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Copyright © by Alba Zaluar; 1985

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reproduzido por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

ISBN 85-11-07015-X
Primeira edição, 1985
2" edição, 1994
1" reimpressão, 2002

Revisão: José W S. Moraes


Capa: Car/os Matuck ,
Indice
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Agredecimentos . 7
Zaluar, Alba
A máquina e a revolta : as organizações O antropólogo e os pobres: Introdução metodolósíca e
°
populares e significado da pobreza I Alba Zaluar. afetiva . 9
- 2 ed. - São Paulo: Brasiliense, 2000.
As teorias sociais e os pobres: Os pobres como objeto . 33
A política habitacional e os pobres: O "sonho" dos polí-
ISBN 85-11-07015-X ticos . 64
I. Pobres - Rio de Janeiro (RJ) 2. Trabalho e Os trabalhadores em suas famílias: Trabalho e pobreza .. 87
classes trabalhadoras - Rio de Janeiro (RJ) r.
Título. lI. Título: As organizações populares e o Trabalhadores e bandidos: Identidade e discriminação .. 132
significado da pobreza. 173
Os vizinhos e os outros: Organizações populares .
02-5639 CDD-305.5690981531
Os vizinhos, o povo e os políticos . 218
Índices para catálogo sistemático:
1. Rio de Janeiro: Cidade: Pobreza: Estudos antropológicos :
Sociologia 305.5690981531

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di'''' OIlIplllllll'.'.il'. docl'lIlcs)_ A convivência com ela foi sem-
pie c,llllllllall(c

Otavio U. Velho leu a primeira versão do capítulo 5 e


levantou questões estimulantes. Não sei, entretanto, se a
reforrnulação que fiz respondeu às suas criticas.
Meus colegas da Antropologia, UNICAMP, sensibiliza-
dos pelo meu esforço, concederam-me dois períodos livres da
tarefa docente. Vários deles sempre me incentivaram para
levar adiante minha tese e, é claro, terminá-Ia logo. Dela
Bianco dividiu comigo interesses comuns. Michael H811,em
afastamento forçado do pais, enviou-me dois preciosos livros
que muito usei para encontrar o rumo das minhas idéias. O o antropólogo e os pobres:
uso que fiz deles, no entanto, é de minha inteira responsabili-
dade. Ao soar do gongo, Marisa Correa e PUnio Dentzien introdução metodológica
revelaram-se preciosa fonte de informações da última hora.
Sou também inteiramente responsável pelo uso que fiz delas. e afetiva
Outras pessoas contribuíram sobretudo para aumen-
tar as alegrias. Roberto Schwarz foi, como sempre, um ouvin-
te atento, receptivo e perspicaz. Mareio e Fausta Campos Imagine-se estacionando seu carro particular na rua de
brindaram-me com a sua amizade, valiosa em inúmeros mo- um bairro de pobres cujo nome permanecia nas manchetes
mentos. dos jornais como um dos focos da violência urbana, u~ antro
A Fundação Ford concedeu-me a verba para realizar a de marginais e de bandidos. Você não conhece ~mguem que
pesquisa durante um ano, entre 1980 e 1981, e esperoupacíen- lhe possa indicar os caminhos e presta~-Ihe as mformaç.ões
temente por este' produto final. O CNPq concedeu-me um de que necessita para mover-se sem rISCOS desnecessános.
ano de bolsa de doutorado em 1981. Você nem sabe muito bem onde procurar o que tem em men-
Finalmente, a simpática banca de examinadores na USP te. Conhece apenas um jovem que lhe foi apresentado por u.m
dirigiu-me comentários generosos e estimulantes, que me de- amigo comum, o qual lhe recomendou cautela. E nada mais,
cidiram a publicar as palavras que se seguem. Os co-respon- Era por esse jovem que, em janeiro de 1980, procurava
sáveis por esta decisão são Roberto Schwarz, Leoncio Mar- de porta em porta para iniciar meu aprendizado sobre o.mo~o
tins Rodrigues, Ruth Cardoso, Manoel Berlinck e Eunice de vida das classes populares urbanas no conjunto habitacio-
Durham. Se a posteridade lhes ficará agradecida, não sei. nal chamado Cidade de Deus. As primeiras informações não
foram nada animadoras. Ninguém parecia conhecê-lo muito
bem. Comecei a invejar intensamente Malinows~i, que apor-
tou a uma praia longínqua nos mares da Oceama para est.u-
dar um povo tribal sem saber-lhe a língua, ~as com a CO~VIC-
ção de que iria deparar com uma cUI~uradiferente e ~utono-
ma harmoniosamente coerente e aceita por todos. AlI estava
eu bem no meio do dissenso e dos conflitos que, segundo os
jornais, rasgavam a vida pacífica do povo carioca e mancha-
vam de sangue a vida brasileira. . -,
A sensação mais forte que tive naquele momento tOI li
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sica. Pois se eu estava ali era porque conhecia gente do local.
du dc,',tolllllYHlo. 11I;\.';11111medo
construido pela leitura. diária Tinha imunidades sociais e morais.
do:; jOlll;~is. ~llH': apresentavamos habitantes daquele local Olhando para trás, percebo que junto com o medo expli-
como. defInItIvamente
. . perdidos para o convívio social , como cável, havia certa ambigüidade na minha postura cujas raizes
per~gosos cnmmosos, assassinos em potencial, traficantes de não consegui deslindar na época. O que me atraia e repelia ao
tóXICOS,etc. Apesar de saber que essa campanha não era se- mesmo tempo era a possibilidade de romper uma barreira,
~ão· a continuidade de um processo de longa data de estigma- cuja visibilidade não é posta ao alcance do olho nu, mas cuja
tízação dos pobres, eu tinha medo. Um medo realista de me força se faz sempre presente nos menores gestos, nos olhares,
enredar em malhas cujo controle me escapasse ou de enfren- nos rituais da dominação, nos hábitos diários de comer, falar,
tar a morte nas mãos de um bandido raivoso. Duvidei que pu- andar e vestir, a barreira que separa a classe trabalhadora po-
~esse permanecer por lá e me relacionar com as pessoas. Mas bre das outras classes sociais que gozam de inúmeros privilé-
ISSOpouco tinha a ver com a possibilidade real de deparar gios, entre eles o de receber "educação". Chegar perto, tão
com um assaltante, possibilidade esta cada vez mais comum perto a ponto de me confundir com eles em sua casa, em seu
a qualquer habitante do Rio de Janeiro, mesmo sem sair de bairro, deles que a nossa sociedade construiu inúmeros mo-
casa. Não, não era apenas o medo de morrer com um tiro na dos de manter distantes através de diferentes gostos, palada-
barriga ou algo ainda mais prosaico.
res cheiros e hábitos, através da permanente carência, me pa-
O cenário com o qual deparei não era totalmente des- recia impossível. No entanto, não era um tabu com proibi-
provido de tranqüilidade. De certos ângulos, parecia mesmo ções especificadas nem a poluição decorrente do contato com
um calmo bairro de subúrbio, de intensa vida social entre o impuro que dificultavam esse contato. Nada ordena clara-
vizinhos. Meninos correndo ou soltando pipa no telhado, mente, na nossa sociedade, o contato entre os pobres e os
donas-de-c~sa conversando no portão, homens jogando car- 'ricos. Ao contrário, somos instados a conviver alegremente
teado na birosca, trabalhadores passando a caminho do tra- nos estádios de futebol, nos desfiles de escolas de samba e na
balho e brincando com os conhecidos, os grupinhos na esqui- nossa cozinha. Mas vivemos em mundos separados, cada vez
na, e tudo mais que já foi eternizado para nós nos sambas mais longe um do outro. Comecei a me dar conta, por esta
compostos pelos artistas populares. Mas a tensão era visível forma violenta, da invisível e poderosa hierarquia (ou separa-
Nos b~bad~s apedrejados, na mulher louca andando pela ru~ ção de classes) da nossa sociedade. Que não somos iguais nem
em mero à indiferença geral e, nas esquinas estratégicas nos perante a lei, nem perante a riqueza produzida já sabemos há
olhares atentos e avaliadores dos adolescentes que se en~ami- muito tempo. O que eu não sabia era que havia tantos obstá-
nham para a vida que denominamos criminosa. Esses sinais culos microscópicos a entravar o contato social mais intimo
de miséria social e moral eram sublinhados pela própria com- entre nós. Eu os visitava no seu domínio, por assim dizer.
posição material do conjunto: ruas esburacadas, cheias de Longe da minha cozinha e dos seus lugares de trabalho subal-
lama e de dejetos fétidos dos esgotos já arrebentados encami- terno. Que regras de convivência mudariam e o que haveria
nham os passos de quem por elas anda, especialmente as ruas de confluência e de permanência?
mais interiores, menos freqüentadas. No início fui poupada Da viagem não saí a mesma, nem aos olhos alheios nem
pela sorte de presenciar algum dos tiroteios que agitam este aos meus. Aprendi, a duras penas, a cultivar o envolvimento
quadro tão freqüentemente. Mas ouvi regularmente os comen- compreensivo, isto é, a participação afetuosa e emoci?nada
t?rios a seu respeito. Sendo estranha, mulher e de classe .supe- nos seus dramas diários, sem me deixar levar pela piedade
nor, era natural que despertasse curiosidade neste cenário. E, que desemboca no paternalismo e ~,arecusa à dignid~~e deles.
sendo novata, ainda não havia aprendido que estar ali den- Para amigos e colegas sem a prática de contato político com
tro, e não nas ruas ou nos ônibus da Zona Sul do Rio de Janei- esta população, adquiri o carisma de quem realizou um "fei-
ro, era até certo ponto uma garantia de minha integridade fi- to". Se para outros polui-me, não sei. Nosso espírito cristão

