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infernal

contágioinfernal
contágio
ista - evangélico
o apoc alipse bols onar ista-
por fe l l ipe dos anjos e joã oluiz
o moura
luizmoura
oluizmoura
1
TEXTO #01 DA SÉRIE
#contágiosinfernais

ORGANIZADORES:
fellipedosanjos e joãoluizmoura

ESCRITO ENTRE
15 e 25 de abril de 2020
3

SUMÁRIO

5 21 28
bem-vindas/os . a negação 2. reverter o
ao fim do do real e apocalipse:
mundo. suas bizarras biopolítica,
derivações necropolítica.
isto é:
sacrifício?
4

Religião e política não são duas coisas


fundamentalmente diferentes,
mas, ao contrário, na verdade,
trocam as vestes entre si

T h o m a s Ma n n

“A violência em seu relacionamento


com o sistema jurídico
nunca abandona o espaço mítico”

Márcio Seligmann-Silva

‘eis’ a “paradoxal
reversibilidade recíproca do político no
religioso e vice-versa”

Wa lt er B e n ja m i n e m c a r t a a S c h ole m
em maio de 1926
Bem-vindas/os ao fim do mundo.
66

Ou melhor, ao início do fim do fim do mundo: tempo


de escrever apocalipses. Afinal de contas, como nos
ensinam Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro
em há mundos por vir?” (2014), “o “fim do mundo” é um
daqueles famosos problemas sobre os quais Kant dizia
que a razão não pode resolver, mas que ela tampouco
pode deixar de se colocar. E ela o faz necessariamente
sob a forma da fabulação mítica, ou, como se gosta de
dizer hoje em dia, de “narrativas” que nos orientem e
nos motivem”. (DANOWSKI, 2014, p.17)

- E daí?
7

Apocalípticas podem ser movimentações sociais,


performances, imaginações ou linguagens fantásticas,
sensacionais e de forte apelo extático-psíquicos
utilizadas para interpretar e/ou produzir fins do
mundo e modos de superá-los em direção a uma
salvação escatológica. Para Adela Collins, especialista
no gênero em questão, as apocalípticas podem se
configurar ou como um tipo de movimento social ou
como uma linguagem de estrutura mítico-narrativa na
qual uma revelação extraordinária é mediada por um
believer, que desvenda uma realidade transcendente -
supostamente inacessível aos “profanos e pecadores” -
na medida que vislumbra uma salvação futura ou que
prospecta outro(s) mundo(s). Ou seja, apocalípticas
são modos de imaginação e linguagem que objetivam
alterar a disposição subjetiva e as práticas históricas
daqueles que imaginam e sonham com tais futuros.
Este é o sentido retroativo da imaginação futurista,
ela produz profundas alterações no tempo real da
experiência, no intenso agora.

Nestas perspectivas teológico-políticas, importa


perguntar:
8

Nos mundos reais onde emergem tais imaginações

quem são seus agentes produtores?


Quais são os seus contextos
de poder e posições sociais, culturais
econômicos, políticos e linguísticos?

Quais mundos reais os believers apocalípticos


estão negando em vista desse futuro redentor?

e, principalmente, quais pessoas têm

acesso ao mundo novo sonhado pelo believer;


e por quais razões outras ficariam de fora?

Essas são questões importantes uma vez que em


toda apocalíptica há, no fundo, uma proposição
cosmopolítica, para falar em termos de Isabelle
Stengers. Ou seja, uma determinada visão mítica
funda, acumula, arquiva, motiva, legitima uma certa
visão/teoria/ecologia do poder no mundo real de uma
dada comunidade imaginativa.
9

Sendo assim, quando acessamos narrativas míticas


de uma sociedade, especialmente àquelas marcadas
por uma ampla imaginação de futuro e por uma dura
negação do presente, estamos, na verdade, abordando
e conhecendo seus modos de gestão das diferenças/
alteridades, seus quadros de reconhecimento ético,
seus critérios de exclusão-inclusão no corpo social,
suas políticas da natureza e seus marcadores morais de
decisão sobre vida-morte, visibilidade-invisibilidade,
salvação-perdição das diferentes formas-de-vida
presentes no interior daquele cenário mítico. Nas
apocalípticas temos, claramente, conhecimento de
quais formas de vida aquela comunidade pretende
salvar e quais ela pretende infernizar ou sacrificar em
nome de um virtual futuro salvífico.

Neste nosso “fim do mundo”, no tempo das


agonias sociais provocadas pela pandemia
da forma
Na COVID-19 no Brasil,
de um as apocalípticas
agenciamento mais que
governamental
badaladas que surgiram até agora foram aquelas
desconhece e/ou ignora lógicas de secularização
produzidas pela confluência bolsonarismo e
e laicidade, o governo
campo religioso bolsonarista
evangélico, e as“paradoxal
numa lideranças
majoritárias do campo evangélico
reversibilidade recíproca”brasileiro
do poderseguem
religioso no
implementando práticaspodere político
discursose vice-versa.
de poder
fundados e mantidos em lógicas religiosas.

Não, o apocalipse brasileiro não é estritamente


10

confessional, nem estritamente secular, uma vez que


o Estado segue governamentalizado e governando
populações através de técnicas e tecnologias de poder
impregnadas pelo pensamento teológico-político
cristão. Ao observar as apocalípticas presentes nesta
nossa crise, portanto, estamos, mais uma vez, diante
de uma constatação inconveniente e perturbadora:
o Estado e a política brasileira desprezam a estratégia
moderna da secularização e da laicidade. Não se trata
aqui de notificar uma espécie de aparelhamento
religioso do Estado, como se existisse uma instituição
secular, pública, racional, sendo ocupada desde fora
por uma lógica privada, confessional e institucional
evangélica. Trata-se, antes, de termos clareza política e
epistemológica quanto ao que acontece no Brasil desde
a colonialidade e da escravização:

o Estado brasileiro é cristão,


racista, escravocrata, patriarcal,
capitalista.

A base evangélica de apoio ao bolsonarismo e as


investidas do bolsonaro nesta base não se explicam
apenas por capitalização eleitoral ou pela sustentação
ideológica de um populismo de baixo-clero. Antes,
entre eles, há um projeto teológico-político comum ou
recíproco, que partilha as mesmas visões catastróficas
11

de mundo e as mesmas lógicas paranóicas e repressoras


da vida, das corporeidades, dos desejos, das expressões
políticas e das diversidades culturais marcantes da
população brasileira. O Estado que, no Brasil, sempre
foi cristão, agora, não se tornou evangélico e ao mesmo
tempo bolsonarista por coincidência ou acidente.
É que a mitofísica dos evangélicos, hoje, sustenta a
metafísica do Estado bolsonarista, e vice-versa, para
pensar com o esquema conceitual da antropologia
especulativa de Danowski e Viveiros de Castro.

Já que o acesso ao horizonte apocalíptico de uma


determinada comunidade se dá por intermédio de suas
práticas discursivas, devemos nos perguntar, então,
quais foram os discursos produzidos nestes campos
de significação. Em face da crise provocada pela
pandemia da COVID-19, quais elementos emergem
no discurso do poder político-religioso? Ou, melhor,
quais são as linguagens e movimentos apocalípticos
partilhados pelo Estado e pela religião evangélica hoje
no Brasil? Qual é a teologia do governo e a política da
religião, e vice-versa? Façamos uma breve recuperação
dos discursos recentes em busca dos pontos de [con]
fusão entre o bolsonarismo e a religião evangélica. Na
sequência, uma pequena agenda dos últimos discursos
apocalípticos do bolsonarismo-evangélico:
12

Brasília, 23.03.2020,
o presidente jair, afirmou que sem emprego, a miséria
deve se tornar um problema tão grave a ser enfrentado
pela população quanto a covid-19, “a vida em primeiro
lugar mas, sem emprego, a sociedade enfrentará um
problema tão grave quanto a doença: a miséria”

Brasília, 24.03.2020,
em pronunciamento oficial em rede aberta de
televisão e rádio, o presidente jair afirmou, contra
todas as recomendações científicas, médicas e
epidemiológicas, inclusive da OMS, no tocante
às políticas de isolamento social: “O sustento das
famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à
normalidade. (...) No meu caso particular, pelo meu
histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo
vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou
seria, quando muito, acometido de uma gripezinha
ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido
médico daquela conhecida televisão”.
H I S HT ÓIHSRI TSI ÓCT RÓO IRCDI OEC ODA TEDLEAETATLAT EL TEAT A
H IHSITSÓT RÓ IRCIOC OD ED EA TALTELTEAT
13

Brasília, 27.03.2020,
em entrevista ao apresentador do programa da Rede
Bandeirantes de TV, Brasil Urgente, José Luiz Datena,
o presidente jair disse: “Infelizmente algumas mortes
terão, paciência, acontece, e vamos tocar o barco. As
consequências, depois dessas medidas equivocadas,
vão ser muito mais danosas do que o próprio vírus”,
bolsonaro afirmou ainda que a população tem de
retomar o trabalho. “O brasileiro quer trabalhar,
esse negócio de confinamento aí tem que acabar,
temos que voltar às nossas rotinas. Deixem os pais, os
velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar. Algumas
mortes terão, mas acontece, paciência”.

