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CONSELHO EDITORIAL
CONSELHO CONSULTIVO
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Bruno Félix Segatto
Resumo: O presente trabalho apresenta resultados parciais de um projeto desenvolvido em turmas de 8º ano e 8ª
série do Ensino Fundamental II, no contexto de uma escola pública do município de Pelotas, em 2014. Em linhas
gerais, o projeto teve por objetivo a aplicabilidade da Lei 10.639/03 no ensino de História por intermédio da
Música. Para tanto, dividiu-se as atividades em quatro ciclos, os três primeiros são formados por três etapas e o
último por apenas uma e, em cada um dos ciclos, aborda-se sobre um estilo musical diferente, sendo esses o
Reggae (afro-jamaicano), o Rap (afro-jamaicano) e o Samba (afro-brasileiro) e, no último ciclo, os alunos
produzem um vídeo. Na primeira etapa, são realizadas palestras tendo como foco os estilos musicais, suas
características, o contexto em que se originaram, os traços da cultura africana e afrodescendente nesses estilos
musicais, bem como a presença desses na cultura brasileira. Na segunda etapa, fomenta-se um debate com as
turmas buscando o diálogo relacionado à diversidade cultural e étnico-racial presentes no Brasil, da relação da
juventude com esses estilos musicais, do racismo, da discriminação racial, etc. Na terceira etapa, os alunos
produzem relatórios sobre o que foi discutido (trabalhado) a partir das palestras e dos debates. Por fim, no quarto
ciclo, os alunos – divididos em grupos – produzem uma canção ou uma paródia de uma música já existente de
modo que estejam ligadas aos estilos musicais abordados nas palestras e nos debates, com vistas à difusão de
estratégias para implementação da Lei 10.639/03 de modo curricular.
Palavras-chave: Lei 10.639/03, Ensino de História, Música.
Abstract: Herein, partial results of a project developed in classes of 8th grade of Elementary School, in the
context of a public school in the city of Pelotas in 2014, are showed. In general, the project aims at applicability
of Law 10,639 / 03 in teaching history through music. To do so, we divided the activities into four cycles. The
first three are formed by three steps, and the last by only one, and each cycle is based on a different musical
style, incluiding Reggae (african -jamaican), Rap (african-Jamaican) and Samba (african-Brazilian) and, in the
last cycle, students must produce a video. In the first stage, talks are held focusing on musical styles,
characteristics, context in which it originated, the traces of African culture and African descent in these musical
styles as well as the presence of these in Brazilian culture. In the second stage, a debate is conducted with
groups seeking related to cultural diversity and racial-ethnic dialogue present in Brazil, the relationship of youth
with these musical styles, regarding racism, racial discrimination, etc. In the third stage, students must produce
reports on what was discussed (homework) from the lectures and discussions. Finally, in the fourth cycle, the
students - divided into groups - produced a song or a parody of an existing song so that they are linked to the
musical styles covered in the lectures and discussions, with a view to disseminating strategies for
implementation of the Law 10,639 / 03 curriculum mode.
Keywords: Law 10,639/03, History Class, Music.
1
Universidade Federal do Rio Grande. Contato: gomes.gabrielateixeiragomes@gmail.com
2
Universidade Federal do Rio Grande: Contato: cgbschiavon@yahoo.com.br
3
Universidade Federal do Rio Grande. Contato: juliocesarmadeira@gmail.com
9
Introdução
raciais e sociais, orientadas para a oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir
desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e
discriminatória” (BRASIL, 2006, p. 233).
As teorias racistas perpetuaram-se ao longo de décadas, e embora uma infinidade de
medidas no campo jurídico, social e educacional estão sendo feitas, é preciso compreender
que elas devem ser contínuas, pensadas a curto, médio e longo prazo. A esse propósito, deve-
se considerar também que no campo educacional, muitos movimentos se têm feito, embora
ainda sejam mais presentes em ações isoladas, no sentido de valorizar as diferentes culturas
formadoras da história brasileira. Dessa forma, a busca pela aceitação da diferença e da
diversidade deve basear-se no respeito e na igualdade.
Atualmente, o termo cultura possui inúmeras definições, de acordo com Peter Burke
(2008, p. 43) “o termo cultura costumava se referir às artes e as ciências. Posteriormente, foi
empregado para equivalentes populares- música folclórica, medicina popular e assim por
diante”. Burke (2008, p.43) salienta que na última geração “a palavra passou a se referir a
uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante) e práticas
(conversar, ler e jogar)”. No primeiro quartel do século XX, o antropólogo Bronislaw
Malinowski definiu cultura de uma forma ampla, entendendo-a como “as heranças de
artefatos, bens, processos técnicos, ideias, hábitos adquiridos pelo homem como membro da
sociedade” (BURKE, 2008). Seguindo na linha antropológica, Claude Lévi-Strauss considera
cultura como “um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente humana. O seu
trabalho tem sido o de descobrir na estruturação dos domínios culturais - mito, arte,
parentesco e linguagem- os princípios da mente que geram essas elaborações culturais”
(LARAIA, 2014, p. 61).
Diversos estudos antropológicos do século XIX criaram teorias traçando uma linha
evolutiva das diferentes culturas, outros seguiram linhas de pensamento negando à existência
dessa multiplicidade cultural e defendendo a bandeira na cultura única.
Nessa esteira, podem-se citar as análises de Edward Taylor, que definiu cultura como
“todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e outras aptidões e
hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade” (BURKE, 2008, p. 43). Embora
Taylor tenha definido o termo cultura de forma mais ampla, ele explica em sua obra intitulada
Primitive Culture (1871) que a diversidade cultural deriva da existência de desigualdades nos
A sua sanção é um avanço na educação, pois a Lei traz como foco a História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira dentro das escolas de educação básica e, posteriormente, estende-
se ao Ensino Superior pelo Parecer CNE/CP 3/2004, que também institui as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico Raciais. Assim, a Lei Federal
apresenta-se como um dos instrumentos capazes de colaborar com o fim do racismo e da
marginalização da cultura das populações negras, reforçada com a ideologia do
branqueamento e com o mito da democracia racial.
Para estarem em consonância com os postulados da Lei 10.639/03, as escolas devem
dirigir suas ações, observando a multiplicidade de culturas presentes em seus contextos,
contemplando e valorizando todas elas, a fim de propiciar a construção de um espaço
democrático e igualitário, de forma que alunos negros, indígenas, brancos e de outras etnias
consigam enxergar-se dentro desses lugares, vendo a inserção de sua história e a de seus
antepassados inserida no cotidiano escolar. Juntamente a isso e com a finalidade que sejam
rompidas as concepções alicerçadas em teorias racistas e discriminatórias, a escola deve
promover contínuas ações que possibilitem uma educação para as relações étnico-raciais.
Pensar que o racismo, a discriminação racial, o preconceito, a diversidade étnico-racial,
sexual e cultural não são temáticas a serem pensadas e repensadas dentro do cotidiano escolar,
gera situações de exclusão e marginalização de muitos alunos e alunas com os quais se
convive diariamente: “quanto mais fingir-se que o trato pedagógico e ético da diversidade não
é uma tarefa da escola e dos educadores, mais conflituosas e delicadas se tornarão as relações
entre o “eu” e o “outro” no interior das escolas e no dia a dia das salas de aula” (GOMES,
2006, p. 29).
Estudos como o de Luiz Carlos Paixão (2006) sinalizam a existência de uma forte
resistência do professorado, de gestores, coordenadores e instituições educacionais à
aplicabilidade da Lei dentro do espaço escolar. Assim, os entraves vão desde o desinteresse de
educadores pela temática, a falta de recursos e formações continuadas que os capacitam para o
trato com a diversidade étnico-racial, a adequação de currículos e planos políticos
pedagógicos que estejam em consonância com os postulados da Lei 10.639/03, até as
justificativas de que a lei é arbitrária sendo desrespeitosa com a autonomia das escolas e dos
docentes.
Quanto à questão curricular percebe-se que, inúmeras vezes, negros, indígenas,
mulheres, homossexuais etc., são excluídos dos currículos escolares, levando à construção de
representações e visões deturpadas e preconceituosas que perpassam no imaginário do
professorado e do alunado. Nessa perspectiva, a compreensão de que o Brasil é um país
pluriétnico e multicultural e de que as construções dos currículos e dos planos políticos
pedagógicos das escolas devem ter entre seus pilares essas concepções, são os primeiros
passos para a construção de uma escola aberta e respeitosa à diversidade, livre do racismo e
que seja capaz de implementar de forma definitiva a Lei 10.639/03.
A inserção da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículos escolares é
uma discussão que ainda tem muitos caminhos a seguir, mas sabe-se que “essa lacuna está
sendo revista paulatinamente [...] e deverá ser eliminada por causa do papel histórico que os
africanos trazidos para o Brasil desempenharam na construção da sociedade brasileira”
(BRASIL, 2008, p. 89).
No ambiente escolar onde se desenvolveu o Projeto “Música Afro na Escola”, o
currículo da disciplina de História está de acordo com os postulados da Lei 10639/03, embora
a inserção de conteúdos e temáticas relacionados à História e Cultura dos africanos e
afrodescendentes, estando os afro-brasileiros incluídos, foi um processo dificultoso, haja vista
que existem outros professores que ministram o componente curricular de História nessa
instituição e convencê-los da importância de romper com o silenciamento do currículo diante
da marginalização de diferentes grupos étnicos (entre estes os negros e os indígenas) foi um
dos entraves encontrados.
Com o intuito de implementar a Lei 10.639/03, buscou-se estruturar um Projeto capaz
de integrar o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, a música e as vivências
(trabalhado) a partir das palestras e dos debates. Por fim, no quarto ciclo, os alunos –
divididos em grupos – produzem uma canção ou uma paródia de uma música já existente de
modo que estejam ligadas aos estilos musicais abordados nas palestras e nos debates, com
vistas à difusão de estratégias para implementação da Lei 10.639/03 de modo curricular.
O primeiro ciclo de palestras teve como temática o estilo musical Reggae. Os
relatórios produzidos pelos alunos demonstraram que uma parcela considerável desconhecia a
origem do Reggae e suas características. Dos 90 relatos analisados, apenas 12 (13,33%)
faziam referência a conhecimentos prévios de aspectos relacionados ao estilo musical. Quanto
ao eixo norteador dos relatórios que tratava da opinião dos alunos quanto ao projeto, 86
utilizaram termos como: diferente, interessante, legal, ótimo e bom para definir sua concepção
sobre o projeto. Pode-se observar essa informação a partir dos trechos abaixo retirados dos
relatórios.45
Eu acho que esse projeto é muito legal, porque a gente aprende coisas novas culturas
novas eu gostei bastante [...] O reggae é uma forma de resistência. O reggae faz
parte da nossa história (RELATO DA ALUNA 3 DA TURMA 83, 2014).
[...] tem pessoas que tem preconceito com esse tipo de música esse é o mundo que
nós vivemos de preconceito todos nós já sofremos [...] Eu achei muito bom essa
matéria por que fala de preconceito e eu aprendi que não se faz preconceito com que
as pessoas fazem tem gente que fala só faz coisa de negros, mas essa pessoa não se
enxerga e eu gostei muito dessa matéria[...] (RELATO DO ALUNO 7 DA TURMA
82, 2014).
Achei interessante falar sobre o reggae, porque reggae é vida, é paz resistência, a
gente tinha que ter mais projeto como esse porque é ótimo saber da cultura
afrodescendente, porque todo mundo tem um pouco de afrodescendente, vivemos
num país de muitas culturas e formas de pensar [...] o projeto e as músicas que
cantamos na aula foi tudo ótimo e muito legal. (RELATO DO ALUNO 21 DA
TURMA 8º C, 2014).
4
Utilizou-se termos de consentimento para a utilização dos relatórios produzidos pelos alunos em trabalhos
científicos, no entanto, identidade dos alunos será mantida em sigilo. Serão utilizadas a numeração dos cadernos
de chamada e a turma para fazer a identificação.
5
Optou-se por transcrever os trechos tal como os alunos escreveram.
brasileira e da sua própria realidade, além de interpretarem a música ouvida por eles como
cultura.
Em um dos debates realizados com a turma 8ºC, duas falas realizadas pelos alunos
chamaram a atenção. A primeira por relatar um episódio de racismo e a segunda por
apresentar um pensamento racista.
Professora a gente sofre isso todo dia, pode olhar se tiver um preto na rua mal
vestido ele é ladrão e vagabundo, se tiver um branco ele é pobre e coitado. Um dia
eu tava numa loja do centro e entrei pra compra um boné, tu acredita que o
segurança me seguiu a loja toda. Tava achando que eu ia rouba alguma coisa.
Depois diz que negro e branco tem o mesmo direito nesse país [...] (DIÁRIO DE
CAMPO DA AUTORA PRINCIPAL – RELATO DO ALUNO 23 DA TURMA 8º
C, 2014).
Não sou a favor das cotas acho que os negros assim como os brancos devem ter os
mesmos direitos, tem muito negro que se faz de coitado, quando na verdade eles
também são mais racistas que nós brancos [...]. (DIÁRIO DE CAMPO DA
AUTORA PRINCIPAL – RELATO DO ALUNO 23 DA TURMA 8º C, 2014).
Os relatos acima descritos demonstram o quanto ainda há o que ser feito em relação à
promoção de uma educação para as relações étnico- raciais. Nessa perspectiva, deve-se tomar
consciência do nosso papel enquanto educadores e, para além disso, lutar incessantemente em
prol da igualdade racial em nossa sociedade.
O planejamento prévio do projeto foi essencial no sentido de seguir uma linha
metodológica, contudo, não há como prever como será todo o processo, por isso alterações
são feitas quando necessárias, pois com um “engessamento” do projeto perder-se-ia muitas
experiências e resultados, por isso arranjos e rearranjos são inevitáveis.
Atualmente, estão sendo desenvolvidas as atividades do segundo ciclo de palestras que
tratam do Rap - o Rap e o Movimento Hip-Hop “têm uma relação mais próxima com nossos
alunos, sendo a música habitual do mundo deles, o que, por sua vez, pode ser um fator
importante a considerar para a aproximação do estilo musical (e a música em si) com as aulas
de História” (CANO; OLIVEIRA; ALMEIDA; FONSECA, 2012, p. 65).
O segundo ciclo já foi finalizado, todavia não serão expostos os resultados nesse texto.
Entre os produtos resultantes do segundo ciclo estão a criação de rimas produzidas pelos
alunos somadas aos relatórios As rimas de Rap que “tem servido como referência para a
produção de composições por parte dos próprios alunos das escolas[...]” (BITTENCOURT,
2011, p. 379). A música abaixo de autoria da aluna Natália Fagundes da turma 83 é um dos
Mas para variar, eu não percebo que para os outros meu amigo era só mais um preto
diante de todo esse preconceito
Onde fica nosso direito?
Por uma sociedade igual
Por uma diferença ser considerada normal
Mas tenho certeza que ela ainda vai matar futuros jovens, adolescentes
que esperam um futuro promissor, mas sofrem preconceito, discriminação
por uma mente fechada de uma burguesia sem razão
Considerações finais
6
A aluna e os pais autorizaram a divulgação do seu nome por meio do termo de consentimento e autorização de
próprio punho dos responsáveis.
Embora exista uma série de medidas que viabilizem a aplicabilidade da Lei Federal
10.639/03, não existe uma fórmula perfeita, pois cada contexto educacional é formado por
uma realidade social, econômica e cultural. Assim, optou-se por utilizar a música como um
instrumento de ensino-aprendizagem e como uma possibilidade de inserção da Lei no
contexto de uma escola pública que se encontra em processo de adaptação, apesar das
inúmeras resistências. Essa escolha deve-se a alguns apontamentos já explicitados ao longo do
texto.
Os resultados parciais obtidos com o Projeto “Música Afro na Escola” são satisfatórios
e somam-se a outros resultados de projetos já concluídos ou em fase de desenvolvimento, os
quais representam um avanço nas práticas pedagógicas que visam à promoção de uma
educação para as relações étnico-raciais, à valorização da cultura afrodescendente e ao
combate ao racismo e a desigualdade social. Cabe ressaltar que não existem práticas
pedagógicas perfeitas, afinal, somos eternos aprendizes, portanto elas precisam ser
continuamente transformadas, adaptadas, readaptadas.
Por fim, deve-se pensar na importância do processo de ensino-aprendizagem da
História, de que forma se ensina e se constrói o conhecimento histórico, respeitando as
vivências, experiências e cultura dos alunos, tendo em vista que eles não são depósitos de
conteúdos e, sim, construtores de suas próprias histórias.
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem
ou ainda por sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar,
podem ser ensinadas a amar.
Nelson Mandela
Referências
GOMES, Nilma Lino. Diversidade Cultural, currículo e questão racial: desafios para a
prática pedagógica. IN: ABRAMOWICZ, Anete; BARBOSA, Maria de ABRAMOWICZ,
Anete; BARBOSA, Lucia Maria de Assunção; SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). Educação
como prática da diferença. Campinas: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006.
HEGEL, Friedrich. Filosofia da História. Brasília: UnB, 1995.
LARAIA, Roque Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
MUNANGA, Kabengele. Negritude- Usos e Sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1986.
PAIXÃO, Luiz Carlos. Políticas afirmativas e educação: a lei 10.639/03 no contexto das
políticas educacionais no Brasil contemporâneo. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Federal do Paraná, 2006.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo expor e problematizar a metodologia desenvolvida na atividade
“Construção de estereótipos no Brasil Colônia”, referente ao estudo de gênero. Foi realizada através do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid/UFSM), e aplicada em turma de 2º ano de
Ensino Médio da Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi, no ano de 2014. A história das mulheres
ainda é um assunto pouco trabalhado em sala de aula, por isso, houve a necessidade de planejar a atividade em
torno desse tema, a fim de reconhecer a mulher como sujeito histórico, visto que construiu a história juntamente
com os homens e não de forma secundária. A temática da atividade foi referente ao período colonial brasileiro,
mais especificamente o nordeste açucareiro e como a partir desse construiu-se estereótipos sobre as mulheres e
os papéis privados e sociais que ocupavam. Para problematizar tais estereótipos realizou-se uma dinâmica em
que os alunos deveriam fixar em painéis bonecas brancas, negras e indígenas em espaços ocupados no Brasil
Colonial e como pensam ser no Brasil atual. Essa metodologia de ensino em história teve como objetivo
provocar a reflexão sobre como o passado influencia na formação das mentalidades atuais, visto que a história se
compõe de rupturas, mas também de continuidades.
Palavras-chave: Gênero, metodologia, ensino, história, estereótipo.
Abstract: This abstract aims to expose and problematize the methodology developed in the activity
“Construction of stereotypes in Colonial Brazil”, relative to gender studies. The activity was realized through the
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid/UFSM), and it was applied in class second year
of High School Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi, in 2014. Women's history is still a subject
scarcely worked in class and, for this reason, there was the necessity of planning the activity surrounding this
subject, in order to recognize the woman as a historical player, since she constructed history alongside men, and
not in a secondary role. The theme of the activity refers to the Brazilian colonial period, specifically the sugar-
producing Northeast, and how by it the stereotypes on women and the private and social roles they occupied
came to be. To problematize such stereotypes it was realized a dynamic where the students had to delegate
white, black and indian dolls to determined places in Colonial Brazil and to think where do the dolls belong to in
contemporaneous Brazil. This methodology of teaching history had as its aim to provoke the reflection on how
the past influences the formation of contemporaneous ways of thinking, since history is composed not only of
ruptures, but also of continuities.
Keywords: Gender, methodology, teaching, history, stereotype.
1
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: alrsoaressan@gmail.com
2
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: karolvedoin@hotmail.com
3
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: helen.dasilvasilveira@gmail.com
4
Docente na Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi. E-mail: leticiaschio@yahoo.com.br
Para marcar uma distinção entre cultura e biologia, social e cultural. Assim, quando
a palavra sexo é utilizada, vem à mente a biologia, algo ligado à natureza. O termo
gênero, por sua vez, faz referência a uma construção cultural: é uma forma de
enfatizar o caráter social e, portanto, histórico, das concepções baseadas nas
percepções das diferenças sexuais (PINSKY, 2009, p. 30).
No que concerne ao estudo do Brasil Colônia, existe relevância pelo fato de ser o
início da formação do país, o que permite o entendimento dos estereótipos que permeiam a
nossa sociedade. Nesse sentido, os locais privados e sociais que as mulheres ocupavam eram
restritos se comparados aos dos homens e, atualmente, perpetua-se essa lógica de perceber a
realidade, em que as mulheres devem ficar limitadas a determinados espaços. Acerca disso, é
necessário salientar que não existia “a mulher” do período colonial, mas “as mulheres”, haja
vista que os códigos morais e os padrões sociais eram impostos de forma diversa às diferentes
etnias e classes.
Em relação às mulheres nativas, quando os portugueses aqui chegaram no século XV,
tendo eles os primeiros contatos com os povos originários, viram nessas mulheres uma
semelhança com as mouras, já que possuíam pele morena, cabelos e olhos pretos, o que
despertou o interesse dos recém-chegados. José Azevedo e Silva (2004, p. 94) afirma que “o
imaginário da “moura encantada” é, pois, transportado pelos portugueses para o Brasil. A
figura da índia evoca a imagem dessa moura encantada”. Inicialmente, houve um
estranhamento por parte dos dois universos simbólicos que se conheciam: os portugueses e os
povos originários. Os primeiros vinham de uma Europa pudorosa, já os segundos tinham uma
visão de mundo em que andar nu ou seminu não se enquadrava no conceito de errado e isso
contribuiu para a sexualização da mulher indígena, assim denominada pelos colonizadores. O
trecho seguinte apresenta essa ideia, mas analisada a partir de uma visão em que a mulher
representa a “devassidão”, justificando os desejos sexuais dos colonizadores:
natureza, sendo assim, pode-se dizer que “o corpo feminino simboliza metaforicamente a terra
conquistada” (ALMEIDA, 2007, p. 462 apud LACERDA, 2010, p. 29). Isso podia ser
justificado, pois o homem colonizador reconhecia-se como “civilizado”, enquanto a mulher
nativa nua aproximava-se mais do “natural”, legitimando a exploração sexual. Portanto, assim
como a terra foi utilizada para responder aos anseios da colonização, a mulher também, tanto
as nativas e as negras, como objetos sexuais e para a reprodução quando não havia mulheres
brancas, bem como as brancas da elite, para exercerem sua função de esposas submissas e
mães. A autora Lacerda (2010) discute essa metáfora entre a mulher e a natureza e ressalta
que as simbologias criaram-se a partir das dúvidas existentes em relação ao corpo feminino,
por exemplo, a amamentação, a gravidez e a menstruação. O corpo da mulher era um mistério
para a mentalidade colonial, bem como as terras desconhecidas, que deveriam ser desbravadas
e colonizadas. Sendo assim, “esta série de identificações, produzidas pelo universo masculino,
fazia no Brasil colonial pertencerem ao mesmo imaginário a natureza e a mulher, cercadas das
noções de enigma e de perigo.” (LACERDA, 2010, p. 34) Nesse sentido, ressalta-se que
Não obstante este fato, entre nós a identificação terra-mulher ganhou contornos
profundos que se imbricaram com a relação de colonização. A metáfora recíproca
entre as figuras significou tanto identificação simbólica entre a mulher (primeiro a
indígena, e depois a africana a mestiça e também a branca) e a terra, quanto
similitude nas práticas de dominação e exploração, até à devastação. (LACERDA,
2010, p. 28).
estereótipo construído historicamente a partir do período colonial. Essas relações de poder não
eram simples, apenas homem branco/mulher negra, por exemplo, o negro escravizado podia
vingar-se do seu senhor por ter abusado de sua mulher, mas também violentar fisicamente sua
esposa, culpabilizando-a. Além disso, comumente havia ódio entre as mulheres brancas e as
negras, pois as traições dos senhores eram frequentes e suas esposas transferiam os
sentimentos desprezíveis às “amantes”. Os trechos a seguir descrevem esse contexto:
Na atualidade, a sua imagem ainda é muito ligada ao espaço privado, a alguém que
realiza os serviços domésticos e serve aos prazeres sexuais masculinos. Os ofícios domésticos
continuam sendo os principais, haja vista que muitas vezes não possuem acesso aos estudos, o
que implica em baixa escolaridade impedindo-as de competir no mercado de trabalho por
melhores serviços e salários, tudo isto dificulta romper com as barreiras da discriminação que
perpetua o estereótipo de mulher que não possui interesse em transformar a sua condição de
vida.
Gilberto Freyre discute em sua obra Casa Grande e Senzala (1933) acerca das relações
sexuais entre senhor/escrava, a miscigenação e, por isso, acredita na “amenidade” da
escravidão. Com a atividade desenvolvida objetivou-se expor e dialogar sobre papéis de
gênero, exploração sexual e a construção de estereótipos das mulheres do período colonial,
mais especificamente do nordeste açucareiro, onde havia as lavouras de açúcar, os engenhos e
as casas grandes e senzalas. Portanto, o livro Casa Grande e Senzala contribuiu para
problematizar essa temática, mas com um olhar crítico sobre a obra, pois compartilha de
teoria historiográfica que não considera coerção nas relações entre senhor e escrava. É
importante ressaltar que as negras inúmeras vezes eram estupradas, mas também havia
relações sexuais com consentimento, no entanto, muitas o faziam para não receberem
punições e por medo de sua condição como escravas piorar, ou seja, a coerção existia mesmo
quando havia consentimento. Além disso, como eram sexualizadas ao extremo, utilizavam
disso como forma de resistência, realizando a luxúria de seus senhores poderiam de forma
razoável melhorar suas condições de vida. Por exemplo, os senhores às vezes “confiavam-nas
à proteção de amigos ou concediam-lhes alforria, ou então, instalavam-nas em pequeno sítio,
com um ou dois escravos para servi-las” (PRIORE, 2014).
É necessário lembrar que apesar de a obra de Gilberto Freyre ter quebrado com a visão
inferiorizante do negro, ele dá um caráter benevolente à escravidão, o que foi criticado a partir
dos anos de 1950, principalmente pela chamada Escola Paulista que colocou em dúvida o
conceito de “democracia racial”, mostrando que entre os anos de 1950 e 1960 os negros
ocupavam os piores postos de trabalho e constituíam a grande maioria dos analfabetos do
Brasil. A democracia racial defendida por Freyre tinha em seus princípios de que o
preconceito no Brasil seria apenas de classe e não de cor, e que os elementos culturais
africanos, portugueses e indígenas haviam se misturado, formando a cultura brasileira. No
entanto, tendo em vista que os indígenas eram sempre retratados como povos que habitavam
essa terra antes da colonização e desapareceram por completo após a chegada dos
portugueses, além de haver também a ideologia do branqueamento no Brasil a partir do século
XIX, percebe-se que não houve igualdade entre as diferentes etnias.
Sendo assim, é importante ter em mente que a teoria da democracia racial foi utilizada
para legitimar o discurso de que havia igualdade de cor no Brasil, portanto, que as condições
para a ascensão social e para a melhor qualidade de vida não dependiam de etnia, mas sim
apenas de esforço individual. No entanto, houve negligência por parte do Estado e da alta
sociedade para com a população das etnias negras e indígenas, levando-as à marginalização
social. Atualmente essas etnias constituem, em sua maioria, a massa dos pobres urbanos das
grandes cidades, morando em favelas, onde faltam as condições mínimas para a dignidade da
pessoa humana.
No que concerne às mulheres brancas, há diferenciações entre as ricas e as pobres, mas
iremos nos deter às mulheres da elite rural, as moradoras das casas grandes. Segundo Priore
(2014), elas detinham dote que levavam aos maridos no casamento e para que essas terras e
esses escravos não fossem divididos entre filhos legítimos e ilegítimos, deviam ser fiéis aos
seus esposos para a manutenção da riqueza, embora a fidelidade não fosse recíproca. É
importante lembrar que “na elite, ocorriam também casamentos de meninas com homens bem
mais velhos. Às vezes as esposas eram tão jovens, tendo apenas completado 13 ou 14 anos,
que o casal tinha que esperar algum tempo para ter relações sexuais” (PRIORE, 2014), ou
seja, havia coerção nos casamentos do período colonial, enquanto a menina devia casar
virgem, o homem já teria tido outros relacionamentos íntimos em sua vida. A família,
portanto, era patriarcal, o senhor era dono não só das suas terras, mas também dos escravos,
da sua esposa e dos seus filhos, e nesse contexto, a mulher branca devia comportar-se de
acordo com “a moral e os bons costumes”, ou seja, vestir-se de forma recatada e ser submissa
ao marido, assim teria honra.
O espaço que ocupavam era o privado, em que deveriam exercer o papel de mães e
esposas e para sair ao espaço público deveriam estar sempre acompanhadas, pelo marido,
irmão, pai ou por uma mulher escrava. Portanto, na sociedade colonial “o processo normativo
servia para que elas cumprissem seu papel de mães e esposas obedientes, difusoras do
catolicismo e responsáveis pelo ‘povoamento ordenado da colônia’” (PRIORE, 1993, p.17 e
p. 334 e 2000, p. 22 apud LACERDA, 2010, p. 35). Sendo assim, as mulheres negras e
indígenas eram, em sua maioria, sexualizadas ao extremo, já as mulheres brancas não deviam
demonstrar interesse sexual, diferentes formas de opressão e violência, que construíram
estereótipos sobre esses sujeitos históricos: a “devassa”, justificando a exploração sexual, a
“pura”, que não possui desejos.
O fato de haver historicamente, incluindo a formação sociocultural do Brasil,
complexos de valores e padrões, normas que visam ditar os comportamentos, de tal modo
homogeneizando as práticas, constrói os estereótipos. Tais regras institucionalizadas na
sociedade visam introjetar conteúdo conservador, sexista e racista, por conseguinte coibindo
uma livre expressão dos sujeitos históricos e sociais. É importante ressaltar que a autonomia e
a emancipação surgiram com resistência diária e luta do gênero feminino, portanto, as
mudanças ocorridas ao longo do tempo, no que concerne aos espaços ocupados pelas
mulheres, não se fizeram naturalmente, mas sim com movimentos sociais e também com o
fazer histórico na vida cotidiana de pessoas que contribuíram com sua prática social
contestando os valores tradicionais.
Os estereótipos são construídos não somente a partir das diferenciações de cor e
gênero, mas também de classe social. Uma mulher branca pobre terá menos oportunidades de
quem pertence a classes mais abastadas, que possui melhores perspectivas de estudo e
condições financeiras para se qualificar para o competitivo mercado atual. No entanto, ainda
que pertençam às classes mais altas, não possuem total liberdade, visto que o machismo as
torna alvo de violência doméstica e as obriga a enquadrar-se em certos padrões de
comportamento que as impedem de vestir-se da maneira desejada ou de relacionar-se com
quem escolher.
a forma como se estabelecem as relações entre os sexos é uma construção histórica. Assim,
através da reflexão, desnaturaliza-se a ideia muitas vezes impregnada no nosso imaginário de
que o período presente é imóvel, e de que o passado não tem nenhuma influência nele.
Esse horizonte guiou toda a atividade que desenvolvemos em sala de aula, que teve
dentre os objetivos levar para o sistema básico de ensino uma visão acerca do sujeito
feminino, mostrando a mulher enquanto agente histórico, autora de ações que tiveram impacto
direto sobre sua realidade. Dentre essas ações estão os atos de resistência articulada por elas
que foram os mais dinâmicos e diversos, haja vista que o protagonismo era heterogêneo
contrapondo a imagem de um ser dócil e frágil que não tinha forças para reagir.
Procuramos mostrar aos discentes que mais do que resistir abertamente à opressão, as
mulheres também articulavam estratégias de negociações diárias, visando melhorar a vida
doméstica e escrava, e com o passar do tempo foram surgindo a necessidade de conquistar
outros espaços. Fatores como a abolição da escravatura, o processo de industrialização e a
república, fizeram emergir a vontade de ocupar novos espaços e direitos, originaram-se lutas
maiores do que amenizar a vida que levavam, as pautas passaram a ser o direito de trabalhar
fora e de participar do processo político do país. Além disso, surgiram lutas para poder
frequentar a escola, mas a grande maioria continuava a ser obrigada a casar-se, tornando-se
muitas vezes alvo de violência doméstica, além da obrigação de ter filhos, resultando em
protestos contra tais imposições, objetivando-se a liberdade de escolher quando ter seus filhos
e com quem se casar.
Com isso se evidencia que a vida que as mulheres têm hoje com acesso a diversos
setores sociais, além dos direitos que anteriormente eram exclusivos dos homens, é fruto de
anos de reivindicações por mais autonomia, quebrando com a ideia de que esses direitos são
resultantes naturais do processo democrático. No entanto, mesmo após tantas conquistas, as
características de comportamento que uma mulher deve ter continuam sendo fortemente
padronizada, devido à perpetuação no tempo de estereótipos e continuidade de pensamentos
do período colonial. Com a exposição aos alunos dessas construções sociais objetivou-se a
reflexão sobre a veracidade que as rotulações assumiram, além das dificuldades encontradas
atualmente pelas diferentes mulheres brasileiras, que mudam mais uma vez o caráter de luta
por direitos de cada uma delas.
A metodologia desenvolvida procurou abarcar esses conteúdos. No primeiro momento
da atividade, ocorreu a aula teórica para explicar acerca do período colonial, em que o Brasil
não era um país, mas sim um domínio ultramarino português, onde se construiu o que
conhecemos por colônia para a exploração dos recursos naturais. Problematizou-se a
Essa metodologia de ensino em história teve como objetivo provocar a reflexão sobre
como o passado influencia na formação das mentalidades atuais, visto que a história se
compõe de rupturas, mas também de continuidades. A partir dessa reflexão, procuramos
mostrar como absorvemos e reproduzimos ideias e práticas sem percebermos, citando também
a mídia e os meios de comunicação de massa que perpetuam formas de perceber a realidade,
por exemplo, a versão que mais conhecemos sobre esse momento foi eternizada pela obra de
Gilberto Freyre, largamente utilizada para a produção de novelas e séries televisivas, e que
constroem versões sobre o passado. Também explicou-se aos alunos que o fato de as mulheres
terem conseguido se libertar da opressão e proibições, mas terem continuado a serem
rotuladas, deve-se ao fato de não existir uma ruptura total com o passado, que sempre deixa
marcas ou heranças.
A atividade conseguiu dar conta dos objetivos estabelecidos, conseguindo levar os
alunos à reflexão sobre como se estabeleceram as relações de gênero do nosso país, o que
provocou questionamentos sobre as formas de ver o mundo, através de um olhar
contemplativo acerca da história das mulheres. A metodologia aplicada de dividir a atividade
em dois momentos, onde a prática e a teoria se complementavam teve sucesso, pois conseguiu
prender a atenção dos alunos fazendo-os interagir em grupos para chegarem a uma conclusão
em conjunto. O interesse dos estudantes se mostrou pelo seu envolvimento, ou seja, pelas
perguntas feitas por eles durante a aula teórica, o que demonstra o quanto estavam atentos,
visto que pensar sobre os papéis de gênero envolve a realidade de todos, já que eles são
agentes histórico-sociais e querem compreender o seu lugar no contexto em estão inseridos.
Por fim, ressaltamos que o nosso objetivo é socializar essa experiência que visava discutir
papéis de gênero, construção e perpetuação de estereótipos femininos na educação básica, a
fim de que possa servir como uma alternativa aos professores das escolas da rede pública de
ensino, adaptando a cada realidade escolar.
Referências
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global Editora, 1933.
LACERDA, Marina Basso. As mulheres no Brasil Colonial. In: Colonização dos corpos:
Ensaio sobre o público e o privado. Patriarcalismo, patrimonialismo, personalismo e violência
contra as mulheres na formação do Brasil. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em:
<http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/acessoConteudo.php?nrseqoco=56439>. p. 25- 63.
PINSY, Carla Bassanezi. Gênero. In: Novos temas nas aulas de história. São Paulo:
Contexto, 2009. p. 29- 53.
PRIORE, Del Mary. Casamento e virgindade nos tempos coloniais. Disponível em:
<http://historiahoje.com/?p=2497>. Acessado em 09 de outubro de 2014.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia. In:
Negociação e conflito. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 13- 21.
SILVA, José Azevedo e. O forjar da realidade sócio-cultural. In: O Brasil Colonial. Coimbra,
2004. p. 93- 100.
Resumo: Juntamente com meus colegas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID),
desenvolvemos dentro da sala de aula algumas atividades que foram realizadas com aulas práticas, que foi a
atividade com cerâmica e em seguida o trabalho de sitio arqueológico. Na atividade com cerâmica os alunos
tiveram que fazer potes com argila conforme foi trabalhado em sala de aula, neste contexto cada criança fez seu
pote de maneira diferente uma das outras e, em seguida, pintaram com as cores que os povos indígenas usavam
quando faziam suas cerâmicas. Na parte do sitio arqueológico os alunos tiveram uma simulação deu uma
escavação de um sito arqueológico onde encontravam restos de cerâmicas (parte de campo). E na parte de
laboratório os estudantes foram levados para um museu, onde tiveram que montar as partes das cerâmicas que
encontraram neste sitio que escavaram. Tanto na parte de campo, como na parte de laboratório, as crianças
tiveram que trabalhar em equipe. Ao final das atividades desenvolvidas os alunos perceberam que tanto na parte
da construção da cerâmica como na parte do sitio arqueológico, o trabalho deveria ser feito em equipe. Também
viram qual a função do arqueólogo, qual o seu trabalho, pois antes pensavam que o trabalho do arqueólogo fosse
o de achar ossos de dinossauros.
Palavras-chaves: PIBID, Cerâmica, Sitio arqueológico, Aulas práticas.
Summary: Together with my colleagues PIBID, we develop within the classroom some activities that were
carried out with practical lessons, which was working with pottery and then the work of archaeological site. In
activity with ceramics students had to make pots with clay as was working in the classroom, this contest each
child made his pot differently one of the other and then painted with colors that indigenous people used when
they made their ceramics. Already in the archaeological site of the students had a simulation gave an excavation
of an archaeological located where they found remains of ceramics (fieldwork). And in the lab students were
taken to a museum, where they had to assemble the parts of the ceramics found that place that feels excavated.
Both in the field and in the laboratory the children had to work in teams. At the end of the activities the students
realized that both in the construction of ceramics as part of the archaeological site, the work should be done in
teams. Also viewed the function of the archaeologist, what's your job, because before thought that it was the
work of the archaeologist to find dinosaur bones.
Keywords: Pibid, Ceramics, Archaeological Site, Practical classes.
Introdução
1
Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). Contato: moisesstein25@gmail.com
Povos Pré-cerâmicos
Os povos dos campos foram os primeiros a vir para o Sul, seus vestígios são
classificados como Tradição Umbu. Abrigavam-se em cavernas e em algumas delas até
fizeram desenhos que são chamados de arte rupestre. Sobre a arte rupestre podemos informar
que:
O homem pré-histórico deixou quase toda a arte rupestre existente no Rio Grande do
Sul. Os motivos gravados nas rochas são bastante simples: formas geométricas,
traços, triângulos e linhas que se cruzam, dificultando saber o que significa. É muito
difícil datar a arte rupestre. Em muitas grutas com motivos gravados, existem
artefatos dos primeiros caçadores que povoaram o estado, sendo possível que fossem
os autores das gravuras (1200 ANOS DE HISTORIA E PRÉ-HISTÓRIA DO RIO
GRANDE DO SUL, 2013, p. 39).
Os povos das florestas são grupos nômades que vivem pertos dos rios. Sua
alimentação é baseada na dieta de frutas e do pinhão e também da caça e da pesca, pois estes
povos eram caçadores e coletores. Neste contexto Custódio (2004) destaca que os vestígios
encontrados dos povos de florestas são classificados como da Tradição Humaitá, e que estes
povos viveram e se desenvolveram nas florestas até o aparecimento dos Guaranis que
influenciaram na cultura. Os povos do litoral formaram os sambaquis, que são os amontoados
de restos de conchas, moluscos. “Alguns sambaquis apresentam ossos de peixes, de aves, de
animais terrestres e aquáticos” (CUSTÓDIO, 2004, p. 12). Podemos dizer que os grupos que
ocuparam os sambaquis, são os grupos das florestas e dos campos. Algumas das ferramentas
destes povos do litoral são feitas de osso, como anzóis e também artefatos de pedra polida
como pesos para as redes.
Povos Ceramistas
Os vestígios dos povos dos cerritos são conhecidos como da Tradição Vieira. São
moradores do Sul do Rio Grande do Sul, conhecidos como povos dos campos que formaram
aterros que são chamados de cerritos. “Os aterros ou cerritos são montes artificiais facilmente
reconhecíveis pelos pesquisadores” (1200 ANOS DE HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA DO
RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 39). Estes aterros possuíam variados tamanhos e formas
circulares e algumas elípticas, de acordo com Instituto Anchietano de Pesquisa São Leopoldo.
(1991, p. 109).
Os povos dos pinheirais habitavam lugares onde existiam mata de araucárias. Sua
alimentação era composta por variedade de frutas, raízes e vegetais, tinham também na época
do outono, o pinhão. Este grupo também praticava a caça e a pesca que faziam parte de sua
dieta. Eram construtores de casas subterrâneas que serviam para se protegerem do frio. “Eram
casas geralmente circulares, algumas parcialmente enterradas, cobertas por fibras vegetais.
Agrupadas, formavam pequenas aldeias dispersas na floresta” (CUSTÓDIO, 2004, p. 14).
Seus vestígios são conhecidos como pertencente à Tradição Taquara. É importante ressaltar
que algumas das casas subterrâneas eram bem sofisticadas na sua arquitetura, pois possuíam
uma bancada para se acomodar, onde poderiam fazer suas atividades. No centro da casa tinha
um aprofundamento maior que servia para fazer a fogueira.
Cerâmica
panelas que eram menores e serviam para cozinhar os alimentos e menor ainda eram as tigelas
que usavam para servir o alimento. Portanto podemos dizer que as mulheres ficavam com
trabalhos mais leves, como: cozinhar e fazer a cerâmica. E as crianças ajudavam a cuidar dos
menores. Ainda sobre a cerâmica dos Guaranis, enfatiza Custódio:
Suas vasilhas cerâmicas eram feitas a partir de roletes de barro, unidos e alisados
com as mãos. As superfícies externas eram pintadas nas cores vermelho, preto e
branco ou decoradas com marcas de dedos e unhas. As maiores serviam para
preparar bebidas, ou para enterrar seus mortos. (CUSTÓDIO, 2004, p. 15)
Dentro deste aprendizado as crianças tinham feito seus potes com a argila que foi
levada por nós, professores do PIBID. Alguns fizeram nos seus potes as marcas em formas de
linhas paralelas e outros os fizeram lisos. Também teve diferença nos tamanhos onde alguns
fizeram maiores e outros menores e na espessura também percebemos as diferenças, alguns
mais finos e outros mais grossos. Deixamos os potes secarem e na aula seguinte foi a vez de
pintar.
Para a pintura dos potes levamos tintas de cores, preto, vermelho, verde e branco e
cada criança pintou seu pote. Alguns pintaram de uma cor e outros de várias cores. Alguns
ainda queriam misturar as cores para formar outros tons, mas explicamos que os indígenas
não faziam misturas das cores. Depois de ter a cerâmica pronta, as crianças notaram que era
um trabalho bem desenvolvido para aquela época, levando-se em conta as decorações e
pinturas que eram feitas. Então refletiam: como que foi inventada a cerâmica?
Seria difícil dizer como é que a cerâmica foi inventada. [...]; certas pessoas dizem
que a cerâmica foi descoberta quando um recipiente foi cozido acidentalmente pelo
calor do sol, mas é difícil encontrar provas que confirmam isto. O mais provável é
que a cerâmica, em virtude do clima social e econômico do período neolítico, tenha
sido inventada várias vezes nas condições sedentárias, então possíveis. Alguns dos
primeiros recipientes poderão ter sido cozidos ao sol, não restam dúvidas. A maioria
dos eruditos aceita a tese de que a cerâmica foi inventada independentemente na
América algum tempo depois de 3000 a.C. (CELORIA, 1978, p. 50-51).
Algumas cerâmicas ficaram muito secas e quebraram então as crianças queriam saber
se tinha como consertar e se a cerâmica dos povos indígenas também quebrava. E o que esses
povos faziam quando quebrava e não tinha mais utilidade. Conforme 1200 Anos de História e
Pré-História do Rio Grande do Sul (2013, p.91) “os recipientes maiores, depois de velhos e
inúteis, serviam ainda para enterrar os mortos, que eram cobertos por panelas e acompanhados
de tigelas com alimentos”. Dentro deste contexto partimos para a arqueologia, sendo
trabalhada a teoria e depois a prática onde nossos alunos tiveram a parte prática em duas
etapas, uma de campo e outra de laboratório, desenvolvida no museu. Quando perguntamos o
que eles sabiam sobre arqueologia, vimos que o conhecimento era muito fraco e alguns não
sabiam nada. Outros se baseavam no personagem Indiana Jones, que pensavam que o
arqueólogo fosse o que fazia as escavações em busca de ossos de dinossauros, que
arqueologia era o estudo dos dinossauros.
Arqueologia
Trabalho de campo
Como os objetos foram enterrados cinco dias antes da escavação estava fácil para
serem encontrados. E a limpeza também era bem tranquila, pois estavam na terra de areia com
isso facilitava as escavações. Ainda é importante ressaltar que:
Como os alunos não tinham máquinas fotográficas, só faziam os registros por meio de
anotações dos materiais que encontravam. E sobre a terra peneirada, conforme Custódio
(2004, p. 21) “a terra escavada é peneirada e os objetos encontrados são identificados e
embalados.” Aqui a terra não era peneirada, por ser só uma noção de um sítio arqueológico.
Sobre a outra técnica de trabalho de campo que é a de corte experimenta segundo
Ribeiro (1977) é conhecido também como prospecção onde é feita uma sondagem para ver se
existem outras culturas diferentes das que aparecem por cima, na superfície, assim acabam
vendo se é necessária uma escavação ou se não. Caso for escavado são feitos quadros de 1,5m
x 1,5m ou de 2m x2m. Menor não pode ser, pois se os objetos estiverem muito profundos
dificulta a escavação, pois às vezes pode ter cultura sob cultura e então existem várias
camadas umas sobre as outras, assim se tornando com profundidade enorme.
Este tipo de sítio arqueológico também foi feito, foi este o que mais gostaram e que mais deu
trabalhos para as crianças, porque nós, professores do PIBID, tínhamos enterrado os objetos
em várias camadas. Percebemos aqui a dificuldade que tiveram quando encontravam as
camadas diferentes, pois achavam que os fragmentos encontrados eram dos mesmos objetos e
então acabavam misturando. Alertamos para que cuidassem da coloração dos objetos. Objetos
de coloração diferente pertenciam a camadas diferentes, culturas diferentes.
