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ALICE STEFÂNIA CURI

POR UMA TAO EXPRESSIVIDADE

PROCESSOS CRIATIVOS EM TRÂNSITO COM MATRIZES TAOÍSTAS.

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Artes Cênicas,
Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para a obtenção do título
de Doutor.

Linha de Pesquisa 2 – Poéticas e


Processos de Encenação

Orientadora: Profª Drª Ciane Fernandes

Salvador

2007
2

Para:

Dan e Carol, filhos muito amados, que, ao lado do teatro, dão sentido a minha vida...
3

AGRADECIMENTOS

A meus pais amados, Henri e Viviane, pelo exemplo, apoio e acolhida. Sempre. Aos meus
queridos irmãos, cunhados, sobrinhos, ao avô Zuza e à querida tia Graça... É bom contar com
a família! À minha avó Ciquinha (in memoriam), pela inspiração para compor a personagem...
Aos meus talentosos e generosos parceiros de criação André Amaro, Lupa Marques e Malu
Fragoso, que acreditaram no projeto e me ajudaram a criar o espetáculo Traços. Ao André um
agradecimento especial, por dividir comigo essa história, em todos os aspectos!
À Professora Drª. Ciane Fernandes, orientadora e inspiradora, pela confiança e pelos toques
certeiros. À sempre mestra, amiga, confidente e comadre Professora Drª. Maria Beatriz de
Medeiros, por ser tudo isso e mais um pouco! Ao Professor Dr. Fernando Villar, pela atenção,
generosidade e dicas preciosas tanto na qualificação, como em outros momentos críticos,
desde a minha graduação. Ao Professor Dr. Fernando Passos cuja colaboração foi precisa,
intensa e gentil em minha qualificação. Ao Professor Dr. Edvaldo Passos, que se dispôs a ler
o trabalho mesmo após a qualificação, e ainda antes da defesa, pelas sugestões e
encorajamento. À professora Drª Antônia Pereira por contribuir com minha pesquisa, tanto
participando de minha banca, quanto me apoiando com a apresentação de Traços em
Salvador, como coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes Cênica - PPGAC.
Ao PPGAC, da Universidade Federal da Bahia, especialmente nas pessoas dos coordenadores
(ou ex) Sérgio Farias, Lia Rodrigues, Antônia Pereira e Sônia Rangel. A cada um de vocês
sou muito grata pelo apoio, acolhida, trocas e por tudo! À Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior – CAPES, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico - CNPq, ao Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. À
Fundação Nacional de Arte - FUNARTE – que me concedeu o Prêmio Myriam Muniz, com o
qual foi possível montar o espetáculo, ao Teatro Castro Alves e ao Teatro Caleidoscópio, a
todas essas instituições pelos apoios imprescindíveis em diferentes momentos da pesquisa.
Aos professores e funcionários do PPGAC/UFBA e do CEN/UnB pelas incontáveis
contribuições. Aos meus alunos da UFBA e da UnB, pela confiança, pela entrega e pelo
retorno. Aos colegas do PPGAC, com quem dialoguei sobre as conjecturas que se proliferam
tese adentro, em especial às colaborações de Paula Vilas, Makários Barbosa, Hector Briones,
Cássia Lopes, Jacyan Castilho, Márcia Virgínia, Fábio Vidal, Érico José, Meran Vargens,
entre outros. Às colegas Mônica Mello e Joyce Aglae, muito obrigada por me confiarem sua
cuidadosa tradução de “Uma canoa a Deriva?”, de Patrice Pavis, antes de sua publicação.
Ao Ernani Franklin, praticante e estudioso de chi kung, e à Viviane Aronowicz, minha mãe,
com quem aprendi tantas coisas sobre as matrizes taoístas que alimentam essa tese. À Suzana
Curi, minha irmã e designer, por suas ótimas idéias gráficas, e pela execução das mesmas.
Aos meus grandes amigos Fabrício Santos, que fez a tradução de Traços para o espanhol, e
Cléria Costa, responsável pela tradução do resumo.
Aos grupos de pesquisa em arte que integrei ao longo da vida, onde muito aprendi sobre arte e
relações humanas: A Tribo Atrito, Corpos Informáticos, As Virgens de Capricórnio, Cia.
Piramundo.
Ao Del, pai de meus filhos, por compartilhar comigo essa experiência. Ao Beto, pela parceria
e cumplicidade nos últimos anos. Ao Fernando, por colorir meus dias nessa reta final.
Aos meus filhos tão amados, pela compreensão e paciência que desde cedo tiveram que ter. E
por me ensinarem tanto, tanto, tanto!
4

O coração é selvagem e tem rasgos por onde entra o mundo de fora... O mundo de fora que
entra dentro do coração selvagem de Clarice é apenas alimento para seu mundo de dentro
mandar pra fora o que ela tem dentro e nesse jogo labiríntico de fora e dentro ela cria sua
fantasia e a traduz em sentimentos que transforma em palavras e escreve com os seus dedos
ardendo numa delicada máquina de escrever.

Ana Miranda, 1999.


5

RESUMO

A conjectura que moveu esta investigação foi a de que certas matrizes taoístas podem
funcionar, em trânsito com a corporeidade do artista, como sugestivas fontes de alimentação
criativa, sendo potencialmente fomentadoras de construções expressivas com vocação
polissêmica. E ainda, que estas matrizes, assim como a arte, podem fornecer princípios
eficazes no processo de regulação corporal-energética – enquanto meios de alcançar estados
de equilíbrio transitório - apoiando a busca de uma conduta ético-estética, como estratégia de
ação micro-política. Para chegar à confirmação dessas proposições foram percorridas duas
etapas de pesquisa prática, interagindo com a investigação teórica. Estas foram cartografadas
e analisadas com instrumentos emprestados da etnometodologia: relatos, questionários,
depoimentos, observação. As matrizes com as quais operamos estão inscritas em práticas e no
imaginário taoísta – treinos de chi kung, figuras ligadas ao I ching, aos emblemas yin yang e
ao wu hsing. Além dessas matrizes, certas noções que animam esse saber – como wu wei, te,
tao e chi – foram escrutadas. Para lidar com essas idéias pouco íntimas ao nosso lugar –
ocidente contemporâneo – buscou-se apoio especialmente em construtos da epistemologia
pós-estruturalista, e em alguns baluartes do teatro. O diálogo com essa fonte exigiu premissas
responsáveis no tratamento com esse outro. Para evitar os lugares etnocêntricos de
deslumbramento, de mistificação, de exotização ou de intolerância, por exemplo, a lida com
essas matrizes foi descortinada a partir de minha própria condição - mulher ocidental
contemporânea - nem detentora, nem transmissora dessa tradição. Na fronteira entre minha
leitura desse recorte de saberes e fazeres, de meu corpo de atriz-professora-pesquisadora, de
minhas referências cênicas e filosóficas, se instalou um espaço mestiço, singular, propício à
invenção, com vocação para heterogênese. O Anel de Moebius - cujos princípios de
reciprocidade, inter-transformação e interdependência entre faces desta configuração pareada,
se articulam a propriedades dos emblemas yin yang - norteou várias reflexões neste estudo.
Dentre elas, a revisão dos modelos dicotômicos ocidentais – hierárquicos e excludentes – pela
compreensão de outro tipo de dinâmica possível entre duplos - da ordem da ambivalência, do
fluxo e do desdobramento, tal qual a que anima os contrastes yin yang. A pesquisa sobre a
expressividade produzida entre o teatro e as matrizes taoístas, se deu sob diferentes vieses,
tanto em âmbito prático, quanto teórico, sempre em retro alimentação, como no Anel de
Moebius. Numa etapa prática inicial, foi ministrada, por mim, a disciplina Técnica de corpo
para a cena III, junto à Escola de Teatro da UFBA. Nesta fase a investigação se voltou aos
aspectos pedagógicos de experimentação, por parte dos alunos, da própria expressividade,
sem vínculo com um produto final. Neste momento foram experimentados princípios do chi
kung, do I ching e de dinâmicas yin yang, enquanto instigadores do processo criativo. Na
segunda etapa prática o enfoque se voltou à aplicabilidade, na cena propriamente, do material
expressivo produzido na fronteira entre o tao, o meu corpo de atriz, as contribuições dos
outros artistas envolvidos no processo, e nossa fonte textual – contos de Ana Miranda. Assim
chegamos ao espetáculo Traços ou Quando os alicerces vergam. Ainda nos espaços
intersticiais entre a corporeidade, o teatro, o tao e algumas noções filosóficas, foram desfiadas
reflexões sobre o estatuto do corpo no zeitgeist atual, sobre certas tendências da cena
contemporânea, sobre a noção de expressividade – articulada à de impressividade – e sobre a
idéia de uma eficácia do vazio – ou do vazio como re-curso.

PALAVRAS-CHAVE: matrizes taoístas, expressividade, corpo, entre, vazio, cena, Anel de


Moebius, heterogênese, articulação ético-estética, micro-política.
6

ABSTRACT

The context from which this investigation arose was that some Taoist matrixes can work,
transient with the artist’s corporality, as suggestive sources of creative feeding become
potentially fostering of expressive constructions with polysemous vocation. Thus, these
matrixes, as art itself, can supply efficacious principles to the process of energetic-corporal
regulation – as means to reach transient states of equilibrium – giving support to the search of
an ethic-aesthetic behavior as strategy of micro-political action. To reach the confirmation of
those propositions, two stages of practical research were explored along with the theoretic
investigation. Those were cartographed and analyzed as instruments borrowed from ethno
methodology: reports, questionnaires, declarations, observation. The matrixes with which we
operated are inscribed in practices of the Taoist imaginary – practices of chi kung, figures
linked to I ching, to the emblems yin yang and to wu hsing. Besides these matrixes, certain
notions that animate this knowledge such as wu wei, te, tao and chi were scrutinized. To deal
with these ideas – not intimate to our western origin – we searched for support especially in
constructs of the post-structuralism epistemology and in some bastions of the theater. The
dialogue with this source asked for premises responsible for dealing with the other. To avoid
the ethnocentric astonishing places of mystification, turning exotic or of intoleranble, for
example, the struggle with the matrixes was disclosed from my own condition – western
contemporary woman who is neither owner nor transmitter of this tradition. On the boundary
between my reading of this interposal of knowledge and action, of my actress-professor-
researcher body, of my scenic and philosophical references, a mixed, singular space was
installed, proper to invention and with vocation to heterogeneity. The image of
Moebius’ring- whose principles of reciprocity, inter-transformation and inter-dependency
between faces of this paired configuration – articulates the proprieties of the emblems yin
yang and directed various reflections on this study. Amongst them, the revision of the
dichotomist western models – hierarchical and excluding – was exchanged by the
comprehension of other type of dynamics than the couples: the order of ambivalence, the flux
of refolding such as those which animates the contrasts yin yang. The research about the
expression produced between theater and the Taoist matrixes happened askance in a practical
way, on one hand, and in a theoretic, on the other, always in retro feeding, as in Moebius’
ring. In the beginning stage, I taught the discipline “Technique of the body for Scene III” at
the School of Drama in the Federal University of Bahia (UFBA). During this stage, the
students turned the investigation to the pedagogical aspects of the experimentation of their
own expressiveness, with no aims at the final product. During this stage, principles of chi
kung, I ching and dynamics of yin yang were experimented as instigators of the creative
process. At the second stage, the focus turned to its applicability to the scene itself: the
expressive material produced at the boundary between the Tao, my body as actress, the
contribution of other actors involved in the process and our text source: short stories by Ana
Miranda. Finally, we came to the play “Traces or When the foundations rocked” (Traços ou
Quando os alicerces vergam) . Still in the interstitial spaces between corporeity, theater, Tao
and some philosophical notions, some reflections about the statute of the body in current
zeitgeist were made: tendencies of contemporary scene, notion of expressiveness – articulated
to impressiveness – and about the idea of an efficiency of emptiness – or emptiness as a re-
source.

KEY-WORDS: Taoist matrixes, expressiveness, body, between, emptiness, scene, Moebius’


ring, heterogeneous, ethic-aesthetic articulation, micro-politics.
7

SUMÁRIO

9
LISTA DE FIGURAS

10
INTRODUÇÃO

36
1. MATRIZES TAOÍSTAS
36
1.1. Atualizando noções taoístas
43
1.2. Conhecendo as matrizes
47
1.2.a. Yin yang
56
1.2.b. I ching
61
1.2.c. Wu hsing
66
1.2.d. Chi kung.

77
2. MATRIZES CÊNICAS
79
2.1. Tendências afins
93
2.2. Antonin Artaud
100
2.3. Eugênio Barba

114
3. CORPO: MAPA E CARTÓGRAFO
115
3.1. Do dilema ao diálogo
121
3.2. Por um novo estatuto do corpo
126
3.3. Corpo vibrátil. Corpo sutil

129
4. O CORPO EM EXERCÍCIO EXPRESSIVO
129
4.1. Estratégias de conduta
135
4.2. Exercício impresssivo-expressivo

142
5. O VAZIO EM RE-CURSO
143
5.1. Idéias do (v)entre
148
5.2. Re-curso vazio

158
8

6. PROCESSOS CRIATIVOS 160


6.1. Técnica de corpo para cena III 161
6.1.a. Fase um 165
6.1.b. Fase dois 168
6.1.c. Fase três 171
6.1.d. Fase quatro 172
6.1.e. Fase cinco 174
6.1.f. Sobre o chi kung 183
6.2. Traços ou Quando os alicerces vergam 183
6.2.a. O processo 192
6.2.b. Sinopse descritiva 200
6.2.c. A cena 211
6.3. Desdobramentos ulteriores 216
6.4. Fotos
231
ASPECTOS CONCLUSIVOS
241
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANEXOS: 255
A. Sobre a disciplina 255
A.1. Diário de aulas 287
A.2. Criação textual 302
A.3. Questionários 313
B. Sobre o espetáculo 313
B.1. Ficha técnica 313
B.2. Diário de bordo 324
B.3. Dramaturgia 350
B.4. Traços por André Amaro
B.5. DVD com filmagem de Traços ou Quando os alicerces vergam
9

LISTA DE IMAGENS

1. Anel de Moebius 18, 50, 130


2. Diagrama Corpo Sutil 42
3. Tai chi - símbolo yin yang 49
4. Relação de aspectos yin yang 51 – 53
5. Símbolo bagua 57
6. Trigrama Chi’en 58, 265
7. Trigrama K’un 58, 267
8. Trigrama Chên 58, 269
9. Trigrama Kan 59, 271
10. Trigrama Kên 59, 273
11. Trigrama Sun 59, 275
12. Trigrama Li 60, 277
13. Trigrama Tui 60, 279
14. Wu hsing 63
15. Mapa corporal de meridianos 67
16. Meridiano VC – vaso da concepção 67
17. Meridiano VG – vaso do governo 68
18. Centros de energia do corpo 71
19. Anel de Moebius – poiesismimesis 87
20. Anel de Moebius – práticateoria 113
21. Anel de Moebius – femininomasculino 120
22. Anel de Moebius – sabedoriafilosofia 124
23. Anel de Moebius – éticaestética 131
24. Anel de Moebius – impressividadexpressividade 139, 148
25. Anel de Moebius – vaziocriação 153
26. Anel de Moebius – trágicocômico 209
231
27. Anel de Moebius – finsprincípios
10

INTRODUÇÃO

A evolução e disseminação de meios de transporte e comunicação - entre outros


aspectos - intensificaram, ao longo do século XX, o diálogo entre oriente e ocidente, trazendo
repercussões em diferentes áreas. Além de transformações sócio-econômicas e geopolíticas,
campos de conhecimento - como as artes, a ciência e a filosofia - vêm sendo mais
rapidamente redimensionados a partir de trocas inter-culturais. Este quadro demonstra, por
um lado, intenso potencial inventivo e de novas configurações – sejam científicas, artísticas,
culturais, etc, - mas, por outro lado, gera também importantes prejuízos sociais, econômicos e
culturais, em especial por parte de alguns países orientais. Estes aspectos – que vêm sendo
problematizados através de diferentes estudos – se relacionam, em grande parte, a atitudes
pautadas por um olhar etnocêntrico do ocidente – mais propriamente um ocidente primeiro-
mundista, americano e europeu - sobre o outro. Expropriação, cooptação, invasão, exclusão,
incompreensão, intolerância, exotização, dominação, colonização, vampirização entre outros
equívocos e violações, são aspectos de ações abusivas, especialmente por parte de um
ocidente unido em prol do capital e do imperialismo.

Esta pesquisa parece tangenciar, então, uma zona complexa, já que ações fronteiriças
são por um lado potentes, com vocação inventiva, e por outro, perigosas, podendo apresentar
tendências invasivas e violadoras. Assim, afirmamos não almejar nem o lugar de
colonizadora, nem o de colonizada, mas sim o topos da reinvenção, que deseja ultrapassar
essa dicotomia. O objetivo desse estudo foi o de instalar espaços de diálogo criativo entre o
corpo, a cena e princípios capturados no universo taoísta, de origem chinesa. Nossa
proposição é a de que essa fonte – em nosso recorte algumas matrizes ligadas à sabedoria
11

taoísta – apresenta instigantes princípios, com os quais nos interessou interagir em pelo menos
três níveis.

O primeiro disse respeito ao aspecto teórico1, ou conceitual2 da tradição. Vários


construtos ligados ao saber taoísta soaram de extrema atualidade, e nos provocaram a um
diálogo conceitual com noções ligadas à epistemologia contemporânea. O segundo nível de
apropriação dessa fonte referiu-se ao uso de estratégias de regulação energética buscadas
nessa mesma fonte: aqui nos referimos mais especificamente a alguns treinos de chi kung,
prática sobre a qual trataremos oportunamente. Esse recurso foi trazido tanto como meio de
favorecer o processo criativo, quanto como fomentador de uma conduta corporal com viés
micro-político, a qual não se restringe ao âmbito artístico. O terceiro nível de interação, e
talvez o mais efetivo enquanto objeto de estudo, foi a aplicação de elementos do imaginário
taoísta sugestionando e incrementando processos corporais que visaram o exercício da
expressividade. Nesse nível houve uma fase de exploração em âmbito pedagógico, e outra na
construção de um espetáculo propriamente. Tramou-se assim uma articulação ético-estética de
trabalho, no espaço intersticial entre o teatro, alguns conceitos ligados à filosofia
contemporânea, a minha condição de mulher contemporânea ocidental, e princípios de
matrizes taoístas, estes de origem oriental.

Mas afinal o que é ocidente e oriente? Terá coerência colocar sob a mesma égide, por
um lado a América do Sul, os Estados Unidos, parte da África e da Europa, e por outro a
China, o Japão, a Índia, Israel, o Iraque e a Síria, por exemplo? Ainda que o presente estudo
trilhe por outras vias, cumpre dizer que o que é usualmente designado oriente não é,
absolutamente, um bloco coeso, assim como também não o é o ocidente. A generalidade dessa
terminologia parece ser fruto de um misto de ignorância e interesses econômicos, e gera uma
série de problemas.

Noção que ususalmente designa um conjuto histórico e cultural que seria composto
pelas sociedade não ocidentais, ou alheias a uma herança eurocêntrica – e hoje também
estadunidense - o termo “orientalismo” representa, sem distinções, um vasto e diversificado

1
Veremos adiante que, dentro da sabedoria taoísta, prática e teoria estão articuladas dinamicamente, tornando até
questionável o uso dessa terminologia. Entretanto apenas para fins de esclarecimento usei o termo teórico aqui,
se referindo ao conjunto de idéias e noções da tradição. Estas, ainda que totalmente em interação com os outros
âmbitos desse saber, constituem um campo com princípios específicos, assim como o campo do imaginário –
mítico ou simbólico -, ou mesmo o campo das práticas propriamente – procedimentos como massagens, treinos,
meditações, etc.
2
Lembrando que, aqui, o conceito tem vínculo com o real concreto, não se restringe à pura abstração.
12

grupo de civilizações. Entretanto, o que poderia parecer inofensivo a um olhar desatento, foi
denunciado pelo palestino Edward Said, entre outros pensadores, em um dos mais
emblemáticos escritos produzidos pelos chamados estudos culturais. Em Orientalismo: o
oriente como invenção do ocidente, ele percebe essa idéia como uma construção ideológica
que contribuiu na deturpação da imagem do oriente como o perigoso, o exótico, o misterioso.
Segundo Said, a noção de orientalismo teria sido forjada por uma demanda imperialista, “para
negociar com o oriente fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele,
descrevendo-o e colonizando-o” (1990).

Para desconstruir essa abstração teórica, Said articula a idéia de que ocidente e oriente
não são reais, factuais, mas convenções geográficas, culturais e históricas. E que as áreas
alocadas dentro dessas denominações não são uniformes entre si, nem, tampouco,
personificam dois blocos em oposição dicotômica. Said vê em obras de autores como
Homero, Flaubert, Kipling, entre vários outros, descrições fantasiosas que contribuíram para a
idealização de um oriente misterioso e romântico. E analisa como estas idéias, talvez em
princípio ingênuas e inofensivas, alimentaram e foram alimentadas pelo imperialismo e
etnocentrismo ocidental. Em um estudo bastante aprofundado, a visão de um oriente exótico é
desconstruída por Said e entendida como forjada por um ocidente colonizador que precisou
interpretar - ou criar - e extratificar detrminadas diferenças identitárias que garantissem seus
interesses políticos e econômicos, em última instância.

Segundo a professora Ligia Osório Silva3:

Ao desvendar a construção do Oriente como uma entidade abstrata, Said destaca o caráter
totalitário e essencialista desta construção. E de modo algum pretende construir um outro
conceito de Oriente (nem muito menos um outro Ocidente), em substituição. Sua intenção é se
insurgir contra esta forma de pensamento totalitário, que toma conjuntos humanos distintos,
complexos, heterogêneos, formados por países, povos, e nações históricas individualizadas e
procura lidar com eles na forma de uma totalidade homogênea. Para Said, não existe uma
essência do Oriente assim como, também, não existe uma essência do Ocidente. Estas
construções serviram para mascarar uma relação desigual que marcou historicamente o
relacionamento entre alguns países da Europa “adiantada” com países da periferia do
capitalismo (2003).

Ainda segundo Silva, o orientalismo é um modo de olhar o oriente que ajudou a


subordiná-lo e que deu ao ocidente o poder de ditar o que era significativo sobre o outro, e a
classificá-lo junto com outros de sua espécie e colocando-o “no seu lugar” (2003).
3
Palavras proferidas pela professora do Instituto de Economia e Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, na
Homenagem a Edward Said, em cerimônia realizada no auditório do Clube Homs em 11/12/2003 em São Paulo.
13

Como situações limítrofes da dicotomia ocidente-oriente - ou de dicotomias similares


como império-colônia, comunismo-capitalismo, primeiro e terceiro-mundo, etc. - há inúmeros
exemplos entre as guerras históricas e as bases econômicas das relações internacionais de
exploração. A necessidade ideológica de consolidar e justificar uma supremacia e uma
dominação em termos culturais, característica de um imperialismo que está longe de ter
acabado, continua a alimentar modelos de pensamento que colocam o oriental no lugar do
subalterno. Por outro lado, tal modelo tenta legitimar as necessidades do ocidental como
prioritárias - mesmo que se trate de uma minoria populacional, o que lhe garantiria, por
exemplo, o direito a controlar e usufruir da maioria dos recursos naturais do globo. No
entendimento de Said, o que tal processo mascara, ou nem tanto, é a imposição da distinção
entre supostas superioridade ocidental e inferioridade oriental.

Entretanto, talvez possamos dizer que algumas diferenças culturais em relação ao dito
ocidente, ligadas em geral a tradições milenares em grande parte ainda presentes, influentes, e
atualizadas ao longo dos séculos, oferecem algum parentesco de fundo entre os países ditos
orientais. Mesmo na maior parte das Américas, por exemplo, são mais parcos os indícios das
tradições ancestrais, ou a presença deles no cotidiano das pessoas. Esse viés talvez possa
ajudar a entender o fascínio e ao mesmo tempo o repúdio e a intolerância que o oriente
desperta.

Como vimos, pensar e trabalhar o encontro com o outro oriental como algo que aponte
para uma uniformização entre as culturas é o vetor que tem sido responsável por grande parte
das mazelas no mundo. Particularmente, o viés que nos mobiliza é aquele que percebe esses
encontros entre diferenças como propulsores de novas e singulares configurações ético-
estéticas. Investigações artísticas e filosóficas nessas fronteiras transculturais podem ser uma
forma de migrarmos de perspectivas dicotômicas, como esta oriente-ocidente, dentre outros
tantos dualismos excludentes, para novos agenciamentos, heterogêneses, ambivalência em
contínuo movimento. Como salienta o indiano Homi Bhabha, seria no entre – lugar intervalar
– “onde a diferença não é nem o Um, nem o Outro” (2005:301), que se descortinaria um
futuro intersticial, emergente no entre-meio entre as exigências do passado – que não é
originário – e as necessidades do presente – que não é simplesmente transitório: um futuro
que se torna uma “questão aberta, em vez de ser especificado pela fixidez do passado”
(2005:301).
14

Munida dessa perspectiva é que me movo nessa pesquisa. Dentre as variadas e


instigantes tradições ancestrais que povoam o mundo, elegi a cultura chinesa, como a
fornecedora dos princípios que orienta(liza)ram essa pesquisa, mais propriamente, aspectos
ligados à corrente taoísta. Essa escolha se fundou em um interesse antigo, intermitente, mas
intenso, sobre práticas e pensamentos ligados ao tao, e em esporádicas investigações
artísticas, anteriores às abordadas nessa pesquisa, onde eu já dialogava com esse universo.
Matrizes dessa milenar sabedoria, em diálogo com processos criativos, produziram encontros
expressivos, sobre os quais nos debruçaremos nesse estudo.

Uma das civilizações mais antigas do mundo, a China, ou a República Popular da


China4 se autodenomina, hoje, um estado socialista com sistema econômico de socialismo de
mercado. Trata-se de uma economia de mercado onde a iniciativa do Estado se sobrepõe à
iniciativa privada. Esse peculiar sistema econômico, às vezes confundido com o capitalismo
propriamente, tem sido apontado como uma das principais causas do acelerado crescimento
da economia chinesa nas últimas décadas. Além de mão-de-obra barata e abundante, o país
investe pesadamente em tecnologia, e possui um dos maiores e mais fortes parques industriais
do mundo. Sua produção diversificada vai muito além das bugigangas made in China
exportadas para todo o mundo.

A China é o terceiro maior país do mundo em território e o mais populoso,


concentrando cerca de um quinto da população do planeta. Nos últimos anos vêm ganhando
importante destaque na economia mundial com uma das maiores taxas de crescimento ao ano,
cerca de nove por cento. Esse quadro torna o país, hoje, uma referência de potência emergente
do mapa geopolítico e econômico mundial5. Ao mesmo tempo, o crescimento acelerado da
China tem gerado algumas conseqüências sociais e ambientais importantes. O país já é o
segundo maior emissor de gás carbônico do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, e por
isso vem enfrentando forte pressão de organismos internacionais no sentido de reduzir a
poluição.

4
A República Popular da China foi fundada em 1 de Outubro de 1949 por Mao Tsé-Tung. Para informações
genéricas sobre o maoísmo, a revolução chinesa, a revolução cultural e outros aspectos históricos da China no
século XX recomendamos consulta aos seguintes sites. Neles, além de textos, há indicação bibliográfica
adequada para aprofundamento no assunto:
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/china_11.htm http://pt.wikipedia.org/wiki/Rep
%C3%BAblica_Popular_da_China#Cultura.
http://www.terra.com.br/cgi-bin/index_frame/vizentini/artigos/artigo_11.htm.
5
Aqui estamos nos referindo à história recente do planeta, desconsiderando outros momentos históricos de
apogeu da região e de seus povos.
15

Na área social, entre outros aspectos, há um aumento de fluxo migratório do campo


para as cidades, o que está aumentando a população urbana, especialmente a mais pobre, e
intensificando o contraste entre as classes. Outro aspecto relevante do quadro social chinês
tem relação com a limitação do número de filhos por casal, determinada pelo governo,
atrelada à preferência por crianças do sexo masculino. Essa combinação de fatores provocou,
nas últimas décadas um enorme índice de abortos de fetos do sexo feminino. Hoje, a China
possui um número bastante superior de homens solteiros, em relação à quantidade de moças
na mesma idade. O extermínio em massa dessas ex-futuras mulheres pode nos dizer bastante
sobre o lugar do feminino nesse país, assim como a tradição de mutilação ou deformação dos
pés das meninas chinesas, processo torturante que vigorou por séculos, em nome de um
fetiche masculino.

Ainda que nosso objeto de pesquisa não passe por analisar a cultura ou o regime
político chinês e suas consequências sociais e econômicas, e nem por propôr uma análise
histórica sobre o país, entendemos que seja importante destacar esses pontos de tensão.
Inclusive para que não se pense que o presente estudo configura uma apologia acrítica e
indiscriminada sobre o conjunto de saberes e fazeres daquele país. Temos ciência das
inúmeras e importantes contradições vividas na China hoje, e historicamente. Aliás, não só na
China, mas em inúmeros países do chamado oriente. Não se trata de imaginar que há pura e
simplesmente uma relação extratificada e dicotômica entre os opressores ocidentais e os
oprimidos orientais. Com Brecht, sabemos que essas relações são sempre complexas,
dialéticas e históricas. Também com Brecht, sabemos que não são nem inevitáveis, nem
imutáveis. Assim, não cairemos aqui no idealismo oriental ingênuo e apenas aparentemente
apolítico denunciado por Said.

Entretanto, em que pesem todos os aspectos expostos, encontramos na sabedoria


chinesa, princípios com os quais nos afinamos, com os quais dialogamos, por desejarmos com
eles operar. Assim, como já dito, nosso propósito foi o de debruçarmo-nos sobre aspectos do
taoísmo, uma das mais influentes tradições milenares chinesas, buscando estabelecer um
diálogo entre esta sabedoria, abordagens filosóficas contemporâneas, a arte do ator, e algumas
tendências da cena teatral atual.

O taoísmo é uma tradição de cunho filosófico e religioso, que exerce forte influência
não somente na China, mas em todo extremo oriente e, cada vez mais, em outras regiões.
Trata-se de uma tradição trimilenar com ressonâncias em várias áreas - médica, política,
16

religiosa, social e cultural, o que já aponta para sua versatilidade, abrangência e consistência.
Nosso propósito não foi um mergulho dogmático no taoísmo ortodoxo. Tomamos
emprestados da sabedoria taoísta algumas práticas e aspectos de seu universo simbólico, como
propulsores dos trabalhos criativos desenvolvidos.

O encontro com essa matéria requereu um recorte. Por um lado trouxemos o estudo de
algumas noções da sabedoria chinesa ancestral, e as relacionamos a conceitos e idéias da
filosofia contemporânea. Por outro, aplicamos princípios norteadores desse universo taoísta a
processos criativos em teatro. Os princípios utilizados na pesquisa cênica foram as dinâmicas
entre os contrastes yin yang, a relação das cinco energias em wu hsing, os aspectos
arquetípicos dos trigramas do I ching e algumas práticas meditativas do chi kung.
Manifestações espetaculares ou movimentos artísticos da China não serão contemplados nessa
investigação. Nosso foco, aqui, não são técnicas corporais específicas, como as da Ópera de
Pequim ou das Danças Populares Chinesas, mas matrizes do sistema de pensamento chinês e
seus encontros, contrastes, tensões e fusões com processos criativos para a cena.

Uma das maiores dificuldades na pesquisa que envolve a cultura chinesa refere-se ao
problema da tradução deste idioma. Por um lado os ideogramas são muito mais complexos em
sentidos do que pode mostrar um único vocábulo, por mais amplo que seja seu significado. A
necessidade de escolha de uma das múltiplas possibilidades de significação de um ideograma
- sempre relativa ao contexto em que é usado - no gesto de traduzir, reduz de forma
importante seu alcance. Para se ter uma idéia da natureza da escrita chinesa, basta dizer que a
leitura de um texto em ideogramas chineses é algo que exige criatividade e atividade intensa
por parte dos leitores, que precisam de certa forma fazer escolhas, perceber os significados
mais latentes de cada ideograma dentro de cada bloco de idéias, para lhes darem voz.

Além disso, a própria construção da sabedoria taoísta se deu por símbolos que
agenciam sentidos entre o imaginário e o filosófico, entre o mítico e o científico, entre o saber
e a práxis, entre a idéia e a conduta. A natureza da elaboração intelectual ocidental
predominante muitas vezes não dá conta desse tipo de articulação, seja por uma questão
estrutural de nossa filosofia - derivada da metafísica ocidental, hierarquizante e excludente -
seja por nosso olhar etnocêntrico, com tendência prepotente, exotizante e universalizante.
Buscando minimizar esses problemas, optamos por manter em chinês, em diversas passagens,
os termos mais importantes para essa pesquisa, e tratar de dar-lhes a maior pluralidade
17

cabível, trazendo significações pesquisadas em diversas referências e, principalmente,


manejando-os enquanto constelações de sentidos.

O taoísmo é uma abordagem de dupla articulação, religiosa - tao-chiao - e filosófica -


tao-chia, cuja influência sobre a cultura chinesa se faz sentir fortemente até hoje. Aspectos
ligados ao tao-chia, ou taoísmo filosófico, serão abordados em nossa pesquisa. Diferentes
traduções e abordagens bordejam interpretações para o tao: caminho, sentido, via, princípio
ordenador, conduta, o existente e o inexistente, o ritmo da vida, etc. Para Allan Watts o tao é
o curso da natureza, do universo, o fluxo, e a água seria sua melhor metáfora (1975:81).
Ressalte-se que o tao não deve ser pensado como o Deus cristão do ocidente. Em que pese ter
um tom sagrado especialmente no taoísmo religioso, essa idéia não encontra ressonância na
perspectiva hierárquica de Deus, como é concebida na maior parte das religiões monoteístas.
Também não tem o sentido de um governante, líder, criador ou monarca externo à natureza
(Watts, 1975:70). Aliás, segundo Watts, o imaginário associado ao tao é mais
predominantemente maternal, e não paternal (1975:71), e a relação que se estabelece com ele
é menos vertical que horizontal, ou multidimensional.

Entre as muitas tradições surgidas ao longo de séculos de civilização chinesa, o


confucionismo é, ao lado do taoísmo, uma das mais influentes, principalmente no campo
social, político e pedagógico. Ambas as linhas de pensamento são complementares e têm
pontos em comum, como a idéia de tao que ressoa na noção de li no confucionismo, espécie
ordem subjacente ao mundo, a qual não pode ser entendida nem como deus nem como lei,
mas como um princípio regulador e unificador. Essa unificação atribuída ao tao ou a li, ainda
que possa sugerir centralização ou convergência, mostra-se menos como homogeneizante que
como uma negociação contínua, conciliatória sim, mas inclusiva. Veremos adiante que no
ambivalente pensamento taoísta a idéia de uno não se opõe à noção de multiplicidade.

Nesse ponto pode-se destacar uma das principais tensões com que nosso estudo se
depara: como articular um sistema de molde estruturalista, como o taoísmo, com questões da
filosofia contemporânea pós-estruturalista? Como agenciar noções a princípio tão díspares
como unidade (ou dualidades) e multiplicidade, centro e descentramento, equilíbrio e
instabilidade, ancestralidade e desconstrução, etc.? Nesse ponto cabe remeter à pesquisadora
Ciane Fernandes, que se coloca questão parecida na introdução de seu estudo sobre Pina
Bausch, resultado de sua tese de doutorado (2000). Ela percebe como disturbador - mais que
complementar - o encontro entre o pós-estruturalismo lacaniano e o estruturalismo do sistema
18

Laban de análise de movimento (LMA), mas nem por isso se furta ao confronto. Fernandes
entende que “dentro do Anel de Moebius, LMA e a cadeia significante de Lacan se desafiam e
se redefinem, numa constante busca pela linguagem da dança” (2000:36).

O Anel de Moebius, ou lemniscate, ou ainda a figura oito, nos foi apresentado por
Ciane Fernandes, e orientará nossa perspectiva de análise e de criação.

O anel é criado pela junção de duas extremidades invertidas de uma faixa, cujas faces
passam a ser simultaneamente internas e externas (Fernandes, 2000:34). A dinâmica
implicada nessa figura é de tal ordem que os limites entre os pólos de uma dupla original (fora
e dentro, ou lado A e lado B) se diluem até borrar a própria idéia de dualidade. Assim, a partir
de um par-parâmetro se multiplicam configurações e se descortinam noções como
reversibilidade, transformação, interdependência. Estas são, ainda, similares às propriedades
que descreveremos, oportunamente, das dinâmicas yin yang, uma de nossas matrizes taoístas.

Do ponto de vista cronológico, as primeiras sementes da tradição taoísta são atribuídas


ao I ching – tratado ou livro (ching) das mutações (I) - que pode remontar há até três mil anos.
O conceito de mutações, basilar ao I ching, provavelmente está, entre outras coisas,
relacionado à imagem do camaleão (cujo ideograma arcaico pode ter originado o ideograma
I), remetendo à noção de movimento (agilidade) e mutação (mimetismo) (Wilhelm, 1956: xi).
Essa imagem traz de forma reforçada a idéia da transformação e do fluxo, como princípios
19

organizadores – e desorganizadores e reorganizadores - da vida, idéia marcante no


pensamento chinês. Não há muito consenso em relação às datas, mas as bases que nortearam
grande parte das vertentes chinesas de pensamento parecem advir de uma forte história de
tradição oral a qual remontaria a mais de mil anos antes de Cristo. Nos mais antigos textos
escritos do I ching observam-se referências de cerca de 700 anos a.C.

Mais que um jogo divinatório, essa obra tem sido estudada como um tratado de
situações humanas arquetípicas, a ser consultado por meio de instrumentos como varetas ou
moedas. Além disso, é considerada como uma das mais importantes fontes da genealogia do
pensamento chinês. É no I ching que se observam também as primeiras referências à idéia de
yin yang, inicialmente ligadas a um par de linhas mestras. A yang, representada por um traço
contínuo (_____) e a yin, simbolizada por uma linha cortada (__ __), significavam, na versão
mais remota do jogo, sim e não respectivamente. Posteriormente as respostas foram se
tornando mais complexas, com duas, três, até chegar às seis linhas que formam os hexagramas
como hoje os conhecemos. Cada hexagrama é composto por um par de trigramas, que,
combinados, simbolizam uma determinada situação humana. Os oito trigramas, ou ba gua,
são compostos por um conjunto de símbolos que remetem a um determinado arquétipo, como
será mostrado no capítulo seguinte.

Outra obra à qual estão atribuídas bases do taoísmo é o Tao-te-ching, cuja tradução
mais corrente seria “Tratado do caminho e da virtude”. Trata-se de uma espécie de escritura
sagrada e poética, cujos provérbios vêm inspirando religiões e pensamentos há cerca de 2600
anos. É interessante observar que Lao-Tsé, autor do Tao-te-ching, é praticamente
contemporâneo ao grego Heráclito, cujas proposições têm pontos em comum com o taoísmo.
Heráclito também partilhava da noção de fluxo constante e ciclos de mudança, como motores
do universo e suas manifestações. Assim ele abordou o problema da unidade permanente do
ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. O filósofo
chegou à compreensão de que apreensões duais do mundo não deveriam denotar oposições
estanques, mas revelar a dinâmica não hierárquica entre aspectos de um mesmo fenômeno.
Esta proposição é bastante afim à que explica os emblemas yin yang, a qual também apresenta
as características de inter-transformação, interação, complementaridade.

Entretanto, o rumo da filosofia ocidental foi ditado, com maior freqüência, pelas idéias
derivadas do pensamento de outros gregos, em especial Sócrates e Platão, com a metafísica
ocidental, onde as oposições binárias vinham acompanhadas de um julgamento hierárquico de
20

valor. Isso fixava um pólo do dualismo como a instância a ser superada, e o outro como a
meta. A tradição judaico-cristã e o cartesianismo fortaleceram essa noção e, para usar a
terminologia taoísta, houve, no ocidente, a despeito de algumas investidas esporádicas, uma
notória exaltação de fatores yang em detrimento de aspectos yin.

Este quadro foi (e vem sendo ainda) revisto com maior contundência durante o século
XX, fato que se deve em grande parte a novas descobertas científicas, que têm ajudado a
legitimar esta mudança paradigmática. Albert Einstein, Fritjof Capra, Ilya Prigogine, Antônio
Damásio, Humberto Maturana, Francisco Varela, Richard Dawkins são alguns, entre
inúmeros nomes na área científica, cujas pesquisas vêm colaborando nessa transformação.

Para Jean-François Lyotard (1993:99-110), as ciências pós-modernas evoluem por


instabilidades, e não por mecanismos lineares de desenvolvimento. A procura do contra-
exemplo, do ininteligível em seu processo de pesquisa, força sua legitimação pelo que o autor
chama de paralogia (1993:111-120). Esta seria, segundo o autor, uma lógica do paradoxo, dos
inventores. À paralogia, Lyotard contrapõe a homologia, lógica dos experts (especialistas),
entendida como consensual (homo - igual, o mesmo) e situada na modernidade. É importante
frisar, que os pensamentos que se dão por paralogia, ou seja, que evoluem por paradoxos,
diferem de uma visão dicotômica. Para outro teórico contemporâneo, Georges Didi-
Huberman (1998:77,154), o foco da dicotomia seria a escolha entre duas posições de um
dilema e não a compreensão e aceitação da complexidade, e da existência de verdades
distintas.

Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) descrevem uma forma não logocêntrica de
pensamento e produção de conhecimento. Trata-se de uma lógica não linear, sensível e
cambiante. Eles propõem, como alternativa à lógica convencional - para a qual usam a
metáfora de uma árvore, cuja raiz pivotante indica uma investigação unidirecional, uma lógica
rizomática. Rizomas são organismos vegetais, como a grama, nos quais não se identifica nem
o princípio (origem, raiz) nem o fim (objetivos, copa). “Um rizoma não começa nem conclui
se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (1995:11-37). A imagem
do rizoma, trás a idéia de um encadeamento não rígido de idéias, uma teia de conhecimento
sem finalidades a priori, sem ordem preestabelecida, sem hierarquia, permeada de conexões,
agenciamentos, links, configurações inesperadas, que opera privilegiando o processo e o
percurso cartográficos, e não um produto final.
21

Várias dessas noções podem ter aproximações identificáveis no pensamento chinês. É


bom esclarecer que não nos propomos aqui a defender equivalências absolutas entre as idéias
taoístas e alguns conceitos de vertentes do pensamento contemporâneo ocidental. Tampouco
entendemos um movimento rumo a homogeneização desses saberes como algo que deva ser
buscado. Diferenças existem, podem e devem estar aí. Essa é uma investida no intuito de
dissipar, ou pelo menos minimizar, algumas aparentes incompatibilidades que se apresentam
num primeiro olhar, e que tendem a alimentar ainda mais preconceitos e dicotomias.

O taoísmo traz na perspectiva de wu wei – grosso modo “não ação” ou “agir sem
coagir” - um princípio que contém a noção de devir. A idéia de wu wei é a da espontaneidade,
de deixar-se conduzir pelo ritmo natural da vida, sem forçar os acontecimentos, sem pré-
ocupação, seguindo o fluxo de devires e sem finalidades a priori - só se chega ao tao sem se
tentar chegar ao tao. Esta ênfase no percurso não teleológico, expressa uma das aproximações
da sabedoria chinesa com a noção de rizoma, metáfora de Deleuze e Guattari para uma
perspectiva onde não se identifica, nem privilegia, pontos de partida ou de chegada. A visão
de mundo sistêmica dos chineses tangencia a idéia de rizoma. Em ambas percebemos a
abertura a uma configuração sempre renovada de redes de agenciamentos não hierárquicos.

A forma como se operam os agenciamentos em wu hsing e sua rede de correlações


associadas, por exemplo, têm afinidades com o processo rizomático. Wu hsing é uma visão
sistêmica que parte dos cinco elementos - ou cinco fases, ou ainda cinco movimentos, ou
energias, ressaltando o caráter de transformação ininterrupta que a visão taoísta acentua em
suas abordagens - identificados como terra, metal, água, madeira e fogo. Esta idéia inclui
relações e associações entre estas energias e diversos fenômenos do corpo humano e da
natureza. Como será exposto mais detalhadamente em seção específica ao tema, nesses
processos estão interligados sentidos, órgãos, emoções, temperamentos, sabores, cores,
climas, estações, modos de expressão, etc., formando uma teia que atrela o conhecimento do
corpo humano à experiência e apreensão do mundo que o cerca. Esse sistema norteia
fortemente toda a medicina tradicional chinesa, bem como outros campos de saber na China.

O conceito de mutação - movimento e mimetismo - subjacente ao I ching, e o processo


pelo qual se opera a consulta ao livro remetem às noções de territorialização e
desterritorialização, o que fica mais claro ao se relacionar estes conceitos com os de
atualização e virtualização. Segundo Deleuze (1996:50), o virtual seria um campo ou fluxo de
devires, enquanto a atualização seria o processo de singularização. A atualização, (ou
22

territorialização), selecionaria aspectos do virtual, convertendo-os em atualizações, e a


virtualização (desterritorialização) seria o processo que reconverteria o atual em virtual.

Podemos considerar como campos de devires (virtuais) tanto o próprio Tratado das
Mutações (ainda que, nesse caso, seja um campo finito) quanto a psique do consulente.
Assim, o modo como se opera uma consulta ao I ching pode ser entendida como uma espécie
de territorialização ou atualização. De certo modo esses princípios também podem ser
percebidos na dinâmica entre as cinco fases e os outros elementos constitutivos da rede, já que
cada um dos aspectos ligados à wu hsing podem apresentar conexões entre si, tornando este
jogo combinatório fundante de uma espécie de campo de devires.

Mesmo pontos que aparentemente tornariam forçada essa aproximação entre noções
do taoísmo e do pós-estruturalismo, podem ganhar um novo olhar, como acontece nas noções
de ordem, essência e unidade, por exemplo. A idéia de uma ordem subjacente ao equilíbrio
dinâmico do mundo, na visão taoísta, pode destoar da noção de rizoma, onde não há ordem
preestabelecida, mas um fluxo não hierárquico nem teleológico de agenciamentos, conexões
inesperadas e linhas de fuga. Talvez seja este um falso paradoxo, gerado pela idéia de ordem
que, para o pensamento ocidental, encerra princípios logocêntricos e enrijecidos, enquanto
para os taoístas é uma noção que envolve transformação e desterritorialização ininterruptas,
adequações e atualizações constantes, ou, para usar um termo corrente entre os adeptos do
taoísmo, regulação.

Para Marcel Granet (1997), por exemplo, a noção de ordem do taoísmo não passa
pelas idéias de lei ou de Deus, nem correspondem a regras dogmáticas ou ortodoxas. Essa
ordem é um princípio de características mutáveis, adaptáveis, fluidas, que, ao mesmo tempo
em que regulam, se moldam às situações e fenômenos. Nesse contexto, ao se fixar em uma
única configuração, essa “ordem” perderia totalmente sua eficácia.

Outro aparente paradoxo envolve as noções de descentramento e multiplicidade, que


parecem esbarrar nas idéias de unidade e essência, associadas ao tao. No rizoma a idéia de
multiplicidade é manejada como substantivo, e não como adjetivo. Isso indica que não há um
uno que se subdivide, mas uma multiplicidade sem anterioridade. Ainda que encontremos o
termo unidade em várias passagens do taoísmo, este não remete a uma idéia centralizadora,
fixadora de identidade, e nem, como vimos, à noção, nos moldes ocidentais, de Deus.
23

Quer dizer, o termo unidade não parece se referir a um modelo arborescente onde um
centro, hierarquicamente superior, se ramifica, ou para onde tudo converge. Antes, parece
sustentar a imagem de uma força pulverizada, contaminadora, disseminada, concernente a
toda e qualquer vida. Força esta responsável ainda pela interação que se opera entre os corpos,
gerando constantemente novas configurações, mas caracterizando a formação de um elo entre
esses corpos, o que remonta à idéia de unidade. Em outras palavras, o tao é uno e múltiplo. O
que adere a outra perspectiva deleuziana, a do elogio do e, somatório e inclusivo, substituindo
o ou excludente (1995).

No que toca à questão da essência, para os taoístas esta estaria justamente na qualidade
fluídica e dinâmica do universo, e, até por isso, se manifestaria também no jogo das
aparências que tomam os corpos em transformação, na multiplicidade de faces pela qual o tao
se manifesta, se dá a conhecer. Para a filosofia clássica, de um modo geral, essência nos
remete à constância, à imutabilidade e a algo que subjaze à superfície. O antagonismo
deleuziano se refere a esta noção de essência. Parece então que estas também podem ser
contradições forjadas. Por um lado pelas especificidades das linguagens oriental e ocidental,
incluindo as dificuldades de tradução. Por outro, pela insistência de abordagens dicotômicas
por parte do pensamento ocidental, mesmo aquele que, teoricamente, se opõe vigorosamente a
estas.

Deleuze e Guattari, apesar de terem construído um discurso em que buscavam romper


com dualismos antagônicos, acabaram caindo inúmeras vezes no mesmo dilema, ao
contrapor, por exemplo: rizoma x raiz, memória curta x memória longa, unidade x
multiplicidade, essência x aparência, micro-política x macro-política, molar x molecular,
decalque x mapa, etc. No pensamento taoísta as paridades não são, em si, condenáveis, já que
todos os opostos são princípios inextricáveis no tao. O que difere é que ali o olhar sobre o
duplo não está fixado, nem carregado de hierarquia e exclusão. As metas de reforço ou
atenuação de um dos aspectos de qualquer duplo não estão engessadas, são mutantes e
relativas a cada configuração. Novamente a idéia de ambivalência, como um passo para a
superação da dicotomia, ao invés de puramente negar o dual, e, eventualmente, acabar caindo
nele. Para isso é importante frisar que o que é dual não é necessariamente dicotômico.

Novamente: o esforço destas aproximações, que serão aprofundadas no decorrer da


tese, não é no sentido de uniformizar esses modos de pensar que guardam, e devem guardar,
evidentemente, suas especificidades, singularidades e diferenças. O propósito mais importante
24

é justamente o de não cair na tentação de enquadrar, ou entender o taoísmo somente a partir


de modelos ocidentais, sejam eles arborescentes ou rizomáticos. Até por que uma das grandes
contribuições dessa tradição chinesa, diz respeito a seu caráter mutante, logo incapturável por
moldes estanques. Entretanto, facilita nosso entendimento, de tendência, claro, etnocêntrica,
observar essas qualidades interdependentes de movimento, metamorfose, ambivalência,
multiplicidade, unidade, inclusão, entre outras, com o apoio da epistemologia ocidental
contemporânea. Trata-se também de perceber, na terminologia de Lyotard, as inter-relações
“paralógicas” 6 (1993:111-120) que se estabelecem na dinâmica dessas características.

Segundo Michel Foucault, outro importante pensador contemporâneo, a era moderna


teria sido caracterizada por áreas de conhecimento isoladas, enclausuradas, sem relação entre
si (in Basbaum, 1998). Seriam as áreas das especialidades, dos experts, ou da homologia,
como diria Lyotard. Mas Foucault percebe o movimento em direção a novas relações entre
áreas de conhecimento, ao não enclausuramento, ao foco na fronteira, nas margens entre
campos heterogêneos. Essa perspectiva envolve o olhar e a legitimação do outro - o excluído
do discurso consensual e homogeneizador do mesmo. Para que esse outro - sexo, loucura,
morte, exótico – ganhe espaço e possa contaminar o mesmo - o normativo, o consenso - é
preciso ter disposição para a relação, para a interação com a diferença. Tatear as fronteiras
pode gerar disjunção, confronto, tensão, mas também re-configuração, invenção, inclusão.
Voltamos assim à idéia do rizoma, onde agenciamentos favorecem a dissolução dos limites de
áreas voltadas para si mesmas, configurando um universo de multiplicidade, conexões e
linhas de fuga.

O chamado procedimento transdisciplinar de pesquisa, que vem ganhando espaço no


processo epistemológico contemporâneo, também tem muitos pontos em comum com as
idéias de Foucault, com a noção de rizoma, e com a visão sistêmica, inclusiva e relacional do
pensamento chinês. Basarab Nicolescu7 aponta uma crise cognitiva mundial, gerada pelo que
chama de “big-bang disciplinar” (1999), notadamente fruto de reducionismo na construção
das ciências altamente especializadas no ocidente. O autor menciona o impacto cultural da
revolução cognitiva causada pela física quântica, quando esta coloca em dúvida o dogma da
existência de um único nível de realidade. Segundo Nicolescu, descobriu-se aí que a abstração

6
A paralogia como vimos, seria a lógica do paradoxo, ligada à inventividade e ao dissenso, que Jean-François
Lyotard contrapõe à homologia, segundo ele, a lógica consensual dos experts,ou especialistas.
7
Físico francês, fundador e presidente do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares
(CIRET)
25

não é apenas uma “ferramenta para descrever a realidade, mas uma parte constitutiva da
natureza. [...] parte integrante da realidade” (1999:21).

Dessa forma, uma das características do que se configuraria como


transdisciplinaridade seria o interesse “pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de
Realidade ao mesmo tempo” (1999:16). E ainda, “como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito
aquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além das
disciplinas” (grifo no original. 1999:15). Segundo o autor, a transdisciplinaridade opera pelo
reconhecimento dos vários níveis de realidade, e por uma abordagem holística em relação ao
mundo. Mais que aprofundar-se em conhecimentos específicos, ainda que utilizando
diferentes disciplinas, está em busca de uma compreensão mais integral (o que não dizer
totalitária ou absoluta) do mundo presente e do ser humano. Recorreremos mais uma vez à
noção de rizoma, cuja imagem apresenta afinidade com a idéia de transdisciplinaridade, onde
campos de conhecimento se cruzam, se confrontam, se complementam e se redimensionam.

Observando estas idéias, e outras relacionadas, presentes na Carta de


Transdisciplinaridade, adotada no Primeiro Congresso Mundial da transdisciplinaridade,
Convento de Arrábida, Portugal, 2 a 6 de novembro de 1994, sentimos nossa proposição
afinada a tal perspectiva. Em seus artigos o documento se refere ao que seriam atitudes
transdisciplinares. A seguir estão transcritos trechos que ecoam na proposta da presente
pesquisa:

Artigo 2: O reconhecimento da existência de diferentes níveis de Realidade, regidos por


lógicas diferentes, é inerente à atitude transdisciplinar [...] Artigo 5: A visão transdisciplinar
está resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o domínio das ciências exatas por
seu diálogo e sua reconciliação não somente com as ciências humanas, mas também com a
arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual. [...] Artigo 11: [...] A educação
transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na
transmissão dos conhecimentos (1999:177 – 188).

O conhecimento ocidental vive, já há algum tempo, um processo de identificação de


possíveis pontos de apoio, na sabedoria oriental. No campo científico, as descobertas da física
quântica, a teoria da relatividade e a teoria geral dos sistemas, conforme Fritjof Capra mostrou
(1986 e 1990), apontaram cientificamente, para uma série de questões, que já eram
tacitamente incorporadas à sabedoria taoísta. As leis que regem a realidade subatômica não
devem ser aplicadas displicentemente a outros planos de realidade, já que esses níveis de real
são regidos por leis específicas. Entretanto, remontar a noções da ciência, ou de outros
campos do conhecimento, para usá-los, ainda que metaforicamente, como estímulos para
26

pensar, entender e até construir diferentes níveis de real, pode ser fértil. E aqui vale lembrar
que a visão de mundo sistêmica, a constatação e convivência com paradoxos – ou
ambivalências, tanto na ciência, quanto na filosofia, convive com o modo de pensar chinês há
pelo menos três mil anos.

Vemos com Capra (1986), que no último século, a chamada nova física, constatou
que, no nível subatômico, os elementos são, a um só tempo, destrutíveis e indestrutíveis,
comportam-se ora como ondas e ora como partículas, apresentam, simultaneamente,
materialidade contínua e descontínua, podem estar imprevisivelmente em movimento ou
repouso. Conceitos como tempo e espaço, sempre vistos de forma separada no ocidente,
demandaram uma unificação na física relativística, gerando o espaço-tempo
quadridimensional, que agrega o tempo como a quarta dimensão espacial. E nesse outro plano
de realidade, regido por leis específicas, não é possível lidar com categorias de forma
estanque, faz-se uma névoa que embaça a clara delimitação entre os opostos, inclusive,
segundo Capra, entre que é objeto e o que é processo.

Para Ilya Prigogine, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1977, ser vivo é ser
instável, e só agora a ciência passa a lidar de fato com este dado. Assim, se “a ciência clássica
privilegiava a ordem, a estabilidade, [...] reconhecemos agora o papel primordial das
flutuações e da instabilidade.” (1996:12). Pela constatação de que os sistemas complexos
vivem num estado “longe do equilíbrio”, “assistimos ao surgimento de uma ciência que [...]
nos põe diante da complexidade do mundo real” (1996:14). Certamente nesse longe do
equilíbrio existem “leis” identificáveis, no entanto estas não são estáticas, mas entremeadas
por imprevistos, por eventos que as transcendem e transformam. Esse longe do equilíbrio,
topos de instabilidades de onde brotam paradoxos e dissenso, nos remete claramente à
paralogia de Lyotard (1993).

Em entrevista a Guitta Pessis-Pasternak (1993:35-49), a fala de Prigogine sugere que a


estabilidade, o equilíbrio definitivo, a perfeição, seriam a própria morte, o fim de qualquer
movimento, um estado inanimado. Esse modo de pensar pode ser associado às idéias de fluxo
e mutação, presentes no taoísmo. Para essa tradição, movimento e transformações constantes
caracterizam todas as manifestações do universo. Assim como o rizoma é mapeado por um
número ilimitado de idéias que se cruzam e operam sob uma espécie de estrutura de
hipertexto (1995), Prigogine fala nas “estruturas dissipativas” que proporcionam a ordem por
meio da desordem e produzem a perspectiva de um longe do equilíbrio (1993:38). A busca
27

constante por estados de meta-equilíbrio, por que sabidamente provisórios, faz parte do
pensamento taoísta. A tradição é ancorada em princípios dialéticos, onde ordem e desordem,
por exemplo, estarão sempre vinculadas.

Toda essa reformulação da ciência tem colaborado para a revisão da idéia do oriente e
do(s) conhecimento(s) aí engendrado(s) como algo distante e exótico. György Doczi (1990),
por exemplo, valoriza o oriente e evita reforçar as separações com clichês generalizantes. O
autor defende a idéia segundo a qual a sabedoria, ligada ao oriente, consistiria em juntar,
relacionar, associar, e o conhecimento, característico do ocidente, em separar, fragmentar,
especializar. Doczi não traz a idéia de modo pejorativo, pelo contrário, faz a diferenciação de
modo relacional, identificando e valorizando as diferenças e os pontos em comum, e
entendendo a sabedoria – qualitativa – e o conhecimento – quantitativo – como
complementares, e não excludentes.

Entretanto ainda vemos várias enunciações similares a esta, onde se flagra o fomento
ao dualismo oriente e ocidente, ainda que nem sempre seja essa a intenção do discurso. Esses
discursos, algumas vezes reproduzidos de forma inconsciente, podem trazer conseqüências
políticas negativas. Por exemplo, a recorrente tendência de se referir ao pensamento ocidental
como filosófico, e à gnose chinesa - e outras não eurocêntricas como sabedoria, nem sempre é
tão lisonjeira como parece. Como vimos em Said (1990), um dos principais dogmas do
orientalismo é a absoluta e sistemática diferenciação entre o Ocidente – racional,
desenvolvido, humanitário e superior – e o Oriente – místico, oculto, aberrante,
subdesenvolvido e inferior.

Para alguns sinólogos como Marcel Granet, François Jullien e André Bueno essa
divisão a princípio inofensiva para os chineses, pode camuflar um processo de não
legitimação desse saber. É claro que os meios de construção do saber na China e no ocidente -
leia-se especialmente a tradição filosófica grega e seus desdobramentos - apresentam mesmo
singularidades que os afastam diametralmente, e essa seria uma justificativa para não se
chamar de filosofia a construção intelectual não européia ou daí derivada. Entretanto, o alerta
dos sinólogos é para a escamoteação de um julgamento de valor por trás dessas distinções.
Ou, ainda mais grave, o disfarce em folclorização ou mistificação, gerando a não legitimação
desse saber, como conhecimento de fato. A exotização dessas tradições pode neutralizá-las
politicamente, já que simula um reconhecimento colocando-as, teoricamente, em um lugar de
28

destaque. Esse mecanismo dificulta a identificação do processo de neutralização, e uma


possível reação a este.

É bom registrar ainda que, freqüentemente, apropriações mercantilistas e mistificação


de culturas diferentes, e abordagens por vezes equivocadas de matrizes ou modelos orientais,
têm exposto estas tradições a certa vulgarização - gerando descrédito e demérito por parte de
muitos ocidentais. Por isso não me arvoro aqui a tentar disseminar um modelo oriental puro.
Não nos sentimos aptos, nem instigados a essa tarefa. Nossa perspectiva é de que, a partir de
uma imersão no universo simbólico, filosófico e prático do diálogo proposto, possamos
impulsionar experimentações criativas por vias diferenciadas, a partir de singulares processos
de pesquisa expressiva.

Uma de nossas principais motivações ao buscar matrizes taoístas para fomentar o


processo criativo do ator está ligada à abrangência desse saber, inclusive à sua reverberação
em questões menos consideradas pela tradição filosófica européia. Aspectos ligados à energia,
ou usualmente relacionados a fatores extra-sensoriais e até espirituais, que no pensamento
taoísta transitam com outros de natureza mais cientifica, são de suma importância para o
trabalho do ator. Vários nomes do teatro têm trazido em sua pesquisa aspectos desta natureza,
como Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Eugênio Barba, Joseph Chaikin, Kazuo Ohno, Mark
Olsen – este inclusive revendo os estudos do próprio Constantin Stanislávski a partir de um
viés espiritual - para citar apenas alguns. Entretanto são aspectos que esbarram em
dificuldades gigantescas de verbalização e elaboração teórica. Todo esse arcabouço taoísta
nos forneceu princípios que, em diálogo com outras matrizes, colaboraram na construção de
políticas sutis, que se dão no corpo, por meio de poéticas corporais, e que agem no
fortalecimento das singularidades deste corpo, como estratégias de afirmação desse corpo no
mundo, por um lado, e de mobilização dos corpos em recepção, por outro. Estratégia ético-
estética.

A disciplina e controle a que nossos corpos são sujeitos nesses tempos globalizados
são mais difíceis de identificar. Homogeneização travestida de novos estilos, repressão
vendida como liberdade. Essa dominação sutil, que neutraliza sem violência evidente, através
de cooptação permanente de novos impulsos, desloca nosso potencial inventivo para ações
que interessam à manutenção de um status quo, mascarado de fluídico, de rítmico, de
mutante. A mídia, por exemplo, age sorrateiramente (ou nem tanto) sobre os corpos num
processo de vetorização de desejos, alavancando uma confusão de valores e prioridades que
29

muitas vezes nos distancia radicalmente de outras mobilizações, frequentemente mais


genuínas. Assim, o viés de resistência8 a toda essa cooptação precisa buscar apoio em ações
igualmente sutis. Grandes manifestações, discursos inflamados, embates diretos não tem,
sozinhos, resolvido esse tipo de questão. Em alguns casos até alimentam a continuação desse
estado de coisas.

Entendemos que ações em nível micro-político (Guattari e Rolnik, 1996), até por
serem menos evidentes ou explícitas, podem apresentar grande vocação de disseminação e
fortalecimento gradual e efetivo das singularidades. Operar na arquitetura molecular (ordem
dos fluxos e intensidades), reaproximar a idéia de política das noções de ética e desejo,
deslocar, ou somar à retórica nervosa – e muitas vezes estéril - dos palanques e plenários, uma
ação efetiva do corpo, no corpo e entre os corpos, pode ser uma via para proporcionar
resultados políticos mais consistentes. Trazer a fala para o corpo, para a vida, para o dia-a-dia,
fazer com o corpo, e com a arte, uma ação micro-política, poética e sutil: promover uma
articulação político-estética. É tempo talvez de emprestar à política – ou à macro-política - os
instrumentos da estética, e não fazer a arte reproduzir os desgastados e nem sempre eficazes
mecanismos da política convencional – verborrágica, impositiva, generalizante. A ação
poética – via da aisthesis9 - tem vocação para agir sobre corpos – tanto os produtores quanto
os receptores da poética em questão - de modo intenso, por contágio, estimulando-os,
despertando-os e acionando-os em uma percepção mais sensível de si mesmos e do outro.

Justamente no propósito de acionar outros mecanismos de apreensão, de estimular


uma nova cartografia cognitiva, os chineses desenvolveram ao longo de séculos um
conhecimento organizado que pode ser extremamente útil para este propósito. A lida com
aspectos sutis, com planos extra-cotidianos de realidade, legou à sabedoria chinesa uma série
de instrumentos efetivos de trabalho nessa linha.

O chi kung, uma de nossas matrizes de trabalho, consiste em um conjunto de treinos


energéticos que visam estimular o fluxo de chi, de modo a desbloquear e abrir a rede de
canais de energia do corpo. Traduzido comumente por energia, chi assume tanto aspectos
materiais como imateriais, e sentidos variados como energia vital, fluido, ar, atmosfera,

8
O termo não tem aqui um sentido pejorativo de estratificação. Entendemos resistência aqui, com Suely Rolnik
(2003), enquanto afirmação de singularidade, enquanto mobilização de uma percepção referente a nossas
intenções mais genuínas, reais, próprias, em contraposição às assimiladas por processos globalizantes e
midiáticos, de vampirização e vetorização de desejos.
9
Segundo Maria Beatriz de Medeiros (2005) “Aisthesis quer dizer estética, mas com o sentido grego do termo:
tudo aquilo que toca os sentidos, o sensível; aquilo que é impossível - incompossível - dizer”.
30

respiração, éter, essência, espírito, vapor, coração, sentimentos, emoções, tempero, cuidado,
disposição, sabor, sopro, alma, odores, pneuma, etc. A idéia aqui é trazer esses meios de
manejo de chi para dentro do contexto de preparação do ator, como forma deste investigar e
aprimorar sua organização de chi para a cena e para a vida.

A partir dessa perspectiva de articulação ético-estética, o presente estudo consiste na


experimentação de processos criativos inspirados por matrizes taoístas. Estas funcionam como
estímulos para dinâmicas que visaram potencializar a expressividade e a criatividade do
atuante, ao mesmo tempo em que operam como fatores de harmonização na sua vida cotidiana
- enquanto estados de equilíbrio dinâmico, provisório, instável e instantâneo.

O diálogo é sempre amparado pela perspectiva da releitura, da transcriação, da


atualização. Trata-se de um olhar, poético e apropriador, sobre essa tradição, e não da
proposição de uma imersão dogmática e ortodoxa em correntes taoístas. Operando na
fronteira entre imaginário e procedimentos taoístas, estudos do corpo, e utilização de
instrumentos das artes cênicas, espera-se viabilizar um espaço de reinvenção, próprio a uma
geografia fronteiriça, à arte e ao zeitgeist10 contemporâneo. Um espaço que abrigue o
exercício e a reflexão sobre o que, no teatro, entendemos como a expressividade do corpo em
cena.

A atração por essas matrizes relacionou-se em grande parte também aos aspectos que
compõem esse imaginário – símbolos, arquétipos, fatores associados em rede, como sabores,
emoções, cores, formas de expressão, etc. -, e as interações dinâmicas entre eles. Tudo isso
pareceu, desde o primeiro contato, constituir fontes de alto poder sugestivo para exploração
em dinâmicas visando à criatividade e à expressividade.

Por outro lado, nos moveu a conjectura de que o trabalho inspirado nessa visão de
mundo, nessa minuciosa e sistêmica estruturação de fatores e eventos, concernentes aos seres
humanos e a toda natureza, possuidora de potencial de energização, harmonização - no
sentido dinâmico que imprimimos ao termo - e profilaxia - conforme mostra sua influência e
atuação abrangentes não só na cultura chinesa, pudesse proporcionar aos atores, além do
estímulo à expressividade, instrumentos para desenvolver propriocepção, re-organização
energética e sensibilização.

10
Espírito de época.
31

A investigação prática sobre a qual se debruçou esta tese foi dividida em duas etapas.
A primeira etapa da pesquisa foi experimentada por atores em formação, a segunda consistiu
na construção de um espetáculo solo onde atuo como atriz.

Os estudantes envolvidos na primeira etapa estavam cursando, em sua maioria, entre o


terceiro e o quinto semestre do curso de interpretação teatral, na Universidade Federal da
Bahia. Durante os quatro meses do primeiro semestre letivo de 2005, com dois encontros
semanais de duas horas de duração cada, práticas ligadas à medicina chinesa, noções, teorias e
imagens da sabedoria taoísta, alimentaram as dinâmicas que foram realizadas com os alunos
matriculados na disciplina Técnica de Corpo para Cena III. Onze participantes foram
observados e interrogados com relação às experiências em curso, a fim de que fosse avaliado
o impacto das dinâmicas em seus corpos em estado de criação e expressividade.

Não houve aqui proposição de se comprovar ou refutar hipóteses, tampouco a intenção


de se mensurar índices de aproveitamento ou quaisquer outros. Tais processos em arte,
dependem de aspectos absolutamente subjetivos, logo instáveis, cambiantes e pessoais,
tornando a expectativa por resultados estatísticos fadada à frustração. O que tentamos foi
cartografar, para posteriormente avaliar, o mapa traçado por essa experiência, a partir de
questionários, observação, diálogos, enfim, instrumentos relativos a uma abordagem
etnometodológica, ou mesmo a uma cartografia. As considerações desse processo, bem como
uma descrição detalhada do mesmo serão expostas em seção dedicada a isto.

Nessa primeira etapa o processo foi dividido em quatro fases. Num primeiro momento
a experimentação dos contrastes yin yang norteou as dinâmicas, dirigidas para a
experimentação de parâmetros de movimentos. Em seguida foram os arquétipos ligados aos
trigramas do I ching que fomentaram as aulas, e se voltaram mais para a construção de
estados, ou entidades, como procurei chamar em aula evitando o termo personagem que
poderia gerar construção excessivamente psicológica por parte dos alunos. Na terceira fase,
foram construídos textos poéticos partir de exercícios de escrita solta, por meio de livre
associação em estado de imersão, com estímulos oriundos do I ching. Os materiais escritos
foram confrontados entre si, ainda em estado bruto, e ganharam novas formas. A partir daí,
num último momento, os acervos expressivos gerados no processo criativo foram vasculhados
e atualizados visando à re-contextualização de ações físicas que dialogassem com os textos
criados. Por falta de recursos técnicos apropriados, não há registros visuais adequados dessa
etapa da pesquisa.
32

A segunda etapa consistiu em um processo criativo que visava desde o início à


construção de um espetáculo. Essa etapa resultou no espetáculo solo Traços ou Quando os
alicerces vergam, dirigido e iluminado por André Amaro, acompanhado ao vivo pelo músico
Lupa, e com cenário e figurino de Malu Fragoso.

Nesse estágio da pesquisa nos debruçamos inicialmente sobre alguns contrastes yin
yang, criando um repertório expressivo que paulatinamente foi se desdobrando e sendo
aproveitado e transformado ao longo do levantamento das cenas. Também trabalhamos com
algumas imagens de wu hsing, a mandala das cinco fases, buscando trabalhar as energias
afetivas associadas a elas. O chi kung esteve presente durante todo o processo, como forma de
preparação para o trabalho. Em conversa com o diretor do espetáculo, André Amaro, nós
entendemos que teríamos um excesso de fontes sugestivas num mesmo processo, caso
usássemos, além de wu hsing e das dinâmicas yin yang, o I ching. Assim, como essa última
matriz já tinha sido fartamente explorada na etapa anterior da pesquisa, optei por deixá-la de
fora do segundo momento.

A observação nessa etapa se referiu à avaliação do impacto dessas matrizes na


construção de um repertório expressivo, às possibilidades de composição de cenas a partir
desse acervo, e tangenciou o processo de recepção do trabalho.

Amparando e dialogando com a experimentação cênica das matrizes, um estudo sobre


a idéia de expressividade do corpo na cena foi desfiado ao longo da tese. Esta idéia conjuga
noções de criatividade, recursos técnicos e sensibilidade estética. O estudo não esgota um
apanhado histórico do termo no teatro, nem se quer um tratado sobre o conceito de
expressividade. A noção é usada aqui para apoiar a experimentação proposta, e tem, no
decorrer da tese, uma leitura filosófica.

O termo expressividade, no teatro, parece agregar à técnica, valores mais subjetivos,


como criatividade e vigor, que aliados à eficiência no manejo dos elementos técnicos, podem
gerar excelência na atuação. Podemos assistir uma performance notadamente bem arranjada,
tecnicamente virtuosa, conceitualmente bem formulada, mas inócua no que se refere às
latências dos afetos que provoca. Ou ao contrário, podemos ser fortemente afetados ao
presenciar grande força em uma atuação muito simples do ponto de vista técnico, ou da
combinação e arranjo entre seus elementos. Então o que é, onde reside a expressividade?
Estaria esse potencial expressivo ligado ao que muitas vezes é chamado de presença? Termo,
33

diga-se de passagem, de difícil manejo no trânsito acadêmico, ainda que, de certa forma,
apresente entendimento tácito no meio teatral.

É certo que a subjetividade da recepção, assim como outros aspectos envolvidos na


fruição em arte, é fator determinante no perceber ou não alguém como portador dessa
presença. A questão que nos colocamos nessa pesquisa é se as matrizes taoístas poderiam
apoiar a busca por essa presença – espécie de vigor sutil do corpo em cena - e de que forma. O
que percebemos com nossas experimentações é que há procedimentos taoístas, mais
precisamente oriundos do chi kung, que ajudam no despertar e na manutenção, dessa força
cênica, da dita qualidade de presença. Assim como constatamos que aspectos simbólicos do
imaginário taoísta são estímulos poderosos para processos criativos e inspiração para
composições expressivas do corpo.

Ressalvamos que não entendemos a inspiração dentro do ideário romântico de


iluminação, dádiva ou dom legado ao artista genial e eleito, mas como uma metáfora, ligada
mesmo ao processo respiratório de um corpo que vive e cria nos trânsitos entre. Entre o que
entra – inspira - e sai - expira - de si. Assim como não tratamos a noção de estímulo dentro de
uma fórmula mecanicista ou comportamental de estímulo-resposta, mas tão somente como
uma imagem de potencial instigante, sugestivo, estimulante, uma provocação que possa
fomentar ações que dialoguem com ela.

A idéia de presença parece se relacionar à disponibilidade de entrega do ator. Entrega


dele a si mesmo, no sentido de permitir-se acessar e aprender a lidar, no processo criativo,
com seus aspectos psíquicos e energéticos – inclusive os de difícil manejo, os excluídos e
rejeitados por ele em dadas ocasiões de vida. Entrega dele ao seu trabalho, em total imersão e
concentração, buscando experimentar sempre, se trair quando tentado a buscar as formas já
estratificadas de atuação, se disponibilizar a propostas dos parceiros de cena e diretor, como
possibilidades de novas conquistas. Entrega do ator ao público, tornando este, um ato de
comunhão, onde se está por inteiro, e quando se percebe o espectador, trocando com ele, sem
que isso signifique necessariamente prescindir ou sair do roteiro.

Refletindo sobre essa idéia da entrega do ator, a expressão qualidade de presença pode
fazer mais sentido. Presença é uma idéia que remete justo a este estar em si, estar no trabalho,
estar no espaço/tempo da (a)presentação. Corpo presente no tempo, no espaço, corpo como
um presente que se dá ao outro. Tanto no processo criativo, quanto na cena, desenha-se,
34

então, a figura de um ator-esponja capaz de absorver, escoar, se encher e derramar-se, receber


e doar... E é a partir dessa idéia de trânsito duplo entre imersão e emergência, que caracteriza
o trabalho do ator, que será pensada a noção de expressividade ao longo da tese.

Tentando dar conta do propósito exposto, que muito resumidamente seria investigar o
impacto das matrizes taoístas selecionadas, enquanto norteadoras de dinâmicas de estímulo à
criatividade e à expressividade de artistas cênicos, bem como seu potencial enquanto
fomentadora de estados meta-harmônicos; e ainda proceder a avaliação e a elaboração teórica
pertinentes a essa pesquisa, foi traçado o percurso a seguir.

O capítulo um se dedica a atualizar e relacionar noções taoístas a idéias ocidentais


contemporâneas, a apresentar as matrizes taoístas que fomentam a pesquisa, e a trazer
referências sobre o uso dessas matrizes no processo criativo. O capítulo dois promove
diálogos com tendências e artistas cênicos referenciais para nossa pesquisa. O capítulo traz
ainda, para balizar e alimentar essa pesquisa, maior enfoque nas idéias de Antonin Artaud e
Eugênio Barba, em trânsito com críticas de Jacques Derrida e Patrice Pavis, respectivamente.
O terceiro capítulo aprofunda reflexões filosóficas relativas ao zeitgeist atual, na construção
da idéia de corpo que orienta essa investigação, em interlocução com noções basilares à
sabedoria chinesa. O capítulo quatro descortina questões conceituais imbricadas na idéia de
expressividade cênica. Trata-se de um exercício de conjectura, mais interessado em
problematizar, arriscar, do que a tentativa de chegar a alguma definição fechada para o termo.
O quinto capítulo é dedicado a pensar a idéia de vazio e como esta se articula ao processo
criativo. O capítulo seis traz a avaliação e reflexão acerca dos processos criativos
desencadeados durante o período de feitura desta tese. Finalizando são levantados os aspectos
conclusivos desse estudo, seguidos das referências e anexos pertinentes à tese.

Ao longo dos anexos há uma série de fontes que complementam esse estudo, divididas
em uma parte A, ligada à montagem de Traços, e uma parte B, relacionada à disciplina
Técnica de Corpo para Cena III. Entre os anexos da parte A estão disponíveis o seguinte
material: a transcrição do diário de bordo da criação do espetáculo, incluindo fotos, a
dramaturgia da peça, um texto do diretor André Amaro sobre o processo, cópias de
comentários sobre a peça, deixados em um caderno específico para isso, ficha técnica,
matérias de jornal, exemplares de material gráfico de divulgação da peça, e um DVD com a
filmagem do espetáculo. Na parte B podem ser consultados o diário de aulas, todos os textos
criados pelos alunos em etapa a isto dedicada, bem como os textos híbridos que dos iniciais
35

derivaram. Há, ainda, os questionários passados para os alunos, com a transcrição das
respostas dos mesmos.
36

CAPÍTULO 1

MATRIZES TAOÍSTAS

1.1 Atualizando noções taoístas

O instante é semente viva.[...] Mais que um instante, quero seu fluxo (Lispector, 1998).

Essa pesquisa se alimenta de procedimentos do taoísmo, respira conceitos e


imaginário da sabedoria taoísta, numa atitude de apropriação (inspiração) poética desse
universo, e de sua releitura (expiração). Ou seja, lança mão de um acervo - de idéias, práticas,
imagens, em um contexto deslocado de sua origem cronológica e tópica, com uma abordagem
voltada para o exercício criativo-expressivo (transpiração). Isso enseja a trazer também para a
elaboração teórica, e sempre em perspectiva de atualização, alguns construtos teóricos que são
matrizes dessa sabedoria. Idéias como tao, wu wei, te e a dinâmica yin yang, entre outras,
permearão este ensaio, dialogando com outras, mais recorrentes nos trânsitos acadêmico e
teatral. A proposta é esboçar uma aproximação11 entre noções do pensamento filosófico
contemporâneo e idéias presentes na trimilenária sabedoria taoísta.

11
De novo frisamos que não se busca aqui homogeneizar pensamentos de contextos tão diferentes, como o
oriental e o ocidental. Além de inútil e ineficaz, seria uma contradição, já que todo esforço desse estudo é em
prol da singularidade, da diferença. Trata-se tão somente de tentar perceber os parentescos, descobrir os
encontros, buscar as interseções entre formas de pensar que por vezes são percebidas como mais distantes do que
de fato são.
37

Segundo vários autores todas as tentativas de se descrever o tao, a partir da linguagem


falada, estão fadadas ao paradoxo. Por ser absoluto, o tao é inexprimível. Lao-Tsé, no Tao Te
Ching, dá a entender várias vezes que o tao não pode ser descrito, apenas experimentado.
Fala-se que “é a reunião de todas as coisas e fonte do universo de multiplicidades” (Freire,
1996: 9); que “é tão grande que não comporta um fim, e tão pequeno que nada lhe escapa”
(Tchuang-Tse in Kielce, 1986:18). Lao Tsé diz:

Olhando-o, não o vemos, pois não é visível


Escutando-o, não o escutamos, pois não é sonoro
Tocando-o, não o sentimos, pois não é palpável (Kielce, 1986:18).12

Segundo a tradição taoísta, wu wei é caminho para o tao. É traduzido de diferentes


formas: não intervenção, não ação, espontaneidade, ação sem propósito, agir sem constringir,
não forçar, seguir, não coagir, não representar. Wu wei não tem, entretanto, um sentido de
inércia, preguiça ou mesmo de passividade como entendida pelo senso comum. A idéia
inscrita em wu wei é um “fazer o não-fazer” (Jullien, 1998:112), ou “agir sem agir” (Jullien,
1998:153), é deixar-se conduzir pelo ritmo natural da vida, “seguir a natureza, fluir com a
energia” (Watts, 1975:110), sem empurrar ou emperrar os acontecimentos, sentindo e
seguindo o fluxo dos espaços-tempo, sem expectativas e em perspectiva não teleológica: só se
chega ao tao sem se tentar chegar ao tao. Em linguagem bem popular poderíamos falar em
“não dar murro em ponta de faca”, “nadar a favor da corrente”, “deixar acontecer”, “não
remar contra a maré”, etc. Não há aqui uma posição conformista, ou uma neutralização
política, mas antes uma estratégia energética e sutil de atuação no mundo. Ter uma conduta
que obedece a um fluxo energético, uma convergência ou tendências de forças, não significa
aceitar um status quo passivamente, ou se ausentar do próprio impulso e potencial
transformador, mas operar essas transformações em fluxo.

Allan Watts, em Tao, o curso do rio, diz que “a arte de viver é mais semelhante à
navegação do que à guerra, pois o importante é entender os ventos, as marés, as correntes, as
estações e os princípios de crescimento e declínio, de forma que se possa utilizá-los, e não
lutar contra eles” (1975:49). Imagens ligadas à água são constantemente associadas às noções
taoístas, por exprimir esse caráter maleável, multiforme, fluido. Como se nota nesta
passagem:

12
A tradução encontrada aqui me pareceu mais apropriada que a do volume do Tao Te Ching, de que disponho.
38

Ah-ah, t’ai chi é o Tao, wu-wei, tzu-jan, como a água, como velejar, como surfar, dançar com
as mãos, a cabeça, a coluna, os quadris, os joelhos... com o pincel, a voz... ha ha ha ha... La La
Lala ah ah Ah... (Watts, 1975:7).

O surfe, aliás, é uma imagem bastante usada para pensar tanto o wu wei e o tao, quanto como
metáfora para autores que pensam a idéia de tornar-se fluxo, como nesse texto de Pierre Lévy:

Entre o ar e a água, entre a terra e o céu, entre a base e o vértice, o surfista ou aquele que se
lança jamais está inteiramente presente. Abandonando o chão e seus pontos de apoio, ele
escala os fluxos, desliza nas interfaces, serve-se apenas de linhas de fuga, se vetoriza, se
desterritorializa. [...] Torna-se velocidade, passagem, sobrevôo (1996:32).

Note-se ainda esse trecho, onde Denise Sant’Anna fala sobre o viver o tempo presente,
quando o objetivo é estar fazendo exatamente o que passa. Aqui também se recorre à metáfora
do surfe.

...tem-se a impressão de que não é mais possível separar o sujeito que pensa e questiona do
sujeito que age. [...] o tempo presente deixa de ser vivido como um trampolim para o futuro. O
tempo presente se amplia, se intensifica. [...] O exemplo do surfe [...] o objetivo a ser atingido
é a ação de surfar: a meta final coincide com o processo [...] A relação entre o surfista e o mar
tende a ser menos a de um domínio de um sobre o outro e mais de uma composição de dois
conjuntos de forças heterogêneas. [...] A ação de surfar coincide com a sua percepção
(2001:98).

O princípio taoísta wu wei pode ser relacionado à idéia de devir, ou de um “entrar em


devir”. Segundo o dicionário (Ferreira, 1975), devir é a transformação incessante e
permanente pela qual as coisas se constroem e se dissolvem em outras; o vir-a-ser. Para
Deleuze a idéia de devir remete a um deixar de ser. Thomas Tadeu retoma a investigação
deleuziana da idéia de devir, que é originalmente atribuída ao grego Heráclito. Deixar de ser
alguma coisa, mesmo que para se tornar outra, demanda um estágio que caracteriza um “não
ser”, ou “ainda não ser” (Tadeu, 2004). Essa perspectiva - tão inadmissível para a filosofia
grega preponderante, e para o pensamento ocidental derivado desta ontologia de centros,
identidades e essências - se encontra revigorada em grande parte dos pensadores
contemporâneos.

O não ser do devir, e a não ação do wu wei são ambos estados fortemente marcados
por dois fatores: o fluxo - movimento e transformação ininterruptos; e o vazio – interstícios,
hiatos, suspensão de ação, de identidade, e qualquer tipo de fixação ou territorialização. Esses
dois fatores nos levam a uma terceira idéia, que de certa forma abraça as anteriores: o virtual,
campo disforme de multiplicidades intensivas.
39

Segundo Lévy, o virtual é um complexo problemático, um nó de tendências ou de


forças que acompanha uma situação e que chama um processo de resolução contíguo, mas em
direção oposta: a atualização. A atualização, por sua vez, consiste na criação, na invenção de
uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades (1996:16).
Deleuze, como vimos, entende o virtual como o campo ou fluxo de devires - um dado plano
de imanência, e a atualização como o processo de singularização. Segundo o filósofo, a
atualização, (ou territorialização), busca, seleciona, captura aspectos do virtual, convertendo-
os em atualizações, e a virtualização (desterritorialização) é o processo que reconverte o atual
em virtual, é o voltar ao fluxo de intensidades amorfas (Alliez, 1996:50).

Deleuze aponta a estreita relação entre devir e virtual ao mencionar que, para devir, é
preciso sempre remontar à multiplicidade intensiva, ou seja, ao virtual, mesmo que nos
trânsitos ocorram os estados de territorialização. Tadeu, ao pensar como essa questão é
levantada por Deleuze, o faz mencionando que essa seria uma pista de conduta, mais que uma
simples conjectura conceitual (2004: 31). No caso da idéia de wu wei sua relação com a
virtualidade se dá de forma parecida. Para não agir, ou agir sem constringir, também é preciso
remontar ao imponderável, ao imprevisível, ao abismo, ao vazio, ao fluxo de multiplicidades
ao qual escapa toda tentativa de controle. E se é ineficaz a tentativa de controlar ou fixar o
virtual, restam capturas temporárias. Atualizar é capturar intensidades no campo virtual e
territorializá-las, em fluxo. A tentativa de estratificar essas territorialidades tende a esvaziá-las
dos seus sentidos - estético, semântico, patético (Didi-Huberman,1998) - e, por isso mesmo,
de sua potência expressiva.

