será mais correcto falar na
possibilidade de concurso (efectivo ou aparente) com o crime de peculato (art. 375º).

V – O abuso de confiança qualificado

16
V. Supra II.2.b), p. 16.

27
Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

Nos termos do art. 205º, nº 4, o crime de abuso de confiança pode constituir um crime
qualificado em função do valor da coisa apropriada, seguindo o esquema de dois níveis de
agravação do furto: se a coisa tiver um “valor elevado” (al. a) ou “consideravelmente
elevado” (al. b) – atendendo ao art. 202º. O art. 300º, nº 2, al. a), da versão original do CP
de 1982, só previa um tipo agravado – no caso de o prejuízo não ser reparado até ser
instaurado o procedimento criminal e a coisa ter um valor consideravelmente elevado.
O nº 5 do art. 205º prevê também como agravante a circunstância de o agente ter
“recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão,
ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial”, que já constava do anterior art.
300º, nº 2, al. b).
Esta agravação tem como fundamento o facto de, nestas situações, como afirma
Figueiredo Dias, existir uma “especialíssima relação de fidúcia intercedente entre o agente
e a coisa, que cria para aquele um especialíssimo dever de garantir a não apropriação
desta” (1999: 110-111).
Todavia, não se pode acompanhar este autor quando afirma ser necessário, para fazer
funcionar a circunstância agravante, que a coisa seja confiada ao agente a título de depósito
imposto por lei (1999: 111). Com efeito, na Reforma de 1995, introduziu-se uma vírgula a
seguir a “em razão do ofício, emprego ou profissão”, o que permite separar a última parte
do tipo da referência ao depósito imposto pela lei, que assim só se refere ao primeiro grupo
de situações. Esta é a opinião de Leones Dantas (1998: 523-524), que chama a atenção
para que seria contraproducente exigir que a coisa fosse entregue ao tutor, curador ou
depositário judicial em depósito imposto por lei para que funcionasse a agravação. A
agravação deve subsistir mesmo nos casos em que o depósito não é imposto por lei, tendo
em conta o estatuto de quem a recebe.

Por último, existem dois crimes específicos impróprios que correspondem,


materialmente, a casos agravados de abuso de confiança: a apropriação ilegítima (art. 234º)
– correspondente ao nº 3 do art. 300º do texto de 1982, que foi suprimido em 1995 – e o
peculato (art. 375º). Mas, sendo este último um abuso de confiança agravado devido à
qualidade de funcionário do agente, não haverá uma sobreposição desta norma com a do
art. 205º, nº 5, em que se prevê também um abuso de confiança agravado cometido quanto
a coisa recebida em razão das funções? Por exemplo, um depositário judicial, referido

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

expressamente no nº 5, é funcionário para efeitos penais – participa “no desempenho de


uma actividade compreendida na função (...) jurisdicional” (art. 386º, nº 1, al. c).
Esta questão foi levantada por Cavaleiro de Ferreira (1989/90: 244-247) que,
suportando-se na solução do CP de 1886, defende que haverá crime de peculato, se a coisa
for entregue para fim ou uso determinado que caiba nas funções do funcionário e em cujo
exercício foi cometido o abuso de confiança; haverá crime de abuso de confiança, se a
coisa for entregue ao funcionário para fim ou uso determinado que não respeite
directamente ao exercício das suas funções.

Ainda no plano das agravantes do abuso de confiança, importa considerar uma


observação de Teresa Beleza (Beleza/Costa Pinto, 1998: 74), que defende a aplicação
analógica dos nºs 3 e 4 do art. 204º ao abuso de confiança, posto que são soluções
racionalizadoras que se justificam nas duas situações típicas, com os mesmos fundamentos
e objectivos.

VI – A pena

A pena para o caso de abuso de confiança simples é de prisão até 3 anos ou multa
alternativa (art. 205º, nº 1), o que se mantém desde o texto original de 1982. Só o abuso de
confiança de valor elevado constitui uma novidade relativamente ao anterior art. 300º,
sendo a pena aplicável a prisão até 5 anos ou multa até 600 dias (art. 205º, nº 4, al. a). Para
os casos de abuso de confiança qualificado em função de valor consideravelmente elevado
ou da especificidade do título da entrega, a pena correspondente será de 1 a 8 anos de
prisão, sem possibilidade de ser aplicada pena de multa (art. 205º, nºs 4, al. b), e 5) – trata-
se de uma moldura penal demasiadamente ampla, que merece a crítica da doutrina,
designadamente de Teresa Beleza (Beleza/Costa Pinto, 1998: 72) que questiona a sua
compatibilidade com o princípio da legalidade.

