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1 Casa de Oswaldo Cruz, Abstract The publication of the book Folie et Déraison. Histoire de la Folie à l’âge Classique
Fundação Oswaldo Cruz.
(1961), by Michel Foucault, sparked a debate between the author and philosopher Jacques Derri-
Av. Brasil 4036, sala 401,
Rio de Janeiro, RJ da during the 1960s and 70s. Derrida criticized the methodological proposal and organization
21040-361, Brasil. of the History of Madness presented by Foucault in the foreword to the first edition. The contro-
apereira@sitelocal.com
versy appears to have motivated the author to withdraw this same foreword from the second edi-
tion. The purpose of this article is to analyze some current points in this controversy. It also pre-
sents a research agenda for an understanding of the reasons leading Foucault to take this stance.
Key words Mental Health; Philosophy; History of Science
Resumo A publicação do livro Folie et Déraison. Histoire de la Folie à l’âge Classique (1961),
de Michel Foucault, promoveu um debate entre o autor e o filósofo Jacques Derrida, durante os
anos 60/70. Derrida criticou a proposta metodológica e a organização da História da Loucura,
apresentadas por Foucault, no prefácio da primeira edição. Essa polêmica parece ter motivado o
autor a retirar, da segunda edição, o prefácio que abria a primeira versão do livro. O objetivo
deste artigo é analisar alguns pontos presentes nesta controvérsia. Além disso, ele apresenta uma
agenda de pesquisa para o entendimento das razões que levaram Foucault a tomar tal atitude.
Palavras-chave Saúde Mental; Filosofia; História da Ciência
com que Foucault analisou a loucura na Grécia ouvidos apurados para escutar a pureza primi-
antiga. Para Derrida, a antigüidade não guar- tiva da loucura, curvando-se para esse resmun-
daria, a este respeito, nem especificidade, nem go do mundo, tentando perceber as imagens
privilégio, tampouco a dialética socrática seria, que nunca foram poesia.
neste sentido, tranqüilizadora, como afirmou Em síntese, a perspectiva metodológica de
Foucault. Para Derrida, o corte, o momento de Foucault objetiva:
mudança de postura do homem em relação à “Fazer um estudo estrutural do conjunto
loucura é anterior à antigüidade greco-roma- histórico – noções, instituições, medidas jurídi-
na. Situa-se, portanto, há milhares de anos an- cas e policiais, conceitos científicos – que man-
tes de meados do século XVIII. tém cativa uma loucura cujo estado selvagem
não pode nunca ser recuperado em si mesmo;
mas à falta desta inacessível pureza primitiva, o
Postura metodológica estudo estrutural deve remontar até a decisão
que une e separa, ao mesmo tempo, razão e lou-
A visão de Foucault cura; deve tender a descobrir a troca perpétua, a
obscura raiz comum, o afrontamento originário
Como acabamos de ver, a constituição da lou- que dá sentido à unidade quanto à oposição do
cura como doença mental, no fim do século sentido e da insensatez” (Foucault, 1961:VI).
XVIII, atesta, para Foucault, um diálogo rompi- Este empreendimento seria possível? Seria
do. Metodologicamente falando, Foucault se possível ouvir a loucura antes de ela ter sido
propõe a fazer uma arqueologia deste silêncio capturada pelo saber? Os registros oficiais an-
que se estabelece no final do século XVIII. Para teriores ao século XVIII não teriam sido feitos
tanto, no seu entender, “É necessário (...) re- pela mesma razão que buscava silenciar a lou-
nunciar ao conforto das verdades confirmadas, cura?
e nunca nos deixarmos guiar pelo que podemos Foucault, ele mesmo, admite a impossibili-
saber sobre a loucura. Nenhum dos conceitos da dade de sua perspectiva metodológica, afir-
psicopatologia deverá, mesmo e principalmente mando:
no jogo implícito das retrospecções, exercer qual- “Mas essa é sem dúvida uma tarefa ‘dupla-
quer papel organizador. É constitutivo o gesto mente impossível’ (destaque nosso): já que ela
que separa a loucura, e não a ciência que se es- nos forçaria a reconstituir a poeira destas dores
tabelece, uma vez feita esta separação, na calma concretas, destas palavras insensatas que nada
retornada. (...) Será portanto necessário falar amarra ao tempo; e já, principalmente, que es-
destes gestos repisados na história, deixando em tas dores e palavras que só existem e são dadas a
suspenso tudo o que pode fazer figura de con- elas mesmas e aos outros no gesto da divisão que
clusão, de repouso na verdade; falar deste gesto já as denuncia e domina” (Foucault, 1961:VI).