Denise Sant’Anna, em seu livro Corpos de Passagem, denuncia um processo de


desertificação da vida, ao qual é imperioso que se oponha resistência, sob pena de uma
espécie de neutralização político-subjetiva dos corpos. Ela investiga, investe e instiga a uma
engenharia que possa religar o corpo às suas potências e às suas virtualidades, que possa
“conectá-lo com a espessura da história e, ao mesmo tempo, abri-lo ao imponderável.”
(2001:11).

Te é outra idéia importante no taoísmo, haja vista o Tao-te-ching contê-la em seu


título, e usualmente é traduzida como virtude pelos ocidentais. Virtude é um termo que,
muitas vezes, remete a qualidades morais, disposição para a prática do bem, castidade,
austeridade, entre outros valores afins. Allan Watts, entretanto, ajuda a redimensionar o
entendimento de te ao traduzir o termo por virtualidade (1975:143). Sua opção se dá porque
40

te não se refere a uma retidão artificial, acatada, baseada em obediência a regras impostas,
mas sim a uma consonância entre conduta e potencial, o que se aproxima bem mais da idéia
de ética que de moral13. O ideograma que originou te significa “fluir em união com o olho e o
coração (mente)” (1975:160).

Essa idéia parece se relacionar à de desejo enquanto tendência, disposição de seguir


uma vontade. Ainda que os taoístas sejam avessos à idéia do desejo enquanto construção de
expectativa, aquela que arranca o ser do presente, o termo aqui tem outra conotação, mais
próxima a de vocação. Watts, que não segue o taoísmo ortodoxamente, buscando
compreensões menos dogmáticas dessa sabedoria chinesa, chega a dizer que “o gênio – a
pessoa do te – está sempre além das regras, não devido a um espírito rebelde e anti-social com
um propósito hostil, mas porque a fonte da obra criativa reside no questionamento inteligente
das regras.” (1975:159), e lembra que em várias passagens da literatura taoísta te se refere a
habilidades em geral (1975:147), o que nos aproxima de novo das idéias de tendência,
vocação.

Tal articulação entre vontade, potencial, fluxo e conduta, remete te à idéia de


virtualidade. Segundo o sinólogo Marcel Granet (1997) a palavra tao na língua mítica devia
expressar a idéia de uma eficiência indeterminada, mas que seria o princípio de toda
eficiência. Ainda segundo o autor, o termo era constantemente associado a te, quando se
aproximava da noção de eficácia particularizada. Assim, tao-te traria a idéia de uma “eficácia
que se singulariza ao se realizar” (1997:191).

Para constatar no corpo, na própria vida, a ausência ou baixa incidência de te; para
perceber a inadequação das regras vigentes; para se dar conta do nível de insatisfação pessoal
em relação à própria vida; e para identificar as possíveis tendências, é preciso lançar mão de
uma percepção de natureza diferente da exclusivamente racional e daquela só ligada aos cinco
sentidos. Entra em cena a percepção das forças, própria ao que a psicanalista e pensadora
Suely Rolnik chama de corpo vibrátil. Este funcionaria como uma bússola ou alarme,
perceptor e desencadeador de crises (Rolnik, 2003), que por sua vez, seriam motrizes de
transformações. Entra em cena a percepção daquilo que os chineses chamam chi.

O Acupunturista Marcus Vinicius Ferreira em trabalho apresentado no III Congresso


da Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura, Santa Catarina, outubro de 1996, alerta para o
13
Sobre esse tema vale a pena conferir o artigo “Ética como potência e moral como servidão”, do filósofo
brasileiro Luiz Fuganti, de 09/07/2001, disponível no site www.linhadefuga.com.br ativo em 2005.
41

reducionismo de traduzir chi por energia simplesmente, e argumenta a favor de que alguns
termos chineses sejam usados em sua forma original. De fato os ideogramas chineses são
extremamente complexos e atravessados de imagens e sentidos, logo toda tradução tende a
orientar para uma única possibilidade de interpretação daquela idéia. O professor André
Bueno, da Universidade Gama Filho lembra o simbolismo do ideograma que representa chi,
ou como ele prefere qi - o que é apenas uma diferença de grafia na tradução, ligada a questões
fonéticas.

A concepção do Qi que é representada em seu ideograma, manifesta a idéia do vapor d’água


saindo de uma panela de arroz em cozimento. Este vapor pode se condensar e virar novamente
água, ou, no frio, se congelar e virar uma pedrinha de gelo; ou ainda, o vapor simplesmente
escapa, continuando em seu estado fátuo. Extraindo desta analogia uma concepção profunda
acerca de estrutura da matéria, os chineses preocuparam-se, porém, em entender como o Qi
funcionava em suas manifestações (Bueno, 2000).

Assim, chi pode ora assumir características de energia fluida, ora de energia condensada,
quando pode causar bloqueios nos canais de energia do corpo.

A percepção e capacidade de regulação de chi são atribuídas ao corpo sutil,


responsável pela alquimia interior. Aparentado à noção de corpo vibrátil (Rolnik, 2003), para
os chineses, o corpo sutil está relacionado à cartografia energética que eles identificaram na
constituição corporal: os pontos, os meridianos, os centros de energia, e suas inter-relações
entre si e com o meio. Watts fala também em percepção intuitiva (1975:154), em algo além
do nosso funcionamento natural e habitual, em uma habilidade inconsciente e espontânea em
lidar com questões (1975:144).

A noção de corpo sutil foi ilustrada com a imagem abaixo, espécie de perfil do interior
de um corpo humano, recheado de detalhes: com animais em lugares onde haveria órgãos,
florestas em pontos energéticos, torres, pessoas, espirais, ideogramas e símbolos variados pelo
corpo14.

14
Imagem: “Diagrama do ‘corpo sutil’ que rasteia a alquimia interior”, datado de 1886, dinastia Ts’ing, (Rawson
e Legeza, 1973:82, ilustração 53)
42

Para dialogar com essa idéia é interessante trazer o modo como Denise Sant’Anna
pensou a sutileza. Entendida como uma “complexidade de gestos, sentimentos e ritmos do
corpo” (2001:124), para a autora a “sutileza inclui zonas de sombra, e estas não significam
caos nem, necessariamente, silêncio” (2001:125). Ainda segundo Sant’Anna o que é sutil só é
frágil na aparência, sendo, em realidade, um amálgama de delicadeza e força, que pode,
inclusive, ser aprendido através “de exercícios, de atenção ao que passa entre os corpos. E,
por mais tautológico que possa parecer, a atenção se aprende com atenção”.(2001:125).

Essas reflexões de Sant’Anna se afinam com o modo como os taoísta lidam com seu
corpo sutil. Os treinos de chi kung, por exemplo, que serão detalhados adiante, além de
operarem pela atenção e concentração sobre os ritmos energéticos corporais, sobre os fluxos e
trânsitos de energia entre o corpo e o meio (terra, céu, árvores, outros corpos), lidam com
essas matérias sem a intenção de esclarecê-las. O que interessa, aos praticantes, é a conquista
dessa percepção de outra ordem, e de um certo manejo sobre as forças que atuam nos corpos,
respeitando as zonas de sombra e mistério.
43

1.2 Conhecendo as Matrizes

Em meados de 1990 fiz vestibular e entrei para o Bacharelado em Interpretação


Teatral da Universidade de Brasília. Menos de dois anos depois, fui integrada como bolsista
de iniciação científica do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos (GPCI). Este era – e ainda é
- coordenado pela professora Maria Beatriz de Medeiros, que à época havia recém-chegado de
seu doutorado em Paris, quando se debruçou sobre a Arte da Performance em trânsito com
noções da filosofia contemporânea. Integrei o grupo - que existe até hoje - até o ano 2000,
quando defendi minha dissertação de mestrado Performance em Telepresença, na qual
discutia questões ligadas à pesquisa do GPCI. As leituras e experimentações com este grupo,
na fronteira entre corpo e tecnologia, entre arte e vida, entre política e estética, entre
performance e filosofia, trouxeram-me o desejo de investigar também a linguagem teatral sob
uma ótica diferenciada, e complementar à que eu estava tendo acesso durante o curso.

Assim surgiu a Tribo Atrito, grupo de pesquisa teatral que se voltou a uma
investigação sobre a corporeidade na cena. As responsáveis e idealizadoras desta pesquisa
éramos eu e a atriz e pesquisadora Rita Gusmão, hoje professora mestra no Departamento de
Artes Cênicas da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir de princípios ritualísticos -
emprestados de Artaud - e de treinamento quase diário - calcado em procedimentos
psicofísicos de Grotowski, organizados por Celso Nunes, e de Barba, entre outras referências
e intuições – desenvolvemos estudos, cenas e espetáculos.

Dentre os trabalhos que realizamos, talvez o mais importante tenha sido a montagem
de Entre Quatro Paredes, de Jean Paul Sartre, em 1994 e 95. Em cena estávamos eu, Rita
Gusmão, José Delvinei (ator, professor, produtor cultural, ex-coordenador regional da
FUNARTE Brasília) e Cesário Augusto (ator, pesquisador, professor Doutor da Universidade
Federal do Pará). Na época éramos os quatro ainda estudantes, cursando ou bacharelado ou
licenciatura em Artes Cênicas. O espetáculo foi dirigido por mim e Rita Gusmão e
apresentado em vários teatros de Brasília. Após um ano de trabalho praticamente diário sobre
a peça, o grupo estreou, levando à cena intensa pesquisa de dramaturgia corporal (que à época
chamávamos de gestualidade) desenvolvida pelo grupo. A peça teve cerca de quatro
temporadas em Brasília – feito bastante incomum para o momento na cidade, com
interessante repercussão junto ao público brasiliense.
44

Durante os quatro anos de existência do grupo (1992 a 1995), instituímos, ao lado do


treinamento técnico, a realização do que denominávamos rituais. Estes partiam de wu hsing,
espécie de mandala chinesa que admite cinco forças primordiais na natureza, sobre a qual
trataremos adiante. Juntávamos-nos – às vezes só eu e Rita, às vezes além de nós, havia outras
pessoas com quem estávamos trabalhando no momento- em situações não cotidianas, em
espaços fora do nosso eixo diário. Uma cachoeira, uma mata, uma construção em ruínas, um
parque de diversões, entre vários outros locais, eram palcos de processos de exaltação de um
determinado estado ou energia, os quais conjugavam cores, emoções, forças da natureza,
alimentos e bebidas, etc. Nessas ocasiões cantávamos músicas criadas nesse mesmo ambiente,
ingeríamos alimento e bebida de um dado sabor, vestíamos uma cor e intensificávamos uma
determinada energia afetiva, através de vivências variadas, adotadas com este fim.
Posteriormente, já em situação de treinamento, recompúnhamos a emoção para trabalhá-la em
nível expressivo.

Esse foi meu segundo contato, ainda tênue, com o ideário taoísta. O primeiro havia
sido por volta dos meus 16 anos, através da prática de tai chi chuan por cerca de um ano,
junto ao mestre Dada, em Brasília. Na ocasião em que treinei tai chi chuan, sentia um bem
estar muito grande, porém não busquei, naquele momento, uma intimidade maior com as
origens da prática. Com o tempo acabei me distanciando do tai chi chuan. Porém, manteve-se
no corpo a memória agradável das sensações de concentração, consciência, integridade,
serenidade, as quais a prática costumava me trazer.

Ainda com a Tribo encenei Matamoros, de Hilda Hilst, enquanto trabalho de final de
curso de minha graduação. Tanto no processo quanto na encenação trouxemos a referência
dos cinco elementos chineses. Nosso cenário era constituído de cinco círculos concêntricos
formados por terra, água (tinas, bacias e cuias), fogo (velas), metal (muitas chaves) e madeira
(galhos e folhas secas). Em cada um desses espaços aconteciam ações relacionadas aos
elementos presentes, fossem movidos pelas emoções associadas, ou se relacionassem à fase
de vida ligada ao elemento, etc. Além destas referências, busquei apoio nos arquétipos dos
Arcanos Maiores do Tarô, para composição de personagens. Este foi o último trabalho do
grupo, que acabou ao mesmo tempo em que concluímos o curso, no fim de 1995.

Alguns anos depois, passei a integrar a Cia. Teatral Piramundo, à qual estive ligada
desde 1998 até 2004, quando saí para fazer o doutorado. Além de mim, o grupo era formado,
pelos atores Márcio Menezes, Vanessa Rocha, Rômulo Augusto – estes três eram ex-colegas
45

de curso – além de Amara Hurttado, Lupa Marques, entre outros, que iam e vinham ao longo
dos anos.

A Piramundo era conhecida na cidade pela sua versatilidade, e desenvolvemos


diferentes projetos culturais para o mercado brasiliense, como peças institucionais, didáticas
ou temáticas, espetáculos para shoppings, oficinas para recursos humanos, etc. Em 2000,
tomados por uma profunda insatisfação artística, decidimos frear nossa produção voltada ao
mercado e nos voltarmos à pesquisa na linguagem teatral, e no processo criativo do ator.
Acolhendo as pesquisas e tendências individuais dos participantes, criamos trabalhos
envolvendo teatro de animação, inserimos na maior parte das montagens música executada ao
vivo (algumas criadas com o percussionista Lupa, meu atual parceiro em Traços) e realizamos
trabalhos de criação a partir de nossas mitologias pessoais. As criações nasciam de processos
coletivos e a direção das peças era revezada pelos membros ou, esporadicamente, realizada
por diretores convidados.

O último trabalho da cia., de que participei, foi A Roda do Arco-Íris, conduzido pela
atriz e arte-terapeuta Vanessa Rocha, que à época cursava sua pós-graduação em terapia
junguiana. O processo de construção desse espetáculo instalou primeiramente um espaço de
auto-conhecimento e desbloqueio energético. Foram trazidos processos de imersão psíquica
que visavam o contato e a emergência de questões subjetivas que possuíssem ao mesmo
tempo demanda de cura, e potencial criativo. Além disso, trouxemos de volta uma atmosfera
ritualística, a qual fortaleceu os elos do coletivo, e nos predispôs a operar em outros níveis de
realidade que não o real concreto.

Durante esse período vivi alguns processos energéticos bastante intensos e inéditos
para mim. Ao me concentrar para o trabalho, na parte inicial em que simplesmente devíamos
estar disponíveis e deixar acontecer, aconteceu, por várias vezes, de sentir meu corpo tomado
de uma energia tão forte que o movia involuntária e às vezes violentamente. Na maior parte
das vezes essa explosão energética partia do centro do peito, do ventre ou da pélvis, (pontos
energéticos segundo a tradição taoísta e a hindu) e gerava um movimento de certa forma
convulsivo. Também meus braços mantinham um movimento involuntário, em geral muito
rápido e vigoroso, em ocasião de um exercício que nos foi passado por uma profissional de
Reeducação Postural Global (RPG), chamada Angelina Vargas.
46

Durante esse processo me senti fortemente impelida a voltar-me para um trabalho de


pesquisa que partisse de pressupostos similares àqueles. Era como se eu estivesse me
reencontrando, depois de muitos anos perdida nas demandas do mercado. Voltou-me toda a
experiência anterior com a Tribo, e tudo isso me trouxe vontade de mudar o rumo que minha
vida no teatro vinha seguindo. Foi quando decidi apresentar um anteprojeto para o doutorado.
Entrei, então, para o PPGAC com um projeto de pesquisa chamado Processos cria-cura-
ativos: Meios de imersão psíquica para criação do repertório expressivo do ator. Com a
ajuda de professores e colegas fui aos poucos conseguindo realizar um recorte -
absolutamente necessário - que acabou concentrando a pesquisa em matrizes taoístas.

A partir daí passei a realizar leituras e descobri o chi kung, perspectiva de trabalho que
ainda não conhecia muito, apesar de o tai chi chuan ser considerado um tipo de chi kung,
coreografado. Fiquei bastante interessada e comecei a praticar, junto ao professor Ernani
Franklin, em Salvador, com quem fiz alguns cursos teórico-práticos. Além dos cursos trouxe a
prática para minha vida diária, ainda que de maneira menos disciplinada do que me era
orientado fazer. A prática do chi kung me trazia a mesma sensação de fluxos involuntários de
energia e movimento que sentira outrora, mas que agora vinham com uma fluidez mais
contínua e lenta, de um modo geral. Também já cheguei a sentir manifestações energéticas no
corpo, parecidas às que sinto com o chi kung em espaços sagrados como Igrejas Católicas,
Terreiros de Candomblé, Centros de Santo Daime e Espiritismo. É sempre uma sensação de
corpo como passagem, o que às vezes se altera, creio, é a densidade da energia que atravessa e
se transforma.

Hoje consigo acionar esse estado de captação e fluxo energético com certa facilidade,
e pude perceber que isto é, também, uma questão de treino. Catherine Despeux (1981) traz
uma descrição que intitula “Fusão da energia espiritual e retorno à vacuidade”, em relação à
qual senti que minha própria experiência se aproximava:

Quando há coincidência, cada vez mais perfeita, entre a execução de um movimento e a


emissão, pelo coração, de sua representação mental, quando o corpo responde
instantaneamente ao pensamento emitido, há automatismo do movimento e passagem ao
inconsciente. Já não se faz necessário o esforço consciente para executar o movimento nem
para emitir o pensamento determinado que lhe corresponde. A “palavra do coração” (yi) se
escoa por si só. Chegado a esse estádio, o exterior já não perturba o adepto, cuja energia
espiritual está concentrada. Já não tem vontade de mover-se segundo um esquema definido,
mas responde instantânea e espontaneamente às diferentes circunstâncias, e os movimentos
executados, já não são, forçosamente, os do tai chi chuan. O adepto perde a consciência do eu
e do corpo, mas ainda está consciente, o que não acontece nos estados de transe. Encontra-se
num estado que ultrapassa a dualidade consciência/não consciência, pois foi realizada a união
47

dos contrários: interior e exterior, movimento e repouso, eu e o outro. É a união do tao com a
vacuidade [...] Ele encarna, portanto, o ideal do santo gabado pelos taoístas, o mais célebre
dos quais, Zhuangzi afirmou “o sábio supremo não tem eu”. Quando nenhum pensamento se
eleva do interior e não há obstruções no exterior, a energia do indivíduo não tem limites,
identifica-se com as forças do universo cujas leis segue [...] O praticante não executa por si
mesmo os movimentos, deixa operar o tao através de si (1981:72).

Assim fui intuindo - ou desejando - as possibilidades de trânsito da prática do chi kung


com o trabalho de ator. Na disciplina Técnica de Corpo para Cena III, que ministrei no
primeiro semestre de 2005, pude experimentar a prática para abrir trabalhos e apoiar alguns
exercícios, que também partiam de matrizes taoístas - como os trigramas do I ching, e alguns
pares yin yang. A resposta tanto corporal quanto do relato dos alunos em grande parte apontou
para a eficácia da proposta, como veremos no capítulo a isso destinado. A seguir, foi a vez de
associar a prática de chi kung, bem como as outras matrizes como universo sugestivo, à
construção de um espetáculo propriamente. Essa etapa gerou o solo (ou nem tanto já que um
percussionista me acompanha ao vivo) Traços. Também sobre este processo trataremos
oportunamente.

Seguem agora abordagens mais detalhadas sobre nossas matrizes. Todas elas são
sistemas de classificação da tradição taoísta, eleitos como norteadores dessa pesquisa. Há
muito mais a ser pesquisado e dito sobre o vasto ideário taoísta. Tentaremos apenas apresentar
os aspectos relevantes – do ponto de vista desta investigação - do que é o nosso recorte dentro
do grande espectro de referências que é a sabedoria taoísta. É bom esclarecer que há uma
profunda e complexa inter-relação entre os sistemas de classificação que descreveremos a
seguir, assim como entre estes e outros que não serão abordados. Entretanto também não nos
aprofundaremos nessas relações, justamente pela necessidade de recorte, mesmo intuindo que
isso desdobraria ainda mais as possibilidades de interação das matrizes com processos
criativos.

1.2.a Yin yang

A idéia da relatividade yin yang nasceu na China antiga, alguns séculos antes de
Cristo, a partir da observação dos ciclos da natureza, em especial o ciclo dia e noite e fatores a
este associados, como sol e lua, claridade e escuridão, etc. Suas mais antigas referências
conhecidas constam do Hi zi, pequeno tratado anexado ao I ching (1997:85). Neste tratado os
emblemas funcionavam especialmente na caracterização das linhas, a inteira (yang), que
48

inicialmente denotava sim e a cortada (yin), significando não. Estas linhas são as menores
células do I ching, cujas combinações formarão os trigramas e hexagramas, complexificando
as respostas. Segundo o acupunturista Marcos Freire, se com a idéia de tao, só podemos lidar
a partir de um processo sintético (caracterizado por ser holístico, sistêmico, intuitivo), com
sua manifestação para os homens a partir de duas forças relativas - yin e yang - podemos lidar
a partir de processos analíticos, relacionais (1996:3).

Marcel Granet (1997: 83) observa duas tendências de análise sobre o conceito, uma
atribuída aos críticos contemporâneos chineses, de entendê-los como forças, e outra,
ocidental, de tratá-los como substâncias. Refutando ambas as proposições, Granet observa
que, de forma bem mais simples que se possa imaginar, os termos yin e yang funcionam
principalmente como emblemas, dotados de potencial de evocação de todos os contrastes
possíveis existentes. Yin e yang formam, assim, um par de rubricas mestras com alto poder
sugestivo e simbólico (1997:88).

Segundo Granet, a existência deste conceito parece traduzir a idéia de que o contraste
de dois aspectos concretos caracteriza o universo e cada uma de suas aparências (1997:89),
entretanto, como será discutido em outros trechos, o duplo yin yang não se configura nos
moldes dicotômicos, derivados da metafísica ocidental, e nem rechaça a noção de
multiplicidade em detrimento de dualismos estanques. Não há relação hierárquica ou
excludente, mas movimentos incessantes e interdependentes entre as duas faces. Há ainda
uma infinidade de configurações possíveis entre os dois pólos limítrofes de um fenômeno,
além de uma pluralidade de fenômenos caracterizáveis. Ou seja, ainda que tudo possa ser
compreendido a partir da noção de um duplo, as proporções entre as partes não são estáveis,
nem equivalentes. Trata-se de variáveis que oscilam no tempo e no espaço, prenhes de ritmo e
pulsação, como tudo que é inerente ao universo e suas manifestações.

Na representação gráfica do símbolo yin yang, chamada tai chi - grande energia, em
tradução simplificada - há uma pequena circunferência branca na metade preta e vice e versa.
Isso traduz uma particularidade da dinâmica: cada uma das faces extremas (pólos) carrega em
si o germe da outra. Donde temos:
49

As seguintes propriedades da dinâmica entre yin yang mostram bem essas


características:

A. Oposição: Esta propriedade diz que todos os fenômenos da natureza têm, ao mesmo
tempo, dois aspectos contrastantes, e denota a existência de polaridade e tensão entre eles.
Entretanto não se refere a um dualismo antagônico, hierárquico ou excludente, antes, aponta
para complementaridade e ambivalência. Expressa aspectos alternantes. Esta não é uma
antítese absoluta, mas relativa, rítmica, e é especialmente esse caráter de revezamento, que a
diferencia daquela oposição encontrada em uma dicotomia. Esta contradição inerente a todos
os fenômenos constitui a força motriz de toda modificação, desenvolvimento e deterioração
das coisas (Maciocia, 1996: 70).

B. Interdependência: Propriedade que mostra que um pólo só existe na dependência do


outro, apresenta a imbricação entre os opostos. O quente não é sequer compreendido sem o
parâmetro oposto: o frio. São fatores inextricáveis, e isso é condição para existência de cada
um. A qualidade yin ou yang de algo não é realmente intrínseca, mas somente relativa a algo.
O clima da Suíça é yin (frio) em relação ao Brasil, mas é yang (quente) em relação a
Antártida.

C. Inter-consumo: Essa propriedade mostra que o aumento de um dos lados acarreta a


diminuição do lado oposto e vice-versa. Configura uma mudança quantitativa, há movimento
e mudança constantes caracterizando um equilíbrio dinâmico, instável e instantâneo, entre os
pólos. Para a medicina chinesa, se no corpo humano ocorre um aumento ou diminuição
excessivos de um fator, o equilíbrio relativo fica comprometido. Isso caracteriza excesso ou
deficiência de yin ou yang no corpo, ou num órgão, gerando enfermidade e demandando
tratamento. Têm-se então quatro quadros possíveis de desequilíbrio: preponderância de yin,
preponderância de yang, debilidade de yin, debilidade de yang. Destes quadros importa dizer
50

que, por exemplo, numa situação de debilidade de yin, haverá a aparência de excesso de yang,
mas é preciso que se identifique o quadro com clareza para melhor eficácia de abordagem no
tratamento pela medicina chinesa.

D. Inter-transformação: Aqui se apresenta uma mudança qualitativa. Em certas


situações, geralmente no auge da predominância de um lado, este poderá se transformar em
seu oposto, produzindo um processo de transubstanciação, uma mudança radical. “Ações
extremas produzirão resultados inversos”, diz o adágio chinês. Há duas condições para que
ocorra esta transmutação:

• Condições internas: uma mudança só ocorre quando primeiramente as condições


internas estiverem amadurecidas, e, secundariamente devido às causas externas.
• Fator tempo: só há mudança quando as condições estiverem preparadas para ela, num
estágio de desenvolvimento propício para isso.

Uma metáfora interessante para pensar a relação entre os aspectos yin e yang dos
fenômenos, a qual contempla as propriedades acima descritas, e será usada também em outros
momentos da pesquisa é a do Anel de Moebius. Proposta pelos matemáticos alemães August
Ferdinand Moebius e Johann Benedict Listing em 1858 e redimensionada por pensadores
como Lacan, José Gil, e artistas como Escher e Ligia Clark, o Anel de Moebius é um enigma
da geometria e do espaço: o lado externo é ao mesmo tempo o interno.

Como vemos, a imagem acima é similar àquela utilizada para simbolizar o infinito. A
pesquisadora Ciane Fernandes também usa o anel, e assim explica sua natureza:

Como no Anel de Moebius ou Figura Oito (descrita por Laban em termos de movimento,
1974, 98), ou mesmo como no espelho mágico de Escher (ERNST, 1996, pp.99, 76),
dualidades tornam-se contínuas gradações em transformação (2006.1).
51

Ou ainda a mesma autora, nessa outra formalização da idéia:

No Anel de Moebius [...] as duas extremidades do tempo (passado e futuro) se encontram num
ponto de inversão, criando uma torção sem interno-externo. [...] Dentro da Figura Oito, [...]
dualidades opostas e excludentes passam a ser transições entre diferenças (2006.2).

Assim, não há nunca uma extremidade pura, mas sim transições em gradações, aumentando
ou diminuindo de intensidade e transformando-se no outro. Ressalte-se ainda, que o
interior do Anel de Moebius, como o tao, traz o vazio.

A seguir uma tabela que contém exemplos de pares yin yang. Esta é uma seleção de
alguns aspectos a partir das diferentes fontes usadas na pesquisa. Aqui estão aqueles que
consideramos mais aplicáveis ao propósito de servir como estímulos para criações corporais.
Uma tabela é um mecanismo bastante restrito, e em termos visuais não dá conta da
representação das propriedades apontadas acima. Assim, optamos por criar esse formato de
tabela que busca traduzir, ou pelo menos se aproximar das características dinâmicas entre yin
yang.
52
53

Este material orientou várias dinâmicas corporais ao longo das etapas da pesquisa. As
propriedades acima descritas também foram trazidas na orientação de atividades de pesquisa
criativa, visando desdobrar suas possibilidades.

Frisamos que os pólos não se esgotam em si, como nos modelos dualistas dicotômicos,
mas agenciam configurações múltiplas a partir de sua mútua articulação. Assim, entre o curto
e o longo, ou entre o vazio e o cheio, por exemplo, há uma pluralidade de atualizações
possíveis e sempre renováveis. Como há também as relações de reciprocidade,
reversibilidade, interdependência, complementaridade e ambivalência.

A seguir descreveremos alguns exercícios que partiram dessa matriz, partindo-se


sempre de um dos pares acima enumerados:

A. Diagonais individuais:

• Diagonais em que se busca a transformação gradual de um pólo para o outro do


duplo. Por exemplo, saída com movimento centrípeto aos poucos se
transformando em centrífugo. Aqui está implícita a propriedade de inter-
consumo orientando a dinâmica.
• Diagonais onde se busca a mudança súbita de um estado em sua polaridade
máxima para o inverso. Como uma saída em movimento o mais sombrio
54

possível até o centro, a partir do qual se troca subitamente para movimento


luminoso. A característica marcante aqui é de inter-transformação.

B. Diagonais em dupla:

• Cada um sai de um canto da sala, com energias opostas. Vão se dirigindo


gradualmente para o outro pólo do par yin yang escolhido, e encontram-se no
centro buscando estarem em equilíbrio simétrico (no meio do caminho entre os
pólos) nesse ponto, para, a partir daí, irem trocando as polaridades com as
quais iniciaram o exercício. Por exemplo, um sai de um lado com movimento
de recepção e outro com movimento de penetração, no centro eles devem estar
com movimentação intermediária entre os pólos, para depois cada um ir
buscando a outra polaridade. Aqui se busca enfatizar o caráter oposto,
complementar e interdependente dos duplos. Outra variação é saírem das
extremidades num pólo, intensificarem este mesmo pólo, para no centro, ao se
encontrarem, promoverem a transformação súbita no pólo oposto.

C. “Dimmerização”:

• Os pólos funcionam ainda como uma espécie de dimmer ou graduador de


intensidades, que, na pesquisa de movimento, torna-se mais um parâmetro a ser
aplicado. Assim, tem-se uma dada partitura de ação física, advinda de alguma
experimentação, e nela se aplica um par de parâmetros como, por exemplo,
lentorápido. Tal partitura mais rápida, ou mais lenta, vai apresentar
desdobramentos da frase original que podem adequá-la melhor a um
determinado contexto. Outros pares podem funcionar nesse propósito. Alguns
tornam-se parâmetros mais concretos, como pesadoleve, e outros fornecem
imagens mais abstratas, como densosutil, vaziocheio, contraçãoexpansão,
altobaixo, curtolongo, tristealegre, etc. Com isso há a possibilidade de
explorar cada partitura ou célula física com pares que agem de formas
diferentes.

A idéia de usar os pares yin yang desta forma surgiu a partir da leitura do estudo de
Ciane Fernandes sobre Rudolf Laban (2002). Laban e seus discípulos organizaram seu
sistema de análise do movimento nesta relação dinâmica entre polaridades: teoriaprática,
55

dançateatro, corpopalavras, leveforte, livrencontido, funçãoexpressão, internoexterno, entre


outras. Para Laban, o espaço começa dentro do corpo (arquitetura do corpo) e este se expande
para o espaço (arquitetura do espaço), conectados através de variações de combinações
expressivas. Nesta “harmonia espacial”, interno e externo, e impressão e expressão, estão em
constante diálogo e recíproca transformação nos percursos ou traços de energia. Esta
harmonia fundamenta a expressividade do ator-dançarino, em ritmos, fraseados e ênfases
diversas.

Laban identificou quatro duplas de qualidades expressivas como norteadoras de


movimento, a saber: fluxo (contido ou livre), peso (forte ou leve), tempo (acelerado ou
desacelerado) e foco (direto ou indireto). Algumas destas duplas encontram aproximação na
listagem acima, dos pares yin yang. Além disso, discípulos de Laban vêm estabelecendo
diversas correspondências quaternárias aos fatores expressivos, inclusive com elementos da
natureza. Assim, peso é associado à terra, fluxo ao elemento água, tempo ao fogo e foco ao ar.
E, assim como na tradição chinesa, as qualidades expressivas nunca estão isoladas, mas
agrupam-se para criar uma imagem ou uma espécie de arquétipo energético. Por exemplo, nas
ações básicas temos variações de tempo, peso e foco, mas mantemos o fluxo constante.
Portanto, podemos associar acelerado, forte e direto (socar), ou desacelerado, leve e flexível
(flutuar).

Relacionamos os trigramas do I ching - e seus respectivos atributos - às ações básicas


de Laban, como disposto em quadros na próxima seção. E acrescentamos ainda a
possibilidade de graduar partituras ou movimentos com parâmetros que atuem de forma mais
abstrata – imaginária, poética, ou mesmo teatral - como com os pares frioquente,
noturnodiurno, medoraiva, entre outros15.

Esses emblemas demonstraram constituir material altamente sugestivo, podendo gerar


as mais diversas dinâmicas expressivas, de acordo com a necessidade e imaginação dos
envolvidos no trabalho. Como vimos, as propriedades ligadas aos emblemas também podem
servir de estímulo na invenção de propostas. As aqui descritas investigam as características de
oposição e inter-transformação, nos exercícios de transformação súbita, e a propriedade de
inter-consumo nos exercícios de transformação gradual. A propriedade interdependência está
presente em todas as dinâmicas, em especial na aplicação dos pares como dimmer, onde o ator
15
Em caso de interesse em se aprofundar nesse tema, a pesquisadora Ana Cristina Coelho Brandão, em sua
dissertação de mestrado, também associa princípios de Laban ao universo taoísta, em seu caso, mais
especificamente ao Tai chi chuan (2005).
56

pode perceber mais claramente, em sua partitura, a ação de cada pólo de um par graças ao
contraste relativo à ação do outro pólo.

Tanto nos exercícios descritos acima, quanto nos próximos, utilizamos, quando
achamos que é necessário, como recurso de apropriação da célula expressiva gerada o
seguinte percurso: após experimentação a partir de uma imagem sugestiva solicitamos ao
aluno, ou ator, que ele solte a sensação aos poucos e posicione as mãos sobre o umbigo
(principal centro de energia, usado em exercícios de chi kung). Então sugerimos que ele
percorra mentalmente o trajeto criado na experimentação, reconstituindo-a imaginariamente.
Depois de um tempo solicitamos que ele volte a instalar a sensação e a célula expressiva
criada a partir desta, e indicamos ainda que se perceba qual foi o caminho – psicofísico -
trilhado nesse processo de re-instalação.

Aqui estamos dando o espaço para que o ator entenda como se dará o acesso àquela
construção e sua manutenção, ou a manutenção daquilo que a anima, que a mantém viva.
Trata-se daquilo a que muitos teatrólogos vêm chamando sub-partitura, como veremos à
frente. Em seguida propomos a repetição do gesto de soltar e re-instalar a célula, até que o
ator tenha segurança de tê-la incorporado. Esse trabalho ajuda também a evitar a perda de
células conquistadas em experimentações, mas muitas vezes esquecidas depois.

1.2.b I ching

Podemos pensar no I ching como um meio de atualização de respostas mais ou menos


inconscientes, fornecidas (atualizadas) pelo próprio jogador, através do instrumento oracular.
O I ching, que inicialmente consistia tão somente em dois signos como respostas a perguntas,
foi sofrendo acréscimos até chegar, há cerca de 2.500 anos, ao formato próximo do que
conhecemos. A dupla de signos no qual se baseia o oráculo consiste em um par dinâmico e
complementar, e foi, posteriormente, vinculada às noções de yin e yang, que orientam a
filosofia taoísta.

O I ching é composto de 64 hexagramas (formados por seis linhas) que surgem a partir
da combinação de dois núcleos menores, os trigramas (formados por três linhas). As respostas
procuradas no I ching como oráculo, ou como um conjunto de situações humanas
arquetípicas, são dadas pelos hexagramas. Em nosso estudo focamos na simbologia dos oito
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trigramas, também conhecidos como ba gua. Cada um desses conjuntos de três linhas
representa um arquétipo, com determinados atributos, ligado tanto à posição familiar, como a
fenômenos da natureza, animais, partes do corpo, etc. Além do uso oracular do I ching - ação
que faz parte de nossa vida, nosso estudo se concentrou em referências ligadas aos oito
trigramas associando-as a exercícios, parâmetros e texturas de movimentos afins, visando
favorecer construções de determinados estados, ou “personagens”.

A imagem a seguir é o bagua,e mostra os símbolos dos oito trigramas básicos do I


ching, bem como os ideogramas que os representam. Os trigramas devem ser “lidos”
considerando a linha superior como a externa, e a inferior como a próxima da imagem do tai
chi.

Segue uma tabela hipotética, construída a partir de referências ligadas aos trigramas
arquetípicos do I ching, buscadas nas diversas fontes consultadas. Além destas referências,
acrescentamos algumas propostas cênicas de origens diversas, às quais relacionamos os
trigramas. Esta relação se pautou na tipologia de construções expressivas que cada dinâmica
tende a fomentar, de modo a intensificar um determinado aspecto a ser trabalhado. As
propostas associadas foram coletadas em matrizes diferentes como os estudos de Laban,
Barba, Decroux, Grotowski, Bob Wilson, Grupo Lume, etc., além de nosso próprio acervo de
propostas desdobradas a partir de fontes como as mencionadas.
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A partir desse material é possível, por exemplo, concentrar as atividades de uma aula,
ou de um dia de pesquisa, ou de uma dada composição, em um desses trigramas e buscar a
construção psicofísica de cada um desses estados. No caso de se completar o ciclo, cada ator
passa a contar com oito matrizes ou naturezas corpóreo-energéticas em seu repertório. Estas
podem ser usadas como bases para diferentes personagens, ou como suportes de estados de
uma mesma personagem. Podem ainda ser investigadas em perspectiva mais performática,
desvinculadas da construção de uma identidade. A abordagem vai variar de acordo com a
proposta em questão. A idéia é que se possa excluir e/ou incluir diferentes dinâmicas
associadas aos trigramas, desde que as escolhidas sejam percebidas como mobilizadoras de
uma mesma qualidade de estado.
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1.2.c Wu hsing

O primeiro nome relacionado à teoria wu hsing é o de Tsou Yen (-350 a –270), mestre
do yin yang e homem de profunda erudição e imaginação. As cinco energias foram
simbolizadas ciclicamente como: madeira, que é combustível para o fogo, que produz cinzas
originando terra, que em suas minas possui metal, que purifica a água, que por sua vez
alimenta a madeira, caracterizando assim o ciclo gerador. Entretanto, no ciclo destruidor, a
madeira suga os nutrientes (ou na forma de arado domina) a terra, que represa e absorve a
água, que apaga o fogo, que derrete e liquefaz o metal, que corta a madeira. (Watts, 1975: 62).
Há ainda outros ciclos fazendo com que haja uma relação intrínseca entre cada um dos
elementos e os restantes, caracterizando uma abordagem sistêmica. A cada elemento da
natureza estão relacionados uma emoção, uma forma de expressão, dois órgãos do corpo, uma
cor, um sabor e uma série de outros fatores que incorporamos ao universo de estímulos da
pesquisa.

Tal formulação teórica, em conjunto à relação yin e yang, são as principais fontes de
orientação da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), em suas diversas vertentes, como a
acupuntura, a moxabustão, a ventosaterapia, massagens como tuiná, do-in, shiatsu, a
auriculoterapia, etc. A MTC baseia toda sua compreensão e atuação sobre os corpos a partir
das relações aqui estabelecidas.

Na apreciação do diagrama-síntese (figura a seguir), criado a partir das diversas fontes


consultadas - o qual suprime informações consideradas não relevantes para esta pesquisa,
voltada à expressividade em cena - deve-se atentar para as seguintes observações:

• Existência de um ciclo de criação ou geração energética. Também conhecido


como relação mãe-filho, é o demonstrado pelas setas que unem os elementos
circularmente. Neste ciclo a madeira gera o fogo (queimando), o fogo gera a
terra (cinzas e preparo para plantio), a terra gera o metal (sob o solo), o metal
gera a água (purificando-a) e a água gera a madeira (alimentando-a).
Importante ressaltar que elemento filho também pode afetar o elemento mãe,
estabelecendo o que se chama de relação de ultraje, com as setas no sentido
contrário (sentido mostrado pelas setas tracejadas).
• Existência de um ciclo de restrição, depressão ou dominância. É o ciclo da
relação avô-neto, identificado pelas setas que formam uma estrela no centro da
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mandala. Aqui o elemento avô controla e limita a existência do elemento neto


na seguinte seqüência: a madeira domina a terra (sugando os nutrientes), a terra
domina a água (absorvendo-a), a água domina o fogo (apagando-o), o fogo
domina o metal (derretendo-o) e o metal domina a madeira (cortando-a).
Quando essa relação se estabelece de forma mais forte o ciclo é denominado
agressor, ou de dominância excessiva. Também neste ciclo há o movimento
contrário, denominado de contra-dominância, ilustrado pelas setas tracejadas
no sentido contrário.
• Assim fica mostrado que cada um dos cinco elementos pode afetar (ou ser
afetado) aos outros quatro de alguma forma, mostrando o caráter complexo e
dinâmico da teoria das cinco fases. A exemplo do que ocorre com os cinco
elementos, essas inter-relações expressas nos ciclos são válidas para todos os
outros aspectos associados da estrutura. Essas informações são fundamentais
para a realização das dinâmicas de estímulo à expressividade, uma vez que
cada emoção (ou sentido, ou outros aspectos) pode ser acionada pelo estímulo
ao elemento mãe e/ou sedação do elemento avô, por exemplo.
• A relatividade yin yang também é considerada, por parte da medicina chinesa,
em sua ação dinâmica sobre os aspectos da teoria das cinco fases, sendo que há
a busca pelo equilíbrio destes fatores. Nos fenômenos da natureza e do corpo
humano, há os considerados de natureza yin e os de natureza yang.
• A emoção associada à terra, que aqui consideramos como “obsessão” é
também, dependendo da fonte, considerada como “preocupação”, ou
“saudade”, ou ainda “desejo” e até “simpatia”. Consideramos melhor
adotarmos para este trabalho a “obsessão” por parecer-nos que esta pode, de
certo modo, englobar as outras.

É interessante fazer a apreciação da figura a seguir, conjuntamente à leitura e


análise das observações acima dispostas, para maior entendimento:
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Passo agora a apresentar exemplos de outras propostas de experimentação cênica,


inspiradas em matrizes chinesas. Aqui mostraremos dinâmicas norteadas pela matriz wu
hsing, nome chinês da mandala das cinco fases:

A. Vivência de exaltação de uma energia:

Buscando acessar uma das energias da mandala instala-se um ambiente voltado para um
dos elementos, usando-se como apoio os fatores associados listados na mandala. Usando
como exemplo a energia água, o encontro pode ser feito em uma praia ou cachoeira, por
exemplo, ou ainda levando-se água (física ou imaginariamente) para o local habitual de
trabalho. Desde o início tem-se em mente que a proposta é acionar e trabalhar os aspectos
ligados à água, de acordo com o que está descrito na mandala. Pode-se usar vestes de cor
negra, ingerir-se, dentro de uma organização ritualística, alimentos e bebidas de sabor
salgado. De acordo com o grupo envolvido pode-se usar uma pequena dose de bebida
alcoólica, como saquê, ou tequila, nesse caso, já que podem ser consumidos com sal. A
presença de pequena dose de álcool, usado de forma dirigida nesse tipo de trabalho, ajuda
a quebrar resistências habituais, já que instala estado alterado de consciência. É feito um
exercício de olhos fechados, buscando potencializar a audição. Trabalham-se emissões
vocais na vibração da vogal U. É feito um trabalho de expressividade física a partir da
sensação de frio (seja real ou sugestionada). Da mesma forma o sabor salgado estimula a
construção de uma corporalidade e fisionomia. Então se parte para um trabalho de
expressividade usando as idéias de velhice, medo e gemido. Todos os fatores associados
são usados visando a instalação de um estado para o trabalho do ator. As propostas podem
ser criadas de acordo com o grupo, respeitando-se a organização da mandala. Cada ator
deve trabalhar registrando no corpo as células expressivas, partituras e sensações, para ser
capaz de re-acionar o estado posteriormente. Este trabalho é feito com cada uma das cinco
energias, obedecendo a seqüência de geração, e pode ser feito um intervalo de pelo menos
duas semanas entre cada uma.

B. Construção de “entidades”:

Nos encontros posteriores a cada vivência pode-se trabalhar na composição de uma


entidade, a partir das conquistas expressivas daquele trabalho de exaltação. No caso da
água, retoma-se com mais tempo para cada proposta, o trabalho com a supervalorização
da audição, com a sensação do frio, com a impressão de salgado, com a idéia de velhice,
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com a expressão vocal gemido, com a emoção medo. Nessa fase busca-se trabalhar
isoladamente cada uma das propostas (ou duas por encontro), e ao mesmo tempo compor
a entidade que vai agregando as conquistas de todas as experiências, ou de quase todas de
acordo com a construção de cada ator. O processo de ir trazendo os resultados para a
construção da corporeidade pode ser retomado no fim de cada encontro e/ou em um
encontro específico para isso.

C. Ciclo de emoções:

Aqui se visa trabalhar a transição entre a expressão de estados afetivos, inicialmente


respeitando as relações da mandala, ou seja, a tristeza se transforma em medo, que se
transforma em raiva, que se transmuta em alegria, que gera obsessão. O foco é a energia
afetiva, ou emoção, separando-se aqui os outros aspectos da construção da entidade.
Opera-se então a transformação gradual da expressão de uma energia afetiva em outra.
Inicialmente trabalha-se em câmera lenta, numa diagonal, buscando vivenciar cada
milímetro de mudança no processo de transição. Depois se pode agregar a qualidade física
conquistada com o fator “tempo perigoso”, no caso da água, a resposta expressiva à
sensação de frio, que seria associada à emoção medo. Esse ciclo é baseado no ciclo de
criação da mandala. Outra proposta de exercício é trabalhar no ciclo de restrição, indicado
pelas setas em forma de estrela. Aqui se pode trabalhar em salto, ao invés da gradação, por
exemplo. A alegria é cortada pelo medo, o qual é rompido pela obsessão. Esta é cessada
pela raiva, que é cortada pela tristeza, que por sua vez é apagada pela alegria. É feito,
então, um exercício em que cada emoção vai sendo bruscamente transformada pela vinda
intensa e inesperada da outra, obedecendo aos ciclos. A gradação e o trabalho em salto
podem ser aplicados a todos os ciclos, sendo esta apenas uma proposta inicial. Pode-se
ainda trabalhar as mudanças, independente das seqüências da mandala.

D. Ciclo de fases:

Este trabalho respeita a princípio o ciclo de geração e inicia na madeira, cuja fase
associada é nascimento, seguindo para as outras. Assim as “entidades” vão
transformando-se obedecendo a uma cronologia real - do nascimento à velhice. Pode-se
experimentar a ordem do ciclo de restrição, ou outras aleatórias, visando partituras menos
realistas. Aqui se pode associar a fase à forma de expressão descrita no mesmo elemento
ou energia, e ainda inserir a respectiva emoção e alguma corporeidade conquistada com o
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fator tempo perigoso e/ou sabor. Nossa experiência demonstrou não ser produtivo associar
muitas referências ao mesmo tempo, então, sugere-se escolher no máximo três, a serem
indicadas gradativamente, para impulsionar uma experimentação.

Sempre importante lembrar que quanto mais inventividade e sensibilidade estiverem


envolvidas na construção dessas propostas, mais contribuições poderão ser trazidas. Essa não
é a proposta de um método fechado de trabalho, mas o esboço de uma idéia que pode - e deve
ser desdobrada, experimentada, questionada, acrescida, mexida, transformada, atualizada,
misturada, etc..

1.2.d Chi kung

Os meridianos são canais ou condutos invisíveis, por onde se dá a circulação de chi.


Estes trilhos imateriais se situam em nível subcutâneo e são responsáveis pela defesa,
regulação e ressonância do organismo, segundo a Medicina Tradicional Chinesa. Assim, para
os chineses, a saúde está diretamente ligada à boa circulação de chi por estes canais. Cada
meridiano é formado por determinado número de pontos que transmitem a energia em sentido
e ordem sempre constantes. Nesses pontos, trabalhados, por exemplo, em massagens chinesas
e na acupuntura, o chi pode ser mais facilmente atingido e manipulado. Segundo os estudiosos
eles possuem uma resistência elétrica menor do que as áreas ao redor, funcionando como
amplificadores, e transmissores de chi de um ponto para outro.

A MTC cartografou no corpo humano 59 meridianos, sendo que entre estes há 14


considerados mais importantes para a ação médica. Doze deles estão ligados às cinco fases
descritas na mandala dos elementos, caracterizando o aspecto yin e o yang de cada energia
(terra, água, madeira, fogo, metal). Apenas o elemento fogo possui quatro e não dois
meridianos, o que, somado aos outros, totaliza 12. Esses meridianos são ligados mais
especificamente aos órgãos yin e yang descritos em um dos elementos de wu hsing. Segue
imagem que mostra percursos de alguns meridianos no corpo:
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Os outros dois, entre os meridianos mais importantes, são os chamados vasos


maravilhosos, e passam verticalmente pelo centro do corpo, tendo como função regular o
fluxo de chi dos outros 12 meridianos. São eles o vaso da concepção e o vaso do governo ou,
em outra tradução, o canal de função e o canal de controle.

A seguir imagem que mostra o vaso da concepção (VC) e os pontos deste meridiano:
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E o vaso do governo (VG) e seus respectivos pontos:

Como vimos, além da acupuntura, há vários outros procedimentos ligados à MTC, que
se baseiam nesse mapa energético. Entre as práticas que operam nessa cartografia,
escolhemos alguns procedimentos do chi kung para acessar alguns desses pontos e canais. O
chi kung, é uma prática de reorganização energética que remonta aos primórdios da cultura
chinesa. Chi é um dos conceitos chave para a medicina taoísta, e é traduzido, usualmente, por
energia vital. O ideograma originário - que simboliza uma panela em cozimento de onde sai
vapor - indica uma noção que abriga características materiais e não materiais, remetendo ao
éter, ao vapor, ao sopro, à respiração, etc., o que mostra que, talvez, o melhor seja não traduzir
o termo.

Segundo Catherine Despeux (1981), os chineses sempre dedicaram atenção especial à


respiração, inclusive lidando com a idéia para além do processo fisiológico, e ligam a
inspiração ao yin e a expiração ao yang. Assim, dedicaram-se a “absorver os sopros aéreos
externos a fim de aumentar própria vitalidade e desenvolveram a arte de enriquecer o próprio
sopro pela troca com o sopro externo” (1981:58). Por volta de 403-221 a.C., período dos
reinos combatentes, exercícios psico-fisiológicos e respiratórios foram introduzidos pelos
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taoístas para tratamento e prevenção de certas enfermidades. Ao longo dos séculos novos
procedimentos foram sendo acrescidos à tradição taoísta, visando promover a regulação e
conservação de chi. O chi kung, derivado deste processo, é uma técnica de cultivo interior da
energia. A expressão chi kung ora é traduzida como “trabalho do sopro” ou “trabalho sobre
energia”. Despeux lembra que hoje, na China, realizam-se muitas pesquisas sobre as virtudes
terapêuticas da prática as quais têm sugerido que, entre outras benesses, ele aumenta a
resistência de doentes. Acredita-se ainda que o trabalho de emissão de chi possa ainda quebrar
ou mover objetos e curar pessoas. (1981:58). Em curso com o professor Ernani Franklin ele
apresentou um exercício de re-programação da água (purificando-a, tornando-a uma espécie
de água benta), e falou de estudos que mostram a transformação na forma de suas moléculas a
partir do chi kung. Outra imagem usada pelos mestres taoístas para descrever esse tipo de
trabalho, do qual o chi kung é um exemplo, é a de uma alquimia interior. As ações desses
treinos psicofísicos, ou psíco-fisiológicos, seriam de tal maneira transformadoras, que
mereceram tal designação.

Em textos datados do séc. XI, aos quais Catherine Despeux teve acesso, as seguintes
sensações são consideradas provas de eficácia do exercício:

Se através dos exercícios de flexibilização conduzimos o sopro de acordo com o processo


conveniente, sentimos calor e umidade nos pés e nas mãos... Destarte, todo o corpo transpira,
e sabemos, assim, que o exercício é eficaz (1981:70).

Ainda em Despeux, têm-se outras descrições de sensações, por parte de mestres taoístas:

Ao cabo de certo tempo, a transpiração desaparece, substituída por tremores: o movimento


imaginário do sopro guiado pelo pensamento criou um movimento real. Tais práticas do sopro
acarretam grande calma do espírito (1981:70).

E mais uma sensação descrita por um mestre taoísta, trazida por Despeux, esta parecendo
referir-se à sensação de formigamento “Quando você sentir insetos deslocarem-se entre a pele
e os músculos, acredite que foi bem sucedido” (1981:68). O professor Ernani Franklin
alertava também que às vezes o chi kung gerava desconforto, especialmente nos iniciantes:
tontura, baixas de pressão, enjôo, alem de dores musculares, em caso de pessoas menos
preparadas fisicamente. Para o professor, tais sensações podem estar ligadas a desequilíbrios
energéticos, ou de chi. Veremos que vários depoimentos de alunos da disciplina Técnica de
corpo para a cena 3 descrevem sensações similares às trazidas acima.
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Esses procedimentos são incorporados ao trabalho de maneira sutil. Não se trata da


prática tradicional de chi kung. Primeiro por que escolhemos apenas uns poucos
procedimentos, de um acervo bastante amplo de exercícios. Segundo por estarmos voltados
também para sua eficácia em cena. Assim trazemos o chi kung para compor momentos
iniciais e finais de dinâmicas, apoiar exercícios específicos, intensificar o trabalho energético
em determinada parte do corpo, despertar qualidades específicas de energia, etc. E ainda
visando maior concentração e consciência da realidade energética do corpo, no intuito de
habilitar cada ator a manusear, reorganizar, concentrar, expandir e direcionar seu chi. Nossa
prática indica que artistas que se apropriam de princípios do chi kung, podem ter instrumentos
diferenciados para construir processos singulares de reorganização energética, preparação
para o trabalho artístico, propriocepção do corpo sutil, além de estarem se beneficiando com
os efeitos profiláticos e terapêuticos da técnica. Ou seja, este trabalho mostrou potencial para
proporcionar aprofundamento nos processos de auto-conhecimento e crescimento pessoal e
profissional do artista.

A seguir o mapa dos centros energéticos segundo a cartografia corporal chinesa, que
deverá ser consultado para que o leitor possa visualizar melhor os treinos que descreveremos
em seguida. Segundo a sabedoria taoísta, há no corpo seis centros de energia, além de um
sétimo, considerado “a mãe dos centros”. Estes estão abaixo representados por círculos. Para
os treinos incorporados à nossa pesquisa, apenas três serão referidos. O primeiro é lin tai, uma
esfera mais ou menos do tamanho de uma laranja no centro da cabeça, iniciando três dedos
abaixo do topo (cocuruto) e a dentro da testa, na direção do “terceiro olho”. Este é o principal
centro de energia yang do corpo. O segundo, yin chao, é também uma esfera, de acordo com
as ilustrações um pouco menor que a primeira, que se encontra no colo do útero, ou na
próstata, e concentra nossa maior parte de energia yin. Por fim, tai yuen, a mãe dos centros, é
uma esfera um pouco mais robusta, e fica três dedos a dentro, acima e abaixo do umbigo. na
altura do umbigo. Nela se encontram dinamicamente as energias yin e yang do corpo. Em sua
base, chamada tan tien, três dedos abaixo e adentro do umbigo se encontra a maior
concentração de chi do corpo, trata-se de uma espécie usina de forças e zona de re-
organização energética. Observe-se a seguinte figura:
71

A seguir serão descritas as práticas de chi kung adotadas na pesquisa. Nas descrições
abaixo há referências cruzadas, advindas das diferentes fontes consultadas, incluindo
diferentes livros, apostilas e aulas por mim freqüentadas. Não me preocupei aqui em lidar
com as palavras – sejam imagens ou conceitos – em perspectiva acadêmica. Ative-me a
descrever os treinos usando os termos encontrados nas fontes, os quais demonstram eficácia
para a prática – entendimento tácito - ainda que possam ser questionáveis do ponto e vista
científico. A opção por narrar o procedimento como quem orienta o processo visa facilitar o
uso prático desse material por parte de quem se interesse em fazê-lo.

A. Entrar no vazio:

O kata base (postura básica) desse exercício, e de muitos outros consiste em deixar os pés
paralelos, abertos altura dos quadris, enraizados, o peso distribuído, os joelhos levemente
flexionados.
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Começa-se lembrando a imagem de wu chi - o vazio, na ausência, trazendo a sensação de


sem-limite, de não-existência, de vacuidade, representado por uma esfera vazia. A cabeça
esvazia, o peito esvazia e o baixo-ventre e a barriga relaxam expandindo lentamente com a
respiração. Para o mestre Liu Pai Lin, este é momento de “entrar no vazio do vislumbre
das maravilhas”.

Em seguida há o surgimento de chi (energia, primeira manifestação, representado por um


pontinho preto no centro da esfera), o espírito serena no centro yang: ling tai, localizado
no centro da cabeça, morada espiritual, sol interior. O olhar se volta para dentro e no
centro do vazio surge chi, a energia primordial, o germe da vida, a raiz celestial do/no
humano, origem da vida e da morte.

Daí desce-se o olhar interno lentamente, pelo meio do corpo, ao mesmo tempo em que se
engole saliva, até chegar a tai yuen, que é a mãe dos centros, circunferência localizada três
dedos adentro, abaixo e acima do umbigo. Manifestação de tai chi (grande energia, limite
supremo, existência manifestada, onde yin e yang estão dinamicamente unidos,
visualizadas como o símbolo redondo dividido em uma metade preta e outra branca, onde
cada uma contém o germe da outra).

Então a energia yang desce atraindo a energia yin que emana da terra e entra por yin chao,
centro yin, localizado na altura do colo do útero ou da próstata. As energias se encontram
na mãe dos centros, e fortalecem tan tien, base da mãe dos centros, localizada três dedos
abaixo e adentro do umbigo.

A união das energias da terra e do céu gera e fortalece tai chi. A eletricidade yin do yin
chao é atraída como um imã para o tan tien pela eletricidade yang do ling tai. Apenas usar
o olhar interno, sem esforço, treino no vazio. Manter a atenção aí por algum tempo.

B. Sentar na Calma:

No mesmo kata base deve-se visualizar um redemoinho cujo vértice esta no centro yang,
(a imagem do redemoinho entra pelo local onde outrora estava nossa moleira, o chamado
cocuruto da cabeça, através do ponto bai hui, ou portal dos Cem Encontros). Este furacão
imaginário capta energia celeste traz para o ling tai (centro de energia yang, quatro dedos
abaixo do topo da cabeça e adentro da testa na direção do ponto tian men, conhecido por
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porta celestial, ou terceiro olho, também conhecido por VG 24 – que significa ser o ponto
24 do meridiano vaso do governo. Por esse ponto também é possível captar energia).

Em seguida engole-se saliva, trazendo a energia yang captada para mãe dos centros tai
yuen (circunferência energética três dedos adentro do umbigo, cuja base tan tien, três
dedos adentro e abaixo do umbigo, é o ponto central de equilíbrio, o campo do elixir, e
reúne/concentra toda energia da esfera. É o ponto do vazio).

Coloca-se mão esquerda por baixo e direita por cima, firma energia na mãe dos centros.

Depois concentra atenção no portal yon chuen, traduzido por fonte borbulhante ou
jorrante, (que é o ponto R1 – ponto 1 do meridiano dos rins, na sola dos pés, entre os
montes do polegar do pé e o monte dos outros dedos). Por este portal se capta energia yin,
da terra.

Então pulsa-se o períneo, captando ainda essa energia yin por tin guan, ponto de captação
conhecido como portal da essência, localizado entre o sexo e o ânus. Esta energia é então
direcionada, ainda por meio da pulsação do períneo, para o centro yin, yin chao
(localizado no colo do útero/próstata) e daí segue para mãe dos centros, tai yuen. As mãos
permanecem lá, a esquerda por baixo, tocando diretamente o ventre, a direita por cima,
sobre a mão esquerda.

Engolir em cima e pulsar embaixo reúne as energias do céu e da terra em nossa usina de
força. A energia yin, fria (ligada a terra e a água) deve ser estimulada a subir, já que tende
a estagnar embaixo, e a energia yang, quente (ligada ao céu, e ao fogo) deve ser
estimulada a descer já que tende naturalmente a subir.

C. Captação de energia

Se colocar na posição descrita como kata base. Os cotovelos se dobram de modo que as
palmas das mãos se voltem na direção da fonte de energia a ser captada. Deve-se ter
consciência de que no centro da mão há um ponto de captação, o nei lao gong, traduzido
por palácio do trabalho interno, e que as pontas dos dedos operam como antenas. Abrindo
polegar e indicador em ‘L’ ativa-se a entrada do portal, o processo de captação de energia.
Mexendo as “antenas”, pontas dos dedos, também. Pode-se captar energia do sol, da lua,
estrelas, flores, árvores, terra, etc. Após um tempo de captação inclina-se a coluna pra
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frente, junto com a expiração do ar, trazendo as mãos para tai yuen (mãe dos centros),
então as mãos sobem abrindo diafragma e corpo vai para traz, engole-se saliva/energia e
pousa-se novamente as mãos na mãe dos centros.

É interessante olhar a fonte de onde se capta energia com o que os mestres chineses
chamam de “olhar de mulher enamorada”, ou seja, mantendo os olhos semi-cerrados
durante a captação. Também é aconselhável, em todos esses exercícios, mater um certo
sorriso nos lábios. E ainda, em todas essas praticas de chi kung aqui descritas, deve-se
encostar a ponta da língua no palato. Este gesto estabelece a reconexão entre os vasos do
governo e da concepção, segundo a medicina chinesa separados na ocasião do fechamento
da moleira. O vaso do governo nasce em tai yuen (mãe dos centros), desce internamente
até yin chao (centro yin) e segue pelas costas, acompanhando a linha da coluna vertebral,
circulando o corpo pelo topo da cabeça, entrando pela parte de cima da boca até terminar
na gengiva superior. Já o vaso da concepção, nasce no mesmo lugar desce igualmente por
dentro do corpo só que segue pela frente do tronco, paralelo à coluna, passa pelo umbigo,
pelo centro do peito, entra pela parte inferior da boca, e termina na raiz da língua.

D. A Circulação do Pequeno Universo

Colocar-se na posição base. Este é um exercício de conexão e circulação energética entre


o vaso da concepção (também conhecido como meridiano ren) e vaso do governo (ou
merdiano du). Para melhor visualização da prática recomendamos observar novamente as
figuras que ilustram o VC e o VG. Inicialmente se concentra no centro yang e no terceiro
olho, faz esse percurso algumas vezes, até deixar a energia sair e circular a partir do ponto
yin tang (entre as sobrancelhas, componente do portal celestial, ponto tienmen, ou tien mu,
terceiro olho). A energia desce pelo VC (vaso da concepção) circulando o tronco pelo
meio, passa para o VG (vaso do governo), subindo pelas costas, dá a volta no corpo,
retoma o VC e termina mãe dos centros, abraçando a mão esquerda em baixo, a direita em
cima. (vide ilustração dos meridianos VC e VG)

Durante o percurso deve-se prestar atenção e intensificar energeticamente a ação em


alguns pontos. São eles: entre as sombrancelhas (yin tang), entre os mamilos (VC 17, tanz
hong, ou centro aberto), no umbigo (VC 8, qiz hong, ou meio do umbigo), quatro dedos
abaixo do umbigo (VC 4, tan tien), na ponta do cóccix (VG 1, gui wei, ou cauda da
tartaruga), no centro do osso sacro (centro energético alma run), na coluna na mesma
75

altura do umbigo (VG 4, abaixo da segunda vértebra lombar - centro energético yi, ou
intenção), na coluna na mesma altura do centro dos mamilos (VG 11, abaixo da quinta
vértebra torácica - ponto relacionado ao coração, jia ji guan), abaixo da sétima cervical,
início da torácica (VG 14, daz hui,ou grande vértebra - ponto relacionado à menopausa)
abaixo da base do crânio (VG 16, tien lin kai), no topo da cabeça (VG 20, bai hui, ou cem
encontros). Outros pontos são indicados nas fontes consultadas, mas pela dificuldade em
localizá-los durante o exercício, optei por não focá-los.

Além dos treinos acima descritos, há desdobramentos possíveis que experimentamos


para apoiar exercícios específicos. Por exemplo, ao investigarmos os trigramas arquetípicos
do I ching, damos ênfase, no chi kung (que abre os trabalhos do dia), às partes do corpo a
serem investigadas expressivamente naquele dia, irradiando energia ao local. No caso do
trigrama Trovão, enfocamos os pés, com exercícios de base, e a coluna, que trabalhada no
exercício da serpente. Ambas as partes estão associadas a esse mesmo trigrama, e são focadas
pelo chi kung naquele dia. Assim, partimos do treino sentar na calma, por exemplo, e
lançamos a energia re-organizada e fortalecida na mãe dos centros, para a parte do corpo em
questão, como o pé. Ou, no caso da coluna, podemos partir do treino “Circulação do Pequeno
Universo” e, ao fim do treino, focamos a energia só na coluna.

Outra forma de usar o chi kung para apoiar exercícios é dar ênfase á captação de energia
yin ou yang, conforme o trabalho do dia. No dia que é trabalhado o trigrama Céu, há ênfase na
captação pelo centro yang, que fica na cabeça, parte do corpo a ser trabalhada no dia. No dia
do trigrama Terra há ênfase no centro yin, que fica no baixo ventre, parte do corpo ligada ao
trigrama. Às vezes, dependendo da ênfase empregada, é importante fazer o chi kung também
ao fim do trabalho, visando re-organizar as energias mobilizadas em função do trabalho
expressivo, já que pode haver desequilíbrio de captação pela necessidade da pesquisa do dia.
Nesse caso pode ser feito o treino “Sentar na Calma” para finalizar o processo.

Na pesquisa expressiva das energias da mandala o chi kung pode ser feito com ênfase
na emanação de energia para os órgãos e o tecido ligados à determinada energia, como por
exemplo, pulmão e intestino grosso e/ou pele, no caso do metal. Ou ainda é possível usar o
treino “Captação de Energia”, diretamente voltado para o elemento que vai ser trabalhado,
seja fogo, água, terra, metal ou madeira. Nesse caso, havendo possibilidade de deslocamento,
76

é bom estar em contato com uma amostra significativa do elemento, por exemplo: fogo – sol
ou fogueira; água – cachoeira ou mar; terra – terra, areia ou grama; metal – jazidas de metais;
e madeira – árvores.

Vale lembrar que as possibilidades de desdobramento na utilização das matrizes no


trabalho de ator são infinitas, e dependem de criatividade e feeling de cada um. Só alertamos
para o fato de qualquer trabalho, especialmente ao se lidar com corpos e energias, seja feito de
modo responsável, atento, sensível e ético.
77

CAPÍTULO 2

MATRIZES CÊNICAS

Após a apresentação das matrizes taoístas que alimentam nossa pesquisa cumpre que
tratemos também das matrizes na área das artes cênicas que norteiam a presente investigação.
Parte das experimentações na cena ocidental atual apresenta, inclusive, tendências afins ao
ideário – tanto filosófico, como taoísta - abordado neste estudo. Entre essas experimentações,
há algumas com as quais a presente pesquisa se identifica. Porém, falar de características
desse suposto recorte – cena contemporânea ocidental – exige antes algumas ressalvas.

Em primeiro lugar, como vimos, o ocidente, tal qual o oriente, é uma construção por
demais abstrata. Ou seja, tais idéias que se arvoram totalizadoras e uniformizantes são
insuficientes, falhas e não dão conta da diversidade que cada uma dessas convenções
geopolíticas abriga. Assim, ao nos referirmos à cena ocidental, estamos deixando de fora as
manifestações artísticas tradicionais desse suposto oriente, ainda que cientes de que muitas
destas tenham balizado fortemente o redimensionamento da cena em nomes como Artaud,
Brecht, Grotowski, entre vários outros16. E vale frisar também que no teatro realizado no

16
Na bibliografia desta tese há alguns livros que podem fornecer mais informações sobre a cena dita oriental.
Sobre linhas específicas, como o Nô e o Butô, os livros de Christine Greiner podem ser consultados. Há ainda
estudos comparativos entre a cena ocidental e a oriental, como Teatro leste & oeste, de Leonard C. Pronko, A
Canoa de Papel de Eugênio Barba e A Arte Secreta do Ator, de Eugênio Barba e Nicolas Savarese. Os estudos
de Brecht e Artaud, assim como o livro de Matteo Bonfitto, trazem alguma contribuição sobre o assunto, além de
estudos de Ciane Fernandes (2006.3).
78

oriente, hoje, há diversas perspectivas teatrais altamente contaminadas por tradições


ocidentais, dentre as quais certamente várias caberiam em nossa moldura.

Da mesma forma vale registrar que o termo contemporâneo não deverá ser entendido
como ligado a uma escola, uma linha estética, uma crítica ou uma avaliação. Quando falarmos
em contemporâneo aqui, será da forma mais literal possível: como fazendo parte de uma
mesma época. Entretanto não se pretende dizer que qualquer das tendências aqui discutidas
seja genuína ou exclusiva desta época contemporânea, assim como não é do chamado
ocidente. Ou seja, vários dos aspectos que serão trazidos podem ser observados em escolas
oriundas de diferentes épocas e regiões.

Assim, entenda-se que, por falta talvez de melhores termos ou noções menos
desgastadas e criticadas, falamos em observar tendências de parte da cena ocidental
contemporânea. E, frisamos, trataremos apenas de uma parte dessa moldura – já que esta não
é tampouco um bloco uniforme - parte essa que apresenta algumas tendências afins às
presentes em nossa perspectiva de encenação e interpretação.

Poderíamos buscar apoio na noção de teatro pós-dramático, de Hans-Thies Lehmann


(2003), que inclusive discute aspectos bastante coincidentes com vários dos que aqui
trataremos. A revisão do lugar do texto dramático, no espetáculo, fazendo emergir um
alargamento da própria noção de dramaturgia, que passa a dar conta de outros elementos
enunciadores da cena. A conseqüente problematização da representação, enquanto recurso
ilustrativo ou redundante à dramaturgia textual, assim como da construção logocêntrica e
linear da narrativa ou da cena. As produções nas encruzilhadas entre arte e vida, cena e platéia
e diferentes linguagens artísticas. O foco na recepção, com um cunho político, de provocação
de diferentes vieses de percepção/apreensão da obra/vida, acionando (cri)atividade também
por parte do espectador. A aceitação - e busca - dos paradoxos, dos vazios, da multiplicidade
de sentidos, da não-hierarquização, da não-centralização, dos silêncios, dos hiatos, das forças
performativas da materialidade cênica. Estes, entre outros aspectos, são trazidos por
Lehmann, como concernentes ao pós-dramático.

Entretanto, ainda que o conceito pareça favorecer esse estudo por um lado, algumas
críticas já apontadas ao termo tornam sua utilização problemática17. Um desses aspectos diz

17
Conferir a revista Humanidades, número 52, de novembro de 2006, com vários artigos sobre o pós-dramático.
Dentre eles destacamos os de Silvia Fernandes, Fernando Villar, Rosangela patriota, Luiz Fernando Ramos e
Matteo Bonfitto. (2006)
79

respeito à totalização. Ou seja, ao se tentar dar conta de um conjunto de ações ou tendências


cênicas, que, em outros aspectos são sutil ou extremamente diversas entre si, incorre-se no
risco de se desprezar importantes especificidades. Por outro lado, os conceitos, apesar de
operativos, podem tender a uma postulação – por vezes subliminar - de regras ou leis, o que
poderia tornar esse estudo um jogo de “se encaixa ou não” na noção de pós-dramático. Não
creio que isso contribuiria aqui. Além disso, em virtude do recorte temporal que Lehmann
sinaliza como sendo o referente ao pós-dramático – as últimas décadas do século XX -
acabaríamos tendo que excluir importantes referências para nossa pesquisa, como Artaud e
Meyerhold, por exemplo. Dessa forma, mesmo ciente da importância de se elencar e discutir
parâmetros e princípios afins a um dado conjunto de obras, tarefa a que se propôs Lehmann,
entre outros18, preferimos pensar tais tendências e características sem tratar de dar-lhes um
título comum.

2.1. Tendências afins

O deslocamento do enfoque no discurso verbal/textual do ator para uma dramaturgia


que vai passar em grande parte pelo corpo em cena, seus movimentos, gestos e suas ações
físicas, é uma dessas orientações. Trata-se da quebra da hierarquia em que o texto é
protagonista, como queria Artaud a partir do que ele percebe em manifestações do teatro
oriental. O corpo, assim como adereços, figurinos, luz, cenário, não vêm apenas corroborar ou
ilustrar um discurso centrado na palavra, mas ganham estatuto dramatúrgico, enunciam. Tais
discursos, do corpo e da mise-en-scène, ganham uma maior autonomia e também atuam como
definidores do teor da obra. Não funcionam mais como acessórios, prolongamento ou
reafirmação do texto necessariamente, mas dialogam com este performativamente,
acrescentando dados, tornam-se elementos prenhes de sentidos próprios e necessários à
apreensão do espetáculo. Diz Derrida sobre a proposição artaudiana, a qual reflete a
disposição para a “morte de Deus”, entendida como o fim das hierarquias, das centralizações,
do sujeito como mônada, entre outros desdobramentos:

18
Fernando Villar em artigo na revista Humanidades (2006), acima mencionada, relembra o termo teatro
performance, proposto por Timothy Wiles em movida semelhante à de Lehmann. A própria arte da performance
poderia ser pensada como fomentadora ou balizadora de várias dessas tendências cênicas atuais, discutiremos
isso adiante, especialmente a partir de estudos de Renato Cohen (1998). Entretanto, da mesma forma que em
relação ao conceito de pós-dramático, o esforço pela adequação ou não dos termos às referências aqui trazidas
nos desviaria de nosso foco.
80

O palco é teológico enquanto for dominado pela palavra, por uma vontade de palavra, pelo
objetivo de um logos primeiro que, não pertencendo ao lugar teatral, governa-o à distância. O
palco é teológico enquanto [...] um autor-criador [que] ausente e distante, armado de um texto
vigia, reúne e comanda o tempo ou o sentido da representação (1971:154).

No tenro início do século XX, Vsevolod Meyerhold já trazia investida semelhante,


demonstrada por sua insatisfação com a preponderância do viés ilustrativo e realista da cena
de então. Em recente publicação Fátima Saadi organizou e traduziu alguns ensaios de Béatrice
Picon-Vallin sobre o encenador (Picon-Vallin, 2006). Arlete Cavaliere também dedicou uma
investigação importante sobre a poética meyerholdiana (Cavaliere, 1996). Nesses estudos
percebemos que ainda que partisse de textos dramatúrgicos propriamente, o encenador se
recusava a uma posta em cena previsível, linear e reprodutiva. A busca consciente por uma
artificialidade teatral, amparada por princípios como o paradoxal, o grotesco, a musicalidade,
a corporeidade, a ênfase no desenho, na visualidade e na materialidade da cena, tinha também
um teor político. Meyerhold desejava uma recepção ativa e perceptiva por parte do público. A
proposital não-coincidência entre os discursos da fala e do texto por um lado, e do corpo e da
cena por outro, já visava claramente a uma enunciação polissêmica.

Essa busca por outras falas, outras vozes na cena, é identificada por Renato Cohen em
seu estudo sobre o teatro contemporâneo, onde ele entende que “orquestra-se uma cena
polifônica e polissêmica apoiada na rede do hipertexto” (1998:xxiv). As idéias de Deleuze e
Guattari encontram aqui uma possível tradução. É nos agenciamentos dos sentidos – estético,
semântico e patético19 - que se vetorizam de maneira nem sempre ordenada, que o espectador
vai produzir sua apreensão. Tais cenas procedem por para-lógicas (Lyotard) ou eco-lógicas
(Guattari), as quais têm uma natureza não causal, e não linear, e que proporcionam maior
trabalho no processo de recepção.

Essa mudança paradigmática na cena, onde o verbal e o racional passam a não


predominarem como fatores de apreensão, encontra ecos no ideário taoísta. O jogo dialético
entre o visível e o invisível, o oculto e o evidente, o explicável e o inexplicável, o

19
Esse triplo entrelaçamento é proposto por Georges Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha. São
Paulo: Ed. 34, 1998. Tradução: Paulo Neves. O autor refere-se a uma espécie de conjunto de pontes que se
lançam no processo de recepção, entre as vias de apreensão: sensorial (estética), racional (semântica) e
emocional ou sintomática (patética). Não fosse um tema tão desgastado, desacreditado e ingrato ao trânsito
acadêmico, acresceríamos uma quarta acepção da noção de sentido a essa trama de Didi-Huberman. Esta se
ligaria à energética dos corpos em cena. Adiante veremos que Patrice Pavis se arrisca nesse terreno, trazendo o
conceito de teatro energético, de Lyotard. Apesar de criticar Barba pelo uso, segundo ele pouco formal, do termo
energia. Em tal campo – uma espécie de energética da cena - os treinos com chi (chi kung) podem produzir
importantes resultados, ao favorecer o manejo de chi no corpo, seja pela captação, emissão ou pela re-
organização deste.
81

compreensível e o incompreensível (do ponto de vista da lógica clássica), é privilegiado na


sabedoria chinesa. François Jullien, filósofo contemporâneo estudioso de tradições chinesas,
traz em seu livro Um sábio não tem idéia (2000) várias considerações que ajudam a perceber
melhor alguns princípios e noções comuns à sabedoria de um modo genérico, e mais
especialmente ao taoísmo e ao confucionismo. Sobre a questão acima a seguinte passagem
pode ser elucidativa:

em vez de se redundar verticalmente (por abstração) numa universalidade de essência (e isso


com um simples objetivo de conhecimento), sua capacidade de efeito leva-o a se comunicar
transversalmente, cada vez mais, com todos os outros lanços, aspectos ou “momentos”, da
experiência (2000: 46-47).

A motivação de alguns encenadores por não mais privilegiar o aspecto textual ou lógico da
montagem visa, entre outras coisas, essa comunicação transversal, essa dilatação da
perspectiva de um entendimento para uma experimentação da obra, por parte da recepção. Há
o intuito – político e, por conseguinte de cunho ético-estético - de provocar um tipo especial
de apreensão, através de uma cena que promovesse algo que poderia ser descrito nas seguintes
palavras de Jullien sobre a sabedoria:

Em vez de forçar o pensamento, ela se infiltra nele e, nele se dissolvendo, o “banha” e


contamina. E, por conseguinte, certo sentido (sabor) se difunde continuamente,
imperceptivelmente, cada vez mais. Essa consideração se alastra, como dizemos; e,
propagando-se tão discretamente, não cessa de levar a outros aspectos, faz levar em conta
outros lanços, mais vastos, ainda não percebidos. Sua “sutileza”, para retomar outra noção
chinesa – que também vale para um corpo ou para um sentido: sentido sutil, substância sutil, -
é indicial (2000: 45-46).

Outra abordagem que vem redimensionando vertentes da cena teatral passa por pensar
as noções de corpo e presença para além da fisicidade, abrangendo latências, sensações,
sentimentos e pulsões. Essa perspectiva parece ser enfraquecida pela pré-disposição de anular
ou mascarar os vestígios do ser-ator por trás de uma personagem construída. Aqui seria
menos o gesto de incorporar uma subjetividade forjada, totalmente alheia, e mais a
perspectiva de propor recursos que fomentem composições expressivas, a partir de matérias
singulares, a serem re-alocadas em cena.

Essa perspectiva se relaciona, dentre outros aspectos, à busca de maior autonomia por
parte do ator. À época da luta de Artaud contra o poder do texto e do autor, o que estava em
jogo era ao mesmo tempo a defesa da independência, e de poder do encenador/ diretor. Pouco
depois, os atores também passam a reivindicar, o direito à criação de discurso (mesmo que
82

não verbal). Surgem termos como intérprete-criador, performer, ator-compositor, os quais


traduzem essa vontade por parte do artista cênico.

Apesar de que, convém lembrar, Meyerhold já trazia, em seus postulados sobre a


biomecânica, uma equação que colocava o ator (N), como a somatória entre uma instância
criadora (A1: organizador) e outra executante (A2: material organizado): N=A1 + A2
(Cavaliere, 1996). Em que pesem, nessa matemática, vestígios de uma dicotomia corpo-
mente, o que salta aos olhos, é o pioneirismo da abordagem, tendo em vista seu lugar
histórico. A equação sugere uma legitimação da participação ativa do ator no processo de
escolhas, recortes e até composição de ações. Provavelmente seu aprendizado com o mestre
Stanislávski, que revê radicalmente o papel da formação e do trabalho do ator influenciou
ativamente nessa perspectiva.

Entretanto, a tendência à qual nos referíamos anteriormente, se refere mesmo à


proposição de fazer dialogarem aspectos dramatúrgicos, singularidades do artista, e ainda
recursos técnicos de construção de teatralidade. Muitos desses recursos de criação expressiva
se apóiam em uma espécie de desnudamento do ator, como propôs Grotowski. Passariam,
assim, por uma imersão desse artista em si mesmo, quando ele vai investigar questões
próprias que possam tanto alimentar seu processo criativo, como trabalhar sua personalidade,
para então serem devolvidas à cena, transmutadas em composições poéticas.

Patrice Pavis aborda a questão no verbete corpo de seu Dicionário de teatro (2003).
Ele entende que a abordagem do corpo em cena oscila entre duas concepções.

a. O corpo não passa de um ralé e de suporte de criação teatral, que se situa em outro lugar: no
texto ou na ficção representada. O corpo fica, então, totalmente avassalado a um sentido
psicológico, intelectual ou moral; ele se apaga diante da verdade dramática, representando
apenas o papel de mediador na cerimônia teatral. A gestualidade desse corpo é
tipicamente ilustrativa e apenas reitera a palavra.
b. Ou, então, o corpo é um material auto-referente: só remete a si mesmo, não é
a expressão de uma idéia ou de uma psicologia. Substitui-se o dualismo da idéia e da
expressão pelo monismo da produção corporal: ‘o ator não deve usar seu organismo para
ilustrar um movimento da alma; deve realizar o movimento com seu organismo’
(Grotowski, 1971:91). Os gestos são - ou ao menos se dão como – criadores e originais.
Os exercícios do ator consistem em produzir emoções a partir do domínio e do manejo do
corpo (2003:75).

Entendemos o efeito didático dessa separação, ainda que acreditemos que tamanho
purismo está cada vez mais raro de se presenciar, na prática. Há muitas abordagens da cena
que ultrapassam esse (pseudo) dilema exposto por Pavis, trazendo aspectos de uma e outra
83

concepção de corpo em cena, atrelados em uma busca mais basilar ao teatro: por
expressividade e teatralidade. De qualquer forma, parece haver mesmo certo descompasso
entre uma perspectiva contemporânea do corpo e a proposição que entende que o ator deva
emprestar seu aparato físico a uma outra organização física e mental - a personagem. Como -
e por que - dissociar o corpo-ator de si mesmo - de sua própria história, sua subjetividade - se
essa espessura ontológica pode, inclusive, ser fonte abundante de criatividade e
expressividade? Além de, segundo vários artistas, poder ser essa uma ação que colaboraria no
processo de auto-conhecimento e crescimento pessoal do ator.

Grotowski, por exemplo, é um dos nomes mais emblemáticos, e talvez pioneiros,


nesse tipo de abordagem. Para ele, o desnudamento do ator, o despojamento de suas máscaras,
o esforço de auto-aceitação e revelação, seriam as atitudes a serem buscadas por um intérprete
diante de seu público, visando um encontro real com este (1971). E para Grotowski, a
disponibilidade de trabalho pessoal do ator está diretamente ligada a seu desempenho
expressivo:

Quanto mais nos absorvemos no que está escondido dentro de nós, no excesso, na revelação,
na auto-penetração, mais rígidos devemos ser nas disciplinas externas; isto quer dizer a forma,
a artificialidade, o ideograma, o gesto. Aqui reside todo o princípio da expressividade
(1971:34).

Essa inter-relação está ainda mais explícita em uma outra citação de Grotowski,
encontrada no livro A canoa de papel, de Eugênio Barba:

A ação física deve apoiar-se e fundar-se sobre associações pessoais, íntimas do ator, sobre
suas baterias psíquicas, sobre seus acumuladores internos (1994:164).

E Jean Jacques Roubine, autor de alguns estudos sobre o teatro, acrescenta sobre o método
grotowskiano:

mas o cansaço, o esgotamento psíquico e nervoso que, numa prática tradicional, são
prejudiciais, permitem aqui, pelo contrário, a emergência de uma verdade refugiada,
recalcada, que o autocontrole não pode mais mascarar nem deformar. Em suma, o
esgotamento é o estado mais propício ao autodesvendamento (1998:195).

Roubine lembra, inclusive, que a pesquisa de Grotowski foi, em diversos momentos,


considerada aparentada a um viés psicanalítico, mas alerta para constantes equívocos e
armadilhas que semelhantes perspectivas podem trazer (1998:196). Em que pese o fato da
noção de verdade poder ser exaustivamente questionada do ponto de vista filosófico – assim
84

como as idéias de auto-conhecimento, autodesvendamento, auto-penetração, se pensados em


sentido teleológico e definitivo – não nos estenderemos nesse ponto.

Apresentando o livro de Cohen, Silvia Fernandes entende que “a fala disforme, o gesto
avesso, a cena assimétrica e disjuntiva, a colagem estranha talvez componham as vicissitudes
necessárias de uma arte que recusa a forma acabada e faz sua ontologia no território obscuro
da subjetividade” (1998: xvii). Esse território da subjetividade, como diz a autora, é muitas
vezes atribuído como fonte de criação de ações da chamada arte da performance. Entretanto,
ainda que possam derivar daí instigações para novas ações das artes cênicas, o fato é que a
dança e o teatro, por exemplo, já incorporaram essa abordagem em seus campos específicos e
a trouxeram para seus processos criativos e suas pesquisas sobre o intérprete-criador e a cena.

Cohen traz um estudo sobre a cena contemporânea, pensando-a como contaminada por
elementos da performance, conceito que ele restringe ao campo da linguagem artística. A arte
da performance seriam ações envolvendo diferentes formas artísticas, inspiradas pelas
vanguardas a partir de meados do século XX. Porém, ainda que seja grande a contribuição de
Cohen no pensar diversos aspectos da cena contemporânea, o autor às vezes cai em dilemas
que fazem seu discurso esbarrar no problema da dicotomia. Quando diz que “o performer
acumula autoria e atuação”, e “o ator opera mais próximo do campo do transporte, da
representação” (1998:81), ele restringe o alcance da noção de ator, e também da de
performance, que contraposta à idéia de ator fica confinada à perspectiva da ação
vanguardística, ou ainda ao campo da linguagem, como ele mesmo sugere20. O paroxismo
dessa dicotomia seria a generalização e radical oposição das idéias de teatro e performance, o
que em nada favorece uma perspectiva plural, que venha a tentar dar conta da diversidade que
é a cena contemporânea.