.', , " .. .,
12 ALBAZALUAR A MÁQUINA E A REVOLTA 13

tende a cercar estas incursões junto à população pobre de limitadas que estavam à guerra de quadrilhas que havia se ini-
uma certa, aura divina ou santificada, mesmo que a "esqueça- ciado no ano anterior e que já deixara vários mortos. Era o
mos a maior parte do tempo. auge do que alguns de seus líderes comunitários considera-
Não era necessário fazer uma opção racional pelo elitis- vam como uma campanha negativa que visava desalojâ-los
mo! nem defender idéias que pregam a conveniente separação do local. O noticiário policial, então, já não comportava
social entr~ pobres e ricos. Quer queiramos, quer não, esta todas as notícias sobre a crescente criminal idade na cidade do
separação Já está embutida nos rituais de dominação de classe Rio de Janeiro e se espalhava por outras folhas, anunciando-
que incluem um rigoroso afastamento do local de moradia se às vezes em manchetes de primeira página. O teor dessas
dos pobres. As favelas subindo pelos morros em ruelas tor- notícias era claramente sensacionalista: a criminalidade incon-
t~osas incomodavam nossas vistas e atrapalhavam os negô- tida, a violência cada vez maior cometida durante os assaltos,
CIOS da construção civil. Nem a policia, dizia-se, conseguia o clima de guerra em que estavam envoltos os bairros pobres
chegar por lá. Removeram-nas para bem longe da nossa deli- onde atuavam quadrilhas de traficantes de tóxicos. Cidade de
cada visão. Mesmo as que ficaram mais perto, como Cidade Deus era apontada como um dos principais focos do tráfico
de Deus, que somos obrigados a cruzar a caminho de bairros de maconha e, portanto, do clima de guerra e violência que
ricos da zona de J acarepaguá, são apenas atravessadas por tomava conta da cidade. Havia realmente uma guerra entre
uma estrada principal. O seu interior não é alcançado pelos as três principais quadrilhas de Cidade de Deus. Mas essa
nossos olhos sensíveis. Desconhecemos o que lá se passa guerra tinha regras que tornavam a sua violência até certo
embora nossa fértil imaginação o faça, desde logo, um antr~ ponto compreendida pelos moradores locais. A guerra .e~a
de banditismo, violência, sujeira, imoralidade, promiscui- assunto dos "bandidos" apenas. O resto da população VIVIa
dade, etc. Duplamente excluídos por serem "outros" e por o seu cotidiano de trabalho e de luta para manter um padrão
serem "incultos" e "perigosos", os pobres urbanos vivem de vida digno. Os jornais confundiam o que para eles deveria
neste olhar etnocêntrico e homogeneizador, o avesso da civili: estar claramente separado, além de dífamá-los por não mos-
zação, trar o lado "bom", positivo, do conjunto. Isso só acrescenta-
Nas minhas idas e vindas, percebi que passei a exercer va dificuldades ao seu viver, já tão prejudicado pela pobreza,
um novo papel - o de mediador intelectual entre os pobres e os "revoltava". Nesse contexto ouvi pela primeira vez falar
temidos e me~s temerosos iguais. Nas conversas com estes, em revolta e percebi que repercussões teria nas duas fases do
em que essas Impressões do afamado conjunto habitacional trabalho de campo desenvolvido por mim ao longo de 1980,
ficavam patentes, eu esclarecia os circunstantes sobre o que se 1981 e, esporadicamente, em 1982.
passava nas suas ruas interiores. Eu os tranqüilizava com o Na primeira fase, nos três primeiros meses de 1980, o
futebol na praça, a pipa no céu, as brincadeiras na rua, as intuito principal da pesquisa era recolher as representações
conversas na porta de casa e no botequim. E falava também dos moradores acerca da pobreza vinculadas ao consumo nas
de suas preocupações morais e do seu desejo de democracia, unidades domésticas. Nesta fase, não tive contato contínuo
sobre a importância que para eles tem "vencer na moral" e com as pessoas entrevistadas, com exceção de três rapazes
"trocar idéias" . Até hoje exerço esse papel. que, além de serem informantes privilegiados, me abriam os
Ultrapassada a barreira inicial, vi-me diante de outros caminhos e garantiam que não seria molestada neste contur-
rituais que reconduziam ao afastamento social, à dominação bado ambiente. Eram eles que possibilitavam a minha pas-
de classe, à hierarquia. Isso me foi gradativamente revelado sagem de uma área para outra controlada por diferentes qua-
no desenrolar da pesquisa pela própria relação que ia sendo drilhas, bem como a aceitação daquela presença estranha por
construída entre mim e os moradores do local. parte dos olheiros e sentinelas das quadrilhas. Foi apenas n~s:
Quando lá cheguei, no início do ano de 1980, as notícias te período que senti necessidade de ser guiada. Logo adquiri
nos jornais diários eram desabonadoras da vida no conjunto, confiança para andar sozinha, tomando o cuidado de me
14 AI.IIA I.ALlJAI( A MAQUINA E A REVULTA I~

