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Confesso Este Meu

Capricho
por Pôncio Arrupe
Capítulo 7
Experiência 04 – Início
A Comunidade – 2ª Parte
Capítulo 7
Experiência 04 - Início
A Comunidade – 2ª Parte

VII

Se assim não fosse, se a referida crença de que tudo tem


um significado e propósito neles não estivesse omnipresente,
pouco ou nada do que vos relatarei de seguida teria
acontecido.
Um dia, antes de se iniciarem os sorteios para a escolha
dos intervenientes numa partida, alguém se lembrou de
propor que se formasse uma das equipas só de triângulos e
a outra somente de círculos. Esse genusita, de sinal em
triângulo na testa, pretendeu apenas brincar e divertir os
outros. Comentou, no momento e de passagem, que “assim
se veria se os bonitinhos de círculo, para além de carinhas
lindas, saberiam fazer algo de interessante bem feito…”, em
tom algo irónico. Sem o saber, foi naquele preciso momento
o primeiro a utilizar a ironia naquela ilha. E a ironia, e até o
sarcasmo, passaram em pouco tempo, primeiro por pura
imitação, depois com a inventividade de todos, a ser de uso
comum entre muitos dos genusitas.
Quanto à proposta em concreto, cujo proponente não
estava à espera que fosse aceite, recebeu dos genusitas
presentes, de parte a parte, efusivo e inocente acolhimento.
Logo exultaram com o desafio em perspetiva. Assim ficou
decidido ali e, também por sorteio, que a cor vermelha ficaria
atribuída aos do círculo e a verde aos do triângulo. Com
rapidez a notícia se difundiu pelas bancadas e,
espontaneamente, naquele jogo, muitos dos espectadores
optaram por apoiar a equipa constituída pelos do seu sinal.
E a formação de equipas uniformes quanto ao sinal na
testa tornou-se, ao fim de apenas alguns jogos disputados,
um hábito adquirido inquestionável. Em pouco tempo, da

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parte das assistências, praticamente todos se habituaram a
apoiar a equipa do seu sinal em todos os jogos, ficando o
estádio dividido ao meio no que à ocupação das bancadas
dizia respeito: de um lado somente triangulados que
apoiavam a sua equipa de fitas verdes, e do outro os
apoiantes dos de círculo, equipados de fitas vermelhas. Ao
intervalo, já sabeis, com a mudança de campo das equipas,
também quase toda a assistência mudava de cabeceira no
estádio.
Podeis prever que, a pouco e pouco, para cada jogador e
para cada genusita presente na bancada, perder ou ganhar
passou a ser a questão crucial. A dada altura, após alguns
erros de arbitragem, que antes destas mudanças teriam sido
considerados por todos como compreensíveis e inocentes,
mas que agora levantavam suspeitas de favorecimento da
equipa com o mesmo sinal do árbitro, ficou decidido que
cada jogo passaria a ter dois árbitros, um de cada sinal. A
cada um deles era atribuída, por sorteio, a jurisdição sobre
uma das metades do campo durante toda a partida.
Deste modo, a rivalidade entre equipas passou a
extravasar o próprio estádio e o tempo de duração de cada
partida. Após o termo de cada uma foi sendo cada vez mais
frequente verem-se grupos de apoiantes nas imediações
daquele recinto festejando a vitória da sua equipa. Os
empates nunca aconteciam porque, se necessário, havia o
recurso obrigatório à decisão por penáltis. As discussões
entre adeptos rivais foram acontecendo cada vez com mais
frequência e nos mais diversos locais e contextos. E chegou-
se ao ponto de que, gradualmente, ao início só alguns, no
final todos os intervenientes das duas equipas, deixaram de
ser escolhidos à sorte, assim como os seus treinadores.
Depois, passaram a ser estes a escolher sempre os
jogadores em função da sua qualidade, tendo em conta
aquilo que se tornou o objetivo principal de cada equipa e de
cada seu apoiante: a vitória em cada partida.

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Compreensivelmente, os genusitas começaram a adquirir
hábitos de identificação com a sua equipa e com os grupos
de apoiantes da mesma. Quase todos, antes de se dirigirem
ao estádio para assistirem a um desafio, passaram a pintar o
seu sinal da testa da cor correspondente: os triângulos de
verde, os círculos de vermelho. Os jogadores passaram a
fazer o mesmo invariavelmente, tornando-se essa pintura
parte incontornável do seu equipamento. E, em pouco tempo,
muitos apoiantes passaram também a envergar fitas
coloridas, do mesmo modo e iguais às dos jogadores da sua
equipa. Já podeis prever, as rivalidades futebolísticas entre
triângulos e círculos foram-se tornando, não só mais
presentes, mas também mais visíveis em toda a comunidade,
todos os dias, antes, durante e depois dos desafios. E muitos
genusitas passaram a exibir sempre os seus sinais pintados
com as respetivas cores, e não só após, durante ou quando
se preparavam para alguma das partidas. E estas foram
acontecendo cada vez com mais frequência.
Podeis também prever, não passou muito tempo até
surgirem os primeiros tumultos, ainda que se limitando a
trocas verbais com exaltação e algo acirradas, principalmente
após jogos com desfechos renhidos, mormente quando
alguma vicissitude ocorrida em campo se prestava a
alimentar a crença de que um dos árbitros teria prejudicado a
equipa de sinal igual ao dos adeptos descontentes, ou
favorecido a de sinal diferente. Mas uma coisa é certa,
grupos de genusitas exclusivamente do mesmo sinal foram-
se formando e permanecendo juntos e coesos, dentro e fora
do estádio, porque o futebol emergiu como a primeira e única
fonte de separação e de dissensões entre eles. E quase toda
a população se assumiu como adepta confessa da equipa de
seu sinal. Não havia memória de alguma vez algo
semelhante ter acontecido em Genus.
Logo, porque totalmente inexperientes nessas coisas das
competições, das oposições, das disputas e rivalidades, do