Brasília, 02.04.2020,
como alternativa ao isolamento social, o presidente
jair fala em autorizar o retorno às atividades
dos comerciantes; medidas vão contra todas
as orientações de órgãos de saúde nacionais e
internacionais, inclusive de seu próprio ministério
da saúde: “vírus e desemprego não podem ser
tratadas de forma dissociada” no Brasil e defendeu
o afrouxamento das regras de quarentena. Segundo
o presidente, se a partir da próxima semana “não
começar a voltar o emprego, vou ter de tomar uma
decisão”.
14
14

Brasília, 02.04.2020,
o presidente jair afirmou que fará um chamado
nacional de jejum religioso para que o país “fique
livre desse mal”, em referência à pandemia do novo
coronavírus. em suas palavras: “a gente vai junto com
pastores e religiosos anunciar para pedir um dia de
jejum ao povo brasileiro em nome de que o Brasil
fique livre desse mal o mais rápido possível”, disse o
presidente em entrevista à rádio Jovem Pan.

COV ID-19
AS
ARDE
15

Brasília, 02.04.2020,
na portaria do Palácio da Alvorada, pastores
esperavam o presidente jair no cercadinho onde
apoiadores se reúnem todas as manhãs, ao que o
presidente disse que o novo coronavírus “não é isso
tudo que estão pintando”. “Até porque o Brasil tem
temperatura diferente.”

Brasília, 11.04.2020,
o presidente jair reforçou sua posição em defesa da
retomada das atividades no país. Usou as redes sociais
para postar vídeo de entrevista dada em 25 de março
em que afirma que os brasileiros precisam “acordar
para a realidade. Se não acordarmos em pouco dias,
poderá ser tarde demais. (...) Espero que Brasil volte à
normalidade, encare o vírus, haja como se fosse uma
guerra, mas em situação de igualdade. Se formos para o
discurso fácil, ‘todo mundo em casa’, vai ser um caos”
16

Brasília, 12.04.2020,
na contramão do que dizem especialistas, o presidente
jair, em reunião com grandes lideranças evangélicas
do país, no domingo de Páscoa, afirmou que o novo
coronavírus parece estar indo embora do país. “Parece
que está começando a ir embora essa questão do
vírus, mas está chegando e batendo forte a questão do
desemprego”

-
discursos de lideranças religiosas:
discursos de lideranças religiosas:
discursos de lideranças religiosas:
discursos de lideranças religiosas:

São Paulo, 15.03.2020,


em vídeo bispo Edir Macedo aparece endossando um
médico que desacredita os alertas sobre a gravidade da
disseminação do coronavírus. Este vídeo foi distribuído
em grupos de WhatsApp de apoiadores de bolsonaro.
No vídeo, Macedo diz “meu amigo e minha amiga, não
se preocupe com o coronavírus. Porque essa é a tática,
ou mais uma tática de Satanás. Satanás trabalha com
o medo, o pavor. Trabalha com a dúvida. E quando as
pessoas ficam apavoradas, com medo, em dúvida, as
pessoas ficam fracas, débeis e suscetíveis. Qualquer
ventinho que tiver é uma pneumonia para elas”,
17
Rio de Janeiro, 16.03.2020,
pastor Silas Malafaia disse ao Jornal O Globo que
não vê sentido em fechar templos enquanto não
forem paralisados serviços de transporte público e
enquanto shoppings estiverem abertos. Contrariando
as recomendações das autoridades de saúde, disse que
“Governador nenhum vai suspender meus cultos”

Rio de Janeiro, 23.03.2020,


pastor Silas Malafaia publica um vídeo em seu canal no
Youtube, dizendo “eu quero dizer que eu compartilho
da opinião do presidente da República. Nós não
podemos manter tudo fechado por muitos dias que nós
vamos ter um caos social.”

Rio de Janeiro, 27.03.2020,


The Intercept Brasil publica vídeo em que diversos
pastores, em momentos de cultos religiosos e/ou
pregação religiosa fazem pronunciamentos
minimizando a gravidade e os impactos do COVID-19
no Brasil.

Rio de Janeiro, 02.04.2020,


pastor Silas Malafaia publica vídeo apoiando jejum
nacional convocado pelo presidente jair [fake] messias
bolsonaro. “Eu creio que depois que passar isso daí vai
vir um tempo de prosperidade para o Brasil que nunca
houve. E que todas as previsões catastróficas estão
aniquiladas no nome de Jesus”.
18

Brasília, 04.04.2020,
pastores e pastoras das maiores denominações
evangélicas do Brasil lançam vídeos de convocação
para o “Jejum nacional em prol da nação”; vídeos são
viralizados em grupos de whatsapp e demais redes
sociais de apoio ao governo bolsonaro. Ressalta-se a
ampla representatividade das lideranças protagonistas
desta campanha político-religiosa.

Brasília, 12.04.2020,
“celebração de páscoa no palácio do alvorada”, nome
dado pelo governo ao evento. Em live promovida pela
presidência e transmitida pela TV Brasil, em pleno
domingo da ressurreição segundo calendário cristão,
pastor Silas Malafaia, em reunião com mais de quarenta
lideranças evangélicas nacionais, diz: “eu tenho desde
o início dessa pandemia, eu tenho liberado alguma
palavra. porque eu creio, que eu não sou o único, mas
também sou uma voz profética nessa nação. eu tenho
declarado as seguintes coisas: número um: não vamos
ter no nosso país uma desgraça de morte, isso é, esses
profetas do caos vão ficar envergonhado. nenhuma
previsão catastrófica acontecerá no nosso país. e eu
declaro, na autoridade do nome de Jesus: que dentro
de pouco tempo, presidente bolsonaro, e todos que
estão aqui, e povo que tá me assistindo, dentro de
pouco tempo, o brasil vai “usurfruir” um tempo de
prosperidade que nunca aconteceu na nossa história. e
esses profetas do caos vão ficar envergonhados. porque,
19

lógico toda morte é uma tragédia. nós não estamos aqui


fazendo o jogo de números de mortes, mas a verdade
é que há um espírito de pânico e medo colocado
na população por interesses escusos e interesses
políticos. gente morre de tudo que praga, de tudo que
é pandemia. no Brasil morrem 28 mil pessoas por ano
por água contaminada, que coisa incrível, ninguém
fala nada. nem a mídia quer contar. no Brasil morrem
milhares e centenas de milhares de câncer, que podia
ter tratamento se tivéssemos um sistema de saúde que
tratasse dessas pessoas. estamos vendo profetas do caos
e uma imprensa que resolveu ser partido político por
interesses escusos. e eu to aqui declarando e sei que tão
concordando comigo, que o Brasil vai “usurfruir” de um
tempo de benção, de prosperidade, paz dentro de pouco
tempo. isso vai passar. isso não é perpétuo. aquieta-te.”

A Q U I E T A - T E

Queremos a partir de agora demonstrar em que


sentido podemos categorizar tais discursos como
narrativas apocalípticas ou como estratégias teológico-
políticas praticadas poder bolsonarista-evangélico
no Brasil. segundo as performances discursivas
citadas acima, quatro são os traços da apocalíptica
bolsonarista-evangélica:
20

GRIPEZINHA
GRIPEZINHA
GRIPEZINHA
GRIPEZINHA

R RE ES SF FR RI AI AD DI NI NHHO O
R RERESESFSFRFRI RAI AIDADI DNI NIHNHOHOO
R RE ES SF FR RI AI AD DI NI NH HO O 20
RESFRIADINHO
21

1. a negação do real e suas bizarras derivações

Um dos traços elementais do pensamento apocalíptico


do bolsonarismo-evangélico é o negacionismo do Real,
uma forma de crença que delimita a abordagem e a
análitica dos acontecimentos históricos à causalidade
mágica do sujeito negacionista e de seus projetos
particulares de poder, do seu próprio mecanismo
de produção de verdade acoplado à legitimação
transcendental. Em postura negacionista, aquilo que se
quer e se crê conforma todas as explicações possíveis
do real, mesmo que o real esteja, por meio da morte,
inclusive, colocando suas crenças contra a parede,
levando-as à tensão epistemológica. Trata-se de uma
suspensão teológica do ético, do histórico e do científico,
suspensão radical de toda a forma de juízo crítico sobre
os fenômenos. O fator econômico só subsiste à esta
estrutura mítica porque se une a ela justamente em
favor do único empreendimento mítico que importa,
o capitalismo como religião, o deus-dinheiro.