concentrar em apenas uma das áreas em que o conjunto esta- tido desta troca que é a pesquisa. Se nada nos garante o direi-
va dividido. to de perturbar-lhes a vida no espaço que eles concebem como
Estivesse ou não acompanhada, fui ora recebida com o de sua liberdade (a casa, o bairro), só nos resta concluir que
desconfiança, como jornalista interessada em difamar o local, contamos também com a paciência e a generosidade do nosso
ora com esperança, como uma enviada do governo que ante- "objeto" .
cederia os sacos de feijão e arroz que o governo iria mandar Nos que aceitaram a entrevista, a expectativa paterna-
para as famílias mais pobres. A desconfiança se explicava lista tinha outros desdobramentos. Eu poderia funcionar
pelo fato de que o conjunto sofria um processo de estigrnati- como uma agência ambulante de empregos, já que nada mais
zação pela imprensa. Eles temiam que eu também estivesse à parecia fazer ali além de perguntas. Foram muitos os pedi-
cata de estórias sensacionalistas para contar e me pergunta- dos, partidos quase na sua totalidade de mulheres que procu-
vam, cheios de dignidade e indignação, se eu também ia explo- ravam encaminhar seus jovens filhos ao mercado de traba-
rar a miséria do povo. Essa impressão se diluía à medida que lho. Vivi momentos dificeis tentando lhes explicar que não ti-
,C"~ falava da pesquisa, às vezes apenas para dar lugar, junto a nha capacidade para tanto. Algumas dessas mulheres não me
.".
algumas famílias muito pobres, a um outro papel que estes esconderam que eu me apequenara aos seus olhos. Outras, a
me imputavam: a de funcionária do governo federal. Enquan- maioria , continuaram generosamente a .manter .interesse nas
to me viam assim, algumas mulheres tendiam a pintar em minhas intermináveis perguntas e na minha cunosa pessoa. ,.
cores fortes suas dificuldades, a enumerar os produtos de que Muito me ajudaram nisso os amigos do local por quem
necessitavam para que possivelmente eu as incluísse em algu- me fazia acompanhar, que me apresentavam às pessoas co-
ma lista ou fizesse uma ficha que as tornasse candidatas a re- nhecidas e que permaneciam durante as entrevistas. Em virtu-
ceber a ajuda paternalista do Estado nos moldes que a Igreja de de sua presença, a polarização entre a mi~ha image~ ~e
local lhes oferece. membro da classe privilegiada e o pobre entrevistado se diluia
Se, por- um lado, isso era uma indicação segura da ima- e mais facilmente aparecia a identidade coletiva de morador
gem paternalista forte do Estado que ainda impera entre os do conjunto e de trabalhador pobre, ~ategoria sempre p~e-
muito pobres, por outro lado, a bem da pesquisa, era uma sente para definir a comida que comla~. Tan~o fOI .asslm
impressão que deveria ser superada. E essa impressão eu só que, nas poucas entrevistas isoladas que fIZ, s~rg1Ua atitude,
conseguia desmantelar quando os desenganava nesta expecta- entre os que tinham pretensão à ascensão SOCIal.de procu!ar
tiva: eu não lhes traria nenhuma comida, nem o governo iria elevar sua posição social junto a mim falando de uma comida
enviá-Ia posteriormente. Com isso apareceu novo tom nas variada e elaborada que não faz parte da dieta alimentar
entrevistas, que não se limitavam mais à monotonia das quei- usual entre os pobres. .
xas e que COmeçaram a falar da valorização positiva de seu Na segunda fase, iniciei o contato com as associações de
modo de vida. Poucas vezes, no entanto, fui dispensada por moradores e as organizações voltadas para o lazer. Após fic.ar
candidatos à entrevista que se negaram a dar informações. algum tempo junto a duas das associaç~:s de moradores eXIS-
Para qualquer pesquisador, esta é uma experiência desagra- tentes no conjunto, conversando, p~tlclp~ndo de reU?lÔeSe
dável, às vezes desanimadora, pois que nos leva a refletir entrevistando alguns membros da diretoria sobre a Vida e a
sobre os efeitos da pesquisa na população. Mas não apenas política local, resolvi dedicar-me às agremiações car~a~al~s-
nós, pesquisadores, pensamos sobre isso. Comentários espar- cas e aos times de futebol. Isto por duas razões pnncipais.
sos dos que colaboraram com a pesquisa, a recusa de um Primeiro, porque os membros da maior associação negaram-
homem em prestar informações com o argumento de que isso se a me abrir dados sobre a história da associação que eu con-
não lhe serviria para nada e de uma mulher que me perguntou siderava indispensáveis, recusa que se explicava pe~os cont~-
despachada quantos sacos de feijão ganharia por isso, revela- tos anteriores com jornalistas e fotógrafos nos quais se senti-
ram que também os pesquisadores se perguntam sobre o sen- ram usados e traídos. Essa desconfiança em relação aos pro-

...
16 ALBAZALUAR
rrrmmrrmmn 17
A MÁQUINA E A REVOLT A

fissionais da imprensa só era equiparada pela desconfiança lógica, fui pouco a pouco abdicando desse poder nas suas
devotada aos intelectuais de um modo geral. .Queriam ser manifestações mais claras. Recusei-me sempre a impor ou a
seus próprios intelectuais e não precisavam de nenhuma tese difundir meus padrões morais e estéticos, não aceitei o papel
de doutorado a seu respeito. Segundo, porque pude perceber de juiz e desviei-me conscientemente de qualquer identifica-
que essa associação abrigava o pessoal de nível educacional ção minha com esses personagens do seu mundo, em especial
mais alto e que não tinha muita penetração nos meios mais com os que "julgam" a produção cultural deles nos desfiles e
pobres do conjunto. Resolvi então procurar as organizações meios de comunicação de massa, mesmo sabendo que a rela-
que atuavam ao nível das quadras, das praças, das ruas do ção com estes é apenas instrumental: trata-se de ganhar o
conjunto e que se espalhavam por todo ele. concurso. As reações a essa minha postura foram divergen-
Quando cheguei ao pedaço mais interior, e um dos mais tes. Houve os que, mais independentes, mal disfarçavam uma
visados pela difamação pois abrigava uma das mais impor- ponta de desprezo na sua percepção sobre os limites do meu
tantes quadrilhas de traficantes de tóxicos, deparei com um saber. Se eu não entendia de samba, do que entendia que va-
bloco em formação que saíra pela primeira vez em 1980, em lesse a pena realmente? Houve outros que, decepcionados
resposta à visão negativa que se fazia deles e na tentativa de com a minha recusa, reclamaram de mim por não estar cum-
alegrar o ambiente da quadra. É a história desse bloco e dos prindo o que consideravam como minha obrigação. Ora, o
esforços da diretoria em implantar uma organização reconhe- que vinha eu fazer ali se não queria ajudá-Ios a ganhar o des-
cida no local e campo de atividade política que conto nos três file de carnaval, arrumar empregos e, finalmente, glória das
últimos capítulos desta tese. glórias, conseguir notícia sobre eles no jornal? Mas o que pre-
Ali, o meu saber foi logo objeto de especial admiração dominou foi a atitude generosa de me aturar como um perso-
assim que declinei a minha condição de professora univ-ersitá- nagem sem grande utilidade mas com quem gostavam de con-
ria, e não creio que, apesar dos esforços em mitigá-Ia, tenha versar. E conversamos bastante. Gostavam também da idéia
conseguido me livrar dela. Enquanto lá estive, era procurada de que iria escrever um livro a respeito deles, por sentirem-se
para opinar sobre inúmeras coisas e muitas vezes essa solicita- personagens da história do Brasil, conforme eu lhes dissera.
ção vinha acompanhada de algo mais do que respeito .- era Mas as armadilhas clientelisticas continuaram a ser arma-
deferência diante da minha "cultura", inalcançável para eles das para mim, embora encontre alguma dificuldade de dife-
e tão pouco valorizada pelos seus líderes comunitários. Assim, renciá-Ias das que são armadas no meu próprio meio social.
vi-me diante de amostras de pano tendo que dizer qual delas Às vezes vinham tão disfarçadas que só me dava conta depois
ficaria melhor para que fantasias, diante de versos para emitir do acontecido. O antropólogo também tem seu dia de otário,
julgamentos sobre sua beleza estética e correção gramatical, concluía. Não me lembro de ter conseguido arrumar emprego
diante de casos para decidir quem tinha maisrazão. Essa foi a para ninguém e cedo aprendi a importância de nadaprometer
única instância em que vi desenhar-se com clareza o que pude a essa população já cansada de promessas não cumpridas.
diagnosticar como deferência pelo superior. Eles sentem um Mas tentei várias vezes, contando sempre os resultados nega-
enorme respeito pelos que estudaram e conhecem os livros. tivos dos meus esforços. Afinal, não tinha o menor interesse
No entanto, não eram cegos inteiramente para os limites do em que me considerassem uma pessoa importante e me m~n-
meu conhecimento. Com alegria, percebi que tendências tivessem nesse papel de mediadora entre eles e o resto da SOCie-
opostas os faziam duvidar, criticar, zombar dos meus ensaios dade. E eu tinha deixado claro que não vinha em busca de vo-
contrafeitos em exercer esse poder que me colocavam nas tos, que não era candidata a nada, o que me ajudou bastante
mãos. Descobri mesmo, mais tarde, pelas suas afirmações a conqusitar sua simpatia. Também já tinha tido inúmeras
mais íntimas, que me consultavam porque achavam que eu demonstrações da capacidade deles-de se "virarem" que dei-
poderia ajudá-los a descobrir de que o júri do desfile gostava. xava meus tímidos esforços parecerem coisa de criança.
Na verdade, por inclinação pessoal e por opção metodo- Achei melhor assim.