A técnica de escavação no trabalho de campo, por sua vez, não foi realizada a parte
prática com os alunos, e sobre está técnica argumenta Ribeiro (1977) que não é para escavar
por escavar, é necessário que tenha algum conhecimento técnico para este tipo de prática, não
sendo assim para os colecionadores. Os mecanismos são os mesmos da técnica de prospecção,
fazer quadrícula de 1 x 1m, também fazer anotações e fotografar, aqui a única coisa que se
pode escolher é que entre as quadrículas se pode deixar um espaço de 20cm. As anotações
sempre são importantes porque os sítios sempre vão ser diferenciados, onde nunca um vai ser
igual ao outro.
Nesta técnica não realizamos a parte prática porque é parecida com a outra que já tinha
sido realizada, então não foi necessário, até porque as crianças já compreenderam mais fácil
só na parte teórica.
Trabalho de laboratório
Como já tinha sido dito o trabalho do arqueólogo se divide em duas partes, que é a de
trabalho de campo e a de trabalho de laboratório, então depois dos alunos terem feito a parte
do trabalho de campo onde resgataram os fragmentos dos materiais, partiram, então, para o
trabalho de laboratório. Na parte de laboratório os alunos deveriam juntar as parte que tinham
sido encontradas para poder colar ver o que formava. E como no trabalho de campo, no
trabalho de laboratório também precisa de alguns materiais que são de extrema importância
para conseguir realizar a tarefa.
Material necessário: cola do tipo Tenaz para a cerâmica e para o lítico, além desta,
outra mais forte, nanquim, canetas, escovas, medidor de ângulos para material lítico;
medidor de aberturas de vasos, cerâmica; caixas para acondicionamento do material,
verniz ou esmaltes, secador de material com seis gavetas de tela de 60 x90cm,
divididas ao meio, fichas, arquivos de aço, caixas de areia, pias, mesa para análise de
1,8 x 3,5m aproximadamente, paquímetro, mapas do Exército (1:50.000), Escala de
Mohs, da dureza 2até 5, lupa de no mínimo 10 aumentos, martelo ou troques, mesa
de desenho etc. (RIBEIRO, 1977, p. 27).
Como era só uma atividade e não um trabalho profissional não usamos todos estes
materiais. Foi levado somente o básico, a cola tenaz, pois os únicos objetos que as crianças
teriam para colar eram a cerâmica. Foi levado também pincel para tirar alguma sujeira. Mesa
havia no local onde foi realizada a atividade. Pia não foi necessário para limpar os objetos
porque não estavam muitos sujos, tinham sido enterrados na areia apenas três dias antes da
escavação.
É importante lembrar que os objetos são levados para o laboratório para serem limpos
e, em seguida, deve se fazer a catalogação e após é feito o estudo, restauração e, por último, a
conservação. Assim os objetos são comparados uns com os outros e feito estudo sobre eles,
chegando assim a interpretações históricas.
Chegando ao laboratório é feita a lavagem do material encontrado. “Para o lítico, uma
escova dura, para a cerâmica, uma macia” (RIBEIRO, 1977, p. 27). Enquanto para os
materiais feitos de ossos e madeira não é necessário lavar.
Para lavar a cerâmica pintada, precisa-se ter o cuidado para que os desenhos não se
apaguem, mas em nossa atividade não tínhamos cerâmica pintada. Após a lavagem é feita a
secagem do material e coloca-se um número de catálogo neste material. Feito isso vem uma
terceira parte que consiste em analisar este material e estudar, vão medir a espessura a altura,
ver de qual material é feito, ver outros objetos parecidos para comparar, então vai se descobrir
a qual cultura pertenceu. Também se preocupa em saber a idade deste material. E como saber
a idade deste determinado objeto? Isso é realizado através dos métodos de datações, a relativa
e a absoluta.
Dentro do método de datação relativa temos as datações de estratigrafia, achados de
vários objetos unidos ou depósitos, a tipologia de método cronológico e a corologia ou
cronologia comprada.
Sobre o carbono -14 os alunos ficaram interessados, querendo saber o que era este C-
14.Explicamos então como se formava, enfatizando o tempo de meia vida. Este foi um
assunto bem interessante não tivemos aula prática aqui, só a teoria.
Museus
Todo este trabalho da parte da parte de laboratório foi feito dento de um museu porque
nós não tínhamos um laboratório. Os alunos foram levados para um museu de arqueologia.
Chegando ao museu os alunos começaram a montar suas cerâmicas que tinha achado nas
simulações dos sítios arqueológicos que tinham sido feitas na escola nas semanas anteriores.
Após terminarem a tarefa de juntar as peças, puderam ver a exposição que tinha neste local.
Viram então as urnas funerárias de cerâmica, como também cachimbos, tigelas, alguns dentes
de animais e tantas outras coisas. Tudo o que viram foi feito pelas tribos indígenas que
viveram no Rio Grande do Sul há muito tempo e que o tempo deixou guardado nos sítios
arqueológicos, onde mais tarde foi resgatado pelos arqueólogos, foi limpo em seguida
consertado, colado e por fim montaram uma exposição no Museu que fica exposto para
visitação.
Destaco também que apesar de não ter um laboratório de arqueologia para ser feito
trabalho de reconstrução, eu e meus colegas do PIBID, poderíamos ter desenvolvido a
atividade dento da sala de aula. Mas não foi feito dentro da sala e sim foi no museu, porque
achamos importante fazer uma visita ao museu. Ainda é importante lembrar que para fazer
uma visita ao museu e necessário ter um objetivo, e não levar apenas por levar. Pois para o
aluno uma visita ao museu segundo Abud; Silva; Alves é uma oportunidade de sair da sala de
aula de um ambiente onde só se tem repetição e ir para um lugar diferente, conhecer um
espaço novo e pessoas novas, ter o aprendizado através das exposições.
No museu percebemos que os alunos ficavam fascinados com os objetos que viam,
pois eram objetos antigos que até agora tinha visto apenas imagens nos livros ou fotografias e
com esta visita ao museu conseguiram ver na frente de seus olhos estes objetos reais. Muitos
pensavam que no museu não tinha nada de importante, que só possuía coisas velhas e inúteis.
Por isso que é importante levar os alunos ao museu sejam crianças ou adolescentes. Levando-
os ao museu tiramos o pensamento errado que tem sobre este local assim percebendo que
existem várias coisas de importante, bonitas e interessantes em um museu.
Essa visão, comum entre crianças, jovens e adultos dos diferentes grupos
socioeconômicos, mostra representações do passado, da memória e da História como
sinônimos de ‘antiguidade’, algo distante no ‘tempo-espaço’, com poucas relações
com o presente e quase nenhuma relação com o futuro (ABUD; SILVA; ALVES,
2010, p. 127).
mais prazerosa, mais divertida, saindo daquela repetição diária. Diferente de dentro da sala de
aula, no espaço do museu, a curiosidade era maior ao ver os objetos expostos. Como em todo lugar
tem regras no museu não foi diferente. Alguns queriam tocar e pegar os objetos, mas não podiam
como também não era permitido correr. “Quando visitamos um museu, temos contato com seu acervo,
suas coleções de objetos e outros documentos, por meio da exposição. Toda exposição é construída
para narrar, para dizer algo sobre o tema em questão” (ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p. 134).
Dentro do museu é importante que o aluno possa fazer diversas atividades como a de
observação onde vai ser o momento de descoberta que pode ser feito através de percepção
visual ou perguntas com o objetivo de identificar o objeto. Temos também a atividade de
registro, que é o momento de investigação, buscando relações entre o mundo das coisas e as
pessoas que construíram, o aluno pode fazer desenhos dos objetos, fotografias mapas e
maquetes o objetivo aqui é de fixar aspectos relevantes, aprofundar a observação e
desenvolver a memória, o pensamento lógico intuitivo e operacional. Na atividade de
exploração é o momento de analisar, interpretar, onde se pode fazer uma análise do problema,
fazer questionamento sendo o objetivo de desenvolver a capacidade de análise e de
julgamento crítico. Outra atividade que pode ser feita é de apropriação, momento da
reinvenção, de dar significados às informações onde pode se fazer a recriação, interpretação
através de expressão, como pintura, escultura, danças, textos, filmes vídeo, teatro. O objetivo
aqui pode ser de promover o envolvimento afetivo, participação criativa e valorização do bem
cultural.
Nos museus não se pode colocar tudo a mostra, pois isso cansa os olhos de quem o
visita, deve se mostrar pouco para se tornar interessante e neste contexto enfatiza Celoria:
Felizmente, hoje em dia, as pessoas que vêem os museus como lugares sombrios,
aborrecidos e poeirentos já são poucas. Todavia, muitas delas não compreendem que
um bom museu deveria ser como o iceberg proverbial: a maior parte da massa sob a
superfície. Se tudo estiver à mostra, o visitante depressa cansará seus olhos e seu
espírito. Assim um bom museu exibe apenas 1% de suas coleções. As peças exibidas
são escolhidas pela sua beleza, ou como características de determinados locais, ou
ainda porque são espécimes representativos de uma data especificas. As peças
exibidas devem ser mudadas a intervalos que não sejam demasiado longos.
(CELORIA, 1978, p. 152).
Como vimos em um museu não deve colocar todos seus objetos expostos de uma só
vez, mas sim de ir trocando de tempo em tempo, para que as pessoas possam ir visitar mais
que uma vez. Trocando os objetos sempre teremos uma coleção diferente e assim terá mais
público para este espaço histórico, e quem já foi vai querer ir de novo para conhecer a nova
coleção.
Referências
ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo Cardoso. Ensino de
História. São Paulo: Cengage Learning, 2010.
Instituto Anchietano de Pesquisa São Leopoldo. Pré-história do Rio Grande do Sul. São
Leopoldo, Unisinos, 1991. 178p.
Resumo: Nesta comunicação, privilegiam-se os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Collegio Allemão do Rio
Grande de 1938, elucidando tempos de transição na educação teuto-brasileira urbana no período de Nacionalização
da Educação. Entre as fontes utilizadas destacam-se: os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande –
1938; entrevistas com o professor Arno Ristow, Rio de Janeiro - 2005 e 2011 e com a ex-aluna Erica Pohlmann
(Frank), Rio Grande – 2012. O professor Arno Ristow ministrou aulas no Collegio Allemão do Rio Grande, em 1933
e a ex-aluna Erica Pohlmann (Frank) frequentou o educandário nos primeiros anos da década de 1930. O ensino
passou a ser ministrado através dos princípios da moderna pedagogia, no entanto a língua alemã continuou ocupando
um lugar de destaque na instituição de ensino primário e complementar, mista, em caráter laico. Através dos
Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, de 1938, pode-se perceber os efeitos da Nacionalização do
Ensino no Rio Grande do Sul e, mais especificamente, em Rio Grande. A língua alemã passou a ocupar o status de
língua estrangeira, apesar de receber cuidado especial, como uma consequência por tratar-se de um colégio mantido
por uma sociedade escolar alemã, cuja diretoria era teuto-brasileira e fluente tanto em língua portuguesa como em
língua alemã. Os ajustes nos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, demonstram a necessidade de os
objetivos e os fins que regiam o Collegio Allemão do Rio Grande, adequarem-se à legislação educacional brasileira
com o intuito de permanecerem.
Palavras-chave: Collegio Allemão do Rio Grande, Estatutos, Sociedade Escolar Allemã.
Summary: In this communication, the focus is the Statutes German School Society the Rio Grande German School,
1938, elucidating transition times in German-Brazilian urban education during Education Nationalization. Among
the sources used are: the Statutes German School Society of Rio Grande – 1938; interviews with Professor Arno
Ristow, Rio de Janeiro - 2005 and 2011 and the former student Eric Pohlmann (Frank), Rio Grande – 2012. Arno
Ristow teacher has taught at the Rio Grande German School in 1933 and the former student Eric Pohlmann (Frank)
attended the breed in the early years of the 1930s. Teaching came to be moved through the principles of modern
pedagogy, however the German language continued to occupy a prominent place in the institution of primary and
complementary teaching mixed in secular character. Through the Statutes German School Society the Rio Grande
German School, 1938, can see the effects of Nationalization of Education in Rio Grande do Sul and, more
specifically, in Rio Grande. The German language has come to occupy the status of foreign language, despite
receiving special care, as a result because it is a school maintained by a german school society whose board was
German-Brazilian and fluent both in Portuguese language and in German language. The adjustments in the statutes
of the German School Society the Rio Grande, demonstrate the need for the goals and purposes governing the Rio
Grande German School, conform to the Brazilian educational legislation in order to remain.
Keywords: Rio Grande German School, Statutes, German School Society.
Introdução
1
Universidade Federal de Pelotas. Contato: mariangela@via-rs.net
Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, de cunho quanti-
qualitativo, que vem sendo desenvolvida no doutorado em Educação, da Faculdade de Educação,
da Universidade Federal de Pelotas e socializada no Centro de Estudos e Investigações em
História da Educação - CEIHE - que contempla o tema História da Educação Teuto-Brasileira
Urbana na Região Sul do Rio Grande do Sul, nos séculos XIX e XX. Nesta comunicação,
privilegiam-se os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Collegio Allemão do Rio Grande de
1938, elucidando tempos de transição na educação teuto-brasileira urbana no período de
Nacionalização da Educação.
Entre as fontes utilizadas destacam-se: os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio
Grande – 1938; entrevistas com o professor Arno Ristow, Rio de Janeiro - 2005 e 2011 e com a
ex-aluna Erica Pohlmann (Frank), Rio Grande – 2012. O professor Arno Ristow ministrou aulas
no Collegio Allemão do Rio Grande, em 1933 e a ex-aluna Erica Pohlmann (Frank) frequentou o
educandário nos primeiros anos da década de 1930.
O Collegio Allemão do Rio Grande foi fundado no ano de 1898 pela Sociedade Escolar
Allemã do Rio Grande. A maioria dos membros dessa sociedade pertencia à Comunidade
Evangélica Allemã e era composta por comerciantes e industriais radicados em Rio Grande. À
semelhança do Collegio Allemão de Pelotas, o Collegio Allemão do Rio Grande teve um tempo
de existência, em torno de 44 anos, quando, então, suas atividades foram interrompidas por
ocasião da Segunda Guerra Mundial. Da mesma forma a proposta educacional dessas instituições
contemplava o cuidado com o bem cultural denominado Deutschtum, ao cultivar valores e
tradições milenares dos imigrantes alemães com a cidadania brasileira.
O pesquisador alemão Giesebrecht (1899), em seu relatório de viagem pelos estados
litorâneos brasileiros, fez menção a esses educandários em Rio Grande e em Pelotas, e também
ao Collegio Allemão de Porto Alegre fundado em 1886, mantido pela Sociedade de Beneficência
Alemã de Porto Alegre, hoje Colégio Farroupilha.
A partir da análise dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande de 1938,
elucida-se a reformatação do ensino em um colégio teuto-brasileiro urbano em Rio Grande em
que são enfatizados os princípios da moderna pedagogia em consonância com a legislação do
Brasil. Através dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, de 1938, pode-se
perceber os efeitos da Nacionalização do Ensino no Rio Grande do Sul e, mais especificamente,
em Rio Grande.
No que diz respeito aos ajustes nos estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande,
esses demonstram a necessidade de os objetivos e os fins que regiam o Colégio Rio-Grandense,
adequarem-se à legislação educacional brasileira com o intuito de permanecerem. Em
decorrência da proximidade da Segunda Guerra, no ano seguinte, em 1939, apesar dos
professores estrangeiros ainda poderem exercer a docência, foi proibido o exercício de direção de
escola aos estrangeiros, ficando este resguardado aos brasileiros e/ou teuto-brasileiros.
Os estatutos dos 40 anos anteriores de funcionamento do Colégio Rio-Grandense, ou seja,
da sua fundação, em 1898 até 1938, foram revogados a contar da aprovação dos estatutos de
1938. A partir desses dados questionamos: o que permaneceu e o que mudou a partir de 1938?
Essa e outras questões demandam novas fontes que certamente serão investigadas em outros
estudos.
O Brasil, nas primeiras décadas do século XX, foi permeado por discussões em torno do
nacionalismo emergente, presente em cenários diversos, tanto internos como externos. Este
movimento veio a ter o seu ápice nas décadas de 30 e 40 do mesmo século, quando conflitos
internacionais entre nações do hemisfério norte, especialmente a Alemanha, culminaram com a
eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Nesse período, vigorou no Brasil, o Estado Novo, que, segundo Werle (2005) trouxe
alterações significativas, pautando e definindo o campo político e educacional, que apresentava
como alvo a constituição da nacionalidade através de programas de educação nacionalista.
De acordo com Bastos,
a educação como um dos instrumentos do Estado (...), quando passou a ser considerada
como uma função social de excepcional relevo, e a sua finalidade já não é simplesmente
ministrar noções e conhecimentos assentados, mas essencialmente preparar a criança e o
adolescente para viver em sociedade, (...). Educar é rigorosamente socializar o ser
humano. Despertar no indivíduo o máximo de eficiência, (...), eis aí a finalidade visada
pela nova pedagogia. A formação do “novo” homem está a exigir uma “nova” Educação
e novas instituições escolares (BASTOS, 1994, p. 23).
Nas primeiras quatro décadas do século XX, um significativo número de escolas teuto-
brasileiras no Rio Grande do Sul partilhava o espaço urbano e rural com a emergente escola
pública brasileira. Neste terreno conflituoso em que se deu a configuração da identidade nacional,
muitos foram os esforços de docentes, nas escolas teuto-brasileiras, para conjugar memória e
cidadania.
Tanto na cidade como na zona rural, os imigrantes alemães e os teuto-brasileiros, em sua
maioria, protestantes luteranos, incentivados por governos positivistas, fundaram escolas para
seus filhos. Muitas dessas escolas concretizaram-se a partir de sociedades escolares, às vezes de
cunho religioso, responsáveis pela manutenção de escolas e igrejas, fomentando a vida cultural
entre os pares.
As escolas teuto-brasileiras, no período anterior à nacionalização do ensino, tinham em
seus currículos o ensino, predominantemente em língua alemã. No entanto, entre um ir e vir, no
intervalo das duas guerras mundiais, que abalaram as relações diplomáticas entre o Brasil e a
Alemanha, e as proibições e permissões do ensino em/de língua estrangeira no Brasil, no final da
década de 1930, esse ensino em língua alemã foi definitivamente proibido.
Os imigrantes alemães que se instalaram na região sul do Rio Grande do Sul, a partir da
segunda metade do século XIX, assim o fizeram, e em grande número, na zona rural, abrangendo,
principalmente, as regiões coloniais de São Lourenço do Sul, Pelotas, Canguçu e Morro Redondo
(FONSECA, 2007). No entanto, as regiões urbanas também receberam representantes dessa etnia,
que se instalaram com mão de obra qualificada ensejando o desenvolvimento econômico,
principalmente de Pelotas e Rio Grande.
No final do século XIX, a cidade do Rio Grande, em função do porto marítimo,
apresentou um significativo crescimento econômico direcionado ao abastecimento do mercado
nacional sendo que suas principais mercadorias eram os produtos têxteis e alimentares (HEINZ,
2010). Na área urbana de Rio Grande, estabeleceu-se uma pequena elite industrial e comercial,
proprietários de firmas de importação e exportação, composta por imigrantes alemães e teuto-
brasileiros. Esse grupo desenvolveu um florescente comércio, fundou indústrias, escolas, igrejas e
sociedades culturais diversas. Pode-se citar a Fábrica de Tecidos Rheingantz, a Fábrica de
Charutos Poock e dezenas de casas comerciais com filiais, inclusive, em Porto Alegre (LONER,
2001).
Em relação à educação teuto-brasileira urbana, no final do século XIX, nesta região,
foram fundados diversos colégios entre eles, o Collegio Allemão do Rio Grande. Pode-se citar
também o Collegio Allemão de Pelotas. Esses educandários de ensino primário e complementar
foram fundados por Sociedades Escolares Allemãs compostas, em sua maioria, por industriais e
comerciantes, membros das Comunidades Evangélicas Allemãs.
De acordo com o que foi mencionado anteriormente, a trajetória do Collegio Allemão do
Rio Grande e do Collegio Allemão de Pelotas assemelha-se ao tempo de existência, que foi em
torno de 44 anos, tendo suas atividades encerradas por ocasião da Segunda Guerra Mundial.
Collegio Allemão
Rua Benjamin Constant, 147
Dirigido pelo Reverendo Bruno Stysinski
Reabre as aulas no dia 16 do corrente.
Funciona todos os dias úteis das 8 à 1 hora.
Curso primário 12$000
Curso secundário 15$000
Serão leccionadas as matérias seguintes: portuguez, allemão, francez, arithemetica,
algebra, geometria, physica, historia natural, historia universal, geografia geral e do
estado, historia do Brazil, desenho, canto, gymnastica e trabalho de agulha.
Quanto ao ensino de latim, inglez, musica etc., trata-se com o diretor.
A directoria adquirio um novo professor suisso, esperado do Rio de Janeiro pelo
Victoria.
(O ECHO DO SUL, 1903, p. 3)
De acordo com Witt (1996), Bruno Stysinski era um ex-jesuíta convertido ao luteranismo
que veio para o Brasil em 1896 e, a partir de 1901 até 1905, exerceu o pastorado e a direção da
escola em Rio Grande, dados que conferem com a nota do jornal acima citada, mais
especificamente em relação à direção do Collegio Allemão do Rio Grande. O professor foi
pioneiro na metodologia da história, publicando Grundriss der Geschichte Brasiliens
(Compêndio de História do Brasil), em 1914, pela editora Rotermund em São Leopoldo
(KREUTZ, 1994, p. 105).
De acordo com dona Erica Pohlmann Frank, que ingressou no Colégio Rio-Grandense
com sete anos completos, há exatamente 80 anos, o colégio era mantido por uma sociedade
escolar da qual faziam parte alguns de seus familiares. No primeiro ano ela estudou na cartilha
Meine Bunte Fibel publicada pela editora Rotermund. No ano seguinte conheceu Herr Ristow,
um jovem professor que ministrou aulas no Collegio Allemão do Rio Grande, então denominado
Colégio Rio-Grandense, como já foi anunciado (ENTREVISTA COM ERICA POHLMANN
FRANK, 2012).
Ao estudar aspectos da memória do professor Arno Ristow e da ex-aluna Erica Pohlmann
Frank, fundamenta-se em Halbwachs (1990), que afirma que a memória do indivíduo depende do
seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a
profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse
indivíduo. Halbwachs, inspirado no sociólogo Dürkheimm, acreditava que os fatos sociais
consistem em modos de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotados de um poder
coercitivo pelo qual se lhe impõem.
Segundo Halbwachs,
Todavia, no final do ano, apesar de ter desempenhado perfeitamente suas tarefas docentes,
e - por ser brasileiro nato - ter sido convidado para ser diretor da instituição, transferiu-se para
Pelotas com o objetivo de assumir a docência na Escola Teuto-Brasileira de Três Vendas.
Atestado do Colégio Rio-Grandense
Rio Grande, 15 de dezembro de 1933
Rua Barão de Cotegipe, 415 – Rio Grande do Sul
A Diretoria do Colégio Rio-Grandense, abaixo assinada, atesta que o Sr. Arno Ristow
lecionou em nosso Colégio desde o princípio d’este ano escolar até hoje. Ao Sr. Ristow
foi confiado em primeiro plano o ensino da língua portuguesa e podemos afirmar que ele
desincumbiu-se perfeitamente de sua tarefa e a nosso pleno contento. O Sr. Ristow deixa
nosso Colégio por sua própria vontade para aceitar um lugar em outra escola. Ass.
Fernando Bromberg, Presidente – Wolfgang Mittermaier, Secretário (RISTOW, 1992, p.
146).
A partir da análise dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande de 1938,
percebe-se a reformatação do ensino em um colégio teuto-brasileiro urbano em Rio Grande.
Enfatizam-se os princípios da moderna pedagogia em consonância com a legislação do Brasil.
Artigo 1. A Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, onde tem séde e fôro, fundada
em 6 de outubro de 1898, tem por fim a manutenção de um colégio de ensino primário,
fundamental e complementar, mixto, denominado “Colegio Rio-Grandense”, instalado
actualmente em edifício próprio á rua Barão de Cotegipe ns. 409 e 415.
Artigo 4. Os sócios patenteam pela sua admissão que bem conhecem o fim da Sociedade
e que queiram apoia-la por todos os meios ao seu alcance, obrigando-se principalmente
ao pontual pagamento da mensalidade e ao cumprimento e acatamento das
disposições destes estatutos, do regimento escolar interno (grifo nosso), das
resoluções da Directoria e deliberações da Assembléa Geral, podendo ser excluídos se
procederem por qualquer modo contrários aos interesses e finalidades da Sociedade ou
se não pagarem suas mensalidades por mais de quatro mezes consecutivos.
Artigo 5. A sociedade é dirigida e administrada por uma Directoria eleita por maioria de
votos d’uma Assembléa Geral e composta de treis membros a saber: o Presidente, o
Secretario e o Thesoureiro.
Parágrafo Único: os membros da Directoria devem ser de descendência allemã e
saber falar simultânea – e corretamente o vernáculo e o allemão (grifo meu).
Artigo 13. A Assembléa Geral sómente poderá deliberar com o comparecimento de dez
sócios no mínimo inclusive os membros da Directoria. Não havendo este numero legal
deverá ser convocada uma segunda Assembléa no prazo de oito dias que delibera
validamente com qualquer numero de sócios.
Artigo 14. As deliberações são tomadas por simples maioria de votos, tendo o Presidente
voto de qualidade.
Compete também ao Presidente indicar a forma da votação.
Artigo 16. A duração da Sociedade é por tempo indefinido. Ella só poderá ser dissolvida
por acto d’uma Assembléa Geral Extraordinaria e pelo voto de sete oitavas partes dos
sócios.
O último artigo dos estatutos, enfoca a questão do patrimônio da sociedade, que, em caso
de dissolução, ficará por cinco anos à disposição de um educandário que possivelmente possa dar
continuidade ao Collegio Allemão do Rio Grande, denominado, então, Colégio Rio-Grandense.
Artigo 17. Resolvida que seja a dissolução da Sociedade fica o seu patrimônio durante
cinco anos á disposição de um estabelecimento idêntico n’esta Cidade que talvez possa
suceder ao Colegio Rio-Grandense. Terminado este prazo será o patrimônio entregue á
instituições do mesmo genero n’este Estado.
Estes estatutos foram discutidos e aprovados pela Assembléa Geral Extraordinaria do dia
19 de Setembro de 1938 e substituem e revogam os anteriores.
Rio Grande, 19 de Setembro de 1938.
Carl Hulverscheidt
Por meio da análise dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, de 1938,
pode-se perceber os efeitos da Nacionalização do Ensino no Rio Grande do Sul e, mais
especificamente, em Rio Grande. A língua alemã passou a ocupar o status de língua estrangeira,
apesar de receber cuidado especial, como uma consequência, por tratar-se de um colégio mantido
por uma sociedade escolar allemã, cuja diretoria era teuto-brasileira e fluente tanto em língua
portuguesa como em língua alemã.
Palavras finais...
Referências
GIESEBRECHT, Franz. Die Deutsche Schule in Brasilien. Berlin: Deutsch Brasilicher, 1899.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo:Vértice,1990.
HEINZ, Wagner Philip Portella. A Presença dos Imigrantes Alemães e sua Contribuição para
a Economia e Cultura na Cidade do Rio Grande (1824-1950). Pelotas: Editora
Universitária/UFPEL, 2010.
LONER, Beatriz Ana. Construção de Classe: Operários de Pelotas e Rio Grande (1888-
1930). Pelotas: Ed. Universitária. 2001.
NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”, In: Projeto História.
São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.
RISTOW, Arno. Memórias e Conquistas. 120 Anos de História da Família Ristow. Rio de
Janeiro: State-of-the-Art, 1992.
WITT, Osmar Luiz. Igreja na Migração e Colonização. São Leopoldo: Sinodal, 1996.
Resumo: A presente pesquisa, financiada pelo CNPq na condição de bolsa para iniciação científica, pretende
discutir como as práticas pedagógicas de ensino são apropriadas pelos docentes e, dessa forma, reinventadas
conforme a sua realidade escolar. Da mesma forma, como as ferramentas auxiliares, como livro didático,
cinema, música, televisão, internet, entre outras tantas tecnologias, se inserem no dia a dia do professor e, da
mesma forma, como ele utiliza dessas possibilidades, como se adapta. Focamos nesse trabalho mais a relação
entre livros didáticos e as histórias em quadrinhos. Dessa forma, pretende-se realizar um histórico dos usos
destas ferramentas no Brasil, de forma a demonstrar que não são novidades tais métodos de ensino, mas o que
faz a diferença é como o professor os utiliza em sala de aula, partindo da sua experiência de vida, do seu
acúmulo teórico e não tanto da ferramenta em si.
Palavras-chave: Metodologia; livros didáticos; história.
Abstract: This research, funded by CNPq provided scholarship for undergraduate research, will discuss how the
pedagogical practices of teaching are appropriate for teachers and thus reinvented as your school reality.
Likewise, as auxiliary tools such as textbooks, movies, music, television, internet, among many other
technologies, fall on a day-to-day teacher and, likewise, how it uses these possibilities, as fits. We focus in this
work over the relationship between textbooks and comics. Thus, we intend to conduct a historical uses of these
tools in Brazil, in order to demonstrate that such methods are not new to teaching, but what makes the difference
is how the teacher uses in the classroom, from his experience of life, his theoretical accumulation, rather than the
tool itself.
Keywords: Methodology; textbooks; history.
Introdução
1
Acadêmico de História na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), bolsista CNPq. Contato:
duduandstv_lg@hotmail.com
2
Doutora em História pela PUCRS, professora de História da Universidade Federal do Rio Grande. Contato:
jul_matos@hotmail.com
terra que ele tira o fruto que alimenta sua capacidade como profissional e, acima de tudo,
como humano. Para o professor de História isso é tanto mais grave, visto que se torna, a cada
minuto, mais complexa a sua tarefa.
Para que falemos de uma práxis renovada é necessário nos atermos em instrumentos
que, dialeticamente, interagem entre si e são os principais afetados nesse processo: a
metodologia e a teoria da História. Qual a abordagem que devemos ter com os alunos?
Ensinar sob qual viés teórico e historiográfico? Diante dos atuais debates no campo da
História, é correto utilizar determinada ferramenta ou dar enfoque a determinado fato
histórico em detrimento de outro? São perguntas que pululam na cabeça dos professores e
iniciantes na docência, rendendo debates acalorados e sendo o motivo da existência de várias
cadeiras de cunho pedagógico nos cursos de licenciatura. Tudo muito enriquecedor. Mas algo
se perde neste emaranhado de opiniões, teorias, metodologias e experiências. Há um charme
no “novo”, no “diferente”. Se há o diferente, obviamente há o “igual”, aquilo que
costumeiramente se chama de uma prática “conservadora”, “tradicional” e, num arroubo de
preconceito teórico, “positivista”. Então surgem milhares de fórmulas revolucionárias,
metodologias inovadoras com tecnologia de última geração, teorias que amplificam a visão do
observador tal qual um telescópio. A decepção quando se descobre que a maioria foi
construída e pensada para e em contextos passados e que, poucas trazem algo completamente
novo. O professor de História, na ânsia de melhorar sua prática, de estabelecer um melhor
diálogo com o discente, acaba perdendo de vista toda uma construção do ensino de História e
das práticas docentes.
O que tenho em vista neste artigo não é um empirismo puro e simplesmente, nem
renegar todas as teorias e metodologias construídas até agora. Ele aponta para a necessidade
de, antes de tudo, verificar a condição em que se realiza a prática, o tipo de aluno, o meio em
que o local de ensino se encontra, a condição social dos indivíduos envolvidos, etc. Assim,
escapando das saídas miraculosas e das soluções diferentes e imediatas, retomando as
primeiras lições sobre historiografia e extirpando antigos preconceitos, podemos fazer daquilo
que é “simples” a melhor das experiências de ensino-aprendizagem.
Para expor melhor esta ideia, organizei este artigo em subtítulos: no primeiro,
analisarei as diversas teorias da História que permeiam o fazer do docente deste campo do
conhecimento e como cada uma pode inserir-se no cotidiano escolar; em um segundo
momento será feita a análise de dois livros didáticos com propostas semelhantes, mas que,
diante de seu contexto político, obtiveram diferentes resultados, bem como aceitação por parte
dos professores; por fim, as conclusões prévias do trabalho.
Entende-se que, para evitar tipificações, é necessária uma profunda pesquisa sobre o
autor. Mas ao longo dos combates pela história (para usar o título de uma obra das mais
críticas aos metódicos, elaborada por Lucien Febvre) cristalizou-se a repulsa pela
historiografia de Seignobos. Aparentemente, a Sociologia saiu vitoriosa:
A pesquisa acurada sobre a obra dos metódicos nos põe alguns paradigmas, sem
dúvida: a pretensão da história universal e da verdade histórica; o fim da disciplina como um
acabamento das ciências políticas e sociais, subjugando todas as ciências humanas a um
cabresto histórico-metódico; o fetiche pelas “origens”, a historicização; o euro-centrismo; a
neutralidade imprescindível do fazer histórico. Problemáticas abordadas incessantemente
pelos críticos. Mas são seus representantes que fundaram noções de pesquisa e métodos dos
quais não se pode separar do fazer do historiador atual: a tríade heurística, análise e síntese; a
noção de fonte histórica, sendo estas “os traços deixados pelos homens”; o caráter indireto do
saber histórico, pois sempre há entre o historiador e o saber uma fonte, um intermediário que
repassa informações; a fundação da História como ciência pela capacidade de generalização.
Alega-se, como última crítica, o estilo “seco e analítico” dos metódicos. Devemos atentar, no
entanto, que
[...] se forem observadas a partir do contexto institucional do período – escolhas
pessoais, responsabilidades com o sistema de ensino -, as contradições perdem
sentido, pois foi, segundo Prost, o próprio Seignobos quem optou por aplicar as
operações do conhecimento histórico – análise e síntese – à didática. Toda a sua
carreira foi voltada para o ensino. Sua epistemologia era, portanto, uma
epistemologia de professor: muito diferente da geração dos Annales já bem situada
institucionalmente para praticar uma epistemologia do pesquisador (FREITAS,
2006, p. 276).
isolam, dificultando o diálogo fundante entre as partes, bem como entre diferentes campos do
saber. Isto, naturalmente, irá influenciar diretamente o processo de ensino-aprendizagem, na
medida em que
Na escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar
as disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os problemas, em
vez de reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a
separar o que está ligado; a decompor, e não a recompor; e a eliminar tudo que causa
desordens ou contradições em nosso entendimento (MORIN, 2001, p. 15).
[...] no fim das contas, acabamos num safári em que a ‘caça’ é de elementos que
permitam informar se o objeto estudado é positivista/tradicional, marxista ou ligado
à história nova que se reivindica como filiada à École des Annales, ou, de maneira
ainda mais simplista, se o objeto pode ser catalogado como conservador ou
renovado (CERRI, 1997, p. 45).
Acabar com o preconceituar infundado é fundamental para que nossas práticas como
professores tenham um salto qualitativo.
As fontes que utilizarei para embasar meus argumentos são dois livros didáticos:
“História”, de José Roberto Martins Ferreira, coleção lançada pela editora FTD em 1989; e
“História do Brasil para Estudos Sociais”, coleção lançada pelo IBEP em 1975. As duas
coleções abrangem o Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries). Assim, pretendo demonstrar que
uma metodologia inovadora à época – a utilização de Histórias em Quadrinhos nos livros
didáticos – pode revelar-se engessada ou sendo um instrumento utilizado aquém do seu
potencial. Antes da análise da fonte propriamente dita, temos que levar em conta a estrutura
que a envolve, pois o objeto não o é sozinho: a fonte está inserida em determinado momento
histórico, e seus símbolos e estruturas convergem necessariamente para esta realidade.
Fica nítido, exposta as datas de publicação das coleções, que elas estão separadas por
quase duas décadas, de intensas mudanças no cenário político e ideológico brasileiro. Os
livros de Julierme de Abreu e Castro estão inseridos na época de forte repressão do regime
civil-militar brasileiro. A disciplina de História havia sido extinguida do quadro do Ensino
Fundamental, juntamente com outras da área de Ciências Humanas, reorganizadas em uma
ampla disciplina denominada “Estudos Sociais”, no campo da legislação, a Lei 5692/71. Este
novo ordenamento das disciplinas foi um baque para os docentes da área, perdendo sua
autonomia como historiadores, geógrafos ou sociólogos, para ministrar aulas sobre assuntos
que não estavam preparados. Este projeto, no entanto, vinha de longo prazo. Itamar Fraco
analisa como Murilo Mendes, catedrático das décadas de 1930 e 1940, inspirado por ideias
pedagógicas americanistas, planejava uma reforma das Ciências Humanas já em 1935:
Nestes novos paradigmas, para Murilo, a História perdia função como saber
autônomo: somente com a integração das outras ciências ela perderia seu caráter de “culto aos
vultos do passado” para tornar o mundo inteligível ao discente através da experiência
histórica; assim,
[...] o ensino de história não teria valor em si. Sua importância, e daí a sua
finalidade, seriam justificadas pelo necessário predomínio das ciências sociais no
currículo do secundário – história, geografia, economia, sociologia, educação cívica
e ciência política. [...] [a História] deveria incorporar a ‘finalidade máxima’ dos
estudos sociais, qual seja, a de ‘conseguir uma compreensão e uma apreciação do
ambiente social do aluno, de forma a que ele possa contribuir eficazmente no
desenvolvimento do bem estar coletivo’ (ITAMAR, 2006, p. 236).
A História manteria seu posto de ciência máxima, designado por Marx e Seignobos,
mas teria de dividir espaço com as outras ciências sociais, pois só assim seu ensino teria um
objetivo condizente com a nova sociedade democrática que se pretendia fundar. Porém,
Murilo Mendes teria de esperar seu projeto pedagógico concretizar-se quatro décadas depois
de seus escritos, com significativas mudanças de rumo. A aproximação com as ideias norte-
americanas eram uma base em comum. Porém, os fins não eram mais “democráticos”, mas
sim de forma a “aumentar a eficiência” dos estudos, bem como para o melhor exercício da
cidadania. O ensino deveria seguir as diretrizes ideológicas do período, que eram a ordem, a
disciplinarização e a não valorização da opinião do aluno, conforme a ordem política
autoritária e centralizadora. Para tanto, foram despendidas medidas econômicas que
facilitariam esta nova ordenação das disciplinas, como cursos preparatórios para os
professores, totalmente pagos pelo Estado e isenções fiscais para editoras que elaborassem
livros didáticos dentro dos padrões do regime. É o caso do Instituto Brasileiro de Edições
Pedagógicas (IBEP), fundado em 1965, que existe até os dias atuais. Em texto de
apresentação da editora, esta se orgulha de ter “capital genuinamente brasileiro”, como não
poderia ser diferente, pois sua sustentação deu-se em um período de intensa nacionalização de
empresas brasileiras, de apostar e beneficiar aquelas que nasceram na pátria. Assim, o IBEP
constrói sua história como editora patrocinando as obras didáticas e paradidáticas no regime
militar e, como está no próprio texto já referenciado anteriormente, “participou de todos os
programas educacionais do governo para o fornecimento de livros didáticos desde a sua
fundação.” Esta é a editora pela qual Julierme lançará sua obra.
Julierme de Abreu e Castro, bacharel em História, Geografia, Antropologia e
Geologia, possuía já na época do lançamento da fonte supracitada alguma experiência no
ramo das obras didáticas. Também lecionou em várias instituições durante sua carreira,
realizando pesquisas e publicando estudos nas diversas áreas em que é formado. O surgimento
da disciplina de Estudos Sociais facilitou sua inserção no mercado das obras didáticas, visto
ser ele um dos poucos acadêmicos a transitar com facilidade por diversas áreas do
conhecimento e ainda ter experiência como docente. E a obra aqui analisada de Julierme
realmente foi distinta para sua época: um livro didático de “História do Brasil” inteiramente
concebido no formato de Histórias em Quadrinhos. Com a ajuda dos desenhos de Rodolfo
Zalla e Eugênio Colonnese, a proposta inovadora foi lançada para as escolas de todo o país.
No início dos livros, há sempre a “carta ao professor”, uma espécie de editorial em que o
autor justifica-se por ter elaborado o livro com determinada proposta. Julierme enfatiza que a
“guerra santa às revistas de historietas em quadrinhos” não faz mais sentido no campo
educacional, pois “A técnica do quadrinho é válida tanto para a historieta do pato como para
os mais ‘sérios’ temas de qualquer campo da educação”, e que esta técnica teria vantagem
sobre as enciclopédicas obras tradicionais, pois é “tão eficiente quanto um bom filme”,
atraindo a atenção do mais disperso dos alunos (CASTRO, 1975).
Julierme considera a tática viável com alunos imaturos e que, gradualmente, eles vão
homogeneamente amadurecendo a fim de compreenderem signos mais complexos. Assim, há
a infantilização das Histórias em Quadrinhos. Esse é um detalhe crucial para entendermos a
crítica aqui feita: a falta de complexidade atribuída a um objeto que reúne diferentes tipos de
narrativas como as HQ’s. Vergueiro nos elucida a questão:
Essa redundância se cristaliza na obra de Julierme pela repetição incessante de fatos históricos
e da simplificação da “história dos vitoriosos” e que estes seriam os exemplos morais a serem
seguidos.
[...] o sentido da tradição, as normas do viver associado, os princípios morais, as
regras de comportamento operativo válidas no âmbito da sociedade burguesa
A outra obra utilizada aqui como fonte está em um período diametralmente oposto à
de Julierme. “História”, coleção para o Ensino Fundamental (5ª a 8ª série), de José Roberto
Martins, foi lançada pela editora FTD, em 1989, no processo que se chama
“redemocratização” no Brasil. As liberdades políticas haviam voltado; vivia-se no campo do
ensino aquilo que foi apontado no começo deste artigo, uma desconstrução da moral cívica
defendida pelos militares, tendo como base essencial uma virada marxista. Já é perceptível a
mudança no título da obra: não tratamos mais de Estudos Sociais, mas sim da disciplina
autônoma História. A organização curricular ainda carregava alguns esqueletos dos antigos
Estudos Sociais, como Organização Social e Política Brasileira e Educação Moral e Cívica e
toda uma geração de professores formados sob a ótica da integração das disciplinas, mas os
livros didáticos de Estudos Sociais foram gradualmente sendo deixados de lado. Não havia
ainda um programa de livros didáticos de grande proporção, ele só aparece em 1996, na
esteira de várias reformas educacionais, como o PNE (1998) e a LDB (1996).
A FTD é uma editora mais antiga que o IBEP, atravessando boa parte da história
editorial brasileira. Dos livros de gramática para os colégios Maristas no início do século XX
para grandes coleções de História no século XXI, permeando várias áreas, principalmente a
literatura infantil e mesmo Estudos Sociais, passou por várias transformações durante sua
trajetória.
José Roberto Martins é licenciado em História, possuindo Mestrado e Doutorado em
Ciências Sociais. Em sua obra é perceptível a sua vertente teórica: o materialismo histórico.
Nos segundo capítulo do livro destinado à 5ª série, está definido que “Para nós que estamos
estudando História, o que interessa são as diferenças sociais, não as físicas.” (MARTINS,
1989, p. 5). Assim, desloca-se a importância do espaço, do geográfico, para as mudanças
sociais ocorridas na sociedade. Outro trecho destacado no livro da 8ª série, sobre a Revolução
Industrial, reforça este ponto:
O caráter social é, pois, o caráter geral de todo o movimento; assim como é a própria
sociedade que produz o homem enquanto homem, assim também ela é produzida
por ele. A atividade e o gozo também são sociais, tanto em seu modo de existência,
como em seu conteúdo, atividade social e gozo social (MARX, 1987, p. 175).
Está claro o materialismo de Marx e aplicação destes preceitos por Martins em sua
obra. Mas apenas os apresento aqui como análise indispensável da teoria com que mina fonte
se embasa. A época é diametralmente oposta à de Julierme justamente por permitir a quebra
Considerações finais
Sua contribuição mais importante para o estudo da história poderia consistir no fato
de que os estudiosos aprendem, no processo mesmo de obtenção da competência
profissional, a não dissociar sua própria subjetividade da objetividade do
pensamento científico, mas sim de emprega-la frutiferamente na construção dessa
Referências
CASTRO, Julierme de Abreu. História do Brasil para estudos sociais 5ª / 6ª série. São
Paulo: IBEP, 1975.
FERREIRA, José Roberto Martins. História: 5ª / 6ª / 7ª / 8ª Série. São Paulo: FTD, 1989.
HOBSBAWM, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
Alejandro Romero1
Benito Bisso Schmidt2
Carlos Jarenkow3
João Paulo Buchholz4
Resumo: O presente artigo pretende trabalhar o uso de fontes primárias em sala de aula no ensino de história.
Fazendo parte do subprojeto história do Pibid UFRGS 2014-2018, são pesquisadas e refletidas as possibilidades e
potencialidades do uso pedagógico de documentos históricos oriundos da própria instituição escolar e em que medida
estes podem contribuir para uma maior problematização dos conteúdos que estão sendo trabalhados na sala de aula,
permitindo uma compreensão qualitativamente melhor da complexidade da produção de conhecimento histórico. A
título de exemplo, neste artigo são abordados especialmente os temas referentes à ditadura militar e ao imperialismo
cultural nas décadas de 60 e 70.
Palavras-chave: arquivos escolares – documentos históricos – ditadura – dominação cultural – ensino de história.
Abstract: This article intends to work using primary sources in the classroom for teaching history. Part of the
subproject História of the PIBID UFRGS 2014-2018, are researched and reflected the possibilities and potential of
pedagogical use of historical documents coming from school institution itself and to what extent they can contribute
to greater questioning of the contents that are being worked on in the classroom, allowing a qualitatively better
understanding of the complexity of the production of historical knowledge. For example, in this article are
particularly address issues related to the military dictatorship and cultural imperialism in the 60s and 70s.
Keywords: school archives – historical documents – dictatorship – cultural domination – teaching of history.
1
Bolsista PIBID/UFRGS. Contato: allejo.romero@gmail.com
2
Doutor em História, docente da UFRGS e coordenador PIBID/UFRGS-CAp. Contato: benitobs@terra.com.br
3
Bolsista PIBID/UFRGS. Contato: carlos.jarenkow@gmail.com
4
Bolsista PIBID/UFRGS. Contato: joao.buchholz@gmail.com
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. x-y, Jul. 2015
80
Neste artigo, queremos nos referir especialmente aos usos pedagógicos que podem ser
feitos dessa documentação oficial, produzida pelo próprio colégio originalmente para fins
administrativos. Tais documentos - como atas, projetos, correspondências, modelos de provas,
relatórios, etc. - aparentemente tão áridos, aborrecidos e opacos, podem se revelar muito
estimulantes quando contextualizados e interrogados desde o ponto de vista histórico. Afinal,
como sabemos muito bem, ao menos desde o estabelecimento da École des Annales, os
documentos só falam quando perguntados pelos historiadores. Esse exercício de análise de
documentos, como queremos mostrar, pode ser bastante proveitoso nas aulas de História, tanto
para dar conta de determinados “conteúdos”, quanto, e principalmente a nosso ver, para permitir
aos alunos compreender como se constrói o conhecimento histórico, com suas possibilidades e
limites. Obviamente o uso de documentos nas aulas de História não é nenhuma novidade,
servindo esses, por vezes, como mera ilustração ou “prova da verdade” de determinadas análises,
e, nos melhores casos, como material provocador de reflexões e debates. Porém, queremos
insistir na potencialidade do uso pedagógico de documentos escolares, seguidamente menos
“monumentais” que uma Carta de Pero Vaz de Caminha ou uma notícia de jornal sobre a
Segunda Guerra Mundial, só para citar alguns exemplos frequentes nos livros didáticos, mas
certamente ricos por dizerem respeito ao próprio espaço escolar onde transita o discente.