Além disso, o pensamento negacionista do


bolsonarismo-evangélico é a sugestão de que podemos
construir poder político, políticas de Estado, decisões
público-administrativas, a partir deste tipo de
verdade de fundo mítico e de temporalidade circular-
mágica. Ou seja, para estes religiosos-políticos, os
acontecimentos no mundo da experiência são, na
verdade, causados pelo mundo mítico. Não há, segundo
tal enquadramento, relações de causa e efeito que se
22

expliquem por questões epidemiológicas, virológicas e


medicinais. Tudo é causado pelo/no mundo mítico e a
realidade é um mero efeito dele. E o poder de falar e
de decidir do negacionista, claro, também é um efeito
deste mundo mítico. Ele inclusive se percebe como um
“instrumento de Deus”, um “escolhido por Deus”, como
um “líder messiânico” que “dá sua vida para o resgate
da nação”.

Por isso tratamos esse fenômeno bolsonarista-


evangélico como negacionismo do Real e não como
negacionismo do científico. São coisas diferentes.
Quando falamos de real aqui, queremos demarcar
a realidade da imanência, do desejo, do corpo, da
precariedade da vida e inexorabilidade da morte. E,
23

pensar que, como a COVID-19 atua neste plano de


imanência, diminuindo ou destruindo as potências
de vida das pessoas, suas energias vitais e suas
melhores capacidades [imunológicas] de recuperação
e reprodução, a mitologia bolsonarista-evangélica
só poderia negá-lo, mesmo. Não estamos dizendo
que “todo” [não existe todo] pensamento religioso
é fundamentalmente negacionista. Nem queremos
recompor a moderna, cansativa e superficial antítese fé e
ciência. Apenas afirmar que o pensamento bolsonarista-
evangélico é negacionista neste sentido, em relação
ao real. Esta operação é um traço histórico da sua
constituição: negação do real, da imanência, do desejo
e do corpo. os discursos evangélicos brasileiros estão
habituados a buscar explicações transcendentais para
problemas que ocorrem na imanência radical do corpo.
Impor poder mítico, manejado pelos poderes políticos
da religião, como verdade normativa sobre o corpo,
sobre viver e morrer. Por isso, nunca se envergonha
de culpá-lo, penitenciá-lo, vigiá-lo, sacrificá-lo. Há
linguagens religiosas capazes de fazer reflexão mítica
do desejo e do corpo, por mais paradoxal que isto possa
parecer. mas, não é o caso do bolsonarismo-evangélico.
24

A negação que bolsonarismo-evangélico faz da ciência é


um negação cínica, interessada, ocasional, específica ou
limitada, não um exemplo paradigmático e universal de
negação da ciência por meio da fé.

dEUs acima de todos


25

O problema da ciência aqui neste contexto é que ela


põe em questão um tipo específico de pensamento
religioso que pretende impor uma verdade contra
a instabilidade, a incerteza e a insegurança da vida.
e, ainda mais especificamente, a ciência aqui, no
bolsonarismo-evangélico, representa um fantasma a
relativizar uma certa onipotência deste tipo de crença
fundamentalista. No negacionismo bolsonarista-
evangélico, não há nada no real, fora do believer, fora
do espectro das suas imaginações e poderes, que seja
realmente real ou potencialmente verdadeiro. A partir
deste tipo de negação específica é que estes sujeitos do
surreal produzem aquilo que a Eliane Brum chamou de
auto-verdade. É uma crença radical na onipotência do
crente, no poder da sua palavra, no sua autodeclarada
messianidade e na validação popular do seu mundo
mítico.

Tratar tal operação como negação da ciência ou da razão


não atende as tensões desta contemporaneidade. Há
método e poder na loucura em questão. A guerra política
e o debate escandaloso em torno da hidroxicloroquina,
por exemplo, aparentemente irracional, demonstram
que, quando o projeto de poder demanda o uso
estratégico de discursos técnico-científicos ele não
poupa esforços em fazê-lo. Obsessivamente. Ou seja,
o científico também fica sob as disputas ideológicas da
milícia governamental. O científico passa a obedecer
uma lógica de produção da verdade como verdade do
indivíduo e suas redes de poder. desta forma, precisamos
admitir, no escopo catastrófico deste apocalipse, que
26

não estamos na moderna tensão religião e ciência, mas


muito mais próximos daquela crítica apresentada por
Bruno Latour a respeito da construção social das ciências
e da realidade. Para Latour, os fatos permanecem
robustos somente quando são sustentados por uma
cultura comum, por instituições confiáveis, por uma
vida pública mais ou menos decorosa, por uma mídia
mais ou menos fidedigna.

De forma extremamente violenta, o bolsonarismo faz


seus próprios fatos. E hoje tem poder para sustentar
suas próprias verdades, ao menos em redes sociais, a
partir do gabinete do ódio. Ele sabe e opera como se
não existisse a possibilidade de ciência fora das relações
de poder que as constrói como verdade.
E as relações de poder que constroem verdades no
bolsonarismo-evangélico são aquelas tecidas pelos
mecanismos teológico-políticos deste campo em
questão. Ciência, para seguir com as categoria de
Latour, é um tipo de saber-poder, um tipo de produção
de realidade/verdade que conecta elementos humanos e
não-humanos, materiais e imateriais, em redes de poder,
de sentido, de afetos, de mistérios. desta forma, um
saber científico não pode se validar ou se sustentar fora
dessas redes. e a verdade deste nosso apocalipse é que as
redes que dão sustentação ao científico do governo do
Brasil hoje estão sendo tomadas e gerenciadas por este
tipo de pensamento bolsonarista-evangélico.

Não à toa o número significativo de embates entre o


jair [fake]messias bolsonaro, as instituições de pesquisa,
27

a Organização Mundial da Saúde - OMS e a mídia,


que insiste em chamar pela nickname “extrema-
imprensa”. Um presidente da república que está sempre
descredibilizando ou relativizando a importância das
instituições democráticas, científicas e midiáticas.

“para criticar isolamento social, bolsonaro distorce o que


disse o diretor da OMS.” Por outro lado, ele insiste que o
exército brasileiro é capaz de produzir hidroxicloroquina.
isto é, as instituições que “estão do lado dele”, são capazes
de produzir realidade. As outras, são comunistas, marxistas,
de esquerda, inimigas etc.

- quem manda aqui sou deus


28

2. reverter o apocalipse: biopolítica,


necropolítica. isto é: sacrifício?
A operação, entretanto, para ser bem-sucedida em
termos de governamentalidade ampla, não pode parar
na negação da real. Nem mesmo a negação para na
negação. Negar o real é um movimento dentro de um
maquinação epistemológica maior que precisa, ato
contínuo, de forma encadeada, a) produzir inimigos e;
b) levá-los à morte. Aquilo que começa com a negação
do real só pode terminar, como solução mítica, no
sacrifício dos inimigos imaginários.

Ao começar negando o potencial destrutivo da


COVID-19 - especialmente para uma parcela mais
vulnerável da população -, e a complexidade da gestão
dessa crise na saúde, com afirmações do tipo: “é só uma
gripezinha”, “um resfriadinho”, “fantasia”, “histeria”,
“alarmismo”, o negacionista cai num conflito com o
mundo, ainda mais se este mundo estiver às sombras
de um apocalipse, de uma destruição. A partir daí, como
numa guerra entre imaginações míticas, entre deuses,
anjos, demônios e ídolos, o negacionismo precisará
produzir inimigos ficcionais para travar a batalha de
manutenção da autoverdade. Quem começa com “é
só uma gripezinha”, invariavelmente, passará pelo
“infelizmente algumas mortes terão, paciência”, seguirá
para a “é tudo culpa dos governadores, do Rodrigo
Maia, da esquerda e da extrema-imprensa” e concluirá
no cínico “se eles tiveram que morrer, foi pelo bem da
29

nação brasileira. Se sacrificaram pelo nosso futuro,


pela nossa economia. Foram brasileiros que estiveram
disponível para dar a vida deles, com patriotismo, pela
nação brasileira”. Trata-se do esquema epistemológico
e psicopolítico do sacrifício. E, como bem percebeu
Eliane Brum, em artigo de 16.07.2018, intitulado
“Bolsonaro e a autoverdade”, este é mais um dos pontos
de convergência política e epistêmica, convergência
mítica, entre o bolsonarismo e o mundo evangélico
brasileiro. Como se vê:

“ Se este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro,


no Brasil há uma particularidade que parece impactar de forma
decisiva a autoverdade. Essa particularidade é o crescimento das
igrejas evangélicas fundamentalistas e sua narrativa do mundo a
partir de uma leitura propositalmente tosca da Bíblia. a retórica do
bem contra o mal atravessa fenômenos como a “bolsonarização do
país”. (BRUM, 2018)
30

Pensemos, então, em tal esquema sacrificial, que,


aplicado à realidade bolsonarista-evangélica,
chamaremos de biopolítica do sacrifício. A nível
introdutório, devemos pressupor duas coisas: a)
estamos falando de sacrifício segundo perspectiva
disseminada pelo cristianismo hegemônico, aquele que
está, mais uma vez, implicado nas práticas e discursos
governamentais do Estado brasileiro. O Estado
sacrificial, em nossa perspectiva, é uma máquina
biopolítica cristã, eurocêntrica, racista, colonial,
patriarcal e capitalista. b) devemos tomar o sacrifício
como uma inteligência gestionária, como uma prática
governamental, que excede os limites confessionais e
privados das religiões institucionalizadas. pensamos
aqui a dimensão biopolítica de tal operação e não
apenas a discursividade teológica restrita ou cativa aos
códigos privados das religiões.

