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Salvador
2007
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Para:
Dan e Carol, filhos muito amados, que, ao lado do teatro, dão sentido a minha vida...
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AGRADECIMENTOS
A meus pais amados, Henri e Viviane, pelo exemplo, apoio e acolhida. Sempre. Aos meus
queridos irmãos, cunhados, sobrinhos, ao avô Zuza e à querida tia Graça... É bom contar com
a família! À minha avó Ciquinha (in memoriam), pela inspiração para compor a personagem...
Aos meus talentosos e generosos parceiros de criação André Amaro, Lupa Marques e Malu
Fragoso, que acreditaram no projeto e me ajudaram a criar o espetáculo Traços. Ao André um
agradecimento especial, por dividir comigo essa história, em todos os aspectos!
À Professora Drª. Ciane Fernandes, orientadora e inspiradora, pela confiança e pelos toques
certeiros. À sempre mestra, amiga, confidente e comadre Professora Drª. Maria Beatriz de
Medeiros, por ser tudo isso e mais um pouco! Ao Professor Dr. Fernando Villar, pela atenção,
generosidade e dicas preciosas tanto na qualificação, como em outros momentos críticos,
desde a minha graduação. Ao Professor Dr. Fernando Passos cuja colaboração foi precisa,
intensa e gentil em minha qualificação. Ao Professor Dr. Edvaldo Passos, que se dispôs a ler
o trabalho mesmo após a qualificação, e ainda antes da defesa, pelas sugestões e
encorajamento. À professora Drª Antônia Pereira por contribuir com minha pesquisa, tanto
participando de minha banca, quanto me apoiando com a apresentação de Traços em
Salvador, como coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes Cênica - PPGAC.
Ao PPGAC, da Universidade Federal da Bahia, especialmente nas pessoas dos coordenadores
(ou ex) Sérgio Farias, Lia Rodrigues, Antônia Pereira e Sônia Rangel. A cada um de vocês
sou muito grata pelo apoio, acolhida, trocas e por tudo! À Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior – CAPES, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico - CNPq, ao Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. À
Fundação Nacional de Arte - FUNARTE – que me concedeu o Prêmio Myriam Muniz, com o
qual foi possível montar o espetáculo, ao Teatro Castro Alves e ao Teatro Caleidoscópio, a
todas essas instituições pelos apoios imprescindíveis em diferentes momentos da pesquisa.
Aos professores e funcionários do PPGAC/UFBA e do CEN/UnB pelas incontáveis
contribuições. Aos meus alunos da UFBA e da UnB, pela confiança, pela entrega e pelo
retorno. Aos colegas do PPGAC, com quem dialoguei sobre as conjecturas que se proliferam
tese adentro, em especial às colaborações de Paula Vilas, Makários Barbosa, Hector Briones,
Cássia Lopes, Jacyan Castilho, Márcia Virgínia, Fábio Vidal, Érico José, Meran Vargens,
entre outros. Às colegas Mônica Mello e Joyce Aglae, muito obrigada por me confiarem sua
cuidadosa tradução de “Uma canoa a Deriva?”, de Patrice Pavis, antes de sua publicação.
Ao Ernani Franklin, praticante e estudioso de chi kung, e à Viviane Aronowicz, minha mãe,
com quem aprendi tantas coisas sobre as matrizes taoístas que alimentam essa tese. À Suzana
Curi, minha irmã e designer, por suas ótimas idéias gráficas, e pela execução das mesmas.
Aos meus grandes amigos Fabrício Santos, que fez a tradução de Traços para o espanhol, e
Cléria Costa, responsável pela tradução do resumo.
Aos grupos de pesquisa em arte que integrei ao longo da vida, onde muito aprendi sobre arte e
relações humanas: A Tribo Atrito, Corpos Informáticos, As Virgens de Capricórnio, Cia.
Piramundo.
Ao Del, pai de meus filhos, por compartilhar comigo essa experiência. Ao Beto, pela parceria
e cumplicidade nos últimos anos. Ao Fernando, por colorir meus dias nessa reta final.
Aos meus filhos tão amados, pela compreensão e paciência que desde cedo tiveram que ter. E
por me ensinarem tanto, tanto, tanto!
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O coração é selvagem e tem rasgos por onde entra o mundo de fora... O mundo de fora que
entra dentro do coração selvagem de Clarice é apenas alimento para seu mundo de dentro
mandar pra fora o que ela tem dentro e nesse jogo labiríntico de fora e dentro ela cria sua
fantasia e a traduz em sentimentos que transforma em palavras e escreve com os seus dedos
ardendo numa delicada máquina de escrever.
RESUMO
A conjectura que moveu esta investigação foi a de que certas matrizes taoístas podem
funcionar, em trânsito com a corporeidade do artista, como sugestivas fontes de alimentação
criativa, sendo potencialmente fomentadoras de construções expressivas com vocação
polissêmica. E ainda, que estas matrizes, assim como a arte, podem fornecer princípios
eficazes no processo de regulação corporal-energética – enquanto meios de alcançar estados
de equilíbrio transitório - apoiando a busca de uma conduta ético-estética, como estratégia de
ação micro-política. Para chegar à confirmação dessas proposições foram percorridas duas
etapas de pesquisa prática, interagindo com a investigação teórica. Estas foram cartografadas
e analisadas com instrumentos emprestados da etnometodologia: relatos, questionários,
depoimentos, observação. As matrizes com as quais operamos estão inscritas em práticas e no
imaginário taoísta – treinos de chi kung, figuras ligadas ao I ching, aos emblemas yin yang e
ao wu hsing. Além dessas matrizes, certas noções que animam esse saber – como wu wei, te,
tao e chi – foram escrutadas. Para lidar com essas idéias pouco íntimas ao nosso lugar –
ocidente contemporâneo – buscou-se apoio especialmente em construtos da epistemologia
pós-estruturalista, e em alguns baluartes do teatro. O diálogo com essa fonte exigiu premissas
responsáveis no tratamento com esse outro. Para evitar os lugares etnocêntricos de
deslumbramento, de mistificação, de exotização ou de intolerância, por exemplo, a lida com
essas matrizes foi descortinada a partir de minha própria condição - mulher ocidental
contemporânea - nem detentora, nem transmissora dessa tradição. Na fronteira entre minha
leitura desse recorte de saberes e fazeres, de meu corpo de atriz-professora-pesquisadora, de
minhas referências cênicas e filosóficas, se instalou um espaço mestiço, singular, propício à
invenção, com vocação para heterogênese. O Anel de Moebius - cujos princípios de
reciprocidade, inter-transformação e interdependência entre faces desta configuração pareada,
se articulam a propriedades dos emblemas yin yang - norteou várias reflexões neste estudo.
Dentre elas, a revisão dos modelos dicotômicos ocidentais – hierárquicos e excludentes – pela
compreensão de outro tipo de dinâmica possível entre duplos - da ordem da ambivalência, do
fluxo e do desdobramento, tal qual a que anima os contrastes yin yang. A pesquisa sobre a
expressividade produzida entre o teatro e as matrizes taoístas, se deu sob diferentes vieses,
tanto em âmbito prático, quanto teórico, sempre em retro alimentação, como no Anel de
Moebius. Numa etapa prática inicial, foi ministrada, por mim, a disciplina Técnica de corpo
para a cena III, junto à Escola de Teatro da UFBA. Nesta fase a investigação se voltou aos
aspectos pedagógicos de experimentação, por parte dos alunos, da própria expressividade,
sem vínculo com um produto final. Neste momento foram experimentados princípios do chi
kung, do I ching e de dinâmicas yin yang, enquanto instigadores do processo criativo. Na
segunda etapa prática o enfoque se voltou à aplicabilidade, na cena propriamente, do material
expressivo produzido na fronteira entre o tao, o meu corpo de atriz, as contribuições dos
outros artistas envolvidos no processo, e nossa fonte textual – contos de Ana Miranda. Assim
chegamos ao espetáculo Traços ou Quando os alicerces vergam. Ainda nos espaços
intersticiais entre a corporeidade, o teatro, o tao e algumas noções filosóficas, foram desfiadas
reflexões sobre o estatuto do corpo no zeitgeist atual, sobre certas tendências da cena
contemporânea, sobre a noção de expressividade – articulada à de impressividade – e sobre a
idéia de uma eficácia do vazio – ou do vazio como re-curso.
ABSTRACT
The context from which this investigation arose was that some Taoist matrixes can work,
transient with the artist’s corporality, as suggestive sources of creative feeding become
potentially fostering of expressive constructions with polysemous vocation. Thus, these
matrixes, as art itself, can supply efficacious principles to the process of energetic-corporal
regulation – as means to reach transient states of equilibrium – giving support to the search of
an ethic-aesthetic behavior as strategy of micro-political action. To reach the confirmation of
those propositions, two stages of practical research were explored along with the theoretic
investigation. Those were cartographed and analyzed as instruments borrowed from ethno
methodology: reports, questionnaires, declarations, observation. The matrixes with which we
operated are inscribed in practices of the Taoist imaginary – practices of chi kung, figures
linked to I ching, to the emblems yin yang and to wu hsing. Besides these matrixes, certain
notions that animate this knowledge such as wu wei, te, tao and chi were scrutinized. To deal
with these ideas – not intimate to our western origin – we searched for support especially in
constructs of the post-structuralism epistemology and in some bastions of the theater. The
dialogue with this source asked for premises responsible for dealing with the other. To avoid
the ethnocentric astonishing places of mystification, turning exotic or of intoleranble, for
example, the struggle with the matrixes was disclosed from my own condition – western
contemporary woman who is neither owner nor transmitter of this tradition. On the boundary
between my reading of this interposal of knowledge and action, of my actress-professor-
researcher body, of my scenic and philosophical references, a mixed, singular space was
installed, proper to invention and with vocation to heterogeneity. The image of
Moebius’ring- whose principles of reciprocity, inter-transformation and inter-dependency
between faces of this paired configuration – articulates the proprieties of the emblems yin
yang and directed various reflections on this study. Amongst them, the revision of the
dichotomist western models – hierarchical and excluding – was exchanged by the
comprehension of other type of dynamics than the couples: the order of ambivalence, the flux
of refolding such as those which animates the contrasts yin yang. The research about the
expression produced between theater and the Taoist matrixes happened askance in a practical
way, on one hand, and in a theoretic, on the other, always in retro feeding, as in Moebius’
ring. In the beginning stage, I taught the discipline “Technique of the body for Scene III” at
the School of Drama in the Federal University of Bahia (UFBA). During this stage, the
students turned the investigation to the pedagogical aspects of the experimentation of their
own expressiveness, with no aims at the final product. During this stage, principles of chi
kung, I ching and dynamics of yin yang were experimented as instigators of the creative
process. At the second stage, the focus turned to its applicability to the scene itself: the
expressive material produced at the boundary between the Tao, my body as actress, the
contribution of other actors involved in the process and our text source: short stories by Ana
Miranda. Finally, we came to the play “Traces or When the foundations rocked” (Traços ou
Quando os alicerces vergam) . Still in the interstitial spaces between corporeity, theater, Tao
and some philosophical notions, some reflections about the statute of the body in current
zeitgeist were made: tendencies of contemporary scene, notion of expressiveness – articulated
to impressiveness – and about the idea of an efficiency of emptiness – or emptiness as a re-
source.
SUMÁRIO
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LISTA DE FIGURAS
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INTRODUÇÃO
36
1. MATRIZES TAOÍSTAS
36
1.1. Atualizando noções taoístas
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1.2. Conhecendo as matrizes
47
1.2.a. Yin yang
56
1.2.b. I ching
61
1.2.c. Wu hsing
66
1.2.d. Chi kung.
77
2. MATRIZES CÊNICAS
79
2.1. Tendências afins
93
2.2. Antonin Artaud
100
2.3. Eugênio Barba
114
3. CORPO: MAPA E CARTÓGRAFO
115
3.1. Do dilema ao diálogo
121
3.2. Por um novo estatuto do corpo
126
3.3. Corpo vibrátil. Corpo sutil
129
4. O CORPO EM EXERCÍCIO EXPRESSIVO
129
4.1. Estratégias de conduta
135
4.2. Exercício impresssivo-expressivo
142
5. O VAZIO EM RE-CURSO
143
5.1. Idéias do (v)entre
148
5.2. Re-curso vazio
158
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ANEXOS: 255
A. Sobre a disciplina 255
A.1. Diário de aulas 287
A.2. Criação textual 302
A.3. Questionários 313
B. Sobre o espetáculo 313
B.1. Ficha técnica 313
B.2. Diário de bordo 324
B.3. Dramaturgia 350
B.4. Traços por André Amaro
B.5. DVD com filmagem de Traços ou Quando os alicerces vergam
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LISTA DE IMAGENS
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa parece tangenciar, então, uma zona complexa, já que ações fronteiriças
são por um lado potentes, com vocação inventiva, e por outro, perigosas, podendo apresentar
tendências invasivas e violadoras. Assim, afirmamos não almejar nem o lugar de
colonizadora, nem o de colonizada, mas sim o topos da reinvenção, que deseja ultrapassar
essa dicotomia. O objetivo desse estudo foi o de instalar espaços de diálogo criativo entre o
corpo, a cena e princípios capturados no universo taoísta, de origem chinesa. Nossa
proposição é a de que essa fonte – em nosso recorte algumas matrizes ligadas à sabedoria
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taoísta – apresenta instigantes princípios, com os quais nos interessou interagir em pelo menos
três níveis.
Mas afinal o que é ocidente e oriente? Terá coerência colocar sob a mesma égide, por
um lado a América do Sul, os Estados Unidos, parte da África e da Europa, e por outro a
China, o Japão, a Índia, Israel, o Iraque e a Síria, por exemplo? Ainda que o presente estudo
trilhe por outras vias, cumpre dizer que o que é usualmente designado oriente não é,
absolutamente, um bloco coeso, assim como também não o é o ocidente. A generalidade dessa
terminologia parece ser fruto de um misto de ignorância e interesses econômicos, e gera uma
série de problemas.
Noção que ususalmente designa um conjuto histórico e cultural que seria composto
pelas sociedade não ocidentais, ou alheias a uma herança eurocêntrica – e hoje também
estadunidense - o termo “orientalismo” representa, sem distinções, um vasto e diversificado
1
Veremos adiante que, dentro da sabedoria taoísta, prática e teoria estão articuladas dinamicamente, tornando até
questionável o uso dessa terminologia. Entretanto apenas para fins de esclarecimento usei o termo teórico aqui,
se referindo ao conjunto de idéias e noções da tradição. Estas, ainda que totalmente em interação com os outros
âmbitos desse saber, constituem um campo com princípios específicos, assim como o campo do imaginário –
mítico ou simbólico -, ou mesmo o campo das práticas propriamente – procedimentos como massagens, treinos,
meditações, etc.
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Lembrando que, aqui, o conceito tem vínculo com o real concreto, não se restringe à pura abstração.
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grupo de civilizações. Entretanto, o que poderia parecer inofensivo a um olhar desatento, foi
denunciado pelo palestino Edward Said, entre outros pensadores, em um dos mais
emblemáticos escritos produzidos pelos chamados estudos culturais. Em Orientalismo: o
oriente como invenção do ocidente, ele percebe essa idéia como uma construção ideológica
que contribuiu na deturpação da imagem do oriente como o perigoso, o exótico, o misterioso.
Segundo Said, a noção de orientalismo teria sido forjada por uma demanda imperialista, “para
negociar com o oriente fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele,
descrevendo-o e colonizando-o” (1990).
Para desconstruir essa abstração teórica, Said articula a idéia de que ocidente e oriente
não são reais, factuais, mas convenções geográficas, culturais e históricas. E que as áreas
alocadas dentro dessas denominações não são uniformes entre si, nem, tampouco,
personificam dois blocos em oposição dicotômica. Said vê em obras de autores como
Homero, Flaubert, Kipling, entre vários outros, descrições fantasiosas que contribuíram para a
idealização de um oriente misterioso e romântico. E analisa como estas idéias, talvez em
princípio ingênuas e inofensivas, alimentaram e foram alimentadas pelo imperialismo e
etnocentrismo ocidental. Em um estudo bastante aprofundado, a visão de um oriente exótico é
desconstruída por Said e entendida como forjada por um ocidente colonizador que precisou
interpretar - ou criar - e extratificar detrminadas diferenças identitárias que garantissem seus
interesses políticos e econômicos, em última instância.
Ao desvendar a construção do Oriente como uma entidade abstrata, Said destaca o caráter
totalitário e essencialista desta construção. E de modo algum pretende construir um outro
conceito de Oriente (nem muito menos um outro Ocidente), em substituição. Sua intenção é se
insurgir contra esta forma de pensamento totalitário, que toma conjuntos humanos distintos,
complexos, heterogêneos, formados por países, povos, e nações históricas individualizadas e
procura lidar com eles na forma de uma totalidade homogênea. Para Said, não existe uma
essência do Oriente assim como, também, não existe uma essência do Ocidente. Estas
construções serviram para mascarar uma relação desigual que marcou historicamente o
relacionamento entre alguns países da Europa “adiantada” com países da periferia do
capitalismo (2003).
Entretanto, talvez possamos dizer que algumas diferenças culturais em relação ao dito
ocidente, ligadas em geral a tradições milenares em grande parte ainda presentes, influentes, e
atualizadas ao longo dos séculos, oferecem algum parentesco de fundo entre os países ditos
orientais. Mesmo na maior parte das Américas, por exemplo, são mais parcos os indícios das
tradições ancestrais, ou a presença deles no cotidiano das pessoas. Esse viés talvez possa
ajudar a entender o fascínio e ao mesmo tempo o repúdio e a intolerância que o oriente
desperta.
Como vimos, pensar e trabalhar o encontro com o outro oriental como algo que aponte
para uma uniformização entre as culturas é o vetor que tem sido responsável por grande parte
das mazelas no mundo. Particularmente, o viés que nos mobiliza é aquele que percebe esses
encontros entre diferenças como propulsores de novas e singulares configurações ético-
estéticas. Investigações artísticas e filosóficas nessas fronteiras transculturais podem ser uma
forma de migrarmos de perspectivas dicotômicas, como esta oriente-ocidente, dentre outros
tantos dualismos excludentes, para novos agenciamentos, heterogêneses, ambivalência em
contínuo movimento. Como salienta o indiano Homi Bhabha, seria no entre – lugar intervalar
– “onde a diferença não é nem o Um, nem o Outro” (2005:301), que se descortinaria um
futuro intersticial, emergente no entre-meio entre as exigências do passado – que não é
originário – e as necessidades do presente – que não é simplesmente transitório: um futuro
que se torna uma “questão aberta, em vez de ser especificado pela fixidez do passado”
(2005:301).
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4
A República Popular da China foi fundada em 1 de Outubro de 1949 por Mao Tsé-Tung. Para informações
genéricas sobre o maoísmo, a revolução chinesa, a revolução cultural e outros aspectos históricos da China no
século XX recomendamos consulta aos seguintes sites. Neles, além de textos, há indicação bibliográfica
adequada para aprofundamento no assunto:
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/china_11.htm http://pt.wikipedia.org/wiki/Rep
%C3%BAblica_Popular_da_China#Cultura.
http://www.terra.com.br/cgi-bin/index_frame/vizentini/artigos/artigo_11.htm.
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Aqui estamos nos referindo à história recente do planeta, desconsiderando outros momentos históricos de
apogeu da região e de seus povos.
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Ainda que nosso objeto de pesquisa não passe por analisar a cultura ou o regime
político chinês e suas consequências sociais e econômicas, e nem por propôr uma análise
histórica sobre o país, entendemos que seja importante destacar esses pontos de tensão.
Inclusive para que não se pense que o presente estudo configura uma apologia acrítica e
indiscriminada sobre o conjunto de saberes e fazeres daquele país. Temos ciência das
inúmeras e importantes contradições vividas na China hoje, e historicamente. Aliás, não só na
China, mas em inúmeros países do chamado oriente. Não se trata de imaginar que há pura e
simplesmente uma relação extratificada e dicotômica entre os opressores ocidentais e os
oprimidos orientais. Com Brecht, sabemos que essas relações são sempre complexas,
dialéticas e históricas. Também com Brecht, sabemos que não são nem inevitáveis, nem
imutáveis. Assim, não cairemos aqui no idealismo oriental ingênuo e apenas aparentemente
apolítico denunciado por Said.
O taoísmo é uma tradição de cunho filosófico e religioso, que exerce forte influência
não somente na China, mas em todo extremo oriente e, cada vez mais, em outras regiões.
Trata-se de uma tradição trimilenar com ressonâncias em várias áreas - médica, política,
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religiosa, social e cultural, o que já aponta para sua versatilidade, abrangência e consistência.
Nosso propósito não foi um mergulho dogmático no taoísmo ortodoxo. Tomamos
emprestados da sabedoria taoísta algumas práticas e aspectos de seu universo simbólico, como
propulsores dos trabalhos criativos desenvolvidos.
O encontro com essa matéria requereu um recorte. Por um lado trouxemos o estudo de
algumas noções da sabedoria chinesa ancestral, e as relacionamos a conceitos e idéias da
filosofia contemporânea. Por outro, aplicamos princípios norteadores desse universo taoísta a
processos criativos em teatro. Os princípios utilizados na pesquisa cênica foram as dinâmicas
entre os contrastes yin yang, a relação das cinco energias em wu hsing, os aspectos
arquetípicos dos trigramas do I ching e algumas práticas meditativas do chi kung.
Manifestações espetaculares ou movimentos artísticos da China não serão contemplados nessa
investigação. Nosso foco, aqui, não são técnicas corporais específicas, como as da Ópera de
Pequim ou das Danças Populares Chinesas, mas matrizes do sistema de pensamento chinês e
seus encontros, contrastes, tensões e fusões com processos criativos para a cena.
Uma das maiores dificuldades na pesquisa que envolve a cultura chinesa refere-se ao
problema da tradução deste idioma. Por um lado os ideogramas são muito mais complexos em
sentidos do que pode mostrar um único vocábulo, por mais amplo que seja seu significado. A
necessidade de escolha de uma das múltiplas possibilidades de significação de um ideograma
- sempre relativa ao contexto em que é usado - no gesto de traduzir, reduz de forma
importante seu alcance. Para se ter uma idéia da natureza da escrita chinesa, basta dizer que a
leitura de um texto em ideogramas chineses é algo que exige criatividade e atividade intensa
por parte dos leitores, que precisam de certa forma fazer escolhas, perceber os significados
mais latentes de cada ideograma dentro de cada bloco de idéias, para lhes darem voz.
Além disso, a própria construção da sabedoria taoísta se deu por símbolos que
agenciam sentidos entre o imaginário e o filosófico, entre o mítico e o científico, entre o saber
e a práxis, entre a idéia e a conduta. A natureza da elaboração intelectual ocidental
predominante muitas vezes não dá conta desse tipo de articulação, seja por uma questão
estrutural de nossa filosofia - derivada da metafísica ocidental, hierarquizante e excludente -
seja por nosso olhar etnocêntrico, com tendência prepotente, exotizante e universalizante.
Buscando minimizar esses problemas, optamos por manter em chinês, em diversas passagens,
os termos mais importantes para essa pesquisa, e tratar de dar-lhes a maior pluralidade
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Nesse ponto pode-se destacar uma das principais tensões com que nosso estudo se
depara: como articular um sistema de molde estruturalista, como o taoísmo, com questões da
filosofia contemporânea pós-estruturalista? Como agenciar noções a princípio tão díspares
como unidade (ou dualidades) e multiplicidade, centro e descentramento, equilíbrio e
instabilidade, ancestralidade e desconstrução, etc.? Nesse ponto cabe remeter à pesquisadora
Ciane Fernandes, que se coloca questão parecida na introdução de seu estudo sobre Pina
Bausch, resultado de sua tese de doutorado (2000). Ela percebe como disturbador - mais que
complementar - o encontro entre o pós-estruturalismo lacaniano e o estruturalismo do sistema
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Laban de análise de movimento (LMA), mas nem por isso se furta ao confronto. Fernandes
entende que “dentro do Anel de Moebius, LMA e a cadeia significante de Lacan se desafiam e
se redefinem, numa constante busca pela linguagem da dança” (2000:36).
O Anel de Moebius, ou lemniscate, ou ainda a figura oito, nos foi apresentado por
Ciane Fernandes, e orientará nossa perspectiva de análise e de criação.
O anel é criado pela junção de duas extremidades invertidas de uma faixa, cujas faces
passam a ser simultaneamente internas e externas (Fernandes, 2000:34). A dinâmica
implicada nessa figura é de tal ordem que os limites entre os pólos de uma dupla original (fora
e dentro, ou lado A e lado B) se diluem até borrar a própria idéia de dualidade. Assim, a partir
de um par-parâmetro se multiplicam configurações e se descortinam noções como
reversibilidade, transformação, interdependência. Estas são, ainda, similares às propriedades
que descreveremos, oportunamente, das dinâmicas yin yang, uma de nossas matrizes taoístas.
Mais que um jogo divinatório, essa obra tem sido estudada como um tratado de
situações humanas arquetípicas, a ser consultado por meio de instrumentos como varetas ou
moedas. Além disso, é considerada como uma das mais importantes fontes da genealogia do
pensamento chinês. É no I ching que se observam também as primeiras referências à idéia de
yin yang, inicialmente ligadas a um par de linhas mestras. A yang, representada por um traço
contínuo (_____) e a yin, simbolizada por uma linha cortada (__ __), significavam, na versão
mais remota do jogo, sim e não respectivamente. Posteriormente as respostas foram se
tornando mais complexas, com duas, três, até chegar às seis linhas que formam os hexagramas
como hoje os conhecemos. Cada hexagrama é composto por um par de trigramas, que,
combinados, simbolizam uma determinada situação humana. Os oito trigramas, ou ba gua,
são compostos por um conjunto de símbolos que remetem a um determinado arquétipo, como
será mostrado no capítulo seguinte.
Outra obra à qual estão atribuídas bases do taoísmo é o Tao-te-ching, cuja tradução
mais corrente seria “Tratado do caminho e da virtude”. Trata-se de uma espécie de escritura
sagrada e poética, cujos provérbios vêm inspirando religiões e pensamentos há cerca de 2600
anos. É interessante observar que Lao-Tsé, autor do Tao-te-ching, é praticamente
contemporâneo ao grego Heráclito, cujas proposições têm pontos em comum com o taoísmo.
Heráclito também partilhava da noção de fluxo constante e ciclos de mudança, como motores
do universo e suas manifestações. Assim ele abordou o problema da unidade permanente do
ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. O filósofo
chegou à compreensão de que apreensões duais do mundo não deveriam denotar oposições
estanques, mas revelar a dinâmica não hierárquica entre aspectos de um mesmo fenômeno.
Esta proposição é bastante afim à que explica os emblemas yin yang, a qual também apresenta
as características de inter-transformação, interação, complementaridade.
Entretanto, o rumo da filosofia ocidental foi ditado, com maior freqüência, pelas idéias
derivadas do pensamento de outros gregos, em especial Sócrates e Platão, com a metafísica
ocidental, onde as oposições binárias vinham acompanhadas de um julgamento hierárquico de
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valor. Isso fixava um pólo do dualismo como a instância a ser superada, e o outro como a
meta. A tradição judaico-cristã e o cartesianismo fortaleceram essa noção e, para usar a
terminologia taoísta, houve, no ocidente, a despeito de algumas investidas esporádicas, uma
notória exaltação de fatores yang em detrimento de aspectos yin.
Este quadro foi (e vem sendo ainda) revisto com maior contundência durante o século
XX, fato que se deve em grande parte a novas descobertas científicas, que têm ajudado a
legitimar esta mudança paradigmática. Albert Einstein, Fritjof Capra, Ilya Prigogine, Antônio
Damásio, Humberto Maturana, Francisco Varela, Richard Dawkins são alguns, entre
inúmeros nomes na área científica, cujas pesquisas vêm colaborando nessa transformação.
Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) descrevem uma forma não logocêntrica de
pensamento e produção de conhecimento. Trata-se de uma lógica não linear, sensível e
cambiante. Eles propõem, como alternativa à lógica convencional - para a qual usam a
metáfora de uma árvore, cuja raiz pivotante indica uma investigação unidirecional, uma lógica
rizomática. Rizomas são organismos vegetais, como a grama, nos quais não se identifica nem
o princípio (origem, raiz) nem o fim (objetivos, copa). “Um rizoma não começa nem conclui
se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (1995:11-37). A imagem
do rizoma, trás a idéia de um encadeamento não rígido de idéias, uma teia de conhecimento
sem finalidades a priori, sem ordem preestabelecida, sem hierarquia, permeada de conexões,
agenciamentos, links, configurações inesperadas, que opera privilegiando o processo e o
percurso cartográficos, e não um produto final.
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O taoísmo traz na perspectiva de wu wei – grosso modo “não ação” ou “agir sem
coagir” - um princípio que contém a noção de devir. A idéia de wu wei é a da espontaneidade,
de deixar-se conduzir pelo ritmo natural da vida, sem forçar os acontecimentos, sem pré-
ocupação, seguindo o fluxo de devires e sem finalidades a priori - só se chega ao tao sem se
tentar chegar ao tao. Esta ênfase no percurso não teleológico, expressa uma das aproximações
da sabedoria chinesa com a noção de rizoma, metáfora de Deleuze e Guattari para uma
perspectiva onde não se identifica, nem privilegia, pontos de partida ou de chegada. A visão
de mundo sistêmica dos chineses tangencia a idéia de rizoma. Em ambas percebemos a
abertura a uma configuração sempre renovada de redes de agenciamentos não hierárquicos.
Podemos considerar como campos de devires (virtuais) tanto o próprio Tratado das
Mutações (ainda que, nesse caso, seja um campo finito) quanto a psique do consulente.
Assim, o modo como se opera uma consulta ao I ching pode ser entendida como uma espécie
de territorialização ou atualização. De certo modo esses princípios também podem ser
percebidos na dinâmica entre as cinco fases e os outros elementos constitutivos da rede, já que
cada um dos aspectos ligados à wu hsing podem apresentar conexões entre si, tornando este
jogo combinatório fundante de uma espécie de campo de devires.
Mesmo pontos que aparentemente tornariam forçada essa aproximação entre noções
do taoísmo e do pós-estruturalismo, podem ganhar um novo olhar, como acontece nas noções
de ordem, essência e unidade, por exemplo. A idéia de uma ordem subjacente ao equilíbrio
dinâmico do mundo, na visão taoísta, pode destoar da noção de rizoma, onde não há ordem
preestabelecida, mas um fluxo não hierárquico nem teleológico de agenciamentos, conexões
inesperadas e linhas de fuga. Talvez seja este um falso paradoxo, gerado pela idéia de ordem
que, para o pensamento ocidental, encerra princípios logocêntricos e enrijecidos, enquanto
para os taoístas é uma noção que envolve transformação e desterritorialização ininterruptas,
adequações e atualizações constantes, ou, para usar um termo corrente entre os adeptos do
taoísmo, regulação.
Para Marcel Granet (1997), por exemplo, a noção de ordem do taoísmo não passa
pelas idéias de lei ou de Deus, nem correspondem a regras dogmáticas ou ortodoxas. Essa
ordem é um princípio de características mutáveis, adaptáveis, fluidas, que, ao mesmo tempo
em que regulam, se moldam às situações e fenômenos. Nesse contexto, ao se fixar em uma
única configuração, essa “ordem” perderia totalmente sua eficácia.
Quer dizer, o termo unidade não parece se referir a um modelo arborescente onde um
centro, hierarquicamente superior, se ramifica, ou para onde tudo converge. Antes, parece
sustentar a imagem de uma força pulverizada, contaminadora, disseminada, concernente a
toda e qualquer vida. Força esta responsável ainda pela interação que se opera entre os corpos,
gerando constantemente novas configurações, mas caracterizando a formação de um elo entre
esses corpos, o que remonta à idéia de unidade. Em outras palavras, o tao é uno e múltiplo. O
que adere a outra perspectiva deleuziana, a do elogio do e, somatório e inclusivo, substituindo
o ou excludente (1995).
No que toca à questão da essência, para os taoístas esta estaria justamente na qualidade
fluídica e dinâmica do universo, e, até por isso, se manifestaria também no jogo das
aparências que tomam os corpos em transformação, na multiplicidade de faces pela qual o tao
se manifesta, se dá a conhecer. Para a filosofia clássica, de um modo geral, essência nos
remete à constância, à imutabilidade e a algo que subjaze à superfície. O antagonismo
deleuziano se refere a esta noção de essência. Parece então que estas também podem ser
contradições forjadas. Por um lado pelas especificidades das linguagens oriental e ocidental,
incluindo as dificuldades de tradução. Por outro, pela insistência de abordagens dicotômicas
por parte do pensamento ocidental, mesmo aquele que, teoricamente, se opõe vigorosamente a
estas.
6
A paralogia como vimos, seria a lógica do paradoxo, ligada à inventividade e ao dissenso, que Jean-François
Lyotard contrapõe à homologia, segundo ele, a lógica consensual dos experts,ou especialistas.
7
Físico francês, fundador e presidente do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares
(CIRET)
25
não é apenas uma “ferramenta para descrever a realidade, mas uma parte constitutiva da
natureza. [...] parte integrante da realidade” (1999:21).
pensar, entender e até construir diferentes níveis de real, pode ser fértil. E aqui vale lembrar
que a visão de mundo sistêmica, a constatação e convivência com paradoxos – ou
ambivalências, tanto na ciência, quanto na filosofia, convive com o modo de pensar chinês há
pelo menos três mil anos.
Vemos com Capra (1986), que no último século, a chamada nova física, constatou
que, no nível subatômico, os elementos são, a um só tempo, destrutíveis e indestrutíveis,
comportam-se ora como ondas e ora como partículas, apresentam, simultaneamente,
materialidade contínua e descontínua, podem estar imprevisivelmente em movimento ou
repouso. Conceitos como tempo e espaço, sempre vistos de forma separada no ocidente,
demandaram uma unificação na física relativística, gerando o espaço-tempo
quadridimensional, que agrega o tempo como a quarta dimensão espacial. E nesse outro plano
de realidade, regido por leis específicas, não é possível lidar com categorias de forma
estanque, faz-se uma névoa que embaça a clara delimitação entre os opostos, inclusive,
segundo Capra, entre que é objeto e o que é processo.
Para Ilya Prigogine, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1977, ser vivo é ser
instável, e só agora a ciência passa a lidar de fato com este dado. Assim, se “a ciência clássica
privilegiava a ordem, a estabilidade, [...] reconhecemos agora o papel primordial das
flutuações e da instabilidade.” (1996:12). Pela constatação de que os sistemas complexos
vivem num estado “longe do equilíbrio”, “assistimos ao surgimento de uma ciência que [...]
nos põe diante da complexidade do mundo real” (1996:14). Certamente nesse longe do
equilíbrio existem “leis” identificáveis, no entanto estas não são estáticas, mas entremeadas
por imprevistos, por eventos que as transcendem e transformam. Esse longe do equilíbrio,
topos de instabilidades de onde brotam paradoxos e dissenso, nos remete claramente à
paralogia de Lyotard (1993).
constante por estados de meta-equilíbrio, por que sabidamente provisórios, faz parte do
pensamento taoísta. A tradição é ancorada em princípios dialéticos, onde ordem e desordem,
por exemplo, estarão sempre vinculadas.
Toda essa reformulação da ciência tem colaborado para a revisão da idéia do oriente e
do(s) conhecimento(s) aí engendrado(s) como algo distante e exótico. György Doczi (1990),
por exemplo, valoriza o oriente e evita reforçar as separações com clichês generalizantes. O
autor defende a idéia segundo a qual a sabedoria, ligada ao oriente, consistiria em juntar,
relacionar, associar, e o conhecimento, característico do ocidente, em separar, fragmentar,
especializar. Doczi não traz a idéia de modo pejorativo, pelo contrário, faz a diferenciação de
modo relacional, identificando e valorizando as diferenças e os pontos em comum, e
entendendo a sabedoria – qualitativa – e o conhecimento – quantitativo – como
complementares, e não excludentes.
Entretanto ainda vemos várias enunciações similares a esta, onde se flagra o fomento
ao dualismo oriente e ocidente, ainda que nem sempre seja essa a intenção do discurso. Esses
discursos, algumas vezes reproduzidos de forma inconsciente, podem trazer conseqüências
políticas negativas. Por exemplo, a recorrente tendência de se referir ao pensamento ocidental
como filosófico, e à gnose chinesa - e outras não eurocêntricas como sabedoria, nem sempre é
tão lisonjeira como parece. Como vimos em Said (1990), um dos principais dogmas do
orientalismo é a absoluta e sistemática diferenciação entre o Ocidente – racional,
desenvolvido, humanitário e superior – e o Oriente – místico, oculto, aberrante,
subdesenvolvido e inferior.
Para alguns sinólogos como Marcel Granet, François Jullien e André Bueno essa
divisão a princípio inofensiva para os chineses, pode camuflar um processo de não
legitimação desse saber. É claro que os meios de construção do saber na China e no ocidente -
leia-se especialmente a tradição filosófica grega e seus desdobramentos - apresentam mesmo
singularidades que os afastam diametralmente, e essa seria uma justificativa para não se
chamar de filosofia a construção intelectual não européia ou daí derivada. Entretanto, o alerta
dos sinólogos é para a escamoteação de um julgamento de valor por trás dessas distinções.
Ou, ainda mais grave, o disfarce em folclorização ou mistificação, gerando a não legitimação
desse saber, como conhecimento de fato. A exotização dessas tradições pode neutralizá-las
politicamente, já que simula um reconhecimento colocando-as, teoricamente, em um lugar de
28
A disciplina e controle a que nossos corpos são sujeitos nesses tempos globalizados
são mais difíceis de identificar. Homogeneização travestida de novos estilos, repressão
vendida como liberdade. Essa dominação sutil, que neutraliza sem violência evidente, através
de cooptação permanente de novos impulsos, desloca nosso potencial inventivo para ações
que interessam à manutenção de um status quo, mascarado de fluídico, de rítmico, de
mutante. A mídia, por exemplo, age sorrateiramente (ou nem tanto) sobre os corpos num
processo de vetorização de desejos, alavancando uma confusão de valores e prioridades que
29
Entendemos que ações em nível micro-político (Guattari e Rolnik, 1996), até por
serem menos evidentes ou explícitas, podem apresentar grande vocação de disseminação e
fortalecimento gradual e efetivo das singularidades. Operar na arquitetura molecular (ordem
dos fluxos e intensidades), reaproximar a idéia de política das noções de ética e desejo,
deslocar, ou somar à retórica nervosa – e muitas vezes estéril - dos palanques e plenários, uma
ação efetiva do corpo, no corpo e entre os corpos, pode ser uma via para proporcionar
resultados políticos mais consistentes. Trazer a fala para o corpo, para a vida, para o dia-a-dia,
fazer com o corpo, e com a arte, uma ação micro-política, poética e sutil: promover uma
articulação político-estética. É tempo talvez de emprestar à política – ou à macro-política - os
instrumentos da estética, e não fazer a arte reproduzir os desgastados e nem sempre eficazes
mecanismos da política convencional – verborrágica, impositiva, generalizante. A ação
poética – via da aisthesis9 - tem vocação para agir sobre corpos – tanto os produtores quanto
os receptores da poética em questão - de modo intenso, por contágio, estimulando-os,
despertando-os e acionando-os em uma percepção mais sensível de si mesmos e do outro.
8
O termo não tem aqui um sentido pejorativo de estratificação. Entendemos resistência aqui, com Suely Rolnik
(2003), enquanto afirmação de singularidade, enquanto mobilização de uma percepção referente a nossas
intenções mais genuínas, reais, próprias, em contraposição às assimiladas por processos globalizantes e
midiáticos, de vampirização e vetorização de desejos.
9
Segundo Maria Beatriz de Medeiros (2005) “Aisthesis quer dizer estética, mas com o sentido grego do termo:
tudo aquilo que toca os sentidos, o sensível; aquilo que é impossível - incompossível - dizer”.
30
respiração, éter, essência, espírito, vapor, coração, sentimentos, emoções, tempero, cuidado,
disposição, sabor, sopro, alma, odores, pneuma, etc. A idéia aqui é trazer esses meios de
manejo de chi para dentro do contexto de preparação do ator, como forma deste investigar e
aprimorar sua organização de chi para a cena e para a vida.
A atração por essas matrizes relacionou-se em grande parte também aos aspectos que
compõem esse imaginário – símbolos, arquétipos, fatores associados em rede, como sabores,
emoções, cores, formas de expressão, etc. -, e as interações dinâmicas entre eles. Tudo isso
pareceu, desde o primeiro contato, constituir fontes de alto poder sugestivo para exploração
em dinâmicas visando à criatividade e à expressividade.
Por outro lado, nos moveu a conjectura de que o trabalho inspirado nessa visão de
mundo, nessa minuciosa e sistêmica estruturação de fatores e eventos, concernentes aos seres
humanos e a toda natureza, possuidora de potencial de energização, harmonização - no
sentido dinâmico que imprimimos ao termo - e profilaxia - conforme mostra sua influência e
atuação abrangentes não só na cultura chinesa, pudesse proporcionar aos atores, além do
estímulo à expressividade, instrumentos para desenvolver propriocepção, re-organização
energética e sensibilização.
10
Espírito de época.
31
A investigação prática sobre a qual se debruçou esta tese foi dividida em duas etapas.
A primeira etapa da pesquisa foi experimentada por atores em formação, a segunda consistiu
na construção de um espetáculo solo onde atuo como atriz.
Nessa primeira etapa o processo foi dividido em quatro fases. Num primeiro momento
a experimentação dos contrastes yin yang norteou as dinâmicas, dirigidas para a
experimentação de parâmetros de movimentos. Em seguida foram os arquétipos ligados aos
trigramas do I ching que fomentaram as aulas, e se voltaram mais para a construção de
estados, ou entidades, como procurei chamar em aula evitando o termo personagem que
poderia gerar construção excessivamente psicológica por parte dos alunos. Na terceira fase,
foram construídos textos poéticos partir de exercícios de escrita solta, por meio de livre
associação em estado de imersão, com estímulos oriundos do I ching. Os materiais escritos
foram confrontados entre si, ainda em estado bruto, e ganharam novas formas. A partir daí,
num último momento, os acervos expressivos gerados no processo criativo foram vasculhados
e atualizados visando à re-contextualização de ações físicas que dialogassem com os textos
criados. Por falta de recursos técnicos apropriados, não há registros visuais adequados dessa
etapa da pesquisa.
32
Nesse estágio da pesquisa nos debruçamos inicialmente sobre alguns contrastes yin
yang, criando um repertório expressivo que paulatinamente foi se desdobrando e sendo
aproveitado e transformado ao longo do levantamento das cenas. Também trabalhamos com
algumas imagens de wu hsing, a mandala das cinco fases, buscando trabalhar as energias
afetivas associadas a elas. O chi kung esteve presente durante todo o processo, como forma de
preparação para o trabalho. Em conversa com o diretor do espetáculo, André Amaro, nós
entendemos que teríamos um excesso de fontes sugestivas num mesmo processo, caso
usássemos, além de wu hsing e das dinâmicas yin yang, o I ching. Assim, como essa última
matriz já tinha sido fartamente explorada na etapa anterior da pesquisa, optei por deixá-la de
fora do segundo momento.
diga-se de passagem, de difícil manejo no trânsito acadêmico, ainda que, de certa forma,
apresente entendimento tácito no meio teatral.
Refletindo sobre essa idéia da entrega do ator, a expressão qualidade de presença pode
fazer mais sentido. Presença é uma idéia que remete justo a este estar em si, estar no trabalho,
estar no espaço/tempo da (a)presentação. Corpo presente no tempo, no espaço, corpo como
um presente que se dá ao outro. Tanto no processo criativo, quanto na cena, desenha-se,
34
Tentando dar conta do propósito exposto, que muito resumidamente seria investigar o
impacto das matrizes taoístas selecionadas, enquanto norteadoras de dinâmicas de estímulo à
criatividade e à expressividade de artistas cênicos, bem como seu potencial enquanto
fomentadora de estados meta-harmônicos; e ainda proceder a avaliação e a elaboração teórica
pertinentes a essa pesquisa, foi traçado o percurso a seguir.
Ao longo dos anexos há uma série de fontes que complementam esse estudo, divididas
em uma parte A, ligada à montagem de Traços, e uma parte B, relacionada à disciplina
Técnica de Corpo para Cena III. Entre os anexos da parte A estão disponíveis o seguinte
material: a transcrição do diário de bordo da criação do espetáculo, incluindo fotos, a
dramaturgia da peça, um texto do diretor André Amaro sobre o processo, cópias de
comentários sobre a peça, deixados em um caderno específico para isso, ficha técnica,
matérias de jornal, exemplares de material gráfico de divulgação da peça, e um DVD com a
filmagem do espetáculo. Na parte B podem ser consultados o diário de aulas, todos os textos
criados pelos alunos em etapa a isto dedicada, bem como os textos híbridos que dos iniciais
35
derivaram. Há, ainda, os questionários passados para os alunos, com a transcrição das
respostas dos mesmos.
36
CAPÍTULO 1
MATRIZES TAOÍSTAS
O instante é semente viva.[...] Mais que um instante, quero seu fluxo (Lispector, 1998).
11
De novo frisamos que não se busca aqui homogeneizar pensamentos de contextos tão diferentes, como o
oriental e o ocidental. Além de inútil e ineficaz, seria uma contradição, já que todo esforço desse estudo é em
prol da singularidade, da diferença. Trata-se tão somente de tentar perceber os parentescos, descobrir os
encontros, buscar as interseções entre formas de pensar que por vezes são percebidas como mais distantes do que
de fato são.
37
Allan Watts, em Tao, o curso do rio, diz que “a arte de viver é mais semelhante à
navegação do que à guerra, pois o importante é entender os ventos, as marés, as correntes, as
estações e os princípios de crescimento e declínio, de forma que se possa utilizá-los, e não
lutar contra eles” (1975:49). Imagens ligadas à água são constantemente associadas às noções
taoístas, por exprimir esse caráter maleável, multiforme, fluido. Como se nota nesta
passagem:
12
A tradução encontrada aqui me pareceu mais apropriada que a do volume do Tao Te Ching, de que disponho.
38
Ah-ah, t’ai chi é o Tao, wu-wei, tzu-jan, como a água, como velejar, como surfar, dançar com
as mãos, a cabeça, a coluna, os quadris, os joelhos... com o pincel, a voz... ha ha ha ha... La La
Lala ah ah Ah... (Watts, 1975:7).
O surfe, aliás, é uma imagem bastante usada para pensar tanto o wu wei e o tao, quanto como
metáfora para autores que pensam a idéia de tornar-se fluxo, como nesse texto de Pierre Lévy:
Entre o ar e a água, entre a terra e o céu, entre a base e o vértice, o surfista ou aquele que se
lança jamais está inteiramente presente. Abandonando o chão e seus pontos de apoio, ele
escala os fluxos, desliza nas interfaces, serve-se apenas de linhas de fuga, se vetoriza, se
desterritorializa. [...] Torna-se velocidade, passagem, sobrevôo (1996:32).
Note-se ainda esse trecho, onde Denise Sant’Anna fala sobre o viver o tempo presente,
quando o objetivo é estar fazendo exatamente o que passa. Aqui também se recorre à metáfora
do surfe.
...tem-se a impressão de que não é mais possível separar o sujeito que pensa e questiona do
sujeito que age. [...] o tempo presente deixa de ser vivido como um trampolim para o futuro. O
tempo presente se amplia, se intensifica. [...] O exemplo do surfe [...] o objetivo a ser atingido
é a ação de surfar: a meta final coincide com o processo [...] A relação entre o surfista e o mar
tende a ser menos a de um domínio de um sobre o outro e mais de uma composição de dois
conjuntos de forças heterogêneas. [...] A ação de surfar coincide com a sua percepção
(2001:98).
O não ser do devir, e a não ação do wu wei são ambos estados fortemente marcados
por dois fatores: o fluxo - movimento e transformação ininterruptos; e o vazio – interstícios,
hiatos, suspensão de ação, de identidade, e qualquer tipo de fixação ou territorialização. Esses
dois fatores nos levam a uma terceira idéia, que de certa forma abraça as anteriores: o virtual,
campo disforme de multiplicidades intensivas.
39
Deleuze aponta a estreita relação entre devir e virtual ao mencionar que, para devir, é
preciso sempre remontar à multiplicidade intensiva, ou seja, ao virtual, mesmo que nos
trânsitos ocorram os estados de territorialização. Tadeu, ao pensar como essa questão é
levantada por Deleuze, o faz mencionando que essa seria uma pista de conduta, mais que uma
simples conjectura conceitual (2004: 31). No caso da idéia de wu wei sua relação com a
virtualidade se dá de forma parecida. Para não agir, ou agir sem constringir, também é preciso
remontar ao imponderável, ao imprevisível, ao abismo, ao vazio, ao fluxo de multiplicidades
ao qual escapa toda tentativa de controle. E se é ineficaz a tentativa de controlar ou fixar o
virtual, restam capturas temporárias. Atualizar é capturar intensidades no campo virtual e
territorializá-las, em fluxo. A tentativa de estratificar essas territorialidades tende a esvaziá-las
dos seus sentidos - estético, semântico, patético (Didi-Huberman,1998) - e, por isso mesmo,
de sua potência expressiva.
te não se refere a uma retidão artificial, acatada, baseada em obediência a regras impostas,
mas sim a uma consonância entre conduta e potencial, o que se aproxima bem mais da idéia
de ética que de moral13. O ideograma que originou te significa “fluir em união com o olho e o
coração (mente)” (1975:160).
Para constatar no corpo, na própria vida, a ausência ou baixa incidência de te; para
perceber a inadequação das regras vigentes; para se dar conta do nível de insatisfação pessoal
em relação à própria vida; e para identificar as possíveis tendências, é preciso lançar mão de
uma percepção de natureza diferente da exclusivamente racional e daquela só ligada aos cinco
sentidos. Entra em cena a percepção das forças, própria ao que a psicanalista e pensadora
Suely Rolnik chama de corpo vibrátil. Este funcionaria como uma bússola ou alarme,
perceptor e desencadeador de crises (Rolnik, 2003), que por sua vez, seriam motrizes de
transformações. Entra em cena a percepção daquilo que os chineses chamam chi.
reducionismo de traduzir chi por energia simplesmente, e argumenta a favor de que alguns
termos chineses sejam usados em sua forma original. De fato os ideogramas chineses são
extremamente complexos e atravessados de imagens e sentidos, logo toda tradução tende a
orientar para uma única possibilidade de interpretação daquela idéia. O professor André
Bueno, da Universidade Gama Filho lembra o simbolismo do ideograma que representa chi,
ou como ele prefere qi - o que é apenas uma diferença de grafia na tradução, ligada a questões
fonéticas.
Assim, chi pode ora assumir características de energia fluida, ora de energia condensada,
quando pode causar bloqueios nos canais de energia do corpo.
A noção de corpo sutil foi ilustrada com a imagem abaixo, espécie de perfil do interior
de um corpo humano, recheado de detalhes: com animais em lugares onde haveria órgãos,
florestas em pontos energéticos, torres, pessoas, espirais, ideogramas e símbolos variados pelo
corpo14.