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perder e ganhar, eram inteiramente desconhecedores das
suas possíveis consequências, muito menos das mais
extremas, que todos vós aqui presentes bem conheceis. Por
isso, entregaram-se-lhes inocentemente, a essas disputas,
como a uma brincadeira, como a uma novidade divertida e
surpreendente. Mergulharam nesse novo mundo de aposição
de interesses sem qualquer receio e censura, sem
autocontrolo, esperando nada em especial, nada desejando
ou temendo, usufruindo apenas do prazer que lhes era
proporcionado por aquela sensação até então desconhecida,
por aquele novo tipo de estímulo de emoções e, até, de
sentimentos. Só uns poucos, aqueles de hábitos mais
frequentes de distanciação e isolamento, e mais propensos a
contemplar e a refletir, se aperceberam que foram tomados
por um sentimento leve e muito difuso de perplexidade, mas
sem motivo definido à vista.
Já perceberam que, porque o futebol emergiu como o
primeiro e único assunto de dissensão entre genusitas, e
porque era a única atividade recreativa que envolvia a
totalidade da população ao mesmo tempo, facilmente se
transformou num terreno fértil no que à inovação e
transformação de atitudes de uns para com os outros dizia
respeito. E não só por se ter tornado num jogo
iminentemente competitivo, de soma zero, de exclusão
mútua, em que para uma equipa ganhar era necessário a
outra perder. Mormente porque passou a ser a única
atividade na ilha que tinha um objetivo rígido e previamente
definido antes de se iniciar, em que o mais importante de
tudo era o que se obteria no final, e não o como se lá
chegava. Enfim, através daquele novo futebol, os genusitas
ficaram a conhecer pela primeira vez a amarga angústia de
que o mais belo poderia não resultar no mais desejado e,
sobretudo, de que não ganhar significaria sempre perder, de
que para vencer era necessário derrotar. Ou seja, que os
festejos de uns não aconteciam sem a mágoa de outros; que

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a exultação de uns era indesejada e receada por outros; que
a alegria própria o era apesar da tristeza e, até, da
humilhação, de outrem; que o próprio prazer podia ser
concomitante à dor de outro. E tudo isto, particularmente,
era-lhes também absolutamente desconhecido antes deste
novo futebol.
[Neste preciso momento, inesperadamente, a jovem
Manjari, da Civilização Budista, fez uma afirmação, embora,
por respeito reverencial, em forma de pergunta:]
- Pode-se, então, concluir que se deve evitar a competição,
pelo menos do tipo que aconteceu em Genus?
Essa, compreensivelmente, é uma questão muito
pertinente, querida Manjari. No entanto, é a vós que compete
responder-lhe. Penso que não tereis dificuldade em acordar
uma resposta no final desta sessão. Por agora, eu apenas
sublinho que foram estas as grande e profundas inovações
que estavam a ocorrer entre os genusitas e que, na fase em
que estamos da sua História, apenas eram subliminares para
todos eles.
Também por isso, não estavam preparados para lidar com
tal transformação. Era, sem se darem conta, um novo mundo
que surgia. Imaginai, por exemplo, que entre vós o sentido do
olfato ganhava uma preponderância inusitada. Imaginai,
apenas, algumas possíveis consequências daí resultantes…
Por exemplo, pessoas de quem gostásseis muito que,
inesperadamente, se revelassem com odores, afinal,
insuportáveis; e outras pessoas, por quem nunca tivésseis
sentido qualquer atração especial, mas que, de um momento
para o outro, vos surgissem com odores irresistíveis; e que
todos vós pudésseis aperceber-vos da aproximação de todos
os outros antes de se terem à vista… Ou imaginai que os
vossos queridos cães, de repente, passavam a depender
muito mais da visão, do que do olfato, para se reconhecerem
e diferenciarem entre eles e para vos reconhecerem e
distinguirem… Que grandes transformações seriam! E isto

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em todas as dimensões da vossa existência! Pois, algo de
semelhante, ainda que mais simplificado, se estava a passar
em Genus. Os genusitas começaram a fazer uso de novos
critérios para se diferenciarem apreendidos através da visão.
Uma completa novidade a relevância que nesse campo este
sentido adquiriu. Mas não pretendo explorar em detalhe e
exaustivamente todas as possíveis implicações daí
resultantes. Não é minha intenção entrar nos meandros do
vosso muito complexo campo da neurofisiopsicologia dos
sentidos e perceção. Continuo a pretender manter esta
estória que vos conto artificiosamente simplificada.

VIII

Continuando.
E em crescendo cada vez mais acelerado, foram-se
sucedendo atitudes, comportamentos individuais e de grupo,
e eventos que já não só anunciavam mas que consolidavam
uma nova era. Um turbilhão em roda livre, imparável, mas
quase sempre silencioso, como se nada de verdadeiramente
importante se estivesse a transformar. Era como um
maremoto que, pela calada da noite, mas com uma força
incomensurável, invade todos os recantos das ruas e praças
desertas de uma tranquila cidade costeira cuja população,
exausta, está profundamente adormecida após um dia de
inocentes mas intensamente arrebatados festejos.
Até que as transformações se revelaram a todos como
tendo vindo para ficar. Aqueles poucos que, ainda que
apenas por intuição, as lamentavam não viam qualquer forma
de as reverter. Mas, neste ponto do decurso dos
acontecimentos, a esmagadora maioria dos genusitas não
encontrava motivos para tal, muito menos para se arrepender
ou, até, se recriminar. Antes pelo contrário. Aliás,

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acompanhavam ainda alegre e descontraidamente tudo o
que se ia sucedendo.
A dada altura, as duas equipas de futebol abandonaram as
fitas coloridas e passaram a equipar sempre com um grande
triângulo verde, ou um círculo vermelho, no peito e nas
costas das suas túnicas. Os adeptos mais envolvidos
começaram também a vestir-se da mesma forma para
assistirem aos jogos.
Também com toda a naturalidade, os grupos de amigos,
quase sem que dessem por isso, foram ficando constituídos
por genusitas de apenas um só dos sinais. Nas equipas para
trabalhos públicos, grande parte deles passaram a preferir
juntar-se somente às uniformes quanto ao sinal na testa. Os
que não agiam intencionalmente de tal forma, acabaram por
perceber que eram melhor recebidos entre os seus. As
crianças, por imitação inadvertida do que observavam nos
adultos, singelamente passaram a organizar as suas
brincadeiras também tendo em conta o sinal de cada uma.
Espontaneamente, passaram a preferir e a aliar-se às
crianças de mesmo sinal. A pouco e pouco, as suas festas de
aniversário passaram a juntar maioritariamente as de sinal
igual ao do aniversariante. As mais jovens chegavam a exibir
reações de estranheza, e até de rejeição, perante as crianças
do sinal diferente que estivessem em minoria. Os pais, para
evitar situações constrangedoras para os seus filhos,
acabaram também por contribuir ativamente para a reunião
de grupos de crianças só do mesmo sinal. Com o passar do
tempo, assim começou a acontecer quase na totalidade com
adolescentes e jovens adultos.
Compreensivelmente, e não só devido a simples
probabilidades decorrentes do que acabei de relatar, os
genusitas passaram a iniciar relações amorosas
tendencialmente com alguém do mesmo sinal. Isto implicou
que os novos genusitas, nascidos das uniões mais recentes,
fossem maioritariamente do sinal de ambos os pais, o que