O sacrifício compõe um esquema mítico, uma imagem


mental, uma sobrecodificação dos desejos, uma
psicopolítica e uma necropolítica sempre dissimulada,
que modela e condiciona as experiências subjetivas
e institucionais no ocidente cristão. E, não, tal
epistemologia de negação e altericídio em nome de
desejos transcendentais não obedece a obsessão teórica
da modernidade de que a religião e as religiosidades se
comportem “decentemente” nos espaços privados ou
nas intimidades individuais dos crentes. O sacrifício
antecede, excede, sobrevive à modernidade e modela
a vida política ainda hoje. O sacrifício é a imagem do
pensamento do Estado e do biopoder/necropoder. Este
31

Estado torna a agir por produção de representações


metafísicas como estratégia de governo da imanência.
Passa, então, a repetir IMAGENS TRANSCENDENTAIS
e a impor (traumática, catafática e dogmaticamente)
tais práticas sociais e políticas conformadas às imagens
soberanas da violência pura. Enfiar, mesmo, deus e o
sacrifício - como representações e estruturas Universais
e Inevitáveis - goela abaixo da população. Dizem: “É,
é assim mesmo. Foi Deus quem quis assim!”. Trata-
se um processo de subjetivação do Inconsciente feito
pelo manejo estratégico que o poder faz das imagens
teológicas do pensamento a respeito da violência. A
respeito do governo pela imagem, nos dirá João Galvão:

Em que consiste a arte de governar? Dominar o


mundo das imagens - espécie de governo dos homens
que utiliza-se de dispositivos teológico-políticos [o
dispositivo vem com o cristianismo e seu universo
simbólico imaginário] na administração das massas
e das almas. Gouverneur, monarca, imperador, rei,
príncipe, soberano, líder, senhor, pai - estão na esfera
do simbólico-imaginário, produzindo efeitos reais na
prática do político e suas relações de força. (GALVÃO,
2012, p.18)

Segundo Deleuze & Guattari, “não há Estado que não


tenha necessidade de uma imagem do pensamento que
lhe servirá de axiomática ou de máquina abstrata [...]. E
é bem isso, com efeito, o que ela propõe: sobrecodificar
agenciamentos para submeter os desejos a cadeias
significantes, os enunciados a instâncias subjetivas,
32

que acordam com exigências de uma outra Ordem


estabelecida” [...]. A imagem do sacrifício produz o
desejo de morte. Nesta perspectiva, consideramos
que é justamente esta operação de captura que faz
do Estado uma instituição teológica. No sentido
de que, para nós, teologia é justamente isso: uma
operação epistemológica e política no interior do qual
determinadas imagens transcendentais são produzidas
e gerenciadas de modo a governar desejos, condutas,
modos de relação social e sistemas. É desta forma
que pensamos a partir de uma função estratégica do
sacrifício, da imagem como política de gestão, controle,
purificação, justificação, legitimação e dissimulação da
violência do biopoder/necropoder. O sacrifício opera,
simultaneamente, gestão social e gestão da economia
libidinal da violência. tecnologia de subjetivação
e técnica do poder. Micropolítica e macropolítica.
Governo religioso da vida/morte.

Tudo começa com um horizonte de crise e desagregação


geral da política dos afetos e do corpo da sociedade.
Para trabalhar com nossa linguagem central, o
sacrifício emerge como gestão biopolítica possível e até
desejável a determinados sistemas sociais em face de
um horizonte apocalíptico, catastrófico. É no limiar do
fim do mundo que costumam aparecer as estratégias
sacrificiais e os sacerdotes da destruição e da morte. Os
espectros do medo, da generalização da crise, da perda
de uma ordem fictícia e do caos social suscitam tais
operações, convocam a biopolítica do sacrifício. neste
momento, o discurso sacrificial é proposto como um
33

caminho de solução para a restauração de uma ordem


imaginada.

Em nosso apocalipse bolsonarista-evangélico,


esta lógica de desagregação e de produção do caos
funcionou da seguinte maneira: ainda nos primeiros
dias da pandemia, depois de uma viagem ao Estados
Unidos, na qual 22 pessoas da comitiva presidencial
testaram positivo para COVID-19, entre elas, o General
Augusto Heleno - ministro chefe do gabinete de
segurança institucional, Fabio Wajngarten - secretário
de comunicação da presidência - e Bento Albuquerque -
ministro de minas e energia, depois de muito tempo de
negação, bolsonaro abriu um ciclo de pronunciamentos
extremamente violentos e irresponsáveis. Em 23
de março de 2020, bolsonaro iniciou uma série de
discursos de produção do caos lançando a população
no falso dilema entre o isolamento/distanciamento
social e a manutenção dos empregos. Passou a ameaçar
o futuro da população relacionando a atual experiência
de cuidados políticos com a aceleração da pandemia do
COVID-19 com um futuro (provável, porém ficcional)
de miséria e desemprego. Isto mesmo: miséria e
desemprego. Foi com estas noções catastróficas que o
presidente da república trabalhou para remobilizar a
população para fora das políticas de isolamento social,
de volta ao que ele chama de “normalidade”. Sem
considerar, é claro, que esta chamada “normalidade”
já é realmente catastrófica para milhares de pessoas no
Brasil, com as quais ele nunca se preocupou realmente.
Certamente não se trata disso agora. talvez de um
34

populismo rasteiro, com certeza uma defesa de si


mesmo diante de uma economia que pode se dissolver
ainda mais.

Neste mesmo dia, ainda em pronunciamento


oficial, bolsonaro chegou a afirmar que havia um
problema maior que o coronavírus a ser enfrentado
pela população: “a vida em primeiro lugar mas, sem
emprego, a sociedade enfrentará um problema tão
grave quanto a doença: a miséria”. A vida em primeiro
lugar, mas… é neste “mas” que devemos nos deter
por um tempo. É nele que jair “entrega” as raízes
envenenadas de sua ética. É o mesmo que dizer: a
vida em primeiro lugar, só que não. “mas”: conjunção
adversativa. Expressa oposição, contrariedade. jair
[fake]messias bolsonaro presidente adversativo.
Opositor da vida e da saúde pública. Apaixonado pela
tortura, pelo desaparecimento, pela ditadura militar,
pela ocultação de cadáver, pelo sacrifício ao deus-
dinheiro. Destacamos aqui, portanto, sua necessidade
de criar este horizonte de desagregação social, de
crise, de instabilidade, de destruição de futuros, sem o
qual os demais momentos do esquema sacrificial não
poderiam funcionar. Acrescenta-se que este leitmotiv
que inaugura a episteme da violência sacrificial passou
a constar na maioria dos discursos do presidente sobre
o coronavírus, diga-se, novamente, como forma de
ameaçar as pessoas para voltarem à “normalidade do
trabalho”.
35

Em 25.03.2020, jair afirmou que “se economia colapsa,


vamos ficar com o caos e o vírus”. o presidente ressaltou
que “as empresas não produzindo, não tem como pagar
seu pessoal” e que “há risco de saques a supermercados”.
Ainda no dia 25, em conversa com jornalista, na porta do
Palácio da Alvorada, o presidente propôs: “o que precisa
ser feito? Botar esse povo para trabalhar. Preservar os
idosos. Aqueles que têm problema de saúde. Mais nada
além disso. Caso contrário, o que aconteceu no Chile,
vai ser fichinha perto do que pode acontecer no Brasil.
Todos nós pagamos um preço que levará anos para ser
pago. Se é que o Brasil não possa sair da normalidade
democrática, que vocês tanto defendem. Ninguém
sabe o que pode acontecer no Brasil”. Ademais, em
05.04.2020, em conversa com o amigo e ex-deputado
Alberto Fraga, bolsonaro afirmou que “o caos social que
vai vir, vai matar muito mais do que o corona”.