O teatro tem várias faces, algumas inclusive bastante contaminadas por princípios da
arte da performance. Aliás, de certa forma é o que ele mesmo defende em Work in progress
na cena contemporânea (1998), mas não sem esbarrar em algumas proposições que, a nosso
ver, alimentam antagonismos que não contribuem nesse pensar a cena. Uma delas é a de
achatar – ou até banir em alguns contextos – ao invés de alargar a noção de ator.

20
Performance como linguagem é o título de seu primeiro livro.
85

Em outra passagem, Cohen remete a outra oposição, dessa vez entre as idéias de
poiesis e mimesis. Para o autor, a performance instauraria uma cena da ordem da poiesis em
contraposição à cena da mimesis. E propõe as seguintes definições:

Poiesis enquanto cena gerativa, primária, abstrata - com estatuto próprio enquanto ‘realidade’,
sem contraponto. Mimesis como cena reprodutiva, iconográfica, secundária a uma realidade
primeira (1998:9).

Mais uma vez, e possivelmente sem esse propósito, Cohen parece fomentar uma dicotomia
em uma relação dual, que ganharia mais ao ser pensada como ambivalente.

Alguns dos chamados exercícios de composição de Grotowski (1976:116), por


exemplo, envolvem essa dupla perspectiva. Eles partem de processos imitativos, seja de
animais, vegetais, pessoas em idades diferentes, paródias de conhecidos, para depois
ganharem atualizações, nuances singulares, tratamento criativo. Nos trabalhos vocais também,
segundo Grotowski, pode-se partir de imitações paródicas de timbres, vícios de fala, ou
dificuldades de dicção (1976: 139-141). Em Grotowski esse recurso funciona como meio para
o ator explorar suas possibilidades expressivas, podendo em seguida criar a partir disto,
dando-lhes o viés poético.

Se pensarmos no trabalho do grupo brasileiro Lume, também vamos encontrar


vestígios de uma interação bastante imbricada entre as idéias de mimesis e de poiesis. Luís
Otávio Burnier (2001), fundador do grupo, falava sobre a imitação das corporeidades, que
passaria por uma observação atenta e sensível, quase intuitiva, por parte do ator em relação ao
objeto sobre o qual atuará a mimesis. Essa natureza de olhar já contém aspectos criativos. Ela
se interessa não apenas pela fisicidade - os aspectos concretos e mecânicos da ação, mas
também pela corporeidade do que será imitado. E ainda, para recriar em seu próprio corpo
aquelas “qualidades de vibração” (2001:184) percebidas, além da pura estrutura física de
movimentos, o ator precisa entrar em um campo criativo de trabalho.

O mesmo procedimento é descrito por Renato Ferracini, ator do grupo, em sua


dissertação de mestrado. Segundo ele a mimesis corpórea inicia com a imitação de ações
físicas de uma pessoa viva, animal, foto ou quadro, e passa, em seguida, por um processo no
qual o ator vai encontrar em si equivalências orgânicas para criar uma poética a partir desse
material. Diz Ferracini:
86

O LUME não usa essa palavra [imitação] para nomear sua pesquisa nessa área, pois ela pode
sugerir uma imitação estereotipada e estilizada da pessoa. Não é esse o objetivo. Buscamos
uma imitação precisa e real, sim, mas não só da forma e da fisicidade, mas principalmente
das corporeidades da pessoa. [...] Na verdade, uma definição mais precisa seria algo como
“equivalências orgânicas de observações cotidianas”, pois busca imitar não somente os
aspectos físicos, mas também orgânicos, encontrando equivalências (2001: 203, 204).

Em um outro momento, descrito por Burnier (2001: 186), essas ações imitadas passam
por um processo de teatralização, onde são transformadas em material de trabalho, quando
podem ser desdobradas, limpadas, recortadas, coladas, transformadas, enfim, passam por um
verdadeiro processo de montagem, no sentido fílmico do termo.

Matteo Bonfitto investiga a noção de ação física, passando por vários teatrólogos
ocidentais, para depois se perguntar se no kata, esta idéia de ação física – da forma como ele a
vinha tecendo - também se faria presente (2002). O kata é uma espécie de coreografia ou
partitura de movimentos codificados, presente em diferentes tradições de dança e/ou teatro do
oriente, como o Nô, o Kabuki e o Kathakali21. O processo de apropriação do kata, por parte
dos artistas aprendizes, inicia pela imitação do “esqueleto estrutural” (2002:90), o qual é
imutável, do ponto de vista da forma. Entretanto, Bonfitto percebe que à forma se agrega o
que ele chama “qualidade de energia” (2002:90), que seria a contribuição singular de cada
corpo, em cada espaço-tempo de execução deste kata, e que promoveria a atualização desta
forma. Essa re-configuração do kata, na combinação entre seu esqueleto estrutural e a
qualidade de energia empregada por quem o executa, tornaria possível “reconhecer um espaço
de interpretação contido na imitação” (2002:92). Esse espaço de interpretação pode ser
entendido como o aspecto criativo – poiesis – da imitação – mimesis.

José Bizerril, em sua investigação sobre o taoísmo, também fala sobre a mimeses em
práticas corporais ligadas a essa tradição:

A faculdade mimética consiste em tornar-se Outro. Para aprender o Caminho (Tao), é preciso
praticar uma dupla mimese. Imitando em primeiro lugar o mestre, como modelo das técnicas e
atitudes existenciais taoístas e a partir de seu exemplo aprendendo a imitar a natureza, para
desta forma integrar-se a seus ritmos. Essa imitação não é uma simples repetição mecânica,
mas uma recriação do outro em si mesmo e de si mesmo através do outro (2000:206).

Em nossa investigação também passamos por essa dupla articulação, que envolve ao
lado do trabalho criativo, um processo de certa forma mimético. Pensar a ação do vento sobre
o próprio corpo, por exemplo, e deixar surgir daí uma corporeidade a ser transformada em

21
O conceito de kata também está presente em algumas lutas e atividades marciais como o Karatê, o Judô, o
Kung Fu, o Tai Chi Chuan, etc.
87

recurso de composição, passa de certa forma por imitar ou o vento, ou nosso próprio corpo
exposto ao vento, e simultaneamente, ou posteriormente, lidar com esse movimento em
perspectiva poética.

Talvez seja apressado dizer, mas parece difícil imaginar mimesis e poiesis totalmente
dissociadas em uma criação cênica. Poderá haver preponderância de uma ou outra abordagem,
e talvez seja isso que Cohen tenha buscado dizer. Entretanto, mesmo que possam se opor em
alguns aspectos, elas não são excludentes, mas apresentam, tal como numa dinâmica yin yang,
uma complementaridade que parece bastante fértil aos processos criativos. Ou como prefere
Ciane Fernandes, podemos usar o Anel de Moebius, onde “dualidades tornam-se contínuas
gradações em transformação” (2000:123). Então:

Já em outra passagem, Cohen mostra-se avesso a idéias duais quando diz que “não dá
para pensar em apenas dois vetores, opostos, e sim numa multiplicidade de fatores
contingenciais” (1998:23), e usa a expressão “topos pluralético” fazendo referência à diluição
dessas dualidades e à emergência de um estado de pluralidade. No entanto, o que nos parece
mais problemático não é a perspectiva de pensar por pares: usando polaridades como
instâncias-parâmetro, entre as quais, movimento e configurações variadas se darão. Mas sim,
como já foi dito, lidar com o duplo de maneira estanque, intolerante e não reversível,
equívoco bastante comum, em que o próprio Cohen, mesmo criticando o padrão, acabou
incorrendo.

A discussão sobre mimesis remete a outra questão. Trata-se da crítica à representação,


bastante forte no pensamento contemporâneo. Maria Alice Milliet percebe que tanto em Lygia
Clark quanto em Artaud, por exemplo, há um repúdio ao modelo representação - seja
enquanto encenação ou atuação, em Artaud, ou enquanto composição em Clark. Para a autora,
ambos entendem a representação como repetição e a rejeitam por crer na capacidade
inovadora da ação, e por perceber que repetir é reter o tempo e fixar o “mesmo” por medo da
inevitável alteridade (1992:117). No mesmo viés, Christian Descamps, em estudo sobre o
pensamento de Deleuze, afirma que, segundo este filósofo, “produzir uma obra de arte não é
88

obedecer a um modelo ou realizar um sentido da história, é concretizar potencialidades”


(1991:62).

Porém, se pensarmos no trabalho do ator, especialmente dentro de algumas


abordagens com as quais estamos dialogando, a atitude de (a)presentar, se conjuga à de
representar, e não compete, ou não precisa competir com ela. O interprete sempre se remeterá
a alguma referência a priori, seja ela dramatúrgica ou temática, no caso de um espetáculo, ou
de uma imagem sugestiva, ou outro ponto de apoio que funcione como uma sub-partitura, no
caso do processo criativo. Mas, por outro lado, o ator sempre atualiza essa referência em seu
corpo, com sua subjetividade, agregando um tanto de si àquilo a que sua representação se
refere. Isso caracteriza um ato ao mesmo tempo de (a)presentação e de representação. Ciane
Fernandes alude a esta imbricação de fatores ao comentar que “paradoxalmente, movimento
(inovação) é a memória (manutenção) de si mesmo. A memória não apenas imagina ou
representa nosso passado, mas o atua” (2006.3), e o atualiza. O ator é aquele que conta, vive e
re-escreve a obra ao mesmo tempo.

Talvez possamos até falar em uma tendência de deslocamento de uma atuação mais
representativa – predominante em escolas teatrais mais clássicas - para a do tipo
(a)presentativa. O ator está mais disponível para o desnudamento de si em cena, para se
mostrar em características muitos pessoais, idiossincráticas, redimensionadas por abordagens
poéticas e releituras de conceitos. Mas novamente, teremos ainda – e talvez sempre - um jogo
dialético entre as duas perspectivas. Adiante, ao apresentarmos as idéias de Artaud, traremos
também a problemática levantada por Derrida, a respeito da impossibilidade do fim absoluto
da representação.

Ainda sobre esse ponto, no que tange a recepção, Lyotard propõe que quanto menos
representacional for uma obra de arte mais impulsos libidinosos serão provocados no
espectador (Casullo:1993:360-377). Lyotard situa a representação pura no período clássico,
uma semi-representação e positividade energética parcial no período moderno e identifica a
pós-modernidade estética como energia em pleno movimento livre e em metamorfose
contínua (1993: 370). Scott Lash, em análise do livro Francis Bacon – Lógica da Sensação,
de Gilles Deleuze (1993:377-379), atribui a este a idéia de que uma estética pós-moderna se
basearia nas noções de corpo e de força. Deleuze conceberia, ainda, uma lógica da sensação.
Esta sensação teria lugar quando sobre o corpo atuassem forças. Ainda segundo Lash,
Deleuze sugere que a pintura clássica reproduziria formas, a moderna as inventaria e a pós-
89

moderna tornaria as forças visíveis. O pós-moderno implementaria uma cultura da sensação,


não apenas para o artista e a obra, mas também para o consumidor de arte e para a crítica.

Percebemos em comum nesses autores, ao se referirem a uma estética pós-moderna,


ou, para não entrarmos nessa seara, a uma manifestação consoante ao zeitgeist
contemporâneo, um interesse maior na instauração de forças, de vida, do que na alusão,
reprodução ou representação de modelos apriorísticos. Essa visão se relaciona àquela das
vanguardas artísticas do século XX, e de outras manifestações contemporâneas: a busca pela
dissolução das barreiras entre arte e vida, já que aí estaria um meio de se restituir vigor à cena.
Arte e vida se comportando como as duas faces de um Anel de Moebius: se imbricando, se
afetando, se transformando.

Notamos ainda, que, para esses autores mencionados acima, seria a partir desse tipo de
abordagem que surgira o elemento encantatório, de sedução e impacto em relação ao público.
Para Jean Baudrillard (1997), por exemplo, o que interessa ao público é justamente o que o
atrai para fora de sua razão, o que o motiva é o segredo, a não revelação, uma espécie de
desafio à irrazão. Para ele, o desconhecido e a provocação, instigam e seduzem,
proporcionando um maior envolvimento e cumplicidade do fruidor com a obra.

De novo preferimos encontrar um ponto mais conciliatório, ou antes, inclusivo, do que


nos arvorarmos como representantes de uma estética pós-moderna ou qualquer outra. Como
os chineses – ainda que tampouco nos arvoremos taoístas - ficamos com o caminho do meio.
Segundo François Jullien, o meio tem para os confucionistas acepção próxima à idéia de vazio
para os taoístas: o lugar onde nossa intencionalidade permanece livre e indeterminada (2000:
39). Assim, para o autor “o verdadeiro meio deve ser entendido, positivamente, como poder
uma coisa e outra, e não, negativamente, como não ousar uma coisa nem outra” (2000:36).
Não se trata de uma posição em cima do muro, sem tomada de partido. O partido é o meio, a
possibilidade de trânsito entre opiniões, idéias, propostas, e a contínua checagem destas junto
a parâmetros diversos, e especialmente, junto a si mesmo.

Então, entendemos como Baudrillard, que zonas de sombra favorecem sim uma
intensidade de recepção, à medida que provocam no espectador uma espécie de trabalho: o de
produzir sua própria apreensão, retirando-o de uma posição passiva de entendedor de uma
enunciação excessivamente explicitada. Por outro lado, como quer Patrice Pavis (2005), é
90

preciso flechar sentidos, promover certa vetorização de idéias que, em alguma medida,
conduzam, ou indiquem percursos ao público.

Assim, nem a pura representação, nem somente a energia em livre e contínua


metamorfose (Lyotard), nem a simples reprodução de formas, nem apenas jogo de corpo e
forças (Deleuze), mas a liberdade de composição poética com todas essas possibilidades é a
aposta de boa parte do cenário teatral (diria até artístico) contemporâneo. Até por que,
diferente da proposição de Baudrillard para quem o desconhecido e o desafio nunca
esbarrariam na recusa (1997: 73), pode haver sim uma rejeição bastante grande por boa parte
do público a obras inacessíveis do ponto de vista de um mínimo entendimento ou apreensão.
Ou de lógica interna, ou para usar o termo de Barba, de incoerência coerente.

A questão da recepção em arte é bastante ampla e exigiria um estudo muito mais


aprofundado. Não nos propomos aqui a esgotar o tema, muito pelo contrário, estamos
trazendo uns poucos aspectos com os quais sentimos necessidade de dialogar. Assim, a peça -
“uma rede aberta, mas coerente” (Pavis, 2005: 25) - vai ter, no entendimento de Pavis, uma
recepção que entrelaça perspectivas psicológica, sociológica, antropológica e semiológica.
Mas esta mesma recepção se depara também com o que o autor chama de “não-representável”
(2005:20), e que se relaciona à presença e à energia do ator (2005:20), termos usados por
Pavis para dar conta desses aspectos invisíveis, a despeito de sua crítica a Barba pelo uso da
mesma terminologia (2007).

Ao se dar conta desses aspectos, Pavis busca em Lyotard o conceito para expressá-los.
Haveria, assim, uma distinção entre um modelo discursivo, da ordem do signo e do
lingüístico, e o figural, que seria um acontecimento libidinal irredutível à linguagem (Pavis,
2005:80). Mesmo que susceptíveis à interpretação ou tradução - o que será sempre possível -
os figurais pediriam outros meios, “além dos da análise gestual semiológica inspirada pela
comunicação não verbal para que se faça sentir os efeitos estésicos dessa coreografia”
(2005:79). Aí entraria o modelo energético do efeito artístico sobre o espectador, o qual se
processaria não tanto pela conjunção e concordância entre signos que agenciam sentidos, mas
também por meio do:

circuito energético que cremos descobrir neles e entre eles, e para o qual a encenação nem
sempre dá a chave, por estar tão ligada e se fixar em sinais visíveis e fixos. A vetorização de
certos elementos do espetáculo produz necessariamente surpresas, potencialidades que é
preciso reter ou descartar. [...] a um outro nível, o dos investimentos psíquicos do espectador
[...] não há mais nenhuma certeza. Se considerarmos esses corpos e esses gestos como um
91

sonho que foi trabalhado e que devemos trabalhar, tudo permanece aberto ao olhar do
intérprete (2005: 80,81).

Deixemos então a recepção para estudos mais estritamente voltados a ela e nos
voltemos à outra tendência comum entre alguns encenadores contemporâneos. Esta é descrita
e estudada por Cohen, para quem o work in process:

tem por matriz a noção de processo, feitura, interatividade, retro-alimentação, distinguindo-se


de outros procedimentos que partem de apreensões apriorísticas, de variáveis fechadas ou de
sistemas não-interativos (1998:17).

A proposição de não estratificação em um produto tido como final ou pronto, se


aparenta à perspectiva de abertura e não fixação de verdades, idéias e identidades (Jullien,
2000) por parte da sabedoria chinesa. Dentro da acepção de wu wei uma obra não concluiria.
Ela atinge meta-equilíbrios, estados de estabilidade temporários, a serem sempre colocados
em cheque, testados em sua vitalidade, pelo próprio fluxo da vida. Para Jullien, o sábio é
aquele que não encerra uma questão, não permite que sua conduta se esclerose, que não se
apega em definitivo a uma posição, que não se congela em uma proposta, que não obstrui o
fluxo de possibilidades de mudança (2000: 7-20).

A idéia aqui não é procurar ser sábia, no sentido mais ortodoxo do termo. A proposta é
que princípios, lampejos de compreensão dessas formulações encorajem uma disposição ao
fluxo, ao erro (no sentido de nomadismo e de tolerância aos equívocos), à ação da vida sobre
nossas produções artísticas, de nossa arte sobre a vida. Abraçar essas idéias tampouco
significa prescindir de produtos, roteiros ou obras, mas estar disponível a revisitá-los, checá-
los, questioná-los, transformá-los, sempre que isso for necessário. Necessidade esta não
apenas ligada à razão ou análise da obra em si, mas envolvida à percepção dos fluxos de chi
no corpo em cena, e no corpo da cena, à confrontação permanente de te – a virtude enquanto
consonância entre nossa vocação/vontade e nossa conduta, e à pré-disposição a wu wei – ao
devir.

Cohen busca a variável work in process por sentir embutida no termo progress22 certa
noção de evolução, avanço, que ele não considera estar totalmente de acordo com os
princípios do procedimento. O work in process23, assim como a imagem do rizoma, de

22
A expressão original é work in progress.
23
Há problemas em usar o termo metodologia para classificar o work in progress. Segundo o dicionário,
metodologia é arte de dirigir o espírito na investigação da verdade, o que até poderia se aplicar ao work in
Progress, no entanto o verbete método tem um sentido teleológico, um método é um meio para se chegar a um
fim. Se não é possível pensar work in Process enquanto metodologia, isso se dá pelo fato de que o termo
92

Deleuze e Guattari, opera privilegiando o processo, aberto a interferências, associações e


hibridizações, com a possibilidade, inclusive, de prescindir de um produto final ou objetivo
último. Em abordagens menos radicais, como já foi falado, esse produto final estaria sempre
disponível a revisões e atualizações.

Jullien lança um olhar comparativo entre a filosofia, que seria histórica, ligada à
progressão, e a sabedoria, ligada à variação (2000:20)24. Tentando não reforçar essa distinção
como uma dualidade estéril, vale a pena observar seus aspectos. Na filosofia haveria a
expectativa de uma totalização por acontecer, ela evoluiria no tempo, dando saltos causais.
Na sabedoria há a perspectiva de constante regulação, evitando privilegiar o que quer que seja
(2000:48). A filosofia, de lógica panorâmica, tenderia a conceber, enquanto a sabedoria, de
lógica itinerante, atravessaria (2000:54). Para o autor, o que a filosofia trata como enigma, a
ser desvendado em sua epopéia pela verdade, a sabedoria lida como “o oculto evidente”, com
o qual se relaciona por vias diferenciadas daquelas explicativas (2000:57-63).

Partindo desse entendimento de Jullien, poderíamos dizer que quando Cohen prefere
process a progress, ele de certa forma está - ainda que sem ter acesso, talvez, a esse estudo -
abraçando as perspectivas mais voltadas ao universo da sabedoria: variação, processo,
regulação; do que as ligadas à filosofia: progresso, evolução, perspectiva de uma conclusão.

A perspectiva de se trabalhar articulando ética e estética, seja por um discurso que


olhe a noção de ética mais pelo viés da política, ou da filosofia, ou por um viés mais
espiritual, ou ligado à sabedoria, também tem estado presente em várias ações do teatro.
Nesse mister a busca por referências orientais, teóricas ou práticas, é freqüente. Como já foi
mencionado, expoentes do teatro como Constantin Stanislávski, Vsevolod Meyerhold, Bertolt
Brecht, Gordon Craig, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Eugênio Barba, Peter Brook, para
citar apenas os mais emblemáticos, se debruçaram, de diferentes maneiras, sobre fontes não
ocidentais, buscando nutrientes para suas pesquisas25.

Decidimos pela omissão, em nosso estudo, dos exemplos oriundos da dança e da


dança-teatro, unicamente por uma necessidade de recorte. Sabemos que vários artistas nessas
método, contido em metodologia, compreende uma finalidade, além de remeter, ainda que num sentido já
desgastado, à idéia de rigidez de percurso, carecendo também sofrer um redimensionamento. Pensar que se trata
de um princípio de trabalho parece mais apropriado.
24
Jullien usa os termos sabedoria e filosofia aqui, mas não sem criticar, adiante, essa distinção, denunciando
nessa terminologia um processo de infantilização da noção de sabedoria. (2000: 85-99)
25
Para abordagem mais abrangente sobre essa questão, recomendamos consultar Meyer-Dinkgräfe (1996), que
traz reflexões sobre a influência de teoria e práticas orientais sobre vários artistas cênicos ocidentais.
93

áreas têm trabalhos bastante afinados às questões aqui debatidas, e ainda instigados por
parâmetros – sejam estilísticos, conceituais ou existenciais – de orientação não etnocêntrica.
Entretanto optamos manter nossa moldura restrita ao teatro, tentando aí produzir uma
contribuição mais consistente.

Em nosso estudo elegemos dois nomes pelos quais sentimos nossa investigação
particularmente provocada, com quem dialogaremos um pouco mais intensamente. A escolha
por estes nomes relaciona-se mais a uma afinidade por seus princípios e inquietações do que a
uma coincidência de fontes ou matrizes propulsoras. Artaud e Barba não se voltaram
estritamente para a sabedoria taoísta, como é a proposta dessa pesquisa, mas têm fundamentos
e perspectivas de trabalho que balizam nossa própria prática. Além destes, adiante
intensificaremos um diálogo com o encenador Meyerhold quando estivermos analisando a
cena de Traços, espetáculo resultante da senda etapa de nossa pesquisa.

2.2 Antonin Artaud

Uma das razões que nos fez eleger matrizes taoístas como norteadoras do trabalho é a
pista dada por Antonin Artaud, em Um atletismo afetivo (1993:129), sobre uma provável
localização fisiológica de emoções, mencionando a acupuntura como possível meio para esse
estudo. Essa menção gerou o pressuposto de que o estímulo a alguns pontos trabalhados pela
medicina chinesa pudesse promover o acesso a cada uma das cinco energias afetivas,
associadas aos órgãos do corpo, por sua vez relacionados aos cinco movimentos (teoria base
da medicina chinesa): terra, fogo, água, metal e madeira. Imaginamos ser possível erigir uma
metodologia baseada na medicina tradicional chinesa, voltada ao manuseio expressivo dos
afetos. Embora, como já mencionado, não tenhamos conseguido dispor de instrumentação e
pessoal adequado para a confirmação ou refutação de tal hipótese – o que exigiria
acompanhamento especializado e, provavelmente, uma tese de doutorado exclusivamente
voltada a tal ponto, ainda assim Artaud se manteve como uma forte referência. Então,
esboçamos a seguir uma aproximação entre nossa investigação, princípios taoístas e idéias
artaudianas.

Ainda que o projeto artaudiano venha sendo, muitas vezes, encarado como
impraticável e/ou utópico, é inegável sua influência sobre várias manifestações de vanguarda,
94

sobre a arte da performance e sobre o teatro contemporâneo. Isso demonstra que há em seu
discurso - híbrido de manifesto, poesia, crítica e propostas práticas – princípios extremamente
pertinentes e atuais. O que Artaud ora nos empresta não é o seu projeto, mas alguns de seus
princípios. Estes parecem fortalecer e fundamentar a idéia de um trabalho em prol do
exercício expressivo, ancorado em uma sabedoria a um só tempo ancestral e contemporânea.
Lembrando que entendemos esse último termo como relativo a ideários que expressem o
caráter de seu tempo, estando em concordância com o espírito de época atual e suas
necessidades mais flagrantes.

No corpo de textos de Artaud o que primeiro se deflagra é uma crise em relação à


dissociação entre cultura e vida. Ele protesta contra a separação entre as idéias de vida e
cultura, como se cada uma estivesse de um lado, e como se a verdadeira cultura não fosse, ou
devesse ser, um meio refinado de compreender e de exercer a vida (1993:4). E clama então
por uma idéia de cultura em ação, que funcionaria em nós como que um novo órgão, uma
espécie de segundo espírito, rechaçando todo discurso ou sistema de pensamento que não
ecoasse de fato nos corpos da cultura ao qual se refere (1993:2).

A partir dessa insatisfação, Artaud anuncia sua investigação no seio de culturas


diferentes, intuindo que o que chama de concepção ocidental de arte teria se dissociado da
cultura, na acepção artaudiana do termo. Ao mencionar o teatro ocidental, ele está referindo-
se especialmente à Europa e Estados Unidos, onde predominavam, no teatro, ações
subjugadas ao texto. Para Artaud, segundo Derrida, “uma cena que apenas ilustra um discurso
já não é totalmente uma cena” (1971:155).

Em busca de uma espécie de teatralidade perdida - ou pervertida como aponta Derrida


- Artaud busca o oriente – ou o não eurocêntrico – como fonte de idéias. Assim é que
encontra em manifestações espetaculares do México26 e de Bali27, por exemplo, esse potencial
de vida, onde vai identificar fatores capazes de restituir força e energia ao teatro. E Artaud vai
associar essa potência com o sentido de sagrado. Para ele, nessa outra forma de teatro, estaria
inscrita

a possibilidade da expressão pelas formas, e por tudo que for gestos, ruídos, cores,
plasticidade, etc. [o que devolveria ao teatro] sua destinação primitiva, [...] seu aspecto
religioso e metafísico, [reconciliando-o] com o universo (1993:67).
26
O que Artaud presenciou no México, a despeito de sua localização geográfica, não se inseria, para o autor, nos
padrões estéticos ocidentais, especialmente por não caracterizar um teatro textual e psicológico.
27
Artaud assiste ao espetáculo balinês em Paris.
95

Em relação ao teatro de Bali, ele se sente invadido por uma superabundância de impressões
(1993:52). Isso parece indicar que há aí um extraordinário potencial expressivo, e que é esta a
expressividade reclamada por Artaud aos atores ditos ocidentais - de tendência textual e
psicológica. Para ele, aí estaria um dos elementos que devolveriam ao teatro sua força
originária, ligada aos rituais, ao sagrado, ao sacrifício, à crueldade. Artaud vai sugerir que,
para além do texto dramatúrgico, se produza uma “linguagem do palco”, sendo que esta seria
cifrada, ou figurativa (mas não ilustrativa). Similar a uma transcrição musical (note-se que a
idéia de partitura também se encontra em Artaud), aos hieróglifos egípcios, ou aos ideogramas
chineses (Derrida, 1971:163-164).

A diferenciação que Artaud faz, de teatro ocidental enquanto cena psicológica, e teatro
oriental como cena metafísica, coloca-nos frente à utilização desse termo – metafísica - de
modo diferente ao que é corrente na filosofia. Para Artaud, esse termo encerra um caráter
duplo, como uma “metafísica em atividade” (1993:38), noção que insere a idéia de um teatro
essencialmente físico e ao mesmo tempo poético e sagrado, onde a materialidade se apropria
de seus sentidos e significações, e é desdobrada em imagens, referindo-se a “uma espécie de
Física primeira da qual o espírito nunca se separou” (1993:56). A metafísica artaudiana está,
sim, ligada à transcendência, mas esta não acontece longe do corpo, em um lugar além. Antes,
a idéia de transcendência, para ele, como para os taoístas, está intrinsecamente ligada à noção
de imanência.

A metáfora da alquimia em Artaud (1993:43-47), ligada ao potencial transformador do


teatro, é usada também pelos taoístas, que falam de processos de alquimia interior, ao se
referir às práticas de reorganização de chi. Em ambos os casos a alquimia é um movimento
que acontece ao mesmo tempo no concreto e não-concreto, no visível e não visível que há no
corpo e na cena.

Quando Artaud grita pelo fim das dicotomias – o que nem sempre é feito com muita
clareza, mas é perceptível em várias passagens - ele encontra eco na relação yin yang, que
rege a vida, segundo os chineses. Diz ele:

Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência, sobretudo num domínio
onde a fadiga incessantemente renovada dos órgãos precisa ser bruscamente sacudida para
reanimar nosso entendimento (1993: 83).
96

Essa idéia de renovação, de ciclo, onde a fadiga se reanima, e onde esse movimento é
condição para a apreensão do conhecimento, é uma constante na sabedoria chinesa.

Artaud temia o preconceito gerado pelo maniqueísmo ocidental, em relação a


abordagens que trouxessem a dimensão sagrada, seja às artes, seja a outro campo de
conhecimento. Para ele - como para os chineses, dentre outras culturas - a sacralidade não está
fora, mas inscrita na própria vida, e o encontro com o sagrado se dá no corpo. Entretanto, ele
parece sofrer resistências a essa idéia:

O fato de bastar alguém pronunciar as palavras religioso ou místico para ser confundido com
um sacristão [...] alienado [...], mostra nossa incapacidade de extrair de uma palavra todas as
suas conseqüências e nossa profunda ignorância do espírito de síntese e de analogia (1993:40-
41).

Nessas palavras está novamente manifesta a crítica à visão reducionista que segrega e
hierarquiza valores.

Ainda segundo Artaud:

As idéias que roçam na Criação, no Devir, no Caos e que são todas de natureza cósmica,
fornecem uma primeira noção de um domínio em relação ao qual o teatro se desacostumou.
Elas podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a
Natureza e os Objetos (1993:115).

É nesse domínio que a sabedoria chinesa se construiu, e é dele que surgem as bases
para os diferentes campos de conhecimento que contamina. É a certeza da existência de uma
apaixonante (porque movediça e intensa) equação entre o homem e o mundo que o cerca, que
se mostra presente tanto na sabedoria quanto na medicina e em outras práticas taoístas. Ainda
em outra passagem, as idéias de Artaud aproximam-se tanto dos princípios chineses que
parece que o autor está falando destes. Ele diz que a matéria ou temas com os quais o diretor
ou “ordenador mágico” do teatro vai trabalhar “não são dele, mas dos deuses [...] provêm, ao
que parece, das junções primitivas da Natureza que um duplo espírito favoreceu. Ele [o
diretor] mexe com o MANIFESTADO [em maiúsculo no original]” (1993:56). Ora, no que se
constitui toda a base da medicina chinesa senão numa relação (junções primitivas) entre os
cinco elementos (ou fases) da natureza e os outros aspectos a estes associados – manifestações
do tao – bem como nas relações duplas – yin yang – que ocorrem entre eles?

Entretanto, mesmo que muitas outras vozes de Artaud possam ainda ser trazidas como
referências para este trabalho, o ponto mais importante no que tange especificamente a este
97

projeto parece estar mesmo no ensaio Um atletismo afetivo. Aí Artaud indica meios para se
proceder uma busca fisiológica das energias que regem as emoções, considerando de antemão
ser preciso admitir no ator “uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a
localizações físicas dos sentimentos” (1993:129). Além de mencionar a Cabala, de origem
hebraica, como matriz de uma possível dinâmica de respirações que venha a desvendar esse
caminho, ele cita a acupuntura como um conhecimento a ser aproveitado nesse estudo:

Há trezentos e oitenta pontos na acupuntura chinesa, dos quais setenta e três principais que
servem a terapia corrente. Há um número bem menor de saídas grosseiras para nossa humana
afetividade. Um número bem menor de apoios que possamos indicar e nos quais se baseará o
atletismo da alma (1993:136).

De fato, na medicina chinesa existe uma profunda inter-relação entre cinco duplas de
órgãos (sendo um considerado o órgão yin e outro o yang) e cinco emoções básicas, que se
desdobram ainda em outros cinco temperamentos, conforme vimos no diagrama wu hsing. E
Artaud demonstra, inclusive, certo conhecimento sobre a medicina taoísta, note-se essa
passagem:

Todo sentimento feminino que cala fundo, o soluço, a desolação, a respiração espasmódica, o
transe, é na altura dos rins que ele realiza seu vazio, nesse mesmo lugar onde a acupuntura
chinesa dilui a obstrução do rim. A medicina chinesa procede apenas através do cheio e do
vazio. Côncavo e convexo, tenso e relaxado, Yin e Yang. Masculino e feminino (1993:135).

É a partir de todo esse conhecimento estruturado há mais de dois milênios pelos


chineses acreditamos ser possível investigar meios que possibilitem ao ator desvendar ou
percorrer um possível caminho fisiológico das energias afetivas. Estes meios seriam
inspirados na lógica dinâmica da mandala das cinco fases, e de suas inter-relações yin yang, e
visariam, em última instância, não somente o acesso a energias afetivas, mas também certo
domínio expressivo sobre as mesmas, por um melhor desempenho na atuação. Tal tarefa não
foi cumprida até a conclusão desta tese, mas permanece como um desafio a ser trilhado.

Compartilhamos ainda da convicção artaudiana de que:

A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável ao ofício do ator. Saber que
uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as
paixões um domínio que amplia nossa sabedoria (1993:136).

Essa convicção alimenta nosso desejo de experimentar caminhos orgânicos, físicos, para a
exploração de afetos, estados, corporeidades, e também instigou-nos a propor os laboratórios
expressivos e processo criativo, pautados numa relação corporal, ao mesmo tempo física,
98

energética e anímica, do ator com os aspectos estruturantes da mandala chinesa e das outras
matrizes eleitas. Esse desejo foi alimentado também por essas palavras de Artaud:

Basta de uma magia casual, de uma poesia que não tem a ciência para apoiá-la. No teatro,
doravante, poesia e ciência devem identificar-se. Toda emoção tem bases orgânicas. É
cultivando sua emoção que o ator recarrega sua densidade voltaica. (...) Conhecer as
localizações do corpo é, portanto, refazer a cadeia mágica. (1993:136).

Encontramos na sabedoria chinesa, mais especificamente a ligada ao taoísmo e suas


ramificações, uma construção que conjuga aspectos científicos (por que baseados em
pesquisas milenares e responsáveis, inclusive cada vez mais avalizados pela ciência
ocidental), a outras questões, de natureza talvez não nominável (para não termos de usar
termos como energética ou espiritual). No universo de Artaud encontramos princípios
legitimadores de uma pesquisa do ator em cena em trânsito com matrizes taoístas.

Artaud é alvo de inúmeras referências – entre críticas e elogios. As críticas muitas


vezes se referem à impossibilidade cênica de suas idéias, tidas como utópicas, ou a
contradições conceituais de seus postulados. Derrida é um dos pensadores que se debruçou
sobre o projeto artaudiano, encontrando aí contribuições e problemas. Para ele, a busca por
essa espécie de “véspera do teatro ocidental”, essa origem remota da arte enquanto uma
espécie de ritual, onde vida e cultura se amalgamavam, onde o sagrado se fazia presente, essa
busca traria ao mesmo tempo o anúncio do fim da representação (1971:151). Pois
paradoxalmente, o nascimento do teatro - ou da tragédia - teria sido a sua morte, o fim da
teatralidade. Artaud propõe os duplos do teatro, por meio dos quais tentaria devolver vigor,
potência afirmativa, teatralidade, presença, vida e sentido de sagrado ao teatro. A peste, a
crueldade, a metafísica, a alquimia seriam vias (talvez mais metafóricas que práticas) para
repensar e redimensionar o lugar do teatro, seu espectro de possibilidades para além da
encenação de um texto, para além da representação.

Derrida percebe nos escritos de Artaud solicitações que vão muito além do campo
estrito da arte teatral. Ao expulsar Deus do palco, na forma de repúdio a um texto onipotente e
à construção logocêntrica e hierárquica, tal crítica artaudiana se estenderia ao monoteísmo, à
filosofia clássica, à política, à ciência, às relações sociais, enfim, teria alcance “no todo da
história do ocidente” (1971:153). Vale notar aqui como Artaud desarticula a idéia de Deus da
noção de divino. O sagrado não está separado da vida em Artaud, como não está para os
taoístas, cabe lembrar. O divino está em Artaud - e no taoísmo, ligado também ao mundo do
99

sensível, da práxis, do cotidiano, incluindo a arte, para além de um sentido inalcançável,


restrito ao campo das idéias e do espírito.

Entretanto Derrida desconstrói a possibilidade do fim absoluto da representação,


sugerido por Artaud. Segundo o crítico o que se instala é o:

Fechamento da representação clássica, mas reconstituição de um espaço fechado de


representação originária, da arquimanifestação da força ou vida. Espaço fechado, isto é,
espaço produzido dentro de si mesmo e não mais organizado a partir de um lugar ausente.
[texto/autor] [...] Representação originária [...] Representação como auto-representação do
visível e mesmo do sensível puros (1971:158).

Se Artaud quis apagar a repetição em geral, se para ele a repetição era o mal, responsável pela
separação de si própria da força e da vida, então sua busca era pela presença pura como
diferença pura (Derrida, 1971: 170, 172). Porém, Derrida constata o paradoxo do fim da
representação no teatro:

o inacessível limite de uma representação que não seja representação, de uma re-presentação que
seja presença plena, que não carregue em si seu duplo como sua morte, de um presente que não
se repete, isto é, de um presente fora do tempo, de um não-presente. O presente só se dá como
tal, só aparece a si, só se apresenta, só abre a cena do tempo, ou o tempo da cena acolhendo sua
própria diferença intestina, na dobra interna da sua repetição originária, na representação, na
dialética (1971:173).

Até porque, segundo o crítico:

o teatro da crueldade não começa nem se realiza na pureza da presença simples mas já na
representação, no “segundo tempo da Criação”, no conflito das forças que não pôde ser o de
uma origem simples (1971:173).

Derrida desfia ainda uma longa lista de todo o teatro que não poderia ser considerado
fiel ao projeto artaudiano (1971 167-170), chegando praticamente à impossibilidade do
mesmo. Porém, ao fim ele diz que ainda que o teatro primitivo e a crueldade comecem
também pela repetição,

a idéia de um teatro sem a repetição, a idéia do impossível, se não nos ajuda a regular a prática
teatral, permite-nos talvez pensar a sua origem, a véspera e o limite, pensar o teatro de hoje a
partir da sua história e no horizonte da sua morte. [...] Artaud manteve-se muito perto do limite:
a possibilidade e a impossibilidade do teatro puro. A presença para ser presença e presença a si,
começou já sempre a representar-se. [...] O que quer dizer que o assassínio do pai [Édipo
matando Laio, na tragédia grega] que abre a história da representação e o espaço da tragédia, o
assassínio do pai [Artaud matando o texto, matando Deus] que Artaud quer em suma repetir [...]
esse assassínio não tem fim e repete-se indefinidamente (1971: 174-175).
100

Mas Derrida sabe que Artaud tinha consciência de ter querido ao mesmo tempo
produzir, recuperar e destruir a cena. Ele não teria conseguido resignar-se ao teatro como
repetição e nem renunciar ao teatro como não-repetição (1971:175).

O teatro como repetição daquilo que não se repete, o teatro como repetição originária da
diferença no conflito das forças [...] tal é o limite mortal de uma crueldade que começa pela sua
própria representação. Por que ela sempre já começou, a representação não em portanto fim.[...]
O fechamento é o limite circular no interior do qual a repetição da diferença se repete
indefinidamente. Isto é, seu espaço de jogo. [...] Pensar o fechamento da representação é pensar
o trágico: não como representação do destino, mas como destino da representação. A sua
necessidade gratuita e sem fundo. Eis porque no seu fechamento é fatal que a representação
continue (1971: 176-177).

Assim podemos voltar ao ponto em que discutíamos tendências dessa cena


contemporânea, em grande medida inspirada por Artaud e repetir que não se trata de
desatrelar – ou dicotomizar - mimesis e poiesis, assim como representação de apresentação.
Essa constatação não invalida em hipótese alguma a contribuição artaudiana no repensar e
redimensionar a noção de teatro, a idéia de arte e seu lugar no mundo, na história, na
sociedade, a partir da proposição do fim da representação. Como observou Derrida essa
reivindicação fazia todo um sentido naquele contexto, e provocou diversos desdobramentos
na cena, e fora dela. Possibilitou inclusive este desdobramento, agora, que já não vê sentido
nessas distinções.

2.3 Eugênio Barba

Eugênio Barba se debruçou sobre manifestações espetaculares de diferentes tradições.


Em perspectiva que ele denomina antropológica – em que pese isso ser constantemente
colocado em questão - estudou expressões de culturas do oriente e do ocidente, buscando
identificar princípios análogos e recorrentes em ações envolvendo teatralidade. Seu esforço de
compreensão e mapeamento da linguagem cênica parece mais voltado à construção de
princípios práticos de pesquisa do ator, do que propriamente a formulação de uma teoria
abstrata. Não obstante, em várias passagens Barba parece mesmo se propor a uma elaboração
conceitual, de cunho científico ou acadêmico, e isso é constantemente alvo de críticas.
101

Patrice Pavis é o responsável por uma das principais críticas a Barba, debruçando-se
detalhadamente sobre sua Canoa de papel (1994)28. Em relação à denominação de
antropologia que ele dá a sua cartografia, o questionamento de Pavis (2007) levanta alguns
aspectos. Um deles é fato de que Barba se exime de articular aos aspectos que ele nomeia
pré-expressivos, outras questões, de ordem sociológica e estética. Porém Pavis lembra que,
por um lado, essa formulação pré-expressiva ou biológica, referente à base das manifestações
expressivas de gênero, estilos e papéis, engoloba sim categorias claramente estéticas. Por
outro lado, o crítico ressalta que as relações entre os elementos teatrais identificados em uma
determinada manifestação, e outros aspectos da mesma cultura, são ignoradas por Barba.

De fato parece que o título Antropologia Teatral quer projetar as idéias barbianas
como mais científicas do que realmente seriam, de acordo com os princípios acadêmicos e
epistemológicos vigentes. Pavis aponta ainda a confusão que o termo teatral provoca na
expressão Antropologia Teatral, já que Barba se debruça não somente sobre o teatro como
linguagem, mas também sobre ações culturais que contém teatralidade e espetacularidade.
Enfim, para Pavis:

A Antropologia Teatral teria mais valor se fosse considerada como uma teoria provisória que
como uma ciência dura, mesmo que seja uma “ciência pragmática” (expressão que nos parece
mais contraditória que um oximoro) (2007:17, 18).

No entanto, a despeito das críticas acima, os pressupostos que Barba se dispôs a


identificar e compartilhar costumam ter uma compreensão tácita por grande parte dos atores e
outros profissionais ligados à cena. Ou seja, se Barba se equivoca na natureza do discurso que
ele formula, por outro lado o que o move, os princípios deste discurso, demonstram utilidade
prática e eficácia na formação de atores e na composição da cena, por exemplo. O próprio
Pavis enxerga isso em diferentes passagens onde reconhece a “bagagem de grande riqueza”
(2007:1) de Barba, e admite que “ele nos encoraja a estabelecer nosso próprio programa que
subverte as antigas separações (hoje em dia fora de moda) entre teoria e prática” (2007:18). E
Barba também mostra ter consciência da dificuldade que seu estudo gera:

A escritura desenrola a meada que se torna mais linear e menos verídica. A experiência, em
vez disso, é contigüidade de ações, de perspectivas simultâneas. Quando agimos, estamos
contemporaneamente presentes em diversos níveis de organização (1994:193).
28
O texto Uma Canoa à Deriva?, de Patrice Pavis, publicado originalmente em: Théâtre Science Imagination –
2, teve tradução, ainda não publicada, de Mônica Mello e Joice Aglae com revisão de Armindo Bião. A tradução
foi gentilmente cedida pelas autoras, em colaboração a esta tese. Todas as citações de Pavis indicadas pela data
(2007) referem-se a esta tradução, até o momento sem publicação.
102

Barba mostra aqui, conforme notou Pavis, sua angústia ao perceber o hiato que se instala na
dissociação, ainda que circunstancial, entre teoria e prática. Tal percepção está tratada em
abordagens da sabedoria taoísta, onde prática e teoria - ou conduta e idéia – apresentam, ou
deveriam, uma complementaridade tal que as tornam indissociáveis. Este amálgama seria de
tal natureza que, quando rompido, corromperia também sentidos específicos de cada uma
dessas instâncias.

É interessante ressaltar que Barba, quando aponta diferenças que considera mais
intensas entre perfis de atores no mundo, não o faz em relação a oriente e ocidente, mas entre
os hemisférios sul e norte (1994). Grosso modo, para Barba os atores do Pólo Norte29
caracterizam-se pelo aprofundamento técnico e pela imersão em um estilo de atuação ao
longo da carreira, enquanto os atores do Pólo Sul seriam orientados por várias influencias as
quais, mestiçadas, levariam a um estilo pessoal e menos rígido. Paradoxalmente, no entanto,
Barba lembra que isso não significa que os atores do sul tenham mais liberdade no processo
criativo do que os do norte. Ao contrário, segundo ele, seria a técnica, quando corporalmente
assimilada por meio de um treinamento rigoroso (segunda natureza – veremos esse conceito
adiante), a principal responsável pela desenvoltura criativa do artista.

Essa inversão da bússola poderia sugerir que o autor não se dobra a categorizações
usualmente aceitas – teatro oriental e ocidental, se esforçando por identificar, através de suas
próprias investigações - minuciosos estudos teórico-práticos, frutos de observações, leituras,
trocas, treinos - as distintas características em diversas faces do teatro. Entretanto esta
observação é criticada por Pavis, que percebe aí a perda de uma oportunidade de análise
comparativa por meio de aspectos que aproximem, e não que afastem os dois objetos de
estudo:

uma outra oposição parece-nos igualmente nefasta e artificial: essa entre ator do Pólo Norte,
que “modela seu comportamento cênico segundo uma rede bem experimentada de regras que
definem um estilo ou um gênero codificado” (p. 27) e o ator do Pólo Sul que “não pertence a
um gênero espetacular caracterizado por um detalhado código estilístico.” (p. 27). Tal
dicotomia separa radicalmente duas maneiras de atuação que se poderia, pelo contrário,
confrontar examinando, antes, aquilo que os aproxima, ou seja, o fato de que a convenção do
ator, a codificação, a semiotização do corpo e do comportamento são mais ou menos afixados
e conscientes, mas existe sempre (2007:6).

Porém, o que parece escapar a Pavis, é que o estudo comparativo levantando os pontos de
contato entre diferentes abordagens da cena é justamente o objeto maior de Barba. Se ele se
29
A tradução brasileira optou por tratar por pólos sul e norte, o que a nosso ver parece que estaria mais bem
descrito por hemisférios sul e norte.
103

propõe a esse comentário - que diferencia o ator do hemisfério sul do ator do hemisfério norte
- não é por que ele creia que deva proceder a sua análise pela via da contraposição. Antes, é
justamente visando desconstruir a oposição vigente e automática - entre a cena do leste e a
cena do oeste - que ele tenta demonstrar que poderia não estar aí a maior diferença existente
entre tendências do teatro no mundo.

Mas nem sempre Barba evitou essa terminologia. No ensaio Teatro euroasiano
(1991:193), Barba comenta a mútua admiração e o potencial de troca e aprendizagem entre as
formas como, de um modo geral, se pratica teatro nos chamados oriente e ocidente.
Entretanto, ele se recusa a fazer parte de um dos pólos desse dualismo, se colocando como um
híbrido, como representante de um teatro euroasiano, que se inscreve numa “dimensão
transcultural, no fluxo de uma ‘tradição das tradições’” (1991:193). A posição fronteiriça
assumida por Barba nessa declaração o insere numa abordagem bastante contemporânea, por
um lado. Por outro se flagra aqui um traço de seu discurso que também esbarra em críticas.

O autor parece em busca de uma universalização, seja ao se referir a uma possível


“tradição das tradições”, seja ao pretender que sua proposição de uma antropologia teatral dê
conta de englobar a totalidade de manifestações espetaculares, o que parece por vezes ser sua
intenção ao descrever os “princípios-que-retornam”, comuns às tradições teatrais (1994:27-
59). Pavis questiona se a abordagem de Barba não se limitaria aos intercâmbios eurasianos, ou
de forma ainda mais estrita, “aos empréstimos feitos pelos ocidentais (como Craig, Brecht ou
Artaud) das formas asiáticas, aliás, mal compreendidas e adaptadas aos seus interesses
ocidentais” (2007:3). Pode ser que Pavis esteja correto em sua análise. Entretanto,
acreditamos que Barba apesar de parecer generalista, talvez não tenha de fato essa pretensão.
A escolha de algumas terminologias e expressões, movida talvez por uma expectativa de
legitimação, acabou denotando essa tentativa universalizante. O ponto a favor, porém, é que o
autor em nenhum momento se coloca fechando a questão, ou esgotando o assunto. Ao
contrário, Barba parece ter noção clara da vulnerabilidade de seu próprio discurso. O último
capítulo de A canoa de papel inicia com a seguinte frase:

As palavras estáveis possuem a fragilidade de sua estabilidade. Para cada afirmação clara
existe um equívoco. No trabalho, certas palavras iluminam como relâmpago n’água. Quando
escritas mudam perigosamente sua natureza (1994:193).

Barba usa o conceito de ilhas flutuantes, nas quais se formariam “raízes


desenraizadas”, e onde o que vigora não são laços espaciais, mas o vínculo a um ethos que
104

permitiria a mudança de lugares, sem a perda referencial das origens (1991:195). Essas idéias
transculturais têm pontos em comum com a noção de rizoma, tipo de raiz não pivotante,
metáfora para processos de desterritorialização. Esta semelhança reforça no projeto de Barba
seu caráter contemporâneo, ou seja, o de estar em consonância com aspectos do ideário que
rege seu tempo. Buscar apoio em outras culturas, mestiçar, trocar, desenraizar segundo um
ethos, operar na fronteira, são princípios que regem também a nossa pesquisa.

Quando Barba fala nesse ethos regente – cuja base passa por um imperativo ético e um
comportamento artístico (1991:193) - parece se referir fundamentalmente a um sentido para
vida, que cada um deve descobrir em si, e no seu labor. Para Barba, “não se pode escolher
idéias esperando que estas o mudem. É necessário escolher condições de vida e de trabalho”
(1991:160). Como os taoístas ele se nega a separar o campo das idéias do campo da conduta.
E ainda, para Barba o sentido do teatro é bem mais que produzir e mostrar espetáculos,
passando por entender que o processo cênico que se escolhe viver, a forma como são
construídas as relações de grupo, podem, e devem envolver o ser humano como um todo, não
apenas do ponto de vista técnico e artístico.

Ele alerta, quanto à questão ética e quanto à função do teatro para sociedade - muitas
vezes encarada de forma simplista – que “apegar-se a um teatro político significa evitar o
problema de fazer, com o teatro, uma política” (1991:158). Para além de um teatro partidário,
que age pela via do discurso ideológico, é preciso provocar com a arte transformações
moleculares, aquelas no campo de fluxos e intensidades singulares (Deleuze e Guattari:1995).
E estas não devem apenas mirar os corpos da recepção, mas partir dos corpos que criam.
Talvez seja por tudo isso que Barba, a exemplo de outros nomes do teatro, prefira falar numa
atuação que se ergue na “fronteira entre representação e testemunho” (199:130). Não se
desvincula, aqui, o ator do homem. Em última instância, quiçá, não se desvincule o
personagem deste homem. Trata-se de perspectiva similar a que buscamos em nossas
proposições artísticas, e está inscrita entre as tendências que discutimos há pouco.

Existe outro ponto em comum entre as idéias de Barba e nosso propósito. Há nessa
pesquisa uma intenção além da busca de expressividade, ainda que esta seja nosso objeto
norteador. Move-nos a conjectura – de difícil comprovação científica - de que os
procedimentos criados, por partirem das já mencionadas fontes, são capazes de legar aos
atores – antes de tudo seres humanos – caminhos para meta-equilíbrios, os quais partem e
retornam ao “longe do equilíbrio”. Embora não seja um pensador da arte, Ilya Prigogine ora
105

nos empresta suas idéias, que se referem à viabilidade da vida apenas como organismo em
contínuo agenciamento. Segundo ele, “num tom metafórico, pode-se dizer que no equilíbrio a
matéria é cega, ao passo que longe do equilíbrio ela começa a ver” (1996:70). A proposta de
nossa investigação é usufruir de todo esse potencial criativo, energético e vital do “longe do
equilíbrio”, o qual, ao mesmo tempo em que parece caótico, tem sua vocação de visão. O
artista, estimulado em sua inteligência vibrátil, em seus potenciais perceptivo, sensitivo,
sensorial, energético, pode, ao criar, também se orientar por um sentimento de busca de
harmonizações provisórias, ou regulações, as quais não têm, aqui, sentido teleológico e
enraizante, e nem desejam evitar zonas de instabilidades “longe do equilíbrio”.

Barba contribui com novas leituras para a noção de harmonia. Para ele, a conquista
dessa harmonia estaria ligada àquela busca pessoal, vinculada ao ethos, que se materializa, se
transforma em algo objetivo, e se manifesta como “proporção ativa, movimento em quietude”
(1991:20). Ainda para Barba, “a palavra ‘harmonia’ indica o sentido desta luta pessoal em
busca de novas tensões que recriam a vida, que impulsionam um renovado sentido àquilo que
perdeu e está perdendo sentido” (1991:22). Reforçamos assim que, quando falamos em
harmonia ou equilíbrio, entendemo-los enquanto estados transitórios, mutáveis e temporários.
Orientamos-nos pela busca destes meta-equilíbrios, mas cientes de quem tão logo os
alcancemos, antes que a eles nos enraizemos, já será hora de questiona-los, e de recomeçar
nossa busca. Jullien lembra que essa é uma das características da sabedoria:

ela não separa o “estável” do “instável” [...] como ela não sonha com uma estabilidade que
não seja a da regulação (a do caminho, o tao), também não é consciente de uma instabilidade
das coisas, ou pelo menos o caráter movediço destas não é capaz de afeta-la. Por isso o sábio
não se desinteressa da ocasião, como momento oportuno, mas tampouco permanece
prisioneiro dele [...] Seu pensamento se volta ao mesmo tempo para o “possível” [...] e para o
“momento”. [...] Sua adequação não é puramente circunstancial [...] nem tampouco repousa
em princípios ideais [...] e é, aliás, precisamente a esta não-separação que se deve sua
sabedoria (2000:110-111).

Entender a busca de estados de harmonia como um diálogo constante com o momento e o


possível - cônscios do entrelaçamento entre estabilidade e instabilidade, e movidos por
alarmes de nosso corpo vibrátil (veremos esse conceito de Suely Rolnik, adiante), é a nossa
busca, e parece ser a de Barba: “a ação do pensamento funciona como [...] na situação criativa
e nos bios cênico: através da dialética entre ordem e desordem. Ordem sem ordem”
(1994:135).
106

Um outro tema trazido por Barba que mereceu extensa provocação por parte de Pavis
é a noção de pré-expressividade. Para Barba, o que o treinamento em nível pré-expressivo
proporciona ao ator é o livre exercício da criação, sua afirmação enquanto artista, a liberdade
de criar sem objetivos a priori, “é o que faz o ator existir como ator” (1994: 174). Segundo
ele, independente do estilo, o campo pré-expressivo concerne ao caráter real da ação. E esse
caráter real parece se referir a duas idéias. Primeiro ao empenho, à implicação total do ator no
seu trabalho, sua mobilização, sua opção em abraçar o ofício. Segundo, à construção de um
corpo extra-cotidiano, mas crível. É no campo pré-expressivo que o ator vai treinar
tecnicamente e alcançar uma “segunda natureza” - termo que ele toma emprestado a Decroux.
Esta noção se refere à capacidade do artista criar corporeidades extra-cotidianas, com uma
desenvoltura adquirida na prática com rigor de um treinamento específico, em nível pré-
expressivo. A noção de segunda natureza pode ser entendida ainda a partir da descrição de
François Jullien sobre a prática da sabedoria:

[...] a partir do momento em que, de tanto esforço e dedicação, “isso” começa a dar resultado,
como se diz (dizendo assim a imanência), a capacidade tende em seguida a se manifestar por
si mesma, sem que precisemos mais nos preocupar, nem sequer pensar para fazê-lo – sem
mais esforço nem atenção: como um “fundo (patrimônio)”, sempre pronto a surgir (2000:80).

Para Barba, um treinamento pré-expressivo teria como base os “princípios-que


retornam”, que ele muito bem descreve30, e que visariam à construção desse corpo extra-
cotidiano. Ainda segundo ele, o ator teria nessa segunda natureza, forjada nesse treinamento
pré-expressivo, instrumentos por si só capazes de atrair a atenção do espectador, antes mesmo
de sua posta em cena, ou em contexto dramatúrgico.

Uma das críticas de Pavis é para o fato de que, para ele, o nível pré-expressivo não
seria suficiente “para dar conta da produção concreta do sentido, fenômeno que vai muito
além dos princípios do bios, da energia, da presença e da oposição” (2007:11). Porém nos
perguntamos: teria Barba querido dizer que seria? Afirmar que um corpo extra-cotidiano salta
aos olhos e chama atenção equivale a afirmar que se possa ou deva prescindir de uma
construção dramatúrgica ou de sentido da cena? Será mesmo que, como diz Pavis, Barba “não
se interessa por uma teoria semântica do sentido para explicar a passagem do físico ao
mental” (2007:9)? Ou não será mais plausível imaginar que, se Barba não se propôs a tal
função, não é porque, como Pavis sustenta, ele creia ou abrace uma abordagem que

30
Conferir capítulo homônimo em A canoa de papel, presente em nossa bibliografia.
107

limita a força de atração do teatro aos princípios pré-expressivos e desconfia da beleza, da


forma e da cena, rebaixando ou negando a materialidade cênica, como se sua diversidade
barroca e inclassificável fosse vertiginosamente perturbada e desafiasse todo princípio
científico de organização e abstração (2007: 7).

Mas, tão somente, talvez, porque o lugar de onde Barba formula sua “teoria”, o lugar onde ele
transita com intimidade e segurança, onde ele alimenta seus próprios postulados e de onde
fornece subsídios de alta eficiência ao trabalho do intérprete, é o lugar de quem faz, o lugar do
ator, do diretor, dos fazedores da cena. Diferente do lugar de Pavis, lugar que se propõe a dar
conta do fenômeno de forma mais complexa, e que, por isso, precisa necessariamente lançar a
ponte entre a produção e a recepção. Talvez o que Pavis esteja solicitando a Barba,
simplesmente não seja de sua alçada - o que não o coloca em uma posição menos legítima ou
útil à pesquisa em arte, inclusive a acadêmica. O próprio Pavis tem estudos importantes sobre
a recepção31, e demonstra poder colaborar no desdobramento das idéias barbianas, dentro da
perspectiva que ele reivindica. Aliás, ele mesmo anuncia isso: “Vetorização do desejo: tal será
o oximoro que nós proporemos para ligar a energia ao pensamento, para estudar o percurso
energético do sentido e o sentido desse percurso” (2007:10).

Pavis entende ainda que a idéia de pré-expressividade está tratada por Barba com
imprecisão, do ponto de vista teórico (2007:2). E solicita:

Desejaremos que ele resolva o entrave da oposição, para nós insustentável visto que artificial,
entre pré-expressivo e expressivo e volte-se para aquela mais tangível da partitura/sub-
partitura que abre, de uma vez por todas, a visão a uma dramaturgia do ator (2007: 14).

De fato, a pré-expressividade é uma idéia mais empírica que conceitual, e Barba a cerca
menos por meio de definições do que através de associações e levantamento de suas funções,
o que parece não satisfazer Pavis. Entretanto, talvez Barba fuja dessa definição exata,
justamente por estar consciente de que a divisão por ele proposta tem caráter didático, não
real. Não se trata de desatrelar o que é expressivo do que é pré-expressivo - entendimento que
também incomoda Pavis - nem de entender este último como cronologicamente anterior ao
primeiro. Para ele o nível pré-expressivo não é um nível que deva ser separado da expressão,
mas apenas uma categoria pragmática:

O substrato pré-expressivo está incluído no nível da expressão global percebida pelo


espectador. Mas, se o mantiver separado durante o processo de trabalho, o ator, nesta fase,
pode intervir em nível pré-expressivo como se o objetivo principal fosse a energia, a presença,
o bios de suas ações, e não o seu significado (1994: 154).

31
Conferir “A análise dos espetáculos”, presente na bibliografia.
108

E o termo expressividade se referiria mais ao ato ou momento da mostra, quando, aí sim, o


processo de comunicação, vetorização e significação, teriam prioridade.

Na crítica a Barba, Pavis propõe a revisão das noções de expressividade e pré-


expressividade, substituindo-as pelas de partitura e sub-partitura, também encontradas em “A
canoa de papel”, as quais ele considera “mais sólidas e concretas” (2007:2). O verbete
partitura mereceu de Pavis em seu Dicionário de Teatro (2003), uma longa abordagem, que
relaciona o termo às tentativas de registro de ações físicas ou de uma espécie de escritura da
cena, como os hieróglifos de Artaud, as ondas rítmicas de Stanislávski, os esquemas
biomecânicos de Meyerhold, as notações de Laban e os gestus de Brecht. Em seu dicionário,
o autor entende o registro da “partitura cênica” como algo ainda por se conquistar, e trata de
buscar definições para derivações do verbete como: “texto como partitura”, “partitura como
texto” e “sub-partitura”.

Em outros textos o crítico tenta mais aproximações com a idéia. Após diferenciar uma
“partitura” preparatória – constituída durante os ensaios pelas seqüências de escolhas no
processo, e uma “partitura terminal” – a do espetáculo tal como apresentado ao público, ele
liga esta última idéia à noção de “texto espetacular” (2005:89,90). Em outro momento ele
aproxima mais a idéia do trabalho de interpretação, pensando uma partitura cênica, ou
partitura do ator, a partir de princípios de Barba e Grotowski:

A partitura é, em Barba, própria do ator, do desenho de seus movimentos. Com o sentido de


destacar os movimentos físicos e vocais do ator, a partitura distingue-se, em Barba assim
como em Grotowski, do texto escrito e falado. Ela se compõe do conjunto de sinais
extralingüísticos que o ator trabalha e fixa, cuidando, sobretudo, para não ilustrar
sistematicamente de maneira mimética pela partitura o que é dito no texto. [...] Criada ao
acaso, a partitura restitui o desenrolar da ação cênica (começo, apogeu, desenlace), ela fixa os
detalhes com precisão, orquestra as diferentes partes do corpo, estabelece o tempo/ritmo da
ação (2007:14, 15).

Nas palavras do próprio Barba (1994) o termo partitura implica:

• a forma geral da ação, seu ritmo em linhas gerais (início, ápice, conclusão);
• a precisão dos detalhes fixados: definição exata de todos os segmentos da ação e de suas
articulações [...];
• o dínamo-ritmo, a velocidade e intensidade que regulam o tempo (no sentido musical) de
cada segmento. É a métrica da ação, o alternar-se de longas e curtas, de tônicas
(acentuadas) e átonas;
• a orquestração da relação entre as diferentes partes do corpo (1994:174).
109

Num mesmo contexto de significação temos o termo dramaturgia do ator, também


mencionado por Barba, que diz:

Se se entende dramaturgia como a arte de entrelaçar ações, pode-se falar de uma dramaturgia
do ator para indicar o modo pelo qual ele entrelaça as suas composições no quadro geral do
texto e da construção do espetáculo (1994:179).

E ainda em Barba:

A palavra “texto”, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito,


significa tecendo junto. Neste sentido, não há representação que não tenha “texto”.

Aquilo que diz respeito ao texto (a tecedura) da representação pode ser definido como
“dramaturgia”, isto é drama-ergon, o “trabalho das ações” na representação. A maneira pela
qual as ações trabalham é a trama (1995:69).

E Pavis arremata, articulando as idéias de partitura e dramaturgia do ator:

O domínio – tanto o levantamento quanto a seleção – da partitura pelo ator não é outra coisa
senão a dramaturgia do ator. [...] Na tradição ocidental o texto pré-existe em relação à
encenação. Diferentemente, na dramaturgia do ator haverá um material gestual elaborado por
este – a partitura – e, em seguida, disposta em uma montagem segundo a lógica do encenador
(2007:15).

Já a idéia de uma sub-partitura de certa forma substituiria – ou complementaria - a de


um sub-texto, que tem sua função primordial no teatro predominantemente psicológico. O
termo tem, no dicionário de Pavis (2003), definição originalmente encontrada em seu outro
estudo, A análise dos espetáculos (2005):

Esquema diretor cinestésico e emocional, articulado sobre pontos de referência e de apoio do


ator, criado e configurado por este, com a ajuda do encenador, mas que pode se manifestar
apenas através do espírito e do corpo do espectador (2005:92).

Como podemos observar, Pavis desloca parcialmente a eficácia do conceito acima, de


um campo mais pragmático - lugar do ator - lançando-o para um diálogo com a recepção.
Mais abrangente que a perspectiva de Barba, para quem a sub-partitura estaria ligada a uma
espécie de “forro-pensamento que o ator alinhava para si mesmo.” (1994:167) para sustentar a
coerência da ação externa. Barba chega a considerar a sub-partitura como “pontos de apoio
pessoais invisíveis ao espectador” (1994:94). Essa diferença de abordagem pode parecer
contraditória. Porém quando Pavis fala que ela “pode se manisfestar apenas através do [...]
espectador”, ele está lidando com aspectos de teorias da recepção, para as quais o teor ou
sentido de uma obra só se realiza mesmo no encontro com o corpo do público, no confronto
com suas memórias, associações, sintomas, identificações e estranhamentos. Já o que Barba
110

está considerando “invisível ao espectador”, é todo um esquema interno de organização –


imagética, energética, afetiva, psicológica, gestual - que o ator aciona para reproduzir – ou
atualizar - uma partitura criada.

Para o crítico a idéia de sub-partitura é uma importante chave na superação do


dualismo entre corpo e mente, já que se trata de uma estratégia a um só tempo cognitiva e
física (2007:15). Porém, mesmo elogiando o que ele considera como a ferramenta mais
sofisticada da Antropologia Teatral, ele não se furta a retomar sua crítica:

O estabelecimento tão objetivo de uma partitura obriga a pensar na existência de uma sub-
partitura, já devidamente diferenciada do pré-expressivo. A sub-partitura não tem nada de
impreciso ou universal como esse último, ela é a base diacrônica que acompanha e sustenta a
dramaturgia do ator e sobre a qual ele se apóia para fazer emergir sua partitura (2007:15).

Entretanto nos perguntamos por que Pavis entende que Barba deva substituir a
articulação entre pré-expressividade e expressividade, pela de sub-partitura e partitura, se,
apesar de se complementarem, as noções se referem a aspectos diferentes de um mesmo
campo de trabalho – o do ator. Assim, quando o crítico diz:

Para nós, essa (pré-expressividade) é uma noção bastante imprecisa de um ponto de vista
teórico, que preferimos substituir por outras mais sólidas e concretas, da partitura e sub-
partitura (2007:2),

talvez devesse apenas reivindicar maior clareza na noção de pré-expressividade, a mesma,


quem sabe, que ele percebe no tratamento do outro conceito. A idéia de pré-expressividade
tem eficácia diferente da de sub-partitura. A primeira está inscrita em um campo mais
abrangente, ligado mais genericamente à preparação do ator, ao treinamento de sua segunda
natureza ou corpo fictício. A segunda, sub-partitura, se refere a uma instrumentação
individual e variável do ator (a cada espetáculo ele poderá contar com partituras e sub-
partituras diferentes), que funciona na sustentação da ação em cena.

Em nosso processo de criação do espetáculo as noções de partitura e sub-partitura


foram, de fato, altamente eficazes. Após experimentações soltas, fomentadas por diálogos
com as matrizes taoístas, chegávamos a células expressivas que, depois, se desdobravam em
partituras, no processo de sua re-contextualização na cena. O conjunto dessas partituras
constituiu a dramaturgia de ator do espetáculo, a qual engloba uma série de seqüências de
ações responsáveis por grande parte do sentido da obra. Apesar de a pesquisa expressiva ter
partido do universo taoísta, a peça não aborda esse tema em momento algum. As partituras
111

tampouco remetem a idéias e imagens ligadas ao tao, uma vez que sofreram re-alocação de
significado na posta em cena. As sub-partituras, por outro lado, estão recheadas desse
imaginário taoísta, constantemente acionado para que possamos re-instalar as formas e
qualidades do movimento, evitando cair em uma literalidade que o processo de re-
contextualização poderia trazer, com o tempo, ao distanciar-nos das matrizes.

Um outro ponto de contato entre nossa pesquisa e a de Barba é lida com aspectos sutis,
chamemos estes de energia ou de chi. Termo também criticado em Pavis (2007:2), energia
tem em Braba a acepção de uma “temperatura-intensidade pessoal que o ator pode individuar,
despertar e modelar” (1995:94). Os treinos com chi, usados em nossa preparação, funcionam
como acionadores e re-organizadores de nosso chi, visando o re-equilíbrio corporal constante,
objetivo original do chi kung. Mas também foram aplicados com função expressiva,
intensificando pontos e partes do corpo, ou buscando qualidades energéticas específicas (mais
yin, mais yang, captação da força do sol ou da terra, etc.).

Após revisar diferentes idéias, de diferentes tradições teatrais ou espetaculares, às


quais relaciona a noção de energia, Barba por fim busca uma acepção-síntese. Para ele, em
que pese ser um conceito facilmente associável a manifestações impetuosas e externas como
gritos e excessos musculares ou emotivos, energia se refere também “a algo íntimo, algo que
pulsa na imobilidade e silêncio, uma força retida que flui no tempo sem se dispersar no
espaço” (1995:81). A perspectiva da retenção nos lembra a noção de sutileza, ligada ao tao e a
noção de chi. Na cena, entendemos que essa sutileza se faz na preservação das zonas de
sombra, é preciso reter algo de chi que passa a operar como motor da ação, e não implicar
toda a carga energética corporal no movimento.

Barba associa esse tema à outra noção basilar a seu acervo técnico, o de corpo-mente.
Barba revê as separações usuais das instâncias do ser, com expressões como “exercícios
físicos são sempre exercícios espirituais” (1994:128), ou “o pensamento tem um aspecto
físico” (in Pavis, 2007:11), ou “corpo decidido” (1995:18). Pavis vai então reivindicar, a
partir da abordagem barbiana que:

a busca do sentido deve se efetuar, para o ator como para o espectador, do ponto de vista de
um corpo-mente, de uma entidade inseparável, e não, examinando como uma emoção se
expressa externamente numa forma ou, inversamente, como uma forma exterior, impressa ao
corpo, produz emoção. A formação do ator e sua intervenção cênica consistem em ultrapassar
o dualismo para realizar a experiência da unidade entre as dimensões interior e exterior. [...] O
112

corpo-mente convida a fazer, justamente, o caminho entre interioridade e exterioridade em


ambas as direções, sem privilegiar uma delas (2007:11).

Aqui vale anteciparmos a idéia que traremos no próximo capítulo, para pensar a noção
de expressividade. Cientes de que a colocação de Pavis mostra pertinência, optamos por tratar
essa noção imbricando processos contínuos e complementares de expressividade e do que
chamamos impressividade. Como veremos, tais processos funcionam inseparavelmente, qual
num Anel de Moebius, onde não sabemos sequer quando um lado acaba e o outro começa.

Finalizando nosso diálogo com Barba retomamos Pavis, que após toda sua minuciosa
crítica à canoa de papel barbiana, termina seu ensaio em tom reconciliatório:

Mas, no fundo, que importância tem essa deficiência, já que toda essa “base teórica” (p.08) é
feita para estimular os artistas e que sua metalinguagem, misturando cientificidade (duvidosa)
e poesia (sublime), é concebida mais para agir sobre sua prática que para descrevê-la. Daí a
eficiência e originalidade de suas palavras-instrumento: o sats, a energia, a eficácia pré-
expressiva, a ação disciplinada por uma partitura, instrumentos eficazes tanto para sua base
teórica como para o debate atual a cerca do interculturalismo (2007:17).

Assim entendemos que o acervo conceitual-prático de Barba funciona mesmo por meio de
compreensões tácitas, ou até corporais, por parte dos artistas, mas principalmente: funciona,
demonstra eficácia.

A esse proposto convém trazer mais uma vez a sabedoria chinesa para balizar nosso
entendimento. François Jullien distingue a eficácia derivada da filosofia grega - onde formas
ideais e modelos abstratos apriorísticos se projetariam sobre o mundo, e onde a vontade teria
como meta realizá-los – e outra idéia de eficácia advinda da China – “a que ensina deixar
advir o efeito: não visá-lo [...], mas implicá-lo [...], não buscá-lo, mas recolhê-lo” (1998:9). A
primeira perspectiva descrita é a mesma que privilegia a teoria em relação à prática, em
abordagens que primeiro determinam em um plano teórico o que a prática, àquele submetida,
deve executar (1998:15). A segunda, não inverte os papéis, simplesmente desconsidera a
relação teoria-prática, enquanto questão, talvez por sequer conceber uma desarticulação entre
ambas. O pensamento chinês

desconhece-a [a relação teoria-prática], mas não por ignorância, ou porque ele teria
permanecido na infância; ele simplesmente passou ao lado. Como passou ao lado da idéia do
Ser ou do pensamento de Deus (1998:29).
113

Assim, teremos, na China, uma noção de eficácia ligada ao efecto, dimensão operatória do
efeito, o efeito em curso, efetivo, já que o termo efeito, simplesmente, pode soar como uma
perspectiva causal, explicativa e demonstrativa (1998:147). Citando Jullien, sobre o efecto:

Sua questão é antes como o real advém: como ele “funciona” [...] e se torna “viável” (ao ser
regulado: o tao). Pois, não cessando de se entre-afetar [...], a realidade não cessa de tornar-se
efetiva: estando sempre a se desdobrar, e justamente por ser coerente e regulada, realidade
nunca acaba de advir e não pode se esgotar. Um pensamento da processualidade, poder-se-ia
dizer [...] Diferentemente do efeito (visando agir numa relação meios-fim), o efecto não deve
ser “buscado”, de forma direta e voluntária; ele é chamado a decorrer “naturalmente” do
processo encetado (1998:148).

Parece-nos que o ideário barbiano teve sua construção mais pautada nessas noções
chinesas de eficácia e efecto – mesmo que ele ignore isso – do que naquela ocidental. É claro
que a construção metafísica de pensamento, com mais de dois mil anos, deixa suas marcas por
vezes insuperáveis, mesmo quando tentamos driblá-la. Claro também que essa mesma
construção não está aqui sendo colocada em cheque em sua totalidade, aliás, seríamos
absolutamente incompetentes – até por que ignorantes dessa totalidade – para fazê-lo de
forma minimamente responsável. Nossa disposição – e não pretensão – é de questionar alguns
pontos dessa construção filosófica dominante, propondo aqui e ali algumas abordagens que
operem por outras vias, fomentando outras formas de percepção, partindo de princípios
diferenciados. Por fim, em que pesem as ressalvas de Pavis feitas à Barba, assim como várias
críticas pós-colonialistas que entendem seu projeto como colonizador e universalista, nos
apoiaremos em alguns aspectos pragmáticos – eficazes – de seu estudo, conscientes da
deficiência de seu discurso.
114

CAPÍTULO 3

CORPO: MAPA E CARTÓGRAFO

Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelo caminho
(Lispector, 1998:67).

Nas linguagens cênicas, que envolvem atuação ao vivo, o corpo tanto é o objeto
quanto sujeito da obra32. Pela própria natureza dessas linguagens, e de forma cada vez mais
intensificada, o corpo confunde-se com o projeto artístico. A intensificação desse viés se deve
especialmente à apropriação crescente de princípios da arte da performance e das vanguardas
artísticas do século XX, por parte da cena contemporânea, e à revisão da noção de corpo por
parte da ciência e da filosofia. Além disso, uma montagem teatral ou de dança, diferente de
uma pintura, escultura ou vídeo, por exemplo, não terão jamais autonomia em relação a seus
a(u)tores. Por tudo isso cumpre que tratemos deste corpo.

32
Conferir MEDEIROS, Maria Beatriz. L'Artiste Plasticen, Suject et Object de L'Art. Vol. I Tese de Doutorado.
Universidade de Paris I, Sorbonne, Paris, 1989.
115

3.1 Do dilema ao diálogo

É mais que sabido que a filosofia ocidental, fortemente marcada pelo platonismo, pela
tradição judaico-cristã e pelo cartesianismo, legou-nos uma idéia dicotômica do ser humano 33:
constituído por um organismo físico, foco de prazeres e/ou mazelas, e por uma organização
não física (ou metafísica), responsável pelas faculdades tidas como mais nobres pela maior
parte das abordagens filosóficas: a razão, a linguagem, a transcendência. Esta última instância
foi chamada de mente, espírito, consciência. A primeira instância foi usualmente tratada por
corpo.

A problemática desta questão reside, principalmente, no fato de que, em geral, as


dicotomias sofrem abordagens que atribuem maior valor a um de seus pólos em detrimento do
outro. Assim, durante toda história filosófica ocidental, é possível apontar representantes em
ambos os pólos deste, que poderia ser resumido basicamente como um debate entre idealismo
(ou espiritualismo) e materialismo. O corpo é visto, ao longo da tradição ocidental, ora como
possibilidade de satisfação e realização, ora como empecilho à evolução do espírito e da
mente. Nízia Villaça e Fred Góes comentam que “toda visão filosófica oscilaria, assim, entre
uma denúncia do corpo como obstáculo, prisão e lugar de alienação e a sua exaltação como
espaço de prazer, como meio de liberação individual e coletiva” (1998:23).

No entanto, é possível notar um predomínio evidente de visões idealistas ou


espiritualistas, ou no mínimo perceber que estas sempre ocuparam um espaço mais legitimado
pelo senso comum no Ocidente. Há, como sabemos, um evidente privilégio da esfera mental e
psíquica do ser em detrimento de sua esfera física, carnal, dita corpórea. Isso porque, na visão
de mundo ocidental predominante, o corpo palpável seria o que nos remete (nos relembra) à
nossa condição animalesca, vulnerável e mortal, abrigo de instintos, refém de desejos e
medos, instância a ser vencida, superada, sublimada. A mente, por outro lado, entendida como
a nossa capacidade de gerar, apreender e transmitir conhecimentos seria o que nos aproxima
do divino, do criador, da imortalidade/vida eterna, apontando no sentido que a humanidade
tem almejado seguir, por significar-lhe, neste ponto de vista, uma evolução.

Não nos estenderemos na questão do feminino, por não ser este o objeto do presente
estudo, no entanto, não podemos ignorar por completo esta questão. Então diremos muito
resumidamente que a discriminação que a mulher tem sofrido ao longo dos séculos se
33
Especialmente no século XX, começa a haver investidas mais constantes da ciência, da filosofia e da arte no
sentido de desconstruir essas dicotomias.
116

relaciona, entre diversas outras razões, a esse predomínio da visão idealista ou espiritualista
sobre a visão materialista. As mulheres abrigam diferentes processos de fortes indícios
selvagens, todos ligados à possibilidade de geração, reprodução. Menstruação, gravidez,
parto, aleitamento, são signos muito fortes de referência à nossa condição animal. O
raciocínio, de modo simplificado, seria: se os processos corporais femininos possuem mais
indicativos de animalidade do que os masculinos, então as mulheres se aproximariam mais
daquela instância a ser vencida, superada, sublimada, e, consequentemente, se distanciariam
da instância inteligível, já que nos pensamentos dicotômicos estão inscritas hierarquias que
fortalecem um dos pólos dicotômicos no enfraquecimento do outro.

Faz-se importante, nesse ponto, indicar o julgamento hierárquico presente em ambas


posições deste debate. O valor de uma instância se fortalece na desvalorização da outra. Esse
movimento é possibilitado e incentivado por visões duais excludentes do ser e do mundo
(sensível/inteligível, natureza/cultura, aparência/essência, diabo/deus, inferno/céu), noção que
vem sendo debatida e revista por alguns filósofos no século XX, e desestruturada pelos novos
rumos da ciência.

Na tradição taoísta o dual não significa dualista, ou antagônico. Como observamos nas
dinâmicas entre yin e yang, as paridades são impregnadas de movimento e interação. A
instância a ser alcançada ou recuada vai estar de acordo com uma determinada circunstância.
Para a medicina chinesa, fortemente influenciada pelo ideário taoísta, por exemplo, se uma
pessoa ou um órgão do corpo está muito yin procura-se estimular a diminuição desse aspecto,
se seu lado yang está frágil, age-se no fortalecimento deste. Não se trata nunca de uma
equação estática e absoluta, mas relativa às necessidades de um dado contexto.

A ciência e o pensamento contemporâneo problematizam fortemente a questão da


dicotomia. Desse esforço emerge uma nova forma de conceber o corpo. Em lugar de um
corpo-abrigo, corpo-invólucro, corpo-continente, esboça-se a idéia de um corpo-forças,
corpo-subjetividade, corpo simultaneamente mapa e cartógrafo. No filósofo Georges Didi-
Huberman percebemos um processo de questionamento das idéias dicotômicas. O autor
afirma que:

Os pensamentos do dilema são [...] incapazes de perceber seja o que for [...]. Não há que se
escolher entre o que vemos [...] e o que nos olha. Há apenas que se inquietar com o entre [...]
tentar dialetizar [...] voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao motor dialético de
todas as oposições (1998: 77).
117

Didi-Huberman se refere aqui a uma questão específica, ligada às artes visuais, mas
seu comentário nos serve de alerta em relação à redução de possibilidades de compreensão e
leitura a que nos levam pensamentos binários, quando orientados por princípios que
promovem o elogio de um pólo e o rechaço do outro. Enquanto o foco de preocupação estiver
sendo escolher entre um dos pólos de um dilema, perde-se a oportunidade de se questionar
sobre a própria validade da idéia do dual enquanto dilema. É o que Didi-Huberman reafirma
ao defender que, em qualquer domínio a verdadeira questão consistiria, não em optar por uma
posição de um dilema, mas em se construir uma posição capaz de ultrapassá-lo (1998:154).

Gaston Bachelard também se debruçou sobre as questões duais imbuído de uma


perspectiva inclusiva. A princípio identificava mais a ambivalência com a atividade artística,
na qual esse movimento encontraria maior legitimidade. No ensaio O instante poético e
metafísico ele sugere que “para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses se
contraiam em ambivalência. Surge então o instante poético” (1986:184). Em seu texto “A
raíz” comenta: como “ativaríamos a imaginação se buscássemos sistematicamente os objetos
que se contradizem” (1990:224), e refere-se a palavras (imagens) indutoras, que pelo corpo de
seu texto parecem concentrar um potencial de ambigüidade e contradição, funcionando,
assim, como chaves de acesso ao inconsciente, acionando uma proliferação de imagens.
Seriam idéias virtualizadoras, capazes de abrir campos de devires, de multiplicarem-se,
desdobrarem-se em muitas outras imagens, lembranças, arquétipos, desejos, provocando
assim o devaneio, e abrindo, com ele, espaço para o processo criativo. Bachelard se ressentiu
pela maneira ocidental de construção do pensamento científico e filosófico, e expressa isso
em várias passagens. No ensaio Fragmentos do diário de um homem, desabafa: “ah, se o
filósofo tivesse o direito de meditar, com todo o seu ser, com seus músculos e seu desejo,
como se livraria dessas meditações fingidas onde a lógica esteriliza a meditação” (1986:192).
E, na vontade de fugir às lógicas reducionistas, à construção puramente racional e inequívoca
vigente, chega a propor que no reino do pensamento, a imprudência seja um método
(1986:ix), almejando a liberdade do devaneio também na construção filosófica e científica.
Ora, imbricação entre teoria e práxis, e idéia e conduta, a noção de um pensamento que
engendre eficácia no campo do concreto, e não como pura abstração, o fantasioso em co-
evolução com o filosófico, o mítico alimentando a ciência. Todos esses princípios fomentados
pela tradição taoísta mostram-se como uma alternativa a essa postura, de ascendência grega,
cristã e cartesiana, do ser que medita, ou pensa, dissociado de seu corpo, de sua prática, de sua
vida cotidiana.
118

Outro pensador no empenho de superação do pensamento dicotômico, Guattari lembra


que, diferente das dicotomias judaico-cristãs, e das dialéticas hegelianas e marxistas, o que ele
propõe e designa como eco-lógica, lógica da ambivalência desejante, não se presta a resolver
contrários. Mas a garantir o espaço das e para as diferenças, espaço para a liberação e
legitimação das antinomias, tanto na ecologia social, quanto na mental (1990:42). Também
vemos aqui perspectivas aparentadas às taoístas: suportar a ambivalência, a diferença, o
paradoxo. Como vimos, a disposição de pensar categorias duais não enquanto dicotomias -
verdades excludentes - mas como ambivalências ou paradoxos, já fazia parte da cultura
chinesa há cerca de três milênios, expressa na dinâmica de interação entre os dois princípios
taoístas que regem boa parte dos modos de conhecimento chinês: yin e yang.

O processo dicotômico está preso a um ou excludente - que entende a negação de um


pólo como condição para a evidência do outro, e pautado em um é, acentuado e absoluto - que
encara os pólos de forma estanque e não aceita a dinâmica das relações entre estes. A
mudança paradigmática na epistemologia contemporânea mostra-se através de um esforço por
um e que agrega, inclui. Trata-se de perceber, inclusive nas relações duais, instâncias que
existam em conjunto, complementares e inextricáveis, como para-instâncias. Lembrando
Jean Baudrillard, que entende que na sedução pode morar a possibilidade dos duplos
ultrapassarem os problemas das dicotomias, baseando-se na sedução, ao invés da exclusão:

Suponhamos que todas as grandes oposições distintivas que organizam nossa relação com o
mundo sejam atravessadas pela sedução, em vez de ser fundadas na oposição e na distinção.
Que não apenas o feminino seduza o masculino, mas que a ausência seduza a presença, que o
frio seduza o calor, que o sujeito seduza o objeto, ou ao contrário, claro, pois a sedução supõe
esse mínimo de reversibilidade que acaba com toda oposição ordenada (Baudrillard,
1991:119) .