.1
IH AUIAZALUAR A MAQUINA E A REVOLTA 19

. Fui também muitas vezes pressionada a fazer o papel de Lúcia: "Sabe o que é, Alba? Isso eu não falei com o Jairo
rICO.generoso pelas mulheres das famílias mais pobres e pelo não. Isso é uma idéia minha que tá saindo agora. Falei 50 cai-
presidente do bloco, bem como por sua secretária. Como, na xas de cocada, isso é uma suposição. Porque a nossa finali-
percepção deles, eu tinha dinheiro, nada mais natural que dade é dar dois mil sacos de doce" .
exercesse a generosidade esperada dos ricos, nesta concepção Alba: "Para as crianças?".
pauperista de redistribuíção de riqueza. Recebi pedidos vela- Lúcia: "Pras crianças. A gente vai fazer distribuição na qua-
dos de dinheiro emprestado para a passagem, de roupas ve- dra. Aí quem é da diretoria, por exemplo, se você vier com 50
lhas, de presentes para as crianças da parte das mulheres, e caixas de cocadas ... essa aqui é a ajuda da diretoria. Esse aqui
mais claros, quase imperativos, de ajudar o bloco nas suas é o fundamento que a gente vai fazer pra Cosme e Darnião,
obrigações rituais e exibições de prestígio junto a outros blo- isso vai ser da diretoria mesmo, com guaraná, vela. fita. Seu
cos. Entre estas mulheres muito pobres, as representações do Geraldo, eu não estou falando os troços direito? Se você qui-
pauperismo que ligam a assistência social a agentes privados ser dar, dá. Se não quiser, você vai se estrepar" (risos).
era ainda forte. Mas havia algo em outros pedidos, vindos da
diretoria do bloco, que não consegui classificar. Nestes não Virei também parte de um espetáculo montado para as
esperavam por nenhum movimento gracioso de minha parte, visitas importantes ao local. Eu era bem vestida, bem falante
encostavam-me na parede simplesmente. Como negar um e amiga deles. Como iriam deixar de me exibir às "autorida-
pedido que vinha acompanhado da certeza na sua justeza? des" que apareceram em número cada vez maior à proporção
Assim, fui eu quem financiou a bebida quando o bloco apa- que nos aproximávamos das eleições de 1982? Os políticos vi-
drinhou uma agrerniação amiga. E quando se aproximava o nham buscar seus votos, eles queriam receber a ajuda mate-
carnaval, a pressão exercida pelo presidente do bloco era tan- rial dos políticos e na barganha pelo custo do voto eu entrava
ta que meu diário de campo descreve por páginas e páginas a como demonstração do prestígio e da importância deles no
aflição que sentia por achar que não podia nem devia finan- local. Deixei-me, sem opor nenhuma resistência, usar desse
ciar o carnaval deles. Ajudei o bloco, junto com os seus dire- modo. Não me custava nada, a não ser a obrigação de com-
tores, a pagar sua dívida de registro na Federação dos Blocos, parecer a todas as festas a que eu era convidada e comer inter-
mas me recusei a pagar o conserto das peças da bateria. E, de- mináveis pratos de angu à baiana. E nas festas eu podia obser-
pois de um período de certo desconforto e decepção da parte var de cadeira, literal e metaforicamente, os contatos entre os
do presidente, acho que entenderam que eu não era assim tão políticos e a população local. Eu também os estava usando
rica afinal, a ponto de me tornar seu patrono. E continuaram para avançar a minha pesquisa. Era uma troca em que eu ofe-
a me receber com toda simpatia. recia alguma vantagem palpável: ajudá-los a elevar o valor de
Esse diálogo registrado pelo meu gravador dramatiza suas apostas no jogo político que travavam para conseguir
bem a situação que tive de enfrentar, independentemente de melhorar as condições de vida no local.
minha vontade e inclinações, durante reuniões da diretoria do No todo, estava numa posição privilegiada para discu-
bloco: tir, a partir da própria relação que mantinham comigo, sua
posição diante do poder que eu representava. Afinal, eu era
Lúcia: ••Alba, no dia da festa das crianças tu vai colaborar uma intelectual que tinha o privilégio de dedicar horas de tra-
com doces, não vai?". balho à atividade de pensar sem que nada fosse "feito" no
Alba: "Minha Nossa Senhora!", final dessas horas. Deparei com uma atitude ambígua da parte
Lúcia: "Se você não quiser colaborar com a gente financeira- deles. Embora demonstrando respeito e até deferência pelo
mente, você pode fazer o seu papel. Ir numa casa de doce e saber que não possuíam de escrever .livros, inúmeras vezes me
comprar umas 50 caixas de cocadas" (risos). revelaram sua desconfiança quanto à importância ou utili-
dade disso. Que espécie de trabalho era esse? Para que serve a