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acabou por reforçar as tendências que atrás descrevi. Os
casamentos híbridos que, como já vos disse, geravam
crianças em quantidades iguais de ambos os sinais,
gradualmente foram quase deixando de existir.
Muitos genusitas passaram a realçar os seus sinais da
testa permanentemente, ora pintando-os de verde, os de
triângulo, ora de vermelho, os de círculo, tal como tinha
passado a acontecer anteriormente aquando da assistência
aos jogos. Generalizando-se a pouco e pouco este hábito,
em si ele passou a funcionar como um poderoso veículo de
pressão social para que todos se afirmassem claramente, e
com orgulho exclusivo, de um grupo ou do outro, em todas as
circunstâncias. Os poucos desviantes, aqueles que não se
conformavam ao novo costume, eram olhados com
estranheza e, até, com desdém…
[Enchendo-se de coragem, num repente, a jovem
Turmalina, da Civilização Hindu, levantou-se e perguntou:]
- E como foi com as crianças de pai e mãe de sinais na
testa diferentes?
Ia, precisamente, passar agora por esse assunto, querida
Turmalina… Principalmente as crianças, sobretudo aquelas
com pai e mãe de sinal diferente, acabaram por se ver
subliminarmente forçadas, pelo menos quando em público, a
afirmar a sua pertença ao grupo do seu sinal pintando-o da
cor que todos esperavam; portanto, pintando-o da mesma cor
da de um dos dois progenitores, logo, inevitavelmente,
demarcando-se do outro. Particularmente no que a estas
crianças de pais de sinal diferente diz respeito, mas não só,
podeis imaginar o abuso de força que esta insidiosa e, quase
sempre, silenciosa imposição contranatura significou. Deste
modo, pela primeira vez em Genus se exerceu, com carácter
sistemático, violência sobre os seus menores. Mas ninguém
a apelidou de tal, e as próprias vítimas não se deram conta
disso. Mas, como decorre do que vos contei, crianças nesta
situação específica foram rareando, o que foi visto, com

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alívio, como uma evolução positiva pela maioria dos
genusitas de qualquer dos sinais, e utilizado como argumento
para dissuadir da união de facto os genusitas - cada vez
menos, diga-se - que se apaixonavam por alguém de sinal
diferente.
Como podeis verificar, este novo, e, à partida, inocente
hábito de pintarem o seu próprio sinal da testa funcionou
definitivamente como consolidador e intensificador de todas
as tendências de que vos tenho vindo a dar nota. Mas mais
aconteceu nesse sentido. Já haveis percebido, estamos
perante uma situação em crescendo, em que todas as
transformações se reforçavam mutuamente: eram originadas
e se originavam em simultâneo. Um pouco como naquela
vossa estória do ovo e da galinha, a partir daqui, ainda mais
difícil é afirmar o que emergiu primeiro e o que sobreveio
depois. Não terei, por isso, a preocupação de continuar este
relato atendo-me a uma suposta e rigorosa ordem
cronológica.
Mal se dando conta no início, paulatinamente, começaram
a surgir pequenas bolsas de vizinhança do mesmo sinal em
ambos os triângulos da ilha. E as proporções de um e outro
sinal em cada uma dessas partes da ilha alteraram-se. Do
lado esquerdo de quem olhava para o sol poente e para
Face, foi aumentando a proporção de genusitas do triângulo
verde. Do outro lado, do direito, o mesmo foi acontecendo
com os de círculo vermelho. Com o passar do tempo, mais
por força dos casamentos entre genusitas do mesmo sinal,
do que por deslocações de famílias inteiras já formadas, as
populações de um e outro lado da ilha foram-se
uniformizando quanto ao sinal dos seus habitantes. Na fase
derradeira desta transformação, em que tudo se acelerou,
famílias inteiras restantes houve que optaram mesmo por
trocar de lado da ilha de modo a se juntarem aos do mesmo
sinal. À frente irão entendendo porquê sem que vos tenha
que dar alguma explicação. O resultado final foi o de cada

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metade da ilha ter ficado habitada por genusitas de maioria
esmagadora do mesmo sinal.
As partidas de futebol continuaram a ser jogadas nos
mesmos moldes, embora mais disputadas e acirradas, e com
motivos mais frequentes de frustração e de desconfiança de
parte a parte. A dada altura, as equipas deixaram de trocar
de campo ao intervalo, e passaram a jogar a defender
sempre do lado do estádio mais próximo da parte da ilha
maioritariamente habitada pelos do seu sinal e cor. O
estádio, ainda que não formalmente, como que ficou
perenemente dividido ao meio, ficando cada metade da
bancada para uso exclusivo de uns e outros. Deste modo,
sem que se tenham apercebido, cada golo marcado na baliza
do adversário passou a revestir-se do simbólico significado
de uma triunfante intrusão no território pertença dos do outro
sinal; como que o desferir de um terrível e invasivo golpe no
seu âmago. Acrescia e acentuava ainda mais esta carga
simbólica de natureza bélica o facto de toda a cratera – se se
recordam, era a zona de cultivo por excelência de Genus -,
ter passado também a ser trabalhada do lado esquerdo pelos
do triângulo, e do lado direito pelos do círculo. Ou seja,
porque o estádio se encontrava exatamente no centro da
dita, a linha divisória desta coincidia no estádio com a
divisória deste, o que frisava e exaltava aquele subliminar
valor simbólico associado à marcação de um golo. Podeis
compreender, os festejos de cada golo por parte de cada
metade do estádio foram sendo cada vez mais momentos de
intenso paroxismo coletivo.
Esta divisão ao meio dos terrenos por excelência agrícolas
da ilha foi a solução encontrada pelo grupo dos treze para
garantir, em definitivo, a satisfação do desejo de quase todos
de trabalharem a terra em equipas formadas somente pelos
do seu sinal. Por esta razão inocente, de natureza prática
operativa, se apresentou a todos a sustentação daquela
determinação. Por isso, ela foi acolhida como adequada.