Entretanto, muitas vezes observa-se uma condenação prévia de idéias baseadas em


composições duplas, como se residisse no fato destas operarem como par o processo
dicotômico. Reafirmamos que a característica dual – ou pareada - não configura
necessariamente um dualismo, ou uma dicotomia. Mesmo Deleuze e Guattari, por exemplo,
que propõem a multiplicidade como modelo alternativo, recorrem a modelos pareados como
rizoma e raiz, memória curta e longa, micro e macro-política, mapa e decalque, para apenas
citar algumas. O que parece demonstrar que a crítica dos autores também seria lançada à
dicotomia em si, e não ao uso de registros duais como parâmetros para conceitos. E essa é
uma das coisas a ser aprendida com os princípios yin yang da cultura chinesa: as partes desses
119

pares não necessariamente se organizam de maneira dicotômica, mas em trânsito e


agenciamentos, como na perspectiva do Anel de Moebius.

Um questionamento crítico sobre o discurso de Deleuze e Guattari vem de Elizabeth


Grosz (1994), que acusa os autores de se apropriarem de um imaginário metafórico feminino
para darem conta de suas proposições conceituais. Na visão da autora esta apropriação tem
desdobramentos perigosos. Um deles é o reforço da associação entre a mulher (devir-mulher)
e o instintivo e irracional (devir-animal), entre a mulher e a loucura (esquizo), entre a mulher
e o descontrole (rizoma), entre a mulher e a instabilidade (multiplicidade, agenciamentos,
linhas de fuga), etc.. Outra preocupação da crítica é de que essa apropriação masculina de um
ideário feminino neutralize o próprio discurso e a luta feminista, além de possivelmente
mascarar especificidades e perspectivas masculinas nesse processo de apropriação. Haveria
assim uma despolitização dos discursos de gênero. Para a autora, até que se torne claro o que
esse devir-mulher significa, não só para os homens, mas principalmente para as próprias
mulheres, o trabalho dos autores permaneceria obscuro, especialmente para o feminismo.

Sem o intuito de invalidar os importantes questionamentos que a autora traz,


poderíamos, entretanto, problematizá-los em alguns aspectos. Se por um lado a apropriação
desse acervo arquetípico ligado ao feminino pode ser encarado como neutralizador, ele pode
também ser pensado como um reforço ao projeto feminista, ou, se não tanto, ao menos pode
ser visto como parte do esforço por um reposicionamento – positivo - de valores
historicamente ligados ao lugar da mulher no mundo. Esse elogio ao feminino reafirma de
fato, em Deleuze e Guattari, algumas associações historicamente problemáticas, contudo,
também essas outras referências à que a mulher está sendo relacionada, experimentam um
outro status ou estatuto no mundo contemporâneo. Talvez Deleuze e Guattari queiram mesmo
desconstruir uma idéia de discurso de gênero, e instalar um espaço de discursos inter-gêneros,
ou transgêneros, ou trans-transgêneros, inclusive para além do que se refere às orientações
eróticas.
120

Por outro lado, Grosz, critica menos o conceito em si - devir-mulher - do que o fato
deste não estar sendo criado por mulheres. De qualquer modo, em que pese tanto a crítica de
Grosz, quanto de outros tantas pensadores sobre alguns aspectos dos discursos de Deleuze e
Guattari, encontramos ainda muita eficácia em várias das metáforas e noções usadas pelos
autores. Assim, atenta a eventuais problemas na lida com as construções trazidas por eles, me
parece bastante proveitoso fazer uso destas.

Nossa perspectiva é critica e inclusiva, e deslindou um processo criativo baseado em


textos ligados ao imaginário feminino (vide cap.6), e a partir da releitura destes em meu
próprio corpo-mulher. Esta abordagem é uma afirmação do feminino, a partir do diálogo com
uma tradição que, apesar de em seus princípios filosóficos defender a integração e
reciprocidade não hierárquica de yin e yang, contraditoriamente desenvolveu-se – cultural,
social, econômica e politicamente - com vários indícios de negação ou mutilação do feminino.
É o caso, como comentado na introdução, da questão da recente onda de abortos em massa de
ex-futuras meninas, e das históricas deformações nos pés de mulheres chinesas até pouco
tempo. Pode parecer apressado, mas é impossível conter o ímpeto de fazer uma leitura
simbólica deste gesto: mulheres cujos pés foram aleijados não são senhoras de sua própria
base, têm a estrutura fragilizada, apresentam pouquíssima mobilidade, e, não raro, podem se
tornar fortemente dependentes de alguém que as ampare e as conduza.

Por outro lado, o atual boom de cirurgias plásticas entre mulheres chinesas – e de
outras origens orientais – apresenta outra face de escravidão desse feminino: a ânsia pela
alteração das feições e características étnicas. Cirurgias nos olhos, narizes, nas pernas (quebra
de ossos e enxertos para ficarem mais altas), entre outras transformações, são buscadas por
mulheres chinesas visando parecerem cada vez mais com o padrão ocidental. Há aí algo além
das questões relativas à busca frenética de um corpo perfeito, o corpo da revista ou da TV.
Essas questões são globalizadas, não se trata de um privilégio das mulheres de feições
orientais. Mas além de aspectos como a recusa do envelhecimento, a busca da aparência
sedutora, a dificuldade da mulher se afirmar por outras vias, e uma série de outras
implicações, há aí uma negação adicional: a de sua identidade racial.

No espetáculo Traços - desenvolvido nesta pesquisa (vide cap.6) - aspectos


relacionados ao imaginário e realidade femininos sob dominação são destacados. Nas cenas
iniciais há uma seqüência onde a personagem faz ginástica compulsivamente, se mede
obcecada pelos números denunciados na fita métrica (que poderiam ser os da balança,
121

também) e passa a enumerar alimentos de um regime rigoroso – verduras e frutas. Por fim ela
se oferece à audiência com o texto “olha que xuxu, olha que xuxu...”, como uma “icônica
mulher-fruta, ‘típica’ de tantas versões de naturalização de nossos femininos nacionais”, como
observou o professor Fernando Passos, em comentário sobre o espetáculo que me foi enviado
por e-mail (vide anexo B.6, que traz comentários do público).

3.2 Por um novo estatuto do corpo

Maurice Merleau-Ponty, refletindo sobre a noção de corpo, do ponto de vista


fenomenológico, afirma que a “animação do corpo não é a junção, uma contra a outra, de suas
partes - nem, aliás, a descida no autômato, de um espírito vindo de outro lugar, o que ainda
suporia que o corpo é sem interior e sem ‘si’” (1978:279). O autor sugere ainda que a alma
pensaria segundo o corpo, e que este seria para a alma o seu espaço natal e a matriz de
qualquer outro espaço existente. E complementa que deveríamos então conceber o
pensamento como corporal (1978:289). As palavras de Merleau-Ponty também nos levam a
perceber o corpo de forma diferenciada da usual, não como uma massa de carne animável ou
dirigível por uma alma e um pensamento, mas como um todo humano, pleno de subjetividade,
definidor de seu pensamento e de sua alma, que congrega todas as instâncias que nele operam.

Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem, como vimos, uma lógica rizomática.
Segundo os autores um rizoma não começaria nem acabaria, mas se encontraria sempre no
meio, entre as coisas, inter-ser (1995:37). A expressão “fazer rizoma” pode, ainda, ser
entendida como a feitura de uma trama de agenciamentos e conexões entre vetores
imprevisíveis e linhas de fuga, que vão criando um mapa, uma teia de
pensamento/entendimento não linear. A noção põe em cheque estruturas causais e retilíneas,
baseadas, entre outras coisas, em visões dualistas e polarizantes, na medida em que privilegia
o inter-ser, o percurso e não os pontos extremos e fixos de chegada ou saída, que seriam as
polarizações. Lembremos que a imbricação yin yang se dá na mobilidade do par, nas várias
configurações de percurso entre os pólos – o que promove multiplicidade, e na possibilidade
de inter-transformação destes pólos. Ainda a partir da metáfora do rizoma, Deleuze e Guattari
apresentam a idéia de multiplicidade (1995). Um determinado plano de imanência, o ser, por
exemplo, manifestaria uma predisposição inata de mudar, se desterritorializar, de estar
continuamente em negociações, de assumir e descartar orientações múltiplas, advindas das
122

múltiplas possibilidades que a experiência de estar/ser vivo nos oferece. É a transição de uma
idéia de sujeito enquanto indivíduo, para a de uma subjetividade em movimento.

François Jullien, re-visita o adágio confucionista que diz que o sábio não tem eu, para
daí derivar que o sábio não tem idéia. O que o autor quer dizer é que o sábio nem privilegia
nem exclui idéias, simplesmente não se fixa em nenhuma delas, buscando abordar o mundo
sem visão preconcebida (2000:21). Por sua relação aberta, ele esposaria toda a diferença, e se
adaptaria a cada caso (2000:22). Como o real, a conduta do sábio também sofreria uma
transformação contínua, sob pena de, não o fazendo, esclerosar (2000:22). Isso nos remete à
distinção entre identidade (fixa) e identificação (mutável, ajustável). Se há uma noção de mal
para o sábio, esta estaria ligada a essa identidade, à estratificação das idéias. Em última
instância, também aqui o sujeito, assim como Deus, está morto. O sábio não tem idéia, por
que não tem eu (2000:23).

Deleuze e Guattari se apropriam e redimensionam a noção artaudiana de “Corpo sem


Órgãos”34 (CsO) – insubordinado à fragmentação e redução científicas em sistemas, aparelhos
e órgãos (Artaud,1993). Os autores percebem este corpo sem órgãos não como “um corpo
vazio e desprovido de órgãos, mas um corpo sobre o qual o que serve de órgãos (...) se
distribui segundo movimentos de multidões, (...) sob a forma de multiplicidades moleculares”
(1995:43). Os autores vêem o corpo para além de sua concretude e palpabilidade, e propõem a
idéia de corpo enquanto zona de intensidades, afetos, dilatando a idéia de corporalidade, antes
restrita ao aparato bio e fisiológico. Deleuze e Guattari trazem, com Artaud, o brado desse
corpo:

O CsO grita: fizeram-me um organismo! Dobraram-me indevidamente! Roubaram meu corpo!


O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação,
um sujeito. É ele o estratificado. Assim, ele oscila entre dois pólos: de um lado, as superfícies
de estratificação sobre as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano
de consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação (1996:21-22).

Nízia Villaça e Fred Góes também comentam a respeito desse conceito corporal,
ligado a um novo paradigma estético onde o corpo surgiria como carne e imagem, matéria e

34
Artaud bradou em sua transmissão radiofônica Para Acabar com o Julgamento de Deus, “Nada de boca,
de língua, de dentes, de laringe, de esôfago, de estômago, de ventre, de anus. Eu reconstruirei o homem que
sou.” O inconformismo de Artaud, ao ver o ser subjugado a um determinismo fisiológico, como o aqui descrito
sistema digestivo, e ao perceber o autismo humano decorrente disso, o leva a clamar e conclamar as pessoas à
reconstrução da idéia de homem. Segundo Deleuze e Guattari teria sido “uma experimentação não somente
radiofônica, mas biológica, política, atraindo sobre si censura e repressão. Corpus e Socius, política e
experimentação” (1996:10).
123

espírito simultaneamente (1998:29), e comentam ainda, a partir de Deleuze e Guattari, sobre o


deslocamento da noção de corpo-indivíduo (corpo morada do eu) para corpo-subjetividade:

o importante [...] é a possibilidade da reconfiguração do estatuto do corpo enquanto


singularidade como fluxo e multiplicidade e, portanto, desvinculado da unidade do ‘eu’. A
singularidade se dá justamente, no lugar da heteronímia e do devir-outro e é [...] na dissolução
do ‘eu’ e de suas figuras (psicológicas, sociais, morais, filosóficas) que ela se constitui
(Villaça; Góes, 1998: 52).

A polaridade corpo-mente é apenas uma das faces do fundamento dicotômico que


regeu o pensamento ocidental até então, um paradigma vertical, hierarquizante, excludente,
homogeneizante, que se apresentou sob vários formatos bem conhecidos: cultura e natureza,
bem e mal, ideal e sensível, razão e emoção. A orientação paradigmática horizontalizante, ou
multidimensionalizante, que ora se manifesta, bem metaforizada na noção de rizoma, surge
como um grito de basta desse corpo subjugado, reivindicando a própria legitimação. E é fato
que começa a haver uma maior abertura para com a problematização destas questões,
traduzida na re-significação e revalorização do corpo em diferentes contextos, que se
desdobra, por exemplo, em maior tolerância para com a diferença e para com o paradoxo.

Desdobra-se também em aceitação, e uma espécie de reverência (não solene) ou


aceitação, pela complexidade que rege a vida, visível pelo deslocamento da postura
excessivamente explicativa, racionalista, rumo a outras possibilidades de conduta, que
inclusive interajam e freqüentem as zonas de sombra, sem o esforço por desvendá-las. De
novo, na perspectiva do sábio, trazida por Jullien, temos pistas dessa conduta. O autor diz que
“o que a filosofia trata como enigma (ou mais religiosamente como mistério [...]), a sabedoria
trata como ‘evidência’” (2000:57). E mais adiante vai completar:

Essa evidência é a da imanência. Como ela se expõe em toda parte e a todo momento, como
ela é ao mesmo tempo mais comum e mais ordinária, já que tudo, no mundo, não passa de
processo, que tudo, e nós em primeiro, está sempre “atravessado” por ela, a imanência não
tem lugar próprio, não é “localizável”, nem tampouco isolável, portanto ela não é identificável
– sua “sutileza” nos escapa; e como o menor processo a encarna, mas nenhum a esgota, já que
o mundo não acaba de proceder dela, a imanência é sempre mais do que o que dela se atualiza:
ela é um fundo (patrimônio) sem fundo (plano) “que podemos sondar”. Mas esse insondável
[...] não é o da filosofia. Porque, enquanto esta [...] busca o oculto dos princípios (ou do
número, ou do em-si, um oculto transcendental, em suma), a sabedoria desconfia de tal
“profundidade” [...] o mais difícil de ver – ou o mais difícil de dizer – é da ordem do próximo,
do raso, do cotidiano (2000:65, 66).

Jullien faz a contraposição de certa forma dicotômica entre filosofia e sabedoria (por extensão
entre ocidente e oriente), sem se dar conta, talvez, que ele próprio, na construção de discursos
124

como este acima, já está operando na fronteira entre essas definições. No meio, no vazio deste
Anel de Moebius:

Para Deleuze e Guattari, onde a psicanálise diria: “pare, reencontre o seu eu, seria
preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda
suficientemente nosso eu” (1996:11). Segundo os autores seria preciso substituir a
interpretação pela experimentação. Como na perspectiva taoísta, não há perspectiva de
fixação em uma idéia ou um eu imutável. A conduta, a vivência, a práxis, assumem novo
lugar no processo cognitivo. O entendimento se dá no corpo, via experiência.

Ao discorrer sobre o corpo sem órgãos, que não seria necessariamente bom, em si, os
autores trazem a prática sexual tântrica como exemplo de como criar um CsO. Note-se como
mencionam noções taoístas:

Não se trata de sentir o desejo como falta interior, nem de retardar o prazer para produzir um
tipo de mais-valia exteriorizável, mas, ao contrário, de constituir um corpo sem órgãos
intensivo, Tao, um campo de imanência onde nada falta ao desejo e que, assim, não mais se
relaciona com critério algum exterior ou transcendente. É verdade que todo circuito pode ser
rebaixado para fins de procriação (ejacular no bom momento das energias); e é assim que o
confucionismo o entende. Mas isto é verdade apenas para uma face deste agenciamento de
desejo, a face voltada em direção aos estratos, organismos, Estado, família... Não é verdade
para a outra face, a face Tao de desestratificação que traça um plano de consistência próprio
ao desejo ele mesmo (1996: 18-19).

Entretanto, os autores deixam no ar uma incômoda questão ao fim do texto:

Por isto o problema material de uma esquizoanálise é o de saber se nós possuímos os meios de
realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos: corpos vítreos vazios, corpos cancerosos,
totalitários e fascistas (1996:29).

Mas será o caso de separar o CsO de seus duplos? Se o sentido de “duplo” em Artaud - assim
como no Anel de Moebius e na dinâmica yin yang - opera justamente por projeções,
reconversões e retro-alimentação? Tal procedimento é que parece totalitário e fascista.
Selecionar, categorizar, rechaçar, reprimir ou sublimar os duplos “maléficos” visando um
CsO “puro” ou “bom” não parece ser proposição condizente à perspectiva fluídica e inclusiva
do entre, trazida, entre outros, pelos próprios Deleuze e Guattari. Ou do viés de uma ecologia
125

do fantasma, defendida por Guattari como uma ação poética justamente sobre as questões
subjetivas negadas, os “excluídos psíquicos” (Guattari, 1990: 42). A esta, preferimos a
pergunta anterior dos mesmos autores, a de “como criar para si um CsO sem que seja o CsO
canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranóico ou de um
hipocondríaco?” (1996:26)

Sobre este aspecto, os treinos que lidam com o chi parecem sugerir caminhos para
essas políticas corporais, para remontar ao fluxo de intensidades pró-ativas, e dar-lhes vazão
em um espaço propício a isso. Mostram-se ainda como vias para perceber e regular essas
latências. Na seção 4.1 trataremos mais dessa questão.

Em que corpo chegamos, então? Em um corpo psicofísico. Corpo como lugar de


imanência e transcendência, onde imanência é transcendência. Corpo escritor e escritura,
corpo mapa e cartógrafo de memórias, afetos, sensações... Este corpo afeta e é afetado numa
relação co-evolutiva com seu meio, e nesse jogo experimenta certa autonomia de reinventar-
se. É com este corpo que muitas abordagens nas artes cênicas contemporâneas têm operado.
Um corpo que reivindica criação, que recusa cada vez mais a mera execução ou reprodução
de coreografias, marcas ou partituras preconcebidas. Um corpo criador e criatura, corpo
enquanto campo virtual e zona de atualizações.

3.3 Corpo vibrátil. Corpo sutil.

A partir desse esforço de re-significação do estatuto do corpo, enquanto princípio


fundante da subjetividade contemporânea, a criatividade passa a ser, nessa nova configuração
paradigmática, um valor que desperta com grande fôlego. E esse valor ressurge potente, com
o vigor de um atraso, de uma opressão milenar. Entretanto, esta que pode parecer uma espécie
de “tábua de salvação das subjetividades oprimidas”, torna-se também uma poderosa fonte de
alimento para o capitalismo mundial integrado, que a vampiriza, se alimentando dessa
disponibilidade, desse novo estado corporal, cooptando e neutralizando essa potência
emergente, direcionando-a com fins de mercado.
126

Tratamos aqui do que Guattari designa como subjetividade capitalística (1990): uma
re-padronização destes corpos operada de maneira tão poderosa quanto sutil, o que torna
muito difícil a resistência ao processo. Paradoxalmente, e estrategicamente, essa
homegeneização se dá sob o disfarce da diferença: o capitalismo estimula nos corpos sua
recém reconquistada predisposição a criar, a entrar em devir, seu desejo latente de
desterritorialização. Porém o direciona - especialmente através da mídia e da publicidade -
promovendo a composição de uma massa amorfa que investe toda sua intensidade em
“comportamentos prèt-a-porter”, conforme aponta, na linha de Guattari, a psicanalista Suely
Rolnik (2003).

A mesma autora sugere que essa vulnerabilidade, esse calcanhar de Aquiles existe,
porque vigora, nos sujeitos contemporâneos, uma ruptura com seu corpo vibrátil. Rolnik
(2003) usa essa noção, referindo-se à nossa capacidade perceptiva de forças, talvez mais
ligada ao que usualmente se chama intuição. Para a psicanalista, os cinco sentidos seriam os
responsáveis por apreender o mundo das formas, pela nossa capacidade sensorial, enquanto
que, ao corpo vibrátil, caberia perceber o mundo das intensidades moleculares. Esse corpo
funcionaria como uma espécie de bússula, ou alarme, que desencadearia as crises, cruciais ao
processo de crescimento, à resistência ontológica, e à própria experiência vital. Ao utilizar o
termo resistência, Rolnik não está defendendo uma fixidez ou imutabilidade, mas se refere a
uma perspectiva de defesa do corpo em relação a ações que possam oprimi-los em sua
diferença, sua singularidade e suas demandas.

Esta ruptura com o corpo vibrátil desconectou os potenciais de criação e de resistência


(no sentido que vimos o termo), super-estimulando o primeiro e neutralizando o segundo,
tornando nossa criatividade um importante nutriente do capitalismo, esvaziada de seu fôlego
de transformação. Com o potencial de resistência - responsável pela preservação de um eros
psíquico, um instinto de preservação de vida que aciona alarmes, sintomas ou mesmo a
consciência do problema – neutralizado, o outro potencial - de criação - é então cafetinado
pelo capitalismo, ou seja, apropriado e usado enquanto usina de fabricação mercadológica
(2003).

Assim, se coloca, e com grande gravidade, a questão de saber como reconectar nos
sujeitos (aqui no sentido de subjetividades movediças e não de indivíduos) a criatividade à
força vital de resistência. Como tornar seus corpos vibráteis mais despertos e atuantes? A
tentativa de responder a essa questão poderia ajudar se misturar a respostas para uma outra
127

questão persistente na arte: como devolver à estética seu potencial político, transformador,
mobilizador? Obviamente não se trata aqui de falar sobre política, ou fazer uma arte
panfletária ou partidária, que remete mais a abordagens didáticas e ideológicas do que
políticas, no sentido em que aqui se emprega o termo. Mas sim de exercer, com a arte, uma
política. Mas fiquemos no primeiro questionamento.

Como reconectar, então, nos sujeitos, a criatividade à força vital de resistência? Como
promover o desenvolvimento de uma face da inteligência humana, de natureza sensível e
intuitiva, um saber de outra ordem, que não racional, uma inteligência que concerne a
aspectos do que Rolnik chama de corpo vibrátil (2003). Algumas tradições orientais
preservam práticas com princípios similares a estes, fomentando esse saber. A tradição taoísta
é uma delas. Como vimos, várias práticas taoístas - como o tai chi, o chi kung, a acupuntura,
massagens como o tui ná, e o do-in, etc, operam fortemente com o conceito de energia (chi),
visando justo este reconectar-se energético do sujeito. O chi kung visa ao desenvolvimento de
uma auto-percepção energética, bem como da capacidade de captação de energias nas forças
da natureza e de objetos, e o treino da redistribuição ou reorganização energética no corpo de
acordo com os estados corporais em vigor.

A cultura chinesa não se refere ao corpo com um substantivo, remetendo a um


instrumento ou objeto. A noção de corpo aparece mais sob a forma de adjetivos ou da
descrição de estados, o que indica o reconhecimento do caráter movediço dessa idéia
(Greiner, 2005:22). Uma noção que também atravessa a sabedoria taoísta é a de “corpo sutil”,
que está ligada à cartografia energética identificada por eles nos pontos, portais, centros e
meridianos pelos quais circula nossa energia vital, o chi. As inter-relações sempre rizomáticas
entre esse mapa energético, os órgãos, as emoções, os sentidos, os arquétipos, e outros
aspectos relacionados, tudo isso configuraria esse corpo sutil, espaço onde se daria a alquimia
interior mencionada pelos taoístas. Lembremos ainda, com Bizerril, que esse corpo sutil não
se dissocia do corpo concreto. Ele lembra que “o taoísmo combina o cultivo do corpo físico e
do espírito” (2000:114). Assim, para os adeptos:

a realização do tao, ou sua busca, inclui necessariamente a dimensão corporal [...] A união
entre teoria e prática se dá nas situações de treinamento, em que os princípios da cosmologia
taoísta são atualizados nos corpos dos praticantes através de metáforas antropomórficas e da
faculdade mimética. [...] O corpo taoísta – incluindo o visível e o invisível - não é um texto a
ser lido e analisado, mas sim o território de uma experiência vivida (Bizerril, 2000: 157).
128

Para se ter uma idéia da diferença na abordagem de corpo para os ocidentais e para os
orientais, basta recorrer às respectivas medicinas. O esquema corporal, utilizado pela
medicina chinesa é um mapa de linhas e pontos de energia não identificáveis concretamente.
É uma cartografia do invisível. Enquanto que a representação corporal ocidental se atém às
suas partes palpáveis: ossos, músculos, órgãos, sistemas, etc.

O saber manejar a energia, ou o treino desse saber, parece configurar então uma
importante estratégia de re-conexão entre o potencial criativo e o potencial de resistência –
como Rolnik usa o termo - nas subjetividades. Por isso mesmo é também um recurso técnico
propício ao trabalho de ator. Assim, percebemos que as buscas de Artaud, Barba, Grotowski,
e outros, por matrizes orientais, como alimento para seus projetos estéticos têm, entre outros
fatores, relação com esse aspecto.
129

CAPÍTULO 4

O CORPO EM EXERCÍCIO EXPRESSIVO

Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não
haver defasagem entre o instante eu: ajo no âmago do próprio instante (Lispector, 1998:49).

4.1 Estratégias de Conduta

A idéia de corpo que orienta essa pesquisa é então a de um corpo enquanto escritor e
escritura, ou para driblarmos a marca logocêntrica impressa nas terminologias relativas ao
texto, corpo enquanto mapa e cartógrafo. É o corpo que afeta e é afetado numa implicação
total com o ambiente, as circunstâncias, e as histórias que o cercam, e que nessa interação,
promove incessantes heterogêneses. Esta é uma idéia de corpo em contínua re-singularização,
que não se coaduna à idéia centralizadora de sujeito como identidade fixa. Para Denise
Sant’Anna,

o contrário do corpo totalitário talvez seja todo corpo que, no lugar de manter-se como
substância, mônada isolada e livre, existe como um elo entre corpos, floresce como uma dobra
do tecido da vida; na finitude de sua existência este corpo ressoaria a infinita potência criadora
do mundo (2001:100).

Essa dobra de que fala Sant’Anna, e que é metáfora conceitual usada por vários
pensadores, pode ser relacionada à torção no Anel de Moebius: o lugar processual – entre –
que conecta e dilui as dualidades, e que, fazendo os lados contaminarem-se mutuamente, de
130

certa forma os reinventa a cada reconversão. Essa imagem traduz a fixidez de identidade
como algo incompatível ao fluxo da vida. Outro aspecto no Anel, é que seu interior é vazio,
ou seja, é a intensidade pura e sem forma, é o fluxo em si, a virtualidade. O tao.

Em Lévy, a virtualização é um deslocamento do ser para a questão, o que também


problematiza a idéia clássica de identidade, territorializada. O que a virtualização promove
incessantemente é a heterogênese, o devir outro, o processo de acolhimento da alteridade.
(1996:25). Segundo o autor, o processo provoca transformações identitárias, deslocando o
centro de gravidade ontológico do objeto considerado, fazendo com que, em vez de se definir
principalmente por sua atualidade, ou qualquer território pontual, a entidade encontre sua
consistência num corpo complexo, problemático (1996:18-19). Assim, no lugar da idéia de
identidade, de indivíduo, de caráter, surge:

um si, um si jamais definitivamente fechado mas sempre em desequilíbrio, em posição de


abertura, de acolhimento, de mutação; um si cuja ponta fina é talvez a qualidade singular do
processo de assimilação do outro e de heterogênese. Essa abertura começa na simples
sensação, passa pela aprendizagem e o diálogo, culmina com o devir: quimerização ou
transição para uma outra subjetividade (Lévy 1996:106).

Entendemos a colocação de Lévy, mas chamamos atenção ao problema da escolha de


terminologias para dar conta da questão. Ao termo desequilíbrio, marcado pejorativamente –
especialmente nos âmbitos psi – preferimos pensar em equilíbrios dinâmicos, ou instáveis,
que se caracterizam mais por serem outro tipo de equilíbrio, do que por serem contra, ou a
negação do equilíbrio (des).

Esse corpo passa a ser encarado, então, tanto por sua palpabilidade, quanto por seu
caráter complexo, rizomático, que articula agenciamentos entre questões e fatores contextuais
que componham seu plano de imanência. Um corpo que não se deixa capturar em formatos
engessados, que se lança em linhas de fuga tornando a imprevisibilidade um aspecto
constante. Esse corpo, de uma impermanência permanente, há de buscar um eixo não-eixo –
eixo móvel - onde se possa apoiar, há de criar para si uma política – corporal – que favoreça
certa regulação em fluxo. Para descobrir, como alertaram Deleuze e Guattari, como criar – e
131

recriar constantemente - para si um CsO que não seja o de uma fascista, de um neurótico ou
de um assassino (1996:26).

Entendendo o corpo enquanto mapa e cartógrafo, temos uma instância, a um só tempo,


campo virtual e zona de atualizações. Considerando que: 1. O corpo é virtual, e o virtual é
uma zona de devires. 2. Wu wei é estar em devir. 3. A re-visitação às práticas e ao imaginário
da tradição taoísta parece oferecer caminhos que promovam wu wei, ou esse estar em devir.
Então se esboça aqui uma estratégia, ou recurso (que seja sempre atualizado, como um re-
curso), para lidar com o caráter virtual do corpo. Lembremos que Tadeu (2004), trazendo
conceitos de Deleuze, ao mencionar meios para devir, refere-se a uma pista de conduta, ou
seja, aponta a possibilidade de incentivar ou estimular essa forma de agir. Aqui a propomos
enquanto estratégia ética e estética, dimensões que quando imbricadas tendem a se tornar
políticas.

Sobre esta questão, Guattari, por exemplo, propõe o que chama de ecosofia, que define
como uma postura ética, política e estética que atua sobre os três registros ecológicos que
identifica: social, mental e ambiental. Para ele, um novo tipo de ecosofia, ao mesmo tempo
prática e especulativa, deveria substituir as formas antigas de engajamento religioso, político e
associativo - já defasadas (1990:54). Denise Sant’Anna também vê nas relações éticas entre o
ser e o mundo a possibilidade da construção de uma conduta, de uma estratégia política e de
auto-realização. Isso passa pelo deslocamento da idéia de ser como identidade, para a de ser
como atitude. Trata-se também de transpor o incômodo e recorrente abismo entre o que se
anuncia e o que se realiza. Sant’Anna lembra que por vezes vivenciamos:

conexões com o mundo sem degradá-lo e sem degradar a condição humana. Inúmeras vezes
eles reúnem ação e reflexão, intensificando a vivência do presente e tornando o eu de cada um
menos sólido, menos uma substância do que um ato. E, ao lembrar da alegria vivida nesses
momentos (por vezes tão fugazes), talvez se possa estimular o corpo e a alma a continuar
cultivando estas condutas éticas, agora e cotidianamente (2001:101).

Para Guattari, a ação ecosófica pode, e deve, se dar tanto em nível macro-político
(campo molar: objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de referência), quanto em
nível micro-político (ordem molecular: fluxos, devires, transições e intensidades) (1996:317).
132

Sempre em perspectiva inclusiva e ambivalente Guattari defende que, ao lado (e não em


substituição) da lógica dos discursos hegemônicos, se inaugure a eco-lógica, ou lógica das
intensidades (1990:42), que abraçaria outros meios e objetos de apreensão e percepção,
instrumentando os processos ecosóficos.

Lidar com a virtualidade do corpo, devolvendo-o à sua intensidade, demanda uma


predisposição para lidar com conteúdos não conscientes, para ouvir, e dar voz, aos “excluídos
psíquicos”, e trabalhar, como quer Guattari, na perspectiva de uma “ecologia do fantasma, que
tenha por objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias de expressão”
(1990: 42). Uma ecologia do fantasma configura um procedimento afirmativo do ser na
própria singularidade e diferença. Esse processo pode parecer, talvez, um tanto doloroso, já
que demanda uma auto-exposição, exige que se lide com aspectos usualmente recônditos e
convoca à sustentação de atitudes por vezes pouco assumidas (e/ou pouco aceitas) no meio
social. Entretanto, a despeito disso, parece ser uma forma de driblar cooptações e dominações
sutis a que estamos sujeitos em nosso tempo.

Como vimos, o modelo econômico capitalista valoriza, estimula e vampiriza valores


buscados arduamente, como liberdade, criatividade, fluidez, ousadia, diferença, predisposição
à mudança, mestiçagem, etc., muitas vezes esvaziando essas atitudes de sua potência
inaugural. A moral que vigora e resiste nesse mundo assim configurado, é de caráter
econômico. A nova disciplina a que obedecemos está ligada à fabricação e consumo de
modelos. Quando falamos em religar o corpo a suas potências, ou em transformarmos “o
corpo num território de ressonâncias destituído de todo autismo” (Sant’Anna, 2001:99), em
re-acionarmos nosso corpo vibrátil, em operarmos na perspectiva de uma ecologia do
fantasma, e ainda quando abraçamos o devir como conduta – e identidade! -, estamos nos
dispondo a estratégias micro-políticas de resistência a apropriações capitalísticas – resistência
não rígida, mas por vias afirmativas e pró-ativas de diferenciação e singularização - por meio
de procedimentos ligados aos fluxos, aos interstícios, às heterogêneses.

Algumas práticas taoístas parecem voltadas a estimular justamente um tipo de


percepção vibrátil, sutil, intuitiva, a qual pode ser bastante eficaz no processo de identificação
dessas neutralizações, igualmente sutis, às quais estamos sujeitos. O já mencionado chi kung
consiste em uma série de treinos psicofísicos, com apoio em exercícios respiratórios, de teor
meditativo, que configuram uma técnica de cultivo e regulação da energia no corpo, e ainda
de trânsito e troca (captação e emissão) de energia com o meio. Trata-se de um conjunto de
133

práticas energéticas que visa estimular o fluxo de chi, de modo a desbloquear e abrir a rede de
canais corporais de energia. Dentro da perspectiva de lidar com esses aspectos sutis do
próprio corpo e do mundo que o cerca, a prática não se propõe, como já foi dito, a desvendar e
explicar os processos, mas a estimulá-los e mobiliza-los, até porque, como alerta Sant’Anna:

todos os seres que nos cercam (e mesmo as coisas) são esfinges; mas com os ardis da sutileza
eles não nos revelam os seus enigmas, assim como nós, por delicadeza, não os deciframos.
Apenas não os deixamos morrer (2001:127).

Sant’Anna percebe, ainda, uma tendência pela busca de meios alternativos que
devolvam aos corpos uma certa quietude perdida na busca frenética de um “nomadismo”
como moda, que, muitas vezes, é muito mais uma agitação travestida de fluidez, uma
compulsão que se supõe estado de criação constante, mas que não devem ser confundidos
com o devir - enquanto wu wei - que não caracteriza processos desterritorializantes, apenas
traduzem ansiedade. Então a autora denuncia o risco do deslocamento dessa ansiedade, para
um consumo compulsivo da lentidão oferecida em guias e workshops, em formatos prêt-à-
porter, possivelmente fadado ao fracasso, já que não há receita para essa lentidão. Essa
pressa, a busca de um atalho para a lentidão, ou o ato de eleger como identidade um suposto
nomadismo, ou uma lentidão idealizada, pautando-se mais num propósito de fotogenia como
a autora nomeia, são condutas ineficazes do ponto de vista político, desprovidas de qualquer
força mobilizadora (2001).

Entretanto, apesar deste alerta, a própria Sant’Anna reconhece legitimidade nessa


busca, mesmo que esta torne-se muitas vezes inócua, como ela assinala. A autora entende que
é “preciso saber que as coisas e os seres possuem forças, apelos, latências, cujas
singularidades a compreensão humana não conseguem esgotar” (2001:114), e observa que,
em rituais e cerimônias, quando se entra em contato com a multiplicidade e complexidade de
vegetais, minerais e objetos em geral, vigora “a repetição do que difere” (2001:114). Talvez
uma forma ética de lidar com essas tradições35, que têm demonstrado durante séculos seu
potencial mobilizador de percepções extra-cotidianas, descontextualizadas do ponto de vista
espacial e muitas vezes temporal, seja exatamente a perspectiva de atualização das mesmas,
que é a perspectiva que vigora também em alguns rituais, como mencionou Sant’Anna. A
idéia de diferença e repetição, sobre a qual Deleuze se debruçou, mostra que a diferença passa

35
As pessoas têm buscado tanto na sabedoria chinesa, como na indiana, como no xamanismo, no candomblé, e
em tantas outras fontes esse tipo de apoio. Guattari constata inclusive que “a procura de um território ou de uma
pátria existencial não passa necessariamente pela de uma terra natal ou de uma filiação de origem longínqua. [...]
Toda espécie de ‘ nacionalidades’ desterritorializadas são concebíveis” (Guattari, 1990: 51)
134

necessariamente pelo processo de repetição (Tadeu, 2004). A repetição aqui não é cópia,
duplicação ou reprodução, o que se repete é o processo, o ciclo, a predisposição de remontar
ao devir, ao virtual, e não o que se configura como resultado ou atualização deste ciclo.
Assim, admite-se a possibilidade de investigação e vivência dessa sabedoria chinesa nos dias
de hoje, no Brasil, sem que isso configure o que Sant’Anna nomeia como fotogenia. Trata-se
de uma atualização: a partir de meu olhar - ocidental, contemporâneo e artístico – e de uma
inspiração em matriz oriental e arcaica, chego a uma expiração própria, o que caracteriza um
processo de heterogênese: respirando no entre. Conspirando.

Bordejando o contemporâneo e o arcaico, o ocidente e oriente, a cena e o taoísmo:


operar nesses “entre-lugares”, nesses “espaços intersticiais” (Bhabha, 2006) é estar em espaço
potencialmente criativo e político. De fato, como alerta Susan Stanford Friedman (1998), a
fronteira tem uma dupla vocação. Pode ser espaço de dominação, cooptação, negação,
proibição, quando estão em jogo lutas de poder, sujeição de povos e culturas, quando a zona
raiana delimita as diferenças configurando-se uma demarcação que impõe a
impermeabilidade. Mas é também lugar de heterogênese, quando neste entre têm lugar as
reconfigurações das diferenças, as migrações contínuas de referências, as interações,
contaminações, transições, mestiçagem36. Sant’Anna, de certa forma, também se refere ao
interstício como um lugar que deve ser buscado quando, ao apontar para o hábito estratificado
de se contrapor a velocidade à lentidão, sugere que “saindo desses dois pólos extremos, é
possível viver uma situação em que as oposições dão lugar à complexidade de sentidos”
(2001: 97).

A fronteira é lugar onde há grande tensão atuando. Estar nesse interstício com pré-
disposição a heterogênese permite o trilhar por caminhos outros, diferenciados dos recorrentes
e normativos, singulares. Não se trata da pretensão de “descobrir a pólvora”, de inventar algo
novo, mas simplesmente do desejo de não me ater a dogmas para instaurar um processo de
pesquisa. Assim qualquer ortodoxia ligada seja ao taoísmo, seja ao teatro, seja à filosofia, é
aqui preterida em nome da conjectura, do estar entre, do estar em devir, do exercício de borrar
os contornos dessa geografia fronteiriça, rumo a outros esboços.

4.2 Exercício impressivo-expressivo


36
Lembrando que o sincretismo e o hibridismo não são fenômenos novos, apenas acontecem hoje em velocidade
e frequência crescentes.
135

Para Didi-Huberman, o visível se torna inelutável, quando sua modalidade,


usualmente ligada ao ter, torna-se votada ao ser, quando, no ato de ver, sentimos que algo nos
escapa. Assim, uma obra de arte seria inelutável:

quando uma perda a suporta ainda que pelo viés de uma simples associação de idéias, mas
constrangedora, ou de um jogo de linguagem, - e deste ponto nos olha, nos concerne, nos
persegue (1998:33).

Para o autor, a perda que opera (n)esta obra é um trabalho do sintoma, aqui pensado por viés
dissociado da psicanálise. Este seria, para Stephane Huchet, que apresenta a obra de Didi-
Huberman, um:

evento crítico, acidente soberano, dilaceramento. Ele é a via promovida pelas imagens para
revelarem à leur corps défendant sua estrutura complexa e suas latências incontroláveis. Ele
torna a imagem um verdadeiro corpo atravessado de potencialidades expressivas e patológicas
que são configuradas num tecido feito de rastros sedimentados e fixados. Ao presentificar-se
na inelutabilidade de sua abertura somática e crítica, o sintoma dá acesso a seus fundamentos
fugidios e abissais (1998:17).

A potência identificada por Didi-Huberman no sintoma é da mesma ordem daquela


que Guattari atribui ao que chama ecologia do fantasma. Nos processos ético-estéticos,
Guattari acha necessário jogar o jogo da ecologia do imaginário (1990: 42) e preconiza a
expressão, a estética e a inventividade como importantes chaves de acesso à ecosofia mental.
Esta reinventaria a relação do sujeito com o corpo, com os fantasmas, com os mistérios da
vida e da morte. Seu modo de proceder se afina mais com aquele do artista do que o dos
profissionais “psi”, segundo o autor, sempre “assombrados por um ideal caduco de
cientificidade” (1990: 16). Também para Lévy, questões ligadas à imaginação, à memória, à
presença, ao conhecimento, à religião, são vetores de virtualização (1996:20). E ainda
Susanne Langer traz esse conceito, e chama de “poderes virtuais”, o conjunto de intensidades
– sensações e seus efeitos – que operam na recepção artística (1980:184).

É por esses domínios, de vocação desterritorializante, que me sinto impelida a


transitar, em perspectiva entrelaçada, a um só tempo ética e estética; acreditando que é no
devir em imersão, no escavar contínuo e persistente de si mesmo, no trânsito que não
reconhece isolamento entre o dentro e o fora de cada um, que o artista (aqui, o artista cênico)
pode encontrar sua maior potência criadora, transformadora, política. Quando a criação
estética lança uma ponte entre sentidos sensoriais e semânticos, tramando os sentidos de
sema, aïsthèsis e pathos (Didi-Huberman, 1998:12), parece gerar inclusive uma recepção
intensificada, tendendo a ser mais mobilizadora para quem cria e para quem frui.
136

O espectro virtual (associações, lembranças, referencias, sensações, etc) que se


apresenta ou emerge, no ato de fruição de uma obra, quando nos vemos, por vezes
incomodados, por outras em estado de prazer, nada mais é do que o espaço onde se manifesta
em nós o “sintoma”. Se for vocação da arte instaurar um espaço de potencialidades, onde seja
possível recriar o cotidiano e repensar nossas realidades internas e externas, a partir de uma
experiência sensível, então talvez o maior desafio de uma manifestação artística seja o de ser
capaz de provocar em quem a acompanha um grau intenso de sintoma.

Uma cena que nasce por sintoma, pode, talvez, aglutinar os elementos capazes de
provocar no receptor esse grau intenso de sintoma. O artista que vasculha em si, em seus
próprios vestígios e rastros, em seus restos, em sua memória involuntária, em seu chi, em seus
corpos, o material psíquico e orgânico que vai engendrar sua ação, deve encontrar aí material
para gerar um trabalho que ao mesmo tempo lhe sirva apoio processos de auto-conhecimento,
crescimento pessoal, regulação, “curas” provisórias de questões incômodas, também cause
uma recepção intensificada.

Esse exercício expressivo como conduta estética, ética e política, no caso dos artistas
da cena, funciona como atualizações do corpo, no corpo. Cartografias do corpo, no corpo, em
nome do corpo e para fruição por outros corpos. Muito mais se poderia falar sobre como a
atualização expressiva de um corpo, aciona a desterritorialização em outro, no processo de
recepção, desdobrando intensidades, esburacando resistências, fazendo emergir, no fruidor,
afetos, memória involuntária, associações, inéditas ou recorrentes, e ainda, proporcionando,
no público, outros ímpetos para diferentes atualizações. Mas a recepção não é o objeto deste
estudo. Assim nos concentraremos no processo criativo e na questão da expressividade.

Interessante lembrar que em grande parte das vezes em que Matteo Bonfitto (2002),
trazendo o pensamento de nomes emblemáticos do teatro, fala em expressividade, parece usar
o termo associado a duas vias de um processo. Seja a um procedimento psicofísico
(Grotowski, Stanislávski, Checkov), ou ao trânsito entre visível e invisível (Peter Brook),
interno e externo (Stanislávski, Grotowski, e outros), imagens às quais podemos acrescentar
os circuitos físico-metafísico de Artaud e pré-expressivo e expressivo em Barba. O fato é que
a idéia de expressividade, não parece se referir a um caminho de mão única (dentro para fora),
como o termo parece implicar. Aparentemente, para os artistas cênicos, expressividade é uma
noção que encerra um movimento dialético, operando em uma via de mão dupla, que
subentende também o que chamaremos aqui de impressividade. Talvez a opção em se contrair
137

no termo expressividade uma operação que conjuga dinamicamente movimentos impressivos


e expressivos, se relacione à atenção voltada ao espectador (que implica um fora, um sair)
como objetivo último, foco, destino desta mesma operação. Assim, na tensão psíco-física, e
nos diálogos constantes produzidos pelos trânsitos entre os vetores impressivos e os
expressivos, estaria o que o teatro designa usualmente como expressividade.

O termo expressividade remete também à construção de um corpo extra-cotidiano e de


uma segunda natureza (Decroux), à estilização ou teatralização do corpo em ação, a
qualidades e texturas identificáveis e conquistáveis no movimento (Laban e Decroux). Vemos
muitas vezes, também, a idéia de expressividade relacionada a uma qualidade de presença, à
força orgânica impressa na ação cênica, ao vigor na interpretação. Não fosse o conceito de
verdade um campo tão minado, tão atravessado de interpretações variadas e díspares,
poderíamos relacionar expressividade à idéia de verdade. Não mais no sentido de
verossimilhança, mas de energia, de potência, de implicação do corpo do ser-ator na
construção estética, e de estímulo e manutenção do circuito impressivo-expressivo, enquanto
fomentador das ações criativas e de suas atualizações em cena.

Detenhamo-nos, então, no corpo do artista cênico. Nesse corpo, que é criador e


criatura, escritor e escritura, cartógrafo e mapa, cada atualização, também promove re-
virtualizações. José Gil diz, sobre o movimento dançado, parafraseando Deleuze, que “a
imanência que caracteriza esse movimento descreve-se do seguinte modo: o que se move
como corpo regressa como movimento de pensamento” (2001:50). Independente de tratar-se
de dança, cada aspeto capturado no campo virtual psíquico, imaginário, energético, no plano
de imanência de um corpo, quando singularizado em uma ação criativo-expressiva, da ordem
da exterioridade, vetorizada para o espaço intersticial entre o corpo e o outro, tende, por sua
vez, a re-acionar um novo trânsito por devires, sempre em contaminação. Em relação a esse
contágio, inerente ao processo co-evolutivo entre ser e meio, dentro e fora, Lévy também
menciona o filósofo francês: “como diz Gilles Deleuze, o interior é uma dobra do exterior”
(1996:106). Essas colocações nos remetem mais uma vez à figura do Anel de Moebius e à
dinâmica yin yang:
138

É bom frisar que a divisão forjada, entre expressividade e impressividade é mais


esquemática do que prática. Esse circuito configura uma paridade impregnada mais do sentido
do duplo de Artaud (pleno de projeções, sombras, conversões, retro-alimentação), e da
relatividade yin yang, do que de um binarismo hierárquico herdado da metafísica ocidental.
Trata-se um movimento dialético, mas que não busca síntese ou estabilidade, vive em
movimento, produz equilíbrios instáveis e instantâneos, dinâmicos. O tipo de harmonia que é
gerado aí, não é da ordem do repouso, de uma estética estática, e sim deve ser entendido como
uma espécie de harmonia momentânea, um estado suspenso num trânsito, a atualização de
uma plenitude que é da ordem do instante (ainda que, por ser poética, tenha o poder de aí
suspender, atravessar o tempo). A noção de harmonia também ganha leitura não teleológica
em Barba, que a define, como vimos, como zona de “acordo entre tensões”, “proporção ativa”
entre diferenças (1991:20-21). Trata-se, talvez, do que Clarice Lispector chama de “harmonia
secreta da desarmonia” (1998:12). Não se refere ao “equilíbrio perigoso [...] perigo de morte
de alma” (1998:23), mas a algo nada definitivo: “quero não o que está feito, mas o que
tortuosamente ainda se faz” (1998:12).

Se, do ponto de vista biológico, o equilíbrio, enquanto estabilidade definitiva sinaliza a


morte, a não vida, a inexistência, a fossilização, sob outros aspectos não parece ser diferente.
O que pode ser revisto ao nos instalarmos num território mais subjetivo e afetivo do que
biológico, é procurarmos lidar com a idéia do “longe do equilíbrio” (Prigogine, 1996), menos
como um vetor des-harmonizante, e mais como um impulso re-harmonizante. Assim, buscar-
se-ia mais uma atitude fluídica, afirmativa e pró-ativa, do que niilista e depressiva. É
importante que se aprenda a aceitar e lidar – em wu wei – com esse paradoxo do equilíbrio
não equilíbrio, da inconstância constante, que pode ser metaforizado naquela torção do Anel
de Moebius – que indica sua reversibilidade. Os caminhos não caminhos do tao parecem ser
prenhes desta perspectiva, e podem colaborar nesse aprendizado de, através de nossos corpos
– sutis, vibráteis, físicos não físicos - abraçarmos o paradoxo, dança-lo, vivê-lo, sem tentar
desvenda-los, nem evitá-los.

Voltando ao circuito impressividadexpressividade (que assim designado mostra mais


seu caráter movediço e reversível, do que se o chamássemos de circuito impressão-
expressão), qual em uma superfície de Moebius não há, a rigor, dentro e fora, antes, um se
transforma no outro e o contamina insistentemente. Assim temos:
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Para Lévy essa passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior está sempre
relacionada à virtualização, e esse “efeito Moebius” se descortinaria em registros variados,
como o das relações entre privado e público, próprio e comum, subjetivo e objetivo, mapa e
território, autor e leitor etc. (1996:24). Esse continnum entre dentro e fora, corpo e espaço, é
observado também em José Gil, quando explica que, especialmente na construção estética
cênica, “o espaço do corpo resulta de uma espécie de secreção ou reversão [...] do espaço
interior do corpo em direção ao exterior. Reversão que transforma o espaço objetivo
proporcionando-lhe uma textura próxima daquela do espaço interno” (2001: 59).

Sobre essa reversibilidade vale lembrar que quando falamos em entrar em devir, não
devemos imaginar que este só se dê no processo, por assim dizer, impressivo. Ou seja, esse
devir não se instala somente num campo virtual da interioridade (psíquico, imaginário), mas
pode configurar também um devir físico (por movimentos, ações). Pensando em nosso duplo
circuito podemos pensar a expressividade como o processo de atualização de algo do campo
virtual psíquico no espaço virtual físico. Já a impressividade como o processo na
“contramão”, ou seja, caracterizando o modo pelo qual um devir físico promove atualizações
no campo psíquico ou anímico do ator, como um desencadeamento de ações convoca
questões internas a virem à tona. Neste último caso (impressividade) tende a ocorrer
preenchimento de sentidos em formas geradas, e no primeiro caso (expressividade), há um dar
formas a conteúdos emergentes capturados.

Usualmente se relaciona o trânsito que estamos concebendo como impressivo


enquanto princípio recorrente ao chamado “teatro físico” – de fora para dentro, e o outro,
expressivo, relacionando-se mais ao dito “teatro psicológico” – de dentro para fora. Apesar de
ser uma divisão ilustrativa, que até revela certas características dessas tendências, não nos
parece ser um esquema que dê conta das complexidades de cada uma das abordagens.
Stanislávski, na segunda fase de construção de seu método, concebe uma inversão de acesso à
personagem, ao perceber que a ação física funciona como isca de processos internos.
Entretanto ele ainda visa à cena – e uma personagem - realista e psicológica. De outro lado,
diferentes dinâmicas que objetivam composições corporais de estética não realista e
140

psicológica, partem de sensações, imagens ou outros processos instalados “internamente”, que


detonam movimentos, gestos, ações físicas. Se entendermos o corpo como esse amálgama
onde se fundem e se afetam aspectos psíquicos e físicos, então toda corporeidade será
psicofísica, importando pouco o lado (interno ou externo) em que se dá o start. Até porque,
após o impulso inicial, esse movimento não cessa de percorrer o circuito
impressividadexpressividade, trazendo atualizações constantes em cada face (interna e
externa) do processo. De novo remetemos às nossas matrizes. As dinâmicas intrínsecas a esse
duplo circuito podem encontrar ressonâncias na relatividade yin yang. Lévy chegou a cogitar,
na ocasião em que se refere à suposta dicotomia entre substância e acontecimento, que talvez
coubesse considerar esse contraste a partir da relatividade entre yin e yang: “haveria
passagem, transformação perpétua de um no outro. Cada um deles exprime uma face não
eliminável e complementar dos fenômenos, como a onda e a partícula na física quântica”
(1996:144).

As propriedades da relatividade yin yang, expostas na seção 2.2.a, implicam em uma


fluidez que pode ser relacionada ao circuito impressividadexpressividade. A “oposição”
sugere justamente a existência de dois aspectos contrastantes em fenômenos e/ou processos, e
mostra a existência de tensões entre estes aspectos. Não se trata de um antagonismo, mas de
uma oposição rítmica e fluídica. Já a “interdependência” mostra que um pólo só existe na
relação com o outro, explicitando a absoluta imbricação entre ambos. Essas duas propriedades
são claramente identificadas no circuito que apresentamos. Já o “interconsumo” sustenta que
o aumento de um dos lados acarreta a diminuição do lado oposto e vice-versa. Essa
propriedade não pode ser encarada como uma regra no processo expressivo, mas pode ser
observada em algumas ocasiões. É comum que, quando exacerbamos processos externos -
sejam movimentos, sons, formas – tenhamos diminuída a voltagem interna. Até pelo fato da
vazão a essa voltagem estar em curso. O contrário também ocorre por vezes. O aumento de
mobilização interna pode gerar a redução de atividade externa. Em ambos os casos há ainda a
possibilidade de essa configuração gerar um processo que pode ser identificado na próxima
propriedade yin yang: a “intertransformação” mostra que em certas situações, geralmente no
auge da predominância de um lado, este poderá se transformar em seu oposto. É aquele
momento em que após intensa atividade interior, chegando ao auge desta, subitamente passa-
se a uma ação externa. Ou vice-e versa, momento em que na seqüência de uma profusão de
gestos e movimentos, se configure um momento de maior introspecção. Repetimos que não se
trata de admitir como leis do corpo em cena essas propriedades. Porém, pensá-las ajuda-nos a
141

reforçar o entendimento do fenômeno como um amálgama de dois processos contíguos e


inseparáveis.

A seguir trataremos da noção de vazio, pensando sua eficácia. Entendendo-o como um


recurso para o exercício da expressividade. Um recurso a ser sempre novamente aplicado, em
re-curso e sempre cursado como na primeira vez, num movimento rítmico entre criar e
esvaziar.
142

CAPÍTULO 5

O VAZIO COMO RE-CURSO

Quando eu morrer, vou começar de novo dentro do universo. Vou continuar dançando...
(Kasuo Onho in Luisi e Bogéa, 2002: 98).

A vontade primeira era nada escrever. Trazer um silêncio para o corpo desse estudo
tão repleto de tentativas explicantes. Um hiato em meio às palavras. Poder escutar o branco da
página...

Entretanto as exigências que envolvem a feitura de uma tese me pedem que encha de
idéias o vazio nessas próximas linhas. Por outro lado, o vazio do tao é vazio sempre re-
preenchido. Assim, não desejo mais negar a palavra ou o texto, mas tentar garantir um vazio
pleno através e apesar das palavras. Tentar fazer com que a palavra signifique, sem
estratificar, fazer com que provoque desdobramentos, novas interpretações e mesmo novas
palavras.

E, além disso, o vazio não termina em si mesmo, senão que se reinventa todo o tempo,
fomenta criação sempre renovada, gera experiências, imagens, e textos. Para voltar a ser
vazio.

5.1 Imagens do (v)entre

Eu danço na barriga da minha mãe, que é também a barriga do universo (Kasuo Onho in Luisi
e Bogéa, 2002: 80).
143

A metáfora do ventre me veio do nada, de repente. Veio em wu wei, veio do meio do


vazio, por que não estava pensando sobre isso, ou buscando-a. Depois li algumas falas do
dançarino de butô Kasuo Onho se referindo às barrigas - da mãe e do universo, e lembrei que
há entre no ventre, tanto em seu significante quanto nos seus significados. E talvez também
porque já tive um ente no entre do ventre. Aliás, mais de um ente. Mas fiquemos no antes dos
entes. No entre do ventre. O ventre-oco, que é véspera da criação - quando então é ventre-oca,
ventre-ovo, para em seguida voltar, re-curso vazio, a ser ventre-oco. Então percebi que aí
também a criação se dá no oco do entre. Entre um espermatozóide e um óvulo, por exemplo.
Opostos – aqui masculino e feminino - que se encontram e se fundem num vazio que é
vazio/cheio de orgasmo também. Suspensão, supressão de controles, profusão de sentidos.
Explosão no entre-oco. Big Bang. Criação. Preenchimento provisório. E o eterno remontar ao
vazio.

Também se deu criação entre meu corpo vazio, em diálogo com imagens, sugestões,
ambiências. Entre meu corpo vazio de expectativas e intencionalidades, em encontros com
matrizes de um imaginário chinês, também elas vazias de idéias pré-concebidas: deu-se
criação. Mas houve dias, também, em que chegava ao ensaio, já repleta de imagens,
preenchida de vontades e torturada de idéias. Nesses dias conseguia, no máximo, forjar um
estado criativo... Mas nem eu acreditava... Tudo bem, como diz o I ching, “nenhuma culpa”, é
só jogar tudo fora e começar de novo. Mas começar do zero, do vazio.

Ainda no entre, lembremos da noção de meio, para os confucionistas, que se relaciona


à noção de vazio para os taoístas: seria um espaço no qual nossa intencionalidade
permaneceria livre e indeterminada (Jullien, 2000: 39). Essa idéia, por sua vez, remonta à pré-
expressividade descrita por Barba, a qual se diferenciaria do campo da expressividade,
justamente pela ausência da intenção de expressar (no sentido de uma vetorização consciente
de sentido). Na pré-expressividade, segundo Barba, a idéia seria o treino da “presença pura”,
sem vínculo ou compromisso com contextos ou significados. O que, paradoxalmente, pode
promover construções de vocação altamente polissêmicas, já que o fato de não haver a
intenção de significar não implica na ausência da significação.

Segundo Jullien, o meio e o vazio são ainda o lugar do e, assim, “o verdadeiro meio
deve ser entendido, positivamente, como poder uma coisa e outra, e não, negativamente,
como não ousar uma coisa nem outra” (2000:36). Ainda segundo o autor, o vazio taoísta não
apenas se contrapõe ao cheio, mas funciona correlativamente a este. Este vazio seria o meio
144

em que o pleno se reabsorveria e se indiferenciaria, o que remete à noção de virtualidade


(voltaremos a esse ponto adiante), além de ser também de onde o pleno adviria e se tornaria
efetivo. Esse vazio seria uma espécie de fundo latente das coisas, como se fala do fundo de
uma tela, onde se pinta, ou o espaço onde o som ressoa, vibra, se propaga (1998:135, 136), ou
de uma folha em branco em que se escreve. Essas correspondências vinculam o vazio às
noções de efeito e eficácia:

Uma noção resume essa eficácia do vazio [...] o vazio é simplesmente o que permite a
passagem do efeito. ‘Onde nada existe de atualizado, não há parte alguma onde não [se] possa
parar, parte alguma onde não [se] possa ir’. Ao contrário, o que impede o efeito de se exercer,
é quando o pleno não está penetrado de vazio e, tornando-se opaco, gera obstáculo: fazendo
anteparo, ele leva o real a imobilizar-se, ficamos presos nele; não sendo possível mais
nenhuma circulação, enterramo-nos nele. [...] se todo vazio é eliminado, elimina-se também o
jogo que permitia o livre exercício do efeito (1998:137, 138).

Ainda para Jullien, essa interação entre vazio e pleno, dentro da noção de efeito, revela a
interdependência entre aspectos opostos do real, graças à qual o próprio real não cessaria de
operar e advir. Ele lembra ainda que, no pensamento chinês, a exemplo da interação entre
vazio e pleno, todos os contrários se engendram um ao outro. Assim, Jullien pensa a eficácia
como conseqüência de uma lógica de não exclusão dos contrários. Ao invés disso os opostos
se condicionariam mutuamente, e da lógica dessa dinâmica o sábio tiraria sua estratégia de
eficácia (1998:140).

Voltando ao entre, lembremos que este é um lugar privilegiado ainda por Deleuze e
Guattari, ao desfiarem seu rizoma, também propondo a conjunção e como alternativa à
excludente ou, e até mesmo ao peremptório é. Dizem os autores:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-
ser, intermezzo. [...] é aliança [...] tem como tecido a conjunção “e... e... e...” [...] É que o meio
não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas
não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma
direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem
início e nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (1995:37).

Homi Bhabha talvez tenha sido um dos primeiros autores a usar a imagem do entre.
Para ele, como vimos, o entre – intersticial - é o lugar “onde a diferença não é nem o Um nem
o Outro, mas algo além, intervalar” (2006:301). Se Deleuze e Guattari articulam o entre de
maneira mais filosófica, ligado a conceitos como desterritorialização, devir e virtual, em
Bhabha vamos nos aproximando de um entre mais antropológico, ligado à noção de fronteira,
onde encontros entre diferenças culturais articulam novas identidades – híbridas e não fixas.
145

Esses esgarçamentos identitários, as heterogêneses que aí se produzem, a perspectiva de


reciprocidade como alternativa às dicotomias, a ambivalência, a tolerância ao paradoxo, logo
à diferença, e com isso a disposição à mestiçagem, todos esses aspectos nos aproximam de
princípios da sabedoria chinesa.

A pesquisa a que me propus se insere nessa zona fronteiriça entre diferentes territórios
– culturais e disciplinares - visando justo esse entre-lugar intervalar. Num encontro de ritmo
ambivalente, de tensão e fusão, entre a sabedoria taoísta - com seu imaginário milenar, e o
teatro, pelo corpo de uma atriz cuja abordagem de cena está impregnada de outras tantas
referências culturais, se abre um espaço outro – e singular - de experimentação.

A metáfora da fronteira traz a idéia de campos propícios à invenção, a outras


configurações – inclusivas e abrangentes. Mas não se pode ignorar outros aspectos ligados à
imagem. Essas zonas liminares, a exemplo de suas sua versões geo-políticas, são muitas vezes
espaços de dominação e violência. As divisas – reais e simbólicas - entre países, regiões,
etnias, culturas, classes sociais, religiões, orientações sexuais, etc têm mesmo vocação
ambígua. Podem inspirar controle, cooptação, guerras de poder, exclusão, e toda a sorte de
ciladas. Mas têm também vocação para fomentar outras configurações identitárias,
heterogêneses. O antropólogo Vincent Crapanzano fala da idéia de fronteira com essa
perspectiva:

as fronteiras me interessam como horizontes que se ampliam da insistente realidade do aqui e


agora para aquele espaço ou tempo optativos – o espaço-tempo – do imaginário. [...] Ao
contrário das divisas, que podem ser cruzadas (a menos que estejam fechadas), e dos limites,
que podem ser transgredidos, as fronteiras, conforme estou empregando a palavra, não podem
ser atravessadas. Elas marcam uma mudança de registro ontológico. [...] Assim, estou
particularmente interessado nas vias paradoxais pelas quais a irrealidade do imaginário
imprime o real na realidade e por que o real da realidade compele a irrealidade do imaginário.
Essas vias não podem ser separadas. (2005).

Além do paradoxo entre irrealidade e realidade, trazido por Crapanzano - que nos
remete à dinâmica do Anel Moebius e dos pares yin yang - interessou-nos, na articulação do
antropólogo, o lugar do imaginário dentro de sua visão da fronteira. Isso porque, em nosso
processo criativo, o âmbito do imaginário é crucial. Tanto por ser a principal fonte de matrizes
– já vimos que a sabedoria chinesa imbrica o imaginário, o simbólico, o conceitual e o
operacional, no sentido de práxis e eficácia - quanto por ser o meu próprio motor imaginário
altamente afetado e solicitado nas dinâmicas criativas.
146

Durante as experimentações a imaginação era uma das funções mais presentes e


eficazes ao trabalho. Para dialogar ou atualizar as sugestões (matrizes taoístas) que deveriam
me provocar uma criação, eu adensava tais imagens em meu corpo. E ainda é assim, nas
apresentações: imagens são evocadas como uma sub-partitura, que atuam gerando
corporeidades – enquanto encontros entre fisicidade e imaginário. Além desses aspectos, há
ainda o do espaço imaginário criado no entre do encontro de público e peça, que diz respeito a
questões de recepção. Voltaremos a esses temas na seção sobre os processos criativos.

Outro conceito que pode ser trazido para dialogar com as idéias de meio, de vazio e de
entre, é o de ma. Apesar de ser um termo japonês, ma, segundo Crapanzano, é uma noção
oriunda da cultura chinesa: “diz-se que o ma vem do chinês, o caractere que mostra o sol no
meio de portão aberto” (Crapanzano, 2005). Também Kunio Komparu, bailarino de Nô e
arquiteto, atribui a origem da noção à cultura chinesa (in Greiner:1998, 101). É bastante
sabido o quanto a civilização chinesa influenciou o Japão, ao longo dos séculos, e,
provavelmente, esta é uma das inúmeras assimilações culturais nesse processo.

Para Komparu, ma pode ser traduzido por “espaço, espaçamento, intervalo, lacuna,
vão, lugar, interrupção, pausa, tempo, ocasião ou abertura” (1983). O termo, originalmente,
designava espaço, mas na música, por exemplo, ganha também conotação temporal. Assim, é
usado, musicalmente, para descrever uma pausa, articulando as idéias de tempo e espaço, na
noção de intervalo, ou suspensão. E ainda para a música, não é um intervalo sem função, ao
contrário, agrega dramaticidade ao som. Trata-se, então, de um tempo-espaço intersticial, e,
por isso mesmo, um vazio potencial.

Norvall Baitello Junior, em apresentação ao livro Butô: pensamento em evolução de


Christine Greiner, traz o conceito de ma, a partir do estudo do antropólogo Edward T. Hall.
Ma é uma idéia que implicaria uma fusão do espaço com o tempo, e se associaria a outras
idéias, se desdobrando em sub-conceitos: um tempo-espaço sagrado de gênese de divindades,
que conjuga a obscuridade e a luz, o espaço-tempo intervalar e fronteiriço, a pausa, a idéia de
abertura, a noção de mudança processual, entre outras. Assim, segundo Baitello, “Ma é um
complexo conceito histórico-mitológico” (Greiner:1998, xii).
Greiner, ao longo seu estudo sobre o Butô, articula o conceito de ma ao vazio como
virtualidade (1998:40-41), favorecendo a idéia de um espaço-tempo desterritorializado, onde
as potencialidades estão à disposição de atualizações. Em seguida, traz a idéia de um tempo-
espaço negativo com dimensões e funções, o que ajuda a reforçar a associação de ma, com a
147

idéia anteriormente exposta de Jullien, de um vazio eficaz. Nas palavras de Greiner, trata-se
de um “intervalo de tempo-espaço, onde tudo pode acontecer” (1998:101).

Segundo a antropóloga Rita Castro, o ideograma japonês da palavra ma representa:

dois portais que se inclinam em direção ao outro, como duas pessoas no cumprimento japonês
(rei) que se curvam uma em direção à outra, com o vazio pleno que se estabelece entre elas
(2005:186).

Para Crapanzano, o termo ma tem conotações tanto abstratas como concretas, e resiste à
tradução, justamente por seu caráter ambíguo, que imbrica espaço e tempo em uma
configuração única. Para a apreensão do termo, ele acha importante levar em conta, ainda, a
noção chinesa de chi, “uma concepção de energia ou poder espiritual (ki ou chi) que ressoa no
interior do espaço-tempo, entre e em meio a” (2005). Podemos, então, relacionar o fluxo de
chi, à intensidade amorfa e potencialmente criativa, que habita o entre intervalar. A
fecundidade desse “cronotopo negativo – um silêncio, um vazio” (2005), se refere
precisamente a um estado de latência, de ainda não ser, e de, por isso mesmo, poder ser
qualquer coisa, ao se territorializar, ou atualizar em um “espaço-tempo positivo da ação”
(2005). Assim, o chi kung, ao promover a lida com chi, através da instalação de um estado de
esvaziamento, configura-se uma vez mais como importante estratégia para remontar a um
estado de potência criativa. Voltaremos a falar sobre isso.

Se, como diz Crapanzano, “um lugar é ma porque é um espaço entre paredes; [e] em
música, uma pausa também é ma, porque ocorre entre duas notas” (2005), então o espaço
criado na relação complexa e dinâmica entre dois aspectos, também pode ser relacionado a
esse conceito. Com Jullien já tínhamos mostrado como os opostos se condicionam
reciprocamente, e com isso produzem o real, indicando a eficácia na relação de não exclusão
dos contrários (1998). Assim, podemos entender as noções de entre, de vazio e de ma, como
relacionadas ao intervalo ou fronteira presentes entre os aspectos yin e yang de cada uma das
duplas sobre as quais falamos. E ainda, talvez possamos aferir que há aí também aquele
caráter de latência e propulsão criativa.

Na figura do Anel de Moebius, podemos perceber uma representação gráfica do entre,


na torção do anel, que metaforiza a contaminação entre dentro e fora. Este entre é trânsito, e
desdobra em multiplicidade e nomadismo o vazio intersticial do encontro entre as duas faces.
O vão do anel imbrica e está imbricado por ambas as faces da faixa. Nessas encruzilhadas se
abrem, então, zonas de heterogêneses, de outras configurações, para além da realidade visível,
mensurável, comprovável. Como diz Crapanzano, um espaço que se abre ao imaginário, já
148

que “a imaginação é uma ‘realidade’ intermediária, ambígua por natureza e melhor descrita
como ‘nem isso nem aquilo ou tanto isso quanto aquilo’” (2005). Espaço propício à
criatividade, ao exercício de impressividadesxpressividade, em seu movimento ininterrupto.

Remontar ao vácuo infinito criado entre as faces desse Anel de Moebius. Deixar-se inundar
pelo vazio, pleno de latências amorfas. Re-cursar o vão, o entre. Eis o que se configura como
recurso.

5.2 Re-curso vazio

Para que se contentar com os limites da argila do vaso, se é no vazio do vaso que está sua
utilidade (provérbio popular chinês).

De acordo com os taoístas é necessário instalar o vazio para se chegar ao tao. O mestre
Liu Pai Lin, um dos maiores divulgadores da medicina chinesa e do tai chi chuan no Brasil,
se referia ao vazio como “o vislumbre das maravilhas”. A idéia nos treinos taoístas é de que o
espírito é um vácuo que a tudo abrange, e de que o tao inclui, ou é esse vácuo, e que “este é o
jejum do coração (da mente)”, diz Watts (1975:156). Quem pratica meditação e outras
técnicas orientais nesta linha, busca a quietude dos sentidos e dos pensamentos, um
esvaziamento interior, que muitas vezes é conjugado, no procedimento, ao esvaziamento de
ar, na expiração. A orientação é de não fixar os pensamentos, sensações e emoções,
insistentes especialmente quando se é iniciante na prática, nem tampouco de tentar impedi-los
à força, mas simplesmente deixá-los vir e ir. A cada nova meditação, o mesmo (sempre outro)
vazio.

A idéia desse vazio em re-curso37 convida a articulação deleuziana entre diferença e


repetição, sugerindo que o ato de instaurar o vazio é o que deve ser repetido, o vazio sempre
em re-curso, o vazio re-cursado a cada vez. O que advir de cada novo curso, pelo mesmo
recurso, o vazio, é a diferença, o imponderável, o que não podemos prever, o que tem vocação

37
Agradeço à Professora Drª. Maria Beatriz de Medeiros pela sugestão de hifenizar a palavra recurso - e pelas
implicações conceituais deste gesto, chegando aos sentidos desdobrados do termo re-curso.
149

para heterogênese. Do mesmo modo que Denise Sant’Anna sugere ser “na longa repetição de
gestos e sons constituintes da possessão em cada culto, [que] há a invenção do diferente”
(2001:105). O que o estado de vácuo promove ao corpo/ser é um “zerar-se” para entrar em
devir, para tornar-se passagem, canal, trânsito de intensidades.

O filósofo português José Gil também aborda a idéia do vazio para pensar o processo
criativo no corpo, em seu livro Movimento Total (2001). Para José Gil, só o silêncio - o vazio
-permitiria a concentração mais extrema de energia não-codificada, e ao mesmo tempo a
prepararia para escorrer nos fluxos corporais (2001: 17). Esse estado tem potencial altamente
criativo, primeiro pela natureza ainda informe, logo com vocação para vetorizações infinitas,
vazões variadas. E segundo pela quantidade de intensidades que articula e mobiliza, ao
acessar, para Gil, uma espécie de violência primordial representada pelo vazio de toda forma
(Gil, 2001:18). Segundo Gil, o vazio absorve todos os tipos de força, de energias diversas,
musculares, nervosas, físicas e psíquicas, filtrando-as, transformando-as, fazendo o vazio
dentre e em redor (2001:18), imagem que remete à força de atração dos buracos negros do
universo.

É esse acionar de intensidades informes que nos interessa no vácuo. No vazio


encontramos um lugar de trabalho que fomenta, a um só tempo, um processo de
amadurecimento e de conduta ética, e que ainda é fonte de criações estéticas. Se estivermos
totalmente preenchidos, então não resta nada a fazer. As estratificações e anseios por
fechamentos, definições, soluções, nos distancia das infinitas possibilidades de ser/criar, nos
torna pessoas rígidas. Lévy relaciona o vazio ao virtual, ao ato de remontar à intensidade sem
forma, e vê essa virtualização dissolvendo distinções instituídas, aumentando os graus de
liberdade, criando um vazio motor. (1996:19).

O vazio, como princípio, conceito e/ou procedimento, tem sido trabalhado por
inúmeros artistas. A via negativa em Grotowski é por um lado o esvaziamento de tudo que se
mostrava desnecessário ao acontecimento teatral, e por outro uma espécie de pedagogia às
avessas, que “ensina a não fazer” (Roubine, 1998:195):

O fator decisivo nesse processo é a humildade, uma predisposição espiritual: não para fazer
algo, mas para impedir-se de fazer algo, senão o excesso se torna uma imprudência, em vez de
um sacrifício (Grotowski, 1971: 32).
150

Ele via no desnudamento do palco – teatro pobre – e do ator – por meio de exercícios de
esgotamento psíquico e físico – um caminho para a criação. Essa “coragem passiva [...],
coragem de um desarmado, a coragem de revelar-se [...] de rasgar as máscaras [...] num
estado de completo e desvelado abandono” (Grotowski, 1971:212), vai ser básica para sua
idéia do desempenho psicofísico do ator: um “ato total” ou “ato da alma” (Grotowski,
1971:212). Além disso, para Grotowski - que entende o teatro como o que se passa entre o
ator e o espectador ou testemunhas (1971:28) - é esse desnudamento, essa “morte ritual do
indivíduo” (Pavis, 2005:346), que vai fazer do teatro um encontro transformador. Encontro do
ator com o público, e do ator consigo mesmo. Ainda para Grotowski, segundo Antônio
Januzzeli, todo método que não se abre no sentido do desconhecido – vazio - é um mau
método (1992). Januzelli fala ainda da articulação entre o silêncio e os opostos imbricados -
atividade e passividade – requerida por Grotowski a seus atores:

O silêncio é algo difícil do ponto de vista prático, mas é de absoluta necessidade no trabalho
do ator. Ele gera a passividade criadora – o ator deve começar não fazendo nada, silêncio
total; isso inclui até seus pensamentos, pois é necessário que o processo o possua. Nesses
momentos, o ator deve permanecer internamente passivo, mas extremamente ativo; são
reações que desimpedirão as suas possibilidades naturais e integrais (1992).

Barba fala de um momento que parece negar a busca por resultados. Seria uma
desorientação voluntária que mobilizaria a energia e sentidos do artista na mesma intensidade
de quando se caminha no escuro. Neste ponto perder-se-ia o domínio sobre a significação da
própria ação, mas ao mesmo tempo haveria dilatação das potencialidades. Essa negação do
significado traria “a precisão de uma ação que prepara o vazio no qual um sentido imprevisto
poderá ser capturado” (1994:127).

Januzelli fala sobre a proposta de Joseph Chaikin, diretor e um dos fundadores da


companhia americana Open Theatre, que trabalha com a idéia de um homem-ator. Aqui há a
preocupação com uma conduta pessoal que seja regida não de fora para dentro, ditada pela
moral da sociedade industrial, mas conquistada por descaminhos, por espaços de ser onde o
ator se sinta “desnorteado e vivo”, aberto e disponível para a vida, pelo trânsito em “partes
não-informadas”, (1992:32-40). Também para Chaikin o vazio é um recurso. Assim, o ator
deve:

encontrar um espaço claro, vazio, através do qual a corrente viva não-informada possa mover-
se; para isso o ator terá que dar licença a si mesmo, ser capaz de descobrir-se e chamar-se de
dentro [...]; estar presente em seu corpo e em sua voz, com cada parte e o todo do corpo
acordados; estar sensível para reagir através do imaginário e dos estímulos imediatos. O
151

encher-se com experiências emocionais diversas barra a existência desse espaço vazio, que é o
verdadeiro condutor da descoberta (in Januzelli, 1992:36).

O vácuo também orienta os processos criativos de Peter Brook. Frederico Bustamante


em seu estudo sobre Brook (2006), aproxima as idéias deste à noção taoísta de vazio.
Segundo Bustamante, Brook vai trabalhar com uma idéia de vazio que é:

ao mesmo tempo sutil, subjetivo, e que se dá a partir de um lugar oferecido ao imprevisível


durante o curso do evento (denominação de Brook aos seus experimentos cênicos), só
ocorrendo se todas as pessoas envolvidas no momento deste encontro estiverem realmente
próximas, disponíveis e abertas para uma troca verdadeira e dinâmica. Há então uma fluidez
da energia e uma vitalidade na comunicação entre elas, através de uma interação única e
original entre o público e os atores (2006:179).

Em sua dissertação de mestrado, Rita Castro se refere à inscrição de uma tabuleta


fixada na porta de entrada para os ensaios do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), coordenado
por Antunes Filho, em São Paulo. Esta contém as seguintes palavras de Kazuo Ohno:

De maneira nenhuma pode-se dizer que não haja nada num palco vazio, num palco que se pise
de improviso. Pelo contrário, existe ali um mundo transbordante de coisas. Ou melhor, é como
se do nada surgisse uma infinidade de coisas e acontecimentos, sem que se saiba como e
quando (Castro, 2005:244).

Mas o mestre do butô também sabe que estar disponível ao vazio não é alguma coisa tão
simples de se alcançar. Ou ainda, paradoxalmente, é tão simples e tão difícil ao mesmo
tempo:

Na verdade, eu penso de manhã à noite. Penso, penso até o esgotamento e, no final, chego ao
vazio. Estou lhes dizendo [isso] para que pensem, pensem até que, no final, cheguem ao não
pensar, jogando tudo fora. É um não pensar que vem do ter pensado – e pensado muito [...]
Tentar estar no não-pensar sem ter nada pensado é como querer comer o moshi (bolinho de
arroz) de um desenho (Kasuo Onho in Luisi e Bogéa, 2002: 37).

Essa fala de Ohno me remete ao que aconteceu comigo durante o processo criativo do
espetáculo Traços. Pareceu-me que quando eu tentava impedir ou interromper um excesso de
pensamentos, idéias e vontades que muitas vezes me assolavam, mas de uma forma pré-
concebida, estes tendiam a voltar e me perturbar. Então em vários momentos acabei dando
vazão a algumas dessas idéias insistentes, fosse articulando-as em debates com a equipe, ou
em alguma experimentação, até exauri-las. A partir daí então, era menos penoso abrir mão
daquilo que não se afinava à proposta. Foi o caso de muitos trechos de textos da própria Ana
Miranda, que eu às vezes queria que ficassem, por um apego ou admiração, mas que, após
muito repeti-los em experimentações e em ensaios, foram se tornando cada vez menos
152

necessários, até pela presença silenciosa das ambiências dos mesmos em ações físicas e/ou
atmosferas da peça.

Voltando a Kasuo Ohno, artista que, como vimos, também articula a noção de vazio
em sua prática, vale trazer um depoimento de Antunes Filho sobre o dançarino, onde ele traz
essa idéia, sob outro aspecto:

Kasuo propõe o tempo lento, espichado, esticado. Ele está fazendo as coisas e de repente
começa a rompê-las. Como se fosse uma folha em branco, onde começa a desenhar, quase um
desenho abstrato; ele não fecha muito as coisas, só sugere. É você que tem que fechar.
Trabalha com nosso subconsciente: a gente está vendo ele dançar e aos poucos vai abstraindo
a figura do homem em cena, que vai desaparecendo, até ficar invisível e só se vêem as linhas e
uma onda de coisas, que vão nos conduzindo. Quer dizer: a partir de certo momento, não o
vemos mais, mas na rotunda preta do fundo começam a aparecer imagens, umas em cima das
outras. Quem está fazendo a dança ali? Ele faz... E nós também, a partir de suas sugestões. Ele
atualiza uma potencialidade de jogo, por que lida com a vida e a morte permanentemente.
Sabe o valor das metáforas, e se permite brincar: é como uma criança pura. Trabalha ao
mesmo tempo os três níveis: o consciente, o inconsciente e o subconsciente. Não tem mais
sexo: é homem, é mulher, uma coisa só. [...] Agora: ele trabalha sempre no vazio. O que eu
vejo é uma dança no vazio. [...] está criando, iludindo, brincando, jogando. A gente vê a
realidade de maneira sensorial: é preciso começar a ver a realidade de maneira clarividente
(Antunes Filho in Luisi e Bogéa, 2002: 104-106).

Outro artista que encontrou na vacuidade princípios para fomentar a criação


expressiva foi Merce Cunningham. O coreógrafo utilizava o acaso em seus processos
composicionais, através de jogos de dados, e do uso do I Ching. Sobre seus processos
criativos, José Gil comenta que a fonte “onde a energia pura cria o movimento da dança, lá de
onde ela irrompe como saída de si encontra-se no silêncio sem forma, o grande silêncio do
corpo” (2001:17). Esse silêncio, esse vazio, se liga também a uma quietude, mas uma
quietude acordada, ativa no sentido da prontidão, da atenção. A associação entre silêncio e
vazio pode ser percebida também nesta outra passagem:

Para Cunningham, o bailarino deve fazer silêncio no seu corpo. Deve suspender nele todo
movimento concreto, sensorial, carnal a fim de criar o máximo de intensidade de um outro
movimento, na origem da mais vasta possibilidade de criação de formas. Só o silêncio ou o
vazio permite a concentração mais extrema de energia não-codificada (Gil, 2001:17).

A predisposição ao fluxo, ao devir, a “não ser”, a “não agir”, às suspensões de


identidade, aos hiatos de idéias, aos vácuos de posição, ao vazio enfim; abriga o tudo, o
possível, o potencial, a intensidade, toda forma. O vazio contém a forma, mas a forma,
sedimentada, é limitante, frágil. No instante mesmo em que uma dada configuração salta da
intensidade amorfa, para tornar-se ente, já deve estar disponível ao desfacelamento, já deve
resistir à tentação da identidade fixa. É preciso dizer que estamos nos referindo a um espaço
153

de criação, experimentação. Há um momento no processo criativo em formas são escolhidas,


trabalhadas, disponibilizadas à composição. Porém mesmo nessa fase, é possível preservar o
germe do vazio no seio do pleno, a fim de manter viva a própria forma.

Se pensarmos do ponto vista da recepção da obra, esses hiatos de codificação podem


promover uma abertura na fruição, no sentido de estimular a imaginação, provocar maior
índice de desdobramentos de sentidos, dificultando as soluções internas ligeiras e explícitas
por parte do público. Parece ser estimulante manter na cena algumas zonas de sombra, certas
supressões. Trata-se de assegurar a presença da ausência, ou como nos lembra José Gil,
garantir o lugar do vazio:

o grande vazio, ou vazio primordial, vazio invisível que fica fora do plano das formas criadas
– e que fascina porque não representa nada nem nada o representa, manifestando-se apenas na
energia irradiante que dele irrompe (Gil, 2001:17).

Segundo Chaikin, “atuar é uma espécie de rendição profundamente libidinal que o ator
reserva para a sua audiência; é um encontro delicado e misterioso entre ele e o espectador,
causado pelo silêncio entre ambos” (in Januzelli, 1992:39). Novamente a proposição de que é
eficaz haver hiatos de sentido na cena (e demais construções estéticas), espaços que se deixam
preencher por quem frui uma obra artística. Abordagens excessivamente desvendadas podem
tender a restringir e enfraquecer o processo de recepção. Sobre este aspecto, ainda que não se
refira especificamente à arte, Denise Sant’Anna advoga “uma vontade de preservar uma parte
da vida que seja sem nome, sem interpretação” (2001: 114), e alerta que para isso “é preciso,
enfim, que o silêncio não seja compreendido como falta de linguagem, e sim como a presença
de sons que não conseguimos ouvir” (2001:115), ou ainda, acrescentamos, que o silêncio seja
compreendido como sons que podem ser percebidos por vias diferentes e de maneiras
variadas, já que ecoam singularmente nos vazios de cada corpo. A presença dessas
suspensões, a não revelação completa dos teores da cena, vai proporcionar mais (cri)atividade
por parte do público, fomentar mais crises e maior complexidade ao encontro do fruidor com
o trabalho artístico.
154

No processo criativo teatral é comum o anseio pela definição seja de partituras, textos,
cenários, etc. E, claro, há o momento em escolhas precisam ser feitas. Interessa não antecipar
esse momento, e não definir nada além do que realmente pede definição. Não é preciso, nem
desejável, “encher” o vazio totalmente. E mesmo as escolhas feitas devem se saber, como
tudo, provisórias, mutáveis. Como já mencionado, a perspectiva work in process de
abordagem da cena, inclusive no caso de trabalhos já estreados, abraça essa disposição, e
permite o deslocamento da idéia de “manutenção” da cena, para a de uma “regulação” da
cena. O que se mantém aqui não é um formato estanque com tendência à defasagem de
intensidades, mas o persistente re-curso – e checagem - pelas intensidades ligadas ao trabalho
e ao artista, que em infinitos trânsitos agenciam as novas construções da obra.