Para concretizarmos a nossa proposta, apresentaremos inicialmente uma breve reflexão
sobre o documento histórico e seu uso em sala de aula. A seguir, traremos dois exemplos de
documentos localizados no Fundo Comissão de Ensino CAp-UFRGS, seguidos de sugestões para
seu uso nas aulas de História. Desta forma, esperamos alertar para a variedade e riqueza destes
materiais e para seu potencial como recurso didático.
História a partir de outros pontos de vista em relação aos métodos tradicionais de ensino, como a
simples aula expositiva.
Acompanhando esse processo, os documentos considerados históricos – levando em conta
que todo documento pode ser histórico dependendo da pergunta que a ele é feita - entram no rol
desses novos elementos com a proposição de conferir não apenas vida e clareza, como também
complexidade às aulas de História. Tal valoração do documento no ensino de História tem sido
explorada pelos livros didáticos, porém seguidamente, apenas sob a forma de “boxes” onde
alguns documentos surgem – na íntegra ou fragmentados – para reforçar ou “comprovar” as
afirmações feitas na parte principal dessas publicações; esse mesmo caso ainda aplica-se às
imagens, que servem, em muitos casos, somente para reafirmar em outra linguagem o texto
escrito. Postura semelhante para com o documento é assumida, muitas vezes, quando o docente
acaba por utilizá-lo para comprovar a veracidade das informações de sua aula expositiva, como se
dissesse: “Vejam! O que eu estou falando é verdade, olhem só este registro que comprova!”.
Contudo, este tipo de recurso ao documento, executado tanto pelos livros didáticos quanto pelos
docentes, perpetua uma relação com as fontes históricas que há muito foi abandonada pela
história acadêmica: a noção de correspondência direta entre o relato e o fato. Em tal perspectiva –
que em muito se assemelha à concepção de história dita “tradicional” – o documento surge como
uma evidência, uma verdade advinda diretamente do passado que comprova o relato sobre a
História.
Podemos incluir essa “invasão” dos documentos no ensino de História no mesmo
movimento da “revolução documental” que, na academia, transformou o conceito de documento
histórico ao trazer novos temas e novos atores à agenda de pesquisa do historiador. Se a história
das mentalidades, do cotidiano, do íntimo, das relações de poder, dos subalternos, só para citar
alguns exemplos, ganharam repercussão gigantesca na produção histórica das últimas décadas do
século XX, o mesmo pode ser afirmado em relação a tipos de documentos que em muito se
diferenciam do tradicional documento “oficial” ou político-diplomático. A própria noção de
documento histórico abriu-se completamente para novos olhares. Nessa revolução, alguns
estudiosos tiveram grande importância, como Michael Foucault (1969) e Jacques Le Goff (1988),
os quais debateram a questão do documento/monumento. Nilton Pereira e Fernando Seffner ao
tratarem da questão, sintetizaram que:
não pode ser considerada como uma instância à parte da sociedade e da vida política, um “outro”
da história. Dessa maneira, o olhar histórico para ela não pode ser diferente daquele que lançamos
a outros agentes individuais e coletivos. A instituição escolar, é claro, faz parte, assim como
outras instituições sociais, de uma trama de múltiplas temporalidades, de relações de dominação e
resistência, de uma rede de diferentes lógicas culturais e sociais que interagem entre si por meio
de alianças, conflitos, tensões, entre outros elementos. Sendo assim, o arquivo escolar permite
tanto a apreensão do contexto histórico mais amplo – principalmente quando “cruzado” com
outras fontes primárias e secundárias – quanto a aproximação com problemas que são geralmente
comuns à experiência do estudante, como receber um parecer do Conselho de Classe ou fazer
uma visita ao SOE.
Em suma, a entrada dos documentos históricos em sala de aula, juntamente com diversas
novas linguagens que fazem parte do universo de possibilidades que o professor tem de lidar, cria
novos desafios, mas também abre grandes possibilidades à aprendizagem e à compreensão
histórica no ensino básico. Como ressalta Selva Guimarães (2003, p. 164): “ao incorporar
diferentes linguagens no processo do ensino de história, reconhecemos não só a estreita ligação
entre os saberes escolares e a vida social como também a necessidade de reconstruirmos nosso
conceito de ensino e aprendizagem”. Dessa maneira, teremos mais uma “arma” para
enfrentarmos velhas questões como o desinteresse na aula de História “distante” da vida real e a
simplificação abusiva de determinados “conteúdos”, buscando estabelecer associações e
reflexões que permitam ao aluno perceber nos documentos escolares a relação entre as
experiências compartilhadas e as transformações vivenciadas nos períodos históricos estudados.
Vejamos a seguir alguns exemplos dessa riqueza documental oriunda do Fundo Comissão de
Ensino CAp.
Como dissemos antes, desde a sua criação até o princípio da década de 90, o CAp aplicou
um processo seletivo conhecido popularmente como “vestibulinho”, realizado para selecionar os
alunos considerados mais aptos para frequentar a escola. Nele, os candidatos realizavam provas
como as de História, Geografia, Matemática, Língua Estrangeira e Redação. Além disso, havia
testes psicológicos aos quais os alunos deveriam se submeter. Estes variavam conforme o ano.
Um, aplicado em 1970, foi escolhido por nós a fim de evidenciar a preocupação do colégio com
os estudantes que nele iriam ingressar. Como este teste psicológico pode ser útil para ser utilizado
em aulas de História? Antes de respondermos a essa pergunta, se faz necessário delinear
minimamente o contexto político no qual ele foi aplicado.
Durante a ditadura que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, houve uma preocupação
muito forte por parte do governo no que se diz respeito à juventude. Esta se dava principalmente
pelo fato de uma parcela significativa dos grupos de esquerda ser composto por jovens, como
aponta Alessandra Gasparotto:
Ao analisar os processos reunidos pelo projeto Brasil Nunca Mais, Marcelo Ridenti
concluiu que, dos 3.698 processados por ligação com grupos de esquerda cuja ocupação
era conhecida, 24,5% eram estudantes. Em relação aos denunciados por vinculação a
organizações armadas, esse número se amplia para 30,7% (583, num total de 1.897). [...]
Impunha-se então que se buscasse conquistar este segmento, antes que grupos
“terroristas” o fizessem. Autoridades civis e militares ligadas ao governo difundiam a
ideia de que o “processo subversivo visa infiltração na juventude”, alertando pais e
professores para que estivessem atentos quanto aos perigos aos quais os filhos estavam
expostos. (GASPAROTTO, 2012, p. 182)
A autora ainda examina campanhas que foram veiculadas tanto pelo governo como pela
própria imprensa da época na tentativa de evitar que os jovens adquirissem ideias as quais não
faziam parte do perfil desejado pelo governo e que ferissem os núcleos familiares mais
conservadores da sociedade (GASPAROTTO, 2012).
Outra maneira de se evitar, na visão das autoridades, a difusão de ideias de esquerda, era
mudando o sistema de ensino. Durante os anos de 1960 até meados dos anos 1980, predominou,
tanto nas universidades como nas escolas, a pedagogia tecnicista. Ela propunha uma educação na
qual tanto professores como alunos fossem meros instrumentos de um processo educativo maior,
ou seja, os dois principais agentes da educação deveriam estar devidamente enquadrados em um
mecanismo educativo que visava uma “racionalidade” e uma “neutralidade”, formando assim
alunos alienados e não questionadores. A pedagogia tecnicista tinha uma proposta que almejava o
progresso tecnológico e o conservadorismo cultural e político (SAVIANNI, 2012).
Dito isto, parece claro que a ditadura brasileira já foi muito estudada sob diversos prismas
pelos historiadores e pesquisadores de outros campos disciplinares. As questões abordadas por
tais estudiosos são variadas: aparatos repressivos, guerrilhas urbanas, abertura econômica ao
capital estrangeiro, censura, tortura, abertura, anistia, etc. Enfim, são muitos os temas referentes
ao período que podem e devem ser abordados em sala de aula. Dentre esses, também figura a
questão do controle social e a falta de liberdade política, ideológica e religiosa, os quais emergem
como pilares da atividade por nós proposta mais abaixo.
O “teste psicológico” aplicado no CAp é muito mais do que um meio de avaliar a suposta
“sanidade mental” de um aluno; é praticamente um teste político, ideológico, religioso e moral,
que se insere muito bem no contexto histórico descrito anteriormente. Ele materializa o temor da
escola, enquanto instituição pública, e de amplos setores da sociedade brasileira no período,
especialmente as camadas médias, junto das quais o anticomunismo era um ingrediente cultural
importante, das ideias ditas “subversivas”. Neste sentido, verifica-se que o teste deveria
selecionar alunos que não corressem riscos de serem seduzidos por propostas contrárias ao
regime vigente e à “família brasileira”. Assim, tal instrumento avaliativo visava saber como o
jovem se portaria quando entrasse em contato com ideias “diferentes” e, portanto, potencialmente
“perigosas”.
A partir unicamente do documento encontrado no Fundo Comissão de Ensino do CAp,
não temos como saber qual seria o tipo de resposta considerado como “normal” ou “adequada”,
mas com nossos conhecimentos referentes ao contexto do regime ditatorial, podemos sugerir que
essa deveria ser aquela julgada em consonância com a preservação da ordem religiosa, familiar e
política defendida pelos militares. Vejamos então o que diz o teste:
I. Um jovem adquiriu fora de sua casa opiniões religiosas e políticas, que estavam em
conflito direto com as idéias de seus pais. Neste momento, está de visita em sua própria
casa e se discutem assuntos religiosos e políticos.
Imagine e expresse espontaneamente o que lhe ocorrer, escrevendo:
O que ele fez e porque.
Como ele se sentiu.
Acreditamos que este teste pode ser utilizado como uma fonte histórica significativa para
se compreender uma das formas de controle social da ditadura, que é justamente a tentativa de
cercear a divulgação de ideias de esquerda entre os jovens, considerados ao mesmo tempo “o
futuro da nação” e “um perigo em potencial”, pois, na visão dos agentes da repressão, mais
suscetíveis à “contaminação subversiva”. Além disso, a fonte possibilita situar o próprio aluno
como agente histórico, já que ele faz parte da própria instituição produtora do documento. Desta
forma, trabalha-se, simultaneamente, sentimentos de pertencimento e de alteridade em relação
àquele contexto, o que permite a realização de comparações entre o sistema escolar vigente hoje e
o sistema escolar daquele tempo.
Sabemos que as fontes são inesgotáveis e podem servir a diversas interpretações. O
documento apresentado pode se prestar, inclusive, para problematizar a própria construção do
conhecimento histórico, levando-se em conta elementos como: a necessidade de se contextualizar
e de se interrogar, desde o presente, os vestígios do passado para que eles “falem”; as
possibilidades e limites de cada fonte para nos contar sobre tempos pretéritos; entre outros.
Pensamos preliminarmente em uma maneira de utilizar esse documento na aula de
História, lembrando que o melhor momento para tanto, parece-nos, é aquele em que se aborda o
tema da ditadura brasileira iniciada em 1964, por se tratar de um “vestígio” daquele período. Tal
atividade, como já foi dito, tem como objetivo propiciar uma reflexão por parte do aluno a
respeito do controle social estabelecido durante o período de exceção em seu desejo de extirpar as
ideias contrárias ao sistema; além disso, podem ser trabalhados, a partir do documento, conceitos
como os de ideologia, liberdade de expressão, religiosa e política, alienação e conservadorismo.
Sugerimos, assim, utilizar o “teste psicológico” antes do início de qualquer explanação a
respeito do tema referido. Deve-se então informar aos alunos a origem do documento, a data e o
contexto histórico em que foi produzido sem fornecer, entretanto, muitas outras pistas. Porém,
seria proveitoso que os alunos já possuíssem algum conhecimento relacionado às disputas
políticas e a questões religiosas discutidas no contexto em tela. Caso não possuam, torna-se
importante fazer uma breve exposição sobre diferentes posicionamentos nos dois âmbitos. Seria
interessante também perguntar aos alunos o que eles entendem por testes psicológicos, se já
realizaram algum ou se eles têm alguma ideia de como funcionam e para que servem (como os
testes psicotécnicos utilizados para tirar carteira de motorista ou em seleções de emprego).
Provavelmente, durante este primeiro contato, os alunos não entenderão muito bem do
que se trata a atividade e nem terão compreensão do significado do documento. A ideia do
estranhamento é normal e produtiva, pois se torna condição de possibilidade do conhecimento.
Nesse sentido, a sensação de estranheza que o aluno manifesta pode ajudá-lo a estabelecer
comparações entre a sociedade brasileira atual, ou seja, democrática (sem deixar de levar em
conta todos os limites desta democracia), e aquela que viveu a ditadura. A falta de sentido para o
aluno pode ajudá-lo a se colocar no lugar daquele jovem dos anos 70, para quem talvez a questão
proposta no teste fizesse todo sentido. Podemos assim, como mediadores do conhecimento,
O aluno cyborg
O uso de documentos históricos em sala de aula, conforme vimos antes, não é nenhuma
novidade. Evidentemente nos parece bastante positivo trazer este recurso para o contexto de
ensino-aprendizagem, porém, deve-se ter em mente alguns cuidados. Em primeiro lugar,
insistimos, o documento (seja ele escrito, visual, oral, etc.) não deve ser utilizado como mera
ilustração do conteúdo abordado. Nesse sentido, devemos atentar (e evitar) a fácil associação
entre documento e verdade. Por conta do status de comprovação que os documentos –
inicialmente apenas os escritos e oficiais – adquiriram no final do século XIX, a concepção destes
como reflexos da realidade ainda persiste nos dias de hoje, apesar das múltiplas críticas dirigidas
a tal ideia. Portanto, acreditamos, o documento não deve ser levado à sala de aula para comprovar
ou exemplificar a interpretação já apresentada pelo professor, mas, sim, pensado como um
vestígio do passado, um indício de relações sociais e também uma narrativa a ser interrogada
desde o presente. Dessa maneira é possível demonstrar aos alunos que o conhecimento sobre o
passado não está dado ou pronto, mas depende das questões que formulamos com base nas
preocupações do nosso tempo, com base nos documentos do passado – pensando aqui documento
de maneira ampliada, como qualquer vestígio de ações humanas pretéritas – os quais se, por um
lado, nos permitem vislumbrar certos aspectos das sociedades humanas ao longo do tempo,
também silenciam sobre outras.
Através dessas perguntas aos documentos e do reconhecimento de suas possibilidades e
limites, é possível apresentar um pouco aos estudantes o que é o oficio do historiador e como se
processa a constituição do conhecimento histórico, evidenciado a distância entre o passado e o
conhecimento produzido sobre ele. Neste sentido, o documento que apresentaremos adiante,
também localizado no Fundo Comissão de Ensino do Cap, traz muitas potencialidades para
ampliar a noção de documento histórico dos alunos e indicar certas formas de interrogá-lo.
Este documento apresenta uma particularidade em relação a maioria dos outros materiais
do acervo que estamos organizando, pois não foi criado por professores ou funcionários do CAp
e sim por um aluno (embora induzido por uma proposta da instituição). Trata-se de uma redação
escrita para a prova de Linguagem do processo de seleção para o ingresso na 6° série do I Grau,
no ano de 1975. A seguir, transcrevemos o documento para depois sugerir alguns caminhos para
sua interpretação e exploração didática. Segue o enunciado da atividade:
(Título: O Cyborg)
Um coronel da aeronáutica americana, Steve Austin num teste de um novo avião se
acidentou e perdeu as duas pernas e um braço e um olho, esmagados.
Tratou-se de conseguir-lhe um substituto de seu olho, pernas e braço.
Como não podia trocar as suas pernas e seu braço, se fez, duas pernas cibernéticas e um
braço cibernético. O olho foi conseguido de um jogador de futebol que morreu de parada
cardíaca.
No outro dia se fez a operação em Steve Austin. A operação foi muito bem sucedida, e o
coronel da aeronáutica americana tinha agora os seus elementos perdidos.
Quando já podia ir para casa, com enorme espanto sentiu que havia recuperado a vista,
no caminho de casa foi observando o caminho com muita atenção.
O seu doutor foi lhe visitar e ele perguntou:
- Doutor isto tudo que estou vendo é novo?
A resposta foi esta:
- Não, tudo é igual, a mesma coisa.
Nova pergunta feita pelo coronel:
- De quem foi este olho que agora é meu?
Nova resposta:
- Este olho foi do camisa numero 8 do Nova York Cosmos, não me lembro o seu nome.
- Muito obrigado, por ter, conseguido que eu recupera-se a minha visão que é o mais
importante, das partes que eu perdi.
Um mês depois foi trabalhar novamente.
E tudo correu muito bem o resto da sua vida.
Para concluir
O objetivo deste artigo foi apontar algumas possibilidades de exploração didática nas
aulas de História de documentos pertencentes a arquivos escolares. Normalmente estes acervos
são utilizados para pesquisas em história da educação, mas nos parece que eles também são
riquíssimos no sentido de propiciar reflexões sobre diferentes agentes, períodos e processos
históricos, conforme procuramos aqui exemplificar com o “teste psicológico” e com a redação a
respeito do cyborg localizados no Fundo Comissão de Ensino do CAp. Por dizerem respeito ao
espaço onde estudam os alunos, podem favorecer a compreensão das relações entre identidade e
alteridade, permanência e transformação, passado e conhecimento histórico, entre outras.
Esta proposição só reforça a importância de considerarmos estes arquivos não só em sua
funcionalidade imediata, mas também como importantes patrimônios históricos, capazes de nos
fazer pensar sobre o passado, o presente e o futuro de nossas sociedades e, mais especificamente,
de nossas escolas.
Referências
GUIMARÃES, Selva. Didática e Prática de Ensino de História. 12ª ed. Campinas: Papirus,
2003.
NIKITIUK, Sônia. Repensando o Ensino de História. 6ª ed. São Paulo: Cortez editora, 2007, p.
51-72.
PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que pode o ensino de história? Sobre o uso de
fontes em sala de aula. Anos 90, Porto Alegre, v.15, nº28, p.113-128, 2008.
MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
Resumo: A Educação do Campo parte da perspectiva de educar para a organização, tendo como objetivo que os
trabalhadores do campo se assumam enquanto sujeitos de transformação. Tendo em vista que o principal
potencial transformador da História é a oportunidade que ela oferece de praticar a “inclusão histórica”, esse
trabalho, ao analisar as práticas de Ensino de História existente em duas escolas inseridas no meio rural, busca
obter uma maior compreensão sobre o papel dessa disciplina para a construção de uma educação na perspectiva
da Educação do Campo. Ao fazer uma análise a partir da realidade dessas escolas, da comunidade onde estão
inseridas, das práticas pedagógicas e experiências de vida dos professores de História, a pesquisa propõe uma
reflexão sobre as possibilidades e desafios que se apresentam a partir do contexto atual do campo. Esse contexto
é resultado de um processo histórico de precarização da vida do agricultor camponês e da negação ou
desvalorização de suas particularidades, mas também de formação de um processo pedagógico de luta por um
projeto contra-hegemônico para o campo, protagonizado pelos agricultores camponeses. A pesquisa se encontra
em andamento, sendo que o processo de reunião dos dados está em fase de finalização, neste artigo analisam-se
os dados referentes a uma das escolas investigadas.
Palavras-chave: Educação do Campo, Ensino de História, Movimentos Sociais.
Abstract: The “Field Education”2 starts from the perspective of educating for organization, aiming that the
Rural workers recognize themselves as transformation actors. Knowing that the History transformation potential
is the opportunity that it offers to practice the "historic including", this paper, analysing the practices of History
teaching in two schools, located in the rural area, aims to understand the role of this discipline for the
construction of an education in the “Field Education” perspective. The analysis starts from the reality of those
schools, of the community where they're are part of, the pedagogical practices and also of the life experiences of
the History teachers, this research proposes a reflexion concerning the possibilities and challenges existing in the
current rural context. This context is the result of a historical process of the peasant life precariousness and the
denial of his particularities, but also of the creation of a pedagogical process of a struggle for a counter-
hegemonic project, played by the peasants. The research is in progress, the organization of the database is about
to be finalized, in this article the analysis is related to one of the studied schools.
Keywords: Rural Education, History Education, Social Movements.
Introdução
1
Universidade Federal de Pelotas. Orientadora: Profª. Dra. Lisiane Sias Manke. Contato:
juli.desousa@gmail.com
2
N.E: this author marks a different approach from “Rural Education”, that would endorse a traditional way of
teaching, to “Field Education”, which would address the specific needs of those directly involved in agriculture.
While the first would be more market-oriented, the second would benefit from the knowledge and needs from
those directly involved with agriculture, which could build their own perspective on “Education”.
Cerrito Velho, pois foi o local de origem do município de Cerrito. A escola, desde sua
fundação em 1937, passou por várias modificações resultantes das políticas para a Educação
em nível nacional. Essas mudanças podem ser identificadas nos diversos nomes que a escola
recebeu ao longo dos anos e representam as diversas fases da educação rural no país 3, que vão
desde as origens do ruralismo pedagógico4 até a adequação das escolas do campo ao modelo
urbano.
A partir das observações e dos questionários sobre o perfil da comunidade escolar,
algumas considerações sobre o contexto da escola podem ser observadas. A escola sempre
agregou estudantes da região e também já foi uma escola no modelo multisseriado. Com a
política de nucleação, o número de estudantes cresceu muito e atualmente a escola chega a
atender em média de 130 a 180 estudantes de localidades diversas 5, inclusive de outros
municípios. Essa nova realidade demandou modificações tanto na estrutura da escola quanto
nas práticas pedagógicas, exigindo à adequação dos professores a nova realidade.
Os alunos chegam a percorrer com o transporte escolar distâncias de até 20 km da
escola. Muitos desses alunos estudavam em escolas que foram fechadas com a política de
fechamento das multisseriadas, e, ainda, alunos que vêm de escolas menores, que possuem
ensino até as séries iniciais, como é o caso da EMEF Felipe dos Santos, que fica localizada
em uma região próxima, conhecida como Marmeleiro. Essa escola, sendo multisseriada,
leciona até o quarto ano das séries iniciais, depois dessas sérias a grande maioria dos alunos
muda para a Dr. Jaime Faria.
A escola conta com um quadro de 19 professores e cinco funcionários. Diferente da
realidade de muitas outras escolas, nas quais a maioria dos professores vem da cidade, do total
dos professores da Jaime Faria, apenas cinco não moram na Vila Freire. Dos 14 professores
moradores da localidade, muitos moram na região há muitos anos, sendo que parte
significativa desses professores foram alunos da escola e tem entre 20 a 30 anos de carreira.
Os professores têm uma extensa formação, com especializações e pós-graduação. A escola
atende das séries iniciais às finais do Ensino Fundamental. Os estudantes têm duas aulas
semanais de História. A maioria dos professores lecionou essa disciplina em algum momento,
pois a escola conta com apenas uma professora com formação especifica em Licenciatura em
3
Grupo Escolar do Cerrito Velho em 1937; Grupo Escolar Dr. Jaime Faria em 1952; Escola Rural Dr. Jaime
Faria em 1960; Escola Estadual de primeiro Grau Completo Dr. Jaime Faria em 1979; Escola Municipal de
Ensino Fundamental Dr. Jaime Faria em 1998 até os dias atuais.
4
Sobre o “ruralismo pedagógico” ver CALAZANS (1993) “Para compreender a Educação do Estado no Meio
Rural (Traços de uma trajetória)”.
5
Pertencentes ao 3º Distrito de Cerrito: Vila Freire; Marmeleiro; Colheco; Passo da Rosa; Coxilha dos
Bandeiras; Catimbau; Passo do Machado; Alto Alegre; Passo dos Aires; Alto do Patinho. E ainda de outros
municípios: Coxilha das Flores/Canguçu.
História. Essa professora, atualmente, dá aula dessa disciplina para as séries finais, outra
professora, que tem formação em pedagogia e foi entrevistada para a presente pesquisa,
leciona essa disciplina nas séries iniciais.
Dentre os diversos projetos nos quais a escola Dr. Jaime Faria está envolvida é
importante destacar a atuação do Observatório da Educação do Campo CAPES/INEP 6.
Principalmente por conta desse projeto, a escola, desde 2011, passa por um processo de
reconhecimento enquanto escola do campo e busca pensar em um projeto de escola mais
voltada para a perspectiva da Educação do Campo. Isso significa uma mudança profunda na
escola, onde as concepção e práticas em educação se transformam, dessa forma evidencia-se a
importância de reflexões sobre o Ensino de História que contribuam na construção da escola
do campo.
6
O Observatório da Educação do Campo/ CAPES-INEP é um projeto em rede realizado nos estados do Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná tendo por título “Realidade das escolas do campo na Região Sul do
Brasil: diagnóstico e intervenção pedagógica com ênfase na alfabetização, letramento e formação de
professores”. A coordenadora regional do projeto é a Drª Sonia Beltrame, da UFSC, enquanto no núcleo RS o
Observatório da Educação do Campo é vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas,
sendo coordenado pela Drª Conceição Paludo.
Frigotto (2010) propõe uma reflexão sobre a função social dos processos educativos na
produção e reprodução das relações sociais. Para o autor, a educação ao mesmo tempo é
constituída e também constituinte dessas relações. Sendo campo de disputa hegemônica, a
educação articula aos interesses de classe as concepções, a organização dos processos e
conteúdos educativos na escola. Dessa forma, a escola do campo é constituída a partir do
processo histórico de desenvolvimento do capitalismo no campo. Sendo, assim, um
mecanismo de reprodução de relações sociais dominantes, as quais perpetuam relações de
produção.
A partir das contradições históricas, ocorre a organização da classe trabalhadora do
campo em torno das estratégias para reprodução a partir da organização social, de acordo com
seus interesses enquanto classe, visando apresentar resistência ao projeto hegemônico e
protagonizar outro modelo de desenvolvimento. Um desses movimentos, de grande alcance
político, é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que, segundo Ribeiro (2010), é
resultado da ditadura militar, em 1980, que não pode mais sufocar os conflitos que decorrem
das contradições entre capital e trabalho no campo. Os movimentos populares rurais “propõe
romper séculos de políticas de expropriação/proletarização e dominação do campesinato
brasileiro, inserem a educação do campo em projeto popular de sociedade (...)” (RIBEIRO,
2010, p. 189).
A constituição originária da educação do campo como uma perspectiva de educação
que, aliada ao projeto de contra hegemonia, visa à superação das concepções e práticas da
educação rural.
A superação da educação rural vista apenas como uma formação mercadológica e a
recente concepção de educação do campo foram constituídas por uma longa trajetória de luta
e discussões no interior dos movimentos sociais, das entidades, representações civis e sociais
dos sujeitos do campo. A mudança na compreensão desse conceito reflete muito mais do que
uma simples nomenclatura. Ela é inevitavelmente o resultado de um olhar politicamente
referendado na busca pelos direitos sociais e na defesa da seguinte trilogia: educação,
sociedade e desenvolvimento, fatores indispensáveis para a concretização de projetos político-
pedagógicos que busquem encarar a realidade e atender as necessidades das populações do
campo. Sendo assim, essas são ações que pressionam as lideranças governamentais na criação
e organização de políticas públicas para os trabalhadores e trabalhadoras do campo
(SANTOS, 2012, p. 3).
Conforme Santos (2012), a Educação do Campo, enquanto movimento7, teve origem
nas experiências de resistência dos territórios camponeses envolvendo a luta pelo direito não
apenas de acesso à educação, mas também ao direito a uma educação de qualidade, vinculada
às problemáticas sociais vividas no campo, sobretudo, articulada com a luta por uma nova
sociedade. Portanto, como destaca Frigotto “[...] trata-se de uma pedagogia que não começa
na escola, mas na sociedade e voltada para a sociedade, sendo a escola um espaço
fundamental na relação entre o saber produzido nas diferentes práticas sociais e o
conhecimento científico” (2010, p.15).
Nesse sentido, a Educação do Campo, diferencia-se da educação rural (para o campo),
constituindo-se como um projeto contra-hegemônico de educação, que segundo Caldart
7
O movimento por uma Educação do Campo, desde 1998, com a primeira “Conferência Nacional por uma
Educação Básica do Campo” ganha âmbito nacional, envolvendo cada vez mais ONGs, movimentos sociais,
sindicatos, proporcionaram importantes conquistas de políticas públicas para projetos e ações educativas, como a
aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação do Campo, em 2002, a qual tenta contemplar a
diversidade do meio rural “[...] educação de qualidade social para todos os povos que vivem no campo, com
identidades diversas, tais como, Pequenos Agricultores, Sem Terra, Povos da Floresta, Pescadores, Quilombolas,
Ribeirinhos, Extrativistas, Assalariados Rurais”. (CNE/CEB nº 1, p. 2).
afirma-se para pôr fim às tentativas de “[...] fazer das pessoas que vivem no campo
instrumentos de implantação de modelos que as ignoram ou escravizam, e da visão estreita de
educação como preparação de mão-de-obra a serviço do mercado” (2002, p. 19). Os
trabalhadores do campo buscam pensar a educação que os interessa enquanto seres humanos,
sujeitos de diferentes culturas, enquanto classe trabalhadora do campo, como sujeitos das
ações e não apenas sujeitos às ações de educação e desenvolvimento. A Educação do Campo,
portanto, parte de uma experiência organizada dos trabalhadores do campo e da perspectiva
de educar para a organização, tendo como objetivo que os trabalhadores do campo se
assumam enquanto sujeitos da história.
Dessa forma, a educação e pedagogia do campo8 partem da particularidade e
singularidade dadas pela realidade dos sujeitos que vivem no campo, mas sem cair no
localismo ou particularismo, negando o conhecimento de uma universalidade histórica rica.
(FRIGOTTO, 2010, p. 15).
Segundo Lima e Bezerra:
8
A escola itinerante, a pedagogia da alternância, a revitalização das escolas multisseriadas e o Programa de
Educação Integral e Escola de Tempo Integral do Campo são algumas das experiências de organização de
práticas pedagógicas voltadas para uma Educação do Campo, construindo aos poucos alternativas as atuais
maneiras de aprender e ensinar no campo.
aliado aos interesses dos trabalhadores do campo e a perspectiva de uma nova sociedade,
torna-se um grande desafio.
A escola em foco nessa pesquisa se localiza em um contexto rural, onde a relação com
a terra esta muito evidenciada por conta do trabalho. Na escola, os professores relatam estar
cada vez mais difícil encontrar estudantes que queiram permanecer no campo, a perspectiva
na maioria das vezes está em ir para a cidade. O número de estudantes que quer continuar os
estudos cresceu, porém a continuação dos estudos sempre está relacionada ao encontro de um
bom emprego na cidade, já que para muitos, não é necessário estudo para a “lida” no campo.
Para a Educação do Campo, é impossível qualificar a escola sem fazer a leitura crítica
da realidade onde ela esta inserida, ou seja, dos processos históricos pelo qual essa realidade
se constitui. Portanto, uma escola na perspectiva da Educação do Campo deve proporcionar
uma educação que não busque fixar o sujeito no campo, mas deve contribuir para que o
educando seja livre para fazer suas próprias escolhas a partir de uma compreensão crítica
sobre o contexto histórico do campo. É o sujeito do campo que deve ter a compreensão
necessária para fazer uma leitura crítica da realidade a partir de suas próprias experiências,
valores e interesses. Nesse ponto pode encontrar-se o grande potencial do Ensino de História
enquanto mecanismo de compreensão dos processos e transformações da sociedade.
Segundo Hobsbawm (1997) os jovens são levados a aprender a história na escola não
para compreenderem a sua sociedade e como ela muda, mas para legitimá-la, para aprová-la e
orgulhar-se dela. A função do historiador é de não permitir uma visão imobilista da História,
que serve apenas como mecanismo de justificação de ideologias para manutenção de sistemas
excludentes. A escola tem um potencial transformador na medida em que fundamenta seus
trabalhos a partir das experiências históricas concretas dos sujeitos, nesse caso, a classe
trabalhadora do campo.
A falta de expectativa em relação à vida no campo também influencia na expectativa
em relação à escola. Um dos agricultores entrevistados e sua esposa, que trabalham com a
produção de leite na região da Vila Freire, quando questionados sobre a importância da escola
no meio rural deram respostas evasivas. Os entrevistados concordam que a escola é
importante, mas não sabem dizer o motivo de sua própria afirmação e acreditam que para a
vida no campo, a escola não ajuda muito, mas é importante para aprenderem a ler, para tirar
carteira de motorista, documentações e afins. Acreditam que é a vida na cidade que exige
mais estudo (informação verbal9). Esse fato é sintomático porque sabemos que os saberes dos
camponeses são diversos e riquíssimos, porém estão sendo substituídos e esquecidos, por não
serem valorizados. Dessa forma se torna necessário que esses fazeres e saberes estejam na
escola, o Ensino de História também deve ter valiosas contribuições nesse sentido na medida
em que se comprometa em articular a realidade local, saberes, memórias e culturas dos
sujeitos da escola e das diversas ruralidades existentes, as diversas expressões da vida no
campo, ajudando a forjar a identidade da escola do campo.
Podemos perceber que as escolas do campo são resultados de políticas públicas que
transferem modelos e conteúdos prontos e pensados por outros que não conhecem a realidade
de cada escola. O modelo de escola urbana é simplesmente implementado no campo sem
levar em consideração suas especificidades. O Ensino de História pode contribuir no processo
de situar o sujeito em relação ao seu passado e comunidade, contribuindo para a formação de
sua consciência social.
Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado (ou da
comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado é, portanto, uma dimensão
permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e
outros padrões da sociedade humana. (HOBSBAWM, 1997, p. 25)
Assim, torna-se necessário que a escola reconheça as particularidades do local e
compreenda que essas particularidades também forjam a escola, sendo parte de sua história.
Entretanto, sem isolar a História de seu contexto mais amplo. Seguindo o pensamento de
Hobsbawm:
“[...] Os historiadores, conquanto microcosmos, devem se posicionar em
favor do universalismo, não por fidelidade a um ideal ao qual muitos de nós
permanecemos vinculados, mas porque essa é a condição necessária para o
entendimento da história da humanidade, inclusive a de qualquer fração
específica da humanidade. Pois todas as coletividades humanas são e foram
necessariamente parte de um mundo mais amplo e mais complexo”.
(HOBSBAWM, 1997, p. 378).
Dessa forma torna-se necessário que as lutas, a História dos conflitos de resistência ao
projeto hegemônico de campo, estejam presentes nas aulas de História. Pois é através de uma
visão dialética e não linear da História, que é possível proporcionar ao educando as
ferramentas para a formação de sua consciência social. Nas aulas de História observadas,
entretanto, o que acontece é que pouco se explana sobre o campo, nesse sentido mais amplo, e
9
Entrevista com pequeno agricultor, autor pede anonimato, cedida à Juliana de Sousa Almeida. Cerrito, 15 de
setembro de 2014.
mesmo quando isso ocorre, segue a lógica não dialética da História, em que se perde a visão
dos conflitos e resistências do povo enquanto parte do processo histórico.
A questão da abordagem do campo em sala de aula foi muito discutida na entrevista
com a professora de História e as observações em sala de aula possibilitaram uma maior
compreensão da prática docente na escola Dr. Jaime Faria. Até o momento, uma professora
que leciona a disciplina de História do 1º ao 4º ano foi entrevistada, ela é professora há
aproximadamente 30 anos, formada em Pedagogia. Também já foram realizadas três
observações nas aulas de História.
A professora entrevistada é formada há 18 anos, cursou Pedagogia em um curso não
presencial na cidade de Pedro Osório10. Ela fez algumas tentativas anteriores de cursar
Estudos Sociais, mas mudou de planos e optou pela Pedagogia, pois era o que as condições
permitiam. Ela não possui especialização e relata que procura participar de todas as formações
continuadas possíveis, porém na área da História dificilmente encontra cursos e o último que
participou foi em meados de 2005. Do início de sua carreira até os dias atuais a professora já
lecionou a disciplina de História, Português e Ciências na escola Dr. Jaime Faria para as séries
iniciais e EJA.
As perguntas feitas na entrevista com a professora da escola Dr. Jaime Faria tiveram
vários eixos. Primeiramente buscou-se conhecer sobre o histórico da carreira da professora
como docente, tanto na própria escola quanto em outras, bem como sua formação. Também
foi considerado importante saber como a professora compreende a História e a importância
que ela tem para sua formação enquanto pessoa, bem como o porquê de ela achar importante
lecionar História, tanto de maneira mais abrangente, quanto especificamente naquela região.
A entrevistada também foi questionada sobre a importância da História da comunidade e da
escola. Essas perguntas foram mais direcionadas as concepções teóricas sobre a história e o
ensino de história. Posteriormente, a entrevista foi no sentido de aprofundarmos no
conhecimento sobre as práticas do professor. Para isso foi questionado sobre o processo de
organização das aulas, da seleção dos conteúdos, do material de referência. Também foi
perguntado sobre os principais desafios que se colocavam para o ensino de história na escola.
A professora entrevistada demonstra dificuldades em relacionar a disciplina de
História com a realidade do campo, segundo ela, isso se torna difícil na medida em que não
pode desviar-se dos conteúdos. A professora aponta que faz relações com a localidade,
citando o campo através de exemplos comparativos. Nota-se pela entrevista e também é
10
Entrevista com professora das séries iniciais. Cedida para Juliana de Sousa Almeida. Cerrito, 15 de setembro
de 2014.
possível perceber pelas observações, que existe uma perspectiva bastante limitada sobre o que
seria essa articulação dos conteúdos com a realidade da comunidade. Essa articulação se dá de
fato, quando não se faz apenas relações, mas uma leitura crítica da realidade local,
relacionando-a com um contexto mais amplo, e assim, construir conhecimento no sentido da
emancipação. Esse é o desafio para o professor de História que pense a partir de uma
perspectiva da Educação do Campo, que o estudante consiga perceber a influência desses
processos mais amplos, econômicos, culturais e sociais na realidade objetiva e que esses
processos históricos são construídos pela sociedade e podem ser transformados por ela. Como
ocorre nas extensas experiências concretas de luta dos camponeses e demais movimentos
sociais dos trabalhadores ao longo da história.
Quando questionada sobre a importância da História da sua vida, a entrevistada
destaca:
“Eu acho que é tudo né. Porque assim, sem o passado, como viver o
presente? Até a questão da própria família, começando na minha linha do
tempo. Qual foi minha origem? Se eu estou aqui, como que eu cheguei aqui?
O que eu espero? O que eu quero? Para onde eu vou? [...] Então eu acho que,
sem o estudo da História e sem pensar nela, não sei eu acho que eu me
sentiria perdida. [...] Ela é inicio, meio e nossa caminhada no dia a dia. E ela
envolve o todo se a gente pensar, ela caminha paralelo com todas as
disciplinas na realidade, uma coisa depende da outra. [...] Envolve o todo, eu
já olho sempre pela questão da linha do tempo, a que eu tanto não achava
muito engraçado no inicio, mas que hoje eu vejo que é tão legal né, que é
uma coisa desde do nosso nascimento, quer dizer, antes, desde dos nossos
antepassados e que agente vai além do que a gente estudo, do entorno né”.
(entrevista com professora das séries iniciais, 2014).
Em uma de suas falas, a professora afirma que é importante estudar história porque o
aluno deve valorizar o passado para saber o que é o presente. Ela defende que a história não é
“decoreba”, que precisamos compreender a história para mudar as coisas de hoje. Para isso, a
professora coloca que começa pela vida dos alunos, tentando relacionar os acontecimentos
históricos com a referência da vida cotidiana. Para a docente, a intenção da escola é valorizar
a localidade e em todas as aulas levar um pouco da comunidade, pois todos fazem parte da
História e pensar o papel das crianças nesse meio:
“Quando a gente está lendo eu tento comparar com algo aqui ou falar
determinada coisa. Agora mesmo no 4º ano eles têm a escravidão, isso
mesmo eu costumo falar, a gente trabalha muito pouco, mas eu sempre
coloco a questão dos indígenas, o porque da escravidão, de terem aceito
todos os colonos que vieram para cá, os imigrantes, toda aquela história
teorias, seria maravilhoso, aqui tem bastante alemão, italiano, eu coloco para
eles. A questão do clima, das nossas terras e aqui eu coloco agora mesmo
com a questão da escravidão, que aqui nós temos bastante cerca de pedra,
pois tinha muito escravo. Então a gente tenta colocar, “Aqui nessa localidade
tinha”, porque tem mais pessoas de pele negra, ou porque ouve mais a
miscigenação né, a questão da etnia, alimentação, porque a gente gosta de tal
tradicional. Assim, fazer relações com o cotidiano do aluno apenas para explicar o conteúdo
programático sugere que os conhecimentos locais não são mostrados como parte do saber
histórico, tornando-se mais difícil a construção do conhecimento por parte do estudante, no
sentido da emancipação.
Em relação os principais desafios colocados para o ensino de História, a professora
aponta:
“Olha, às vezes eu acho que é a própria família, quando tu pensas em fazer
algo novo...vocês que estão estudando não tem ideia. Se eles não levarem um
questionário de cabo a rabo para a casa os pais acham que não foi uma aula
de História. (...) pois tem pai que te cobra, ele quer avaliação, ele quer aquela
história bem do tempo dele, que é questionário de cabo a rabo. E o maior
desafio mesmo, além da família, é chamar a atenção do aluno” (entrevista
oral com professora das séries iniciais, 2014).
“[...] mas na História [...] acho que devia haver alguma coisa, como
aconteceu em 2005, como a questão do estudo da arqueologia, e eles deram
palestra, chamou a atenção e a gurizada toda gostou né, porque tudo que eles
faziam tinha um fundamento. Se eu não mostro uma coisa de fundamento e
que chame a atenção deles também. É complicado. Eu acho que é pouca
prática né, a gente fica muito na teoria e falta prática de campo, pesquisa de
campo, como se diz né. Vamos sair, vamos caminhar, lá no cemitério, ali tem
túmulos muito antigos. E agente acaba deixando, acho que é um erro até do
próprio professor. Vai ficando para depois. Esse ano mesmo foi muito
apertado... E aquilo que eu te falei, acaba a história ficando meia de lado e a
gente acaba não tirando tempo para fazer essa pesquisa de campo que
ajudaria” (entrevista oral com professora das séries iniciais, 2014).
11
Os questionários aplicados sobre o perfil dos professores sugerem que essa é uma realidade da maioria dos
professores, no que diz respeito ao tempo de profissão na escola Dr. Jaime Faria e a formação.
Considerações Finais
Referências
CALAZANS, Maria Julieta Costa. Para compreender a educação do estado no meio rural.
In: THERRIEN, Jacques; DAMASCENO, Maria Nobre (orgs). Educação e escola do
campo. Campinas: 1993, p. 15 – 40.
CALDART, Roseli. Educação do Campo: Notas para uma análise de percurso. In:
Trabalho Educação Saúde. Rio de Janeiro, v.7, n.1, p.35-64, mar/jun. 2009.
CONDE, Soraya Franzoni; PEIXER, Zilma Izabel (orgs). Educação do campo: reflexões e
perspectivas. Florianópolis: 2010, p. 19-46.
Entrevista com professora das séries iniciais. Cedida a Juliana de Sousa Almeida. Cerrito,
15/9/2014.
Entrevista com pequeno agricultor da região. Cedida a Juliana de Sousa Almeida. Cerrito,
15/9/2014.
FREIRE. Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 17ª Ed. 1987.
FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas Técnicas para o Trabalho Científico: explicação das
Normas da ABNT. 15. ed. Porto Alegre: s.n. 2011.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
LIMA, Lucileide Paz Ferreira de; BEZERRA, Maria do Socorro Soares. Educação do
Campo: Possibilidades e desafios no contexto atual. I Encontro de Pesquisas e Práticas em
Educação do Campo da Paraíba. Disponível em <http://ieppecpb2011.xpg.uol.com.br/>
Acesso em novembro de 2013.
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla B. O que e como ensinar: por uma História prazerosa e
consequente. In: KARNAL, Leandro. História na sala de aula: conceitos, práticas e
propostas. São Paulo: Contexto, 2003.
Resumo: O presente artigo analisa o Livro Didático de História como fonte e objeto de estudo. O texto que
segue tem como propósito através de uma abordagem generificada discutir as relações de Gênero, no que
compreende o manual nos capítulos que abordam o período medieval. Sendo assim, nossa proposta será de
perceber como as intrincadas relações de gênero se fazem presentes nos livros didáticos. A partir disso, o
propósito será de analisá-las através dos textos e das imagens contidas nos manuais. O trabalho empírico se
debruçou em cinco livros didáticos entre a última década dos anos noventa e a primeira dos anos dois mil. Os
exemplares foram escolhidos através dos critérios de: editoras de maior expressão no mercado do livro didático
(bloco das dez primeiras) segundo o P Nacional do Livro Didático (PNLD) e ano de publicação.
Palavras-Chave: Livro didático. Ensino de História. Gênero. PNLD.
Abstract: This article analyzes History textbooks as a source and object of study. The subsequent text intends
through a gendered approach to discuss gender relations, which includes chapters in manuals that discuss the
medieval period. So, our proposal is to understand how the intricate gender relations are present in textbooks.
From this, the purpose is to examine them through texts and images contained in the manuals. The empirical
work leaned in five textbooks from the last decade of the nineties and the first years of the 2000’s. The editions
were selected using the criteria of: publishers with the highest expression in the textbook market (the first ten)
according to PNLD and year of publication.
Keywords: Textbook. History of Education. Gender. PNLD.
Introdução
O Brasil é um dos países que mais investe na compra de livros didáticos para o Ensino
Fundamental e Médio. São milhões de exemplares distribuídos gratuitamente para todas as
regiões do país. Esses investimentos se expressam em números astronômicos no que se refere
à avaliação, aquisição e distribuição do livro didático.