De volta às teorias do sacrifício, ato contínuo aos


discursos de desagregação, o episteme sacrificial
precisa apontar culpados pela ameaça que ronda,
designar aquelas forças que estariam produzindo o
caos para destruir tal sistema e seus projetos de poder.
Aqui estamos diante do mecanismo de produção de
inimizades e de possíveis alteridades monstruosas que
deverão ser marcadas com o índice da matabilidade. A
alteridade do outro e do mundo, não reconhecida como
singularidade possível ou como diferença desejável,
é responsabilizada, criminalizada, culpabilizada e
demonizada pela desagregação ou pela instabilidade
que afeta a comunidade. Depois disso, surgem os bode-
36

expiatórios, os homini sacers, os corpos matáveis,


as vidas sacrificáveis. são vítimas substitutivas que
precisam ser mortas no lugar do sistema de poder.
Nesta altura vale ressaltar os diversos discursos
bolsonaristas sustentados nesta lógica da produção
de inimigos ficcionais. Este também é um modo de
operação típico do bolsonarismo-evangélico. Desde
a campanha eleitoral, bolsonaro, o bolsonarismo
e o campo religioso evangélico transformaram
a política brasileira num cenário mitológico de
marcação, nomeação e perseguição de inimigos.
“Perseguição e morte aos comunistas, aos petralhas,
aos esquerdopatas, aos gayzistas, a grande mídia, aos
corruptos, aos venezuelanos, aos cubanos etc”. Não
poderia ser diferente num momento de crise como o
que estamos vivendo. Aliás, na crise este é um método
ainda mais efetivo e eficiente. Afinal de contas, em face
de um inimigo, toda guerra é legítima e toda a situação
de exceção e excesso estão justificadas. o inferno são os
outros - e o demoníaco também.
Há um evento paradigmático desta operação político-
discursiva em tempos de COVID-19: em 16.04.2020, dia
da demissão do ex-ministro da saúde Luiz Henrique
Mandetta [sim, o presidente da república demitiu,
por vingança e inveja de uma suposta popularidade,
um ministro da saúde em meio à pandemia global do
COVID-19], em entrevista à CNN Brasil, o presidente
jair [fake]messias bolsonaro, acusou o presidente da
Câmara, o deputado Rodrigo Maia, de “conspirar”
para tirá-lo do Palácio do Planalto e qualificou como
37

péssima a atuação do deputado em face à crise. Em


suas palavras: “Qual o objetivo do senhor Rodrigo
Maia? Resolver o problema ou atacar o presidente da
República? O sentimento que eu tenho é que ele não
quer amenizar os problemas. Ele quer atacar o governo
federal, enfiar a faca”. Nesta mesma entrevista, jair
atacou e acusou, também, “governadores dos Estados”
e a “extrema-imprensa” de trabalharem para, como ele
disse, o “tirar do governo”. Acusou Rodrigo Maia de
“falta de patriotismo” e de falta de um “coração verde-
amarelo”. Expressões como “conspiração”, “sequestro”,
“confisco” e “ataques” foram recorrentes neste discurso
de bolsonaro. Ele estaria tentando “salvar o Brasil
do caos” enquanto seus inimigos estariam gerando
um “alarmismo” que “transformaria o Brasil numa
Venezuela”.

Aqui, estão conjugados tanto o imaginário de projeção


do caos quanto os espectros da inimizade. no dia
seguinte, A Folha de S. Paulo publicou uma matéria
segundo a qual, ainda de uma perspectiva persecutória
e paranóica, bolsonaro teria dito a parlamentares
que recebeu um suposto dossiê com informações
de inteligência de que Rodrigo Maia, o governador
João Doria e um setor do STF estão tramando um
plano para dar um golpe e tirá-lo do governo. Óbvio,
ele não apresentou qualquer prova do suposto plano
arquitetado. Na verdade, não importam provas,
evidências, uma vez que ele está operando sua própria
lógica religiosa de produção de verdade, como já
dissemos, diante de uma base devota que, por lidar com
38

um mito, não demanda que absolutamente nenhum


dos fatos sejam “real” para considerá-los verdadeiros.
Vale reforçar, como já dissemos, que este é um dos
métodos tradicionais do bolsonarismo-evangélico.
como se sabe, esta não foi a primeira vez que jair falou
sobre supostos planos para destruí-lo. Em março deste
ano, disse que a eleição de 2018 foi fraudada e que
tinha provas, mas nunca as apresentou. No mesmo
mês, anunciou ter alguma informação privilegiada a
respeito do coronavírus, dizendo que a população logo
saberia que estava sendo enganada por governadores
e prefeitos, e, novamente, nunca apresentou qualquer
tipo de fundamentação.

Desde a facada em Juiz de Fora, o [fake]messias


bolsonaro elevou o tom paranóico do seu discurso.
Afinal, tudo que um messias-mito precisa é de uma
cena de guerra cósmica, onde é ferido de morte e
depois ressuscita, salvo pela divindade, para alimentar
em seus adoradores o sentimento religioso de que tudo
não passa de uma batalha espiritual. E, se há batalha,
há inimigos a serem derrotados. E, necessariamente,
bodes-expiatórios, vítimas substitutivas, corpos
matáveis, que garantam um sacrifício necessário à
divindade como elemento central de superação daquela
adversidade espiritual.

Substituição e dissimulação são mecanismos


importantes para garantir a eficácia da biopolítica do
sacrifício. A vítima substitutiva é fabricada pelo discurso
político e esta operação precisa ser bem executada
39

para que a violência do sistema sacrificante seja


dissimulada, ou seja, apareça como não-violência ou
como violência legítima/pura, violência mantenedora
ou redentora da ordem ficcionada pela imaginação do
poder. Se o sacrifício exige uma vítima substitutiva, um
bode expiatório, um grupo, uma ideologia, um partido,
um órgão de imprensa, uma pessoa de visibilidade
ou uma população altamente vulnerável que seja
violentada/sacrificada para gerenciamento da violência
apocalíptica que ronda a comunidade e para garantir
o retorno de uma ordem, nos questionamos: como se
elegem os matáveis? Quais são os critérios políticos
para a seleção de vítimas expiatórias sobre as quais
serão lançadas as violências do sistema sacrificial?

O início do processo de produção de inimizades é


razoavelmente difuso. Os inimigos ficcionais são todos
aqueles que compõem o ambiente da guerra cósmica/
apocalíptica. No entanto, nem todos os inimigos
ficcionais se convertem em sacrifícios concretos, em
mortes substitutivas. Há entre os inimigos, tanto
o general do exército espiritual oponente quanto
o soldado da linha de frente, que morrerá ao fio da
primeira espada. Como são posições sociais e de poder
distintas, são também níveis distintos de exposição à
morte sacrificial. Sendo assim, nota-se um sutil, porém
decisivo, movimento de diferenciação entre a produção
da inimizade e a eleição de um corpo sacrificável.
40 40
41

No processo de diferenciação destas duas posições, é


como se a comunidade sacrificial estivesse fazendo um
scanning no mundo social à procura de algum corpo
no qual a acusação realmente cole. Somente daí pode
surgir o corpo matável do bode-inimigo. Essa colagem
da acusação segue critérios sociais específicos no
interior de cada comunidade, porém, deve-se observar
que todos estes critérios estão subordinados às relações
de poder entre as comunidades em guerra.

É somente nesta linha de raciocínio, de diferenciação


prática dos processos, que conseguimos captar os
critérios macropolíticos e micropolíticos a partir dos
quais o bolsonarismo-evangélico decide e encaminha
alguns para morte, enquanto mantém outros inimigos
vivos na posição abstrata de oponente virtual (ex.:
Rodrigo Maia, João Dória, Wilson Witzel, Flávio
Dino, Rede Globo, STF), que serve para fazer a gestão
discursiva e a gestão subjetiva da massa de crentes.

Nesta altura, portanto, precisamos perguntar: quais são


os critérios, mesmo, para a diferenciação vida/morte
neste apocalipse bolsonarista-evangélico? Quando se
fala em “voltar à normalidade”, quem o bolsonarismo
está expondo à morte real? Quando se fala em “voltar
ao trabalho”, quem ficará mais vulnerável com o
relaxamento do isolamento social? Quando se diz que
“nossa vida tem que continuar”, deve-se questionar
quais vidas deverão morrer para que certas vidas
continuem? Quando o presidente da república diz ter
“certeza que a grande maioria” quer voltar a trabalhar,
42

a qual grande maioria ele faz referência? Quando jair


[fake]messias bolsonaro pergunta, na frente de umas
centenas de manifestantes anti-democráticos, se eles
“estão dispostos a sacrificarem suas vidas pelo Brasil”,
quais formas-de-vida ele realmente está convocando ao
auto-sacrifício ou à auto-imolação?