Dentre os treinos de chi kung, um dos mais básicos, que inclusive freqüentemente
antecede outros, é conhecido como “entrar no vazio”. Trata-se, conforme já descrito em
detalhes na seção 1.2.d, de posicionar-se no kata e voltar os olhos para dentro. Nessa posição
procura-se internamente um estado de wu chi, ausência das fixações de chi no corpo, o vazio,
o silêncio, a sensação de não-existência, de vacuidade, de não-limite entre dentro e fora. Aqui
podemos lembrar da imagem do infinito, do Anel de Moebius, onde interno e externo formam
um continnum. O treino continua por outras etapas, e usualmente é seguido pelo exercício
nomeado “sentar na calma”, que procede por captação de energias do céu e da terra,
direcionando-as e fortalecendo os principais centros energéticos do corpo. Estes são: o centro
yang, que fica dentro da cabeça, o centro yin, que se encontra na altura do colo do útero ou
próstata, e a mãe dos centros, onde essas energias se encontram dinamicamente, encontro este
representado pela imagem do tai chi38. A mãe dos centros está localizada cinco dedos para
dentro do umbigo, devendo ser visualizada como uma esfera de cerca de oito dedos de
diâmetro. Assim, só após esvaziar o corpo do chi estagnado, devolvendo-o ao fluxo, busca-se
a captação de novas fontes energéticas, ou sua reorganização.

As reações dos praticantes são variadas, mas de um modo geral costuma ser freqüente
certa vertigem, uma percepção ampliada da cabeça e das mãos, sensações térmicas, vibração
e, especialmente após certo tempo de treino, começam a surgir movimentos involuntários
(contínuos e/ou espasmódicos). É como se as energias aprisionadas no corpo se
fluidificassem, soltando-se de seus pontos de fixação e ganhando uma renovação ou

38
O tai chi, usualmente traduzido por “grande energia” é representado por aquele conhecido círculo formado por
duas metades em movimento incessante, uma preta com uma “contaminação” branca e a outra ao contrário,
simbolizando que uma energia contém o germe da outra, e que estão em continuo intercâmbio.
155

circulação. O que parece também, muitas vezes, é que o corpo se torna uma passagem tanto
de energias internas quanto externas, se torna um Corpo sem Órgãos. Nos treinos que
envolvem captação de energia, a presença de chi alheio tende a ser sentida mais intensamente,
seja esse chi advindo de árvores, do sol ou de outras fontes.

Denise Sant’Anna fala sobre esta idéia de corpo-passagem quando discorre sobre os
processos que tomam o corpo “possuído”, em rituais africanos e indígenas, por exemplo:

quando há possessão, mais do que se tornar outro, de possuir um outro corpo ou de passar para
outro corpo, ocorre uma espécie de transformação do próprio corpo num local para passagem.
[...] o termo possuído não remete apenas à posse, mas, ainda, à experiência de possibilitar: o
corpo do possuído possibilita, de fato, uma presença sagrada, materializando-a em gestos
visíveis, desdobrando-se em macrocosmo, juntando num mesmo corpo o eterno e o efêmero
(Sant’Anna, 2001:104).

A autora comenta que nestes rituais, há uma transformação do próprio corpo em um


veículo para forças que estão em um campo além do humano, exigindo aos médiuns, aos pais-
de-santo ou aos xamãs que cedam espaço e recolham-se na inconsciência. Assim, “durante a
possessão, o possuído não tem consciência de si, abdica do controle de seu corpo e de seus
atos.” (2001:104).

Essa inconsciência de si não caracteriza o estado meditativo ou de chi kung, de um


modo geral. Aparentemente, no chi kung se lida com energias menos densas, ou com as
mesmas energias, mas de forma mais sutil. Porém são questões que não arriscamos responder.
Muito menos há qualquer valoração nessas conjecturas. Entretanto outros aspectos da
descrição de Sant’Anna sobre a possessão podem ser trazidos para ilustrar também o que
ocorre nos treinos taoístas. A autora diz que quando um corpo é tornado passagem, torna-se
tempo e espaço dilatados, e diz ainda que o presente seria assim substituído pela presença,
fazendo co-existirem a duração e o instante (2001:105). Essa é uma imagem bastante
pertinente ao tipo de percepção que vigora em estados de chi kung, e que remete ainda às
noções de corpo dilatado e de presença do ator, trazidas por Barba, em diferentes momentos
de seus textos. É uma descrição que vale também para experiências místicas variadas, e que o
escritor mexicano Octávio Paz relaciona à sensação de dissolução do eu, também percebida
durante o orgasmo, no ato erótico. Não nos aprofundaremos nessa relação trazida por Paz,
mas a título de curiosidade, e como uma bela descrição das sensações que envolvem esses
estados, transcrevemo-la:
156

Várias vezes se tentou explicar essa enigmática afinidade entre mística e erotismo, mas nunca
se conseguiu [...] O ato em que culmina a experiência erótica é indizível. É uma sensação que
passa da extrema tensão ao mais completo abandono e da concentração fixa ao esquecimento
de si próprio; reunião dos opostos, durante um segundo: a afirmação do eu e sua dissolução, a
subida e a queda, o além e o aqui, o tempo e o não-tempo. A experiência mística é igualmente
indizível: instantânea fusão dos opostos, a tensão e a distensão, a afirmação e a negação, o
estar fora de si e o reunir-se a si próprio no seio de uma natureza reconciliada (1994:100/101).

Sobre essa passagem cabe mencionar o alto grau de prazer que envolve ambas as
experiências articuladas em Paz. Não é de se espantar que haja sempre tantos fiéis ligados a
tantas religiões, seitas e correntes esotéricas. O ser humano está ligado a esses rituais por
diferentes motivos, que passam pela crença, pela fé, pela culpa, pela cultura, mas também
pelo prazer.

Outra questão presente em Paz, que convida à reflexão é a da reunião dos opostos, em
uma natureza reconciliada. Paradoxalmente, o vazio é o tudo, em potencial. Há um adágio
budista que diz que “a forma é o vazio e o vazio é a forma” (Hridaya Sutra in Watts,
1975:53). Aliás, ao vazio estão associados diversos oximoros. O nada e o tudo, o mesmo e o
outro, a forma e o conteúdo, a ausência e a presença, o ser e o não ser. Todos eles se fundem,
se confundem, se reconciliam, na idéia de vacuidade. Inês Bogéa traz essa idéia de fusão de
contrastes na arte de Kasuo Ohno, que, segundo ela:

dança entre o mundo visível e o invisível. Num lusco-fusco difícil de descrever, e mais difícil
ainda de definir, o que é obscuro e o que é luminoso na nossa natureza dão-se aos sentidos
sem perder a ambigüidade, e sem contradição. [...] A linguagem, atual e arcaica, valoriza os
conteúdos velados do inconsciente, mas também a expressão clara das formas – e seu
desfazimento ( 2002: 80).

O próprio Kasuo Ohno, em entrevista à Inês Bogéa, fala sobre a vida e a morte,
levando-nos a perceber como esses duplos - não dicotômicos - configuram ciclos em que os
opostos se alternam ritmicamente:

Dentro dessa superposição de vida e de morte é que podemos ver o florescimento da nova
vida, que é o novo homem que vai nascer, como parte da doação da mãe. Ao longo de minha
existência, eu sempre achei que deveríamos ter uma percepção muito concreta, muito real,
sobre essa dualidade com que é feita a nossa existência. Isto é, a vida e a morte são
componentes da nossa existência ( 2002: 85).

Na experiência do vazio meditativo ou místico, podemos dizer muito do se passa é o


que chamamos entrar em devir. E esse entrar em devir, que pode ser detonado pela instalação
de um vazio-silêncio no corpo, promove o desenvolvimento de qualidades muitas vezes
inexploradas de percepção. Sant’Anna lembra que nesses estados de corpos-passagem há a
157

ampliação do corpo sensível, “sente-se a partir de dimensões do corpo até então inexistentes”
(2001:105), ou melhor, diríamos, ignoradas. O meio em que vivemos nos solicita
constantemente determinadas naturezas de apreensão, tornando o corpo viciado em acionar
sempre as mesmas vias de se relacionar com o mundo. Há modos diferenciados de
percebermos o que há a nossa volta, que não são nem melhores nem piores entre si. Apenas
algumas dessas formas são bem mais utilizadas, e outras atrofiadas e até desconhecidas.
Estimular outros meios de percepção é, ao mesmo tempo, desenvolver essa vias de cognição,
e entrar em contato com conteúdos diferenciados, incapturáveis pelo nosso entendimento
cotidiano. Trata-se de incrementar nossa inteligência, no sentido mais amplo que esse termo
possa ter.

O despertar desse tipo de percepção, ligado ao corpo sutil, ao corpo vibrátil, configura-
se importante instrumento na conquista daquela conduta política, ético-estética, que buscamos
como norteadora do trabalho do ator. Esta conduta, que percebemos como uma verdadeira
trama. Tanto em seu sentido de entrelaçamento, rede de agenciamentos éticos e estéticos
fazendo rizoma, como enquanto estratégia afirmativa, pró-ativa. Micro-política para conquista
de singularidades do ser-estar no mundo, por meio de linhas de fuga e vetores dissidentes que
fomentem heterogêneses.
158

CAPÍTULO 6

PROCESSOS CRIATIVOS

Os processos criativos que alimentaram e foram alimentados pelos estudos teóricos


dessa tese, dividiram-se em duas etapas. Inicialmente, no primeiro semestre de 2005, ministrei
a disciplina Técnica de Corpo para Cena III, no curso de graduação em interpretação teatral
da Universidade Federal da Bahia, onde foram trazidos vários dos recursos descritos nas
seções 1.2.a, 1.2.b, 1.2.c, e 1.2.d, para fomento de processos criativos em aula. Esta etapa foi
bastante útil para averiguação de como as matrizes eleitas nessa pesquisa dialogavam com
corpos diferentes entre si, e, especialmente, diferentes do meu, que já há algum tempo me
sentia particularmente estimulada pelo material.

Porém, ao longo dessa etapa, senti falta - e desejo - de investir meus próprios recursos
de intérprete (com outras experiência e disposição, em relação às dos alunos de graduação)
nos processos criativos. E ainda, ao fim, senti que, a despeito de um trabalho consistente e
proveitoso, e de importante retorno positivo por parte dos alunos, no que se refere à pesquisa
sobre a própria expressividade, não havíamos chegado a um “produto” que me satisfizesse
como tal, ou seja, que fizesse jus ao próprio processo. Mesmo que, em realidade, criar um
“produto final” não fosse objetivo desta etapa. Além disso, há o fato de que em uma disciplina
de quatro créditos dificilmente se consegue dispor de tempo e constância necessários a uma
pesquisa que exige forte imersão por parte dos participantes, envolvimento que eu viria a ter
no processo de criação do espetáculo. Processo que contou, ainda, com a vantagem de se
seguir a um momento prévio de experimentação – a disciplina, a qual me deixou mais madura
na pesquisa.
159

Por esses fatores decidi realizar a segunda etapa da pesquisa prática - a qual eu já tinha
intenção de fazer, mas cogitei protelar para depois da defesa da tese, concluindo-a apenas com
as questões levantadas na experiência com a disciplina. Senti que seria para mim, antes de
tudo atriz, inconcebível e frustrante cursar um doutorado em um programa com linha de
pesquisa reconhecidamente voltada à práxis artística, e não realizar um processo criativo onde
eu estivesse implicada como intérprete.

Havia também o ímpeto inicial de minha movida rumo ao doutorado, que tinha como
cerne me colocar como sujeito e objeto de minha pesquisa: construir um processo em que eu
fosse ao mesmo tempo intérprete-criadora e observadora. Afinal, entendi, ainda, que meu
objeto de estudo pedia uma complementação da primeira etapa de experimentação – a qual
também foi de suma importância para o estudo – que pudesse afinal checar a eficácia da
proposta em termos de utilização em uma encenação. Vejo a primeira etapa, aquela junto à
disciplina Técnica de Corpo para a Cena III, como uma importante preparação para o segundo
momento, o de montagem da peça.

Para criar o espetáculo senti que deveria contar com um acervo temático –
dramatúrgico - distinto das matrizes exploradas na tese. Isso por que, dessa forma, poderia
perceber a eficácia destas matrizes no processo de elaboração de corporeidades, independente
de contextos dramatúrgicos. Assim, fui em busca de fontes textuais que me parecessem
apropriadas para um diálogo com um acervo expressivo que seria criado, a priori, sem foco
em uma história.

Os contos Noturnos, de Ana Miranda (1998), “me perseguiam” desde 1998, quando
me presentearam-no. Sempre que o relia me enchia de vontade de transpor alguns contos ou
trechos para o teatro. Sentia que a obra - toda escrita em uma primeira pessoa feminina e
inquieta, praticamente sem pontuação, como que se obedecesse a um fluxo de pensamento ou
desabafo - apresentava vocação para a cena. Depois, já durante o processo de criação da peça,
somou-se a este livro a ficção biográfica Clarice (1999), da mesma autora, que igualmente me
impactou. Clarice é uma ficção biográfica inspirada em um cotidiano hipotético e poético de
Clarice Lispector, cuja obra também sempre me perturbou.

Apesar de serem compostas de contos, as obras funcionam também como romances


fragmentados, já que trazem uma série de pequenas narrativas em torno de uma mesma
mulher - uma em cada livro. Em ambas as obras há uma espécie de liberdade narrativa, que
160

permite que leiamos os contos em qualquer ordem, sem comprometer o sentido geral da
personagem e de seu mundo. Em Noturnos, a opção pela não utilização de pontuação na
maior parte do tempo, provoca ainda mais esse desdobrar de sentidos. Todos estes aspectos –
que indicam certa abertura da obra - me pareceram favoráveis à proposição de recriar um
universo poético presente em uma obra literária, no corpo e na cena teatral. A mesma
perspectiva de composição e montagem, que nortearia o trabalho com o acervo expressivo,
indicaria os caminhos para lidar com as fontes textuais, as quais, desde sua origem, já
apresentavam características fragmentárias, mutáveis, desdobráveis e nômades.

Uma descrição detalhada das cenas do espetáculo consta em anexo, assim como o
DVD com a filmagem da peça. Ainda que a sinopse descritiva do item 6.2.b. traga em linhas
gerais uma descrição da peça, é aconselhável que aqueles anexos sejam consultados para uma
melhor apreciação das próximas seções. Isso vale também para o anexo em que transcrevo e
comento meu “diário de bordo”.

Em relação à disciplina está disponível, em anexo, a transcrição de todo o meu diário


de aulas, com o detalhamento das atividades de cada dia, seguidas de comentários dos alunos
sobre os trabalhos, colhidos em seus “diários de bordo”. Há ainda uma seção que contém os
questionários aplicados em cada fase e respostas dos alunos a estes. Por fim está o espaço
dedicado à transcrição dos textos criados por eles na quarta fase do curso.

6.1–Técnica de Corpo para Cena III

Essa etapa inicial ocorreu no primeiro semestre letivo de 2005, com a turma de
Técnica de Corpo para Cena III, do curso de interpretação teatral da Escola de Teatro da
UFBA. Os alunos cursavam, em média, o quinto semestre do curso. Participaram dessa etapa
os seguintes estudantes de teatro: Altamar Araújo da Silva, Afrânio de Carvalho Soledade,
Cinara Maria Paiva dos Santos, Clarissa Santana de Oliveira Torres, Fábio Roberto Ferreira
de Souza, Júlia Barreto de Almeida, Justina Maria Lima de Souza, Leonardo Batista Passos,
Lisa Vietra (trancou a disciplina nas primeiras semanas), Luciana Hortélio Silva Sales e Maria
Eugênia Santos Caldas.

A disciplina foi dividida em cinco fases, totalizando 25 encontros. A primeira fase foi
de diagnóstico, a fase dois voltada à matriz yin yang, a fase três orientada pelos trigramas do I
161

Ching, a quarta fase de construção textual e a última dedicada à transposição do material


expressivo gerado para a cena, em diálogo com os textos criados na fase anterior.

De um modo geral a metodologia aplicada em aula seguia o seguinte roteiro base:


realização de treino de chi kung (aproximadamente 15 minutos), dinâmicas de aquecimento
de/ou integração da turma (cerca de 15 minutos), experimentação de algum(s) princípio(s)
técnico(s) relacionado(s) às matrizes a serem exploradas no dia (mais ou menos 25 minutos),
e a inserção, propriamente, das referências associadas às matrizes, norteando um processo
criativo (etapa de cerca de 35 minutos). Esta inserção era feita através de palavras que
estimulassem a imaginação, associações simbólicas, metáforas, e com o apoio de músicas e,
eventualmente, outros elementos como tecido e água, por exemplo. Como fechamento da
aula, após essas atividades era aberto um espaço de diálogo com os alunos, onde eram
compartilhadas as impressões, dúvidas, dificuldades, conquistas, etc.

6.1.a. Fase 1

Na fase 1, composta de três aulas, foi feito um diagnóstico da turma, através de


questionário e exercícios simples de composição a partir de sugestões imaginárias. Nessa fase
ainda não introduzi as matrizes taoístas propriamente, com exceção de uma primeira
experimentação com a prática de chi kung. As atividades desenvolvidas no período foram:

• Base: formas de pisar/andar a partir de deslocamento do peso nos pés.


• Equilíbrio e desequilíbrio.
• Caminhada em solos imaginários.

Nesse primeiro momento pude ter uma idéia da turma, seus corpos e disponibilidades
para a fabulação corporal. O conjunto mostrou-se um tanto heterogêneo em termos de
recursos técnicos já incorporados. O seguinte questionário foi apresentado aos alunos, nessa
fase 1, com função de auxiliar o diagnóstico:

1. Para você o que é expressividade? E corpo expressivo?


2. Quando e por que você se sente (sente seu corpo) mais expressivo? Descreva essa
sensação, ou dê exemplos.

As respostas à primeira questão relacionam expressividade e corpo expressivo a


alguns fatores, dentre os quais destacam-se como os mais mencionados:
162

• Comunicação (Fábio, Afrânio, Altamar, Cinara, Luciana, Maria Eugênia, Clarissa)


• Energia (Justina, leonardo, Júlia, Clarissa)
• Construção não cotidiana (Lisa, Maria Eugênia, Clarissa)

Pensando nesses fatores eleitos, me parece que o trabalho guiado pelas matrizes tem
essa abrangência. Em termos de energia, creio que tudo que foi dito até aqui demonstra ser o
trabalho energético objetivo importante de nossa investigação. Em que pese a noção de
energia apresentar nuances diferenciadas por parte de quem a enuncia, há, especialmente no
teatro, certo entendimento tácito, senão sobre o conceito em si, ao menos sobre a eficácia do
manuseio do elemento energia no trabalho do ator. Em relação à construção de um corpo
extra-cotidiano, vimos que também este é um ponto que pode ser favorecido pelo trabalho
com as matrizes. No que se refere à comunicação, esta está relacionada à significação,
processo que, com o uso re-contextualizado das matrizes, pode ganhar desdobramentos e
multiplicidade, como veremos na análise de Traços.

Entretanto, veremos adiante que, nesta etapa da pesquisa – a disciplina, esta foi o salto
que não conseguimos dar. Ao longo das aulas, os alunos, como mostram depoimentos,
despertaram, re-organizaram e mobilizaram chi para o trabalho. Além disso, como pude
presenciar, e pela própria análise deles, houve uma série de construções corporais
extremamente interessantes e não cotidianas, ao longo da disciplina. E ainda, de acordo com
depoimentos dos próprios alunos, houve momentos em que eles romperam padrões corporais
expressivos, a partir de nossa proposta. Porém, no salto entre as conquistas no processo
criativo, e a posta em cena, não soubemos aproveitar o vasto material que tínhamos. Parece-
me, hoje, que isso pode se relacionar tanto a uma inexperiência metodológica minha em
relação a esse processo – voltarei a falar sobre isso – quanto a algumas falas detectadas nesse
primeiro relatório.

Alguns alunos falaram de expressividade, relacionada à comunicação, como um


processo que demandasse uma coincidência entre os discursos de ordem corporal, e de ordem
textual. Leonardo diz que “falando do corpo do ator, acho que esse é expressivo quando está
vivo em cena e diz ao espectador o que o texto (se houver) quer dizer”, e Clarissa diz que
“quando meu corpo está expressivo ele complementa ou referenda meu discurso verbal”. Ora,
essas falas nos trazem um entendimento da via mais ilustrativa desse processo de significação.
Nem tanto, se pudermos entender esse complementa como uma ação muito ampla, que prevê
163

inclusive o corpo negando o texto, porém, como está seguido do termo referenda, dificilmente
a fala da aluna prevê possibilidades como esta. E ainda, quando Clarissa diz que “um corpo
expressivo é aquele que comunica, (...) possibilitando a ele (espectador) uma leitura direta
(grifo meu) com o significado do movimento”, o termo direta traduz, ou denuncia, um desejo
de univocidade. Digo ou denuncia, pois tanto Clarissa quanto Leonardo foram alunos
altamente disponíveis para criações não ilustrativas e polissêmicas, no decorrer das aulas de
experimentação. Entretanto ambos, assim como toda a turma – incluindo minha dificuldade
em ajudá-los a romper com tal padrão – acabou se rendendo a um processo de significação
unívoca e ilustrativa, quando passamos para a última etapa de trabalho. Voltaremos a falar
sobre esse momento adiante.

Houve elaborações que indicaram predisposição diferente em relação ao entendimento


de expressividade, por parte de alguns alunos. Fábio diz “corpo expressivo é aquele que
comunica (o que independe de intencionalidade)”. Mas note que aí, quando ele diz que
independe de intencionalidade, ele se refere ao corpo expressivo fora de contexto
dramatúrgico, ou seja, ainda no campo da experimentação, ou campo pré-expressivo de
Barba. A fala de Lisa, “corpo expressivo é um corpo extra-cotidiano. Ele tem a função de
fugir do naturalismo”, se por um lado pode parecer desvincular a noção de expressar com a de
traduzir literalmente um contexto, por outro parece privar o naturalismo, enquanto estilo, do
recurso da expressividade. E ainda, a ilustração e univocidade na significação, não se dão
exclusivamente pela abordagem realista. Nosso resultado, por exemplo, nada tinha de realista,
apesar de ser altamente ilustrativo. Em Luciana, que diz que “expressividade é uma maneira
de você colocar para fora o que está sentindo”, vemos a necessidade de associar o discurso
corporal no campo da teatralidade, à presença ou vivência, por parte do ator, de sentimento ou
emoção correspondente.

Apenas uma aluna relacionou a noção de expressividade à técnica ou treino, e mesmo


assim, não diretamente. Clarissa diz “acredito ser expressividade a capacidade do artista de
expandir seu instrumento – corpo e voz – no intuito de ultrapassar a maneira de se expressar
cotidianamente.” Aí lembramos o mapeamento de Barba, já comentado na seção 2.3, que vê
os atores do pólo sul distantes da prática de um treinamento técnico. A aluna pensa ainda o
corpo expressivo como psicofísico, ainda que não use o termo, quando diz que este “é o
criador de ponte entre o físico e o mental no processo criativo”. E Maria Eugênia também,
ampliando os âmbitos e trânsitos entre psíquico e físico, ao dizer que:
164

Algumas vezes essa comunicação não está relacionada à racionalidade, mas ao sentimento,
este, no nível das sensações. Corpo expressivo é um corpo capaz de ultrapassar a mera
reprodução de movimento, chegando a expressar as tensões/sensações que envolvem aquela
determinada situação.

Em relação ao que predispõe o corpo à expressividade pode-se ressaltar nas respostas


as seguintes ocasiões como favoráveis:

• Trabalhos que envolvam atividade física, ligada a movimento (Justina, Afrânio,


Cinara, Leonardo, Júlia, Clarissa);
• Trabalhos que envolvam estímulos como imagens e sugestões em diálogo com o corpo
(Justina, Altamar, Luciana, Maria Eugênia);
• Momentos em que a atenção está voltada para o corpo (Fábio, Lisa, Maria Eugênia,
Clarissa);
• Estados de relaxamento ou “mente aberta” (Justina, Júlia);
• Estados de mobilização energética (Maria Eugênia, Justina, Clarissa).

Os três últimos itens puderam ser contemplados pela prática de chi kung, previamente
ao trabalho. Mobilizar energia, se esvaziar e estar presente no próprio corpo estão entre os
principais benefícios da prática. Em relação ao primeiro tópico, nosso programa de aula
previu um momento – entre o chi kung e a experimentação das matrizes - de abordagem de
algum princípio de técnica corporal. Este momento teve a função de aquecer o corpo do
aluno, de promover conhecimento e ampliação de seus próprios recursos psicofísicos. Ao
mesmo tempo funcionava como facilitador para imersão em um estado que se relacionasse à
matriz a ser explorada no dia. Nos quadros presentes na seção 1.2.d, que relacionam os
trigramas do I ching a propostas de trabalho corporal, e que nortearam uma das fases dessa
etapa, essas associações podem ser percebidas. Por fim, o segundo item apontado foi
contemplado nos diálogos entre os corpos e as matrizes taoístas, trazida em recortes de todo
seu acervo de imagens e aspectos associados (apresentados no capítulo 1).

Para efeito de consultas, há em anexo uma seção em que se encontram transcrições


mais completas das respostas aos questionários, bem como trechos dos cadernos dos alunos -
“diários de bordo”.

6.1.b. Fase 2
165

Na fase 2 passamos para experimentações a partir de emblemas yin yang. Durante 5


aulas, após trabalharmos o chi kung seguido de algum princípio técnico de movimento,
passávamos à experimentação de alguns pares dos emblemas no corpo. Os aspectos técnicos
experimentados nessa fase visaram uma conscientização e ampliação de possibilidades
corporais em movimento, bem como a experimentação da idéia de oposição de forças no
corpo, antes do trabalho com as oposições mais simbólicas ou abstratas, a partir dos
emblemas yin yang. Foram trabalhados:

• Parâmetros de movimento: rotação/ torção, inclinação, níveis/ planos.


• Deslocamento sob resistência/oposição: a partir de tração com tecido, puxando partes
do corpo na direção oposta ao deslocamento, e depois só imaginando a resistência do
tecido em várias partes do corpo.
• Dilatação/ oposição: a partir de vetores imaginários atuando tridimensionalmente, em
três oposições corporais (cima e baixo, frente e trás, direita e esquerda).

Após essa etapa técnica passávamos para um trabalho mais criativo com as matrizes
yin yang. Em diagonais – esse formato se mostrou eficaz para essa fase – cada aluno, ou
dupla, ou grupo, saia de um pólo – da sala e da dupla yin yang proposta – para o outro. As
variações incluíam a transformação gradual de um aspecto em outro, a intensificação de um
dos pólos até seu limite, para em seguida transformá-lo subitamente em seu oposto, o trabalho
em duplas que saiam de pólos opostos e se contaminavam no percurso, entre outras. Além
disso, trabalhamos a construção de uma partitura composta por células colhidas nas diagonais,
e em trocas entre os alunos, e ainda experimentamos inserir aspectos yin yang diferentes dos
que geraram as partituras, funcionando como sub-partitura para estas.

Nesta fase houve a manifestação de dificuldades por parte de alguns alunos em lidar
com sugestões mais abstratas como as que regem alguns pares de opostos trabalhados, como
por exemplo, frioquente, úmidoseco, vaziocheio, substancialnão-substancial ou docesalgado.
Com pares mais diretamente relacionáveis com movimento como lentorápido,
troncomembros ou contraçãoexpansão, eles se sentiram mais confortáveis. Também surgiram
dificuldades na visualização de imagens evocadas na prática do chi kung como o redemoinho
de energia vindo do cosmos, ou o movimento de chi na mãe dos centros, por exemplo. À
época, a prática ainda se mostrava incômoda para a maior parte dos alunos.
166

O seguinte questionário foi solicitado após a fase com as dinâmicas yin yang e maior
contato com chi kung:

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as


dinâmicas relativas aos emblemas yin yang? Comente.
2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.
3. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no seu trabalho técnico/ criativo/
expressivo? Comente.

Em relação às duas últimas questões, as quais estão presentes também em


questionários das próximas fases, optei por deixar para abordá-las em um item
exclusivamente voltado à prática do chi kung, visando observar a evolução (no sentido de
processo, e não necessariamente de progresso) dos alunos em relação a este aspecto, no
decorrer do semestre.

Quanto à primeira questão, algumas respostas demonstraram uma preocupação em


“entender” racionalmente a sugestão, para executá-la de forma supostamente “correta”.
Justina diz: “não sei exatamente ainda que qualidade de energia atribuir a cada emblema, não
é claro ainda pra mim a que se refere o princípio do yin/yang”, e Cinara:

em alguns momentos a mente e o corpo aceitam (entendem) o que está sendo pedido e em
outros não, por exemplo, quando se pede ‘claro’ e ‘escuro’ fica difícil fazê-los sem ser
interpretando com os meus conhecimentos do que é claro e escuro.

Essas falas pareceram evidenciar certa angústia por ter maior conhecimento ou entendimento
sobre as matrizes e também sobre o que eu – como professora – estaria propondo, ou
esperando, a partir dessas experimentações. Busquei ir esclarecendo esses aspectos, mas
principalmente tentei, a partir dessas respostas, fazê-los entender que o que me interessava
eram seus diálogos corporais espontâneos com essas idéias, da forma mais livre e
despreocupada possível. Expliquei que não se tratava de acertar ou errar, apenas de deixar
acontecer, a partir do encontro do corpo com uma dada imagem, composições expressivas.

Alguns trechos de depoimentos colhidos nos cadernos, indicaram dificuldades


parecidas. Júlia disse: “com alguns pares de opostos, por serem muito abstratos, não consegui
sentir realmente a sensação no corpo”, e reforçou “alguns emblemas são extremamente
abstratos e acabam sendo ilustrados [com a resposta corporal], o que não acho tão válido”.
Para Leonardo:
167

algumas imagens de oposição do yin yang são mais fáceis de serem trabalhadas, talvez por
fazerem parte do cotidiano mais ilustrativo. Nesse caso o maior desafio era sair do repertório
de movimentos pré-conceituados.

Aqui se percebe uma maior consciência das próprias dificuldades diante do trabalho.
Especialmente no que se refere à tendência maior à ilustração daquilo que está sendo
sugerido, ao invés da disposição a um diálogo corporal com a imagem e com as sensações que
esta provoca. Questões similares estão expostas nessa fala de Fábio:

a qualidade de movimento não me convencia. Mais uma vez a desagradável sensação de que a
ação suplantava a sensação. Parecia que os colegas e eu também estávamos muito mais
preocupados com o mostrar, o que conduz a obviedade.

Fábio ressente, ainda, a falta de um sentido teleológico para as experimentações. Em nossa


programação, essa “finalidade” tão clara só viria no fim do processo, com a utilização de
algumas células experimentadas no trabalho final. Ele disse ainda “sinto mais como uma
obrigação de aula do que como processo criativo (inspirado). Talvez pela expectativa outras
vezes frustrada de não chegar, aparentemente a lugar nenhum”. Isso me levou a rever a etapa
posterior, inserindo diariamente um ponto de chegada do trabalho, ou seja, uma espécie de
apresentação individual ou coletiva que concentrasse as descobertas do dia. Creio que manter
esse momento na aula – ou ao menos periodicamente - ajuda, de fato, a compreender e
concretizar as possíveis aplicações do trabalho com as matrizes.

Houve, por outro lado algumas manifestações entusiastas em relação às


experimentações dessa fase. Eugênia disse:

Outro exercício que me trouxe uma perspectiva nova foi a diferença entre uma passagem
gradual entre o yin e o yang, e uma passagem brusca. Uma cena é construída a partir de muitos
elementos, mas um dos mais importantes é o ritmo.

Para Leonardo “os emblemas yin yang têm revelado nesse primeiro contato formas corporais
libertadoras de alguns estereótipos”, e Júlia afirmou “na maioria das vezes me senti
estimulada a criar e brincar com essas duas energias”, enfatizando o seguinte:

quando ouvia as sensações/energias (estímulos relativos ao yin yang), e meu corpo respondia
organicamente achei interessante. Quando fazia um movimento ilustrando uma sensação, não
era um movimento negligente, mas era pouco criativo. Acho que em certos emblemas eu não
tinha tanta consciência do estímulo que me levava a fazer determinado movimento. E às vezes
funcionava.

A fala de Júlia sugere - paradoxalmente às dificuldades anteriormente mencionadas por parte


de alguns alunos, incluindo ela própria – que, por vezes, as duplas yin yang que não
168

favoreciam um entendimento muito claro, ou uma construção corporal diretamente associada,


por outro lado poderiam estimular uma construção mais orgânica e criativa. A própria Júlia
alerta em seu depoimento: “mesmo com a recepção racional, essa sensação tem que sair de
forma orgânica e criativa”, dando a entender que, eventualmente, quando não tinha apreensão
tão objetiva do que estava sendo sugerido, a criação podia acontecer com mais liberdade. E
Justina ainda se perguntou:

a dinâmica em si, aplicada nessas aulas tem sido um elemento positivo para o estímulo a
construção de imagens e metáforas corporais; mas não sei exatamente se posso atribuir aos
pares/opostos referentes a tais emblemas as imagens que me são sugeridas, uma vez que o
quer que se apresente, a princípio, pareça-me apenas tratar-se de opostos simples.

Ou seja, é como se Justina se cobrasse ou tivesse a expectativa de algum tipo de resposta


específica por se tratarem de opostos ligados ao yin yang, que, para ela, soavam como todo e
qualquer par de opostos. Em realidade, essa é uma preocupação desnecessária, e foi o que
tentei explicar-lhes ao longo das aulas. Não se tratava de mi(s)tificar a proposição, em virtude
de sua origem taoísta. Até por que não havia necessidade de se dar conta dessas imagens do
ponto de vista de qualquer significação. Estas estavam funcionando apenas como starts para
construções corporais, que podiam vir a inspirar, associar ou relacionar várias outras
referências que despertassem nos corpos de cada um, durante a experiência.

6.1.c. Fase 3

A terceira fase foi norteada pelos trigramas do I ching. Compôs-se de nove encontros,
sendo cada qual voltado a um dos oito trigramas, e o nono, a pedido dos alunos, destinado a
jogar, propriamente, o I ching para eles. Essa foi a etapa em que senti a turma mais presente e
aberta à experimentação. Em que pese a dificuldade demonstrada na etapa anterior, nesta fase
eles se permitiram brincar mais com as sugestões, se julgando menos, e menos preocupados
em “acertar”. Apesar de, hoje, achar que excedi na quantidade de estímulos propostos - muitas
imagens, sensações e sugestões a cada encontro - ainda assim, houve grande aproveitamento
por parte dos alunos, como demonstram seus depoimentos sobre o período. Por outro lado,
talvez o próprio bombardeio de imagens sugestivas tenha favorecido, em certo aspecto, a
minoração da atividade racional, estimulando a imersão no trabalho. Isso é inclusive
mencionado em alguns relatos por parte deles.
169

As perguntas que seguem compõem o questionário referente à terceira fase - após


experimentação com o I ching e contato continuado com chi kung (respostas em anexo):

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as


dinâmicas relativas aos arquétipos/trigramas do I ching? Comente.
2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.
3. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no seu trabalho técnico/ criativo/
expressivo? Comente.

De acordo com as respostas pôde-se constatar que houve, nessa fase, um crescimento
na relação com a prática do chi kung, que passou a ser mais bem aceita e percebida em sua
influência positiva sobre os trabalhos técnicos e criativos. Como já mencionado, eles
responderam em questionários aplicados em diferentes fases, perguntas específicas sobre o
chi kung, e ainda inseriram relatos sobre a prática no caderno. Em seção específica
apreciaremos essas respostas e comentários relativos ao chi kung.

Com relação à primeira questão transcrevo, a seguir, trechos que demonstram a forte
identificação dos alunos com o trabalho dessa fase.

A combinação das sensações e estímulos propostos sempre casava perfeitamente e os


resultados percebidos não só em mim, mas também nos colegas, foram fantásticos. Houve
composições maravilhosas que me lembro que nasceram de todos esses estímulos e que
tinham uma profundidade fascinante (...) os estímulos dos trigramas proporcionaram criações
ao me ver indispensáveis para o meu crescimento. Eles mexem com todos os tipos de
sensações que já existem dentro da gente. (Júlia, resposta ao questionário)

Acredito que o trabalho de composição de um personagem se dê a partir de estímulos de


personalidade, texturas, movimentos, relações com outras fontes. Enfim, o processo com os
trigramas possibilitou uma gama de possibilidades de criação, pois além de trabalhar com
arquétipos conhecidos, próximos, trouxe várias fontes de estímulos (natureza, temperamento,
comportamento). O fato de trabalharmos com esses arquétipos deixou o grupo mais à vontade
para criar. Não houve imposições de características realistas, cada um seguiu o seu desenho e
a sua leitura. A criação vinha a partir do corpo, mas não deixava de lado a criação intelectual.
Ao contrário, desde o trabalho do chi kung, valorizamos os nossos dois pólos de energia, o yin
e o yang. (Clarissa, resposta ao questionário)

Me senti estimulado, os trigramas agrupam significados, apontam várias coisas que tem um
ponto comum (ex: terra, profundo, escuro, frio, etc.), e isso cria uma ‘atmosfera’, um campo
mais delimitado para que uma ação seja realizada de modo definido. (Altamar, resposta ao
questionário)

Acho as imagens do I ching muito fortes, mas acredito que elas apenas não conseguiriam
suscitar em mim tantas respostas. (...) Cada aula era conduzida direcionada a um fim. E os
resultados corporais obtidos me deixaram muito satisfeito. As respostas com os trigramas
170

eram muito verdadeiras e sem dúvida já estão armazenadas em minha memória corporal. Me
diverti muito criando a partir dessas imagens. (Leonardo, resposta ao questionário)

O processo aguça a imaginação, a criar imagens, que deixam o corpo ‘flexível’, as criações, as
composições passam do racional para o experimental. Esta etapa mexeu muito com as
emoções, estas expressas no corpo. Se fosse compor um personagem teria um excelente
material, principalmente as personagens que exigem uma partitura corporal, que aliás, acho
que todas precisam de uma certa forma. (Cinara, resposta ao questionário)

Acredito que todo repertório apresentado na aula nos estimule efetivamente a compor, uma
vez que a condução se presta a unir nosso potencial subjetivo, a imagens sugeridas pelos
arquétipos. (...) Era sempre surpreendente o quanto cada arquétipo se delineia em uma
propriedade energética expressiva e em um repertório de imagens, muitas vezes comum entre
os integrantes do grupo, o que, pra mim, remete ao aspecto do inconsciente coletivo e, quanto
à contribuição individual, certamente é o que estabelece o diferencial, e a pluralidade das
composições. (Justina, resposta ao questionário)

A maior disposição ao trabalho nessa etapa se deve, a meu ver, a alguns fatores:
primeiro ao fato deles enxergarem mais claramente uma aplicabilidade da proposta, já que
terminávamos as aulas, nessa etapa, com uma construção que era apresentada à turma. O
segundo motivo é o fato do trabalho ter sido dirigido para a construção de algo mais próximo
a uma “personagem”, que ora chamei de “entidade”, ora de “criatura”, ou “estado” tentando
evitar uma psicologização excessiva por parte dos alunos. Entretanto, se eles aproveitaram
melhor essa fase que a anterior, onde a experimentação ainda estava mais solta e sem foco
perceptível para eles, por outro lado, acredito que a etapa anterior os preparou para esta.

É interessante consultar o diário de aulas, em anexo, para observar os comentários


específicos sobre as construções de cada dia, ligadas a cada um dos trigramas, bem como
sobre como as atividades associadas, incluindo o chi kung, contribuíram para tal construção.

Como crítica ao meu próprio trabalho de facilitadora, hoje vejo que faltou instalar
nessa fase, um espaço diário de registro, repetição/transformação e incorporação das
construções expressivas. Percebi isso especialmente ao fim do processo, quando muito pouco
do que foi levantado por eles ao longo do processo pode ser trazido no trabalho final. Não
havia suficiente treino de composição, com suas características de recortar, aumentar,
diminuir, colar, etc. as células expressivas. Assim, mesmo quando lembraram alguma
construção e trouxeram para o trabalho final, na última etapa, não o fizeram na perspectiva de
montagem. Ou seja, trouxeram as construções bem próximas do original, por que não os
provoquei suficientemente para o exercício de transformá-las. Voltaremos a falar sobre isso.
171

6.1.d. Fase 4

A quarta fase, composta por três encontros, voltou-se à criação de textos tendo por
motivação todo o processo vivido até então. A partir de um exercício de escrita, em que
estavam mobilizados pelo chi kung, e sugestionados – através de palavras e músicas - por
aspectos dos oito trigramas trabalhados nas últimas semanas, eles criaram uma série de textos.

Os alunos se mostraram particularmente mobilizados pelo ato de escrever. Houve


bastante envolvimento, algum choro, muita emoção, tanto durante o exercício da escrita,
quanto no momento de leitura dos textos. Não houve questionário específico, referente a esta
etapa, mas pude coletar comentários em seus cadernos. Altamar disse “fiz um texto onde
elementos profundos preponderavam, havia sempre uma volta para o interior”, e Cinara
constatou “quando fui criar o texto o que foi dito e tudo que estava impregnado das
dinâmicas, me fizeram viajar”. É fato que, de um modo geral os textos apresentaram
características bem poéticas e intimistas. Os comentários a seguir mostram bem o quanto o
trabalho afetou a turma de um modo geral:

Foi tranqüilo enquanto eu estava escrevendo. Eu sabia o que escrevia, mas não tinha noção do
resultado de todas as palavras ligadas. Ler o resultado é que foi desagradável, pois me lembrei
de coisas que preferia ter esquecido e comecei a pensar em outras que nunca me ocorreram.
Eu me acho muito fraco pra esse tipo de trabalho, por que se por muito pouco me comovo,
imagine num trabalho desses que mexe com sentimentos pessoais. Não consigo segurar e
começo a chorar. (Leonardo, depoimento em caderno).

Foram dados estímulos a partir dos trigramas e nós íamos escrevendo palavras ou imagens que
viessem à mente. Foi uma experiência inesquecível. Passar pelos trigramas, sentir sensações
das mais complexas e variadas possíveis. Afloraram em mim sentimentos que por muito
tempo estavam esquecidos nas gavetas da minha mente. Fui tomada por uma grande
melancolia e tristeza, palavras que inclusive estão no texto. Podemos dizer que sofri uma
catarse. É esse o nome com que defino a experiência vivenciada hoje. Apesar das lágrimas e
das lembranças dolorosas, considero positiva a experiência, pois preciso saber lidar com os
sentimentos que por ventura possam transbordar de dentro de mim (...) Vieram à tona
sentimentos guardados que precisavam sair, não deixaram de ser doloridos, mas talvez de uma
próxima vez eu saiba lidar melhor com eles. (Júlia, depoimento em caderno).

O processo de construção da dramaturgia me pegou de surpresa. Realizar, em aula, um


trabalho escrito representou uma quebra nas nossas atividades, mas essa sensação foi somente
inicial, por que o processo utilizado trouxe de volta as imagens trabalhadas em sala. Para mim
foi fácil reviver imagens e emoções e coloca-las no papel. (Afrânio, depoimento em caderno).

Após esse exercício inicial, os outros dias foram destinados à fusão e à recriação
dessas escritas, visando construir um texto que norteasse o trabalho final. No anexo B.2 estão
transcritos, na íntegra, tanto os textos originários, realizados em estado de imersão e chi kung,
172

quanto os derivados - que orientaram os trabalhos finais - criados a partir da fusão e


transformação nos encontros entre dois ou mais textos.

6.1.e. Fase 5

A última fase, com cinco encontros, voltou-se para a preparação de uma apresentação
final, tendo como norteadores os textos criados na fase anterior. A idéia era que eles
buscassem suas produções expressivas geradas ao longo do semestre, e trouxessem-nas para
um diálogo com esses textos, dentro de composições em grupos de três a quatro pessoas.
Entretanto, essa foi a fase mais frustrante para mim e para a turma. Não conseguimos um
resultado condizente com o processo, que se mostrou tão interessante. Em análise conjunta,
elencamos alguns fatores para isso.

Primeiramente, houve certo descompromisso – ou em alguns casos dificuldades nos


horários de aula nesta fase – por parte de alguns alunos, prejudicando os grupos de um modo
geral. Outra questão, é que propus trabalhos mais individuais durante o semestre, e talvez
devesse ter continuado com essa perspectiva até o fim, já que eles haviam exercitado essa
disposição. Ou então, eu poderia ter trazido mais propostas em grupo desde antes.

Posteriormente à discussão em aula, fiz uma retrospectiva do curso e, individualmente


identifiquei outros fatores para nosso “insucesso” no trabalho final. Um aspecto que pode ter
contribuído é o fato de eu ter decidido não dirigir os trabalhos, preferindo deixar que fossem
criados e desenvolvidos pelos grupos, com o mínimo de interferência minha. Hoje,
especialmente após ter sido dirigida em circunstância parecida com a deles, vejo o quanto um
olhar externo pode contribuir nesse processo de posta em cena e re-alocação das matrizes.

Um outro problema detectado foram os próprios textos escolhidos para as cenas finais.
Se por um lado o processo de criação desses textos foi extremamente estimulante para a
turma, por outro, talvez não fosse o material dramatúrgico mais adequado para aquela
experiência. Hoje imagino que se tivesse trabalhado com textos de outros autores, fossem
poemas, contos ou mesmo trechos de textos dramáticos, talvez a fase tivesse sido mais
produtiva. Isso porque o tema dos textos por eles produzidos era coincidente aos temas que
geraram seus movimentos, o que favoreceu um processo ilustrativo: falo sobre o vento, trago
a matriz do vento, e assim por diante. Essa abordagem é bem diferente da que experimentei
173

em Traços, e que achei mais eficaz. Outro aspecto é a própria estrutura, e a eficácia
dramatúrgica dos textos. Como produção criativa, dentro do contexto da disciplina, os textos
são interessantes e poéticos. Entretanto, para orientar uma cena, não são apropriados. Ou seja,
não têm uma “qualidade” dramatúrgica necessária.

Como um último aspecto crítico dessa escolha, vejo o fato de os textos terem sido
produzidos por eles mesmos. Imagino que dialogar com um material textual/dramatúrgico
totalmente alheio tornaria a experiência mais complexa, e provocaria maior ação criativa.
Certo distanciamento do texto estimularia mais processos de interpretação e significação, por
parte dos alunos na posta em cena. Ter proposto a fusão e re-elaboração dos textos individuais
minimizou, mas não solucionou esta questão.

Também não houve um questionário específico para esse momento, mas há


depoimentos coletados sobre a etapa na transcrição do diário de aulas. De um modo geral eles
refletem essa frustração.

Esse processo final foi bastante conturbado e frustrante. Por conta da falta constante dos
componentes do meu grupo, inicialmente, fizemos tudo racionalmente. Isso não funciona nem
um pouco. Particularmente tive uma experiência muito rica e um material de trabalho
profundo. Todo esse material que adquiri ao longo das aulas não consegui resgatar e aplicar na
apresentação final. Seria muito mais produtivo se tivéssemos continuado com as aulas que
estavam sendo bastante enriquecedoras. Gostei muito das aulas. Essa experiência vou levar
para vida enquanto atriz e o chi kung, principalmente, para o lado pessoal. (Júlia, caderno de
registro)

Esse trabalho final foi pouco para todo o processo, fizemos pouco. A construção do texto foi
prazerosa, os estímulos foram bastante importantes, fluíram, o pior é que tínhamos bagagem
para uma montagem, não sei por que não rolou. Gostaria de continuar no próximo semestre
para entender melhor tudo (me refiro ao aprimoramento). (Cinara, caderno de registro)

Estive ausente nas duas primeiras aulas de construção conjunta do texto (...) Nos
correspondemos por e-mail durante o São João, discutindo inclusive os conectivos que
deveriam estar presentes ou ausentes no texto. Somente em sala, pensando juntos é que as
imagens, inclusive corporais, foram surgindo. A imagem idealizada racionalmente estava
linda. Como realiza-la. Não tínhamos a resposta e exatamente nesse momento as faltas
começaram a acontecer (...) a ausência de um imobilizava o grupo. Gostaria de pedir à
professora que não se sentisse frustrada pelo resultado, mas sim feliz pelo processo, que pra
mim pelo menos foi o mais bem aproveitado e que mais ressoou em termos de expressividade.
(Leonardo, caderno de registro)

Para finalizar essa seção, transcrevo um poema de Fábio sobre esse momento do
trabalho. O belo nesse poema, a meu ver, é que ele reflete de modo sutil, mas intenso, saberes
ligados ao imaginário taoísta, como: o aspecto cíclico dos processos, a natureza ambivalente e
174

incerta das questões, e a perspectiva de um universo não cognoscível, mas nem por isso,
imperceptível.

As coisas são como são?

As coisas têm um tempo de maturação (caju só dá no tempo).

As coisas não são tão feias quanto parecem.

As coisas vão melhorar.

As coisas nem têm um fim.

As coisas servem à reflexão.

Há muito mais coisas. (Fábio, caderno de registro)

6.1.f. Sobre o chi kung

Fiz a opção de tratar do chi kung em um item à parte, ao invés de trazer as impressões
dos alunos sobre a prática ao longo das fases. Creio que assim podemos ter uma noção mais
elucidativa do processo deles nos treinos, seja individualmente, seja da turma como um todo.
A seguir estão transcritos trechos de depoimentos colhidos nos cadernos, e nas respostas aos
questionários, especificamente sobre o processo de adequação ao chi kung. Os trechos vêm
precedidos pelas datas, para que se possa ter uma visão progressiva da relação de cada aluno
com a prática. Quando for o caso, há menção de que se trata de respostas aos questionários. A
título de recordação transcrevo novamente as duas questões que figuraram nos questionários
da fase 2 e 3, relativas ao chi kung:

1. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.


2. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no seu trabalho técnico/ criativo/
expressivo? Comente.

Passarei a comentar cada compilado de declarações sobre o chi kung, oriundo de cada
aluno, e, ao mesmo, tempo irei desdobrando-os em comentários mais genéricos ou
comparativos. Não há declarações de todos os alunos, assim, trago apenas vozes que
apresentem reflexões sobre a prática em pelo menos três momentos diferentes do processo.
175

Júlia Barreto foi uma aluna que escreveu bastante sobre todo seu processo, o que
apenas reflete seu envolvimento grande com a disciplina. Assim, opto em analisar suas
impressões sobre a prática em dois blocos, o das anotações espontâneas, no caderno, e o de
respostas aos questionários. Comecemos pelo primeiro.

(05/04) Senti bastante a energia yin subindo pelos pés, pernas e com o pulsar da vagina chegar
na mãe de todos os centros. Era uma energia quente, uma sensação de formigamento. Na hora
de captar energia yang senti tontura e uma agonia, acho que não consegui captar essa energia
de forma organizada. (07/04) Sensação de meu corpo estar se expandindo. Sendo que, para
mim, meu corpo projetava-se para frente. Impressão de que o corpo estava completamente
torto. A energia yin foi mais vibrante que a yang. Senti uma evolução em relação à aula
passada, mesmo com a energia yang. (12/04) Hoje, particularmente não estava concentrada.
Senti um incômodo com o exercício e um pouco de tontura. Talvez isso tenha acontecido
porque meu corpo está muito dolorido. (14/04) Sensação de expansão e tranqüilidade. Quando
abri o olho estava conectada comigo mesma. O meu corpo parecia estar em equilíbrio. (10/05)
Consegui me concentrar bastante. Fluiu, não fiquei agoniada. (12/05) Ainda no chi kung foi
irradiada a energia para a coluna. Essa energia foi impulsionando e provocando movimentos
com a coluna. Minha coluna realmente parecia estar regida por essa energia, sugando do
centro de todas as mães. Eram movimentos sinuosos, verticais e horizontais. Minha coluna
parecia uma serpente. (17/05) Hoje senti as duas energias equilibradamente. Ainda em chi
kung meu corpo, como foi proposto, foi derretendo. Era uma energia passiva, pesada. Senti os
fluidos do corpo e isso impulsionou movimentos lentos, contidos e sinuosos vindos do corpo
todo. (19/05) Não estava concentrada, as coisas não fluíram. (24/05) Entrei numa sintonia
forte com minha energia e a que circundava. (09/06) Hoje fizemos sem comando. Foi bom.
Acho que prefiro seguindo o comando (14/06) Senti meu corpo muito torto, mas não
incomodou. (28/06) É sempre bom reorganizar as energias. As energias ficaram equilibradas.
(Júlia Barreto)

A fala de Júlia mostra uma disposição bastante positiva em relação à prática, desde o
início. Note-se que há uma consciência forte no que se refere às dificuldades e às sensações
que o treino provoca. Não se pode inferir uma “evolução” ou “melhora” de aproveitamento
por sua fala, até por que, como já dito, trata-se de um corpo pré-disposto à experimentação
desde o primeiro contato. Vale ressaltar que houve dias, no decorrer do processo, em que o
exercício mostrou-se mais penoso, mas nem por isso, em momento algum a aluna invalida a
prática, antes demonstra consciência de que sua desconcentração estaria dificultando o
processo. Há ainda menções, do meio para o fim do relato, do fato dela passar a alcançar
estados de equilíbrio de energias yin e yang. Outro aspecto a ressaltar é o link que ela sente
entre a prática e exercícios posteriores, a partir do chi kung, mas já em perspectiva técnica ou
de experimentação expressiva, como o caso dos exercícios da “serpente na coluna”, e do
“corpo em derretimento”. Em suas respostas aos questionários, ela própria dá uma idéia de
como sua relação com o treino foi se dando no decorrer do processo.

(10/05, em questionário) A presença cênica é estimulada pelo centro energético. Acho minha
energia bastante desorganizada, nas vezes que consegui realizar bem, sem interferência o chi
176

kung, senti minha energia em harmonia não só na aula, mas no resto do dia. O chi kung
precisa ser um exercício diário, pois me incomoda um pouco. Nas vezes que me concentrei e
realizei bem o chi kung meu corpo ficou em estado de prontidão para criar. No sentido
técnico/expressivo sinto uma dilatação no corpo, uma sensação de expansão. Especificamente
em alguns processos sentia a energia partindo da mãe de todos os centros e visualizava a
energia yin e yang. Quando o centro energético é ativado, a criatividade aflora. Eu procuro
deixar fluir as indicações e deixar de lado o racional para que meu corpo aja de forma
espontânea. (09/06, em resposta a questionário) Hoje posso afirmar que com chi kung
consegui reorganizar melhor minhas energias. A concentração também é algo imprescindível
para o ator e o chi kung permite desenvolver muito bem isso. O contato com o chi kung foi
maravilhoso não só porque vai me ajudar, ou melhor, já está ajudando profissionalmente, mas
também auxilia espiritualmente e mentalmente. Até porque o ator tem que saber lidar muito
bem com seu emocional, por isso o ofício do ator é muito difícil. Particularmente gosto muito
dos preceitos e da filosofia oriental e pretendo continuar usando a sabedoria oriental em todos
os ramos da minha vida. No meu entendimento o chi kung permite o equilíbrio das energias
que partem do centro energético de forma a irradiar de forma cíclica todo o espaço. Isso está
diretamente ligado com a presença cênica. Quando faço o chi kung fico extremamente
concentrada e mais criativa durante os laboratórios. Além dessa dilatação do meu corpo que já
havia dito anteriormente, sinto uma conexão muito grande com o meu corpo, o espaço e as
pessoas ao meu redor. É como se fosse aguçada a percepção, a consciência de tudo que me
cerca. À medida que fui fazendo o chi kung em aula e às vezes em casa, ficou mais fácil
mergulhar nesse equilíbrio das energias yin yang. Senti um progresso na execução do
exercício, apesar de ainda continuar sentindo a energia yin mais presente. Tecnicamente
falando, consegui desenvolver em sala resultados que me deixaram muito satisfeita. Sinto hoje
uma evolução na minha consciência corporal, no meu estado de prontidão. Acredito que isso
tenha se dado devido ao princípio de tudo, que, no caso foi o chi kung, que impulsionou esse
estágio em que me vejo agora. Sinto-me à vontade a criar com o corpo sem travas e tensões.
Tomara que possa dar continuidade ao chi kung para que possa atingir esse ponto que é de
extrema importância. (Júlia Barreto)

As respostas apontam para grande aceitação e reconhecimento dos benefícios da


prática tanto em termos de favorecimento de criatividade e expressividade, como em relação à
vida diária. Note-se que ela menciona que passou a praticar em casa, também, e ainda
demonstra disposição para continuar praticando. Além disso, Júlia relaciona a prática à noção
de dilatação, de Decroux, assimilada por Barba.

Outro aluno que demonstrou grande receptividade às propostas ao longo do semestre


foi Leonardo Batista. Aqui também, em virtude do volume de impressões registradas,
separarei as falas espontâneas das relativas aos questionários, iniciando pelas primeiras:

(05/04). Senti um calor na sola dos pés e no centro da cabeça na hora de visualizar o
redemoinho e misturar as energias na mãe de todos os centros, região que não consegui
mobilizar e sentir. (07/04) Hoje, em vez dos pés e cabeça, foram as mãos que ficaram quentes.
E comecei a sentir a concentração de energia na região ‘mãe de todos os centros’, mesmo que
de maneira descontinuada. (12/04) Segundos antes de a professora dar as indicações dos
pontos eu sempre pensava neles, como se eu estivesse de alguma forma conectado ao
pensamento dela. (14/04) Maior percepção da energia yin promovida pela contração do
períneo. (10/05) A captação da energia yin tem me deixado um pouquinho tonto. Não consigo
sentir nada pelo canal da fonte borbulhante, mas a pulsação do períneo agonia meu corpo.
177

(17/05) Ainda é difícil entender o que aconteceu, quando a concentração estava direcionada ao
centro yang (redemoinho) eu fiquei angustiado, o meu peito apertou e tive uma sensação
horrível de sufocamento. Fiquei tonto e me deitei, mas não melhorei. Foi então que a
professora encostou em mim e colocou a mão no meu peito e o sufocamento foi desabafando
em choro. Não havia motivo algum, mas chorei e fui desabafando e não queria soltar a
professora porque senti uma energia muito maternal. Me assustei um pouco, mas além de
revelador me deu uma ótima sensação de purgação. (31/05) Consegui trabalhar hoje com a
energia yang, mas no momento de concentração e captação de energia yin senti-me tonto e
desconfortável e interrompi o processo. (07/06) O chi kung hoje não foi orientado (não
aconteceu como antes, quando cada etapa era explicada verbalmente durante o processo) pela
professora, mas por cada um de nós dentro de nosso tempo para cada fase. E eu adorei, me
senti muito bem sendo o senhor de meu tempo. (09/06) Novamente executado sob o tempo de
cada um, em seu ritmo. Muito tranqüilo e proveitoso pra mim. (Leonardo Batista)

Assim como Júlia, Leonardo apresenta forte percepção das sensações e dificuldades
durante a prática, apontado para uma conscientização progressiva das próprias características
energéticas, por assim dizer. Interessante apontar que Júlia sente mais facilidade com a
energia yin, enquanto Leonardo menciona maior desenvoltura na relação com a energia yang.
Seria muito simplório, e provavelmente equivocado, afirmar que isso se deve a uma questão
de gêneros. Parece-me mais plausível pensar em singularidades ou tendências energéticas.
Que por sua vez não devem necessariamente se dar como estanques ou definitivas. Eu
particularmente, tendo a perceber a energia yang com maior intensidade, por exemplo, o que
não significa que não possa haver épocas ou circunstancias em que isso se altere.

Sensações como tontura, sudorese, formigamento, náuseas são relativamente


freqüentes, entretanto, a emoção descrita por Leonardo, que o fez, de fato, chorar bastante, já
não é tão recorrente. Não desejo interpretar o fato, não me sinto à vontade, nem habilitada
para isso, mas penso que manifestações como essa demonstram a estreita relação entre
aspectos energéticos e afetivos do corpo, sugerindo mais uma vez a importância de olhar esse
corpo em sua complexidade.

Passemos agora às respostas de Leonardo aos questionários.

(10/05, em questionário) Desconforto foi a primeira sensação. Não consegui me concentrar


por que meu corpo doía um pouco e mesmo que eu visualizasse as imagens de formação de
energia (wu chi, chi, tai chi) não conseguia sentir a energia se formar. Com o tempo tive
outras respostas. O corpo suava, as mãos aqueciam e formigavam e tanto visualizava, quanto
começava a sentir a energia, mas de maneira desorganizada e caótica, em especial na região da
mãe de todos os centros. Sem dúvida alguma [o chi kung] facilita [o trabalho técnico,
expressivo e criativo] principalmente pelo fato de ser a primeira aula do dia. O chi kung
possibilita uma reorganização ativa das energias do corpo, e amplia no ator a experimentação
vigilante e investigativa. Isso tem me ajudado no processo de percepção. (09/06, em resposta a
questionário) A captação de energia yin me desestabiliza. Queria entender por que. O que não
acontece com a captação da energia yang. Nesse caso, além de facilidade de captação, acho
178

que manipulo muito bem essa energia. Hoje afirmo que [o chi kung] facilita [o trabalho
expressivo] com muito mais propriedade, pois tive a oportunidade de experimentar a prática
dentro dos trabalhos do meu grupo de teatro, e então pude perceber o quanto surte efeito.
(Leonardo Batista)

Leonardo mostra nessas falas um crescimento em relação á prática. Entretanto me


inquieta a seguinte afirmação: “a captação de energia yin me desestabiliza”. Creio que essa
impressão mereceria uma análise mais preparada, por parte de um acupunturista ou mestre de
chi kung. Poderia ser considerada a possibilidade de que Leonardo estivesse com um tal
desequilíbrio energético que o fato de estar buscando uma energia que em seu corpo estivesse
ou em excesso ou em falta, acabou lhe trazendo a pseudo impressão de que esta o
desestabilizava. Quando talvez a “estabilidade” ameaçada fosse, em realidade, um
desequilíbrio, a que seu corpo já teria se habituado. Leonardo, assim como Júlia, mostra a
vontade de levar a prática para além da disciplina, como diz ter feito em seu próprio grupo de
teatro.

Clarissa Santana, outra aluna de fácil abertura para ações experimentais, também
demonstra em suas falas sobre a prática, perceber a eficácia da mesma em relação ao trabalho
do ator. Sua fala mostra sensações recorrentes, as quais já mencionamos, e a consciência
sobre a interação de energias diferentes no corpo.

(07/04) Calor nas mãos, enraizamento dos pés que levou a um movimento lento de saída para
a caminhada. Lacrimejamento, bocejo (menos que na aula anterior). (19/04) Passei mal.
Minha pressão baixou durante o trabalho energético, mas consegui superar. Depois não teve
mais jeito, não consegui absorver mais nada. (03/05) Acho a prática do chi kung bastante
eficiente para a manutenção viva da energia, mesmo nos momentos de não movimento.
(12/05) Gosto da prática do chi kung. Concentramos a energia, nos conectamos conosco e
automaticamente nos tornamos mais presentes na aula. (09/06, em resposta a questionário) O
chi kung me proporcionou a percepção de união dos nossos opostos complementares. O fato
de acreditar muito numa construção intelectual em nenhum momento me bloqueou para
trabalhar com a proposta do chi kung. Percebi que o processo é concomitante, fonte yin e fonte
yang, uma se alimenta da outra. A vigilância sobre o processo não precisa ser somente
questionadora, mas auxiliadora. O corpo sabe agir, sem precisar seguir apenas ordens. O chi
kung me proporcionou essa experiência. Qualquer técnica que seja utilizada antes da criação
interfere em seu processo. O chi kung proporciona a concentração da energia, o equilíbrio.
Coloca o grupo, o indivíduo, num estado de tranqüilidade e de propriedade sobre si. Ele lida
com a qualidade de energia e essa qualidade que devemos levar pra cena. (Clarissa Santana)

Passemos agora às observações de Altamar Araújo.

(05/04) Um pouco difícil se concentrar. Havia dois pedidos, um para se desligar e centrar o
corpo nos pontos, o outro nas entrelinhas: “siga minhas orientações”. Mesmo assim senti a
cabeça pesar e os pés pesarem, tendência a sair do equilíbrio, cair para frente, e ao mesmo
tempo havia a força que não me fazia cair. (12/04) peso corporal: pés: suporte de peso, cabeça:
parte a ser suportada, abdome: união das duas partes citadas. (10/05, em questionário)
179

Tranqüilidade, agonia, imagens coloridas, medo, dor nos pés, peso, relaxamento. Tal trabalho
possibilita concentração do corpo, fato fundamental para passear pelas técnicas de corpo. É
uma preparação para as múltiplas possibilidades e o observo como um portal de entrada que
diferencia o ocasional, cotidiano, etc, do controlado, criativo, artístico. Talvez fosse
interessante para valorizá-lo como preparação, início, portal, a existência de uma técnica
similar para finalizar o momento criativo. (24/05) Senti-me desconcentrado. Porém, ao voltar-
me para o chacra central consegui recuperar a concentração. (09/06, em resposta a
questionário) As respostas do chi kung foram às vezes calafrio, autopercepção, consciência
corporal, funciona em mim como um corte de energia de produção de ações cotidianas e
minha energia de ações de pesquisa corporal. O chi kung facilita e interfere no processo no
sentido de possibilitar uma concentração para início de um trabalho de ator. Acho importante
separação entre ‘arte’ e ‘realidade’ em se falando do trabalho de ator, pois estes espaços
possuem ‘leis físicas’ diferentes. (Altamar Araújo)

Altamar destaca na sua fala dois aspectos importantes. O primeiro é a vontade de que
houvesse um momento similar de chi kung no fechamento das aulas, e não só no início. De
certa forma ele pode ter razão. Como o trabalho com a energia acaba sendo orientado para
uma criação expressiva, pode haver tendência a um novo desestabilizar energético após toda a
canalização em prol do momento de experimentação. O tempo exíguo de aula não comporta
mesmo um outro momento da prática no fim das atividades, entretanto, um gesto como
abraçar o centro (mão esquerda em contato com o umbigo, e a direita por cima), com a
intenção de soltar as energias incentivadas no processo experimental, já pode colaborar nesse
aspecto.

Outro apontamento importante de Altamar, é a relação da prática com a noção de


extra-cotidianidade, de Barba. Assim como Júlia, que articula ao chi kung a idéia de dilatação,
Altamar também se vê favorecido pela compreensão corporal de uma noção que muitas vezes
se situa no plano teórico, através da prática de chi kung.

Nem todos os alunos manifestaram uma boa aceitação em relação à prática,


especialmente no início. Houve resistência, crítica e autocrítica que dificultaram a abertura ao
processo. Observemos as impressões de Cinara Paiva.

(12/04) Senti dor, incômodo. Continuo sem sentir muita coisa e quando sinto foge
rapidamente e aí vem o mal-estar. Sinto dificuldade em me concentrar. Não quero criar
preconceitos e resistência em relação ao chi kung. (10/05 em questionário) Incômodo e mal
estar. Não consigo ver nada, sinto muita dor nas costas, agonia, vontade que acabe logo. Tento
várias vezes seguir todos os passos do exercício, até sigo, mas na hora de sentir energia, de ver
o ponto entrando em minha cabeça já era. Não funciona comigo (pelo menos por enquanto).
(09/06 em questionário) Hoje em dia vem me deixando mais concentrada, mais centrada no
trabalho diário. Ainda bem que o processo é um crescente, pelo menos esse foi, só agora me
dei conta de que forma as dinâmicas poderiam me ajudar. Ajuda. Como eu resolvi converter
em prazer, consegui que me ajude na concentração. (Cinara Paiva)
180

A aluna mostra o quão difícil foi para ela praticar os treinos. Entretanto, em resposta
ao último questionário há clara referência de uma mudança de disposição em relação ao chi
kung. Processo em alguns pontos similar ao de Fábio Ferreira. Vejamos seus relatos.

(05/04) Durante o tempo de concentração ou captação de energia, afastar os pensamentos é


muito difícil, manter o equilíbrio do peso bem dividido nas solas também. Sensação de estar
com o corpo torto. (07/04) Novamente senti desconforto. Mesmo assim acredito ter
aproveitado melhor. É mais fácil para mim a conexão com a terra. O meu vazio é colorido. A
tendência dos meus joelhos é travarem (isso me consome atenção). (12/04) Estava sem
concentração, por mais que me esforçasse tudo era rápido demais, se processava
estranhamente, desorganizado, a impressão era de que não estava funcionando, ou
funcionando de forma que eu não compreendia. (14/04) Hoje percebi uma maior concentração
de energia embora ainda não seja a que suponho ideal. Continua mais difícil a conexão yin,
mas entendo que houve certa evolução. (10/05, em questionário) Acredito aproveitar o chi
kung como meio de me concentrar, me trazer pra sala, trazer a atenção pra mim e meu corpo.
Nisso me agrada. No trabalho técnico/ expressivo/ criativo por enquanto não interferiu. Talvez
seja cedo. Talvez o tempo não seja suficiente. (24/05) No chi kung de hoje senti que de fato
consegui me concentrar. Não sinto ainda o corpo se manifestando por conta própria. (Fábio
Ferreira).

Fábio apresenta disposição oscilante em relação à prática, por vezes parecendo


desacreditá-la, por outras, apresentando maior aproveitamento. Extremamente crítico e
racional, o aluno demonstrou essa tendência ao longo de toda a disciplina. Trata-se de uma
característica que em alguns aspectos foi extremamente benéfica para turma, já que suas
observações costumavam ter uma clareza de análise que favoreciam a consistência de nossas
reflexões. Entretanto creio que, especialmente para seu próprio aproveitamento nas
experimentações tal atitude não ajudou. Fábio tinha dificuldade de entrar em contato com as
práticas e imagens propostas, e suas criações vinham sempre acompanhadas de forte
autocrítica e julgamento. Em que pese o aluno afirmar, em resposta ao último questionário,
que a prática não interferiu em seu trabalho técnico/criativo/expressivo, outras afirmações,
como a de que o trabalho ajuda na sua concentração e a trazer sua atenção para o próprio
corpo, parecem soar, no mínimo, paradoxais àquela primeira.

Para concluir as análises individuais, trazemos agora as impressões de Justina Souza.

(12/04) pude perceber uma manifestação energética que, salvo em flagrante clássico de auto-
sugestão, se apresentava em minhas mãos em forma de calor e certa sensação vibrátil. (10/05
em questionário) Percebi que a qualidade de energia que se instala com o treinamento tende a
conferir um estado inusitado entre a prontidão, concentração e relaxamento. Do ponto de vista
filosófico, ideológico e até físico, o chi kung me trouxe o despertar de um olhar sobre meus
canais de manipulação energética e, sobretudo, a verificação de um nível ainda embrionário de
exploração nesse sentido. Considero o chi kung um elemento de conexão com o corpo integral
(físico, energético, intelectual, etc). O que, por si só, oferece ao ator e ao indivíduo um
fortalecimento e ampliação da percepção interior (o que há de contribuir de alguma via para o
181

despertar e aprimoramento da criatividade); e exterior também, no sentido de expandir nossa


atenção e os sentidos em geral (que me parece estabelecer um nível de consciência física e
experimentação emocional e energética que me sugere um ambiente ideal para a
expressividade). (17/05) O chi kung ajuda sempre a concentrar na aula, no espaço, centrar a
percepção do corpo. De fato, para mim, a grande a contribuição está em me conduzir a uma
prontidão e atenção viáveis para o trabalho expressivo. (09/06, em questionário) Me despertou
para um aspecto importante da construção do meu repertório de expressividade, que é a
importância de investigar essa via de energização de forma a prescindir um pouco da minha
tendência intelectual e racional. Ou seja, muitas vezes, talvez pelo aspecto racional e a
insistente observação dos aspectos físicos, não conseguia acessar o ‘canal’ que me ligasse (ou
desligasse), para a percepção da manifestação energética. Acredito que se possa usar o chi
kung como via de acesso à subjetividade e, por meio dessa, atingir certo nível de
expressividade elaborado pela formação e fisicalização das imagens suscitadas no processo.
Em nível energético, no entanto, não me sinto ainda suficientemente sensibilizada, e, apesar
da limitação individual, verifico uma contribuição em nível de estímulo à formação de
imagens e condicionamento criativo/expressivo. (Justina Souza)

Interessante notar que os relatos escritos de Justina por vezes parecem conflitantes
com alguns de seus depoimentos em aula. Isso porque, ao longo do semestre, em diferentes
ocasiões a aluna abordou a própria dificuldade de entrar em contato com as sensações e com a
prática, mencionando sua extrema racionalidade como fator impeditivo, nesse caso. Além de,
cumpre frisar, ela ter tido problemas pessoais sérios ao longo daquele semestre. Já nos relatos
escritos, fica uma impressão de que houve forte aproveitamento, e até alto nível de
compreensão dos benefícios e aplicações dos treinos. Não sei ao certo o que inferir disso,
talvez o tempo tenha corrompido positivamente sua resistência, talvez tenha havido um
entendimento racional das possibilidades de aproveitamento, mesmo que isso não tenha
ocorrido em nível vibrátil, talvez seus depoimentos, em aula, revelem uma auto-exigência
extremada, ou ainda um forte viés questionador.

Tanto os depoimentos, como a minha observação ao longo do curso, mostram que


houve, de um modo geral, uma transformação dos alunos dentro da prática. Seja por uma
confrontação e/ou superação processual de possíveis desconfortos causados pelo treino, ou
através das manifestações corporais que foram se intensificando. Seja ainda pela
conscientização progressiva de aspectos que concernem tanto ao campo energético de cada
corpo, quanto à importância dessa questão nos universos técnico, criativo e expressivo das
artes cênicas.

Uma mudança significativa percebida ao longo do semestre, é como a prática foi se


tornando necessária – e independente - ao processo criativo-expressivo dos alunos. Em
diversos momentos de ensaios ou ao longo das aulas presenciei os alunos recorrendo ao gesto
de abraçar o centro de olhos fechados, por exemplo, como se isso lhes devolvesse uma
182

inteireza, uma disposição à entrega para o trabalho. Além disso, vimos relatos de alunos que
levaram a prática para momentos extra-classe.

Na própria apresentação final, que não teve caráter de espetáculo, mas de um recorte
do processo, ainda que tenhamos identificado alguns problemas, já mencionados, era nítida
uma qualidade de presença naqueles corpos. Havia ali o prazer de se estar por inteiro, o prazer
da entrega.

Vale ressaltar também que, ainda que os treinos de chi kung sejam executados
individualmente, o fato de todos praticarem ao mesmo tempo confere ao espaço e à
coletividade uma energia de grupo coesa, uma cumplicidade vibrátil que favorece a aula, tanto
nas dinâmicas coletivas, quanto nas contracenas propriamente. Percebendo essa propriedade
de dilatação e interação do corpo grupal, em várias ocasiões, após o treino inicial, eu os
solicitava que andassem pelo espaço em estado de chi kung, mantendo inicialmente o olhar
semi-cerrado – como quem olha para fora, mas sem perder o “olhar para dentro” – e pedia que
se olhassem intensamente, ou ainda propunha algum trabalho em dupla nesse estado.

O chi kung mostrou-se altamente eficaz no processo de regulação energética, de auto-


percepção, de irradiação de presença, e na instalação daquele vazio motor, que favorece a
criação. A prática desdobra-se, assim, em recurso a ser usado pelo artista por seu próprio bem
estar pessoal, e enquanto ferramenta de trabalho. Nessa última perspectiva cabe recorrer à fala
da aluna Justina que percebe que:

Podemos falar senão de uma técnica “de atuação”, ao menos de uma técnica “para a atuação”,
no sentido que o treinamento se presta a um aspecto de sustentação do ator/indivíduo como ser
integral, ligado ao ambiente em que se insere. (Justina)
183

6.2. Traços ou Quando os alicerces vergam

6.2.a. O processo

O espetáculo foi concebido e montado ao longo de três meses e meio de trabalho –


entre julho e outubro de 2006, com, em média, três encontros semanais de cerca de três horas
cada. Nas primeiras seis semanas estivemos envolvidos no processo eu e o diretor do
espetáculo, André Amaro. Em seguida, quando já tínhamos esboçado as diretrizes básicas de
nossa estrutura dramatúrgica, o músico Luciano Marques (Lupa) passou a integrar os
encontros, e a agregar conceitos sonoros ao trabalho. Por fim, a artista plástica Maria Luiza
Fragoso (Malu), responsável pelo cenário e figurino, se somou a nós. Quando Malu chegou,
nosso processo já indicava uma série de demandas cenográficas, como os elásticos, alguns
objetos de cena e peças de indumentária, que ganharam unidade e resolução estética e
funcional a partir do trabalho da artista. Cerca de duas semanas antes da estréia passamos a
ensaiar e adequar o trabalho à estrutura cenográfica pronta.

Antes de prosseguir cabe apresentar os termos que serão usados na descrição e análise
desse processo. Quando falarmos em “matriz”, ao longo do capítulo, estaremos nos referindo
tanto a fonte inicial de uma determinada criação – em nosso caso de origem taoísta, e já
apresentadas no capítulo 1 – quanto ao conjunto de células expressivas gerado na relação de
experimentação com essa mesma fonte. Assim, a matriz frioquente, por exemplo, refere-se ao
mesmo tempo a um dos pares yin yang existentes, quanto ao conjunto do material expressivo
gerado em meu diálogo corporal com este par. “Células” ou “células expressivas” são termos
que farão referência aos vários elementos componentes dessas experimentações, surgidas a
partir do encontro do corpo com uma dada matriz.

Após o processo de experimentação com cada matriz, era possível decompor o


material bruto em células, que podiam ser: movimentos, posturas, timbres vocais, ritmos,
corporeidades, estados afetivos, atmosferas, ambiências, etc. Estas células expressivas
funcionam como matéria combinatória, com as quais lidamos em uma perspectiva de
composição - ou montagem. O conjunto de células, advindas de matrizes variadas,
pesquisadas corporalmente, constituiu certo acervo de recursos que foi consultado,
desdobrado, mexido, cortado, colado, revisado, ampliado, reduzido, acelerado, desacelerado,
etc., durante o processo de re-alocação no espetáculo. Na perspectiva de re-contextualização
das células originais para o contexto da peça, matrizes e/ou células expressivas se tornaram ou
184

apoiaram ações físicas. Ou seja, ao ganharem uma significação voluntária, ao passarem a


enunciar, no sentido dramatúrgico, dentro de uma partitura global do texto espetacular, as
células e matrizes adquiriram estatuto de ação física39.

Assim, basicamente a criação do espetáculo Traços ou Quando os alicerces vergam


consistiu neste percurso: durante o período de ensaios trabalhei com o imaginário taoísta me
provocando criações a princípio dissociadas do tema do espetáculo, o que ia gerando um
acervo de células expressivas. As células criadas eram depois re-contextualizadas em ações
físicas a partir das demandas da peça, processo este já norteado pelos textos de Ana Miranda.
Parti, por exemplo, de uma experimentação em cima do contraste profundosuperficial - tirado
das associações yin yang - e isso gerou uma corporeidade, que, depois, foi re-alocada na peça.
Surgida como movimento absolutamente inespecífico, ou seja, sem intencionalidade de
sentido ou significado proposital, esta matriz acabou transfigurada na ação em que a
personagem se relaciona com seu animal de estimação (cenas 6 e 21: “Bicho 1” e “Bicho 2”,
conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b). Isso ocorreu com uma série de outras
matrizes ligadas ao yin yang, e ao wu hsing (as cinco energias). Dessa forma, o tema da peça
não tem relação direta com o taoísmo, mas as matrizes expressivas que animam o espetáculo
surgiram a partir de vivências com esse universo, para serem, em seguida, contaminadas pelas
ambiências dos textos de Ana Miranda.

Durante os ensaios, várias impressões, bem como a descrição dos acontecimentos,


foram sendo registradas em um “diário de bordo”. Posteriormente comecei a estruturar essa
análise de forma mais distanciada, a partir de anotações e lembranças. Tal hiato temporal,
bem como o acompanhamento do processo de recepção do espetáculo em diferentes
temporadas, foi importante para um olhar mais crítico e analítico do percurso. A transcrição
do “diário de bordo”, incluindo algumas reflexões posteriores às anotações, pode ser
conferida na seção de anexos.

Essa etapa de criação do espetáculo foi crucial pra pesquisa, pois pude perceber
diferentes formas de relacionar as matrizes taoístas à criação e à cena, além das que eu havia
imaginado em minhas conjecturas iniciais. Em princípio, a proposição se concentrava em
criar corporeidades expressivas a partir das sugestões taoístas, de maneira dissociada da

39
Sobre a composição como perspectiva do trabalho atoral, e sobre a diferença entre movimento, gesto e ação
física, conferir o estudo de Matteo Bonfitto (2002)
185

fábula, para depois inseri-las na peça. Esta se mostrou, de fato, como uma aplicação possível,
e bastante produtiva, e se configurou como a linha diretiva de todo processo.

Entretanto, também pude lançar mão de outras possibilidades, que foram se


descortinando no percurso. Ao longo dos ensaios, por exemplo, alguns contrastes yin yang, e
aspectos da mandala das cinco energias entraram, a posteriori, em diálogo com ações físicas,
funcionando como uma espécie de sub-partitura, o tal “forro-pensamento” por traz da atuação,
sem que tivessem sido geradores de células expressivas na fase inicial de experimentação.
Visando uma construção menos realista trouxemos essas referências para momentos da peça
que pediam uma densidade ou intenção que poderia me fazer cair em uma interpretação com
vocação ilustrativa ou psicológica, o que não era o desejado aqui. Nesse caso, houve um
deslocamento de uma idéia de subtexto, espécie de pensar como a personagem, oriundo da
técnica de Stanislávski, para a noção de sub-partitura, já abordada na seção 2.3. Além disso,
utilizei matrizes como propulsoras de expressividade especificamente na vocalidade - seja no
gesto de cantar, seja em relação ao texto falado, ou ainda em outras expressões da voz como
riso, choro ou interjeições. Essa proposta foi usada tanto a partir de demandas surgidas no
contexto dramatúrgico, como em momentos de livre experimentação40.

Durante a primeira fase dos ensaios, o primeiro momento do trabalho era dedicado à
criação de material expressivo - matrizes em diálogo com corpo. Este material gerava
imagens que eram “lidas” pelo diretor da peça, André Amaro, e eventualmente por mim, à luz
de nossas necessidades. Essa era uma função que propositalmente eu delegava ao André,
justamente para evitar imaginar de antemão uma possível adequação entre a matriz a ser
experimentada, e algum conto ou ambiência da obra de Ana Miranda. Tal decisão me permitia
criar mais livremente. A partir daí esse material ia sendo desdobrado e re-contextualizado,
visando à dramaturgia.

Depois, já com a estrutura eixo da peça levantada, as matrizes foram sendo usadas
também para adensar ou complexificar o desenho, como uma provocação interna de estados,
que não estavam originalmente ligados àquelas formas corporais que agora animavam. Ou
seja, em clara perspectiva de composição (Bonfitto, 2002), uma mesma ação física pôde ter o
desenho de movimentos ligado a uma determinada matriz - experimentada em dada ocasião, e
a sub-partitura ligada à outra.
40
Nesse contexto da voz, pretendo ainda aprofundar a pesquisa após a conclusão do doutorado. Ainda que tenha
trazido esta nuance para o processo, creio poder ir mais longe com tal perspectiva, especialmente no sentido de
trazer mais as construções vocais para a cena propriamente.
186

Como exemplo do acima exposto, temos as cenas em que a personagem se relaciona


com a poeira - ou o perigo minúsculo, já que em alguns momentos a leitura pode ser de que se
trata de uma luta contra um inseto ou o que mais a recepção projetar aí. Não estamos nos
referindo à primeira cena com a poeira, a qual é composta por ataques que remetem a lutas de
espada, jogos com raquete, e tiros de metralhadora41. Referimos-nos às cenas seguintes, onde
a atitude corporal se caracteriza por um movimento anguloso, com ênfase nas dobras de
cotovelos e joelhos, e cabeça deslocando-se para as laterais, fazendo parecer que a
personagem está à espreita, construção que pode lembrar uma postura de danças balinesa ou
indiana (cenas 11 e 17: “Poeira [Perigo Minúsculo] 2” e “Poeira [Perigo Minúsculo] 3”,
conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b). Este movimento surgiu com a
experimentação da matriz ossos + audição + medo (aspectos ligados à força da Água, em wu
hsing), mas durante a cena, já transformado em ação física foi intensificado pela matriz
recepçãopenetração, funcionando como sub-partitura, ou seja, indicando metaforicamente a
intenção da personagem – especialmente de seu jogo de olhares - na relação com a poeira:
persegui-la e ser atacada por ela.

Em outro momento a personagem se dirige à camisa que lhe recorda o amante (cena
13: “Varal + Traço 1”, conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b). Vai até lá com
os pés rastejantes, e o corpo lânguido, célula expressiva ligada à matriz umidade, mas sua
intenção é colorida pela matriz expansão + luminoso, que metaforiza o estado de espírito
daquela mulher em relação à visão de seu homem. A idéia de trabalhar com essas sub-
partituras mais abstratas e distantes de idéias psicológicas, visa preservar as zonas de sombra
– ou os vazios – do espetáculo, com uma construção de interpretação mais sutil, que favoreça
a implicação intensificada do fruidor na construção dos sentidos da obra.

Durante os ensaios, os treinos “entrar no vazio” e “sentar na calma” fizeram parte da


rotina diária. O chi kung era feito após um alongamento e aquecimento, precedendo as
investigações corporais a partir das matrizes. Os treinos me traziam a perspectiva do re-curso
vazio, sobre o qual falamos no item 5.2. Muitas vezes chegava ao ensaio com outras coisas na
cabeça, preocupações diversas – relacionadas ou não ao processo - e fazer o chi kung me
colocava – na maior parte das vezes - de volta no vazio, aberta ao devir, minimizando as
41
Voltamos a frisar que descreveremos cenas que serão mais bem compreendidas ao se assistir a peça,
disponível em DVD anexo. Além disso, há a descrição mais detalhada do processo de criação na transcrição do
diário de bordo. A leitura da dramaturgia da peça, que descreve as ações do corpo no espaço, além de trazer o
texto, também favorece esse entendimento. Tanto o DVD, como o diário de bordo e a dramaturgia estão em
anexo.
187

interferências de idéias. Além disso, a prática me ajudava a mobilizar meu chi, trazendo um
estado vibratório que se mostrou bastante adequado às experimentações.

Após cumprir os passos do treino padrão, permitia-me uns minutos de chi kung
espontâneo, o qual consiste em deixar o chi se manifestar em movimentos involuntários, não
coreografados e nem planejados. Esse momento me é particularmente especial. Deixar o
corpo se mover, sem o comando mental consciente, assumir internamente uma posição de
sentir e observar, diferente da usual de controle dos movimentos, traz sensações como soltura,
liberdade, surpresa. Parece que o corpo sabe exatamente o que precisa/deseja, o que acaba por
trazer um profundo bem-estar. De um modo geral, o exercício de reconectar-me às minhas
próprias energias, e demandas de ordem vibratória, me trazia intensamente para o tempo e
espaço presentes. A sensação de dilatação de meu corpo e presença parecia facilitar o deixar-
me ser passagem, para que as matrizes se manifestassem em corporeidades.