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Mas esta, na prática, exclusividade no trabalho da terra de
cada uma das metades por parte de cada metade da
população motivou em alguns a necessidade de redobrar os
cuidados de modo a que se continuasse a assegurar a
distribuição equitativa por toda a população dos frutos da
terra, particularmente os provenientes da fértil cratera.
Circulou durante alguns tempos, ao princípio apenas em
conversas reservadas e privadas algo envergonhadas, a
ideia de que o grupo dos treze governantes deveria ser
formado sempre por seis genusitas de cada sinal e que o
décimo terceiro membro deveria passar a ser alguém de um
sinal no primeiro período de governação, e outro alguém, do
outro sinal, no segundo e último período. Esta ideia projeto
passou, então, a uma fase de debates espontâneos mais
abertos até que alguém a submeteu a votação no estádio por
toda a população. A aprovação foi quase unânime. Apenas
alguns genusitas, daqueles mais apreensivos em relação às
últimas transformações, se abstiveram. Embora, a estes, não
lhes agradando a evolução dos acontecimentos em toda a
ilha, não lhes ocorreu nenhuma ideia sobre como revertê-los
ou fazê-los tomar outro curso que lhes parecesse mais
recomendável. Dadas a circunstâncias, no seu íntimo não
viam melhor alternativa, de modo a tranquilizar o mais
possível a maioria dos genusitas, do que a solução aprovada
em votação.
Esta implicava também que os assistentes de cada um dos
membros do governo seriam sempre escolhidos de entre os
da mesma cor do respetivo governante. Sendo estes
assistentes encarregados de implementar no terreno as
decisões tomadas no seio do grupo dos treze, acabaram,
muito rapidamente após implementada a nova forma de
constituição daquele grupo, por se dedicar exclusivamente a
tarefas a executar no lado da ilha habitada maioritariamente
pelos seus iguais. Informalmente, todas estas modificações
na escolha de governantes e seus assistentes acabaram por

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redundar, na prática, na constituição anual de dois governos
e seus assistentes, um para cada metade da ilha. As
reuniões e deliberações do grupo dos treze foram sendo
cada vez mais raras, passando gradualmente a quase se
limitar a uma sessão no início do ano, após a sua
constituição por sorteio. A governação efetiva da ilha, em
consequência, passou a ser realizada por dois governos
praticamente autónomos, cada um dedicado quase em
exclusividade à sua metade. Cada um desses governos
passou, então, a reunir-se amiúde somente entre si e a
deliberar com frequência. A dada altura, por acordo unânime,
o décimo terceiro elemento e o seu assistente deixaram de
ser sorteado e nomeado, respetivamente, passando o
governo formal da ilha a ser constituído por doze elementos e
doze assistentes.
Como podeis prever, as modificações pretendidas
inicialmente, que visavam dar garantias redobradas a todos
de que se continuaria a zelar pela distribuição equitativa dos
proventos da terra, que tinha passado a ser trabalhada em
exclusividade, consoante os lados da ilha, ora por uns, ora
por outros, redundaram em efeitos opostos aos
expressamente pretendidos por todos. Não demorou muito
para que a população de cada metade da ilha fizesse
questão de alardear melhores capacidades e competências
no cultivo da terra, procurando exibir frutos de maior
dimensão, safras de cereais em maior quantidade, legumes
mais saborosos, e tudo o que se prestasse à manifestação e
reconhecimento da sua pretendida superioridade. Ou seja, tal
como a competição aberta há muito e em vigor no futebol.
Agindo deste modo, também justificavam a si próprios o
direito a decidirem por si sobre tudo o que dissesse respeito
ao que se passava no seu lado da ilha, rejeitando qualquer
interferência dos governantes de sinal e cor diferentes. Ou
seja, a um sentimento inicial de desconfiança sucedeu-se
outro de superioridade de uns em relação aos outros, que

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acentuou, por sua vez, a legitimidade da reivindicação de
cada metade do governo e da ilha de decidir autonomamente
e de se governar a si própria. Aliás, também, um pouco à
semelhança do que aconteceu e continuou a acontecer no
futebol. E não decorreu muito tempo para que se passassem
a realizar votações plenárias abertas a uma só parte da
população, com efeitos resolutivos apenas no triângulo da
ilha correspondente. Para esse efeito, a metade respetiva do
estádio servia perfeitamente. E os dois grupos de seis
governantes cada vez mais raramente se iam vendo, e ainda
menos se consultavam.
Em aparente contracorrente com estas transformações, e
com tantos novos interesses entusiasmantes, começou a
surgir em uns poucos genusitas, de ambos os lados, algum
desinteresse pelo futebol. As suas ausências fizeram-se
notar entre as assistências aos jogos. Principalmente das
primeiras vezes que isso sucedeu. Mas depressa deixaram,
primeiro, de ser comentadas, depois, de ser notadas. A
presença nas bancadas durantes as partidas passou, gradual
e subliminarmente, a ser facultativa e resvalou para algo de
bem menor significado do que anteriormente. Um sinal dos
tempos: o original e principal pretexto e motor para a
definição e rigidificação da fratura em duas metades da
população de Genus tinha perdido relevância e visibilidade
em virtude de outros novos motivos, que haviam entretanto
emergido mais salientes em virtude da sua maior influência
na satisfação e, até, no bem-estar da cada habitante de
Genus e da sua metade da população. Tanto assim foi que
não se notou em qualquer um daqueles genusitas, os
entretanto menos interessados no futebol, qualquer
diminuição na sua lealdade e apoio expresso para com o seu
grupo e lado da ilha, nem nenhum deles deixou de se
empenhar fervorosamente nas outras causas comuns à parte
da população a que pertenciam. Daí as críticas, e também o
desdém e a chacota, de que inicialmente foram alvo, se

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terem desvanecido, uma vez que a sua atitude, embora
minoritária e desviante, passou rapidamente a deixar de ser
encarada como ameaçadora. E, assim, o número de
desinteressados pelo futebol foi crescendo livremente,
embora se ficando sempre por quantidades bem minoritárias
em ambas as metades da ilha.