“Em 2010, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o SNL (Sindicato Nacional dos
Editores de Livros) divulgaram o estudo Produção e Vendas do Setor Editorial
Brasileiro, 2009, encomendado para Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas
(Fipe), com representatividade de 78% do mercado editorial do Brasil. O estudo
1
Universidade Federal de Pelotas. Contato: mari.insaurriaga@gmail.com
O PNLD foi instituído pelo governo federal, oficialmente, por meio do Decreto n° 91
542, de 19 agosto de 1985, objetivando o Ensino Fundamental (CASSIANO, 2013), e,
reestruturado em 1993, posteriormente em 2007 ampliou-se do Ensino Fundamental e abarcou
os estudantes do Ensino Médio, também, (Guia do Livro Didático, 2015). Percebemos a partir
desse momento um aumento no acesso a estes materiais através das escolas de todo país. Foi,
em um primeiro momento, uma proposta de disponibilizar livros didáticos gratuitos para
todas as instituições escolares dos anos iniciais. Já nos primeiros anos do século XXI este
programa se expandiu atingindo os educandos que frequentavam o Ensino Médio e a
Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Em 1996 passa-se então a avaliar-se esses livros adquiridos pelas escolas, através de
uma junta de profissionais que a partir de um montante de critérios preestabelecidos
classificavam estes materiais. Assim, o PNLD faz uma seleção dos livros didáticos mais aptos
e que comportem todos os critérios exigidos, gerando um documento denominado “Guia do
Livro Didático”, em que estão expressos os critérios avaliativos e os livros mais adequados
frente às avaliações e passíveis de escolha dos professores (MUNAKATA, 2012). Assim:
“[...] O mecanismo que leva o Livro Didático até as mãos do estudante na escola
compreende várias etapas: lançamento de edital para editoras; avaliação dos livros, a
cargo de especialistas recrutados nas escolas e Universidades públicas de todo o
Brasil; escolha dos livros pelos professores, mediante o Guia do Livro Didático;
aquisição dos exemplares e distribuição dos mesmos sob a tutela do FNDE”.
(OLIVEIRA; SANTOS; MENEZES; SILVA; JESUS SANTOS, 2007, p. 54)
escolhas dos professores, pelo menos no que diz respeito àqueles que compreendem os anos
pós 1996. Frente a esta situação, levantam-se alguns debates referentes a “péssima escolha”
entre os professores mesmo tendo em mãos os guias “facilitadores”. Observa-se que esse
debate, fruto de algumas pesquisas superficiais, marcadas por posturas extremistas, tendem a
sugerir o professorado como o culpado por estas escolhas, consideradas “equivocadas”. No
entanto, debate este, como já dito, superficial e sem uma abordagem para além dos dados do
PNLD, MEC e INP. É importante ter cuidado quando lidamos somente com dados, e não
adentramos nas especificidades que levaram estes professores a fazerem determinadas
escolhas.
Figura 1.
Fonte: Guia do Livro Didático: PNLD 2012: História, 2011: 23. Acessado em: 11/10/2014 às 18h:
51min
Diversos são os motivos que podem perpassar esta escolha do professorado brasileiro,
uma delas, muito levantada nos debates, seria justamente o que comentei acima, a má
formação dos professores do Ensino Básico e Médio. Contudo, entendemos que essa
indagação não pode ser totalmente negligenciada, porém também segundo as leituras de
Munakata compreendemos que os professores não são os únicos culpados como nos parece a
partir das colocações mesmo que cautelosas do MEC.
“Embora essa hipótese [de má formação] não possa ser descartada, o que surpreende
é a ausência gritante da possibilidade de equívocos nas avaliações realizadas pelo
PNLD. Não é possível que os próprios avaliadores tenham uma formação
inadequada? Como o avaliador é avaliado? Como é recrutado? A esse respeito, o
Guia de Livro Didáticos, em várias edições, é extremamente lacônico”.
(MUNAKATA, [entre 1995 e 2014], p. 93)
Dito isso, percebemos a importância de entender o estudo do livro didático como uma
fonte complexa, e, além disso, como diz (BITTENCOURT, 2011) é um objeto de muitas
“facetas”, logo não podemos analisá-lo sem perceber suas relações com mercado, com as
políticas educacionais, como veículo portador de um sistema de valores, além disso, como um
suporte pedagógico. Ademais, para além dessas questões também devemos percebê-lo no
sentido que envolve diversos sujeitos no seu processo tanto de fabricação, como de consumo
(BITTENCOURT, 2013):
Partindo de todas essas questões iremos fazer uma abordagem dos livros didáticos com
um “olhar generificado”. A proposta aqui consiste em realizar um estudo desses materiais no
sentido de percebê-los para além de uma fonte, mas entendendo os diversos agentes que
interpassam sua criação e distribuição. Partindo deste princípio vamos nos ater as questões
intrincadas nas relações de gênero dentro dos manuais. Esse estudo será realizado no que
compreende o recorte temporal da Idade Média dentro livro didático, o propósito será de
analisar imagem e texto, observando como essas relações de gênero dialogam dentro do
mesmo.
Para que nosso estudo seja possível precisamos entender o contexto que ele foi e está
sendo forjado, para que possamos ter um melhor entendimento do livro didático tanto como
nosso objeto estudo, quanto fonte de pesquisa.
Os estudos e debates sobre o livro didático nos últimos trinta anos vêm se ampliando,
os pesquisadores do tema como Choppin e Bittencourt mostram a sua complexidade e
múltiplas “facetas”. Dentre as primeiras dificuldades de se estudar os manuais didáticos estão
as poucas pesquisas sobre o tema e a sua difícil conceituação.
Partindo dessa problemática, as reflexões de (BATISTA; GALVÃO, 2009) nos
apresentam o livro didático como um objeto de difícil definição, que deve ser estudado a luz
de seu tempo, pois este não tem um conceito pronto, por que passou por diversas mutações ao
longo da história. Assim, a partir das leituras destes autores fica claro que, convencionou-se,
no século XIX e XX através de uma conceituação feita em 1984 por um grupo de estudiosos
fixarem o livro didático em um suporte por excelência. O livro então passa a ser associado a
uma forma privilegiada de registro, onde o impresso foi vinculado a áreas bem delimitadas,
onde algumas disciplinas faziam parte, e a História constituiu-se uma dessas ciências (p. 13).
Porém, dentro dessa complexidade de conceituar os autores nos mostram que tanto no
presente, ou em um futuro próximo esse conceito vem se ampliando. Sendo assim, trazem os
diversos suportes que abarcam os materiais didáticos. Para estes dois autores o suporte livro
didático se constitui também em:
etc., toda sorte de documentos produzidos para um público mais amplo e incorporado pelo
professor a suas aulas (BITTENCOURT, 2011, p. 297).
O conceito de livro didático utilizado neste artigo baseia-se nas normas do PNLD e
segundo a conceituação da autora (BITTENCOURT, 2011). A pesquisa está inserida em um
período no qual os livros devem estar articulados a um padrão de suporte para serem aceitos
pelo programa do livro didático, sendo assim nosso suporte será preferencialmente o que a
autora Bittencourt chama de “suportes informativos”.
As pesquisas sobre o livro didático começam a surgir timidamente a partir da Escola
dos Annales, ou melhor, da terceira geração dos Annales, onde o conceito de fonte é ampliado
e esses temas que ficavam na marginalidade das pesquisas começam, mesmo que
timidamente, a aparecer. Os estudos sobre o livro didático surgem junto com a história do
livro e da leitura. Não seria diferente com os estudos de gênero e história das mulheres, que
nesta mesma fase passa-se a incorporar as pesquisas históricas.
relações de gênero no livro didático pode nos dizer muito mais de nossa sociedade atual do
que das próprias relações no período medieval. Conforme Choppin:
Diante disto, nossa intenção é dar visibilidade ao invisível, buscando os não ditos
destes manuais. Assim, para pensar o universo feminino na produção do livro didático não
podemos deixar de rastrear os começos infindáveis da história das mulheres. Farei uma breve
contextualização dos acontecimentos protagonizados pelas mulheres no que se refere aos
espaços de lutas e suas reivindicações no que compreende o final do século XIX até o auge
das lutas feministas nos anos 1960 e 1970.
Foi então a partir das lutas feministas que propunham a resistência e busca por
direitos, que, passamos a perceber uma flexibilidade pequena, mas substancial para com a
realidade vigente das mulheres em sociedade. Nesse fervor de lutas seus direitos passam a ser
ampliados. Em um primeiro momento no sentido das mulheres obterem o direito de votar e
serem votadas, logo em seguida abrangendo seu amplo “leque” de luta, e passam a
adentrarem a todos os espaços da sociedade.
Partindo deste princípio entendo que os movimentos sociais foram de extrema
importância para que as condições de invisibilidade não só em sociedade, como através até
mesmo de mecanismos ideológicos como o próprio livro didático tivessem mudanças reais.
A luta das mulheres foi e tem transformando mesmo que a “doses” pequenas o
contexto diário destas, assim a partir da tomada de consciência e busca por seus direitos pode-
se garantir parte de algumas demandas substanciais. Além disso, “o desenvolvimento de
[novos campos do saber] tais como a história das mentalidades e a história cultural reforça o
avanço na abordagem do feminino” (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 285). Por conta disso, passa-
se a estudar um pouco mais não só o cotidiano dessas mulheres, como também cria-se um
espaço de luta através da militância de muitos intelectuais do próprio movimento feminista.
Submetidas à invisibilidade social na história, as mulheres por longos séculos
estiveram sempre à sombra dos homens e quando apareciam era de forma tímida ou quando
em posições privilegiadas como no caso da nobreza, quando se tratava das rainhas. Mulheres
estas que pertenciam à nobreza e, sobretudo, na maior parte das vezes estavam ali para
enaltecer e afirmar ainda mais a posse e o poder que o sexo masculino tinha sobre elas.
Porém, a partir do final do século XIX com as frentes de lutas feministas e na segunda metade
do século XX com a nova Escola Cultural Francesa, pode-se então ampliar o rol de estudos
onde as mulheres passam a fazer parte das pesquisas e suas histórias emergem frente a esses
períodos de escuridão e misoginia. Sobretudo, por que, a própria escrita da História sempre,
ou quase sempre, foi feita pelos homens.
Assim, para que possamos entender um pouco dessa retomada vejamos o processo de
luta das mulheres ao longo da história. Os movimentos sociais feministas na sua origem
podem ser divididos em “ondas” para melhor pensar sua história. O feminismo de “primeira
onda” teve seu início no final do século XIX, tinha como objetivo conquistar direitos
políticos, como a possibilidade de votar e de serem eleitas. Além disso, reivindicavam
trabalho remunerado, estudo, propriedade e herança (PEDRO, 2005).
Já no que tange ao feminismo de “segunda onda” que ocorreu depois da Segunda
Guerra Mundial, tinha-se como reivindicação às lutas pelo direito do corpo, ao prazer e contra
o patriarcado – que se constituiu no poder dos homens sobre as mulheres no período em
questão – assim, a palavra de ordem entoada pelas feministas era “o privado também é
político”. Então, foi justamente, na “segunda onda” que a categoria gênero foi criada, a ponto
de não mais explicar as relações homem/mulher através do determinismo biológico e, sim,
pensado e articulado com a cultura. Porém, a palavra gênero ainda não é utilizada nessa
“segunda onda” era só o sentido representado e contido na nomenclatura, assim palavra
utilizada pelas feministas no que tange a oposição ao “Homem” era “Mulher” (Idem).
Por fim, e não menos importante, a “terceira onda” foi uma espécie de reformulação e
análise interna do próprio movimento feminista, pois já não se podia explicar as mulheres
com as mesmas especificidades. Assim, a partir da década de 1990 entendeu-se que as
mulheres além de sua condição inferior referente ao gênero/sexo, ainda carregavam marcas da
“etnia” e da “classe social”, por isso, novas análises e discussões se deram nesse âmbito
(Idem).
No Brasil os movimentos se deram de forma muito fragmentada, com múltiplas
manifestações, objetivos e pretensões bem distintas. A sua história, desde os primeiros
momentos, mas, mais ainda no que tange principalmente pós anos 1960, quando de seu pico,
foi pautada por esta multiplicidade (PINTO, 2003).
Como já foi abordado anteriormente vamos nos deter ao Livro Didático (LD) como
fonte e objeto de pesquisa. Nossa metodologia de análise partiu da seguinte seleção de livros:
Saber e Fazer História; História Geral: Antiga e Medieval; História Memória Viva: da Pré-
História a Idade Média; Projeto Araribá: história e História Geral e do Brasil, foram os
títulos pesquisados para elaborar as reflexões deste trabalho.
Nossa pesquisa se concentrou nos livros do Laboratório de Ensino de História da
Universidade Federal de Pelotas (LEH) e do meu acervo pessoal. O trabalho foi realizado em
quatro etapas. O primeiro momento foi de reconhecimento do acervo no arquivo do
laboratório (LEH), o segundo foi de escolha desses livros, o terceiro foi à análise dessas
fontes quantitativamente e a quarta e última etapa, e nem por isso, menos importante foi a
análise desses LDs entre conteúdos e imagens. Resumindo a análise qualitativa da pesquisa.
Nosso primeiro movimento de reconhecimento dos livros abarcou-os como um todo.
No entanto, nos dedicamos a duas abordagens quantitativas, uma no que diz respeito ao livro
no seu todo e a outra no capítulo dedicado a análise qualitativa. O objetivo é identificar
quantas imagens apareciam na obra toda e no capítulo no que se refere ao feminino e as
relações de gênero, e, quantos box são apresentados ao longo dos capítulos. Esse trabalho foi
feito em todos os livros analisados, vejamos a tabela abaixo, onde estão divididos os livros e
seus resultados.
Através do levantamento dos dados percebemos que os livros com datação mais atuais
são os que contem mais número de páginas, de imagens e box. Os livros mais antigos
comprovam o que a nossa bibliografia vem explicitando frente ao avanço dos LDs nos
últimos anos. Esses livros antigos além de conterem poucas imagens e em alguns casos
nenhum box, são muito resumidos, com papel de pouca qualidade e uma produção gráfica
bem simples. Porém, um detalhe interessante que percebi foi o grande número de mapas que
possuem os capítulos.
Vamos observar os mesmos dados só que agora nos capítulos que serão destinados a
análise qualitativa. No livro todo, os dados já são escassos, quando nos dedicamos a recortar
mais nosso foco de pesquisa dentro do livro didático esses dados se tornam ainda mais
escassos.
Logo, o que nos é visível com os dados dos capítulos específicos, é que os números
independentemente das obras mais antigas ou das mais novas não oscilam, muito pelo
contrário, eles se mantêm. Diferentemente do que acontece com a obra no todo.
Percebendo isso, nosso foco agora será problematizar esses dados e confrontá-los com
o interior dos capítulos destinados ao nosso problema de pesquisa.
Em todos os livros analisados o espaço para o feminino e suas relações de gênero é
extremamente reduzido. Os textos quase não mencionam as mulheres e sua relação em
sociedade, quando mencionam e de forma breve e pontual.
É difícil encontrar livros que deleguem um espaço dentro do corpo do texto para
mostrar que as mulheres fizeram parte da sociedade medieval, e, que também foram sujeitos
da história. Quando são referenciadas nesses textos estão em caixas box, e de uma forma
tímida, pouco aprofundada e na grande parte das vezes estão ligadas sempre a mesma
temática. Mesmo quando trocamos de livros percebemos o feminino sempre ou quase sempre
ligado a virgem, ao casamento, a heroína, e, em alguns casos, estão associadas à arte, onde
aparecem representadas em quadros ou esculturas.
Outro detalhe interessante é que essas mulheres raramente estão sozinhas nas imagens,
aparecem sempre acompanhadas de seus esposos, pais ou irmãos. No entanto, quando estão
sozinhas é na forma da Virgem Maria ou em obras de arte como a da Mona Lisa e etc.
As rainhas e as heroínas são os modelos mais frequentes dos editores de livros
didáticos, dificilmente não aparecem. Mas uma das mulheres mais representadas nos livros
que tenho observado empiricamente é Joana D’Arc. Ela está em boa parte deles. Reparei essa
mulher como heroína e herética, uma dicotomia constante. Percebi que está ligada a duas
coisas muito presentes no período medieval, à religião e à guerra. Essas mulheres que estão
representadas nos livros estão sempre ligadas a uma ordem da sociedade muito maior do que
elas representam na realidade. Quando heroína tem um perfil masculino, pois está vestida e se
comportando como homem. Quanto herética e punida, está servindo de exemplo aos fiéis
cristãos. Vejam bem, que as mulheres aparecem sempre em segundo plano, nunca estão como
protagonistas da história.
As imagens femininas que aparecem nos capítulos e unidades estudadas são raras
como já foi mencionado anteriormente. Mas o mais grave é que essas figuras iconográficas
dialogam pouquíssimo com o texto, assim como a caixa box. Ficou evidente o seu papel de
adorno dentro do texto, pois na maioria dos livros analisados as imagens contidas estavam ali
assim como o box, como forma de enxerto dos textos.
A imagem é um texto sem palavras, é um material pedagógico de extrema importância
para se trabalhar em sala de aula. Assim como outros materiais didáticos ela aproxima do
estudante realidades que eles não viveram. Deixa próximo o período que comporta a história
recuada ao tempo presente ou coisas e lugares que eles jamais terão acesso ao longo de suas
vidas (NAPOLITANO, 2003). Por isso, a importância delas estarem “amarradas” ao texto,
mais que simples adornos ao projeto gráfico do livro, é uma ferramenta de ensino e, logo, um
objeto complexo. Circe Bittencourt nos diz que “atualmente as obras didáticas estão repletas
de ilustrações que parecem concorrer, em busca de espaço, com o texto escrito” (2013, p. 69).
Porém essas imagens pouco ou quase nada são problematizadas, isto foi constatado através
desta pesquisa.
Estão expressos no Guia do Livro Didático de 2015, os seguintes critérios aos quais os
avaliadores devem perceber este material. As obras que não respeitarem estas abordagens são
Quadro 1:
Avaliação das imagens (projeto gráfico do Livro Didático).
Segundo o Guia do Livro Didático 2015, PNLD 2014.
As imagens devem:
Critério 38.
- ser claras e precisas, adequadas às finalidades para as quais foram
elaboradas;
- retratar adequadamente a diversidade étnica da população
brasileira, a pluralidade social e cultural do país (p. 135).
conhecimento mais abstrato, o livro de classe sempre ou quase sempre esteve vinculado as
aulas de história.
Circe Bittencourt traz em seu texto “Livros Didáticos Entre textos e Imagens” (2013) a
colaboração das reflexões do historiador Ernest Lavisse no que se refere às imagens. Este
autor de inúmeras obras didáticas na França, em suas contribuições sobre o tema, nos diz que
a imagem serve para o aluno “ver as cenas históricas”, e que este era o objetivo principal que
as justificava, ele também diz que quanto maior o número de imagens melhor será a
contribuição para o aprendizado,
[..] pois as ilustrações concretizam a noção altamente abstrata de tempo histórico,
ainda diz que as gravuras serviam para facilitar a memorização dos conteúdos. Nesse
sentido, as vinhetas ou legendas explicativas, colocadas abaixo de cada ilustração,
indicavam o que o aluno deveria observar e reforçava a ideia contida no texto.
(LAVISSE apud: BITTENCOURT, 2013, p. 75)
Na grande maioria dos Livros Didáticos que observei ao longo da pesquisa, e os que
pude ter acesso através dos meus estágios nas escolas públicas, não percebi uma preocupação
em integrar imagem-texto, salvo alguns exemplares atuais é raro identificarmos esta estrutura
do livro como tão importante quanto o texto escrito. Os livros didáticos são feitos por muitas
“mãos especializadas”, vários sujeitos estão envolvidos nesse processo, isso por si só já faz
com que o autor perca um pouco da autonomia sobre o texto. Quanto às imagens muitas vezes
nem mesmo é o autor que faz a seleção. Como nos diz Roger Chartier (2002), autores não
fazem livros e, sim, os editores, autores escrevem textos. Por isso, perceber o LD como uma
mercadoria sujeita as alterações de mercado, é importante para que não se faça análises
precipitadas, assim como entender o papel do autor dentro dessa produção pode nos prevenir
de conclusões levianas.
Por fim, chegamos à conclusão da extrema importância do professor como mediador
no manuseio do livro em aula. Junto com todas as etapas pela qual passam os livros didáticos
até que estes cheguem ao seu verdadeiro destino que é a mão do educando e de seus
professores, esse objeto sofre inúmeras intervenções, muitas vezes proporcionando resultados
finais díspares das propostas pedagógicas das escolas, ou até mesmo contendo sérios
problemas.
Ademais, sabemos que os livros passam pelo crivo de avaliadores do PNLD, mas isso
não nos garante que todos os descompassos contidos neles possam ser resolvidos. Problemas
pontuais como distanciamentos culturais, sociais e políticos são recorrentes nos manuais.
Portanto, não esqueçamos que os livros são portadores de uma ideologia, seja ela do
Estado, pois desde a sua aparição estão ligados às políticas governamentais, ou até mesmo a
própria ideologia dos produtores desse material. Como produto da indústria cultural o LD diz
muito mais sobre o modelo que as sociedades devem ser, do que como ela realmente é. Ele
expressa signos de seu tempo, por isso, devemos olhá-lo à luz de sua contemporaneidade, para
que não ocorram distorções anacrônicas (BATISTA; GALVÃO, 2009).
Acreditamos que já tenha ficado clara a complexa ferramenta que o livro de classe se
constitui. Perceber as relações de gênero dentro deste é importante, pois permite através das
rupturas e “avanços” que a história vem sofrendo que seja possível ao professor tratar de
assuntos tão delicados, como preconceitos étnicos, raciais, xenofobia, gênero, sexualidade.
São questões de extrema importância e que estão intricadas nas relações sociais, logo estão
presentes dentro da escola e dos seus materiais didáticos. Portanto, é papel do professor,
saber, transformar os silêncios ou as distorções, como o preconceito e a discriminação em um
suporte didático, para mostrar para o seu educando as contradições sociais e históricas de
produção das diferenças sociais.
Conclusão
Ao longo da pesquisa vimos ainda o quanto assuntos como gênero e Histórias das
Mulheres se tornou algo silenciado nos materiais didáticos e não só neles, na literatura em
geral. No entanto, nos parece talvez que a expressão certa não seja tornou-se, e sim é como se
dá o silenciamento ao longo da História. As relações de gênero nos mostram que o feminino
está contido no masculino e vice-versa, que ao estudar um estamos estudando o outro
(SCOTT, 1995). Porém, a literatura escolar muito tem a revisar seus livros, até que estas
relações mostrem as omissões da história. Séculos e séculos de invisibilidades e
silenciamentos para com as mulheres.
Os livros pesquisados não fizeram nada além de citar as mulheres em alguma parte
brevemente, quando dedicaram alguns parágrafos foi em caixa box, deslocada do corpo do
texto, ou através de imagem enxertada do lado do texto, sem fazer relação sequer com o
feminino de forma coerente.
Essa relação do feminino em sociedade raramente aparece nos livros didáticos, quando
aparecem é para mostrar a mulher como, boa mãe e esposa, no mundo do trabalho, no
máximo como tecelã, como religiosa dedicada e casta e em alguns momentos como educadora
de uma parcela de infantes mal-educados que deveriam se doutrinar através do galanteio da
dama, segundo as regras do romance de cavalaria ou pelas normas do amor cortês. Vejamos
que nada muito além aparece sobre as mulheres, quando atingem um pseudo protagonismo
estão ligadas à arte ou à religião, sempre cercadas pelo homem único “protagonista da
história”.
O Ensino de História nesse contexto torna-se importante para que possamos refletir
sobre essas questões na produção do LD à luz dos tempos históricos, mas, não só através dele,
porém, não se limitando apenas ao LD, indo além dele, compreendendo os vários materiais
didáticos elencados ao longo deste artigo. Entender os distanciamentos e aproximações que
comportam todos os sujeitos que interferem no desenrolar da vida na escola e de seus
materiais de ensino, fazem-se de extrema importância a partir do momento que entendemos
que não são neutros, logo carregam inúmeros juízos de valores, ideologias, representações,
preconceitos e projetos de sociedade.
Fontes
________; ALENCAR, Álvaro Duarte de. História Geral: Antiga e Medieval. ed. 11ª. São
Paulo: Saraiva, 1991.
VICENTINO, Cláudio. História Memória Viva: da Pré-História a Idade Média. ed. 5ª.
São Paulo: Scipione, 1996.
OBRA COLETIVA. Projeto Araribá: história. ed. 2ª. São Paulo: Moderna, 2007.
DORIGO, Gianpaolo; VICENTINO, Cláudio. História Geral e do Brasil. ed. 2ª. São Paulo:
Scipione, 2013.
Guia do Livro Didático: PNLD 2012: História, 2011. Acessado em: 16/10/14 às 18h45min.
Guia do Livro Didático: PNLD 2015: História, 2014. Acessado em: 16/10/14 às 18h45min.
Referências
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de Leitura no Brasil: elementos para uma história. Campinas, SP: Mercado de Letras,
2009.
BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4ª. ed. São Paulo:
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CHOPPIN, Alan. História dos Livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. In:
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MATOS, Júlia Silveira. Os Livros Didáticos como Produtos para o Ensino de História:
uma análise do plano nacional do Livro Didático – PNLD. In: Historiae. Rio Grande, RS,
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MUNAKATA, Kasumi. O Livro Didático: alguns temas de pesquisa. In: Ver. Bras. Hist.
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PINTO, Céli Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
Obras Consultadas
DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres: A Idade Média. Porto. Ed.
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MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5º. ed. São Paulo: Editora Contexto,
2002.
SOUZA, Renato João de; PIRES, João Ricardo Ferreira. Os Desafios do Ensino de História
no Brasil. In: Professores em Formação ISEC/ISED. nº 1, 2010.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2002.
Resumo: O objetivo deste artigo é contribuir para romper com o "silêncio" que existe a respeito do ensino de
História e Cultura Afro-brasileira mesmo há mais de dez anos da aprovação da lei 10.639/2003. Para tanto,
buscou-se primeiramente organizar uma contextualização baseando-se na legislação e na pesquisa bibliográfica.
A seguir encaminhamos algumas possibilidades pedagógicas pontuadas nas nossas experiências, visando
focalizar a potencialidade da temática em questão e a dinamização do processo de ensino e aprendizagem de
História.
Palavras-chave: História, Cultura Afro-brasileira, Ensino e Aprendizagem.
Abstract: The aim of this paper is to contribute to breaking the "silence" that exists regarding the teaching of
History and Afro-Brazilian culture even more than ten years since the approval of Law 10.639 / 2003. To this
end, we sought to first organize a context based on the law and literature. Then we send some pedagogical
possibilities scored in our experiments aiming to focus the potential of the theme in question and the dynamics of
teaching and learning history process.
Keywords: History, Afro-Brazilian Culture, Teaching and Learning.
Introdução
1
Doutor em História (PUCRS), Docente, Pesquisador e coordenador do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros e Indígenas) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha - Campus Júlio de
Castilhos. Professor colaborador do PPG - Mestrado Profissional em Ensino de História, UFSM. Contato:
aristeu@jc.iffarroupilha.edu.br
Contextualização
A evolução histórica brasileira é marcada por muitos fatos históricos que vão definir a
sociedade e o século XIX: “Independência” política (1822) importante para o delineamento
do Estado Nacional que faz a opção pela imigração, defende a ideologia do branqueamento e
determina a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. Na esteira desses
acontecimentos, ocorre a abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República
(1889). No período pós-abolição, a sociedade brasileira vivencia uma série de transformações
que não contemplam os ex-escravos relegados à exclusão social. A liberdade tão sonhada não
propiciou “às populações negras o acesso à terra, à moradia, à educação, enfim, aos bens
produzidos nesse processo histórico para garantir uma vida digna” (SILVA, 2010, p. 144).
Esses povos que chegaram ao Brasil oriundos da Guiné, Angola, Moçambique, Costa
do Ouro (atual Gana) mesmo sobrevivendo enquanto escravos, traziam consigo e
preservavam ideias, mitos, ritos, crenças, símbolos, experiências, comidas, cores, conceitos,
gestos, indumentárias, sons ritmos, instrumentos, palavras e habilidades. Na realidade, todas
essas vivências se constituíram em elementos importantes para inaugurar um movimento
transatlântico que seria decisivo no processo de reelaboração da cultura africana no brasil.
Os povos africanos, apesar de explorados e oprimidos, há cinco séculos vêm
elaborando o que Petrolhina Silva denomina de “africanidades” (SILVA, 2005, p. 155), ou
seja, partes importantes da cultura brasileira têm seu nascedouro na África. Para compreender
essa História, no entendimento de José Rivair Macedo é preciso “ir além da informação dos
fatos e recuperar os diferentes contextos e processos pelos quais seus povos atuaram ao longo
dos tempos, como sujeitos detentores dos rumos de seu destino” (MACEDO, 2013, p. 7-8).
Nesse processo de relações sociais escravista, desigual, racista, multicultural e
conflituosa, o negro participa e vivencia diferentes experiências históricas e encontra, ao
longo do tempo, interessantes formas de resistência como: fugas, assassinatos, suicídios,
abortos, religiosidade, terreiros, quilombos, capoeira, Clubes Sociais Negros e Clubes de
Samba. Essas iniciativas levam-nos a crer que o africano escravizado no Brasil não aceitou
passivamente a condição de oprimido e com todas as adversidades resistiu criando
alternativas que influenciaram, decisivamente, no modo de ser, viver, apontar suas demandas
e, assim, “lutaram por melhores condições de vida e pela sua liberdade, contribuíram espaços
para afirmação de solidariedade e para a manifestação de sua cultura e visões de mundo”
(MATTOS, 2007, p. 215).
Durante a evolução histórica brasileira entre os meados do século XIX e princípios do
XX, as elites econômicas brancas consideravam o negro como obstáculo para a consolidação
do Brasil enquanto estado-nação. Enquanto isso as populações africanas ao assumir cada uma
das formas de resistência, anteriormente mencionadas, dinamizaram paulatinamente
importantes atitudes que vão desencadear o processo de formação do Movimento Negro.
Essas ações serão reafirmadas a partir da década de 1930 inicialmente sob a liderança
de Abdias do Nascimento, Grande Othelo e Ruth de Souza. Esses militantes ganharam o
apoio e instigaram opositores. Durante os anos de 1930 e nas décadas seguintes (1940, 1950)
organizaram importantes pautas: publicação de artigos em jornais (o “Alfaiatae”, o “Kosmos”,
“A Voz da Raça”, “o Clarin d’Alvorada”); cursos de alfabetização; a FNB (Frente Negra
de movimento negro se torna comum a partir das entidades e grupos negros surgidos
na década de 1970, para designar coletivos de negros e negros que procuravam
valorizar a própria cultura, lutar contra o racismo e reivindicar melhores condições
de vida (OLIVEIRA, 2011, p. 244).
Ribeiro; etc. Quando unimos literatura e linguagem musical encontramos relíquias nas obras
de Noel Rosa, Candeia, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nei Lopes, Luiz Carlos da Vila,
Mauro Duarte, João Nogueira, Paulo Cezar Pinheiro entre outros. A Literatura Negra
Brasileira de acordo com Selma Maria da Silva:
História e Cinema
assim como de outras fontes, situa-se tanto em seu fazer, na sua lógica constitutiva,
como em seus temas, nas leituras, sensibilidades e olhares que suscita. Como
produto cultural, o filme, seja ficcional, seja documentário, tem uma história e
múltiplas significações (GUIMARÃES, 2013, p. 265).
Cabe destacar, deste modo, que as relações pedagógicas que envolvem os filmes e o
conhecimento são o fato de ambos se constituírem em construções mentais, as quais precisam
ser produzidas de forma intensa e criteriosa. Para a utilização de filmes em situações de
ensino é importante frisar que o mesmo precisa estar em sintonia com os conteúdos
abordados, ser escolhido no coletivo da sala de aula, a sua projeção deve ser antecedida de
uma orientação e/ou contextualização por parte do professor, pois a atenção e concentração
dos alunos são fundamentais para sua compreensão. Após a projeção, é importante que seja
realizada uma análise oral seguida do preenchimento de uma ficha teórica que contenha,
inclusive, uma síntese sobre o filme.
Para sua análise é interessante que sejam observados os seguintes aspectos: contexto
histórico, temática, acontecimentos principais, personagens, cenários, lugares, tempo em que
ocorre a narrativa, linguagem, fotografia, sonoplastia, iluminação, figurinos, equipe de
produção, direção. No entanto, é pertinente lembrar que não basta assistir aos filmes. Como
diz Bittencourt, “é preciso preparar os alunos para a leitura crítica dos filmes, começando por
uma reflexão sobre os próprios a que eles assistem” (BITTENCOURT, 2004, p. 376).
Por sua vez, no que tange ao filme histórico, Peter Miskell argumenta que “o que se
torna importante não é tanto os detalhes factuais e sim o sentido transmitido pelo filme, ou
seja, a mensagem que envia aos espectadores e a autenticidade histórica daquela mensagem”
(MISKELL, 2011, P. 290). Assim, se bem utilizados, os filmes podem tornar-se um recurso
valioso e indispensável no processo ensino–aprendizagem de História.
De acordo com esse olhar sugerimos filmes cujos temas estão ligados às questões da
História e Cultura da África e dos Afro-brasileiros, os quais podem passar a ter importância
no bojo das discussões ou da construção do conhecimento em História, entre eles podemos
indicar: “Frente a Frente com o Inimigo”; “Último Rei da Escócia”; “África dos meus
Sonhos”; “Cleópatra”; “Duma”; “A Rainha do Sol”; “Zulu”; “Sarafina!”; “Madalena – Luta
pela Liberdade”; “Poder de um Jovem”; “Lugar Nenhum na África”; “Um Grito de
Liberdade”; “Bamako”; “A outra História Americana”; “Crash”; “No Limite”; “Em Defesa da
Honra”; “Mississipi em Chamas”; “Tempo de Glória”; “Malcon X”; “Os deuses devem estar
loucos”; “Invictus (Madalena)”; “Amistad”; “Batalha de Argel”; “Diamante Negro”; “Amor
Sem fronteira”; “Hotel Ruanda”; “Entre Dois Amores”; “Lágrimas do Sol”; “Fala Tu;
“Cafundó”; “Besouro”; “As Filhas do Vento”; “Quanto vale ou é por quilo”; “Quilombo”;
“Xica da Silva”; “O Paí-o”; “Chico Rei”; “Meu Tio Matou um Cara”; “Macunaíma”; “Cidade
dos Homens”; “Carandiru”; “Cidade de Deus”; “Madame Satã”; “Neto Perde sua Alma”;
“Palmares”; “Carlota Joaquina”; “Princesa do Brasil”; “A Cor Púrpura”; “Adivinhe quem
vem para jantar”; “Ray”; “O Jardineiro Fiel”; “12 Anos de Escravidão”; “ As Filhas do Vento
“, “Castro Alves: Retrato Falado do Poeta”; “Abolição”; “Atlântico Negro: na rota dos
Orixás”; “Mestre Bimba”; “Kiriku e a Feiticeira”. Um documentário interessante é “Vista
Minha Pele” (Joel Zito Araújo).
Com certeza a interpretação de um filme também tem algo de subjetivo e é resultado
de toda a bagagem de conhecimento que a pessoa construiu. O filme, cultura visual, se insere
em uma infinidade de linguagens como desenhos, pintura, caricatura, fotografia, quadrinhos e
cinema entre outras fontes para o ensino e pesquisa em história.
História e Música
elementos viriam a fazer parte direta da estrutura musical brasileira” (THEODORO, 2005, p.
136).
Passamosa elencar algumas músicas que tratam de temáticas sintonizadas com às
questões da África e da História e Cultura Afro-brasileira. O desafio é inseri-las nas
abordagens, procurando, sob o ponto de vista didático, explorá-las da melhor forma possível.
Entre elas podemos citar: “Pelo Telefone” (Dunga); “Aquarela do Brasil” (Ari Barroso,
“Lindo e Trigueiro”); “Canta Brasil” (Alcyr Pires Vermelho); “Canto das Três Raças” (“Um
canto de revolta pelos ares”); “Brasil Mestiço”; “Santuário da Fé”; “Jogo de Angola”; “Deusa
dos Orixás”; “O Mar Serenou”; “Morena de Angola” (eternizadas na voz de Clara Nunes);
“Embala eu (Clementina de Jesus)”; “Sorriso Negro” (Dona Ivone Lara); “Dia de Graça”
(Candeia); “Kizomba”; “Festa da Raça” (Luíz Carlos da Vila, “Valeu Zumbi... o grito forte
dos Palmares); “Carta a Mandela”; “Nas Veias do Brasil” (Beth Carvalho); “Balaio de Sinhá”,
“Terreiro Brasil”, “Kissanga (Graça Braga)”; “Preceito”, “Oxum Olá”, “Conceição da Praia”,
“Jardim das Oliveiras” (Luiza Dionísio); “Milagres do Povo” (Caetano Veloso/Gilberto Gil);
“Todo o camburão tem um pouco de navio negreiro” (Rappa); “Lavagem Cerebral” (Gabriel,
O Pensador); “Retrato em Claro e Escuro” (Racionais MC’s) e “Black isBeautiful”/Preto é
Bonito, (Marcos e Paulo Sérgio Valle), entre outras.
Nesse mesmo enfoque também as músicas infantis podem ser trabalhadas
criticamente, principalmente “Escravos de Jó” e “Boi da Cara Preta”. Vale à pena dar uma
pesquisada nas composições de Arlindo Cruz, Leci Brandão, Noca da Portela, Paulinho da
Viola, João Nogueira, Paulo Cezar Pinheiro, Nei Lopes, Jorge Aragão, Almir Guineto,
Martinho da Vila; buscar o repertório de Alcione, Clara Nunes, Margarete Menezes, Teresa
Cristina, Fundo de Quintal, Diogo Nogueira, Graça Braga, Luiza Dionísio, Aline Calixto,
Thaís Macedo, Clara Moreno, Fabiana Cozza.
Os sambas-enredo das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, principalmente,
constituem-se em um vasto universo em que as temáticas afro-brasileiras sempre estão
presentes. Como exemplo, lembramos os enredos “IluAyê, terra da vida” (Portela, 1972);
“Negro”, “Liberdade: Realidade ou Ilusão” (Mangueira, 1988), “Tambor” (Salgueiro, 2009).
Sugerimos que sejam revisitados sambas de enredos apresentados pelas escolas: Beija-Flor,
Estácio de Sá, Império Serrano, etc.
A riqueza histórica, poética e melódica da MPB, principalmente nos gêneros que
guardam a ancestralidade africana e indígena, se bem explorados metodologicamente, podem
se construir em uma vertente fértil para o enriquecimento do ensino de História. É necessário
sublinhar a importância das práticas pedagógicas alicerçadas em linguagens mentais e
produções de saberes históricos por parte dos alunos. Esse processo quando bem conduzido
pode desencadear, conforme Milton Duarte, “reflexões, práticas ou interpretações históricas
auxiliando na construção da consciência histórica dos principais sujeitos envolvidos no
processo ensino-aprendizagem” (DUARTE, 2013, p. 220).
Salientamos, portanto, a pertinência de aprendizagens significativas para o avanço de
conquistas sociais, democráticas e humanas. Ainda sob esta ótica, nos referimos à interessante
possibilidade de inserir atividades lúdicas no processo educativo. Esses encaminhamentos
podem contribuir para que ocorra a aprendizagem da história através da música.
Considerações finais
Referências
GUIMARÃES, Selva. Didática e Prática de Ensino de História. 13ª ed. Campinas: Papirus,
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desafios na educação básica. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2011. P. 243-271.
PEREIRA, Júnia Sales. Diálogos sobre o exercício da Docência – recepção das leis
10.639/2003 e 11.645/2008. In: Educação e Realidade. Ensino de História. V. 36, nº 1.
Porto Alegre: UFRGS, 2011. P. 147-172.
SILVA, Marcos; FONSECA, Selva Guimarães. Ensinar História no século XXI: Em busca
dotempo entendido. Campinas: Papirus, 2007.
Resumo: O presente artigo utiliza as narrativas de professoras de História do 3º e 4º ano da Escola Admar
Corrêa da cidade de Rio Grande/RS para compreender sua perspectiva acerca do processo de formação da
identidade infantil e também perceber como é aplicado o trabalho com as fontes que não estão presentes no
material didático, trabalhando com a perspectiva do projeto “Memórias”. Salientamos a importância da
utilização da memória como fonte para o ensino de História local, pois a localidade não dispõe de um patrimônio
edificado para auxiliar nesta prática. Aliar Memória e História é uma das práticas que mais está sendo adotada
pelas professoras, resultando na formação de uma roda de conversa entre a comunidade e as crianças.
Propiciando a prática da História Oral dentro da sala de aula, desenvolvem-se novas perspectivas acerca do
Ensino e do papel da Cultura para a formação da Identidade.
Palavras-Chave: História. Memória. Ensino. Identidade.
Abstract: This article uses the narratives of teachers of History of the 3rd and 4th year of Admar Corrêa School,
in the city of Rio Grande/RS, to understand their perspective about children's identity formation process and also
and how the work is applied to the sources that are not present in the courseware, working with the prospect of
"Memories" project. We stress the importance of using memory as a source for teaching local history, because
the location does not have tangible heritage sites to assist in this practice. Allying Memory and History is one of
the best practices that are being adopted by teachers, resulting in round talks between the community and the
kids. Fostering the practice of oral history in the classroom develops new insights on the role of Education and
Culture for the formation of identity.
Keywords: History. Memory. Teaching. Identity.
Introdução
1
Pós-graduanda do PPGH-FURG Mestrado Profissional. Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Email:
brunagmartan@gmail.com
2
Professor da FURG. Email: danielhistprado@yahoo.com.br
de sua instituição e o resultado obtido está sendo estudado e organizado para elaborar um
livro que conte a História do Patrono Admar Corrêa.
Durante o levantamento bibliográfico, os pesquisadores encontraram algumas
referências à professora fundadora do estabelecimento de ensino, que anos mais tarde fundou
a escola trabalhada. É devido a essa pesquisa que se tornou possível localizar a professora
Maria Cândida e realizar a entrevista que atualmente compõe o livro-tombo da instituição.
Dentre as atividades trabalhadas, uma delas reflete a importância da História local para
o processo de formação da identidade cultural do Bairro. Foi a Roda de Conversa realizada
entre os moradores e as professoras, onde se buscou fortalecer os laços entre a comunidade e a
escola, que desenvolveu novas perspectivas para o trabalho com a Educação infantil.
O projeto foi aplicado em turmas do 3º ano, refletindo-se sobre a concepção de Tempo
e as relações entre o passado e o presente. Para realizar essa discussão a professora buscou
reproduzir objetos que dialogam com o cotidiano dos alunos, de modo que os orientasse sobre
o contexto social em que estão inseridos. Esse processo recorrente nas escolas é caracterizado
pela professora Katia Maria Abud (2012) como o responsável pelo sistema de ensino baseado
na “decoração de datas e acontecimentos”, o que gera uma ideia da necessidade de estabelecer
um sistema cronológico para explicar os fatos históricos. Porém, o trabalho efetivado pelas
docentes busca aproximar as crianças de sua história através do contato com os elementos
edificados dentro da comunidade, gerando a apropriação dos fatos históricos do qual
descendem, assim, a autora, mesmo criticando este modelo de ensino, alega que é importante
para a formação da identidade infantil utilizar essa sistematização de tempo porque é a
compreensão sobre a experiência familiar contrastada com a experiência pessoal.
Este contexto auxilia para a construção e a aplicação de um ensino inovador e cuja
noção de tempo se vincula aos fatos vívidos em seu curto período de vida. A proposta que se
desenvolveu para o trabalho com o patrimônio também desfruta de um caráter transformador.
Se desvinculando do espaço escolar ele adentra os lugares de memória e incentiva a utilização
de novas fontes, a professora Hilda Jaqueline de Fraga reflete sobre esses espaços destinados
a rememoração e concluiu que:
Segundo sua concepção, a utilização do meio ambiente que compõe o quadro social
em que estão inseridos se configura como um parâmetro essencial para o ensino de História
nas séries iniciais, pois a patrimonialização deste meio se originou do reconhecimento como
parte da identidade do povoado. Dessa forma, a iniciativa do trabalho com o conceito de
tempo e espaço assume o papel de instigar a curiosidade para efetivar a compreensão sobre a
dimensão simbólica de sua História.
Apesar de ser uma tarefa que exige uma compreensão profunda sobre sua própria
identidade, as nossas fontes relatam que há um grande envolvimento destinado a conclusão
das propostas, visto que os alunos conseguem perceber que o lugar trabalhado compõe a sua
cultura, o que se proporciona através de uma memória que foi herdada.
A educação patrimonial aplicada neste contexto, busca incentivar os alunos a
perceberem dentro do diálogo entre o tempo e a História as diversas culturas que compõem o
quadro social do bairro, possibilitando o trabalho com variadas fontes que são percebidas
dentro da vida diária e privada do discente. Na busca por tornar a memória mais presente no
âmbito escolar, a diretora examina novos horizontes para proporcionar um panorama sobre os
patrimônios presentes na comunidade.
O resultado vem se revelando cada vez mais atrativo aos jovens, pois há uma quebra
dentro do sistema de ensino da escola que propõe dispor uma maior autonomia para a
expressão pessoal, ou seja, através das atividades de incentivo à manifestação cultural, os
alunos começam a interagir mais com a História local e a pesquisar sobre o processo de
construção da vila, onde por vezes retratam questões discutidas com a família sobre o passado
ambiental do local.
Ainda, durante essa pesquisa, os alunos começam a compreender mais nitidamente
como ocorreu o assentamento das famílias oriundas de outras localidades e procuram interagir
com essa perspectiva na medida em que reconhecem que são descendentes destas pessoas que
se estabeleceram em sua localidade. Neste momento, a problemática do tempo se torna
presente na medida em que o passado começa a ser moldado neste processo de percepção
“que, reduzido a medidas (horas, dias, semanas), torna-se o tempo social, fundamenta a
construção do conceito de tempo histórico pelos alunos.” (ABUD, 2012, p. 13), isso porque
para as crianças, cuja principal característica é retratada pela curiosidade, a expectativa em
conhecer melhor as diferenças pessoais e também as visões que revelam fragmentos de outros
tempos e que são trabalhados através do contato físico se torna mais atrativo do que aquelas
atividades ligadas à compreensão de datas e tempo.
Compreendemos que, para continuar com a atenção das crianças voltadas para o
trabalho em sala de aula, é necessário transpor os limites físicos e induzir a um quadro mental
cuja imaginação pode ser acessada através de relatos sobre a construção das suas moradias. A
partir dessa experiência, a apropriação do meio em que vive se torna mais evidente e alcança
uma maior amplitude. Ao encaminhar a conversa realizada na sala de aula para dentro do
espaço privado, o aluno busca confrontar o conhecimento adquirido com as memórias que
compõe o seu âmbito familiar, gerando assim a aproximação da família na vida escolar.
“A gente tem uma boa parceria, porque agora mesmo no aniversário da escola a
gente trouxe as pessoas mais antigas do bairro para um momento de conversa com
os nossos professores. Eu acho que a gente tem muita parceria e muita troca de
experiência com o pessoal da comunidade, principalmente com o pessoal mais
antigo, que ainda têm essa história muito viva”. (Entrevistada: Claudia Louzada, 46
anos, 22 de Setembro de 2014)
Percebemos que o primeiro passo para a utilização da oralidade como fonte para o
ensino de História materializou-se sob a troca do conhecimento entre a comunidade e a
escola, sendo um processo que resulta na utilização e apropriação dos alunos pelo saber da
comunidade local, e que, por sua vez, gera a preocupação em salvaguardar as características
da localidade. Ainda compreendemos com a fala da diretora, que o principal objetivo deste
projeto está sendo atingido na medida em que a comunidade usufrui de um contato mais
direto com as gerações mais novas e que propicia a utilização de suas memórias como uma
fonte importante de estudo e ensino.