14
Imagem: “Diagrama do ‘corpo sutil’ que rasteia a alquimia interior”, datado de 1886, dinastia Ts’ing, (Rawson
e Legeza, 1973:82, ilustração 53)
42
Para dialogar com essa idéia é interessante trazer o modo como Denise Sant’Anna
pensou a sutileza. Entendida como uma “complexidade de gestos, sentimentos e ritmos do
corpo” (2001:124), para a autora a “sutileza inclui zonas de sombra, e estas não significam
caos nem, necessariamente, silêncio” (2001:125). Ainda segundo Sant’Anna o que é sutil só é
frágil na aparência, sendo, em realidade, um amálgama de delicadeza e força, que pode,
inclusive, ser aprendido através “de exercícios, de atenção ao que passa entre os corpos. E,
por mais tautológico que possa parecer, a atenção se aprende com atenção”.(2001:125).
Essas reflexões de Sant’Anna se afinam com o modo como os taoísta lidam com seu
corpo sutil. Os treinos de chi kung, por exemplo, que serão detalhados adiante, além de
operarem pela atenção e concentração sobre os ritmos energéticos corporais, sobre os fluxos e
trânsitos de energia entre o corpo e o meio (terra, céu, árvores, outros corpos), lidam com
essas matérias sem a intenção de esclarecê-las. O que interessa, aos praticantes, é a conquista
dessa percepção de outra ordem, e de um certo manejo sobre as forças que atuam nos corpos,
respeitando as zonas de sombra e mistério.
43
Assim surgiu a Tribo Atrito, grupo de pesquisa teatral que se voltou a uma
investigação sobre a corporeidade na cena. As responsáveis e idealizadoras desta pesquisa
éramos eu e a atriz e pesquisadora Rita Gusmão, hoje professora mestra no Departamento de
Artes Cênicas da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir de princípios ritualísticos -
emprestados de Artaud - e de treinamento quase diário - calcado em procedimentos
psicofísicos de Grotowski, organizados por Celso Nunes, e de Barba, entre outras referências
e intuições – desenvolvemos estudos, cenas e espetáculos.
Dentre os trabalhos que realizamos, talvez o mais importante tenha sido a montagem
de Entre Quatro Paredes, de Jean Paul Sartre, em 1994 e 95. Em cena estávamos eu, Rita
Gusmão, José Delvinei (ator, professor, produtor cultural, ex-coordenador regional da
FUNARTE Brasília) e Cesário Augusto (ator, pesquisador, professor Doutor da Universidade
Federal do Pará). Na época éramos os quatro ainda estudantes, cursando ou bacharelado ou
licenciatura em Artes Cênicas. O espetáculo foi dirigido por mim e Rita Gusmão e
apresentado em vários teatros de Brasília. Após um ano de trabalho praticamente diário sobre
a peça, o grupo estreou, levando à cena intensa pesquisa de dramaturgia corporal (que à época
chamávamos de gestualidade) desenvolvida pelo grupo. A peça teve cerca de quatro
temporadas em Brasília – feito bastante incomum para o momento na cidade, com
interessante repercussão junto ao público brasiliense.
44
Esse foi meu segundo contato, ainda tênue, com o ideário taoísta. O primeiro havia
sido por volta dos meus 16 anos, através da prática de tai chi chuan por cerca de um ano,
junto ao mestre Dada, em Brasília. Na ocasião em que treinei tai chi chuan, sentia um bem
estar muito grande, porém não busquei, naquele momento, uma intimidade maior com as
origens da prática. Com o tempo acabei me distanciando do tai chi chuan. Porém, manteve-se
no corpo a memória agradável das sensações de concentração, consciência, integridade,
serenidade, as quais a prática costumava me trazer.
Ainda com a Tribo encenei Matamoros, de Hilda Hilst, enquanto trabalho de final de
curso de minha graduação. Tanto no processo quanto na encenação trouxemos a referência
dos cinco elementos chineses. Nosso cenário era constituído de cinco círculos concêntricos
formados por terra, água (tinas, bacias e cuias), fogo (velas), metal (muitas chaves) e madeira
(galhos e folhas secas). Em cada um desses espaços aconteciam ações relacionadas aos
elementos presentes, fossem movidos pelas emoções associadas, ou se relacionassem à fase
de vida ligada ao elemento, etc. Além destas referências, busquei apoio nos arquétipos dos
Arcanos Maiores do Tarô, para composição de personagens. Este foi o último trabalho do
grupo, que acabou ao mesmo tempo em que concluímos o curso, no fim de 1995.
Alguns anos depois, passei a integrar a Cia. Teatral Piramundo, à qual estive ligada
desde 1998 até 2004, quando saí para fazer o doutorado. Além de mim, o grupo era formado,
pelos atores Márcio Menezes, Vanessa Rocha, Rômulo Augusto – estes três eram ex-colegas
45
de curso – além de Amara Hurttado, Lupa Marques, entre outros, que iam e vinham ao longo
dos anos.
O último trabalho da cia., de que participei, foi A Roda do Arco-Íris, conduzido pela
atriz e arte-terapeuta Vanessa Rocha, que à época cursava sua pós-graduação em terapia
junguiana. O processo de construção desse espetáculo instalou primeiramente um espaço de
auto-conhecimento e desbloqueio energético. Foram trazidos processos de imersão psíquica
que visavam o contato e a emergência de questões subjetivas que possuíssem ao mesmo
tempo demanda de cura, e potencial criativo. Além disso, trouxemos de volta uma atmosfera
ritualística, a qual fortaleceu os elos do coletivo, e nos predispôs a operar em outros níveis de
realidade que não o real concreto.
Durante esse período vivi alguns processos energéticos bastante intensos e inéditos
para mim. Ao me concentrar para o trabalho, na parte inicial em que simplesmente devíamos
estar disponíveis e deixar acontecer, aconteceu, por várias vezes, de sentir meu corpo tomado
de uma energia tão forte que o movia involuntária e às vezes violentamente. Na maior parte
das vezes essa explosão energética partia do centro do peito, do ventre ou da pélvis, (pontos
energéticos segundo a tradição taoísta e a hindu) e gerava um movimento de certa forma
convulsivo. Também meus braços mantinham um movimento involuntário, em geral muito
rápido e vigoroso, em ocasião de um exercício que nos foi passado por uma profissional de
Reeducação Postural Global (RPG), chamada Angelina Vargas.
46
A partir daí passei a realizar leituras e descobri o chi kung, perspectiva de trabalho que
ainda não conhecia muito, apesar de o tai chi chuan ser considerado um tipo de chi kung,
coreografado. Fiquei bastante interessada e comecei a praticar, junto ao professor Ernani
Franklin, em Salvador, com quem fiz alguns cursos teórico-práticos. Além dos cursos trouxe a
prática para minha vida diária, ainda que de maneira menos disciplinada do que me era
orientado fazer. A prática do chi kung me trazia a mesma sensação de fluxos involuntários de
energia e movimento que sentira outrora, mas que agora vinham com uma fluidez mais
contínua e lenta, de um modo geral. Também já cheguei a sentir manifestações energéticas no
corpo, parecidas às que sinto com o chi kung em espaços sagrados como Igrejas Católicas,
Terreiros de Candomblé, Centros de Santo Daime e Espiritismo. É sempre uma sensação de
corpo como passagem, o que às vezes se altera, creio, é a densidade da energia que atravessa e
se transforma.
Hoje consigo acionar esse estado de captação e fluxo energético com certa facilidade,
e pude perceber que isto é, também, uma questão de treino. Catherine Despeux (1981) traz
uma descrição que intitula “Fusão da energia espiritual e retorno à vacuidade”, em relação à
qual senti que minha própria experiência se aproximava:
dos contrários: interior e exterior, movimento e repouso, eu e o outro. É a união do tao com a
vacuidade [...] Ele encarna, portanto, o ideal do santo gabado pelos taoístas, o mais célebre
dos quais, Zhuangzi afirmou “o sábio supremo não tem eu”. Quando nenhum pensamento se
eleva do interior e não há obstruções no exterior, a energia do indivíduo não tem limites,
identifica-se com as forças do universo cujas leis segue [...] O praticante não executa por si
mesmo os movimentos, deixa operar o tao através de si (1981:72).
Seguem agora abordagens mais detalhadas sobre nossas matrizes. Todas elas são
sistemas de classificação da tradição taoísta, eleitos como norteadores dessa pesquisa. Há
muito mais a ser pesquisado e dito sobre o vasto ideário taoísta. Tentaremos apenas apresentar
os aspectos relevantes – do ponto de vista desta investigação - do que é o nosso recorte dentro
do grande espectro de referências que é a sabedoria taoísta. É bom esclarecer que há uma
profunda e complexa inter-relação entre os sistemas de classificação que descreveremos a
seguir, assim como entre estes e outros que não serão abordados. Entretanto também não nos
aprofundaremos nessas relações, justamente pela necessidade de recorte, mesmo intuindo que
isso desdobraria ainda mais as possibilidades de interação das matrizes com processos
criativos.
A idéia da relatividade yin yang nasceu na China antiga, alguns séculos antes de
Cristo, a partir da observação dos ciclos da natureza, em especial o ciclo dia e noite e fatores a
este associados, como sol e lua, claridade e escuridão, etc. Suas mais antigas referências
conhecidas constam do Hi zi, pequeno tratado anexado ao I ching (1997:85). Neste tratado os
emblemas funcionavam especialmente na caracterização das linhas, a inteira (yang), que
48
inicialmente denotava sim e a cortada (yin), significando não. Estas linhas são as menores
células do I ching, cujas combinações formarão os trigramas e hexagramas, complexificando
as respostas. Segundo o acupunturista Marcos Freire, se com a idéia de tao, só podemos lidar
a partir de um processo sintético (caracterizado por ser holístico, sistêmico, intuitivo), com
sua manifestação para os homens a partir de duas forças relativas - yin e yang - podemos lidar
a partir de processos analíticos, relacionais (1996:3).
Marcel Granet (1997: 83) observa duas tendências de análise sobre o conceito, uma
atribuída aos críticos contemporâneos chineses, de entendê-los como forças, e outra,
ocidental, de tratá-los como substâncias. Refutando ambas as proposições, Granet observa
que, de forma bem mais simples que se possa imaginar, os termos yin e yang funcionam
principalmente como emblemas, dotados de potencial de evocação de todos os contrastes
possíveis existentes. Yin e yang formam, assim, um par de rubricas mestras com alto poder
sugestivo e simbólico (1997:88).
Segundo Granet, a existência deste conceito parece traduzir a idéia de que o contraste
de dois aspectos concretos caracteriza o universo e cada uma de suas aparências (1997:89),
entretanto, como será discutido em outros trechos, o duplo yin yang não se configura nos
moldes dicotômicos, derivados da metafísica ocidental, e nem rechaça a noção de
multiplicidade em detrimento de dualismos estanques. Não há relação hierárquica ou
excludente, mas movimentos incessantes e interdependentes entre as duas faces. Há ainda
uma infinidade de configurações possíveis entre os dois pólos limítrofes de um fenômeno,
além de uma pluralidade de fenômenos caracterizáveis. Ou seja, ainda que tudo possa ser
compreendido a partir da noção de um duplo, as proporções entre as partes não são estáveis,
nem equivalentes. Trata-se de variáveis que oscilam no tempo e no espaço, prenhes de ritmo e
pulsação, como tudo que é inerente ao universo e suas manifestações.
Na representação gráfica do símbolo yin yang, chamada tai chi - grande energia, em
tradução simplificada - há uma pequena circunferência branca na metade preta e vice e versa.
Isso traduz uma particularidade da dinâmica: cada uma das faces extremas (pólos) carrega em
si o germe da outra. Donde temos:
49
A. Oposição: Esta propriedade diz que todos os fenômenos da natureza têm, ao mesmo
tempo, dois aspectos contrastantes, e denota a existência de polaridade e tensão entre eles.
Entretanto não se refere a um dualismo antagônico, hierárquico ou excludente, antes, aponta
para complementaridade e ambivalência. Expressa aspectos alternantes. Esta não é uma
antítese absoluta, mas relativa, rítmica, e é especialmente esse caráter de revezamento, que a
diferencia daquela oposição encontrada em uma dicotomia. Esta contradição inerente a todos
os fenômenos constitui a força motriz de toda modificação, desenvolvimento e deterioração
das coisas (Maciocia, 1996: 70).
que, por exemplo, numa situação de debilidade de yin, haverá a aparência de excesso de yang,
mas é preciso que se identifique o quadro com clareza para melhor eficácia de abordagem no
tratamento pela medicina chinesa.
Uma metáfora interessante para pensar a relação entre os aspectos yin e yang dos
fenômenos, a qual contempla as propriedades acima descritas, e será usada também em outros
momentos da pesquisa é a do Anel de Moebius. Proposta pelos matemáticos alemães August
Ferdinand Moebius e Johann Benedict Listing em 1858 e redimensionada por pensadores
como Lacan, José Gil, e artistas como Escher e Ligia Clark, o Anel de Moebius é um enigma
da geometria e do espaço: o lado externo é ao mesmo tempo o interno.
Como vemos, a imagem acima é similar àquela utilizada para simbolizar o infinito. A
pesquisadora Ciane Fernandes também usa o anel, e assim explica sua natureza:
Como no Anel de Moebius ou Figura Oito (descrita por Laban em termos de movimento,
1974, 98), ou mesmo como no espelho mágico de Escher (ERNST, 1996, pp.99, 76),
dualidades tornam-se contínuas gradações em transformação (2006.1).
51
No Anel de Moebius [...] as duas extremidades do tempo (passado e futuro) se encontram num
ponto de inversão, criando uma torção sem interno-externo. [...] Dentro da Figura Oito, [...]
dualidades opostas e excludentes passam a ser transições entre diferenças (2006.2).
Assim, não há nunca uma extremidade pura, mas sim transições em gradações, aumentando
ou diminuindo de intensidade e transformando-se no outro. Ressalte-se ainda, que o
interior do Anel de Moebius, como o tao, traz o vazio.
A seguir uma tabela que contém exemplos de pares yin yang. Esta é uma seleção de
alguns aspectos a partir das diferentes fontes usadas na pesquisa. Aqui estão aqueles que
consideramos mais aplicáveis ao propósito de servir como estímulos para criações corporais.
Uma tabela é um mecanismo bastante restrito, e em termos visuais não dá conta da
representação das propriedades apontadas acima. Assim, optamos por criar esse formato de
tabela que busca traduzir, ou pelo menos se aproximar das características dinâmicas entre yin
yang.
52
53
Este material orientou várias dinâmicas corporais ao longo das etapas da pesquisa. As
propriedades acima descritas também foram trazidas na orientação de atividades de pesquisa
criativa, visando desdobrar suas possibilidades.
Frisamos que os pólos não se esgotam em si, como nos modelos dualistas dicotômicos,
mas agenciam configurações múltiplas a partir de sua mútua articulação. Assim, entre o curto
e o longo, ou entre o vazio e o cheio, por exemplo, há uma pluralidade de atualizações
possíveis e sempre renováveis. Como há também as relações de reciprocidade,
reversibilidade, interdependência, complementaridade e ambivalência.
A. Diagonais individuais:
B. Diagonais em dupla:
C. “Dimmerização”:
A idéia de usar os pares yin yang desta forma surgiu a partir da leitura do estudo de
Ciane Fernandes sobre Rudolf Laban (2002). Laban e seus discípulos organizaram seu
sistema de análise do movimento nesta relação dinâmica entre polaridades: teoriaprática,
55
pode perceber mais claramente, em sua partitura, a ação de cada pólo de um par graças ao
contraste relativo à ação do outro pólo.
Tanto nos exercícios descritos acima, quanto nos próximos, utilizamos, quando
achamos que é necessário, como recurso de apropriação da célula expressiva gerada o
seguinte percurso: após experimentação a partir de uma imagem sugestiva solicitamos ao
aluno, ou ator, que ele solte a sensação aos poucos e posicione as mãos sobre o umbigo
(principal centro de energia, usado em exercícios de chi kung). Então sugerimos que ele
percorra mentalmente o trajeto criado na experimentação, reconstituindo-a imaginariamente.
Depois de um tempo solicitamos que ele volte a instalar a sensação e a célula expressiva
criada a partir desta, e indicamos ainda que se perceba qual foi o caminho – psicofísico -
trilhado nesse processo de re-instalação.
Aqui estamos dando o espaço para que o ator entenda como se dará o acesso àquela
construção e sua manutenção, ou a manutenção daquilo que a anima, que a mantém viva.
Trata-se daquilo a que muitos teatrólogos vêm chamando sub-partitura, como veremos à
frente. Em seguida propomos a repetição do gesto de soltar e re-instalar a célula, até que o
ator tenha segurança de tê-la incorporado. Esse trabalho ajuda também a evitar a perda de
células conquistadas em experimentações, mas muitas vezes esquecidas depois.
1.2.b I ching
O I ching é composto de 64 hexagramas (formados por seis linhas) que surgem a partir
da combinação de dois núcleos menores, os trigramas (formados por três linhas). As respostas
procuradas no I ching como oráculo, ou como um conjunto de situações humanas
arquetípicas, são dadas pelos hexagramas. Em nosso estudo focamos na simbologia dos oito
57
trigramas, também conhecidos como ba gua. Cada um desses conjuntos de três linhas
representa um arquétipo, com determinados atributos, ligado tanto à posição familiar, como a
fenômenos da natureza, animais, partes do corpo, etc. Além do uso oracular do I ching - ação
que faz parte de nossa vida, nosso estudo se concentrou em referências ligadas aos oito
trigramas associando-as a exercícios, parâmetros e texturas de movimentos afins, visando
favorecer construções de determinados estados, ou “personagens”.
Segue uma tabela hipotética, construída a partir de referências ligadas aos trigramas
arquetípicos do I ching, buscadas nas diversas fontes consultadas. Além destas referências,
acrescentamos algumas propostas cênicas de origens diversas, às quais relacionamos os
trigramas. Esta relação se pautou na tipologia de construções expressivas que cada dinâmica
tende a fomentar, de modo a intensificar um determinado aspecto a ser trabalhado. As
propostas associadas foram coletadas em matrizes diferentes como os estudos de Laban,
Barba, Decroux, Grotowski, Bob Wilson, Grupo Lume, etc., além de nosso próprio acervo de
propostas desdobradas a partir de fontes como as mencionadas.
58
59
60
A partir desse material é possível, por exemplo, concentrar as atividades de uma aula,
ou de um dia de pesquisa, ou de uma dada composição, em um desses trigramas e buscar a
construção psicofísica de cada um desses estados. No caso de se completar o ciclo, cada ator
passa a contar com oito matrizes ou naturezas corpóreo-energéticas em seu repertório. Estas
podem ser usadas como bases para diferentes personagens, ou como suportes de estados de
uma mesma personagem. Podem ainda ser investigadas em perspectiva mais performática,
desvinculadas da construção de uma identidade. A abordagem vai variar de acordo com a
proposta em questão. A idéia é que se possa excluir e/ou incluir diferentes dinâmicas
associadas aos trigramas, desde que as escolhidas sejam percebidas como mobilizadoras de
uma mesma qualidade de estado.
61
1.2.c Wu hsing
O primeiro nome relacionado à teoria wu hsing é o de Tsou Yen (-350 a –270), mestre
do yin yang e homem de profunda erudição e imaginação. As cinco energias foram
simbolizadas ciclicamente como: madeira, que é combustível para o fogo, que produz cinzas
originando terra, que em suas minas possui metal, que purifica a água, que por sua vez
alimenta a madeira, caracterizando assim o ciclo gerador. Entretanto, no ciclo destruidor, a
madeira suga os nutrientes (ou na forma de arado domina) a terra, que represa e absorve a
água, que apaga o fogo, que derrete e liquefaz o metal, que corta a madeira. (Watts, 1975: 62).
Há ainda outros ciclos fazendo com que haja uma relação intrínseca entre cada um dos
elementos e os restantes, caracterizando uma abordagem sistêmica. A cada elemento da
natureza estão relacionados uma emoção, uma forma de expressão, dois órgãos do corpo, uma
cor, um sabor e uma série de outros fatores que incorporamos ao universo de estímulos da
pesquisa.
Tal formulação teórica, em conjunto à relação yin e yang, são as principais fontes de
orientação da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), em suas diversas vertentes, como a
acupuntura, a moxabustão, a ventosaterapia, massagens como tuiná, do-in, shiatsu, a
auriculoterapia, etc. A MTC baseia toda sua compreensão e atuação sobre os corpos a partir
das relações aqui estabelecidas.
Buscando acessar uma das energias da mandala instala-se um ambiente voltado para um
dos elementos, usando-se como apoio os fatores associados listados na mandala. Usando
como exemplo a energia água, o encontro pode ser feito em uma praia ou cachoeira, por
exemplo, ou ainda levando-se água (física ou imaginariamente) para o local habitual de
trabalho. Desde o início tem-se em mente que a proposta é acionar e trabalhar os aspectos
ligados à água, de acordo com o que está descrito na mandala. Pode-se usar vestes de cor
negra, ingerir-se, dentro de uma organização ritualística, alimentos e bebidas de sabor
salgado. De acordo com o grupo envolvido pode-se usar uma pequena dose de bebida
alcoólica, como saquê, ou tequila, nesse caso, já que podem ser consumidos com sal. A
presença de pequena dose de álcool, usado de forma dirigida nesse tipo de trabalho, ajuda
a quebrar resistências habituais, já que instala estado alterado de consciência. É feito um
exercício de olhos fechados, buscando potencializar a audição. Trabalham-se emissões
vocais na vibração da vogal U. É feito um trabalho de expressividade física a partir da
sensação de frio (seja real ou sugestionada). Da mesma forma o sabor salgado estimula a
construção de uma corporalidade e fisionomia. Então se parte para um trabalho de
expressividade usando as idéias de velhice, medo e gemido. Todos os fatores associados
são usados visando a instalação de um estado para o trabalho do ator. As propostas podem
ser criadas de acordo com o grupo, respeitando-se a organização da mandala. Cada ator
deve trabalhar registrando no corpo as células expressivas, partituras e sensações, para ser
capaz de re-acionar o estado posteriormente. Este trabalho é feito com cada uma das cinco
energias, obedecendo a seqüência de geração, e pode ser feito um intervalo de pelo menos
duas semanas entre cada uma.
B. Construção de “entidades”:
com a expressão vocal gemido, com a emoção medo. Nessa fase busca-se trabalhar
isoladamente cada uma das propostas (ou duas por encontro), e ao mesmo tempo compor
a entidade que vai agregando as conquistas de todas as experiências, ou de quase todas de
acordo com a construção de cada ator. O processo de ir trazendo os resultados para a
construção da corporeidade pode ser retomado no fim de cada encontro e/ou em um
encontro específico para isso.
C. Ciclo de emoções:
D. Ciclo de fases:
Este trabalho respeita a princípio o ciclo de geração e inicia na madeira, cuja fase
associada é nascimento, seguindo para as outras. Assim as “entidades” vão
transformando-se obedecendo a uma cronologia real - do nascimento à velhice. Pode-se
experimentar a ordem do ciclo de restrição, ou outras aleatórias, visando partituras menos
realistas. Aqui se pode associar a fase à forma de expressão descrita no mesmo elemento
ou energia, e ainda inserir a respectiva emoção e alguma corporeidade conquistada com o
66
fator tempo perigoso e/ou sabor. Nossa experiência demonstrou não ser produtivo associar
muitas referências ao mesmo tempo, então, sugere-se escolher no máximo três, a serem
indicadas gradativamente, para impulsionar uma experimentação.
A seguir imagem que mostra o vaso da concepção (VC) e os pontos deste meridiano:
68
Como vimos, além da acupuntura, há vários outros procedimentos ligados à MTC, que
se baseiam nesse mapa energético. Entre as práticas que operam nessa cartografia,
escolhemos alguns procedimentos do chi kung para acessar alguns desses pontos e canais. O
chi kung, é uma prática de reorganização energética que remonta aos primórdios da cultura
chinesa. Chi é um dos conceitos chave para a medicina taoísta, e é traduzido, usualmente, por
energia vital. O ideograma originário - que simboliza uma panela em cozimento de onde sai
vapor - indica uma noção que abriga características materiais e não materiais, remetendo ao
éter, ao vapor, ao sopro, à respiração, etc., o que mostra que, talvez, o melhor seja não traduzir
o termo.
taoístas para tratamento e prevenção de certas enfermidades. Ao longo dos séculos novos
procedimentos foram sendo acrescidos à tradição taoísta, visando promover a regulação e
conservação de chi. O chi kung, derivado deste processo, é uma técnica de cultivo interior da
energia. A expressão chi kung ora é traduzida como “trabalho do sopro” ou “trabalho sobre
energia”. Despeux lembra que hoje, na China, realizam-se muitas pesquisas sobre as virtudes
terapêuticas da prática as quais têm sugerido que, entre outras benesses, ele aumenta a
resistência de doentes. Acredita-se ainda que o trabalho de emissão de chi possa ainda quebrar
ou mover objetos e curar pessoas. (1981:58). Em curso com o professor Ernani Franklin ele
apresentou um exercício de re-programação da água (purificando-a, tornando-a uma espécie
de água benta), e falou de estudos que mostram a transformação na forma de suas moléculas a
partir do chi kung. Outra imagem usada pelos mestres taoístas para descrever esse tipo de
trabalho, do qual o chi kung é um exemplo, é a de uma alquimia interior. As ações desses
treinos psicofísicos, ou psíco-fisiológicos, seriam de tal maneira transformadoras, que
mereceram tal designação.
Em textos datados do séc. XI, aos quais Catherine Despeux teve acesso, as seguintes
sensações são consideradas provas de eficácia do exercício:
Ainda em Despeux, têm-se outras descrições de sensações, por parte de mestres taoístas:
E mais uma sensação descrita por um mestre taoísta, trazida por Despeux, esta parecendo
referir-se à sensação de formigamento “Quando você sentir insetos deslocarem-se entre a pele
e os músculos, acredite que foi bem sucedido” (1981:68). O professor Ernani Franklin
alertava também que às vezes o chi kung gerava desconforto, especialmente nos iniciantes:
tontura, baixas de pressão, enjôo, alem de dores musculares, em caso de pessoas menos
preparadas fisicamente. Para o professor, tais sensações podem estar ligadas a desequilíbrios
energéticos, ou de chi. Veremos que vários depoimentos de alunos da disciplina Técnica de
corpo para a cena 3 descrevem sensações similares às trazidas acima.
70
A seguir o mapa dos centros energéticos segundo a cartografia corporal chinesa, que
deverá ser consultado para que o leitor possa visualizar melhor os treinos que descreveremos
em seguida. Segundo a sabedoria taoísta, há no corpo seis centros de energia, além de um
sétimo, considerado “a mãe dos centros”. Estes estão abaixo representados por círculos. Para
os treinos incorporados à nossa pesquisa, apenas três serão referidos. O primeiro é lin tai, uma
esfera mais ou menos do tamanho de uma laranja no centro da cabeça, iniciando três dedos
abaixo do topo (cocuruto) e a dentro da testa, na direção do “terceiro olho”. Este é o principal
centro de energia yang do corpo. O segundo, yin chao, é também uma esfera, de acordo com
as ilustrações um pouco menor que a primeira, que se encontra no colo do útero, ou na
próstata, e concentra nossa maior parte de energia yin. Por fim, tai yuen, a mãe dos centros, é
uma esfera um pouco mais robusta, e fica três dedos a dentro, acima e abaixo do umbigo. na
altura do umbigo. Nela se encontram dinamicamente as energias yin e yang do corpo. Em sua
base, chamada tan tien, três dedos abaixo e adentro do umbigo se encontra a maior
concentração de chi do corpo, trata-se de uma espécie usina de forças e zona de re-
organização energética. Observe-se a seguinte figura:
71
A seguir serão descritas as práticas de chi kung adotadas na pesquisa. Nas descrições
abaixo há referências cruzadas, advindas das diferentes fontes consultadas, incluindo
diferentes livros, apostilas e aulas por mim freqüentadas. Não me preocupei aqui em lidar
com as palavras – sejam imagens ou conceitos – em perspectiva acadêmica. Ative-me a
descrever os treinos usando os termos encontrados nas fontes, os quais demonstram eficácia
para a prática – entendimento tácito - ainda que possam ser questionáveis do ponto e vista
científico. A opção por narrar o procedimento como quem orienta o processo visa facilitar o
uso prático desse material por parte de quem se interesse em fazê-lo.
A. Entrar no vazio:
O kata base (postura básica) desse exercício, e de muitos outros consiste em deixar os pés
paralelos, abertos altura dos quadris, enraizados, o peso distribuído, os joelhos levemente
flexionados.
72
Daí desce-se o olhar interno lentamente, pelo meio do corpo, ao mesmo tempo em que se
engole saliva, até chegar a tai yuen, que é a mãe dos centros, circunferência localizada três
dedos adentro, abaixo e acima do umbigo. Manifestação de tai chi (grande energia, limite
supremo, existência manifestada, onde yin e yang estão dinamicamente unidos,
visualizadas como o símbolo redondo dividido em uma metade preta e outra branca, onde
cada uma contém o germe da outra).
Então a energia yang desce atraindo a energia yin que emana da terra e entra por yin chao,
centro yin, localizado na altura do colo do útero ou da próstata. As energias se encontram
na mãe dos centros, e fortalecem tan tien, base da mãe dos centros, localizada três dedos
abaixo e adentro do umbigo.
A união das energias da terra e do céu gera e fortalece tai chi. A eletricidade yin do yin
chao é atraída como um imã para o tan tien pela eletricidade yang do ling tai. Apenas usar
o olhar interno, sem esforço, treino no vazio. Manter a atenção aí por algum tempo.
B. Sentar na Calma:
No mesmo kata base deve-se visualizar um redemoinho cujo vértice esta no centro yang,
(a imagem do redemoinho entra pelo local onde outrora estava nossa moleira, o chamado
cocuruto da cabeça, através do ponto bai hui, ou portal dos Cem Encontros). Este furacão
imaginário capta energia celeste traz para o ling tai (centro de energia yang, quatro dedos
abaixo do topo da cabeça e adentro da testa na direção do ponto tian men, conhecido por
73
porta celestial, ou terceiro olho, também conhecido por VG 24 – que significa ser o ponto
24 do meridiano vaso do governo. Por esse ponto também é possível captar energia).
Em seguida engole-se saliva, trazendo a energia yang captada para mãe dos centros tai
yuen (circunferência energética três dedos adentro do umbigo, cuja base tan tien, três
dedos adentro e abaixo do umbigo, é o ponto central de equilíbrio, o campo do elixir, e
reúne/concentra toda energia da esfera. É o ponto do vazio).
Coloca-se mão esquerda por baixo e direita por cima, firma energia na mãe dos centros.
Depois concentra atenção no portal yon chuen, traduzido por fonte borbulhante ou
jorrante, (que é o ponto R1 – ponto 1 do meridiano dos rins, na sola dos pés, entre os
montes do polegar do pé e o monte dos outros dedos). Por este portal se capta energia yin,
da terra.
Então pulsa-se o períneo, captando ainda essa energia yin por tin guan, ponto de captação
conhecido como portal da essência, localizado entre o sexo e o ânus. Esta energia é então
direcionada, ainda por meio da pulsação do períneo, para o centro yin, yin chao
(localizado no colo do útero/próstata) e daí segue para mãe dos centros, tai yuen. As mãos
permanecem lá, a esquerda por baixo, tocando diretamente o ventre, a direita por cima,
sobre a mão esquerda.
Engolir em cima e pulsar embaixo reúne as energias do céu e da terra em nossa usina de
força. A energia yin, fria (ligada a terra e a água) deve ser estimulada a subir, já que tende
a estagnar embaixo, e a energia yang, quente (ligada ao céu, e ao fogo) deve ser
estimulada a descer já que tende naturalmente a subir.
C. Captação de energia
Se colocar na posição descrita como kata base. Os cotovelos se dobram de modo que as
palmas das mãos se voltem na direção da fonte de energia a ser captada. Deve-se ter
consciência de que no centro da mão há um ponto de captação, o nei lao gong, traduzido
por palácio do trabalho interno, e que as pontas dos dedos operam como antenas. Abrindo
polegar e indicador em ‘L’ ativa-se a entrada do portal, o processo de captação de energia.
Mexendo as “antenas”, pontas dos dedos, também. Pode-se captar energia do sol, da lua,
estrelas, flores, árvores, terra, etc. Após um tempo de captação inclina-se a coluna pra
74
frente, junto com a expiração do ar, trazendo as mãos para tai yuen (mãe dos centros),
então as mãos sobem abrindo diafragma e corpo vai para traz, engole-se saliva/energia e
pousa-se novamente as mãos na mãe dos centros.
É interessante olhar a fonte de onde se capta energia com o que os mestres chineses
chamam de “olhar de mulher enamorada”, ou seja, mantendo os olhos semi-cerrados
durante a captação. Também é aconselhável, em todos esses exercícios, mater um certo
sorriso nos lábios. E ainda, em todas essas praticas de chi kung aqui descritas, deve-se
encostar a ponta da língua no palato. Este gesto estabelece a reconexão entre os vasos do
governo e da concepção, segundo a medicina chinesa separados na ocasião do fechamento
da moleira. O vaso do governo nasce em tai yuen (mãe dos centros), desce internamente
até yin chao (centro yin) e segue pelas costas, acompanhando a linha da coluna vertebral,
circulando o corpo pelo topo da cabeça, entrando pela parte de cima da boca até terminar
na gengiva superior. Já o vaso da concepção, nasce no mesmo lugar desce igualmente por
dentro do corpo só que segue pela frente do tronco, paralelo à coluna, passa pelo umbigo,
pelo centro do peito, entra pela parte inferior da boca, e termina na raiz da língua.
altura do umbigo (VG 4, abaixo da segunda vértebra lombar - centro energético yi, ou
intenção), na coluna na mesma altura do centro dos mamilos (VG 11, abaixo da quinta
vértebra torácica - ponto relacionado ao coração, jia ji guan), abaixo da sétima cervical,
início da torácica (VG 14, daz hui,ou grande vértebra - ponto relacionado à menopausa)
abaixo da base do crânio (VG 16, tien lin kai), no topo da cabeça (VG 20, bai hui, ou cem
encontros). Outros pontos são indicados nas fontes consultadas, mas pela dificuldade em
localizá-los durante o exercício, optei por não focá-los.
Outra forma de usar o chi kung para apoiar exercícios é dar ênfase á captação de energia
yin ou yang, conforme o trabalho do dia. No dia que é trabalhado o trigrama Céu, há ênfase na
captação pelo centro yang, que fica na cabeça, parte do corpo a ser trabalhada no dia. No dia
do trigrama Terra há ênfase no centro yin, que fica no baixo ventre, parte do corpo ligada ao
trigrama. Às vezes, dependendo da ênfase empregada, é importante fazer o chi kung também
ao fim do trabalho, visando re-organizar as energias mobilizadas em função do trabalho
expressivo, já que pode haver desequilíbrio de captação pela necessidade da pesquisa do dia.
Nesse caso pode ser feito o treino “Sentar na Calma” para finalizar o processo.
Na pesquisa expressiva das energias da mandala o chi kung pode ser feito com ênfase
na emanação de energia para os órgãos e o tecido ligados à determinada energia, como por
exemplo, pulmão e intestino grosso e/ou pele, no caso do metal. Ou ainda é possível usar o
treino “Captação de Energia”, diretamente voltado para o elemento que vai ser trabalhado,
seja fogo, água, terra, metal ou madeira. Nesse caso, havendo possibilidade de deslocamento,
76
é bom estar em contato com uma amostra significativa do elemento, por exemplo: fogo – sol
ou fogueira; água – cachoeira ou mar; terra – terra, areia ou grama; metal – jazidas de metais;
e madeira – árvores.
CAPÍTULO 2
MATRIZES CÊNICAS
Após a apresentação das matrizes taoístas que alimentam nossa pesquisa cumpre que
tratemos também das matrizes na área das artes cênicas que norteiam a presente investigação.
Parte das experimentações na cena ocidental atual apresenta, inclusive, tendências afins ao
ideário – tanto filosófico, como taoísta - abordado neste estudo. Entre essas experimentações,
há algumas com as quais a presente pesquisa se identifica. Porém, falar de características
desse suposto recorte – cena contemporânea ocidental – exige antes algumas ressalvas.
Em primeiro lugar, como vimos, o ocidente, tal qual o oriente, é uma construção por
demais abstrata. Ou seja, tais idéias que se arvoram totalizadoras e uniformizantes são
insuficientes, falhas e não dão conta da diversidade que cada uma dessas convenções
geopolíticas abriga. Assim, ao nos referirmos à cena ocidental, estamos deixando de fora as
manifestações artísticas tradicionais desse suposto oriente, ainda que cientes de que muitas
destas tenham balizado fortemente o redimensionamento da cena em nomes como Artaud,
Brecht, Grotowski, entre vários outros16. E vale frisar também que no teatro realizado no
16
Na bibliografia desta tese há alguns livros que podem fornecer mais informações sobre a cena dita oriental.
Sobre linhas específicas, como o Nô e o Butô, os livros de Christine Greiner podem ser consultados. Há ainda
estudos comparativos entre a cena ocidental e a oriental, como Teatro leste & oeste, de Leonard C. Pronko, A
Canoa de Papel de Eugênio Barba e A Arte Secreta do Ator, de Eugênio Barba e Nicolas Savarese. Os estudos
de Brecht e Artaud, assim como o livro de Matteo Bonfitto, trazem alguma contribuição sobre o assunto, além de
estudos de Ciane Fernandes (2006.3).
78
Da mesma forma vale registrar que o termo contemporâneo não deverá ser entendido
como ligado a uma escola, uma linha estética, uma crítica ou uma avaliação. Quando falarmos
em contemporâneo aqui, será da forma mais literal possível: como fazendo parte de uma
mesma época. Entretanto não se pretende dizer que qualquer das tendências aqui discutidas
seja genuína ou exclusiva desta época contemporânea, assim como não é do chamado
ocidente. Ou seja, vários dos aspectos que serão trazidos podem ser observados em escolas
oriundas de diferentes épocas e regiões.
Assim, entenda-se que, por falta talvez de melhores termos ou noções menos
desgastadas e criticadas, falamos em observar tendências de parte da cena ocidental
contemporânea. E, frisamos, trataremos apenas de uma parte dessa moldura – já que esta não
é tampouco um bloco uniforme - parte essa que apresenta algumas tendências afins às
presentes em nossa perspectiva de encenação e interpretação.
Entretanto, ainda que o conceito pareça favorecer esse estudo por um lado, algumas
críticas já apontadas ao termo tornam sua utilização problemática17. Um desses aspectos diz
17
Conferir a revista Humanidades, número 52, de novembro de 2006, com vários artigos sobre o pós-dramático.
Dentre eles destacamos os de Silvia Fernandes, Fernando Villar, Rosangela patriota, Luiz Fernando Ramos e
Matteo Bonfitto. (2006)
79
18
Fernando Villar em artigo na revista Humanidades (2006), acima mencionada, relembra o termo teatro
performance, proposto por Timothy Wiles em movida semelhante à de Lehmann. A própria arte da performance
poderia ser pensada como fomentadora ou balizadora de várias dessas tendências cênicas atuais, discutiremos
isso adiante, especialmente a partir de estudos de Renato Cohen (1998). Entretanto, da mesma forma que em
relação ao conceito de pós-dramático, o esforço pela adequação ou não dos termos às referências aqui trazidas
nos desviaria de nosso foco.
80
O palco é teológico enquanto for dominado pela palavra, por uma vontade de palavra, pelo
objetivo de um logos primeiro que, não pertencendo ao lugar teatral, governa-o à distância. O
palco é teológico enquanto [...] um autor-criador [que] ausente e distante, armado de um texto
vigia, reúne e comanda o tempo ou o sentido da representação (1971:154).
Essa busca por outras falas, outras vozes na cena, é identificada por Renato Cohen em
seu estudo sobre o teatro contemporâneo, onde ele entende que “orquestra-se uma cena
polifônica e polissêmica apoiada na rede do hipertexto” (1998:xxiv). As idéias de Deleuze e
Guattari encontram aqui uma possível tradução. É nos agenciamentos dos sentidos – estético,
semântico e patético19 - que se vetorizam de maneira nem sempre ordenada, que o espectador
vai produzir sua apreensão. Tais cenas procedem por para-lógicas (Lyotard) ou eco-lógicas
(Guattari), as quais têm uma natureza não causal, e não linear, e que proporcionam maior
trabalho no processo de recepção.
19
Esse triplo entrelaçamento é proposto por Georges Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha. São
Paulo: Ed. 34, 1998. Tradução: Paulo Neves. O autor refere-se a uma espécie de conjunto de pontes que se
lançam no processo de recepção, entre as vias de apreensão: sensorial (estética), racional (semântica) e
emocional ou sintomática (patética). Não fosse um tema tão desgastado, desacreditado e ingrato ao trânsito
acadêmico, acresceríamos uma quarta acepção da noção de sentido a essa trama de Didi-Huberman. Esta se
ligaria à energética dos corpos em cena. Adiante veremos que Patrice Pavis se arrisca nesse terreno, trazendo o
conceito de teatro energético, de Lyotard. Apesar de criticar Barba pelo uso, segundo ele pouco formal, do termo
energia. Em tal campo – uma espécie de energética da cena - os treinos com chi (chi kung) podem produzir
importantes resultados, ao favorecer o manejo de chi no corpo, seja pela captação, emissão ou pela re-
organização deste.
81
A motivação de alguns encenadores por não mais privilegiar o aspecto textual ou lógico da
montagem visa, entre outras coisas, essa comunicação transversal, essa dilatação da
perspectiva de um entendimento para uma experimentação da obra, por parte da recepção. Há
o intuito – político e, por conseguinte de cunho ético-estético - de provocar um tipo especial
de apreensão, através de uma cena que promovesse algo que poderia ser descrito nas seguintes
palavras de Jullien sobre a sabedoria:
Outra abordagem que vem redimensionando vertentes da cena teatral passa por pensar
as noções de corpo e presença para além da fisicidade, abrangendo latências, sensações,
sentimentos e pulsões. Essa perspectiva parece ser enfraquecida pela pré-disposição de anular
ou mascarar os vestígios do ser-ator por trás de uma personagem construída. Aqui seria
menos o gesto de incorporar uma subjetividade forjada, totalmente alheia, e mais a
perspectiva de propor recursos que fomentem composições expressivas, a partir de matérias
singulares, a serem re-alocadas em cena.
Essa perspectiva se relaciona, dentre outros aspectos, à busca de maior autonomia por
parte do ator. À época da luta de Artaud contra o poder do texto e do autor, o que estava em
jogo era ao mesmo tempo a defesa da independência, e de poder do encenador/ diretor. Pouco
depois, os atores também passam a reivindicar, o direito à criação de discurso (mesmo que
82
Patrice Pavis aborda a questão no verbete corpo de seu Dicionário de teatro (2003).
Ele entende que a abordagem do corpo em cena oscila entre duas concepções.
a. O corpo não passa de um ralé e de suporte de criação teatral, que se situa em outro lugar: no
texto ou na ficção representada. O corpo fica, então, totalmente avassalado a um sentido
psicológico, intelectual ou moral; ele se apaga diante da verdade dramática, representando
apenas o papel de mediador na cerimônia teatral. A gestualidade desse corpo é
tipicamente ilustrativa e apenas reitera a palavra.
b. Ou, então, o corpo é um material auto-referente: só remete a si mesmo, não é
a expressão de uma idéia ou de uma psicologia. Substitui-se o dualismo da idéia e da
expressão pelo monismo da produção corporal: ‘o ator não deve usar seu organismo para
ilustrar um movimento da alma; deve realizar o movimento com seu organismo’
(Grotowski, 1971:91). Os gestos são - ou ao menos se dão como – criadores e originais.
Os exercícios do ator consistem em produzir emoções a partir do domínio e do manejo do
corpo (2003:75).
Entendemos o efeito didático dessa separação, ainda que acreditemos que tamanho
purismo está cada vez mais raro de se presenciar, na prática. Há muitas abordagens da cena
que ultrapassam esse (pseudo) dilema exposto por Pavis, trazendo aspectos de uma e outra
83
concepção de corpo em cena, atrelados em uma busca mais basilar ao teatro: por
expressividade e teatralidade. De qualquer forma, parece haver mesmo certo descompasso
entre uma perspectiva contemporânea do corpo e a proposição que entende que o ator deva
emprestar seu aparato físico a uma outra organização física e mental - a personagem. Como -
e por que - dissociar o corpo-ator de si mesmo - de sua própria história, sua subjetividade - se
essa espessura ontológica pode, inclusive, ser fonte abundante de criatividade e
expressividade? Além de, segundo vários artistas, poder ser essa uma ação que colaboraria no
processo de auto-conhecimento e crescimento pessoal do ator.
Quanto mais nos absorvemos no que está escondido dentro de nós, no excesso, na revelação,
na auto-penetração, mais rígidos devemos ser nas disciplinas externas; isto quer dizer a forma,
a artificialidade, o ideograma, o gesto. Aqui reside todo o princípio da expressividade
(1971:34).
Essa inter-relação está ainda mais explícita em uma outra citação de Grotowski,
encontrada no livro A canoa de papel, de Eugênio Barba:
A ação física deve apoiar-se e fundar-se sobre associações pessoais, íntimas do ator, sobre
suas baterias psíquicas, sobre seus acumuladores internos (1994:164).
E Jean Jacques Roubine, autor de alguns estudos sobre o teatro, acrescenta sobre o método
grotowskiano:
mas o cansaço, o esgotamento psíquico e nervoso que, numa prática tradicional, são
prejudiciais, permitem aqui, pelo contrário, a emergência de uma verdade refugiada,
recalcada, que o autocontrole não pode mais mascarar nem deformar. Em suma, o
esgotamento é o estado mais propício ao autodesvendamento (1998:195).
Apresentando o livro de Cohen, Silvia Fernandes entende que “a fala disforme, o gesto
avesso, a cena assimétrica e disjuntiva, a colagem estranha talvez componham as vicissitudes
necessárias de uma arte que recusa a forma acabada e faz sua ontologia no território obscuro
da subjetividade” (1998: xvii). Esse território da subjetividade, como diz a autora, é muitas
vezes atribuído como fonte de criação de ações da chamada arte da performance. Entretanto,
ainda que possam derivar daí instigações para novas ações das artes cênicas, o fato é que a
dança e o teatro, por exemplo, já incorporaram essa abordagem em seus campos específicos e
a trouxeram para seus processos criativos e suas pesquisas sobre o intérprete-criador e a cena.
Cohen traz um estudo sobre a cena contemporânea, pensando-a como contaminada por
elementos da performance, conceito que ele restringe ao campo da linguagem artística. A arte
da performance seriam ações envolvendo diferentes formas artísticas, inspiradas pelas
vanguardas a partir de meados do século XX. Porém, ainda que seja grande a contribuição de
Cohen no pensar diversos aspectos da cena contemporânea, o autor às vezes cai em dilemas
que fazem seu discurso esbarrar no problema da dicotomia. Quando diz que “o performer
acumula autoria e atuação”, e “o ator opera mais próximo do campo do transporte, da
representação” (1998:81), ele restringe o alcance da noção de ator, e também da de
performance, que contraposta à idéia de ator fica confinada à perspectiva da ação
vanguardística, ou ainda ao campo da linguagem, como ele mesmo sugere20. O paroxismo
dessa dicotomia seria a generalização e radical oposição das idéias de teatro e performance, o
que em nada favorece uma perspectiva plural, que venha a tentar dar conta da diversidade que
é a cena contemporânea.
O teatro tem várias faces, algumas inclusive bastante contaminadas por princípios da
arte da performance. Aliás, de certa forma é o que ele mesmo defende em Work in progress
na cena contemporânea (1998), mas não sem esbarrar em algumas proposições que, a nosso
ver, alimentam antagonismos que não contribuem nesse pensar a cena. Uma delas é a de
achatar – ou até banir em alguns contextos – ao invés de alargar a noção de ator.
20
Performance como linguagem é o título de seu primeiro livro.
85
Em outra passagem, Cohen remete a outra oposição, dessa vez entre as idéias de
poiesis e mimesis. Para o autor, a performance instauraria uma cena da ordem da poiesis em
contraposição à cena da mimesis. E propõe as seguintes definições:
Poiesis enquanto cena gerativa, primária, abstrata - com estatuto próprio enquanto ‘realidade’,
sem contraponto. Mimesis como cena reprodutiva, iconográfica, secundária a uma realidade
primeira (1998:9).
Mais uma vez, e possivelmente sem esse propósito, Cohen parece fomentar uma dicotomia
em uma relação dual, que ganharia mais ao ser pensada como ambivalente.
O LUME não usa essa palavra [imitação] para nomear sua pesquisa nessa área, pois ela pode
sugerir uma imitação estereotipada e estilizada da pessoa. Não é esse o objetivo. Buscamos
uma imitação precisa e real, sim, mas não só da forma e da fisicidade, mas principalmente
das corporeidades da pessoa. [...] Na verdade, uma definição mais precisa seria algo como
“equivalências orgânicas de observações cotidianas”, pois busca imitar não somente os
aspectos físicos, mas também orgânicos, encontrando equivalências (2001: 203, 204).
Em um outro momento, descrito por Burnier (2001: 186), essas ações imitadas passam
por um processo de teatralização, onde são transformadas em material de trabalho, quando
podem ser desdobradas, limpadas, recortadas, coladas, transformadas, enfim, passam por um
verdadeiro processo de montagem, no sentido fílmico do termo.
Matteo Bonfitto investiga a noção de ação física, passando por vários teatrólogos
ocidentais, para depois se perguntar se no kata, esta idéia de ação física – da forma como ele a
vinha tecendo - também se faria presente (2002). O kata é uma espécie de coreografia ou
partitura de movimentos codificados, presente em diferentes tradições de dança e/ou teatro do
oriente, como o Nô, o Kabuki e o Kathakali21. O processo de apropriação do kata, por parte
dos artistas aprendizes, inicia pela imitação do “esqueleto estrutural” (2002:90), o qual é
imutável, do ponto de vista da forma. Entretanto, Bonfitto percebe que à forma se agrega o
que ele chama “qualidade de energia” (2002:90), que seria a contribuição singular de cada
corpo, em cada espaço-tempo de execução deste kata, e que promoveria a atualização desta
forma. Essa re-configuração do kata, na combinação entre seu esqueleto estrutural e a
qualidade de energia empregada por quem o executa, tornaria possível “reconhecer um espaço
de interpretação contido na imitação” (2002:92). Esse espaço de interpretação pode ser
entendido como o aspecto criativo – poiesis – da imitação – mimesis.
José Bizerril, em sua investigação sobre o taoísmo, também fala sobre a mimeses em
práticas corporais ligadas a essa tradição:
A faculdade mimética consiste em tornar-se Outro. Para aprender o Caminho (Tao), é preciso
praticar uma dupla mimese. Imitando em primeiro lugar o mestre, como modelo das técnicas e
atitudes existenciais taoístas e a partir de seu exemplo aprendendo a imitar a natureza, para
desta forma integrar-se a seus ritmos. Essa imitação não é uma simples repetição mecânica,
mas uma recriação do outro em si mesmo e de si mesmo através do outro (2000:206).
Em nossa investigação também passamos por essa dupla articulação, que envolve ao
lado do trabalho criativo, um processo de certa forma mimético. Pensar a ação do vento sobre
o próprio corpo, por exemplo, e deixar surgir daí uma corporeidade a ser transformada em
21
O conceito de kata também está presente em algumas lutas e atividades marciais como o Karatê, o Judô, o
Kung Fu, o Tai Chi Chuan, etc.
87
recurso de composição, passa de certa forma por imitar ou o vento, ou nosso próprio corpo
exposto ao vento, e simultaneamente, ou posteriormente, lidar com esse movimento em
perspectiva poética.