IX

Portanto, os eventos futebolísticos foram ocupando um


lugar menos importante entre os assuntos que motivavam
comparações competitivas e disputas. No entanto, isso não
obstou a que esse jogo, e tudo em redor dele, continuasse a
ser pretexto e a proporcionar ocasiões para a afirmação das
rivalidades entre os dos triângulos verdes do lado esquerdo
da ilha e os dos círculos vermelhos do lado direito, e,
naturalmente, também que se mantivesse como a principal
fonte de inspiração para as diferentes formas de afirmar e de
celebrar a pertença a qualquer dessas duas metades da
população de Genus. Por inerência, permaneceu igualmente
como a principal fonte instigadora e inspiradora para a
invenção e elaboração de manifestações públicas coletivas
que diferenciavam e exaltavam verdes e vermelhos. Era no
estádio, durante os jogos de futebol, que quase sempre elas
nasciam, se ensaiavam e se aperfeiçoavam. Manifestações
essas, de cânticos acompanhados com alguma coreografia,
a que podemos chamar rituais de autoexaltação, de desafio
e, numa fase mais avançada de todo este processo de
transformação em Genus, achincalhadores e, até, que
denegriam o outro grupo. Enfim, um pouco à semelhança do
que se passa entre muitos bandos de adeptos e claques
rivais do vosso futebol. No entanto, em Genus, esses
comportamentos e modos de se referirem e dirigirem uns aos
outros significavam uma radical rutura com os costumes do

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passado recente daquele povo. Porque o texto que desta
sessão resultará também se destina às vossas crianças mais
crescidas e aos vossos jovens adolescentes, escuso-me a
apresentar exemplos, ainda que, certamente, fossem de
relativa benignidade em comparação com os vossos.
Claro está que alguns destes cânticos de grupo
coreografados passaram a acontecer também fora do
estádio, em ambas as metades da ilha. Em particular,
sempre que os genusitas entendiam que havia algum motivo
para festejar. As vitórias no futebol, já vimos, de início eram
os pretextos mais usuais, mas outros começaram a ocupar o
seu lugar em frequência e, posteriormente, em importância.
O que quer que fosse que os genusitas de um dos lados
considerassem que era evidência da sua superioridade em
relação aos do outro, passou a ser motivo de festejos. Foram
sendo celebrações gradualmente mais prolongadas e
aparatosas, e que reuniam cada vez mais gente, também
num crescendo competitivo entre as duas metades da
população. E, como bem sabeis – já haveis reparado,
certamente -, em qualquer festa comemorativa em que se
junta um número razoável de gente há sempre a tendência
para que as pessoas se posicionem viradas na direção, ou
em torno, de qualquer símbolo com o qual se identifiquem,
que, de algum modo, os simbolize a eles enquanto grupo:
uma bandeira, a fachada de um edifício, uma estátua no
meio de uma praça, um líder político discursando numa
varanda, uma figura da realeza, etc. Assim se passou
também em Genus.
Os genusitas, do seu passado, não os tinham e, por isso,
espontaneamente criaram-nos. Refiro-me a esses tais
símbolos. A dada altura começaram a surgir nos dois lados
da ilha colunas de pedra encimadas de capitéis, nos quais
assentavam ou triângulos ou círculos e que foram sendo
pintados das devidas cores: verde ou vermelho. Em alguns
casos foram adicionados outros decorativos elementos, mas

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mantendo sempre em destaque bem saliente o símbolo
original. Um dia, na sequência de alguma vitória
especialmente exaltante, alguém se lembrou de acender uma
tocha permanente junto de uma dessas colunas, o que foi
rapidamente exemplo seguido por toda a ilha,
particularmente após alguma derrota atribuída à falta de
gestos de apoio de parte da população – especificamente, ao
reduzido número de tochas acesas, e, mesmo, à ausência
das colunas simbólicas e icónicas em algumas povoações.
Também não passou muito tempo para que se generalizasse
o hábito em todos os genusitas de exibirem um gesto de
respeito, de reverência, até, que acabou por se transmutar
em veneração - não exagero - sempre que passavam perto
de um desses objetos inanimados, de uma dessas colunas.
Era uma vénia, podemos dizê-lo, que consistia, de pés
juntos e de corpo reto e virados de frente para o monumento,
em fletir suave e demoradamente, pela cintura, o tronco para
a frente, retomando depois a postura original. Porém, este
movimento era rematado de modo diferente nos dois lados
da ilha. Do lado direito, antes de prosseguirem marcha, com
as duas mãos fechada em punho, lado a lado, simbolizando
em simultâneo o Sol e Face, que lá se mantinha visível no
firmamento, ao entardecer, na mesma posição, descaído
sobre o lado direito do astro rei, desenhavam no peito um
círculo. Por sua vez, os genusitas do lado esquerdo, com a
mão esquerda estendida e de dedos bem juntos,
assemelhando-se, ainda que remotamente, à forma do
triângulo do seu símbolo e, mais importante ainda, de cada
uma das duas metades da ilha, desenhavam no ar, à sua
frente, o triângulo que encimava a coluna que estivessem a
fitar.
Os comparativamente poucos genusitas, que, por motivos
familiares, ainda permaneciam na metade da ilha que não
era habitada maioritariamente pelos do seu sinal, abstinham-
se de realizar estes gestos, passando rápido, hirtos, evitando

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
fitar a coluna e, sobretudo, o símbolo no seu topo. Embora
tenham acontecido só nos primeiros tempos do aparecimento
das colunas, as poucas vezes que algum deles procedeu
como os restantes habitantes foram vistas como falta de
respeito, indignidade e, também, como um gesto pretensioso
a que não tinham direito; e algumas vezes, possivelmente,
como comportamento eivado de malícia, que pretendia
desrespeitar, ou mesmo prejudicar, os restantes genusitas
maioritários da parte da ilha em que habitavam.
Não tardou que algumas derrotas e acontecimentos
considerados desprestigiantes, tanto de um lado como do
outro, fossem explicados pela coincidência de um, pelo
menos, daqueles genusitas de sinal minoritário ter sido visto,
proximamente no tempo em relação a algum desses eventos
indesejados, junto a uma coluna, parado e realizando alguns
gestos. Portanto, essa eventualidade, em ambos os lados da
ilha, passou a ser considerada como profanação grave.
Podeis imaginar o que esta proibição implícita, sob pressão
social quase sempre muda, infligiu nas poucas crianças de
sinal contrário, muitas ainda nascidas de casais híbridos. De
novo, pura e insidiosa violência, sem que esse epíteto lhe
fosse atribuído por ninguém, e da qual as próprias vítimas
não se apercebiam, assumindo-a como o estado natural e
permanente desde sempre das coisas. Acresce que todos os
genusitas minoritários foram obrigados, a bem da sua fácil
identificação, a pintar o seu sinal da mesma cor com que
eram pintados os dos genusitas que eram maioritários no
lado contrário da ilha. Até então, compreensivelmente, a
maior parte deles evitava fazê-lo.
Mas a animosidade contra os minoritários foi-se
intensificando ainda mais, em virtude, também, de novos
acontecimentos que mais à frente relatarei. Chegaram a
circular rumores, e até boatos, em ambos os lados e, claro
está, após alguma derrota no futebol, ou algum
acontecimento igualmente indesejado, de que genusitas de