O contato gerado pela atividade extracurricular garante a essas crianças uma visão
mais ampla da História e a sua interação com os diversos conhecimentos que compõe a nossa
cultura e ainda visa torná-las capazes de perceber e reproduzir dentro do seu cotidiano as
manifestações culturais e as suas relações com o desenvolvimento do local, gerando a
percepção sobre a evolução urbana do espaço do bairro.
Para realizar essa análise sobre a História do bairro Santa Tereza, o projeto se
direcionou para o trabalho com as crianças do 3º ano (4ª série) e iniciou a introdução de um
conceito de História sob um âmbito mais pessoal para os jovens. Em outras palavras, foi
utilizando de seu meio de convivência, de suas relações pessoais e das narrativas dessas
pessoas que são as mais antigas do bairro, que os professores planejam despertar o interesse
pelas questões que envolvem identidade e patrimônio. Para a autora Katia Maria Abud (2012),
a proposta de ensino utiliza os objetos que estão mais perto temporalmente do aluno, que
predispõe a utilização de um material concreto e que se relacionam com a vida pessoal do
discente. Isso acaba por usufruir de uma ligação cultural já estabelecida pela criança com seus
pais e com a sua memória herdada, gerando um procedimento que busca incentivar a
apropriação total do significado de sua História, principalmente aquele que se refere à
História da localidade.
Graças a essa base proporcionada nos 3º anos e aos parâmetros estabelecidos dentro do
Projeto Político Pedagógico do 4º ano, se encontra frisada a necessidade do trabalho com a
Educação Patrimonial, no entanto o ensino de História dessa série é mais voltado para uma
prática e percepção sobre a cidade no seu âmbito Histórico, resultando num incentivo sobre a
formação da identidade rio-grandense. Nesta turma, que já obteve a base para o conhecimento
sobre a identidade e patrimônio, é mais fácil percebermos como eles compreendem este
processo, pois os alunos acabam realizando saídas do espaço escolar e da sua zona de
conforto, que seria a vila em que residem, e se deslocam para um local onde sua concepção
sobre a formação de sua identidade será aprimorada. O projeto “Memórias” contribuiu para
este processo, pois ao contrário do que é estabelecido para a série anterior, cuja preocupação é
iniciar a curiosidade sobre sua localidade, o trabalho com a História da cidade é mais denso e
complexo, pois um fator que agrava a dificuldade deste trabalho é que nem todos os alunos
desta classe visitam ou visitaram alguma vez o Centro Histórico da cidade e tiveram um
contato com seus saberes.
Para combater este quadro de baixo interesse pela identidade de Rio Grande, a
proposta era induzir os alunos a refletir o significado do “ser Gaúcho” e estabelecer o seu
papel dentro da sociedade. O trabalho em sala de aula permite aos alunos compreender
melhor a História ao mesmo tempo em que estão em contato no tempo presente com o objeto
trabalhado.
Percebemos também que o projeto proposto à escola apóia-se sob uma face ambiental
onde busca retratar todas as peculiaridades que registram a evolução e degradação ambiental
sofrida pelo local, onde valendo-se do uso de imagens, áudio e saídas de campo as professoras
incitam o questionamento sobre a mudança e os impactos ambientais causados aos moradores.
O resultado tem sido satisfatório, porque são através desses diálogos que se registram as
iniciativas dos jovens que buscam a mudança dentro do quadro socioambiental que a
localidade possui. As crianças, no geral, demonstraram que se interessam pela proposta na
medida em que ela interage diretamente com sua vida cotidiana, pois por ser a maioria deles
oriunda do próprio bairro Santa Tereza e que está em contato com o Saco da Mangueira
convivem diariamente com o acúmulo de lixo e detritos que a água traz.
A importância do meio ambiente para esses alunos certifica que as atividades
trabalhadas na escola, que buscam a apropriação da cultural local, tem tido um profundo
impacto na formação de suas identidades, pois os tornaram capazes de perceber os problemas
enfrentados pelo bairro e sugerir mudanças que confrontem esse entrave que afeta o quadro
social.
Uma ramificação do Projeto “Memórias” está em fase de elaboração e consiste na
formulação de uma parceria entre a escola e a prefeitura da cidade, de modo que com a saída
da sala de aula e o registro dos pontos que possuem o maior acúmulo de lixo (o que será feito
pelos alunos através de fotografias), os jovens percebam a riqueza que a comunidade possui e
desfrutem desse local como parte de sua identidade contribuindo para a preservação do bairro.
Essa iniciativa tem como um dos objetivos atingir também os familiares destas crianças para
que voltem seu olhar para um desenvolvimento mais sustentável, onde o papel dos
professores é retratar as principais causas dessa degradação e o dos discentes é refletir sobre o
processo e propor as mudanças, tornando possível iniciar uma preocupação mais expansiva
sobre o acúmulo de lixo e as doenças transmitidas.
Este processo gera o desenvolvimento de uma cultura local e a convivência com os
saberes das gerações anteriores da família. Salientamos que há uma discussão incentivada
pelos conhecimentos da criança que é embasada ao passo que vivenciam a História do local
na sala de aula. Elas buscam compreender os processos de modificações sofridas ao longo dos
anos, e ainda, ao retornar ao colégio, propõem a discussão sobre o que puderam observar em
suas casas e procuram mostrar sua própria resposta sobre o desenvolvimento e os motivos que
levaram o bairro a ser da forma como hoje se encontra.
A diretora da instituição caracteriza esse processo como uma forma de demonstração
de sua apropriação cultural, de modo que retratem o seu conhecimento sobre o processo de
degeneração cultural do local (Entrevistada: Claudia Louzada, 46 anos, 22 de Setembro de
2014).
De acordo com Leandro Henrique Magalhães (2009), o patrimônio é o elemento
fundamental para a formação e percepção de uma identidade e possui seu suporte em uma
ampla possibilidade de fontes e objetos. Ele ainda está em constante mudança sendo possível
distinguir novas percepções ou novos patrimônios. Percebemos então que a prática da
vivência no contexto histórico do local trabalhado é o que garante a legitimidade da
apropriação para estes alunos e a necessidade do trabalho com o patrimônio edificado é o que
auxilia no processo de aprendizagem e torna plausível a reprodução dos conhecimentos dos
alunos frente ao que considera como parte de sua identidade.
Mesmo tendo a preocupação em preservar a memória, é difícil o trabalho com
patrimônios que não estejam edificados, pois as crianças não conseguem compreender com
total clareza o motivo que leva o local ser considerado como parte de sua História, pois está
temporalmente afastado de si. A estratégia adotada pelas professoras consiste então, em
realizar, periodicamente, saídas de campo que visam a diferentes perspectivas sobre a
educação, que incentivam a reflexão sobre o que faz parte de sua identidade e selecione
aqueles que contribuem para a formação local.
Segundo a professora Sandra Ulguim, essas saídas demonstram também um
importante fator sobre a realidade do local que em meio ao processo de melhoria e
pavimentação do bairro, contrastam as diferentes classes sociais que coexistem neste espaço e
compõem o quadro social do local. Segundo a professora do 4º ano, é interessante organizar
essas saídas, pois os alunos percebem que a escola busca fazer parte do seu cotidiano e
conhecer a realidade em que vivem e, com estes gestos, também se estreita as relações entre a
escola e a comunidade, resultando num processo de valorização de sua História e dos
patrimônios que a compõem, permitindo até os mais jovens desenvolverem laços de
afetividade e a indagação sobre as condições atuais do local.
Neste contexto percebemos que a expectativa do projeto proposto é validar a escolha
do que é representativo para estas crianças, induzindo à valorização e à apropriação destas
seleções e diminuindo a distância entre a educação e o cotidiano do aluno. Essa prática de
aproximação se fortifica na medida em que os discentes percebem que aquela História que
está sendo trabalhada faz parte de sua identidade ou o personagem é parte de sua família.
As professoras ainda salientam que há a necessidade de reforçar esse trabalho com as
saídas de campo, de modo que se vivencie essa cultura que está sendo trabalhada. Elas
compreendem ainda que esse projeto visa à inserção das diversas manifestações culturais que
compõem o quadro da sociedade e favorecem o seu diálogo e identificação, usufruindo de
uma importante fonte de estudo: a memória.
falamos sobre as dificuldades enfrentadas para a construção de uma escola capaz de oferecer
ensino às crianças do pequeno vilarejo, cujo prédio inicial é vinculado a um caráter
patrimonial para a vizinhança.
Formada inicialmente como uma escolinha particular, ela atuava sob o nome de Escola
Maria Gorete nas Casas Pretas3 e atendia um número limitado de alunos, pois o local era
pequeno e de simples acomodações. Os alunos eram alfabetizados pela professora Maria
Cândida num sistema de ensino bastante rigoroso, no entanto, pelo fato do Bairro Santa
Tereza abrigar pessoas oriundas de classes baixas, o número de interessados em inscrever as
crianças neste estabelecimento de ensino aumentou significativamente de modo que se
necessitasse de um maior espaço para prestação dos serviços. (Entrevistada: Claudia Louzada,
46 anos, 22 de Setembro de 2014)
Foi devido a uma parte da casa doada por sua família que se supriram as necessidades
iniciais. Porém, o aumento dos alunos precisava de uma inspeção pedagógica e um quadro de
funcionários que auxiliasse a professora para que continuasse funcionando nesse espaço. A
chegada da inspetora só auxiliou no processo de aumento dos interessados. Era evidente que o
serviço ofertado era de uma grande qualidade, não apenas pelo número de alunos que a escola
possuía, mas também pelo fato de que havia uma grande dedicação por parte dos professores
que eram recebidos positivamente pelos alunos.
No entanto, para que o local pudesse prosseguir com seu sistema de educação era
necessário um grande aumento nas dependências dessa escola. O resultado dessa necessidade
foi a utilização completa de todas as dependências da casa, o que permitiu que as aulas
prosseguissem e se perpetuassem até meados de 1988. Nessa mesma época a professora
decidiu se aposentar e não mais lecionar, o que culminaria no encerramento das atividades da
escola. É nesse panorama que surge a figura de Admar Corrêa4, que interessado em seguir
com os trabalhos de Maria Cândida, propôs um acordo à professora. Ele doaria sua casa para
que o Município construísse a escola caso ela disponibilizasse o material necessário para que
o trabalho de lecionar continuasse fluindo positivamente no local.
Com o novo espaço construído e a doação do material realizado pela professora
Cândida, surgiu a Escola Admar Corrêa, em 1989, que contava com o auxílio do Porto do Rio
Grande para que suas atividades continuassem em andamento. Foi estabelecido que o
3
Foram as primeiras casas a serem construídas na vila Santa Tereza e que eram destinadas a habitação dos
funcionários de altos cargos do Porto.
4
Morador do Bairro e capataz do Porto do Rio Grande. As cores da Escola Admar Corrêa se utilizam desse
aspecto para homenageia tanto o Porto, que auxiliava fortemente a escola nos anos iniciais, como o Patrono do
colégio.
firmamento do projeto “Embale uma Escola” seria aplicado nesta instituição. Basicamente ele
consistia no apadrinhamento por parte de uma empresa. Esse projeto auxiliou na melhoria das
dependências físicas e na disponibilidade dos materiais necessários para continuar o trabalho
e foi com esse auxilio que a escola se manteve em funcionamento.
Podemos perceber que dentro dessa proposta se iniciava uma interação entre o Porto
do Rio Grande e a escola. Desde 1989 a escola vem sofrendo contínuas mudanças e
aperfeiçoamentos em sua infraestrutura, visando a atender o maior número de alunos
possíveis e buscando proporcionar uma boa qualidade de ensino. Graças a essa ajuda foram
viabilizadas as condições necessárias para que o Admar Corrêa se tornasse uma escola capaz
de ofertar o Ensino Fundamental completo (Entrevistada: Sandra Ulguim, 49 anos, 8 de
outubro de 2014).
Logo, graças ao auxílio do Porto, a escola foi transferida para um prédio novo e
definitivo cujo número de alunos que ela abriga chega a quase 500, que são oriundos de
diferentes bairros que contornam a cidade. Ainda é importante salientar que com essa
ampliação da capacidade da infraestrutura foi possível desenvolver um diálogo melhor com a
comunidade, pois atualmente a escola se utiliza de passeios e da oralidade como fonte de
ensino.
A História Oral e a ampliação das fontes permitem que o trabalho com a História local
contribua tanto para a pesquisa histórica quanto para a formação de uma identidade do bairro.
A memória utilizada como base para essa propagação de conhecimento permite definir os
lugares de memória influenciados pelo coletivo que se resguardou nos menores detalhes,
reavendo cotidianamente seus aspectos que se perpetuaram e atualmente estão presentes nas
lembranças dos idosos. Através do projeto “Memórias”, essas recordações registram o
processo de identificação do aluno com o espaço a que está inserido e tudo o que virá a
compor essa identidade.
Utilizamos a memória como principal fonte de pesquisa para este trabalho para
compreendermos o processo de formação de uma identidade coletiva. Segundo Pollak, “a
história está se transformando em histórias, histórias parciais e plurais, até mesmo sob o
aspecto da cronologia” (1992, p.10), e podemos desfrutar de uma ferramenta de estudo
extremamente interessante e convidativa, pois seu foco é voltado para uma ciência mais
humana e o trabalho torna-se mais sensível, pois exige do entrevistador um domínio sobre
suas emoções e palavras ao lidar com as pessoas.
As memórias estão minuciosamente entrelaçadas com os sentimentos e percepções
sobre as mudanças nos espaços que se está inserido e seu principal aspecto é que ela retrata o
passado com a voz do presente. No caso do projeto “Memórias”, ela permite que, ao
introduzir o idoso dentro do contexto escolar atual, se possa desenvolver uma nova
compreensão sobre o processo de formação da localidade baseada na interação entre o novo e
o velho, o que garante que ambos os lados contribuam com suas concepções sobre a
identidade e permitam a reflexão sobre o significado do seu patrimônio e a importância do
meio em que se localizam.
Como já foi elucidado, o presente artigo está embasado nos relatos das professoras da
escola de educação básica para compreender o processo de formação e pertencimento da
cultura local pelos alunos. Ao mesmo tempo em que busca incentivar a utilização de fontes
não convencionais para a prática do ensino de História, utilizamos a memória para preencher
as lacunas deixadas pelo tempo. É de nosso interesse utilizar os métodos da oralidade como
forma de incentivar o aluno a se perceber um sujeito ativo no processo histórico.
Segundo Katia Maria Abud, “narrar é prática humana” (2012, p. 15), o que significa
que como todo objeto confeccionado pela mão de obra humana, está destinado a ser analisado
e produzir novos saberes a partir de sua fonte, a memória também compõe este quadro de
análise. Neste momento em que ela se dedica a observação do passado e reflexão das
concepções que resultaram na elaboração das características mentais e emocionais de um
individuo, se constrói uma lógica que justifica as experiências vividas. Esse processo de
elaboração de uma linearidade capaz de criar uma cronologia resulta na formação de um
tempo histórico que está detalhadamente alicerçado sobre a elaboração do conceito de tempo,
resultado do que foi experimentado na infância que por sua vez reflete na memória a falta
dessa precisão.
Compreendemos que apesar de serem processos complexos eles estão interligados.
Contudo, como utilizar esta concepção para a prática da Educação Patrimonial na
comunidade?
Sabemos que tempo, memória e História são processos ligados entre si e que
dialogam diretamente. Mesmo que o tempo da memória não seja o mesmo vivenciado pela
História, a utilização desta fonte de pesquisa é de grande importância quando se procura
trabalhar com a História do tempo presente, pois proporciona perspectivas atuais sobre o
passado. O caso da escola, que experimentou carência de material sobre sua origem e que
Considerações finais
5
Foram as primeiras casas a serem construídas na vila Santa Tereza e que eram destinadas a habitação dos
funcionários de altos cargos do Porto.
maior participação em seu contexto gerando um maior interesse pelo ensino de História, sua
prática cotidiana e a sua relação com o presente.
De acordo com as fontes, a escola assumiu esse papel que pode ser relacionado com o
conceito de “família” do aluno, pois todo o seu trabalho tem-se voltado para garantir a
permanência e a participação nas vivências e atividades propostas e tornou-se necessário que
sua preocupação se dirigisse também para o bem-estar dos discentes, resultando no
aparecimento de novos valores ligados ao estabelecimento de ensino e que gera um processo
denominado “Memória Herdada”, que, segundo a professora Carla, é devido ao fato de que é
grande o número de pais que outrora estudaram no estabelecimento e conviveram com as
dificuldades da época e que com isso acabam por reivindicar posturas mais participativas dos
filhos sobre a metodologia do ensino e os projetos do Admar Corrêa.
Essa sensibilização em buscar no povoado as características necessárias para a
formação de uma nova perspectiva educativa que desfrute de uma essência que carrega o
sentimento de apropriação de um passado, não tão distante, é o resultado obtido através da
implementação de trabalhos voltados para a Educação Patrimonial local onde o contato com
essa História presente e a sua relação com o pertencimento a estas lembranças permite reaver
e adentrar um espaço de aprendizagem e proporcionar novas perspectivas que serão delegadas
aos ouvintes.
Percebemos então que a escola busca desenvolver laços de afeição entre a educação e
o educando, de maneira que ressalte as peculiaridades de seu cotidiano e reflita sobre a sua
concepção de identidade em um diálogo apropriado para a idade do aluno, assim, mesmo com
o PPP incentivando o trabalho com uma Educação Patrimonial que abarque os patrimônios da
localidade, a escola trabalha visando à inserção do aluno neste quadro onde ele é o agente
principal da escolha e eleição daquilo que compõe a sua identidade. Essa essência, que revela
as ligações minuciosamente elaboradas entre a escola, o saber e a comunidade, reflete a
preocupação em proporcionar uma educação inovadora capaz de refletir a complexa estrutura
social e ambiental sob a perspectiva da criança, do mais novo. Assim essa educação que
proporciona as bases para os processos de salvaguarda dos patrimônios, cuja preocupação
depara-se com a característica de ser o responsável por retomar as linhas que vinculam a
História e a memória, define os parâmetros do que é ser um local de memória e busca incitar a
percepção pessoal sobre os vínculos com o objeto.
A título de conclusão, compreendemos que o esforço das professoras direcionado ao
incentivo do processo de percepção, avaliação e apropriação de sua cultura é uma espécie de
investimento a longo prazo, onde apenas o contato direto alicerçado sob a História do prédio
Fontes
Referências
ABUD, Katia Maria. Tempo: a elaboração do conceito nos anos iniciais de escolarização.
In: Historiae. Vol. 3 (1). Rio Grande: Editora da FURG, 2012.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos históricos. Vol.5, nº10. Rio
de Janeiro:1992.
Franciele Cettolin1
Resumo: Entre os desafios existentes no Ensino de História encontramos, constantemente, o que apresenta a
necessidade de tornar essa ciência mais significativa e, ao mesmo tempo, mais atrativa. Para tanto, novas
metodologias no ensino são pensadas a fim de alcançar este objetivo, e, entre elas, o uso da interdisciplinaridade tem
sido um dos caminhos encontrados para que esse desígnio se cumpra. Uma das possibilidades para o estudo de
metodologias interdisciplinares que podem ser utilizadas na sala de aula é o ensino de história aliado ao ensino de
música, já que com a promulgação da Lei 11.760/2008, a música torna-se conteúdo obrigatório na educação básica.
Preocupado com esta questão, este estudo se propõe a criar possibilidades deste uso, entendendo que primeiramente,
faz-se necessário refletir sobre História, Música e Ensino, no que diz respeito à compreensão de ambas as disciplinas
e seus aspectos estruturais e fundamentais. O presente texto constitui o resultado parcial de uma pesquisa e pretende
elucidar o trabalho com conteúdos musicais em sala de aula, visando concretizar o que propõe a lei.
Palavras-chave: História. Música. Ensino. Interdisciplinaridade.
Abstract: Among the existing challenges in Teaching History, constantly find the one with the need to make this
more meaningful and at the same time more attractive science. For this, new teaching methodologies are thought to
achieve this goal, and, among them, the use of interdisciplinarity has been one of the paths found for this purpose is
fulfilled. One of the possibilities for the study of interdisciplinary methodologies that can be used in the classroom is
the teaching of history allied to music education since the enactment of Law 11.760/2008, the music becomes
mandatory content in basic education. Concerned about this issue, this study proposes to create possibilities of this
use, understanding that first, it is necessary to reflect about history, music and education, with regard to the
understanding of both subjects and their structural and fundamental aspects. This text is the partial result of research
and aims to elucidate the work with musical content in the classroom, aiming to realize the proposed law.
Keywords: History. Music. Education. Interdisciplinarity.
1
Universidade de Caxias do Sul – UCS. Contato: fran_cett@terra.com.br
No tocante ao parágrafo único do art. 62, é necessário que se tenha muita clareza sobre o
que significa ‘formação específica na área’. Vale ressaltar que a música é uma prática
social e que no Brasil existem diversos profissionais atuantes nessa área sem formação
acadêmica ou oficial em música e que são reconhecidos nacionalmente. Esses
profissionais estariam impossibilitados de ministrar tal conteúdo na maneira em que este
dispositivo está proposto.
Adicionalmente, esta exigência vai além da definição de uma diretriz curricular e
estabelece, sem precedentes, uma formação específica para a transferência de um
conteúdo. Note-se que não há qualquer exigência de formação específica para
Matemática, Física, Biologia, etc. Nem mesmo quando a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional define conteúdos mais específicos como os relacionados a diferentes
culturas e etnias (art. 26, § 4o) e de língua estrangeira (art. 26, § 5o), ela estabelece qual
seria a formação mínima daqueles que passariam a ministrar esses conteúdos.
A história não remete apenas ao passado, é uma ciência em constante construção. Dessa
forma, é importante que todos que se interessam e têm contato com a História - professores,
historiadores, estudantes de História - tragam presente as relações possíveis no tempo e no espaço
em estudo. Além disso, assim, faz-se essencial perceber que a História utilizada na linguagem
cotidiana, na grande maioria das vezes não é a mesma que aquela estabelecida como campo de
conhecimento específico da academia. Portanto, não há um conceito único de História, nem
mesmo um significado que consiga dar conta de todos os sentidos que a palavra consegue
assumir.
Apesar de se tratar de uma ciência que tem como raízes o estudo do passado, não é uma
ciência do passado, mas está em contínua construção, assinala Bloch (2001). O autor enfatiza
também a importância da História como uma ciência em construção, abordando discussões acerca
das especificidades do conhecimento histórico. Nesse sentido, além da ideia da continuidade, ele
nos traz uma percepção inovadora a respeito do objeto da História:
O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do
passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa. Para
quem duvidasse, bastaria lembrar o que, há pouco mais de um século, aconteceu sob
nossos olhos. Imensos contingentes da humanidade saíram das brumas. (BLOCH, 2001,
p. 75)
sentido, faço uso das ideias propagadas por Jörn Rüssen, as quais aproximam a História do
sentido de consciência histórica:
Pela análise da narrativa histórica ganha-se acesso ao modo como o seu autor concebe o
passado e utiliza as suas fontes, bem como aos tipos de significância e sentidos de
mudança que atribui à história. Ele espelha por isso, tácita ou explicitamente, um certo
tipo de consciência histórica, isto é, as relações que o seu autor encontra entre o passado
e o presente e, eventualmente, o futuro, no plano social e individual. No que concerne à
Educação Histórica formal, ela será um meio imprescindível para as crianças e jovens
exprimirem as suas compreensões do passado histórico, e consciencializarem
progressivamente a sua orientação temporal de forma historicamente fundamentada.
(RÜSSEN, 2001, p. 12)
A chegada tardia acima mencionada merece ser interpretada a partir da percepção de que
o processo educacional brasileiro também foi tardio, ou seja, apenas no início do século XIX foi
possível a abertura de imprensa e de bibliotecas. No entanto, esse processo tardio não tem
representado perdas significativas para a história nacional, pois se percebe que, tanto os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), quanto as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)
têm proporcionado a aproximação da história nacional com a produção internacional e, isso se
reflete também no ensino de História.
O ensino de História se deu somente a partir do momento em que houve delimitação entre
a história e as demais disciplinas, ou seja, quando ocorre a profissionalização e a
institucionalização do conhecimento histórico nas universidades. Saviani apresenta o contexto,
E a escola é erigida, então, como o instrumento por excelência para viabilizar o acesso a
essa cultura. Com efeito, em se tratando de uma cultura que não é produzida de modo
espontâneo, natural, mas de forma sistemática e deliberada, requer-se, também, para a
sua aquisição, formas deliberadas e sistemáticas. Assim, a sociedade moderna não podia
mais se satisfazer com uma educação difusa, assistemática e espontânea, passando a
requerer uma educação organizada de forma sistemática e deliberada, isto é,
institucionalizada, cuja expressão objetiva já se encontrava em desenvolvimento a partir
das formações econômico-sociais anteriores, através da instituição escolar. A escola foi,
pois, erigida na forma principal e dominante de educação (SAVIANI, 1991a, p. 86).
Ensinar história não pode ter como objetivo único a análise e o entendimento dos
conteúdos que estão no livro didático. Ensinar história é produzir além de saberes, razões, é
posicionar-se politicamente, estabelecendo relações entre passado e presente, é causar sentidos e
emoções para que haja significado, é aumentar as possibilidades de viver e pensar o vivido. Além
disso, ensinar História não pode acontecer apenas com pressupostos metodológicos próprios, mas
com aportes de outros campos disciplinares. A ideia de campo é emprestada de Bourdieu:
A teoria geral da economia dos campos permite descrever e definir a forma específica de
que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital,
investimento, ganho), evitando assim todas as espécies de reducionismo, a começar pelo
economismo [...]. Compreender a gênese social de um campo, e aprender aquilo que se
faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se
joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar
necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não motivado os atos dos produtores e
as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir [...]
(BOURDIEU, 2003, p. 69).
As lutas travadas pelos sujeitos buscam o capital como bem maior e tendem, mesmo
sendo simbólicas, se espalhar em outras esferas sociais, gerando consequências significativas.
Esses agentes, de forma nenhuma sofrem essas consequências passivamente, mas agem,
dissimulam, omitem poder, dentro de uma sociedade totalmente ativa. Nesse caso, temos
claramente campos distintos que emanam ideias no âmbito das relações sociais que se cruzam,
formando um palco para o exercício da violência em prol do capital simbólico. Todas as regras,
discursos, atos, ações e práticas que se determinam nesse jogo, também são naturais dos campos
e de certa forma servem como ferramenta para a legitimação dos atos.
A música é considerada uma das expressões artísticas mais antigas da humanidade e fazer
música é algo fisicamente natural e naturalmente humano. Convivemos diariamente com ela, pois
ouvimos música no carro, no chuveiro, na escola, na rua. Além disso, a sonoridade está presente
na natureza e não há sequer um lugar no mundo que não possua sons característicos:
Sendo a música uma linguagem culturalmente construída, ela caracteriza-se por ser um
fenômeno histórico e cultural. Por meio dela é possível comunicar ideias, sentimentos e ações
produzidos na sociedade. Sua importância relaciona-se ao fato de, como linguagem, pode
produzir conhecimentos. Utilizando-se os seus parâmetros de sons, vozes, ritmos e até mesmo do
silêncio, que se caracterizam diferentes experiências de espaço e tempo. Por exemplo, quando
estudamos música, é necessário aprender regras de combinação de sons, bem como da sua
Além das considerações acima, a autora acrescenta a importância dos estilos musicais.
Afirma que todas as manifestações musicais diferenciadas, desde a música popular até aquela
promovida pela indústria cultural – todas são música. Sendo assim, para o ensino da música, ou
musicalização é preciso compreender e explicitar os estilos musicais. Dessa forma a música não
pode ser um pressuposto dado que se autodetermina ou se basta e ela necessita ser questionada,
assim como as demais manifestações artísticas e a própria ciência.
Possuindo a musicalização a possibilidade de interagir com a história, é mister considerar
que isso permite o avanço sobre a consciência não apenas histórica, mas também cidadã. Para
Aronoff (1974, p. 34) “[...] a música é uma experiência humana. Não deriva das propriedades
físicas do som como tais, mas sim da relação do homem com o som”. Assim, se a relação homem
e som representam experiência humana, logo o ensino da música nas aulas de História permite
reflexões sobre a cidadania, pois essa necessita ser construída com significado e não apenas ser
imposta por ordem institucional. Dessa forma, o ensino de música pode tornar-se parte da prática
cidadã.
Para tanto, é preciso haver a consciência de que uma aula de música deve ter como
objetivo primeiro a ampliação de sua concepção. Assim, dois principais itens devem ser
A educação por meio da sensibilização do aluno é uma visão que tem ganhado força e
críticas positivas no que diz respeito principalmente ao ensino da arte. A importância das artes
vem sendo discutida desde os filósofos antigos, por ser mutável e variável de acordo com o
momento histórico e a perspectiva de análise. Dessa forma, a concepção de arte ainda é analisada
como uma manifestação em construção e como afirma Penna considerando as experiências
acumuladas.
Por carregar consigo aspectos utópicos que vão além do que é compreendido como
racional e real, a arte pode ser julgada, erroneamente, como algo distante da ética. Essa, que se
baseia em caracteres normativos de razão prática, também de primeira mão, não agrega
elementos que possam ser utilizados no mundo artístico. HERMANN (2001) acredita que o
entrelaçamento entre ética e estética é algo comum a partir do momento que: “[...] um juízo moral
não se realiza sem elementos estéticos, assim como um julgamento estético contém elementos de
razão prática”. Ou seja, fica inviável a separação prática e teórica desses dois elementos, uma vez
que um depende do outro para se concretizarem.
Estas relações, por vezes, abrem caminho para a alteridade, a partir do momento que são
capazes de enxergar o outro, de reconhecer o estranhamento, ou mesmo, a afinidade existente.
Sem dúvidas, mudanças na moral da sociedade e mesmo da vida política, não dependem apenas
de nós, mas sim de estruturas maiores, como por exemplo, as inovações culturais. Nisso, a arte
tem uma importância grandiosa, pois a leitura que os artistas fazem da realidade, cria novas
formas de ver o mundo, novas linguagens, novas metáforas. É a partir disto que se criam os
limites das decisões éticas:
A autora pontua que a interdisciplinaridade, apesar de não ser uma ciência, é um ponto de
encontro entre a renovação nas atitudes referentes ao ensino e a aceleração do processo de
Todavia, essa necessidade é muitas vezes camuflada por certas realidades distorcidas. O
verdadeiro espírito interdisciplinar nem sempre é bem compreendido. Há o perigo de que
as práticas interdisciplinares se tornem ou práticas vazias, produtos de um modismo em
que, por não ter nada que discutir, discute-se em mesas-redondas, como salienta
Althusser, em Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas, ou constituem-se em meras
proposições ideológicas, impedindo o questionamento de problemas reais (FAZENDA,
1996, p. 84).
Não se trata, aqui, de mostrar – nem, muito menos, de denunciar – o acento catastrofista,
denuncista, prometeísta, salvacionista e prescritivista das bases filosóficas que
sustentaram o movimento pedagógico pela interdisciplinaridade. O que me parece mais
interessante é constatar que aquele que talvez tenha sido o movimento pedagógico mais
próximo a articular uma crítica da disciplinaridade tenha, de fato, passado ao largo de
uma problematização radical acerca das disciplinas e de seu papel de dominação da
Modernidade (RAGO & NETO, 2008, p. 33).
Por meio disso, cabe-nos pensar sobre a real finalidade das relações interdisciplinares,
que, na teoria, são perfeitamente exequíveis, porém, na prática, existe uma série de questões que
não permite um trabalho apropriado. Apesar do grande passo que é pensar a educação
interdisciplinar, devem-se levar em conta os aspectos históricos que contribuem para as
dificuldades na mudança das práticas e no entendimento desse tipo de ensino. Assim mesmo,
levantar questões acerca do uso dessas novas metodologias pode contribuir para a constituição de
um espaço gerador de debates e reflexões, que promovam ações a favor de mudanças na estrutura
escolar e sugestões plausíveis para o trabalho interdisciplinar.
Na legislação brasileira, existe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que recomenda o
trabalho interdisciplinar nas escolas, uma vez que essa entende a interdisciplinaridade da seguinte
forma:
A Interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de
conhecimento produzida por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação e a
influência entre eles – questiona a visão compartimentada (disciplinar) da realidade
sobre a qual a escola, tal como é conhecida, historicamente se constitui. (LDB, 1996, p.
31)
Nas escolas, a realidade mais comum é encontrar as possibilidades aquém dos obstáculos.
O desconhecimento dos professores, a falta de formação específica, a acomodação pessoal e
coletiva, a baixa remuneração, o pouco reconhecimento, o vício da linearidade, são apenas alguns
desafios a serem vencidos. Entre as possibilidades, estão os benefícios da transformação profunda
para quem ensina e para quem aprende, a observação da relação das disciplinas sem negligenciar
nenhuma delas, uma equipe especializada, engajada e dinâmica, uma nova articulação de espaço
e tempo que favoreça os encontros para o planejamento e a utilização de uma linguagem comum.
A determinação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) coloca a
interdisciplinaridade como essencial no currículo escolar, e ainda diz que ela pretende criar uma
nova postura para a educação, através do rompimento dos limites das disciplinas e sua
consequente integração em conceitos globalizantes. Dessa forma, novas abordagens dentro das
disciplinas devem ser buscadas. No caso proposto, tanto a História quanto a música podem
estabelecer ações para que se chegue aos objetivos propostos, porém anteriormente, é necessário
refletir acerca de algumas questões sobre o tema.
Recentemente, a música tem se tornado objeto de pesquisa de historiadores e, aos poucos,
isso vem refletindo formas de como utilizar esse recurso em sala de aula. No Brasil, as primeiras
pesquisas datam dos anos 1970 e mais significativamente dos anos 1980. No exterior, um dos
pioneiros sobre o tema foi o historiador britânico Eric Hobsbawn (2007), que analisou o contexto
social do jazz norte-americano, gênero que se desenvolveu e espalhou-se pelo mundo ocidental.
Outro autor de referência para os estudiosos, sobretudo de música popular, é Adorno (1986), um
dos expoentes da Escola de Frankfurt e conhecido como o “pai dos estudos de música popular”.
Sua pesquisa relata sobre os males da indústria cultural como produtora de sujeitos passivos e
alienados, promovidos principalmente pela estética e crescimento do consumismo.
Como no Brasil a maior parte dos estudos refere-se ao gênero de música popular, Adorno
tem ajudado a entender as relações da indústria fonográfica que abrangem o consumidor, o
produtor/divulgador e a música, e, ainda compreender a música como expressão cultural e
artística. Segundo Napolitano (2002, p. 7), a preferência de análise no Brasil por esse tipo de
gênero se dá pela sua característica de ser “[...] a intérprete de dilemas nacionais e veículo de
utopias sociais; canta o futebol, o amor, a dor, um cantinho e o violão”.
O uso da Música como recurso didático-pedagógico é plausível no momento em que
cumpre o papel de estabelecer relações entre o aluno e a sua própria realidade. Além disso, as
diversas disciplinas do currículo escolar podem e devem aderir ao trabalho com a música em sala
de aula individualmente ou mesmo com a intenção de constituir um projeto interdisciplinar. Nas
aulas de História, sobretudo, é possível utilizar a música com o intuito de introduzir temas
relacionados a diversos aspectos da vida cotidiana, como por exemplo, discriminações étnicas,
relações de gênero, patriotismo, censura, trabalho, contexto e outros temas. Assim como a
História, a música é filha de seu tempo, seu espaço, sua circunstância. Dessa forma, colabora a
Secretaria de Educação de São Paulo,
A História é necessária por ser uma das mais importantes expressões de humanidade,
como é a Música, por exemplo. Tanto a História como a Música parecem disciplinas
sem utilidade, porém basta imaginar um mundo em que elas não existissem para
perceber sua importância (2008, p. 41).
A música, além de ser uma importante fonte histórica, está diariamente presente na vida
de estudantes dos mais diversos níveis. Muitas experiências artísticas podem revelar a
possibilidade de se confrontar a História oficial, não contada nos livros didáticos e desprezada no
discurso de muitos professores, contribuindo para a ampliação da visão de mundo. A linguagem
musical, em outra perspectiva, ao mesmo tempo em que permite abordar a realidade do aluno,
pode possibilitar o entendimento de outros conceitos históricos, transitando por movimentos de ir
e vir, passado e presente, rupturas e permanências, semelhanças e diferenças, podendo dinamizar
a reflexão do saber histórico.
O professor ainda tem a possibilidade de escolher o gênero musical a ser trabalhado
mediante o gosto dos alunos ou ainda um gênero desconhecido por eles. Ambas as possibilidades
abrem variadas análises nos conteúdos a serem trabalhados. Porém, apesar de todas essas
vantagens, o uso da música gera algumas questões. De acordo com alguns estudos,
Se existe certa facilidade em usar música para despertar interesse, o problema que se
apresenta é transformá-la em objeto de investigação. Ouvir música é um prazer, um
momento de diversão, de lazer, o qual, ao entrar na sala de aula, se transforma em uma
ação intelectual. Existe enorme diferença entre ouvir música e pensar música
(BITTENCOURT, p. 379-380).
(2011), também é uma característica importante para a significação da música em sala de aula.
Este cenário corresponde a: “Um espaço cultural no qual um leque de práticas musicais
coexistem, interagem umas com as outras dentro de uma variedade de processos de diferenciação,
de acordo com uma ampla variedade de trajetórias e interinfluências” (NEGUS, 1999, p. 22).
Pensar a música como linguagem é certamente criar espaços pedagógicos para o exercício
da diversidade. É utilizando o seu discurso metafórico, que a música produz sentidos não
explicitados, e, além disso, contribui para a apreensão referente às múltiplas territorialidades
produzidas no contexto da contemporaneidade. Swanwick esclarece esse aspecto, situando a
relevância desse ensino no contexto da leitura de mundo,
[...] o discurso musical, embora inclua elementos de reflexão cultural, também torna
possível a refração cultural, ver e sentir de outras maneiras. Não “recebemos” cultura
meramente. Somos intérpretes culturais. O ensino de música, então, torna-se não uma
questão simplesmente de transmitir cultura, mas algo como um comprometimento com
as tradições em um caminho vivo e criativo, em uma rede de conversações que possui
muitos sotaques diferentes (SWANWICK, 2003, p. 46).
As conexões entre grupos específicos e seus estilos de vida e posições sociais estão
marcadas na expressão musical que produzem. Isso não significa, necessariamente, que a
música é o reflexo da sociedade; ela também produz a sociedade, pois ela, como os
demais objetos está em movimento, sofre transformações e se reestrutura de forma
diferenciada. Por exemplo, a música é modificada e modifica a medida em que é
incorporada ao circuito comercial. Transformada em produto, adquire novas
características que lhe imprimem movimentos que, por sua vez, resultam em
transformação da sociedade (TONINI, 2013, p. 4).
época, porém não contempla um dos principais aspectos da música: a sonoridade. Na maioria das
vezes, a música entra na sala de aula como poesia, isto é, referindo apenas à letra.
As letras podem proporcionar a construção de conceitos e a reflexão sobre temáticas do
cotidiano, todavia a articulação das informações se dá de forma fragmentada. Ainda que essas
ações sejam relevantes, elas significam um estudo de texto. Poucas vezes utiliza-se a importante
vivência sonora que essa linguagem proporciona. Quando isso acontece, a proposta está
associada quase sempre à música como aspecto figurativo, isto é, como fundo musical. Neste
caso, efetivamente, é utilizada como algo secundário, que, por vezes, pode tornar mais atrativo o
trabalho do professor, entretanto não atinge o objetivo associado à musicalidade.
Para tornar real e possível uma proposta de ensino de História integrado com música, é
necessário, antes de tudo, oferecer acesso ao material básico do processo musical: o som. Ou seja,
o foco inicial não é o ensino das notas ou dos elementos musicais convencionais, mas a criação
de possibilidades de o aluno experimentar um espaço musical com o intuito de democratizar o
acesso à arte e à cultura.
Referências
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Debates, Curitiba, n. 50, p. 217-235, jan./jun. 2009. Editora UFPR.
Resumo: Pretendemos neste texto, problematizar e justificar as atividades em andamento na Escola Santa Marta,
localizada na comunidade do Bairro Nova Santa Marta Nossas Mega Construções, através do ensino de História
em consonância de uma perspectiva sustentável, a permacultura. As atividades fazem parte do subprojeto
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - Pibid/História/UFSM, onde suas atividades têm como
pretensão melhorar a qualidade do ensino dos conteúdos de História nas redes públicas e efetivar a aproximação
entre academia e a realidade escolar e da comunidade no entorno. A história do Bairro Nova Santa Marta, onde
hoje se situa a Escola Estadual Santa Marta é marcada por conflitos e conquistas. Possui uma área de
aproximadamente 1200 hectares na região oeste de Santa Maria (RS), território este da antiga Fazenda Santa
Marta, que fora desapropriada pelo governo do estado do Rio Grande do Sul no ano de 1978. O tema
sustentabilidade já faz parte do cotidiano das escolas de hoje e possibilita o diálogo com conteúdos variados,
sendo, portanto uma importante ferramenta na prática pedagógica, além de conferir, de forma mais palpável, a
aproximação de conteúdos teóricos e práticos. Para isso, serão elencados nesse artigo, o ensino de história a
partir da permacultura, partindo inicialmente da contextualização da história da formação do Bairro e a
formação de sua identidade, da relação do homem com o meio ao longo da história, em especial nossa sociedade
capitalista e a construção nos alunos de uma autonomia que os possibilitem enxergar as relações de um todo a
partir da História.
Palavras-chave: permacultura, história, identidade, sustentabilidade.
Abstract: We intend this paper to question and justify ongoing activities in Santa Marta School, located in New
Town Santa Marta "Our Mega Constructions community, through the teaching of history in line for a sustainable
perspective, permaculture. The activities are part of the subproject PIBID / History / UFSM where their activities
have the intention to improve the quality of education of the contents of history in the public networks and effect
a rapprochement between the academy and the school and the community surrounding reality. The history of
New Subdivision Santa Marta, where today the State School Santa Marta is located is marked by conflicts and
conquests. It has an area of approximately 1200 hectares in west Santa Maria (RS), this territory of the former
Santa Marta, which had been expropriated by the state government of Rio Grande do Sul in the year 1978. The
issue of sustainability is already part of the daily school today, and allows dialogue with varied contents, thus
being an important tool in teaching practice, besides conferring, more tangibly, the approach of theoretical and
practical content. For it will be listed in this article, the teaching of history from permaculture, initially starting
from the context of the formation of the District and the formation of their identity, the relationship of man with
the environment throughout history, especially in our society capitalist and the construction of autonomy in
students that enable them see the relationships of a whole from the history.
Keywords: permaculture, history, identity, sustainability.
1
Graduando em História pela UFSM – E-mail: gilnei_daniel2011@hotmail.com
2
Mestrando em História pela UFSM – E-mail: julianowbastos@gmail.com
3
Graduando em História pela UFSM = E-mail: rikrdo_kemmerich@hotmail.com
Introdução
naquilo que se faz leva à evasão escolar, e\ou ao aprendizado deficitário e sem significado.
Para a superação deste quadro, é necessário que os alunos entendam a lógica por detrás da
instituição escolar, bem como dos conhecimentos nela produzidos. Para isso, serão elencados
nesse artigo, o ensino de história a partir da permacultura, partindo inicialmente da
contextualização da história da formação do Bairro, produção das identidades, da relação do
homem com o meio ao longo da história, em especial nossa sociedade capitalista e a
construção, por parte dos alunos, de ações autônomas que os possibilitem enxergar as relações
sociais a partir da sua história.
A história do Bairro Nova Santa Marta, onde hoje se situa a Escola Estadual Santa
Marta, é marcada por conflitos e conquistas. Possui uma área de aproximadamente 1.200
hectares na região oeste de Santa Maria (RS), território que antigamente pertencia a Fazenda
Santa Marta, desapropriada pelo governo do estado do Rio Grande do Sul no ano de 1978. Em
1980, teve 39 de seus 1.200 hectares utilizados para a construção da CoHab (Companhia de
Habitação do Estado do Rio Grande do Sul) Santa Marta, com 872 moradias. No ano de 1984,
através da Lei Estadual 7.933/1984, fora autorizada a doação de aproximadamente 340
hectares à CoHab, com a pretensão de que, nos próximos cinco anos, fosse construído um
conjunto residencial. A despeito da doação, a construção do conjunto residencial nunca se
efetivou, o que motivou, no dia 7 de dezembro de 1991, famílias integrantes do Movimento
Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), a ocuparem a área da antiga Fazenda Santa Marta.
Assim teve origem a maior ocupação urbana em área pública da história do Rio Grande do
Sul. Essa é a origem da maior parte dos estudantes atendidos pela EEEB Santa Marta.
Na formação urbana de Santa Maria podem ser distinguidas três regiões de ocupação:
o centro – sendo este a referência, Camobi – onde a UFSM e a Base Aérea são os principais
referenciais e a zona oeste – onde o distrito industrial se encontra. A zona oeste é a ocupação
mais recente de Santa Maria, nela se concentra a maior parte da população pobre e é onde está
localizada a Cohab Santa Marta. O bairro Nova Santa Marta é marcado pela desigualdade
social e pelo descaso do poder público. Como compõe o recente processo de povoamento da
região oeste da cidade, sofre com as condições precárias de infraestrutura, com saneamento
básico insuficiente, moradias improvisadas com material encontrado nas ruas e vias de
trânsito sem pavimentação, sendo asfaltada somente a principal.
Desse modo, dá-se ênfase para a produção da história econômica e social, conferindo
uma visão mais ampla do que apenas uma história política, porque: “Ontem, um dia, um ano
podiam parecer boas medidas para um historiador político. Mas, uma curva dos preços, uma
progressão demográfica, o movimento dos salários [...] reclamam medidas muito mais
amplas” (BRAUDEL, 1978, p. 47).
Assim, uma alta de preços, por exemplo, pode associar-se uma seca em um
determinado local do continente que prejudique a produção de batatas. Temos a forma de
abordagem histórica de análise de uma conjuntura (seca), inserido em um mundo regido pelo
capitalismo e sua variação máxima, o capital:
Só se disciplinará, só se definirá a palavra capitalismo, para colocá-la a serviço
exclusivo da explicação histórica, se a enquadrarmos seriamente entre as duas
palavras que a subentendem e lhe conferem seu sentido: capital e capitalista. O
capital, realidade tangível, massa de meios facilmente identificáveis,
permanentemente em ação; o capitalista, o homem que preside ou procura presidir à
inserção do capital no processo incessante de produção a que todas as sociedades
estão condenadas; o capitalismo e, grosso modo (mas só grosso modo), a forma
como se conduz, para fins usualmente pouco altruístas, esse jogo constante de
inserção. (BRAUDEL, 1987, p. 20)
O modo como nós entendemos o mundo e nossas relações dentro dele são ditados pela
longa duração, porque são onde os homens estão enraizados. Nossas crenças pairam
inconscientemente sobre nossas decisões, nossos valores nos dirigem a moral de nossas ações.