Depois dessa fase, partia para o diálogo corporal com a matriz propriamente. Como
disse, a sensação de presença no tempo e no espaço me abria a possibilidade de um encontro
profundo com as matrizes. Salvo raras exceções, o trabalho fluía sem que eu me pré-ocupasse
em pensar o que fazer. Era o corpo que vibrava em sintonia com a imagem da matriz, o corpo
que “pensava”, e produzia os entre-lugares expressivos dos trânsitos matrizesalice.

Após a estréia passei a fazer o chi kung sempre antes de entrar em cena. Após um
aquecimento básico de alongamento e prontidão, faço os treinos e parto para a atualização
corporal de matrizes e células expressivas usadas na peça, bem como para uma troca de chi
com o espaço e os objetos cenográficos. É, inclusive, neste estado que inicio o espetáculo,
propriamente. Quando o público entra no teatro já me encontro em cena, deitada. Em
contraste com o som suave e delicado de um brinquedo de corda, meu corpo manifesta alguns
movimentos involuntários, como em quem dorme, mas em estado de tensão e sobressalto.
Esses movimentos são chi kung espontâneo, e, quando a peça começa, estou sob efeito da
circulação energética proporcionada por este. Deitada, deixo simplesmente essas
manifestações ocorrerem em meu corpo, enquanto o público entra em cena.

O músico Lupa não se envolveu com os treinos de chi kung propriamente, mas vale
notar que, como praticante esporádico de ioga, ele também dedica alguns minutos antes de
entrar em cena à meditação. Além do que já foi dito, a prática de chi kung me traz maior
atenção e concentração, e ainda a possibilidade de irradiação e foco energético, elementos
188

altamente eficazes ao trabalho de ator. Esta perspectiva remete à convicção artaudiana de que
o ator precisa crer e lidar com a materialidade das paixões - e da alma e de energias -
aprendendo a manusear esses fluxos moleculares com objetivos e estratégias claros, visando à
intensificação da presença e, por conseguinte, da recepção (1993:136).

Interessante observar os diferentes desdobramentos sofridos pelas matrizes no decorrer


do processo criativo. Algumas ficaram no espetáculo em formato bem próximo ao
originalmente experimentado. Outras foram se modificando várias vezes durante a
contextualização. Umas sugeriram a cena, situação ou a ação da personagem, mas acabaram
não permanecendo como formas de movimento na cena que sugeriram, tendo, eventualmente,
células re-alocadas em outros momentos da peça. A seqüência do varal, por exemplo, só
existe graças à experimentação com a matriz troncomembros (cena 13: “Varal + Traço 1”,
conforme descrito na sinopse descritiva, seção 6.2.b).

As imagens produzidas nessa experimentação remeteram André – o diretor - ao ato de


lavar roupas. Entretanto, ao longo dos ensaios, apenas a situação de lavar e estender roupa se
manteve na cena que esta matriz inspirou, mas com uma movimentação totalmente distinta da
original. Por outro lado, alguns movimentos da matriz troncomembros estão presentes na cena
35: “Noite + Traços Teia” (vide seção 6.2.b, sinopse descritiva). Pode-se dizer que o próprio
conceito visual dos elásticos na peça se deve a esta experimentação, pois o varal foi o
primeiro fio puxado em cena, gerando a idéia de surgirem novos fios no decorrer da trama.

Uma outra variação de uso das matrizes, não pensada previamente, mas surgida na
demanda do processo criativo, foi sua exploração já dentro do contexto dramatúrgico, seja
contexto ligado a ações, textos ou climas. Foi o caso de experiências como na cena 34:
“Banho” (vide seção 6.2.b, sinopse descritiva), para onde levamos a matriz obsessão, que já
tinha sido experimentada, mas voltou para nova investigação, agora dentro de uma cena
específica. Na cena 35: “Noite + Traços Teia”, exploramos pela primeira vez vários
estímulos, entre eles o conjunto branco + outono + pele (ligado ao Metal, em wu hsing), que
acabou trazendo vários elementos que foram usados ali.

Entretanto ressalto que quando da experimentação solta e desvinculada de contextos


das matrizes, sentia meu corpo entrar em um estado de maior presença e concentração cênica.
Este estado, fortemente favorecido pela imersão proporcionada pelo chi kung, era
intensificado, talvez, pelo fato da criação não passar, nesses momentos, por uma busca
189

racional de adequações, sentidos ou associações a um determinado contexto (ação ou texto


predeterminado). O que parece é que, nessa experimentação não teleológica, cada corpo vai
criar um acervo expressivo altamente singular, ligado tão somente às suas experiências em
relação ao estímulo proposto – matriz - e ao seu momento particular, já que não há ancoragem
no produto final. O resultado em termos de repertório expressivo nesse tipo de trabalho indica
polifonia e polissemia: um amplo leque de discursos e possibilidades de leitura e aplicação
cênica do material.

André observou, no entanto, que, ao apreciar as células expressivas geradas nas


encruzilhadas entre meu corpo e o universo taoísta, ele já tinha como norteador o universo dos
livros de Ana Miranda. Isso o levava à tendência de enxergar, nas experimentações, os traços
criativos a serem re-alocados ao nosso universo temático, ou seja, o levava a identificar ali,
situações e ações que nossa personagem poderia viver e executar. Foi o caso da ação de correr
atrás do “bicho” (espanador), pegá-lo, afagá-lo e soltá-lo (cenas 6 e 21: “Bicho 1” e “Bicho
2”, conforme seção 6.2.b). Assim como o caso das cenas de lavagem de roupas, da cena da
costura, entre outras (cenas 9 e 12: “Lavação 1” e “Lavação 2 + Canto 1”, e cena 14: “Costura
+ Traço 3”, conforme seção 6.2.b).

Estas situações - é bom que se diga - não constavam nos contos de Ana. André
identificou essas ações em experimentações a partir de matrizes yin yang, que, no ato da
exploração, nem de longe me remeteram a elas. Se nosso tema ou texto fosse outro,
provavelmente André teria enxergado outras coisas. Assim, pudemos chegar a um
desempenho pouco realista dessas ações não por meio de uma estilização, abstração ou
descaracterização progressiva destas, senão por intermédio de material expressivo pré-
existente, que, em re-contextualização, imprimiu teatralidade e polissemia à cena. De um lado
tínhamos uma atriz criando, mas não de forma dirigida ao tema da peça, e sim a partir dos
estímulos taoístas propostos, e de outro um diretor, este sim prenhe do espírito do espetáculo,
assistindo e compondo com o que via. Um determinado movimento remetia-o à ação de varrer
e tirar o pó, provavelmente pelo fato de estarmos lidando com uma personagem solitária e
enfurnada no apartamento, a quem seria presumível esta ação. Fosse uma serial killer, por
exemplo, possivelmente o mesmo movimento o levasse a vislumbrar alguma outra ação.

É certo que a ponte entre a pura experimentação expressiva - fornecedora de ritmos,


corporeidades, e leituras variadas – rumo à ação – ou seja, à contextualização desses
movimentos, sons e outros recursos – gerou insistentes desdobramentos, adequações, re-
190

alocações e derivações das células criadas. Entretanto, por terem surgido em pesquisa
dissociada de sentidos unívocos ou direcionados – até por que vários estímulos taoístas já
tendem a certa abstração – tais células parecem manter um caráter menos territorializado,
parecem resistir à fixação em um contexto inequívoco. Em outras palavras elas geram atuação
e cenas menos realistas, talvez mais metaforizadas e polissêmicas.

Na transição da expressividade solta à ação física - esta ligada à estrutura dramatúrgica


- há, certamente, uma maior ancoragem no real e na significação, mas mantém-se um
nomadismo de sentidos, uma multiplicidade de leituras. O que aqui é desejado, e vai ao
encontro de idéias taoístas abordadas, como a de wu wei, com vocação de fluxo contínuo e
recusa à estratificação. Tal característica também casou com princípios do Teatro
Caleidoscópio, investigados por André Amaro, que vê o corpo do ator “como matéria
fragmentária e combinatória, que se modifica em desenho e energia numa metamorfose
contínua em busca da expressão e beleza” (em entrevista ao Correio Brasiliense de 28 de
outubro de 2006)42.

Houve, como mencionado, oportunidades em que criei já dentro de contexto da peça,


mas tendo como referência, além deste, um universo sugestivo taoísta que o contaminava. É
fácil pensar que isso poderia por um lado encurtar o caminho para a cena, já que o material
criado tenderia a ter uma adequação mais direta ao contexto a que se pretendia aludir.
Entretanto, o que ocorreu é que várias vezes acabei caindo em uma obviedade de construções
que destoava das criações anteriores. Assim, muito do que criamos em contextos de ações
específicas acabou sendo re-alocado para outras cenas, o que devolvia a multiplicidade de
sentidos àquela construção. Foi o caso, por exemplo, da experimentação com a matriz ossos +
audição + medo, que gerou a construção apelidada de “aranha”, surgida no contexto da teia,
mas que pela obviedade “aranha na teia” – entre outros fatores – foi re-alocada para a relação
de apreensão e medo dos perigos minúsculos: poeira e/ou insetos (cenas 11 e 17: “Poeira
[Perigo Minúsculo] 2” e “Poeira [Perigo Minúsculo] 3”, conforme descrito na sinopse
descritiva, seção 6.2.b).

É fato toda obra artística porta certa polissemia, e que sempre contempla certo grau de
recepção criativa e variada por parte do público. Afinal, nessa característica reside um tanto
do que define algo como arte. Mas, da mesma forma que uma pintura figurativa tende a
direcionar mais a fruição do que uma obra cubista, por exemplo, no que se refere ao grau de
42
Para saber mais sobre o trabalho de André Amaro o site www.teatrocaleidoscopio.com.br pode ser consultado.
191

“ilustração” do tema por parte do artista, há viéses diferenciados na abordagem de uma obra.
E é importante saber que estes têm conseqüências diretas sobre aspectos da recepção.

Não se trata de defender esta ou aquela abordagem de cena como melhor ou mais
contemporânea. O fato é que, particularmente, me propus a experimentar uma determinada
via de trabalho que, pelo processo e resultado, pareceu demonstrar grande vocação a uma
recepção por devir, uma fruição menos estratificante. Talvez por que sua criação também foi
sustentada pelo princípio do devir, de wu wei e do vazio. Esta espécie de fruição remete aos
conceitos de “cadeia significante” em Jacques Lacan, e de “infinitização do discurso”, em
Júlia Krsiteva, referidos por Ciane Fernandes em sua análise do processo e obra de Pina
Bausch (Fernandes, 2000: 26-38). Para a autora, Bausch explora justamente o não-repouso e a
arbitrariedade do signo (2000:32)

É bom frisar que, a despeito desse esforço, a peça acabou apresentando certas
seqüências, senão óbvias, pelo menos redundantes em termos de texto e ação. É o caso da
cena 13: “Varal + Traço 2”, em que os gestos muitas vezes ilustram o texto falado. O que
suaviza, a meu ver, o grau ilustrativo dessa composição é o fato de se passar numa
circunstância não cotidiana, ou antes, na metaforização de uma ação cotidiana - lavar roupas.
A relação com a camisa pendurada cria imagens pouco usuais a esse contexto, digamos, de
lavanderia, e desdobra em extra-cotidiano o gesto doméstico de lavar roupas e recordar as
carícias de um homem.

Por outro lado, a possibilidade de reinvenção do cotidiano – perspectiva impressa na


cena – traz a ela um viés político. E isso, de certa forma, reconcilia a cena com a noção de
vazio, na medida em que este, enquanto potência pura, nada tem de abstrato ou apolítico. Pelo
contrário, comporta infinitamente a possibilidade de transformação. Lembrando que o campo
molecular, segundo Deleuze Guattari (1995), é o campo da micro-política, que opera no
fluxo, na potência, no vazio.

Outra questão que se colocou durante o processo, como vimos, foi o uso das matrizes
como sub-partitura. Uma motivação interna que não era traduzida em uma intenção
presumível, como “raiva”, “desespero”, ou em algo como uma “memória emotiva”. Por vezes
esse “forro-pensamento” era da ordem de uma memória muscular, como no contraste
contraçãoexpansão. Por vezes operava uma memória da sensação, como nas sub-partituras
paladar, olfato ou visão. Em outros casos o que animava o gesto ou a ação era uma idéia mais
192

abstrata como cheiovazio, sombrioluminoso, entre outras. Esse grau de abstração contribuiu aí
- da mesma forma que nas construções de movimentos - para intenções talvez mais
conotativas que denotativas, sutis como no entendimento de Sant’Anna, ou seja,
preservadoras das zonas de sombra.

Em especial dentro dos contrastes yin yang, a intenção tende a parecer ainda mais
complexa, paradoxal ou ambivalente. A relação com o marido, por exemplo - oscilando entre
a leveza do afeto para com sua bonequinha, e simultaneamente a violência de seu contato
físico com ela - foi buscada pelo contraste densosutil, que permeia toda a cena do varal (cena
13: “Varal + Traço 2”). Isso nos remete às propriedades descritas das dinâmicas yin yang.
Não apenas a oposição, mas a interdependência, a inter-transformação e o inter-consumo, que
podem ser identificados nesse trânsito entre as polaridades de um mesmo núcleo de
“sentimento”.

6.2.b. Sinopse descritiva

No início do espetáculo o espaço cênico consiste em um cubo formado por 7 barras


verticais de metal vermelho e 8 barras horizontais, de metal prateado, criando um ambiente de
4 metros de largura por 4 de profundidade e 3,5 de altura. Esse espaço faz referência ao cubo
de Laban, espaço onde ocorrem as oito ações básicas que combinam tempo, peso e espaço 43.
O piso desse quadrado está forrado com um carpete verde escuro. O ambiente sugere um
apartamento, uma clausura, uma jaula: o lugar onde vive a personagem. Nas 7 barras
vermelhas verticais – alicerces - estão dispostos, pendurados em alturas variadas alguns
objetos. Usaremos como referência a posição da personagem virada para o público para
considerar esquerda e direita, na seguinte disposição:
1. Na barra da frente, à esquerda: um par de luvas vermelhas com as barras em tecido
estampado.
2. Na barra central da lateral esquerda: um espanador de cabo prateado e penas
vermelhas.
3. Na barra do fundo da esquerda: um sapato prateado com detalhe em verde. Próxima a
esta barra, no chão há uma saia estampada com a mesma estampa da barra das luvas.
A saia fica em pé graças ao seu tecido encorpado.

43
Conferir o já mencionado estudo de Ciane Fernandes sobre o método de Laban e Barthinieff (2002).
193

4. Na barra central do fundo: um lenço vermelho pendurado, e uma bacia prateada, com
o fundo estampado no mesmo motivo da saia e barras da luva.
5. Na barra da direita, ao fundo, está pendurada no alto uma camisa branca de punhos e
gola vermelha. Em baixo, encostado na barra está o par do sapato da barra 3. Este com
um detalhe vermelho.
6. Na barra do centro da lateral direita está pendurado um balde prateado, cujo interior é
revestido de um tecido vermelho.
7. Na barra da direita frontal há um livro cuja capa tem a mesma estamparia da saia,
fundo da bacia e barras das luvas.

Em algumas barras há outros ganchos pendurados, além dos que já estão com objetos,
mas que não são imediatamente percebidos pelo público. Há também alguns elásticos
escondidos nas barras, que só aparecerão no decorrer das cenas. A personagem inicia vestindo
uma espécie de camisola curta, em modelo “tomara que caia”, sendo o bojo que sustenta os
seios em tecido vermelho, e o corpo da camisola em verde. Em baixo usa uma calça de malha
justa, tipo legging também verde, num tom mais escuro que o da camisola.
Do lado esquerdo, em um espaço recoberto com o mesmo tapete verde escuro que
forra o chão do cubo, está o músico e seus instrumentos, estrategicamente posicionado para
acompanhar todas as minhas ações.
Para facilitar a descrição e análise da peça, a mesma foi dividida em 38 cenas44. Cabe
frisar que há subdivisões forjadas para favorecer a análise, mas que não funcionam como
divisões no correr da peça propriamente. Estas subunidades estão relacionadas às ações e/ou
às repetições e transformações presentes no espetáculo. Estas repetições rítmicas explicam a
repetição de alguns títulos de cena. A seguir as sinopses das cenas.

1. despertar

Quando o público entra a peça já começou. Há uma delicada música de um brinquedo de


corda infantil, e uma mulher está deitada, dormindo no centro do cubo, manifestando alguns
movimentos espasmódicos. Ela tem os cabelos soltos e, entrelaçado ao seu corpo, um elástico

44
Interessante lembrar que Meyerhold, com sua referência cinematográfica (o encenador inclusive influenciou
fortemente o cineasta Sergei Eisenstein), passou a não se contentar com as divisões habituais em atos, dos textos
dramáticos. Assim, seus espetáculos costumavam ser divididos em inúmeros episódios, o que favorecia uma
perspectiva fílmica de montagem, na relação com a composição cênica: jogos simultâneos, ritmo
cinematográfico, re-ordenação de seqüências, etc.
194

recoberto de tecido verde. Ao som de um despertador ela acorda, se espreguiça e vai


apreensiva até a “janela” 45, ainda envolta com o elástico.

2. janela 1

Ela abre a janela e cumprimenta pessoas fora do espaço, olhando para baixo. Volta-se para o
interior e se depara com um “espelho”.

3. espelho 1

Ela se analisa, usa um “fio dental”, e passa a fazer ginástica. Por mim se mede com uma “fita
métrica” e constata que não está nos padrões.

4. feira

Ela passa a listar uma série de produtos light, e outras necessidades, enquanto prende os
cabelos no alto e calça as luvas, que deixam metade dos dedos a mostra.

5. unhas

De repente se dá conta de que nasceram “garras” estranhas em suas mãos, e passa se


relacionar com estas questionando o sentido das unhas. Termina por espremer uma espinha
em frente ao espelho.

6. bicho 1

Depara-se com o “bichinho de estimação” e passa a se relacionar carinhosamente com ele


pelo espaço, até por fim se dar conta da presença de poeira nos “móveis”.

45
Coloco entre aspas as primeiras referências a objetos imaginários e/ou re-significados. Não há uma janela de
fato, mas o gesto sugere-a. Assim como não há uma fita métrica, mas o uso que se faz do elástico promove essa
interpretação. Quando o objeto faz as vezes dele mesmo, trago sem as aspas.
195

7. poeira (perigo minúsculo) 1

Passa a travar uma intensa luta com a poeira, usando o espanador (objeto que acabara de ser
manuseado como bicho). Nesta luta o espanador assume, a partir das ações físicas,
características de espada, esfregão, desentupidor, taco de golfe, raquete e metralhadora. Por
fim, ameaçada, ela se esconde da poeira atrás de uma bacia, e inicia os preparativos para uma
nova ação – lavar roupas. Ela pega uma camisa e um balde, até que toca o telefone.

8. telefone 1 + traço 1

Ela se assusta, as coisas caem de suas mãos. Ela atende ao “telefone”. Ao tirar o fone do
gancho revela-se o primeiro elástico. Este vai ser levado até o outro lado do cubo, formando o
traço um. Ninguém responde ao telefone. Ao fim apenas uma voz sinistra diz alô até a ligação
cair.

9. lavação 1

Como ninguém responde, ela desiste leva o sapato (que era telefone há pouco), em direção às
coisas caídas. Passa a manusear a água e se lavar. Molha o sexo e tenta lavar as mãos com
“sabão”. Passa a procurar onde jogar a água suja.

10. janela 2

Joga a água suja da bacia pela janela e se esconde atrás do objeto.Volta à ação de lavar até
que percebe poeira no espaço.

11. poeira (perigo minúsculo) 2

Passa a perseguir a poeira com o balde, até prendê-la neste.

12. lavação 2 + canto 1

Volta a si e percebe a camisa no chão. Passa a se relacionar amorosamente com a peça,


lavando-a enquanto canta.
196

13. varal + traço 2

Puxa um novo elástico e forma o traço 2, um “varal”, onde pendura a camisa. Dança com a
camisa e passa a interagir com a mesma, como se recordasse o homem que a usou. Cria uma
série de imagens com a camisa pendurada no varal. Ao fazer sexo com a camisa tem uma
costela quebrada com um sôfrego toque de amor.

14. costura + traço 3

Pega “agulha” e “linha” – quando puxa o traço 3 – e passa a costurar a própria costela.

15. espelho 2 + canto 2

Vai até o espelho e verifica se a costura ficou boa. Passa a se observar e resolve se arrumar.
Veste uma saia, um sapato, e passa a procurar o outro pelo espaço, jogando com a presença
dos traços elásticos. Acha um lencinho e o coloca no pescoço. Acha uma “bolsinha”, segura-
a. Por fim vê o sapato, calça-o, limpa-o, e se admira no espelho. Canta uma canção para si
mesma, se masturba, e de repente se vê com um “buquê” nas mãos.

16. casamento + traço 4

Ao som da marcha nupcial passa a desfilar como numa igreja, mas se dá conta que está presa
ao passado pelo sapato (traço quatro). Desespera-se e se livra do sapato e do elástico. Nessa
altura os quatro traços já estão atravessando o espaço, e todas as ações da mulher tem driblar
ou se relacionar a estes.

17. poeira (perigo minúsculo) 3

No desespero de se livrar do passado acaba desemborcando o balde que prendia a poeira. Ela
se arruma quixotescamente, com um “chapéu”, um “escudo” e uma “lança”, e passa a
perseguir a poeira até esmagá-la em um dos alicerces.

18. desfazer-se

Deprime-se e se dá conta que deve se desfazer de tudo. Passa a catar os objetos do cenário, e
algumas peças que está vestindo, e colocar na bacia. O telefone toca quando ia pegar o livro.
197

19. telefone 2

Ela vai atender, mas o telefone para de tocar.

20. janela 3

Ela vai até a janela, chama por alguém para doar as coisas que não quer mais, e passa a jogar
peça por peça, enlevada pela beleza destas atravessando o espaço até cair lá embaixo. Por fim
joga objetos muito pesados e parece ferir gravemente – ou matar – quem estava recebendo as
coisas.

21. bicho 2

Desesperada foge da janela e encontra o bicho novamente. Tenta se acalmar e passa a brincar
com o animal até que toca o telefone.

22. janela 4

Com o susto acaba jogando sem querer o animal pela janela.

23. telefone 3

Fica ainda mais desesperada e vai atender ao telefone tentando disfarçar a agitação. Ninguém
responde, ela puxa todos os traços do espaço tentando um sinal, mas é inútil. Ao fim
a mesma voz sinistra, que a assusta. Com uma “lupa” (alça de elástico de um os
traços) ela investiga o telefone e o espaço, enquanto se dirige ao alicerce onde está o
“livro”.

24. livro + canto 3

De repente tudo a sua volta escurece e ela fica apreensiva, encolhida junto ao alicerce.
Percebe o livro, o pega, abre-o. De dentro do livro uma luz ilumina-a. Ela lê, ri, descobre uma
“carta”, chora, faz um “cigarro de maconha”, fuma, cheira “cocaína”, e fica ligada. Nesse
estado canta uma canção, enquanto se dirige até a janela. Serve-se de “bebida” e vira a “taça”
de uma só vez.
198

25. janela 5

Embriagada termina a música cantando na janela. Deseja Feliz Ano Novo às pessoas lá
embaixo. Sente-se mal, vomita no livro, e o joga pela janela enojada. Percebe que o vômito
caiu em alguém, e se desculpa constrangida. Fuma um “cigarro” ansiosamente.

26. telefone 4

O telefone toca de novo, ela procura destrambelhadamente pelo telefone por todos os
elásticos, enquanto os estica e solta. Por fim acha e pisa no fio, desligando o telefone.

27. corda bamba + canto 4

Passa a andar sobre uma “corda bamba” tocando em uma “corneta” a música Adeus ano
velho. Embriagada, tenta se equilibrar até que toca o telefone de novo.

28. telefone 5

Ela atende angustiada, e o mesmo de sempre: ninguém fala nada até que no fim uma
misteriosa voz fala alô e desliga.

29. monstro

Ela desconfia se tratar de um monstro, e lembra que há um que habita a calçada da esquina.

30. janela 5

Ela vai até a janela e confirma que o monstro está lá. Ela o ataca jogando o sapato e papel
amassado.
199

31. reza

Melancólica ela solta os cabelos e usa o elástico com “terço”. Passa a rezar e pedir perdão.
Sente culpa. Lembra dos filhos.

32. filhos + canto 5

Passa a lembrar da relação neurótica que teve com os filhos, enquanto se relaciona com o
elástico fazendo uma cama de gato. Tira a saia e a coloca no chão, transformando-a em
“filho”. Pega-o no colo e canta uma doce cantiga infantil.

33. janela 6

Vai até a janela cantando, com o bebê nos braços, e ao fim da música o atira pela janela.

34. banho

Sente-se ainda levemente embriagada e vai até o “box” tomar banho. Toma uma “ducha”
gelada, sai, se enxuga.

35. noite + traços teia

Percebe os traços no espaço e passa a pegar um a um com as mãos, até juntá-los no centro e
amarrá-los com o elástico solto. Cria a imagem da “teia” no espaço, se entrelaça ao
elástico solto - agora amarrado aos traços - como no início do espetáculo e dorme.
Acorda com sons de fogos de artifício. Entra em desespero, acha que a casa vai cair.
Sai de sua casa.

36. telhado

Sobe até o telhado e se depara com a visão da cidade lá embaixo. É repreendida por alguém
por estar pisando na “antena” e atrapalhando o sinal da TV, pois vai começar a contagem
regressiva. Chega o novo ano. Fogos de artifício estouram no céu.

38. asa delta + canto 6


200

Ela se encanta com os fogos. Encanta-se com a cidade lá embaixo. E canta a música Solidão,
de Tom Zé. E salta de “Asa Delta” sobre a cidade.

Acende-se um painel atrás do cenário, com a imagem noturna de uma grande cidade. Na
frente a mulher canta e voa de Asa Delta.

A luz vai caindo em resistência, a música vai abaixando. Fim.

6.2.c. A cena

Traços ou Quando os Alicerces Vergam mostra um dia na vida de uma mulher


solitária cujo cotidiano parece não caber em sua presumível normalidade, ganhando contornos
ora patéticos, ora fantásticos, ora trágicos, ora absurdos. Confinada em seu apartamento no
alto de um prédio, uma mulher isolada gera, compulsivamente, um mundo imaginado. O
zelador e a faxineira do prédio são os únicos personagens que parecem compartilhar sua
existência presente. O silêncio é uma companhia difícil, ruidosa. A memória também. Em
seus devaneios os tempos vividos e fabulados se misturam. Tudo parece confiná-la cada vez
mais a uma solidão povoada de fantasmas. Ela quer uma casa nova, uma existência nova e
luta, inutilmente, contra cada partícula de sujeira ou insetos que entram pela janela, invadindo
sua casa-corpo. É o último dia do ano. Da janela, ela comemora o ano vindouro com uma
melancólica e patética alegria. As lembranças da família, do homem amado, dos filhos que
partiram retorcem a sua memória. A noite é um mundo selvagem, perturbador. Ela dorme
embalada pelo ranger das vigas do prédio. Por fim, encorajada pela virada do ano, ele sobe ao
telhado do edifício e se lança em um vôo sobre a cidade... Estes são os alicerces de nossa
história46.

O primeiro título, Traços, surgiu antes mesmo do espetáculo e de sua concepção, pela
necessidade de um nome, na feitura do projeto para concorrer ao prêmio Myriam Muniz de
estímulo à montagem47. Não quis usar o nome da obra de Ana Miranda, pois intuía que esta
nortearia, forneceria as ambiências para o espetáculo, mas não necessariamente as mesmas
palavras, em uma mesma ordem ou composição. O que propunha no projeto era uma espécie
de transcriação, para tomar de empréstimo o conceito de Haroldo de Campos, ligado à
tradução literária. A tradução aqui seria não entre línguas, mas entre linguagens, ou sistemas

46
Este parágrafo, que traz a sinopse do espetáculo, foi escrito em parceria com André Amaro.
47
Este espetáculo foi contemplado com o prêmio Myriam Muniz da FUNARTE, através de uma verba para a
montagem, em 2006.
201

semióticos: da literatura para a cena. Isso certamente redimensionaria, entre outras coisas, o
volume, a seqüência e até o conjunto verbal da obra de origem, já que havia ainda a
perspectiva de tramar na cena diferentes dramaturgias, além da textual. O fato é que,
justamente visando garantir a presença da poesia de Ana na obra cênica, possivelmente
haveria a necessidade de mudanças textuais nesse processo de transposição de linguagens.

Em realidade eu estava no vazio, sem ter idéia do que seria a peça. Alias, não queria
saber, nem projetar nada sobre o espetáculo, já que desejava - e acreditava - que o processo
criativo o descortinaria. Então, pensei que o nome Traços seria um termo meio que “guarda-
chuva”, genérico. Por outro lado o termo remetia à personalidade (personagem,
idiossincrasias) e desenhos (movimento, corpo, espaço), aspectos que eu imaginava que
estariam presentes no trabalho.

Com o processo, sentimos necessidade de recortar melhor o universo da peça, e assim


surgiu o segundo título, Quando os alicerces vergam. Esta frase foi retirada do próprio texto
de Ana Miranda, e, além de serem palavras ditas em cena, cria uma metáfora para a condição
de fragilidade absoluta da personagem. Em português popular, seria algo como “quando a
casa cai”. O fato de a palavra alicerces conter meu próprio nome – Alice - também contribuiu
para a escolha, uma vez que me propus a um trabalho em que estão imbricadas,
voluntariamente, um tanto de características próprias e questões pessoais, em diálogo com as
matrizes taoístas e com os textos de Ana.

Contudo, para nossa surpresa – por não ter sido uma proposição prévia, e nem algo a
que nos forçamos – a noção de traços se infiltrou no trabalho muito além do previsto. Além
dos desenhos que o corpo descreve na cena, que vão ao mesmo tempo mostrando ações e as
metaforizando, num desvendar e diluir contínuo, a idéia de traços se amplia e contamina o
espaço cênico. Nosso cenário é uma composição de traços no espaço: um quadrado de metal
fixo, composto por 13 barras - traços fixos - de sustentação, sendo 8 horizontais e 7 verticais,
e as 4 linhas elásticas - traços móveis, que são manuseadas no decorrer das cenas, culminando
por criar, com as imagens de teia, antena e asa delta, um conjunto de 10 traços, fora os da
estrutura metálica. Estes são: as 8 metades dos elásticos presos às barras de metal verticais,
mais os 2 traços descritos pelo elástico encapado com tecido, que fica entrelaçado ao corpo da
personagem. São os seguintes os desdobramentos de significação dos quatro traços-elásticos,
presos aos alicerces (as barras de metal verticais):
202

1. Varal/ muro/ fio de telefone/ vara de equilíbrio/ teia/ asa delta/ antena
2. Fio de telefone /corda bamba / teia/ asa delta/ antena
3. Linha de costura/ elástico de pular (brincadeira infantil)/ fio de telefone/
teia/ asa delta/ antena
4. Passado amarrado ao corpo/ fio de telefone/ corda bamba do bicho/ box de
banho/ teia/ asa delta/ antena

Esses são os desdobramentos previstos, mas esta lista não inclui as outras possíveis
leituras advindas da recepção. Já surgiram interpretações espontâneas por parte do público
que entenderam o conjunto de elásticos no espaço como labirinto, ringue de boxe ou cama de
gato, por exemplo.

Além disso, o conceito que moveu o trabalho da artista Maria Luiza Fragoso foi o de
objetos-traços, ou seja, peças que - ainda que identificáveis como utensílios com uma função
principal ou original presumível - mantivessem características mutantes, propiciando uma
espécie de transformação de sentidos, a partir da relação do corpo com o mesmo - atuação e
manuseio. A seguir trago um detalhamento dos desdobramentos dos objetos-traços, ao longo
da peça. Primeiro consta a descrição do objeto em sua forma básica, em seguida suas
transformações pelo uso:

1. Espanador: bicho de estimação/ espada/ esfregão/ desentupidor/ taco de golfe,


raquete/ metralhadora/ bolsinha/ escova de sapatos/ microfone/ pincel de blush/
falo artificial/ vagina/ buquê de noiva
2. Elástico solto: lençol, cama e espaço do corpo/ fio dental/ aparelho de ginástica/
fita métrica/ prendedor de cabelo/ terço/ cama de gato/ janela/ toalha/ chicote/
porta da noite/ cama/ base da antena/ base da asa delta
3. Balde: prisão de poeira-inseto/ banco/ capacete/ móvel jogado pela janela
4. Bacia: cabeção/ escudo/ recipiente de coisas usadas/ móvel jogado pela janela
5. Sapatos: telefone/ sabão/ agulha/ mata-inseto ou espanta-poeira
6. Livro: abajur/ isqueiro/ bolsa/ garrafa com bebida/ porta-vômito
7. Papel: carta/ cigarro de maconha/ canudo de cocaína/ batom/ perfume/ monóculo/
zarabatana/ taça/ cigarro/ corneta/ papel amassado jogado pela janela
8. Camisa: homem/ composição das imagens na seqüência do varal, como montanha,
jaula, pássaro, corpo jogado do precipício, casa, igreja, etc.
9. Saia/ recipiente onde se cogita derramar água suja/ filho
203

Afinal menciono alguns dos traços idiossincráticos da personagem, desenhados a


partir das matrizes taoístas em diálogo com as mulheres descritas – e/ou por mim projetadas –
na obra de Ana Miranda. Frisando que a perspectiva que moveu o trabalho de composição da
personagem passou ainda por confrontá-la com questões minhas, questões do feminino em
mim, de minha ancestralidade – e aí vale enfatizar a memória/fantasma de minha avó paterna,
que havia recém-falecido quando montamos a peça. Ao longo dos anos ouvi diversas
referências a semelhanças entre mim e minha avó. Algumas me agradavam, outras não. A
personagem de Traços é fortemente contaminada pelo desnudamento e implicação de mim
mesma no processo, o que em alguns momentos do processo me trouxe certa dor, e em outros
momentos sensação de libertação.

O que importa aqui é dizer que em nenhum momento empunho esta personagem como
algo fora de mim, como uma construção alheia à minha própria experiência. Não empresto
meu corpo para que outra construção ontológica ou psicológica ganhe vida. Tampouco se
trata de uma auto-exposição generalizada, ou apresenta qualquer filiação ao psicodrama ou
demais terapias. Novamente, nos trânsitos pelos entre-lugares, nos “nós” que mobilizam
intensidades, nós que são as amarras, couraças e impasses por um lado, mas que são também
aquilo que movimenta a trama, o fiar. “Nós” que denotam os laços do tecer e da
multiplicidade de encontros: meu corpo e o tao, e Ana, e as mulheres de Ana, e Clarice, e
André, e Ciane, e Lupa, e Malu, e Bia, e minha mãe, e minha avó, e minha filha, e meu filho,
e os homens que habitaram minha vida, e o público, e, e, e, e... É visível a relação entre esta
abordagem e diretrizes da arte da performance, ou a perspectiva grotowskiana, por exemplo,
ainda que guardadas devidas proporções.

Com esses nós se bordou a personagem, que, por sua vez apresenta um conjunto de
traços característicos próprio, que não necessariamente dizem respeito a minha pessoa.
Traremos estes traços aqui hipoteticamente associados às cinco forças descritas em wu hsing,
apresentada na seção 1.2.c:

FOGO
Emoção associada: Alegria
Traços da personagem: Euforia, vaidade, prazer, excessos.

• TERRA
Emoção associada: Obsessão
204

Traços da personagem: Compulsão, saudade, culpa, TOC48.

• METAL
Emoção associada: Tristeza
Traços da personagem: Vazio, solidão, melancolia, depressão.

ÁGUA
Emoção associada: Medo
Traços da personagem: Fantasmas, insegurança, pânico, baixa auto-estima.

MADEIRA
Emoção associada: Raiva
Traços da personagem: Libertação, revolta, impulsividade, impaciência.

Quanto à sonoplastia do espetáculo, cabe dizer que esta também flui ao longo do
espetáculo na perspectiva de wu wei, se desdobrando em diferentes timbres, ritmos, funções.
Lupa produz sons que por vezes explicam ou complementam ações, por vezes simulam vozes
que dialogam com a personagem, por vezes acentuam climas ou criam atmosferas, além de
acompanhar os momentos de canto. Como em uma perspectiva meyerholdiana, aqui a
gestualidade e a música (ritmo) estruturam-se de forma altamente imbricada, e ainda, “o
elemento musical significa para a economia do espetáculo muito mais que uma base de
atmosfera para o desenvolvimento da ação dramática” (Cavaliere, 1996:119)

Ainda em relação à música do espetáculo, vale mencionar que algumas das canções
que compõem o espetáculo fizeram parte de minha própria história pessoal. É o caso de On
my own, de Irene Cara e Nikka Costa, e de Hi Lili hi low!, composição de B.Kaper e
H.Deusch, com versão brasileira de Haroldo Barbosa. A primeira, presente na cena 15:
“Espelho 2 + canto 2” marcou minha adolescência e a segunda, que era cantada para mim
pelo meu pai, durante minha infância, compõe a cena 24: “Livro + canto 3”. Já Boi da cara
preta, de domínio público, é uma música que eu própria cantava para meus filhos ao colocá-
los para dormir, e volta aqui na cena 32: “Filhos + canto 5”. Solidão de Tom Zé, foi uma
sugestão de Lupa. Estávamos procurando uma música para encerrar o espetáculo, na imagem
do vôo da cena 38: “Asa Delta + canto 6”, e ele lembrou que esta canção falava sobre vários
elementos presentes na peça: solidão, poeira, telefone que toca e é engano, além de mencionar
que quem perde o telhado, em troca recebe as estrelas - numa clara alusão à saída de um
confinamento. A música que a personagem canta enquanto dança com a camisa, na cena 12:

48
Transtorno obssessivo-compulsivo.
205

“Lavação 2 + canto 1”, Dream a little dream of me, de Gus Kahn, Wilbur Schwandt e Andres
Fabian, foi escolhida por mim em pesquisa de temas de cinema, que remetessem ao amor
romântico e idealizado. Além dessas, a personagem toca em uma corneta a melodia de Adeus
ano velho, de domínio público, enquanto tenta se equilibrar numa corda bamba, na cena 27:
“Corda bamba + canto 4”. Os trechos dessas músicas, os quais são cantados no espetáculo,
estão transcritos no item “Dramaturgia”, em anexo.

Chamo atenção para a característica de impermanência49 que se observa nas dinâmicas


do cenário, dos objetos, dos estados da personagem, do som e das ações físicas na peça. O
fluxo e a mutabilidade desses elementos em cena seguem uma lógica do devir, do wu wei,
ainda que isso não tenha sido buscado de forma forçosa – como, aliás, pede a sabedoria: agir
sem agir, ação sem coação, co-ação, sem coação. Penso que chegamos a um trabalho onde
não se fala sobre o tao, ou sobre as matrizes taoístas, mas que está prenhe desses princípios,
muito mais do que poderíamos supor quando nos propusemos a essa investigação. Princípios
do tao, furtiva e intensamente, sem que tentássemos agarrá-los, se incorporaram e nortearam
toda a nossa encenação.

Os traços-fios que materialmente vão surgindo e transfigurando o espaço podem ser


entendidos, de certa forma, como fios-guia, vetores de sentido (Pavis, 2005) que vão
deslindando a lógica interna do espetáculo, ou sua incoerência coerente (Barba, 1994). Por
outro lado, podem fazer referência à noção de linhas em Guatarri e Deleuze (1995), já que
funcionam, ora como linhas de estratificação e significação, ora como rupturas a-
significantes, linhas de fuga que desterritorializam um sentido, por exemplo, remontando ao
vazio, para, daí, detonar novos processos de significação.

Em que pese seu caráter geométrico e visualmente não-orgânico, distinto da figura


botânica do rizoma, a presença dessas linhas, e as tramas que com elas se configuram no
espaço, podem nos remeter a outros aspectos do pensamento rizomático. O que elas
atualizam, por exemplo, são os entre-lugares que habitam e desestabilizam esse cubo
aparentemente frio e estático. Espacialmente falando vão ficando em evidência, não mais os
pontos de onde saem as linhas, como era no início do espetáculo - em que os próprios objetos
ocupavam e destacavam esses lugares de polarização - mas os espaços intersticiais, caminhos

49
Noção do Budismo, que se relaciona com o caráter cíclico da vida, com os movimentos de existência e
transformação ou finitude de todos os fenômenos. E, assim, se relaciona com a idéia chinesa de wu wei, e com a
noção filosófica de devir.
206

que se vão revelando por meio de uma cartografia ininterrupta produzida com o corpo, e pelo
corpo no espaço.

Os traços no espaço, bem como a transformação contínua que o manuseio promove


nas re-significações dos objetos-traços, estão relacionados à noção de wu wei, anteriormente
já associada à de devir. Essas metamorfoses seguem a eficácia e a lógica do fluxo e da não
fixação identitária. Da mesma forma, as alterações de ordem corporal se dão por devires de
matrizes ou células expressivas: estados, ritmos, posturas, etc. Há ainda um incessante re-
instalar de vazios na cena, seja por meio de longos silêncios textuais, pelas rupturas de
sentido, pela polissemia que a cena comporta. Dinamicamente, como nos emblemas yin yang,
momentos de excessos se esvaziam, para em seguida irem se preenchendo de novos sentidos,
contaminados por sentidos anteriores, mas dobrando-se sobre estes. Temos aí cenas, corpos e
imagens que criam dobras no tempo e no espaço, imprimindo outras possibilidades de
significação em constante repetição e transformação50. Como se vê, a cena, assim como o
processo, acabou impregnada pelos princípios do tao.

A dinâmica yin yang está presente em vários aspectos de nossa construção cênica. A
seguir listo uma série de duplas que funcionam, no decorrer da peça, segundo a lógica do
Anel de Moebius, já abordada:

• Corpoespaço
• Sujeitobjeto
• Tragicomédia
• Gritosilêncios
• Excessosvazios
• Geometrcorgânico
• Verdevermelho
• Sutilezasexplicitudes
• Fluxoanti-fluxo

Cada um dos dois registros dos pares acima listados ora se alternam, ora transitam em
devir com seu duplo, criando outras configurações nos espaços-entre. O que se produz nestas

50
Sobre a idéia de repetição e transformação, conferir o estudo sobre a perspectiva de trabalho de Pina Bausch,
de Ciane Fernandes (2000). Ainda sobre essa perspectiva conferir a formulação deleuziana sobre diferença e
repetição (2000).
207

encruzilhadas-usinas não é um terceiro lugar da ordem da superação ou síntese de suas


paridades de origem, mas multiplicidades da ordem da mestiçagem e das dobras.

Aqui cabe remeter à composição paradoxal proposta por Meyerhold. Segundo Picon-
Vallin, é nos espaços entre que o encenador realiza sua poética:

Entre a vivacidade da arte popular e o refinamento da arte erudita [...] Entre a eternidade do
teatro de feira e a atualidade dos tablados construtivistas. Entre o trágico e o cômico, entre o
familiar e o estranho, entre o cômico e o horrível, entre o belo e o monstruoso [...] Organizar
seu corpo, pensar sua atuação e estrutura-la em função dessa série de oposições [...] são
operações geradoras de distâncias variáveis, necessárias à criação – para o espectador – de
dispositivos de visão ativa, não fusional, estrangeirizante51. (2006:34, grifos no original)

A estes – e outros descritos por Picon-Vallin, somam-se contrastes mencionados por


Cavaliere, como o entre o plano da dramaturgia textual e do jogo do ator e da encenação, e a
dialética entre surpresa alegre e assombro, por parte da recepção (1996:90). A noção de
grotesco, bastante presente nos postulados de Meyerhold, está associada a essa composição
paradoxal, ao passeio pela alternância de registros polares, e ao efeito bizarro e de
exacerbação que tal jogo promove.

Com os jogos ambivalentes e contrastantes da poética meyerholdiana somos


novamente levados ao Anel de Moebius, que, como em uma dinâmica yin yang, articula
ambiguamente a reversibilidade e interdependência entre registros polares. Dentre as
diferentes composições paradoxais mencionadas acima, algumas encontram eco especial em
nossa encenação. Uma delas é a que articula o jogo entre as dramaturgias de texto e de cena
(corpo, ações, relação com espaço e objetos, sons, etc.), ao mesmo tempo em que eleva o
estatuto da segunda a tão enunciadora quanto a primeira. Esta perspectiva, por sua vez,
incrementa o que, em Meyerhold, vai assumir um lugar político: o impacto da construção
cênica sobre o espectador. Diz Picon-Vallin:

Meyerhold designa sua pesquisa sob o termo genérico de “grotesco” – procedimento ou estilo
– que ele define sintomaticamente por seu impacto sobre o público, pelo “modo constante pelo
qual ele arranca o espectador de um plano de percepção que ele mal havia acabado de
adivinhar, levando-o para um outro, que ele não esperava”. Esse deslocamento constante dos
planos de percepção é tributário de um jogo de contradições, oposições, coerções, que articula
simultaneamente a expressividade corporal do ator e seu projeto significante. (2006:35)

51
Esta perspectiva “estrangeirante” é responsável pela aproximação que alguns estudiosos fazem entre a obra do
encenador russo e a de Brecht. O efeito de estranhamento é relacionado ainda à idéia meyerholdiana de pré-jogo
(ou pré-interpretação) por alguns autores. Não é à toa que Stanislávski vai ser ora polarizado com um, ora com
outro, ainda que ambas as dicotomias já encontrem importantes desconstruções por parte de críticos e pensadores
da cena.
208

Em Traços, assim como na perspectiva do encenador russo, vimos anteriormente


como a polissemia cênica vai provocar incessantes desterritorializações e atualizações de
sentidos junto ao espectador. Essa disposição - e favorecimento - de uma recepção, em última
instância, singularizada traduz a vocação ético-estética da pesquisa, também sob esse aspecto.
Promover vetorizações de significação que garantam vazios propiciadores de apreensões
particularizadas é abraçar e respeitar o imaginário e o potencial de fabulação do público, além
de favorecer associações, desdobramentos, emergência de memória involuntária, escolhas,
etc.

Outra dupla articulação bastante presente em Meyerhold, com a qual a cena de Traços
dialoga é a dialética entre os registros trágico e cômico. Especificamente sobre essa
reversibilidade é interessante transcrever um trecho do dramaturgo Friedrich Dürrenmatt, cuja
tradução que segue foi encontrada no estudo de Ciane Fernandes sobre Pina Bausch
(2000:91):

A tragédia pressupõe culpa, desespero, moderação, lucidez, visão, um senso de


responsabilidade. No agressivo jogo de nosso século, nesta recaída da raça branca, não há
mais indivíduos culpados ou responsáveis. Ninguém poderia fazer nada a respeito, e nem
gostaria. De fato as coisas acontecem sem que ninguém em particular seja responsável por
elas. Tudo é arrastado e todos são pegos em algum ponto no fluxo dos eventos. Somos todos
coletivamente culpados, coletivamente atolados nos pecados de nossos pais e antepassados.
Somos as crianças de nossos ancestrais. Este é o nosso infortúnio, mas não nossa culpa [...]. A
comédia é a única coisa que ainda pode nos atingir. Nosso mundo tem levado ao grotesco,
tanto quanto à bomba atômica. [...]. E, ainda assim, o grotesco é apenas uma forma de
expressar de maneira tangível, de nos fazer perceber fisicamente o paradoxal; [...]. Mas o
trágico ainda é possível, mesmo que a tragédia pura não o seja. Podemos atingir o trágico a
partir da comédia, podemos trazê-lo como um momento amedrontador, como um abismo que
se abre de repente. (Dürrenmatt, in Fernandes, 2000:91)

Dürrenmatt também articula a tragicomédia ao grotesco, provavelmente remetendo a


Meyerhold. Interessante notar que a impossibilidade da tragédia, conforme explicada pelo
dramaturgo, pode ser claramente associada a um trecho da dramaturgia de Traços, onde a
personagem interrompe uma Ave Maria para se dirigir à Virgem e admitir:

...rogai por nós pecadores... eu sei que eu sempre fui fiel aos meus pecados, mas é que eu
nasci com eles... eu repito todos os pecados na minha mãe e do meu pai e dos meus avós e dos
avós dos outros, eu amo os pecados. Não me castigue, minha Santa, a senhora é mãe, a
senhora sabe como é difícil, eu tentava acertar, mas eu não conseguia... (vide anexo A.2
Dramaturgia)

Há aí claramente um misto de sentimento de culpa e de consciência de também ter


sido vítima de circunstâncias que a levaram a ser/estar como agora. A esse momento segue,
209

inclusive, a cena em que a personagem joga (ou lembra, ou manifesta o desejo reprimido de
jogar) o filho bebê pela janela, enquanto canta docemente uma cantiga de ninar. Outro duplo
registro de nossa cena: entre o doce e o monstruoso.

Outro aspecto importante nas construções tragicômicas é a presença de certa auto-


ironia. Revela-se aí a capacidade de rir-se de si mesmo, dos próprios dramas. A constatação –
não sem algum sarcasmo - do quanto são risíveis e patéticas determinadas atitudes e posturas
(com as quais, mesmo que não sejam exatamente as nossas, nos identificamos), pode nos
ajudar inclusive a lidar melhor com elas. À minha disposição – muitas vezes dolorosa - de
desnudamento ao longo do processo criativo, seguiu a possibilidade – em grande medida
libertadora – de rir-me amorosamente de mim mesma, das muitas mulheres que me cercam,
do ser humano, enfim.

Cumpre registrar que ao falarmos em cômico e trágico aqui, dilatamos os conceitos


para além de seus referenciais dramatúrgicos, e das manifestações máximas que poderiam
provocar no espectador (gargalhadas ou choro, por exemplo). Digo isso por que, em que pese
a platéia não necessariamente “se descabelar de chorar” ou não “se acabar de rir” ao assistir
Traços, a presença tanto de densidade trágica, quanto de humor é constantemente apontada
pelo público. O que nos remete à fórmula da cena meyerholdiana, trazida em Picon-Vallin: a
de um “trágico com sorriso nos lábios” (2006:20).

Se for verdade que teatro é conflito, como se costuma dizer, nenhum lugar é mais
apropriado para que este elemento se produza do que as fronteiras, ou espaços onde se dão os
encontros entre diferenças. Nos jogos entre contrastes ocorrem conflitos. E também
apropriações, fusões, heterogêneses. Segundo Picon-Vallin, Meyerhold abraça a perspectiva
paradoxal em sua cena, por que entendia que “é por meio de uma luta de forças em jogo, e
numa formulação conflituosa, que a atuação alcançará seu mais alto nível de expressividade,
encontrará sua acuidade” (2006:65).
210

Tal composição por contrastes, em Meyerhold, está presente tanto na dimensão da


construção cênica, quanto na estruturação corporal do atores - aspectos estes investigados na
biomecânica. Também na construção física da personagem de Traços estão inscritas várias
oposições ambivalentes:

• Base estreitalarga
• Postura côncavaconvexa
• Ênfase para altobaixo
• Joelhos para dentrofora
• Estado eufóricodepressivo
• Sentimentos paradoxais como Amoródio, vaidadinsegurança, etc.

Por fim creio ser possível dizer que construímos uma cena onde os jogos entre o
oculto e o evidente, o explicável e o inexplicável, o compreensível e o incompreensível
brincam e provocam o espectador ao exercício de criar junto, se projetando, fazendo escolhas,
enfim, fabulando nos vazios. O que não quer dizer que nosso espetáculo não siga uma
narrativa. Mas cabe dizer que esta é tecida por um conjunto de dramaturgias, que ora se
corroboram, ora se confrontam, ora se negam, mas que, no conjunto, contam, sim, uma
história. Essa trama dramatúrgica se apóia principalmente nos seguintes fios:

• O texto,
• O corpo e as ações físicas,
• O espaço e suas transformações,
• Os objetos e suas transformações,
• O som.

Como ponto culminante, talvez, dessa trama de fios dramatúrgicos, pode-se


mencionar o encontro de fios elásticos que, no fim do espetáculo, convergem para uma
espécie de “ponto de fuga”. A imagem produzida no agrupamento dos traços remete a esse
recurso técnico do desenho em perspectiva, e, ao mesmo tempo, à perspectiva de um “ponto
de fuga” metafórico: o vôo sobre a cidade... Um passeio de asa delta? Um suicídio? Uma
libertação? Todas estas respostas são bem-vindas, assim como outras que a elas ainda se
somarão.
211
212

6.3 Desdobramentos ulteriores

Acho importante dizer que, após minha volta para Brasília em dezembro de 2005, tive
a oportunidade de refinar uma abordagem metodológica baseada em estratégias processuais
das duas etapas práticas anteriormente mencionadas: na disciplina Técnica de Corpo para a
Cena III, na UFBA, e como espetáculo Traços. Ao longo dos últimos quatro semestres como
professora substituta na Universidade de Brasília (1 e 2/2006 e 1 e 2/2007), à frente da
disciplina Interpretação I (quarta da cadeira de interpretação, precedida pelas Oficinas Básicas
de Artes Cênicas I e II e por Introdução à Interpretação), vários daqueles princípios
operatórios, que estão sendo usados, vêm se tornando mais claros, e se mostrando bastante
eficazes. A articulação das duas etapas práticas da pesquisa muito contribuiu para o
entendimento progressivo e aplicação pedagógica dos princípios metodológicos
experimentados.

Hoje, a disciplina, como a ministro, está voltada para uma abordagem de interpretação
a partir da ação física. Tendo como principal base teórica para discussão com os alunos o
estudo panorâmico sobre ações físicas, de Bonfitto (2002) – o qual frequentemente aciona
outras pesquisas por parte dos alunos, a disciplina faz uso de matrizes taoístas, entre outras
eventuais, em perspectiva que promove tanto uma desconstrução de padrões corporais dos
alunos, como a criação de uma cena não-realista. Como a disciplina anterior aborda técnicas
da primeira fase de Stanislávski, que parte das Forças Motivas da Vida Psíquica – sentimento,
mente e vontade - como desencadeadoras do trabalho do ator, nossa abordagem funciona
como uma transição para uma segunda perspectiva de construção de personagem por parte do
mestre russo: pela via das ações físicas (Bonfitto: 2002, 21-37). Ao mesmo tempo o curso
transita por referências de outras técnicas de atuação, que visam uma composição menos
realista, a de um corpo fictício, como alternativa à idéia de personagem como uma pessoa
(psicológica) fictícia.

O curso está atualmente estruturado em duas etapas, que se seguem a uma fase
introdutória de seminários baseados no livro O Ator-compositor (Bonfitto:2002).
Resumidamente, a primeira etapa consiste em aulas que começam com um aquecimento -
uma série fixa que conjuga alongamentos e posturas a exercícios vocais - repetida
diariamente, seguida de experimentações com matrizes – de origem taoísta e, eventualmente,
de outras referências. Diariamente mantém-se um espaço para seleção, registro e repetição de
células expressivas geradas no dia e anteriormente. Esse momento é permeado de princípios
213

do chi kung, como o gesto de abraçar o centro (mão esquerda sobre o umbigo e direita por
cima), manter os olhos fechados e repassar imaginariamente as células antes e depois de fazê-
lo fisicamente. Treinos de chi kung, propriamente fazem parte apenas de aulas pontuais. Pela
restrição de tempo não trago o treino diariamente.

Assim, ao fim dessa etapa, cada aluno tem uma partitura corporal, com a qual ganha
grande intimidade, pela repetição diária e por experimentar diferentes propostas de
desdobramentos. Esse acervo de possibilidades expressivas é, durante essa primeira etapa,
pesquisado em termos de variações de tempo, peso, amplitude, humor, etc., e ainda sofre
mudanças de significação, em exercícios em dupla ou grupo, onde um aluno faz as vezes de
diretor, e maneja o material dos colegas dentro de determinados contextos (textos ou temas).

A segunda etapa consiste no momento em que o material levantado é confrontado a


um texto dramatúrgico, visando à construção de uma cena. Os alunos se dividem em grupos,
ou eventualmente formam um grande grupo – dependendo do texto escolhido e/ou do número
de estudantes – e são orientados em uma análise do texto, que enfoca questões referentes à
obra como um todo, e a cada personagem em relação à obra. Após a análise são feitas
algumas improvisações em grupo, onde os alunos deixam as construções de sua partitura
dialogar com o texto.

Nesse momento de improvisação os alunos já estão munidos do prévio levantamento


das cenas e ações que compõem a fábula, características de personagem, e já tem apropriadas
algumas partes do texto. Dessas improvisações são coletados momentos considerados
eficazes, ou seja, onde a articulação entre o texto ou ação (necessidades dramatúrgicas) e as
células expressivas, tenham contribuído na vetorização dos sentidos - significação não
necessariamente unívoca ou ilustrativa – da cena. E a partir daí os grupos passam a levantar as
cenas propriamente. Quando toda a turma está envolvida com uma mesma cena ou texto, eu
os acompanho diariamente. Quando há a divisão da turma em montagens diferentes, uma
primeira proposta de cena é feita entre o grupo, e periodicamente apresentada a mim, que
assumo a função de uma direção geral da cena.

Em relação ao espetáculo Traços, podemos nos referir a duas espécies de


desdobramentos ulteriores. O primeiro diz respeito às apresentações que o espetáculo vem
fazendo, às quais me refiro, a seguir, por meio de tópicos, que descrevem o histórico do
espetáculo até então.
214

• A peça Traços ou Quando os alicerces vergam teve sua estréia em 12 de outubro de


2006, no Teatro Caleidoscópio, em Brasília. Após uma primeira temporada de dez
apresentações, com ótima repercussão de público e crítica, o espetáculo foi apontado
como uma das melhores montagens brasilienses do ano. Nesse momento o espetáculo
foi objeto das duas críticas que seguem, a primeira publicada, a segunda não:
Jorro de Criatividade, por Sérgio Maggio

Alice Stefânia emociona e surpreende em belo espetáculo.


A concepção do teatro como caleidoscópio inunda o palco no espetáculo Traços ou
Quando os Alicerces Vergam. Com Alice Stefânia, alguns objetos de cena e o
músico Lupa na sonoplastia, André Amaro monta uma das peças mais criativas da
temporada 2006 em Brasília. A cada seqüência, esses elementos constroem
inusitadas possibilidades de interpretação para a platéia. O mote parte da obra
Noturnos, de Ana Miranda. Mulher solitária que vive entre o limiar de ações físicas
do cotidiano e do delírio. Trabalha com lembranças que são recriadas de forma
inesperada, a partir de dramaturgia de movimentos. Numa das mais belas seqüências,
Alice Stefânia contracena com uma camisa masculina, valsa com a peça e recompõe
os carinhos do amante. Em outra, banha-se em bacia, em sincronia com os sons
criados ao vivo por Lupa. O texto de Ana Miranda pontua o espetáculo, sendo parte
de dramaturgia criada no somatório dos elementos. Quando surge, é imperativo pela
fluidez e beleza com que é interpretado por Alice Stefânia. A atriz brinca com o
corpo numa leveza que reflete seus estudos acadêmicos (ela faz doutorado na Bahia,
onde pesquisa relação entre movimentos opostos, como yin/yang, quente/frio,
seco/úmido). Com a ajuda de elásticos (aqueles com que as meninas brincam na
infância), traça mosaicos curiosos e emocionantes dentro de cenário inteligente, que
se molda à proposta. Realçado numa iluminação narrativa e precisa de André
Amaro, o espetáculo reapresenta a Brasília Alice Stefânia, atriz de infinitas
possibilidades, que ao final canta lindamente Poeira Leve, de Tom Zé. (Sérgio
Maggio, crítico de teatro do Correio, 28 de outubro de 2006, capa do caderno de
Cultura)

Sobre Traços, por Chico Simões

Chovia, pensei que não haveria público, mas quase não encontro ingresso, bom sinal,
Teatro Caleidoscópio, pequeno, lotado, aconchegante. Chamou-me atenção o cartaz,
o vermelho e o preto, pé de galinha? Linhas... Traços... Ou Quando os Alicerces
Vergam, vamos ver: adaptação de obra literária... Monólogo... Mulher de meia idade,
solitária, delirando...
A atriz, Alice Stefânia, pouco a pouco desenha com o corpo e na relação com os
objetos ações dramáticas que afastam qualquer lembrança de tantos outros
monólogos e adaptações que tenho visto, Alice constrói, contraditoriamente, com o
fio condutor, um labirinto onde, enquanto a personagem se perde, o espectador vai se
encontrando no caminho traçado com rigor e simplicidade, marca já conhecida, do
diretor, também ator, André Amaro provando que por mais que se espere o teatro
ainda pode surpreender, teatro que se faz a muitas mãos, mas que é arte do ator e
Alice o exerce com completo domínio; de corpo, voz e ainda cantando bem, muito
bem. Cenário e figurino, nem seguem o cotidiano formal nem exageram no "teatral",
antes, parecem ser objetos de arte, modelos desenhados, a propósito, pela artista
plástica Malu Fragoso, compõem, com o corpo da atriz e o espaço cênico, um belo
quadro, um apartamento, um quadrado. Da janela, uma luz, almas vivas, vizinhos
que não vemos, nem ouvimos, mas sabemos: estão lá. O diretor também está lá,
215

mantendo a tensão necessária com o espectador, sem perdê-lo e sem envolvê-lo


demasiadamente em uma história que ele veio apenas “assistir”.
A trilha sonora merece comentário à parte, aliás, a trilha faz jus ao significado:
senda, vereda, caminho sonoro por onde o teatro se passa. Lupa Marques, o mago
da Casa de Farinha, literalmente “encantado” segue cada ação, cada gesto da
personagem, improvisando músicas e sons onomatopéicos como convém a quem
muito sabe; in-pró-visar.
A cena em que a camisa do marido ausente é lavada e pendurada no varal é
exemplar, nela o teatro salta aos sentidos do espectador mais exigente, sons e
imagens bem escolhidas propõem, sem impor, leituras particulares de símbolos
universais reunidos em uma seqüência dramática, precisa e inteligente; lavar roupa
(purificar) pendurar no varal (expor a luz, espiar) e interagir com a peça estendida
(comungar) criam uma atmosfera perfeita para o texto que evoca o sacrifício da
personagem que morre e ressuscita a cada instante. O jogo entre a atriz e a camisa
pendurada no varal, é teatro de animação para bonequeiro nenhum botar defeito,
onde a camisa se transforma no dono, que salta da memória da personagem para os
sentidos do espectador, materializado como boneco de manipulação direta. Isso é
teatro, sem os excessos histriônicos tão comuns na cena contemporânea mundial,
teatro essencial, sem mais adjetivos.
Bsb, 25/10/2006, Ainda é tempo! Ainda há teatro! (Chico Simões,pesquisador de
cultura popular, bonequeiro e articulador cultural em Brasília, em crítica
espontânea, enviada por e-mail. 25 de outubro de 2006)

• Em maio de 2007, a peça foi reapresentada em nova temporada em Brasília. Em três


semanas e nove apresentações, o espetáculo obtém novamente importante retorno de
público.
• Em julho o espetáculo esteve em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, em
Salvador, Bahia. Em uma curta temporada (quatro apresentações) a peça ganha
reconhecimento do público e destaque na imprensa baiana.
• Em setembro o espetáculo participou da edição 2007 do Festival Internacional Cena
Contemporânea, um dos mais expressivos festivais do Brasil, com duas apresentações.
Na ocasião recebeu o seguinte comentário, produzido em oficina de crítica promovida
pelo festival:
Música afinada - Por James Fensterseifer

Trilha sonora, iluminação e interpretação em perfeita sintonia conduzem o


espectador no espetáculo multifacetado, Traços ou quando os alicerces
vergam. O músico Luciano Campos (Lupa), que acompanha a cena ao vivo,
impressiona com a conexão precisa e a qualidade dos sons que produz. A
trilha cria diálogo direto com a atriz Alice Stefânia, tirando o espetáculo da
alcunha de monólogo, fazendo com que o som seja parte integrante da
interpretação.
A incisiva iluminação de André Amaro (que também assina a direção) reforça
o relacionamento entre os elementos, ressaltando de forma considerável a
atuação. A atriz Alice Stefânia está generosa em cena, revelando qualidades,
mostrando ser material humano de múltiplos recursos. Por vezes, nos toca
216

com uma profunda dramaticidade de expressões e gestos. Outras, enquanto


canta, pela suavidade de sua voz.
A bela e precisa performance somente é maculada por alguns pontos de
fragilidade na costura das facetas dramáticas e pela sensação de
distanciamento provocada pelo cenário – uma gaiola de ferro. (James
Fensterseifer, diretor, iluminador e produtor, setembro de 2007)

• Em 19 de outubro de 2007 apresentamos a peça no XV Festival de Monólogos de


Teresina, Piauí, um dos mais expressivos do gênero no país, e primeiro evento
competitivo do qual participamos. Dos oito prêmios oferecidos o espetáculo ganhou
sete: melhor espetáculo pelo júri oficial, melhor espetáculo pelo júri popular, melhor
direção (André Amaro), melhor intérprete (Alice Stefânia), melhor sonoplastia (Lupa
Marques), melhor iluminação (André Amaro) e melhor cenário (Malu Fragoso).
• Ainda em outubro, no dia 28, o espetáculo participou da Mostra SESC de Teatro
Candango promovida pelo SESC. Por sua participação na Mostra, o espetáculo
ganhou prêmio de melhor sonoplastia (Lupa Marques), além de ser indicado para as
categorias de melhor iluminação (André Amaro) e de melhor atriz (Alice Stefânia).
• O espetáculo recebeu convite para o II Encuentro de Teatro Contemporâneo, que será
realizado, em Lima, Peru, por ocasião dos 25 anos do Grupo Maguey, um dos mais
atuantes na capital peruana. O evento acontecerá no mês de novembro, quando
faremos duas apresentações, nos dias 17 e 18.

A segunda dimensão de desdobramentos se refere à minha relação com a peça, e às


alterações que a mesma vem sofrendo. Em perspectiva de work in progress o espetáculo está,
em certa medida, aberto para alterações e atualizações constantes. Para se ter uma idéia houve
uma série de trocas e inserções musicais, alterações, incrementos e acréscimos de ações
físicas, além de inúmeras mudanças sutis, praticamente a cada apresentação. Não vale a pena
mencioná-las pontualmente, até porque, além de sutis, não encontram uma justificação teórica
ou racional para se darem. São tão somente minhas estratégias de atriz, para manter o
espetáculo e a personagem vivos em mim, para avivar os preenchimentos das ações, para
renovar o meu fôlego no trabalho. Processo esse altamente estimulado pela prática do chi
kung anteriormente a cada apresentação.
217

6.4. Fotos
Seguem fotos de ensaios e do espetáculo. O equipamento de que dispunha não era
apropriado para as fotos em movimento. Assim, seguem fotos de momentos mais estáticos,
que são as que ficaram um pouco mais nítidas, e ainda assim, algumas têm problema de foco.
Todas as fotos dessa seção foram tiradas por André Amaro. Infelizmente não há fotos da
disciplina, pois, à época só dispunha de uma câmera analógica antiga, a qual danificou o filme
com o qual fiz os registros do processo.

Imagens de meu aquecimento durante os ensaios:


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219
220

Aquecimento antes de entrar em cena:


221
222

Imagens de treinos de chi kung, durante os ensaios:


223

Em chi kung espontâneo:

Imagens de treinos de chi kung, e chi kung espontâneo, antes de entrar em cena:
224

Experimentando matrizes

Matriz profundosuperficial:
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Matriz calmagitação:

Matriz medoraiva
226
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Matriz tronco membros:


228

Outras imagens de ensaio:


229

Imagens do espetáculo:
230

Cena 5: “unhas”

Cena 1: “despertar”

Cena 2: “janela 1”

Cena 6 “bicho 1”
231

Cena 6 “bicho 1”

Cena 7: “poeira (perigo minúsculo) 1”

Cena 9: “lavação 1”
232

Cena 11: “poeira (perigo minúsculo) 2”

Cena 13: “varal + traço 2”


Cena 13: “varal + traço 2”
233

Cena 14: “costura”

Cena 15: “espelho + canto 2”


Cena 13: “varal + traço 2”
234

Cena 21: “bicho 2”

Cena 17: “poeira (perigo minúsculo) 3”


Cena 23: “telefone 3”
235

Cena 38: “asa delta + canto 6”


Cena 35: “noite + traços teia”

Detalhe da teia
Cena 36: “telhado”
236

ASPECTOS CONCLUSIVOS

Sinto-me chegando ao fim de um início. Início de uma pesquisa que apresenta uma
vasta gama de desdobramentos possíveis ainda por advir. Início de história de um espetáculo
que, me parece, ainda muito circulará, e se transformará, e me transformará. Nos primeiros
passos de uma vida de trocas prazerosas, ensinando e aprendendo com artistas em formação, e
com parceiros de pesquisa. Como num Anel de Moebius, já sei que os fins abrigam
princípios, assim como nos princípios já se deixavam antever alguns fins.

Então, volto aos princípios, e refaço agora essa trajetória, revendo-a com um olhar
implicado, mas renovado. Minhas motivações originárias foram de ordem muito íntima e
potente. Sentindo-me afastada de um teatro que me realizasse enquanto artista-pessoa, movi-
me em busca de uma pesquisa que pudesse me trazer, para além de um título, um sentido. Ou
vários.

Foi um prólogo difícil, que muito me custou psicológica e emocionalmente.


Inicialmente não tinha qualquer clareza de como rumar. Dessa forma me vi, num primeiro
237

momento, tateando às cegas em busca de referências que me ajudassem nesse meu encontro
comigo, através de uma tese de doutorado em teatro. Após uma série de equívocos, dúvidas,
errâncias e muita vontade, tratei de focar o tao como a matriz norteadora desse meu caminho.
Caminho, sentido, fluxo subjacente, curso do rio... São, inclusive, algumas traduções para o
tao.

Acercar-me de princípios de uma tradição oriental ancestral, sendo eu uma mulher


brasileira do século XX, requereu cuidados. Não pude me furtar à compreensão da
complexidade política que aí se implicaria. Ouvir, por exemplo, a colega – agora já doutora -
Paula Vilas,52 tanto em diálogos informais sobre nossas pesquisas, quanto ao longo da defesa
de sua tese (Vilas, 2007), frisar com intensa dignidade e profundo respeito a importância de
uma atitude de “apropriação sem expropriação”, de “reconhecimento sem saqueamento”, foi
bastante significativo para mim. As provocações do professor Fernando Passos alertando-me,
de forma bem humorada, do perigo de eu cair num registro “perua new age”, também muito
contribuíram nessa reflexão. Encontrei em referências como Edward Said e Homi Bhabha,
por exemplo, importantes alertas para esse aspecto de minha investida.

Assim, tratei de me mover ao caminho do meio. Não por encontrar aí o conforto inerte
da não tomada de posição, não para não estar nem de um lado nem de outro. Mas por entender
o meio, com os taoístas e confucionistas, como um lugar de trânsito, potente. Pus-me então na
fronteira desses campos sobre os quais venho trilhando meu caminho: o tao, o teatro, a
filosofia contemporânea, o corpo, a relação ensino-aprendizagem, a conduta ético-estética.
Tentando não esquecer da dupla vocação da fronteira: a de dominação e cooptação, por um
lado, e a de novas configurações identitárias - onde procurei operar - por outro.

A perspectiva de uma articulação ético-estética é talvez o que mais me mobiliza desde


que escolhi o teatro como profissão-vida. Viver a arte como meio para redimensionar lugares
estratificados, sejam os meus, os de meus alunos, os de meus parceiros ou os do público, foi
sempre uma espécie de bússola para mim. Mesmo quando ainda não tinha clareza sobre isso.
Sempre acreditei na potência, ainda que entre a “dor e a delícia”, de implicar minha vida,
minhas questões, meu amor, minha energia, meu corpo, no teatro, visando minha própria
transformação - ou regulação - assim como tentando contribuir para mudanças alheias.
Sempre acreditei em ações micro-políticas, na força de contágio dos fluxos e das intensidades.
52
Paula Vilas ficou alguns dias hospedada em minha casa, quando morei em Salvador. Nessa ocasião, em
diálogos sobre nossas pesquisas, ela muito me ajudou a despertar um olhar mais crítico, especialmente em
relação às trocas inter-culturais.
238

A lida com aspectos do corpo vibrátil, através dos treinos de chi kung, redimensionou
o alcance desse viés. Foi crucial aprender com o taoísmo e com Artaud – teatrólogo que desde
o início de minha vida teatral norteou minha prática -, através de meu corpo e do corpo de
meus alunos, que a percepção da materialidade da energia é algo crucial para a vida e para a
arte. Em especial para a arte que envolve a presença corporal no ato de sua apreciação. E
crucial para fazer a articulação ético-estética.

Logo no início me dei conta de que, mais do que hipóteses, o que me movia eram
conjecturas, inquietações, intuições, desejos. Agora me dou conta de que não cheguei a um
método, pelo menos não no sentido ortodoxo do termo, já que essa terminologia pode remeter
a um roteiro engessado de ações. Creio, sim, ter cartografado processos criativos que partiram
de matrizes específicas, e que lidaram com determinados princípios operatórios, dentro de
uma lógica da eficácia. Estes podem certamente nortear diferentes desdobramentos e
atualizações por parte de outros artistas e pesquisadores, e até por mim mesma.

O imaginário taoísta mostrou-se altamente sugestivo para criação de dinâmicas


criativas e construções expressivas. Os arquétipos ligados ao I ching, por exemplo,
provocaram sobremaneira aos alunos da disciplina Técnica de Corpo para a Cena III. Assim
como os contrastes yin yang, que ao lado da mandala de wu wei, forneceram as sementes
originárias da expressividade corporal que anima o espetáculo Traços.

Além disso, muitas das noções ligadas ao saber taoísta foram percebidas em sua
extrema atualidade, pertinência e abrangência. Várias idéias ligadas ao tao apresentaram
eficácia operatória nas reflexões sobre o corpo, a cena e o zeitgeist contemporâneo. Foi o caso
de wu wei, te, chi, vazio/meio, por exemplo. Os duplos yin yang, por sua vez, além de
operarem como provocadores de corporeidades e parâmetros para gradação dessas
construções, em ambos os processos criativos (a disciplina e o espetáculo), favoreceram ainda
reflexões na desconstrução de modelos dicotômicos.

Inquietei-me com a associação direta, e muitas vezes ligeira, que usualmente se faz
entre um modelo duplo como o yin yang, entendendo-o como necessária e pejorativamente
dualista. Tratei de articular a idéia de que não é o fato de ser dual em si, mas sim o como se
estabelece a relação entre as faces deste par, que irá identificá-lo, ou não, como dicotômico.
Nesse ponto foi importante perceber como mesmo alguns críticos ferrenhos das construções
binárias acabaram, por vezes, caindo em modelos parecidos.
239

A mandala das cinco forças – wu hsing – matriz que primeiro me descortinou as


possibilidades estéticas de referências taoístas no teatro – no início dos anos 90 – estiveram
fortemente presentes ao longo do processo de criação de Traços, fomentando, como vimos,
partituras e sub-partituras que sustentam o espetáculo.

Dentre as conjecturas iniciais ligadas ao wu hsing, havia, ainda, pistas dadas por
Artaud, em Um atletismo afetivo (1993: 129), sobre uma possível localização fisiológica de
emoções, inclusive mencionando a acupuntura como possível meio para esse estudo. Essa
leitura gerou a intuição de que o estímulo a alguns pontos dos meridianos, relacionados aos
órgãos do corpo, pudesse facilitar o acesso a energias afetivas associadas a estes.

Tal investigação teria como base o mapa das cinco energias: terra, fogo, água, metal e
madeira - wu hsing – principal norteadora da medicina tradicional chinesa. A idéia era tentar
promover a vazão e o manejo estéticos dos afetos latentes ligados aos pontos mapeados pelos
chineses, passíveis, talvez, de serem acionados por meios adequados.

Esta proposição não pôde ser experimentada em profundidade, por se tratar de um


processo que demandaria a presença constante de um estudioso da medicina chinesa. Deparei-
me com a necessidade de conhecer muito profundamente não apenas os meridianos, como a
forma de acessá-los – massagens, agulhas, exercícios específicos de chi kung, etc. – para
poder realizar o estudo dessa conjectura de forma mais científica e segura.

Por outro lado, percebi traços de um viés determinista nessa intenção investigativa.
Mapear um caminho para um afeto específico via pontos de acupuntura ou massagem, é
ignorar as diversas e singulares interações e configurações – sempre renováveis - entre cada
corpo e seus afetos, entre cada corpo e seus pontos energéticos. Ainda me parece instigante
incrementar e aprofundar a pesquisa com maior instrumental associado – agulhas, manobras
de massagem, etc. – mas não mais na perspectiva de criar um roteiro preconcebido para
acessar determinados estados afetivos.

O percurso dessa pesquisa desenhou uma trajetória de visitas a diferentes campos de


saberes e fazeres: as matrizes taoístas, as matrizes cênicas, a noção de corpo, a noção de
expressividade, a noção de vazio como re-curso, e a análise dos processos criativos. A
estruturação pela qual me decidi foi a de enfocar cada um desses campos por vez, ainda que
sempre buscando relacioná-los entre si. Isso talvez traga a impressão de que a tese apresenta
240

blocos distintos e independentes de estudo, mas, por outro lado, creio que permitiu uma maior
organização e verticalização em cada um desses campos.

Em que pese essa construção aparentemente não rizomática da tese, penso que,
internamente, as seções trazem diferentes agenciamentos e linhas de fuga – como ocorre na
cena de Traços – e que estes promovem uma intensa inter-relação entre os capítulos.
Passemos agora a re-visitá-los, relembrando o percurso que trilhamos até aqui.

Inicialmente, no capítulo um, foi proposta uma apresentação das matrizes taoístas que
orientaram nossa pesquisa. Buscou-se olhar algumas noções desse universo a partir de
analogias com conceitos do pensamento contemporâneo, o que já vinha sendo esboçado desde
a introdução.

Esse recurso foi usado por um lado para intensificar a minha própria apreensão – que
já ia se dando em nível energético e corporal - desse saber tão distante da minha realidade.
Por outro lado percebi ser possível problematizar certas incompatibilidades entre construtos
teóricos de saberes ocidentais e orientais, ancestrais e contemporâneos, estruturalistas e pós-
estruturalistas, por meio da imbricação dessas fontes. Houve, entretanto, nesse processo, a
preocupação de não homogeneizar esses campos epistemológicos, e a percepção crítica sobre
a própria necessidade – etnocêntrica e acadêmica - de tomar apoio do saber ocidental para
compreensão e até legitimação do saber taoísta.

Ainda no primeiro capítulo tracei meu próprio histórico de aproximação com as


matrizes, e procedi a explanação sobre aspectos de determinados sistemas de classificação
chineses, os quais forneceriam o principal material sugestivo para o exercício criativo. Os
pares yin yang, os trigramas do I ching e as cinco forças de wu hsing, e alguns treinos de chi
kung foram apresentados em linhas gerais, com enfoque naquilo que neles me interessava
enquanto princípios operativos para o exercício expressivo.

O capítulo dois concentrou-se nas referências cênicas dessa pesquisa, a partir de um


levantamento de certas tendências do teatro, identificadas em determinado recorte no qual nos
localizamos. Algumas dessas tendências observadas foram relacionadas a idéias taoístas e
construtos de pensadores contemporâneos, e comentadas a partir dessas interfaces. Dentre os
nomes que figuraram neste capítulo, Artaud e Barba ganharam maior aprofundamento por
fomentarem mais especificamente alguns dos princípios e questões cruciais que moveram a
241

tese. Além destes, Meyerhold e Grotowski, por exemplo, foram referências intensas, com
quem dialoguei em diversos momentos ao longo da tese.

No capítulo três foram destacadas as transformações no lugar e estatuto do corpo,


diante das novas configurações contemporâneas. Dialogando com o redimensionamento da
corporeidade enquanto enunciadora na cena teatral atual, a noção de corpo foi revista
historicamente dentro da construção metafísica ocidental, e re-compreendida a partir de novos
pressupostos científicos, filosóficos e estéticos, e a partir de confrontações com saberes
oriundos da tradição taoísta.

Essa investigação se desdobrou em críticas sobre certa neutralização política através


de apropriação e esvaziamento dos novos valores corpóreos por parte de um motor social
ditado por uma economia capitalista globalizada. Desdobrou-se ainda no entendimento de
como a cartografia corporal chinesa - com a noção de corpo sutil, suas rotas e pontos
energéticos, e suas práticas sobre estes – poderia operar politicamente - pela via de uma
micro-política, molecular, sorrateira e intensiva - enquanto estratégia de percepção, afirmação
e resistência dos corpos vibráteis.

Destacando novamente que resistência, aqui, não tem o sentido de qualquer


estratificação, mas de uma capacidade perceptiva sobre o próprio corpo, em fluxo, que possa
defendê-lo de desterritorializações indesejáveis ou fragilizantes, como as por manipulação
midiática, por exemplo. De novo ecoa a pergunta de Deleuze e Guattari, de “como criar para
si um CsO sem que seja o CsO canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um
drogado, de um paranóico ou de um hipocondríaco” (1996:26), que pode encontrar pistas de
resposta em uma prática como o chi kung, por exemplo, que se relaciona à noção de wu wei –
agir sem coagir – e à idéia do devir como conduta.

O quarto capítulo foi dedicado à compreensão da noção de expressividade enquanto


componente de um circuito dinâmico e reversível, nos moldes de um Anel de Moebius.
Assim, em co-articulação a essa idéia está a de impressividade, a qual não é nem anterior nem
posterior, mas contígua e inseparável da primeira. O exercício desse duplo circuito - que se
contrai no termo expressividade - foi também entendido como um espaço favorável ao
exercício ético-estético de afirmação de singularidades e diferenças, e de manejo estético de
questões subjetivas latentes, com potencial de regulação das mesmas. Entendendo regulação
242

não como controle, nem como equilíbrio definitivo ou cura, mas como um processo
permanente – e em fluxo - de re-organização.

No capítulo cinco adentrei a noção de vazio, bordejando-o com auxílio de referências


dos campos de saberes por onde trilhamos: a filosofia contemporânea, a sabedoria taoísta, e
algumas abordagens cênicas. As noções-metáforas de (v)entre, de fronteira, de entre-lugares,
de meio e de ma, assim como referências de artistas que compõem a partir do vazio como
princípio operativo, balizaram essa reflexão. Cheguei a uma idéia de eficácia do vazio,
tratando-o sob a perspectiva de um re-curso: ao mesmo tempo um princípio operativo
(recurso), e um estado para o qual estar sempre disposto a se voltar (e re-cursar).

Por fim, no capítulo seis, passei a observar como todos esses princípios se fizeram
presentes em minha própria prática artística e pedagógica. Nesse capítulo foi constatada a
eficácia das matrizes enquanto geradoras de imagens sugestivas para processos criativos.
Tanto na disciplina como no espetáculo referências do imaginário taoísta se desdobraram em
partituras, sub-partituras, construções corporais (físicas, vocais, afetivas, energéticas, etc.),
que apresentaram tanto potencial para composições extra-cotidianas e diferentes de padrões
pessoais recorrentes, quanto forte vocação polissêmica.

Essa polissemia foi compreendida como instrumento político no processo de recepção:


a multiplicidade de sentidos que se descortina aí, paradoxalmente associada a um vazio
(ausência do entendimento definitivo, da univocidade, da mensagem), provoca pró-atividade
por parte do espectador – associações, agenciamentos, decisões.

Ao longo dos processos criativos o chi kung teve papel crucial, com conseqüências em
diferentes níveis. Por um lado a prática redimensiona a nossa própria relação com nosso corpo
vibrátil – e isso pôde ser identificado em ambas as etapas dos processos: nos corpos dos
alunos e no meu próprio. Por outro lado os treinos propiciaram um estado altamente favorável
para criação, já que o vazio instalado abria espaço para um todo potencial a ser acessado.
Além disso, a mobilização energética promovida pelos exercícios de chi kung geram uma
dilatação corporal - qualidade de presença e irradiação cênica - que atuam sobremaneira tanto
no desempenho do ator quanto – consequentemente - na recepção.

Apesar de, a exemplo da estruturação em blocos da tese, uma suposta parte prática
estar separada de toda uma articulação teórica, é importante frisar que, em realidade, esta
243

configuração tem muito mais um caráter de organização e facilitação do discurso, do que o


propósito de retratar o modo como se deu a pesquisa. Houve retro-alimentação constante entre
os âmbitos – indissociáveis em última instância – prático e teórico, na qual um sempre
redimensionava o outro.

Os processos criativos já experimentados, e os que daqui por diante ainda frutificarão


em nossa investigação como atriz e professora, têm como objetivo intensificar os recursos
expressivos do artista cênico, alimentando sua capacidade de dialogar poeticamente com
sugestões – em nosso caso de origem taoísta, visando à geração de acervo expressivo, cujas
células sirvam à composição estética. Assim, é possível projetar, inúmeras possibilidades de
desdobramentos para tal perspectiva.

Dentre os que se descortinam num primeiro momento destacaria as possibilidades de


interface dos princípios do tao com ações vocais – perspectiva não tão explorada ao longo dos
processos criativos que alimentaram esta tese. Referências como as professoras doutoras
Meran Vargens, do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA (2005) e Silvia
Davini, do Departamento de Artes Cênicas e do Mestrado em Artes da UnB (2000) poderão
ser fontes importantes nesse estudo.

Outro desdobramento provocativo seria operar na fronteira entre o imaginário taoísta e


ações em arte e tecnologia. Aqui trabalhos como o das professoras doutoras Maria Beatriz de
Medeiros – coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos (1989, 2005) e Maria
Luiza Fragoso (2003), ambas do Departamento de Artes Visuais e do Mestrado em Artes da
UnB, seriam referenciais. Desconstruir a dicotomia entre contemporaneidade e ancestralidade
seria um bom veio conceitual para essa abordagem. As investigações do professor doutor
Edvaldo Couto, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, sobre o lugar e
estatuto do corpo na sociedade tecnológica, também poderiam intensificar essa abordagem
(2000).

Outro diálogo fértil se instalaria na interface entre o taoísmo e a performance. Seja


pelo viés da Performance Art, ou pelo dos estudos culturais, importantes desdobramentos
poderiam aí se desvelar. Nomes como os dos professores doutores Fernando Villar (2003,
2006) do Departamento de Artes Cênicas e do Mestrado em Artes da UnB (2000), Ciane
Fernandes (2003, 2006.3) e Fernando Passos (2004), ambos do Programa de Pós-graduação
244

em Artes Cênicas da UFBA, assim como os estudos da já mencionada professora Maria


Beatriz de Medeiros (1989, 2005), seriam importantes nessa abordagem.

Outra via de desdobramento se daria no aprofundamento do diálogo com artistas e


professores que também vêm utilizando referências taoístas – outras abordagens similares -
em suas pesquisas e/ou ações artístico-pedagógicas. Além da professora doutora Ciane
Fernandes, já mencionada, que vem praticando chi kung há algum tempo, tenho notícia de que
a professora doutora Antônia Pereira Bezerra, também do Programa de Pós-graduação em
Artes Cênicas da UFBA, vem experimentando tal interface. A professora doutora Rita de
Cássia Castro (2005), do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, por sua
vez, norteou sua tese de doutorado a partir de um conjunto de princípios de movimento
corporal japonês, conhecido por Do-ho53.