No texto de 1982, o art. 300º, nº 2, al. a) previa como agravante a não restituição ou
reparação do prejuízo, até ser instaurado o procedimento criminal, no caso de apropriação
de coisa de valor consideravelmente elevado. Essa agravante foi suprimida pelo legislador
de 1995. Agora, o regime da restituição ou reparação (art. 206º) funciona de uma maneira

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

diferente: se a coisa apropriada for restituída ou o prejuízo integralmente reparado, até ao


início da audiência de julgamento em 1ª instância, a pena é especialmente atenuada – em
vez de dar lugar à redução de metade da pena, como acontecia antes de 1995.

VII – O procedimento criminal

A partir de 1995, o crime de abuso de confiança simples é um crime semi-público, cujo


procedimento criminal depende de queixa, podendo mesmo passar a ter a natureza
particular nos casos do art. 207º. Aquela é uma alteração que está em harmonia, como
realça Costa Pinto (Beleza/Costa Pinto, 1998: 18), com a deslocação sistemática dos
crimes patrimoniais para o título subsequente aos crimes contra as pessoas, evidenciando a
concepção personalista de património, hoje plasmada na lei penal.
Este aspecto, relacionado com o facto de a pena de prisão ser apenas de 3 anos, indicia
que a valoração negativa deste crime não é muito grave no Código Penal; por outro lado, o
facto de a tentativa ser punível, demonstra como é notória a “mão pesada” do legislador
penal em relação aos crimes contra o património.

Conclusões

1. O bem jurídico protegido pela incriminação do abuso de confiança é a propriedade e


também a relação de confiança que intercede entre o agente e o proprietário da coisa ou
entre o agente e a própria coisa.

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

2. O objecto da acção no crime de abuso de confiança é uma coisa móvel alheia: “coisa” –
conceito normativo e funcional – toda a realidade que possa ser objecto da acção típica
(apropriação); “móvel” – afastamento do conceito civilístico – coisa que seja susceptível
de ser deslocada espacialmente; “alheia” – toda a realidade de que o agente não pode
dispor legitimamente. Estando em causa a protecção da propriedade privada, esta não deve
estar dependente do valor patrimonial da coisa.

3. A conduta típica no crime de abuso de confiança consiste em o agente se apropriar


ilegitimamente de coisa que lhe tenha sido entregue por título não translativo da
propriedade.

4. No momento da apropriação, o agente tem um “livre poder de facto sobre a coisa” que
lhe foi entregue, pelo proprietário ou por um terceiro detentor, sendo que esta entrega pode
não consistir num acto material. A entrega deve implicar a afectação da coisa a uma
finalidade determinada ou a sua oneração à obrigação de restituir.

5. O crime de abuso de confiança pode ocorrer nos casos de entrega/recebimento ilícitos.


Há, no entanto, que ponderar eventuais situações de concurso aparente com o furto – não se
verificando o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança – e situações em que está
preenchido o crime de receptação.

6. Para haver abuso de confiança, é necessário que a coisa tenha sido entregue ao agente
“por título não translativo da propriedade” – necessidade de recurso ao direito civil.

7. O crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente, que recebeu a coisa por
título não translativo da propriedade e para um fim determinado, dela se apropria, actuando
como se a coisa fosse sua – adoptando comportamentos concludentes do animus rem sibi
habendi.
8. Para estar preenchido o tipo objectivo de ilícito, é ainda necessário que a apropriação
seja ilegítima – esteja em “contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade”.

9. O tipo subjectivo de ilícito no abuso de confiança é apenas o dolo.

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Do Crime de Abuso de Confiança: Algumas Reflexões

10. A tentativa é sempre punível.

11. O crime de abuso de confiança pressupõe a prévia entrega da coisa ao autor – só


poderá ser qualificado como co-autor aquele que, para além do domínio do facto, já era co-
detentor antes da apropriação.

12. Entre o abuso de confiança e a infidelidade pode reconhecer-se uma relação de


alternatividade ou de subsidiariedade. Frequentemente, verifica-se um concurso aparente –
consunção – entre o abuso de confiança e a falsificação.

13. O crime de abuso de confiança pode constituir um crime qualificado em função de dois
tipos de circunstâncias: em função do valor elevado ou consideravelmente elevado da
coisa; e em função da especificidade do título de recebimento. A apropriação ilegítima e o
peculato são dois crimes específicos impróprios que correspondem, materialmente, a casos
agravados de abuso de confiança.

14. A pena para o abuso de confiança simples é de prisão até 3 anos ou multa; para o abuso
de confiança de valor elevado é de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias; e para o abuso
de confiança qualificado, em função do valor consideravelmente elevado ou da
especificidade do título da entrega, é de prisão de 1 a 8 anos. Estas penas podem ser
especialmente atenuadas no caso de restituição ou reparação, nos termos do art. 206º.

15. O crime de abuso de confiança simples é um crime semi-público; nos casos do art.
207º, passa a ter natureza particular.

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