Assim, a partir da difusão do capitalismo mundial com as grandes navegações do século XVI,
propiciaram-se mudanças nas relações de exploração nos mais variados continentes. Foi após
a revolução industrial que as tensões entre a exploração desenfreada sobre o meio ambiente -
a produção de massas para o consumo de massas - típica de uma cultura urbana em ascensão,
começa a desequilibrar a relação entre homens e o meio. Além desse desequilíbrio, o
individualismo cada vez mais severo entre os homens, desconsidera que suas ações façam
parte de um conjunto de múltiplas ações de indivíduos que formam um todo.
Como antes dito, as relações entre o homem e o meio se modifica conforme as novas
concepções de mundo se constroem. Na Europa medieval, com uma população quase que
totalmente rural, a exploração do meio não chegava a desequilibrá-lo, pois este ainda não era
ocupado por uma grande massa, nem era afetado por uma grande demanda de consumo. Hoje,
consolidado o paradigma de produção e consumo de massas surgidas no seio do capitalismo,
A permacultura:
Es el diseño y desarrollo de hábitats sustentables para el hombre, espetando los
patrones y sistemas de la naturaleza. Generalmente los desarrollos de permacultura
se hacen en terrenos y se aplican para el rescate de ecosistemas y restauración
ambiental. Mollison y Holmgren acuñaron para su nuevo concepto el término
permaculture, una fusión de los términos ingleses permanent agriculture (agricultura
permanente). ( s.a.,2012, p. 3).
Foi a partir das revoluções industriais que a cultura de massas, próprias do capitalismo
urbano industrial, que as relações entre homem e meio inegavelmente quebraram com o
equilíbrio ambiental. A quebra de visão do todo nos distancia de uma relação mais harmônica
e sadia com o meio. A permacultura constitui então, um conjunto de práticas norteadas por
três eixos fundamentais: aquilo que é socialmente justo, economicamente viável e
ambientalmente sustentável. Desse modo, a permacultura faz parte de um projeto holístico, ou
seja, um projeto que pretende levar em consideração a totalidade de relações observáveis no
meio e de sua administração racional e harmônica.
Como já explorado antes, as práticas de exploração do meio, intensificadas pelo
capitalismo industrial de nosso século, gerou toda uma mobilização técnico-científica e
intelectual, onde a compreensão de desenvolvimento perpassou necessariamente no controle
da natureza, ou se preferir, em sua negação. Esse descontrole ou equívoco no trato com o que
é natural e o que é civilizado fez com que as mais novas gerações, já sentindo os problemas
Se, a partir do século XIX temos a formação das respectivas áreas do conhecimento,
ou mesmo sua divisão e compartimentação, agora no século XXI, presenciamos uma
retomada do intercâmbio cada vez maior entre elas. A história e seu caráter interdisciplinar
incontestável ensejam dentro do ensino, a possibilidade de trabalhar-se com eixos
transversais.
Devemos ter em mente que para um homem consumir, deve também produzir, e que,
para produzir, deve consumir. Na física, podemos prever a quantidade de energia necessária
para se elevar um simples tijolo de 500 gramas, onde um homem comum poderia fazer com a
energia da farinha dos grãos de trigo que fazem seu café da manhã. Podemos, na história
então deduzir que, para a construção da Muralha da China, exigiu uma complexa rede de
demandas, ou seja, foi necessário a formação de uma cadeia de produção, perpassando a terra,
o homem, as coisas e suas transformações. De proporções bíblicas, a muralha demandou
milhares de homens para sua construção. Estes homens necessitaram de água, comida, bem
como matéria-prima. Todos estes aspectos podem ser trabalhados com o intuito de promover
uma visão diferenciada, onde uma perspectiva de todo possa ser elaborada.
Para além da história do presente, as problematizações feitas a partir do tema
sustentabilidade e bioconstrução, focando sempre na permacultura e seus eixos fundamentais
(o que é ambientalmente sustentável, socialmente justo e economicamente viável) sua
proposta de trabalho possibilita conectar conteúdos que vão desde a Antiguidade ao Brasil
Colônia. As técnicas utilizadas na permacultura não são novidades, muito pelo contrário, parte
do resgate de hábitos e tecnologias há muito esquecidas ou deixadas de lado em função de
como nos organizamos hoje. O teto verde, por exemplo, foi muito utilizado por índios
kaingangs no Rio Grande do Sul e culturas europeias nórdicas. O adobe também é uma
técnica anterior ao tijolo queimado de olaria e foi utilizada pelos povos da Antiga
Mesopotâmia, pelos chineses, egípcios e europeus (em especial os portugueses). No Brasil,
por exemplo, sua Igreja mais antiga foi construída com tecnologia de adobe e localiza-se em
Pernambuco, próximo a Recife.
A educação e o ensino desempenham papéis a eles outorgados pela lógica social. Mas
quais seriam estes papéis? É a partir da revolução das formas de produção, ou seja, a partir da
transformação da natureza em capital, que os tentáculos da força econômica surgem dentro
dos Estados, desenvolvem-se dentro deles e então o esmorecem, os subvertem ao capital.
Dentro desta lógica, a educação tem demonstrando, ao longo dos anos no Brasil, como sendo
um espaço de produção e reprodução da lógica da exploração e da manutenção de
desigualdades própria da sociedade capitalista.
Considerações Finais
Este trabalho iniciou suas atividades com o uso de pallets (visto que alguns trabalhos
já foram desenvolvidos na escola com esse material) e madeira acumulada no pátio da escola,
de forma a reaproveitar este material ressignificado da condição de lixo para matéria-prima.
Este projeto, iniciado com uma Atividade Norteadora, teve sua proposta apresentada para a
turma do segundo ano do Ensino Médio e partiu das necessidades dos próprios alunos,
baseada na cartografia social elaborada pelo subprojeto. Assim, pretende-se ampliar para além
dos muros da escola, diminuindo as distâncias entre a comunidade escolar e a comunidade do
bairro.
Explícito anteriormente, as atividades do subprojeto Pibid/História - UFSM, encontram-se
ainda em fase de desenvolvimento. Por isso, seu embasamento teórico e seu diálogo com a
prática, a partir de reflexões dentro dos conteúdos de história, ou seja, a constituição da
práxis, não permanece estanque. Desse modo, a prática pedagógica e o ensino de história,
devem ser constantemente revisionados. Pretendemos , no decorrer das atividades na EEEB
Santa Marta, possibilitar a formação de uma autonomia crítica nos estudantes participantes do
“Nossas Mega Construções” a partir de um acúmulo de referenciais adquiridos com o estudo
de história.
Referências
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo - SP: Editora Perspectiva, 1978.
CHAUÍ, Marilena de S. O que é ideologia? São Paulo - SP: Editora Braziliense S.A., 1995.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro - RJ: Paz e Terra, 2008.
GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo – SP: Cia
das Letras, 1996.
GOUVÊA, A.F.S. da. A busca da organização curricular crítica: das falsas significativas às
práticas contextualizadoras. Qualificação – Dissertação de Mestrado/USP – São Paulo, 1999.
LIBÂNEO, J.C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M.S. Educação Escolar: políticas, estrutura e
organização. São Paulo: Cortez Editora, 2003.
NORA, Pierre. Entre Memória e História – A Problemática dos Lugares: IN: Projeto História:
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do departamento de História
da PUC-SP, n. 10. São Paulo: Educ, 1993.
MANN, Tomas. A Montanha Mágica. São Paulo – SP: Editora Nova Fronteira S.A., 1952.
Resumo: As estratégias de ensino de história precisam ser constantemente repensadas, no sentido de abarcar os
novos temas e ampliar o diálogo com as novas linguagens de docentes e discentes. O cinema constitui-se como um
campo a ser explorado pelo professor historiador, podendo ser abordado como fonte, objeto e meio de representação
histórica. “O Gato do Rabino” é uma animação de produção francesa, ambientada na Argélia, no final de 1920.
Como protagonistas principais estão o rabino e seu gato que, após devorar um papagaio, passa a falar. O enredo
básico da animação é uma viagem em busca dos judeus que vivem no “Oriente”. Essa animação permite um conjunto
de indagações para o ensino de história das religiões, dentro de uma perspectiva de transversalidade e
multiculturalismo. A tolerância evidenciada pelas personagens proporciona uma reflexão sobre as práticas de
intolerância cultural do mundo contemporâneo. Este estudo busca apresentar as estratégias de utilização de “O Gato
do Rabino” como meio de ensino de história, identificando modelos práticos para serem empregados em sala de aula.
Palavras-chave: Ensino. História. Religiões. Cinema. Tolerância.
Abstract: Strategies for teaching history must be constantly rethought in order to embrace the new themes and
expand the dialogue with the new languages of teachers and students. The cinema was established as a field to be
explored by historian teacher, can be approached as a source, object and medium pageant. "The Rabbi's Cat" is an
animation of French production, set in Algeria at the end of 1920. The main protagonists are the rabbi and his cat
after devouring a parrot starts to speak. The basic story animation is a journey in search of the Jews living in the
"East." This animation allows a set of questions for the teaching of the history of religions, within a perspective of
mainstreaming and multiculturalism. The tolerance shown by the characters provides a reflection on the practices of
cultural intolerance of the contemporary world. This study aims to present strategies for using "The Rabbi's Cat" as a
means of teaching history, identifying practical to be used in the classroom models.
Keyworks: Education. History. Religions. Cinema. Tolerance.
Escrever sobre história das religiões é um assunto relativamente novo, isso se levarmos
em conta o campo de conhecimento da História, diferente de outros campos do conhecimento
como a Filosofia, a Antropologia e o da Sociologia. Mas quando nos atemos ao campo da
historiografia, a abordagem, principalmente nos livros didáticos, é limitada e bastante
conservadora.
1
Universidade de Caxias do Sul – E-mail: crisflia@bol.com.br
2
Universidade de Caxias do Sul – E-mail: daniel.clos@gmail.com
História das religiões é comumente confundida com ensino religioso. Ensinar história das
religiões para muitos professores de história é incômodo, pois muitos tendem a ver o ensino das
religiões como a defesa de um credo ou disseminação de uma religião. Esse afastamento provém
de uma tendência em “confirmar a secularização da sociedade” (LIA, 2012, p. 551), o que
condenou a marginalidade do conhecimento histórico.
O ensino de história das religiões no ensino Médio e Fundamental é quase inexistente. O
que existe é um apanhado de pequenos quadros explicativos – que pouco ou nada explicam –
sobre religiões do passado. Esses quadros e comentários encontrados nos livros didáticos estão na
contramão dos temas transversais como a pluralidade cultural, pois não são utilizados para criar
mecanismos de integração e aproximação dos diferentes credos, pelo contrário, apenas reforçam
visões de dominação, preconceito em relação a povos, nos quais as diferenças culturais são
consideradas como atrasos em função das religiosidades professadas. O que promove o
afastamento do culturalmente diferente e a criação de uma hierarquia das manifestações
religiosas, divididas entre as que são consideradas mais evoluídas e as que permanecem em
estágio de estagnação.
Percebe-se, principalmente nos livros didáticos, uma desconexão do ensino das religiões e
religiosidades com o ensino de história. Ainda que a própria historiografia afirme, de alguma
forma, uma profunda ligação da religião com o Estado, com o cidadão, com a cultura e como
modo de vida de diferentes sociedades, ao chegar à sala de aula este conhecimento é
descaracterizado e transformado em “partículas de saber” ministrados em doses desconexas,
visando apenas o “exótico” (LIA, 2012. p. 551) e não como fator que modela e define
comportamentos sociais.
No entanto como podemos ensinar a história dos primeiros povos daquilo que hoje
chamamos América se, a religião – ou religiosidade – algo intensamente intrínseco a vida dos
ameríndios, é posto como algo secundário e pouco relevante? Como é possível administrar a
separação do cotidiano dos índios americanos ou dos egípcios da religião, quando seus
calendários agrários, suas práticas de caça e pesca, seus atos de guerra e a própria escolha de seus
líderes eram guiadas pelas deidades por eles criadas?
Segue-se a isso uma grande produção de comentários e quadros temáticos nos livros de
história do Ensino Fundamental e Médio, que fazem apenas classificações e generalizações, com
pouca ou nenhuma distinção entre os diferentes grupos étnicos. Para os povos monoteístas,
demais representações religiosas, não existe nenhum suporte para fazer tal afirmação ou defender
a hierarquia religiosa. Mas, serão as monoteístas as aqui trabalhadas, em função da animação O
Gato do Rabino focar seu roteiro em judeus, cristãos e muçulmanos.
A obra fílmica também tem seu espaço garantido na sala de aula. Professores de história
se utilizam do cinema como estratégia para enriquecer suas abordagens e, principalmente, para
criar uma imagem de determinados acontecimentos e épocas, permitindo que o aluno tenha uma
experiência sensível diante de realidades marcadas pela distância no tempo e no espaço. No
entanto, o filme não deve ter a função ilustrativa de um conteúdo, menos ainda deve ser a
referência única sobre um assunto.
O cinema, seja ficcional, baseado em contexto histórico ou documentário deve servir
como um produto cultural cuja análise da produção já consiste na primeira fase de análise para o
educando. Um filme não pode compor uma aula sem ser analisado dentro da perspectiva de quem
o produziu, onde foi produzido e em que momento. Por não ser produto de um historiador,
precisa ser analisado como fonte específica, dentro das características que conferem sentido à
obra cinematográfica. A história de um filme fala muito sobre o contexto no qual foi produzido.
A ausência de informações sobre o mesmo pode gerar falta de interesse dos alunos,
portanto não pode ser exibido sem ser contextualizado. Da mesma forma, recortes precisam ser
criteriosamente estudados, para não gerar uma compreensão de acordo com as intenções do
professor, impedindo o educando de produzir seu próprio conhecimento sobre a película
apresentada. Sua análise também não deve se limitar em reconhecer os erros de caráter histórico
que se apresentam no mesmo, a desconstrução é uma estratégia válida, desde que a análise não se
limite a ela. A busca pela imperfeição da narrativa histórica pode mascarar importantes reflexões
sobre o título assistido.
Um filme deve compor uma aula promovendo uma experiência específica para os alunos,
permitindo o reconhecimento de diferentes linguagens e o contato com a interdisciplinaridade. A
imagem tem o poder de fixar uma ideia com mais intensidade do que o texto escrito e, quando em
movimento, possibilita a inserção do educando espectador a uma realidade nova, na qual será
capaz (através do auxílio do professor) de desenvolver habilidades e competências, que
contribuirão para a compreensão do tema estudado.
O cinema na sala de aula deve ser tratado como uma fonte documental, através da qual
várias leituras de diversos contextos históricos podem ser feitas. Deve ser pensado como um meio
de sensibilização e como um objeto de análise. Sendo ainda uma estratégia prazerosa para a
abordagem de variados assuntos.
Cúpula da Rocha. Essas imagens ou “lembranças” que o aluno pode ter, são como afirmou Paulo
Freire em sua obra Pedagogia da Autonomia, um conhecimento prévio ou saberes trazidos pelo
aluno para dentro da sala de aula e que deve ser explorado pelo professor no processo de ensino-
aprendizagem, como quando ele instiga o docente a questionar o aluno dentro de sua realidade,
como no exemplo dos lixões (FREIRE, 2002, p. 3).
O oriente médio conhecido pelos alunos brasileiros é aquele apresentado pela grande
mídia que tem sua perspectiva, normalmente, ajustada com a política israelense e ocidental. É um
conhecimento que, via de regra, apresenta muçulmanos como pessoas pouco confiáveis,
perigosas e potencialmente inclinadas ao terrorismo contra judeus e cristãos. A região é
conhecida como sendo um lugar de conflito e sempre é destacada a amplitude da diferença nas
relações entre judeus e muçulmanos, apresentando sempre um avanço e supremacia tecnológica
dos israelenses, frente ao “atraso e decadência” do modo de vida palestino, uma clara relação ao
que a própria mídia faz em relação à cultura no Brasil, quando põem em conjuntos diferentes
símbolos da música ou da arte, como sendo algo originalmente ou particularmente das zonas ricas
ou pobres dos grandes centros urbanos.
Ao afastar geograficamente, isto é, sair da Palestina e de Jerusalém e se mudar para o
Norte da África e Argel, desenha-se um novo plano de fundo, um novo cenário para as mesmas
questões, a convivência entre cristãos, judeus e muçulmanos, mas fora do ambiente onde,
tradicionalmente, o aluno (e até mesmo o professor), veem como uma área de guerra, conflito e
destruição mútua entre os envolvidos. Fazendo um afastamento temporal, isto é, indo para um
período anterior ao Estado israelense, muda-se a abordagem de quem busca a terra prometida,
mas não a temática. Não é um judeu palestino ou muçulmano que buscam um estado, uma terra
onde todos vivem em harmonia, mas um judeu russo, com um aspecto físico diferente daqueles
vistos pelos alunos do Fundamental quando estão na sala de jantar na hora do noticiário nacional.
Este novo cenário apresentado na animação de Sfar é relevante para primeiro, tirar o
próprio professor de sua área de conforto. Um tema que certamente é pouco abordado nos cursos
de história nas universidades brasileiras é a economia e sociedade no norte da África no início do
século XX. A abordagem feita tanto na academia como por livros didáticos do Ensino
Fundamental e Médio, é de uma África passiva aos desmandos de uma Europa entre guerras, que
explora o continente sem nenhuma oposição, e que de alguma forma tornou as relação
homogêneas naquele espaço geográfico.
Os livros remetem-se a um passado bastante distante (séculos XIV e XV), no período dos
primeiros estados modernos, para contemplar uma explicação da unificação de Portugal e
Espanha com a expulsão dos muçulmanos desses territórios e, posteriormente, esses personagens
simplesmente somem dos livros. Quando muçulmanos novamente reaparecem com alguma
relevância histórica nos livros didáticos, já estamos em meados do século XX na criação do
Estado de Israel e no século XXI com o atentado de 11 de setembro de 2001. E aí o cenário e as
relações entre judeus, muçulmanos e cristãos já são outras.
O professor então necessita reciclar-se. Conhecer o norte da África colonial do século XX
exige um momento de pesquisa do docente, como afirma Paulo Freire: “[...] não há ensino sem
pesquisa e pesquisa sem ensino” (FREIRE, 2002, p. 32). Isso pode ser bastante complicado se
pensarmos que a grande carga horária a que são submetidos os professores e o pouco incentivo e
promoção de programas de qualificação por parte dos entes governamentais, deixam o professor
em situação bastante delicada frente ao desafio da pesquisa. No entanto, o ensino é uma via de
mão dupla, “[...] quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE,
2002, p. 25), logo ao tornar o tema significativo para si, o professor estará mais capacitado para
tornar o tema significativo para o aluno.
Esta talvez seja a maior dificuldade de trabalhar um filme, ou nesse caso, uma animação
em sala de aula. É necessário ver O Gato do Rabino como uma fonte para descobertas, como uma
fonte real de pesquisa e estudo, um ponto de partida para o aprofundamento em discussões
significativas para a sala de aula, como a interação entre diferentes credos, o preconceito racial e
religioso, a religiosidade e o ateísmo, por exemplo. O filme O Gato do Rabino não é a história de
um gato, tampouco é um enredo para ser interpretado como uma história de amor entre um felino
falante e sua dona, é uma animação que busca discutir temas relevantes na contemporaneidade
afastando-se historicamente e geograficamente daquele discurso e ambiente previamente
conhecido pela sociedade ocidental contemporânea.
Figura 1. O preconceito religioso e racial. Em Argel, judeus e muçulmanos não podiam frequentar restaurantes
franceses. Na cena, o rabino e seu primo desafiam a “tradição” local graças à companhia de um leão, que também é
um símbolo judaico
Não é nossa pretensão criar neste artigo um guia definitivo para uso do filme O Gato do
Rabino em sala de aula. No entanto, por se tratar de um texto produzido para um evento de
Ensino de História, queremos aqui sugerir como essa animação poderia ser abordada em uma
aula de história. As propostas aqui não são sugestões fechadas e preparadas para um determinado
grau de escolarização, eles servem como base para que o docente, como pesquisador, possa fazer
as adaptações que julgar necessárias para aplicá-lo tanto no Ensino Médio como no Ensino
Fundamental.
O universo da animação é composto basicamente de cinco personagens humanos
principais: um rabino, Abraham Sfar; Mohammed Sfar, um ulemá (aqui estamos fazendo uma
interpretação livre, pois em nenhum momento o filme afirma categoricamente isso, mas entende-
se que o personagem é versado na doutrina islâmica) com parentesco com o rabino judeu, um
judeu russo fugitivo da Revolução Russa de 1917 e um cristão ortodoxo russo que vive na
Argélia. Esses personagens são cercados de outros personagens, como uma turba de judeus
ortodoxos, a filha do rabino e uma africana negra. E há um gato que, como personagem principal
do desenho, desempenha o papel de provocar o diálogo entre os humanos, tirando de si o foco e
lançando sobre os outros personagens que reagem de variadas formas aos questionamentos do
felino.
Parte dos personagens, após receberem uma caixa de livros vinda da distante União
Soviética com um “imigrante” judeu russo dentro dela, inicia uma viagem em busca de uma terra
onde judeus vivem em harmonia, uma espécie de Terra Prometida. Vale ressaltar que o filme está
ambientado no contexto da década de 1930, portanto, não existe ainda um estado judeu. O elo
entre todas essas religiões durante a viagem é um velho veículo francês (Citroen), ornamentado
com um brasão onde aparece um águia bicéfala representando o império russo com uma estrela
de Davi no peito. O que seria uma excelente representação para uma verdadeira Arca de Noé de
credos, o que também não deixa de ser um elo entre as três religiões retratadas no filme, já que o
evento do dilúvio faz parte do mito criador de todas as três religiões.
O filme é longo, portanto, o uso de cenas selecionadas ou editadas pode ser mais eficiente
levando-se em conta períodos de aula que duram entre 45 e 50 minutos. Faremos então nesta
última parte do texto, uma seleção de cenas que podem ser úteis na construção de uma aula de
história das religiões utilizando o filme supracitado.
Vilela aponta um aspecto interessante da arte sequencial, “o anacronismo, o verossímil e o
inverossímil” (VILELA, 2012, p. 120). E vamos utilizar esses recursos para sugerir a utilização
Figura 3. A filha do rabino conversa com amigas no pátio da casa. Seu vestuário não condiz muito com a tradição
judaica e uma de suas amigas fuma enquanto falam do “interessante” rabino
Essa inadequação apresentada no filme pode ser uma deixa interessante para discutir o
papel da mulher na sociedade. Sfar em seu texto gráfico propõe uma personagem com um perfil
forte, ainda quem não seja uma personagem principal no filme, ela tem uma participação
relevante em seu discurso e no seu comportamento. Ela obviamente não representa o padrão
feminino da mulher judia do início do século XX no norte da África. E Sfar, talvez se utilizou
desse “desconhecimento” do norte da África naquele período para construir a sua personagem,
que mais lembra, visualmente, uma odalisca do oriente.
Ainda há outro exemplo envolvendo a jovem judia, no momento em que ela serve de
modelo para o judeu russo que a está pintando. A cena é presenciada e desaprovada por outro
rabino. Assim, a moça exige o respeito do mestre judeu pelo fato deste estar em sua casa. O que
torna o ator mais interessante é que ela acaba passando por cima da autoridade de seu pai que se
faz presente no local, demostrando, dessa forma, a inversão de papel na tradição judaica que, no
segundo quarto do século XX, dificilmente seria tolerada.
Figura 4. A filha do rabino é pintada pelo jovem judeu russo e discute com um velho rabino sobre sua autonomia
É papel do professor, em situações como essa, não apenas apontar o erro como uma forma
de mostrar a “ignorância” histórica do autor. Não deve ser esse o nosso foco como educadores,
mas sim de, a partir desses anacronismos, criar um ponto de partida para discussões relevantes
sobre a construção de um conhecimento com informações historicamente “mais” corretas a
respeito daquele período. Não pode ser o objetivo de um professor desmerecer o trabalho do
artista que não é historiador, mas pelo contrário, dar um sentido histórico a sua obra tornando-a
útil para o ensino de história e não o contrário.
As cenas que sugerem certa verossimilhança histórica são o que notamos de mais incrível
na película. Uma delas é quando os dois primos, um rabino judeu e um xeque muçulmano, se
encontram a caminho do túmulo de um ancestral em comum. É interessante que os animais dos
dois, um gato e um burro, possuem construções diferentes a respeito do ancestral, um afirma ser
ele um importante xeque muçulmano e outro, um rabino. Esse momento da história remete ao
passado comum de judeus e muçulmanos, que apontam seu ancestral mais antigo como sendo
Abraão, um personagem encontrado tanto na Bíblia como no Alcorão.
Figura 5. Na figura aparece a pergunta feita pelo gato ao perceber que o muçulmano possuí o mesmo
sobrenome de dono, um judeu
Esta cena é bastante interessante para fazer uma aproximação entre judeus e muçulmanos,
algo que pode ser extremamente complexo para alunos do Ensino Fundamental e Médio que
estão acostumados a ver seguidores desses dois credos em lados opostos, como é apresentado
continuamente pela mídia. A cena que se segue ao encontro mostra grande proximidade entre os
dois e também um respeito pelas diferentes cosmovisões religiosas construídas por cada um
deles.
Outra cena é quando a turma que dirige pelo deserto encontra-se com um grupo de
nômades muçulmanos. É uma cena interessante para fazer uma quebra no paradigma da
homogeneização das religiões. Assim como ocorre na simbologia do cristianismo, como por
exemplo, com suas inúmeras derivações de ramos (característica também lembrada pelo filme no
momento em que o cristão russo entre em um templo da igreja católica romana na cidade de
Argel), o Islã apresenta como insígnias diferentes ramos e uma grande diversidade na forma de
interpretar o livro sagrado. Na cena, mesmo o muçulmano que acompanha o grupo, vê-se
deslocado, por não compactuar com a forma como os nômades fazem sua leitura do mundo.
Figura 6. O rabino tenta “aproximar” islamismo e judaísmo pela cultura e “gastronomia” como forma de acalmar os
ânimos dos guerreiros nômades após uma discussão religiosa.
Conclusões
O cinema é uma excelente fonte para a sala de aula. Uma ferramenta que pode auxiliar
professor e aluno a expandirem seu conhecimento. As atividades com filmes permitem também a
interdisciplinaridade da História, Língua Portuguesa e Artes e podem ser um estímulo para que
alunos e professores desenvolvam a competência da comunicação pela representação gráfica.
Ao assistir um desenho animado ou ler uma história em quadrinhos, o aluno pode ser
estimulado a escrever seus próprios roteiros, que, assim como o autor do filme em questão,
mostraram muito de sua visão de mundo e como ele se vê nesse contexto. As representações
gráficas que o aluno faz reproduzem isso.
Aulas de história com filmes não podem se tornar um momento de tédio para os alunos
nem de hora descanso para professores, mas momentos de intenso debate e conhecimento. E cabe
Referências
FERRO, Marc. O filme uma contra-análise da sociedade. In.: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre
(orgs.) História: novos objetos. 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
LIA, Cristine Fortes. História das religiões e religiosidades: contribuições e novas abordagens.
AEDOS. Porto Alegre. PPGH-UFRGS, n. 11 vol. 4 - Set. 2012.
LIA, Cristine Fortes; BALEM, Wellington Rafael. Os vivos, os mortos e os não nascidos: as
religiões consideradas mortas e o ensino de história Revista Latino-Americana de História.
PPGH-Unisinos, v. 2, n. 6, São Leopoldo, 2013.
MORETTIN, Eduardo. O cinema com fonte histórica na obra de Marc Ferro. In.: CAPELATO,
Maria Helena [et al.] (org.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. 2 ed. São
Paulo: Alameda, 2011.
VILELA, Túlio; VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Como usar as histórias quadrinhos
em sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto. 2012.
Resumo: No final do século XX a circulação do livro didático foi ampliada, consolidando esse material como
principal aporte didático no contexto escolar. De modo semelhante, as pesquisas envolvendo o livro didático como
fonte e objeto de estudo também ganharam espaço e representatividade. Nesta pesquisa tem-se por objetivo
compreender os usos do livro didático de História no contexto escolar, observando, especialmente, a relação que os
alunos estabelecem com esse material. Assim, vislumbra-se dar conta dos processos pelos quais o conhecimento
histórico escolar é apreendido por aqueles que passam pela escola, como também os mecanismos que aproximam ou
distanciam os indivíduos desse conhecimento. O estudo envolveu dez instituições da rede pública de ensino da
cidade de Pelotas, nas quais foram aplicados questionários semiobjetivos a um total de 146 alunos das séries finais
do Ensino Fundamental, durante o primeiro semestre de 2014. O questionário respondido pelos alunos apresentava
questões relacionadas à disciplina de história e ao uso do livro didático nas aulas. Entre os dados analisados observa-
se que 85% dos alunos que responderam o questionário declaram que gostam da disciplina de História, contudo, o
índice não é o mesmo em relação ao gosto pelo livro didático.
Palavras-chave: Ensino de História, Livros didáticos, Alunos
Abstract: In the late twentieth century, textbook circulation was expanded, consolidating this material as the main
teaching contribution in the school context. Similarly, research involving textbook as source and object of study also
gained space and representation. This research has been aimed at understanding the uses of history textbook in the
school context, specially observing the relationship that students have with this material. Thus, the research focuses
on comprehend the processes by which school historical knowledge is learning by those who go through school, as
well as the mechanisms that bring individuals closer or distant from that knowledge. The study encompassed ten
public school institutions in the city of Pelotas, in which semi-objective questionnaires were administered to a total
of 146 students from middle school, during the first semester of 2014. The questionnaire answered by the students
presented questions related to the history class and to the use of textbook in class. Among the data analyzed, it is
observed that 85% of the students who answered the questionnaire state that they like the classes. However, the
percentage is not the same in relation to how students like textbooks.
Keywords: History Teaching, Textbooks, Students.
Introdução
1
Departamento de História – ICH/UFPel. Contato: lisianemanke@yahoo.com.br
solicitadas eram referentes às aulas ministradas pelo professor titular da turma. Além dos
questionários, os relatórios de observação do contexto escolar também compõem o rol de fontes
analisadas. Esses relatórios versam sobre o contexto escolar e sobre as práticas de ensino,
observadas antes do início da regência. Deste modo, ressalta-se a significativa participação dos
licenciandos do curso de História, que através dos relatórios de observação e da aplicação dos
questionários, colocaram em evidência vários indícios sobre o uso dos livros didáticos de
História, possibilitando o maior alcance da pesquisa na rede pública de ensino da cidade de
Pelotas.
Assim, vislumbra-se dar conta dos processos pelos quais o conhecimento histórico escolar
é apreendido por aqueles que passam pela escola, como também os mecanismos que aproximam
ou distanciam os indivíduos desse conhecimento. O estudo se justifica ao se considerar que as
experiências individuais e coletivas que envolvem o saber histórico são alimentadas,
especialmente, por práticas provenientes dos espaços escolares e do modo pelo qual este
conhecimento escolar é direcionado. Considera-se que as pesquisas que se ocupam em investigar
a relação dos alunos com o conhecimento histórico, o uso dos materiais didáticos, a construção e
a permanência desse saber para além das avaliações escolares, assim como a constituição de um
imaginário coletivo sobre o passado da humanidade, ainda requerem investimento de estudos,
uma vez que, tais pesquisas podem contribuir significativamente para estabelecer as bases do
processo de ensino-aprendizagem.
certa ortodoxia” (MUNAKATA, 2012, p. 183). De igual modo, para Choppin (2004) “um
interesse particular vem sendo dado, de uns 20 anos para cá, às questões referentes ao uso e à
recepção do livro didático.” (CHOPPIN, 2004, p. 564). Para o autor, o manual não é um livro que
lemos, mas que usamos, e neste ponto centra-se a complexidade dos livros didáticos e de sua
análise. “É a tomada de consciência da dimensão dinâmica do manual (ele só existe, em
definitivo, pelos usos que dele fazemos) o que falta à maioria dos trabalhos de análise”.
(CHOPPIN, 2002, p. 23). Neste sentido, compreender as experiências vivenciadas em sala de
aula, tendo o livro didático como centro do processo, ganha especial significado e requer
investimento investigativo.
Em relação aos usos do livro didático, Bittencourt (1996), ao problematizar o seu papel no
processo de aprendizagem da leitura e da escrita nas últimas décadas do século XIX e início do
século XX no Brasil, evidencia o histórico controle escolar sobre o ato de ler. Controle esse
advindo das autoridades educacionais, dos autores e editores de livros e dos professores, que
determinavam os protocolos de leitura a serem seguidos:
A iconografia dos livros didáticos, (...) reforçava esse mecanismo de impor uma
disciplina do corpo no ato de ler. Em vários livros de leitura, pode-se observar
reproduções de cenas de crianças lendo em grupo mas, sobretudo, individualmente,
tendo posturas controladas para segurar o livro e como manuseá-lo, seguindo-se às
ilustrações, textos que prescreviam todos os cuidados que os alunos deveriam ter para
com o livro, inclusive com conselhos sobre as formas de ler à noite por causa do perigo
das lamparinas. (BITTENCOURT, 1996, p. 98).
alunado. Com bem expressa Batista (2000), “a destinação a esse leitor é evidente na organização
e na linguagem dos textos e impressões e em sua utilização. O prefácio e a apresentação dos
livros se dirigem ao aluno; nos exercícios e atividades, as instruções também […]” (BATISTA,
2000, p. 551).
De igual modo, os livros didáticos por estarem vinculados às instâncias institucionais
refletem uma dada imagem das práticas da leitura, ou seja, a literatura escolar parece estar
normalmente vinculada ao cumprimento das práticas de ensino-aprendizagem. O suporte do livro
didático, assim como outros, encerra a intenção de controlar a recepção por parte do aluno leitor,
que fica entre duas categorias contraditórias, de um lado, suas vivências e experiências anteriores,
que são trabalhadas no ato da leitura, e, por outro, a necessidade de condicionar sua leitura a
própria constituição do texto, organizado com o propósito de atingir determinados objetivos.
(BARBOSA, 2009). Neste sentido, algumas questões requerem aprofundamento investigativo no
que concerne as especificidades do uso do livro didático: que leituras são realizadas neste suporte
didático? Leituras que seguem a ordem dos conteúdos trabalhados, que pulam algumas páginas,
que dão ênfase para alguns box de texto, que esquecem outros, que desvinculam as imagens do
texto, ou ainda, que são realizadas de forma coletiva, levando a produção de sentidos coletivos, o
que anularia as referências individuais.
Nesse sentido, considera-se que o livro didático está normalmente vinculado aos
contextos de ensino-aprendizagem, sendo utilizado com a mediação de um professor e, portanto,
não é lido, mas usado no contexto escolar, como orienta Choppin (2002). Conforme Rüsen (2001,
p. 112), a verdadeira finalidade dos livros didáticos de História é tornar possível, impulsionar e
favorecer a aprendizagem da história. Assim, para o autor é impossível uma análise do livro
didático sem alguns critérios normativos da aprendizagem histórica, que consiste em um processo
de desenvolvimento da consciência histórica. Deste modo, o livro didático deve possibilitar a
ampliação das competências: perceptiva, interpretativa e de orientação. Para o autor, entre as
características irrenunciáveis para um livro adequado, estaria a capacidade de argumentação, que
ultrapassa a mera exposição dos conteúdos, levando os alunos a desenvolverem a capacidade de
argumentar, criticar e julgar. Ainda, em relação aos aspectos metodológicos, seria imprescindível
que observasse os procedimentos mais significativos do pensamento histórico, de forma a exercer
na prática: “o desenvolvimento de problemas, o estabelecimento e a verificação de hipóteses, a
estagiários para 146 alunos das séries finais do Ensino Fundamental de dez escolas da rede
pública de ensino do município de Pelotas.
A primeira evidência que os dados permitem destacar é que dos 20 professores
observados, três não utilizam o livro didático em suas aulas (apesar de terem o livro à sua
disposição na escola), oito professores utilizam o livro durante as aulas, mas não permitem que os
livros saiam da escola, ou seja, os alunos não podem levar o livro para casa, devido a exigências
da escola ou do próprio professor. Os demais, nove professores, utilizam o livro didático e
permitem que os alunos levem o mesmo para casa. Deste modo, observa-se que das 20 turmas,
apenas nove tem a posse do livro didático, isto é, menos da metade dos alunos desta amostra têm
o direito de usufruir do livro didático de história na escola e em casa. Fato esse que contraria a
proposta do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que tem “como principal objetivo
subsidiar o trabalho pedagógico dos professores por meio da distribuição de coleções de livros
didáticos aos alunos da educação básica.” (MEC/PNLD). Portanto, conforme consta na página do
PNLD a distribuição é feita para os alunos, para subsidiar o trabalho dos professores, via escola
pública.
Em uma determinada escola, durante uma visita da supervisora de estágio a um dos
estagiários, foi possível constatar in lócus tal situação. O professor estagiário utilizou o livro
didático para a realização de uma atividade em que os alunos do sexto ano deveriam fazer um
desenho sobre temas que envolviam o conteúdo de Idade Média; o livro era consultado para
relembrar o conteúdo trabalhado e ajudar na decisão sobre o desenho que melhor representaria o
tema proposto. No final da aula, como não haviam concluído a atividade, o professor estagiário
solicitou que continuassem na próxima aula, pois não poderiam levar o livro para casa por
determinação da escola. Após a orientação do professor estagiário, uma aluna argumentou e pediu
por várias vezes para levar o livro, mas não foi atendida, mediante justificativa de que a direção
não permitia que os livros fossem retirados da escola. Outro caso, também questionável, é de uma
escola que permite aos alunos levarem o livro didático para casa, mas se no dia da aula de
História não estiverem com o livro são proibidos de assistirem a aula. Fato este que foi
presenciado por uma das estagiárias durante o período de observação, quando uma aluna ficou
sentada no refeitório durante a aula de História por ter esquecido seu livro.
Os 146 alunos que responderam o questionário utilizam o livro didático, em todas ou em
algumas aulas de História. E o que dizem em relação a estas aulas? Entre os dados analisados
observa-se que 80% dos alunos que responderam o questionário gostam da disciplina de História.
Alguns desses alunos justificaram, na lacuna ao lado da pergunta, o motivo que os faz gostar da
disciplina, entre as respostas consta: “porque gosto de saber como foi a vida há um tempo atrás”;
“porque é interessante você aprender o surgimento de várias coisas, como chegamos e como nos
desenvolvemos”; “gosto pois assim aprendo coisas de quando eu não existia”; “porque o passado
chama atenção”; “adoro descobrir o que aconteceu com nossos antepassados”. A última resposta,
que foi dada por um aluno da oitava série, parece indicar aquilo que seria essencial em uma aula
de História, ou seja, a motivação para “descobrir” o passado. Contudo, muitos dos alunos que
justificaram o gosto pela disciplina parecem reproduzir o discurso mais difundido no meio
escolar, ao afirmarem que gostam de História por que é um conhecimento importante. Mas, qual
a importância desse conhecimento? Talvez, estes alunos não saberiam responder.
No contexto escolar o ensino de História deve ter como meta principal a motivação dos
alunos para esse conhecimento, sendo uma disciplina que propicia o questionamento, a dúvida, a
reflexão crítica sobre o passado e o presente, levando o alunado a envolver-se com o conteúdo
trabalhado. Para Schmidt (2010), considerar a experiência dos alunos no ensino de História
possibilita o diálogo entre o passado e o presente, e a consciência da possibilidade de intervenção
na realidade em que se vive. Para tanto, o ponto de partida seria a problematização do
conhecimento histórico:
Como seria a metodologia de uma aula de História que leva em conta o conhecimento
experiencial dos alunos, que desperta a curiosidade e que motiva o aluno a “descobrir” o
passado? Os relatórios de observação do espaço escolar não ajudam a responder essa questão,
pois indicam aulas centradas na figura do professor, na ausência de diálogo, na transmissão de
conteúdos históricos trabalhados por professores sem formação específica em História, a exemplo
do que é descrito por uma das estagiárias em seu relatório: “os alunos não passam de ‘monges
copistas’ durante as aulas de História”. A análise dos questionários que os alunos responderam
confirma o que indicam os relatórios de estágio. Ao responderem uma das questões dissertativas,
sobre o que poderia melhorar nas aulas de História, indicam uma série de possibilidades
metodológicas. As respostas analisadas apontam que a maioria dos alunos gostaria de assistir
filmes durante as aulas, e a segunda maior referência é sobre o uso de mídias digitais como
recurso didático, como o celular e o computador. Ainda, segundo as respostas, as aulas poderiam
contar com mais e melhores explicações sobre o conteúdo trabalhado, com menos cópia, com
maior interação entre os alunos, além de brincadeiras, teatros, passeios em museus, pesquisas, e
por fim, com “matérias que nos interesse”.
As indicações dos alunos correspondem à utilização de ferramentas importantes para o
processo de ensino-aprendizagem, que os estudos já realizados (NAPOLITANO, 2003;
BITTENCOURT, 2009) compreendem como recursos eficazes para a realização de aulas
interessantes e que auxiliam na compreensão dos processos históricos. Contudo, pode-se inferir
que os alunos fizeram referência a estas técnicas de ensino por já terem tido aulas em que tais
propostas foram efetivadas, possivelmente, o/a professor/a de História atual não trabalha nesta
perspectiva, ou utiliza tais recursos muito esporadicamente. Contudo, a resposta que certamente
resume o anseio dos alunos em relação ao uso de novas técnicas de ensino, é a que sugere
“matérias que nos interesse”. Essa indicação está relacionada a conteúdos que fazem sentido para
o aluno, que dialoguem com questões atuais e que ajudem a compreender as diferentes formas de
organização social. Compreende-se que o aluno terá interesse pela “matéria”, quando conseguir
estabelecer relações e compreender o sentido dessa aprendizagem. Para Bittencourt (2009) é
necessário ater-se especialmente as metodologias de ensino, que estão relacionadas à concepção
de ensino-aprendizagem que o professor possui, mais do que aos recursos utilizados, como bem
expressa:
[...] Tais concepções de ensino e aprendizado explicam por que um método tradicional
pode ser utilizado com tecnologia avançada. Pode estar presente mesmo com o emprego
de computadores, desde que a finalidade principal do uso desse suporte tecnológico seja
apenas facilitar a melhor transmissão do conhecimento, sem estabelecer as necessárias
relações entre o conhecimento do aluno e o escolar. Renova-se o instrumento, mas fica
mantido o método tradicional, ao consolidar a noção de que o saber histórico (ou o de
qualquer outra disciplina) significa apenas a absorção do que foi transmitido.
(BITTENCOURT, 2009, p. 230).
Assim, compreende-se que o uso dos recursos didáticos deve estar associado a
metodologias de ensino que proporcionem ao aluno a participação ativa no processo de ensino-
aprendizagem. Do contrário, os filmes, o computador, os passeios, estarão fadados a transmissão
de conhecimentos sem finalidade, que somente apresentam como objetivo final a avaliação.
Nesta mesma perspectiva o livro didático de História também pode estar inserido no
contexto escolar, ou seja, como um instrumento de transmissão de conteúdos acabados, ou como
suporte que potencializa leituras seguidas de discussões, problematizações e debates, que
instiguem a produção de atividades interessantes que promovam o saber histórico. Contudo, os
dados coletados indicam que das dez turmas analisadas, sete utilizam o livro didático em todas as
aulas, nas demais, três turmas, somente em algumas aulas. O uso diário do livro didático aponta
para o protagonismo deste suporte, que não permite que outros recursos didáticos sejam inseridos
nas atividades realizadas. Como já salientado, em alguns casos os alunos que por ventura tenham
esquecido o livro são impedidos de entrarem em sala de aula, tamanha a importância deste para a
realização das aulas. Mas, se o livro didático é utilizado em todas as aulas, que uso os professores
e alunos fazem dele? Essa questão ainda merece maior investigação, embora a resposta dos
alunos aponte alguns indícios.
Quando questionados sobre como gostariam que o professor utilizasse o livro didático, as
respostas mais recorrentes foram no sentido de que o professor não utilizasse ou utilizasse menos
o livro, seguidas de outras indicações de uso, como: “para consulta no dia da prova”, “para
explicar a matéria”, “para fazer exercícios”, “só para ler”. A última afirmativa, “só para ler”, está
relacionada com a prática da cópia, que é observada em outras respostas dos alunos. Uma das
questões que compunha o questionário aplicado estava assim formulada: “Os textos do livro são
copiados para o caderno?” Com três alternativas de resposta: sim, não, às vezes. As respostas
indicam que a maioria das turmas costuma copiar, às vezes, os textos do livro didático para o
caderno, enquanto os alunos de uma das turmas sempre copiam o conteúdo do livro para o
caderno, ou seja, a prática se repete em todas as aulas. Outras repostas dos alunos também
denunciam este aspecto, quando consideram que as aulas de História poderiam ser melhores se
tivessem menos cópia. Não é possível afirmar com que propósito os professores adotam a prática
da cópia do livro didático para o caderno, haja vista que o PNLD fornece um livro para cada
aluno matriculado em escola pública. Uma hipótese a ser considerada seria a de manter os alunos
ocupados durante as aulas, pois enquanto desempenham o papel de “monges copistas” mantêm o
silêncio na sala de aula.
A prática da cópia também é evidenciada em uma reportagem da revista Nova Escola,
publicada em janeiro de 2010, que indica que no Brasil os alunos copiam muito, por muito tempo
e sem finalidade didática. Em pesquisa realizada pelo economista americano Martin Carnoy, que
comparou 36 escolas de Cuba, Chile e Brasil, o pesquisador concluiu que o tempo destinado a
copiar nas escolas brasileiras é três vezes maior do que nas salas de aula cubanas. O propósito
desta atividade estaria especialmente relacionado à exercitação mecânica para o treino da
ortografia, ao preenchimento do tempo e à reprodução no caderno dos exercícios apresentados no
livro didático. Percebe-se, desse modo, o quanto é necessário avançar, para que aulas de História
com real sentido para alunos e professores sejam práticas recorrentes nas escolas.