Foram omitidos acima inúmeros outros nomes importantes nas áreas indicadas. Estão
mencionados aqui apenas alguns professores com os quais mantenho certa aproximação, com
quem me encantaria dialogar, e que poderiam até, eventualmente, orientar-me em
desdobramentos dessa investigação, em nível de pós-doutorado, por exemplo.

Chego, então, ao fim dessa empreitada. Esperando que tal esforço possa figurar entre
as importantes referências para artistas dispostos a pensar e repensar sua própria prática, para
professores dispostos a aprender com seus alunos, para pesquisadores comprometidos com
uma conduta ético-estética.

Mas acima de tudo, e talvez egoisticamente falando, sinto que essa pesquisa tem um
significado gigantesco na minha própria vida. Num primeiro momento me pareceu
extremamente difícil formular conceitualmente todo aquele desejo que tanto me mobilizava, o
qual era oriundo de uma busca intensa, mas ainda confusa, que imbricava necessidades
artísticas, pedagógicas, energéticas, corporais, espirituais - ético-estéticas, portanto. E é com
muita alegria que vejo, hoje, como foi importante ter sido resoluta o bastante para não me
demover de algo que me era absolutamente necessário e genuíno.

Todo processo pelo qual passei ao longo da feitura desta tese ecoou em mim, para
além de uma perspectiva meramente intelectual. Percebo o quanto amadureci como
53
Em 2006 tive a oportunidade de participar de uma oficina de Do-ho em Brasília, de 15 horas-aula. Esta foi
promovida pela professora Rita Castro, e ministrada por Toshi Tanaka e Ciça Ohno, importantes referências na
tese de Rita (2005). No curso, assim como lendo a tese, pude notar pontos tangentes aos princípios taoístas,
inclusive os presentes no chi kung, como as noções de vazio, ma, chi, a idéia de sutileza, entre outros aspectos.
245

professora, artista, mulher, mãe, pessoa. E sinto um amor imenso por tudo que movimentei
nestes últimos quatro anos: as idéias, os agenciamentos, as encruzilhadas, as corporeidades, a
cena, as energias, os medos, as superações - as poéticas e as políticas, enfim. Todas as
reflexões aqui tecidas nasceram de inquietações muito íntimas, e se articularam à realização
de uma obra artística na qual pulsam minhas próprias singularidades como atriz.

Este rito de passagem marca minha vida de uma maneira radical, que se relaciona à
apropriação e afirmação - em meu próprio cotidiano - de uma conduta micro-política. Esta
conduta, que percebo como uma verdadeira trama, em seu duplo – e recíproco e desdobrável –
sentido: de constelação e de conspiração. Constelação em seu caráter rizomático, de
entrelaçamento de princípios éticos e estéticos, formando uma rede de fluxos e
agenciamentos. Conspiração em seu aspecto de maquinação, estratégia de infiltração e
afirmação, política nos fluxos, nas intensidades, nos subterrâneos, ações contagiosas e pró-
ativas de singularidades mestiças.
246

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Tai Chi Pai Lin – A postura do universo: fundamentos do chi kung e o cultivo do poder
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Salvador, s/d.
260

ANEXO A

ANEXOS SOBRE A DISCIPLINA

A.1 Diário de aulas

A seguir a transcrição detalhada dos encontros da disciplina Técnica de corpo para a


cena III, com trechos de depoimentos dos alunos sobre cada aula, coletados nos cadernos.

Primeira fase: diagnóstico

aula 1

Neste encontro, no primeiro momento, foram feitas as apresentações e combinações relativas


ao programa, caderno, avaliação, horários, freqüência, etc.

Atividades:

• Trabalho com a base (grounding). Experimentar o peso nas bordas (calcanhar, ponta,
laterais do pé) dos pés até achar o centro.
• Escrever o próprio nome e outras palavras com os quadris.
• Desequilíbrio com pé plantado e com deslocamento
261

• Andares com peso em locais diferentes do pé, ver imagens associadas que vêem,
deixando vir e agregar sentidos às formas.
• Escolher um tipo de andar e dar sentido, contextualizar, estabelecer motivações, etc.
• Mostrar para o resto da turma a construção.

Conversamos sobre teatro físico e psicológico. Foi dito que nossa proposta pode dialogar com
as duas tendências, já que o processo criativo é sempre pautado por uma relação psico-física,
e já que não a entendemos excludentes entre si.

aula 2

Conversamos sobre o histórico e expectativas de cada um, falei mais sobre meu projeto de
doutorado. Foi passado o primeiro questionário, e respondido em aula.

aula 3

Primeiro contato com chi kung, através de exercícios de captação energética das árvores.

Atividades:

• Experimentação com pés, pernas, joelhos, formas de pisar, andar.


• Exercício: reagir corporalmente a diferentes tipos de solo e ir registrando as
formas/forças criadas. Solos imaginários usados como estímulo: arenoso,
escorregadio, frio, quente, congelado, ovos, com buracos, poças d’água, capim alto,
pedrinhas, chiclete, lama, areia movediça, etc. Observar como o trabalho cria
alterações do equilíbrio corporal.
• Escolher uma forma entre as experimentadas. Re-significar, re-contextualizar, deixar
acontecer timbre vocal e ruídos associados.
• Re-significar novamente a partir da inserção de um texto (abaixo), e dentro de ação
coletiva na seguinte situação: um a um chega e se posiciona numa mesma fila, mas
cada um se comporta na fila cujo contexto foi criado para seu próprio personagem,
sem saber em qual contexto de fila o outro está imaginando estar. Ao chegar cada um
262

usa o seguinte texto (ou aproximações): “Por favor, seu número? E o seu?... Sou o
penúltimo. (pausa) Com licença. (pausa) Está demorando muito? (pausa) O que não é
fila hoje em dia, não é, amigo?”

Conversamos sobre corpo extra-cotidiano e teatralidade, a partir da leitura de Eugênio Barba.

Após a aula, a partir de consulta feita ao professor Ernani Franklin, que me orientou quanto ao
chi kung, foi feita uma mudança de abordagem. O chi kung, passa a ser trabalhado apenas
com os exercícios “entrar no vazio” e “sentar na calma”, mais apropriados para nosso
objetivo.

Segunda fase: yin yang

aula 1

Foi explanada uma base teórica sobre o chi kung. Foram mostrados mapas dos centros
energéticos principais e respectivos portais de acesso e meios de absorção energética. Foi feita
ainda uma explanação sobre o par de rúbricas yin yang.

Chi kung: “entrar no vazio” e “sentar na calma”.

Atividades:

• Trabalho técnico: parâmetros de movimento (com estímulo musical/dança): rotação,


inclinação, níveis/planos
• Retirada da música, tentativa de partir pra ação menos dançada.
• Estímulo a partir de fatores yin yang, alternando entre os dois pólos energéticos de
cada par.
• Em dupla um num pólo e o outro no outro (trabalhando oposição) trocando
dinamicamente de pólo, na dupla, sem combinação prévia.
• Escolha de células criadas a cada novo fator de estímulo (par yin yang), ir repetindo a
célula selecionada e colando à próxima para criar composição.
• Repetição, treino e mostra da partitura. Registro.
263

Conversa sobre sensações no chi kung, dificuldades de concentração, lacrimejação e


salivação, dores no corpo, sensação do corpo torto, pode estar relacionada à percepção de
outras camadas corporais que não a física, como o corpo sutil, ou vibrátil.

Depoimentos recolhidos dos cadernos sobre esta aula:

Leonardo: (sobre a partitura a partir das dinâmicas yin yang) “A parte mais complicada é a
colagem. Tentei unir as diversas células numa mesma unidade corporal, mas também de
pensamento lógico e racional. Não sei se essa foi uma boa idéia porque meus movimentos
estavam bem distantes do que se pode chamar de realista. Mas fiquei muito satisfeito com o
resultado”.

Fábio: (referindo-se à partitura a partir das dinâmicas yin yang) “Passar do movimento
espontâneo para o dirigido é sempre brusco para mim”.

Júlia: (sobre as dinâmicas yin yang): “busquei as relações mais interessantes com o outro e
onde meu corpo ficava mais orgânico, apesar do movimento ser extra-cotidiano”.

aula 2

Chi kung: “entrar no vazio” e “sentar na calma”.

Atividades:

• Com a energia mobilizada e concentrada no chi kung, abrir os olhos e entrar em contato
com ambiente, mantendo firme dentro, acionar outros sentidos fazendo ponte dentro e
fora. Olhar a rua, ouvir os sons. Encontrar parceiro, olhar no olho e em estado de chi kung
fazer exercício do “espelho” sem predeterminar o guia e o seguidor, mudando estes papéis
ao longo do processo sem indicação prévia.
• Ainda na dupla relembrar partitura (sem falar), mostrar pro outro que a aprende e vice e
versa, troca de partituras.
• Exploração da partitura alheia lembrando princípios opostos yin yang, tentando
experimentar aspectos (recheios, sensações) diferentes naquela mesma forma. Chegar a
uma nova partitura, a partir da mesma forma, mas com “texturas/tempos” diferentes.
264

Assistimos cada partitura original e transformada. O que teve sua partitura transformada
escolhe aspectos, células, texturas que deseja assimilar à partitura original e aprende-a
novamente.

Conversa sobre o chi kung que mobilizou muita energia hoje, algumas pessoas sentiram
energia quente vindo da terra e fria do céu. Conversamos sobre como as respostas são
individuais, e que especialmente nesse início da prática não se deve forçar um tipo de
sensação, mas apenas tomar consciência das respostas no corpo. Falamos sobre a diferença
entre intenção (há um subtexto com motivações psicológicas, ou racionais, que move a
partitura ou movimento) e sensação (quando o que move, gera a ação física, é a sensação –
imaginada ou real - atuando sobre o corpo).

Depoimentos recolhidos dos cadernos sobre esta aula:

Fábio: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Mais uma vez minha racionalidade demasiada
interferiu. Minhas seqüências são geralmente quadradas. Ver o colega repetindo e depois
transformando minha seqüência é a princípio desesperador, depois faz sentido. Refazer a
seqüência modificada acrescentando as qualidades que o outro agregou, isso parece
bom!.P.S.: Preciso ter paciência comigo e com meus limites, mas nem tanto”.

Leonardo: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Foi interessante perceber a desconstrução


de cada movimento. No caso de minha partitura, surgiram qualidades que principalmente
davam um ‘quebra’ na linearidade dos meus movimentos”.

Júlia: (sobre partituras trocadas e mexidas): “Toda essa desconstrução abriu muitas
possibilidades e minha seqüência ficou mais rica. Assistindo a do colega percebi que abriram
novos caminhos também para ele. Pude hoje perceber meu corpo muito vivo e mais presente,
como se estivesse dilatado”.

aula 3

Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,
mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se
“naturalizando”.
265

• Trabalho técnico com tecido, visando trabalhar oposição, e sua relação com yin yang.
• Dupla com tecido, peso fora, alongando ao mesmo tempo.
• Um de cada vez experimentando enquanto o outro faz base, sustentando a
experimentação do colega.
• Trio com tecido, dois sustentam segurando as pontas enquanto um explora
movimentos dentro.
• Todos com tecido: várias duplas, cada dupla segura um tecido de ponta a ponta,
delimitando uma área na sala. Um brinca nesse espaço, explorando as possibilidades
com os vários tecidos, inclusive com mais de um de uma vez. Quem segura também
pode explorar, mantendo tecido aberto ou fechado, explorando planos, tensão, etc.,
desde que mantenha a base para o colega. Podem também se mover e até envolver o
corpo que brinca no espaço.
• Resistência com tecido em diferentes partes do corpo, caminhadas com diferentes
resistências. Trabalhamos com tecido no quadril, no peito e na testa: um vai na frente
com tecido neste local, e o outro segura as pontas atrás. Trabalhamos sempre a
caminhada com tecido e sem tecido depois, percebendo as forças de oposição no
corpo, após a experiência, mantendo o tônus. O de trás também experimenta formas de
segurar, conquistando novos espaços corporais.

Conversamos sobre como foi prazeroso trabalhar com tecido, especialmente na primeira parte,
antes do trabalho de oposição e resistência (derivado de propostas de Decroux e Barba), muito
lúdico e criou lindas imagens. Surgiu a vontade de fazer um trabalho final a partir dessa
proposta. Alguém falou que nem seria preciso, no trabalho de resistência eu frisar que era
como se o tecido ainda estivesse, pois o corpo já havia incorporado a sensação e naturalmente
isso acontecia. Alguns falaram sobre como o chi kung refletiu no resto da aula, inclusive foi
lembrado que alguns pontos de resistência trabalhados no tecido coincidiam com a
localização aproximada dos pontos trabalhados no chi kung, centro yang, centro yin e mãe dos
centros. Leonardo comentou hoje que sentiu energia fria em baixo e quente vindo de cima, ao
contrário do que costumava sentir, e consoante com o que a indicação do exercício sugere.

Depoimentos colhidos dos cadernos:

Júlia: (tecido livre) “Inúmeras possibilidades, tirando o corpo do eixo”. (oposição com
tecido) “Foram exploradas inúmeras formas de se mover com a resistência. A depender de
266

onde estava o tecido tinha uma qualidade de movimento diferente. Remeteu a personagens,
sensações, estados diversos só com a forma de se movimentar. Estabeleceu-se uma relação
fortíssima de confiança com os colegas”.

Fábio: (tecido) “Boas possibilidades corporais”.

Justina: (oposição e resistência com tecido): “Este trabalho despertou a percepção da relação
de força, fisicalização de energia, dramaticidade do movimento e, principalmente, agregou
uma qualidade de energia própria, peculiar a cada ponto monitorado pelo obstáculo do tecido.
Chamou-me a atenção a correlação que me fora espontaneamente sugerida entre tal trabalho e
a concepção de evocação energética de cada ponto verificado no trabalho básico de chi kung”.
(ela se refere ao centro yin, baixo ventre, à mãe dos centros, cintura e ao centro yang, testa/
cabeça).

Clarissa: (oposição com tecidos). “Tinha lido sobre Decroux, no livro o Ator-compositor, e
ele falava sobre o deslocamento da energia para manter o “mesmo” movimento (link direto!)
com o objeto concreto”.

Altamar: (tecido): “Exercício bom para laboratório, pesquisa de posturas e formas de compor
personagem”.

aula 4

Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,
mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se
“naturalizando”.

• Trabalho técnico: oposições/vetores (direções, forças que atuam no corpo – pelo menos 6
vetores – cima/baixo, frente/traz, esquerda/direita). Pedi para imaginarem uma força
puxando para frente, sem o corpo resistir. Depois uma força para traz. Aí ambas as forças,
iguais, como que dilatando o corpo. Então a da frente é um pouco maior e eles se
deslocam dilatados. A mesma coisa com os lados direito e esquerdo, depois acrescentando
as forças da frente e trás. Por fim, o mesmo percurso com as forças que puxam para cima
e para baixo, acrescendo os outros vetores e por fim o deslocamento com os seis vetores
267

atuando. Pedi para executarem ações, mantendo a dilatação, e para irem limpando o corpo
da tensão excessiva, sem perder a sensação dos vetores atuando.
• Diagonais: Estímulo fatores yin yang indo de um pólo máximo para transformar-se
gradualmente no outro pólo. Em dupla, um sai do lado yin e o outro do lado yang, em
relação, e vai ocorrendo a transformação no deslocamento pela diagonal. Depois o mesmo
exercício com a transformação ocorrendo em corte seco, subitamente e de preferência ao
mesmo tempo com os dois alunos, foi lembrada a importância da relação pelo olhar. Em
dupla foi escolhido um par de fatores yin yang e experimentados cortes secos e
transformações graduais, podendo os dois alunos estarem no mesmo pólo, ou em pólos
opostos. Livre experimentação, deixando virem sentidos e intenções. Depois cada dupla
apresentou um pouco do trabalho.

Conversamos sobre a necessidade ou não da tensão provocada pelo exercício dos vetores no
corpo, para conquistar maior presença. Falamos sobre a importância de identificarmos o grau
necessário dessa tensão e de nos desfazermos do excesso. Alguém falou da importância de
quem esta fazendo a aula perceber o que ocorre no corpo do outro para entender a diferença
entre os estados corporais. Outro aluno lembrou Barba falando que nas técnicas extra-
cotidianas, ao contrário que na vida cotidiana onde empregamos o mínimo de esforço para
obter o máximo de resultado, investimos o máximo de energia, para, muitas vezes, a mínima
ação. Lembrei que há ainda uma diferença entre o momento do treinamento e o momento da
apresentação, e que é preciso fazer o corpo experimentar, sentir, apreender e conquistar a
segunda natureza, o corpo extra-cotidiano. Falei ainda que ao pedir para eles irem limpando o
exercício de tensão no fim, mantendo a atuação dos vetores, era por que o corpo já tinha se
submetido um certo tempo ao trabalho, então já havia incorporado aqueles princípios, aquela
qualidade. Cinara falou da dificuldade em se concentrar no chi kung, e comentei que percebo
nela essa mesma dificuldade em outros momentos da aula. E comentei sobre o quão
importante, justamente por ser tão difícil, era esse trabalho para ela. Fábio falou da
dificuldade de “acreditar” nos trabalhos e em propostas mais ligadas ao imaginário, de um
modo geral. Tem uma resistência, mas quer vencê-la, tende a julgar o trabalho do colega
também, como se não acreditasse que o outro pudesse acreditar e realizar o trabalho com
verdade. Nessa fala se referiu mais ao trabalho das diagonais com yin yang que ao chi kung.
Muitos sentiam dificuldade quando trabalhávamos as associações mais abstratas dentro da
tabela do yin yang.
268

Depoimentos colhidos dos cadernos:

Júlia: (vetores, dilatação): “Realmente senti meu corpo expandir muito. Isso é a presença
cênica. Meu corpo presente, consciente e em harmonia com o espaço. Com essa dilatação
aconteceu que meu corpo ficou extremamente tenso. Com a indicação para eliminar essa
tensão, meu corpo continuou dilatado e emanando energia. Muito legal!” (diagonais yin
yang): “Com alguns pares de opostos, por serem muito abstratos, não consegui sentir
realmente a sensação no corpo”.

Clarissa: (vetores, dilatação): “Primeira vez que vivi essa sensação de corpo dilatado. Corpo
dilatado através de um trabalho específico, com essa finalidade. Com os seis vetores atuando
no corpo, os meus olhos viam uma esfera de energia externa lilás, para a qual me deslocava.
A caminhada contínua me libertou das tensões e questionamentos sobre que partes do corpo
mexer ou como fazer”.

Leonardo: (diagonais yin yang) “Bons exercícios para perceber as alterações de determinados
grupos musculares do corpo. Algumas imagens de oposição do yin/yang são mais fáceis de
serem trabalhadas, talvez por fazerem parte do cotidiano mais ilustrativo. Nesse caso o maior
desafio era sair do repertório de movimentos pré-conceituados”.

Fábio: (vetores, dilatação) “Tive a impressão de estar utilizando mais energia do que de fato
era necessário, muito mais ação do que sensação. Temo que o racional em demasia atrapalha
os exercícios. Nas duplas (...) a qualidade de movimento não me convencia. Mais uma vez a
desagradável sensação de que a ação suplantava a sensação. Parecia que os colegas e eu
também estávamos muito mais preocupados com o mostrar, o que conduz a obviedade”.

Eugênia: (vetores, dilatação) “Muito importante hoje foi a idéia da força puxando o corpo
todo. A experiência geralmente é feita imaginando-se um fio puxando o corpo por um
determinado lugar. A idéia de puxar pelo corpo como um todo dá uma transformação muito
diferente ao corpo, pois o corpo é sentido de forma integral. Outro exercício que me trouxe
uma perspectiva nova foi a diferença entre uma passagem gradual entre o yin e o yang, e uma
passagem brusca. Uma cena é construída a partir de muitos elementos, mas um dos mais
importantes é o ritmo. Um personagem tende a ser representado justamente naquilo em que
afetado pelos acontecimentos, por isso esse ritmo é tão importante para a interpretação.
Aprender, tanto observando quanto vivenciando, transformações corporais tem de ser parte do
269

aprendizado do ator, pois será um elemento constante e fundamental em seu trabalho de


interpretação. Essa disciplina tem se voltado para a questão da energia. É prazeroso ver como
esse aspecto aparentemente tão ‘ilusório’, e talvez ‘distante’, pode ser concretamente usado
para a interpretação. Essas aulas têm me mostrado meios de entrar em contato com essa
energia, de ampliá-la e até de transformá-la, criando a partir da possibilidade de usar essa
energia como base para a construção de um corpo receptivo à criação interpretativa”.

aula 5

Atividades de chi kung. Abrir olhos, deixar contato visual com mundo exterior se estabelecer,
mas não cortar a concentração. Caminhar pelo espaço mantendo o trabalho e ir aos poucos se
“naturalizando”.

Retomada de princípios de trabalho abordados nessa fase como:

• Formas de pisar/andar
• Caminhada/solo
• Desequilíbrio
• Parâmetros de movimento: rotação/ torção, inclinação, níveis/ planos
• Deslocamento sob resistência: imaginando tecido em várias partes do corpo.
• Vetores atuando tridimensionalmente, dilatando o corpo
270

Terceira fase: I ching

aula 1

Chi kung com ênfase no centro yang.

Atividades:

• Corpo se move em atmosfera densa, corpo em vibração.


• Movimento inspirado em dinâmica Laban: Empurrar/ pressionar: forte, direto e lento.
• Movimento puxado pela cabeça.
• Trabalho expressivo agregando a essa qualidade de movimento, referências ligadas ao
trigrama, no sentido de compor uma “entidade”.
• Deixar surgir uma respiração e sonoridade deste corpo e trazer uma palavra.
• Apresentação de cada “entidade” inserindo falas curtas, enquanto as outras se
mantinham vivas, mas imóveis, observando a que se apresentava.

Diálogo final: Surgiram entidades muito díspares e houve de modo geral dificuldade deles
manterem ou aplicarem recursos técnicos e sugestões trabalhadas no dia, durante o processo
criativo. Também pareceu haver uma certa interpretação maniqueísta e notadamente ocidental
dos conceitos atribuídos ao trigrama. A energia das entidades, de um modo geral, era
caricatamente maléfica, com referências a sacerdotes maquiavélicos, com sede de poder. A
leitura do conceito de “poder”, por boa parte da turma, foi responsável pela construção ter
271

seguido essa linha, segundo o debate que tivemos. Falei para eles que ainda que as
construções surgidas pudessem estar, dee certa forma, distantes da noção taoísta do trigrama,
isso não caracterizava insucesso no trabalho, já que as leitura eram subjetivas mesmo e é isso
que enriquece e diversifica o trabalho. Mas sugeri que eles tentassem, na próxima experiência,
receber as palavras com o mínimo de preconceito possível, a fim de ampliarem as
possibilidades de livre associação. Solicitei ainda que fossem buscadas a manutenção e
aplicação (ainda que atualizada e singularizada) dos princípios técnicos abordados no dia.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Cinara: “De todos os exercícios que fiz, a experiência que ficou mais forte foi quando citou-
se a cabeça, o céu e o cavalo. A palavra “entidade” também ficou, mas resolvi não pensar
muito, acabou criando uma personagem: o poder que ela tinha, o andar foi baseado no cavalo
e a palavra (ordem) ‘saia’ veio depois desta construção e com o ambiente” (contexto que ela
criou para a entidade).

Afrânio: “‘Hor’ Adorado pelo povo, cuida deles procura saber das energias, o que é melhor
para todos. Ordena que se faça e obedecem. Essa divindade é como uma grande estátua viva
com a base púrpura e uma cabeça de metal líquida que olha, vigia seu povo. Ele está
localizado no centro do universo e gira em seu eixo quando percebe de onde vem os clamores,
as reverências, orações, etc. A base é humana, a cabeça de cavalo”.

Fábio: “Entidade. Torta, imponente, tensa, soberana, em pânico, soberba, casca oca. Anda
desenhando o ar, com os pés abertos, levanta os joelhos o ombro direito quase sempre
suspenso o que desalinha todo o corpo. Cabeça que procura erguida, que vigia. A criatura que
insiste em dominar, que se vê acima, mas não dentro de si mesma. Focos específicos, atenção
direcionada em busca do eixo. Voz nasal, na respiração. Achei interessantes as relações que
foram feitas tanto por mim quanto pelos colegas. As palavras usadas para motivação
(vermelho, poder, pai, céu, cavalo) racionalmente me sugerem imagens muito diferentes das
que foram mostradas. É como se o avesso se apresentasse, como se, sem pensar, aflorassem
aquelas imagens tão ‘distorcidas’, irregulares. Surpresa total!”.

Clarissa: “Minha personagem acabou se tornando o papa. A voz mesclava uma tonalidade
mais aguda com uma ressonância gutural. No corpo, um olhar inquisidor, de cima para baixo,
foco direto. Uma tensão no pescoço, nas pernas, braços e troncos como se a locomoção não
272

fosse algo facilmente conquistado. A palavra escolhida foi Deus. A forma de mostrar o
trabalho foi muito bacana. Todos em cena e um se movia e falava”.

Altamar: “Densidade me sugeriu água, cavalo sugeriu-me cavalo marinho, cabeça sugeriu-
me direção e força. Minha entidade era um cavalo marinho buscando algas, motivado por sua
fome”.

aula 2

Chi kung com ênfase no centro yin e focando respiração baixo ventre.

Atividades:

• Marionete em duplas: um toca e puxa indicando de onde parte e qual a direção do


movimento, o outro espera parado a indicação, executa e volta à neutralidade (parado).
Começando em pequenas partes do corpo.
• O mesmo, buscando deslocamento pelo espaço.
• O mesmo, buscando alongar ao máximo a parte puxada na direção sugerida, antes de
deslocar (flexibilidade).
• O mesmo buscando propor múltiplos focos ou direções: um movimento não acaba
antes do próximo começar, vindo de outro ponto do corpo e indo a outra direção.
• O mesmo, em trios, ampliando a multiplicidade de focos/direções, mas sem acelerar.
• Dinâmica Laban: flutuar/ esvoaçar: leve, indireto/flexível e lento.
273

• Agregar ao trabalho uma respiração profunda que torne o ventre presente na


construção corpórea.
• Trabalho expressivo: agregando a essa qualidade de movimento, referências ligadas ao
trigrama, no sentido de compor uma “entidade”. Ênfase na idéia de sombrio, mas leve,
doce. Insistência nesse contraste.
• Criar, evitando obviedade, uma partitura a partir dessa construção, que passasse por
fecundação, gestação e parto.
• Apresentação dos trabalhos.

Obs: O exercício com a energia da Gueixa (Odim e Lume) também pode ser associado à este
trabalho.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Júlia: “Consegui aproveitar desde o chi kung até o trabalho com os fios (marionete) para
fazer minha partitura. O grupo estava em sintonia e o trabalho fluiu”.

Clarissa: “Construí a partitura em três momentos: o pai, a mãe e o filho. Entre um


movimento e outro uma pequena transição semi-circular e energética, no ritmo, no olhar, na
intenção”.

Leonardo: “A gestação foi a mais complicada, não sabia o que fazer e o fato de não poder ser
figurativo acaba me levando à construção de coreografias. (...) acho que em minha cabeça a
objetividade está a serviço do drama e a subjetividade a serviço da dança, que, aliás, pra mim,
é mais libertadora de meu potencial criativo”.
274

aula 3

Chi kung com ênfase na linha que une centro yang ao centro yin e que se liga à linha da
coluna. Estímulo para liberação de eventuais manifestações de energia na coluna.

Atividades:

• Deitado, iniciar movimentos ondulares na coluna, sutilmente, num crescente, do chão


ao plano alto, buscando deslocamento e dinamizando, sempre partindo da coluna.
(lembrar que os olhos são o fim da coluna vertebral, já que correspondem à direção da
base do crânio, criar a imagem de uma serpente na coluna, cujos olhos coincidem som
os nossos).
• Fazer paradas (estátua) mantendo o dinamismo interno e ao bater da palma retomar o
movimento em “explosão”, partindo da coluna, mas buscando um deslocamento em
salto. (foco nos pés – base - e coluna)
• Ir aos poucos diminuindo o tamanho do movimento, mas mantendo o impulso interno.
Esse trabalho gera algo como espasmos corporais e forte concentração energética.
• Dinâmica de Laban socar/ bater/chutar: forte, direto/reto e rápido/súbito.
• Trabalho expressivo: agregando a essa qualidade de movimento, referências ligadas ao
trigrama, no sentido de compor uma “criatura”. Imagens lançadas: trovão, impulsão,
dragão, decisão, filho mais velho.
• Solicitação de que cada um tivesse uma arma imaginária, a escolher, proposição da
experimentação do manejo desta no ataque e na defesa.
275

• Jogo de poder/luta. A sala toda pára em estátua, mantendo a energia, e um dos


guerreiros convida outro para lutar. O que convida só ataca, o convidado só defende
até o sinal, e daí o que convidou pára, e o que foi convidado chama outro e inverte seu
papel, isso até fechar a roda. Não vale tocar no colega durante a luta. Usar a arma
imaginária.
• Após a experimentação a turma se divide em duplas, e cada par cria uma partitura de
luta. Mostrar para turma.

Obs: Surgiram várias imagens próximas à do caboclo, e também de arquétipos de guerreiros


de outras mitologias, como Thor e samurais.

Obs2: O treinamento Samurai do Odin Teatret pode ser uma associação interessante ao
trabalho com este trigrama.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Júlia: (serpente/coluna): “Ainda no chi kung foi irradiada a energia para a coluna. Essa
energia foi impulsionando e provocando movimentos com a coluna. Minha coluna realmente
parecia estar regida por essa energia, sugando do centro de todas as mães. Eram movimentos
sinuosos, verticais e horizontais. Minha coluna parecia uma serpente. Senti falta de explorar
mais o exercício da coluna. Mesmo assim a energia estava vibrante todo o tempo e isso
sustentava todos os movimentos do meu personagem. Movimento de explosão, quebra a
energia, impulsionava tudo, e também no manejar a arma”.

Fábio: (serpente/coluna): “Trabalho com a coluna evolui do micro para o macro tanto na
sensação quanto no movimento em si. As palavras que foram incluídas (dragão, irmão mais
velho, impetuosidade, decisão) de fato se aliaram ao corpo ou às sensações do corpo. A luta e
as armas escolhidas também se relacionaram com as indicações e o exercício foi bem fluido,
muito embora minha empolgação tenha me levado à dor. Os movimentos bruscos que fiz com
os braços (o chicote nas mãos) acabaram por forçar muito o braço e o ombro”.

Clarissa: “Me veio a figura de Thor. O Thor do desenho animado da minha infância. Com
seu tacape, sua força, seus cabelos longos, sua rudeza. A figura do irmão mais velho me traz a
idéia do desbravador, aquele que sai em busca do desconhecido, desenha seu pé na areia
inexplorada. Criar o personagem através da coluna foi bem interessante, com a idéia das
276

labaredas de fogo, incansáveis, inconstantes em suas aparições, e ao mesmo tempo, manter o


peso, a força da entidade e buscar a luta, o ataque e a defesa. Gostei!”.

Leonardo: “A arma que escolhi foi o arco e flecha, imediatamente me veio a imagem do
caboclo, do índio que utiliza a natureza ao seu favor, se guiando pelos elementos que ela lhe
oferece. A visão era um sentido importante, mas para identificar seu alvo usava a audição e o
olfato. Mesmo em luta (o caos), me sentia integrado a uma atmosfera que me proporcionava
tranqüilidade”.

aula 4

Chi kung ênfase centro yin, fonte borbulhante puxando seiva da terra, seiva percorre corpo
derretendo-o, especialmente articulações. Corpos vão ao chão

Atividades:

• Forma fluida (vide Fernandes, 2002), respiração, sangue, seiva. Perceber próprios
líquidos e ouvir ruídos internos.
• Reagir aos sons e sensações dos fluidos internos. Inicia pequeno e vai deixando
acontecerem desdobramentos. Imagem de deixar rastros. Escorrer, derramar, espirrar
líquido. Ir aumentando a velocidade.
• Dinâmica de Laban: chicotear: forte, indireto/flexível e rápido/súbito.
277

• Em duplas ou trios, condução pelo som da voz – pela audição: um de olhos fechados,
reage a chamados pelo seu nome. Pode-se trabalhar a questão da direção (de onde vem
o som), e do estímulo ao movimento (pelo timbre, volume, altura e outras
características da voz). Manter como qualidade de movimento uma fluidez densa.
• Trabalho criativo, inserção dos estímulos relativos ao trigrama água, com
deslocamento do atributo perigo, para o atributo loucura.

Depoimentos colhidos em cadernos

Júlia: “Ainda em chi kung meu corpo, como foi proposto, foi derretendo. Era uma energia
passiva, pesada. Senti os fluidos do corpo e isso impulsionou movimentos lentos, contidos e
sinuosos vindos do corpo todo. (...) Todos os meus movimentos tinham vários focos e meu
corpo todo espanava. Um ruído surgiu a partir desses movimentos. Era um grito agudo e
curto, com se estivesse se queixando de alguma coisa. Quando foi pedido para construir um
personagem enxuguei o movimento que partia do tronco e refletia e espanava os braços e as
mãos. Surgiu também uma palavra a partir da sensação de indiferença que havia sentido, que
foi: ‘Ôxe!’ Todo o corpo e as sensações da personagem foram gerados pela palavra loucura e
por uma certa irritabilidade que existiu com um dos estímulos, que foi ‘irmã do meio’.
Consegui aproveitar desde o chi kung na construção da personagem. Foi uma evolução nítida
do exercício de derretimento, dos estímulos dados até chegar à personagem. Hoje, realmente
achei tudo proveitoso”.

Clarissa: “Criei a personagem através do movimento da mão direita. Movimentos rápidos,


sinuosos e angulosos. A mão carregava o braço, pés e cabeça e voz, como se regesse a
máquina. Em oposição a mão esquerda permanecia imóvel, braço e ombro também. A voz da
loucura variava seu registro de acordo com a regência. No alto aguda, embaixo mais grave e
baixa, no meio modal. O som saia a partir do “TR”. Quando não havia som a mão se perdia,
tentava se esconder, mexia no cabelo. Uma situação de sempre chamar, comentar, reclamar”.

Fábio: “Depois de imaginar a seiva viscosa que passava pelo meu corpo e de certa forma
transformava todo o corpo nessa seiva, percebi vários momentos em que finalmente estava no
exercício. Os estímulos dos colegas através de meu nome dito de diversos lugares ‘levavam’
meu corpo, que por indicação fazia movimentos indiretos espalhados. Depois a criação a
partir desses estímulos mais o das palavras (lua, abismo, irmão do meio, loucura). Boa
experiência”.
278

Justina: “Hoje se investigou a energia da loucura, e as imagens que me eram sugeridas


remetiam a uma certa perdição, lentidão, descontrole e bestialidade. É curioso perceber a
forma pela qual cada um sente a loucura: uns com agressividade, outros com devaneio e até
com humor ou exacerbação da sexualidade. Parece ser a falta de ‘limites’ que sempre
configura cada imagem subjetiva do que se chama louco, afinal, o sentimento ou sensação em
si, manifestado no comportamento, está em todos nós. O que nos fornece o sentido de louco é
esse ‘descontrole’, ‘exagero’. O exercício de atender ao estímulo da voz do outro trabalha
uma qualidade de atenção e sistematização muito efetivo... é preciso se concentrar no que se
ouve e no que te parece mais ‘convidativo’ ou ‘imperativo’. Mas a pluralidade de estímulos
nos oferece essa ‘perdição’, o status de louco”.

aula 5

Chi kung com ênfase na percepção e energização das mãos. Aproximar palmas das mãos do
rosto para perceber essa energia.

Atividades:

• A partir da posição final do chi kung, fazer marionete facial, puxando fios imaginários
no rosto e conquistando fisionomias (estampas) diferentes. Repete várias vezes,
sempre voltando ao ponto neutro.
279

• A partir da instalação da estampa, deixar migrar para o corpo, fazer estátua no corpo e
rosto, e voltar para neutralidade. Repetir algumas vezes.
• Movimento é feito com a energia da Câmera Lenta: Contínua, penetrante, devagar. O
corpo se move lentamente pelo espaço. Ora ativamente, empurrando o ar, ora
passivamente, escorregando pelo ar.
• Mesmo exercício, só que em duplas, esculpindo, ou manejando os fios do outro.
• Primeiro estampa (rosto), depois corpo, depois som.
• Primeiro estampa (rosto), depois corpo, depois som, depois movimento.
• Voltar com as mãos para frente do próprio rosto e a partir da idéia de deslizar
(dinâmica Laban): leve, direto/reto e lento, vai seguindo a própria mão (pode trocar de
mão), com o rosto próximo a palma. Mão puxa, empurra, torce o corpo, só na
intenção.
• Mãos passam a puxar fios na face novamente, criando novas máscaras.
• Trabalho de composição. Inserção dos aspectos relacionados ao trigrama, visando
investir de ‘sentido’ o trabalho.
• Criação de uma imagem comum com toda a turma. Um segue em câmera lenta para
uma imagem parada (estátua) e uma a uma vai se agregando a esta, visando uma
composição única. Parte daí para a qualidade de movimento conquistada, a turma
passa a trabalhar em 2 grupos, pensando em compor imagens.
• Cada grupo para um pouco para assistir o outro.

Obs: Outras dinâmicas que poderiam ter sido aplicadas:

• Dupla: no contínuo/slow o ator vai construindo imagens. E o parceiro vai tirando


fotos. Escolhe uma. Interfere, e assim sucessivamente.
• Trabalho de sustentação (colinhos, pegadas) em diagonal, variando quem carrega e
quem é carregado.

Depoimentos colhidos em cadernos

Afrânio: “A condução do trabalho com fios imaginários facilitou, a meu ver, o processo de
desconstrução das fórmulas prontas que costumamos apresentar. Num segundo momento,
fomos deixando aquelas faces esdrúxulas fluírem para o corpo, assumindo um personagem, e
chegando a uma voz. Num último estágio, interagimos rapidamente com os outros
280

personagens. Nesse trabalho, o que mais me chamou atenção foi a performance de alguns
colegas que desenvolveram formas realmente surpreendentes”.

aula 6

Chi kung com ênfase em concentrar energia na mãe dos centros e dirigir para braços e mãos,
seguindo para trabalho com pinceladas de energia.

Atividades:

• Pinceladas livres: braços e mãos são pincéis e traçam desenhos no ambiente.


• Pinceladas com paralelismo: os dois pincéis executam o mesmo desenho. (esse
trabalho gerou movimentos que lembraram o kata do tai chi chuan)
• Pinceladas assimétricas: cada pincel trabalha em uma direção/tempo/textura. Sugestão
de lembrar as oposições yin yang para mobilizar a assimetria.
• Voltando energia para mãe dos centros, agora o trabalho (e o caminho visualizado da
energia – chi) parte do tronco migrando para os membros. Buscando voltar para o
ponto neutro periodicamente.
• Buscar inserir e valorizar o elemento torção no movimento. Sucessões, no sentido
tronco para membros.
• Ênfase nas características da dinâmica de Laban, Torcer: forte, indireto/flexível e
lento.
281

• Inserção das seguintes imagens: penetração da terra por raízes (madeira, torção),
caminho sinuoso do vento, doçura, veemência, ofensiva e indecisão, e, a partir disso
construir uma imagem grotesca, um bufão medieval, com defeitos, corcundas, partes
do corpo retorcidas. A partir desse corpo foi criada uma sonoridade vocal expressa em
linguagem não inteligível, foram propostas as seguintes situações em duplas: um
contar para o outro, nessa língua, algo extraordinário que presenciou; ambos
arquitetam um plano; executam o plano. A partir daí a sala toda interagia na mesma
proposta.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Fábio: “Percebo que a simetria (exercício dos pincéis), o paralelismo é mais natural, mas a
assimetria proporciona mais ‘liberdade’. Gosto do grotesco. Fico razoavelmente confortável
quando a idéia é criar bizarrices. As últimas aulas tem sido interessantes nesse sentido, os
exercícios se desenvolvem até chegar a um lugar”.

Altamar: “Composição de um ser grotesco, mole e reto como uma minhoca, pegajoso”.

Leonardo: “Vento, galhos retorcidos. Achei interessantíssimas as tensões corporais surgidas


em algumas pessoas. Movimentos torcidos e leves nos reportam ao cômico ou tragicômico.
Me lembrei do corcunda de Notre Dame e me senti muito à vontade com o que construí. Foi
uma das melhores construções que já fiz”.

Cinara: “Quando foi citada ‘tinta luminosa’ (exercício dos pincéis) facilitou a imagem. Em
seguida todo corpo se contorcia a partir do tronco. Quando ‘brincamos’ com as figuras
grotescas, possibilitou-se várias composições”.

Júlia: “Minha figura grotesca tinha uma energia sombria. Minhas pernas estavam
flexionadas, a perna direita se arrastava no chão, rosto tenso com a língua empurrando a
bochecha. Depois todos começaram a se relacionar e foram formando várias histórias
paralelas que no final virou uma única história. O que gostei mais foi a relação com as
pessoas, você estar ligado no que o outro propunha e entrar no jogo. Foi o jogo de olhar e a
sintonia com o outro que mais me ajudou. Os bufões de todos estavam muito legais. O chi
kung ajudou bastante”.
282

aula 7

Chi kung com ênfase na energia saindo pelo olhar. Circular pelo espaço olhando nos olhos
com esse trabalho

Atividades:

• Isolamento das partes: Deitado energia saindo da mãe dos centros irradia pra partes
isoladamente que se movem (ex: dedinho esquerdo do pé, dedão da mão, quadril, um
ombro, joelho, etc.) Depois começa a mover apenas os dedos dos pés, o resto imóvel,
e vai somando partes do corpo, parte a parte, mantendo o que se movia antes, até
ganhar deslocamento, mudança de planos. Aumenta ritmo, tentando mover tudo ao
mesmo tempo.
• Reforçar a idéia de Sacudir (dinâmica Laban): leve, indireto e rápido/súbito. Manteve
até exaustão. Deixar soltar o som. Ir até o limite. Congela. Retém energia, abraça
centro, retoma respiração.
• Trabalho expressivo: deitado de olhos fechados visualizar uma ave dourada. Observar
seu movimento, porte, corpo. Imaginar como a ave respira, para ter aquela
corporeidade. Identificar o modo da respiração (ex: curta, longa, entrecortada, rasa,
funda, mais tempo inspirando ou expirando, etc.). Instaurar essa respiração no próprio
corpo. Deixar nascer internamente um olhar advindo disso. Abrir os olhos com a idéia
de que é um olhar luminoso. Deixar também vir uma corporeidade a partir disso.
Deslocamento, construção desse ser no espaço. Ao sinal todos observam um, instala-
283

se o clima de observar e ser observado. Todos passam a reproduzir no corpo a forma


daquele. Voltam para a própria. Depois outro e assim por diante, retomando às vezes
formas anteriores – de outros – já experimentadas.

Na conversa final sobre a experiência falei sobre a importância da respiração em Artaud: "O
que a respiração voluntária provoca é uma reaparição espontânea da vida" (1987). "O esforço
terá a cor e o ritmo da respiração artificialmente produzida" (idem).

Depoimentos colhidos em cadernos:

Júlia: “Primeiramente a ave ficou no campo do racional. Imaginei uma galinha, e ela tinha
uma energia agitada e explosiva. Quando levantamos o corpo já foi se formando
instantaneamente e de forma orgânica. Minha personagem tinha uma relação forte com o
olhar e uma conexão com os outros. Foi muito legal observar as composições dos colegas.
Cada um tinha um corpo mais interessante que o outro. Foi bom também quando imitávamos
alguém e tínhamos que reproduzir fielmente o corpo e o olhar do outro. Tínhamos que ter
consciência da energia e da composição do outro. Fora tudo isso adorei minha
composição!!!”.

Justina: “Mantendo-se o estado físico e mental atingido pelo chi kung, trabalhamos o
isolamento das partes. É uma investigação minuciosa dos limites e propriedades de cada
membro. O mais interessante é perceber os quão fundamentalmente independentes são as
partes do corpo quanto à capacidade de isolamento, mas dado o condicionamento usual,
parece-nos difícil a dissociação. Este trabalho nos dá a oportunidade de experimentar
possibilidades gestuais incomuns pelo isolamento de cada grupo muscular e, mais que isso, a
oportunidade de perceber que determinados grupos estão de tal forma condicionados que não
se pode aciona-los sem o suporte de outro, que na verdade é independente... O que nos exige
um estado de concentração apurado. Esse trabalho foi realizado sem música, e isso também
confere propriedade ao exercício. Quando a música é inserida, um sentido de fluidez se
relaciona com o corpo, e agora, embora as partes voltem a atuar correlacionadas, cada
subgrupo, de músculos e membros, parece se expressar com mais efetividade, não vira um
bailado, mas dá uma qualidade expressiva ao corpo com certa dilatação. O trânsito para a
imagem da ave parte da sugestão de uma figura elaborada na individualidade do repertório de
cada um, o que, aliás, confere a cada pássaro uma qualidade de energia semelhante ao
284

humano que a expressa. Outra curiosidade desses trabalhos é a constante do trabalho físico
com ênfase na sustentação e tônus muscular”.

Leonardo: “Acho que atingi a exaustão. Me identifico com esse tipo de trabalho pois é
evidente o tolhimento do racional. No trabalho com a ave não consegui um bom resultado,
mas gostei de observar e experimentar a construção da ave de alguns dos colegas”.

aula 8

Chi kung com ênfase na boca/saliva54.

Atividades:

• Energia do Desequilíbrio: leve, inerte, fluida. O corpo pende em uma direção e no


último segundo a vontade do ator (a partir das possibilidades vislumbradas, mas
seguindo o fluxo do corpo) “resolve” o movimento.
• Em grupos, um fica de “bobo”, na energia/proposta do desequilíbrio, e os outros
propondo movimentos a partir de interferências no corpo do que está no centro.

54
Treino da água sagrada: posicionado no kata base, ou sentado em uma cadeira com coluna ereta e pés
tocando o chão. O exercício se inicia com 36 mordidas. Em seguida faz-se 9 rotações da língua, dentro da
boca, pra cada lado. Realiza-se bochecho da saliva produzida, divide-se esta saliva em três porções e engole-
se em três momentos, espraiando essa energia pelo corpo, fortalecendo em especial a mãe dos centros.
285

• Voltam a trabalhar sozinhos, deixando a idéia de desequilíbrio migrar para um


movimento de maior leveza.
• Trabalhar a dinâmica de Laban, pontuar/ brilhar: leve, direto/reto e rápido/súbito.
• Inserção de pequenos saltos, energia próxima à trabalhada na Dança dos Ventos
(Odin): Pulsante, compassada, ritmada. O corpo se lança pelo espaço em
deslocamentos graciosos e aéreos. Intensificando até a exaustão. Intensificar a sede e o
desejo por água.
• Chi kung: reprogramação da água55.

• Trabalhar o desejo pela água energizada, a partir da sede sentida. Trabalho com
textura, sabor, cheiro e som da água, onde o ator deve permitir uma adaptação do
corpo àquelas impressões sensoriais. Migrar para relação de prazer e sedução,
inserindo aspectos do trigrama do dia.
• Em roda cada um vai para o centro, se exibe, seduz/convida, tem relação com o
colega, (sem tocar) e aí por diante. Os que ficam na roda se mostram e seduzem para
serem o próximo convidado. Cada um pode ser convidado várias vezes.

Na conversa final eles estavam muito empolgados com o trabalho, falando muito.
Conversamos que essa energia (sexual, de sensualidade, libidinal) pode se perder facilmente
em comportamentos dispersos ou ser canalizada, concentrada. Falei que estávamos fechando
o ciclo I ching nesse dia e eles pediram para que jogássemos na aula seguinte.

Depoimentos colhidos em cadernos:

Fábio: “Muito bom exercício, bom perceber as diferenças de quem de fato está no exercício e
de quem só quer mostrar”.

Cinara: “Pulamos muito, e depois foi difícil segurar (controlar) a respiração. Veio a sede...
Os copos cheios de água e só podíamos olhar... aumentou a sede e a vontade (...) o respeito
pela água surgiu logo, o valor que não damos, a vontade e o desejo realizado, finalmente
bebemos a água (...) Roda da sedução, quem estava no centro seduzia, brincava com esse

55
Treino de reprogramação da água: com os dedos indicador e médio da mão direita, unidos, formando uma
espécie de “espada” de energia, aponta-se esta “espada” para o céu, captura-se por alguns segundos energia
yang, e em seguida aponta-se para um copo cheio de água. Gira-se os dedos em sentido horário pela borda do
copo, podendo tocá-la ou não. Em seguida bebe-se a água, que segundo os mestres taoístas passa a ser uma
espécie de “água benta”, para usarmos uma referência próxima a nossa cultura.
286

poder de sedução, os que faziam o círculo aproveitavam para atrair o parceiro pra si. Muito
jogo corporal, muitas expressões surgiram”.

Justina: “O trabalho de exaustão (...) me causou tontura, (...) tentei me concentrar e não
abandonar o trabalho. Na segunda fase, no entanto, o procedimento de reprogramação da água
inseriu um aspecto ritualístico que nos envolveu a todos. O vínculo criado com o líquido logo
se converteu em impulso sexual e se manifestou na roda”.

Afrânio: “O início do trabalho, com o desequilíbrio, trouxe uma sensação de liberdade. A


energia sensual dominou a aula, fluidez nos movimentos, ondulações dos corpos, contatos
corporais esporádicos, semi-intencionais. Mais uma vez fui influenciado pelo universo
infantil, e adolescente, alternadamente. Sensação de deslizar rápido, como na patinação, vento
no rosto. Equilíbrio precário. Brincar com água me deu vontade de ser/expressar uma fonte
caudalosa, sempre em movimento, rápida ou lenta. Ainda não consigo tirar proveito do
trabalho em exaustão (num trabalho de tanto prazer, a dor não me trouxe nenhum benefício)”.

Leonardo: “Exaustão: esse tipo de trabalho me mobiliza porque tolhe o racional. No trabalho
com a sedução eu arrasei, explodi de desejo e sedução na aula. Engraçado como a gente nunca
sabe quando é caça ou caçador. Senti-me dentro de uma vitrine sendo escolhido para
consumo. Essa foi a aula do semestre”.

Júlia: “Criamos uma relação forte com a água. Desejei bebê-la como nunca. Quando realizei
o que queria a água estava com o sabor mais delicioso do mundo. A sensualidade, o prazer
foram marcantes no estado em que estava. Foi feita uma roda logo em seguida e foi
estabelecida a relação com o outro. (...) Senti a energia yin muito presente e às vezes a dança
que fazia remetia à dança do ventre, que é uma dança bem feminina e sensual. (...) Adorei a
aula de hoje!”

aula 9

Chi kung com ênfase no terceiro olho e mãos.

Jogos de I ching sobre o momento de cada um.

Leitura de cada resultado com comentários dos colegas.


287

Quarta fase: criação textual

aula 1

Chi kung ênfase terceiro olho.

Deitaram com papel e caneta do lado, em estado de chi kung. Fui falando de cada trigrama e
seus atributos, na ordem que foram trabalhados em sala, e eles foram escrevendo coisas
aleatoriamente, palavras, frases soltas, memórias, livre associação. Como fundo musical
foi usado o CD I ching, do Uakti, tendo o tema de cada trigrama como fundo ao momento
em que este estava orientado o trabalho.

Cada um fez uma viagem pela própria memória corporal, pelo processo recente, ligado aos
trigramas do I ching.

Juntaram-se, em dupla ou trio, e cada autor leu seu texto para o(s) colega(s) que, de olhos
fechados percorreram a própria memória do corpo ligada à fase dos trigramas tentando
trazer movimentos ou corporeidades que dialogassem com cada trecho. Trocaram os
textos. Cada colega se familiarizou com o outro texto.

Cada um leu um texto de um colega para a turma como um todo.

Os textos mostraram-se densos e poéticos, de um modo geral. Algumas pessoas se


emocionaram durante o processo e durante a leitura. (ver mais detalhes sobre esse trabalho e
os textos produzidos na seção 6.2.c)

Depoimentos colhidos em cadernos:

Leonardo: “Foi tranqüilo enquanto eu estava escrevendo. Eu sabia o que escrevia, mas não
tinha noção do resultado de todas as palavras ligadas. Ler o resultado é que foi desagradável,
pois me lembrei de coisas que preferia ter esquecido e comecei a pensar em outras que nunca
me ocorreram. Eu me acho muito fraco pra esse tipo de trabalho, por que se por muito pouco
me comovo, imagine num trabalho desses que mexe com sentimentos pessoais. Não consigo
segurar e começo a chorar”.

Júlia: “Foram dados estímulos a partir dos trigramas e nós íamos escrevendo palavras ou
imagens que viessem à mente. Foi uma experiência inesquecível. Passar pelos trigramas,
288

sentir sensações das mais complexas e variadas possíveis. Afloraram em mim sentimentos que
por muito tempo estavam esquecidos nas gavetas da minha mente. Fui tomada por uma
grande melancolia e tristeza, palavras que inclusive estão no texto. Podemos dizer que sofri
uma catarse. É esse o nome com que defino a experiência vivenciada hoje. Apesar das
lágrimas e das lembranças dolorosas, considero positiva a experiência, pois preciso saber lidar
com os sentimentos que por ventura possam transbordar de dentro de mim”.

Afrânio: “O processo de construção da dramaturgia me pegou de surpresa. Realizar, em aula,


um trabalho escrito representou uma quebra nas nossas atividades, mas essa sensação foi
somente inicial, por que o processo utilizado trouxe de volta as imagens trabalhadas em sala.
Para mim foi fácil reviver imagens e emoções e coloca-las no papel”.

Altamar: “Fiz um texto onde elementos profundos preponderavam, havia sempre uma volta
para o interior”.

aulas 2 e 3

Atividades de chi kung.

Trabalho em duplas ou trios. Os alunos leram o material dos três ou dois integrantes do grupo,
e transformaram em texto para cena, buscando o poético, mas dramatúrgico, inserindo ou
retirando trechos, até sentirem-se satisfeitos com o resultado, que visava à cena.

Lembraram as construções mais interessantes produzidas na fase I ching (gestos, estados,


corporeidades, vocalidades, movimentos, entidades).

Selecionaram elementos, retomaram e/ou reconstruíram corporeidades a partir das


lembranças.

Passei o questionário FASE 3

Depoimentos colhidos em cadernos:

Justina: “A opção pelo texto composto por palavras soltas, que inicialmente me pareceu
estimulante, mostrou-se um tanto complexa – até pela pluralidade de possibilidades que
289

oferecia. Foi difícil encontrar um sentido (ou não sentido) que contemplasse todas as imagens
sugeridas pela subjetividade de cada um. Fábio nos deu uma contribuição (...) e compôs um
poema inspirado das nossas palavras pré-eleitas na delimitação do repertório. Esse poema
tornou-se o eixo de sustentação de nossa composição. Pretende-se trabalhar aspectos como a
repetição, a livre associação de idéias e a expressão da subjetividade acessada por essas
palavras aliados ao repertório gestual elaborado ao longo do curso”.

Fábio: “Não estava na aula que individualmente os textos foram escritos a partir de estímulos
específicos. Só depois (...) participei da transformação. Tanto no meu grupo quanto nos outros
o texto foi recriado depois que todos lemos, nos ouvimos lendo e experimentando
possibilidades. No meu grupo a criação foi coletiva, discutida e assim elaborada. Quando
participei do grupo de Eugênia, Altamar e Justina, o processo de criação foi mais pessoal,
ouvi os textos e escrevi o que chamo de um poema. Escrevi de vez, sozinho sem mostrar nem
discutir a princípio. Depois compartilhei, eles gostaram e resolveram usar.”

Afrânio: “A junção dos textos abriu a perspectiva do trabalho. Mais uma vez a observação
dos resultados dos colegas foi enriquecedora. O trabalho sugerido, montar uma partitura
corporal para encenar o texto criado, funcionou para mim, como respostas às minhas
expectativas do que fazer com o material desenvolvido durante o semestre.”

Quinta fase: trabalho final

aula 1

Atividades de chi kung.

Retomaram texto.

Selecionaram elementos, retomaram e/ou reconstruíram corporeidades a partir das


lembranças. Experimentaram até construir uma partitura com o texto.
290

aula 2

Atividades de chi kung.

Trabalharam as cenas criadas na aula anterior.

Adequaram a partitura com dimmer yin yang (mais forte mais fraco, mais rápido mais lento,
denso/sutil, etc.).

Mostraram, trocamos comentários sobre os trabalhos.

aulas 3 e 4

Ensaios e aperfeiçoamento do trabalho.

aula 5

Apresentação e avaliação.

Depoimentos sobre etapa trabalho final e apresentação:

Justina: “As idéias primordiais partiam da expressão retórica de um movimento de


experimentação física e energética pautada sempre no repertório mítico investigado na aula.
As imagens sugeridas pelo processo ganhavam forma verbal e, após a construção
dramatúrgica formal, eram reapropriadas em cena com a qualidade de energia compatível com
a que gerou. Isso, por fim, confere à relação texto/corpo uma peculiaridade e simbiose que se
reflete na cena”.

Júlia: “Esse processo final foi bastante conturbado e frustrante. Por conta da falta constante
dos componentes do meu grupo, inicialmente, fizemos tudo racionalmente. Isso não funciona
nem um pouco. Particularmente tive uma experiência muito rica e um material de trabalho
profundo. Todo esse material que adquiri ao longo das aulas não consegui resgatar e aplicar
na apresentação final. Seria muito mais produtivo se tivéssemos continuado com as aulas que
291

estavam sendo bastante enriquecedoras. Goste muito das aulas. Essa experiência vou levar
para vida enquanto atriz e o chi kung, principalmente, para o lado pessoal”.

Cinara: “Esse trabalho final foi pouco para todo o processo, fizemos pouco. A construção do
texto foi prazerosa, os estímulos foram bastante importantes, fluíram, o pior é que tínhamos
bagagem para uma montagem, não sei por que não rolou. Gostaria de continuar no próximo
semestre para entender melhor tudo (me refiro ao aprimoramento)”.

Leonardo: “Estive ausente nas duas primeiras aulas de construção conjunta do texto (...) Nos
correspondemos por e-mail durante o São João, discutindo inclusive os conectivos que
deveriam estar presentes ou ausentes no texto. Somente em sala, pensando juntos é que as
imagens, inclusive corporais, foram surgindo. A imagem idealizada racionalmente estava
linda. Como realiza-la. Não tínhamos a resposta e exatamente nesse momento as faltas
começaram a acontecer (...) a ausência de um imobilizava o grupo. Gostaria de pedir à
professora que não se sentisse frustrada pelo resultado, mas sim feliz pelo processo, que pra
mim pelo menos foi o mais bem aproveitado e que mais ressoou em termos de
expressividade”.

Fábio: “As coisas são como são?

As coisas têm um tempo de maturação (caju só dá no tempo).

As coisas não são tão feias quanto parecem.

As coisas vão melhorar.

As coisas nem têm um fim.

As coisas servem à reflexão.

Há muito mais coisas”.


292

A.2. Criação textual

No processo de transcrição do material gerado pelos alunos a pontuação, ou ausência


desta nos originais, foi respeitada, salvo em momentos onde pareceu ser esquecimento do
autor. Alguns textos pareceram verdadeiros desabafos, vômitos de sensações sob a forma de
uma escrita em fluxo poético. Outros criaram imagens a partir das idéias que iam sendo
lançadas, gerando verdadeiras narrativas, e ainda houve textos que eram apenas palavras
soltas jogadas, uma após a outra.

Textos individuais gerados

Leonardo:

Amo amo amo amo amor amor morte

Sofrimento ou recuo – libertação > encontro

Renovação

Oculta e apaixonante é a vontade de amar e sofrer e aprender a errar mais uma vez nas
escolhas seguir as influencias boas e más, mas quais

Há sempre uma saída, um repouso uma continuidade e perdas. Pense pense pense pensamento
e ação

O semeador não tem controle sobre o que planta – vida própria

Mar água serena da tempestade de meus pensamentos

O cuidado cuidado sempre

Cuidado medo espiritualizar-se

Caboclos – passes – anjos da guarda guais

Cosme Damião – meninos moleques alegria

O frescor
293

Ai meu Deus dai-me asas

Somos anjos de uma asa só – abracem-se

Me busca

Me pega

Me infiltra

Encontro – complemento – desintoxicação – aura

Mutação – de casulo a borboleta

No encontro com o Deus que há em mim

O Deus que me fortalece e mais que eu sabe o que é melhor para mim Ah vontade de fugir de
me abandonar um pouquinho pra poder me encontrar no plano do irreconhecível conhecer
conhecer conhecer chorar mais gritar mais gritar preciso me doar se encontrar

Me encontrar

Em outro ser criança ser adulto sonhar a juventude plenitude – viver – fugir

Fugir

Fugir

Raiva que dá dá dá libido – desejo

Dá dá dá coagir encurralar

Medo apoio – fuga desejo imposição – menos compreensão ser mais e melhor caompreendido

VOVÓ – espírito – pra onde vai será que vem?

Oração amigos os meus são minha responsabilidade. Tenho medo de não conseguir dar conta

Raiva
294

Vontade de bater, quebrar, romper

Morder, chupar, cuspir, exalar, liberar

Pensar o fútil e o efêmero

Sabedoria – o anfiteatro da emoção do coração

Dá-me asa – busco voar. Não se feche pra mim. Calma depois da tempestade...

Desejo desejo

Um beijo apenas depois decidimos se entrega não pensa, se deixar envolver nesse jogo nessa
dança – EXPLODE JUNTO

A MIM.

Vem, vem, vem

Lambuza

Pecado? Não sei acho que não prefiro acreditar que não. Esse não é meu Deus ele não me
impõe pergunta. Temos juntos o controle de tudo.

Cinara

Aceitar o que nos parece estranho...

Às vezes o que procuramos, encontra-se dentro de nós mesmos... o céu o paraíso, a força que
nos equilibra que precisamos para caminharmos.

A segurança de estar dentro de um ventre, de voltar para ele, a dor de não estar mais nele, o
medo de não ser mais criança, quero caminhar...

O fogo que queima, a força que nos destrói, a dureza das cristalizações, as frustrações das não
realizações, a calmaria que tortura, a dúvida, a surpresa, a certeza...
295

Busco uma cachoeira, um cheiro bom, uma luz, noites tranqüilas, o vermelho das paixões...

Ultrapassar obstáculos, devorar leões, plantar algodões, chegar ao céu, destruir a escuridão...

Viver na inocência da loucura, plantar e tirar os pés do chão, no silêncio da madrugada, ouvir
o silêncio, sentir o silêncio...

Chegar ao topo, nunca estar sozinho, calma, muita calma na sutileza do carinho.

Quero ouvir o som do sopro e o barulho da respiração, entrar em outros universos e depois ir
embora sem sofrimento, sempre costurando retalhos e queimando lembranças... Quero saber o
quero, seus olhos azuis.

O sucesso, o sucesso, desejo a todos o sucesso, voar nas nuvems, sem choques... águas
cristalinas, sorrisos, felecidade, ou pelo menos momentos felizes, maçã, pisar no macio, gozo,
abundância, sem perigo.

Deixando este corpo, desenvolvendo a espiritualidade encontrar a luz.

Altamar

Branco leve que flutua na perna que vai vai vai

Microtubulos círculos azul e vermelho vinho vinho céu descer

Rodar leve girar extrair entrar descer

Descer para frente para as águas que tem bordas claras frio azul que nada e tudo flutua queima
não sai mas flui flui f.l.u.i. i l f i funda e deusa puxa e concentra choque, choca, espraiar do
centro e espalhar pelos limites e tudo brilha e tudo limita e escurece afeta afeta some e
aparece de repente um branco que que as águas brilham com fogo de sol e chega ao olho e as
mãos espraiam e tudo de pé no pé e o pé e a perna de ferro de coluna que em pé sustentava o
tudo as pétalas os brilhos que seguem caminhos pelo ar por tudo que as viagens querem dizer
eu digo que nada e tudo é a coisa que se espraia e é não vista por que não é vista mas é olhada
pelos olhos que estão dentro de tudo da luz e do escuro que para e escorre pelo aterrador
destruidor que foge para a construção de qualquer coisa que agarra e prende e que não deixa
296

sair prender mesmo e prender e perder do nada. Que nada que flui pelo pequeno pequeno
demais e das paixões que acontecem de fora de dentro dos vidros e do chão e que chega nos
encontros de cada coisa que nunca diz coisa alguma só se olham olham olham olham olhão
--------------repouso--------------- há coisas no alto que não param as coisas que vivem isoladas
de todos por não poder se integrara por ver que nada se encontra de fato porque nada se
completa e tudo é o que é em si cercado pelas (?) que fluem de tudo o que sopra expulsa e
impele vai e participa passa e procura no escuro que não é tão escuro assim pois no fundo do
mar há polvos que sabem para onde ir e coordenam suas coxas e dança com precisão de suas
necessidades e todos os peixes escuros e todos os peixes que possuem luzes como postes
dançam em outras metrópoles fundas e deusas sobre um peso que o corpo suporta lá onde não
chega a luz da parte mais baixa da terra pense bem o céu lá é mais distante ainda. Há estrelas
de pedra e estrelas de carne já pensou carne que se acende no fundo do mar em volta do corpo
e que o peixe grande o polvo devora as lulas também, e os peixes comem outros peixes e tudo
se come e tudo se brota num jorro que descreve um círculo impreciso incompleto como uma
mola que não se completa jamais vai vai e não cai nunca na sua cabeça porque o espaço é
outro e jamais os espaços se completam por você pensar

Afrânio

Melodia, a voz que preenche o espaço e envolve transmitindo beleza, quietude. Todo esse
sentimento de paz remete à natureza. Vejo as folhas da árvore lá fora ao vento, me transporto
para um campo gramado já bem conhecido, o céu é limpo, tem nuvens claras. Estou voando e
percorro esses campos com rapidez sem esforço ou atrito. Os animais surgem cavalgando
juntos velozes, vou com eles pelos campos, estradas de barro, poeira, pedras, ouço som de
água ao longe, quero chegar e entrar na água, me sentir envolvido, protegido. O conforto não
sai da cabeça, ainda vou com os cavalos abaixo mas penso nessa proteção, esse lugar gostoso
que contrasta com a secura de onde estou. O céu de repente se fecha. Vai chover? O som do
trovão é ameaçador mas é envolvente e quero conhecer esse poder, quero subir ao céu cada
vez mais rápido entrando nas nuvens, parece noite o clarão cega, estremece e excita ainda
mais. Procuro como se fosse encontrar de onde vem, quem faz aquele barulho e surge a
criatura, o dragão. Penso se ele está fazendo o barulho. A criatura é linda com cores fortes.
Vermelho predomina e amarelo. Também azul e verde cores fortes, reluzentes como que
pintadas, as escamas entalhadas. Começou a chover forte e eu chovo junto com as gotas,
297

veloz e mergulho num lago muito grande a água é limpa, mas escura, mergulho, vou ao fundo
procurando sorver aquela força que parece dar vida à floresta em volta. Animais em volta
bebem água à noite, a luminosidade azulada da noite ilumina seus rostos assustados. Estão à
espreita, vai acontecer alguma coisa. Não estou sozinho no lago, não sei quem está comigo.
Não chove mais, mas as nuvens bailam ao vento, encobrem a lua, projetam estranhas sombras
nas árvores e nos animais, parece que todos dançam juntos uma coreografia que me abraça e
ao lago. Todos juntos somos fortes. União na Terra, mas sem alvoroço. Existe comunhão, a
sensação de perigo passou e tudo dorme naquelas matas. Só o vento, a lua, o lago e eu. Saio
do lago descanso na margem. Cais de madeira corpo nu. Reflexão estrelas repouso, silêncio.
Eu quero alguém comigo. Sentir a respiração do outro junto com a minha. A brisa corre forte,
venta, não incomoda, sacode as árvores, elas balançam inteiras mas estão fixas no solo,
enraizadas bem fundo, a terra as acolheu e elas foram fundo fundo tecendo caminhos internos.
No centro da Terra, cada vez mais quente é que vejo o centro da Terra, de lá a quentura da
lava, brilha em meu rosto a lava laranja, vermelha, incandescente, dá vida a uma fênix
dourada que sobe como um raio que invade o céu e já estou com ela, voando de novo.
Sobrevoamos o mesmo lago, é muito bom, lembro do campo gramado para onde quero voltar,
rever os amigos. Ter o prazer da companhia e contar o que aconteceu e deitar com eles na
grma, rolar, rir, beijar, beber juntos, cantar com o chegar da noite. Deitar no chão, sentir o
colo, o contato da pele e poder se envolver no mais íntimo do outro. Pegar, apertar, maciez,
gostoso.

Júlia

Tristeza, melancolia, lágrimas, procura...

Ternura, busca, incessante busca, visceral, preocupações...

Liberdade, vento, solidão, afastamento, medo, aprendizagem...

Amor, angústia, compreensão, o medo da descoberta, vida, cansaço, relações com os outros,
sensualidade, provocações, olhar, queda, corrida, busca, eterna busca, libertação, força,
liberdade, olhar no olho, olhar para dentro, distância, cansaço, sentimento preso, percepção,
tranqüilidade, transtorno, tranqüilo, confuso, calmo, tumultuado, eu, o que não se toca, paz,
cheiro, passado, amigos, liberdade, morte, andaime, loucura, dilaceramento, paixão, sangue,
298

jogo, incapacidade, entrega, abismo, medo, paredes, labirinto, eco, redemoinho, energia,
sensibilidade, isolamento, desistência, angústia, firmeza, apego, espelho, olhar, profundidade,
amigos, circo, trapézio, sinceridade, praia, timidez, sexo, água que brota, beleza que se
dissolve, alcance, ofuscamento, desejos ocultos, força, sutileza, palavras, silêncio, ressoar,
palavras, paixão, silêncio, sexo, desprendimento, jogo de seduzir, experiência, imaturidade
emocional, busca.

Clarissa

Concentração forçada. Dona de meu caminho. Guia. Quando havia um guia externo,
encontrava mais tempo para esvaziar minha mente.

Céu, o criativo, luz. Raiz, conexão, respiração, descoberta, luminosidade, segredo revelado
por mérito. Cabeça, pensamento, guia, mentor, aquela que vai. Força, beleza, imponência,
equilíbrio, rápido, veloz, elegante, rítmico, terra, pé, mãe, eu, aconchego, manjedoura, colo,
acolhe, ventre, calor, gostoso, seguro, força, apoio, meu, para mim, elasticidade, amplitude,
leve, mel, produção, eternidade, cíclico, passagem, veículo, através, força, veloz, passageiro,
estimulante, instigante, excitante, efêmero, para cima, para frente, para o alto, base,
segurança, início, impulsivo, agora, já, sem pensar, libido, estímulo, dúvida, ambigüidade,
jogo, peso, domínio, sem discussão, voa, cospe, árvore, natureza, frio, isola, casa, música,
instrumento, existe, se molda, escapa, molhada, boa, beber, banho, boca, língua, escorregadia,
misteriosa e reveladora, se esconde e se apresenta, dentro, percorre, ciclo, transforma,
absorve, luz, fria, bonita, céu, grande, mênstruo, quente, vermelho, corpo-vivo, seiva, líquido,
vulcânico, surpresa, medo, perigo, cuidado, atenção, devagar, passam, escuridão, oculto,
mistério, segredo, fora de si, lucidez, rápido, universo, chão, pé, sólido, razão, pensado, vejo,
piso, ando, seguro, tranqüilo, silêncio, mansidão, certeza, descanso, permitido, desejado,
necessário, alto, conquista, escalada, caminhada, um, eu, só, profundo, prudente, análise,
pensar sobre, reflexão, pegar, dominar, guiar, soltar, apóias, escrever, pintar, lavar, desenhar,
leve, solto, livre, sutil, some, frio, vem, sopra, areia, onda, mar, corta, profunda, entra, chega,
chão, emaranha, cresce, se apodera, penetra, torce, vai poro lado de lá, retorce, curva, ciclo,
giro, trançado, costurado, construído, queima, quente, calor, rápido, machuca, aquece,
ilumina, certeza, sorriso, bonito, desejo, desperta, estímulo, claridade, sol, lareira, fogueira,
ouro, brilho, beleza, poder, ave, voa, asas, liberdade, entrega, medo, rápido, sonoro,
299

iluminado, apreensão, água, tranqüilo, parado, pra cima, dentes, olhos, bocas, bochechas,
sorriso, macia, molhada, percorre, beijo, sexo, libido, tesão, conquista, provação, gozo, alvo,
estado de graça, cachoeira, jorro, cama, gostosa, prazer, satisfação, físico, força, desejo, pegar,
provar, morder, comer, cheirar, lamber, sugar, ter nas mãos, jogo, poder, sensual, sangue,
sorver.

Maria Eugênia

Controle, prazer, calma, acumular, tranqüilidade, equilíbrio, força, atração, caminho,


atmosfera, calor, sonho, harmonia, alegria, acumular, capacidade, energia, poder, mundo,
realização, capacidade, poder, velocidade, beleza, espiritualidade, caminho, vida,
transformação, aprimoramento, caminho, aconchego, formação, tempo, prazer, proteção,
flexibilidade, sonho, capacidade, realização, expectativa, caminho, aceitação, amor,
população, amizade, importância, valor, dificuldade, concentração, desafio, guerra disputa,
luta, energia, tentativa, diferente, inesperado, abrigo, força, balanço, início, capacidade, eu,
querer, objetivo, aliança, irritação, dragão, fogo, eu, sonho, realizar, poder, querer, fazer,
especular, determinar, árvore, construção, sangue, vida, transformação, composição,
construção, adaptação, tenacidade, eu, sonho, caminho, meditação, pensamento, viagem,
desconhecido, procuro, desafio, procura, aceitação, vida, água, composição interna, beleza,
sensualidade, impossível, vida, vermelho, grudada, resistência, falta de resistência, agitação,
pulsar, armadilhas, cuidado, cautela, atenção, tudo, mundo, perigo, inesperado, atenção,
mundo, nuvens, contradição, oculto, cinza, profundidade, surpreender, capacidade,
individualismo, centro, falta de centro, mãe, mamar, vida verde, alimento, proteção,
conhecimento, ama, meditação, dificuldade, necessidade, preparação, observação, poder, alto,
grande, beleza, solidão, realização, interno, inércia, confusão, contato, externo, dar, receber,
sensação, caminho, agressão, vida, prazer, contato, dor, destruição, composição, fragilidade,
alimento, terra, quem sou, dor, força, controle, poder, subjugar, construir, adaptar,
composição, calor, interno, capacidade, idéia, inteligência, encontro, divindade, adivinhar, eu,
estado, vôo, liberdade, poder, energia, grande, tudo, mundo, desvendar, mostrar, sol, amarelo,
criança, amor, sensualidade, corpos, prazer, contato, descobrir, conhecer, tocar, sentir, água,
alegria, sensação, egoísmo, gostoso, desfruta, comer, textura, toque, espasmos, delícia, caldo,
escorrer, amaciar, macio, completo, boca, beijo, dente, língua.
300

Textos gerados em aula pela fusão dos textos individuais

A partir do confronto do material bruto criado em estado de imersão, e de novas


criações a partir das fusões entre textos, foi gerado o material dramatúrgico a seguir, que em
diálogo com as partituras corporais trabalhadas, orientou o trabalho final.

Grupo 1: Léo, Clarissa e Afrânio

1 - Uma voz preenche o espaço, envolve, transmite beleza, quietude. Um sentimento de paz
me remete à natureza.

2 - Folhas de árvore lá fora, vento, céu. Ouço o som da água ao longe. Ela me envolve, me
protege, me conforta.

3 - Som do trovão. Choque, choca. Som ameaçador, envolvente.

2 - O clarão cega,

3 - estremece,

1 - excita.

3 – Outro barulho.

2 - De onde vem?

1 - Surge uma criatura, o dragão. Lindo e aterrador.

2 - De repente não mais é visto.


301

1 - Começou a chover forte e eu chovo junto.

2 - Procuro sorver a força que dá vida à floresta.

3 - No centro da Terra é cada vez mais quente.

1 - O nada das paixões acontece de fora para dentro.

3 - Porque nada se completa...

2 - ...e tudo é o que é em si.

3 - De lá, sinto a quentura incandescente, que dá vida a uma fênix dourada, ...

1 - ... que vai, expulsa, impele, ...

2 - ... e sobe como um raio que invade o céu.

1 - Sinto o colo agora, o contato da pele. Me envolvo no mais íntimo do outro.

2 - Como peixes, que comem outros peixes, pego, aperto e gosto.

3 - Tudo se come, tudo se brota.

1 - Escolho o que como ...

2 - ... e me faço cardápio para as escolhas.

1 - Penso que jogo com o outro.

2 - Ele pensa que joga comigo.

3 - Nesse jogo não se sabe a caça ou o caçador. Vítimas?


302

1 e 2 - Sim, somos.

1 - Mas gosto!

2 - Gosto!

1 - Gozo!

2 - Sou gozado!

3 - E no final, somos todos vencedores.

Grupo 2: Cinara, Fábio, Júlia, Luciana

Um encontro com Deus, com o Deus que está em mim, na inocência da loucura.

Tristeza, melancolia, lágrimas, procura...

Aceitar o que nos parece estranho...

Ternura, busca, incessante busca, visceral, preocupações...

Cuidado! Cuidado! Cuidado!

Olhar para dentro...

Cuidado!

A segurança de estar dentro de um ventre.

Amor...

De voltar para ele... A dor de não estar mais dentro dele.

Meninos, moleques, alegria, o medo de não ser mais criança.

Ai meu Deus dai-me asas!


303

Libertação!

Liberdade!

Quero caminhar...

Somos anjos de uma asa só!

As frustrações das não - realizações.

Abracem-se...

A calmaria que tortura

Me busca

A dúvida

Me pega

A surpresa

Infiltra

Sexo, águas cristalinas, gozo, paixão...

Sorrisos, jogo de seduzir, cheiro bom, noites tranqüilas...

O vermelho das paixões, desprendimento, experiência...

Águas serenas na tempestade dos meus pensamentos.

Um beijo apenas, depois decidimos.

Viver na inocência da loucura?


304

Se deixar envolver nesta dança?

O semeador não tem controle sobre o que planta.

Certeza

Morte!

Grupo 3: Fábio, Maria Eugênia, Altamar e Justina

1° Etapa, a poesia (negrito) é dita por Maria Eugênia e as inserções (entre parênteses) por
Altamar; na segunda etapa a poesia é dita por Altamar e as inserções por Maria Eugênia.

Tempo Vazio

Agora Vaio

Já!! (Fogo Claro Calor)

Tempo vazio (Tempo vazio)

Já? Já! Já? Já! (Caldo Mundo)

Vazio Agora (Sonho Cavalo)

Tempo, tempo ... (Caminho)

Completo?

Prazer? Gozo? (Balanço interno)

Vazio (Alimento)

Agora vazio

Tempo, tempo (Contato completo gostoso)

Efêmero tempo (Cuidado)


305

Vazio tempo

Sagrado tempo

Conheci Tempo

Aprimora tempo

Controlado

Costurado

Construído (Conhecimento Relâmpago)

Caminha tempo

Cavalga tempo

Sagrado Tempo

Veloz

(Aprimoramento)

Tempo Vazio (Prazer Gozo)

Agora Vaio (Calma)

Já!!

Tempo vazio

Já? Já! (Calma)Já? Já!

Vazio Agora (Boca Língua escapa molhada)

Tempo, tempo

Completo?
306

Prazer? Gozo?

Vazio (Poder)

Agora vazio

Tempo, tempo

Efêmero tempo

Vazio tempo (Poder)

Sagrado tempo

Conheci Tempo

Aprimora tempo

Controlado (Poder)

Costurado (Poder)

Construído (Poder)

Caminha tempo (Poder)

Cavalga tempo

Sagrado Tempo (Poder)

Veloz
307

A.3. Questionários

Referente à primeira fase (Início do processo - função de diagnóstico)

1. Para você o que é Expressividade? E Corpo Expressivo?


2. Quando e por que você se sente (sente seu corpo) mais expressivo? Descreva essa
sensação, ou dê exemplos.

Alguns trechos de respostas questionário fase 1:

1. Para você o que é Expressividade? E Corpo Expressivo?

Justina: “Entendo por expressividade a capacidade de um corpo de emitir energia, fazendo-a


circular em si e interagindo com o ambiente que o contém; corpo expressivo, portanto, seria
um corpo dotado de tal qualidade energética que lhe confira a propriedade de se fazer
perceber”.

Fábio: “O termo expressividade está intimamente ligado com o conceito de comunicação.


Portanto, corpo expressivo é aquele que comunica (o que independe de intencionalidade).
Entendo que todo corpo guarda em si, essencialmente, informações, e a partir do momento em
que ele, o corpo, é percebido, está sendo expressivo”.

Afrânio: “Expressividade, pra mim, é a simples capacidade de exercer, em qualquer grau,


comunicação. Corpo expressivo é o que se obtém do corpo trabalhado fisicamente para que
possa se comunicar através de sua postura e ações físicas”.

Lisa: “Dizer algo. Tornar externo alguma idéia, pensamento ou sentimento pessoal. Corpo
expressivo é um corpo extra-cotidiano. Ele tem a função de fugir do naturalismo (da forma
que se apresenta no dia-a-dia) para passar essa idéia, pensamento ou sentimento em questão”.

Cinara: “Expressa é mostrar, representar, manifestar algo. Um corpo expressivo se define em


uma valorização dos gestos e do movimento... No teatro a expressão corporal se desvincula da
literatura, ou não, o corpo se faz conhecer, revela um sentido sem ao menos precisar da
palavra”.
308

Altamar: “É a capacidade de expressão do indivíduo, a comunicação ou contato físico entre a


alma, ou espírito, ou personalidade, ou caráter com o mundo. (...) Acho que todos os corpos
têm um grau expressivo, explicando por imagem: uma represa de água tem um potencial de
acordo com a quantidade de água que possui, mas peraí, uma vez eu vi um rio tão seco com
pequenas poças de lama e água e tinha muitos peixes nessas poças, isso na seca do sertão, isso
é tão expressivo”.

Luciana: “Expressividade é uma maneira de você colocar para fora o que está sentindo, seja
uma emoção, um estado, ou simplesmente demonstrar amizade, dor, etc.”.

Leonardo: “Expressividade, pra mim, é a energia que por si só comunica algo. (...) Falando
do corpo do ator, acho que esse é expressivo quando está vivo em cena e diz ao espectador o
que o texto (se houver) quer dizer”.

Júlia: “Quando o ator consegue emanar energia através de pontos do seu corpo. (...) Da
cabeça ao dedo do pé o ator precisa liberar energia. Acredito que este processo se dá através
de uma força interior, talvez espiritual e muito íntima”.

Maria Eugênia: “Para mim é a capacidade de comunicar. Algumas vezes essa comunicação
não está relacionada à racionalidade, mas ao sentimento, este, no nível das sensações. Corpo
expressivo é um corpo capaz de ultrapassar a mera reprodução de movimento, chegando a
expressar as tensões/sensações que envolvem aquela determinada situação”.

Clarissa: “Acredito ser expressividade a capacidade do artista de expandir seu instrumento –


corpo e voz – no intuito de ultrapassar a maneira de se expressar cotidianamente e, no placo,
conseguir comunicar ao espectador sua intenção cênica. Um corpo expressivo é um corpo que
irradia energia do ator através de movimentos conscientes alinhados com o objetivo
previamente idealizado. É um corpo-em-vida, um corpo quente, um corpo incandescente. É o
criador de ponte entre o físico e o mental no processo criativo. Um corpo expressivo é aquele
que comunica, que estabelece uma relação com o espectador, possibilitando a ele uma leitura
direta com o significado do movimento. (...) A partir de uma eterna leitura (não linear) do
livro ‘A Arte Secreta do Ator’, percebo que expressividade é o que eles chamam de dilatação.
É o momento em que o corpo, previamente preparado, deixa de ser criação e passa a ser
criatura. A expressividade é a ampliação das ações típicas do comportamento diário, é o fluxo
de energias cotidianas redirecionadas e selecionadas para o palco”.
309

2. Quando e por que você se sente (sente seu corpo) mais expressivo? Descreva essa
sensação, ou dê exemplos.

Justina: “Ao realizar atividades que estimulem meu corpo em nível orgânico, metabólico
e/ou energético. Como quando ao correr, fazer alongamento, ao lidar com a manipulação
energética e apelo emotivo ligados á atividade teatral, durante procedimentos de relaxamento
e indução de pensamentos/emoções, etc”.

Fábio: “Sinto meu corpo mais expressivo sempre que penso a respeito, ou volto minha
atenção pra ele. Acredito que durante todo o tempo, a cada respiração, participo da
transformação do universo e como conseqüência, me transformo. Nas aulas de técnica, por
exemplo, a minha atenção está voltada para o corpo, suas ações e reações”.

Afrânio: “Sinto meu corpo mais expressivo quando faço coreografias em grupo. É um
momento em é possível sentir muitas forças convergindo”.

Lisa: “Quando existe ema atenção voltada pra ele, quando meu foco se torna ele; por que ele
se torna conscientemente uma extensão do meu pensamento/sentimento/idéia. É como se o
corpo ganhasse voz”.

Cinara: Sinto meu corpo mais expressivo quando tenho aulas de expressão corporal, como,
por exemplo, na cadeia de técnica de corpo. Também conto com meu corpo para compor
personagens (...). Sempre ouço o que o meu corpo tem a me dizer”.

Altamar: “Sinto meu corpo mais expressivo quando o mundo me pede uma reação diante de
coisas inesperadas. Há um aumento nos meus órgão de sentido: vejo o foco, percebo o que
está junto do meu foco, se o cheiro é bom eu me preparo pra ficar diante e receber, se é
comida eu quero devorar, me apropriar, se são sensações eu busco as explorar. Ou seja, há um
movimento em sentido favorável se há prazer, ou repulsa se há desprazer”.

Luciana: “O corpo expressivo é aquele que responde a estímulos e sensações”

Leonardo: “Quando danço. Independente do estilo musical, quando estou dançando me sinto
mais livre do racional. Experimentei grandes descobertas quando fiz dança contemporânea.
Na verdade, quando se une corpo e música consigo perceber em mim capacidades expressivas
que não experimentei até hoje em nenhum outro trabalho”.
310

Júlia: “Quando minha mente está sem preocupações, existe um desprendimento, uma entrega,
uma desconstrução. (...) depois de longos exercícios repetitivos e cansativos minha mente
estava livre e liberou a passagem para a criação e expressão do meu corpo”.