O que vemos aqui, neste tipo de provocação


irresponsável ao “retorno à normalidade”, um apelo
que claramente expõe pessoas pobres ao risco de morte
neste tempo de pandemia, diz respeito, mais uma vez,
às operações sacrificiais do capitalismo como religião.
Quer dizer: no contexto dos processos de “destruição
criativa” do trabalho por meio do capitalismo neoliberal
- aquilo que a teórica Wendy Brown denominou de
uma mera-vida sob as “ruínas do neoliberalismo” - ou
seja, dos processos globais de destruição de diversas
ocupações e serviços; desmonte das seguridades
sociais; trabalhadores desescolarizados em pleno
momentum de capitalismo imaterial e cognitivo;
automatização dos postos de trabalho; aumento
da informalidade e da precarização; diminuição
da renda das famílias mais pobres; desemprego
altíssimo; precarização dos programas sociais que
suportariam a sobrevivência das populações mais
vulneráveis; o baixíssimo investimento público em
setores que poderiam empregar mão-de-obra menos
especializadas; trabalhadores perdendo potencial de
sobrevivência e negociação; criminalização da pobreza
e militarização do cotidiano; e a modelagem das
democracias neoliberais segundo racismo estrutural
43

procedente das experiências coloniais modernas; e


da psicopolítica neoliberal que transforma sujeitos e
subjetividades em programas de empreendedorismo
de si mesmo, num fusão radical corpo-máquina-
subjetividades; processos estes que tendem a afetar
mais gravemente as populações empobrecidas das
grandes metrópoles [mulheres, negros, lgbtqi+,
idosos, periféricos, favelados, refugiados e migrantes
em busca de melhores oportunidades de trabalho
na cidade, crianças etc], quando o Estado deveria
assumir responsabilidades pelos direitos sociais destes,
o believer bolsonarista-evangélico, ocultando todas
as dimensões de complexidade de conflitividade do
capitalismo global, lança todas as responsabilidades de
“salvar a economia” sobre os ombros dos trabalhadores
mais vulneráveis. A pergunta teológica é: “sobre as suas
feridas seremos sarados?”

Indivíduos responsabilizados são obrigados a sustentar


a si mesmos, num contexto em que poderes e
contingências limitam radicalmente sua habilidade
de fazê-lo. Mas eles também são culpabilizados
pelas desgraças do todo, e, mais importante, mesmo
quando se comportam adequadamente considera-
se legítimo sacrificá -los pela sobrevivência do todo.
Uma tal formulação da imputabilidade cidadã assinala
mais do que o desmantelamento da lógica do Estado
de bem-estar ou mesmo do contrato social liberal;
na verdade, expressa precisamente sua inversão. No
lugar da promessa do contrato social, de que o corpo
político protegeria o indivíduo contra os perigos
44

externos e internos que ameaçam sua vida, indivíduos


agora podem ser legitimamente sacrificados pelo
todo, esse “todo” podendo significar qualquer coisa,
a sustentabilidade tanto de uma empresa particular,
quanto de uma economia nacional ou pós-nacional.
(BROWN, 2016, p.41)

Com jair [fake]messias bolsonaro, o culto capitalista


e sacrificialista não pode parar: sem trégua, sem
misericórdia, sem expiação, como nos disse o
jovem benjamim. Rito culpabilizante, depressivo,
necropolítico. Liturgia ininterrupta do cansaço e da
redução biopolítica da vida à sobrevivência impotente.
O presidente garante que ‘’o Brasil tem que trabalhar’’,
a despeito do avanço da doença. ‘’vão quebrar o Brasil
por conta do vírus?’’, questiona o crente. Reduzindo
toda solução à falência do neoliberalismo global à
iniciativa individual de trabalhadores precarizados,
que alternativas a governamentalidade bolsonarista
deixa às pessoas? No discurso, nenhuma. É como se
não tivéssemos saídas. Ou melhor, é como se só tivesses
alternativas infernais. Ou trabalhamos e, depois,
morremos, ou morremos. O menos pior da catástrofe
sendo oferecido como solução da catástrofe. é deste
tipo de operação político-linguística do capitalismo
neoliberal que a filósofa da ciência Isabelle Stengers
trata a partir da noção de alternativa infernal.

Por alternativas infernais, Stengers entende o “conjunto


de situações formuladas e agenciadas de modo que
elas não deixam outra escolha senão a resignação”,
45

pois toda alternativa se encontraria imediatamente


taxada, bloqueada. Há nesta oferta governamental de
alternativa infernal um componente persecutório, como
dizíamos acima. dizem os infernizadores: “não creiam
em alternativas. ou trabalhamos ou morremos”. Ou,
para evitar que sonhemos algo fora desta programação
oficial, “alguns afirmam que nós poderíamos fazer isso,
mas olhem o que eles estão escondendo de vocês, olhem
o que aconteceria se vocês os seguissem.”

O que se afirma com toda alternativa infernal é a morte


da escolha política, do direito de pensar coletivamente
o futuro, a aniquilação do potencial imaginativo das
comunidades humanas. Esse tipo de procedimento
tem relação direta com o que estamos trabalhando
neste texto no tocante às linguagens apocalípticas.
Como vimos, as apocalípticas são, antes de tudo,
formas de imaginação, pensamentos de resistência
e contestação de determinadas temporalidades,
construção narrativa, especulativa, experimental de
realidades futuras que retroagem sobre o presente
e sobre o real transformando-o segundo capacidade
criativa de visionários. São inversões míticas de
resistência e subversão de certas discursos teológico-
políticos de ordenação do real. Se, por uma lado, os
poderes majoritários do mundo estabelecem suas
apocalípticas e imagens catastróficas como formas
de bloquear divergências e indisciplinas político-
religiosas, por outro, reclamando sobre si mesmos a
potencialidade de criação de narrativas alternativas,
visionários, profetizas, apóstolos e místicas resistentes
46

ao poder, também produzem suas apocalípticas como


linhas de fuga, como máquinas de guerra, como
estratégias de imaginação/produção de outras formas
de vida. Assim, com Stengers, podemos dizer que para
toda alternativa infernal há uma apocalíptica infernal,
infernizadora, sacrificial. Em outras palavras, um modo
de minar a imaginação escatológica, de impedir o
surgimento de alternativas de vida num contexto de
morte e de sacrifício. Assim como para toda alternativa
libertadora há uma apocalíptica redentora. É a esta
apocalíptica redentora que a alternativa infernal
pretende interditar. Esta é guerra cosmológica do fim
do mundo, uma guerra de apocalípticas, que é também
uma guerra de alternativas. Há mundos por vir? Há
(ainda) possibilidades de se imaginar mundos por vir?
Eis a questão teológico-política fundamental da nossa
época.

Parafraseando Stengers, eles dirão: aqueles que criticam


a flexibilização do isolamento social, não dizem que as
consequências destas medidas os levarão ao caos social,
ao aumento da violência, ao salve-geral ou à miséria.
temos que trabalhar para salvar a economia, tá ok?
Se vocês querem que o país não vá a falência, devem
deixar a quarentena agora mesmo. ademais, o povo
quer trabalhar. E para que a nação brasileira vença a
crise econômica, com patriotismo e coração verde-
amarelo, e a “cuestão vírus”, que nem é tão grave assim,
é preciso “aceitar os sacrifícios exigidos” pelo mundo
do trabalho.
47

Este operador retórico, esse “não podemos mais”


tem precisamente a vocação de calar aqueles que
dizem: “mas o que vocês estão fazendo?”. Segundo os
negacionistas, nós devemos confiar, porque, afinal,
não temos outra escolha. é dar o salto da fé. Valei-
nos Kierkegaard! O [fake]messias bolsonaro pede
exatamente isso, que a gente confie magicamente nele.
Quer que esqueçamos que ele mesmo já nos mandou
para a morte várias outras vezes. e, porque será que as
pessoas acreditariam nele? Porque ele é o Mito, oras!
No Mito, você crê mesmo que isso signifique trabalhar
pela própria morte. Isto é, por fé. bolsonaro pede fé em
sua magia sacrificial. A mesma fé que existe para que o
sujeito se entregue à morte em nome de uma imagem
transcendental; fé dos demônios, idolatria. Curioso e
oportuno que, para Stengers, o enunciador deste tipo
de discurso cumpre o mesmo papel de um “pastor
moralizador e pedagógico” no interior da vida social
ou de um “feiticeiro do capitalismo”. jair: um pastor
evangélico do capitalismo como religião.