- ,
20 ALUA ZALUi\R

pesquisa? Quando ficamos mais íntimos, começaram a me nas refeições assim melhoradas. As reuniões da diretoria do
pressionar para "fazer alguma coisa", prestando pequenos bloco, na época em que delas fiz parte, foram regadas a.cer-
serviços na atividade incessante de preparar o carnaval do veja e continuaram muito animadas. Gravei as entrevistas
próximo ano. Desajeitada com as mãos, especialmente diante que me concediam como um gesto gracioso, mas deixei-os
das eficientes que possuíam, limitei-me a lhes dar carona de gravar seus sambas e suas canções com meu gravador e mi-
quando em quando e a tirar fotografias deles. Nas proximi- nhas fitas, algumas das quais ficaram por lá mesmo.
dades do carnaval, no entanto, ajudei a desenhar a bandeira e Sobretudo tirei muita fotografia, várias das quais dei
recortei muita alegoria em papel laminado. Se percebiam o para eles. Aprendi muita coisa a seu respeito fotografando-os
poder que meu status social me conferia, procuravam valer-se nas suas casas, nas suas famílias, na praça, na rua, arruma-
dele colocando-me no lugar do intelectual tradicional, media- dos, fantasiados, desprevenidos. Havia finalmente descober-
dor com o mundo, ou melhor, um dos muitos mediadores to alguma coisa que consideravam produtiva para fazer. Ape-
com o mundo de que se valiam. Mais tarde, porém, outra sar disso, jamais consegui entrar na categoria dos trabalhado-
representação passou a prevalecer. Como para mim a ativida- res. Mas aprendi sobre o gosto imenso que têm de aparecer
de de pesquisa não era mera técnica de obtenção de dados, vi- nas fotos - únicas representações iconográficas de suas pes-
vemos uma relação social em que ambas as partes aprende- soas, suas imagens nas casas sem espelho em que moram -: e,
ram a se conhecer. portanto, o desejo de aparecerem sempre arrumados e lim-
Foi a própria atividade de pesquisa que me livrou de ser pos. Não gostam de ser flagrados. Pr.eocupam-se em nã?
mero objeto decorativo, porém, inútil, na paisagem movi- parecerem ridiculos ou de alguma maneira que os faça senti-
mentada dos seus guetos, ou um "comissário" (broker) junto rem-se envergonhados. E aprendi a jamais ferir a etiqueta das
à sociedade nacional. E foi só passada a fase inicial das abor- suas relações. Uma das lições mais marcantes durante a pes-
dagens experimentais e dos jogos de conhecimento mútuo, quisa foi que não se pode fotografar juntos uma mulher co~
que pude usufruir do doce e livre convívio que só existe entre o marido de outra, mesmo que seja no meio da rua. Mas de~-
pessoas amigas. Em parte porque não era "orgulhosa" ou xavam-se fotografar alegremente. Uma das impressões I?aIS
"metida" e não os olhava com superioridade; em parte por- vívidas da minha memória foi a corrida descarada das cnan-
que consegui convencê-Ios da seriedade dos meus propósitos, ças e a pressa mais disfarçada dos adultos em se postarem sob
em parte porque também me divertia com eles, virei "uma o ângulo das minhas lentes. Acabei deixand?-os posar c?mo
pessoa muito bacana". No dizer deles, e são palavras tex- queriam e pude observar, nos seus arranjos fotográficos,
tuais, eu "dera força para o bloco desde o início" e não era quem fazia questão de relembrar .a hierarquia entre eles.e em
"interesseira" como os políticos que os procuravam. Confes- que situações a estrutura predominava s~b~e a alegre m~st~ra
so que isso me gratificou enormemente. Como outros antro- de todos sem distinções de status e prestígío. Junto às msig-
pólogos,' eu preferia ser amada a ser respeitada, e havia atin- nias do bloco, o presidente e a diretoria sempre deveriam ocu-
gido o meu intento. Com isso, nossas trocas perderam o cará- par o lugar central; no meio da praça ou no bar do bloco rela-
ter que rege as prestações entre desiguais. Sem nunca ser con- xavam a vigilância sobre a formalidade.
siderada uma igual, fui "aceita" finalmente. Nossas trocas Suas representações sobre a condição de pobre - "ô
não eram apenas medidas de poder, nem tentativas de extrair menino sai daí que você tá todo sujo. Vão pensar que pobre
o máximo do parceiro. A generosidade e a confiança fizeram não torna banho" - e seus preconceitos raciais - "preto
sua entrada e nós passamos a trocar idéias, objetos, pequenas queima a fotografia" - eram estimulados pelas fotos. E na
delicadezas sem preocupações imediatas com o retorno, como época em que tornou-se sinistramente famoso o "Mão Bra~-
convém a relações de longa duração. Comi muita comida ca" outro nome do esquadrão da morte então em franca atí-
gostosa na casa dos amigos que ficavam contentes de me vidade no Estado do Rio de Janeiro, tomei conhecimento de
mostrar a sua "fartura" de domingos, paguei muita cerveja uma forma dramática da outra função importante da foto-
22 ALDAZALUAR A MAQUINA E A IU~V( 1I.TA li

grafia no seu meio: a de fornecer às autoridades do país a sua mento em que o conjunto estava em evidência na imprensa
identificação. "O moça, não é pra dar pro Mão Branca, é?", que produzia dele uma imagem negativa perante o seu públi-
ouvi de um jovem que parou um importante jogo de futebol co leitor. Acabavam de ser traídos, segundo me contaram,
num domingo quando percebeu que eu o fotografara. E con- por uma jornalista de importante diário carioca, a qual havia
tinuou esbravejando ameaçadoramente contra mim enquanto se aproximado deles com promessas de ajudá-los a desman-
eu me afastava para praças onde era melhor conhecida. Quer char essa má impressão e que acabara de publicar mais uma
o tom fosse de brincadeira, quer fosse sério, isso não aconte- reportagem sensacionalista sobre a violência em Cidade de
ceu uma ou duas vezes, mas sempre que eu me aventurava Deus, falando apenas da guerra. Como resultado disso, sofri
por áreas do conjunto onde não era bem conhecida. Em rela- momentos iniciais de severas dúvidas a meu respeito por par-
ção à fotografia, a mesma multiplicidade de concepções, a te dos diretores do Conselho de Moradores. Seu membro
mesma polissemia que encontrei em todos os campos de sua mais velho, que possuía importante arquivo sobre a história
vida social. Fotografia para mostrar quem eles são para eles do conjunto, acabou negando-me o que não havia negado à
mesmos, seu espelho pessoal, fotografia para os outros, sua jornalista: o acesso a essa fonte documental. Essas dificul-
imagem ou máscara social, fotografia que os identifica como dades pessoais faziam parte da sua história de contatos com
vigiados, documento nas malhas muito pouco jurídicas do estranhos, e eu tive que engolir a frustração com o entendi-
aparato policial repressivo do Brasil de hoje. mento de que não podia apagar as marcas desses contatos
Muitas vezes me trataram como aluna, o que me delicia- anteriores. Acabei por conseguir impor a imagem de escritora
va. Aceitava o papel com prazer. Gosto de fazer perguntas, e professora universitária, isso depois de exibir a torto e a di-
aliás estava ali para isso, e quando se dispunham a ser meus reito a minha carteira profissional e o meu único livro então
instrutores podia exercer sem empecilhos ou vacilações o meu publicado.
oficio de antropólogo. Eles me explicavam a sua "língua" Depois que aceitaram a idéia de que eu ia escrever um
com uma enorme paciência. Como não tinham um sistema de livro a respeito deles, começaram as especulações entre o pes-
parentesco complicado e desconhecido, não pude satisfazer soal do bloco. Um dia descobri que corria o seguinte boato a
minha curiosidade com as perguntas intermináveis sobre pa- meu respeito: eu não era nem da polícia nem do jornal, mas
rentes e mitos que deixam os indígenas enfastiados com meus queria escrever um livro sobre o Mané Galinha, o bandido-
colegas etnólogos. Contentava-me com seu linguajar rico, herói da área que mais pesquisei, morto no ano anterior em
divertido e diferente, no mais observando-os em ação. Perce- circunstâncias nunca esclarecidas. Era por isso que eu queria
beram logo que eu gostava disso e ouvi inúmeras vezes dos conhecer toda a vida dele e do lugar para poder contar no
mais generosos - "ô rapaz, ensina pra moça. Ela é madame, livro. Na verdade, já estaria trabalhando num filme que se
não sabe gíria" . E foi assim que fui aprendendo sobre as suas faria sobre a vida dele. Essa era uma representação positiva
representações acerca da violência, do banditismo, do poder, do intelectual, pois esperavam que eu desfizesse uma injustiça
da polícia, da política e dos políticos. sobre a fama do rapaz e ajudasse a melhorar a imagem do
Chegou rápido o dia em que também fui inquirida por local. Eu os representaria para o resto da sociedade. Com pe-
eles. Nas minhas primeiras visitas fui submetida a extensos na, desmanchei mais essa impressão e expliquei como pude o
.-.i.
interrogatórios sobre a minha pessoa, minhas atividades, que era uma tese sobre "a vida do povo".
meus objetivos pelos líderes do local- diretores das associa- Passado o período inicial de dúvida, quando lhes mos-
ções de moradores e o presidente do bloco de carnaval que trei a carteirinha da universidade em que trabalho e lhes falei
acabei estudando mais minuciosamente. Seus maiores temo- do meu projeto de escrever uma tese a seu respeito, meu ~ra-
res com relação à minha identidade deviam-se ao fato de car- vador, de objeto de temor e desconfiança, passou. a objeto
regar comigo os mesmos objetos que identificavam um jorna- querido e procurado: Eu, minha máquina fotográfica e meu
lista: a cãmera e o gravador. Eeu havia chegado num mo- gravador rodávamos por suas casas, sedes de associações e
A MÁQUINA E A REVOLTA 25
ALDAZALUAR