Talvez seja apressado dizer, mas parece difícil imaginar mimesis e poiesis totalmente
dissociadas em uma criação cênica. Poderá haver preponderância de uma ou outra abordagem,
e talvez seja isso que Cohen tenha buscado dizer. Entretanto, mesmo que possam se opor em
alguns aspectos, elas não são excludentes, mas apresentam, tal como numa dinâmica yin yang,
uma complementaridade que parece bastante fértil aos processos criativos. Ou como prefere
Ciane Fernandes, podemos usar o Anel de Moebius, onde “dualidades tornam-se contínuas
gradações em transformação” (2000:123). Então:
Já em outra passagem, Cohen mostra-se avesso a idéias duais quando diz que “não dá
para pensar em apenas dois vetores, opostos, e sim numa multiplicidade de fatores
contingenciais” (1998:23), e usa a expressão “topos pluralético” fazendo referência à diluição
dessas dualidades e à emergência de um estado de pluralidade. No entanto, o que nos parece
mais problemático não é a perspectiva de pensar por pares: usando polaridades como
instâncias-parâmetro, entre as quais, movimento e configurações variadas se darão. Mas sim,
como já foi dito, lidar com o duplo de maneira estanque, intolerante e não reversível,
equívoco bastante comum, em que o próprio Cohen, mesmo criticando o padrão, acabou
incorrendo.
Talvez possamos até falar em uma tendência de deslocamento de uma atuação mais
representativa – predominante em escolas teatrais mais clássicas - para a do tipo
(a)presentativa. O ator está mais disponível para o desnudamento de si em cena, para se
mostrar em características muitos pessoais, idiossincráticas, redimensionadas por abordagens
poéticas e releituras de conceitos. Mas novamente, teremos ainda – e talvez sempre - um jogo
dialético entre as duas perspectivas. Adiante, ao apresentarmos as idéias de Artaud, traremos
também a problemática levantada por Derrida, a respeito da impossibilidade do fim absoluto
da representação.
Ainda sobre esse ponto, no que tange a recepção, Lyotard propõe que quanto menos
representacional for uma obra de arte mais impulsos libidinosos serão provocados no
espectador (Casullo:1993:360-377). Lyotard situa a representação pura no período clássico,
uma semi-representação e positividade energética parcial no período moderno e identifica a
pós-modernidade estética como energia em pleno movimento livre e em metamorfose
contínua (1993: 370). Scott Lash, em análise do livro Francis Bacon – Lógica da Sensação,
de Gilles Deleuze (1993:377-379), atribui a este a idéia de que uma estética pós-moderna se
basearia nas noções de corpo e de força. Deleuze conceberia, ainda, uma lógica da sensação.
Esta sensação teria lugar quando sobre o corpo atuassem forças. Ainda segundo Lash,
Deleuze sugere que a pintura clássica reproduziria formas, a moderna as inventaria e a pós-
89
Notamos ainda, que, para esses autores mencionados acima, seria a partir desse tipo de
abordagem que surgira o elemento encantatório, de sedução e impacto em relação ao público.
Para Jean Baudrillard (1997), por exemplo, o que interessa ao público é justamente o que o
atrai para fora de sua razão, o que o motiva é o segredo, a não revelação, uma espécie de
desafio à irrazão. Para ele, o desconhecido e a provocação, instigam e seduzem,
proporcionando um maior envolvimento e cumplicidade do fruidor com a obra.
Então, entendemos como Baudrillard, que zonas de sombra favorecem sim uma
intensidade de recepção, à medida que provocam no espectador uma espécie de trabalho: o de
produzir sua própria apreensão, retirando-o de uma posição passiva de entendedor de uma
enunciação excessivamente explicitada. Por outro lado, como quer Patrice Pavis (2005), é
90
preciso flechar sentidos, promover certa vetorização de idéias que, em alguma medida,
conduzam, ou indiquem percursos ao público.
Ao se dar conta desses aspectos, Pavis busca em Lyotard o conceito para expressá-los.
Haveria, assim, uma distinção entre um modelo discursivo, da ordem do signo e do
lingüístico, e o figural, que seria um acontecimento libidinal irredutível à linguagem (Pavis,
2005:80). Mesmo que susceptíveis à interpretação ou tradução - o que será sempre possível -
os figurais pediriam outros meios, “além dos da análise gestual semiológica inspirada pela
comunicação não verbal para que se faça sentir os efeitos estésicos dessa coreografia”
(2005:79). Aí entraria o modelo energético do efeito artístico sobre o espectador, o qual se
processaria não tanto pela conjunção e concordância entre signos que agenciam sentidos, mas
também por meio do:
circuito energético que cremos descobrir neles e entre eles, e para o qual a encenação nem
sempre dá a chave, por estar tão ligada e se fixar em sinais visíveis e fixos. A vetorização de
certos elementos do espetáculo produz necessariamente surpresas, potencialidades que é
preciso reter ou descartar. [...] a um outro nível, o dos investimentos psíquicos do espectador
[...] não há mais nenhuma certeza. Se considerarmos esses corpos e esses gestos como um
91
sonho que foi trabalhado e que devemos trabalhar, tudo permanece aberto ao olhar do
intérprete (2005: 80,81).
Deixemos então a recepção para estudos mais estritamente voltados a ela e nos
voltemos à outra tendência comum entre alguns encenadores contemporâneos. Esta é descrita
e estudada por Cohen, para quem o work in process:
A idéia aqui não é procurar ser sábia, no sentido mais ortodoxo do termo. A proposta é
que princípios, lampejos de compreensão dessas formulações encorajem uma disposição ao
fluxo, ao erro (no sentido de nomadismo e de tolerância aos equívocos), à ação da vida sobre
nossas produções artísticas, de nossa arte sobre a vida. Abraçar essas idéias tampouco
significa prescindir de produtos, roteiros ou obras, mas estar disponível a revisitá-los, checá-
los, questioná-los, transformá-los, sempre que isso for necessário. Necessidade esta não
apenas ligada à razão ou análise da obra em si, mas envolvida à percepção dos fluxos de chi
no corpo em cena, e no corpo da cena, à confrontação permanente de te – a virtude enquanto
consonância entre nossa vocação/vontade e nossa conduta, e à pré-disposição a wu wei – ao
devir.
Cohen busca a variável work in process por sentir embutida no termo progress22 certa
noção de evolução, avanço, que ele não considera estar totalmente de acordo com os
princípios do procedimento. O work in process23, assim como a imagem do rizoma, de
22
A expressão original é work in progress.
23
Há problemas em usar o termo metodologia para classificar o work in progress. Segundo o dicionário,
metodologia é arte de dirigir o espírito na investigação da verdade, o que até poderia se aplicar ao work in
Progress, no entanto o verbete método tem um sentido teleológico, um método é um meio para se chegar a um
fim. Se não é possível pensar work in Process enquanto metodologia, isso se dá pelo fato de que o termo
92
Jullien lança um olhar comparativo entre a filosofia, que seria histórica, ligada à
progressão, e a sabedoria, ligada à variação (2000:20)24. Tentando não reforçar essa distinção
como uma dualidade estéril, vale a pena observar seus aspectos. Na filosofia haveria a
expectativa de uma totalização por acontecer, ela evoluiria no tempo, dando saltos causais.
Na sabedoria há a perspectiva de constante regulação, evitando privilegiar o que quer que seja
(2000:48). A filosofia, de lógica panorâmica, tenderia a conceber, enquanto a sabedoria, de
lógica itinerante, atravessaria (2000:54). Para o autor, o que a filosofia trata como enigma, a
ser desvendado em sua epopéia pela verdade, a sabedoria lida como “o oculto evidente”, com
o qual se relaciona por vias diferenciadas daquelas explicativas (2000:57-63).
Partindo desse entendimento de Jullien, poderíamos dizer que quando Cohen prefere
process a progress, ele de certa forma está - ainda que sem ter acesso, talvez, a esse estudo -
abraçando as perspectivas mais voltadas ao universo da sabedoria: variação, processo,
regulação; do que as ligadas à filosofia: progresso, evolução, perspectiva de uma conclusão.
áreas têm trabalhos bastante afinados às questões aqui debatidas, e ainda instigados por
parâmetros – sejam estilísticos, conceituais ou existenciais – de orientação não etnocêntrica.
Entretanto optamos manter nossa moldura restrita ao teatro, tentando aí produzir uma
contribuição mais consistente.
Em nosso estudo elegemos dois nomes pelos quais sentimos nossa investigação
particularmente provocada, com quem dialogaremos um pouco mais intensamente. A escolha
por estes nomes relaciona-se mais a uma afinidade por seus princípios e inquietações do que a
uma coincidência de fontes ou matrizes propulsoras. Artaud e Barba não se voltaram
estritamente para a sabedoria taoísta, como é a proposta dessa pesquisa, mas têm fundamentos
e perspectivas de trabalho que balizam nossa própria prática. Além destes, adiante
intensificaremos um diálogo com o encenador Meyerhold quando estivermos analisando a
cena de Traços, espetáculo resultante da senda etapa de nossa pesquisa.
Uma das razões que nos fez eleger matrizes taoístas como norteadoras do trabalho é a
pista dada por Antonin Artaud, em Um atletismo afetivo (1993:129), sobre uma provável
localização fisiológica de emoções, mencionando a acupuntura como possível meio para esse
estudo. Essa menção gerou o pressuposto de que o estímulo a alguns pontos trabalhados pela
medicina chinesa pudesse promover o acesso a cada uma das cinco energias afetivas,
associadas aos órgãos do corpo, por sua vez relacionados aos cinco movimentos (teoria base
da medicina chinesa): terra, fogo, água, metal e madeira. Imaginamos ser possível erigir uma
metodologia baseada na medicina tradicional chinesa, voltada ao manuseio expressivo dos
afetos. Embora, como já mencionado, não tenhamos conseguido dispor de instrumentação e
pessoal adequado para a confirmação ou refutação de tal hipótese – o que exigiria
acompanhamento especializado e, provavelmente, uma tese de doutorado exclusivamente
voltada a tal ponto, ainda assim Artaud se manteve como uma forte referência. Então,
esboçamos a seguir uma aproximação entre nossa investigação, princípios taoístas e idéias
artaudianas.
Ainda que o projeto artaudiano venha sendo, muitas vezes, encarado como
impraticável e/ou utópico, é inegável sua influência sobre várias manifestações de vanguarda,
94
sobre a arte da performance e sobre o teatro contemporâneo. Isso demonstra que há em seu
discurso - híbrido de manifesto, poesia, crítica e propostas práticas – princípios extremamente
pertinentes e atuais. O que Artaud ora nos empresta não é o seu projeto, mas alguns de seus
princípios. Estes parecem fortalecer e fundamentar a idéia de um trabalho em prol do
exercício expressivo, ancorado em uma sabedoria a um só tempo ancestral e contemporânea.
Lembrando que entendemos esse último termo como relativo a ideários que expressem o
caráter de seu tempo, estando em concordância com o espírito de época atual e suas
necessidades mais flagrantes.
a possibilidade da expressão pelas formas, e por tudo que for gestos, ruídos, cores,
plasticidade, etc. [o que devolveria ao teatro] sua destinação primitiva, [...] seu aspecto
religioso e metafísico, [reconciliando-o] com o universo (1993:67).
26
O que Artaud presenciou no México, a despeito de sua localização geográfica, não se inseria, para o autor, nos
padrões estéticos ocidentais, especialmente por não caracterizar um teatro textual e psicológico.
27
Artaud assiste ao espetáculo balinês em Paris.
95
Em relação ao teatro de Bali, ele se sente invadido por uma superabundância de impressões
(1993:52). Isso parece indicar que há aí um extraordinário potencial expressivo, e que é esta a
expressividade reclamada por Artaud aos atores ditos ocidentais - de tendência textual e
psicológica. Para ele, aí estaria um dos elementos que devolveriam ao teatro sua força
originária, ligada aos rituais, ao sagrado, ao sacrifício, à crueldade. Artaud vai sugerir que,
para além do texto dramatúrgico, se produza uma “linguagem do palco”, sendo que esta seria
cifrada, ou figurativa (mas não ilustrativa). Similar a uma transcrição musical (note-se que a
idéia de partitura também se encontra em Artaud), aos hieróglifos egípcios, ou aos ideogramas
chineses (Derrida, 1971:163-164).
A diferenciação que Artaud faz, de teatro ocidental enquanto cena psicológica, e teatro
oriental como cena metafísica, coloca-nos frente à utilização desse termo – metafísica - de
modo diferente ao que é corrente na filosofia. Para Artaud, esse termo encerra um caráter
duplo, como uma “metafísica em atividade” (1993:38), noção que insere a idéia de um teatro
essencialmente físico e ao mesmo tempo poético e sagrado, onde a materialidade se apropria
de seus sentidos e significações, e é desdobrada em imagens, referindo-se a “uma espécie de
Física primeira da qual o espírito nunca se separou” (1993:56). A metafísica artaudiana está,
sim, ligada à transcendência, mas esta não acontece longe do corpo, em um lugar além. Antes,
a idéia de transcendência, para ele, como para os taoístas, está intrinsecamente ligada à noção
de imanência.
Quando Artaud grita pelo fim das dicotomias – o que nem sempre é feito com muita
clareza, mas é perceptível em várias passagens - ele encontra eco na relação yin yang, que
rege a vida, segundo os chineses. Diz ele:
Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência, sobretudo num domínio
onde a fadiga incessantemente renovada dos órgãos precisa ser bruscamente sacudida para
reanimar nosso entendimento (1993: 83).
96
Essa idéia de renovação, de ciclo, onde a fadiga se reanima, e onde esse movimento é
condição para a apreensão do conhecimento, é uma constante na sabedoria chinesa.
O fato de bastar alguém pronunciar as palavras religioso ou místico para ser confundido com
um sacristão [...] alienado [...], mostra nossa incapacidade de extrair de uma palavra todas as
suas conseqüências e nossa profunda ignorância do espírito de síntese e de analogia (1993:40-
41).
Nessas palavras está novamente manifesta a crítica à visão reducionista que segrega e
hierarquiza valores.
As idéias que roçam na Criação, no Devir, no Caos e que são todas de natureza cósmica,
fornecem uma primeira noção de um domínio em relação ao qual o teatro se desacostumou.
Elas podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a
Natureza e os Objetos (1993:115).
É nesse domínio que a sabedoria chinesa se construiu, e é dele que surgem as bases
para os diferentes campos de conhecimento que contamina. É a certeza da existência de uma
apaixonante (porque movediça e intensa) equação entre o homem e o mundo que o cerca, que
se mostra presente tanto na sabedoria quanto na medicina e em outras práticas taoístas. Ainda
em outra passagem, as idéias de Artaud aproximam-se tanto dos princípios chineses que
parece que o autor está falando destes. Ele diz que a matéria ou temas com os quais o diretor
ou “ordenador mágico” do teatro vai trabalhar “não são dele, mas dos deuses [...] provêm, ao
que parece, das junções primitivas da Natureza que um duplo espírito favoreceu. Ele [o
diretor] mexe com o MANIFESTADO [em maiúsculo no original]” (1993:56). Ora, no que se
constitui toda a base da medicina chinesa senão numa relação (junções primitivas) entre os
cinco elementos (ou fases) da natureza e os outros aspectos a estes associados – manifestações
do tao – bem como nas relações duplas – yin yang – que ocorrem entre eles?
Entretanto, mesmo que muitas outras vozes de Artaud possam ainda ser trazidas como
referências para este trabalho, o ponto mais importante no que tange especificamente a este
97
projeto parece estar mesmo no ensaio Um atletismo afetivo. Aí Artaud indica meios para se
proceder uma busca fisiológica das energias que regem as emoções, considerando de antemão
ser preciso admitir no ator “uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a
localizações físicas dos sentimentos” (1993:129). Além de mencionar a Cabala, de origem
hebraica, como matriz de uma possível dinâmica de respirações que venha a desvendar esse
caminho, ele cita a acupuntura como um conhecimento a ser aproveitado nesse estudo:
Há trezentos e oitenta pontos na acupuntura chinesa, dos quais setenta e três principais que
servem a terapia corrente. Há um número bem menor de saídas grosseiras para nossa humana
afetividade. Um número bem menor de apoios que possamos indicar e nos quais se baseará o
atletismo da alma (1993:136).
De fato, na medicina chinesa existe uma profunda inter-relação entre cinco duplas de
órgãos (sendo um considerado o órgão yin e outro o yang) e cinco emoções básicas, que se
desdobram ainda em outros cinco temperamentos, conforme vimos no diagrama wu hsing. E
Artaud demonstra, inclusive, certo conhecimento sobre a medicina taoísta, note-se essa
passagem:
Todo sentimento feminino que cala fundo, o soluço, a desolação, a respiração espasmódica, o
transe, é na altura dos rins que ele realiza seu vazio, nesse mesmo lugar onde a acupuntura
chinesa dilui a obstrução do rim. A medicina chinesa procede apenas através do cheio e do
vazio. Côncavo e convexo, tenso e relaxado, Yin e Yang. Masculino e feminino (1993:135).
A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável ao ofício do ator. Saber que
uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as
paixões um domínio que amplia nossa sabedoria (1993:136).
Essa convicção alimenta nosso desejo de experimentar caminhos orgânicos, físicos, para a
exploração de afetos, estados, corporeidades, e também instigou-nos a propor os laboratórios
expressivos e processo criativo, pautados numa relação corporal, ao mesmo tempo física,
98
energética e anímica, do ator com os aspectos estruturantes da mandala chinesa e das outras
matrizes eleitas. Esse desejo foi alimentado também por essas palavras de Artaud:
Basta de uma magia casual, de uma poesia que não tem a ciência para apoiá-la. No teatro,
doravante, poesia e ciência devem identificar-se. Toda emoção tem bases orgânicas. É
cultivando sua emoção que o ator recarrega sua densidade voltaica. (...) Conhecer as
localizações do corpo é, portanto, refazer a cadeia mágica. (1993:136).
Derrida percebe nos escritos de Artaud solicitações que vão muito além do campo
estrito da arte teatral. Ao expulsar Deus do palco, na forma de repúdio a um texto onipotente e
à construção logocêntrica e hierárquica, tal crítica artaudiana se estenderia ao monoteísmo, à
filosofia clássica, à política, à ciência, às relações sociais, enfim, teria alcance “no todo da
história do ocidente” (1971:153). Vale notar aqui como Artaud desarticula a idéia de Deus da
noção de divino. O sagrado não está separado da vida em Artaud, como não está para os
taoístas, cabe lembrar. O divino está em Artaud - e no taoísmo, ligado também ao mundo do
99
Se Artaud quis apagar a repetição em geral, se para ele a repetição era o mal, responsável pela
separação de si própria da força e da vida, então sua busca era pela presença pura como
diferença pura (Derrida, 1971: 170, 172). Porém, Derrida constata o paradoxo do fim da
representação no teatro:
o inacessível limite de uma representação que não seja representação, de uma re-presentação que
seja presença plena, que não carregue em si seu duplo como sua morte, de um presente que não
se repete, isto é, de um presente fora do tempo, de um não-presente. O presente só se dá como
tal, só aparece a si, só se apresenta, só abre a cena do tempo, ou o tempo da cena acolhendo sua
própria diferença intestina, na dobra interna da sua repetição originária, na representação, na
dialética (1971:173).
o teatro da crueldade não começa nem se realiza na pureza da presença simples mas já na
representação, no “segundo tempo da Criação”, no conflito das forças que não pôde ser o de
uma origem simples (1971:173).
Derrida desfia ainda uma longa lista de todo o teatro que não poderia ser considerado
fiel ao projeto artaudiano (1971 167-170), chegando praticamente à impossibilidade do
mesmo. Porém, ao fim ele diz que ainda que o teatro primitivo e a crueldade comecem
também pela repetição,
a idéia de um teatro sem a repetição, a idéia do impossível, se não nos ajuda a regular a prática
teatral, permite-nos talvez pensar a sua origem, a véspera e o limite, pensar o teatro de hoje a
partir da sua história e no horizonte da sua morte. [...] Artaud manteve-se muito perto do limite:
a possibilidade e a impossibilidade do teatro puro. A presença para ser presença e presença a si,
começou já sempre a representar-se. [...] O que quer dizer que o assassínio do pai [Édipo
matando Laio, na tragédia grega] que abre a história da representação e o espaço da tragédia, o
assassínio do pai [Artaud matando o texto, matando Deus] que Artaud quer em suma repetir [...]
esse assassínio não tem fim e repete-se indefinidamente (1971: 174-175).
100
Mas Derrida sabe que Artaud tinha consciência de ter querido ao mesmo tempo
produzir, recuperar e destruir a cena. Ele não teria conseguido resignar-se ao teatro como
repetição e nem renunciar ao teatro como não-repetição (1971:175).
O teatro como repetição daquilo que não se repete, o teatro como repetição originária da
diferença no conflito das forças [...] tal é o limite mortal de uma crueldade que começa pela sua
própria representação. Por que ela sempre já começou, a representação não em portanto fim.[...]
O fechamento é o limite circular no interior do qual a repetição da diferença se repete
indefinidamente. Isto é, seu espaço de jogo. [...] Pensar o fechamento da representação é pensar
o trágico: não como representação do destino, mas como destino da representação. A sua
necessidade gratuita e sem fundo. Eis porque no seu fechamento é fatal que a representação
continue (1971: 176-177).
Patrice Pavis é o responsável por uma das principais críticas a Barba, debruçando-se
detalhadamente sobre sua Canoa de papel (1994)28. Em relação à denominação de
antropologia que ele dá a sua cartografia, o questionamento de Pavis (2007) levanta alguns
aspectos. Um deles é fato de que Barba se exime de articular aos aspectos que ele nomeia
pré-expressivos, outras questões, de ordem sociológica e estética. Porém Pavis lembra que,
por um lado, essa formulação pré-expressiva ou biológica, referente à base das manifestações
expressivas de gênero, estilos e papéis, engoloba sim categorias claramente estéticas. Por
outro lado, o crítico ressalta que as relações entre os elementos teatrais identificados em uma
determinada manifestação, e outros aspectos da mesma cultura, são ignoradas por Barba.
De fato parece que o título Antropologia Teatral quer projetar as idéias barbianas
como mais científicas do que realmente seriam, de acordo com os princípios acadêmicos e
epistemológicos vigentes. Pavis aponta ainda a confusão que o termo teatral provoca na
expressão Antropologia Teatral, já que Barba se debruça não somente sobre o teatro como
linguagem, mas também sobre ações culturais que contém teatralidade e espetacularidade.
Enfim, para Pavis:
A Antropologia Teatral teria mais valor se fosse considerada como uma teoria provisória que
como uma ciência dura, mesmo que seja uma “ciência pragmática” (expressão que nos parece
mais contraditória que um oximoro) (2007:17, 18).
A escritura desenrola a meada que se torna mais linear e menos verídica. A experiência, em
vez disso, é contigüidade de ações, de perspectivas simultâneas. Quando agimos, estamos
contemporaneamente presentes em diversos níveis de organização (1994:193).
28
O texto Uma Canoa à Deriva?, de Patrice Pavis, publicado originalmente em: Théâtre Science Imagination –
2, teve tradução, ainda não publicada, de Mônica Mello e Joice Aglae com revisão de Armindo Bião. A tradução
foi gentilmente cedida pelas autoras, em colaboração a esta tese. Todas as citações de Pavis indicadas pela data
(2007) referem-se a esta tradução, até o momento sem publicação.
102
Barba mostra aqui, conforme notou Pavis, sua angústia ao perceber o hiato que se instala na
dissociação, ainda que circunstancial, entre teoria e prática. Tal percepção está tratada em
abordagens da sabedoria taoísta, onde prática e teoria - ou conduta e idéia – apresentam, ou
deveriam, uma complementaridade tal que as tornam indissociáveis. Este amálgama seria de
tal natureza que, quando rompido, corromperia também sentidos específicos de cada uma
dessas instâncias.
É interessante ressaltar que Barba, quando aponta diferenças que considera mais
intensas entre perfis de atores no mundo, não o faz em relação a oriente e ocidente, mas entre
os hemisférios sul e norte (1994). Grosso modo, para Barba os atores do Pólo Norte29
caracterizam-se pelo aprofundamento técnico e pela imersão em um estilo de atuação ao
longo da carreira, enquanto os atores do Pólo Sul seriam orientados por várias influencias as
quais, mestiçadas, levariam a um estilo pessoal e menos rígido. Paradoxalmente, no entanto,
Barba lembra que isso não significa que os atores do sul tenham mais liberdade no processo
criativo do que os do norte. Ao contrário, segundo ele, seria a técnica, quando corporalmente
assimilada por meio de um treinamento rigoroso (segunda natureza – veremos esse conceito
adiante), a principal responsável pela desenvoltura criativa do artista.
Essa inversão da bússola poderia sugerir que o autor não se dobra a categorizações
usualmente aceitas – teatro oriental e ocidental, se esforçando por identificar, através de suas
próprias investigações - minuciosos estudos teórico-práticos, frutos de observações, leituras,
trocas, treinos - as distintas características em diversas faces do teatro. Entretanto esta
observação é criticada por Pavis, que percebe aí a perda de uma oportunidade de análise
comparativa por meio de aspectos que aproximem, e não que afastem os dois objetos de
estudo:
uma outra oposição parece-nos igualmente nefasta e artificial: essa entre ator do Pólo Norte,
que “modela seu comportamento cênico segundo uma rede bem experimentada de regras que
definem um estilo ou um gênero codificado” (p. 27) e o ator do Pólo Sul que “não pertence a
um gênero espetacular caracterizado por um detalhado código estilístico.” (p. 27). Tal
dicotomia separa radicalmente duas maneiras de atuação que se poderia, pelo contrário,
confrontar examinando, antes, aquilo que os aproxima, ou seja, o fato de que a convenção do
ator, a codificação, a semiotização do corpo e do comportamento são mais ou menos afixados
e conscientes, mas existe sempre (2007:6).
Porém, o que parece escapar a Pavis, é que o estudo comparativo levantando os pontos de
contato entre diferentes abordagens da cena é justamente o objeto maior de Barba. Se ele se
29
A tradução brasileira optou por tratar por pólos sul e norte, o que a nosso ver parece que estaria mais bem
descrito por hemisférios sul e norte.
103
propõe a esse comentário - que diferencia o ator do hemisfério sul do ator do hemisfério norte
- não é por que ele creia que deva proceder a sua análise pela via da contraposição. Antes, é
justamente visando desconstruir a oposição vigente e automática - entre a cena do leste e a
cena do oeste - que ele tenta demonstrar que poderia não estar aí a maior diferença existente
entre tendências do teatro no mundo.
Mas nem sempre Barba evitou essa terminologia. No ensaio Teatro euroasiano
(1991:193), Barba comenta a mútua admiração e o potencial de troca e aprendizagem entre as
formas como, de um modo geral, se pratica teatro nos chamados oriente e ocidente.
Entretanto, ele se recusa a fazer parte de um dos pólos desse dualismo, se colocando como um
híbrido, como representante de um teatro euroasiano, que se inscreve numa “dimensão
transcultural, no fluxo de uma ‘tradição das tradições’” (1991:193). A posição fronteiriça
assumida por Barba nessa declaração o insere numa abordagem bastante contemporânea, por
um lado. Por outro se flagra aqui um traço de seu discurso que também esbarra em críticas.
As palavras estáveis possuem a fragilidade de sua estabilidade. Para cada afirmação clara
existe um equívoco. No trabalho, certas palavras iluminam como relâmpago n’água. Quando
escritas mudam perigosamente sua natureza (1994:193).
permitiria a mudança de lugares, sem a perda referencial das origens (1991:195). Essas idéias
transculturais têm pontos em comum com a noção de rizoma, tipo de raiz não pivotante,
metáfora para processos de desterritorialização. Esta semelhança reforça no projeto de Barba
seu caráter contemporâneo, ou seja, o de estar em consonância com aspectos do ideário que
rege seu tempo. Buscar apoio em outras culturas, mestiçar, trocar, desenraizar segundo um
ethos, operar na fronteira, são princípios que regem também a nossa pesquisa.
Quando Barba fala nesse ethos regente – cuja base passa por um imperativo ético e um
comportamento artístico (1991:193) - parece se referir fundamentalmente a um sentido para
vida, que cada um deve descobrir em si, e no seu labor. Para Barba, “não se pode escolher
idéias esperando que estas o mudem. É necessário escolher condições de vida e de trabalho”
(1991:160). Como os taoístas ele se nega a separar o campo das idéias do campo da conduta.
E ainda, para Barba o sentido do teatro é bem mais que produzir e mostrar espetáculos,
passando por entender que o processo cênico que se escolhe viver, a forma como são
construídas as relações de grupo, podem, e devem envolver o ser humano como um todo, não
apenas do ponto de vista técnico e artístico.
Ele alerta, quanto à questão ética e quanto à função do teatro para sociedade - muitas
vezes encarada de forma simplista – que “apegar-se a um teatro político significa evitar o
problema de fazer, com o teatro, uma política” (1991:158). Para além de um teatro partidário,
que age pela via do discurso ideológico, é preciso provocar com a arte transformações
moleculares, aquelas no campo de fluxos e intensidades singulares (Deleuze e Guattari:1995).
E estas não devem apenas mirar os corpos da recepção, mas partir dos corpos que criam.
Talvez seja por tudo isso que Barba, a exemplo de outros nomes do teatro, prefira falar numa
atuação que se ergue na “fronteira entre representação e testemunho” (199:130). Não se
desvincula, aqui, o ator do homem. Em última instância, quiçá, não se desvincule o
personagem deste homem. Trata-se de perspectiva similar a que buscamos em nossas
proposições artísticas, e está inscrita entre as tendências que discutimos há pouco.
Existe outro ponto em comum entre as idéias de Barba e nosso propósito. Há nessa
pesquisa uma intenção além da busca de expressividade, ainda que esta seja nosso objeto
norteador. Move-nos a conjectura – de difícil comprovação científica - de que os
procedimentos criados, por partirem das já mencionadas fontes, são capazes de legar aos
atores – antes de tudo seres humanos – caminhos para meta-equilíbrios, os quais partem e
retornam ao “longe do equilíbrio”. Embora não seja um pensador da arte, Ilya Prigogine ora
105
nos empresta suas idéias, que se referem à viabilidade da vida apenas como organismo em
contínuo agenciamento. Segundo ele, “num tom metafórico, pode-se dizer que no equilíbrio a
matéria é cega, ao passo que longe do equilíbrio ela começa a ver” (1996:70). A proposta de
nossa investigação é usufruir de todo esse potencial criativo, energético e vital do “longe do
equilíbrio”, o qual, ao mesmo tempo em que parece caótico, tem sua vocação de visão. O
artista, estimulado em sua inteligência vibrátil, em seus potenciais perceptivo, sensitivo,
sensorial, energético, pode, ao criar, também se orientar por um sentimento de busca de
harmonizações provisórias, ou regulações, as quais não têm, aqui, sentido teleológico e
enraizante, e nem desejam evitar zonas de instabilidades “longe do equilíbrio”.
Barba contribui com novas leituras para a noção de harmonia. Para ele, a conquista
dessa harmonia estaria ligada àquela busca pessoal, vinculada ao ethos, que se materializa, se
transforma em algo objetivo, e se manifesta como “proporção ativa, movimento em quietude”
(1991:20). Ainda para Barba, “a palavra ‘harmonia’ indica o sentido desta luta pessoal em
busca de novas tensões que recriam a vida, que impulsionam um renovado sentido àquilo que
perdeu e está perdendo sentido” (1991:22). Reforçamos assim que, quando falamos em
harmonia ou equilíbrio, entendemo-los enquanto estados transitórios, mutáveis e temporários.
Orientamos-nos pela busca destes meta-equilíbrios, mas cientes de quem tão logo os
alcancemos, antes que a eles nos enraizemos, já será hora de questiona-los, e de recomeçar
nossa busca. Jullien lembra que essa é uma das características da sabedoria:
ela não separa o “estável” do “instável” [...] como ela não sonha com uma estabilidade que
não seja a da regulação (a do caminho, o tao), também não é consciente de uma instabilidade
das coisas, ou pelo menos o caráter movediço destas não é capaz de afeta-la. Por isso o sábio
não se desinteressa da ocasião, como momento oportuno, mas tampouco permanece
prisioneiro dele [...] Seu pensamento se volta ao mesmo tempo para o “possível” [...] e para o
“momento”. [...] Sua adequação não é puramente circunstancial [...] nem tampouco repousa
em princípios ideais [...] e é, aliás, precisamente a esta não-separação que se deve sua
sabedoria (2000:110-111).
Um outro tema trazido por Barba que mereceu extensa provocação por parte de Pavis
é a noção de pré-expressividade. Para Barba, o que o treinamento em nível pré-expressivo
proporciona ao ator é o livre exercício da criação, sua afirmação enquanto artista, a liberdade
de criar sem objetivos a priori, “é o que faz o ator existir como ator” (1994: 174). Segundo
ele, independente do estilo, o campo pré-expressivo concerne ao caráter real da ação. E esse
caráter real parece se referir a duas idéias. Primeiro ao empenho, à implicação total do ator no
seu trabalho, sua mobilização, sua opção em abraçar o ofício. Segundo, à construção de um
corpo extra-cotidiano, mas crível. É no campo pré-expressivo que o ator vai treinar
tecnicamente e alcançar uma “segunda natureza” - termo que ele toma emprestado a Decroux.
Esta noção se refere à capacidade do artista criar corporeidades extra-cotidianas, com uma
desenvoltura adquirida na prática com rigor de um treinamento específico, em nível pré-
expressivo. A noção de segunda natureza pode ser entendida ainda a partir da descrição de
François Jullien sobre a prática da sabedoria:
[...] a partir do momento em que, de tanto esforço e dedicação, “isso” começa a dar resultado,
como se diz (dizendo assim a imanência), a capacidade tende em seguida a se manifestar por
si mesma, sem que precisemos mais nos preocupar, nem sequer pensar para fazê-lo – sem
mais esforço nem atenção: como um “fundo (patrimônio)”, sempre pronto a surgir (2000:80).
Uma das críticas de Pavis é para o fato de que, para ele, o nível pré-expressivo não
seria suficiente “para dar conta da produção concreta do sentido, fenômeno que vai muito
além dos princípios do bios, da energia, da presença e da oposição” (2007:11). Porém nos
perguntamos: teria Barba querido dizer que seria? Afirmar que um corpo extra-cotidiano salta
aos olhos e chama atenção equivale a afirmar que se possa ou deva prescindir de uma
construção dramatúrgica ou de sentido da cena? Será mesmo que, como diz Pavis, Barba “não
se interessa por uma teoria semântica do sentido para explicar a passagem do físico ao
mental” (2007:9)? Ou não será mais plausível imaginar que, se Barba não se propôs a tal
função, não é porque, como Pavis sustenta, ele creia ou abrace uma abordagem que
30
Conferir capítulo homônimo em A canoa de papel, presente em nossa bibliografia.
107
Mas, tão somente, talvez, porque o lugar de onde Barba formula sua “teoria”, o lugar onde ele
transita com intimidade e segurança, onde ele alimenta seus próprios postulados e de onde
fornece subsídios de alta eficiência ao trabalho do intérprete, é o lugar de quem faz, o lugar do
ator, do diretor, dos fazedores da cena. Diferente do lugar de Pavis, lugar que se propõe a dar
conta do fenômeno de forma mais complexa, e que, por isso, precisa necessariamente lançar a
ponte entre a produção e a recepção. Talvez o que Pavis esteja solicitando a Barba,
simplesmente não seja de sua alçada - o que não o coloca em uma posição menos legítima ou
útil à pesquisa em arte, inclusive a acadêmica. O próprio Pavis tem estudos importantes sobre
a recepção31, e demonstra poder colaborar no desdobramento das idéias barbianas, dentro da
perspectiva que ele reivindica. Aliás, ele mesmo anuncia isso: “Vetorização do desejo: tal será
o oximoro que nós proporemos para ligar a energia ao pensamento, para estudar o percurso
energético do sentido e o sentido desse percurso” (2007:10).
Pavis entende ainda que a idéia de pré-expressividade está tratada por Barba com
imprecisão, do ponto de vista teórico (2007:2). E solicita:
Desejaremos que ele resolva o entrave da oposição, para nós insustentável visto que artificial,
entre pré-expressivo e expressivo e volte-se para aquela mais tangível da partitura/sub-
partitura que abre, de uma vez por todas, a visão a uma dramaturgia do ator (2007: 14).
De fato, a pré-expressividade é uma idéia mais empírica que conceitual, e Barba a cerca
menos por meio de definições do que através de associações e levantamento de suas funções,
o que parece não satisfazer Pavis. Entretanto, talvez Barba fuja dessa definição exata,
justamente por estar consciente de que a divisão por ele proposta tem caráter didático, não
real. Não se trata de desatrelar o que é expressivo do que é pré-expressivo - entendimento que
também incomoda Pavis - nem de entender este último como cronologicamente anterior ao
primeiro. Para ele o nível pré-expressivo não é um nível que deva ser separado da expressão,
mas apenas uma categoria pragmática:
31
Conferir “A análise dos espetáculos”, presente na bibliografia.
108
Em outros textos o crítico tenta mais aproximações com a idéia. Após diferenciar uma
“partitura” preparatória – constituída durante os ensaios pelas seqüências de escolhas no
processo, e uma “partitura terminal” – a do espetáculo tal como apresentado ao público, ele
liga esta última idéia à noção de “texto espetacular” (2005:89,90). Em outro momento ele
aproxima mais a idéia do trabalho de interpretação, pensando uma partitura cênica, ou
partitura do ator, a partir de princípios de Barba e Grotowski:
• a forma geral da ação, seu ritmo em linhas gerais (início, ápice, conclusão);
• a precisão dos detalhes fixados: definição exata de todos os segmentos da ação e de suas
articulações [...];
• o dínamo-ritmo, a velocidade e intensidade que regulam o tempo (no sentido musical) de
cada segmento. É a métrica da ação, o alternar-se de longas e curtas, de tônicas
(acentuadas) e átonas;
• a orquestração da relação entre as diferentes partes do corpo (1994:174).
109
Se se entende dramaturgia como a arte de entrelaçar ações, pode-se falar de uma dramaturgia
do ator para indicar o modo pelo qual ele entrelaça as suas composições no quadro geral do
texto e da construção do espetáculo (1994:179).
E ainda em Barba:
Aquilo que diz respeito ao texto (a tecedura) da representação pode ser definido como
“dramaturgia”, isto é drama-ergon, o “trabalho das ações” na representação. A maneira pela
qual as ações trabalham é a trama (1995:69).
O domínio – tanto o levantamento quanto a seleção – da partitura pelo ator não é outra coisa
senão a dramaturgia do ator. [...] Na tradição ocidental o texto pré-existe em relação à
encenação. Diferentemente, na dramaturgia do ator haverá um material gestual elaborado por
este – a partitura – e, em seguida, disposta em uma montagem segundo a lógica do encenador
(2007:15).
O estabelecimento tão objetivo de uma partitura obriga a pensar na existência de uma sub-
partitura, já devidamente diferenciada do pré-expressivo. A sub-partitura não tem nada de
impreciso ou universal como esse último, ela é a base diacrônica que acompanha e sustenta a
dramaturgia do ator e sobre a qual ele se apóia para fazer emergir sua partitura (2007:15).
Entretanto nos perguntamos por que Pavis entende que Barba deva substituir a
articulação entre pré-expressividade e expressividade, pela de sub-partitura e partitura, se,
apesar de se complementarem, as noções se referem a aspectos diferentes de um mesmo
campo de trabalho – o do ator. Assim, quando o crítico diz:
Para nós, essa (pré-expressividade) é uma noção bastante imprecisa de um ponto de vista
teórico, que preferimos substituir por outras mais sólidas e concretas, da partitura e sub-
partitura (2007:2),
tampouco remetem a idéias e imagens ligadas ao tao, uma vez que sofreram re-alocação de
significado na posta em cena. As sub-partituras, por outro lado, estão recheadas desse
imaginário taoísta, constantemente acionado para que possamos re-instalar as formas e
qualidades do movimento, evitando cair em uma literalidade que o processo de re-
contextualização poderia trazer, com o tempo, ao distanciar-nos das matrizes.
Um outro ponto de contato entre nossa pesquisa e a de Barba é lida com aspectos sutis,
chamemos estes de energia ou de chi. Termo também criticado em Pavis (2007:2), energia
tem em Braba a acepção de uma “temperatura-intensidade pessoal que o ator pode individuar,
despertar e modelar” (1995:94). Os treinos com chi, usados em nossa preparação, funcionam
como acionadores e re-organizadores de nosso chi, visando o re-equilíbrio corporal constante,
objetivo original do chi kung. Mas também foram aplicados com função expressiva,
intensificando pontos e partes do corpo, ou buscando qualidades energéticas específicas (mais
yin, mais yang, captação da força do sol ou da terra, etc.).
Barba associa esse tema à outra noção basilar a seu acervo técnico, o de corpo-mente.
Barba revê as separações usuais das instâncias do ser, com expressões como “exercícios
físicos são sempre exercícios espirituais” (1994:128), ou “o pensamento tem um aspecto
físico” (in Pavis, 2007:11), ou “corpo decidido” (1995:18). Pavis vai então reivindicar, a
partir da abordagem barbiana que:
a busca do sentido deve se efetuar, para o ator como para o espectador, do ponto de vista de
um corpo-mente, de uma entidade inseparável, e não, examinando como uma emoção se
expressa externamente numa forma ou, inversamente, como uma forma exterior, impressa ao
corpo, produz emoção. A formação do ator e sua intervenção cênica consistem em ultrapassar
o dualismo para realizar a experiência da unidade entre as dimensões interior e exterior. [...] O
112
Aqui vale anteciparmos a idéia que traremos no próximo capítulo, para pensar a noção
de expressividade. Cientes de que a colocação de Pavis mostra pertinência, optamos por tratar
essa noção imbricando processos contínuos e complementares de expressividade e do que
chamamos impressividade. Como veremos, tais processos funcionam inseparavelmente, qual
num Anel de Moebius, onde não sabemos sequer quando um lado acaba e o outro começa.
Finalizando nosso diálogo com Barba retomamos Pavis, que após toda sua minuciosa
crítica à canoa de papel barbiana, termina seu ensaio em tom reconciliatório:
Mas, no fundo, que importância tem essa deficiência, já que toda essa “base teórica” (p.08) é
feita para estimular os artistas e que sua metalinguagem, misturando cientificidade (duvidosa)
e poesia (sublime), é concebida mais para agir sobre sua prática que para descrevê-la. Daí a
eficiência e originalidade de suas palavras-instrumento: o sats, a energia, a eficácia pré-
expressiva, a ação disciplinada por uma partitura, instrumentos eficazes tanto para sua base
teórica como para o debate atual a cerca do interculturalismo (2007:17).
Assim entendemos que o acervo conceitual-prático de Barba funciona mesmo por meio de
compreensões tácitas, ou até corporais, por parte dos artistas, mas principalmente: funciona,
demonstra eficácia.
A esse proposto convém trazer mais uma vez a sabedoria chinesa para balizar nosso
entendimento. François Jullien distingue a eficácia derivada da filosofia grega - onde formas
ideais e modelos abstratos apriorísticos se projetariam sobre o mundo, e onde a vontade teria
como meta realizá-los – e outra idéia de eficácia advinda da China – “a que ensina deixar
advir o efeito: não visá-lo [...], mas implicá-lo [...], não buscá-lo, mas recolhê-lo” (1998:9). A
primeira perspectiva descrita é a mesma que privilegia a teoria em relação à prática, em
abordagens que primeiro determinam em um plano teórico o que a prática, àquele submetida,
deve executar (1998:15). A segunda, não inverte os papéis, simplesmente desconsidera a
relação teoria-prática, enquanto questão, talvez por sequer conceber uma desarticulação entre
ambas. O pensamento chinês
desconhece-a [a relação teoria-prática], mas não por ignorância, ou porque ele teria
permanecido na infância; ele simplesmente passou ao lado. Como passou ao lado da idéia do
Ser ou do pensamento de Deus (1998:29).
113
Assim, teremos, na China, uma noção de eficácia ligada ao efecto, dimensão operatória do
efeito, o efeito em curso, efetivo, já que o termo efeito, simplesmente, pode soar como uma
perspectiva causal, explicativa e demonstrativa (1998:147). Citando Jullien, sobre o efecto:
Sua questão é antes como o real advém: como ele “funciona” [...] e se torna “viável” (ao ser
regulado: o tao). Pois, não cessando de se entre-afetar [...], a realidade não cessa de tornar-se
efetiva: estando sempre a se desdobrar, e justamente por ser coerente e regulada, realidade
nunca acaba de advir e não pode se esgotar. Um pensamento da processualidade, poder-se-ia
dizer [...] Diferentemente do efeito (visando agir numa relação meios-fim), o efecto não deve
ser “buscado”, de forma direta e voluntária; ele é chamado a decorrer “naturalmente” do
processo encetado (1998:148).
Parece-nos que o ideário barbiano teve sua construção mais pautada nessas noções
chinesas de eficácia e efecto – mesmo que ele ignore isso – do que naquela ocidental. É claro
que a construção metafísica de pensamento, com mais de dois mil anos, deixa suas marcas por
vezes insuperáveis, mesmo quando tentamos driblá-la. Claro também que essa mesma
construção não está aqui sendo colocada em cheque em sua totalidade, aliás, seríamos
absolutamente incompetentes – até por que ignorantes dessa totalidade – para fazê-lo de
forma minimamente responsável. Nossa disposição – e não pretensão – é de questionar alguns
pontos dessa construção filosófica dominante, propondo aqui e ali algumas abordagens que
operem por outras vias, fomentando outras formas de percepção, partindo de princípios
diferenciados. Por fim, em que pesem as ressalvas de Pavis feitas à Barba, assim como várias
críticas pós-colonialistas que entendem seu projeto como colonizador e universalista, nos
apoiaremos em alguns aspectos pragmáticos – eficazes – de seu estudo, conscientes da
deficiência de seu discurso.
114
CAPÍTULO 3
Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelo caminho
(Lispector, 1998:67).
Nas linguagens cênicas, que envolvem atuação ao vivo, o corpo tanto é o objeto
quanto sujeito da obra32. Pela própria natureza dessas linguagens, e de forma cada vez mais
intensificada, o corpo confunde-se com o projeto artístico. A intensificação desse viés se deve
especialmente à apropriação crescente de princípios da arte da performance e das vanguardas
artísticas do século XX, por parte da cena contemporânea, e à revisão da noção de corpo por
parte da ciência e da filosofia. Além disso, uma montagem teatral ou de dança, diferente de
uma pintura, escultura ou vídeo, por exemplo, não terão jamais autonomia em relação a seus
a(u)tores. Por tudo isso cumpre que tratemos deste corpo.
32
Conferir MEDEIROS, Maria Beatriz. L'Artiste Plasticen, Suject et Object de L'Art. Vol. I Tese de Doutorado.
Universidade de Paris I, Sorbonne, Paris, 1989.
115
É mais que sabido que a filosofia ocidental, fortemente marcada pelo platonismo, pela
tradição judaico-cristã e pelo cartesianismo, legou-nos uma idéia dicotômica do ser humano 33:
constituído por um organismo físico, foco de prazeres e/ou mazelas, e por uma organização
não física (ou metafísica), responsável pelas faculdades tidas como mais nobres pela maior
parte das abordagens filosóficas: a razão, a linguagem, a transcendência. Esta última instância
foi chamada de mente, espírito, consciência. A primeira instância foi usualmente tratada por
corpo.
Não nos estenderemos na questão do feminino, por não ser este o objeto do presente
estudo, no entanto, não podemos ignorar por completo esta questão. Então diremos muito
resumidamente que a discriminação que a mulher tem sofrido ao longo dos séculos se
33
Especialmente no século XX, começa a haver investidas mais constantes da ciência, da filosofia e da arte no
sentido de desconstruir essas dicotomias.
116
relaciona, entre diversas outras razões, a esse predomínio da visão idealista ou espiritualista
sobre a visão materialista. As mulheres abrigam diferentes processos de fortes indícios
selvagens, todos ligados à possibilidade de geração, reprodução. Menstruação, gravidez,
parto, aleitamento, são signos muito fortes de referência à nossa condição animal. O
raciocínio, de modo simplificado, seria: se os processos corporais femininos possuem mais
indicativos de animalidade do que os masculinos, então as mulheres se aproximariam mais
daquela instância a ser vencida, superada, sublimada, e, consequentemente, se distanciariam
da instância inteligível, já que nos pensamentos dicotômicos estão inscritas hierarquias que
fortalecem um dos pólos dicotômicos no enfraquecimento do outro.
Na tradição taoísta o dual não significa dualista, ou antagônico. Como observamos nas
dinâmicas entre yin e yang, as paridades são impregnadas de movimento e interação. A
instância a ser alcançada ou recuada vai estar de acordo com uma determinada circunstância.
Para a medicina chinesa, fortemente influenciada pelo ideário taoísta, por exemplo, se uma
pessoa ou um órgão do corpo está muito yin procura-se estimular a diminuição desse aspecto,
se seu lado yang está frágil, age-se no fortalecimento deste. Não se trata nunca de uma
equação estática e absoluta, mas relativa às necessidades de um dado contexto.
Os pensamentos do dilema são [...] incapazes de perceber seja o que for [...]. Não há que se
escolher entre o que vemos [...] e o que nos olha. Há apenas que se inquietar com o entre [...]
tentar dialetizar [...] voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao motor dialético de
todas as oposições (1998: 77).
117
Didi-Huberman se refere aqui a uma questão específica, ligada às artes visuais, mas
seu comentário nos serve de alerta em relação à redução de possibilidades de compreensão e
leitura a que nos levam pensamentos binários, quando orientados por princípios que
promovem o elogio de um pólo e o rechaço do outro. Enquanto o foco de preocupação estiver
sendo escolher entre um dos pólos de um dilema, perde-se a oportunidade de se questionar
sobre a própria validade da idéia do dual enquanto dilema. É o que Didi-Huberman reafirma
ao defender que, em qualquer domínio a verdadeira questão consistiria, não em optar por uma
posição de um dilema, mas em se construir uma posição capaz de ultrapassá-lo (1998:154).
Suponhamos que todas as grandes oposições distintivas que organizam nossa relação com o
mundo sejam atravessadas pela sedução, em vez de ser fundadas na oposição e na distinção.
Que não apenas o feminino seduza o masculino, mas que a ausência seduza a presença, que o
frio seduza o calor, que o sujeito seduza o objeto, ou ao contrário, claro, pois a sedução supõe
esse mínimo de reversibilidade que acaba com toda oposição ordenada (Baudrillard,
1991:119) .
Por outro lado, Grosz, critica menos o conceito em si - devir-mulher - do que o fato
deste não estar sendo criado por mulheres. De qualquer modo, em que pese tanto a crítica de
Grosz, quanto de outros tantas pensadores sobre alguns aspectos dos discursos de Deleuze e
Guattari, encontramos ainda muita eficácia em várias das metáforas e noções usadas pelos
autores. Assim, atenta a eventuais problemas na lida com as construções trazidas por eles, me
parece bastante proveitoso fazer uso destas.
Por outro lado, o atual boom de cirurgias plásticas entre mulheres chinesas – e de
outras origens orientais – apresenta outra face de escravidão desse feminino: a ânsia pela
alteração das feições e características étnicas. Cirurgias nos olhos, narizes, nas pernas (quebra
de ossos e enxertos para ficarem mais altas), entre outras transformações, são buscadas por
mulheres chinesas visando parecerem cada vez mais com o padrão ocidental. Há aí algo além
das questões relativas à busca frenética de um corpo perfeito, o corpo da revista ou da TV.