Tal operação discursiva do capitalismo como religião


faz parte da estratégia sacrificial enquanto um ataque
de feitiçaria capitalista, outro conceito elaborado por
Stengers em parceria com Philippe Pignarre. Nesta
ousada reflexão, pensam o capitalismo neoliberal,
ou sua governamentalidade biopolítica, como um
sistema feiticeiro - que, em suas políticas discursivas
e modos de subjetivação, utiliza magia maligna
como forma de manutenção e sustentação e mesmo
intensificação da empreitada capitalista, mesmo
48

que essa operação sacrifique muitas vidas. Esta


lógica seria mágico-feiticeira, pela sua capacidade de
reinventar discursos frágeis, capengas, mentirosos,
devolvendo-lhes capacidade de mobilização - ainda
que seja a mobilização de um vazio ou de um falso.
Para Stengers, as práticas feiticeiras “capturam,
distorcem, criam armadilhas”. Nos torna humanos
cada vez mais submissos às palavras enfeitiçadas.
Um exemplo seriam os discursos motivacionais do
mundo do empreendedorismo de si: as palavras da
gestão (a motivação, o engajamento, a meritocracia, o
empreendedorismo social, a criatividade a liberdade
etc.) pertencem a dispositivos que funcionam como
teias de aranha – quanto mais nos debatemos contra,
mais ficamos presos como moscas.

Não há, nesse caso, ilusão ideológica, mas uma terrível


eficácia feiticeira. Segundo a bíblia hebraica, feitiçaria,
pornografia, adultério, magia, tudo que evangélicos
e bolsonaristas recalcam e por isso adoram, são
derivações do mesmo problema-raiz: a idolatria. E, pode
saber, pelo menos segundo tradição judaica, sempre
que há idolatria, há gente morta em nome desse deus-
imagem: aquele que mata a imaginação congelando-a
numa imagem plana, rasa, sem fecundidade, reduzida
à pura função de exposição. Idolatria e sacrifício são
operações siamesas no procedimento teológico-
político de gestão da vida/morte.
49

Com Stengers e Pignarre, devemos sublinhar, contudo,


o seguinte: nós não os convidamos a acreditarem
em deuses, mitos, feiticeiros, sacerdotes, demônios e
ídolos. Não se trata de um problema ontológico, mas
estratégico. Antes, os convidamos a reconhecerem
os ataques idolátricos, sacrificiais, míticos, mágicos.
Ou seja, nossa proposição é para que se olhe para os
efeitos governamentais de tais noções. Não pedimos
conversão religiosa, mas atenção política e teórica.
Atenção a produtividade política das armadilhas
míticas. O ídolo está sempre à espreita. O bote é certo.
Aprenda a se defender.
50

De volta ao nosso terrível fim do mundo particular, no


Brasil, os discursos bolsonaristas só aceleram a morte
de quem já está visado pela necropolítica: aqueles quem
não tem acesso justo a hospitais públicos de qualidade;
aqueles que não tem recurso financeiro para comprar
materiais de saúde e higiene pessoal; aqueles que
precisam trabalhar em ambientes insalubres; aqueles
que se lançam na informalidade e na precarização do
trabalho. Aqueles e aquelas que não são atendidos em
seus direitos à moradia. De acordo com a Sociedade
Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 67%
dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS
(Sistema Único de Saúde) são negros, e estes também
são maioria dos pacientes com diabetes, tuberculose,
hipertensão e doenças renais crônicas no país — todos
considerados agravantes para o desenvolvimento de
quadros mais complicados da Covid-19. Ou seja, como
disse o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, “a Casa
Grande arrumou o quarto dela, a despensa está cheia.
Tem o seu próprio hospital. Lamenta muito o que está
acontecendo —mas quer saber quando o engenho vai
voltar a funcionar.”

Aqui ressaltamos mais uma vez o papel do racismo


estrutural como o maior marcador da necropolítica
na contemporaneidade, na biopolítica sacrificial
do bolsonarismo-evangélico. Aquelas alteridades
monstruosas fundadas na discriminação racial
funcionam como modalidades sacrificiais no escopo
desta pandemia. De acordo com levantamento feito
pelo ministério da saúde, no Brasil as populações negras
51

vêm apresentando maior vulnerabilidade em relação


às complicações com o COVID-19. A desigualdade de
índices sociais, econômicos e de acesso à saúde é o
principal fator que explica as diferenças nas taxas de
letalidade e infecção. Pretos e pardos representam 23,1%
das pessoas internadas por Srag (Síndrome Respiratória
Aguda Grave), mas correspondem a 32,8% dos óbitos
por covid-19.

Para Mbembe, este trabalho sacrificial da raça deve ser


compreendido, na maioria dos casos modernos, no interior
de um encadeamento maior entre capitalismo, violência
soberana e racismo estrutural. um encadeamento sacrificial
– pois faz exercer o direito de matar do Estado contra
vidas negras, destituídas de humanidade pelo discurso
eurocêntrico do humano, em nome da transcendência do
capitalismo como religião da modernidade.

Por fim, a raça é uma das matérias-primas com as quais


fabricamos a diferença e o excedente, isto é, uma espécie
de vida que pode ser desperdiçada ou dispensada sem
reservas. Pouco importa que ela não exista enquanto
tal, e não só devido à extraordinária homogeneidade
genética dos seres humanos. Ela continua a produzir
efeitos de mutilação, porque, originariamente, é
e será sempre aquilo em nome do qual se operam
fissuras na sociedade, se estabelecem relações de tipo
bélico, se regulam as relações coloniais, se distribuem
e se aprisionam pessoas cuja vida e cuja presença são
52

consideradas sintomas de uma condição-limite, e


cujo pertencimento é contestado porque elas provém,
nas classificações vigentes, do excedente. Enquanto
instrumento, a raça é, portanto, aquilo que permite
simultaneamente nomear o excedente, associando-o ao
desperdício e à despesa, sem quaisquer reservas. A raça
é o que autoriza localizar, entre categorias abstratas,
aqueles que tentamos estigmatizar, desqualificar
moralmente e, quiçá, internar ou expulsar. A raça
é o meio pelo qual os reificamos e, baseados nessa
reificação, nos transformamos em senhores, decidindo
desde logo sobre o seu destino, de maneira a que não
sejamos obrigados a dar qualquer justificação. Pode-se,
então, comparar o trabalho da raça a um ritual sacrificial
- aquela espécie de ato pelo qual não se é obrigado a
responder. Esta invocação que permanece letra-morta
- eis precisamente o que, na modernidade, regeu o
princípio racial, instituindo, de imediato, aqueles que
são os seus alvos como figuras perfeitas da exterioridade
radical. (MBEMBE, 2014, p.70 - tradução nossa)

Retornando às análises conceituais do sacrifício,


dizemos: o bode-inimigo não seria inventado da
forma que é: eficiente; e não sofreria o tipo de morte
que sofre: legitimada; se não fosse visado por um
procedimento mítico-religioso que dá significado
e sustentação transcendental a cada gesto violento
no interior do sacrifício. O biopoder/necropoder
bolsonarista-evangélico só pode capturar um corpo
de forma tão violenta e inquestionável ao seu bando
[o bando sacrificial bolsonarista] se envolvido em
53

procedimentos teológico-políticos, na biopolítica do


sacrifício. A apocalíptica contemporânea diz: diante
de um outro que eu não quero e não posso reconhecer
como outro, estão autorizadas quaisquer formas de
violências, uma vez que serão executadas no interior
de um espaço mítofísico. como se nota,

Com Schmitt ontem, tal conosco hoje, o político


deve portanto a sua carga explosiva ao seguinte fato:
como está muito ligado a uma vontade existencial
de projeção da força/violência, abre necessariamente
e por definição essa eventualidade extrema que é o
infinito desenvolvimento de meios puros e sem fim - o
compromisso do assassínio. Apoiado na lei da espada,
é o antagonismo “em nome do qual se pode pedir aos
seres humanos para fazerem o sacrifício das suas vidas
(a morte pelos outros); em nome do qual o Estado pode
“dar a alguns o poder de ferir e de matar outros homens”
(dar a morte), pelo simples fato de pertencerem real
ou presumivelmente ao campo do inimigo. A política
é, deste ponto de vista, uma forma particular de
reagrupamento, com vista a um combate tão decisivo
como profundamente obscuro. Mas não passa de
um assunto de Estado e de morte delegada, uma vez
que nele está em causa não apenas a possibilidade do
sacrifício e da dádiva de si, mas também, e literalmente,
a possibilidade de suicídio. (MBEMBE, 2017, p.83)
54

Uma das principais técnicas e táticas do crente


sacrificial é forçar a situação-limite, forçar o julgamento
e a crucificação com a maior celeridade possível,
ainda que os devidos processos sejam manipulados e
falseados, ele não se importa com isso, porque quer
acelerar a cena da morte, quer ver o sangue daquele
que odeia ou pouco se importa. E, por que? Porque
está é a única forma dele validar sua tese de justiça é
verdade, silenciando e aniquilando o inimigo. Esta é a
única forma dele garantir em suas mãos os dividendos
da morte do outro. Matá-lo logo e depressa é a maneira
dele se livrar, o mais rápido possível do mal que ronda
a sua “terra psíquica”. É um jeito de se livrar do medo,
um jeito de se livrar da incerteza, um jeito de se livrar
da insegurança. adiantar logo o que certamente irá
acontecer. Mas, é depois? Depois, resolvesse com
mitos. Dizendo que aquelas mortes eram necessárias
dentro do escopo maior dos supostos benefícios que só
são vistos pelos olhares daqueles que sacrificaram.