praças, passados os primeiros momentos de indecisão sobre e nem sempre confiável memória e a infalivel do meu gra-
nossos objetivos, com grande desenvoltura. Se respeitaram vador.
sempre a. máquina fotográfica como objeto de meu exclusivo Nem sempre, porém, optei pela neutralidade. Qu.ando
manuseio, até porque isso era necessário para que pudessem fui convidada para participar na comissão julgadora Junto
sair sempre nas fotos, familiarizaram-se com meu gravador a com outros visitantes ilustres e dois compositores locais,
tal ponto que eles mesmos ligavam e desligavam o aparelho recusei-me a aceitar a ingerência do diretor de carnaval que
durante as reuniões e durante as gravações musicais. E sem- nos aconselhava a aceitar um dos sambas concorrentes. Espe-
pre queriam ouvir o que havia sido gravado, até mesmo algu- rei para ver como o público local reagia di~te dos vári.os sam-
mas de suas entrevistas, o que me obrigou a emprestar-lhes o bas. E escolhi o que mais empolgou a batena, os passistas e o
gravador e acabar por abrir mão de alguma das fitas. Numa público assistente. Fui depois parabenizada. . .
dessas vezes, gravaram para mim o discurso de políticos numa No auge da minha fama, pude escrever no meu diário de
festa à qual não compareci e entrevistaram várias pessoas a campo:
respeito do evento. Nessas entrevistas feitas por eles pode-se
perceber que fui sempre muito mais inquisitiva, insistente e "Sou cumprimentada pelas ruas em que passo. Sensação de
curiosa do que eles tinham vontade de ser uns com os outros. que já pertenço ao lugar, que estou ligada a eles e daqui por
Perdeu a ciência, ganhou a simpatia. diante marcada por isso. Espanto de saber que posso me iden-
Nesse percurso da familiaridade com meu gravador, tificar com pessoas tão diferentes de mim socialmente. Meu
percebi que durante as reuniões da diretoria do bloco come- carro pára, todos vão abrindo caminho, sorrindo. Os rapazes
-,,-;
çaram a usá-lo como veículo dos recados enviados uns aos começam a querer saber das fotos, as crianças me tocam, me
outros nas suas disputas pelo poder. A secretária do bloco, pedem, sentam no carro e eu vou para dentro da sede do blo-
mulher muito ativa e esperta, via em mim e no meu gravador co. Lúcia e Sônia costuram. Jairo, num canto, olhando pela
aliados potenciais contra o mandonismo do presidente e de janela, diz que não está bem... 'Hoje não estou eu': Vou para
outros diretores. Os demais diretores justificavam suas posi- perto das mulheres. Lúcia vai logo dizendo que Jairo pensou
ções de mando e suas prerrogativas masculinas. Eu e meu em 'me dar uma idéia' (estranho, não empregam a palavra
. gravador ouvíamos. Da minha memória eles não tinham ne- favor) de ir a Pilares (11)buscar não sei o que d~ bl~o. que
nhuma certeza, mas a do meu gravador era infalível. E eles ele teria reclamado que eu não ponho o carro à disposição do
apertavam o botão de retorno em caso de dúvida para ouvir o bloco. Ossos do oficio. Por mais que eu diga que preciso tra-
que cada um havia dito, além de fruir do prazer de ouvir sua balhar na pesquisa, eles acham que a minha presença ali dev,e
própria voz, comentando-a sorridentemente. A certa altura, ser justificada pelo que posso fazer de concreto. As expectati-

I
percebi que eu e meu gravador tínhamos nos tornado o cen- vas de solidariedade por parte de quem tem mais do que eles é
tro das reuniões quando o conflito entre eles estava mais ace- muito grande. Solicitações constantes de um lado, não têm
so. Quase todas as intervenções eram dirigidas a mim e as fra- nenhum pejo em pedir, isto é, 'em dar uma idéia'. Se colw:,
ses vinham entrecortadas de ••Alba, mas é como estou lhe colou... Sou firme quanto a Pilares: não irei. Mas não consi- .,1

go escapar da Taquara, onde Jairo quer que eu leve Jorge


explicando" ou ••Alba, não é nada disso que ela disse" ou
para apanhar um surdo. E não há como reclamar do preço da
l
"Alba, você não acha que ... ". Eu tinha me tornado uma [uí-
za sem ter nem a vocação nem o poder para gerar uma senten- gasolina, isso seria imperdoável mesquinharia. Há que ser ge-
ça. Talvez quisessem apenas um mediador para seus confli- neroso. Pobre, para eles, não é miserável, em nenhum dos
tos, mas nem isso ousei fazer. Escolhi o silêncio e eles volta- dois sentidos. Dinheiro no seu bolso não pâra, nem nas trocas
ram seus discursos para seus mais importantes interlocutores: de cerveja nas rodadas do bar das quais às vezes participo,
seus parceiros, seus aliados, seus inimigos no bloco. E eu ali muito mais como convidada pelos homens gentis do que como
fiquei, atenta, registrando o que podia com a minha humana patrocinadora" .

I '-- ~ _." • _ -.L .