Essas questões são globalizadas, não se trata de um privilégio das mulheres de feições
orientais. Mas além de aspectos como a recusa do envelhecimento, a busca da aparência
sedutora, a dificuldade da mulher se afirmar por outras vias, e uma série de outras
implicações, há aí uma negação adicional: a de sua identidade racial.
também) e passa a enumerar alimentos de um regime rigoroso – verduras e frutas. Por fim ela
se oferece à audiência com o texto “olha que xuxu, olha que xuxu...”, como uma “icônica
mulher-fruta, ‘típica’ de tantas versões de naturalização de nossos femininos nacionais”, como
observou o professor Fernando Passos, em comentário sobre o espetáculo que me foi enviado
por e-mail (vide anexo B.6, que traz comentários do público).
Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem, como vimos, uma lógica rizomática.
Segundo os autores um rizoma não começaria nem acabaria, mas se encontraria sempre no
meio, entre as coisas, inter-ser (1995:37). A expressão “fazer rizoma” pode, ainda, ser
entendida como a feitura de uma trama de agenciamentos e conexões entre vetores
imprevisíveis e linhas de fuga, que vão criando um mapa, uma teia de
pensamento/entendimento não linear. A noção põe em cheque estruturas causais e retilíneas,
baseadas, entre outras coisas, em visões dualistas e polarizantes, na medida em que privilegia
o inter-ser, o percurso e não os pontos extremos e fixos de chegada ou saída, que seriam as
polarizações. Lembremos que a imbricação yin yang se dá na mobilidade do par, nas várias
configurações de percurso entre os pólos – o que promove multiplicidade, e na possibilidade
de inter-transformação destes pólos. Ainda a partir da metáfora do rizoma, Deleuze e Guattari
apresentam a idéia de multiplicidade (1995). Um determinado plano de imanência, o ser, por
exemplo, manifestaria uma predisposição inata de mudar, se desterritorializar, de estar
continuamente em negociações, de assumir e descartar orientações múltiplas, advindas das
122
múltiplas possibilidades que a experiência de estar/ser vivo nos oferece. É a transição de uma
idéia de sujeito enquanto indivíduo, para a de uma subjetividade em movimento.
François Jullien, re-visita o adágio confucionista que diz que o sábio não tem eu, para
daí derivar que o sábio não tem idéia. O que o autor quer dizer é que o sábio nem privilegia
nem exclui idéias, simplesmente não se fixa em nenhuma delas, buscando abordar o mundo
sem visão preconcebida (2000:21). Por sua relação aberta, ele esposaria toda a diferença, e se
adaptaria a cada caso (2000:22). Como o real, a conduta do sábio também sofreria uma
transformação contínua, sob pena de, não o fazendo, esclerosar (2000:22). Isso nos remete à
distinção entre identidade (fixa) e identificação (mutável, ajustável). Se há uma noção de mal
para o sábio, esta estaria ligada a essa identidade, à estratificação das idéias. Em última
instância, também aqui o sujeito, assim como Deus, está morto. O sábio não tem idéia, por
que não tem eu (2000:23).
Nízia Villaça e Fred Góes também comentam a respeito desse conceito corporal,
ligado a um novo paradigma estético onde o corpo surgiria como carne e imagem, matéria e
34
Artaud bradou em sua transmissão radiofônica Para Acabar com o Julgamento de Deus, “Nada de boca,
de língua, de dentes, de laringe, de esôfago, de estômago, de ventre, de anus. Eu reconstruirei o homem que
sou.” O inconformismo de Artaud, ao ver o ser subjugado a um determinismo fisiológico, como o aqui descrito
sistema digestivo, e ao perceber o autismo humano decorrente disso, o leva a clamar e conclamar as pessoas à
reconstrução da idéia de homem. Segundo Deleuze e Guattari teria sido “uma experimentação não somente
radiofônica, mas biológica, política, atraindo sobre si censura e repressão. Corpus e Socius, política e
experimentação” (1996:10).
123
Essa evidência é a da imanência. Como ela se expõe em toda parte e a todo momento, como
ela é ao mesmo tempo mais comum e mais ordinária, já que tudo, no mundo, não passa de
processo, que tudo, e nós em primeiro, está sempre “atravessado” por ela, a imanência não
tem lugar próprio, não é “localizável”, nem tampouco isolável, portanto ela não é identificável
– sua “sutileza” nos escapa; e como o menor processo a encarna, mas nenhum a esgota, já que
o mundo não acaba de proceder dela, a imanência é sempre mais do que o que dela se atualiza:
ela é um fundo (patrimônio) sem fundo (plano) “que podemos sondar”. Mas esse insondável
[...] não é o da filosofia. Porque, enquanto esta [...] busca o oculto dos princípios (ou do
número, ou do em-si, um oculto transcendental, em suma), a sabedoria desconfia de tal
“profundidade” [...] o mais difícil de ver – ou o mais difícil de dizer – é da ordem do próximo,
do raso, do cotidiano (2000:65, 66).
Jullien faz a contraposição de certa forma dicotômica entre filosofia e sabedoria (por extensão
entre ocidente e oriente), sem se dar conta, talvez, que ele próprio, na construção de discursos
124
como este acima, já está operando na fronteira entre essas definições. No meio, no vazio deste
Anel de Moebius:
Para Deleuze e Guattari, onde a psicanálise diria: “pare, reencontre o seu eu, seria
preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda
suficientemente nosso eu” (1996:11). Segundo os autores seria preciso substituir a
interpretação pela experimentação. Como na perspectiva taoísta, não há perspectiva de
fixação em uma idéia ou um eu imutável. A conduta, a vivência, a práxis, assumem novo
lugar no processo cognitivo. O entendimento se dá no corpo, via experiência.
Ao discorrer sobre o corpo sem órgãos, que não seria necessariamente bom, em si, os
autores trazem a prática sexual tântrica como exemplo de como criar um CsO. Note-se como
mencionam noções taoístas:
Não se trata de sentir o desejo como falta interior, nem de retardar o prazer para produzir um
tipo de mais-valia exteriorizável, mas, ao contrário, de constituir um corpo sem órgãos
intensivo, Tao, um campo de imanência onde nada falta ao desejo e que, assim, não mais se
relaciona com critério algum exterior ou transcendente. É verdade que todo circuito pode ser
rebaixado para fins de procriação (ejacular no bom momento das energias); e é assim que o
confucionismo o entende. Mas isto é verdade apenas para uma face deste agenciamento de
desejo, a face voltada em direção aos estratos, organismos, Estado, família... Não é verdade
para a outra face, a face Tao de desestratificação que traça um plano de consistência próprio
ao desejo ele mesmo (1996: 18-19).
Por isto o problema material de uma esquizoanálise é o de saber se nós possuímos os meios de
realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos: corpos vítreos vazios, corpos cancerosos,
totalitários e fascistas (1996:29).
Mas será o caso de separar o CsO de seus duplos? Se o sentido de “duplo” em Artaud - assim
como no Anel de Moebius e na dinâmica yin yang - opera justamente por projeções,
reconversões e retro-alimentação? Tal procedimento é que parece totalitário e fascista.
Selecionar, categorizar, rechaçar, reprimir ou sublimar os duplos “maléficos” visando um
CsO “puro” ou “bom” não parece ser proposição condizente à perspectiva fluídica e inclusiva
do entre, trazida, entre outros, pelos próprios Deleuze e Guattari. Ou do viés de uma ecologia
125
do fantasma, defendida por Guattari como uma ação poética justamente sobre as questões
subjetivas negadas, os “excluídos psíquicos” (Guattari, 1990: 42). A esta, preferimos a
pergunta anterior dos mesmos autores, a de “como criar para si um CsO sem que seja o CsO
canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranóico ou de um
hipocondríaco?” (1996:26)
Sobre este aspecto, os treinos que lidam com o chi parecem sugerir caminhos para
essas políticas corporais, para remontar ao fluxo de intensidades pró-ativas, e dar-lhes vazão
em um espaço propício a isso. Mostram-se ainda como vias para perceber e regular essas
latências. Na seção 4.1 trataremos mais dessa questão.
Tratamos aqui do que Guattari designa como subjetividade capitalística (1990): uma
re-padronização destes corpos operada de maneira tão poderosa quanto sutil, o que torna
muito difícil a resistência ao processo. Paradoxalmente, e estrategicamente, essa
homegeneização se dá sob o disfarce da diferença: o capitalismo estimula nos corpos sua
recém reconquistada predisposição a criar, a entrar em devir, seu desejo latente de
desterritorialização. Porém o direciona - especialmente através da mídia e da publicidade -
promovendo a composição de uma massa amorfa que investe toda sua intensidade em
“comportamentos prèt-a-porter”, conforme aponta, na linha de Guattari, a psicanalista Suely
Rolnik (2003).
A mesma autora sugere que essa vulnerabilidade, esse calcanhar de Aquiles existe,
porque vigora, nos sujeitos contemporâneos, uma ruptura com seu corpo vibrátil. Rolnik
(2003) usa essa noção, referindo-se à nossa capacidade perceptiva de forças, talvez mais
ligada ao que usualmente se chama intuição. Para a psicanalista, os cinco sentidos seriam os
responsáveis por apreender o mundo das formas, pela nossa capacidade sensorial, enquanto
que, ao corpo vibrátil, caberia perceber o mundo das intensidades moleculares. Esse corpo
funcionaria como uma espécie de bússula, ou alarme, que desencadearia as crises, cruciais ao
processo de crescimento, à resistência ontológica, e à própria experiência vital. Ao utilizar o
termo resistência, Rolnik não está defendendo uma fixidez ou imutabilidade, mas se refere a
uma perspectiva de defesa do corpo em relação a ações que possam oprimi-los em sua
diferença, sua singularidade e suas demandas.
Assim, se coloca, e com grande gravidade, a questão de saber como reconectar nos
sujeitos (aqui no sentido de subjetividades movediças e não de indivíduos) a criatividade à
força vital de resistência. Como tornar seus corpos vibráteis mais despertos e atuantes? A
tentativa de responder a essa questão poderia ajudar se misturar a respostas para uma outra
127
questão persistente na arte: como devolver à estética seu potencial político, transformador,
mobilizador? Obviamente não se trata aqui de falar sobre política, ou fazer uma arte
panfletária ou partidária, que remete mais a abordagens didáticas e ideológicas do que
políticas, no sentido em que aqui se emprega o termo. Mas sim de exercer, com a arte, uma
política. Mas fiquemos no primeiro questionamento.
Como reconectar, então, nos sujeitos, a criatividade à força vital de resistência? Como
promover o desenvolvimento de uma face da inteligência humana, de natureza sensível e
intuitiva, um saber de outra ordem, que não racional, uma inteligência que concerne a
aspectos do que Rolnik chama de corpo vibrátil (2003). Algumas tradições orientais
preservam práticas com princípios similares a estes, fomentando esse saber. A tradição taoísta
é uma delas. Como vimos, várias práticas taoístas - como o tai chi, o chi kung, a acupuntura,
massagens como o tui ná, e o do-in, etc, operam fortemente com o conceito de energia (chi),
visando justo este reconectar-se energético do sujeito. O chi kung visa ao desenvolvimento de
uma auto-percepção energética, bem como da capacidade de captação de energias nas forças
da natureza e de objetos, e o treino da redistribuição ou reorganização energética no corpo de
acordo com os estados corporais em vigor.
a realização do tao, ou sua busca, inclui necessariamente a dimensão corporal [...] A união
entre teoria e prática se dá nas situações de treinamento, em que os princípios da cosmologia
taoísta são atualizados nos corpos dos praticantes através de metáforas antropomórficas e da
faculdade mimética. [...] O corpo taoísta – incluindo o visível e o invisível - não é um texto a
ser lido e analisado, mas sim o território de uma experiência vivida (Bizerril, 2000: 157).
128
Para se ter uma idéia da diferença na abordagem de corpo para os ocidentais e para os
orientais, basta recorrer às respectivas medicinas. O esquema corporal, utilizado pela
medicina chinesa é um mapa de linhas e pontos de energia não identificáveis concretamente.
É uma cartografia do invisível. Enquanto que a representação corporal ocidental se atém às
suas partes palpáveis: ossos, músculos, órgãos, sistemas, etc.
O saber manejar a energia, ou o treino desse saber, parece configurar então uma
importante estratégia de re-conexão entre o potencial criativo e o potencial de resistência –
como Rolnik usa o termo - nas subjetividades. Por isso mesmo é também um recurso técnico
propício ao trabalho de ator. Assim, percebemos que as buscas de Artaud, Barba, Grotowski,
e outros, por matrizes orientais, como alimento para seus projetos estéticos têm, entre outros
fatores, relação com esse aspecto.
129
CAPÍTULO 4
Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não
haver defasagem entre o instante eu: ajo no âmago do próprio instante (Lispector, 1998:49).
A idéia de corpo que orienta essa pesquisa é então a de um corpo enquanto escritor e
escritura, ou para driblarmos a marca logocêntrica impressa nas terminologias relativas ao
texto, corpo enquanto mapa e cartógrafo. É o corpo que afeta e é afetado numa implicação
total com o ambiente, as circunstâncias, e as histórias que o cercam, e que nessa interação,
promove incessantes heterogêneses. Esta é uma idéia de corpo em contínua re-singularização,
que não se coaduna à idéia centralizadora de sujeito como identidade fixa. Para Denise
Sant’Anna,
o contrário do corpo totalitário talvez seja todo corpo que, no lugar de manter-se como
substância, mônada isolada e livre, existe como um elo entre corpos, floresce como uma dobra
do tecido da vida; na finitude de sua existência este corpo ressoaria a infinita potência criadora
do mundo (2001:100).
Essa dobra de que fala Sant’Anna, e que é metáfora conceitual usada por vários
pensadores, pode ser relacionada à torção no Anel de Moebius: o lugar processual – entre –
que conecta e dilui as dualidades, e que, fazendo os lados contaminarem-se mutuamente, de
130
certa forma os reinventa a cada reconversão. Essa imagem traduz a fixidez de identidade
como algo incompatível ao fluxo da vida. Outro aspecto no Anel, é que seu interior é vazio,
ou seja, é a intensidade pura e sem forma, é o fluxo em si, a virtualidade. O tao.
Esse corpo passa a ser encarado, então, tanto por sua palpabilidade, quanto por seu
caráter complexo, rizomático, que articula agenciamentos entre questões e fatores contextuais
que componham seu plano de imanência. Um corpo que não se deixa capturar em formatos
engessados, que se lança em linhas de fuga tornando a imprevisibilidade um aspecto
constante. Esse corpo, de uma impermanência permanente, há de buscar um eixo não-eixo –
eixo móvel - onde se possa apoiar, há de criar para si uma política – corporal – que favoreça
certa regulação em fluxo. Para descobrir, como alertaram Deleuze e Guattari, como criar – e
131
recriar constantemente - para si um CsO que não seja o de uma fascista, de um neurótico ou
de um assassino (1996:26).
Sobre esta questão, Guattari, por exemplo, propõe o que chama de ecosofia, que define
como uma postura ética, política e estética que atua sobre os três registros ecológicos que
identifica: social, mental e ambiental. Para ele, um novo tipo de ecosofia, ao mesmo tempo
prática e especulativa, deveria substituir as formas antigas de engajamento religioso, político e
associativo - já defasadas (1990:54). Denise Sant’Anna também vê nas relações éticas entre o
ser e o mundo a possibilidade da construção de uma conduta, de uma estratégia política e de
auto-realização. Isso passa pelo deslocamento da idéia de ser como identidade, para a de ser
como atitude. Trata-se também de transpor o incômodo e recorrente abismo entre o que se
anuncia e o que se realiza. Sant’Anna lembra que por vezes vivenciamos:
conexões com o mundo sem degradá-lo e sem degradar a condição humana. Inúmeras vezes
eles reúnem ação e reflexão, intensificando a vivência do presente e tornando o eu de cada um
menos sólido, menos uma substância do que um ato. E, ao lembrar da alegria vivida nesses
momentos (por vezes tão fugazes), talvez se possa estimular o corpo e a alma a continuar
cultivando estas condutas éticas, agora e cotidianamente (2001:101).
Para Guattari, a ação ecosófica pode, e deve, se dar tanto em nível macro-político
(campo molar: objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de referência), quanto em
nível micro-político (ordem molecular: fluxos, devires, transições e intensidades) (1996:317).
132
práticas energéticas que visa estimular o fluxo de chi, de modo a desbloquear e abrir a rede de
canais corporais de energia. Dentro da perspectiva de lidar com esses aspectos sutis do
próprio corpo e do mundo que o cerca, a prática não se propõe, como já foi dito, a desvendar e
explicar os processos, mas a estimulá-los e mobiliza-los, até porque, como alerta Sant’Anna:
todos os seres que nos cercam (e mesmo as coisas) são esfinges; mas com os ardis da sutileza
eles não nos revelam os seus enigmas, assim como nós, por delicadeza, não os deciframos.
Apenas não os deixamos morrer (2001:127).
Sant’Anna percebe, ainda, uma tendência pela busca de meios alternativos que
devolvam aos corpos uma certa quietude perdida na busca frenética de um “nomadismo”
como moda, que, muitas vezes, é muito mais uma agitação travestida de fluidez, uma
compulsão que se supõe estado de criação constante, mas que não devem ser confundidos
com o devir - enquanto wu wei - que não caracteriza processos desterritorializantes, apenas
traduzem ansiedade. Então a autora denuncia o risco do deslocamento dessa ansiedade, para
um consumo compulsivo da lentidão oferecida em guias e workshops, em formatos prêt-à-
porter, possivelmente fadado ao fracasso, já que não há receita para essa lentidão. Essa
pressa, a busca de um atalho para a lentidão, ou o ato de eleger como identidade um suposto
nomadismo, ou uma lentidão idealizada, pautando-se mais num propósito de fotogenia como
a autora nomeia, são condutas ineficazes do ponto de vista político, desprovidas de qualquer
força mobilizadora (2001).
35
As pessoas têm buscado tanto na sabedoria chinesa, como na indiana, como no xamanismo, no candomblé, e
em tantas outras fontes esse tipo de apoio. Guattari constata inclusive que “a procura de um território ou de uma
pátria existencial não passa necessariamente pela de uma terra natal ou de uma filiação de origem longínqua. [...]
Toda espécie de ‘ nacionalidades’ desterritorializadas são concebíveis” (Guattari, 1990: 51)
134
necessariamente pelo processo de repetição (Tadeu, 2004). A repetição aqui não é cópia,
duplicação ou reprodução, o que se repete é o processo, o ciclo, a predisposição de remontar
ao devir, ao virtual, e não o que se configura como resultado ou atualização deste ciclo.
Assim, admite-se a possibilidade de investigação e vivência dessa sabedoria chinesa nos dias
de hoje, no Brasil, sem que isso configure o que Sant’Anna nomeia como fotogenia. Trata-se
de uma atualização: a partir de meu olhar - ocidental, contemporâneo e artístico – e de uma
inspiração em matriz oriental e arcaica, chego a uma expiração própria, o que caracteriza um
processo de heterogênese: respirando no entre. Conspirando.
A fronteira é lugar onde há grande tensão atuando. Estar nesse interstício com pré-
disposição a heterogênese permite o trilhar por caminhos outros, diferenciados dos recorrentes
e normativos, singulares. Não se trata da pretensão de “descobrir a pólvora”, de inventar algo
novo, mas simplesmente do desejo de não me ater a dogmas para instaurar um processo de
pesquisa. Assim qualquer ortodoxia ligada seja ao taoísmo, seja ao teatro, seja à filosofia, é
aqui preterida em nome da conjectura, do estar entre, do estar em devir, do exercício de borrar
os contornos dessa geografia fronteiriça, rumo a outros esboços.
quando uma perda a suporta ainda que pelo viés de uma simples associação de idéias, mas
constrangedora, ou de um jogo de linguagem, - e deste ponto nos olha, nos concerne, nos
persegue (1998:33).
Para o autor, a perda que opera (n)esta obra é um trabalho do sintoma, aqui pensado por viés
dissociado da psicanálise. Este seria, para Stephane Huchet, que apresenta a obra de Didi-
Huberman, um:
evento crítico, acidente soberano, dilaceramento. Ele é a via promovida pelas imagens para
revelarem à leur corps défendant sua estrutura complexa e suas latências incontroláveis. Ele
torna a imagem um verdadeiro corpo atravessado de potencialidades expressivas e patológicas
que são configuradas num tecido feito de rastros sedimentados e fixados. Ao presentificar-se
na inelutabilidade de sua abertura somática e crítica, o sintoma dá acesso a seus fundamentos
fugidios e abissais (1998:17).
Uma cena que nasce por sintoma, pode, talvez, aglutinar os elementos capazes de
provocar no receptor esse grau intenso de sintoma. O artista que vasculha em si, em seus
próprios vestígios e rastros, em seus restos, em sua memória involuntária, em seu chi, em seus
corpos, o material psíquico e orgânico que vai engendrar sua ação, deve encontrar aí material
para gerar um trabalho que ao mesmo tempo lhe sirva apoio processos de auto-conhecimento,
crescimento pessoal, regulação, “curas” provisórias de questões incômodas, também cause
uma recepção intensificada.
Esse exercício expressivo como conduta estética, ética e política, no caso dos artistas
da cena, funciona como atualizações do corpo, no corpo. Cartografias do corpo, no corpo, em
nome do corpo e para fruição por outros corpos. Muito mais se poderia falar sobre como a
atualização expressiva de um corpo, aciona a desterritorialização em outro, no processo de
recepção, desdobrando intensidades, esburacando resistências, fazendo emergir, no fruidor,
afetos, memória involuntária, associações, inéditas ou recorrentes, e ainda, proporcionando,
no público, outros ímpetos para diferentes atualizações. Mas a recepção não é o objeto deste
estudo. Assim nos concentraremos no processo criativo e na questão da expressividade.
Interessante lembrar que em grande parte das vezes em que Matteo Bonfitto (2002),
trazendo o pensamento de nomes emblemáticos do teatro, fala em expressividade, parece usar
o termo associado a duas vias de um processo. Seja a um procedimento psicofísico
(Grotowski, Stanislávski, Checkov), ou ao trânsito entre visível e invisível (Peter Brook),
interno e externo (Stanislávski, Grotowski, e outros), imagens às quais podemos acrescentar
os circuitos físico-metafísico de Artaud e pré-expressivo e expressivo em Barba. O fato é que
a idéia de expressividade, não parece se referir a um caminho de mão única (dentro para fora),
como o termo parece implicar. Aparentemente, para os artistas cênicos, expressividade é uma
noção que encerra um movimento dialético, operando em uma via de mão dupla, que
subentende também o que chamaremos aqui de impressividade. Talvez a opção em se contrair
137
Para Lévy essa passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior está sempre
relacionada à virtualização, e esse “efeito Moebius” se descortinaria em registros variados,
como o das relações entre privado e público, próprio e comum, subjetivo e objetivo, mapa e
território, autor e leitor etc. (1996:24). Esse continnum entre dentro e fora, corpo e espaço, é
observado também em José Gil, quando explica que, especialmente na construção estética
cênica, “o espaço do corpo resulta de uma espécie de secreção ou reversão [...] do espaço
interior do corpo em direção ao exterior. Reversão que transforma o espaço objetivo
proporcionando-lhe uma textura próxima daquela do espaço interno” (2001: 59).
Sobre essa reversibilidade vale lembrar que quando falamos em entrar em devir, não
devemos imaginar que este só se dê no processo, por assim dizer, impressivo. Ou seja, esse
devir não se instala somente num campo virtual da interioridade (psíquico, imaginário), mas
pode configurar também um devir físico (por movimentos, ações). Pensando em nosso duplo
circuito podemos pensar a expressividade como o processo de atualização de algo do campo
virtual psíquico no espaço virtual físico. Já a impressividade como o processo na
“contramão”, ou seja, caracterizando o modo pelo qual um devir físico promove atualizações
no campo psíquico ou anímico do ator, como um desencadeamento de ações convoca
questões internas a virem à tona. Neste último caso (impressividade) tende a ocorrer
preenchimento de sentidos em formas geradas, e no primeiro caso (expressividade), há um dar
formas a conteúdos emergentes capturados.
CAPÍTULO 5
Quando eu morrer, vou começar de novo dentro do universo. Vou continuar dançando...
(Kasuo Onho in Luisi e Bogéa, 2002: 98).
A vontade primeira era nada escrever. Trazer um silêncio para o corpo desse estudo
tão repleto de tentativas explicantes. Um hiato em meio às palavras. Poder escutar o branco da
página...
Entretanto as exigências que envolvem a feitura de uma tese me pedem que encha de
idéias o vazio nessas próximas linhas. Por outro lado, o vazio do tao é vazio sempre re-
preenchido. Assim, não desejo mais negar a palavra ou o texto, mas tentar garantir um vazio
pleno através e apesar das palavras. Tentar fazer com que a palavra signifique, sem
estratificar, fazer com que provoque desdobramentos, novas interpretações e mesmo novas
palavras.
E, além disso, o vazio não termina em si mesmo, senão que se reinventa todo o tempo,
fomenta criação sempre renovada, gera experiências, imagens, e textos. Para voltar a ser
vazio.
Eu danço na barriga da minha mãe, que é também a barriga do universo (Kasuo Onho in Luisi
e Bogéa, 2002: 80).
143
Também se deu criação entre meu corpo vazio, em diálogo com imagens, sugestões,
ambiências. Entre meu corpo vazio de expectativas e intencionalidades, em encontros com
matrizes de um imaginário chinês, também elas vazias de idéias pré-concebidas: deu-se
criação. Mas houve dias, também, em que chegava ao ensaio, já repleta de imagens,
preenchida de vontades e torturada de idéias. Nesses dias conseguia, no máximo, forjar um
estado criativo... Mas nem eu acreditava... Tudo bem, como diz o I ching, “nenhuma culpa”, é
só jogar tudo fora e começar de novo. Mas começar do zero, do vazio.
Segundo Jullien, o meio e o vazio são ainda o lugar do e, assim, “o verdadeiro meio
deve ser entendido, positivamente, como poder uma coisa e outra, e não, negativamente,
como não ousar uma coisa nem outra” (2000:36). Ainda segundo o autor, o vazio taoísta não
apenas se contrapõe ao cheio, mas funciona correlativamente a este. Este vazio seria o meio
144
Uma noção resume essa eficácia do vazio [...] o vazio é simplesmente o que permite a
passagem do efeito. ‘Onde nada existe de atualizado, não há parte alguma onde não [se] possa
parar, parte alguma onde não [se] possa ir’. Ao contrário, o que impede o efeito de se exercer,
é quando o pleno não está penetrado de vazio e, tornando-se opaco, gera obstáculo: fazendo
anteparo, ele leva o real a imobilizar-se, ficamos presos nele; não sendo possível mais
nenhuma circulação, enterramo-nos nele. [...] se todo vazio é eliminado, elimina-se também o
jogo que permitia o livre exercício do efeito (1998:137, 138).
Ainda para Jullien, essa interação entre vazio e pleno, dentro da noção de efeito, revela a
interdependência entre aspectos opostos do real, graças à qual o próprio real não cessaria de
operar e advir. Ele lembra ainda que, no pensamento chinês, a exemplo da interação entre
vazio e pleno, todos os contrários se engendram um ao outro. Assim, Jullien pensa a eficácia
como conseqüência de uma lógica de não exclusão dos contrários. Ao invés disso os opostos
se condicionariam mutuamente, e da lógica dessa dinâmica o sábio tiraria sua estratégia de
eficácia (1998:140).
Voltando ao entre, lembremos que este é um lugar privilegiado ainda por Deleuze e
Guattari, ao desfiarem seu rizoma, também propondo a conjunção e como alternativa à
excludente ou, e até mesmo ao peremptório é. Dizem os autores:
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-
ser, intermezzo. [...] é aliança [...] tem como tecido a conjunção “e... e... e...” [...] É que o meio
não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas
não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma
direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem
início e nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (1995:37).
Homi Bhabha talvez tenha sido um dos primeiros autores a usar a imagem do entre.
Para ele, como vimos, o entre – intersticial - é o lugar “onde a diferença não é nem o Um nem
o Outro, mas algo além, intervalar” (2006:301). Se Deleuze e Guattari articulam o entre de
maneira mais filosófica, ligado a conceitos como desterritorialização, devir e virtual, em
Bhabha vamos nos aproximando de um entre mais antropológico, ligado à noção de fronteira,
onde encontros entre diferenças culturais articulam novas identidades – híbridas e não fixas.
145
A pesquisa a que me propus se insere nessa zona fronteiriça entre diferentes territórios
– culturais e disciplinares - visando justo esse entre-lugar intervalar. Num encontro de ritmo
ambivalente, de tensão e fusão, entre a sabedoria taoísta - com seu imaginário milenar, e o
teatro, pelo corpo de uma atriz cuja abordagem de cena está impregnada de outras tantas
referências culturais, se abre um espaço outro – e singular - de experimentação.
Além do paradoxo entre irrealidade e realidade, trazido por Crapanzano - que nos
remete à dinâmica do Anel Moebius e dos pares yin yang - interessou-nos, na articulação do
antropólogo, o lugar do imaginário dentro de sua visão da fronteira. Isso porque, em nosso
processo criativo, o âmbito do imaginário é crucial. Tanto por ser a principal fonte de matrizes
– já vimos que a sabedoria chinesa imbrica o imaginário, o simbólico, o conceitual e o
operacional, no sentido de práxis e eficácia - quanto por ser o meu próprio motor imaginário
altamente afetado e solicitado nas dinâmicas criativas.
146
Outro conceito que pode ser trazido para dialogar com as idéias de meio, de vazio e de
entre, é o de ma. Apesar de ser um termo japonês, ma, segundo Crapanzano, é uma noção
oriunda da cultura chinesa: “diz-se que o ma vem do chinês, o caractere que mostra o sol no
meio de portão aberto” (Crapanzano, 2005). Também Kunio Komparu, bailarino de Nô e
arquiteto, atribui a origem da noção à cultura chinesa (in Greiner:1998, 101). É bastante
sabido o quanto a civilização chinesa influenciou o Japão, ao longo dos séculos, e,
provavelmente, esta é uma das inúmeras assimilações culturais nesse processo.
Para Komparu, ma pode ser traduzido por “espaço, espaçamento, intervalo, lacuna,
vão, lugar, interrupção, pausa, tempo, ocasião ou abertura” (1983). O termo, originalmente,
designava espaço, mas na música, por exemplo, ganha também conotação temporal. Assim, é
usado, musicalmente, para descrever uma pausa, articulando as idéias de tempo e espaço, na
noção de intervalo, ou suspensão. E ainda para a música, não é um intervalo sem função, ao
contrário, agrega dramaticidade ao som. Trata-se, então, de um tempo-espaço intersticial, e,
por isso mesmo, um vazio potencial.
idéia anteriormente exposta de Jullien, de um vazio eficaz. Nas palavras de Greiner, trata-se
de um “intervalo de tempo-espaço, onde tudo pode acontecer” (1998:101).
dois portais que se inclinam em direção ao outro, como duas pessoas no cumprimento japonês
(rei) que se curvam uma em direção à outra, com o vazio pleno que se estabelece entre elas
(2005:186).
Para Crapanzano, o termo ma tem conotações tanto abstratas como concretas, e resiste à
tradução, justamente por seu caráter ambíguo, que imbrica espaço e tempo em uma
configuração única. Para a apreensão do termo, ele acha importante levar em conta, ainda, a
noção chinesa de chi, “uma concepção de energia ou poder espiritual (ki ou chi) que ressoa no
interior do espaço-tempo, entre e em meio a” (2005). Podemos, então, relacionar o fluxo de
chi, à intensidade amorfa e potencialmente criativa, que habita o entre intervalar. A
fecundidade desse “cronotopo negativo – um silêncio, um vazio” (2005), se refere
precisamente a um estado de latência, de ainda não ser, e de, por isso mesmo, poder ser
qualquer coisa, ao se territorializar, ou atualizar em um “espaço-tempo positivo da ação”
(2005). Assim, o chi kung, ao promover a lida com chi, através da instalação de um estado de
esvaziamento, configura-se uma vez mais como importante estratégia para remontar a um
estado de potência criativa. Voltaremos a falar sobre isso.
Se, como diz Crapanzano, “um lugar é ma porque é um espaço entre paredes; [e] em
música, uma pausa também é ma, porque ocorre entre duas notas” (2005), então o espaço
criado na relação complexa e dinâmica entre dois aspectos, também pode ser relacionado a
esse conceito. Com Jullien já tínhamos mostrado como os opostos se condicionam
reciprocamente, e com isso produzem o real, indicando a eficácia na relação de não exclusão
dos contrários (1998). Assim, podemos entender as noções de entre, de vazio e de ma, como
relacionadas ao intervalo ou fronteira presentes entre os aspectos yin e yang de cada uma das
duplas sobre as quais falamos. E ainda, talvez possamos aferir que há aí também aquele
caráter de latência e propulsão criativa.
que “a imaginação é uma ‘realidade’ intermediária, ambígua por natureza e melhor descrita
como ‘nem isso nem aquilo ou tanto isso quanto aquilo’” (2005). Espaço propício à
criatividade, ao exercício de impressividadesxpressividade, em seu movimento ininterrupto.
Remontar ao vácuo infinito criado entre as faces desse Anel de Moebius. Deixar-se inundar
pelo vazio, pleno de latências amorfas. Re-cursar o vão, o entre. Eis o que se configura como
recurso.
Para que se contentar com os limites da argila do vaso, se é no vazio do vaso que está sua
utilidade (provérbio popular chinês).
De acordo com os taoístas é necessário instalar o vazio para se chegar ao tao. O mestre
Liu Pai Lin, um dos maiores divulgadores da medicina chinesa e do tai chi chuan no Brasil,
se referia ao vazio como “o vislumbre das maravilhas”. A idéia nos treinos taoístas é de que o
espírito é um vácuo que a tudo abrange, e de que o tao inclui, ou é esse vácuo, e que “este é o
jejum do coração (da mente)”, diz Watts (1975:156). Quem pratica meditação e outras
técnicas orientais nesta linha, busca a quietude dos sentidos e dos pensamentos, um
esvaziamento interior, que muitas vezes é conjugado, no procedimento, ao esvaziamento de
ar, na expiração. A orientação é de não fixar os pensamentos, sensações e emoções,
insistentes especialmente quando se é iniciante na prática, nem tampouco de tentar impedi-los
à força, mas simplesmente deixá-los vir e ir. A cada nova meditação, o mesmo (sempre outro)
vazio.
37
Agradeço à Professora Drª. Maria Beatriz de Medeiros pela sugestão de hifenizar a palavra recurso - e pelas
implicações conceituais deste gesto, chegando aos sentidos desdobrados do termo re-curso.
149
para heterogênese. Do mesmo modo que Denise Sant’Anna sugere ser “na longa repetição de
gestos e sons constituintes da possessão em cada culto, [que] há a invenção do diferente”
(2001:105). O que o estado de vácuo promove ao corpo/ser é um “zerar-se” para entrar em
devir, para tornar-se passagem, canal, trânsito de intensidades.
O filósofo português José Gil também aborda a idéia do vazio para pensar o processo
criativo no corpo, em seu livro Movimento Total (2001). Para José Gil, só o silêncio - o vazio
-permitiria a concentração mais extrema de energia não-codificada, e ao mesmo tempo a
prepararia para escorrer nos fluxos corporais (2001: 17). Esse estado tem potencial altamente
criativo, primeiro pela natureza ainda informe, logo com vocação para vetorizações infinitas,
vazões variadas. E segundo pela quantidade de intensidades que articula e mobiliza, ao
acessar, para Gil, uma espécie de violência primordial representada pelo vazio de toda forma
(Gil, 2001:18). Segundo Gil, o vazio absorve todos os tipos de força, de energias diversas,
musculares, nervosas, físicas e psíquicas, filtrando-as, transformando-as, fazendo o vazio
dentre e em redor (2001:18), imagem que remete à força de atração dos buracos negros do
universo.
O vazio, como princípio, conceito e/ou procedimento, tem sido trabalhado por
inúmeros artistas. A via negativa em Grotowski é por um lado o esvaziamento de tudo que se
mostrava desnecessário ao acontecimento teatral, e por outro uma espécie de pedagogia às
avessas, que “ensina a não fazer” (Roubine, 1998:195):
O fator decisivo nesse processo é a humildade, uma predisposição espiritual: não para fazer
algo, mas para impedir-se de fazer algo, senão o excesso se torna uma imprudência, em vez de
um sacrifício (Grotowski, 1971: 32).
150
Ele via no desnudamento do palco – teatro pobre – e do ator – por meio de exercícios de
esgotamento psíquico e físico – um caminho para a criação. Essa “coragem passiva [...],
coragem de um desarmado, a coragem de revelar-se [...] de rasgar as máscaras [...] num
estado de completo e desvelado abandono” (Grotowski, 1971:212), vai ser básica para sua
idéia do desempenho psicofísico do ator: um “ato total” ou “ato da alma” (Grotowski,
1971:212). Além disso, para Grotowski - que entende o teatro como o que se passa entre o
ator e o espectador ou testemunhas (1971:28) - é esse desnudamento, essa “morte ritual do
indivíduo” (Pavis, 2005:346), que vai fazer do teatro um encontro transformador. Encontro do
ator com o público, e do ator consigo mesmo. Ainda para Grotowski, segundo Antônio
Januzzeli, todo método que não se abre no sentido do desconhecido – vazio - é um mau
método (1992). Januzelli fala ainda da articulação entre o silêncio e os opostos imbricados -
atividade e passividade – requerida por Grotowski a seus atores:
O silêncio é algo difícil do ponto de vista prático, mas é de absoluta necessidade no trabalho
do ator. Ele gera a passividade criadora – o ator deve começar não fazendo nada, silêncio
total; isso inclui até seus pensamentos, pois é necessário que o processo o possua. Nesses
momentos, o ator deve permanecer internamente passivo, mas extremamente ativo; são
reações que desimpedirão as suas possibilidades naturais e integrais (1992).
Barba fala de um momento que parece negar a busca por resultados. Seria uma
desorientação voluntária que mobilizaria a energia e sentidos do artista na mesma intensidade
de quando se caminha no escuro. Neste ponto perder-se-ia o domínio sobre a significação da
própria ação, mas ao mesmo tempo haveria dilatação das potencialidades. Essa negação do
significado traria “a precisão de uma ação que prepara o vazio no qual um sentido imprevisto
poderá ser capturado” (1994:127).
encontrar um espaço claro, vazio, através do qual a corrente viva não-informada possa mover-
se; para isso o ator terá que dar licença a si mesmo, ser capaz de descobrir-se e chamar-se de
dentro [...]; estar presente em seu corpo e em sua voz, com cada parte e o todo do corpo
acordados; estar sensível para reagir através do imaginário e dos estímulos imediatos. O
151
encher-se com experiências emocionais diversas barra a existência desse espaço vazio, que é o
verdadeiro condutor da descoberta (in Januzelli, 1992:36).
De maneira nenhuma pode-se dizer que não haja nada num palco vazio, num palco que se pise
de improviso. Pelo contrário, existe ali um mundo transbordante de coisas. Ou melhor, é como
se do nada surgisse uma infinidade de coisas e acontecimentos, sem que se saiba como e
quando (Castro, 2005:244).
Mas o mestre do butô também sabe que estar disponível ao vazio não é alguma coisa tão
simples de se alcançar. Ou ainda, paradoxalmente, é tão simples e tão difícil ao mesmo
tempo:
Na verdade, eu penso de manhã à noite. Penso, penso até o esgotamento e, no final, chego ao
vazio. Estou lhes dizendo [isso] para que pensem, pensem até que, no final, cheguem ao não
pensar, jogando tudo fora. É um não pensar que vem do ter pensado – e pensado muito [...]
Tentar estar no não-pensar sem ter nada pensado é como querer comer o moshi (bolinho de
arroz) de um desenho (Kasuo Onho in Luisi e Bogéa, 2002: 37).
Essa fala de Ohno me remete ao que aconteceu comigo durante o processo criativo do
espetáculo Traços. Pareceu-me que quando eu tentava impedir ou interromper um excesso de
pensamentos, idéias e vontades que muitas vezes me assolavam, mas de uma forma pré-
concebida, estes tendiam a voltar e me perturbar. Então em vários momentos acabei dando
vazão a algumas dessas idéias insistentes, fosse articulando-as em debates com a equipe, ou
em alguma experimentação, até exauri-las. A partir daí então, era menos penoso abrir mão
daquilo que não se afinava à proposta. Foi o caso de muitos trechos de textos da própria Ana
Miranda, que eu às vezes queria que ficassem, por um apego ou admiração, mas que, após
muito repeti-los em experimentações e em ensaios, foram se tornando cada vez menos
152
necessários, até pela presença silenciosa das ambiências dos mesmos em ações físicas e/ou
atmosferas da peça.
Voltando a Kasuo Ohno, artista que, como vimos, também articula a noção de vazio
em sua prática, vale trazer um depoimento de Antunes Filho sobre o dançarino, onde ele traz
essa idéia, sob outro aspecto:
Kasuo propõe o tempo lento, espichado, esticado. Ele está fazendo as coisas e de repente
começa a rompê-las. Como se fosse uma folha em branco, onde começa a desenhar, quase um
desenho abstrato; ele não fecha muito as coisas, só sugere. É você que tem que fechar.
Trabalha com nosso subconsciente: a gente está vendo ele dançar e aos poucos vai abstraindo
a figura do homem em cena, que vai desaparecendo, até ficar invisível e só se vêem as linhas e
uma onda de coisas, que vão nos conduzindo. Quer dizer: a partir de certo momento, não o
vemos mais, mas na rotunda preta do fundo começam a aparecer imagens, umas em cima das
outras. Quem está fazendo a dança ali? Ele faz... E nós também, a partir de suas sugestões. Ele
atualiza uma potencialidade de jogo, por que lida com a vida e a morte permanentemente.
Sabe o valor das metáforas, e se permite brincar: é como uma criança pura. Trabalha ao
mesmo tempo os três níveis: o consciente, o inconsciente e o subconsciente. Não tem mais
sexo: é homem, é mulher, uma coisa só. [...] Agora: ele trabalha sempre no vazio. O que eu
vejo é uma dança no vazio. [...] está criando, iludindo, brincando, jogando. A gente vê a
realidade de maneira sensorial: é preciso começar a ver a realidade de maneira clarividente
(Antunes Filho in Luisi e Bogéa, 2002: 104-106).
Para Cunningham, o bailarino deve fazer silêncio no seu corpo. Deve suspender nele todo
movimento concreto, sensorial, carnal a fim de criar o máximo de intensidade de um outro
movimento, na origem da mais vasta possibilidade de criação de formas. Só o silêncio ou o
vazio permite a concentração mais extrema de energia não-codificada (Gil, 2001:17).
o grande vazio, ou vazio primordial, vazio invisível que fica fora do plano das formas criadas
– e que fascina porque não representa nada nem nada o representa, manifestando-se apenas na
energia irradiante que dele irrompe (Gil, 2001:17).
Segundo Chaikin, “atuar é uma espécie de rendição profundamente libidinal que o ator
reserva para a sua audiência; é um encontro delicado e misterioso entre ele e o espectador,
causado pelo silêncio entre ambos” (in Januzelli, 1992:39). Novamente a proposição de que é
eficaz haver hiatos de sentido na cena (e demais construções estéticas), espaços que se deixam
preencher por quem frui uma obra artística. Abordagens excessivamente desvendadas podem
tender a restringir e enfraquecer o processo de recepção. Sobre este aspecto, ainda que não se
refira especificamente à arte, Denise Sant’Anna advoga “uma vontade de preservar uma parte
da vida que seja sem nome, sem interpretação” (2001: 114), e alerta que para isso “é preciso,
enfim, que o silêncio não seja compreendido como falta de linguagem, e sim como a presença
de sons que não conseguimos ouvir” (2001:115), ou ainda, acrescentamos, que o silêncio seja
compreendido como sons que podem ser percebidos por vias diferentes e de maneiras
variadas, já que ecoam singularmente nos vazios de cada corpo. A presença dessas
suspensões, a não revelação completa dos teores da cena, vai proporcionar mais (cri)atividade
por parte do público, fomentar mais crises e maior complexidade ao encontro do fruidor com
o trabalho artístico.
154
No processo criativo teatral é comum o anseio pela definição seja de partituras, textos,
cenários, etc. E, claro, há o momento em escolhas precisam ser feitas. Interessa não antecipar
esse momento, e não definir nada além do que realmente pede definição. Não é preciso, nem
desejável, “encher” o vazio totalmente. E mesmo as escolhas feitas devem se saber, como
tudo, provisórias, mutáveis. Como já mencionado, a perspectiva work in process de
abordagem da cena, inclusive no caso de trabalhos já estreados, abraça essa disposição, e
permite o deslocamento da idéia de “manutenção” da cena, para a de uma “regulação” da
cena. O que se mantém aqui não é um formato estanque com tendência à defasagem de
intensidades, mas o persistente re-curso – e checagem - pelas intensidades ligadas ao trabalho
e ao artista, que em infinitos trânsitos agenciam as novas construções da obra.
Dentre os treinos de chi kung, um dos mais básicos, que inclusive freqüentemente
antecede outros, é conhecido como “entrar no vazio”. Trata-se, conforme já descrito em
detalhes na seção 1.2.d, de posicionar-se no kata e voltar os olhos para dentro. Nessa posição
procura-se internamente um estado de wu chi, ausência das fixações de chi no corpo, o vazio,
o silêncio, a sensação de não-existência, de vacuidade, de não-limite entre dentro e fora. Aqui
podemos lembrar da imagem do infinito, do Anel de Moebius, onde interno e externo formam
um continnum. O treino continua por outras etapas, e usualmente é seguido pelo exercício
nomeado “sentar na calma”, que procede por captação de energias do céu e da terra,
direcionando-as e fortalecendo os principais centros energéticos do corpo. Estes são: o centro
yang, que fica dentro da cabeça, o centro yin, que se encontra na altura do colo do útero ou
próstata, e a mãe dos centros, onde essas energias se encontram dinamicamente, encontro este
representado pela imagem do tai chi38. A mãe dos centros está localizada cinco dedos para
dentro do umbigo, devendo ser visualizada como uma esfera de cerca de oito dedos de
diâmetro. Assim, só após esvaziar o corpo do chi estagnado, devolvendo-o ao fluxo, busca-se
a captação de novas fontes energéticas, ou sua reorganização.
As reações dos praticantes são variadas, mas de um modo geral costuma ser freqüente
certa vertigem, uma percepção ampliada da cabeça e das mãos, sensações térmicas, vibração
e, especialmente após certo tempo de treino, começam a surgir movimentos involuntários
(contínuos e/ou espasmódicos). É como se as energias aprisionadas no corpo se
fluidificassem, soltando-se de seus pontos de fixação e ganhando uma renovação ou
38
O tai chi, usualmente traduzido por “grande energia” é representado por aquele conhecido círculo formado por
duas metades em movimento incessante, uma preta com uma “contaminação” branca e a outra ao contrário,
simbolizando que uma energia contém o germe da outra, e que estão em continuo intercâmbio.
155
circulação. O que parece também, muitas vezes, é que o corpo se torna uma passagem tanto
de energias internas quanto externas, se torna um Corpo sem Órgãos. Nos treinos que
envolvem captação de energia, a presença de chi alheio tende a ser sentida mais intensamente,
seja esse chi advindo de árvores, do sol ou de outras fontes.
Denise Sant’Anna fala sobre esta idéia de corpo-passagem quando discorre sobre os
processos que tomam o corpo “possuído”, em rituais africanos e indígenas, por exemplo:
quando há possessão, mais do que se tornar outro, de possuir um outro corpo ou de passar para
outro corpo, ocorre uma espécie de transformação do próprio corpo num local para passagem.
[...] o termo possuído não remete apenas à posse, mas, ainda, à experiência de possibilitar: o
corpo do possuído possibilita, de fato, uma presença sagrada, materializando-a em gestos
visíveis, desdobrando-se em macrocosmo, juntando num mesmo corpo o eterno e o efêmero
(Sant’Anna, 2001:104).
Várias vezes se tentou explicar essa enigmática afinidade entre mística e erotismo, mas nunca
se conseguiu [...] O ato em que culmina a experiência erótica é indizível. É uma sensação que
passa da extrema tensão ao mais completo abandono e da concentração fixa ao esquecimento
de si próprio; reunião dos opostos, durante um segundo: a afirmação do eu e sua dissolução, a
subida e a queda, o além e o aqui, o tempo e o não-tempo. A experiência mística é igualmente
indizível: instantânea fusão dos opostos, a tensão e a distensão, a afirmação e a negação, o
estar fora de si e o reunir-se a si próprio no seio de uma natureza reconciliada (1994:100/101).
Sobre essa passagem cabe mencionar o alto grau de prazer que envolve ambas as
experiências articuladas em Paz. Não é de se espantar que haja sempre tantos fiéis ligados a
tantas religiões, seitas e correntes esotéricas. O ser humano está ligado a esses rituais por
diferentes motivos, que passam pela crença, pela fé, pela culpa, pela cultura, mas também
pelo prazer.
Outra questão presente em Paz, que convida à reflexão é a da reunião dos opostos, em
uma natureza reconciliada. Paradoxalmente, o vazio é o tudo, em potencial. Há um adágio
budista que diz que “a forma é o vazio e o vazio é a forma” (Hridaya Sutra in Watts,
1975:53). Aliás, ao vazio estão associados diversos oximoros. O nada e o tudo, o mesmo e o
outro, a forma e o conteúdo, a ausência e a presença, o ser e o não ser. Todos eles se fundem,
se confundem, se reconciliam, na idéia de vacuidade. Inês Bogéa traz essa idéia de fusão de
contrastes na arte de Kasuo Ohno, que, segundo ela:
dança entre o mundo visível e o invisível. Num lusco-fusco difícil de descrever, e mais difícil
ainda de definir, o que é obscuro e o que é luminoso na nossa natureza dão-se aos sentidos
sem perder a ambigüidade, e sem contradição. [...] A linguagem, atual e arcaica, valoriza os
conteúdos velados do inconsciente, mas também a expressão clara das formas – e seu
desfazimento ( 2002: 80).
O próprio Kasuo Ohno, em entrevista à Inês Bogéa, fala sobre a vida e a morte,
levando-nos a perceber como esses duplos - não dicotômicos - configuram ciclos em que os
opostos se alternam ritmicamente:
Dentro dessa superposição de vida e de morte é que podemos ver o florescimento da nova
vida, que é o novo homem que vai nascer, como parte da doação da mãe. Ao longo de minha
existência, eu sempre achei que deveríamos ter uma percepção muito concreta, muito real,
sobre essa dualidade com que é feita a nossa existência. Isto é, a vida e a morte são
componentes da nossa existência ( 2002: 85).
ampliação do corpo sensível, “sente-se a partir de dimensões do corpo até então inexistentes”
(2001:105), ou melhor, diríamos, ignoradas. O meio em que vivemos nos solicita
constantemente determinadas naturezas de apreensão, tornando o corpo viciado em acionar
sempre as mesmas vias de se relacionar com o mundo. Há modos diferenciados de
percebermos o que há a nossa volta, que não são nem melhores nem piores entre si. Apenas
algumas dessas formas são bem mais utilizadas, e outras atrofiadas e até desconhecidas.
Estimular outros meios de percepção é, ao mesmo tempo, desenvolver essa vias de cognição,
e entrar em contato com conteúdos diferenciados, incapturáveis pelo nosso entendimento
cotidiano. Trata-se de incrementar nossa inteligência, no sentido mais amplo que esse termo
possa ter.