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
sinal minoritário tinham sido vistos em frente a um
monumento realizando os gestos rituais apropriados aos
monumentos da outra banda da ilha, incorrendo em grave
sacrilégio. Como se pretendessem subverter toda a ordem
natural das coisas, tornando-a desfavorável aos maioritários
do lado da ilha em que estavam. Seria, para utilizar de novo
uma expressão vossa, como que uma espécie de magia
negra, ou um rogar de pragas. Por isso, estes genusitas
olhados cada vez com mais desconfiança pelas maiorias
predispostas a levantar qualquer suspeita ao mínimo
pretexto, redobraram as sua cautelas. Passaram a evitar
passar nas proximidades – à vista, até – de qualquer um dos
muitos monumentos que foram sendo erigidos, não fosse o
resto da população acusá-los de alguma tentativa de causar
dano. Foram gradualmente deixando quase de ser vistos,
uma vez que se afastaram ainda mais dos locais mais
frequentados, locais esses onde, em regra, tinham sido
erigidos os monumentos de que vos falo.
As famílias híbridas, chamemos-lhes assim, as poucas
que ainda sobreviviam à pressão social hostil, acabaram por
se confinar, em ambos os triângulos da ilha, a um gueto que
se formou espontaneamente, quase isoladas do resto da
população. Isto aconteceu pelos motivos que já apontei, e
porque os seus membros, fosse qual fosse o seu sinal na
testa, não podiam ser sorteados para governantes, nem
participar nos trabalhos públicos. Os outros genusitas, os da
maioria, preferiam dispensá-los dessas responsabilidades,
aplacando desse modo desconfianças e receios. Claro que,
será previsível por vós, chegou-se ao ponto de deixarem de
poder votar precisamente sob o pretexto de que, não
governando nem participando nos trabalhos públicos,
estariam a influenciar decisões cujas consequências
imediatas não os afetariam, que só implicariam com as vidas
do resto da população. Ou seja, a estas famílias, apenas
toleradas pelos outros, ficou-lhes reservada, e, certamente,

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
não por vontade própria, uma vida em que pouco podiam
oferecer à comunidade, necessitando, no entanto, de receber
o mesmo que todas as outras. Já podeis imaginar o que esta
conjunção de fatores pôde fazer germinar nas mentes e
corações de ambas as populações maioritárias…

[Um burburinho, acompanhado de moderada agitação


corporal, havia, já há alguns segundos, tomado conta da
mesa dos dez. Cessou assim que o jovem Xolani, da
Civilização Africana, primeiro hesitante, depois incentivado
pelos outros, se levantou e colocou uma pergunta que
denunciava, mais do que dúvida, rebeldia e oposição
cautelosas:]
- Pelo que está a acontecer em Genus, só podemos
concluir que as diferenças e, sobretudo, os grupos e as
identificações de cada um de nós com eles, e sentirmo-nos a
eles pertencentes, só podem dar maus resultados?! É isso?!
Querido Xolani, sabeis bem que não. Tendes a experiência
de que não tem que ser assim. Não esqueçam que esta
estória que vos conto é artificiosamente simplificada. Por
isso, a sua potência explicativa não é inesgotável; tem os
seus limites, digamos, heurísticos. Com o decorrer desta
nossa sessão, tal como em relação à questão sobre a
competição, tudo irá ficando mais claro. Aliás, as diferenças e
as identidades de grupo, sejam quais forem as dimensões
destes, são em vós incontornáveis. Não têm nada de
intrinsecamente mau. Não é essa a questão essencial que eu
aqui procuro abordar e transmitir-vos, embora, como está
bem de se ver, não possa ser ignorada.
[Fez-se silêncio total durante alguns segundos.]
E agora continuo retornando aos nossos genusitas.

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
As suas manifestações de regozijo, em ambos os
triângulos da ilha, começaram e revelar um padrão evolutivo
de gradual concentração. Cada vez se realizavam mais em
torno de duas altas e belas colunas de resistente arenito,
muito trabalhadas, com capitéis exuberantes, onde
assentavam também o triângulo e o círculo, localizadas uma
em cada lado da ilha. Eram os monumentos mais altos de
todos os que polvilhavam Genus. Em pouco tempo ganharam
uma proeminência tal que muitos dos outros ficaram votados
a meio abandono. Resultaram de uma escalada competitiva
entre verdes e vermelhos, durante a qual se sucederam em
ambas as partes colunas cada vez mais altas, até que essa
escalada cessou por imposição das limitações na capacidade
técnica à continuação do seu crescimento. Mas, enquanto
não se chegou a este ponto, muitos festejos foram realizados
em torno de ambas, sempre que uma das populações
conseguia superar a outra na altura do seu monumento.
Inicialmente, essas colunas eram erigidas junto à cratera,
por exibicionismo desafiante do outro lado. Depois, por
segurança, já poderão antever por que motivos, passaram
para o mais longe possível do acesso pela cratera, e longe
das vistas da outra banda, mesmo através do mar. Tanto de
um lado como do outro, foi tomada a opção de as localizar o
mais perto possível do ponto central dos lados dos triângulos
contrários aos vértices onde os dois se unem, por trás das
respetivas montanhas cónicas. Tudo isto foi coincidente com
o crescimento muito rápido, também em ambos os triângulos
e nesses pontos longínquos e longe das vistas, de duas
grandes urbes centrais de administração. Foi onde os
respetivos grupos dos seis se passaram a reunir e,
gradualmente, a viver com as suas famílias em casas com
alguma proeminência, já com dois pisos.
Estes governos, entretanto, também sofreram
transformações. Passaram a sete elementos cada,
adquirindo o sétimo a prerrogativa do voto de qualidade, que