26 ALBAZALUAR A MAQUINA E A REVULTA li

Ouvi, então, muitas conversas das quais não participava vezes pela mesma pessoa. A "estrutura" era a falta de mode-
como interlocutora - no meio da rua, na praça, na sede do los claros e a tensão entre os vários oferecidos pelas práticas
bloco, nas biroscas - e que pude registrar porque tomei-me institucionalizadas vitoriosas e as que permaneciam como
um personagem local familiar. Ficaram acostumados com a alternativas nos bastidores dos canais de comunicação da
minha presença, tal como me ensinavam os guias práticos de fofoca e nas discussões acaloradas, diretas e públicas, quer
pesquisa na disciplina de minha preferência. Noutras conver- durante as reuniões fechadas da diretoria, quer no meio da
sas, eu era a principal ou uma das interlocutoras. Entendi praça, da birosca ou da rua. Os conceitos mais adequados
todas elas, tanto as entrevistas formais e as conversas dirigi- para estudar esses processos eram, portanto, os de campo e
das a mim quanto as outras apenas entreouvidas por mim, arena, condizentes com a flexibilidade da entrada de atores
como situações sociais. Mas as falas dirigidas aos outros ato- na interação e a fluidez dos recursos e significados dos mem-
res dos mesmos dramas sociais eram diferentes das dirigidas a bros participantes (Swartz, 1968), bem como a intercambiabi-
mim especificamente, especialmente durante as entrevistas lidade entre palco e platéia.
em que havia certa distância com relação ao palco da ação. Ao lidar com o vasto material que acumulei ao longo da
Ainda no calor da hora, mas permitindo o comentário mais pesquisa, percebi que estava, senão diante de dados de tipo
descomprometido, refletido, ou então racionalizador. diferente, pelo menos diante de arranjos diversos .da .te.nsão
Não-pude escolher um drama como fio condutor da tra- sempre existente, em qualquer classe social, entre o individual
ma de suas alianças e conflitos, como me ensinara a antropo- e o coletivo, entre o privado e o público, entre o próximo e o
logia política inglesa (Gluckman, 1965; Turner, 1957; Van distante, entre o íntimo e o formal. De um lado estavam os
Velsen, 1969; Frankenberger, 1966), e que dariam a chave registros da sua fala durante a ação e que deveriam ser infor-
para compreender a dinâmica da política local. A razão é mados por uma teoria do ator num campo de disputas. De
simples. Os dramas de aproximação-afastamento das pessoas outro estavam as entrevistas formais realizadas ao final do
com relação à organização local sucediam-se com rapidez, os primeiro ano em que lá estive, quando já era bem <:onhecida
conflitos dentro da diretoria e entre a diretoria e o resto da das pessoas entrevistadas. A atmosfera das entrevistas, que
população local eram diários, as mortes provocadas pela versavam sobre a política local e o banditismo, acabou reve-
guerra entre bandidos e entre estes e a polícia, que formavam lando-se mais íntima, mais pessoal. Sem a presença de mais
o pano de fundo da vida social local, iam tomando-se cada ninguém a não ser eu e meu interlocutor, as entrevistas come-
vez mais freqüentes. Na verdade, era como se o oposto vales- çavam quase sempre pelo registro de dados pessoais e sinopses
se para o caso em questão: o acontecimento era o dia tran- de suas histórias de vida. Essa pessoalização parece que mar-
qüilo, sem dramas, nessa sociedade cheia de conflitos. Longe cava o restante, quando eu procurava extrair deles suas refle-
estava de poder identificar, como Victor Turner, um drama xões sobre os temas momentosos de sua vida social. Como
único revelador: resultado recolhi um material muito mais rico e mais diferen-
ciado do que o meu treinamento em farejar padrões, regulari-
"The social drama is a limitedarea of transparency on the dades e estruturas me deixava suspeitar. Isso não se devia a
otherwise opaque surface of regular, unventful social life. uma suposta oposição entre o indivíduo manipulador e de-
Through it we are enabled to observe the crucial princíples of fensor de seus interesses e a cultura coercitiva, como no esque-
the social structure in their operatíon, and their relative domi- ma malinowskiano (Malinowski, 1960; Sahlins, 1979: 97-99).
nance at different points of time" (1957: 93). Muito mais adequada para explicar esse fato é a teoria de
Boas sobre a natureza dos fenômenos culturais, comentada
O revelador era a presença continuada dos conflitos entre as por Sahlins (op. cit.: 8~):
pessoas, da coexistência de idéias contraditórias e de diferen-
tes tendências apresentadas na arena das suas disputas, às "Boas argumentou mais tarde - em uma observação hoje

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28 ALBAZALUAR A MAQUINA E A REVOLTA

clássica - que, embora a linguagem e outros costumes sejam cultural autônoma, se é que podemos falar num sistema cultu-
organizados por uma lógica não-refletida, há uma diferença ral autônomo. O desembaraço com que misturavam diferen-
entre eles no fato de que as classificaçõesda primeira normal- tes tradições religiosas sem o menor cuidado com a ortodoxia
mente não atingem a consciência, ao passo que as categorias tão cara aos puristas, seja do candomblé, seja do catolicis-
da cultura a atingem, estando tipicamente sujeitas a uma reín- mo, a fim de comporem sua visão de mundo, só pode ser
terpretação secundária. A diferença desponta essencialmente comparado com a facilidade com que lançavam mão das inú-
no modo de reprodução. Encaixadas em regras inconscientes, meras instâncias de mediação entre eles e o resto da sociedade
as categorias da linguagem são automaticamente reproduzi- na defesa da sua capacidade de sobreviver. Difícil, portanto,
das na fala. Mas a continuidade do costume é sempre vulnerá- reduzir esse pensar a um sistema preestabelecido e fixo de
vel à ruptura, quer somente pela comparação com outras for- conteúdos culturais explicados em última instância pela sua
mas, quer na socialização do jovem. O costume, conseqüente- posição subalterna ou dominada no processo de produção ou
mente, torna-se um objeto de contemplação, bem como uma como prisioneiros de uma prática vista na tradição estrutura-
fonte dela, e emprestamos uma expressão convencional que lista como mera execução de um código subjacente. Fosse
mal parece razoável a uma razão convencional que permanece porque tivessem um modelo inconsciente, fosse porque ape-
não expressa. A lógica cultural reaparece então sob uma for- nas correspondessem a uma matriz geradora de práticas mas
ma mistificada - como ideologia. Não mais como um princí- que permite a criação de novos arranjos (cf', Bourdieu, 1972),
pio de classificação, mas como satisfação de uma demanda sua prática não dispensava a reflexão. O que presenciei não
por justificativa". pode ser entendido sem o auxílio do conceito de experiência,
1
tal como usado por Gramsci (1974) e Thornpson (1968), ou de }.