de corte, desta distância tomada, deste vazio
instaurado entre a razão e o que não é ela, sem A opinião de Derrida
nunca se apoiar na plenitude do que ela preten-
de ser” (Foucault, 1961:III). Derrida inicia suas críticas de forma amena,
O estabelecimento desta divisão, deste si- respeitando o peso da obra e a importância
lêncio, não é, no seu entender, casual. Ele é que Foucault tinha para ele. Ele considera o “li-
parte de uma estratégia da recusa implementa- vro admirável sob tantos pontos de vista, livro
da pela razão científica, na qual a psiquiatria, a poderoso em seu fôlego e em seu estilo” (Derri-
psicologia e a psicopatologia teriam desempe- da, 1967:51). Em tom ainda cordial, Derrida,
nhado papel decisivo. ex-aluno de Foucault, teme, na abertura de seu
No prefácio da primeira edição, Foucault artigo, que este diálogo com o mestre seja en-
afirma que o objetivo de seu livro é analisar os tendido como uma contestação.
mecanismos que promoveram esta estrutura Ele não encerra sua conferência, entretan-
da recusa. Ele se propõe a fazer uma história to, com a mesma retórica. Segundo Derrida:
desta linguagem, uma arqueologia deste silên- “Ao escrever uma história da loucura, Fou-
cio, do momento em que a loucura foi encarce- cault quis – e nisto reside todo o valor mas tam-
rada pela razão. bém a ‘impossibilidade própria de seu livro’
No seu entender, para realizar tal empreen- (destaque nosso) – escrever uma história da lou-
dimento o pesquisador deve assumir uma no- cura ‘mesma’. Ela ‘mesma’. Da própria loucura.
va postura metodológica. É necessário que o Quer dizer, dando-lhe a palavra. Foucault quis
pesquisador, por um lado, procure apreender a que a loucura fosse o sujeito de seu livro; o su-
loucura em sua vivacidade, antes de qualquer jeito em todos os sentidos da palavra: o tema de
captura pelo saber. Ele tem, ainda, que ter os seu livro e o sujeito falante, o autor de seu li-
vro, a loucura falando de si mesma” (Derrida, ditações, de Descartes. Sobre as críticas que re-
1967:55-56). cebeu em relação à periodização e à proposta
Para Derrida, o que há de mais audacioso, metodológica da História da Loucura não há
mais sedutor e mais louco na perspectiva me- uma só palavra. A constatação do silêncio é,
todológica de Foucault é a tentativa de escapar para nós, no mínimo, inquietante.
à ingenuidade objetivista presente na lingua- Derrida, ex-aluno de Foucault, dirigiu-lhe
gem policial e policiada da razão clássica. críticas ásperas envoltas por uma cordialidade
Derrida mostra, ao longo de sua conferên- formal. Foucault não as respondeu, pelo me-
cia, a impossibilidade desta ‘tentativa’, apre- nos na réplica, publicada no apêndice da se-
sentando alguns argumentos. gunda edição da mesma obra. Esta atitude sur-
Por um lado, Derrida critica a proposta de preendente incita nossa imaginação. Para nós
Foucault de fazer a arqueologia do silêncio. Pa- é difícil conceber um gesto de autocensura vin-
ra ele, uma arqueologia, mesmo que fosse do si- do de quem veio.
lêncio, teria que ser obrigatoriamente dotada de O silêncio diante da polêmica acadêmica é
uma lógica, de uma racionalidade. A linguagem sinal de concordância? O fato de ter retirado o
utilizada nesta arqueologia teria, para Derrida, prefácio da primeira edição quando a obra foi
uma razão que lhe daria sentido e significado. reimpressa indica que sim. A preservação do
Além disso, Derrida admite que, se quisés- texto na íntegra, no entanto, sugere o contrário.