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
servia para desempate nas votações, sempre que
necessário. Depois, este sétimo elemento, que passou a ser
na prática o líder do governo, e de todos os genusitas do seu
sinal, ganhou a faculdade de poder ser reconduzido. A
principal justificação em ambos os lados da ilha foi a de que,
tendo-se entrado em tempos conturbados, bem diferentes do
que alguma vez tinha acontecido no passado, era necessário
assegurar a contribuição dos genusitas que, entretanto, mais
experiência relevante tivessem adquirido para a resolução
dos novos problemas e para o enfrentar de desafios ainda
em grande parte desconhecidos. E a sua recondução
transformou-se na norma, assim como o ter passado a ser
ele, sob as mesmas justificações, a escolher pessoalmente
os outros seis membros do governo, tal como também os
seus assistentes mais jovens.
Com a ocupação dos cargos de governação a título
tendencialmente vitalício, os membros dos governos
passaram a acrescentar algum efeito estético extra aos seus
sinais da testa. Algo mais do que o simples preenchimento
com cor verde ou vermelha da sua superfície interior. Mas os
seis de cada governo procuraram fazê-lo com contenção, de
forma tal que não resultasse em maior exuberância do que a
dos respetivos líderes. Estes governantes, porque vitalícios
na prática, passaram a reservar-se privilégios, com a
concordância da maioria das populações, para si e famílias,
sob o pretexto de que tais prorrogativas eram indispensáveis
para o bom exercício da governação. Nomeadamente, para
poderem prover à construção de monumentos cada vez mais
altos, e sua dispendiosa manutenção. Entre outros, um
desses direitos era o de poderem requisitar um genusita para
seu serviço pessoal a tempo inteiro. Muitos optaram por
escolher alguém com jeito para lhes adornar condignamente
os sinais da testa antes das suas aparições públicas, que
eram quase sempre ocasiões de festejos, ou jogos de futebol
contra a equipa do outro lado.

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
Para este efeito, os dois líderes passaram a reservar para
si, em exclusividade, o genusita de seu sinal que fosse
reconhecidamente o mais dotado artista plástico do seu lado
da ilha. Ser chamado a exercer este papel passou a ser
considerada uma das maiores honras a que um genusita
poderia aspirar. O que era feito por ele na testa do líder
tendia a recordar a escultura no topo do monumento mais
alto da urbe que se tinha tornado a sede do governo. E,
depois, estes genusitas, um em cada banda da ilha,
passaram a ser incumbidos pelos seus líderes de proverem à
manutenção daquele monumento, assim como a quaisquer
obras de melhoria do mesmo e a assegurarem-se de que a
respetiva tocha nunca se apagava. E, também, passaram a
coordenar, por delegação pessoal do líder, as danças e
cantares que se realizavam em torno do dito sempre que os
genusitas entendiam, espontaneamente, que havia motivo
para celebração.
Não passou muito tempo até que destas manifestações
nascesse o hábito, que, com o tempo, haveria de evoluir para
costume ancestral, da realização de uma cerimónia idêntica
todos os dez dias, ao pôr-do-sol, oficiada pelo líder, ou pelo
seu oficiante nomeado, o tal artista de maior reputação. Em
ambos os lados se chegou à mesma periodicidade e dia do
evento porque em nenhum deles os genusitas quiseram ficar
atrás quanto à quantidade de cerimónias, tal como quanto à
sua grandiosidade.
E em pouco tempo o líder do lado esquerdo passou a ser
comumente designado por Supremo Triângulo, e o do lado
direito por Vermelho Máximo.
[Num ímpeto, procurando disfarçar alguma impaciência,
Gonzalo, o jovem da Civilização Latino-Americana, interveio:]
- Pois eu estranhava que até agora não tivessem
aparecido líderes, chefes, pessoas responsabilizáveis pelos
acontecimentos. Aqui estão eles! Não é? Ou os líderes não
interessam para nada?!

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
Querido Gonzalo, esse é um assunto muito pertinente. Os
líderes não apareceram até agora porque pretendo realçar
que tamanhas transformações estão muito para além da
capacidade de previsão e do controlo de cada indivíduo,
incluindo dos líderes. Por outro lado, e em complemento
incontornável, os líderes, os modos de liderar, são facilitados,
alimentados, incentivados, incitados, permitidos... São
emergentes com tudo o resto, com as visões, atitudes e
modos de vida de toda a gente. Isto é uma manifestação da
Complexidade, conceito que é tão caro a alguns estudiosos
vossos. Desejo, também, tal como em relação às diferenças
e à competição, que este assunto se clarifique à medida que
formos avançando.
Tende em conta também, por favor, que, quanto mais nos
formos aproximando do final desta sessão, irá ficando mais
claro por que razão é a vós que cabe a tomada de decisões
que, a um só tempo, derivam e têm impacto nestes assuntos.
E o facto de não terdes total controlo sobre os seus efeitos,
nem serdes capaz de os prever cabalmente, não é
justificação para a vossa desresponsabilização, nem para a
abdicação da vossa parte. Aliás, não vos assiste essa
faculdade, a de abdicar. Ela é-vos impossível.

XI

De novo, continuo.
Estas últimas transformações em turbilhão decorreram
quando já se havia instalado certa escassez generalizada de
alimentos na ilha. Aliás, este novo contexto de alguma
penúria, e nalguns casos foi a sua justificação direta, ajudou
a sustentar as últimas transformações de que vos falei
quanto à forma de governar e constituição dos executivos em
ambas as metades da ilha. No que diz respeito às lideranças,
portanto. Os problemas gerados pela escassez foram