O despertar desse tipo de percepção, ligado ao corpo sutil, ao corpo vibrátil, configura-
se importante instrumento na conquista daquela conduta política, ético-estética, que buscamos
como norteadora do trabalho do ator. Esta conduta, que percebemos como uma verdadeira
trama. Tanto em seu sentido de entrelaçamento, rede de agenciamentos éticos e estéticos
fazendo rizoma, como enquanto estratégia afirmativa, pró-ativa. Micro-política para conquista
de singularidades do ser-estar no mundo, por meio de linhas de fuga e vetores dissidentes que
fomentem heterogêneses.
158
CAPÍTULO 6
PROCESSOS CRIATIVOS
Porém, ao longo dessa etapa, senti falta - e desejo - de investir meus próprios recursos
de intérprete (com outras experiência e disposição, em relação às dos alunos de graduação)
nos processos criativos. E ainda, ao fim, senti que, a despeito de um trabalho consistente e
proveitoso, e de importante retorno positivo por parte dos alunos, no que se refere à pesquisa
sobre a própria expressividade, não havíamos chegado a um “produto” que me satisfizesse
como tal, ou seja, que fizesse jus ao próprio processo. Mesmo que, em realidade, criar um
“produto final” não fosse objetivo desta etapa. Além disso, há o fato de que em uma disciplina
de quatro créditos dificilmente se consegue dispor de tempo e constância necessários a uma
pesquisa que exige forte imersão por parte dos participantes, envolvimento que eu viria a ter
no processo de criação do espetáculo. Processo que contou, ainda, com a vantagem de se
seguir a um momento prévio de experimentação – a disciplina, a qual me deixou mais madura
na pesquisa.
159
Por esses fatores decidi realizar a segunda etapa da pesquisa prática - a qual eu já tinha
intenção de fazer, mas cogitei protelar para depois da defesa da tese, concluindo-a apenas com
as questões levantadas na experiência com a disciplina. Senti que seria para mim, antes de
tudo atriz, inconcebível e frustrante cursar um doutorado em um programa com linha de
pesquisa reconhecidamente voltada à práxis artística, e não realizar um processo criativo onde
eu estivesse implicada como intérprete.
Havia também o ímpeto inicial de minha movida rumo ao doutorado, que tinha como
cerne me colocar como sujeito e objeto de minha pesquisa: construir um processo em que eu
fosse ao mesmo tempo intérprete-criadora e observadora. Afinal, entendi, ainda, que meu
objeto de estudo pedia uma complementação da primeira etapa de experimentação – a qual
também foi de suma importância para o estudo – que pudesse afinal checar a eficácia da
proposta em termos de utilização em uma encenação. Vejo a primeira etapa, aquela junto à
disciplina Técnica de Corpo para a Cena III, como uma importante preparação para o segundo
momento, o de montagem da peça.
Para criar o espetáculo senti que deveria contar com um acervo temático –
dramatúrgico - distinto das matrizes exploradas na tese. Isso por que, dessa forma, poderia
perceber a eficácia destas matrizes no processo de elaboração de corporeidades, independente
de contextos dramatúrgicos. Assim, fui em busca de fontes textuais que me parecessem
apropriadas para um diálogo com um acervo expressivo que seria criado, a priori, sem foco
em uma história.
Os contos Noturnos, de Ana Miranda (1998), “me perseguiam” desde 1998, quando
me presentearam-no. Sempre que o relia me enchia de vontade de transpor alguns contos ou
trechos para o teatro. Sentia que a obra - toda escrita em uma primeira pessoa feminina e
inquieta, praticamente sem pontuação, como que se obedecesse a um fluxo de pensamento ou
desabafo - apresentava vocação para a cena. Depois, já durante o processo de criação da peça,
somou-se a este livro a ficção biográfica Clarice (1999), da mesma autora, que igualmente me
impactou. Clarice é uma ficção biográfica inspirada em um cotidiano hipotético e poético de
Clarice Lispector, cuja obra também sempre me perturbou.
permite que leiamos os contos em qualquer ordem, sem comprometer o sentido geral da
personagem e de seu mundo. Em Noturnos, a opção pela não utilização de pontuação na
maior parte do tempo, provoca ainda mais esse desdobrar de sentidos. Todos estes aspectos –
que indicam certa abertura da obra - me pareceram favoráveis à proposição de recriar um
universo poético presente em uma obra literária, no corpo e na cena teatral. A mesma
perspectiva de composição e montagem, que nortearia o trabalho com o acervo expressivo,
indicaria os caminhos para lidar com as fontes textuais, as quais, desde sua origem, já
apresentavam características fragmentárias, mutáveis, desdobráveis e nômades.
Uma descrição detalhada das cenas do espetáculo consta em anexo, assim como o
DVD com a filmagem da peça. Ainda que a sinopse descritiva do item 6.2.b. traga em linhas
gerais uma descrição da peça, é aconselhável que aqueles anexos sejam consultados para uma
melhor apreciação das próximas seções. Isso vale também para o anexo em que transcrevo e
comento meu “diário de bordo”.
Essa etapa inicial ocorreu no primeiro semestre letivo de 2005, com a turma de
Técnica de Corpo para Cena III, do curso de interpretação teatral da Escola de Teatro da
UFBA. Os alunos cursavam, em média, o quinto semestre do curso. Participaram dessa etapa
os seguintes estudantes de teatro: Altamar Araújo da Silva, Afrânio de Carvalho Soledade,
Cinara Maria Paiva dos Santos, Clarissa Santana de Oliveira Torres, Fábio Roberto Ferreira
de Souza, Júlia Barreto de Almeida, Justina Maria Lima de Souza, Leonardo Batista Passos,
Lisa Vietra (trancou a disciplina nas primeiras semanas), Luciana Hortélio Silva Sales e Maria
Eugênia Santos Caldas.
A disciplina foi dividida em cinco fases, totalizando 25 encontros. A primeira fase foi
de diagnóstico, a fase dois voltada à matriz yin yang, a fase três orientada pelos trigramas do I
161
6.1.a. Fase 1
Nesse primeiro momento pude ter uma idéia da turma, seus corpos e disponibilidades
para a fabulação corporal. O conjunto mostrou-se um tanto heterogêneo em termos de
recursos técnicos já incorporados. O seguinte questionário foi apresentado aos alunos, nessa
fase 1, com função de auxiliar o diagnóstico:
Pensando nesses fatores eleitos, me parece que o trabalho guiado pelas matrizes tem
essa abrangência. Em termos de energia, creio que tudo que foi dito até aqui demonstra ser o
trabalho energético objetivo importante de nossa investigação. Em que pese a noção de
energia apresentar nuances diferenciadas por parte de quem a enuncia, há, especialmente no
teatro, certo entendimento tácito, senão sobre o conceito em si, ao menos sobre a eficácia do
manuseio do elemento energia no trabalho do ator. Em relação à construção de um corpo
extra-cotidiano, vimos que também este é um ponto que pode ser favorecido pelo trabalho
com as matrizes. No que se refere à comunicação, esta está relacionada à significação,
processo que, com o uso re-contextualizado das matrizes, pode ganhar desdobramentos e
multiplicidade, como veremos na análise de Traços.
Entretanto, veremos adiante que, nesta etapa da pesquisa – a disciplina, esta foi o salto
que não conseguimos dar. Ao longo das aulas, os alunos, como mostram depoimentos,
despertaram, re-organizaram e mobilizaram chi para o trabalho. Além disso, como pude
presenciar, e pela própria análise deles, houve uma série de construções corporais
extremamente interessantes e não cotidianas, ao longo da disciplina. E ainda, de acordo com
depoimentos dos próprios alunos, houve momentos em que eles romperam padrões corporais
expressivos, a partir de nossa proposta. Porém, no salto entre as conquistas no processo
criativo, e a posta em cena, não soubemos aproveitar o vasto material que tínhamos. Parece-
me, hoje, que isso pode se relacionar tanto a uma inexperiência metodológica minha em
relação a esse processo – voltarei a falar sobre isso – quanto a algumas falas detectadas nesse
primeiro relatório.
inclusive o corpo negando o texto, porém, como está seguido do termo referenda, dificilmente
a fala da aluna prevê possibilidades como esta. E ainda, quando Clarissa diz que “um corpo
expressivo é aquele que comunica, (...) possibilitando a ele (espectador) uma leitura direta
(grifo meu) com o significado do movimento”, o termo direta traduz, ou denuncia, um desejo
de univocidade. Digo ou denuncia, pois tanto Clarissa quanto Leonardo foram alunos
altamente disponíveis para criações não ilustrativas e polissêmicas, no decorrer das aulas de
experimentação. Entretanto ambos, assim como toda a turma – incluindo minha dificuldade
em ajudá-los a romper com tal padrão – acabou se rendendo a um processo de significação
unívoca e ilustrativa, quando passamos para a última etapa de trabalho. Voltaremos a falar
sobre esse momento adiante.
Algumas vezes essa comunicação não está relacionada à racionalidade, mas ao sentimento,
este, no nível das sensações. Corpo expressivo é um corpo capaz de ultrapassar a mera
reprodução de movimento, chegando a expressar as tensões/sensações que envolvem aquela
determinada situação.
Os três últimos itens puderam ser contemplados pela prática de chi kung, previamente
ao trabalho. Mobilizar energia, se esvaziar e estar presente no próprio corpo estão entre os
principais benefícios da prática. Em relação ao primeiro tópico, nosso programa de aula
previu um momento – entre o chi kung e a experimentação das matrizes - de abordagem de
algum princípio de técnica corporal. Este momento teve a função de aquecer o corpo do
aluno, de promover conhecimento e ampliação de seus próprios recursos psicofísicos. Ao
mesmo tempo funcionava como facilitador para imersão em um estado que se relacionasse à
matriz a ser explorada no dia. Nos quadros presentes na seção 1.2.d, que relacionam os
trigramas do I ching a propostas de trabalho corporal, e que nortearam uma das fases dessa
etapa, essas associações podem ser percebidas. Por fim, o segundo item apontado foi
contemplado nos diálogos entre os corpos e as matrizes taoístas, trazida em recortes de todo
seu acervo de imagens e aspectos associados (apresentados no capítulo 1).
6.1.b. Fase 2
165
Após essa etapa técnica passávamos para um trabalho mais criativo com as matrizes
yin yang. Em diagonais – esse formato se mostrou eficaz para essa fase – cada aluno, ou
dupla, ou grupo, saia de um pólo – da sala e da dupla yin yang proposta – para o outro. As
variações incluíam a transformação gradual de um aspecto em outro, a intensificação de um
dos pólos até seu limite, para em seguida transformá-lo subitamente em seu oposto, o trabalho
em duplas que saiam de pólos opostos e se contaminavam no percurso, entre outras. Além
disso, trabalhamos a construção de uma partitura composta por células colhidas nas diagonais,
e em trocas entre os alunos, e ainda experimentamos inserir aspectos yin yang diferentes dos
que geraram as partituras, funcionando como sub-partitura para estas.
Nesta fase houve a manifestação de dificuldades por parte de alguns alunos em lidar
com sugestões mais abstratas como as que regem alguns pares de opostos trabalhados, como
por exemplo, frioquente, úmidoseco, vaziocheio, substancialnão-substancial ou docesalgado.
Com pares mais diretamente relacionáveis com movimento como lentorápido,
troncomembros ou contraçãoexpansão, eles se sentiram mais confortáveis. Também surgiram
dificuldades na visualização de imagens evocadas na prática do chi kung como o redemoinho
de energia vindo do cosmos, ou o movimento de chi na mãe dos centros, por exemplo. À
época, a prática ainda se mostrava incômoda para a maior parte dos alunos.
166
O seguinte questionário foi solicitado após a fase com as dinâmicas yin yang e maior
contato com chi kung:
em alguns momentos a mente e o corpo aceitam (entendem) o que está sendo pedido e em
outros não, por exemplo, quando se pede ‘claro’ e ‘escuro’ fica difícil fazê-los sem ser
interpretando com os meus conhecimentos do que é claro e escuro.
Essas falas pareceram evidenciar certa angústia por ter maior conhecimento ou entendimento
sobre as matrizes e também sobre o que eu – como professora – estaria propondo, ou
esperando, a partir dessas experimentações. Busquei ir esclarecendo esses aspectos, mas
principalmente tentei, a partir dessas respostas, fazê-los entender que o que me interessava
eram seus diálogos corporais espontâneos com essas idéias, da forma mais livre e
despreocupada possível. Expliquei que não se tratava de acertar ou errar, apenas de deixar
acontecer, a partir do encontro do corpo com uma dada imagem, composições expressivas.
algumas imagens de oposição do yin yang são mais fáceis de serem trabalhadas, talvez por
fazerem parte do cotidiano mais ilustrativo. Nesse caso o maior desafio era sair do repertório
de movimentos pré-conceituados.
Aqui se percebe uma maior consciência das próprias dificuldades diante do trabalho.
Especialmente no que se refere à tendência maior à ilustração daquilo que está sendo
sugerido, ao invés da disposição a um diálogo corporal com a imagem e com as sensações que
esta provoca. Questões similares estão expostas nessa fala de Fábio:
a qualidade de movimento não me convencia. Mais uma vez a desagradável sensação de que a
ação suplantava a sensação. Parecia que os colegas e eu também estávamos muito mais
preocupados com o mostrar, o que conduz a obviedade.
Outro exercício que me trouxe uma perspectiva nova foi a diferença entre uma passagem
gradual entre o yin e o yang, e uma passagem brusca. Uma cena é construída a partir de muitos
elementos, mas um dos mais importantes é o ritmo.
Para Leonardo “os emblemas yin yang têm revelado nesse primeiro contato formas corporais
libertadoras de alguns estereótipos”, e Júlia afirmou “na maioria das vezes me senti
estimulada a criar e brincar com essas duas energias”, enfatizando o seguinte:
quando ouvia as sensações/energias (estímulos relativos ao yin yang), e meu corpo respondia
organicamente achei interessante. Quando fazia um movimento ilustrando uma sensação, não
era um movimento negligente, mas era pouco criativo. Acho que em certos emblemas eu não
tinha tanta consciência do estímulo que me levava a fazer determinado movimento. E às vezes
funcionava.
a dinâmica em si, aplicada nessas aulas tem sido um elemento positivo para o estímulo a
construção de imagens e metáforas corporais; mas não sei exatamente se posso atribuir aos
pares/opostos referentes a tais emblemas as imagens que me são sugeridas, uma vez que o
quer que se apresente, a princípio, pareça-me apenas tratar-se de opostos simples.
6.1.c. Fase 3
A terceira fase foi norteada pelos trigramas do I ching. Compôs-se de nove encontros,
sendo cada qual voltado a um dos oito trigramas, e o nono, a pedido dos alunos, destinado a
jogar, propriamente, o I ching para eles. Essa foi a etapa em que senti a turma mais presente e
aberta à experimentação. Em que pese a dificuldade demonstrada na etapa anterior, nesta fase
eles se permitiram brincar mais com as sugestões, se julgando menos, e menos preocupados
em “acertar”. Apesar de, hoje, achar que excedi na quantidade de estímulos propostos - muitas
imagens, sensações e sugestões a cada encontro - ainda assim, houve grande aproveitamento
por parte dos alunos, como demonstram seus depoimentos sobre o período. Por outro lado,
talvez o próprio bombardeio de imagens sugestivas tenha favorecido, em certo aspecto, a
minoração da atividade racional, estimulando a imersão no trabalho. Isso é inclusive
mencionado em alguns relatos por parte deles.
169
De acordo com as respostas pôde-se constatar que houve, nessa fase, um crescimento
na relação com a prática do chi kung, que passou a ser mais bem aceita e percebida em sua
influência positiva sobre os trabalhos técnicos e criativos. Como já mencionado, eles
responderam em questionários aplicados em diferentes fases, perguntas específicas sobre o
chi kung, e ainda inseriram relatos sobre a prática no caderno. Em seção específica
apreciaremos essas respostas e comentários relativos ao chi kung.
Com relação à primeira questão transcrevo, a seguir, trechos que demonstram a forte
identificação dos alunos com o trabalho dessa fase.
Me senti estimulado, os trigramas agrupam significados, apontam várias coisas que tem um
ponto comum (ex: terra, profundo, escuro, frio, etc.), e isso cria uma ‘atmosfera’, um campo
mais delimitado para que uma ação seja realizada de modo definido. (Altamar, resposta ao
questionário)
Acho as imagens do I ching muito fortes, mas acredito que elas apenas não conseguiriam
suscitar em mim tantas respostas. (...) Cada aula era conduzida direcionada a um fim. E os
resultados corporais obtidos me deixaram muito satisfeito. As respostas com os trigramas
170
eram muito verdadeiras e sem dúvida já estão armazenadas em minha memória corporal. Me
diverti muito criando a partir dessas imagens. (Leonardo, resposta ao questionário)
O processo aguça a imaginação, a criar imagens, que deixam o corpo ‘flexível’, as criações, as
composições passam do racional para o experimental. Esta etapa mexeu muito com as
emoções, estas expressas no corpo. Se fosse compor um personagem teria um excelente
material, principalmente as personagens que exigem uma partitura corporal, que aliás, acho
que todas precisam de uma certa forma. (Cinara, resposta ao questionário)
Acredito que todo repertório apresentado na aula nos estimule efetivamente a compor, uma
vez que a condução se presta a unir nosso potencial subjetivo, a imagens sugeridas pelos
arquétipos. (...) Era sempre surpreendente o quanto cada arquétipo se delineia em uma
propriedade energética expressiva e em um repertório de imagens, muitas vezes comum entre
os integrantes do grupo, o que, pra mim, remete ao aspecto do inconsciente coletivo e, quanto
à contribuição individual, certamente é o que estabelece o diferencial, e a pluralidade das
composições. (Justina, resposta ao questionário)
A maior disposição ao trabalho nessa etapa se deve, a meu ver, a alguns fatores:
primeiro ao fato deles enxergarem mais claramente uma aplicabilidade da proposta, já que
terminávamos as aulas, nessa etapa, com uma construção que era apresentada à turma. O
segundo motivo é o fato do trabalho ter sido dirigido para a construção de algo mais próximo
a uma “personagem”, que ora chamei de “entidade”, ora de “criatura”, ou “estado” tentando
evitar uma psicologização excessiva por parte dos alunos. Entretanto, se eles aproveitaram
melhor essa fase que a anterior, onde a experimentação ainda estava mais solta e sem foco
perceptível para eles, por outro lado, acredito que a etapa anterior os preparou para esta.
Como crítica ao meu próprio trabalho de facilitadora, hoje vejo que faltou instalar
nessa fase, um espaço diário de registro, repetição/transformação e incorporação das
construções expressivas. Percebi isso especialmente ao fim do processo, quando muito pouco
do que foi levantado por eles ao longo do processo pode ser trazido no trabalho final. Não
havia suficiente treino de composição, com suas características de recortar, aumentar,
diminuir, colar, etc. as células expressivas. Assim, mesmo quando lembraram alguma
construção e trouxeram para o trabalho final, na última etapa, não o fizeram na perspectiva de
montagem. Ou seja, trouxeram as construções bem próximas do original, por que não os
provoquei suficientemente para o exercício de transformá-las. Voltaremos a falar sobre isso.
171
6.1.d. Fase 4
A quarta fase, composta por três encontros, voltou-se à criação de textos tendo por
motivação todo o processo vivido até então. A partir de um exercício de escrita, em que
estavam mobilizados pelo chi kung, e sugestionados – através de palavras e músicas - por
aspectos dos oito trigramas trabalhados nas últimas semanas, eles criaram uma série de textos.
Foi tranqüilo enquanto eu estava escrevendo. Eu sabia o que escrevia, mas não tinha noção do
resultado de todas as palavras ligadas. Ler o resultado é que foi desagradável, pois me lembrei
de coisas que preferia ter esquecido e comecei a pensar em outras que nunca me ocorreram.
Eu me acho muito fraco pra esse tipo de trabalho, por que se por muito pouco me comovo,
imagine num trabalho desses que mexe com sentimentos pessoais. Não consigo segurar e
começo a chorar. (Leonardo, depoimento em caderno).
Foram dados estímulos a partir dos trigramas e nós íamos escrevendo palavras ou imagens que
viessem à mente. Foi uma experiência inesquecível. Passar pelos trigramas, sentir sensações
das mais complexas e variadas possíveis. Afloraram em mim sentimentos que por muito
tempo estavam esquecidos nas gavetas da minha mente. Fui tomada por uma grande
melancolia e tristeza, palavras que inclusive estão no texto. Podemos dizer que sofri uma
catarse. É esse o nome com que defino a experiência vivenciada hoje. Apesar das lágrimas e
das lembranças dolorosas, considero positiva a experiência, pois preciso saber lidar com os
sentimentos que por ventura possam transbordar de dentro de mim (...) Vieram à tona
sentimentos guardados que precisavam sair, não deixaram de ser doloridos, mas talvez de uma
próxima vez eu saiba lidar melhor com eles. (Júlia, depoimento em caderno).
Após esse exercício inicial, os outros dias foram destinados à fusão e à recriação
dessas escritas, visando construir um texto que norteasse o trabalho final. No anexo B.2 estão
transcritos, na íntegra, tanto os textos originários, realizados em estado de imersão e chi kung,
172
6.1.e. Fase 5
A última fase, com cinco encontros, voltou-se para a preparação de uma apresentação
final, tendo como norteadores os textos criados na fase anterior. A idéia era que eles
buscassem suas produções expressivas geradas ao longo do semestre, e trouxessem-nas para
um diálogo com esses textos, dentro de composições em grupos de três a quatro pessoas.
Entretanto, essa foi a fase mais frustrante para mim e para a turma. Não conseguimos um
resultado condizente com o processo, que se mostrou tão interessante. Em análise conjunta,
elencamos alguns fatores para isso.
Um outro problema detectado foram os próprios textos escolhidos para as cenas finais.
Se por um lado o processo de criação desses textos foi extremamente estimulante para a
turma, por outro, talvez não fosse o material dramatúrgico mais adequado para aquela
experiência. Hoje imagino que se tivesse trabalhado com textos de outros autores, fossem
poemas, contos ou mesmo trechos de textos dramáticos, talvez a fase tivesse sido mais
produtiva. Isso porque o tema dos textos por eles produzidos era coincidente aos temas que
geraram seus movimentos, o que favoreceu um processo ilustrativo: falo sobre o vento, trago
a matriz do vento, e assim por diante. Essa abordagem é bem diferente da que experimentei
173
em Traços, e que achei mais eficaz. Outro aspecto é a própria estrutura, e a eficácia
dramatúrgica dos textos. Como produção criativa, dentro do contexto da disciplina, os textos
são interessantes e poéticos. Entretanto, para orientar uma cena, não são apropriados. Ou seja,
não têm uma “qualidade” dramatúrgica necessária.
Como um último aspecto crítico dessa escolha, vejo o fato de os textos terem sido
produzidos por eles mesmos. Imagino que dialogar com um material textual/dramatúrgico
totalmente alheio tornaria a experiência mais complexa, e provocaria maior ação criativa.
Certo distanciamento do texto estimularia mais processos de interpretação e significação, por
parte dos alunos na posta em cena. Ter proposto a fusão e re-elaboração dos textos individuais
minimizou, mas não solucionou esta questão.
Esse processo final foi bastante conturbado e frustrante. Por conta da falta constante dos
componentes do meu grupo, inicialmente, fizemos tudo racionalmente. Isso não funciona nem
um pouco. Particularmente tive uma experiência muito rica e um material de trabalho
profundo. Todo esse material que adquiri ao longo das aulas não consegui resgatar e aplicar na
apresentação final. Seria muito mais produtivo se tivéssemos continuado com as aulas que
estavam sendo bastante enriquecedoras. Gostei muito das aulas. Essa experiência vou levar
para vida enquanto atriz e o chi kung, principalmente, para o lado pessoal. (Júlia, caderno de
registro)
Esse trabalho final foi pouco para todo o processo, fizemos pouco. A construção do texto foi
prazerosa, os estímulos foram bastante importantes, fluíram, o pior é que tínhamos bagagem
para uma montagem, não sei por que não rolou. Gostaria de continuar no próximo semestre
para entender melhor tudo (me refiro ao aprimoramento). (Cinara, caderno de registro)
Estive ausente nas duas primeiras aulas de construção conjunta do texto (...) Nos
correspondemos por e-mail durante o São João, discutindo inclusive os conectivos que
deveriam estar presentes ou ausentes no texto. Somente em sala, pensando juntos é que as
imagens, inclusive corporais, foram surgindo. A imagem idealizada racionalmente estava
linda. Como realiza-la. Não tínhamos a resposta e exatamente nesse momento as faltas
começaram a acontecer (...) a ausência de um imobilizava o grupo. Gostaria de pedir à
professora que não se sentisse frustrada pelo resultado, mas sim feliz pelo processo, que pra
mim pelo menos foi o mais bem aproveitado e que mais ressoou em termos de expressividade.
(Leonardo, caderno de registro)
Para finalizar essa seção, transcrevo um poema de Fábio sobre esse momento do
trabalho. O belo nesse poema, a meu ver, é que ele reflete de modo sutil, mas intenso, saberes
ligados ao imaginário taoísta, como: o aspecto cíclico dos processos, a natureza ambivalente e
174
incerta das questões, e a perspectiva de um universo não cognoscível, mas nem por isso,
imperceptível.
Fiz a opção de tratar do chi kung em um item à parte, ao invés de trazer as impressões
dos alunos sobre a prática ao longo das fases. Creio que assim podemos ter uma noção mais
elucidativa do processo deles nos treinos, seja individualmente, seja da turma como um todo.
A seguir estão transcritos trechos de depoimentos colhidos nos cadernos, e nas respostas aos
questionários, especificamente sobre o processo de adequação ao chi kung. Os trechos vêm
precedidos pelas datas, para que se possa ter uma visão progressiva da relação de cada aluno
com a prática. Quando for o caso, há menção de que se trata de respostas aos questionários. A
título de recordação transcrevo novamente as duas questões que figuraram nos questionários
da fase 2 e 3, relativas ao chi kung:
Passarei a comentar cada compilado de declarações sobre o chi kung, oriundo de cada
aluno, e, ao mesmo, tempo irei desdobrando-os em comentários mais genéricos ou
comparativos. Não há declarações de todos os alunos, assim, trago apenas vozes que
apresentem reflexões sobre a prática em pelo menos três momentos diferentes do processo.
175
Júlia Barreto foi uma aluna que escreveu bastante sobre todo seu processo, o que
apenas reflete seu envolvimento grande com a disciplina. Assim, opto em analisar suas
impressões sobre a prática em dois blocos, o das anotações espontâneas, no caderno, e o de
respostas aos questionários. Comecemos pelo primeiro.
(05/04) Senti bastante a energia yin subindo pelos pés, pernas e com o pulsar da vagina chegar
na mãe de todos os centros. Era uma energia quente, uma sensação de formigamento. Na hora
de captar energia yang senti tontura e uma agonia, acho que não consegui captar essa energia
de forma organizada. (07/04) Sensação de meu corpo estar se expandindo. Sendo que, para
mim, meu corpo projetava-se para frente. Impressão de que o corpo estava completamente
torto. A energia yin foi mais vibrante que a yang. Senti uma evolução em relação à aula
passada, mesmo com a energia yang. (12/04) Hoje, particularmente não estava concentrada.
Senti um incômodo com o exercício e um pouco de tontura. Talvez isso tenha acontecido
porque meu corpo está muito dolorido. (14/04) Sensação de expansão e tranqüilidade. Quando
abri o olho estava conectada comigo mesma. O meu corpo parecia estar em equilíbrio. (10/05)
Consegui me concentrar bastante. Fluiu, não fiquei agoniada. (12/05) Ainda no chi kung foi
irradiada a energia para a coluna. Essa energia foi impulsionando e provocando movimentos
com a coluna. Minha coluna realmente parecia estar regida por essa energia, sugando do
centro de todas as mães. Eram movimentos sinuosos, verticais e horizontais. Minha coluna
parecia uma serpente. (17/05) Hoje senti as duas energias equilibradamente. Ainda em chi
kung meu corpo, como foi proposto, foi derretendo. Era uma energia passiva, pesada. Senti os
fluidos do corpo e isso impulsionou movimentos lentos, contidos e sinuosos vindos do corpo
todo. (19/05) Não estava concentrada, as coisas não fluíram. (24/05) Entrei numa sintonia
forte com minha energia e a que circundava. (09/06) Hoje fizemos sem comando. Foi bom.
Acho que prefiro seguindo o comando (14/06) Senti meu corpo muito torto, mas não
incomodou. (28/06) É sempre bom reorganizar as energias. As energias ficaram equilibradas.
(Júlia Barreto)
A fala de Júlia mostra uma disposição bastante positiva em relação à prática, desde o
início. Note-se que há uma consciência forte no que se refere às dificuldades e às sensações
que o treino provoca. Não se pode inferir uma “evolução” ou “melhora” de aproveitamento
por sua fala, até por que, como já dito, trata-se de um corpo pré-disposto à experimentação
desde o primeiro contato. Vale ressaltar que houve dias, no decorrer do processo, em que o
exercício mostrou-se mais penoso, mas nem por isso, em momento algum a aluna invalida a
prática, antes demonstra consciência de que sua desconcentração estaria dificultando o
processo. Há ainda menções, do meio para o fim do relato, do fato dela passar a alcançar
estados de equilíbrio de energias yin e yang. Outro aspecto a ressaltar é o link que ela sente
entre a prática e exercícios posteriores, a partir do chi kung, mas já em perspectiva técnica ou
de experimentação expressiva, como o caso dos exercícios da “serpente na coluna”, e do
“corpo em derretimento”. Em suas respostas aos questionários, ela própria dá uma idéia de
como sua relação com o treino foi se dando no decorrer do processo.
(10/05, em questionário) A presença cênica é estimulada pelo centro energético. Acho minha
energia bastante desorganizada, nas vezes que consegui realizar bem, sem interferência o chi
176
kung, senti minha energia em harmonia não só na aula, mas no resto do dia. O chi kung
precisa ser um exercício diário, pois me incomoda um pouco. Nas vezes que me concentrei e
realizei bem o chi kung meu corpo ficou em estado de prontidão para criar. No sentido
técnico/expressivo sinto uma dilatação no corpo, uma sensação de expansão. Especificamente
em alguns processos sentia a energia partindo da mãe de todos os centros e visualizava a
energia yin e yang. Quando o centro energético é ativado, a criatividade aflora. Eu procuro
deixar fluir as indicações e deixar de lado o racional para que meu corpo aja de forma
espontânea. (09/06, em resposta a questionário) Hoje posso afirmar que com chi kung
consegui reorganizar melhor minhas energias. A concentração também é algo imprescindível
para o ator e o chi kung permite desenvolver muito bem isso. O contato com o chi kung foi
maravilhoso não só porque vai me ajudar, ou melhor, já está ajudando profissionalmente, mas
também auxilia espiritualmente e mentalmente. Até porque o ator tem que saber lidar muito
bem com seu emocional, por isso o ofício do ator é muito difícil. Particularmente gosto muito
dos preceitos e da filosofia oriental e pretendo continuar usando a sabedoria oriental em todos
os ramos da minha vida. No meu entendimento o chi kung permite o equilíbrio das energias
que partem do centro energético de forma a irradiar de forma cíclica todo o espaço. Isso está
diretamente ligado com a presença cênica. Quando faço o chi kung fico extremamente
concentrada e mais criativa durante os laboratórios. Além dessa dilatação do meu corpo que já
havia dito anteriormente, sinto uma conexão muito grande com o meu corpo, o espaço e as
pessoas ao meu redor. É como se fosse aguçada a percepção, a consciência de tudo que me
cerca. À medida que fui fazendo o chi kung em aula e às vezes em casa, ficou mais fácil
mergulhar nesse equilíbrio das energias yin yang. Senti um progresso na execução do
exercício, apesar de ainda continuar sentindo a energia yin mais presente. Tecnicamente
falando, consegui desenvolver em sala resultados que me deixaram muito satisfeita. Sinto hoje
uma evolução na minha consciência corporal, no meu estado de prontidão. Acredito que isso
tenha se dado devido ao princípio de tudo, que, no caso foi o chi kung, que impulsionou esse
estágio em que me vejo agora. Sinto-me à vontade a criar com o corpo sem travas e tensões.
Tomara que possa dar continuidade ao chi kung para que possa atingir esse ponto que é de
extrema importância. (Júlia Barreto)
(05/04). Senti um calor na sola dos pés e no centro da cabeça na hora de visualizar o
redemoinho e misturar as energias na mãe de todos os centros, região que não consegui
mobilizar e sentir. (07/04) Hoje, em vez dos pés e cabeça, foram as mãos que ficaram quentes.
E comecei a sentir a concentração de energia na região ‘mãe de todos os centros’, mesmo que
de maneira descontinuada. (12/04) Segundos antes de a professora dar as indicações dos
pontos eu sempre pensava neles, como se eu estivesse de alguma forma conectado ao
pensamento dela. (14/04) Maior percepção da energia yin promovida pela contração do
períneo. (10/05) A captação da energia yin tem me deixado um pouquinho tonto. Não consigo
sentir nada pelo canal da fonte borbulhante, mas a pulsação do períneo agonia meu corpo.
177
(17/05) Ainda é difícil entender o que aconteceu, quando a concentração estava direcionada ao
centro yang (redemoinho) eu fiquei angustiado, o meu peito apertou e tive uma sensação
horrível de sufocamento. Fiquei tonto e me deitei, mas não melhorei. Foi então que a
professora encostou em mim e colocou a mão no meu peito e o sufocamento foi desabafando
em choro. Não havia motivo algum, mas chorei e fui desabafando e não queria soltar a
professora porque senti uma energia muito maternal. Me assustei um pouco, mas além de
revelador me deu uma ótima sensação de purgação. (31/05) Consegui trabalhar hoje com a
energia yang, mas no momento de concentração e captação de energia yin senti-me tonto e
desconfortável e interrompi o processo. (07/06) O chi kung hoje não foi orientado (não
aconteceu como antes, quando cada etapa era explicada verbalmente durante o processo) pela
professora, mas por cada um de nós dentro de nosso tempo para cada fase. E eu adorei, me
senti muito bem sendo o senhor de meu tempo. (09/06) Novamente executado sob o tempo de
cada um, em seu ritmo. Muito tranqüilo e proveitoso pra mim. (Leonardo Batista)
Assim como Júlia, Leonardo apresenta forte percepção das sensações e dificuldades
durante a prática, apontado para uma conscientização progressiva das próprias características
energéticas, por assim dizer. Interessante apontar que Júlia sente mais facilidade com a
energia yin, enquanto Leonardo menciona maior desenvoltura na relação com a energia yang.
Seria muito simplório, e provavelmente equivocado, afirmar que isso se deve a uma questão
de gêneros. Parece-me mais plausível pensar em singularidades ou tendências energéticas.
Que por sua vez não devem necessariamente se dar como estanques ou definitivas. Eu
particularmente, tendo a perceber a energia yang com maior intensidade, por exemplo, o que
não significa que não possa haver épocas ou circunstancias em que isso se altere.
que manipulo muito bem essa energia. Hoje afirmo que [o chi kung] facilita [o trabalho
expressivo] com muito mais propriedade, pois tive a oportunidade de experimentar a prática
dentro dos trabalhos do meu grupo de teatro, e então pude perceber o quanto surte efeito.
(Leonardo Batista)
Clarissa Santana, outra aluna de fácil abertura para ações experimentais, também
demonstra em suas falas sobre a prática, perceber a eficácia da mesma em relação ao trabalho
do ator. Sua fala mostra sensações recorrentes, as quais já mencionamos, e a consciência
sobre a interação de energias diferentes no corpo.
(07/04) Calor nas mãos, enraizamento dos pés que levou a um movimento lento de saída para
a caminhada. Lacrimejamento, bocejo (menos que na aula anterior). (19/04) Passei mal.
Minha pressão baixou durante o trabalho energético, mas consegui superar. Depois não teve
mais jeito, não consegui absorver mais nada. (03/05) Acho a prática do chi kung bastante
eficiente para a manutenção viva da energia, mesmo nos momentos de não movimento.
(12/05) Gosto da prática do chi kung. Concentramos a energia, nos conectamos conosco e
automaticamente nos tornamos mais presentes na aula. (09/06, em resposta a questionário) O
chi kung me proporcionou a percepção de união dos nossos opostos complementares. O fato
de acreditar muito numa construção intelectual em nenhum momento me bloqueou para
trabalhar com a proposta do chi kung. Percebi que o processo é concomitante, fonte yin e fonte
yang, uma se alimenta da outra. A vigilância sobre o processo não precisa ser somente
questionadora, mas auxiliadora. O corpo sabe agir, sem precisar seguir apenas ordens. O chi
kung me proporcionou essa experiência. Qualquer técnica que seja utilizada antes da criação
interfere em seu processo. O chi kung proporciona a concentração da energia, o equilíbrio.
Coloca o grupo, o indivíduo, num estado de tranqüilidade e de propriedade sobre si. Ele lida
com a qualidade de energia e essa qualidade que devemos levar pra cena. (Clarissa Santana)
(05/04) Um pouco difícil se concentrar. Havia dois pedidos, um para se desligar e centrar o
corpo nos pontos, o outro nas entrelinhas: “siga minhas orientações”. Mesmo assim senti a
cabeça pesar e os pés pesarem, tendência a sair do equilíbrio, cair para frente, e ao mesmo
tempo havia a força que não me fazia cair. (12/04) peso corporal: pés: suporte de peso, cabeça:
parte a ser suportada, abdome: união das duas partes citadas. (10/05, em questionário)
179
Tranqüilidade, agonia, imagens coloridas, medo, dor nos pés, peso, relaxamento. Tal trabalho
possibilita concentração do corpo, fato fundamental para passear pelas técnicas de corpo. É
uma preparação para as múltiplas possibilidades e o observo como um portal de entrada que
diferencia o ocasional, cotidiano, etc, do controlado, criativo, artístico. Talvez fosse
interessante para valorizá-lo como preparação, início, portal, a existência de uma técnica
similar para finalizar o momento criativo. (24/05) Senti-me desconcentrado. Porém, ao voltar-
me para o chacra central consegui recuperar a concentração. (09/06, em resposta a
questionário) As respostas do chi kung foram às vezes calafrio, autopercepção, consciência
corporal, funciona em mim como um corte de energia de produção de ações cotidianas e
minha energia de ações de pesquisa corporal. O chi kung facilita e interfere no processo no
sentido de possibilitar uma concentração para início de um trabalho de ator. Acho importante
separação entre ‘arte’ e ‘realidade’ em se falando do trabalho de ator, pois estes espaços
possuem ‘leis físicas’ diferentes. (Altamar Araújo)
Altamar destaca na sua fala dois aspectos importantes. O primeiro é a vontade de que
houvesse um momento similar de chi kung no fechamento das aulas, e não só no início. De
certa forma ele pode ter razão. Como o trabalho com a energia acaba sendo orientado para
uma criação expressiva, pode haver tendência a um novo desestabilizar energético após toda a
canalização em prol do momento de experimentação. O tempo exíguo de aula não comporta
mesmo um outro momento da prática no fim das atividades, entretanto, um gesto como
abraçar o centro (mão esquerda em contato com o umbigo, e a direita por cima), com a
intenção de soltar as energias incentivadas no processo experimental, já pode colaborar nesse
aspecto.
(12/04) Senti dor, incômodo. Continuo sem sentir muita coisa e quando sinto foge
rapidamente e aí vem o mal-estar. Sinto dificuldade em me concentrar. Não quero criar
preconceitos e resistência em relação ao chi kung. (10/05 em questionário) Incômodo e mal
estar. Não consigo ver nada, sinto muita dor nas costas, agonia, vontade que acabe logo. Tento
várias vezes seguir todos os passos do exercício, até sigo, mas na hora de sentir energia, de ver
o ponto entrando em minha cabeça já era. Não funciona comigo (pelo menos por enquanto).
(09/06 em questionário) Hoje em dia vem me deixando mais concentrada, mais centrada no
trabalho diário. Ainda bem que o processo é um crescente, pelo menos esse foi, só agora me
dei conta de que forma as dinâmicas poderiam me ajudar. Ajuda. Como eu resolvi converter
em prazer, consegui que me ajude na concentração. (Cinara Paiva)
180
A aluna mostra o quão difícil foi para ela praticar os treinos. Entretanto, em resposta
ao último questionário há clara referência de uma mudança de disposição em relação ao chi
kung. Processo em alguns pontos similar ao de Fábio Ferreira. Vejamos seus relatos.
(12/04) pude perceber uma manifestação energética que, salvo em flagrante clássico de auto-
sugestão, se apresentava em minhas mãos em forma de calor e certa sensação vibrátil. (10/05
em questionário) Percebi que a qualidade de energia que se instala com o treinamento tende a
conferir um estado inusitado entre a prontidão, concentração e relaxamento. Do ponto de vista
filosófico, ideológico e até físico, o chi kung me trouxe o despertar de um olhar sobre meus
canais de manipulação energética e, sobretudo, a verificação de um nível ainda embrionário de
exploração nesse sentido. Considero o chi kung um elemento de conexão com o corpo integral
(físico, energético, intelectual, etc). O que, por si só, oferece ao ator e ao indivíduo um
fortalecimento e ampliação da percepção interior (o que há de contribuir de alguma via para o
181
Interessante notar que os relatos escritos de Justina por vezes parecem conflitantes
com alguns de seus depoimentos em aula. Isso porque, ao longo do semestre, em diferentes
ocasiões a aluna abordou a própria dificuldade de entrar em contato com as sensações e com a
prática, mencionando sua extrema racionalidade como fator impeditivo, nesse caso. Além de,
cumpre frisar, ela ter tido problemas pessoais sérios ao longo daquele semestre. Já nos relatos
escritos, fica uma impressão de que houve forte aproveitamento, e até alto nível de
compreensão dos benefícios e aplicações dos treinos. Não sei ao certo o que inferir disso,
talvez o tempo tenha corrompido positivamente sua resistência, talvez tenha havido um
entendimento racional das possibilidades de aproveitamento, mesmo que isso não tenha
ocorrido em nível vibrátil, talvez seus depoimentos, em aula, revelem uma auto-exigência
extremada, ou ainda um forte viés questionador.
inteireza, uma disposição à entrega para o trabalho. Além disso, vimos relatos de alunos que
levaram a prática para momentos extra-classe.
Na própria apresentação final, que não teve caráter de espetáculo, mas de um recorte
do processo, ainda que tenhamos identificado alguns problemas, já mencionados, era nítida
uma qualidade de presença naqueles corpos. Havia ali o prazer de se estar por inteiro, o prazer
da entrega.
Vale ressaltar também que, ainda que os treinos de chi kung sejam executados
individualmente, o fato de todos praticarem ao mesmo tempo confere ao espaço e à
coletividade uma energia de grupo coesa, uma cumplicidade vibrátil que favorece a aula, tanto
nas dinâmicas coletivas, quanto nas contracenas propriamente. Percebendo essa propriedade
de dilatação e interação do corpo grupal, em várias ocasiões, após o treino inicial, eu os
solicitava que andassem pelo espaço em estado de chi kung, mantendo inicialmente o olhar
semi-cerrado – como quem olha para fora, mas sem perder o “olhar para dentro” – e pedia que
se olhassem intensamente, ou ainda propunha algum trabalho em dupla nesse estado.
Podemos falar senão de uma técnica “de atuação”, ao menos de uma técnica “para a atuação”,
no sentido que o treinamento se presta a um aspecto de sustentação do ator/indivíduo como ser
integral, ligado ao ambiente em que se insere. (Justina)
183
6.2.a. O processo
Antes de prosseguir cabe apresentar os termos que serão usados na descrição e análise
desse processo. Quando falarmos em “matriz”, ao longo do capítulo, estaremos nos referindo
tanto a fonte inicial de uma determinada criação – em nosso caso de origem taoísta, e já
apresentadas no capítulo 1 – quanto ao conjunto de células expressivas gerado na relação de
experimentação com essa mesma fonte. Assim, a matriz frioquente, por exemplo, refere-se ao
mesmo tempo a um dos pares yin yang existentes, quanto ao conjunto do material expressivo
gerado em meu diálogo corporal com este par. “Células” ou “células expressivas” são termos
que farão referência aos vários elementos componentes dessas experimentações, surgidas a
partir do encontro do corpo com uma dada matriz.
Essa etapa de criação do espetáculo foi crucial pra pesquisa, pois pude perceber
diferentes formas de relacionar as matrizes taoístas à criação e à cena, além das que eu havia
imaginado em minhas conjecturas iniciais. Em princípio, a proposição se concentrava em
criar corporeidades expressivas a partir das sugestões taoístas, de maneira dissociada da
39
Sobre a composição como perspectiva do trabalho atoral, e sobre a diferença entre movimento, gesto e ação
física, conferir o estudo de Matteo Bonfitto (2002)
185
fábula, para depois inseri-las na peça. Esta se mostrou, de fato, como uma aplicação possível,
e bastante produtiva, e se configurou como a linha diretiva de todo processo.
Durante a primeira fase dos ensaios, o primeiro momento do trabalho era dedicado à
criação de material expressivo - matrizes em diálogo com corpo. Este material gerava
imagens que eram “lidas” pelo diretor da peça, André Amaro, e eventualmente por mim, à luz
de nossas necessidades. Essa era uma função que propositalmente eu delegava ao André,
justamente para evitar imaginar de antemão uma possível adequação entre a matriz a ser
experimentada, e algum conto ou ambiência da obra de Ana Miranda. Tal decisão me permitia
criar mais livremente. A partir daí esse material ia sendo desdobrado e re-contextualizado,
visando à dramaturgia.
Depois, já com a estrutura eixo da peça levantada, as matrizes foram sendo usadas
também para adensar ou complexificar o desenho, como uma provocação interna de estados,
que não estavam originalmente ligados àquelas formas corporais que agora animavam. Ou
seja, em clara perspectiva de composição (Bonfitto, 2002), uma mesma ação física pôde ter o
desenho de movimentos ligado a uma determinada matriz - experimentada em dada ocasião, e
a sub-partitura ligada à outra.
40
Nesse contexto da voz, pretendo ainda aprofundar a pesquisa após a conclusão do doutorado. Ainda que tenha
trazido esta nuance para o processo, creio poder ir mais longe com tal perspectiva, especialmente no sentido de
trazer mais as construções vocais para a cena propriamente.
186
Em outro momento a personagem se dirige à camisa que lhe recorda o amante (cena
13: “Varal + Traço 1”, conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b). Vai até lá com
os pés rastejantes, e o corpo lânguido, célula expressiva ligada à matriz umidade, mas sua
intenção é colorida pela matriz expansão + luminoso, que metaforiza o estado de espírito
daquela mulher em relação à visão de seu homem. A idéia de trabalhar com essas sub-
partituras mais abstratas e distantes de idéias psicológicas, visa preservar as zonas de sombra
– ou os vazios – do espetáculo, com uma construção de interpretação mais sutil, que favoreça
a implicação intensificada do fruidor na construção dos sentidos da obra.
interferências de idéias. Além disso, a prática me ajudava a mobilizar meu chi, trazendo um
estado vibratório que se mostrou bastante adequado às experimentações.
Após cumprir os passos do treino padrão, permitia-me uns minutos de chi kung
espontâneo, o qual consiste em deixar o chi se manifestar em movimentos involuntários, não
coreografados e nem planejados. Esse momento me é particularmente especial. Deixar o
corpo se mover, sem o comando mental consciente, assumir internamente uma posição de
sentir e observar, diferente da usual de controle dos movimentos, traz sensações como soltura,
liberdade, surpresa. Parece que o corpo sabe exatamente o que precisa/deseja, o que acaba por
trazer um profundo bem-estar. De um modo geral, o exercício de reconectar-me às minhas
próprias energias, e demandas de ordem vibratória, me trazia intensamente para o tempo e
espaço presentes. A sensação de dilatação de meu corpo e presença parecia facilitar o deixar-
me ser passagem, para que as matrizes se manifestassem em corporeidades.
Depois dessa fase, partia para o diálogo corporal com a matriz propriamente. Como
disse, a sensação de presença no tempo e no espaço me abria a possibilidade de um encontro
profundo com as matrizes. Salvo raras exceções, o trabalho fluía sem que eu me pré-ocupasse
em pensar o que fazer. Era o corpo que vibrava em sintonia com a imagem da matriz, o corpo
que “pensava”, e produzia os entre-lugares expressivos dos trânsitos matrizesalice.
Após a estréia passei a fazer o chi kung sempre antes de entrar em cena. Após um
aquecimento básico de alongamento e prontidão, faço os treinos e parto para a atualização
corporal de matrizes e células expressivas usadas na peça, bem como para uma troca de chi
com o espaço e os objetos cenográficos. É, inclusive, neste estado que inicio o espetáculo,
propriamente. Quando o público entra no teatro já me encontro em cena, deitada. Em
contraste com o som suave e delicado de um brinquedo de corda, meu corpo manifesta alguns
movimentos involuntários, como em quem dorme, mas em estado de tensão e sobressalto.
Esses movimentos são chi kung espontâneo, e, quando a peça começa, estou sob efeito da
circulação energética proporcionada por este. Deitada, deixo simplesmente essas
manifestações ocorrerem em meu corpo, enquanto o público entra em cena.
O músico Lupa não se envolveu com os treinos de chi kung propriamente, mas vale
notar que, como praticante esporádico de ioga, ele também dedica alguns minutos antes de
entrar em cena à meditação. Além do que já foi dito, a prática de chi kung me traz maior
atenção e concentração, e ainda a possibilidade de irradiação e foco energético, elementos
188
altamente eficazes ao trabalho de ator. Esta perspectiva remete à convicção artaudiana de que
o ator precisa crer e lidar com a materialidade das paixões - e da alma e de energias -
aprendendo a manusear esses fluxos moleculares com objetivos e estratégias claros, visando à
intensificação da presença e, por conseguinte, da recepção (1993:136).
Uma outra variação de uso das matrizes, não pensada previamente, mas surgida na
demanda do processo criativo, foi sua exploração já dentro do contexto dramatúrgico, seja
contexto ligado a ações, textos ou climas. Foi o caso de experiências como na cena 34:
“Banho” (vide seção 6.2.b, sinopse descritiva), para onde levamos a matriz obsessão, que já
tinha sido experimentada, mas voltou para nova investigação, agora dentro de uma cena
específica. Na cena 35: “Noite + Traços Teia”, exploramos pela primeira vez vários
estímulos, entre eles o conjunto branco + outono + pele (ligado ao Metal, em wu hsing), que
acabou trazendo vários elementos que foram usados ali.
Estas situações - é bom que se diga - não constavam nos contos de Ana. André
identificou essas ações em experimentações a partir de matrizes yin yang, que, no ato da
exploração, nem de longe me remeteram a elas. Se nosso tema ou texto fosse outro,
provavelmente André teria enxergado outras coisas. Assim, pudemos chegar a um
desempenho pouco realista dessas ações não por meio de uma estilização, abstração ou
descaracterização progressiva destas, senão por intermédio de material expressivo pré-
existente, que, em re-contextualização, imprimiu teatralidade e polissemia à cena. De um lado
tínhamos uma atriz criando, mas não de forma dirigida ao tema da peça, e sim a partir dos
estímulos taoístas propostos, e de outro um diretor, este sim prenhe do espírito do espetáculo,
assistindo e compondo com o que via. Um determinado movimento remetia-o à ação de varrer
e tirar o pó, provavelmente pelo fato de estarmos lidando com uma personagem solitária e
enfurnada no apartamento, a quem seria presumível esta ação. Fosse uma serial killer, por
exemplo, possivelmente o mesmo movimento o levasse a vislumbrar alguma outra ação.
alocações e derivações das células criadas. Entretanto, por terem surgido em pesquisa
dissociada de sentidos unívocos ou direcionados – até por que vários estímulos taoístas já
tendem a certa abstração – tais células parecem manter um caráter menos territorializado,
parecem resistir à fixação em um contexto inequívoco. Em outras palavras elas geram atuação
e cenas menos realistas, talvez mais metaforizadas e polissêmicas.