semos ser os porta-vozes dos loucos, se qui- Foucault calou-se, mas não consentiu. Ca-
séssemos escutar seu silêncio, como se dispôs lou-se quando não respondeu às críticas de
Foucault, teríamos que utilizar, invariavelmen- Derrida e impediu que o prefácio integrasse a
te, a linguagem da ordem. Assim, o empreendi- segunda edição. Não consentiu, pois manteve
mento de Foucault ficaria mais uma vez invia- a História da Loucura intacta, inalterada, trans-
bilizado. No seu entender, não há como anali- formada, depois, numa referência internacio-
sar algo sem se inserir em uma ordem explica- nal sobre o tema. Além disso, ele já havia admi-
tiva qualquer. O silêncio, por exemplo, só pode tido a impossibilidade de sua obra, defenden-
ser compreendido numa linguagem. do a adoção de uma relatividade sem recurso
No entender de Derrida, o fato de Foucault em sua proposta metodológica.
admitir a impossibilidade de seu investimento Um estudo que analisasse a momento pro-
demonstra que ele tem uma consciência aguda fissional, pessoal e psicológico que Foucault vi-
da dificuldade deste projeto. A pretensão de via no início da década de 60 e o comparasse
construir uma arqueologia do silêncio foi con- com aquele da década de 70 talvez apresente
siderada, por Derrida, “purista, intransigente, pistas interessantes para desvendar a questão
não-violenta e não-dialética” (Derrida, 1967: que motivou a realização deste artigo. Um in-
59). O tom amigável do início da conferência dício da condição psicológica em que Foucault
torna-se, aos poucos, árido e ácido. se encontrava nos anos 60 pode ser observada
Derrida identifica, ainda, uma contradição nas últimas linhas do prefácio da primeira edi-
fundadora no prefácio da obra de Foucault. Se ção. Foucault agradece aos amigos suecos e
o próprio autor considera que a realização des- poloneses, que conheceu em Hamburgo, e pe-
te empreendimento é impossível dentro dos de que lhe perdoem “por tê-los feito sofrer, eles
marcos metodológicos propostos, como admi- e sua felicidade, tão próximos de um trabalho
tir que Foucault tenha escrito um livro sobre o onde só se tratava de sofrimentos longínquos, e
tema? Derrida aprofunda suas críticas pergun- dos arquivos um pouco empoeirados da dor”
tando: Se o próprio Foucault considerou du- (Foucault, 1961:VIII).
plamente impossível se curvar para esse res- Outra possibilidade de entendimento desta
mungo do mundo e reconstituir a poeira des- atitude de Foucault talvez esteja associada a
tas dores e palavras concretas, como aceitar uma análise das escolas de pensamento que
que ele tenha estabelecido tal perspectiva me- ele e Derrida integraram ao longo dos anos
todológica para a reconstituição de uma histó- 60/70. Por certo a polêmica por eles travada
ria da loucura? não se circunscreve, exclusivamente, a este
prefácio ou a esta obra. Caberia, portanto, re-
cuperar alguns elementos integrantes da rela-
Considerações finais ção intelectual que foi estabelecida, ao longo
do tempo, entre Foucault e Derrida. Neste mes-
No apêndice da segunda edição – Mon corps, ce mo percurso, deve-se levar em consideração o
papier, ce feu –, Foucault disseca um a um os campo intelectual francês no pós-guerra, em
argumentos apresentados por Derrida acerca um sentido mais amplo, sobretudo o entrecho-
da polêmica sobre a interpretação dada às Me- que do estruturalismo racionalista nietzschia-
Agradecimentos Referências
Agradeço às sugestões feitas pelo Prof. Dr. André R. FOUCAULT, M., 1961. Folie et Déraison. Histoire de la
Rios (Instituto de Medicinal Social, Universidade do Folie à l’âge Classique. Paris: Plon.
Estado do Rio de Janeiro) durante a elaboração deste FOUCAULT, M., 1972. Folie et Déraison. Histoire de la
texto e ao excelente trabalho de tradução dos origi- Folie à l’âge Classique. Paris: Gallimard.
nais feito por Laís Eleonora Vilanova. DERRIDA, J., 1967. Cogito et histoire. In: L’Ecriture et
la Difference ( J. Derrida, ed.), pp. 51-97, Paris:
Seuil.