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
entendidos como seus adequados pretextos, de aceitação
generalizada entre os genusitas.
Esta baixa da produção agrícola na ilha, que aconteceu,
muito possivelmente, no momento mais inconveniente da
História de Genus para tal, foi consequência de condições
meteorológicas inusitadamente adversas – mais calor e
menos chuva -, e, talvez, também, tenha sido agravada por
os genusitas se terem deixado distrair pelos novíssimos
assuntos e quezílias. Tudo isto, claro, acrescido do aumento
natural da população mas que, só por si, não seria
problemático. No entanto, embora um dos mais severos da
sua história, outros períodos já haviam acontecido, alguns
ainda de maior escassez. Como ficou implícito quando iniciei
o relato desta, chamemos-lhe assim, História da Comunidade
Genus, os seus habitantes já sabiam, portanto, como superar
a situação. No passado já o haviam logrado com
tranquilidade, embora com sacrifícios, mas sempre
distribuídos por todos de modo transparente e equitativo.
Também, como aconteceu muitas vezes antes, as colheitas
foram mais afetadas pela escassez geral num dos lados da
ilha do que no outro. Desta vez, o lado que, apesar de tudo,
foi o menos perturbado foi o direito, o agora habitado
maioritariamente pelos genusitas de círculo vermelho.
Vermelho Máximo, crendo interpretar o sentimento
dominante entre os seus, e estes, depois de o ouvirem pela
primeira vez, acreditando nele e na justeza de seus
argumentos, recusou-se à partilha equitativa por toda a ilha,
diferentemente do que seria de esperar numa situação
semelhante à de tantas outras do passado. Inicialmente,
entre outros argumentos, aquele líder do lado direito da ilha,
com o apoio dos outros seis governantes, e com a
concordância generalizada dos seus genusitas, sublinhou
que entendia que as informações vindas do governo liderado
por Supremo Triângulo não eram de confiança, que poderiam
estar empoladas; que, uma vez que a efetiva governação

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conjunta de toda a ilha já não acontecia há muito, não podia
garantir aos seus genusitas a fiabilidade dos números sobre
a população do lado esquerdo e, mormente, sobre aquilo que
efetivamente tinha sido produzido e colhido da terra naquela
banda, assim como o que lá tinham nos seus armazéns de
reserva. Gerou-se um clima de desconfiança insanável e
generalizado entre as duas populações. Podeis imaginar,
independentemente das colheitas efetivas e do armazenado
e dos reais resultados dos últimos censos populacionais em
cada um dos triângulos da ilha, que se gerou a ideia em cada
genusita de que o seu lado estava a ser deliberadamente
prejudicado pelo facto de não estar a receber do outro o que
lhe era devido, ou que da outra metade lhes estavam a ser
feitas exigências indevidas em excesso e com, embora
dissimulado, conhecimento desse facto pelo respetivo
governo dos sete.
Apesar do clima de grande animosidade, uma comissão
formada por dois assistentes de cada um dos governos foi
constituída de comum acordo. Ficou investida da
responsabilidade de apurar, com o máximo de rigor, os
verdadeiros e relevantes números de modo a que se
pudesse, então, proceder a uma distribuição equitativa de
alimentos e outros bens por cada uma e todas as famílias
genusitas, sem exceção. Mas em vão. Após muitas reuniões
e trabalho de campo da dita comissão, e de algumas
reuniões entre os dois governos, nada se progrediu.
Qualquer proposta avançada, por qualquer um dos governos,
era sempre olhada pelo outro, previamente a qualquer
análise cuidada e genuinamente interessada, como de
indevido e deliberado auto-favorecimento. Este
comportamento é um perfeito absurdo à luz da suposta
racionalidade dos genusitas. Mas, de facto, eles não eram de
racionalidade limitada mas, sim, de irracionalidade
absolutamente ilimitada, ainda que condicionada, a ponto de,
e isto não é uma crítica, serem capazes de conceber em

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
simultâneo diferentes verdades absolutamente verdade, e
absolutamente incompatíveis, variando consoante os
contextos. Esta faculdade resultava da sua limitação e
condicionamento no acesso à informação relevante, e no
processamento da mesma, em combinação com a sua
ilimitada capacidade para construir significados, embora,
capacidade essa, também, condicionada.
Sem dúvida, nesta faculdade residia o que eles tinham de
mais maravilhoso e digno de assombro, para o bem ou para
o mal…
Entretanto, os efeitos da escassez, ampliada pela falta de
entendimento entre governos, começavam a fazer-se sentir
severamente, como nunca, entre a população de toda a ilha.
Um sentimento generalizado em ambas as metades
começou a emergir: que a culpa era dos do outro lado; que
afinal eles não tinham sofrido qualquer anormal baixa na
produção agrícola; antes pelo contrário, e que o estavam a
ocultar deliberadamente para não terem que partilhar.
Em pouco tempo, a acrescentar à desconfiança e
desprezo, começou também a generalizar-se, e depois a ser
aceite expressamente, o desdém e a aversão declarada aos
genusitas que, em cada lado, eram de sinal minoritário.
Casais híbridos, e com filhos com símbolos diferentes,
enfrentavam cada vez mais problemas. Chegavam a ser
prejudicados na distribuição de alimentos e outros bens,
embora esporadicamente. No entanto, entre eles próprios
emergiu a convicção de que o eram sempre. Algumas destas
famílias dos dois guetos, sentindo a sua segurança mais
elementar em perigo, optaram por se separar e os seus
membros de sinal minoritário pediram acolhimento no outro
lado da ilha. Com eles se espalharam ainda mais, por todo o
lado, os rumores de que vos tenho falado.
A absoluta falta de confiança, por princípio, e o ódio,
passaram a ser a regra na mente e coração de qualquer
genusita perante qualquer outro de sinal na fronte diferente,

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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
conhecido ou desconhecido. Deixou de haver jogos de
futebol. Uma vedação alta foi colocada, por acordo entre os
dois governos, a dividir a cratera ao meio. As passagens
passaram a ser permitidas apenas àqueles, muito poucos,
que tinham autorização escrita expressa de ambos os
governos. A cor vermelha foi totalmente banida do lado
esquerdo, e a verde do lado direito.
A discriminação dos de sinal minoritário na distribuição de
alimentos deixou de ser esporádica para passar a ser
sistemática, sob justificação de que não tinham a pesada
responsabilidade de governar, nem de colaborar nos
trabalhos públicos, ou porque, simplesmente, trabalhavam
menos, mal e em funções de menor exigência. A indigência,
a miséria e a tentativa de sobrevivência por modos, até
então, desconhecidos dos genusitas, como a prática do
roubo, generalizou-se entre estas famílias, o que alimentou
nas populações maioritárias de ambos os lados o sentimento
de superioridade e de desconfiança, e de medo, em relação
aos de sinal minoritário do seu lado, assim como, por
generalização, em relação aos cada vez mais longínquos
desconhecidos genusitas do outro lado da ilha. Em cada
banda desta, havendo uma ideia generalizada sobre as
formas de vida das famílias do seu gueto, passou-se a
presumir que os genusitas do outro triângulo da ilha levavam
todos modos de vida idênticos.

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