Em relação à materialidade e ao conteúdo do livro didático os alunos foram motivados a
escreverem o que eles mais gostavam e o que eles não gostavam no seu livro. A principal queixa
dos alunos foi direcionada aos textos longos e difíceis e aos exercícios (sem especificarem o
motivo de não gostarem dos exercícios). Essa questão pode ser associada a outra pergunta
objetiva que solicitava aos alunos responderem se entendiam o que liam no livro didático, tendo
três alternativas: sim, com facilidade; sim, quando leio duas vezes ou mais; não, os textos são
muito confusos. Para 54% dos alunos a leitura se torna compreensível quando leem duas ou mais
vezes, enquanto 17 % dos alunos afirmam não entender o que leem no livro. Esse fato pode ser
compreendido de duas maneiras: pela forma com que o professor media a leitura em sala de aula,
estipulando protocolos de leitura, solicitando leituras parciais do texto ou vinculando a leitura à
obrigação de responder questionários, ou mesmo ainda, pela própria estrutura dos textos
didáticos. Para Rüsen (2011) o texto didático deve utilizar um nível de linguagem adequado à
capacidade de compreensão do aluno, além disso, a competência entre os diferentes meios de
comunicação também reduz a capacidade e a motivação dos alunos para a leitura. Deste modo, o
texto didático não pode se limitar a considerar apenas as possibilidades de compreensão, mas
deve também estabelecer relação com as experiências e expectativas dos alunos. Como afirma o
autor:
Ao se dirigir aos alunos, não se deveria esquecer que a experiência histórica tem um
potencial próprio de encantamento que se pode aproveitar como oportunidade de
aprendizagem. O espanto e a diferença do passado podem ser apresentados de uma
maneira que se acredita ser interessante e curiosa. (...) Um meio provado para
estabelecer uma boa relação com o aluno é dirigir-se a ele explicitamente. (...) Um livro
didático somente é útil se realmente se pode trabalhar com ele em sala de aula. Por isso,
uma característica como livro de trabalho é irrenunciável. Um livro didático que
contenha somente uma exposição da história será completamente inadequado para
estimular as competências anteriormente mencionadas. Instigará como processo de
aprendizagem a mera recepção de conhecimento e se descuida inadmissivelmente do
lado ativo e produtivo da consciência histórica. (RÜSEN, 2011, p. 117).
Neste sentido, o texto didático não pode deixar de estabelecer relações com o presente,
considerando a experiência histórica dos alunos, de modo a oportunizar a aprendizagem e a
motivação para a leitura. Contudo, para além do conteúdo e da proposta pedagógica apresentada
no livro, o papel do professor no cotidiano da sala de aula não pode ser desconsiderada. Como
bem afirma Bittencourt:
As práticas de leitura do livro didático não são idênticas e não obedecem necessariamente
às regras impostas por autores e editores ou por instituições governamentais. Assim,
mesmo considerando que o livro escolar se caracteriza pelo texto impositivo e diretivo
acompanhado de exercícios prescritivos, existem e existiram formas diversas de uso nas
quais a atuação do professor é fundamental. (BITTENCOURT, 2013, p. 74).
“Fascinar esteticamente os alunos”, essa parecer ser uma evidência da experiência dos
alunos que participaram desta pesquisa. Contudo, conforme bem expressa Bittencourt (2013),
“questões como essa precisam ser levantadas considerando que pouco se conhece sobre as formas
de leitura de imagens utilizadas em sala de aula, independentemente do suporte didático em que
elas são apresentadas.” (p.70). Como são realizadas as leituras de imagens nos livros? As imagens
são utilizadas em paralelo ao texto? Elas influenciam os sentidos atribuídos o texto lido pelos
alunos? São algumas das questões que devem ser empreendidas no decorrer dessa pesquisa que
envolve o uso do livro didático pelos alunos.
Considerações finais
Os dados analisados até o momento permitem observar que 80% dos alunos que
responderam o questionário gostam da disciplina de História, mas o índice não é o mesmo em
relação ao gosto pelo livro didático. Quais os motivos para isso? Seria o conteúdo do livro
didático ou o modo como ele é utilizado na sala de aula? Os alunos fazem algumas indicações
que ora colocam aspectos próprios ao livro didático em evidência, ora a metodologia empregada
pelo professor, como por exemplo: os textos longos e de difícil compreensão, as atividades do
livro, as cópias do livro para o caderno, entre outros.
Embora se compreenda que o livro didático sistematiza um conjunto de conteúdos, que
expressam valores e ideologias de grupos dominantes, além de apresentar concepções
pedagógicas que indicam os modos como os conteúdos devem ser trabalhados, ele não é prática
per si. Para entender o papel do livro didático no contexto escolar é imprescindível considerar as
práticas que envolvem o seu uso e os efeitos de sentido produzidos por aqueles que dele se
apropriam. Conforme Bittencourt (2013), o papel do livro didático na escola é variável, sua
utilização passa pela intervenção de alunos e professores que realizam práticas diferentes de
leitura e trabalhos escolares. “Os usos que professores e alunos fazem do livro didático são
variados e podem transformar esse veículo ideológico e fonte de lucro das editoras em
instrumento de trabalho mais eficiente e adequado às necessidades de um ensino autônomo.”
(BITTENCOURT, 2013, p. 73).
Entende-se que a sala de aula é lugar de diferentes saberes, de variadas formas de ensino-
aprendizagem e que a relação que os alunos estabelecem com o conhecimento histórico depende,
especialmente, da concepção de ensino de História que embasa a prática dos professores dessa
disciplina escolar. Os dados que foram analisados neste texto não tiveram outro objetivo, que não
o de problematizar as práticas escolares e os (des)usos do livro didático de História no contexto
escolar, levantando questões que deverão ser perseguidas com o andamento da pesquisa. Um
aspecto bastante evidente, a partir do que foi exposto, é que pouco se sabe sobre os embates que
professores e alunos travam no espaço da sala de aula (SCHIMIDT, 2013), sendo necessário
avançar neste sentido, especialmente, dando voz aos alunos, de modo a compreender as práticas
escolares que lhes envolvem.
Referências
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Arte & Ciências, 2009.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros
didáticos. In: ABREU, Márcia. (org.). Campinas: Leitura, história e história da leitura. Mercado
de Letras/ALB/FAPESP, 2000, p.529 – 575.
BITTENCOURT, Circe M. F.. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,
2009.
BITTENCOURT, Circe. Livros Didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, Circe
(org.). O saber histórico em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2013.
CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e
Pesquisa. São Paulo: v.30, n.3, p. 549-566, set./dez. 2004.
NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003.
MEC/PNLD.http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12391&
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MUNAKATA, Kazumi. Livro Didático: Produção e Leituras. In: ABREU, Márcia. (org.).
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MUNAKATA, Kazumi. O livro didático: alguns temas de pesquisa. Rev. bras. hist. educ.,
Campinas-SP: v. 12, n. 3 (30), p. 179-197, set./dez. 2012.
RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria A. et al. (orgs). Jörn Rüsen e o Ensino
de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.
SCHMIDT, M. A., CAINELLI, M.. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2010.
Letícia Mistura1
Flávia Eloisa Caimi2
Resumo: A história das mulheres vem ganhando visibilidade como campo historiográfico nas últimas décadas,
mas se trata de abordagem relativamente recente. Na história escolar, ainda hoje, as mulheres aparecem
nominalmente em determinadas efemérides, em situações inusitadas, por vezes heroicas, sendo pouco
visibilizadas como sujeitos de direitos e restritamente reconhecidas como parte substancial da compreensão
histórica, do conhecimento do passado e da formação para a cidadania. Este estudo coloca em diálogo o livro
didático de História como objeto e fonte de pesquisa documental e as questões de gênero, como recurso
metodológico de análise histórica, com o propósito de visualizar a presença/ausência feminina na produção
didática brasileira ao longo do século XX e início do século XXI. Para tal, analisou-se um corpus documental
constituído de 11 obras didáticas de história destinadas à educação básica, publicadas entre as décadas de 1910 e
2010, sendo uma obra por década. Os resultados preliminares apontam, principalmente, para uma preocupante e
significativa distância entre a renovação historiográfica que inclui as relações de gênero como possibilidade
metodológica e o conteúdo perscrutado nos livros didáticos de História.
Palavras-chaves: Ensino de História, Livro Didático, Relações de Gênero.
Abstract: The history of women is gaining visibility as historiographical field since a couple decades, but it is a
relatively recent approach. In school history, even today, women appear nominally under certain ephemeris, in
unusual situations, sometimes heroic, being somewhat visualized as an individual of rights and narrowly
recognized as a substantial part of the historical understanding of past knowledge and training for citizenship .
This study puts into dialogue the History textbook as a source and object of documentary research and the
gender issues, as a methodological resource for historical analysis, in order to visualize the presence/absence of
women in Brazilian didactic production throughout the twentieth century and early twenty-first century. To this
end, we analyzed a documentary corpus of eleven textbooks of History aimed to basic education, published
between the 1910s and 2010, with an edition per decade. Preliminary results point primarily to a significant and
troubling gap between the historiographical renewal that includes gender relations as methodological possibility
and the historical content scrutinized in History textbooks.
Keywords: History teaching, Textbook, Gender Relations.
Introdução
1
Letícia Mistura (UPF) - leticiamistura@gmail.com
2
Flávia Eloisa Caimi (UPF) - caimi@upf.br
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 229-246, Jul. 2015
230
O contexto historiográfico que faz despontar o livro didático como objeto e fonte
documental no labor das pesquisas históricas está inserido no movimento de transição
paradigmática do século XX que, entre suas diversas discussões, refletiu sobre o sentido, o
caráter e o uso dos documentos no trabalho do historiador. No movimento conhecido como
Annales, há uma inquietude em torno da expansão das concepções de “documento” – que, em
si, está conectada a um movimento expansionista de maior dimensão teórica. Tem a
preocupação de incluir o homem, na chamada “nova história”, em sua totalidade e
particularidade, como sujeito histórico, vindo a caracterizar como “fonte histórica” todo o
material que diz respeito a qualquer homem, em suas dimensões temporais e espaciais.
Portanto, torna-se parte do trabalho do historiador realizar a escolha e a crítica dos
documentos-fonte que seleciona conforme seus interesses científicos. O historiador, desta
forma, torna-se efetivo na escrita da história, e, segundo Jacques Le Goff (2003, p. 538), é
responsável pela desconstrução da “montagem” da história, da qual os documentos são
responsáveis, por configurarem, em si, toda a historicidade da sociedade que os fabricou.
Em outro âmbito paradigmático, conhecido como “positivista” ou “escola metódica”,
o documento – sempre em formato de texto – “falava” e detinha em si toda a história que
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 229-246, Jul. 2015
232
poderia ser conhecida, portanto, sem a existência de um documento que a comprovasse como
oficial, a história não existiria. O movimento dos Annales não somente desconstrói a
pretensão da unilateralidade textual do documento e da fonte histórica, mas contribui para a
ampliação do próprio conceito carregado pelo documento, que se mostrou insuficiente ao ser
entendido apenas como aporte textual. Justifica-se, pois, o livro didático como fonte
documental, uma vez que provém de um tempo e de um espaço determinados; é produto e
veículo destes, contendo em si uma forma particular de “documentação”; por fim, inscrito
nele está a noção de um “conhecimento”, necessário, em sua completude, à educação de seus
usuários, naquele contexto.
Este tema envolve, ainda, a problemática referente à conceituação de “livro didático”,
provavelmente a mais veiculada questão teórica relacionada ao objeto, da qual se enervam
variados estudos em plurais conjunturas. Alain Choppin (2004) atribui a dificuldade de
definição conceitual do livro didático à diversidade de vocábulos e instabilidade dos usos
lexicais destes – principalmente em se tratando de pesquisas em âmbito internacional. Já
Circe Bittencourt (2011) discute a problemática conceitual de definição do livro como
material didático pela sua caracterização como um tipo específico de livro, identificável por
suas particularidades e pelos usos culturais a que está sujeito. A autora atenta, ainda, para o
fenômeno do “esquecimento”, observado tanto em professores quanto em estudantes, de que o
livro didático é também um livro e, portanto, produto da idealização de seu autor, da
construção de seu processo editorial e de dinâmicas do mercado de consumo em que está
inserido.
Podem-se incluir, nesse sentido, as preocupações da chamada “história dos livros” em
investigar os processos de circulação da palavra impressa, o que situa os livros – e também as
produções didáticas, como define Robert Darnton (1995), como força na história. Este autor
toma como campo da atuação da história dos livros o processo de comunicação de ideias,
objetivando o entendimento das mudanças do comportamento humano após o contato (sempre
mais) íntimo com a palavra impressa. Partindo do pressuposto de que o livro didático é
provavelmente o único livro-texto não ficcional a que muitos de seus usuários têm acesso,
ainda pode-se validar esta vinculação como uma consideração sobre os meandros da produção
didática. Pode-se inquirir: em que medida os livros didáticos modificaram, modificam ou
almejam modificar, por seu conteúdo, seus usuários, em sua maioria professores e estudantes?
Keith Hoskin (1990) traz algumas reflexões fundamentadas na historicidade dos livros
didáticos em seu papel pedagógico. Segundo o autor, embora não tenha sido um produto
direto da Revolução da Imprensa (que traz como marco ocidental a criação da imprensa por
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 229-246, Jul. 2015
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Johannes Gutenberg, no século XV), esta influiu diretamente na forma dos textos escolares,
que viriam a compor os livros didáticos em sua concepção moderna, uma vez que possibilitou
o uso de recursos escritos e pictóricos num mesmo suporte pedagógico, sendo possível a
transmissão de uma linguagem didática antes inalcançável. Tal fenômeno, a partir dos séculos
XVIII e XIX quando, segundo Darnton (1995), ocorre uma massificação de leitores e leituras,
deu margem a uma posterior revolução, em termos didáticos, que incluiu a avaliação (por
meio de testes e equivalências de notas em sistema numérico) como forma finalizadora do
processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, o livro didático é um ponto central de uma
nova forma de aprendizagem na Europa ocidental, o que viria a influenciar, posteriormente e
de forma decisiva, os moldes da educação e do uso de suportes como o livro didático, pelo
sistema de ensino brasileiro.
Esta nova forma de aprendizagem, por meio de um livro didático, que se torna um
compêndio de conteúdos disciplinares e cadernos de exercícios, está diretamente ligada às
necessidades conjunturais de um suporte didático que, em sua continuidade, demonstra fazer
parte de uma já consistente estrutura educacional.
escolares do livro didático como organizadas por Choppin (2004), cotejando-a com uma
sequência de dados históricos organizados segundo os trabalhos de Caimi (1999) e Fonseca
(2006), para enfim organizarmos uma segunda síntese de correspondências, que facilitará a
visualização final das funções decisivas que o livro didático assumiu, no ensino de história,
em cada um dos quatro momentos políticos da história do Brasil.
Choppin (2004) define a primeira função, a referencial, como aquela em que o livro
didático configura um papel curricular: nem sempre equivale ao programa curricular em si,
mas o orienta ou se articula a este de alguma forma, como “suporte privilegiado dos
conteúdos educativos, o depositário dos conhecimentos [...] que um grupo social acredita que
seja necessário transmitir às novas gerações” (CHOPPIN, 2004, p. 553). A função
instrumental diz respeito ao uso metodológico do livro didático como efetivo instrumento
didático, servindo de mediador para o aprendizado ou a apropriação dos conhecimentos
históricos. Na função ideológica e cultural, que é oriunda do século XIX, no contexto de
constituição dos Estados nacionais e criação de seus sistemas de ensino, o livro didático seria
o principal veículo de difusão dos valores culturais nacionais, como a língua, o civismo, os
símbolos pátrios, o passado comum. Nesta função, atuaria como legitimação das instâncias
ideológicas e reforço para a construção dos arquétipos identitários, servindo a interesses
políticos e doutrinações ideológicas, em variantes níveis de intensidade. Já em sua função
documental, o livro didático seria um suporte fundamental, narrativo (textual) e iconográfico,
que auxilia na formação crítica do estudante, por vias procedimentais de sua própria ação (de
leitura, reflexão ou contemplação).
Primeiro governo Centralização da política Consolidação da história como Livro didático produzido
de Getúlio Vargas nacional para o ensino e disciplina escolar, no Brasil, sob as
(1930-1945) unificação, sob ensino de história como orientações curriculares
responsabilidade do Estado, instrumento central da educação estatais, obrigatórias.
dos programas curriculares e política, em um apelo
dos conteúdos e metodologias nacionalista para a criação de
de ensino. uma “consciência patriótica”,
sob o estudo de exemplos de
vultos significativos para a
história pátria – alguns de
natureza religiosa também
foram mantidos.
Regime Civil- Redefinição, pelo novo Aprofundamento das Autoridade do livro
Militar (1964-1985) regime, dos objetivos da características do ensino de didático (atitude passiva e
educação, além de história anteriores. Permanece o receptiva do aluno).
interferências na formação de estudo biográfico de brasileiros Produção e controle das
professores e de suas célebres – agora, de acordo com obras didáticas
metodologias, para controle os interesses pertencentes aos diretamente ligadas ao
ideológico e eliminação de personagens do novo regime. Estado.
possibilidades de resistência Noção disseminada
ao regime. Inclui-se entre as “historicamente” de que a
disciplinas específicas a sociedade era natural e
educação moral e cívica para harmonicamente hierarquizada.
controle ideológico da Inexiste espaço para
população. interpretações ou análises - a
história tinha como função
preparar o jovem para o
cumprimento de seus deveres
básicos como cidadão, para com
a sua comunidade, o Estado e a
Nação. Os sujeitos históricos
continuam sendo os grandes
vultos positivos que conduzem
a nação.
Redemocratização: Necessidade de mudanças no Existe a tomada dos modelos O mercado editorial e a
décadas de 1980 e ensino de história, diversos marxistas de conceituação e publicação de livros
1990 meios de discussão se periodização da história, que didáticos se expandem;
envolvem, impulsionando a emerge em sua função social, professores e autores têm
criação de novas propostas infraestrutural e vinculada à liberdade de ação. É o
curriculares, sem necessidade política. A partir dos anos 1990, momento de
de obedecer às determinações movimento de transição e redimensionamento do
estatais. renovação historiográfica Programa Nacional do
brasileira, que procura Livro Didático e dos
acompanhar as tendências da contratos de compra de
nova história francesa e da livros didáticos pelo
historiografia social inglesa; o Estado, que se torna o
ensino de história avança para maior comprador do
um relacionamento consciente produto.
com a produção historiográfica
- há uma preocupação
generalizada com a sintonia
entre o saber científico e o
escolar, um desejo sensível de
incorporação das novas
tendências historiográficas no
ensino de história.
*Tabela organizada pelas autoras, com base nas obras de Caimi (1999) e Fonseca (2006).
FUNÇÃO PERÍODO
Embora as correspondências sejam feitas com base nos conceitos de cada função de
modo líquido, existem adequações necessárias a cada período histórico da educação brasileira.
Fundamentalmente, porém, as funções do livro didático corroboram as do ensino de história
no Brasil e os usos do livro didático não só como instrumento pedagógico, mas também como
veículo ideológico e cultural. Esta utilização permite que se observe uma continuidade na
história da educação brasileira – o livro didático como o principal referencial de
conhecimento escolar e amálgama de interesses políticos, ideológicos e culturais e se entenda
a questão do livro didático como uma consistente estrutura da problemática do ensino de
história no Brasil.
E é neste sentido, na problemática utilização do livro didático – e do livro didático de
história, especificamente – como um veículo de transmissão de saberes selecionados e
sistematizados a partir de objetivos determinados fora do âmbito escolar, pelas esferas
controladoras do poder político e, cada vez mais, do poder econômico, que se insere uma das
abordagens preocupantes destes “modelos” pré-definidos: as identidades e as relações de
gênero.
Nesta parte do trabalho discute-se o conceito de “gênero” como uma categoria com
estatuto e possibilidades de servir a interpretações históricas diversas. Procura-se
compreender, ainda, de que forma, em sua historicidade, a emergência das temáticas de
gênero contribuiu e tem contribuído científica e socialmente para a emancipação teórica e
cultural dos sujeitos envolvidos em seu processo.
Joan Scott (1992) adota o termo “movimento” da história das mulheres para identificar
as dimensões políticas e teóricas das complexas relações nos campos político, ideológico e
teórico, que viriam a instituir o conceito de “gênero” com o significado que
instigou a questão das diferenças dentro da diferença. Esta questão “trouxe à tona um debate
sobre o modo e a conveniência de se articular o gênero como uma categoria de análise”
(SCOTT, 1992, p. 88) e, finalmente, assim se expandiu o foco da história das mulheres, que
passou a compor, lentamente, um leque mais amplo, denominado história de gênero.
A partir de então, o campo de possibilidades do gênero na composição de uma
categoria completa e autônoma – não somente “complementar” – na escrita da história, foi
explorado por diversos pesquisadores e inspirou a produção de inúmeras coletâneas que
4
buscaram historiar seu surgimento, discutir seus propósitos e apresentar suas ambições.
atualmente, o campo da história das mulheres, ou de gênero, expandiu-se rapidamente pelas
discussões de variadas disciplinas, incluindo não somente a história, mas o estudo das
relações sociais, compondo diálogos profícuos em diversos meios teóricos. Um deles é a
teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 2011), que problematiza a categoria de
gênero como intrínseca a uma estrutura histórica de relações humanas e influencia – e é este o
ponto principal de chegada – na vida familiar e escolar das crianças e de jovens.
O trabalho de Trindade e Souza (2009), por exemplo, busca estreitar as vias de ligação
entre a temática de gênero e a educação, vendo esta como o reflexo cultural de sociedades e
elo de reflexão e análise interpretativa da realidade social e de sua construção. É neste meio
escolar, segundo os autores que, de forma privilegiada, é operacionalizada a manutenção de
vários dos pressupostos conceituais culturais, sociais e disciplinares, nos processos de ensino-
aprendizagem. Inclusos aqui estão, claramente, papéis representativos e normativos de
gênero, coletivamente compartilhados, que evoluem perigosamente para questões como as
causas do fracasso escolar e a disseminação de tradicionais pressupostos homogeneizadores
dos indivíduos sociais.
Partindo da premissa de que a identidade de gênero diz respeito a cada indivíduo
particularmente e é espaço de diversidade, as relações de gênero no processo escolar podem
se configurar em fragilidades pela apresentação e manutenção de papéis normativos
“femininos” e “masculinos”.
O livro didático de história é, no caso da disciplina, o veículo que traz todas as
conceituações externas, a serviço da escola, do professor e do estudante. Quando usado – e
assim o é, frequentemente5 – como plano curricular, o livro didático de história passa a ocupar
papel soberano na sala de aula. Anteriormente apresentou-se o livro didático de história como
um promissor objeto de pesquisa, especialmente no contexto do ensino de história brasileiro,
uma vez que a ele foram atribuídos muitos papéis ao longo do tempo, que o superestimaram e
o ambicionaram como instrumento de formação nacionalista, disciplinador ideológico e
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doutrinador identitário. Cabe, agora, inquerir: de que forma tem sido, ao longo do tempo,
tratados os papéis, as identidades e as relações de gênero nos livros didáticos de história
brasileiros? O que podemos inferir a partir destas representações e de que forma puderam ou
podem influenciar no processo de educação de crianças e jovens? Avançamos, portanto, para
a terceira e última parte deste estudo, procurando, se não responder, ao menos abrir espaços
de discussão e reflexão para tais questões.
obras das décadas de 2000 e 2010 compunham o arquivo pessoal das autoras. O quadro a
seguir apresenta a constituição final da amostra.
Ano de Referência
publicação
1918 PEQUENA História do Brasil. Colecção FTD. S/L, Livraria Francisco Alves, 1918. 4. ed.
1928 RIBEIRO, João. História do Brasil: curso superior. Segundo os programas do Collegio
Pedro II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1928. 543 p.
1936 LOBO, Esmeralda. História do Brasil: série de mapas e quadros sinóticos. Rio de Janeiro:
Editores J. R. de Oliveira e Cia., 1936.
1941 CESARINO JR, Antônio Ferreira. História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1941.
1955 TAUNAY, Alferdo d’Escragnolle; MORAES, Dicamôr. História do Brasil para o
segundo ano colegial. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.
1966 HERMIDA, Antônio José Borges. Compêndio de História do Brasil. 50 ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1966.
1972 ESAÚ, Elias; PINTO, Luiz Gonzaga de Oliveira. História do Brasil: estudo dirigido. s/l,
Ibep, 1972.
1987 COTRIM, Gilberto; ALENCAR, Álvaro Duarte. História do Brasil: para uma geração
Consciente. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987.
1996 e COTRIM, Gilberto. História & Consciência do Brasil 1. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
1997 ______. História & Consciência do Brasil 2. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
2000 PEREIRA, Denise Manzi Frayze; KOSHIBA, Luiz. História do Brasil. 7. ed. São Paulo:
Atual Editora, 2000.
2010 BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro
milênio. 2. ed. Vol. 2. São Paulo: Moderna, 2010.
Fonte: Organização das autoras.
esquecimentos) são tratados pelos livros didáticos de história que compõem a amostra.
Colocando em termos mais gerais, se buscará compreender “como” aparecem as identidades
de gênero femininas e o que dizem sobre as relações de gênero em cada uma das obras.
Pretende-se, assim, compor linhas iniciais da forma como foram “impostos” determinados
papéis de gênero na escolarização, justificados e legitimados pelo ensino de história.
Sistematizaram-se tais dados, para posteriores inferências, pela orientação da
periodização tripartite clássica. No período colonial, a primeira categoria, composta pelas
mulheres indígenas, aparece em sete das 11 obras. As formas como essas mulheres são
descritas sugerem uma dupla posição de inferioridade nas relações de gênero: aparecem, na
relação com os homens portugueses, sempre oferecidas como esposas (prática que, em uma
das obras é descrita como “barbarização de costumes”7) e, em relação aos homens índios,
como despojos de guerras entre tribos, bem como em posições menos privilegiadas e
“tradicionalmente” femininas da divisão das tarefas interna às aldeias. A categoria 2,
representada pelas escravas africanas e afrodescendentes, aparece em apenas duas das 11
obras, como mucamas – em serviços domésticos. A terceira categoria, reservada às aparições
de mulheres representantes de linhagens reais, aparece de forma consistente em todas as
obras, embora não caracterize “importância” histórica. Seu tratamento se dá, invariavelmente,
em anexo às aparições de seus pares masculinos: são citadas apenas a título de “aparição”, de
forma a esclarecer sucessões dinásticas ou eventos como casamentos, nascimentos e óbitos.
A categoria 4, denominada outras, esteve contemplada por apenas quatro das 11 obras. Nelas
aparecem, além de órfãs portuguesas enviadas à colônia para “dignificar” o lar e a
descendência dos colonizadores, duas descrições que se dedicam a explicar o sistema do
patriarcado sem, contudo, apresentar qualquer crítica a tal prática. Estas obras das décadas de
1920 e 1950, apresentam, na primeira, uma determinação dos “deveres intrínsecos” aos sexos:
as mulheres deveriam costurar, enquanto os homens deveriam comerciar; os homens eram os
geradores e as mulheres responsáveis pela amamentação das crias8. Na segunda temos uma
descrição precisa de como funcionava um lar colonial9:
O chefe da casa podia castigar seu escravo, seu criado, seus filhos, e até sua própria
espôsa, castigar e emendar de más manhas, diz o texto da lei. [...] O lar era uma
prisão mourisca, onde a mulher, alheia ao mundo, mais ou menos feliz, mais ou
menos conformada, vivia, amava, tinha filhos, criava-os, sorria, chorava, até que a
morte viesse e lhe cerrasse os olhos. Na casa colonial passava a existência entre um
oratório de jacarandá, uma rêde, uma esteira, fazendo rendas, bordados, cosendo,
engordando e aprendendo a falar mal com os escravos. 10
mulheres de linhagens reais), cabendo à categoria Outras dois tipos de abordagem, em seis
das 11 obras. O primeiro tipo de abordagem, que consta em quatro obras, explora a temática
das mulheres em aspectos mais públicos, citando nomes de figuras dos contextos artístico-
culturais brasileiros, como por exemplo, da maestrina e compositora Cacilda Borges Barbosa,
das escritoras Rachel de Queiroz e Ana Miranda e da pintora Anita Malfatti. Na segunda
abordagem, quatro obras tratam o tema das mulheres como classe de gênero, quando inclusas
no sufrágio, direito de voto concedido pela Constituição Federal de 1934. O livro da década
de 2010 traz, em boxe, a atenção para a questão da especificidade das revistas dedicadas ao
público feminino no século XX, tanto as direcionadas às questões domésticas quanto as de
cunho feminista.
Pode-se constatar, pela análise empreendida sobre a amostra, que a representação do
gênero feminino é parca na maioria dos livros; que as mulheres são apresentadas de forma
homogênea em várias obras e são ignoradas por completo em muitas outras. Também se
observa um “desaparecimento” de algumas das categorias , como as mulheres indígenas e as
que compunham o grupo das escravas africanas ou mulheres afrodescendentes, que são
absolutamente “eliminadas” da história após a proclamação da República. Ainda, se observa
um crescimento das abordagens em torno da “mulher” como ser histórico, principalmente nos
livros didáticos referentes às três últimas décadas analisadas, as de 1990, 2000 e 2010. Mesmo
incorporando mais figuras femininas aos conteúdos, especialmente em espaços públicos, estas
ficam restritas a um grupo generalizado – nas questões de inclusão de seu direito de voto – ou
em um grupo muito específico e representativo – nas mulheres ícones de movimentos
artísticos, como Anita Malfatti e Zina Aíta, por exemplo. Quando são incluídas nas discussões
de fato, as mulheres ainda figuram nas bordas e margens das produções didáticas, em quadros
específicos e em situações pontuais, sem evidentes impactos sobre os processos históricos.
O livro didático parece ter, de fato, uma extrema dificuldade em integrar as renovações
historiográficas propostas pela história de gênero. Com isso, define papéis normativos não só
aos gêneros, mas também aos sujeitos históricos, que ainda aparecem predominantemente
circunscritos aos grandes personagens. As questões de gênero permeiam e fazem parte do
ambiente escolar, porém um dos grandes instrumentos do ensino de história ainda não dá
conta de suprir os questionamentos que a própria disciplina histórica já apropriou e discutiu.
O livro didático, por seu papel político, ideológico e cultural, ao mesmo tempo em que
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 229-246, Jul. 2015
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Thesaurus, 2009.
Resumo: O livro didático, por um longo período, ficou à margem das pesquisas acadêmicas sendo visto, não raras
vezes, apenas como uma ferramenta didático-pedagógica. Contudo, atualmente no cenário acadêmico tem-se um
número relevante de produções que tomam o livro didático como objeto ou fonte de pesquisa, o que faz emergir a
importância da criação de acervos que preservem estes materiais. Mas não basta apenas reunir e disponibilizar os
livros didáticos para consulta, pois se trata de um material com diversas especificidades que precisam compor uma
unidade através de um método de organização e catalogação eficaz. Este artigo tem por objetivo exemplificar o
método de catalogação desenvolvido especificamente para organização do acervo do Laboratório de Ensino de
História, vinculado ao Departamento de História da UFPel. Entende-se como essencial a constituição de um espaço
onde pesquisadores encontrem livros didáticos bem conservados e devidamente catalogados, já que o fácil acesso ao
material proporciona meios para que estudos mais qualificados sejam realizados nesta área de crescente visibilidade
acadêmica.
Palavras-Chave: Livros didáticos. Acervo. Catalogação.
The cataloging process of the bibliographic collection from the history teaching laboratory
Abstract: For a long time, the textbook was left out from academic research and often seen just as a didactic-
pedagogic tool. However, in the current academic setting, there is a relevant number of productions that take the
textbook as a source or object of research, what brings out the importance of creating collections that preserve these
materials. It is not enough to gather and make available textbooks for consultation because they have different
specificities that, together, need to compose a unity, through an effective method of organizing and cataloging. This
article aims to illustrate the cataloging method specially developed to organize the Teaching History Laboratory
collection, linked to the History Department of Universidade Federal de Pelotas (UFPel). It is understood as essential
to establish a place where researchers find well-maintained and properly cataloged textbooks, since the easy access
to the material provides ways so that more qualified studies are done in this area of growing academic visibility.
Keywords: Textbooks. Collection. Cataloging.
Introdução
As pesquisas que utilizam os livros didáticos como fonte ou objeto de estudo têm por
entrave o fato de serem raros os acervos que mantenham a salvaguarda deste material. Do mesmo
modo, inexistem fontes sobre a organização e constituição de acervos específicos de livros
didáticos, o que constitui uma adversidade para que haja uma mudança nessa situação. Entende-
se como essencial a constituição de um espaço onde pesquisadores encontrem livros didáticos
1
Universidade Federal de Pelotas. Orientadora: Profª orientadora Drª. Lisiane Sias Manke. Contato:
jeferson.b.costa@gmail.com
bem conservados e devidamente catalogados, já que o fácil acesso ao material proporciona meios
para que estudos mais qualificados sejam realizados nesta área de crescente visibilidade
acadêmica. Visando contribuir para a desconstrução dessas adversidades, esta produção
exemplificará o método de catalogação desenvolvido especificamente para organização de um
acervo de livros didáticos.
O livro didático, por um longo período, ficou à margem das pesquisas acadêmicas, sendo
visto, não raras vezes, apenas como uma ferramenta didático-pedagógica. Ao abordar fatores que
contribuem para o descaso que comumente era aplicado aos livros didáticos, Choppin atenta ao
fato de que para pais, alunos e professores os livros didáticos são objetos pertencentes ao
cotidiano, muitas vezes sem constituir nada de raro, exótico ou singular. Além disso, o livro
didático é produzido em dezenas de milhões, o que o faz um produto ‘comum’ e uma mercadoria
perecível, que perde valor de mercado e torna-se obsoleto quando ocorrem mudanças
metodológicas ou quando há a necessidade de que fatos atuais sejam abordados em sala de aula.
(CHOPPIN, 2002, p. 6-7) Contudo, atualmente no cenário acadêmico tem-se um número
relevante de produções que tomam o livro didático como objeto ou fonte de pesquisa, sobretudo
desde o advento da Nova História Cultural, que, ao ampliar o conceito de fonte, possibilitou
mudanças na forma de perceber e compreender os livros didáticos.
São diversos os teóricos que enfatizam o papel do livro didático em pesquisas, bem como
instrumento que nos permite vislumbrar diversos parâmetros da sociedade. Em relação à História
da Educação, Munakata (2012), considera que o livro didático pode conter os elementos que mais
nos auxiliem na compreensão das práticas didático-pedagógicas, pois diante da “impossibilidade
de observação direta das situações de ensino de outrora, o livro didático pode conter elementos
que mais se aproximam dos programas curriculares então efetivados.” (MUNAKATA, 2012, p.
190).
Não cabe aqui, contudo, um maior aprofundamento nas possibilidades de pesquisas que se
abrem a partir desta nova percepção em relação aos livros didáticos. Primeiro, por este não ser o
tema central do artigo. Segundo, porque teóricos como Munakata (2012), Corrêa (2000) e
Moreira (2012) realizaram esta tarefa com excelência, lançando mão de diferentes argumentos
que comprovam essa afirmação. Se através do estudo de diversas produções dessa área, podem-se
conhecer as possibilidades de pesquisas com livros didáticos, do mesmo modo deveriam ser
encontrados acervos deste material, o que não ocorre. Poucos são os acervos bibliográficos que
uma parte significativa da história desta disciplina escolar. O acervo conta também com vasta
gama de materiais relacionados aos livros didáticos. Bittencourt (2011) relata que no Brasil
sempre foi comum que o livro didático viesse acompanhado do Manual do Professor. No LEH
temos diversas publicações mais antigas, onde esses manuais encontram-se separados dos seus
respectivos livros didáticos. O mesmo se repete com os “Cadernos de Atividades”, que nas
décadas de 80 e 90, pelo que podemos observar no acervo, eram produzidos separados de seus
respectivos livros. O acervo possui também significativa quantidade de revistas acadêmicas da
disciplina de História.
Os livros didáticos do Laboratório de Ensino de História são consultados para pesquisas
diversas desde 2002. Nos últimos anos, a maior quantidade de livros adquiridos – por doações ou
através de compras em sebos – tem influenciado diretamente no maior número de pesquisas
realizadas no acervo. Além disso, os livros didáticos mais recentes são emprestados aos
graduandos do Curso de Licenciatura em História, que os utilizam como ferramenta de apoio
durante o período de estágio e a professores da Educação Básica, que procuram o acervo em
busca de maior conhecimento acerca de coleções e/ou autores de livros didáticos.
Devido a esses fatores, tornou-se necessário um maior controle sobre toda a coleção e
uma melhor organização física do acervo, bem como um sistema de buscas e/ou referências que
possibilitassem fácil acesso ao material em questão. Até então, o Laboratório de Ensino de
História organizava seu acervo através do software MiniBiblio, que não permite que haja uma
mudança nos códigos de cada item após terem sido incluídos no acervo e, além de limitar as
palavras-chaves utilizadas nas pesquisas, há também o impedimento de que novos campos de
organização e categorias de catalogação sejam criados pelo usuário. O software MiniBiblio é
apresentado em arquivo executável, com formato .exe., o que também significa que o arquivo de
inicialização pode ser confundido com alguma espécie de vírus e com isto, ser deletado ou ter seu
funcionamento bloqueado dependendo do software antivírus instalado no computador.
O novo método de catalogação que foi então implantado, possui seu embrião na disciplina
de Organização de Arquivos Históricos, pertencente ao currículo do Curso de Bacharelado em
História da UFPel. A disciplina se divide em duas partes: na teórica, temos a oportunidade de
estudar parâmetros organizacionais, de armazenamento e higienização de acervos dos mais
variados materiais; na parte prática, a turma é dividida em grupos que estagiam em acervos da
cidade de Pelotas. Foi durante esta disciplina que os estagiários Jéferson Barbosa Costa, Caroline
Matoso Duarte e Nicole Angélica Schneider começaram a pensar uma proposta de catalogação
para o acervo bibliográfico do LEH. Contudo, mesmo o Laboratório tendo sido previamente
escolhido como local para nosso estágio, a disciplina não contemplou discussões teóricas
específicas para a organização e catalogação de livros didáticos, o que se deve a inexistência de
fontes sobre este tema. Um indicador da ausência de acervos didáticos e da dificuldade de
contemplar tais especificidades de catalogação pode ser observado também nos parâmetros
universais de catalogação, como a CDD (Classificação Decimal de Dewey), presente em 135
países e que não possui um código específico para livros didáticos.
Para contornar essa situação, foram realizadas diversas reuniões com a coordenação do
Laboratório para que fossem definidos e sistematizados os processos de catalogação e disposição
dos exemplares. Optou-se em manter os livros ordenados respectivamente por autor e ano, pois se
entende que esta forma de organização seja a que mais facilita a realização de pesquisas em um
acervo que cobre um amplo período, com vasta gama de autores.
Definido o parâmetro a ser seguido quanto à organização física do acervo, foi pensado e
posto em prática um modelo de organização e catalogação especificamente criado para o acervo
do LEH, que se deu através de softwares que foram utilizados para garantir maior eficácia e
praticidade, tanto para organização do acervo, como para consulta do mesmo.
Como ferramentas para possibilitar que o novo método de catalogação fosse implantado,
optaram-se pelos softwares OCLC Dewey Cutter Program e Microsoft Office Excel. O primeiro
realiza a criptografia de palavras, convertendo-as em numerais precedidos de sua letra inicial,
fornecendo assim um código alfanumérico correspondente a cada palavra. Este software tem a
função, nesse caso, de criar parte dos códigos únicos a cada exemplar a partir da codificação do
último sobrenome e do nome dos autores. O software possui interface clara e objetiva: basta o
usuário escolher uma tabela/plataforma de catalogação e digitar a palavra que se deseja
transformar em código no campo text. Para o trabalho no acervo, utilizamos a tabela Cutter
Sanborn Four-Figure Table, para que o código alfanumérico seja criado com apenas uma letra.
Ao digitar a palavra “Cotrim”, por exemplo, o software gera o código alfanumérico C845.
Já o Microsoft Office Excel é usado para complementar a criação dos códigos e
possibilitar o início da catalogação. Este software exerce em nosso projeto duas funções
essenciais. De um lado é a plataforma de armazenamento dos dados, pois é nele que ficam
contidas todas as informações acerca dos exemplares. De outro é, concomitantemente, provedor
dos parâmetros organizacionais que, a grosso modo, tem a função de gerir e nortear todo o
processo catalogação.
A planilha gerada pelo software Microsoft Office Excel é totalmente modificável,
tornando “infinita” a possibilidade de criação, seja de campos de pesquisas e métodos de
classificação, seja de organização geral do acervo. É possível modificar ou criar campos
personalizados de busca e de catalogação, além disso, pode-se classificar a visualização da
planilha a qualquer momento, a partir do item escolhido pelo usuário, como autor, editora, ano de
lançamento, número de páginas, etc. Existe também a possibilidade de que informações sobre
determinado livro listado no acervo sejam editadas ou reorganizado após sua inclusão no acervo e
o mesmo serve para o controle de empréstimos, doações, etc. O uso da planilha depende somente
de um dos vários softwares compatíveis com os arquivos .xls/.xlsx, que são encontrados nas mais
diversas plataformas utilizadas em dispositivos eletroeletrônicos em geral como computadores,
celulares e tablets.
Definidos os softwares a serem utilizados no processo de catalogação, o próximo passo
foi realizar a coleta das informações acerca de cada exemplar contido no acervo. À primeira vista,
esse trabalho pode parecer simples, embora demorado. O que acontece na prática, em um acervo
de livros didáticos que foram publicados desde o início do século XX até a atualidade, como já
era esperado pela equipe de trabalho, é que as publicações de períodos distintos não seguem um
mesmo padrão de divulgação de informações relativas à publicação. Por exemplo, existem no
acervo quatro obras do autor Agostinho Boni. Além de autor e título, o único dado que essas
publicações nos trazem diz respeito à editora FTD S.A., nenhum dos títulos faz qualquer
referência ao nível escolar ao qual é destinado, da mesma forma, não existem quaisquer
informações sobre a data de lançamento da publicação.
Para além desses títulos, no acervo existem outros 43 exemplares sem data de publicação
e 32 que não trazem informações sobre o nível escolar ao qual são destinados. Pode-se inferir que
para o uso destes livros os docentes guiavam-se pelo conteúdo e o nível das discussões
desenvolvidas. Também é comum, em publicações longínquas, que informações como público
alvo, data de publicação e até mesmo autor, estejam dispersas e/ou sem nenhuma evidência.
Ainda sobre estas publicações, é frequente que a data de publicação existente seja da obra
original e não da edição em questão. É essencial, portanto, que essas especificidades nunca
fiquem à margem do processo de catalogação do acervo, pois um pequeno descuido pode resultar
em uma falha na obtenção das informações que poderá comprometer pesquisas futuras.
Ao final desse processo, foram coletadas informações de todos os livros didáticos para
preencher as colunas da planilha do Microsoft Office Excel desenvolvida para o acervo. São ao
todo 11 colunas: Código; Título; Autor; Ano; Editora; Edição; Nível Escolar; Páginas; Acervo;
Situação; e Palavras-chave. Em relação às regras de configuração dos dados que iriam compor
cada coluna, foram necessárias algumas escolhas, procurando padronizar ao máximo as
especificidades de dados que são encontrados nesse material que, como bem disse Bittencourt
(2004), é um objeto de múltiplas facetas. Trataremos de algumas.
A coluna Autor é preenchida com o nome completo do autor principal da obra. Portanto,
em casos de coautoria, somente um nome irá para a planilha, essa escolha deve-se a formação dos
códigos, que leva em consideração o nome do autor. A coluna Situação é preenchida para mostrar
se o livro em questão está disponível ou em empréstimo. Foi criada uma planilha em separado
para que em casos de empréstimos o acervo mantenha um controle sobre o locatário (nome
completo, e-mail, telefone e RG) data de retirada e de devolução da obra. A coluna Palavras-
Chave é preenchida através de cinco temas abordados na obra. Essa informação é retirada do
sumário de cada exemplar. O preenchimento das colunas Código e Nível Escolar, contudo,
demandam uma explicação mais detalhada que será tratada a partir de agora.
peculiaridades, movem-se todas em uma mesma direção sendo cada uma delas essencial para que
o “motor” – que nesse caso é um sistema de organização padronizada – funcione.
Com a intenção de facilitar a compreensão do leitor, durante a descrição do processo de
criação dos códigos procura-se exemplificar como o código foi pensado em cada etapa do
trabalho e quais os motivos serviram de agentes para que mudanças fossem necessárias. Além de
facilitar a compreensão do código definitivo, creio que isso seja de suma importância para que o
leitor compreenda que a prática não se deu através de uma “receita pronta”. Pelo contrário, em
diversas situações repensou-se o método de catalogação para adequá-lo a determinada
especificidade encontrada no acervo, o que demonstra a extrema dificuldade em integrar 900
obras, publicadas em períodos distintos, em um padronizado modelo de organização que atribui
códigos únicos a cada exemplar.
A ideia inicial foi formar um código produzido pelo software OCLC a partir do último
sobrenome do autor. A esta seção do código seriam adicionados os três últimos dígitos do ano de
publicação e, por fim, a letra inicial do título da publicação, mantendo assim uma possibilidade
de organizar o acervo por autor/ano. Caso o autor houvesse lançado exemplares diferentes em um
mesmo ano, os códigos seriam diferenciados com a adição de letras iniciais das palavras que
compunham o título de cada obra. De acordo com esse parâmetro, o livro História do Brasil de
Maria Januária Vilela Santos, publicado em 1984, ficaria com o código S2373.984H. Onde
S2373 é o código alfanumérico formado a partir do último sobrenome da autora (Santos); 984 os
três últimos dígitos do ano de publicação; e H a letra inicial do título. Caso houvesse um livro da
mesma autora, publicado no mesmo ano, o código seria diferenciado a partir das palavras que
compõem o título da obra. Sendo assim, o livro História da América, de mesma autora e ano de
publicação, ficaria com o código S2373.984.HA.
Nesta etapa do trabalho nos deparamos com três problemas. O primeiro deles: a maior
parte dos títulos – seguindo as normas de catalogação, ou seja, excluindo artigos e preposições –
começam com a letra H, fato corriqueiro em se tratando de livros de História que geralmente
levam o nome da disciplina no início do título da obra, ou seja, isto ocasionaria a repetição da
letra inicial na maioria dos códigos. O segundo é que existem coleções de livros didáticos
lançadas em um mesmo ano e cujos livros possuem mesmo título principal, só havendo distinção
em relação ao subtítulo e ao nível escolar ao qual são destinados. O último problema encontrado
é composto por duas características: existem diversos autores de mesmo sobrenome, que
lançaram livros em um mesmo ano, o que poderia gerar códigos iguais para livros diferentes; na
mesma situação, existem obras com o mesmo título, lançados em um mesmo ano, mas de autores
diferentes. Este fato é comum devido à repetição frequentes de títulos como História do Brasil,
História Geral, e etc. Diante de todos esses óbices, foi preciso rever o processo de criação dos
códigos.
Como resolução, retirou-se do código a letra inicial do título. Manteve-se o código
alfanumérico criado a partir do último sobrenome do autor e adicionou-se a este um novo código,
formado a partir do nome inicial do autor. Essa mudança qualificou significativamente o código,
por distinguir autores de mesmo sobrenome. Essas duas seções do código, criadas a partir do
nome e sobrenome do autor, seriam seguidas pelo código referente aos três últimos dígitos do ano
de publicação. Finalmente, percebendo que a opção de distinguir os códigos de acordo com seu
título mostrou-se de baixa eficácia, optou-se por não mais utilizá-la. Em seu lugar, foi adicionado
um código criado manualmente que condiz com o nível escolar para o qual a publicação foi
produzida. O código referente ao já citado livro História do Brasil de Maria Januária Vilela dos
Santos, publicado em 1984, que na etapa anterior era S2373.984H, passou a ser
S2373.M332.984.6S. Fragmentando o código, podemos visualizar de forma mais clara como se
dá sua formação: S2373.M332 (o sobrenome Santos e o nome Maria, ambos criptografados
através do software OCLC Dewer Cutter Program). 984 (três últimos dígitos do ano de
publicação da obra). 6S (nível escolar ao qual o livro é destinado, nesse caso, sexta série).