Uma última pergunta sobre a eficiência deste processo


sacrificial deve ser feita. Sim, sobre a eficiência.
Uma eficiência diabólica, infernal, mas eficiente. O
sacrifício funciona enquanto prática governamental?
Sim. mas, como ele pode continuar sendo eficiente
para o poder, mesmo quando o conflito que ele
pretende resolver parece aumentar?
55
O que queremos investigar neste momento é: se a
comunidade política faz a operação sacrificial para
restabelecer ou redimir uma ordem; se assassina de
forma substitutiva para gerenciar e controlar um conflito
de alto potencial desagregador; então, o que fazer
quando o conflito parece escalar exponencialmente ao
invés de ser controlado pela necropolítica do sacrifício?
a resposta, por mais paradoxal que seja é: investir ainda
mais naquilo que parece sem sentido. isto é: continuar
sacrificando.

O universo mítico explica esse aparente paradoxo da


recursividade e da iteratividade sacrificial. Tomemos o
mito do sacrifício de ifgênia e o rito cristão do sacrifício
de Jesus de Nazaré [que se repete como imagem
traumática tanto nos ritos católicos quanto na cruz das
hermenêuticas protestantes]. A situação fundamental
do sacrifício de Ifigênia é a seguinte: Ifigênia é filha de
Agamemnão, rei grego, e de sua esposa Clitemnestra.
Agamemnão é comandante do exército grego, que se
reunira em Áulide para sair para a conquista de Tróia.
Não obstante, produziu-se uma calmaria de tal maneira
que o exército não pode partir. Perguntando aos deuses
pela razão, a deusa Minerva (ou Diana) comunica que
somente o sacrifício de Ifigênia, a filha de Agamemnão,
pode apaziguar sua fúria. O exército exige que se faça
esse sacrifício. Em consequência, Agamemnão traz
Ifigênia a Áulide, enganando Clitemnestra para que
a entregue. Chegado a Áulide, ele sacrifica sua filha, a
primogênita de seus filhos, à deusa Minerva. Realizado
o sacrifício, o vento volta, o exército parte, conquista e
destrói Tróia.
56

A questão é: e se o vento não voltasse? Ou, e se tróia


vencesse a guerra? Por nonsense que pareça: ao invés
de tomar o sacrifício por algo sem sentido, a tendência
de comunidades sacrificiais que tomam a imaginação
mítica como forma de controle de violência social, é
repetir a violência traumática até que ela faça efeito
como forma de justificar a violência original e todas
aquelas que a sucederam até que o momento da
redenção acontecesse. Ou invés de parar a máquina
necropolítica do sacrifício, produz-se mais morte
como forma de purificação e legitimação da violência
fundadora do ciclo sacrificial. Com rigor, ao invés
do bio/necropoder assumir a ineficiência dos seus
métodos de gestão da crise, dissimula-se a violência
com mais violência, até que o poder possa dizer: vejam,
a verdade estava sempre do meu lado. vejam, eu tenho
razão! Que razão? A razão da morte - do sacrifício. Se
tróia vencesse uma das batalhas, eles não teria pudor de
sacrificar ainda mais homens, até vencer a guerra, para
depois dizerem: vejam, as mortes dos nossos irmãos
foram significadas, redimidas e justificadas por esta
vitória.

Para Franz Hinkelammert, a figura do assassinato da


filha/o, seja por meio da imagem de Ifgênia, seja por
meio do sacrifício de Jesus, ainda não desapareceu nas
culturas políticas do ocidente. A figura mítica de Ifgênia
ou alguma espécie de secularização do Cristo medieval,
seguem operando no inconsciente maquínico do poder
violento do Estado à serviço do mercado neoliberal.
torna-se um mito de interpretação do lugar do sacrifício
57

e da violência dissimulada do sacrifício no cerne da


cultura política ocidental. Porém, para Hinkelammert, o
fato é que tentou-se e tenta-se, a todo custo, dissimular
ou ocultar esta violência, recalcá-la, para que ela não
retorne como acusação contra toda cadeia de violentos
que fizeram suas estruturas e suas políticas com base
neste sacrifício fundante ou nesta violência fundadora
da ordem. dissimula-se ou oculta-se sob o risco de que
se perca a diferença entre a violência purificadora e a
violência impura. Aqueles que sacrificam a primeira
vez, não podem parar de fazê-lo sem encarar de frente
a brutalidade e a falta de sentido da própria violência.
Por isso não param de sacrificar: para que todas as
violências outrora cometidas não retornem contra os
autores das violências originais em forma de acusação
de ilegitimidade.

Fazendo referência às palavras de Agamben, não se


pode perder as estratégias que dissimulam a violência
sem o risco de se perder o funcionamento da própria
máquina sacrificial. Em todos os autores citados até
aqui, nota-se a centralidade da dissimulação/ocultação
das violências por meio de motivos sacrificiais. e isso
tem uma utilidade: evitar que a violência original ou
anterior também seja interpretada como violência
ilegítima e, com isso, todo o sistema que foi criado em
cima dela venha a desmoronar. Se a violência não é
dissimulada ou ocultada, toda essa feitiçaria vem à tona
destruindo as lógicas estruturantes do bio/necropoder.
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“sou messias, mas não faço milagre”


“sou messias, mas não faço milagre”

“sou messias, mas não faço milagre”


“sou messias, mas não faço milagre”
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É precisamente isto que queremos ressaltar com as


denúncias sobre a brutal subnotificação dos casos de
coronavírus no Brasil. A subnotificação tornou-se um
modo programático de proceder o sacrifício por outros
meios; um meio dissimulado que, em um só dispositivo,
a subnotificação, salva ao mesmo tempo o poder de ser
rapidamente apontado como irracional e doentio e a
própria comunidade dos fanáticos que não precisarão
ter que lidar com o real da morte do outro, causada pelas
irresponsabilidade e negacionismos deste mesmo bando
sacrificial. Retomando o nosso exemplo mitológico,
a subnotificação é como se Agamemnão estivesse
sacrificando milhares de Ifgênias no porão do navio,
para que, depois que todas as batalhas fossem vencidas,
ele, soberano, torna-se visíveis aqueles cadáveres como
custo-benefício da guerra, mortes necessárias para
que se pudesse superar as lutas da vida. Ou, outro
exemplo, a subnotificação funciona como o cristianismo
ocidental que, sacrifica de forma reprimida, disfarçada e
subnotificada o seu Cristo para, depois de uma suposta
redenção, fazer cálculos de benefícios escatológicos com
mãos sujas do sangue do Cordeiro. Depois, é só lavar
mãos; tal qual Pilatos!

É para isso que serve a subnotificação como um


dispositivo de governo: ocultar cadáveres que o poder
mesmo está sacrificando. O necropoder dissimula que o
número de contagiados e mortos é baixo, logo não há o
que temer, podemos “voltar à normalidade”. Ou, que o
número de mortes ainda não é realmente preocupante.
Assim, pode-se continuar matando, expondo à morte,
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ganhando tempo e margem sacrificial. desta maneira,


você vai ocultando corpos, até que o argumento
sacrificial consiga contagiar uma massa considerável
de crentes que dê ao poder as condições políticas e
narrativas para controlar a população novamente.
Com a subnotificação programada, diria até desejada
pelo governo, ele poderá matar novas pessoas,
enviar novas pessoas à morte, sem que a população
percebe a ineficiência e a irracionalidade da sua
operação fascista, teológico-política. Essa é a questão:
eficiência sacrificial combina com ocultação de corpos
sacrificados, ocultação de indícios que provariam
a violência sacrificial da operação necropolítica do
Estado. Para o bolsonarismo-evangélico, eficiência
combina com subnotificação.

*em memória das 9.146 pessoas


com mortes notificadas; com o
pedido de perdão político às famílias
das milhares de outras pessoas
com mortes subnotificadas; e em
solidariedade às milhares de pessoas

9.146 de nós
que estão sofrendo e em luto por este
estado de coisas que se nos abateram.
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19/02/1998.
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O contagio infernal: o apocalipse bolsonarista-evangélico / Fellipe


dos Anjos; João Luiz Moura. São Paulo: Recriar, 2020. 61 p.

Capa, projeto gráfico e ilustrações: Sarah Furtado

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