É fato toda obra artística porta certa polissemia, e que sempre contempla certo grau de
recepção criativa e variada por parte do público. Afinal, nessa característica reside um tanto
do que define algo como arte. Mas, da mesma forma que uma pintura figurativa tende a
direcionar mais a fruição do que uma obra cubista, por exemplo, no que se refere ao grau de
42
Para saber mais sobre o trabalho de André Amaro o site www.teatrocaleidoscopio.com.br pode ser consultado.
191
“ilustração” do tema por parte do artista, há viéses diferenciados na abordagem de uma obra.
E é importante saber que estes têm conseqüências diretas sobre aspectos da recepção.
Não se trata de defender esta ou aquela abordagem de cena como melhor ou mais
contemporânea. O fato é que, particularmente, me propus a experimentar uma determinada
via de trabalho que, pelo processo e resultado, pareceu demonstrar grande vocação a uma
recepção por devir, uma fruição menos estratificante. Talvez por que sua criação também foi
sustentada pelo princípio do devir, de wu wei e do vazio. Esta espécie de fruição remete aos
conceitos de “cadeia significante” em Jacques Lacan, e de “infinitização do discurso”, em
Júlia Krsiteva, referidos por Ciane Fernandes em sua análise do processo e obra de Pina
Bausch (Fernandes, 2000: 26-38). Para a autora, Bausch explora justamente o não-repouso e a
arbitrariedade do signo (2000:32)
É bom frisar que, a despeito desse esforço, a peça acabou apresentando certas
seqüências, senão óbvias, pelo menos redundantes em termos de texto e ação. É o caso da
cena 13: “Varal + Traço 2”, em que os gestos muitas vezes ilustram o texto falado. O que
suaviza, a meu ver, o grau ilustrativo dessa composição é o fato de se passar numa
circunstância não cotidiana, ou antes, na metaforização de uma ação cotidiana - lavar roupas.
A relação com a camisa pendurada cria imagens pouco usuais a esse contexto, digamos, de
lavanderia, e desdobra em extra-cotidiano o gesto doméstico de lavar roupas e recordar as
carícias de um homem.
Outra questão que se colocou durante o processo, como vimos, foi o uso das matrizes
como sub-partitura. Uma motivação interna que não era traduzida em uma intenção
presumível, como “raiva”, “desespero”, ou em algo como uma “memória emotiva”. Por vezes
esse “forro-pensamento” era da ordem de uma memória muscular, como no contraste
contraçãoexpansão. Por vezes operava uma memória da sensação, como nas sub-partituras
paladar, olfato ou visão. Em outros casos o que animava o gesto ou a ação era uma idéia mais
192
abstrata como cheiovazio, sombrioluminoso, entre outras. Esse grau de abstração contribuiu aí
- da mesma forma que nas construções de movimentos - para intenções talvez mais
conotativas que denotativas, sutis como no entendimento de Sant’Anna, ou seja,
preservadoras das zonas de sombra.
Em especial dentro dos contrastes yin yang, a intenção tende a parecer ainda mais
complexa, paradoxal ou ambivalente. A relação com o marido, por exemplo - oscilando entre
a leveza do afeto para com sua bonequinha, e simultaneamente a violência de seu contato
físico com ela - foi buscada pelo contraste densosutil, que permeia toda a cena do varal (cena
13: “Varal + Traço 2”). Isso nos remete às propriedades descritas das dinâmicas yin yang.
Não apenas a oposição, mas a interdependência, a inter-transformação e o inter-consumo, que
podem ser identificados nesse trânsito entre as polaridades de um mesmo núcleo de
“sentimento”.
43
Conferir o já mencionado estudo de Ciane Fernandes sobre o método de Laban e Barthinieff (2002).
193
4. Na barra central do fundo: um lenço vermelho pendurado, e uma bacia prateada, com
o fundo estampado no mesmo motivo da saia e barras da luva.
5. Na barra da direita, ao fundo, está pendurada no alto uma camisa branca de punhos e
gola vermelha. Em baixo, encostado na barra está o par do sapato da barra 3. Este com
um detalhe vermelho.
6. Na barra do centro da lateral direita está pendurado um balde prateado, cujo interior é
revestido de um tecido vermelho.
7. Na barra da direita frontal há um livro cuja capa tem a mesma estamparia da saia,
fundo da bacia e barras das luvas.
Em algumas barras há outros ganchos pendurados, além dos que já estão com objetos,
mas que não são imediatamente percebidos pelo público. Há também alguns elásticos
escondidos nas barras, que só aparecerão no decorrer das cenas. A personagem inicia vestindo
uma espécie de camisola curta, em modelo “tomara que caia”, sendo o bojo que sustenta os
seios em tecido vermelho, e o corpo da camisola em verde. Em baixo usa uma calça de malha
justa, tipo legging também verde, num tom mais escuro que o da camisola.
Do lado esquerdo, em um espaço recoberto com o mesmo tapete verde escuro que
forra o chão do cubo, está o músico e seus instrumentos, estrategicamente posicionado para
acompanhar todas as minhas ações.
Para facilitar a descrição e análise da peça, a mesma foi dividida em 38 cenas44. Cabe
frisar que há subdivisões forjadas para favorecer a análise, mas que não funcionam como
divisões no correr da peça propriamente. Estas subunidades estão relacionadas às ações e/ou
às repetições e transformações presentes no espetáculo. Estas repetições rítmicas explicam a
repetição de alguns títulos de cena. A seguir as sinopses das cenas.
1. despertar
44
Interessante lembrar que Meyerhold, com sua referência cinematográfica (o encenador inclusive influenciou
fortemente o cineasta Sergei Eisenstein), passou a não se contentar com as divisões habituais em atos, dos textos
dramáticos. Assim, seus espetáculos costumavam ser divididos em inúmeros episódios, o que favorecia uma
perspectiva fílmica de montagem, na relação com a composição cênica: jogos simultâneos, ritmo
cinematográfico, re-ordenação de seqüências, etc.
194
2. janela 1
Ela abre a janela e cumprimenta pessoas fora do espaço, olhando para baixo. Volta-se para o
interior e se depara com um “espelho”.
3. espelho 1
Ela se analisa, usa um “fio dental”, e passa a fazer ginástica. Por mim se mede com uma “fita
métrica” e constata que não está nos padrões.
4. feira
Ela passa a listar uma série de produtos light, e outras necessidades, enquanto prende os
cabelos no alto e calça as luvas, que deixam metade dos dedos a mostra.
5. unhas
6. bicho 1
45
Coloco entre aspas as primeiras referências a objetos imaginários e/ou re-significados. Não há uma janela de
fato, mas o gesto sugere-a. Assim como não há uma fita métrica, mas o uso que se faz do elástico promove essa
interpretação. Quando o objeto faz as vezes dele mesmo, trago sem as aspas.
195
Passa a travar uma intensa luta com a poeira, usando o espanador (objeto que acabara de ser
manuseado como bicho). Nesta luta o espanador assume, a partir das ações físicas,
características de espada, esfregão, desentupidor, taco de golfe, raquete e metralhadora. Por
fim, ameaçada, ela se esconde da poeira atrás de uma bacia, e inicia os preparativos para uma
nova ação – lavar roupas. Ela pega uma camisa e um balde, até que toca o telefone.
8. telefone 1 + traço 1
Ela se assusta, as coisas caem de suas mãos. Ela atende ao “telefone”. Ao tirar o fone do
gancho revela-se o primeiro elástico. Este vai ser levado até o outro lado do cubo, formando o
traço um. Ninguém responde ao telefone. Ao fim apenas uma voz sinistra diz alô até a ligação
cair.
9. lavação 1
Como ninguém responde, ela desiste leva o sapato (que era telefone há pouco), em direção às
coisas caídas. Passa a manusear a água e se lavar. Molha o sexo e tenta lavar as mãos com
“sabão”. Passa a procurar onde jogar a água suja.
10. janela 2
Joga a água suja da bacia pela janela e se esconde atrás do objeto.Volta à ação de lavar até
que percebe poeira no espaço.
Puxa um novo elástico e forma o traço 2, um “varal”, onde pendura a camisa. Dança com a
camisa e passa a interagir com a mesma, como se recordasse o homem que a usou. Cria uma
série de imagens com a camisa pendurada no varal. Ao fazer sexo com a camisa tem uma
costela quebrada com um sôfrego toque de amor.
Pega “agulha” e “linha” – quando puxa o traço 3 – e passa a costurar a própria costela.
Vai até o espelho e verifica se a costura ficou boa. Passa a se observar e resolve se arrumar.
Veste uma saia, um sapato, e passa a procurar o outro pelo espaço, jogando com a presença
dos traços elásticos. Acha um lencinho e o coloca no pescoço. Acha uma “bolsinha”, segura-
a. Por fim vê o sapato, calça-o, limpa-o, e se admira no espelho. Canta uma canção para si
mesma, se masturba, e de repente se vê com um “buquê” nas mãos.
Ao som da marcha nupcial passa a desfilar como numa igreja, mas se dá conta que está presa
ao passado pelo sapato (traço quatro). Desespera-se e se livra do sapato e do elástico. Nessa
altura os quatro traços já estão atravessando o espaço, e todas as ações da mulher tem driblar
ou se relacionar a estes.
No desespero de se livrar do passado acaba desemborcando o balde que prendia a poeira. Ela
se arruma quixotescamente, com um “chapéu”, um “escudo” e uma “lança”, e passa a
perseguir a poeira até esmagá-la em um dos alicerces.
18. desfazer-se
Deprime-se e se dá conta que deve se desfazer de tudo. Passa a catar os objetos do cenário, e
algumas peças que está vestindo, e colocar na bacia. O telefone toca quando ia pegar o livro.
197
19. telefone 2
20. janela 3
Ela vai até a janela, chama por alguém para doar as coisas que não quer mais, e passa a jogar
peça por peça, enlevada pela beleza destas atravessando o espaço até cair lá embaixo. Por fim
joga objetos muito pesados e parece ferir gravemente – ou matar – quem estava recebendo as
coisas.
21. bicho 2
Desesperada foge da janela e encontra o bicho novamente. Tenta se acalmar e passa a brincar
com o animal até que toca o telefone.
22. janela 4
23. telefone 3
Fica ainda mais desesperada e vai atender ao telefone tentando disfarçar a agitação. Ninguém
responde, ela puxa todos os traços do espaço tentando um sinal, mas é inútil. Ao fim
a mesma voz sinistra, que a assusta. Com uma “lupa” (alça de elástico de um os
traços) ela investiga o telefone e o espaço, enquanto se dirige ao alicerce onde está o
“livro”.
De repente tudo a sua volta escurece e ela fica apreensiva, encolhida junto ao alicerce.
Percebe o livro, o pega, abre-o. De dentro do livro uma luz ilumina-a. Ela lê, ri, descobre uma
“carta”, chora, faz um “cigarro de maconha”, fuma, cheira “cocaína”, e fica ligada. Nesse
estado canta uma canção, enquanto se dirige até a janela. Serve-se de “bebida” e vira a “taça”
de uma só vez.
198
25. janela 5
Embriagada termina a música cantando na janela. Deseja Feliz Ano Novo às pessoas lá
embaixo. Sente-se mal, vomita no livro, e o joga pela janela enojada. Percebe que o vômito
caiu em alguém, e se desculpa constrangida. Fuma um “cigarro” ansiosamente.
26. telefone 4
O telefone toca de novo, ela procura destrambelhadamente pelo telefone por todos os
elásticos, enquanto os estica e solta. Por fim acha e pisa no fio, desligando o telefone.
Passa a andar sobre uma “corda bamba” tocando em uma “corneta” a música Adeus ano
velho. Embriagada, tenta se equilibrar até que toca o telefone de novo.
28. telefone 5
Ela atende angustiada, e o mesmo de sempre: ninguém fala nada até que no fim uma
misteriosa voz fala alô e desliga.
29. monstro
Ela desconfia se tratar de um monstro, e lembra que há um que habita a calçada da esquina.
30. janela 5
Ela vai até a janela e confirma que o monstro está lá. Ela o ataca jogando o sapato e papel
amassado.
199
31. reza
Melancólica ela solta os cabelos e usa o elástico com “terço”. Passa a rezar e pedir perdão.
Sente culpa. Lembra dos filhos.
Passa a lembrar da relação neurótica que teve com os filhos, enquanto se relaciona com o
elástico fazendo uma cama de gato. Tira a saia e a coloca no chão, transformando-a em
“filho”. Pega-o no colo e canta uma doce cantiga infantil.
33. janela 6
Vai até a janela cantando, com o bebê nos braços, e ao fim da música o atira pela janela.
34. banho
Sente-se ainda levemente embriagada e vai até o “box” tomar banho. Toma uma “ducha”
gelada, sai, se enxuga.
Percebe os traços no espaço e passa a pegar um a um com as mãos, até juntá-los no centro e
amarrá-los com o elástico solto. Cria a imagem da “teia” no espaço, se entrelaça ao
elástico solto - agora amarrado aos traços - como no início do espetáculo e dorme.
Acorda com sons de fogos de artifício. Entra em desespero, acha que a casa vai cair.
Sai de sua casa.
36. telhado
Sobe até o telhado e se depara com a visão da cidade lá embaixo. É repreendida por alguém
por estar pisando na “antena” e atrapalhando o sinal da TV, pois vai começar a contagem
regressiva. Chega o novo ano. Fogos de artifício estouram no céu.
Ela se encanta com os fogos. Encanta-se com a cidade lá embaixo. E canta a música Solidão,
de Tom Zé. E salta de “Asa Delta” sobre a cidade.
Acende-se um painel atrás do cenário, com a imagem noturna de uma grande cidade. Na
frente a mulher canta e voa de Asa Delta.
6.2.c. A cena
O primeiro título, Traços, surgiu antes mesmo do espetáculo e de sua concepção, pela
necessidade de um nome, na feitura do projeto para concorrer ao prêmio Myriam Muniz de
estímulo à montagem47. Não quis usar o nome da obra de Ana Miranda, pois intuía que esta
nortearia, forneceria as ambiências para o espetáculo, mas não necessariamente as mesmas
palavras, em uma mesma ordem ou composição. O que propunha no projeto era uma espécie
de transcriação, para tomar de empréstimo o conceito de Haroldo de Campos, ligado à
tradução literária. A tradução aqui seria não entre línguas, mas entre linguagens, ou sistemas
46
Este parágrafo, que traz a sinopse do espetáculo, foi escrito em parceria com André Amaro.
47
Este espetáculo foi contemplado com o prêmio Myriam Muniz da FUNARTE, através de uma verba para a
montagem, em 2006.
201
semióticos: da literatura para a cena. Isso certamente redimensionaria, entre outras coisas, o
volume, a seqüência e até o conjunto verbal da obra de origem, já que havia ainda a
perspectiva de tramar na cena diferentes dramaturgias, além da textual. O fato é que,
justamente visando garantir a presença da poesia de Ana na obra cênica, possivelmente
haveria a necessidade de mudanças textuais nesse processo de transposição de linguagens.
Em realidade eu estava no vazio, sem ter idéia do que seria a peça. Alias, não queria
saber, nem projetar nada sobre o espetáculo, já que desejava - e acreditava - que o processo
criativo o descortinaria. Então, pensei que o nome Traços seria um termo meio que “guarda-
chuva”, genérico. Por outro lado o termo remetia à personalidade (personagem,
idiossincrasias) e desenhos (movimento, corpo, espaço), aspectos que eu imaginava que
estariam presentes no trabalho.
Contudo, para nossa surpresa – por não ter sido uma proposição prévia, e nem algo a
que nos forçamos – a noção de traços se infiltrou no trabalho muito além do previsto. Além
dos desenhos que o corpo descreve na cena, que vão ao mesmo tempo mostrando ações e as
metaforizando, num desvendar e diluir contínuo, a idéia de traços se amplia e contamina o
espaço cênico. Nosso cenário é uma composição de traços no espaço: um quadrado de metal
fixo, composto por 13 barras - traços fixos - de sustentação, sendo 8 horizontais e 7 verticais,
e as 4 linhas elásticas - traços móveis, que são manuseadas no decorrer das cenas, culminando
por criar, com as imagens de teia, antena e asa delta, um conjunto de 10 traços, fora os da
estrutura metálica. Estes são: as 8 metades dos elásticos presos às barras de metal verticais,
mais os 2 traços descritos pelo elástico encapado com tecido, que fica entrelaçado ao corpo da
personagem. São os seguintes os desdobramentos de significação dos quatro traços-elásticos,
presos aos alicerces (as barras de metal verticais):
202
1. Varal/ muro/ fio de telefone/ vara de equilíbrio/ teia/ asa delta/ antena
2. Fio de telefone /corda bamba / teia/ asa delta/ antena
3. Linha de costura/ elástico de pular (brincadeira infantil)/ fio de telefone/
teia/ asa delta/ antena
4. Passado amarrado ao corpo/ fio de telefone/ corda bamba do bicho/ box de
banho/ teia/ asa delta/ antena
Esses são os desdobramentos previstos, mas esta lista não inclui as outras possíveis
leituras advindas da recepção. Já surgiram interpretações espontâneas por parte do público
que entenderam o conjunto de elásticos no espaço como labirinto, ringue de boxe ou cama de
gato, por exemplo.
Além disso, o conceito que moveu o trabalho da artista Maria Luiza Fragoso foi o de
objetos-traços, ou seja, peças que - ainda que identificáveis como utensílios com uma função
principal ou original presumível - mantivessem características mutantes, propiciando uma
espécie de transformação de sentidos, a partir da relação do corpo com o mesmo - atuação e
manuseio. A seguir trago um detalhamento dos desdobramentos dos objetos-traços, ao longo
da peça. Primeiro consta a descrição do objeto em sua forma básica, em seguida suas
transformações pelo uso:
O que importa aqui é dizer que em nenhum momento empunho esta personagem como
algo fora de mim, como uma construção alheia à minha própria experiência. Não empresto
meu corpo para que outra construção ontológica ou psicológica ganhe vida. Tampouco se
trata de uma auto-exposição generalizada, ou apresenta qualquer filiação ao psicodrama ou
demais terapias. Novamente, nos trânsitos pelos entre-lugares, nos “nós” que mobilizam
intensidades, nós que são as amarras, couraças e impasses por um lado, mas que são também
aquilo que movimenta a trama, o fiar. “Nós” que denotam os laços do tecer e da
multiplicidade de encontros: meu corpo e o tao, e Ana, e as mulheres de Ana, e Clarice, e
André, e Ciane, e Lupa, e Malu, e Bia, e minha mãe, e minha avó, e minha filha, e meu filho,
e os homens que habitaram minha vida, e o público, e, e, e, e... É visível a relação entre esta
abordagem e diretrizes da arte da performance, ou a perspectiva grotowskiana, por exemplo,
ainda que guardadas devidas proporções.
Com esses nós se bordou a personagem, que, por sua vez apresenta um conjunto de
traços característicos próprio, que não necessariamente dizem respeito a minha pessoa.
Traremos estes traços aqui hipoteticamente associados às cinco forças descritas em wu hsing,
apresentada na seção 1.2.c:
FOGO
Emoção associada: Alegria
Traços da personagem: Euforia, vaidade, prazer, excessos.
• TERRA
Emoção associada: Obsessão
204
• METAL
Emoção associada: Tristeza
Traços da personagem: Vazio, solidão, melancolia, depressão.
ÁGUA
Emoção associada: Medo
Traços da personagem: Fantasmas, insegurança, pânico, baixa auto-estima.
MADEIRA
Emoção associada: Raiva
Traços da personagem: Libertação, revolta, impulsividade, impaciência.
Quanto à sonoplastia do espetáculo, cabe dizer que esta também flui ao longo do
espetáculo na perspectiva de wu wei, se desdobrando em diferentes timbres, ritmos, funções.
Lupa produz sons que por vezes explicam ou complementam ações, por vezes simulam vozes
que dialogam com a personagem, por vezes acentuam climas ou criam atmosferas, além de
acompanhar os momentos de canto. Como em uma perspectiva meyerholdiana, aqui a
gestualidade e a música (ritmo) estruturam-se de forma altamente imbricada, e ainda, “o
elemento musical significa para a economia do espetáculo muito mais que uma base de
atmosfera para o desenvolvimento da ação dramática” (Cavaliere, 1996:119)
Ainda em relação à música do espetáculo, vale mencionar que algumas das canções
que compõem o espetáculo fizeram parte de minha própria história pessoal. É o caso de On
my own, de Irene Cara e Nikka Costa, e de Hi Lili hi low!, composição de B.Kaper e
H.Deusch, com versão brasileira de Haroldo Barbosa. A primeira, presente na cena 15:
“Espelho 2 + canto 2” marcou minha adolescência e a segunda, que era cantada para mim
pelo meu pai, durante minha infância, compõe a cena 24: “Livro + canto 3”. Já Boi da cara
preta, de domínio público, é uma música que eu própria cantava para meus filhos ao colocá-
los para dormir, e volta aqui na cena 32: “Filhos + canto 5”. Solidão de Tom Zé, foi uma
sugestão de Lupa. Estávamos procurando uma música para encerrar o espetáculo, na imagem
do vôo da cena 38: “Asa Delta + canto 6”, e ele lembrou que esta canção falava sobre vários
elementos presentes na peça: solidão, poeira, telefone que toca e é engano, além de mencionar
que quem perde o telhado, em troca recebe as estrelas - numa clara alusão à saída de um
confinamento. A música que a personagem canta enquanto dança com a camisa, na cena 12:
48
Transtorno obssessivo-compulsivo.
205
“Lavação 2 + canto 1”, Dream a little dream of me, de Gus Kahn, Wilbur Schwandt e Andres
Fabian, foi escolhida por mim em pesquisa de temas de cinema, que remetessem ao amor
romântico e idealizado. Além dessas, a personagem toca em uma corneta a melodia de Adeus
ano velho, de domínio público, enquanto tenta se equilibrar numa corda bamba, na cena 27:
“Corda bamba + canto 4”. Os trechos dessas músicas, os quais são cantados no espetáculo,
estão transcritos no item “Dramaturgia”, em anexo.
49
Noção do Budismo, que se relaciona com o caráter cíclico da vida, com os movimentos de existência e
transformação ou finitude de todos os fenômenos. E, assim, se relaciona com a idéia chinesa de wu wei, e com a
noção filosófica de devir.
206
que se vão revelando por meio de uma cartografia ininterrupta produzida com o corpo, e pelo
corpo no espaço.
A dinâmica yin yang está presente em vários aspectos de nossa construção cênica. A
seguir listo uma série de duplas que funcionam, no decorrer da peça, segundo a lógica do
Anel de Moebius, já abordada:
• Corpoespaço
• Sujeitobjeto
• Tragicomédia
• Gritosilêncios
• Excessosvazios
• Geometrcorgânico
• Verdevermelho
• Sutilezasexplicitudes
• Fluxoanti-fluxo
Cada um dos dois registros dos pares acima listados ora se alternam, ora transitam em
devir com seu duplo, criando outras configurações nos espaços-entre. O que se produz nestas
50
Sobre a idéia de repetição e transformação, conferir o estudo sobre a perspectiva de trabalho de Pina Bausch,
de Ciane Fernandes (2000). Ainda sobre essa perspectiva conferir a formulação deleuziana sobre diferença e
repetição (2000).
207
Aqui cabe remeter à composição paradoxal proposta por Meyerhold. Segundo Picon-
Vallin, é nos espaços entre que o encenador realiza sua poética:
Entre a vivacidade da arte popular e o refinamento da arte erudita [...] Entre a eternidade do
teatro de feira e a atualidade dos tablados construtivistas. Entre o trágico e o cômico, entre o
familiar e o estranho, entre o cômico e o horrível, entre o belo e o monstruoso [...] Organizar
seu corpo, pensar sua atuação e estrutura-la em função dessa série de oposições [...] são
operações geradoras de distâncias variáveis, necessárias à criação – para o espectador – de
dispositivos de visão ativa, não fusional, estrangeirizante51. (2006:34, grifos no original)
Meyerhold designa sua pesquisa sob o termo genérico de “grotesco” – procedimento ou estilo
– que ele define sintomaticamente por seu impacto sobre o público, pelo “modo constante pelo
qual ele arranca o espectador de um plano de percepção que ele mal havia acabado de
adivinhar, levando-o para um outro, que ele não esperava”. Esse deslocamento constante dos
planos de percepção é tributário de um jogo de contradições, oposições, coerções, que articula
simultaneamente a expressividade corporal do ator e seu projeto significante. (2006:35)
51
Esta perspectiva “estrangeirante” é responsável pela aproximação que alguns estudiosos fazem entre a obra do
encenador russo e a de Brecht. O efeito de estranhamento é relacionado ainda à idéia meyerholdiana de pré-jogo
(ou pré-interpretação) por alguns autores. Não é à toa que Stanislávski vai ser ora polarizado com um, ora com
outro, ainda que ambas as dicotomias já encontrem importantes desconstruções por parte de críticos e pensadores
da cena.
208
Outra dupla articulação bastante presente em Meyerhold, com a qual a cena de Traços
dialoga é a dialética entre os registros trágico e cômico. Especificamente sobre essa
reversibilidade é interessante transcrever um trecho do dramaturgo Friedrich Dürrenmatt, cuja
tradução que segue foi encontrada no estudo de Ciane Fernandes sobre Pina Bausch
(2000:91):
...rogai por nós pecadores... eu sei que eu sempre fui fiel aos meus pecados, mas é que eu
nasci com eles... eu repito todos os pecados na minha mãe e do meu pai e dos meus avós e dos
avós dos outros, eu amo os pecados. Não me castigue, minha Santa, a senhora é mãe, a
senhora sabe como é difícil, eu tentava acertar, mas eu não conseguia... (vide anexo A.2
Dramaturgia)
inclusive, a cena em que a personagem joga (ou lembra, ou manifesta o desejo reprimido de
jogar) o filho bebê pela janela, enquanto canta docemente uma cantiga de ninar. Outro duplo
registro de nossa cena: entre o doce e o monstruoso.
Se for verdade que teatro é conflito, como se costuma dizer, nenhum lugar é mais
apropriado para que este elemento se produza do que as fronteiras, ou espaços onde se dão os
encontros entre diferenças. Nos jogos entre contrastes ocorrem conflitos. E também
apropriações, fusões, heterogêneses. Segundo Picon-Vallin, Meyerhold abraça a perspectiva
paradoxal em sua cena, por que entendia que “é por meio de uma luta de forças em jogo, e
numa formulação conflituosa, que a atuação alcançará seu mais alto nível de expressividade,
encontrará sua acuidade” (2006:65).
210
• Base estreitalarga
• Postura côncavaconvexa
• Ênfase para altobaixo
• Joelhos para dentrofora
• Estado eufóricodepressivo
• Sentimentos paradoxais como Amoródio, vaidadinsegurança, etc.
Por fim creio ser possível dizer que construímos uma cena onde os jogos entre o
oculto e o evidente, o explicável e o inexplicável, o compreensível e o incompreensível
brincam e provocam o espectador ao exercício de criar junto, se projetando, fazendo escolhas,
enfim, fabulando nos vazios. O que não quer dizer que nosso espetáculo não siga uma
narrativa. Mas cabe dizer que esta é tecida por um conjunto de dramaturgias, que ora se
corroboram, ora se confrontam, ora se negam, mas que, no conjunto, contam, sim, uma
história. Essa trama dramatúrgica se apóia principalmente nos seguintes fios:
• O texto,
• O corpo e as ações físicas,
• O espaço e suas transformações,
• Os objetos e suas transformações,
• O som.
Acho importante dizer que, após minha volta para Brasília em dezembro de 2005, tive
a oportunidade de refinar uma abordagem metodológica baseada em estratégias processuais
das duas etapas práticas anteriormente mencionadas: na disciplina Técnica de Corpo para a
Cena III, na UFBA, e como espetáculo Traços. Ao longo dos últimos quatro semestres como
professora substituta na Universidade de Brasília (1 e 2/2006 e 1 e 2/2007), à frente da
disciplina Interpretação I (quarta da cadeira de interpretação, precedida pelas Oficinas Básicas
de Artes Cênicas I e II e por Introdução à Interpretação), vários daqueles princípios
operatórios, que estão sendo usados, vêm se tornando mais claros, e se mostrando bastante
eficazes. A articulação das duas etapas práticas da pesquisa muito contribuiu para o
entendimento progressivo e aplicação pedagógica dos princípios metodológicos
experimentados.
Hoje, a disciplina, como a ministro, está voltada para uma abordagem de interpretação
a partir da ação física. Tendo como principal base teórica para discussão com os alunos o
estudo panorâmico sobre ações físicas, de Bonfitto (2002) – o qual frequentemente aciona
outras pesquisas por parte dos alunos, a disciplina faz uso de matrizes taoístas, entre outras
eventuais, em perspectiva que promove tanto uma desconstrução de padrões corporais dos
alunos, como a criação de uma cena não-realista. Como a disciplina anterior aborda técnicas
da primeira fase de Stanislávski, que parte das Forças Motivas da Vida Psíquica – sentimento,
mente e vontade - como desencadeadoras do trabalho do ator, nossa abordagem funciona
como uma transição para uma segunda perspectiva de construção de personagem por parte do
mestre russo: pela via das ações físicas (Bonfitto: 2002, 21-37). Ao mesmo tempo o curso
transita por referências de outras técnicas de atuação, que visam uma composição menos
realista, a de um corpo fictício, como alternativa à idéia de personagem como uma pessoa
(psicológica) fictícia.
O curso está atualmente estruturado em duas etapas, que se seguem a uma fase
introdutória de seminários baseados no livro O Ator-compositor (Bonfitto:2002).
Resumidamente, a primeira etapa consiste em aulas que começam com um aquecimento -
uma série fixa que conjuga alongamentos e posturas a exercícios vocais - repetida
diariamente, seguida de experimentações com matrizes – de origem taoísta e, eventualmente,
de outras referências. Diariamente mantém-se um espaço para seleção, registro e repetição de
células expressivas geradas no dia e anteriormente. Esse momento é permeado de princípios
213
do chi kung, como o gesto de abraçar o centro (mão esquerda sobre o umbigo e direita por
cima), manter os olhos fechados e repassar imaginariamente as células antes e depois de fazê-
lo fisicamente. Treinos de chi kung, propriamente fazem parte apenas de aulas pontuais. Pela
restrição de tempo não trago o treino diariamente.
Assim, ao fim dessa etapa, cada aluno tem uma partitura corporal, com a qual ganha
grande intimidade, pela repetição diária e por experimentar diferentes propostas de
desdobramentos. Esse acervo de possibilidades expressivas é, durante essa primeira etapa,
pesquisado em termos de variações de tempo, peso, amplitude, humor, etc., e ainda sofre
mudanças de significação, em exercícios em dupla ou grupo, onde um aluno faz as vezes de
diretor, e maneja o material dos colegas dentro de determinados contextos (textos ou temas).
Chovia, pensei que não haveria público, mas quase não encontro ingresso, bom sinal,
Teatro Caleidoscópio, pequeno, lotado, aconchegante. Chamou-me atenção o cartaz,
o vermelho e o preto, pé de galinha? Linhas... Traços... Ou Quando os Alicerces
Vergam, vamos ver: adaptação de obra literária... Monólogo... Mulher de meia idade,
solitária, delirando...
A atriz, Alice Stefânia, pouco a pouco desenha com o corpo e na relação com os
objetos ações dramáticas que afastam qualquer lembrança de tantos outros
monólogos e adaptações que tenho visto, Alice constrói, contraditoriamente, com o
fio condutor, um labirinto onde, enquanto a personagem se perde, o espectador vai se
encontrando no caminho traçado com rigor e simplicidade, marca já conhecida, do
diretor, também ator, André Amaro provando que por mais que se espere o teatro
ainda pode surpreender, teatro que se faz a muitas mãos, mas que é arte do ator e
Alice o exerce com completo domínio; de corpo, voz e ainda cantando bem, muito
bem. Cenário e figurino, nem seguem o cotidiano formal nem exageram no "teatral",
antes, parecem ser objetos de arte, modelos desenhados, a propósito, pela artista
plástica Malu Fragoso, compõem, com o corpo da atriz e o espaço cênico, um belo
quadro, um apartamento, um quadrado. Da janela, uma luz, almas vivas, vizinhos
que não vemos, nem ouvimos, mas sabemos: estão lá. O diretor também está lá,
215
6.4. Fotos
Seguem fotos de ensaios e do espetáculo. O equipamento de que dispunha não era
apropriado para as fotos em movimento. Assim, seguem fotos de momentos mais estáticos,
que são as que ficaram um pouco mais nítidas, e ainda assim, algumas têm problema de foco.
Todas as fotos dessa seção foram tiradas por André Amaro. Infelizmente não há fotos da
disciplina, pois, à época só dispunha de uma câmera analógica antiga, a qual danificou o filme
com o qual fiz os registros do processo.
Imagens de treinos de chi kung, e chi kung espontâneo, antes de entrar em cena:
224
Experimentando matrizes
Matriz profundosuperficial:
225
Matriz calmagitação:
Matriz medoraiva
226
227
Imagens do espetáculo:
230
Cena 5: “unhas”
Cena 1: “despertar”
Cena 2: “janela 1”
Cena 6 “bicho 1”
231
Cena 6 “bicho 1”
Cena 9: “lavação 1”
232
Detalhe da teia
Cena 36: “telhado”
236
ASPECTOS CONCLUSIVOS
Sinto-me chegando ao fim de um início. Início de uma pesquisa que apresenta uma
vasta gama de desdobramentos possíveis ainda por advir. Início de história de um espetáculo
que, me parece, ainda muito circulará, e se transformará, e me transformará. Nos primeiros
passos de uma vida de trocas prazerosas, ensinando e aprendendo com artistas em formação, e
com parceiros de pesquisa. Como num Anel de Moebius, já sei que os fins abrigam
princípios, assim como nos princípios já se deixavam antever alguns fins.
Então, volto aos princípios, e refaço agora essa trajetória, revendo-a com um olhar
implicado, mas renovado. Minhas motivações originárias foram de ordem muito íntima e
potente. Sentindo-me afastada de um teatro que me realizasse enquanto artista-pessoa, movi-
me em busca de uma pesquisa que pudesse me trazer, para além de um título, um sentido. Ou
vários.
momento, tateando às cegas em busca de referências que me ajudassem nesse meu encontro
comigo, através de uma tese de doutorado em teatro. Após uma série de equívocos, dúvidas,
errâncias e muita vontade, tratei de focar o tao como a matriz norteadora desse meu caminho.
Caminho, sentido, fluxo subjacente, curso do rio... São, inclusive, algumas traduções para o
tao.
Assim, tratei de me mover ao caminho do meio. Não por encontrar aí o conforto inerte
da não tomada de posição, não para não estar nem de um lado nem de outro. Mas por entender
o meio, com os taoístas e confucionistas, como um lugar de trânsito, potente. Pus-me então na
fronteira desses campos sobre os quais venho trilhando meu caminho: o tao, o teatro, a
filosofia contemporânea, o corpo, a relação ensino-aprendizagem, a conduta ético-estética.
Tentando não esquecer da dupla vocação da fronteira: a de dominação e cooptação, por um
lado, e a de novas configurações identitárias - onde procurei operar - por outro.
A lida com aspectos do corpo vibrátil, através dos treinos de chi kung, redimensionou
o alcance desse viés. Foi crucial aprender com o taoísmo e com Artaud – teatrólogo que desde
o início de minha vida teatral norteou minha prática -, através de meu corpo e do corpo de
meus alunos, que a percepção da materialidade da energia é algo crucial para a vida e para a
arte. Em especial para a arte que envolve a presença corporal no ato de sua apreciação. E
crucial para fazer a articulação ético-estética.
Logo no início me dei conta de que, mais do que hipóteses, o que me movia eram
conjecturas, inquietações, intuições, desejos. Agora me dou conta de que não cheguei a um
método, pelo menos não no sentido ortodoxo do termo, já que essa terminologia pode remeter
a um roteiro engessado de ações. Creio, sim, ter cartografado processos criativos que partiram
de matrizes específicas, e que lidaram com determinados princípios operatórios, dentro de
uma lógica da eficácia. Estes podem certamente nortear diferentes desdobramentos e
atualizações por parte de outros artistas e pesquisadores, e até por mim mesma.
Além disso, muitas das noções ligadas ao saber taoísta foram percebidas em sua
extrema atualidade, pertinência e abrangência. Várias idéias ligadas ao tao apresentaram
eficácia operatória nas reflexões sobre o corpo, a cena e o zeitgeist contemporâneo. Foi o caso
de wu wei, te, chi, vazio/meio, por exemplo. Os duplos yin yang, por sua vez, além de
operarem como provocadores de corporeidades e parâmetros para gradação dessas
construções, em ambos os processos criativos (a disciplina e o espetáculo), favoreceram ainda
reflexões na desconstrução de modelos dicotômicos.
Inquietei-me com a associação direta, e muitas vezes ligeira, que usualmente se faz
entre um modelo duplo como o yin yang, entendendo-o como necessária e pejorativamente
dualista. Tratei de articular a idéia de que não é o fato de ser dual em si, mas sim o como se
estabelece a relação entre as faces deste par, que irá identificá-lo, ou não, como dicotômico.
Nesse ponto foi importante perceber como mesmo alguns críticos ferrenhos das construções
binárias acabaram, por vezes, caindo em modelos parecidos.
239
Dentre as conjecturas iniciais ligadas ao wu hsing, havia, ainda, pistas dadas por
Artaud, em Um atletismo afetivo (1993: 129), sobre uma possível localização fisiológica de
emoções, inclusive mencionando a acupuntura como possível meio para esse estudo. Essa
leitura gerou a intuição de que o estímulo a alguns pontos dos meridianos, relacionados aos
órgãos do corpo, pudesse facilitar o acesso a energias afetivas associadas a estes.
Tal investigação teria como base o mapa das cinco energias: terra, fogo, água, metal e
madeira - wu hsing – principal norteadora da medicina tradicional chinesa. A idéia era tentar
promover a vazão e o manejo estéticos dos afetos latentes ligados aos pontos mapeados pelos
chineses, passíveis, talvez, de serem acionados por meios adequados.
Por outro lado, percebi traços de um viés determinista nessa intenção investigativa.
Mapear um caminho para um afeto específico via pontos de acupuntura ou massagem, é
ignorar as diversas e singulares interações e configurações – sempre renováveis - entre cada
corpo e seus afetos, entre cada corpo e seus pontos energéticos. Ainda me parece instigante
incrementar e aprofundar a pesquisa com maior instrumental associado – agulhas, manobras
de massagem, etc. – mas não mais na perspectiva de criar um roteiro preconcebido para
acessar determinados estados afetivos.
blocos distintos e independentes de estudo, mas, por outro lado, creio que permitiu uma maior
organização e verticalização em cada um desses campos.
Em que pese essa construção aparentemente não rizomática da tese, penso que,
internamente, as seções trazem diferentes agenciamentos e linhas de fuga – como ocorre na
cena de Traços – e que estes promovem uma intensa inter-relação entre os capítulos.
Passemos agora a re-visitá-los, relembrando o percurso que trilhamos até aqui.
Inicialmente, no capítulo um, foi proposta uma apresentação das matrizes taoístas que
orientaram nossa pesquisa. Buscou-se olhar algumas noções desse universo a partir de
analogias com conceitos do pensamento contemporâneo, o que já vinha sendo esboçado desde
a introdução.
Esse recurso foi usado por um lado para intensificar a minha própria apreensão – que
já ia se dando em nível energético e corporal - desse saber tão distante da minha realidade.
Por outro lado percebi ser possível problematizar certas incompatibilidades entre construtos
teóricos de saberes ocidentais e orientais, ancestrais e contemporâneos, estruturalistas e pós-
estruturalistas, por meio da imbricação dessas fontes. Houve, entretanto, nesse processo, a
preocupação de não homogeneizar esses campos epistemológicos, e a percepção crítica sobre
a própria necessidade – etnocêntrica e acadêmica - de tomar apoio do saber ocidental para
compreensão e até legitimação do saber taoísta.
tese. Além destes, Meyerhold e Grotowski, por exemplo, foram referências intensas, com
quem dialoguei em diversos momentos ao longo da tese.
não como controle, nem como equilíbrio definitivo ou cura, mas como um processo
permanente – e em fluxo - de re-organização.
Por fim, no capítulo seis, passei a observar como todos esses princípios se fizeram
presentes em minha própria prática artística e pedagógica. Nesse capítulo foi constatada a
eficácia das matrizes enquanto geradoras de imagens sugestivas para processos criativos.
Tanto na disciplina como no espetáculo referências do imaginário taoísta se desdobraram em
partituras, sub-partituras, construções corporais (físicas, vocais, afetivas, energéticas, etc.),
que apresentaram tanto potencial para composições extra-cotidianas e diferentes de padrões
pessoais recorrentes, quanto forte vocação polissêmica.
Ao longo dos processos criativos o chi kung teve papel crucial, com conseqüências em
diferentes níveis. Por um lado a prática redimensiona a nossa própria relação com nosso corpo
vibrátil – e isso pôde ser identificado em ambas as etapas dos processos: nos corpos dos
alunos e no meu próprio. Por outro lado os treinos propiciaram um estado altamente favorável
para criação, já que o vazio instalado abria espaço para um todo potencial a ser acessado.
Além disso, a mobilização energética promovida pelos exercícios de chi kung geram uma
dilatação corporal - qualidade de presença e irradiação cênica - que atuam sobremaneira tanto
no desempenho do ator quanto – consequentemente - na recepção.
Apesar de, a exemplo da estruturação em blocos da tese, uma suposta parte prática
estar separada de toda uma articulação teórica, é importante frisar que, em realidade, esta
243
Foram omitidos acima inúmeros outros nomes importantes nas áreas indicadas. Estão
mencionados aqui apenas alguns professores com os quais mantenho certa aproximação, com
quem me encantaria dialogar, e que poderiam até, eventualmente, orientar-me em
desdobramentos dessa investigação, em nível de pós-doutorado, por exemplo.
Chego, então, ao fim dessa empreitada. Esperando que tal esforço possa figurar entre
as importantes referências para artistas dispostos a pensar e repensar sua própria prática, para
professores dispostos a aprender com seus alunos, para pesquisadores comprometidos com
uma conduta ético-estética.
Mas acima de tudo, e talvez egoisticamente falando, sinto que essa pesquisa tem um
significado gigantesco na minha própria vida. Num primeiro momento me pareceu
extremamente difícil formular conceitualmente todo aquele desejo que tanto me mobilizava, o
qual era oriundo de uma busca intensa, mas ainda confusa, que imbricava necessidades
artísticas, pedagógicas, energéticas, corporais, espirituais - ético-estéticas, portanto. E é com
muita alegria que vejo, hoje, como foi importante ter sido resoluta o bastante para não me
demover de algo que me era absolutamente necessário e genuíno.
Todo processo pelo qual passei ao longo da feitura desta tese ecoou em mim, para
além de uma perspectiva meramente intelectual. Percebo o quanto amadureci como
53
Em 2006 tive a oportunidade de participar de uma oficina de Do-ho em Brasília, de 15 horas-aula. Esta foi
promovida pela professora Rita Castro, e ministrada por Toshi Tanaka e Ciça Ohno, importantes referências na
tese de Rita (2005). No curso, assim como lendo a tese, pude notar pontos tangentes aos princípios taoístas,
inclusive os presentes no chi kung, como as noções de vazio, ma, chi, a idéia de sutileza, entre outros aspectos.
245
professora, artista, mulher, mãe, pessoa. E sinto um amor imenso por tudo que movimentei
nestes últimos quatro anos: as idéias, os agenciamentos, as encruzilhadas, as corporeidades, a
cena, as energias, os medos, as superações - as poéticas e as políticas, enfim. Todas as
reflexões aqui tecidas nasceram de inquietações muito íntimas, e se articularam à realização
de uma obra artística na qual pulsam minhas próprias singularidades como atriz.
Este rito de passagem marca minha vida de uma maneira radical, que se relaciona à
apropriação e afirmação - em meu próprio cotidiano - de uma conduta micro-política. Esta
conduta, que percebo como uma verdadeira trama, em seu duplo – e recíproco e desdobrável –
sentido: de constelação e de conspiração. Constelação em seu caráter rizomático, de
entrelaçamento de princípios éticos e estéticos, formando uma rede de fluxos e
agenciamentos. Conspiração em seu aspecto de maquinação, estratégia de infiltração e
afirmação, política nos fluxos, nas intensidades, nos subterrâneos, ações contagiosas e pró-
ativas de singularidades mestiças.
246
REFERÊNCIAS
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Gustavo Alberto Corrêa Pinto.
Tai Chi Pai Lin – A postura do universo: fundamentos do chi kung e o cultivo do poder
interno. Material distribuído em encontro de chi kung orientado por Ernani Franklin.
Salvador, s/d.
260
ANEXO A
aula 1
Atividades:
• Trabalho com a base (grounding). Experimentar o peso nas bordas (calcanhar, ponta,
laterais do pé) dos pés até achar o centro.
• Escrever o próprio nome e outras palavras com os quadris.
• Desequilíbrio com pé plantado e com deslocamento
261
• Andares com peso em locais diferentes do pé, ver imagens associadas que vêem,
deixando vir e agregar sentidos às formas.
• Escolher um tipo de andar e dar sentido, contextualizar, estabelecer motivações, etc.
• Mostrar para o resto da turma a construção.
Conversamos sobre teatro físico e psicológico. Foi dito que nossa proposta pode dialogar com
as duas tendências, já que o processo criativo é sempre pautado por uma relação psico-física,
e já que não a entendemos excludentes entre si.
aula 2
Conversamos sobre o histórico e expectativas de cada um, falei mais sobre meu projeto de
doutorado. Foi passado o primeiro questionário, e respondido em aula.
aula 3
Primeiro contato com chi kung, através de exercícios de captação energética das árvores.
Atividades:
usa o seguinte texto (ou aproximações): “Por favor, seu número? E o seu?... Sou o
penúltimo. (pausa) Com licença. (pausa) Está demorando muito? (pausa) O que não é
fila hoje em dia, não é, amigo?”
Após a aula, a partir de consulta feita ao professor Ernani Franklin, que me orientou quanto ao
chi kung, foi feita uma mudança de abordagem. O chi kung, passa a ser trabalhado apenas
com os exercícios “entrar no vazio” e “sentar na calma”, mais apropriados para nosso
objetivo.
aula 1
Foi explanada uma base teórica sobre o chi kung. Foram mostrados mapas dos centros
energéticos principais e respectivos portais de acesso e meios de absorção energética. Foi feita
ainda uma explanação sobre o par de rúbricas yin yang.
Atividades:
Leonardo: (sobre a partitura a partir das dinâmicas yin yang) “A parte mais complicada é a
colagem. Tentei unir as diversas células numa mesma unidade corporal, mas também de
pensamento lógico e racional. Não sei se essa foi uma boa idéia porque meus movimentos
estavam bem distantes do que se pode chamar de realista. Mas fiquei muito satisfeito com o
resultado”.
Fábio: (referindo-se à partitura a partir das dinâmicas yin yang) “Passar do movimento
espontâneo para o dirigido é sempre brusco para mim”.
Júlia: (sobre as dinâmicas yin yang): “busquei as relações mais interessantes com o outro e
onde meu corpo ficava mais orgânico, apesar do movimento ser extra-cotidiano”.
aula 2
Atividades:
• Com a energia mobilizada e concentrada no chi kung, abrir os olhos e entrar em contato
com ambiente, mantendo firme dentro, acionar outros sentidos fazendo ponte dentro e
fora. Olhar a rua, ouvir os sons. Encontrar parceiro, olhar no olho e em estado de chi kung
fazer exercício do “espelho” sem predeterminar o guia e o seguidor, mudando estes papéis
ao longo do processo sem indicação prévia.
• Ainda na dupla relembrar partitura (sem falar), mostrar pro outro que a aprende e vice e
versa, troca de partituras.
• Exploração da partitura alheia lembrando princípios opostos yin yang, tentando
experimentar aspectos (recheios, sensações) diferentes naquela mesma forma. Chegar a
uma nova partitura, a partir da mesma forma, mas com “texturas/tempos” diferentes.
264
Assistimos cada partitura original e transformada. O que teve sua partitura transformada
escolhe aspectos, células, texturas que deseja assimilar à partitura original e aprende-a
novamente.
Conversa sobre o chi kung que mobilizou muita energia hoje, algumas pessoas sentiram
energia quente vindo da terra e fria do céu. Conversamos sobre como as respostas são
individuais, e que especialmente nesse início da prática não se deve forçar um tipo de
sensação, mas apenas tomar consciência das respostas no corpo. Falamos sobre a diferença
entre intenção (há um subtexto com motivações psicológicas, ou racionais, que move a
partitura ou movimento) e sensação (quando o que move, gera a ação física, é a sensação –
imaginada ou real - atuando sobre o corpo).
Fábio: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Mais uma vez minha racionalidade demasiada
interferiu. Minhas seqüências são geralmente quadradas. Ver o colega repetindo e depois
transformando minha seqüência é a princípio desesperador, depois faz sentido. Refazer a
seqüência modificada acrescentando as qualidades que o outro agregou, isso parece
bom!.P.S.: Preciso ter paciência comigo e com meus limites, mas nem tanto”.
Júlia: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Toda essa desconstrução abriu muitas
possibilidades e minha seqüência ficou mais rica. Assistindo a do colega percebi que abriram
novos caminhos também para ele. Pude hoje perceber meu corpo muito vivo e mais presente,
como se estivesse dilatado”.
aula 3
Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,
mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se
“naturalizando”.
265
• Trabalho técnico com tecido, visando trabalhar oposição, e sua relação com yin yang.
• Dupla com tecido, peso fora, alongando ao mesmo tempo.
• Um de cada vez experimentando enquanto o outro faz base, sustentando a
experimentação do colega.
• Trio com tecido, dois sustentam segurando as pontas enquanto um explora
movimentos dentro.
• Todos com tecido: várias duplas, cada dupla segura um tecido de ponta a ponta,
delimitando uma área na sala. Um brinca nesse espaço, explorando as possibilidades
com os vários tecidos, inclusive com mais de um de uma vez. Quem segura também
pode explorar, mantendo tecido aberto ou fechado, explorando planos, tensão, etc.,
desde que mantenha a base para o colega. Podem também se mover e até envolver o
corpo que brinca no espaço.
• Resistência com tecido em diferentes partes do corpo, caminhadas com diferentes
resistências. Trabalhamos com tecido no quadril, no peito e na testa: um vai na frente
com tecido neste local, e o outro segura as pontas atrás. Trabalhamos sempre a
caminhada com tecido e sem tecido depois, percebendo as forças de oposição no
corpo, após a experiência, mantendo o tônus. O de trás também experimenta formas de
segurar, conquistando novos espaços corporais.