Maria Eugênia: “Para mim são três os elementos mais significativos para reconhecer essa
sensação (de sentir o próprio corpo expressivo): primeiro a consciência de meu corpo de
forma total. Momentos em que eu sinto cada parte do meu corpo viva e em prontidão.
Segundo é a capacidade de concentração em uma sensação/ objetivo, tornada concreta em
meu corpo. Terceiro é a ampliação da energia física dando a sensação de que meu ser
ultrapassou os limites do corpo e tomou conta do ambiente”.

Clarissa: “Quando faço um trabalho corporal; quando descubro a movimentação de um


personagem ou cena; quando consigo decupar um movimento e controlar sua intensidade, seu
ritmo; quando canto e quando estou no palco. Essa sensação decorre de um olhar que lanço
sobre meu corpo, muitas vezes desprezado. No momento em que recorro a ele ou trago dele a
energia para moldar uma cena ou um estudo, é como se percebesse sua existência. A partir
dali o horizonte da consciência se amplia, pois a ‘tensão’ de estar no palco não se encontra
apenas no texto, na voz, no outro, nas marcas, nas emoções, etc, mas também, e
primordialmente, no meu instrumento. Não falo de tensão como trava ou bloqueio, mas como
ponto de atenção. (...) Quando meu corpo está expressivo ele complementa ou referenda meu
discurso verbal. Me sinto mais forte, atenta e consciente do que estou dizendo e fazendo”.

Referente à segunda fase (após fase dinâmicas yin yang e mais contatos com chi kung)

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as


dinâmicas relativas aos emblemas yin yang? Comente.
2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.
3. Chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?
Comente.

Alguns trechos de respostas questionário fase 2:

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as


dinâmicas relativas aos emblemas yin yang? Comente.
311

Justina: “A dinâmica em si, aplicada nessas aulas tem sido um elemento positivo para o
estímulo a construção de imagens e metáforas corporais; mas não sei exatamente se posso
atribuir aos pares/opostos referentes a tais emblemas as imagens que me são sugeridas, uma
vez que o quer que se apresente, a princípio, pareça-me apenas tratar-se de opostos simples,
ou seja, não sei exatamente ainda que qualidade de energia atribuir a cada emblema, não é
claro ainda pra mim a que se refere o princípio do yin/yang”.

Cinara: “Em alguns momentos a mente e o corpo aceitam (entendem) o que está sendo
pedido e em outros não, por exemplo quando se pede “claro” e “escuro” fica difícil fazê-los
sem ser interpretando com os meus conhecimentos do que é claro e escuro, e por aí vai”.

Fábio: “Sinto mais como uma obrigação de aula do que como processo criativo (inspirado).
Talvez pela expectativa outras vezes frustrada de não chegar, aparentemente a lugar nenhum”.

Leonardo: “Os emblemas yin yang têm revelado nesse primeiro contato formas corporais
libertadoras de alguns estereótipos. Estou satisfeito também com a forma com que as aulas
têm sido conduzidas”.

Júlia: “Desde o início achei extremamente interessante o trabalho com as energias opostas
(yin yang). Na maioria das vezes me senti estimulada a criar e brincar com essas duas
energias. Existiam alguns emblemas que são extremamente abstratos e acabam sendo
ilustrados (com a resposta corporal), o que não acho tão válido. Mesmo com a recepção
racional, essa sensação tem que sair de forma orgânica e criativa. Quando ouvia as
sensações/energias (estímulos relativos ao yin yang), e meu corpo respondia organicamente
achei interessante. Quando fazia um movimento ilustrando uma sensação, não era uma
movimento negligente, mas pouco criativo. Acho que em certos emblemas eu não tinha tanta
consciência do estímulo que me levava a fazer determinado movimento. E às vezes
funcionava”.

2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

Justina: “Percebi que a qualidade de energia que se instala com o treinamento tende a
conferir um estado inusitado entre a prontidão, concentração e relaxamento. Do ponto de vista
filosófico, ideológico e até físico, o chi kung me trouxe o despertar de um olhar sobre meus
canais de manipulação energética e, sobretudo, a verificação de um nível ainda embrionário
de exploração nesse sentido”.
312

Cinara: “Incômodo e mal estar. Não consigo ver nada, sinto muita dor nas costas, agonia,
vontade que acabe logo. Tento várias vezes seguir todos os passos do exercício, até sigo, mas
na hora de sentir energia, de ver o ponto entrando em minha cabeça já era. Não funciona
comigo (pelo menos por enquanto)”.

Leonardo: “Desconforto foi a primeira sensação. Não consegui me concentrar por que meu
corpo doía um pouco e mesmo que eu visualizasse as imagens de formação de energia (wu
chi, chi, tai chi) não conseguia sentir a energia se formar. Com o tempo tive outras respostas.
O corpo suava, as mãos aqueciam e formigavam e tanto visualizava, quanto começava a sentir
a energia, mas de maneira desorganizada e caótica, em especial na região da mãe de todos os
centros”.

Júlia: “A presença cênica é estimulada pelo centro energético. Acho minha energia bastante
desorganizada, nas vezes que consegui realizar bem, sem interferência o chi kung, senti minha
energia em harmonia não só na aula, mas no resto do dia. O chi kung precisa ser um exercício
diário, pois me incomoda uma pouco”.

Altamar: “Tranqüilidade, agonia, imagens coloridas, medo, dor nos pés, peso, relaxamento”.

3. O chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?
Comente.

Justina: “Considero o chi kung um elemento de conexão com o corpo integral (físico,
energético, intelectual, etc), o que, por si só, oferece ao ator e ao indivíduo um fortalecimento
e ampliação da percepção interior (o que há de contribuir de alguma via para o despertar e
aprimoramento da criatividade); e exterior também, no sentido de expandir nossa atenção e os
sentidos em geral (que me parece estabelecer um nível de consciência física e experimentação
emocional e energética que me sugere um ambiente ideal para a expressividade). Com isso,
claro, podemos falar senão de uma técnica “de atuação”, ao menos de uma técnica “para a
atuação”, no sentido que o treinamento se presta a um aspecto de sustentação do
ator/indivíduo como ser integral, mais ligado e ao ambiente em que se insere”.

Fábio: “Acredito aproveitar o chi kung como meio de me concentrar, me trazer pra sala,
trazer a atenção pra mim e meu corpo. Nisso me agrada. No trabalho técnico/ expressivo/
criativo por enquanto não interferiu. Talvez seja cedo. Talvez o tempo não seja suficiente”.
313

Leonardo: “Sem dúvida alguma facilita principalmente pelo fato de ser a primeira aula do
dia. O chi kung possibilita uma reorganização ativa das energias do corpo, e amplia no ator a
experimentação vigilante e investigativa. Isso tem me ajudado no processo de percepção”.

Júlia: “Nas vezes que me concentrei e realizei bem o chi kung meu corpo ficou em estado de
prontidão para criar. No sentido técnico/expressivo sinto uma dilatação no corpo, uma
sensação de expansão. Especificamente em alguns processos sentia a energia partindo da mãe
de todos os centros e visualizava a energia yin e yang. Quando o centro energético é ativado, a
criatividade aflora. Eu procuro deixar fluir as indicações e deixar de lado o racional para que
meu corpo aja de forma espontânea”.

Altamar: “Tal trabalho possibilita concentração do corpo, fato fundamental para passear pela
técnicas de corpo. É uma preparação para as múltiplas possibilidades e o observo como um
portal de entrada que diferencia o ocasional, cotidiano, etc, do controlado, criativo, artístico.
Talvez fosse interessante para valoriza-lo como preparação, início, portal, a existência de uma
técnica similar para finalizar o momento criativo”.

Referente à terceira fase (Após fase dinâmicas I ching e contato mais constante com chi
kung)

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as


dinâmicas relativas aos arquétipos/trigramas do I ching? Comente.
2. Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.
3. Chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?
Comente.

Alguns trechos de respostas questionário fase 3:

1. Você se sentiu estimulado a criar/compor expressivamente nos trabalhos com as


dinâmicas relativas aos arquétipos/trigramas do I ching? Comente.

Júlia: “Muito. A combinação das sensações e estímulos propostos sempre casava


perfeitamente e os resultados percebidos não só em mim, mas também nos colegas, foram
fantásticos. Houve composições maravilhosas que me lembro que nasceram de todos esses
314

estímulos e que tinham uma profundidade fascinante como exemplo o dia em que
trabalhamos o irmão do meio, a água e no fim foi dado o estímulo da loucura. Surgiu em cada
um, figuras muito bacanas, distintas e longe de qualquer estereótipo de louco. Outro exemplo
que me lembro agora foi a criação da ave, um dos momentos mais interessantes, o trigramas
trabalhado foi o fogo. Criei uma galinha bem tensa onde toda a energia partia da base que
tinha uma relação com olhar formidável. O que é fundamental é essa consciência de onde está
a energia executada e que ao mesmo tempo seu corpo está vivo e seu olhar preenchido. O ator
precisa ao mesmo tempo ter consciência e estar completamente vivo. Além de todos os
estímulos dos trigramas que proporcionaram criações ao me ver indispensáveis para o meu
crescimento. Eles mexem com todos os tipos de sensações que já existem dentro da gente. No
momento em que esses estímulos serviram para elaboração de um texto desencadearam
sensações que estavam aquietadas, muito boas e muito ruins. Vieram à tona sentimentos
guardados que precisavam sair, não deixaram de ser doloridos, mas talvez de uma próxima
vez eu saiba lidar melhor com eles”.

Clarissa: “ Sim. Acredito que o trabalho de composição de um personagem se dê a partir de


estímulos de personalidade, texturas, movimentos, relações com outras fontes. Enfim, o
processo com os trigramas possibilitou uma gama de possibilidades de criação, pois além de
trabalhar com arquétipos conhecidos, próximos, trouxe várias fontes de estímulos (natureza,
temperamento, comportamento). O fato de trabalharmos com esses arquétipos deixou o grupo
mais à vontade para criar. Não houve imposições de características realistas, cada um seguiu o
seu desenho e a sua leitura. A criação vinha a partir do corpo, mas não deixava de lado a
criação intelectual. Ao contrário, desde o trabalho do chi kung, valorizamos os nossos dois
pólos de energia, o yin e o yang”.

Altamar: “Me senti estimulado, os trigramas agrupam significados, apontam várias coisas
que tem um ponto comum (ex: terra, profundo, escuro, frio, etc.), e isso cria uma ‘atmosfera’,
um campo mais delimitado para que uma ação seja realizada de modo definido.”

Leonardo: “Acho as imagens do I ching muito fortes, mas acredito que elas apenas não
conseguiriam suscitar em mim tantas respostas. (...) Cada aula era conduzida direcionada a
um fim. E os resultados corporais obtidos me deixaram muito satisfeito. As respostas com os
trigramas eram muito verdadeiras e sem dúvida já estão armazenadas em minha memória
corporal. Me diverti muito criando a partir dessas imagens.”
315

Cinara: “Sim. O processo aguça a imaginação, a criar imagens, que deixam o corpo
‘flexível’, as criações, as composições passam do racional para o experimental. Esta etapa
mexeu muito com as emoções, estas expressas no corpo. Isto tudo estou dizendo do trabalho
corporal, mas quando fui criar o texto o que foi dito e tudo que estava impregnado das
dinâmicas, me fizeram viajar. Se fosse compor um personagem teria um excelente material,
principalmente as personagens que exigem uma partitura corporal, que aliás, acho que todas
precisam de uma certa forma”.

Justina: “Acredito que todo repertório apresentado na aula nos estimule efetivamente a
compor, uma vez que a condução se presta a unir nosso potencial subjetivo, a imagens
sugeridas pelos arquétipos. (...) Era sempre surpreendente o quanto cada arquétipo se delineia
em uma propriedade energética expressiva e em um repertório de imagens, muitas vezes
comum entre os integrantes do grupo, o que, pra mim, remete ao aspecto do insciente coletivo
e, quanto à contribuição individual, certamente é o que estabelece o diferencial, e a
pluralidade das composições.”

2.Que respostas ocorreram em você com o chi kung? Comente.

Júlia: “Hoje posso afirmar que com chi kung consegui reorganizar melhor minhas energias. A
concentração também é algo imprescindível para o ator e o chi kung permite desenvolver
muito bem isso. O contato com o chi kung foi maravilhoso não só porque vai me ajudar, ou
melhor, já está ajudando profissionalmente, mas também auxilia espiritualmente e
mentalmente. Até porque o ator tem que saber lidar muito bem com seu emocional, por isso o
ofício do ator é muito difícil. Particularmente gosto muito dos preceitos e da filosofia oriental
e pretendo continuar usando a sabedoria oriental em todos os ramos da minha vida. No meu
entendimento o chi kung permite o equilíbrio das energias que partem do centro energético de
forma a irradiar de forma cíclica todo o espaço. Isso está diretamente ligado com a presença
cênica”.

Clarissa: “O chi kung me proporcionou a percepção de união dos nossos opostos


complementares. O fato de acreditar muito numa construção intelectual em nenhum momento
me bloqueou para trabalhar com a proposta do chi kung. Percebi que o processo é
concomitante, fonte yin e fonte yang, uma se alimenta da outra. A vigilância sobre o processo
não precisa ser somente questionadora, mas auxiliadora. O corpo sabe agir, sem precisar
seguir apenas ordens. O chi kung me proporcionou essa experiência”.
316

Altamar: “As respostas do chi kung foram às vezes calafrio, autopercepção, consciência
corporal, funciona em mim como um corte de energia de produção de ações cotidianas e
minha energia de ações de pesquisa corporal.”

Leonardo: “A captação de energia yin me desestabiliza. Queria entender porque. O que não
acontece com a captação da energia yang. Nesse caso, além de facilidade de captação, acho
que manipulo muito bem essa energia. Porque isso acontece?”.

Cinara: “Hoje em dia vem me deixando mais concentrada, mais centrada no trabalho diário.
Ainda bem quer processo é um crescente, pelo menos esse foi, só agora me dei conta de que
forma as dinâmicas poderiam me ajudar.”

Justina: “Me despertou para um aspecto importante da construção do meu repertório de


expressividade, que é a importância de investigar essa via de energização de forma a
prescindir um pouco da minha tendência intelectual e racional, ou seja, muitas vezes, talvez
pelo aspecto racional e a insistente observação dos aspectos físicos, não conseguia acessar o
‘canal’ que me ligasse (ou desligasse), para a percepção da manifestação energética.”

3.Chi kung facilita, dificulta ou não interfere no trabalho técnico/ criativo/ expressivo?
Comente.

Júlia: “Facilita. Quando faço o chi kung fico extremamente concentrada e mais criativa
durante os laboratórios. Além dessa dilatação do meu corpo que já havia dito anteriormente,
sinto uma conexão muito grande com o meu corpo, o espaço e as pessoas ao meu redor. É
como se fosse aguçada a percepção, a consciência de tudo que me cerca. À medida que fui
fazendo o chi kung em aula e às vezes em casa ficou mais fácil mergulhar nesse equilíbrio das
energias yin yang. Senti um progresso na execução do exercício, apesar de ainda continuar
sentindo a energia yin mais presente. Tecnicamente falando, consegui desenvolver em sala
resultados que me deixaram muito satisfeita. Sinto hoje uma evolução na minha consciência
corporal, no meu estado de prontidão. Acredito que isso tenha se dado devido ao princípio de
tudo que no caso foi o chi kung que impulsionou esse estágio em que me vejo agora. Sinto-me
à vontade a criar com o corpo sem travas e tensões. O ponto que gostaria de destacar é quando
há inserção de texto. Sinto que às vezes consigo me comunicar bem com o corpo, mas quando
vem acompanhado de texto existe algo fora do eixo, sei que preciso investir mais nisso.
317

Tomara que possa dar continuidade com o chi kung para que possa atingir esse ponto que é de
extrema importância”.

Clarissa: “Qualquer técnica que seja utilizada antes da criação interfere em seu processo. O
chi kung proporciona a concentração da energia, o equilíbrio. Coloca o grupo, o indivíduo,
num estado de tranqüilidade e de propriedade sobre si. Ele lida com a qualidade de energia e
essa qualidade que devemos levar pra cena”.

Altamar: “O chi kung facilita e interfere no processo no sentido de possibilitar uma


concentração para início de um trabalho de ator (..) Acho importante separação entre ‘arte’ e
‘realidade’ em se falando do trabalho de ator, pois estes espaços possuem ‘leis físicas’
diferentes.”

Leonardo: “Hoje afirmo que facilita com muito mais propriedade, pois tive a oportunidade de
experimentar a prática dentro dos trabalhos do meu grupo de teatro, e então pude perceber o
quanto surte efeito.”

Cinara: “Ajuda. Como eu resolvi converter em prazer, consegui que me ajude na


concentração”.

Justina: “Acredito que se possa usar o chi kung como via de acesso à subjetividade e, por
meio dessa, atingir certo nível de expressividade elaborado pela formação e fisicalização das
imagens suscitadas no processo. Em nível energético, no entanto, não me sinto ainda
suficientemente sensibilizada, e, apesar da limitação individual, verifico uma contribuição em
nível de estímulo à formação de imagens e condicionamento criativo/expressivo”.
318

ANEXO B

REFERENTE AO ESPETÁCULO

B.1. Ficha técnica

Dramaturgia: inspirada nos livros Noturnos e Clarice, de Ana Miranda

Transcriação e concepção: Alice Stefânia e André Amaro

Direção: André Amaro

Interpretação: Alice Stefânia

Sonoplastia: Luciano Marques (Lupa)

Cenário, objetos e figurino: Maria Luiza Fragoso (Malu)

B.2. Transcrição do diário de bordo

A seguir transcrevo os principais trechos do meu diário de bordo. Há partes que


acrescentei posteriormente, a partir de reflexões e associações que foram surgindo com o
tempo. Essas partes - acrescidas depois ao diário de bordo - estão sublinhadas. Acredito que o
319

relato das experiências, aliado às explicações, torne mais claro o processo ao leitor. O DVD
com a filmagem do espetáculo, que acompanha essa tese, também deve ser consultado,
especialmente por quem não assistiu ao espetáculo.

03/07/06

15:58 pm

Finalmente. O primeiro ensaio chegou. Era pra ser de manhã. Não pude, remarquei pra
tarde. Esse adiamento de 7 horas me incomoda. Estou ansiosa pelo início. Meu corpo pede, há
algum tempo, por esse processo criativo.

André ainda não chegou... Espero que não demore...

...aqui estou cheia de vontades, medos, expectativas, dúvidas, sonhos, garra.

16:04 pm

Ai meu Deus... André chegou. Vai começar... a coisa!

17:53 pm

Aconteceu, começou, desencantou. Fiz um aquecimento - minha série básica, depois


um chi kung espontâneo partindo do “sentar na calma”. Em seguida André quis ler os contos
pré-selecionados e pediu para eu me expressar ao ouvi-los, em estado de chi kung... Foi isso
hoje. Ele disse que gostou do que viu. Combinamos que nossa dinâmica inicial será: eu faço
um aquecimento, o chi kung e parto para uma criação expressiva em cima de uma matriz
taoísta escolhida por mim ou proposta por ele (ele tem as tabelas dos contrastes yin yang, e
das cinco energias. Decidimos não usar o I ching, pra não ficar um excesso de matrizes). Daí
ele assiste e propõe outros desdobramentos, na interação com o texto (ou não) a partir do que
ele me vir criando.

Preciso fazer um cronograma.

Hoje, ao ouvir o texto e me expressar com o corpo me senti um pouco repetindo


padrões habituais. Em alguns momentos consegui quebrar, mas nem sempre... Estava
nervosa...
320

05/07

Após o aquecimento e ainda em estado de chi kung, realizei experimentação


expressiva a partir de contrastes retirados das associações yin yang.

• O primeiro contraste a ser trabalhado foi profundosuperficial. A idéia de


superficial veio como um jogo de mãos na altura do peito e sons com “tsc, tsc,
tsc” e “sssssssss”. A idéia de profundo surgiu com um deslocamento rápido
com os braços em direção ao chão, como tronco dobrado e pisadas fortes,
pesadas. A transição entre uma e outra imagem, partiu do princípio de
transformação gradual, e veio com uma torção de tronco e mãos. André
visualizou nessa experimentação a relação com um gato ou outro animal de
estimação, que estaria em minhas mãos (na experimentação com matriz
superficial) e se soltaria e eu sairia atrás (na matriz profundo). Começamos a
explorar essa ação física, que nomeamos inicialmente de “gato”, e depois de
“bicho”, e que gerou as cenas com o espanador-bicho de estimação (por que o
público viu, além de um gato, um cão e um pássaro).

• O segundo contraste experimentado foi troncomembros. Tronco veio com sons


guturais e movimentos ondulares em profundidade da coluna, gerando em
ondas movimentos com os braços (membros). Os cotovelos ficavam próximos
ao tronco, o antebraço era jogado com a cabeça e as pernas. André viu nessa
movimentação uma imagem de lavar roupas e estender no varal. A idéia foi
sendo redimensionada, o corpo passou a se dobrar com movimento de tronco,
pegar as roupas com os braços e estender no varal usando os dedos como
pregadores. Puxo tecidos do varal (ainda só trabalhando com objetos
imaginários), me enrolo, enxugo suor, me lavo, lavo tecido novamente. Jogo
tecidos no chão e corpo, ajudo a jogar ou a pegar com pernas, a partir de
joelhos dobrados. Essa experimentação se desdobrou na cena do varal.
Importante frisar que, antes dessa experimentação, não havia nenhuma
referência ou idéia pré-concebida de uma cena que usasse ações como lavar
roupa, pendurar no varal e interagir com essa roupa pendurada. Assim como no
caso da ação do gato. Células expressivas dessa mesma matriz foram usados na
321

cena da teia, quando a personagem parece remeter à imagem de um bicho


preso.

Fizemos ainda uma experimentação em cima do conto Casa, onde a personagem varre,
limpa e muda as coisas de lugar obsessivamente. Apesar de partirmos do conto, e não de uma
matriz taoísta, a experimentação com membros, feita anteriormente ecoou nessa também,
gerando gestos de varrer com as mãos o próprio corpo e o ar, com a sensação da poeira
invadindo, dos pés varrendo o chão. Células expressivas dessa experimentação foram usados
em toda a cena da luta com a poeira no espaço e no próprio corpo.

06/07

Após a preparação, ainda em estado de chi kung, realizei experimentação expressiva a


partir de contrastes retirados das associações yin yang.

Hoje André propôs os contrastes a serem explorados. O primeiro foi


transportararmazenar conjugado ao dareceber. O transportar-dar surgiu como um ato de
carregamento de peso, com braços esticados como se estivesse oferecendo algo. Desdobrou-se
em várias formas de carregar, transportar, sempre com a sensação de peso. Essa matriz foi
usada nas cenas carregando o balde e a bacia. Armazenar - receber surgiu como um gesto de
recolher ar em torno de si com as mãos e guardar no próprio corpo. Essa matriz foi usada na
cena do banho de bacia, em que a personagem se relaciona com a água.

O segundo contraste experimentado expressivamente foi úmidoseco. Úmido gerou


gestos de respingamento, como se o corpo deixasse rastros de água, pingos. Os pés rastejavam
no chão com o dorso voltado para baixo. Essa matriz também foi usada na cena do banho com
bacia, conjugada à matriz armazenar. Os pés rastejantes foram usados em diferentes
momentos de caminhada durante o espetáculo, como quando ela vê a camisa no chão e vai em
sua direção para lavá-la, ou quando vai jogar o filho pela janela. A idéia de seco fomentou
uma construção gestual rija e entrecortada, nas mãos e pés. Um deslocamento com os dedos
dos pés retesados pra cima ou pra baixo, e as mãos na altura do peito também tensionadas,
abrindo e fechando, criando uma movimentação de palpitação. Células dessa matriz foram
usadas no acordar com o despertador e na cena da oração a Nossa Senhora, com o terço. Os
322

pés eriçados, isoladamente, voltam em vários momentos de tensão da peça, como ao soar do
telefone, junto à matriz frio.

Trabalhamos um pouco mais as idéias das cenas do gato e do varal, desdobrando as


matrizes que deram origem a essas cenas. Conversamos que nosso tema, tema da obra
Noturnos de Ana Miranda, parece ser a solidão. Surgiu a idéia dela se relacionar em vários
momentos com o animal, e talvez matar o gatinho no fim, talvez sem querer. Surgiu também a
idéia de trabalharmos com uma camisa de homem no varal, partindo da matriz
troncomembros e desdobrando-a, e usando os textos em que ela se refere a uma presença
masculina.

10/07

Após o aquecimento e o chi kung, ainda em estado de chi kung, realizei


experimentação expressiva a partir de contrastes retirados das associações yin yang.

André propôs novos contrastes. Pediu para que eu inserisse mais som nas
experimentações. O primeiro contraste a ser trabalhado foi calmagitação. Calma surgiu como
um gesto de quem corta ou costura o ar e canta com muita suavidade. Agitação veio como
quem se fura com uma agulha e em cada furo grita e lamenta, em tom cantado: “Ai!!! Ai!!!”
A matriz calma emprestou princípios para algumas cenas de canto da peça. A matriz agitação
gerou a cena onde a personagem se costura, após ter sua costela quebrada no coito.

A outra dupla experimentada foi raivamedo. Raiva veio como um gesto de birra, de
menino mimado que não consegue algo que quer, e infla as bochechas e esmurra o chão pra
baixo. Elementos dessa matriz foram usados no momento em que ela grita “Passa passado,
passa” e arranca sapato. Em alguns momentos de relação com a poeira e na hora que ela pisa
no telefone. A experimentação com medo gerou uma expressão fisionômica intensificada pela
ação das mãos puxando o rosto pra baixo, e um som de terror, susto, com o ar entrando.
Células dessa matriz foram usadas em diferentes momentos de susto: quando ela se percebe
gorda, quando percebe as unhas, quando joga as coisas pela janela, quando fala das olheiras,
etc.
323

11/07

Após a preparação inicial fizemos uma recapitulação das matrizes até o momento,
relembrando as formas surgidas e relacionando às sensações. Assim temos até então:

• Matriz: profundosuperficial. Ações: relacionar-se com animal de estimação, sair atrás


dele e pega-lo no colo. Sensações: afeto, ternura, apego.
• Matriz: troncomembros. Ações: sexo, lavar roupa, estender no varal. Sensações:
prazer, limpeza, obsessão por organização.
• Matriz: umidadesecura. Ações: limpar, varrer, palpitar de coração. Sensações:
purificação, prazer, medo, espreita, pulso acelerado.
• Matriz: calmagitação. Ações: cantar, costurar, se furar. Sensações: tranqüilidade, paz,
prazer, lúdico, incômodo, tormenta interna, angústia.
• Matriz: medoraiva. Ações: esconder-se, retesar o corpo, sons guturais rosto puxado
pra baixo, birra ofensiva, briga, com corpo avançado e punhos cerrados. Sensações:
pânico, susto, incredulidade, belicosidade, irritação.

Importante notar que as sensações associadas são em grande parte contrastantes,


justamente por partirem de um par de opostos complementares. Assim, foram experimentadas
transições graduais e em salto entre os dois aspectos de uma matriz.

13/07

Após a preparação inicial, sempre com aquecimento e chi kung, iniciamos a


construção do desenho de algumas cenas: a do animal de estimação, a da relação com a
poeira, a do banho de bacia, a da lavagem da camisa, e a da camisa no varal. Essa seqüência,
esboçada nesses dois dias, nortearam todo o fluxo dramatúrgico do espetáculo. Durante a
construção das cenas, as ações físicas foram trazendo o máximo de células expressivas
geradas até então na exploração dos contrastes trabalhados.
324

14/07

Após a preparação, retomamos o desenho de ações e passamos a experimentar a


inserção de textos. Trabalhamos alguns contrastes a partir da voz trazendo o texto. O duplo
densosutil foi explorado nos textos relacionados à presença masculina. Em seguida
exploramos a oposição sombrioluminoso no texto sobre as unhas.

A experimentação dos contrastes no texto falado gerou por vezes uma intenção
paradoxal no discurso, o que favoreceu a polissemia na cena.

Nos ensaios que seguiram a este fomos amadurecendo nosso desenho de ações e
cenas, inserindo os textos que julgamos pertinentes.

24/07

Após a preparação usual, em estado de chi kung, retomamos o processo de


experimentação a partir de matrizes ligadas a três estados afetivos descritos em wu hsing (vide
seção 1.2.c):

• Matriz alegria - este estado foi favorecido a partir da inserção gradual, por parte do
André, dos seguintes estímulos: coração + calor + gargalhada. Dirigi o chi kung
irradiando energia ao coração, o que me trouxe logo uma vontade de rir. Esse trabalho
gerou um espreguiçar do tronco em cadência de dança e uma sensação crescente de
aquecimento no peito culminando em uma gargalhada. Devo ter ficado uns quinze
minutos gargalhando, às vezes de forma mais espontânea, às vezes reforçando um
pouco o calor no peito pra despertar o riso novamente.
• Matriz obsessão + canto: a vivência gerou movimentos insistentemente espiralados de
dedo e tronco.
• Matriz tristeza + secura + choro: essa experimentação foi uma das mais fortes
emocionalmente para mim. A partir de um movimento de cata com as mãos, abrindo-
as e fechando-as com os dedos retos, me veio um violento sentimento de perda,
imediatamente associado a imagem de meus filhos. A partir desse momento o choro
surgiu compulsivamente e se manteve até o fim do trabalho. Ao repassarmos todas as
vivencias no fim do ensaio o choro veio de novo, facilmente, ao associar o movimento
325

à idéia de secura. Essa matriz foi posteriormente usada na imagem das unhas
agarrando “o vazio, o passado, o eu perdido”, e catando algo dentro da “saia-filho”.

Após o trabalho André observou que despertar tanto as emoções trouxe uma
expressividade mais sentimental e psicológica que física. Para ele, menos interessante
nessa proposta.

Ao longo dos ensaios seguintes continuamos a criar nosso desenho de ações, usando
elementos das experimentações do dia e outras. Criamos a cena da costura da costela
quebrada, a partir de células da matriz obsessão (movimento espiralado de mãos e tronco).
Posteriormente esse movimento em espiral se aplicou também à procura do sapato, à
imagem das unhas como raízes, etc.

03/08

Estou em crise. Esboçamos a peça até o momento em que a personagem dorme, cena
na qual emperramos... A pura experimentação com o objeto - a trama de elásticos - não
está funcionando. Sinto vontade de voltar às matrizes, que não trabalhamos há mais de
uma semana. Penso em aproveitar o movimento de palpitação da matriz securaumidade,
ou o gesto de catar, da matriz tristeza. Também intuo experimentar alguma matriz, mas de
forma mais dirigida, ou seja, dentro da própria cena, e não dissociado para depois re-
contextualizar, como foi até agora.

09/08

Eu e André resolvemos voltar à experimentação para tentar sair da estagnação. Hoje


experimentamos os estímulos com a teia montada, para que eu pudesse interagir com o
objeto. Após a preparação com o chi kung, passamos às seguintes investigações
expressivas, com imagens tiradas de wu hsing:

• Ossos + audição + medo: esse tripé engendrou um movimento que batizamos


como “aranha”, ora com saltos, ora não, o corpo se movia de forma angulosa,
buscando perscrutar algo com ouvidos atentos, e muita apreensão. Essa matriz foi
326

usada em vários momentos da peça, em especial na relação com a poeira e insetos,


e na imagem do “brinquedo”.
• Obsessão + doce + canto: realizei um movimento de andar fervorosamente de
joelhos pelo espaço, com as mãos fechadas batendo continua e obstinadamente no
chão, enquanto cantava Ave Maria com a voz contrastantemente doce. Células
dessa matriz foram usadas na cena em que ela canta para o filho nos braços e o
joga pela janela.
• Olfato + picante + choro: gerou um ato de farejar que vai se tornando um choro
mais teatral, enquanto a fisionomia e o corpo respondiam à sensação de picante na
boca, com contrações musculares. Essa matriz foi usada na cena em que a
personagem acha uma carta dentro do livro, cheira-a e chora.
• Velhice + frio + gemido: surgiu um personagem velho com elástico preso à
boca, curvado, com um gemido grave, num tom quase gutural. A célula vocal foi
usada nos “alôs” finais dos telefonemas anônimos.
• Outono + pele + tristeza: aqui o movimento era de tentar se livrar da teia que
insistia em grudar no corpo, movimentos de empurrar a teia e ser por ela engolida,
de deitar-se e tentar mover-se pela força abdominal. Essa foi a única das matrizes
experimentadas na teia, que ficou de fato na cena da teia, especialmente no
momento em que a personagem dorme e acorda com o trovão (ou os fogos de
artifício, ou o que quer que a imaginação de cada espectador invente). Ela está
presente também na cena inicial do despertar da personagem e seu espreguiçar-se.

10/08

Seguimos o impulso da véspera e continuamos o trabalho com novas matrizes. Após


preparação passamos a fazer experimentações com o livro, ainda tendo como fonte wu hsing.

• Vaso sanguíneo + gargalhada + crescimento: ação de folhear o livro em


movimento que seguia um fluxo de líquido denso, e uma euforia crescente.
Essa matriz associada à da alegria, em especial à sensação do aquecimento do
peito, e “dimmerizada” para sutileza, gerou a matriz gargalhada sutil. Esta se
encontra na cena do abrir e ler o livro, até o encontro da carta.
327

• Bexiga + gemido + declínio: gerou ação de ter vontade forte de urinar ao fim
da risada, e o ato de fazer xixi gemendo. Essa matriz não foi usada na peça.
• Picante + estômago + puberdade + canto: ação de comer o livro com
fisionomia de quem come algo com muita pimenta. Matriz não usada.
• Fígado + grito: ação de sentir ânsia de vômito e vomitar um grito. Matriz usada
no momento em que a personagem, drogada e bêbada vomita no livro.

Nos ensaios seguintes trabalhamos na re-contextualização dessas e outras matrizes no


desenho de ações, bem como na finalização desse desenho – roteiro do espetáculo.

25/08

Após trabalho inicial de concentração e chi kung experimentamos matrizes para buscar
textura corporal da bebedeira.

Vento + leve: essa combinação gerou um corpo bêbado pela sensação de


desequilíbrio dada pela imagem do vento, com a sutileza das passadas leves.
As passadas pesadas, também experimentadas, geraram um corpo mais
caricatamente bêbado, quase canastrão.

Anotações sobre a partir do dia 28/08 em diante.

Sinto que entro numa fase do trabalho em que passo a buscar contrastes e referências
não como referências a priori, mas também como apoio para fortalecer as construções cênicas,
tanto as derivadas de trabalhos com matrizes, como as surgidas de experimentação direta com
objetos e texto.

Assim, se agregaram ao trabalho referências como:

• Penetraçãorecepção: estímulo à relação visual entre a personagem e os perigos


minúsculos: poeira, insetos.
328

• Altobaixo e interiorexterior: estímulo à relação posicional da personagem com


o zelador e a faxineira, com os objetos que caem, com o precipício e com a
cidade aos seus pés.
• Levepesado: estímulo à relação da personagem com o objeto elástico ao
verbalizar a lista de compras. E ainda estímulo à relação com a resistência
oferecida pelo elástico na cena em o “passado se arrasta atrás de mim como um
rabo”. Usado também na cena em que ela joga as coisas pela janela.
• Contraçãoexpansão: presente na cena de abertura da peça, no espreguiçar-se
da personagem despertando.
• Vaziocheio: especialmente a idéia de vazio serviu como estímulo à fala para
expressar as contradições internas ao falar dos filhos. O contraste foi útil na
cena em ela se olha no espelho, na relação com a auto-imagem.
• Densosutil: estímulo à fala para expressar a relação paradoxal com o ex-
marido.
• Sombrioluminoso: estímulo à fala na hora da reza, com medo do monstro.
• Inibição/excitação: estímulo à relação com a própria auto-imagem, nas cenas
de espelho.
• Quietudemovimento: usado para compor imagem do “casulo de seda” na cena
do varal, em que o corpo está imóvel, mas o balanço do varal o faz subir e
descer.
• Frio: estímulo físico para sensação de apreensão suscitada a cada novo toque
de telefone. Intensificada a matriz dá o estímulo ao pânico, na relação com o
monstro.
• Ascendente: estímulo visual para a subida da montanha, na cena do varal.
• Descendente + sombrio: estímulo para a cena em “entra” no mundo noturno –
teia.
• Tato: relação corporal com o ex-marido, cena do varal.
• Audição: relação com o ex-marido, cena do varal.
• Fala: estímulo à explosão verborrágica na cena do varal.
• Visão: relação lembrança de imagens sonhadas, cena do varal.
• Paladar: relação corporal erótica com o ex-marido, cena do varal.
• Inspiraçãoexpiração em transição para olfato: cena da queda do precipício e o
farejar da camisa, na cena do varal.
329

• Expansão + luminoso: sensação ao ver a camisa no chão, antes da cena do


varal, estímulo às descobertas sendo feitas durante a leitura do livro, e à
sensação após fumar o baseado.
• Contração + azedo: estímulo à sensação após cheirar cocaína.
• Nascimento + vento + leve: usada após beber todo o champanhe da taça, antes
da transição para matriz fígado + grito, em que vomita no livro.
• Lento + pesado + úmido: estímulo à maneira de falar quando a personagem
está embriagada.

12/10/06

Estréio num 12 de outubro. Mais um parto, mais um filho criado em meus vazios, mais
um saindo pro mundo. E no dia de Nossa Senhora de Aparecida. O dia das crianças! Rezo a
elas. Internamente ofereço à Santa e às crianças essa apresentação parida. Peço a uma o dom
da presença energética, irradiante, epifânica, e às outras o privilégio do prazer, do jogo, de ser
lúdica. Duas (entre tantas) faces do teatro. E de mim.

B.3. Dramaturgia

Inicialmente faço algumas observações sobre as diferentes vias de enunciação que


tecem a dramaturgia geral do espetáculo:
1. Os trechos sublinhados mostram o que é falado ou cantado pela
personagem, ou seja, referem-se a uma dramaturgia enunciada pela voz.
2. As partes entre parênteses, em negrito, remetem às matrizes que ou
originaram ou animam/sustentam dada ação.
3. Os outros trechos descrevem as ações físicas do espetáculo - dramaturgia
corporal, sendo que em alguns momentos referem-se a uma dramaturgia
cenográfica também, ao narrar transformações do espaço e dos objetos,
através da manipulação destes em cena aberta.
4. Os títulos, em maiúsculo e negrito, referem-se à divisão do texto
espetacular.
330

5. Há ainda, no espetáculo, a presença de uma dramaturgia do som, com o


qual a personagem contracena, e da luz, as quais não estão descritas aqui.

A seguir nosso texto dramatúrgico.

TRAÇOS ou QUANDO OS ALICERCES VERGAM

1. despertar

(matriz outono + pele + tristeza, experimentada com elástico)

Toca despertador, ela acorda, abre só olhos, se espreguiça ampliando o espaço do corpo até os
dedos, fazendo o quadrado do elástico solto/cama/espaço corporal. (matriz
contraçãoexpansão). Vira de costas para público estica um braço e uma perna, senta, estica
os braços lateralmente torcendo tronco, pousa braços no chão se apoio e fica de pé.

2. janela 1

Vê a janela, solta as mãos e vai até lá apreensiva, (matriz frio sutil) abre a janela/cortina,
com cuidado, observando.

(matriz contrastes altobaixo e interiorexterior)

Bom dia seu Hilário, bom dia Odete!

Vira-se e depara-se com espelho.

3. espelho 1

Confere rugas nos olhos e ao lado da boca, confere brancura dos dentes, usa elástico solto/fio
dental, cospe. Volta-se para espelho, confere sorrindo. Faz ginástica com braço e com perna,
331

até soltar elástico. Mede cintura com elástico solto/fita métrica, estica-a ao máximo. Vê
resultado, fica feliz, olha no espelho, se percebe gorda, pega na barriga. (matriz medo, do
contraste raivamedo, em dimmer sutil).

Ahhhh!

4. feira

Enrola o elástico (matriz levepesado).

Alface, rúcula, uma beterraba esmagada no chão lembra uma poça de sangue... abacaxi,
maças e as pêras até que enfeitariam a copa...

Ajeitando o cabelo, prendendo no alto com elástico solto.

cebola roxa, cebola em conserva, cebolinha, a cebola é tão bela pra murchar na fruteira!

Indo em direção às luvas, a cada passo uma fala.

Veneno anti-mosquito, veneno anti-barata, veneno anti-ratos.

Puxando as luvas.

A feira é livre, mas eu não!

Vestindo as luvas.

Olha o xuxu, olha aí olha aí, olha o xuxu, olha aí, olha aí, olha que xuxu, olha que xuxu, olha
que xuxu...

5. unhas

Percebe as unhas, abrindo os braços.

(matriz frio sutil + medo)


332

Olha aí! Que isso? Nasceram esta noite... Parecem garras! Para que servirão?

Mãos se fecham, puxando os braços, como numa dança indiana, enquanto ela olha pra Deus.

Mas será que todas as noites eu preciso passar por alguma metamorfose...

Mãos vindo em direção ao rosto.

Serão as unhas os meus pecados que se tornaram visíveis?

Empurrando as mãos (matriz transportar).

Serão um castigo?

Vindo pra barriga cravando-as no ventre.

Algo que meu corpo criou noturnamente para me destruir essa manhã?

Tirando e catando (matriz tristeza + secura + choro).

As unhas serão para agarrar o vazio, o passado, o eu perdido?

Vem na direção dela como se fosse lhe arrancar os olhos (matriz tristeza + secura + choro).

São minhas mas parecem contra mim!

Braços como se fossem raízes (matriz obsessão, espirais com as mãos).

Serão as unhas raízes que nascem do lado errado,

Empurrando (matriz transportar).

eu tentando sair de mim mesma,

Ficam só dois dedos, fazendo imagem de revólver.

ou apenas armas vulgares para eu mesma me escarificar?

Espreme uma espinha, pus pula pro chão, ela nota o espanador/gato.
333

6. bicho 1

(matriz profundosuperficial)

Entra atrás do espanador/bicho, faz uma volta no espaço chega perto desacelerando, abaixa o
tronco pra pegá-lo, ao tocar nele corpo fica mole, curte o bicho brinca, ele muda de mão –
torcida de corpo, depois de novo até ir ao chão. Volta atrás dele de novo, até que se depara
com a presença da poeira.

7. poeira (perigo minúsculo) 1

Percebe poeira na parede, passa o dedo, olha em volta (relação de olhar com a poeira
durante toda a cena inspirado em matriz recepçãopenetração).

Essa poeira entra pela frestas!

Puxa espanador como espada de esgrima. Frente da cena.

Pela porta!

Lateral da cena.

Pelas janelas!

Atinge janela e puxa espada para si. Chega ao canto esquerdo no fundo e faz enceradeira, em
4 pontas, mecanicamente, 3 vezes. Espanador vira desentupidor, entre as pernas. Outro ritmo,
sucção, 3 vezes. Sacode espanador. Vê poeira no chão, prepara 3 vezes, joga golfe com
espanador/taco, joga longe, pra fora da janela, vai até lá, vê poeira voltando, recua e se
defende com espanador. Sacode este novamente, prepara 3 vezes e joga como squash com
espanador/raquete, recebe em manchete e finaliza com uma cortada forte, poeira sai pela
janela. Vai até janela de frente conferir vê poeira que volta, ela se abaixa, vira em samurai,
num salto. Dá duas passadas redondas, depois chuta e ataca com bastão/espanador. Abre
braços e dá giro em torno de si, vira-se pra frente e agradece. Percebe ainda a presença da
poeira. Constata tensa (relação de olhar com a poeira inspirado em matriz
recepçãopenetração).
334

Preciso todos os dias de uma casa nova!

Pega espanador/metralhadora e atira loucamente fazendo rotação com tronco até esquerda,
depois direita e voltando ao centro. Sopra o espanador, como quem sopra um revólver, poeira
volta-se contra ela, ela se defende, sopra. Acompanha uma poeirinha com estrabismo, cair no
umbigo. Pega irritada. Fala consigo mesma (relação de olhar com a poeira inspirado em
matriz recepçãopenetração).

Essa poeira invade a casa,

Peteleco. Poeira sobe e cai na coxa direita, acompanha com olhar.

cobre os lençóis das camas, penetra nos colchões, nas roupas.

Começa a deslizar mãos pela perna.

É uma areia absoluta, eterna, entranhada nos alimentos,

Mãos chegam ao pé, depois vão subindo espalmadas até gesto de entranhadas.

eu lavo as frutas

Fecha uma mão.

eu lavo as folhas,

Cerra a outra.

eu lavo as roupas,

Com ambas fechadas.

é inútil, a areia está sempre ali, grudada no meu corpo, na minha pele.

Com agonia e nojo, termina limpando as mãos. Areia cai, ela se agacha, sopra, poeira vai nos
olhos, ela faz cambalhota pra traz. Tenta escapar da poeira, foge pra traz da bacia, se esconde
com a bacia/escudo, que vira uma grande cara, (matriz ossos + audição + medo, “aranha”)
foge lateralmente espiando por baixo, pelos lados ou por cima, e variando planos, até colocar
sobre a cabeça. Por fim bota a bacia na cintura, pega a camisa, anda até o balde e o pega,
335

sente o peso, e leva ao centro. (matriz transportar) Quando está quase chegando toca o
telefone (matriz frio). Deixa a bacia e a camisa caírem já no centro, e equilibra o balde ao
lado.

8. telefone 1 + traço 1

(matriz frio). Vai ao alicerce do fundo esquerdo do palco e atende no sapato/telefone


amarrado ao traço 1-elástico/fio de telefone, levando-o até o alicerce do fundo direito onde
deposita o traço 1. Tira sapato/telefone do elástico.

Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim voz vai ficando com timbre da matriz velhice + frio +
gemido)

Sem resposta, volta, vai andando com o sapato apertado junto ao peito (matriz frio).
Recupera a ação.

9. lavação 1

Deixa balde, ajoelha-se, deposita bacia. Enche a bacia de água (matriz de torcida da
transformação superficialprofundo). Toca a água, sacode 3 vezes, lava o rosto, sacode 1
vez. Pega e joga água 2 vezes pra direita e depois 2 vezes pra esquerda (mix das matrizes
armazenar + umidade). Traz água pra corpo 5 vezes, do pescoço até pélvis e chega no
“banho tcheco”. Ao fim sacode mãos com nojo três vezes, pega sabão e esfrega na mão, e
molha-as de novo.

10. janela 2

Pensa o que vai fazer com a água suja, olha um lado e outro, levanta vai em direção ao
fundo/banheiro, vê janela e joga lá embaixo. Esconde-se atrás da bacia e volta ao centro.
Coloca nova água na bacia. Ainda com o balde na mão...
336

11. poeira (perigo minúsculo) 2

(relação de olhar com a poeira inspirado em matriz recepçãopenetração)

Percebe poeira (ou inseto – perigo minúsculo) vai atrás dela (matriz ossos + audição +
medo, “aranha”). Espera pousar e prende-a no balde emborcado. Poeira tenta fugir uma vez,
ela senta em cima. Sai dali ainda tensa e se depara com camisa. (matriz expansão +
luminoso). Vai até lá, (pés rastejam matriz umidade) agacha, pega-a, traz para a bacia e
molha, pega o sapato/sabão e passa na camisa, começa a cantar, e deixa o sapato/sabão na
bacia.

12. lavação 2 + canto 1

(relação com a camisa a partir de matriz densosutil ao longo da cena toda do varal)

Canta trecho da música Dream a little dream, de Gus Kahn/ Wilbur Schwandt/ Andres Fabian
Say nighty-night and kiss me

Just hold me tight and tell me you’ll miss me

While I’m alone and blue as can be

Dream a little dream of me

Coreografia da lavada: esfrega camisa no centro, primeiro dentro bacia, depois esfrega numa
perna e noutra, cheira virando-se, passa camisa pelo corpo, pés fora do chão, vira-se pra baixo
em flexão, esfrega no chão e traz pra si, enxágua 3 vezes e sobe.

Segue cantando:

Stars fading but I linger on dear

Still craving your kiss

I’m longin’ to linger till dawn dear

Just saying this


337

Vai até alicerce central da lateral direita e puxa traço 2 (elástico)/varal até alicerce central da
lateral esquerda. Olha por cima do varal colocado, pros dois lados pra ver se alguém está
vendo.

13. varal + traço 2

Pendura, se enrola na manga em uma dança, cantando, vai deslizando pelo varal, pega na mão
dele e vai pra frente em passo de dança, se joga pra trás na dança. Passa a mão pelo peito dele
e veste a blusa, não termina a música, sacode manga ao final. Fica vestida na blusa pendurada
no varal. Transição entre fim da música e fala.

(matriz tato)

Ele me amava como se eu fosse um animal de estimação, frágil e macia feita de pelúcia,

Mãos no rosto, puxa bochechas pra baixo.

Me queria pálida, com olheiras...

Levantando os braços.

Gostava de ver as veias aparecendo debaixo da pele branca para ver o avesso do corpo....

Gesto de braço torcido, como se ele a tomasse.

Ai, ele era forte, quando apertava meu braço eu sentia os ossos como se fossem quebrar... Ai,
ai! Cuidado, cuidado meu amor, cuidado!

Mostra dor, se retorce em assimetria. Vira pra um lado por cima do fio, e pro outro no meio
da frase.

(matriz audição)

Anh? Eu sei que você não fez por mal. Anh? Eu sei você é doce e inofensivo, uma flor.

Vira-se e faz casulo de seda, agachando.


338

As pessoas diziam que ele era bruto mas ele era delicado,

Balançando em flexão de joelho (matriz quietudemovimento).

como um casulo de seda...

Gesto de abraçar virando a cabeça.

abraçava as árvores...

Gesto de oração.

me pedia perdão.

Subindo montanha pelo varal (matriz ascendente).

queria ter uma vida nova, fugir desse lugar, ter uma casa na montanha, só nos dois

(matriz tato)

E me abraçava fundo e sufocante

Se enrosca no varal

Ai, meu amor, ai, me solta um pouquinho...

Se desenrosca.

mas ele nunca me largava.

(matriz fala, como quem entrega alguém)

Tinha medo que eu saísse voando

Vai a frente é puxada de volta pelo varal elástico.

que fugisse com um desconhecido

Insinua-se a frente, sentindo resistência como se ele a puxasse. Tira a camisa que fica pelo
avesso.
339

que me tornasse uma ilusão!

Fala parada na frente. Imagem de ave segurando braços da camisa. Vai recuando.

(matriz visão)

às vezes no meio da noite ele penetrava no meu sonho como uma ave de rapina

Começa a recuar fechando as mangas em torno de si.

aí eu sonhava com ele, no sonho ele me trancava numa jaula

Camisa de força.

e me alimentava com carne crua e sangue, ou me jogava de um precipício,

Imagem de beira de precipício, olhando pra baixo, (matriz altobaixo + medo) solta a camisa
que voa. Ela cai no chão (matriz inspiraçãoexpiração em transição para matriz olfato).
Vai de quatro até a camisa, puxa, camisa balança ela vai junto e passa pra frente da camisa.
Faz cabaninha com a camisa.

Meu corpo é sua casa,

Imagem de igreja.

é sua Igreja,

Imagem de santa.

a imagem de Deus...

Ficando em pé, segurando a camisa.

E eu toda lhe pertenço.

Veste a camisa ao contrário, abertura pra traz com afeto, sacudindo as mangas (matriz tato).

Meu corpo é seu diário, é seu brinquedo...


340

Imagem de boneco, marionete (matriz ossos + audição + medo, “aranha”, sem intenção de
medo, e mais entrecortada).

Vem meu amor,

(matriz paladar) subindo a camisa mostrando barriga.

me ama por dentro, olha meu coração,

Intenção de sexo.

beija meus pulmões, arranca meu útero, acaricia minhas finas e longas clavículas...

Fica de costas pra camisa, volta as mangas pro lado certo (não avesso) de novo, ele a penetra
por traz.

Marca todo meu corpo com as manchas roxas de seus dedos,

Imagem de sexo. Enrola-se na camisa de novo, espremida grita como se fosse um orgasmo.

Você quebrou minha costela!

Joga camisa pro canto.

14. costura + traço 3

Sai andando torta, furada, se agachando pra pegar sapato/agulha, dá a volta pela bacia onde
está o sapato e volta na direção do alicerce central da lateral direita do palco. Puxa o traço 3
(um novo fio elástico)/linha de costura, coloca no sapato/agulha, senta-se no balde
emborcado/banco, e costura-se três pontos, com os punhos redondos, tronco acompanha.
(matriz obsessão, caracóis com a mão e pulso em mix com matriz agitação do contraste
calmagitação “ai, ai”) Dá um nó. Deposita o traço 3 no alicerce da frente esquerda, mas puxa
o meio do elástico para alicerce central da lateral esquerda, criando no espaço duas linha com
o mesmo elástico.
341

15. espelho 2 + canto 2

Confere no espelho a costura. Relação com a auto-imagem. Resolve colocar saia, entra na
saia. Depois sapato. Calça um sapato com tronco dobrado e nessa posição começa a procurar
o outro (matriz obsessão, movimentos em espiral). Passa embaixo do traço 3 e lembra de
conferir poeira (ou inseto – perigo minúsculo) embaixo do balde. Vai até o outro canto do
palco, não acha. Pisa no elástico com um pé e leva o outro como na brincadeira de pular
elástico, acha lenço no alicerce central do fundo. Coloca-o no pescoço, e continua a procurar
sapato até achar no alicerce do fundo lateral direito. Vai até sapato e calça com tronco
dobrado, alcança espanador/escova e limpa sapatos. Olha-se, vai subindo limpando a roupa e
se olhando no espelho enquanto fala:

(intenção matriz de transição cheiovazio)

As mulheres precisam de muitos vestidos diferentes porque há muitas mulheres dentro de


cada mulher e é preciso vestir todas, por que nuas elas não podem sair do corpo...

Maquia-se com espanador/blush.

Nem todas as pessoas são reais... Eu talvez seja mais real no espelho, do que em carne e osso.

Pára tudo (matriz vazio).

Às vezes até esqueço de ser quem sou!

Vira penas do espanador pra baixo. No espanador/microfone. (matriz calma, do contraste


calmagitação). Canta trecho da música On my own, de Irene Cara e Nikka Costa.

Sometimes I wonder

Where I've been

Who I am

Do I fit in

I may not win


342

But I can be thrown

Out here, on my own

Dedos em estalo passam a marcar ritmo (matriz excitação).

When I'm down and feeling blue

I close my eyes, so I can be with you

Aponta braços e espanador, com pompom pra frente pra espelho.

Oh baby, be strong for me

Baby belong to me

Help me through, help me, need you…

Coloca espanador entre as pernas.

Vira de frente. Penas de espanador como se fossem pelos pubianos.

(matriz excitaçãoinibição)

Acaricia seios sutilmente.

Ah, mas eu vou ter tanta saudade de mim quando eu morrer!

Acaricia espanador/vagina sutilmente.

Que boneca de luxúria!

16. casamento + traço 4

Tira espanador do meio das pernas. Com espanador/ buquê de noiva sai andando em direção
ao altar, puxando traço 4 (novo elástico)/passado, que está amarrado ao sapato que acabou de
calçar (antes da cena com espelho). Sente a dificuldade do elástico no sapato (matriz de
343

transição do contraste levepesado). Passa por debaixo de traço 3 com o corpo arqueado para
trás, pé é puxado, ela vai ao chão, solta buquê e tenta segurar-se no balde/banco, perna
descreve um arco até alicerce central da lateral esquerda.

Que isso? Meu passado cresceu e se arrasta atrás de mim como um rabo cada vez mais longo
e denso...

Acaba tirando balde do chão e grita dentro dele.

Passa passado, passa! (matriz raiva, do contraste raivamedo, birra).

Pega o sapato, solta do elástico, prende o traço 4 no alicerce lateral esquerdo, e encaixa sapato
pendurado.

17. poeira (perigo minúsculo) 3

Vira-se pra frente e se dá conta que a poeira, que estava presa no balde, escapou. Coloca
balde/capacete na cabeça, e se arma com sapato e bacia/escudo (matriz ossos + audição +
medo, “aranha”). Persegue poeira com o olhar, até ela pousar no alicerce no frontal
direito/parede da casa. Bate com o sapato nela, como se matasse uma mosca. Olha a sola do
sapato (matriz vazio).

18. desfazer-se

Essas coisas não me servem mais, não se parecem mais comigo... quero me desfazer dessas
coisas...

Joga sapato na bacia.

Ter uma casa vazia, sem roupas,

Tira lenço e joga na bacia.

sem móveis,

Tira balde/capacete/banco/móvel da casa e joga na bacia.


344

Sem poeira, sem documentos, sem cartões, sem talão de cheque, sem marido,

Tira camisa do marido e joga na bacia.

sem filhos, sem empregada, sem...

19. telefone 2

Na hora que vai pegar o livro que está pendurado no alicerce frontal da direita toca o telefone
(matriz frio). Encosta-se ao traço 3 e vai à direção do telefone, mas quando chega perto, este
para de tocar. Solta traço 3 do alicerce central da lateral esquerda, segurando-o no alto:

Me desfazer de mim mesma...

Solta traço 3 no ar e ao mesmo tempo vai em desequilibro detonado ao soltar traço, para a
janela.

20. janela 3

(matrizes contrastes altobaixo, interiorexterior e levepesado)

Odete! Odete… Tudo bem? Não não estou precisando de faxina não, viu? Seu Hilário
comentou que você está responsável por um bazar beneficente! É que eu queria contribuir,
tem umas pecinhas aqui que eu não estou mais usando e... Não! Não precisa subir... Olha só
que bonito: (matriz leve) o lenço passa diante de mil vidraças que refletem mil edifícios de
vidraças que refletem mil edifícios...

Tempo, olha Odete lá embaixo.

Gostou?

Faz gesto de espera aí com a mão.

A camisa passa diante de mil vidraças que refletem mil edifícios de vidraças que refletem mil
edifícios.....
345

Tempo, olha Odete lá embaixo.

Bonito, né?

Faz gesto de espera aí com a mão.

Os móveis passam diante de mil vidraças...

Joga bacia com objetos pesados que fazem ruído ao cair no chão. (matriz frio) Olha pra
baixo.

Odete?

(matriz de medo contraste medoraiva, som e rosto de susto, pânico)

AHHHHH!!!

Sai desnorteada empurra traço 2 até alicerce frontal direito e prende com livro, braços
levantados, vira de costas e vê o gato.

21. bicho 2

Esquece Odete e vai atrás do espanador/bicho (matriz profundosuperficial). Pega o bicho e


acompanha-o andando sobre traço 4 indo em direção à janela, até que telefone toca (matriz
frio).

22. janela 4

Joga bicho pela janela (matriz de medo contraste medoraiva, som e rosto de susto,
pânico).

AHHHHH!!!

Telefone chama sua atenção, olha telefone, olha janela, até que vai atender no alicerce central
da lateral esquerda (matriz frio). Pega sapato/telefone.
346

23. telefone 3

Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim voz vai ficando a da matriz velhice + frio + gemido)

Pega só sapato, traço fica, tenta ouvir, sem sinal, vai mexendo no traço 3 até chegar ao traço
1, passa a tentar sinal neste, tira do gancho e vai olhando dentro do círculo do elástico,
procurando algo e trazendo elástico pra alicerce da frente direita, onde deposita traço 1, e
encaixa telefone, desliga-o. Encosta no alicerce, (matriz frio) sente o livro.

24. livro + canto 3

Pega o livro e solta traço 3 que estava fixado aí, ainda olhando em volta (matriz frio). Abre
livro, vem luz de dentro dele no rosto dela. Começa a ler, vai achando graça, começa a andar
acompanhando traço 1 na diagonal, (matriz vento leve, com pequena intensificação a cada
risada) segue lendo, gargalhada sutil (matriz vasos sanguíneos + gargalhada sutil), vai até
o centro. Segura livro aberto com mão esquerda, na parte de cima da lombada. Acha
papel/carta deposita livro/abajur no traço, levanta abajur pra ver carta embaixo da luz.
Começa a ler, fica triste, cheira, chora, (matriz olfato + choro) colhe as lágrimas que viram
maconha sendo destrinchada, enrola papel/carta, faz um rolo/baseado. Acende no
livro/isqueiro, fuma cigarro de maconha, se infla, (matriz expansão + luminoso) prende a
fumaça, percebe poeira, acompanha-a, sopra fumaça nela, acompanha-a voando cair no
elástico, cheira a poeira com rolo/canudo até chegar ao livro pendurado no mesmo traço
(matriz contração + azedo). Travada passa rolo/batom, coloca rolo/perfume. Pega
livro/bolsa e encaixa embaixo do braço. Canta a música Hi Lili Hi Low!, composição de
B.Kaper/ H.Deusch, e versão de Haroldo Barbosa.

Um passarinho me ensinou, uma canção felizzzzzzzzzz.

E quando solitária estou, mais triste do que triste sou...

lembra da poeira e procura com rolo/monóculo, vê a poeira no chão

Recordo que ele me ensinou, uma canção que diz!


347

pisa no elástico com um pé, depois com outro. Abaixa-se, sopra pelo rolo/zarabatana e salta,
tirando os pés e soltando o elástico.

Eu levo a vida cantando, hi Lili, hi Lili, hi low!

serve com livro/garrafa, seu rolo/taça de champanhe

Por isso sempre contente estou, o que passou passou!

brinda e bebe tudo em vários goles. Sente embriaguez

O mundo gira depressa, e nessas voltas eu vou!

25. janela 5

Segue até a janela

Cantando a canção tão feliz, que diz: hi Lili, hi Lili, hi low!

Por isso é que sempre contente estou, hi Lili, hi Liliiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, hi low! Feliz ano novo!

(matriz nascimento e vento + leve em transição gradual para matriz fígado + grito).
Transição para ânsia de vômito pensa onde vai vomitar, vomita longamente no livro sente
nojo joga o livro pela janela.

Ah! Desculpe seu Hilário.

Silêncio. Gesto de brinde.

Feliz Ano Novo!

Silêncio. Ainda com taça erguida.

Uhu!

Sai da janela sem graça, embriagada, fumando rolo/cigarro.


348

26. telefone 4

O telefone toca, (matriz frio fundida com matriz vento + leve da embriaguez) ela procura
puxando cada traço e soltando após o som do telefone, até chegar ao sapato/telefone, no traço
1 preso ao alicerce frontal da direita, quando pisa no traço 1/fio desligando-o.

27. corda bamba + canto 4

Anda em corda bamba fazendo o tubo de papel de corneta. Tocando a melodia de Adeus ano
velho, Feliz ano novo, de autoria desconhecida. (matriz de vento + leve). Sai da linha reta,
dá uma volta sobre si, pega elástico à frente faz de vara de equilíbrio. Passa por baixo dele,
vira e vai voltando.

28. telefone 5

telefone toca de novo (matriz frio do telefone fundida com matriz vento + leve da
embriaguez). Volta em direção a ele, atende tirando só o sapato/telefone, deixando o traço lá
(fala com matriz lento + pesado + úmido).

Alô, alô, alô quem é? Alô! (ao fim vai ficando fala da matriz velhice + frio + gemido)

29. monstro

Aperta o sapato junto ao peito, e, assustada, lembra do monstro.

Será que é o monstro? (matriz frio intenso + vento leve)

Vai olhar a janela, se agacha, passa embaixo do traço 3 e olha pela janela escondida.

(matriz de medo contraste medoraiva, som e rosto de pânico) AHHHHH!!!


349

30. janela 5

Ta lá! Ele ta sempre lá, deitado na calçada imunda.... Tenho tanto medo do monstro da
esquina, o monstro barrigudo, cabeludo, o monstro manchado... As manchas dele fedem! Será
que o monstro tem mãe?

Joga papel amassado nele e depois o sapato.

Vai embora monstro! Vai!

31. reza

Puxa rabo de cavalo pra cima. Solta cabelo. Tira elástico da cabeça e reza com elástico
solto/terço (fala em matriz lento + pesado + úmido).

Minha Nossa senhora, me livra do monstro da esquina! Eu não tenho paz! (matriz secura do
contraste secoúmido unida a vento leve) Ave Maria cheia de graça o senhor é convosco,
bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre Jesus! Santa Maria mãe
de Deus, rogai por nós pecadores... (fala em matriz contraste sombrioluminoso) Eu sei que
eu sempre fui aos meus pecados. Mas é que eu nasci com eles, eu repito os pecados de minha
mãe e de meu pai e de meus avós, e dos avós dos outros, me perdoa minha santa, não me
castigue! A senhora é mãe, a senhora sabe como é difícil! Eu tentava acertar, mas eu não
conseguia!

32. filhos + canto 5

Senta-se no traço1 /meio fio (fala em matriz vazio). Puxa fio como cordão umbilical. Passa a
fazer cama de gato com elástico.

Quando tive minha filha meu coração se destroçou, não conseguia amamentar, meu leite saia
fraco, uma água amarelada, a criança chorava de fome, de abandono... Passei dias sem tirar do
berço, entreguei a uma babá, e de noite via na parede do quarto a imagem de minha filha
vestida de branco enfeitada com flores os lábios roxos como se estivesse morta... uma
350

alucinação de arrancar lágrimas mas eu não conseguia... Meu filho... dizendo que vai embora,
minhas mãos ainda sujas de leite, eu sem saber que conselhos dar,

Levanta. Faz janela com fio.

Não peça nada a ninguém! Engraxe os sapatos... Pobre filho, teve uma mãe tão
destrambelhada...

Tirando a saia.

Nunca tive paciência para ajudar no dever de casa, pra ensinar a fazer um nó, quantas vezes
adormeci antes dele ou dei mingau queimado...

Coloca saia em pé/filho a sua frente

Ele teve que suportar a minha instabilidade, as mudanças de trabalho, de casa, de cidade...

(matriz tristeza + secura) mãos catam algo dentro da saia/filho.

Uma vez ficou um ano sem desfazer as malas, sem abrir o baú de brinquedos...

Abaixa-se à altura da criança, pega filho no colo, coloca pra ninar cantando (matriz obsessão
+ canto + doce, pés rastejam matriz umidade).

Canta a música Boi da cara preta, de autoria desconhecida:

Boi, boi boi

Boi da cara preta.

Pega esse menino, que tem medo de careta.

Não, não, não

Não pega ele não...

Ele é bonitinho ele chora coitadinho!


351

33. janela 6

Vai à janela olha a criança e joga-a. (matriz vazio) Anda de costas até o traço 1/box do
banheiro, vira-se pra ele.

34. banho

Coloca um pé na água, sente, coloca o outro e andando arrastando os pés na água. Pendura
elástico solto/toalha, dá dois passos e ao virar-se para frente sente água gelada, gesto e som de
água gelada (matriz vazio + frio denso). Vai lavando-se, lava o rosto, (matriz obsessão) e os
cabelos. Joga cabeça pra baixo e lava os cabelos, até ir subindo tronco, com cabelo no rosto.
Pega elástico solto/toalha como se fosse um chicote e dá impressão de um auto-flagelo.
Enxuga-se do pescoço aos pés, enquanto caminha para o centro. Pega traço a traço (elásticos),
unindo-os, enquanto sobe o corpo tirando o cabelo do rosto. Prende-os com o elástico solto e
abre a porta da noite/elástico solto.

35. noite + traços teia

(matriz descendente + sombrio)

Entrando no mundo noturno

O mundo noturno é cheio de lembranças, de sensações.

Enforca-se no elástico solto, agora preso aos traços unidos, e recua

Os fatos flutuam na escuridão, imprecisos...

Abaixando de joelhos, e em movimento de flutuação (matriz vento + leve) senta no chão.

Minha mente está começando a embaralhar as idéias...

Ainda no balanço frente e traz amarra os pés. Espreguiça, lutando contra o sono, amarrando as
mãos. Dorme balança a cabeça até imobilidade. Ao som de estouro acorda em salto e
assimetria. Percebe-se presa nos elásticos/teia e começa a tentar escapar, estica-se toda, tenta
soltar-se com força abdominal elevando o corpo, formas assimétricas com apoio da cabeça
352

(matriz outono + pele + tristeza). Pega nos fios laterais da teia joga joelhos pra frente, e
levanta-se. Prende-se nos fios frontais da teia, vira imagem de bicho (matriz
troncomembros).

Vivo separada do mundo por paredes grossas...

Toca a teia como uma parede.

de um apartamento abafado. Um monstruoso interior de uma máquina de viver. Minha casa


fica entre um instante e outro, entre o passado e o futuro. Tem cortinas pesadas

Sente peso nas teias.

e o assoalho frouxo.

Queda. Começa balanço vertical, vai transformando na imagem de pássaro.

Tão frouxo... Mas como é que as pessoas dormem tranqüilas nesse edifício enquanto os
alicerces vergam e as vigas cedem, um milímetro por século, um século num milésimo de
segundo. A qualquer momento tudo pode desmoronar!

Crescente de movimento, indo para trás da teia, ainda presa, imagem de pássaro voando.

Preciso de uma casa nova! Preciso de uma casa nova! Preciso de uma casa nova!

36. telhado

Levanta a cabeça e constata, puxa teia pra si, olha pra baixo e constata:

Nunca estou no lugar onde pareço estar.

Abre teia, deslizando as mãos.

Meu corpo é manso, mas minha alma vive fugindo pelas janelas...

Vai andando.
353

Pelos silêncios, pelos espelhos, pelas escadas... até o último andar do edifício....

Sobe teia.

O telhado.

Solta teia.

O estado intermediário entre a terra e o céu!

Pisando na teia.

A cidade aos meus pés, as pessoas lá embaixo parecem fantoches, os sinais vermelhos, as
balas perdidas, os assaltos, as vitrines tudo que eu vejo nos jornais fica lá embaixo...

(matriz contraste altobaixo)

Seeeu Hilaaaaaaaaaaárioooooooooo! O queeeê? Que imagem? Ah!

Sai de cima dos elásticos/antena de TV

Desculpe!

Mexendo na antena.

O que? A contagem regressiva? Peraí! Sintonizou? Feliz ano novo!

Olhando os fogos de artifício no céu.

Mais um ano...

Olha pra baixo, vê a cidade.

Meus sonhos me escapando nas miudezas cotidianas.

37. asa delta + canto 6

Canta enquanto abre elásticos para entrar dentro. Música Solidão, de Tom Zé.
354

Solidão, que poeira leve

Solidão, olha a casa é sua

O telefone tocou, foi engano

Joga-se com elásticos/asa delta.

(matriz expansão + luminoso)

Na vida, quem perde o telhado

Em troca recebe as estrelas

Pra rimar até se afogar

E de soluço em soluço esperar

A vida que sobe na cama

E acende o lençol

Sol lhe chamando

Solicitando

Corpo se soltando no espaço.

Uma parte de mim se desfaz, outra se despedaça, e os pedaços vão caindo sobre a cidade...

Solidão, que poeira leve

Solidão, olha a casa é sua

Voando sobre a cidade. Cai luz em resistência.

fim
355

B.4. Traços por André Amaro

Aqui transcrevo algumas laudas do diretor André Amaro sobre nosso processo
criativo. O presente texto integra o livro Teatro Caleidoscópio – o teatro por-fazer (2007),
que o artista escreveu com orientação parcial de Eugênio Barba, durante encontros da ISTA
(International School of Theatre Anthropology) e que trata de sua investigação da metáfora do
caleidoscópio para o corpo e a cena. Outras informações sobre o trabalho de André Amaro
podem ser obtidas no site www.caleidoscopio.com.br. Segue seu texto, sobre nosso trabalho
conjunto:

Ainda em 2005, a atriz Alice Stefânia – que ajudara a fundar a Companhia Piramundo, nos
idos dos anos 90 - propôs-me a direção de um trabalho no qual aplicaríamos princípios do
universo taoísta como estímulos à criatividade e à expressividade, objeto de sua pesquisa de
Doutorado na Universidade Federal da Bahia. A experimentação passaria inicialmente pela
prática do chi kung – técnica milenar chinesa que visa o cultivo interior da energia – aplicada
como meio de treinamento da concentração e da consciência energética do corpo. Em seguida,
passaríamos a explorar a construção de diferentes dinâmicas corporais a partir da idéia de
relatividade yin yang. Tínhamos, como referência, uma tabela de idéias opostas e
complementares que compõem o vasto e milenar imaginário chinês: o frio e o quente, o
profundo e o superficial, a contração e a expansão, a secura e a umidade, o denso e o sutil, o
armazenar e o transportar, o medo e a raiva, entre tantas outras imagens de contrastes
aparentes. ‘Ainda que tudo possa ser compreendido a partir da noção de um duplo, as
proporções entre as partes não são estáveis, nem equivalentes. Tratam-se de variáveis que
oscilam no tempo e no espaço, prenhes do ritmo, da pulsação inerente ao universo e suas
manifestações’, observa a atriz em sua pesquisa. A Teoria wu hsing relacionada às cinco
energias ou estados de movimento – terra, fogo, água, metal e madeira – associadas, por sua
vez, a um largo repertório de atributos, imagens, símbolos, sabores, emoções, cores, zonas
corporais, formas de expressão, seriam agregados ao processo criativo como meios auxiliares
na construção de parâmetros físicos e dos estados emocionais/afetivos/sensoriais
correspondentes.
Além destas ‘fontes de alto poder sugestivo’ utilizadas na exploração do potencial
psicofísico do ator e na construção de sua expressividade, contaríamos ainda com um outro
componente para a concepção do trabalho: trechos do livro Noturnos (contos, 1999) e curtas
passagens da novela Clarice (1996), ambos escritos pela poeta e romancista cearense Ana
Miranda. Em Noturnos, principal obra consultada, uma mulher se vê às voltas com o mundo
que a rodeia; no alto de um edifício, confinada em seu apartamento, ela repassa
silenciosamente o testemunho solitário da sua vida. Alice fez a primeira extração de textos. O
material seria usado na composição dramatúrgica da peça. Selava-se assim o nosso desafio:
contar a história daquela mulher desenhada poeticamente por Ana Miranda, agora segundo
uma dramaturgia e uma poética cênica, utilizando movimentos e expressões criados sob a
inspiração da simbologia taoísta.

Dedicamos nosso tempo inicial explorando repetidamente as dinâmicas corporais


desenvolvidas com base no wu hsing e no yin yang. A cada ensaio, Alice criava dinâmicas
variadas com raro domínio corporal. Estava diante de uma atriz de ilimitadas possibilidades.
No exercício criativo de seus recursos físicos, inclusive vocais, demonstrava nítida vocação
caleidoscópica, o que me açodou o ânimo de imediato.
356

O próximo passo foi explorar aquelas dinâmicas, não mais como isoladas
representações físicas de conceitos, sensações e imagens extraídas do palavrório taoísta, mas
como um conjunto de mecânicas corporais a serviço da ação do personagem. Ou seja: o corpo,
ao se movimentar e se expressar segundo uma determinada matriz, deveria também atuar, agir.
Partimos então para a etapa seguinte: descobrir as ações que enredariam o drama daquela
mulher solitária. Fomos aos textos de Ana Miranda escolhidos por Alice e ali vislumbramos
alguns caminhos, aplicando – sempre que compatíveis - as dinâmicas desenvolvidas. De outra
feita, foram os gestos ou desenhos corporais contidos naquelas matrizes que passaram a
evocar, por associação, outras ações. Exemplo: o corpo curvado, caminhando nas pontas dos
pés, os braços esticados e as mãos apontadas para o chão, numa dinâmica inspirada na idéia de
‘profundo’, converteu-se na postura – ou partitura física - do personagem ao perseguir o seu
gato de estimação. O movimento de levantar os ombros construído a partir da palavra ‘frio’
remetia tanto à reação de susto provocada pelo toque de um telefone quanto à reação à água
fria de uma ducha sobre o corpo.

Depois de boa parte da peça desenhada, algumas matrizes – sem vínculo inicial com o
universo taoísta – foram ainda utilizadas por Alice como uma espécie de sub-partitura, de sub-
texto para ‘preencher’ algumas ações, a exemplo da cena em que a personagem recorda os
filhos (idéias de vazio e cheio) e da cena em que ela se observa no espelho (inibição e
excitação). Estas matrizes serviram, ao mesmo tempo, de ‘tonificadores’ da corporeidade da
ação criada, como na cena em que estira e recolhe seu corpo ao despertar pela manhã
(contração e expansão); na cena em que um fio preso ao sapato retém seus passos (leve e
pesado); quando fala com os vizinhos pela janela (interior e exterior) ou quando utiliza o olhar
para relacionar-se com a poeira da casa (recepção e penetração).

Diferente de uma adaptação, esse processo de ‘transcriação’ - como define Alice – põe
à prova a capacidade poética da dramaturgia e da encenação. Criamos para o espaço cênico
um território simbólico, opção para romper o realismo e elevar a encenação a uma poética
igualmente delicada, minimalista, cheia de sutilezas. Fios elásticos – remissão aos fios de um
ambiente doméstico: o fio do telefone, a linha de costura, o varal de roupas ou mesmo o ‘rabo
cada vez mais longo e denso’ do passado - cruzavam o palco e depois se entrelaçavam para
compor a teia noturna onde a protagonista, embalada pelo ranger dos alicerces do edifício,
envergava seu sono. Serviram, ainda, para compor as asas de um planador com as quais, já no
final da peça, ela se arremessava do alto do edifício, num vôo libertador sobre a cidade.
Objetos foram inseridos no espaço como auxílio à interpretação, numa construção sucessiva
de imagens e significados, gerando uma dinâmica visual de familiaridade caleidoscópica. O
tratamento plástico do cenário, figurino e objetos cênicos coube à sensibilidade da artista
plástica Malu Fragoso, que usou o verde e o vermelho – complementares no círculo das cores
– numa apropriação igualmente criativa dos princípios opostos do yin yang. A encenação
ganhou ainda mais vivacidade com o acompanhamento sonoro, percussivo, talismânico de
Lupa Marques (do Grupo ‘Casa de Farinha’).

O mais interessante – recorrendo ao testemunho de Alice - foi perceber ‘a importância


de prescindir, em vários momentos, do texto, propriamente, de Ana Miranda, em nome de
suas ambiências ou sugestões. A dramaturgia foi redimensionada, recriada no conjunto do
texto com o corpo, as ações, os objetos e cenário transformados, os sons, a luz... Difícil abrir
mão de tantas belas palavras e construções poéticas, mas foi fundamental acreditar na poética
cênica que criamos e que, no fim das contas, descobrimos tão fiel aos contos de Miranda!’.
Sim, havíamos construído, nas pegadas do tao – sinônimo aqui de ‘caminhar espontâneo que
dá às coisas a sua perfeição’ – um belo espetáculo a que chamamos de Traços ou Quando os
alicerces vergam. Apresentada em outubro de 2006, a montagem – que ganhara o prêmio
Myriam Muniz concedido pela Funarte - chamou a atenção da crítica. O jornalista Sérgio
Maggio, do Correio Braziliense, escreveu:
357

JORRO DE CRIATIVIDADE: Alice Stefânia emociona e surpreende em belo


espetáculo. A concepção do teatro como o caleidoscópio inunda o palco no
espetáculo Traços ou Quando os Alicerces Vergam. Com Alice Stefânia,
alguns objetos de cena e o músico Lupa na sonoplastia, André Amaro monta
uma das peças mais criativas da temporada 2006 em Brasília. A cada
seqüência, esses elementos constroem inusitadas possibilidades de
interpretação para a platéia. O mote parte da obra Noturnos, de Ana Miranda.
Mulher solitária que vive entre o limiar das ações físicas do cotidiano e do
delírio. Trabalha com lembranças que são recriadas de forma inesperada, a
partir de dramaturgia de movimentos. Numa das mais belas seqüências, Alice
Stefânia contracena com uma camisa masculina, valsa com a peça e recompõe
os carinhos do amante. Em outra, banha-se em bacia, em sincronia com os
sons criados ao vivo por Lupa. O texto de Ana Miranda pontua o espetáculo,
sendo parte de dramaturgia criada no somatório dos elementos. Quando surge,
é imperativo pela fluidez e beleza com que é interpretado por Alice Stefânia. A
atriz brinca com o corpo numa leveza que reflete seus estudos acadêmicos (ela
faz doutorado na Bahia, onde pesquisa relação entre movimentos opostos,
como yin/yang, quente/frio, seco/úmido) Com a ajuda de elásticos (aqueles
com que as meninas brincam na infância), traça mosaicos curiosos e
emocionantes dentro de cenário inteligente, que se molda à proposta. Realçado
numa iluminação narrativa e precisa de André Amaro, o espetáculo
reapresenta a Brasília Alice Stefânia, atriz de infinitas possibilidades, que ao
final canta lindamente Poeira Leve, de Tom Zé. (28 de outubro de 2006)

Chico Simões, conhecido bonequeiro da cidade, também deixou seu comentário:

Chovia, pensei que não haveria público, mas quase não encontro ingresso,
bom sinal, Teatro Caleidoscópio, pequeno, lotado, aconchegante. Chamou-me
atenção o cartaz, o vermelho e o preto, pé de galinha? Linhas... Traços... Ou
Quando os Alicerces Vergam, vamos ver: adaptação de obra literária...
Monólogo... Mulher de meia idade, solitária, delirando...

A atriz, Alice Stefânia, pouco a pouco desenha com o corpo e na relação com
os objetos ações dramáticas que afastam qualquer lembrança de tantos outros
monólogos e adaptações que tenho visto. Alice constrói, contraditoriamente,
com o fio condutor, um labirinto onde, enquanto a personagem se perde, o
espectador vai se encontrando no caminho traçado com rigor e simplicidade,
marca já conhecida, do diretor, também ator, André Amaro, provando que por
mais que se espere o teatro ainda pode surpreender, teatro que se faz a muitas
mãos, mas que é arte do ator e Alice o exerce com completo domínio; de
corpo, voz e ainda cantando bem, muito bem. Cenário e figurino não seguem
o cotidiano formal nem exageram no ‘teatral’; antes, parecem ser objetos de
arte - modelos desenhados, a propósito, pela artista plástica Malu Fragoso -
que compõem com o corpo da atriz e o espaço cênico um belo quadro, um
apartamento, um quadrado. Da janela, uma luz, almas vivas, vizinhos que não
vemos, nem ouvimos, mas sabemos; estão lá. O diretor também está lá,
mantendo a tensão necessária com o espectador, sem perdê-lo e sem envolvê-
lo demasiadamente em uma história que ele veio apenas ‘assistir’.

A trilha sonora merece comentário à parte, aliás, a trilha faz jus ao


significado: senda, vereda, caminho sonoro por onde o teatro se passa. Lupa
Marques, o mago da Casa de Farinha, literalmente ‘encantado’ segue cada
358

ação, cada gesto da personagem, improvisando músicas e sons onomatopéicos


como convém a quem muito sabe: in-pró-visar.

A cena em que a camisa do marido ausente é lavada e pendurada no varal é


exemplar, nela o teatro salta aos sentidos do espectador mais exigente, sons e
imagens bem escolhidas propõem, sem impor, leituras particulares de
símbolos universais reunidos em uma seqüência dramática, precisa e
inteligente; lavar roupa (purificar) pendurar no varal (expor a luz, espiar) e
interagir com a peça estendida (comungar) criam uma atmosfera perfeita para
o texto que evoca o sacrifício da personagem que morre e ressuscita a
cada instante. O jogo entre a atriz e a camisa pendurada no varal é teatro de
animação para bonequeiro nenhum botar defeito; ali a camisa se transforma
no dono, que salta da memória da personagem para os sentidos do espectador
materializado como boneco de manipulação direta. Isso é teatro, sem os
excessos histriônicos tão comuns na cena contemporânea mundial, teatro
essencial, sem mais adjetivos. Ainda é tempo! Ainda há teatro! (25 de
outubro de 2006)

No final de tudo, Alice me perguntou: - Tudo funcionou porque a proposta é mesmo


potencialmente fomentadora de construções expressivas, extra-cotidianas, ou você acha que eu
sou uma atriz que teria criado coisas parecidas independentemente dessa pesquisa ancorada no
universo taoísta? Não tenho dúvida de que o corpo de Alice – como matéria-prima da
modelagem teatral - é um campo seguro para a exploração de construções físicas expressivas e
extra-cotidianas; carrega uma qualidade de consciência que o torna apto a enfrentar qualquer
processo criativo, sobretudo os que valorizam a matéria corporal como elemento de
manipulação estética. Teria criado, em outras circunstâncias, coisas parecidas ou
completamente diferentes a depender dos estímulos propostos. Seu embasamento técnico é
anterior à forma como organiza seu material ou como este se adapta à encenação. É verdade
também que as teorias e o simbolismo que habitam a sabedoria taoísta se oferecem como ricos
estímulos ao surgimento de uma dança corporal expressiva, mas não me parecem os únicos
responsáveis por ela. Um sistema cognitivo ágil e a capacidade de decodificar signos
(palavras, imagens) corporalmente com precisão e beleza me parecem agentes
transformadores tão preponderantes no processo de criação como a substância de que se
nutrem. Não é a simbologia taoísta que associa yin à substância e yang ao funcionamento?
Devem estar em perfeito equilíbrio, pois um depende do outro. E nesse caso, o ‘motor
psicofísico’ de Alice - seu nível pré-expressivo, usando a terminologia de Barba - tem
avançada tecnologia para processar as mais variadas substâncias, sejam elas criadas pelo
pensamento taoísta ou por qualquer outro conteúdo simbólico. Um corpo-mente que
‘funciona’ bem.

Em resumo: a expressividade de Alice - resultado do estímulo aplicado - é


desenvolvida sobre uma cultura corporal anteriormente adquirida e ela a possui como
afortunada ferramenta de trabalho. Uma ferramenta que até pode ter sido talhada na prática do
chi kung ou dos preceitos taoístas, mas que ganhou funcionalidade mais ampla, até para lidar
com outros estímulos igualmente criativos. Bastariam, por exemplo, uma palavra, uma frase,
um poema, uma imagem fotográfica para ver seus recursos físicos e mesmo interpretativos
convergirem para a esteira da criatividade ou, nas suas palavras, para construções expressivas
e extra-cotidianas. Esta é uma das razões pelas quais tudo funcionou bem, entre outras que
considero igualmente importantes: o campo poético proporcionado pela literatura de Ana
Miranda, a utilização do espaço cênico segundo uma visão caleidoscópica (sucessão de
imagens imprevisíveis a partir do corpo e sua interação com outros elementos cênicos) e a
presença de uma cumplicidade silenciosa do grupo – afetiva e profissional - que reforçava nas
entrelinhas a idéia do tao: ‘cada coisa tem seu modo espontâneo e natural de ser. E todas as
coisas são felizes desde que evoluam de acordo com a sua natureza. (AMARO, 2007: 162-
170)
359

Esse testemunho vem de um artista cuidadoso e talentoso, a quem muito admiro e


agradeço. Um artista que generosa e intuitivamente – em fluxo, em wu wei – aceitou
participar de um projeto quando este ainda não contava com qualquer verba, sobre o qual
tinha pouquíssimas informações, com uma atriz que havia visto em cena uma ou duas vezes, e
que há dois anos estava fora da cidade. Com o tempo ele abraçou e assumiu o trabalho como
seu também, e, para além do “produto” peça, ele muito contribuiu nessa etapa da pesquisa.

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