É claro que aqui Sahlins tenta provar mais uma vez que produção de idéias (Durham, 1977, 1983; Williams, 1977: 13-
"H a razão instrumental ou a "prática utilitária" que critica em 43), embora não eliminasse totalmente as matrizes e padrões.'
fi vários autores são na verdade a razão cultural (inconsciente) De mais a mais, todos os sinais de uma crise social e mo-
"
das sociedades capitalistas disfarçada em racionalids.de eco- ral profunda estavam presentes. A descrença nos políticos, a
nômica e racionalização do ganho individual. O que eu quero desconfiança do governo, a falta de controle sobre os jovens
sublinhar é a diferença entre a língua e os costumes ou a cul- revoltados, a profunda insatisfação com as perdas salariais
tura que me leva, ao contrário do próprio Sahlins, a criticar a sofridas nos últimos quinze anos não revelavam um segui-
idéia de código ou estrutura inconsciente quando aplicada às mento automático às regras da tradição. As coisas há muito
práticas sociais. Os pobres urbanos, descobri, como quais- deixaram de caminhar por si e seria certamente um contra-
quer seres humanos, pensam a respeito de suas condições de senso afirmar que a ordem social confunde-se com a ordem
vida e dos inúmeros valores, normas, regras, significados natural das coisas, como acontece nas sociedades estáveis ou
com que costumam ser "educados" ou "formados" pelas em que tradições aceitas conduzem à hegemonia de um grupo
inúmeras agências estatais e religiosas, bem como peles meios ou de uma classe social. Nem a tradição é falada como justifi-
de comunicação de massa. cativa ou forma de legitimar usos e práticas atuais. A violên-
Nem essas agências de socialização eram hornogeneiza- cia cotidiana que toma formas novas e extremadas sob seus
doras, já que guardam contradições entre si sem que nenhu- olhos, a quebra dos padrões sexuais, as novas feições da polí-
ma delas adquira clara hegemonia sobre as demais, nem o tica na última década, as perdas reais de poder aquisitivo colo-
processo de socialização era totalmente fechado e eficaz a cam indagações sobre o seu sentido que eles sentem neces-
ponto de eliminar a reprodução independente de sua cultura sidade de responder. Portanto, não é possível entender sua
de classe ou o seu bom senso, ou a sua capacidade crítica ideologia como sendo exclusivamente ou preponderantemente
diante das estratégias de que eram alvo. Isso não quer dizer regulada por rituais e práticas que se impõem silenciosamente
que seu pensar possa ser reduzido ao código de sua tradição (cf. Althusser, 1971). O conceito de opacidade da estrutura,
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30 ALBAZALUAR A MÁQUINA E A REVOLTA
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subentendido nesta visão, nos levaria a deformar a realidade cia para superar essa antinomia. O processo vivo de suas hesi-
por eles vivida e se tornaria ela mesma ideológica. Nem o seu tações, dúvidas, conflitos, idas e vindas às tradições popula-
simbolismo estava completamente encapsulado em objetos res, avanços e recuos diantes.da dominação não pode ser cap-
concretos e ações mudas. Muito era verbalizado, explicitado, tado numa estrutura objetiva da qual fossem inteiramente
Do mesmo modo, a idéia de que os sujeitos da pesquisa, inconscientes. Ele supõe a capacidade de distanciamento, em-
ou melhor, suas normas e concepções de senso comum, cons- bora limitada, dos próprios agentes. Nem as variações que
tituem obstáculos epistemológicos a serem superados teve encontrei a respeito de suas concepções sobre o trabalho, a
que ser relativizada. Minhas entrevistas e algumas conversas pobreza, a política etc. podiam ser isoladas e dissecadas fora
particulares revelaram-se como um momento de reflexão para desse extenso diálogo que travam entre si nas ruas, nas pra-
eles, em que a estrutura de dominação a que estão submetidos ças, nas biroscas, nas casas e que gostam de chamar animada-
tornava-se de algum modo transparente. É claro que o mes- mente de "troca de idéias". E em grande medida nessa troca
mo se passava nas conversas entre eles, algumas das quais tive de idéias não institucionalizada, fora do controle dos apare-
oportunidade de presenciar. Mas é como se as entrevistas, lhos ideológicos da dominação ou da disciplina, que idéias
por terem sido realizadas quando já havia sido construída tornam-se eficazes, ações incorporadas, reputações legitima-
uma relação de familiaridade e confiança mútua, pudessem das e políticas aceitas. Ou, alternativamente, negadas. Este
ser o momento de liberação desse pensamento crítico reprimi- contínuo comentário sobre o que se passava no local, na cida-
do que me chegava como confidência. É claro também que, de, no governo e na campanha eleitoral foi que me permitiu
como todos os etnógrafos, encontrei informantes sábios, pensar num processo de constituição de uma cultura de classe
tolos, céticos, ingênuos. cínicos, pouco ou muito experientes autônoma até certo ponto, e nunca una, homogênea e com-
e mais ou menos influentes. E se isso se me afigura como um pletamente sistematizada.
reforço para a perspectiva que toma a mente como um siste- "Hoje ninguém respeita nada, nem o papa", "Acabou
ma de processos cognitivos e não como um sistema de conteú- o respeito" foram frases ainda mais comuns. Neste mundo
dos previamente fixados e transmitido por mecanismos pas- que perde seu encanto a passos largos, na descrença bastante
síveis de aprendizagem (cf. Needham, 1963: XXV-XXIX; generalizada de seus governantes, os pobres de Cidade de
Hallpike, 1979: 45-51), o seu caráter individual não pode ne- Deus lá ficaram "alutar por manter a esperança. Continuam a
gar os processos sociais que observei de constituição de for- freqüentar hospitais, escolas, igrejas, terreiros, quadras de
mas coletivas de pensamento e ação. samba, campos de futebol e o que mais houver, bem como
"É tudo ilusão" foi uma frase que ouvi algumas vezes continuam a criticar os serviços oferecidos nessas organiza-
durante minhas entrevistas e podia referir-se tanto ao carna- ções. Mas esta sua fala ininterrupta que meus ouvidos e meu
val e às promessas dos políticos, quanto aos serviços ofereci- gravador registraram continua ainda em grande medida silen-
dos pelas religiões populares. Essa capacidade de distanciar- ciada para o resto do país. Talvez por isso alguns me disseram
se de suas próprias práticas me deixou surpresa muitas vezes, várias vezes que os pobres SÓ podem falar e protestar quando
como me surpreendeu a consciência dolorosa que tinham de votam. E, por isso, a esperança de mudar ainda continua em
sua condição de explorados, oprimidos e esquecidos. Foram grande medida a ser depositada no voto, especialmente na
lampejos, momentos de nudez que ficaram registrados nas eleição do poder Executivo.
minhas fitas e no meu caderno de campo. Esta possibilidade Quanto a mim, aqui estou diante dos problemas éticos e
de que os próprios sujeitos da pesquisa tomassem distância de políticos de um pesquisador. Após passar tanto tempo junto .' l

suas práticas me revelaram também a falsa antínomia entre o a eles, bisbilhotando suas vidas, arrancando informações
método objetivista da ciência e a cegueira engolfada na práti- sobre seus conchavos, barganhas, -conflitos, lutas e revoltas,
ca cotidiana. Não precisava, portanto, fazer de suas ações e deixei-os ainda mais livre para dedicar meu tempo à reflexão.
pensamentos um texto fixo diante do qual eu tomaria distân- Tomo suas entrevistas como um texto que me facilita o dis-

- j
32 ALBAZALUAR

tanciamento. Debruço-me sobre a "troca de idéias" fixada


no meu diário de campo para arrancar seus sentidos, sua poli-
fonia, que, por algum motivo, temo reduzir ou empobrecer.
Penso sobre eles em seu lugar. Um privilégio, sem dúvida,
que faz parte desse produto. A prerrogativa de estar afastada
da produção material de bens, que eles executam por mim, é
afinal o que me possibilita a conquista de títulos e honrarias.
Espero que, ao menos, esta tese influa nas politicas a eles des-
tinadas. As teorias sociais
Notas
e os pobres: os
J Eduardo Viveiros de Castro (1977). _pobres como obj~et_o__
2 Refiro-me, é claro, às concepções que Oramsci desenvolveu sobre o
núcleo de bom senso que faria parte da visão de mundo ou senso comum
das classes subalternas. Este núcleo, de um lado, estaria fundado sobre Quando cheguei ao conjunto habitacional de Cidade de
uma certa dose de experiência e observação direta da realidade e, de
outro, nas concepções religiosas, na ideologia dominante e nas tradições
Deus I para estudar as formas de organização das classes po-
reinterpretadas (Gramsci, 1974; Piotte, 1970). É isso que permite a outros pulares, deparei com uma população bastante heterogênea.
autores falar de consciência prática equacionada à atividade enio à pas- Porém, afora um pequeno núcleo de classe média - pessoas
sividade da repro~uçlo cultural automática. Na teoria antropol6gica, a de nível educacional alto e que exerciam ocupações não-ma-
mesma problemática surge na discussão do conceito de consciência cole- nuais, tais como empregados em escritório, laboratoristas ou
tiva de DurkheimvSegundo alguns autores, Durkheirn confundiu a mente
técnicos, além de estudantes que estavam na universidade ou
humana corno um sistema de processos cognitivos comum conjunto de
representações, tornando as categorias de pensamento como sendo de ori- pretendiam para lá se encaminhar - os moradores de Cidade
gem s6cio-institucional, sem dar conta do processo de sua constituição de Deus, em sua grande maioria, usavam como categoria de
(Needham, 1963; Hallpíke, 1979). auto-referência ora a de "pobre" , ora a de "trabalhador" . E
entre eles se encontravam tanto operários semi ou não espe-
cializados e empregados do terciário com pouca qualificação
quanto autônomos do setor serviços, continuos, guarda-
livros e uns poucos pequenos funcionários públicos.
Quem são esses "trabalhadores" "pobres"? De um
ponto de vista meramente descritivo, seriam todos aqueles
que estão incluídos nas faixas de renda mais baixas (até 3 a 5
salários mínimos) ou os que exercem as atividades pior remu-
neradas da economia nacional. Entre eles estão obviamente
os operários e assalariados do terciário semi ou não qualifica-
dos e que recebem baixos salários em virtude da politica sala-
rial vigente, bem como os trabalhadores por conta própria
pouco ou não especializados, quer sejam estabelecidos ou
não. Esta seria a classificação objetiva e exterior, que apenas
os inclui nas mesmas classes estatisticas, tal como acontece na

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