Conversamos sobre como foi prazeroso trabalhar com tecido, especialmente na primeira parte,
antes do trabalho de oposição e resistência (derivado de propostas de Decroux e Barba), muito
lúdico e criou lindas imagens. Surgiu a vontade de fazer um trabalho final a partir dessa
proposta. Alguém falou que nem seria preciso, no trabalho de resistência eu frisar que era
como se o tecido ainda estivesse, pois o corpo já havia incorporado a sensação e naturalmente
isso acontecia. Alguns falaram sobre como o chi kung refletiu no resto da aula, inclusive foi
lembrado que alguns pontos de resistência trabalhados no tecido coincidiam com a
localização aproximada dos pontos trabalhados no chi kung, centro yang, centro yin e mãe dos
centros. Leonardo comentou hoje que sentiu energia fria em baixo e quente vindo de cima, ao
contrário do que costumava sentir, e consoante com o que a indicação do exercício sugere.
Júlia: (tecido livre) “Inúmeras possibilidades, tirando o corpo do eixo”. (oposição com
tecido) “Foram exploradas inúmeras formas de se mover com a resistência. A depender de
266
onde estava o tecido tinha uma qualidade de movimento diferente. Remeteu a personagens,
sensações, estados diversos só com a forma de se movimentar. Estabeleceu-se uma relação
fortíssima de confiança com os colegas”.
Justina: (oposição e resistência com tecido): “Este trabalho despertou a percepção da relação
de força, fisicalização de energia, dramaticidade do movimento e, principalmente, agregou
uma qualidade de energia própria, peculiar a cada ponto monitorado pelo obstáculo do tecido.
Chamou-me a atenção a correlação que me fora espontaneamente sugerida entre tal trabalho e
a concepção de evocação energética de cada ponto verificado no trabalho básico de chi kung”.
(ela se refere ao centro yin, baixo ventre, à mãe dos centros, cintura e ao centro yang, testa/
cabeça).
Clarissa: (oposição com tecidos). “Tinha lido sobre Decroux, no livro o Ator-compositor, e
ele falava sobre o deslocamento da energia para manter o “mesmo” movimento (link direto!)
com o objeto concreto”.
Altamar: (tecido): “Exercício bom para laboratório, pesquisa de posturas e formas de compor
personagem”.
aula 4
Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,
mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se
“naturalizando”.
• Trabalho técnico: oposições/vetores (direções, forças que atuam no corpo – pelo menos 6
vetores – cima/baixo, frente/traz, esquerda/direita). Pedi para imaginarem uma força
puxando para frente, sem o corpo resistir. Depois uma força para traz. Aí ambas as forças,
iguais, como que dilatando o corpo. Então a da frente é um pouco maior e eles se
deslocam dilatados. A mesma coisa com os lados direito e esquerdo, depois acrescentando
as forças da frente e trás. Por fim, o mesmo percurso com as forças que puxam para cima
e para baixo, acrescendo os outros vetores e por fim o deslocamento com os seis vetores
267
atuando. Pedi para executarem ações, mantendo a dilatação, e para irem limpando o corpo
da tensão excessiva, sem perder a sensação dos vetores atuando.
• Diagonais: Estímulo fatores yin yang indo de um pólo máximo para transformar-se
gradualmente no outro pólo. Em dupla, um sai do lado yin e o outro do lado yang, em
relação, e vai ocorrendo a transformação no deslocamento pela diagonal. Depois o mesmo
exercício com a transformação ocorrendo em corte seco, subitamente e de preferência ao
mesmo tempo com os dois alunos, foi lembrada a importância da relação pelo olhar. Em
dupla foi escolhido um par de fatores yin yang e experimentados cortes secos e
transformações graduais, podendo os dois alunos estarem no mesmo pólo, ou em pólos
opostos. Livre experimentação, deixando virem sentidos e intenções. Depois cada dupla
apresentou um pouco do trabalho.
Conversamos sobre a necessidade ou não da tensão provocada pelo exercício dos vetores no
corpo, para conquistar maior presença. Falamos sobre a importância de identificarmos o grau
necessário dessa tensão e de nos desfazermos do excesso. Alguém falou da importância de
quem esta fazendo a aula perceber o que ocorre no corpo do outro para entender a diferença
entre os estados corporais. Outro aluno lembrou Barba falando que nas técnicas extra-
cotidianas, ao contrário que na vida cotidiana onde empregamos o mínimo de esforço para
obter o máximo de resultado, investimos o máximo de energia, para, muitas vezes, a mínima
ação. Lembrei que há ainda uma diferença entre o momento do treinamento e o momento da
apresentação, e que é preciso fazer o corpo experimentar, sentir, apreender e conquistar a
segunda natureza, o corpo extra-cotidiano. Falei ainda que ao pedir para eles irem limpando o
exercício de tensão no fim, mantendo a atuação dos vetores, era por que o corpo já tinha se
submetido um certo tempo ao trabalho, então já havia incorporado aqueles princípios, aquela
qualidade. Cinara falou da dificuldade em se concentrar no chi kung, e comentei que percebo
nela essa mesma dificuldade em outros momentos da aula. E comentei sobre o quão
importante, justamente por ser tão difícil, era esse trabalho para ela. Fábio falou da
dificuldade de “acreditar” nos trabalhos e em propostas mais ligadas ao imaginário, de um
modo geral. Tem uma resistência, mas quer vencê-la, tende a julgar o trabalho do colega
também, como se não acreditasse que o outro pudesse acreditar e realizar o trabalho com
verdade. Nessa fala se referiu mais ao trabalho das diagonais com yin yang que ao chi kung.
Muitos sentiam dificuldade quando trabalhávamos as associações mais abstratas dentro da
tabela do yin yang.
268
Júlia: (vetores, dilatação): “Realmente senti meu corpo expandir muito. Isso é a presença
cênica. Meu corpo presente, consciente e em harmonia com o espaço. Com essa dilatação
aconteceu que meu corpo ficou extremamente tenso. Com a indicação para eliminar essa
tensão, meu corpo continuou dilatado e emanando energia. Muito legal!” (diagonais yin
yang): “Com alguns pares de opostos, por serem muito abstratos, não consegui sentir
realmente a sensação no corpo”.
Clarissa: (vetores, dilatação): “Primeira vez que vivi essa sensação de corpo dilatado. Corpo
dilatado através de um trabalho específico, com essa finalidade. Com os seis vetores atuando
no corpo, os meus olhos viam uma esfera de energia externa lilás, para a qual me deslocava.
A caminhada contínua me libertou das tensões e questionamentos sobre que partes do corpo
mexer ou como fazer”.
Leonardo: (diagonais yin yang) “Bons exercícios para perceber as alterações de determinados
grupos musculares do corpo. Algumas imagens de oposição do yin/yang são mais fáceis de
serem trabalhadas, talvez por fazerem parte do cotidiano mais ilustrativo. Nesse caso o maior
desafio era sair do repertório de movimentos pré-conceituados”.
Fábio: (vetores, dilatação) “Tive a impressão de estar utilizando mais energia do que de fato
era necessário, muito mais ação do que sensação. Temo que o racional em demasia atrapalha
os exercícios. Nas duplas (...) a qualidade de movimento não me convencia. Mais uma vez a
desagradável sensação de que a ação suplantava a sensação. Parecia que os colegas e eu
também estávamos muito mais preocupados com o mostrar, o que conduz a obviedade”.
Eugênia: (vetores, dilatação) “Muito importante hoje foi a idéia da força puxando o corpo
todo. A experiência geralmente é feita imaginando-se um fio puxando o corpo por um
determinado lugar. A idéia de puxar pelo corpo como um todo dá uma transformação muito
diferente ao corpo, pois o corpo é sentido de forma integral. Outro exercício que me trouxe
uma perspectiva nova foi a diferença entre uma passagem gradual entre o yin e o yang, e uma
passagem brusca. Uma cena é construída a partir de muitos elementos, mas um dos mais
importantes é o ritmo. Um personagem tende a ser representado justamente naquilo em que
afetado pelos acontecimentos, por isso esse ritmo é tão importante para a interpretação.
Aprender, tanto observando quanto vivenciando, transformações corporais tem de ser parte do
269
aula 5
Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,
mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se
“naturalizando”.
• Formas de pisar/andar
• Caminhada/solo
• Desequilíbrio
• Parâmetros de movimento: rotação/ torção, inclinação, níveis/ planos
• Deslocamento sob resistência: imaginando tecido em várias partes do corpo.
• Vetores atuando tridimensionalmente, dilatando o corpo
270
aula 1
Atividades:
Diálogo final: Surgiram entidades muito díspares e houve de modo geral dificuldade deles
manterem ou aplicarem recursos técnicos e sugestões trabalhadas no dia, durante o processo
criativo. Também pareceu haver uma certa interpretação maniqueísta e notadamente ocidental
dos conceitos atribuídos ao trigrama. A energia das entidades, de um modo geral, era
caricatamente maléfica, com referências a sacerdotes maquiavélicos, com sede de poder. A
leitura do conceito de “poder”, por boa parte da turma, foi responsável pela construção ter
271
seguido essa linha, segundo o debate que tivemos. Falei para eles que ainda que as
construções surgidas pudessem estar, dee certa forma, distantes da noção taoísta do trigrama,
isso não caracterizava insucesso no trabalho, já que as leitura eram subjetivas mesmo e é isso
que enriquece e diversifica o trabalho. Mas sugeri que eles tentassem, na próxima experiência,
receber as palavras com o mínimo de preconceito possível, a fim de ampliarem as
possibilidades de livre associação. Solicitei ainda que fossem buscadas a manutenção e
aplicação (ainda que atualizada e singularizada) dos princípios técnicos abordados no dia.
Cinara: “De todos os exercícios que fiz, a experiência que ficou mais forte foi quando citou-
se a cabeça, o céu e o cavalo. A palavra “entidade” também ficou, mas resolvi não pensar
muito, acabou criando uma personagem: o poder que ela tinha, o andar foi baseado no cavalo
e a palavra (ordem) ‘saia’ veio depois desta construção e com o ambiente” (contexto que ela
criou para a entidade).
Afrânio: “‘Hor’ Adorado pelo povo, cuida deles procura saber das energias, o que é melhor
para todos. Ordena que se faça e obedecem. Essa divindade é como uma grande estátua viva
com a base púrpura e uma cabeça de metal líquida que olha, vigia seu povo. Ele está
localizado no centro do universo e gira em seu eixo quando percebe de onde vem os clamores,
as reverências, orações, etc. A base é humana, a cabeça de cavalo”.
Fábio: “Entidade. Torta, imponente, tensa, soberana, em pânico, soberba, casca oca. Anda
desenhando o ar, com os pés abertos, levanta os joelhos o ombro direito quase sempre
suspenso o que desalinha todo o corpo. Cabeça que procura erguida, que vigia. A criatura que
insiste em dominar, que se vê acima, mas não dentro de si mesma. Focos específicos, atenção
direcionada em busca do eixo. Voz nasal, na respiração. Achei interessantes as relações que
foram feitas tanto por mim quanto pelos colegas. As palavras usadas para motivação
(vermelho, poder, pai, céu, cavalo) racionalmente me sugerem imagens muito diferentes das
que foram mostradas. É como se o avesso se apresentasse, como se, sem pensar, aflorassem
aquelas imagens tão ‘distorcidas’, irregulares. Surpresa total!”.
Clarissa: “Minha personagem acabou se tornando o papa. A voz mesclava uma tonalidade
mais aguda com uma ressonância gutural. No corpo, um olhar inquisidor, de cima para baixo,
foco direto. Uma tensão no pescoço, nas pernas, braços e troncos como se a locomoção não
272
fosse algo facilmente conquistado. A palavra escolhida foi Deus. A forma de mostrar o
trabalho foi muito bacana. Todos em cena e um se movia e falava”.
Altamar: “Densidade me sugeriu água, cavalo sugeriu-me cavalo marinho, cabeça sugeriu-
me direção e força. Minha entidade era um cavalo marinho buscando algas, motivado por sua
fome”.
aula 2
Chi kung com ênfase no centro yin e focando respiração baixo ventre.
Atividades:
Obs: O exercício com a energia da Gueixa (Odim e Lume) também pode ser associado à este
trabalho.
Júlia: “Consegui aproveitar desde o chi kung até o trabalho com os fios (marionete) para
fazer minha partitura. O grupo estava em sintonia e o trabalho fluiu”.
Leonardo: “A gestação foi a mais complicada, não sabia o que fazer e o fato de não poder ser
figurativo acaba me levando à construção de coreografias. (...) acho que em minha cabeça a
objetividade está a serviço do drama e a subjetividade a serviço da dança, que, aliás, pra mim,
é mais libertadora de meu potencial criativo”.
274
aula 3
Chi kung com ênfase na linha que une centro yang ao centro yin e que se liga à linha da
coluna. Estímulo para liberação de eventuais manifestações de energia na coluna.
Atividades:
Obs2: O treinamento Samurai do Odin Teatret pode ser uma associação interessante ao
trabalho com este trigrama.
Júlia: (serpente/coluna): “Ainda no chi kung foi irradiada a energia para a coluna. Essa
energia foi impulsionando e provocando movimentos com a coluna. Minha coluna realmente
parecia estar regida por essa energia, sugando do centro de todas as mães. Eram movimentos
sinuosos, verticais e horizontais. Minha coluna parecia uma serpente. Senti falta de explorar
mais o exercício da coluna. Mesmo assim a energia estava vibrante todo o tempo e isso
sustentava todos os movimentos do meu personagem. Movimento de explosão, quebra a
energia, impulsionava tudo, e também no manejar a arma”.
Fábio: (serpente/coluna): “Trabalho com a coluna evolui do micro para o macro tanto na
sensação quanto no movimento em si. As palavras que foram incluídas (dragão, irmão mais
velho, impetuosidade, decisão) de fato se aliaram ao corpo ou às sensações do corpo. A luta e
as armas escolhidas também se relacionaram com as indicações e o exercício foi bem fluido,
muito embora minha empolgação tenha me levado à dor. Os movimentos bruscos que fiz com
os braços (o chicote nas mãos) acabaram por forçar muito o braço e o ombro”.
Clarissa: “Me veio a figura de Thor. O Thor do desenho animado da minha infância. Com
seu tacape, sua força, seus cabelos longos, sua rudeza. A figura do irmão mais velho me traz a
idéia do desbravador, aquele que sai em busca do desconhecido, desenha seu pé na areia
inexplorada. Criar o personagem através da coluna foi bem interessante, com a idéia das
276
Leonardo: “A arma que escolhi foi o arco e flecha, imediatamente me veio a imagem do
caboclo, do índio que utiliza a natureza ao seu favor, se guiando pelos elementos que ela lhe
oferece. A visão era um sentido importante, mas para identificar seu alvo usava a audição e o
olfato. Mesmo em luta (o caos), me sentia integrado a uma atmosfera que me proporcionava
tranqüilidade”.
aula 4
Chi kung ênfase centro yin, fonte borbulhante puxando seiva da terra, seiva percorre corpo
derretendo-o, especialmente articulações. Corpos vão ao chão
Atividades:
• Forma fluida (vide Fernandes, 2002), respiração, sangue, seiva. Perceber próprios
líquidos e ouvir ruídos internos.
• Reagir aos sons e sensações dos fluidos internos. Inicia pequeno e vai deixando
acontecerem desdobramentos. Imagem de deixar rastros. Escorrer, derramar, espirrar
líquido. Ir aumentando a velocidade.
• Dinâmica de Laban: chicotear: forte, indireto/flexível e rápido/súbito.
277
• Em duplas ou trios, condução pelo som da voz – pela audição: um de olhos fechados,
reage a chamados pelo seu nome. Pode-se trabalhar a questão da direção (de onde vem
o som), e do estímulo ao movimento (pelo timbre, volume, altura e outras
características da voz). Manter como qualidade de movimento uma fluidez densa.
• Trabalho criativo, inserção dos estímulos relativos ao trigrama água, com
deslocamento do atributo perigo, para o atributo loucura.
Júlia: “Ainda em chi kung meu corpo, como foi proposto, foi derretendo. Era uma energia
passiva, pesada. Senti os fluidos do corpo e isso impulsionou movimentos lentos, contidos e
sinuosos vindos do corpo todo. (...) Todos os meus movimentos tinham vários focos e meu
corpo todo espanava. Um ruído surgiu a partir desses movimentos. Era um grito agudo e
curto, com se estivesse se queixando de alguma coisa. Quando foi pedido para construir um
personagem enxuguei o movimento que partia do tronco e refletia e espanava os braços e as
mãos. Surgiu também uma palavra a partir da sensação de indiferença que havia sentido, que
foi: ‘Ôxe!’ Todo o corpo e as sensações da personagem foram gerados pela palavra loucura e
por uma certa irritabilidade que existiu com um dos estímulos, que foi ‘irmã do meio’.
Consegui aproveitar desde o chi kung na construção da personagem. Foi uma evolução nítida
do exercício de derretimento, dos estímulos dados até chegar à personagem. Hoje, realmente
achei tudo proveitoso”.
Fábio: “Depois de imaginar a seiva viscosa que passava pelo meu corpo e de certa forma
transformava todo o corpo nessa seiva, percebi vários momentos em que finalmente estava no
exercício. Os estímulos dos colegas através de meu nome dito de diversos lugares ‘levavam’
meu corpo, que por indicação fazia movimentos indiretos espalhados. Depois a criação a
partir desses estímulos mais o das palavras (lua, abismo, irmão do meio, loucura). Boa
experiência”.
278
aula 5
Chi kung com ênfase na percepção e energização das mãos. Aproximar palmas das mãos do
rosto para perceber essa energia.
Atividades:
• A partir da posição final do chi kung, fazer marionete facial, puxando fios imaginários
no rosto e conquistando fisionomias (estampas) diferentes. Repete várias vezes,
sempre voltando ao ponto neutro.
279
• A partir da instalação da estampa, deixar migrar para o corpo, fazer estátua no corpo e
rosto, e voltar para neutralidade. Repetir algumas vezes.
• Movimento é feito com a energia da Câmera Lenta: Contínua, penetrante, devagar. O
corpo se move lentamente pelo espaço. Ora ativamente, empurrando o ar, ora
passivamente, escorregando pelo ar.
• Mesmo exercício, só que em duplas, esculpindo, ou manejando os fios do outro.
• Primeiro estampa (rosto), depois corpo, depois som.
• Primeiro estampa (rosto), depois corpo, depois som, depois movimento.
• Voltar com as mãos para frente do próprio rosto e a partir da idéia de deslizar
(dinâmica Laban): leve, direto/reto e lento, vai seguindo a própria mão (pode trocar de
mão), com o rosto próximo a palma. Mão puxa, empurra, torce o corpo, só na
intenção.
• Mãos passam a puxar fios na face novamente, criando novas máscaras.
• Trabalho de composição. Inserção dos aspectos relacionados ao trigrama, visando
investir de ‘sentido’ o trabalho.
• Criação de uma imagem comum com toda a turma. Um segue em câmera lenta para
uma imagem parada (estátua) e uma a uma vai se agregando a esta, visando uma
composição única. Parte daí para a qualidade de movimento conquistada, a turma
passa a trabalhar em 2 grupos, pensando em compor imagens.
• Cada grupo para um pouco para assistir o outro.
Afrânio: “A condução do trabalho com fios imaginários facilitou, a meu ver, o processo de
desconstrução das fórmulas prontas que costumamos apresentar. Num segundo momento,
fomos deixando aquelas faces esdrúxulas fluírem para o corpo, assumindo um personagem, e
chegando a uma voz. Num último estágio, interagimos rapidamente com os outros
280
personagens. Nesse trabalho, o que mais me chamou atenção foi a performance de alguns
colegas que desenvolveram formas realmente surpreendentes”.
aula 6
Chi kung com ênfase em concentrar energia na mãe dos centros e dirigir para braços e mãos,
seguindo para trabalho com pinceladas de energia.
Atividades:
• Inserção das seguintes imagens: penetração da terra por raízes (madeira, torção),
caminho sinuoso do vento, doçura, veemência, ofensiva e indecisão, e, a partir disso
construir uma imagem grotesca, um bufão medieval, com defeitos, corcundas, partes
do corpo retorcidas. A partir desse corpo foi criada uma sonoridade vocal expressa em
linguagem não inteligível, foram propostas as seguintes situações em duplas: um
contar para o outro, nessa língua, algo extraordinário que presenciou; ambos
arquitetam um plano; executam o plano. A partir daí a sala toda interagia na mesma
proposta.
Fábio: “Percebo que a simetria (exercício dos pincéis), o paralelismo é mais natural, mas a
assimetria proporciona mais ‘liberdade’. Gosto do grotesco. Fico razoavelmente confortável
quando a idéia é criar bizarrices. As últimas aulas tem sido interessantes nesse sentido, os
exercícios se desenvolvem até chegar a um lugar”.
Altamar: “Composição de um ser grotesco, mole e reto como uma minhoca, pegajoso”.
Cinara: “Quando foi citada ‘tinta luminosa’ (exercício dos pincéis) facilitou a imagem. Em
seguida todo corpo se contorcia a partir do tronco. Quando ‘brincamos’ com as figuras
grotescas, possibilitou-se várias composições”.
Júlia: “Minha figura grotesca tinha uma energia sombria. Minhas pernas estavam
flexionadas, a perna direita se arrastava no chão, rosto tenso com a língua empurrando a
bochecha. Depois todos começaram a se relacionar e foram formando várias histórias
paralelas que no final virou uma única história. O que gostei mais foi a relação com as
pessoas, você estar ligado no que o outro propunha e entrar no jogo. Foi o jogo de olhar e a
sintonia com o outro que mais me ajudou. Os bufões de todos estavam muito legais. O chi
kung ajudou bastante”.
282
aula 7
Chi kung com ênfase na energia saindo pelo olhar. Circular pelo espaço olhando nos olhos
com esse trabalho
Atividades:
• Isolamento das partes: Deitado energia saindo da mãe dos centros irradia pra partes
isoladamente que se movem (ex: dedinho esquerdo do pé, dedão da mão, quadril, um
ombro, joelho, etc.) Depois começa a mover apenas os dedos dos pés, o resto imóvel,
e vai somando partes do corpo, parte a parte, mantendo o que se movia antes, até
ganhar deslocamento, mudança de planos. Aumenta ritmo, tentando mover tudo ao
mesmo tempo.
• Reforçar a idéia de Sacudir (dinâmica Laban): leve, indireto e rápido/súbito. Manteve
até exaustão. Deixar soltar o som. Ir até o limite. Congela. Retém energia, abraça
centro, retoma respiração.
• Trabalho expressivo: deitado de olhos fechados visualizar uma ave dourada. Observar
seu movimento, porte, corpo. Imaginar como a ave respira, para ter aquela
corporeidade. Identificar o modo da respiração (ex: curta, longa, entrecortada, rasa,
funda, mais tempo inspirando ou expirando, etc.). Instaurar essa respiração no próprio
corpo. Deixar nascer internamente um olhar advindo disso. Abrir os olhos com a idéia
de que é um olhar luminoso. Deixar também vir uma corporeidade a partir disso.
Deslocamento, construção desse ser no espaço. Ao sinal todos observam um, instala-
283
Na conversa final sobre a experiência falei sobre a importância da respiração em Artaud: "O
que a respiração voluntária provoca é uma reaparição espontânea da vida" (1987). "O esforço
terá a cor e o ritmo da respiração artificialmente produzida" (idem).
Júlia: “Primeiramente a ave ficou no campo do racional. Imaginei uma galinha, e ela tinha
uma energia agitada e explosiva. Quando levantamos o corpo já foi se formando
instantaneamente e de forma orgânica. Minha personagem tinha uma relação forte com o
olhar e uma conexão com os outros. Foi muito legal observar as composições dos colegas.
Cada um tinha um corpo mais interessante que o outro. Foi bom também quando imitávamos
alguém e tínhamos que reproduzir fielmente o corpo e o olhar do outro. Tínhamos que ter
consciência da energia e da composição do outro. Fora tudo isso adorei minha
composição!!!”.
Justina: “Mantendo-se o estado físico e mental atingido pelo chi kung, trabalhamos o
isolamento das partes. É uma investigação minuciosa dos limites e propriedades de cada
membro. O mais interessante é perceber os quão fundamentalmente independentes são as
partes do corpo quanto à capacidade de isolamento, mas dado o condicionamento usual,
parece-nos difícil a dissociação. Este trabalho nos dá a oportunidade de experimentar
possibilidades gestuais incomuns pelo isolamento de cada grupo muscular e, mais que isso, a
oportunidade de perceber que determinados grupos estão de tal forma condicionados que não
se pode aciona-los sem o suporte de outro, que na verdade é independente... O que nos exige
um estado de concentração apurado. Esse trabalho foi realizado sem música, e isso também
confere propriedade ao exercício. Quando a música é inserida, um sentido de fluidez se
relaciona com o corpo, e agora, embora as partes voltem a atuar correlacionadas, cada
subgrupo, de músculos e membros, parece se expressar com mais efetividade, não vira um
bailado, mas dá uma qualidade expressiva ao corpo com certa dilatação. O trânsito para a
imagem da ave parte da sugestão de uma figura elaborada na individualidade do repertório de
cada um, o que, aliás, confere a cada pássaro uma qualidade de energia semelhante ao
284
humano que a expressa. Outra curiosidade desses trabalhos é a constante do trabalho físico
com ênfase na sustentação e tônus muscular”.
Leonardo: “Acho que atingi a exaustão. Me identifico com esse tipo de trabalho pois é
evidente o tolhimento do racional. No trabalho com a ave não consegui um bom resultado,
mas gostei de observar e experimentar a construção da ave de alguns dos colegas”.
aula 8
Atividades:
54
Treino da água sagrada: posicionado no kata base, ou sentado em uma cadeira com coluna ereta e pés
tocando o chão. O exercício se inicia com 36 mordidas. Em seguida faz-se 9 rotações da língua, dentro da
boca, pra cada lado. Realiza-se bochecho da saliva produzida, divide-se esta saliva em três porções e engole-
se em três momentos, espraiando essa energia pelo corpo, fortalecendo em especial a mãe dos centros.
285
• Trabalhar o desejo pela água energizada, a partir da sede sentida. Trabalho com
textura, sabor, cheiro e som da água, onde o ator deve permitir uma adaptação do
corpo àquelas impressões sensoriais. Migrar para relação de prazer e sedução,
inserindo aspectos do trigrama do dia.
• Em roda cada um vai para o centro, se exibe, seduz/convida, tem relação com o
colega, (sem tocar) e aí por diante. Os que ficam na roda se mostram e seduzem para
serem o próximo convidado. Cada um pode ser convidado várias vezes.
Na conversa final eles estavam muito empolgados com o trabalho, falando muito.
Conversamos que essa energia (sexual, de sensualidade, libidinal) pode se perder facilmente
em comportamentos dispersos ou ser canalizada, concentrada. Falei que estávamos fechando
o ciclo I ching nesse dia e eles pediram para que jogássemos na aula seguinte.
Fábio: “Muito bom exercício, bom perceber as diferenças de quem de fato está no exercício e
de quem só quer mostrar”.
Cinara: “Pulamos muito, e depois foi difícil segurar (controlar) a respiração. Veio a sede...
Os copos cheios de água e só podíamos olhar... aumentou a sede e a vontade (...) o respeito
pela água surgiu logo, o valor que não damos, a vontade e o desejo realizado, finalmente
bebemos a água (...) Roda da sedução, quem estava no centro seduzia, brincava com esse
55
Treino de reprogramação da água: com os dedos indicador e médio da mão direita, unidos, formando uma
espécie de “espada” de energia, aponta-se esta “espada” para o céu, captura-se por alguns segundos energia
yang, e em seguida aponta-se para um copo cheio de água. Gira-se os dedos em sentido horário pela borda do
copo, podendo tocá-la ou não. Em seguida bebe-se a água, que segundo os mestres taoístas passa a ser uma
espécie de “água benta”, para usarmos uma referência próxima a nossa cultura.
286
poder de sedução, os que faziam o círculo aproveitavam para atrair o parceiro pra si. Muito
jogo corporal, muitas expressões surgiram”.
Justina: “O trabalho de exaustão (...) me causou tontura, (...) tentei me concentrar e não
abandonar o trabalho. Na segunda fase, no entanto, o procedimento de reprogramação da água
inseriu um aspecto ritualístico que nos envolveu a todos. O vínculo criado com o líquido logo
se converteu em impulso sexual e se manifestou na roda”.
Leonardo: “Exaustão: esse tipo de trabalho me mobiliza porque tolhe o racional. No trabalho
com a sedução eu arrasei, explodi de desejo e sedução na aula. Engraçado como a gente nunca
sabe quando é caça ou caçador. Senti-me dentro de uma vitrine sendo escolhido para
consumo. Essa foi a aula do semestre”.
Júlia: “Criamos uma relação forte com a água. Desejei bebê-la como nunca. Quando realizei
o que queria a água estava com o sabor mais delicioso do mundo. A sensualidade, o prazer
foram marcantes no estado em que estava. Foi feita uma roda logo em seguida e foi
estabelecida a relação com o outro. (...) Senti a energia yin muito presente e às vezes a dança
que fazia remetia à dança do ventre, que é uma dança bem feminina e sensual. (...) Adorei a
aula de hoje!”
aula 9
aula 1
Deitaram com papel e caneta do lado, em estado de chi kung. Fui falando de cada trigrama e
seus atributos, na ordem que foram trabalhados em sala, e eles foram escrevendo coisas
aleatoriamente, palavras, frases soltas, memórias, livre associação. Como fundo musical
foi usado o CD I ching, do Uakti, tendo o tema de cada trigrama como fundo ao momento
em que este estava orientado o trabalho.
Cada um fez uma viagem pela própria memória corporal, pelo processo recente, ligado aos
trigramas do I ching.
Juntaram-se, em dupla ou trio, e cada autor leu seu texto para o(s) colega(s) que, de olhos
fechados percorreram a própria memória do corpo ligada à fase dos trigramas tentando
trazer movimentos ou corporeidades que dialogassem com cada trecho. Trocaram os
textos. Cada colega se familiarizou com o outro texto.
Leonardo: “Foi tranqüilo enquanto eu estava escrevendo. Eu sabia o que escrevia, mas não
tinha noção do resultado de todas as palavras ligadas. Ler o resultado é que foi desagradável,
pois me lembrei de coisas que preferia ter esquecido e comecei a pensar em outras que nunca
me ocorreram. Eu me acho muito fraco pra esse tipo de trabalho, por que se por muito pouco
me comovo, imagine num trabalho desses que mexe com sentimentos pessoais. Não consigo
segurar e começo a chorar”.
Júlia: “Foram dados estímulos a partir dos trigramas e nós íamos escrevendo palavras ou
imagens que viessem à mente. Foi uma experiência inesquecível. Passar pelos trigramas,
288
sentir sensações das mais complexas e variadas possíveis. Afloraram em mim sentimentos que
por muito tempo estavam esquecidos nas gavetas da minha mente. Fui tomada por uma
grande melancolia e tristeza, palavras que inclusive estão no texto. Podemos dizer que sofri
uma catarse. É esse o nome com que defino a experiência vivenciada hoje. Apesar das
lágrimas e das lembranças dolorosas, considero positiva a experiência, pois preciso saber lidar
com os sentimentos que por ventura possam transbordar de dentro de mim”.
Altamar: “Fiz um texto onde elementos profundos preponderavam, havia sempre uma volta
para o interior”.
aulas 2 e 3
Trabalho em duplas ou trios. Os alunos leram o material dos três ou dois integrantes do grupo,
e transformaram em texto para cena, buscando o poético, mas dramatúrgico, inserindo ou
retirando trechos, até sentirem-se satisfeitos com o resultado, que visava à cena.
Justina: “A opção pelo texto composto por palavras soltas, que inicialmente me pareceu
estimulante, mostrou-se um tanto complexa – até pela pluralidade de possibilidades que
289
oferecia. Foi difícil encontrar um sentido (ou não sentido) que contemplasse todas as imagens
sugeridas pela subjetividade de cada um. Fábio nos deu uma contribuição (...) e compôs um
poema inspirado das nossas palavras pré-eleitas na delimitação do repertório. Esse poema
tornou-se o eixo de sustentação de nossa composição. Pretende-se trabalhar aspectos como a
repetição, a livre associação de idéias e a expressão da subjetividade acessada por essas
palavras aliados ao repertório gestual elaborado ao longo do curso”.
Fábio: “Não estava na aula que individualmente os textos foram escritos a partir de estímulos
específicos. Só depois (...) participei da transformação. Tanto no meu grupo quanto nos outros
o texto foi recriado depois que todos lemos, nos ouvimos lendo e experimentando
possibilidades. No meu grupo a criação foi coletiva, discutida e assim elaborada. Quando
participei do grupo de Eugênia, Altamar e Justina, o processo de criação foi mais pessoal,
ouvi os textos e escrevi o que chamo de um poema. Escrevi de vez, sozinho sem mostrar nem
discutir a princípio. Depois compartilhei, eles gostaram e resolveram usar.”
Afrânio: “A junção dos textos abriu a perspectiva do trabalho. Mais uma vez a observação
dos resultados dos colegas foi enriquecedora. O trabalho sugerido, montar uma partitura
corporal para encenar o texto criado, funcionou para mim, como respostas às minhas
expectativas do que fazer com o material desenvolvido durante o semestre.”
aula 1
Retomaram texto.
aula 2
Adequaram a partitura com dimmer yin yang (mais forte mais fraco, mais rápido mais lento,
denso/sutil, etc.).
aulas 3 e 4
aula 5
Apresentação e avaliação.
Júlia: “Esse processo final foi bastante conturbado e frustrante. Por conta da falta constante
dos componentes do meu grupo, inicialmente, fizemos tudo racionalmente. Isso não funciona
nem um pouco. Particularmente tive uma experiência muito rica e um material de trabalho
profundo. Todo esse material que adquiri ao longo das aulas não consegui resgatar e aplicar
na apresentação final. Seria muito mais produtivo se tivéssemos continuado com as aulas que
291
estavam sendo bastante enriquecedoras. Goste muito das aulas. Essa experiência vou levar
para vida enquanto atriz e o chi kung, principalmente, para o lado pessoal”.
Cinara: “Esse trabalho final foi pouco para todo o processo, fizemos pouco. A construção do
texto foi prazerosa, os estímulos foram bastante importantes, fluíram, o pior é que tínhamos
bagagem para uma montagem, não sei por que não rolou. Gostaria de continuar no próximo
semestre para entender melhor tudo (me refiro ao aprimoramento)”.
Leonardo: “Estive ausente nas duas primeiras aulas de construção conjunta do texto (...) Nos
correspondemos por e-mail durante o São João, discutindo inclusive os conectivos que
deveriam estar presentes ou ausentes no texto. Somente em sala, pensando juntos é que as
imagens, inclusive corporais, foram surgindo. A imagem idealizada racionalmente estava
linda. Como realiza-la. Não tínhamos a resposta e exatamente nesse momento as faltas
começaram a acontecer (...) a ausência de um imobilizava o grupo. Gostaria de pedir à
professora que não se sentisse frustrada pelo resultado, mas sim feliz pelo processo, que pra
mim pelo menos foi o mais bem aproveitado e que mais ressoou em termos de
expressividade”.
Leonardo:
Renovação
Oculta e apaixonante é a vontade de amar e sofrer e aprender a errar mais uma vez nas
escolhas seguir as influencias boas e más, mas quais
Há sempre uma saída, um repouso uma continuidade e perdas. Pense pense pense pensamento
e ação
O frescor
293
Me busca
Me pega
Me infiltra
O Deus que me fortalece e mais que eu sabe o que é melhor para mim Ah vontade de fugir de
me abandonar um pouquinho pra poder me encontrar no plano do irreconhecível conhecer
conhecer conhecer chorar mais gritar mais gritar preciso me doar se encontrar
Me encontrar
Em outro ser criança ser adulto sonhar a juventude plenitude – viver – fugir
Fugir
Fugir
Dá dá dá coagir encurralar
Medo apoio – fuga desejo imposição – menos compreensão ser mais e melhor caompreendido
Oração amigos os meus são minha responsabilidade. Tenho medo de não conseguir dar conta
Raiva
294
Dá-me asa – busco voar. Não se feche pra mim. Calma depois da tempestade...
Desejo desejo
Um beijo apenas depois decidimos se entrega não pensa, se deixar envolver nesse jogo nessa
dança – EXPLODE JUNTO
A MIM.
Lambuza
Pecado? Não sei acho que não prefiro acreditar que não. Esse não é meu Deus ele não me
impõe pergunta. Temos juntos o controle de tudo.
Cinara
Às vezes o que procuramos, encontra-se dentro de nós mesmos... o céu o paraíso, a força que
nos equilibra que precisamos para caminharmos.
A segurança de estar dentro de um ventre, de voltar para ele, a dor de não estar mais nele, o
medo de não ser mais criança, quero caminhar...
O fogo que queima, a força que nos destrói, a dureza das cristalizações, as frustrações das não
realizações, a calmaria que tortura, a dúvida, a surpresa, a certeza...
295
Busco uma cachoeira, um cheiro bom, uma luz, noites tranqüilas, o vermelho das paixões...
Ultrapassar obstáculos, devorar leões, plantar algodões, chegar ao céu, destruir a escuridão...
Viver na inocência da loucura, plantar e tirar os pés do chão, no silêncio da madrugada, ouvir
o silêncio, sentir o silêncio...
Chegar ao topo, nunca estar sozinho, calma, muita calma na sutileza do carinho.
Quero ouvir o som do sopro e o barulho da respiração, entrar em outros universos e depois ir
embora sem sofrimento, sempre costurando retalhos e queimando lembranças... Quero saber o
quero, seus olhos azuis.
O sucesso, o sucesso, desejo a todos o sucesso, voar nas nuvems, sem choques... águas
cristalinas, sorrisos, felecidade, ou pelo menos momentos felizes, maçã, pisar no macio, gozo,
abundância, sem perigo.
Altamar
Descer para frente para as águas que tem bordas claras frio azul que nada e tudo flutua queima
não sai mas flui flui f.l.u.i. i l f i funda e deusa puxa e concentra choque, choca, espraiar do
centro e espalhar pelos limites e tudo brilha e tudo limita e escurece afeta afeta some e
aparece de repente um branco que que as águas brilham com fogo de sol e chega ao olho e as
mãos espraiam e tudo de pé no pé e o pé e a perna de ferro de coluna que em pé sustentava o
tudo as pétalas os brilhos que seguem caminhos pelo ar por tudo que as viagens querem dizer
eu digo que nada e tudo é a coisa que se espraia e é não vista por que não é vista mas é olhada
pelos olhos que estão dentro de tudo da luz e do escuro que para e escorre pelo aterrador
destruidor que foge para a construção de qualquer coisa que agarra e prende e que não deixa
296
sair prender mesmo e prender e perder do nada. Que nada que flui pelo pequeno pequeno
demais e das paixões que acontecem de fora de dentro dos vidros e do chão e que chega nos
encontros de cada coisa que nunca diz coisa alguma só se olham olham olham olham olhão
--------------repouso--------------- há coisas no alto que não param as coisas que vivem isoladas
de todos por não poder se integrara por ver que nada se encontra de fato porque nada se
completa e tudo é o que é em si cercado pelas (?) que fluem de tudo o que sopra expulsa e
impele vai e participa passa e procura no escuro que não é tão escuro assim pois no fundo do
mar há polvos que sabem para onde ir e coordenam suas coxas e dança com precisão de suas
necessidades e todos os peixes escuros e todos os peixes que possuem luzes como postes
dançam em outras metrópoles fundas e deusas sobre um peso que o corpo suporta lá onde não
chega a luz da parte mais baixa da terra pense bem o céu lá é mais distante ainda. Há estrelas
de pedra e estrelas de carne já pensou carne que se acende no fundo do mar em volta do corpo
e que o peixe grande o polvo devora as lulas também, e os peixes comem outros peixes e tudo
se come e tudo se brota num jorro que descreve um círculo impreciso incompleto como uma
mola que não se completa jamais vai vai e não cai nunca na sua cabeça porque o espaço é
outro e jamais os espaços se completam por você pensar
Afrânio
Melodia, a voz que preenche o espaço e envolve transmitindo beleza, quietude. Todo esse
sentimento de paz remete à natureza. Vejo as folhas da árvore lá fora ao vento, me transporto
para um campo gramado já bem conhecido, o céu é limpo, tem nuvens claras. Estou voando e
percorro esses campos com rapidez sem esforço ou atrito. Os animais surgem cavalgando
juntos velozes, vou com eles pelos campos, estradas de barro, poeira, pedras, ouço som de
água ao longe, quero chegar e entrar na água, me sentir envolvido, protegido. O conforto não
sai da cabeça, ainda vou com os cavalos abaixo mas penso nessa proteção, esse lugar gostoso
que contrasta com a secura de onde estou. O céu de repente se fecha. Vai chover? O som do
trovão é ameaçador mas é envolvente e quero conhecer esse poder, quero subir ao céu cada
vez mais rápido entrando nas nuvens, parece noite o clarão cega, estremece e excita ainda
mais. Procuro como se fosse encontrar de onde vem, quem faz aquele barulho e surge a
criatura, o dragão. Penso se ele está fazendo o barulho. A criatura é linda com cores fortes.
Vermelho predomina e amarelo. Também azul e verde cores fortes, reluzentes como que
pintadas, as escamas entalhadas. Começou a chover forte e eu chovo junto com as gotas,
297
veloz e mergulho num lago muito grande a água é limpa, mas escura, mergulho, vou ao fundo
procurando sorver aquela força que parece dar vida à floresta em volta. Animais em volta
bebem água à noite, a luminosidade azulada da noite ilumina seus rostos assustados. Estão à
espreita, vai acontecer alguma coisa. Não estou sozinho no lago, não sei quem está comigo.
Não chove mais, mas as nuvens bailam ao vento, encobrem a lua, projetam estranhas sombras
nas árvores e nos animais, parece que todos dançam juntos uma coreografia que me abraça e
ao lago. Todos juntos somos fortes. União na Terra, mas sem alvoroço. Existe comunhão, a
sensação de perigo passou e tudo dorme naquelas matas. Só o vento, a lua, o lago e eu. Saio
do lago descanso na margem. Cais de madeira corpo nu. Reflexão estrelas repouso, silêncio.
Eu quero alguém comigo. Sentir a respiração do outro junto com a minha. A brisa corre forte,
venta, não incomoda, sacode as árvores, elas balançam inteiras mas estão fixas no solo,
enraizadas bem fundo, a terra as acolheu e elas foram fundo fundo tecendo caminhos internos.
No centro da Terra, cada vez mais quente é que vejo o centro da Terra, de lá a quentura da
lava, brilha em meu rosto a lava laranja, vermelha, incandescente, dá vida a uma fênix
dourada que sobe como um raio que invade o céu e já estou com ela, voando de novo.
Sobrevoamos o mesmo lago, é muito bom, lembro do campo gramado para onde quero voltar,
rever os amigos. Ter o prazer da companhia e contar o que aconteceu e deitar com eles na
grma, rolar, rir, beijar, beber juntos, cantar com o chegar da noite. Deitar no chão, sentir o
colo, o contato da pele e poder se envolver no mais íntimo do outro. Pegar, apertar, maciez,
gostoso.
Júlia
Amor, angústia, compreensão, o medo da descoberta, vida, cansaço, relações com os outros,
sensualidade, provocações, olhar, queda, corrida, busca, eterna busca, libertação, força,
liberdade, olhar no olho, olhar para dentro, distância, cansaço, sentimento preso, percepção,
tranqüilidade, transtorno, tranqüilo, confuso, calmo, tumultuado, eu, o que não se toca, paz,
cheiro, passado, amigos, liberdade, morte, andaime, loucura, dilaceramento, paixão, sangue,
298
jogo, incapacidade, entrega, abismo, medo, paredes, labirinto, eco, redemoinho, energia,
sensibilidade, isolamento, desistência, angústia, firmeza, apego, espelho, olhar, profundidade,
amigos, circo, trapézio, sinceridade, praia, timidez, sexo, água que brota, beleza que se
dissolve, alcance, ofuscamento, desejos ocultos, força, sutileza, palavras, silêncio, ressoar,
palavras, paixão, silêncio, sexo, desprendimento, jogo de seduzir, experiência, imaturidade
emocional, busca.
Clarissa
Concentração forçada. Dona de meu caminho. Guia. Quando havia um guia externo,
encontrava mais tempo para esvaziar minha mente.
Céu, o criativo, luz. Raiz, conexão, respiração, descoberta, luminosidade, segredo revelado
por mérito. Cabeça, pensamento, guia, mentor, aquela que vai. Força, beleza, imponência,
equilíbrio, rápido, veloz, elegante, rítmico, terra, pé, mãe, eu, aconchego, manjedoura, colo,
acolhe, ventre, calor, gostoso, seguro, força, apoio, meu, para mim, elasticidade, amplitude,
leve, mel, produção, eternidade, cíclico, passagem, veículo, através, força, veloz, passageiro,
estimulante, instigante, excitante, efêmero, para cima, para frente, para o alto, base,
segurança, início, impulsivo, agora, já, sem pensar, libido, estímulo, dúvida, ambigüidade,
jogo, peso, domínio, sem discussão, voa, cospe, árvore, natureza, frio, isola, casa, música,
instrumento, existe, se molda, escapa, molhada, boa, beber, banho, boca, língua, escorregadia,
misteriosa e reveladora, se esconde e se apresenta, dentro, percorre, ciclo, transforma,
absorve, luz, fria, bonita, céu, grande, mênstruo, quente, vermelho, corpo-vivo, seiva, líquido,
vulcânico, surpresa, medo, perigo, cuidado, atenção, devagar, passam, escuridão, oculto,
mistério, segredo, fora de si, lucidez, rápido, universo, chão, pé, sólido, razão, pensado, vejo,
piso, ando, seguro, tranqüilo, silêncio, mansidão, certeza, descanso, permitido, desejado,
necessário, alto, conquista, escalada, caminhada, um, eu, só, profundo, prudente, análise,
pensar sobre, reflexão, pegar, dominar, guiar, soltar, apóias, escrever, pintar, lavar, desenhar,
leve, solto, livre, sutil, some, frio, vem, sopra, areia, onda, mar, corta, profunda, entra, chega,
chão, emaranha, cresce, se apodera, penetra, torce, vai poro lado de lá, retorce, curva, ciclo,
giro, trançado, costurado, construído, queima, quente, calor, rápido, machuca, aquece,
ilumina, certeza, sorriso, bonito, desejo, desperta, estímulo, claridade, sol, lareira, fogueira,
ouro, brilho, beleza, poder, ave, voa, asas, liberdade, entrega, medo, rápido, sonoro,
299
iluminado, apreensão, água, tranqüilo, parado, pra cima, dentes, olhos, bocas, bochechas,
sorriso, macia, molhada, percorre, beijo, sexo, libido, tesão, conquista, provação, gozo, alvo,
estado de graça, cachoeira, jorro, cama, gostosa, prazer, satisfação, físico, força, desejo, pegar,
provar, morder, comer, cheirar, lamber, sugar, ter nas mãos, jogo, poder, sensual, sangue,
sorver.
Maria Eugênia
1 - Uma voz preenche o espaço, envolve, transmite beleza, quietude. Um sentimento de paz
me remete à natureza.
2 - Folhas de árvore lá fora, vento, céu. Ouço o som da água ao longe. Ela me envolve, me
protege, me conforta.
2 - O clarão cega,
3 - estremece,
1 - excita.
3 – Outro barulho.
2 - De onde vem?
3 - De lá, sinto a quentura incandescente, que dá vida a uma fênix dourada, ...
1 e 2 - Sim, somos.
1 - Mas gosto!
2 - Gosto!
1 - Gozo!
2 - Sou gozado!
Um encontro com Deus, com o Deus que está em mim, na inocência da loucura.
Cuidado!
Amor...
Libertação!
Liberdade!
Quero caminhar...
Abracem-se...
Me busca
A dúvida
Me pega
A surpresa
Infiltra
Certeza
Morte!
1° Etapa, a poesia (negrito) é dita por Maria Eugênia e as inserções (entre parênteses) por
Altamar; na segunda etapa a poesia é dita por Altamar e as inserções por Maria Eugênia.
Tempo Vazio
Agora Vaio
Completo?
Vazio (Alimento)
Agora vazio
Vazio tempo
Sagrado tempo
Conheci Tempo
Aprimora tempo
Controlado
Costurado
Caminha tempo
Cavalga tempo
Sagrado Tempo
Veloz
(Aprimoramento)
Já!!
Tempo vazio
Tempo, tempo
Completo?
306
Prazer? Gozo?
Vazio (Poder)
Agora vazio
Tempo, tempo
Efêmero tempo
Sagrado tempo
Conheci Tempo
Aprimora tempo
Controlado (Poder)
Costurado (Poder)
Construído (Poder)
Cavalga tempo
Veloz
307
A.3. Questionários
Lisa: “Dizer algo. Tornar externo alguma idéia, pensamento ou sentimento pessoal. Corpo
expressivo é um corpo extra-cotidiano. Ele tem a função de fugir do naturalismo (da forma
que se apresenta no dia-a-dia) para passar essa idéia, pensamento ou sentimento em questão”.
Luciana: “Expressividade é uma maneira de você colocar para fora o que está sentindo, seja
uma emoção, um estado, ou simplesmente demonstrar amizade, dor, etc.”.
Leonardo: “Expressividade, pra mim, é a energia que por si só comunica algo. (...) Falando
do corpo do ator, acho que esse é expressivo quando está vivo em cena e diz ao espectador o
que o texto (se houver) quer dizer”.
Júlia: “Quando o ator consegue emanar energia através de pontos do seu corpo. (...) Da
cabeça ao dedo do pé o ator precisa liberar energia. Acredito que este processo se dá através
de uma força interior, talvez espiritual e muito íntima”.
Maria Eugênia: “Para mim é a capacidade de comunicar. Algumas vezes essa comunicação
não está relacionada à racionalidade, mas ao sentimento, este, no nível das sensações. Corpo
expressivo é um corpo capaz de ultrapassar a mera reprodução de movimento, chegando a
expressar as tensões/sensações que envolvem aquela determinada situação”.
2. Quando e por que você se sente (sente seu corpo) mais expressivo? Descreva essa
sensação, ou dê exemplos.
Justina: “Ao realizar atividades que estimulem meu corpo em nível orgânico, metabólico
e/ou energético. Como quando ao correr, fazer alongamento, ao lidar com a manipulação
energética e apelo emotivo ligados á atividade teatral, durante procedimentos de relaxamento
e indução de pensamentos/emoções, etc”.
Fábio: “Sinto meu corpo mais expressivo sempre que penso a respeito, ou volto minha
atenção pra ele. Acredito que durante todo o tempo, a cada respiração, participo da
transformação do universo e como conseqüência, me transformo. Nas aulas de técnica, por
exemplo, a minha atenção está voltada para o corpo, suas ações e reações”.
Afrânio: “Sinto meu corpo mais expressivo quando faço coreografias em grupo. É um
momento em é possível sentir muitas forças convergindo”.
Lisa: “Quando existe ema atenção voltada pra ele, quando meu foco se torna ele; por que ele
se torna conscientemente uma extensão do meu pensamento/sentimento/idéia. É como se o
corpo ganhasse voz”.
Cinara: Sinto meu corpo mais expressivo quando tenho aulas de expressão corporal, como,
por exemplo, na cadeia de técnica de corpo. Também conto com meu corpo para compor
personagens (...). Sempre ouço o que o meu corpo tem a me dizer”.
Altamar: “Sinto meu corpo mais expressivo quando o mundo me pede uma reação diante de
coisas inesperadas. Há um aumento nos meus órgão de sentido: vejo o foco, percebo o que
está junto do meu foco, se o cheiro é bom eu me preparo pra ficar diante e receber, se é
comida eu quero devorar, me apropriar, se são sensações eu busco as explorar. Ou seja, há um
movimento em sentido favorável se há prazer, ou repulsa se há desprazer”.
Leonardo: “Quando danço. Independente do estilo musical, quando estou dançando me sinto
mais livre do racional. Experimentei grandes descobertas quando fiz dança contemporânea.
Na verdade, quando se une corpo e música consigo perceber em mim capacidades expressivas
que não experimentei até hoje em nenhum outro trabalho”.
310
Júlia: “Quando minha mente está sem preocupações, existe um desprendimento, uma entrega,
uma desconstrução. (...) depois de longos exercícios repetitivos e cansativos minha mente
estava livre e liberou a passagem para a criação e expressão do meu corpo”.
Maria Eugênia: “Para mim são três os elementos mais significativos para reconhecer essa
sensação (de sentir o próprio corpo expressivo): primeiro a consciência de meu corpo de
forma total. Momentos em que eu sinto cada parte do meu corpo viva e em prontidão.
Segundo é a capacidade de concentração em uma sensação/ objetivo, tornada concreta em
meu corpo. Terceiro é a ampliação da energia física dando a sensação de que meu ser
ultrapassou os limites do corpo e tomou conta do ambiente”.
Referente à segunda fase (após fase dinâmicas yin yang e mais contatos com chi kung)
Justina: “A dinâmica em si, aplicada nessas aulas tem sido um elemento positivo para o
estímulo a construção de imagens e metáforas corporais; mas não sei exatamente se posso
atribuir aos pares/opostos referentes a tais emblemas as imagens que me são sugeridas, uma
vez que o quer que se apresente, a princípio, pareça-me apenas tratar-se de opostos simples,
ou seja, não sei exatamente ainda que qualidade de energia atribuir a cada emblema, não é
claro ainda pra mim a que se refere o princípio do yin/yang”.
Cinara: “Em alguns momentos a mente e o corpo aceitam (entendem) o que está sendo
pedido e em outros não, por exemplo quando se pede “claro” e “escuro” fica difícil fazê-los
sem ser interpretando com os meus conhecimentos do que é claro e escuro, e por aí vai”.
Fábio: “Sinto mais como uma obrigação de aula do que como processo criativo (inspirado).
Talvez pela expectativa outras vezes frustrada de não chegar, aparentemente a lugar nenhum”.
Leonardo: “Os emblemas yin yang têm revelado nesse primeiro contato formas corporais
libertadoras de alguns estereótipos. Estou satisfeito também com a forma com que as aulas
têm sido conduzidas”.
Júlia: “Desde o início achei extremamente interessante o trabalho com as energias opostas
(yin yang). Na maioria das vezes me senti estimulada a criar e brincar com essas duas
energias. Existiam alguns emblemas que são extremamente abstratos e acabam sendo
ilustrados (com a resposta corporal), o que não acho tão válido. Mesmo com a recepção
racional, essa sensação tem que sair de forma orgânica e criativa. Quando ouvia as
sensações/energias (estímulos relativos ao yin yang), e meu corpo respondia organicamente
achei interessante. Quando fazia um movimento ilustrando uma sensação, não era uma
movimento negligente, mas pouco criativo. Acho que em certos emblemas eu não tinha tanta
consciência do estímulo que me levava a fazer determinado movimento. E às vezes
funcionava”.
Justina: “Percebi que a qualidade de energia que se instala com o treinamento tende a
conferir um estado inusitado entre a prontidão, concentração e relaxamento. Do ponto de vista
filosófico, ideológico e até físico, o chi kung me trouxe o despertar de um olhar sobre meus
canais de manipulação energética e, sobretudo, a verificação de um nível ainda embrionário
de exploração nesse sentido”.
312
Cinara: “Incômodo e mal estar. Não consigo ver nada, sinto muita dor nas costas, agonia,
vontade que acabe logo. Tento várias vezes seguir todos os passos do exercício, até sigo, mas
na hora de sentir energia, de ver o ponto entrando em minha cabeça já era. Não funciona
comigo (pelo menos por enquanto)”.
Leonardo: “Desconforto foi a primeira sensação. Não consegui me concentrar por que meu
corpo doía um pouco e mesmo que eu visualizasse as imagens de formação de energia (wu
chi, chi, tai chi) não conseguia sentir a energia se formar. Com o tempo tive outras respostas.
O corpo suava, as mãos aqueciam e formigavam e tanto visualizava, quanto começava a sentir
a energia, mas de maneira desorganizada e caótica, em especial na região da mãe de todos os
centros”.
Júlia: “A presença cênica é estimulada pelo centro energético. Acho minha energia bastante
desorganizada, nas vezes que consegui realizar bem, sem interferência o chi kung, senti minha
energia em harmonia não só na aula, mas no resto do dia. O chi kung precisa ser um exercício
diário, pois me incomoda uma pouco”.
Altamar: “Tranqüilidade, agonia, imagens coloridas, medo, dor nos pés, peso, relaxamento”.
3. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?
Comente.
Justina: “Considero o chi kung um elemento de conexão com o corpo integral (físico,
energético, intelectual, etc), o que, por si só, oferece ao ator e ao indivíduo um fortalecimento
e ampliação da percepção interior (o que há de contribuir de alguma via para o despertar e
aprimoramento da criatividade); e exterior também, no sentido de expandir nossa atenção e os
sentidos em geral (que me parece estabelecer um nível de consciência física e experimentação
emocional e energética que me sugere um ambiente ideal para a expressividade). Com isso,
claro, podemos falar senão de uma técnica “de atuação”, ao menos de uma técnica “para a
atuação”, no sentido que o treinamento se presta a um aspecto de sustentação do
ator/indivíduo como ser integral, mais ligado e ao ambiente em que se insere”.
Fábio: “Acredito aproveitar o chi kung como meio de me concentrar, me trazer pra sala,
trazer a atenção pra mim e meu corpo. Nisso me agrada. No trabalho técnico/ expressivo/
criativo por enquanto não interferiu. Talvez seja cedo. Talvez o tempo não seja suficiente”.
313
Leonardo: “Sem dúvida alguma facilita principalmente pelo fato de ser a primeira aula do
dia. O chi kung possibilita uma reorganização ativa das energias do corpo, e amplia no ator a
experimentação vigilante e investigativa. Isso tem me ajudado no processo de percepção”.
Júlia: “Nas vezes que me concentrei e realizei bem o chi kung meu corpo ficou em estado de
prontidão para criar. No sentido técnico/expressivo sinto uma dilatação no corpo, uma
sensação de expansão. Especificamente em alguns processos sentia a energia partindo da mãe
de todos os centros e visualizava a energia yin e yang. Quando o centro energético é ativado, a
criatividade aflora. Eu procuro deixar fluir as indicações e deixar de lado o racional para que
meu corpo aja de forma espontânea”.
Altamar: “Tal trabalho possibilita concentração do corpo, fato fundamental para passear pela
técnicas de corpo. É uma preparação para as múltiplas possibilidades e o observo como um
portal de entrada que diferencia o ocasional, cotidiano, etc, do controlado, criativo, artístico.
Talvez fosse interessante para valoriza-lo como preparação, início, portal, a existência de uma
técnica similar para finalizar o momento criativo”.
Referente à terceira fase (Após fase dinâmicas I ching e contato mais constante com chi
kung)
estímulos e que tinham uma profundidade fascinante como exemplo o dia em que
trabalhamos o irmão do meio, a água e no fim foi dado o estímulo da loucura. Surgiu em cada
um, figuras muito bacanas, distintas e longe de qualquer estereótipo de louco. Outro exemplo
que me lembro agora foi a criação da ave, um dos momentos mais interessantes, o trigramas
trabalhado foi o fogo. Criei uma galinha bem tensa onde toda a energia partia da base que
tinha uma relação com olhar formidável. O que é fundamental é essa consciência de onde está
a energia executada e que ao mesmo tempo seu corpo está vivo e seu olhar preenchido. O ator
precisa ao mesmo tempo ter consciência e estar completamente vivo. Além de todos os
estímulos dos trigramas que proporcionaram criações ao me ver indispensáveis para o meu
crescimento. Eles mexem com todos os tipos de sensações que já existem dentro da gente. No
momento em que esses estímulos serviram para elaboração de um texto desencadearam
sensações que estavam aquietadas, muito boas e muito ruins. Vieram à tona sentimentos
guardados que precisavam sair, não deixaram de ser doloridos, mas talvez de uma próxima
vez eu saiba lidar melhor com eles”.
Altamar: “Me senti estimulado, os trigramas agrupam significados, apontam várias coisas
que tem um ponto comum (ex: terra, profundo, escuro, frio, etc.), e isso cria uma ‘atmosfera’,
um campo mais delimitado para que uma ação seja realizada de modo definido.”
Leonardo: “Acho as imagens do I ching muito fortes, mas acredito que elas apenas não
conseguiriam suscitar em mim tantas respostas. (...) Cada aula era conduzida direcionada a
um fim. E os resultados corporais obtidos me deixaram muito satisfeito. As respostas com os
trigramas eram muito verdadeiras e sem dúvida já estão armazenadas em minha memória
corporal. Me diverti muito criando a partir dessas imagens.”
315
Cinara: “Sim. O processo aguça a imaginação, a criar imagens, que deixam o corpo
‘flexível’, as criações, as composições passam do racional para o experimental. Esta etapa
mexeu muito com as emoções, estas expressas no corpo. Isto tudo estou dizendo do trabalho
corporal, mas quando fui criar o texto o que foi dito e tudo que estava impregnado das
dinâmicas, me fizeram viajar. Se fosse compor um personagem teria um excelente material,
principalmente as personagens que exigem uma partitura corporal, que aliás, acho que todas
precisam de uma certa forma”.
Justina: “Acredito que todo repertório apresentado na aula nos estimule efetivamente a
compor, uma vez que a condução se presta a unir nosso potencial subjetivo, a imagens
sugeridas pelos arquétipos. (...) Era sempre surpreendente o quanto cada arquétipo se delineia
em uma propriedade energética expressiva e em um repertório de imagens, muitas vezes
comum entre os integrantes do grupo, o que, pra mim, remete ao aspecto do insciente coletivo
e, quanto à contribuição individual, certamente é o que estabelece o diferencial, e a
pluralidade das composições.”
Júlia: “Hoje posso afirmar que com chi kung consegui reorganizar melhor minhas energias. A
concentração também é algo imprescindível para o ator e o chi kung permite desenvolver
muito bem isso. O contato com o chi kung foi maravilhoso não só porque vai me ajudar, ou
melhor, já está ajudando profissionalmente, mas também auxilia espiritualmente e
mentalmente. Até porque o ator tem que saber lidar muito bem com seu emocional, por isso o
ofício do ator é muito difícil. Particularmente gosto muito dos preceitos e da filosofia oriental
e pretendo continuar usando a sabedoria oriental em todos os ramos da minha vida. No meu
entendimento o chi kung permite o equilíbrio das energias que partem do centro energético de
forma a irradiar de forma cíclica todo o espaço. Isso está diretamente ligado com a presença
cênica”.
Altamar: “As respostas do chi kung foram às vezes calafrio, autopercepção, consciência
corporal, funciona em mim como um corte de energia de produção de ações cotidianas e
minha energia de ações de pesquisa corporal.”
Leonardo: “A captação de energia yin me desestabiliza. Queria entender porque. O que não
acontece com a captação da energia yang. Nesse caso, além de facilidade de captação, acho
que manipulo muito bem essa energia. Porque isso acontece?”.
Cinara: “Hoje em dia vem me deixando mais concentrada, mais centrada no trabalho diário.
Ainda bem quer processo é um crescente, pelo menos esse foi, só agora me dei conta de que
forma as dinâmicas poderiam me ajudar.”
3.Chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?
Comente.
Júlia: “Facilita. Quando faço o chi kung fico extremamente concentrada e mais criativa
durante os laboratórios. Além dessa dilatação do meu corpo que já havia dito anteriormente,
sinto uma conexão muito grande com o meu corpo, o espaço e as pessoas ao meu redor. É
como se fosse aguçada a percepção, a consciência de tudo que me cerca. À medida que fui
fazendo o chi kung em aula e às vezes em casa ficou mais fácil mergulhar nesse equilíbrio das
energias yin yang. Senti um progresso na execução do exercício, apesar de ainda continuar
sentindo a energia yin mais presente. Tecnicamente falando, consegui desenvolver em sala
resultados que me deixaram muito satisfeita. Sinto hoje uma evolução na minha consciência
corporal, no meu estado de prontidão. Acredito que isso tenha se dado devido ao princípio de
tudo que no caso foi o chi kung que impulsionou esse estágio em que me vejo agora. Sinto-me
à vontade a criar com o corpo sem travas e tensões. O ponto que gostaria de destacar é quando
há inserção de texto. Sinto que às vezes consigo me comunicar bem com o corpo, mas quando
vem acompanhado de texto existe algo fora do eixo, sei que preciso investir mais nisso.
317
Tomara que possa dar continuidade com o chi kung para que possa atingir esse ponto que é de
extrema importância”.
Clarissa: “Qualquer técnica que seja utilizada antes da criação interfere em seu processo. O
chi kung proporciona a concentração da energia, o equilíbrio. Coloca o grupo, o indivíduo,
num estado de tranqüilidade e de propriedade sobre si. Ele lida com a qualidade de energia e
essa qualidade que devemos levar pra cena”.
Leonardo: “Hoje afirmo que facilita com muito mais propriedade, pois tive a oportunidade de
experimentar a prática dentro dos trabalhos do meu grupo de teatro, e então pude perceber o
quanto surte efeito.”
Justina: “Acredito que se possa usar o chi kung como via de acesso à subjetividade e, por
meio dessa, atingir certo nível de expressividade elaborado pela formação e fisicalização das
imagens suscitadas no processo. Em nível energético, no entanto, não me sinto ainda
suficientemente sensibilizada, e, apesar da limitação individual, verifico uma contribuição em
nível de estímulo à formação de imagens e condicionamento criativo/expressivo”.
318
ANEXO B
REFERENTE AO ESPETÁCULO
relato das experiências, aliado às explicações, torne mais claro o processo ao leitor. O DVD
com a filmagem do espetáculo, que acompanha essa tese, também deve ser consultado,
especialmente por quem não assistiu ao espetáculo.
03/07/06
15:58 pm
Finalmente. O primeiro ensaio chegou. Era pra ser de manhã. Não pude, remarquei pra
tarde. Esse adiamento de 7 horas me incomoda. Estou ansiosa pelo início. Meu corpo pede, há
algum tempo, por esse processo criativo.
16:04 pm
17:53 pm
05/07
Fizemos ainda uma experimentação em cima do conto Casa, onde a personagem varre,
limpa e muda as coisas de lugar obsessivamente. Apesar de partirmos do conto, e não de uma
matriz taoísta, a experimentação com membros, feita anteriormente ecoou nessa também,
gerando gestos de varrer com as mãos o próprio corpo e o ar, com a sensação da poeira
invadindo, dos pés varrendo o chão. Células expressivas dessa experimentação foram usados
em toda a cena da luta com a poeira no espaço e no próprio corpo.
06/07
pés eriçados, isoladamente, voltam em vários momentos de tensão da peça, como ao soar do
telefone, junto à matriz frio.
10/07
André propôs novos contrastes. Pediu para que eu inserisse mais som nas
experimentações. O primeiro contraste a ser trabalhado foi calmagitação. Calma surgiu como
um gesto de quem corta ou costura o ar e canta com muita suavidade. Agitação veio como
quem se fura com uma agulha e em cada furo grita e lamenta, em tom cantado: “Ai!!! Ai!!!”
A matriz calma emprestou princípios para algumas cenas de canto da peça. A matriz agitação
gerou a cena onde a personagem se costura, após ter sua costela quebrada no coito.
A outra dupla experimentada foi raivamedo. Raiva veio como um gesto de birra, de
menino mimado que não consegue algo que quer, e infla as bochechas e esmurra o chão pra
baixo. Elementos dessa matriz foram usados no momento em que ela grita “Passa passado,
passa” e arranca sapato. Em alguns momentos de relação com a poeira e na hora que ela pisa
no telefone. A experimentação com medo gerou uma expressão fisionômica intensificada pela
ação das mãos puxando o rosto pra baixo, e um som de terror, susto, com o ar entrando.
Células dessa matriz foram usadas em diferentes momentos de susto: quando ela se percebe
gorda, quando percebe as unhas, quando joga as coisas pela janela, quando fala das olheiras,
etc.
323
11/07
Após a preparação inicial fizemos uma recapitulação das matrizes até o momento,
relembrando as formas surgidas e relacionando às sensações. Assim temos até então:
13/07
14/07
A experimentação dos contrastes no texto falado gerou por vezes uma intenção
paradoxal no discurso, o que favoreceu a polissemia na cena.
Nos ensaios que seguiram a este fomos amadurecendo nosso desenho de ações e
cenas, inserindo os textos que julgamos pertinentes.
24/07
• Matriz alegria - este estado foi favorecido a partir da inserção gradual, por parte do
André, dos seguintes estímulos: coração + calor + gargalhada. Dirigi o chi kung
irradiando energia ao coração, o que me trouxe logo uma vontade de rir. Esse trabalho
gerou um espreguiçar do tronco em cadência de dança e uma sensação crescente de
aquecimento no peito culminando em uma gargalhada. Devo ter ficado uns quinze
minutos gargalhando, às vezes de forma mais espontânea, às vezes reforçando um
pouco o calor no peito pra despertar o riso novamente.
• Matriz obsessão + canto: a vivência gerou movimentos insistentemente espiralados de
dedo e tronco.
• Matriz tristeza + secura + choro: essa experimentação foi uma das mais fortes
emocionalmente para mim. A partir de um movimento de cata com as mãos, abrindo-
as e fechando-as com os dedos retos, me veio um violento sentimento de perda,
imediatamente associado a imagem de meus filhos. A partir desse momento o choro
surgiu compulsivamente e se manteve até o fim do trabalho. Ao repassarmos todas as
vivencias no fim do ensaio o choro veio de novo, facilmente, ao associar o movimento
325
à idéia de secura. Essa matriz foi posteriormente usada na imagem das unhas
agarrando “o vazio, o passado, o eu perdido”, e catando algo dentro da “saia-filho”.
Após o trabalho André observou que despertar tanto as emoções trouxe uma
expressividade mais sentimental e psicológica que física. Para ele, menos interessante
nessa proposta.
Ao longo dos ensaios seguintes continuamos a criar nosso desenho de ações, usando
elementos das experimentações do dia e outras. Criamos a cena da costura da costela
quebrada, a partir de células da matriz obsessão (movimento espiralado de mãos e tronco).
Posteriormente esse movimento em espiral se aplicou também à procura do sapato, à
imagem das unhas como raízes, etc.
03/08
Estou em crise. Esboçamos a peça até o momento em que a personagem dorme, cena
na qual emperramos... A pura experimentação com o objeto - a trama de elásticos - não
está funcionando. Sinto vontade de voltar às matrizes, que não trabalhamos há mais de
uma semana. Penso em aproveitar o movimento de palpitação da matriz securaumidade,
ou o gesto de catar, da matriz tristeza. Também intuo experimentar alguma matriz, mas de
forma mais dirigida, ou seja, dentro da própria cena, e não dissociado para depois re-
contextualizar, como foi até agora.
09/08
10/08
• Bexiga + gemido + declínio: gerou ação de ter vontade forte de urinar ao fim
da risada, e o ato de fazer xixi gemendo. Essa matriz não foi usada na peça.
• Picante + estômago + puberdade + canto: ação de comer o livro com
fisionomia de quem come algo com muita pimenta. Matriz não usada.
• Fígado + grito: ação de sentir ânsia de vômito e vomitar um grito. Matriz usada
no momento em que a personagem, drogada e bêbada vomita no livro.
25/08
Após trabalho inicial de concentração e chi kung experimentamos matrizes para buscar
textura corporal da bebedeira.
Sinto que entro numa fase do trabalho em que passo a buscar contrastes e referências
não como referências a priori, mas também como apoio para fortalecer as construções cênicas,
tanto as derivadas de trabalhos com matrizes, como as surgidas de experimentação direta com
objetos e texto.
12/10/06
Estréio num 12 de outubro. Mais um parto, mais um filho criado em meus vazios, mais
um saindo pro mundo. E no dia de Nossa Senhora de Aparecida. O dia das crianças! Rezo a
elas. Internamente ofereço à Santa e às crianças essa apresentação parida. Peço a uma o dom
da presença energética, irradiante, epifânica, e às outras o privilégio do prazer, do jogo, de ser
lúdica. Duas (entre tantas) faces do teatro. E de mim.
B.3. Dramaturgia
1. despertar
Toca despertador, ela acorda, abre só olhos, se espreguiça ampliando o espaço do corpo até os
dedos, fazendo o quadrado do elástico solto/cama/espaço corporal. (matriz
contraçãoexpansão). Vira de costas para público estica um braço e uma perna, senta, estica
os braços lateralmente torcendo tronco, pousa braços no chão se apoio e fica de pé.
2. janela 1
Vê a janela, solta as mãos e vai até lá apreensiva, (matriz frio sutil) abre a janela/cortina,
com cuidado, observando.
3. espelho 1
Confere rugas nos olhos e ao lado da boca, confere brancura dos dentes, usa elástico solto/fio
dental, cospe. Volta-se para espelho, confere sorrindo. Faz ginástica com braço e com perna,
331
até soltar elástico. Mede cintura com elástico solto/fita métrica, estica-a ao máximo. Vê
resultado, fica feliz, olha no espelho, se percebe gorda, pega na barriga. (matriz medo, do
contraste raivamedo, em dimmer sutil).
Ahhhh!
4. feira
Alface, rúcula, uma beterraba esmagada no chão lembra uma poça de sangue... abacaxi,
maças e as pêras até que enfeitariam a copa...
cebola roxa, cebola em conserva, cebolinha, a cebola é tão bela pra murchar na fruteira!
Puxando as luvas.
Vestindo as luvas.
Olha o xuxu, olha aí olha aí, olha o xuxu, olha aí, olha aí, olha que xuxu, olha que xuxu, olha
que xuxu...
5. unhas
Olha aí! Que isso? Nasceram esta noite... Parecem garras! Para que servirão?
Mãos se fecham, puxando os braços, como numa dança indiana, enquanto ela olha pra Deus.
Mas será que todas as noites eu preciso passar por alguma metamorfose...
Serão um castigo?
Algo que meu corpo criou noturnamente para me destruir essa manhã?
Vem na direção dela como se fosse lhe arrancar os olhos (matriz tristeza + secura + choro).
Espreme uma espinha, pus pula pro chão, ela nota o espanador/gato.
333
6. bicho 1
(matriz profundosuperficial)
Entra atrás do espanador/bicho, faz uma volta no espaço chega perto desacelerando, abaixa o
tronco pra pegá-lo, ao tocar nele corpo fica mole, curte o bicho brinca, ele muda de mão –
torcida de corpo, depois de novo até ir ao chão. Volta atrás dele de novo, até que se depara
com a presença da poeira.
Percebe poeira na parede, passa o dedo, olha em volta (relação de olhar com a poeira
durante toda a cena inspirado em matriz recepçãopenetração).
Pela porta!
Lateral da cena.
Pelas janelas!
Atinge janela e puxa espada para si. Chega ao canto esquerdo no fundo e faz enceradeira, em
4 pontas, mecanicamente, 3 vezes. Espanador vira desentupidor, entre as pernas. Outro ritmo,
sucção, 3 vezes. Sacode espanador. Vê poeira no chão, prepara 3 vezes, joga golfe com
espanador/taco, joga longe, pra fora da janela, vai até lá, vê poeira voltando, recua e se
defende com espanador. Sacode este novamente, prepara 3 vezes e joga como squash com
espanador/raquete, recebe em manchete e finaliza com uma cortada forte, poeira sai pela
janela. Vai até janela de frente conferir vê poeira que volta, ela se abaixa, vira em samurai,
num salto. Dá duas passadas redondas, depois chuta e ataca com bastão/espanador. Abre
braços e dá giro em torno de si, vira-se pra frente e agradece. Percebe ainda a presença da
poeira. Constata tensa (relação de olhar com a poeira inspirado em matriz
recepçãopenetração).
334
Pega espanador/metralhadora e atira loucamente fazendo rotação com tronco até esquerda,
depois direita e voltando ao centro. Sopra o espanador, como quem sopra um revólver, poeira
volta-se contra ela, ela se defende, sopra. Acompanha uma poeirinha com estrabismo, cair no
umbigo. Pega irritada. Fala consigo mesma (relação de olhar com a poeira inspirado em
matriz recepçãopenetração).
Mãos chegam ao pé, depois vão subindo espalmadas até gesto de entranhadas.
eu lavo as frutas
eu lavo as folhas,
Cerra a outra.
eu lavo as roupas,
é inútil, a areia está sempre ali, grudada no meu corpo, na minha pele.
Com agonia e nojo, termina limpando as mãos. Areia cai, ela se agacha, sopra, poeira vai nos
olhos, ela faz cambalhota pra traz. Tenta escapar da poeira, foge pra traz da bacia, se esconde
com a bacia/escudo, que vira uma grande cara, (matriz ossos + audição + medo, “aranha”)
foge lateralmente espiando por baixo, pelos lados ou por cima, e variando planos, até colocar
sobre a cabeça. Por fim bota a bacia na cintura, pega a camisa, anda até o balde e o pega,
335
sente o peso, e leva ao centro. (matriz transportar) Quando está quase chegando toca o
telefone (matriz frio). Deixa a bacia e a camisa caírem já no centro, e equilibra o balde ao
lado.
8. telefone 1 + traço 1
Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim voz vai ficando com timbre da matriz velhice + frio +
gemido)
Sem resposta, volta, vai andando com o sapato apertado junto ao peito (matriz frio).
Recupera a ação.
9. lavação 1
Deixa balde, ajoelha-se, deposita bacia. Enche a bacia de água (matriz de torcida da
transformação superficialprofundo). Toca a água, sacode 3 vezes, lava o rosto, sacode 1
vez. Pega e joga água 2 vezes pra direita e depois 2 vezes pra esquerda (mix das matrizes
armazenar + umidade). Traz água pra corpo 5 vezes, do pescoço até pélvis e chega no
“banho tcheco”. Ao fim sacode mãos com nojo três vezes, pega sabão e esfrega na mão, e
molha-as de novo.
10. janela 2
Pensa o que vai fazer com a água suja, olha um lado e outro, levanta vai em direção ao
fundo/banheiro, vê janela e joga lá embaixo. Esconde-se atrás da bacia e volta ao centro.
Coloca nova água na bacia. Ainda com o balde na mão...
336
Percebe poeira (ou inseto – perigo minúsculo) vai atrás dela (matriz ossos + audição +
medo, “aranha”). Espera pousar e prende-a no balde emborcado. Poeira tenta fugir uma vez,
ela senta em cima. Sai dali ainda tensa e se depara com camisa. (matriz expansão +
luminoso). Vai até lá, (pés rastejam matriz umidade) agacha, pega-a, traz para a bacia e
molha, pega o sapato/sabão e passa na camisa, começa a cantar, e deixa o sapato/sabão na
bacia.
(relação com a camisa a partir de matriz densosutil ao longo da cena toda do varal)
Canta trecho da música Dream a little dream, de Gus Kahn/ Wilbur Schwandt/ Andres Fabian
Say nighty-night and kiss me
Coreografia da lavada: esfrega camisa no centro, primeiro dentro bacia, depois esfrega numa
perna e noutra, cheira virando-se, passa camisa pelo corpo, pés fora do chão, vira-se pra baixo
em flexão, esfrega no chão e traz pra si, enxágua 3 vezes e sobe.
Segue cantando:
Vai até alicerce central da lateral direita e puxa traço 2 (elástico)/varal até alicerce central da
lateral esquerda. Olha por cima do varal colocado, pros dois lados pra ver se alguém está
vendo.
Pendura, se enrola na manga em uma dança, cantando, vai deslizando pelo varal, pega na mão
dele e vai pra frente em passo de dança, se joga pra trás na dança. Passa a mão pelo peito dele
e veste a blusa, não termina a música, sacode manga ao final. Fica vestida na blusa pendurada
no varal. Transição entre fim da música e fala.
(matriz tato)
Ele me amava como se eu fosse um animal de estimação, frágil e macia feita de pelúcia,
Levantando os braços.
Gostava de ver as veias aparecendo debaixo da pele branca para ver o avesso do corpo....
Ai, ele era forte, quando apertava meu braço eu sentia os ossos como se fossem quebrar... Ai,
ai! Cuidado, cuidado meu amor, cuidado!
Mostra dor, se retorce em assimetria. Vira pra um lado por cima do fio, e pro outro no meio
da frase.
(matriz audição)
Anh? Eu sei que você não fez por mal. Anh? Eu sei você é doce e inofensivo, uma flor.
As pessoas diziam que ele era bruto mas ele era delicado,
abraçava as árvores...
Gesto de oração.
me pedia perdão.
queria ter uma vida nova, fugir desse lugar, ter uma casa na montanha, só nos dois
(matriz tato)
Se enrosca no varal
Se desenrosca.
Insinua-se a frente, sentindo resistência como se ele a puxasse. Tira a camisa que fica pelo
avesso.
339
Fala parada na frente. Imagem de ave segurando braços da camisa. Vai recuando.
(matriz visão)
às vezes no meio da noite ele penetrava no meu sonho como uma ave de rapina
Camisa de força.
Imagem de beira de precipício, olhando pra baixo, (matriz altobaixo + medo) solta a camisa
que voa. Ela cai no chão (matriz inspiraçãoexpiração em transição para matriz olfato).
Vai de quatro até a camisa, puxa, camisa balança ela vai junto e passa pra frente da camisa.
Faz cabaninha com a camisa.
Imagem de igreja.
é sua Igreja,
Imagem de santa.
a imagem de Deus...
Veste a camisa ao contrário, abertura pra traz com afeto, sacudindo as mangas (matriz tato).
Imagem de boneco, marionete (matriz ossos + audição + medo, “aranha”, sem intenção de
medo, e mais entrecortada).
Intenção de sexo.
beija meus pulmões, arranca meu útero, acaricia minhas finas e longas clavículas...
Fica de costas pra camisa, volta as mangas pro lado certo (não avesso) de novo, ele a penetra
por traz.
Imagem de sexo. Enrola-se na camisa de novo, espremida grita como se fosse um orgasmo.
Sai andando torta, furada, se agachando pra pegar sapato/agulha, dá a volta pela bacia onde
está o sapato e volta na direção do alicerce central da lateral direita do palco. Puxa o traço 3
(um novo fio elástico)/linha de costura, coloca no sapato/agulha, senta-se no balde
emborcado/banco, e costura-se três pontos, com os punhos redondos, tronco acompanha.
(matriz obsessão, caracóis com a mão e pulso em mix com matriz agitação do contraste
calmagitação “ai, ai”) Dá um nó. Deposita o traço 3 no alicerce da frente esquerda, mas puxa
o meio do elástico para alicerce central da lateral esquerda, criando no espaço duas linha com
o mesmo elástico.
341
Confere no espelho a costura. Relação com a auto-imagem. Resolve colocar saia, entra na
saia. Depois sapato. Calça um sapato com tronco dobrado e nessa posição começa a procurar
o outro (matriz obsessão, movimentos em espiral). Passa embaixo do traço 3 e lembra de
conferir poeira (ou inseto – perigo minúsculo) embaixo do balde. Vai até o outro canto do
palco, não acha. Pisa no elástico com um pé e leva o outro como na brincadeira de pular
elástico, acha lenço no alicerce central do fundo. Coloca-o no pescoço, e continua a procurar
sapato até achar no alicerce do fundo lateral direito. Vai até sapato e calça com tronco
dobrado, alcança espanador/escova e limpa sapatos. Olha-se, vai subindo limpando a roupa e
se olhando no espelho enquanto fala:
Nem todas as pessoas são reais... Eu talvez seja mais real no espelho, do que em carne e osso.
Sometimes I wonder
Who I am
Do I fit in
Baby belong to me
(matriz excitaçãoinibição)
Tira espanador do meio das pernas. Com espanador/ buquê de noiva sai andando em direção
ao altar, puxando traço 4 (novo elástico)/passado, que está amarrado ao sapato que acabou de
calçar (antes da cena com espelho). Sente a dificuldade do elástico no sapato (matriz de
343
transição do contraste levepesado). Passa por debaixo de traço 3 com o corpo arqueado para
trás, pé é puxado, ela vai ao chão, solta buquê e tenta segurar-se no balde/banco, perna
descreve um arco até alicerce central da lateral esquerda.
Que isso? Meu passado cresceu e se arrasta atrás de mim como um rabo cada vez mais longo
e denso...
Pega o sapato, solta do elástico, prende o traço 4 no alicerce lateral esquerdo, e encaixa sapato
pendurado.
Vira-se pra frente e se dá conta que a poeira, que estava presa no balde, escapou. Coloca
balde/capacete na cabeça, e se arma com sapato e bacia/escudo (matriz ossos + audição +
medo, “aranha”). Persegue poeira com o olhar, até ela pousar no alicerce no frontal
direito/parede da casa. Bate com o sapato nela, como se matasse uma mosca. Olha a sola do
sapato (matriz vazio).
18. desfazer-se
Essas coisas não me servem mais, não se parecem mais comigo... quero me desfazer dessas
coisas...
sem móveis,
Sem poeira, sem documentos, sem cartões, sem talão de cheque, sem marido,
19. telefone 2
Na hora que vai pegar o livro que está pendurado no alicerce frontal da direita toca o telefone
(matriz frio). Encosta-se ao traço 3 e vai à direção do telefone, mas quando chega perto, este
para de tocar. Solta traço 3 do alicerce central da lateral esquerda, segurando-o no alto:
Solta traço 3 no ar e ao mesmo tempo vai em desequilibro detonado ao soltar traço, para a
janela.
20. janela 3
Odete! Odete… Tudo bem? Não não estou precisando de faxina não, viu? Seu Hilário
comentou que você está responsável por um bazar beneficente! É que eu queria contribuir,
tem umas pecinhas aqui que eu não estou mais usando e... Não! Não precisa subir... Olha só
que bonito: (matriz leve) o lenço passa diante de mil vidraças que refletem mil edifícios de
vidraças que refletem mil edifícios...
Gostou?
A camisa passa diante de mil vidraças que refletem mil edifícios de vidraças que refletem mil
edifícios.....
345
Bonito, né?
Joga bacia com objetos pesados que fazem ruído ao cair no chão. (matriz frio) Olha pra
baixo.
Odete?
AHHHHH!!!
Sai desnorteada empurra traço 2 até alicerce frontal direito e prende com livro, braços
levantados, vira de costas e vê o gato.
21. bicho 2
22. janela 4
Joga bicho pela janela (matriz de medo contraste medoraiva, som e rosto de susto,
pânico).
AHHHHH!!!
Telefone chama sua atenção, olha telefone, olha janela, até que vai atender no alicerce central
da lateral esquerda (matriz frio). Pega sapato/telefone.
346
23. telefone 3
Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim voz vai ficando a da matriz velhice + frio + gemido)
Pega só sapato, traço fica, tenta ouvir, sem sinal, vai mexendo no traço 3 até chegar ao traço
1, passa a tentar sinal neste, tira do gancho e vai olhando dentro do círculo do elástico,
procurando algo e trazendo elástico pra alicerce da frente direita, onde deposita traço 1, e
encaixa telefone, desliga-o. Encosta no alicerce, (matriz frio) sente o livro.
Pega o livro e solta traço 3 que estava fixado aí, ainda olhando em volta (matriz frio). Abre
livro, vem luz de dentro dele no rosto dela. Começa a ler, vai achando graça, começa a andar
acompanhando traço 1 na diagonal, (matriz vento leve, com pequena intensificação a cada
risada) segue lendo, gargalhada sutil (matriz vasos sanguíneos + gargalhada sutil), vai até
o centro. Segura livro aberto com mão esquerda, na parte de cima da lombada. Acha
papel/carta deposita livro/abajur no traço, levanta abajur pra ver carta embaixo da luz.
Começa a ler, fica triste, cheira, chora, (matriz olfato + choro) colhe as lágrimas que viram
maconha sendo destrinchada, enrola papel/carta, faz um rolo/baseado. Acende no
livro/isqueiro, fuma cigarro de maconha, se infla, (matriz expansão + luminoso) prende a
fumaça, percebe poeira, acompanha-a, sopra fumaça nela, acompanha-a voando cair no
elástico, cheira a poeira com rolo/canudo até chegar ao livro pendurado no mesmo traço
(matriz contração + azedo). Travada passa rolo/batom, coloca rolo/perfume. Pega
livro/bolsa e encaixa embaixo do braço. Canta a música Hi Lili Hi Low!, composição de
B.Kaper/ H.Deusch, e versão de Haroldo Barbosa.
pisa no elástico com um pé, depois com outro. Abaixa-se, sopra pelo rolo/zarabatana e salta,
tirando os pés e soltando o elástico.
25. janela 5
Por isso é que sempre contente estou, hi Lili, hi Liliiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, hi low! Feliz ano novo!
(matriz nascimento e vento + leve em transição gradual para matriz fígado + grito).
Transição para ânsia de vômito pensa onde vai vomitar, vomita longamente no livro sente
nojo joga o livro pela janela.
Uhu!
26. telefone 4
O telefone toca, (matriz frio fundida com matriz vento + leve da embriaguez) ela procura
puxando cada traço e soltando após o som do telefone, até chegar ao sapato/telefone, no traço
1 preso ao alicerce frontal da direita, quando pisa no traço 1/fio desligando-o.
Anda em corda bamba fazendo o tubo de papel de corneta. Tocando a melodia de Adeus ano
velho, Feliz ano novo, de autoria desconhecida. (matriz de vento + leve). Sai da linha reta,
dá uma volta sobre si, pega elástico à frente faz de vara de equilíbrio. Passa por baixo dele,
vira e vai voltando.
28. telefone 5
telefone toca de novo (matriz frio do telefone fundida com matriz vento + leve da
embriaguez). Volta em direção a ele, atende tirando só o sapato/telefone, deixando o traço lá
(fala com matriz lento + pesado + úmido).
Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim vai ficando fala da matriz velhice + frio + gemido)
29. monstro
Vai olhar a janela, se agacha, passa embaixo do traço 3 e olha pela janela escondida.
30. janela 5
Ta lá! Ele ta sempre lá, deitado na calçada imunda.... Tenho tanto medo do monstro da
esquina, o monstro barrigudo, cabeludo, o monstro manchado... As manchas dele fedem! Será
que o monstro tem mãe?
31. reza
Puxa rabo de cavalo pra cima. Solta cabelo. Tira elástico da cabeça e reza com elástico
solto/terço (fala em matriz lento + pesado + úmido).
Minha Nossa senhora, me livra do monstro da esquina! Eu não tenho paz! (matriz secura do
contraste secoúmido unida a vento leve) Ave Maria cheia de graça o senhor é convosco,
bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre Jesus! Santa Maria mãe
de Deus, rogai por nós pecadores... (fala em matriz contraste sombrioluminoso) Eu sei que
eu sempre fui aos meus pecados. Mas é que eu nasci com eles, eu repito os pecados de minha
mãe e de meu pai e de meus avós, e dos avós dos outros, me perdoa minha santa, não me
castigue! A senhora é mãe, a senhora sabe como é difícil! Eu tentava acertar, mas eu não
conseguia!
Senta-se no traço1 /meio fio (fala em matriz vazio). Puxa fio como cordão umbilical. Passa a
fazer cama de gato com elástico.
Quando tive minha filha meu coração se destroçou, não conseguia amamentar, meu leite saia
fraco, uma água amarelada, a criança chorava de fome, de abandono... Passei dias sem tirar do
berço, entreguei a uma babá, e de noite via na parede do quarto a imagem de minha filha
vestida de branco enfeitada com flores os lábios roxos como se estivesse morta... uma
350
alucinação de arrancar lágrimas mas eu não conseguia... Meu filho... dizendo que vai embora,
minhas mãos ainda sujas de leite, eu sem saber que conselhos dar,
Não peça nada a ninguém! Engraxe os sapatos... Pobre filho, teve uma mãe tão
destrambelhada...
Tirando a saia.
Nunca tive paciência para ajudar no dever de casa, pra ensinar a fazer um nó, quantas vezes
adormeci antes dele ou dei mingau queimado...
Ele teve que suportar a minha instabilidade, as mudanças de trabalho, de casa, de cidade...
Uma vez ficou um ano sem desfazer as malas, sem abrir o baú de brinquedos...
Abaixa-se à altura da criança, pega filho no colo, coloca pra ninar cantando (matriz obsessão
+ canto + doce, pés rastejam matriz umidade).
33. janela 6
Vai à janela olha a criança e joga-a. (matriz vazio) Anda de costas até o traço 1/box do
banheiro, vira-se pra ele.
34. banho
Coloca um pé na água, sente, coloca o outro e andando arrastando os pés na água. Pendura
elástico solto/toalha, dá dois passos e ao virar-se para frente sente água gelada, gesto e som de
água gelada (matriz vazio + frio denso). Vai lavando-se, lava o rosto, (matriz obsessão) e os
cabelos. Joga cabeça pra baixo e lava os cabelos, até ir subindo tronco, com cabelo no rosto.
Pega elástico solto/toalha como se fosse um chicote e dá impressão de um auto-flagelo.
Enxuga-se do pescoço aos pés, enquanto caminha para o centro. Pega traço a traço (elásticos),
unindo-os, enquanto sobe o corpo tirando o cabelo do rosto. Prende-os com o elástico solto e
abre a porta da noite/elástico solto.
Ainda no balanço frente e traz amarra os pés. Espreguiça, lutando contra o sono, amarrando as
mãos. Dorme balança a cabeça até imobilidade. Ao som de estouro acorda em salto e
assimetria. Percebe-se presa nos elásticos/teia e começa a tentar escapar, estica-se toda, tenta
soltar-se com força abdominal elevando o corpo, formas assimétricas com apoio da cabeça
352
(matriz outono + pele + tristeza). Pega nos fios laterais da teia joga joelhos pra frente, e
levanta-se. Prende-se nos fios frontais da teia, vira imagem de bicho (matriz
troncomembros).
e o assoalho frouxo.
Tão frouxo... Mas como é que as pessoas dormem tranqüilas nesse edifício enquanto os
alicerces vergam e as vigas cedem, um milímetro por século, um século num milésimo de
segundo. A qualquer momento tudo pode desmoronar!
Crescente de movimento, indo para trás da teia, ainda presa, imagem de pássaro voando.
Preciso de uma casa nova! Preciso de uma casa nova! Preciso de uma casa nova!
36. telhado
Levanta a cabeça e constata, puxa teia pra si, olha pra baixo e constata:
Meu corpo é manso, mas minha alma vive fugindo pelas janelas...
Vai andando.
353
Pelos silêncios, pelos espelhos, pelas escadas... até o último andar do edifício....
Sobe teia.
O telhado.
Solta teia.
Pisando na teia.
A cidade aos meus pés, as pessoas lá embaixo parecem fantoches, os sinais vermelhos, as
balas perdidas, os assaltos, as vitrines tudo que eu vejo nos jornais fica lá embaixo...
Desculpe!
Mexendo na antena.
Mais um ano...
Canta enquanto abre elásticos para entrar dentro. Música Solidão, de Tom Zé.
354
E acende o lençol
Solicitando
Uma parte de mim se desfaz, outra se despedaça, e os pedaços vão caindo sobre a cidade...
fim
355
Aqui transcrevo algumas laudas do diretor André Amaro sobre nosso processo
criativo. O presente texto integra o livro Teatro Caleidoscópio – o teatro por-fazer (2007),
que o artista escreveu com orientação parcial de Eugênio Barba, durante encontros da ISTA
(International School of Theatre Anthropology) e que trata de sua investigação da metáfora do
caleidoscópio para o corpo e a cena. Outras informações sobre o trabalho de André Amaro
podem ser obtidas no site www.caleidoscopio.com.br. Segue seu texto, sobre nosso trabalho
conjunto:
Ainda em 2005, a atriz Alice Stefânia – que ajudara a fundar a Companhia Piramundo, nos
idos dos anos 90 - propôs-me a direção de um trabalho no qual aplicaríamos princípios do
universo taoísta como estímulos à criatividade e à expressividade, objeto de sua pesquisa de
Doutorado na Universidade Federal da Bahia. A experimentação passaria inicialmente pela
prática do chi kung – técnica milenar chinesa que visa o cultivo interior da energia – aplicada
como meio de treinamento da concentração e da consciência energética do corpo. Em seguida,
passaríamos a explorar a construção de diferentes dinâmicas corporais a partir da idéia de
relatividade yin yang. Tínhamos, como referência, uma tabela de idéias opostas e
complementares que compõem o vasto e milenar imaginário chinês: o frio e o quente, o
profundo e o superficial, a contração e a expansão, a secura e a umidade, o denso e o sutil, o
armazenar e o transportar, o medo e a raiva, entre tantas outras imagens de contrastes
aparentes. ‘Ainda que tudo possa ser compreendido a partir da noção de um duplo, as
proporções entre as partes não são estáveis, nem equivalentes. Tratam-se de variáveis que
oscilam no tempo e no espaço, prenhes do ritmo, da pulsação inerente ao universo e suas
manifestações’, observa a atriz em sua pesquisa. A Teoria wu hsing relacionada às cinco
energias ou estados de movimento – terra, fogo, água, metal e madeira – associadas, por sua
vez, a um largo repertório de atributos, imagens, símbolos, sabores, emoções, cores, zonas
corporais, formas de expressão, seriam agregados ao processo criativo como meios auxiliares
na construção de parâmetros físicos e dos estados emocionais/afetivos/sensoriais
correspondentes.
Além destas ‘fontes de alto poder sugestivo’ utilizadas na exploração do potencial
psicofísico do ator e na construção de sua expressividade, contaríamos ainda com um outro
componente para a concepção do trabalho: trechos do livro Noturnos (contos, 1999) e curtas
passagens da novela Clarice (1996), ambos escritos pela poeta e romancista cearense Ana
Miranda. Em Noturnos, principal obra consultada, uma mulher se vê às voltas com o mundo
que a rodeia; no alto de um edifício, confinada em seu apartamento, ela repassa
silenciosamente o testemunho solitário da sua vida. Alice fez a primeira extração de textos. O
material seria usado na composição dramatúrgica da peça. Selava-se assim o nosso desafio:
contar a história daquela mulher desenhada poeticamente por Ana Miranda, agora segundo
uma dramaturgia e uma poética cênica, utilizando movimentos e expressões criados sob a
inspiração da simbologia taoísta.
O próximo passo foi explorar aquelas dinâmicas, não mais como isoladas
representações físicas de conceitos, sensações e imagens extraídas do palavrório taoísta, mas
como um conjunto de mecânicas corporais a serviço da ação do personagem. Ou seja: o corpo,
ao se movimentar e se expressar segundo uma determinada matriz, deveria também atuar, agir.
Partimos então para a etapa seguinte: descobrir as ações que enredariam o drama daquela
mulher solitária. Fomos aos textos de Ana Miranda escolhidos por Alice e ali vislumbramos
alguns caminhos, aplicando – sempre que compatíveis - as dinâmicas desenvolvidas. De outra
feita, foram os gestos ou desenhos corporais contidos naquelas matrizes que passaram a
evocar, por associação, outras ações. Exemplo: o corpo curvado, caminhando nas pontas dos
pés, os braços esticados e as mãos apontadas para o chão, numa dinâmica inspirada na idéia de
‘profundo’, converteu-se na postura – ou partitura física - do personagem ao perseguir o seu
gato de estimação. O movimento de levantar os ombros construído a partir da palavra ‘frio’
remetia tanto à reação de susto provocada pelo toque de um telefone quanto à reação à água
fria de uma ducha sobre o corpo.
Depois de boa parte da peça desenhada, algumas matrizes – sem vínculo inicial com o
universo taoísta – foram ainda utilizadas por Alice como uma espécie de sub-partitura, de sub-
texto para ‘preencher’ algumas ações, a exemplo da cena em que a personagem recorda os
filhos (idéias de vazio e cheio) e da cena em que ela se observa no espelho (inibição e
excitação). Estas matrizes serviram, ao mesmo tempo, de ‘tonificadores’ da corporeidade da
ação criada, como na cena em que estira e recolhe seu corpo ao despertar pela manhã
(contração e expansão); na cena em que um fio preso ao sapato retém seus passos (leve e
pesado); quando fala com os vizinhos pela janela (interior e exterior) ou quando utiliza o olhar
para relacionar-se com a poeira da casa (recepção e penetração).
Diferente de uma adaptação, esse processo de ‘transcriação’ - como define Alice – põe
à prova a capacidade poética da dramaturgia e da encenação. Criamos para o espaço cênico
um território simbólico, opção para romper o realismo e elevar a encenação a uma poética
igualmente delicada, minimalista, cheia de sutilezas. Fios elásticos – remissão aos fios de um
ambiente doméstico: o fio do telefone, a linha de costura, o varal de roupas ou mesmo o ‘rabo
cada vez mais longo e denso’ do passado - cruzavam o palco e depois se entrelaçavam para
compor a teia noturna onde a protagonista, embalada pelo ranger dos alicerces do edifício,
envergava seu sono. Serviram, ainda, para compor as asas de um planador com as quais, já no
final da peça, ela se arremessava do alto do edifício, num vôo libertador sobre a cidade.
Objetos foram inseridos no espaço como auxílio à interpretação, numa construção sucessiva
de imagens e significados, gerando uma dinâmica visual de familiaridade caleidoscópica. O
tratamento plástico do cenário, figurino e objetos cênicos coube à sensibilidade da artista
plástica Malu Fragoso, que usou o verde e o vermelho – complementares no círculo das cores
– numa apropriação igualmente criativa dos princípios opostos do yin yang. A encenação
ganhou ainda mais vivacidade com o acompanhamento sonoro, percussivo, talismânico de
Lupa Marques (do Grupo ‘Casa de Farinha’).
Chovia, pensei que não haveria público, mas quase não encontro ingresso,
bom sinal, Teatro Caleidoscópio, pequeno, lotado, aconchegante. Chamou-me
atenção o cartaz, o vermelho e o preto, pé de galinha? Linhas... Traços... Ou
Quando os Alicerces Vergam, vamos ver: adaptação de obra literária...
Monólogo... Mulher de meia idade, solitária, delirando...
A atriz, Alice Stefânia, pouco a pouco desenha com o corpo e na relação com
os objetos ações dramáticas que afastam qualquer lembrança de tantos outros
monólogos e adaptações que tenho visto. Alice constrói, contraditoriamente,
com o fio condutor, um labirinto onde, enquanto a personagem se perde, o
espectador vai se encontrando no caminho traçado com rigor e simplicidade,
marca já conhecida, do diretor, também ator, André Amaro, provando que por
mais que se espere o teatro ainda pode surpreender, teatro que se faz a muitas
mãos, mas que é arte do ator e Alice o exerce com completo domínio; de
corpo, voz e ainda cantando bem, muito bem. Cenário e figurino não seguem
o cotidiano formal nem exageram no ‘teatral’; antes, parecem ser objetos de
arte - modelos desenhados, a propósito, pela artista plástica Malu Fragoso -
que compõem com o corpo da atriz e o espaço cênico um belo quadro, um
apartamento, um quadrado. Da janela, uma luz, almas vivas, vizinhos que não
vemos, nem ouvimos, mas sabemos; estão lá. O diretor também está lá,
mantendo a tensão necessária com o espectador, sem perdê-lo e sem envolvê-
lo demasiadamente em uma história que ele veio apenas ‘assistir’.