A inserção do nível escolar é uma ação complexa, em se tratando de um código a ser
padronizado para a totalidade do acervo. Foi nessa etapa do trabalho que os códigos referentes a
cada nível escolar foram criados, tarefa que precisou ser minuciosamente pensada.
Acompanhando as mudanças educacionais e de políticas públicas, os livros didáticos são
produzidos de acordo com as denominações de sua época, o que acarreta em diferentes
nomenclaturas para um mesmo nível escolar. Deste modo, esse dado é preenchido de acordo com
siglas que foram criadas pela equipe do laboratório para que a padronização dos códigos fosse
possível. As siglas criadas para cada Nível Escolar contido nos livros até então catalogados são as
seguintes: 1C (Primeiro Colegial); CV (Curso Vestibular); EF (Ensino Fundamental); 1G
(Primeiro Grau); 2G (Segundo Grau); 7S (Sétima Série); 7A (Sétimo Ano); e EM (Ensino Médio).
Percebe-se que houve avanços significativos. Porém, através da investigação criteriosa,
realizada antes do início do processo prático de criação dos códigos, descobriu-se que este
método ainda dava margem para a existência de códigos iguais para diferentes publicações. São
várias as reedições de livros didáticos e devido a isto, pode ocorrer, embora não seja um fato
frequente, que em um mesmo ano sejam publicados dois livros diferentes de mesmo autor
destinados a um mesmo nível escolar, um produzido naquele ano e uma obra anterior que tenha
sido reeditada. Como exemplo temos as publicações da 5ª edição de Educação Moral e Cívica –
Para uma geração consciente e da 4ª edição de OSPB – Para uma geração consciente, ambas do
autor Gilberto Cotrim, publicadas em 1984 e destinadas ao Primeiro Grau.
Ainda há casos onde livros diferentes são publicados para um mesmo nível escolar. Isto
ocorre com maior frequência em publicações de coleções de livros didáticos do final do século
XX. É certo que cada livro tenha sido produzido para um ano específico, mas essa informação
nem sempre é acessível através de uma análise dos conteúdos – já que diferem muito entre as
coleções – e nem é evidenciada nas publicações, que são destinadas geralmente todas para o
Primeiro/Segundo Grau ou para o Ensino Fundamental. É o caso, por exemplo, da coleção
História Passado e Presente de Sônia Irene do Carmo. O acervo do LEH conta com três
exemplares dessa coleção que foram publicados no ano de 1994 (Brasil Colônia; Antiga e
Medieval; e Moderna e Contemporânea) e todos eles são destinados para o Primeiro Grau.
Especificidades de coleções como História Passado e Presente foram descobertas através
de uma investigação, uma busca por conhecer cada vez mais o material a ser catalogado antes de
começar a prática e foi isso que proporcionou que fossem encontradas as especificidades que
aparecem em um acervo bibliográfico de livros didáticos e que se não tivessem sido pensadas a
priori comprometeriam o projeto como um todo. Exemplares de um mesmo autor, publicados em
um mesmo ano e destinados a um mesmo nível escolar, teriam que ter códigos distintos. Como
solução para esta última adversidade, optou-se por adicionar ao código um numeral referente a
cada exemplar. Portanto, os códigos das obras História Passado e Presente – Brasil Colônia e
História Passado e Presente – Antiga e Medieval, ficaram respectivamente C2878.S6989.994.1G
e C2878.S6989.994.1G.1.
Ainda sobre coleções, as mais recentes, principalmente as destinadas ao ensino médio,
embora geralmente possuam subtítulos diferentes, são diferenciadas na prática a partir do volume
referente a cada exemplar, sendo que comumente existem três volumes, um para cada ano. Para
solucionar esta peculiaridade, ao final do código de livros pertencentes a coleções foi adicionado
o volume referente ao exemplar. Portanto, em casos específicos o código é constituído por um
elemento adicional. Vejamos, a coleção Conexões com a História, de Alexandre Alves, publicada
em 2010 e dividida em três volumes. O primeiro volume dessa coleção fica com o código
A474.A381.010.EM.V1. Fragmentando novamente, A474.A381(o sobrenome Alves e o nome
Alexandre, ambos criptografados através do software OCLC Dewer Cutter Program). 010(três
últimos dígitos do ano de publicação da obra). EM(nível escolar ao qual o livro é destinado, nesse
caso, Ensino Médio).V1(Volume 1).
Ainda no que diz respeito às adversidades encontradas durante o processo de criação dos
códigos, surge ainda outra questão, dessa vez referente aos livros didáticos que não possuem
algumas informações. Recapitulando, o código traz informações acerca de autor (prenome e
último sobrenome), ano de publicação, nível escolar e volume da coleção. Existem alguns
exemplares que não trazem informações sobre ano de publicação e nível escolar, apenas sobre
autor, como já foi visto. Para compor o campo referente a uma determinada informação omissa
no exemplar, utilizou-se o termo N/A.
O termo N/A, genericamente significa not applicable ou not available e pode ser
traduzido por “não aplicável” ou “não disponível”. Um exemplo é o livro História do Brasil para
Estudos Sociais, de Julierme de Abreu e Castro que não traz informações acerca do ano de
publicação da obra. Nesse caso o código fica C3551.J945.N/A.6S.V2. Para melhor compreensão,
novamente vamos à fragmentação do código. C3551.J945 (o sobrenome Castro e o nome
Julierme, ambos criptografados através do software OCLC Dewer Cutter Program). N/A (já que
não há informações sobre a data de publicação da obra). 6S (nível escolar ao qual o livro é
destinado, nesse caso, sexta série).V2 (Volume 2).
Ainda sobre o objeto de criar códigos únicos, ao catalogar um exemplar de um livro já
existente no acervo, a sigla “ex2” (abreviação de exemplar 2) é adicionada ao final do código. O
mesmo acontece caso exista um terceiro exemplar, cujo ao código será adicionada a sigla “ex3”.
Ficou acordado que o acervo teria no máximo três exemplares de cada livro, tendo em vista uma
maior organização, controle e também uma melhor utilização do espaço disponível.
Dito isto, percebe-se que é indispensável, portanto, que haja uma investigação criteriosa
que proporcione uma aproximação da equipe responsável pela catalogação com o material que irá
ser catalogado. Feita essa aproximação, a forma como a equipe passará a olhar o material tende a
mudar. Ao invés de enxergar um livro, um caderno, uma revista, enxerga-se uma peça de um
grande conjunto que se organizado da forma correta, funciona harmoniosamente.
A planilha que contém a lista de livros que constituem o acervo está sendo disponibilizada
para o público em geral pelas redes sociais, visando o acesso virtual ao acervo para um maior
número de pesquisadores de diferentes localidades. Também está em andamento o projeto de
criação de um site próprio para o Laboratório de Ensino de História que, entre outras atividades,
promoverá uma maior divulgação da planilha. Para quem é familiarizado com o software
Microsoft Office Excel, o uso da planilha acontece de forma simples e objetiva. Todavia,
pensando sempre em promover um fácil acesso, foi pensado um tutorial de uso da planilha que
será resumido a seguir e que proporcionará ao leitor uma visualização prática do uso do software
bem como de algumas das obras encontradas no acervo do Laboratório de Ensino de História da
Universidade Federal de Pelotas.
Figura 1
A figura 1 nos traz informações acerca de 14 livros escolhidos aleatoriamente entre os 900
livros didáticos de História que compõem o acervo do LEH. Percebe-se na imagem que nenhuma
das colunas está organizada por ordem alfabética ou por valores. Nota-se também a existência de
cinco setas nos cantos direitos inferiores de cada coluna. É a partir dessas setas que se dá a
organização da planilha de acordo com a coluna escolhida pelo usuário.
Ao clicar com o botão esquerdo do mouse na seta localizada no canto inferior direito de
uma coluna, é aberta a janela de classificação de dados que possui diversas opções.
Figura 2
Figura 3
Pode-se perceber que a agora a planilha está organizada de acordo com a coluna Autor. Se
olharmos mais atentamente, veremos que o design da seta referente à coluna Autor (a) foi
modificado, mostrando que é a partir desta coluna que a planilha está sendo organizada.
Como já foi dito, o mesmo pode se aplicar a qualquer coluna, o usuário pode organizar a
planilha por ordem alfabética de editoras ou por ordem crescente de ano, etc. O filtro de
classificação interfere em todas as linhas e colunas, pois é um sistema integrado e, portanto, ao se
optar por um parâmetro de organização diferente, linhas e colunas de toda a planilha serão
realocadas automaticamente sem que seja preciso nenhuma outra ação do usuário.
Figura 4
A imagem 4 mostra o que acontece quando o usuário clica novamente na seta localizada
no canto inferior direito da coluna Autor. O foco agora será o campo Pesquisar e as opções de
preenchimento de células que estão logo abaixo. Essa ação permite realizar a pesquisa em
qualquer coluna, como será visto a seguir.
Figura 5
Figura 6
A partir da pesquisa realizada na etapa anterior, a planilha agora está mostrando somente
obras do autor Nelson Pilleti. Essa possibilidade, sem dúvida, facilita em muitos aspectos o
trabalho do pesquisador, mas as ferramentas proporcionadas pela planilha vão ainda mais além. O
acervo do LEH conta com diversos livros de autores renomados como Gilberto Cotrim e Nelson
Piletti é para casos como esses que o procedimento a seguir será evidenciado.
Figura 7
Quando realizada a pesquisa por autor na etapa anterior, a planilha mostrará todos os
livros publicados pelo autor Nelson Piletti. Ocorre que a planilha ainda permite que outra
pesquisa seja feita sem que os resultados da primeira pesquisa sejam desconsiderados. Portanto,
podemos realizar uma pesquisa dentro dos resultados obtidos com a primeira pesquisa, é o que
está sendo feito na imagem 7. Dentre as obras publicadas por Nelson Piletti, no exemplo acima,
está sendo realizada uma pesquisa por todas as obras que tenham sido publicadas no ano de 2001.
O procedimento é exatamente o mesmo da imagem 5, só que neste foi digitado “2001” na
opção Pesquisar que surgiu após ter-se clicado na seta referente a coluna Ano. O resultado pode
ser visualizado a seguir.
Figura 8
Depois de realizado esse processo, dentre todos os livros que compõem o acervo do LEH,
a planilha mostrará somente as obras de Nelson Piletti que tenham sido publicadas no ano de
2001. Também podemos visualizar a partir da imagem acima, que as setas das colunas Autor(a) e
Ano foram removidas, denunciando que estão ocorrendo pesquisas a partir desses dois
parâmetros.
Considerações finais
O presente texto, bem como o detalhamento do processo de criação dos códigos e o breve
tutorial acerca da utilização da planilha, tiveram por objetivo principal mostrar como se deu e
quais foram as adversidades encontradas durante o processo de criação de um método de
catalogação específico para livros didáticos. Espera-se ter obtido sucesso em demonstrar, ao
menos parcialmente, que ao longo de cerca de um ano e meio de trabalho, foram várias as
dificuldades encontradas, mas também foram vários os conhecimentos adquiridos.
Não se considera ter encontrado a forma ideal para a catalogação de livros didáticos, de
maneira alguma. Contudo, o método atual tem-se mostrado altamente eficaz para um acervo
específico: o Acervo Bibliográfico do Laboratório de Ensino de História. Através do
conhecimento prático adquirido, pode-se dizer que é necessário, antes de buscar métodos de
catalogação prontos, pensar as especificidades do acervo em questão, sem nunca esquecer que um
dos objetivos quando pensa-se a organização de um acervo é encontrar uma maneira para que
novas aquisições sejam organizadas sem que sejam necessárias mudanças no procedimento
utilizado. Para criar um método de catalogação, portanto, é preciso um trabalho de pesquisar “em
negativo”. É preciso ter conhecimento sobre quais doações o acervo poderá vir a receber e estar
pronto para adicioná-las através da lógica já utilizada.
Nesse primeiro momento, nosso principal objetivo foi alcançar o término da catalogação
dos livros didáticos, tendo em vista que a já citada utilização do acervo fez dessa uma
necessidade prioritária. A próxima etapa, que terá início no primeiro semestre de 2015, terá por
objetivo principal buscar informações que não estão presentes nos livros, como datas de
publicações e nível escolar. Tarefa que será realizada através de pesquisas na internet,
bibliotecas, arquivos de escolas e através do contato com editoras.
Referências
CHOPPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. Tradução: Maria Helena Camara Bastos.
História da Educação. ASPHE/FaE/UFPel, p.5-24. Pelotas, 2002.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. O estudo dos manuais
escolares e a pesquisa em história. In Livros escolares de leitura no Brasil: elementos para uma
história. Mercado das Letras. Campinas, 2009.
Resumo: O estudo da cultura afro-brasileira é amparado pela Lei 10.639/03. Tendo ciência da importância da
mesma para o entendimento e reconhecimento do multiculturalismo da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo,
tendo presente que atualmente estamos cada vez mais em rede acredita-se que o tema A luta dos escravos,
produzido pela décima aula do Ensino Fundamental do Programa Telecurso 2000, possibilita vários
questionamentos referentes à representação da escravidão pelo programa. O presente artigo faz parte do Projeto
de Pesquisa Conectividade e apresenta uma proposta de estudo que intenta refletir sobre a contribuição do
Telecurso 2000 para o desenvolvimento de um indivíduo autônomo e crítico. Procura-se também estabelecer um
diálogo entre a Lei 10.639/03, os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1998 e as Diretrizes Curriculares
Nacionais de 2004 buscando mapear como estes apresentam esta proposta de estudo. A teleaula, nosso objeto de
análise, procura discutir e refletir os seguintes conceitos: escravidão, resistência, contribuições dos negros
africanos, entre outros. Também é possível estabelecer a necessidade reflexiva sobre as orientações teóricas, que
segundo o programa, o orientam, fundamentações estas baseadas nos pensadores como Paulo Freire, Dom
Helder Câmara, Célestin Freinet e Jean Piaget, os quais são considerados pela PRODUÇÃO como inspiração de
suas práticas, métodos e processos. Como conclusão provisória percebe-se a ausência de referencial dos teóricos
na metodologia presente na aula em estudo, assim como o distanciamento com a historiografia recente sobre o
tema.
Palavras-chave: História, cultura afro-brasileira, ações afirmativas, Telecurso 2000.
Abstract: The study of african-Brazilian culture is supported by Law 10,639/03. Being aware of the importance
of the same for the understanding and recognition of multiculturalism in Brazilian society and at the same time,
bearing in mind that we are currently increasingly networked believed that the theme The struggle of slaves
produced for the tenth class of elementary school Telecurso 2000 program features several questions concerning
the representation of slavery by the program. This article is part of Project Connectivity Research and proposes a
study that tries to reflect on the contribution Telecurso 2000 for the development of an autonomous and critical
individual. Also seeks to establish a dialogue between the Law 10639/03, the National Curriculum Guidelines of
1998 and the National Curriculum Guidelines 2004 seeking to map out how they present this proposed study.
The teleaula which is our object of analysis seeks to discuss and reflect the following concepts: slavery,
resistance, contributions of black Africans, among others. You can also establish the necessary reflective on
theoretical orientations, which according to the program, the guide, based on these foundations thinkers such as
Paulo Freire, Dom Helder Camara, Célestin Freinet and Jean Piaget which are considered as the inspiration for
the PRODUCTION of their practices, methods and processes. As an interim conclusion we notice the absence of
the theoretical framework in this study methodology in the classroom, as well as distancing the recent
historiography on the subject.
Keywords: History, african-Brazilian culture, affirmative action, Telecurso 2000.
Introdução
Durante muito tempo na Educação Básica o tema sobre a África e cultura afro-
brasileira foi abordado de forma secundária, com o estudo do continente africano sempre se
bastando de temáticas como o tráfico negreiro e a utilização da mão de obra escrava
1
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Contato: essoares1@ucs.br
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 267-281, Jul. 2015
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Considerando este cenário, nos dedicamos ao estudo da décima aula de História do Ensino
Fundamental do programa Telecurso 2000, modalidade de ensino à distancia aprovada pelo
MEC e apoiada pela Fundação Roberto Marinho, sendo veiculado em diferentes canais
televisivos (TV Globo, Canal Futura, TV Cultura, Rede Vida, TV Brasil, Globo Internacional,
dentre outros), com exibição em distintos horários durante a semana e disponível também na
web.
O artigo em desenvolvimento faz parte do Projeto Conectividad, vinculado ao curso de
graduação, de pós-graduação e Mestrado Profissional em História da Universidade de Caxias
do Sul (UCS). Este intenta refletir sobre a contribuição deste programa no desenvolvimento
da autonomia e da criticidade do indivíduo. Para isso buscamos embasamento teórico nos
pensadores Paulo Freire, Dom Helder Câmara, Célestin Freinet e Jean Piaget que, segundo o
Telecurso 2000, servem de inspiração de suas metodologias.
No primeiro capítulo apresentaremos o Projeto Conectividade e seus objetivos
estabelecendo as devidas relações entre a realidade midiática e o Telecurso 2000 amparados
no estudo de obras dos pensadores supracitados. No segundo, dialogaremos sobre o estudo da
cultura afro-brasileira e dos africanos e as ações afirmativas que o amparam e, no terceiro,
analisaremos a teleaula em abordagem buscando a percepção da contribuição do referido
programa quando se trata das obrigatoriedades legais, assim como sua aproximação à
historiografia recente sobre o tema em questão.
Diante da realidade já proferida, que a sociedade atual se encontra cada vez mais em
rede, surgiu a necessidade da análise da contribuição das mídias, sejam elas televisivas ou
digitais, para o desenvolvimento da capacidade de posicionamento do cidadão, de não se
deixar levar pelas propagandas que brilham diante dos nossos olhos. Aproveitando este
ensejo, o referido estudo apresenta como intento uma reflexão destinada ao programa
Telecurso 2000, analisando como este se propõe a contemplar as necessidades evidentes para
o desenvolvimento da criticidade e autonomia dos indivíduos que a ele estão ligados, através
da apreciação de teleaulas que abrangem a área de História.
Considerando que o material didático da programação é uma importante fonte, pois
está intrinsecamente ligado ao processo educacional, além de ser um modelo de educação à
distância, nos dispusemos a compreender este processo a partir de seus conceitos básicos,
define o que o aluno talvez queira saber por meio da frase: “Você deve estar se perguntado
que...”
O professor possui uma diversidade de personagens que a ele são atribuídos. Ele ora é
jornalista, ora é apresentador, narrador, ator, entre outras personificações que podem surgir
para representá-lo. Esses são os contribuintes para a transmissão do conhecimento que
podemos entender como uma série de “curiosidades” apresentadas durante o programa, pelo
tempo exímio em que são trabalhados os conteúdos.
Quanto às concepções de ensino, percebemos a divisão da teleaula em três momentos:
o primeiro é uma mobilização para adentrar ao tema que será estudado; o segundo é o
desenvolvimento do estudo, o qual é trabalhado de forma linear, utilizando-se de relações de
causa e efeito; e o terceiro é o momento da revisão onde é abarcado tudo o que foi
apresentado na devida teleaula, porém, sem incentivar o aluno a ir em busca de outras fontes
para reflexão. Quando isto é feito, o programa incentiva a estudar nos próprios materiais do
Telecurso. Por meio destas considerações é possível perceber a permanência da visão
tradicional de história linear e dos grandes feitos onde é necessária uma fixação dos conteúdos
abordados.
No site do Telecurso são apresentadas as metodologias utilizadas para sua produção,
onde é possível visualizar que o mesmo esclarece sua inspiração nas práticas de Paulo Freire,
Jean Piaget, Dom Helder Câmara e Célestin Freinet, porém não foi possível perceber esta
relação já que durante a análise realizada percebeu-se um distanciamento das ideias
apresentadas pelos pensadores.
Freire, através da Pedagogia da Autonomia nos apresenta propostas de práticas
pedagógicas que objetivam o desenvolvimento da autonomia dos educandos, valorizando e
respeitando sua cultura e seus conhecimentos empíricos junto a sua individualidade.
Piaget nos leva a perceber a colaboração da semiótica – que pode ser compreendida
como uma ciência que estuda como o ser humano interpreta os vários elementos da linguagem
utilizando seus sentidos e quais reações esses elementos provocam –, sendo que suas
descobertas tiveram grande impacto na pedagogia ao demonstrar que a transmissão de
conhecimentos é uma possibilidade limitada. Vem de Piaget a ideia de que o aprendizado é
construído pelo aluno e é sua teoria que inaugura a corrente construtivista.
A educação embasada na esperança foi defendida por Dom Helder Câmara, que
almejava a transformação da sociedade defendendo que a educação deveria ser popular
atingindo todas as camadas da mesma. Sua experiência foi a transmissão de aulas
radiofônicas, que acreditamos ser a inspiração pronunciada pela programação do Telecurso.
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 267-281, Jul. 2015
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ou seria mesmo um descaso ante a educação? Isto nos remete ao que tanto se fala atualmente:
a questão de superação do racismo na sociedade em que muitos grupos estão engajados nesta
luta constante. A atitude do Estado neste sentido é fundamental na busca do desenvolvimento
da prática dessas ações afirmativas que intentam dar um novo rumo nas desigualdades
históricas que, neste caso, permeiam sobre a população afro-brasileira, pois de modo geral a
educação interfere de maneira significativa na concepção de representações sociais que
tendem a estigmatizar o objeto de estudo.
É necessária uma análise mais aprofundada na questão legal que apresenta
dificuldades na sua implementação, porém é possível destacar alguns problemas evidentes
como aqueles relacionados à formação do professor e o material didático especializado.
É percebido o esforço de universidades na tentativa de atender às determinações
legais, ao buscarem adequar o processo de formação e de especialização dos profissionais da
educação, mas ainda há muito a ser feito. A carência de qualificação profissional tem
atrasado, pode-se dizer, o êxito da progressão dessas ações afirmativas, mesmo que o
Ministério da Educação esteja empenhado em proporcionar programas de formação
continuada para os professores da área na tentativa de suprir essas necessidades.
Diante da dificuldade de apoio em materiais didáticos, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), juntamente com o MEC, lançaram
uma coleção que trata exclusivamente sobre história da África, com o objetivo de amparar os
educadores no ensino desta temática nas instituições educativas, colaborando para a
implantação da lei. A íntegra da coleção encontra-se disponível na página da Unesco,
podendo ser acessada por todos aqueles que almejem esse suporte. As obras encontram-se
divididas em temas como educação e diversidade das relações raciais.
Outro questionamento importante refere-se a quem cabe a obrigatoriedade desse
ensino, apenas à disciplina de História? Onde se encaixa a interdisciplinaridade nesta
situação? Certamente esta é uma prática trabalhosa, sendo necessários posicionamentos e
conhecimentos tornando temas considerados isolados em questões universais. Neste sentido,
Ivani Fazenda aponta que:
Considerando que a educação vai além dos muros da escola, como no caso já relatado
dos cursos disponibilizados pela modalidade EaD, é preciso salientar que as obrigatoriedades
curriculares são exatamente as mesmas no que tange ao ensino da cultura afro-brasileira,
principalmente no âmbito da educação básica.
Tendo presente o Projeto Conectividade, que analisa a contribuição do Programa
Telecurso 2000 para a educação, é pertinente buscar a presença dos aspectos supracitados no
desenvolvimento da décima aula no Ensino Fundamental, que apresenta como tema A luta dos
escravos, apresentado em apenas treze minutos e quarenta e dois segundos. No primeiro
momento foi possível perceber uma riqueza em detalhes passíveis de serem estudados
dialogando com a obrigatoriedade do ensino sobre a temática, assim como analisando o seu
contexto com a historiografia atual que possui outro olhar sobre o estudo africano.
Antes de tudo se faz necessário destacar que a historiografia tradicional brasileira
apresenta o estudo dos afro-brasileiros baseado na aprendizagem relacionada ao escravismo,
negligenciando questões voltadas ao pertencimento deste grupo social à sociedade,
Com isso é possível dizer que, de modo geral, o ensino da história e da cultura afro-
brasileira se resume, muitas vezes, à comemoração alusiva ao “Dia da Consciência Negra”, no
qual se realizam alguns trabalhos abrangendo os assuntos a ele ligados. No restante do ano,
contudo, percebe-se um reduzido interesse em abordar o tema. Esta metodologia de ensino é,
de certa forma, antiquada, não sendo capaz de desenvolver criticidade alguma nos educandos,
e nela é possível perceber a permanência do positivismo remanescente nos diversos modos de
ensino, fazendo com que os alunos desconheçam a história dos africanos no Brasil.
Este contexto se faz presente na teleaula em análise, onde esta é apresentada de uma
maneira um tanto relevante, pois o tema do encontro dos movimentos afro-brasileiros trata da
participação do negro na formação do país. Aos nossos olhos parece um importante destaque
no que diz respeito a este assunto, porém há muitos aspectos a serem observados, os quais
serão analisados a seguir.
Durante as falas da teleaula, onde aparecem um homem “negro” e um taxista “branco”
que dialogam durante o trajeto do local em que acontece um encontro de movimentos afro-
brasileiros até o hotel onde se hospeda o cliente, é possível perceber sucessivamente a
expressão “negro-africano” para se referir a qualquer situação relacionada com a história
africana e afro-brasileira, deixando transparecer exatamente o contrário do que objetiva a
teleaula, que trata da participação dos negros na formação do Brasil, negando o seu
pertencimento à nação brasileira no transcorrer dos anos. É importante destacar que toda a
teleaula se passa neste táxi, com algumas contribuições de apresentadores: narrador, repórter e
historiadores. Imagens e mapas são utilizados, os quais são de fundamental importância para
análise e também para situação geográfica dos assistentes.
Ao tratar do tráfico negreiro relacionado com outros imigrantes vindos para o Brasil,
há uma disparidade de ideias, pois afirma que o negro foi trazido à força para trabalhar no
Brasil, algo que não se contesta. Porém, ao comparar com os outros imigrantes (japoneses,
alemães e italianos, por exemplo) a teleaula reforça que estes vieram por vontade própria, ou
seja, não tinham motivos justificáveis ou não foram forçados a irem em busca de outra nação,
buscar amparo.
Em meio à apresentação há a participação da professora de uma universidade que
tenta desmistificar a questão da violência durante a escravidão. De forma clara ela explana
que a violência não era uma barbaridade desmedida, pois os senhores equilibravam os
castigos: no pelourinho apenas um escravo era açoitado para que todos os outros aprendessem
na pele daquele que sofria. A professora ainda acrescenta que a simples presença do chicote e
do pelourinho já era suficiente para exemplificar o domínio senhorial sobre os seus escravos
que fugiam e lutavam contra esse domínio. É interessante refletir sobre esse paradoxo, pois se
o castigo horrendo era um exemplo para todos, mesmo assim os escravos lutavam e fugiam,
ou seja, o sofrimento de um no pelourinho não resolvia o problema das resistências.
Neste contexto é possível pensar apenas no castigo físico como forma de sofrimento?
Nada mais abalava esses escravos? E os direitos humanos, a cidadania já que eram
coisificados e vendidos como mercadoria? Quanto à questão desumana Saint-Hilaire, em sua
obra Viagem ao Rio Grande do Sul, descreve que:
É impossível não perceber o estado de comoção do autor ao tratar desta criança que
desde pequena sofre e não tem perspectiva de se ver livre do seu destino. Destaca-se a
importância deste relato, pois mostra o tratamento a que eram dispensados os negros,
sinalizando ainda que o viajante demonstrava antipatia com os africanos e descendentes. Com
isso é fácil observar que o castigo físico não foi a única forma de violência contra os escravos,
portanto ao analisar este quadro é necessário aprofundar todos os aspectos presentes ao
contexto em estudo, caso contrário, parecerá que as situações desumanas em que os escravos
viviam não eram de nada sofridas.
Durante a análise da teleaulas, foi abordada a questão da fuga dos escravos que com
muita dificuldade despistavam o feitor, se livravam do capitão do mato e fugiam para um
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 267-281, Jul. 2015
278
quilombo. Com isso eram procurados e quando precisavam se esconder nas cidades, o
apresentador destaca que eles se “misturavam com outros negros e mulatos libertos que
circulavam pelas ruas”. Durante esta fala é utilizado como pano de fundo um teatro
representando a bolsa de valores onde todos os homens usavam gravatas, logo eram
parecidos. Esta situação é relacionada com os escravos fugidos que se misturavam com
pessoas parecidas com eles, porém a encenação da bolsa de valores é realizada sem a presença
de negros.
Logo é abordada a situação das revoltas realizadas pelos “negros-africanos” que
lutavam em busca da liberdade e de imediato partindo para a contribuição destes no que trata
das palavras: religião, música e culinária. Martinho da Vila é o protagonista deste quadro
apresentando inicialmente uma série de palavras de origem africana que enriqueceram o
vocabulário brasileiro, diferenciando o português falado em Portugal e o português falado no
Brasil. É interessante quando ele trata da religião ao destacar que os afro-brasileiros fizeram
“outra religião”, como se ao chegar ao Brasil inventassem a nova religião antes desconhecida
no seu país de origem. Quanto à música, ele considera que neste aspecto é que o negro
influenciou muito, destacando que o Brasil é o país mais rico quando se trata de música
devido a sua variedade de ritmos. Ao falar da culinária há uma confusão de informações, visto
que Martinho se vê perdido em suas falas precisando retomar suas anotações para dar
prosseguimento no assunto. Neste aspecto é ressaltada a culinária, a cozinha baiana, mas e os
afro-brasileiros situados nos outros estados do Brasil, onde são enquadrados neste contexto?
Mas segundo o cantor o que contribuiu fundamentalmente foi a língua, ou seja, os outros
aspectos são menos importantes.
Voltando ao táxi, entre conversas, o diálogo se refere à busca pela liberdade. É aí que
o passageiro (negro), em sua interação com o taxista (branco), destaca que no século XIX a
liberdade passou a ser um direito de todos, onde a escravidão começou a ser combatida no
Brasil e nos países da América. Neste caso, é importante salientar que o processo não foi tão
simples assim, visto que até mesmo depois da assinatura da Lei Áurea, no final do século
(1888), ainda muitos negros viviam sob o regime da escravidão. Amparando este pensamento
Conforto escreve que:
Tamanho era o poder dos escravocratas que atitudes antiescravistas, já comum em
Londres, em Boston, no Chile ou no México, durante a primeira metade do século
XIX, eram simplesmente desdenhadas no Brasil. O escravo continuava sendo visto
como instrumento de trabalho desprovido de inteligência e até de humanidade
(CONFORTO, 2001, p. 36).
Durante a revisão, bloco que acontece em todas as Teleaulas, é retomado tudo o que
foi apresentado. Neste espaço nota-se uma expressão destoante quando o apresentador resume
a maneira como os escravos foram trazidos nos navios negreiros e como eles se “adaptaram
criativamente a sua nova vida no Brasil”. A palavra criativamente pode ser definida como: de
forma inusitada e inovadora. Creio que os africanos foram corajosos ao enfrentar o Brasil
escravista lutando pela sua liberdade.
No momento em que o táxi chega ao seu destino e o passageiro paga a sua despesa, é
feita uma relação preconceituosa quanto ao trabalho e a liberdade no momento em que o
taxímetro fica “livre”. O taxista expressa que “eu é que tenho que ir à luta pra não ficar livre”,
ou seja, quem é livre não trabalha ou não gosta de trabalhar e neste sentido os escravos podem
ser considerados preguiçosos já que queriam ser livres.
No findar do vídeo há uma encenação de despedida do taxista e do “negro- africano”:
o primeiro expressa que “para saber mesmo o que foi a luta dos escravos, o melhor é estudar
só assim você vai ter uma noção verdadeira da importância dos negros na história do nosso
país”. Neste sentido é preciso destacar que não há uma indicação de estudo para apoio de seus
assistentes e no mais as fontes pictóricas presentes na Teleaula não aparecem como, por
exemplo, a imagem abaixo realizada por Jean Baptiste Debret.
É imprescindível o destaque das fontes utilizadas ainda mais por entender que História
é uma disciplina que exige a presença tanto de referências bibliográficas como as fontes
consultadas para elaboração de qualquer trabalho, pois desta forma o leitor, assistente ou
estudante é instigado a ir em busca de um conhecimento mais aprofundado desenvolvendo a
sua autonomia.
Jean Baptiste Debret - açoite público
Fonte: http://www.historia.seed.pr.gov.br/
Considerações finais
fundamental colaboração dos afro-brasileiros e dos africanos para a construção do nosso país,
desde o século XVI até os dias atuais.
Referências
BRASIL. Lei n° 10.639/03. Diário Oficial da União de 10 de janeiro de 2003. Brasília: 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed., São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
MAIA, Carmem; MATTAR, João. ABC da EaD. A educação à distância hoje. 1. ed. São
Paulo: Pearson Prentice Hall, 2007.
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro,
1997.
Abstract: The present work, the objective is to discuss the importance of the pedagogical development linked to
cultural practices, in the sense that human life is constructed in everyday experiences. Opens thus another field
where the pedagogical practices take as its starting point the expressions of culture, inspired by the lifestyle of
the people. Based on this, we intend toreport experiences in a rural school of São Lourenço do Sul (RS), which
uses as one of the teaching methodologies and cultural recognition, his own way of life, their culture. Based on
this practical example, we intend to identify, through practical actions already developed, the importance of
differentiated learning activities in which the student begins to understand how historical subject in order to find
that in history, the cultural references of community studied and subjects involved, proposing methodological
actions capable of pointing knowledge and principles of belonging, through the local culture.
Keywords: education, local culture, belonging, diversity.
A título de introdução
1
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: carlaredmer@bol.com.br
2
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: cgbschiavon@yahoo.com.br
(RS), que utiliza como uma das metodologias de ensino e reconhecimento cultural, o seu
próprio modo de vida, a sua cultura.
ficou responsável por uma apresentação artística, por meio da organização de teatro ou
dramatizações, representando as festas estudadas.
Com base nestas informações, pretende-se discutir a importância destas atividades
pedagógicas diferenciadas em que o aluno começa a se perceber como sujeito histórico, haja
vista que ao encontrar na História, os referenciais culturais da comunidade estudada e dos
sujeitos envolvidos, a Escola propõe uma ação metodológica capaz de apontar saberes e
princípios de pertencimento.
O ensino de História deve estar voltado para as relações do presente com o passado,
tornando a realidade mais próxima da perspectiva imediata dos jovens em processo de
aprendizagem, de modo que eles possam estabelecer suas relações com a realidade entre
passado e presente, desenvolvendo a consciência histórica. Além disso, o ensino de História
passa a ser compreendido como a consciência histórica no sentido prático da vida, tendo em
vista que o trabalho com a disciplina de História deve estar voltado para uma abordagem
sociocultural, que identifique as subjetividades das relações humanas, não se restringindo a
uma mera narração e apresentação da verdade “absoluta” construída historicamente.
Ademais, por meio da prática docente compreendem-se aspectos que devem ser
levados em conta na relação ensino-aprendizagem de modo que esta seja de qualidade e
desperte o interesse dos alunos. Entre estes aspectos, destaca-se a atenção voltada para a
cultura local. A cultura é o produto da ação humana e as relações sociais; por conseguinte,
guardam relação com a realidade; sendo que este tem presente, passado e futuro.
Compreender esse tempo humano no tempo histórico é entender que o mesmo está em
movimento, transformando-se a partir da ação.
Assim, para se trabalhar a História a partir da experiência de vida do aluno faz-se
necessário uma perspectiva teórico-metodológica que fale da vida das pessoas, das memórias
e das lembranças dos sujeitos de todos os segmentos sociais. Em outras palavras, é preciso dar
voz às histórias desses sujeitos, que sempre estiveram excluídos dos conteúdos ensinados.
Neste sentido, produzir ações de pesquisa e ensino relacionadas à cultura em que uma
comunidade escolar está inserida torna-se uma atividade primordial para que a educação faça
sentido para estes sujeitos, tendo em vista que ao encontrar na História os referenciais
culturais da comunidade estudada e dos sujeitos envolvidos, propõe-se uma metodologia
capaz de apontar saberes e princípios de pertencimento histórico.
Dentro deste contexto, a história local tem sido apontada como necessária para o
ensino por possibilitar a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre
presente nos vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho e lazer – e,
principalmente, por situar os problemas significativos da história do presente.
Entre as diversas definições de cultura, Candau afirma que ela é o “compartilhamento
de práticas, crenças, lembranças produzidas em uma determinada sociedade” (CANDAU,
2011, p. 11). Ou, ainda, de acordo com Hall (1997), os seres humanos possuem sistemas de
significados que são utilizados para codificar, organizar ou regular sua conduta em relação
aos outros, dando sentido às nossas ações. O autor afirma ainda que os sistemas ou código de
significado:
[...] nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomadas em seu
conjunto, eles constituem nossas “culturas”. Contribuem para assegurar que toda
ação social é “cultural”, que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um
significado e, neste sentido, são práticas de significação [...] (HALL, 1997, p. 1).
Os produtos que se formam ou surgem a partir de uma cultura são bens culturais, pelos
quais se podem compreender e identificar a cultura de um povo, em determinado lugar e
momento histórico. Esses bens culturais podem ser materiais (objetos concretos) ou imateriais
(que não se materializam no tempo). Como afirma Pelegrini, “são um ‘legado vivo’ que
recebemos do passado, vivemos no presente e transmitimos às gerações futuras, reunindo
referenciais identitários, memórias e histórias, essenciais para a formação do cidadão”
(PELEGRINI, 2009, p. 22).
Nesse sentido, a memória passa a ter também um papel significativo, pois, ao mesmo
tempo em que proporciona a coesão entre os indivíduos com a mesma tradição e história,
também evidencia as diferenças culturais que podem favorecer a aceitação da diversidade
como um valor essencial para o convívio em sociedade (PELEGRINI, 2009, p. 24).
Desse modo, a memória passa a ser a base da identidade (BITTENCOURT, 2011, p.
168), sendo através dela que se chega à história local. De acordo com Pierre Nora, a memória
é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente
evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento.
Além da memória das pessoas, escrita ou recuperada pela oralidade, existem também
os “lugares de memória”, lugares de amplo significado, pois representam algum sentido
material, simbólico ou funcional para determinados indivíduos. Esses lugares de memória
podem ser representados por monumentos, praças, edifícios públicos ou privados, mas que
necessariamente constituem-se como bens culturais para a comunidade. Os lugares de
memória, para Pierre Nora, são lugares em todos os sentidos do termo, vão do objeto material
Essa nova forma de interpretar os fatos busca fugir da História historicizante, uma
história que era mais fechada e não mantinha diálogo com as demais Ciências Humanas.
Abriu-se assim o campo para a problematização do social, como também, para com as
pessoas comuns, seus modos de viver, sentir e pensar a sua cultura. Nesse sentido, Barros
afirma que “toda vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura.
Ao existir, qualquer indivíduo já está produzindo cultura automaticamente, sem que para isto
seja preciso ser um artista, um intelectual ou um artesão” (BARROS, 2005, p. 3).
Para a Nova História Cultural, as práticas culturais envolvem todo o espaço da
experiência vivida e a cultura permite ao indivíduo pensar essa experiência, ou seja, criar
formulações de vivência. Todo simbolismo é fator de identidade e toda a cultura é cultura de
um grupo: “história é, ao mesmo tempo e indissociavelmente, social e cultural” (PROST,
1998, p. 135).
De acordo com as noções complementares de “práticas” e “representações” elaboradas
por Chartier, a cultura (ou as diversas formações culturais) poderia ser examinada no âmbito
produzido pela relação interativa entre estes dois polos. Assim, “tanto os objetos culturais
seriam produzidos ‘entre práticas e representações’, como os sujeitos produtores e receptores
de cultura circulariam entre estes dois polos, que de certo modo corresponderiam
respectivamente aos ‘modos de fazer’ e aos ‘modos de ver’” (BARROS, 2005, p. 5).
Desse modo, surge um interesse no estudo dos sujeitos produtores e receptores de
cultura e, nesta perspectiva, os objetos culturais passam a ser produzidos nesse meio assim
como os sujeitos produtores e receptores de cultura circulam entre esses dois polos
correspondendo aos “modos de fazer” e aos “modos de ver”. Assim, abrem-se as
possibilidades para o estudo dos usos e costumes e dos modos de viver em sociedade.
Da mesma forma que houve esta mudança no campo historiográfico pode-se dizer que
ela se estende também aos modos de ensinar História ou pelo menos possibilitam a sua
discussão, sabendo-se que nem sempre estes novos modos de ensino são postos em prática de
imediato, sendo que na maioria das vezes, ocorre certa resistência às mudanças por parte dos
profissionais da área.
De qualquer forma, a mudança somente é possível na medida em que se abrem
possibilidades para um processo de ensino-aprendizagem mais dinâmico, que se aproxima da
realidade do aluno e faz algum sentido para a sua vida, despertando nele um interesse maior.
De acordo com a historiadora Margarida Dias de Oliveira, é necessário que se supere a
visão de que a História, como disciplina, representa o resgate de todo o passado e de todas as
sociedades, herança das concepções positivista e metódica preponderantes na escrita da
História no século XIX e que permaneceu na história escolar em grande parte do século XX,
como se constata, a seguir:
A necessidade de superação dessa visão é coerente, tanto com um consenso entre os
profissionais de História sobre a natureza dos estudos históricos quanto com
concepções de educação que entendem o aluno como sujeito do seu conhecimento e
que, portanto, têm por finalidade básica a construção de posturas investigativas por
parte dos estudantes (OLIVEIRA, 2010, p. 9).
Dessa maneira, percebe-se a necessidade de uma integração do aluno com o seu meio,
onde ele se possa se tornar um participante ativo na construção dos conhecimentos históricos,
para que estes façam algum sentido na sua vida.
Com a proposta de (re)significação do olhar do educando, através da sua
problematização a fim de que este perceba o seu entorno como construído historicamente e
que, portanto, como agente histórico, suas escolhas constituem uma construção histórica. De
acordo com Barros, “o ensino-aprendizagem da história local configura-se como um espaço-
tempo de reflexão acerca da realidade social e, sobretudo, referência para o processo de
construção das identidades desses sujeitos e de seus grupos de pertença” (BARROS, 2013, p.
303).
Dessa forma, a História local ganha significado e importância no Ensino Fundamental,
exatamente pela possibilidade de construir no sujeito o pensamento sobre a história individual
e da coletividade, apresentando as relações sociais que ali se estabelecem com a realidade
mais próxima.
Levando-se em consideração a formação histórica do município de São Lourenço do
Sul, mais especificamente a zona rural, tem-se como característica principal a colonização por
imigrantes alemães e pomeranos. Esta característica está presente também no entorno da
muitas vezes passadas de geração em geração, mantendo viva a sua cultura e as tradições.
Nestas fotografias, foi possível perceber diversos aspectos da cultura local, entre elas, a
diferenciação que ainda fazem entre a comida preparada para o dia a dia, muito mais simples
e a comida “de domingo”, como é chamado o cardápio mais elaborado para o final de semana,
ou as comidas “de festa”, preparadas somente em momentos especiais. Além disso,
identificou-se também a diferenciação, para a mesma situação, da louça e utilitários que são
utilizados nos dois casos.
A culminância da pesquisa foi a festa preparada com vários pratos típicos servidos
para os convidados, inclusive, sobremesas, a partir das receitas trazidas pelos alunos ou até
mesmo preparadas por eles. Além disso, foi feita a exposição das fotos dos alunos, com a
apresentação dos pratos que são servidos em suas casas.
Já, no segundo ano da nova proposta do Pomervida, realizada em 2013, novamente os
alunos foram desafiados a pesquisar e registrar seu cotidiano, desta vez com o tema o trabalho
rural e o título “Mãos que trabalham, vidas que brotam”. A proposta era de que os alunos
registrassem, através de fotografia, o trabalho no campo, desde as atividades feitas somente
para a subsistência bem como a atividade de maior renda da família. Deste modo, foram
registrados desde o preparo da horta familiar, a coleta de ovos para consumo próprio, o trato
com os animais da propriedade, bem como o cultivo e a produção do fumo, que hoje é a
principal fonte de renda da grande maioria das famílias da região. Além disso, houve registros
dos pais que exercem outras profissões, que não a agricultura como, por exemplo, os
transportadores (motoristas), comerciantes, pastores e outros.
Pode-se perceber, na observação das fotos feitas pelos próprios alunos, uma mudança
de olhar para a captação da essência da pesquisa, ou seja, desta vez tornou-se muito mais fácil
para os alunos perceberem o objetivo do projeto: valorizar o modo de vida rural, a cultura.
Do mesmo modo em que foi feito na primeira edição, as fotos foram expostas para a
comunidade na festa em homenagem aos pais, havendo um grande interesse por parte da
comunidade, pela leitura das fotos.
Neste ano de 2014, a proposta foi a sensibilização dos alunos e da comunidade através
da identificação de suas festas e celebrações tradicionais, culminando com a atividade
intitulada “Colônia em Festa: Revivendo as festas e celebrações da cultura local”. As festas e
celebrações são classificadas como patrimônio imaterial da comunidade, pois são constituídas
historicamente por este grupo, promovendo sua identificação e sentimento de pertencimento.
São eventos coletivos em que se comemora ou rememora algum acontecimento.
Geralmente, são organizadas com antecedência e envolvem muitas pessoas, às vezes
Considerações finais
comunidade, fato que não ocorria na fase inicial de execução do projeto. Ao despertar este
sentimento de valoração do que faz parte da sua história de vida e de seus antepassados nota-
se, também, um maior entendimento do significado de diversidade, ou seja, ao se auto-
reconhecer culturalmente, despertando o sentimento de conhecimento da importância das
outras culturas, diferentes da sua. A cultura “do outro” passa a ser entendida como
“diferente”, mas que merece o mesmo respeito que a sua própria cultura.
Referências
BARROS, C. H. F. Ensino de História, memória e história local. Rev. Hist. UEG Porangatu,
v.2, n.1, p.301-321, jan./jul. 2013.
CHARTIER, Roger. A nova história cultural existe? In: PESAVENTO, Sandra. História e
linguagens. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 39-40.
HALL, S. The centrality of culture: notes on the cultural revolutions of our time. In.:
THOMPSON, Kenneth (ed.). Media and cultural regulation. London, Thousand Oaks, New
Delhi: The Open University; SAGE Publications, 1997. (Cap. 5). Trad. Ricardo Uebel, Maria
Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/neccso/Word/texto_stuart_centralidadecultura.doc, acesso em
27/7/2014, às 15:36h.
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto
História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
OLIVEIRA, Margarida Dias de. A História nas salas de aulas brasileiras. In: Coleção
explorando o ensino: História – Ensino Fundamental. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria da Educação Básica, 2010. pp. 9-16.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2005.
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanesi. O que e como ensinar? Por uma história
prazerosa e consequente. In: KARNAL, Leandro (Org). História na sala de aula: conceitos,
práticas e propostas. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010, pp.17-36.
ROCHE, Jean. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo,
1969.
Resumo: O presente artigo refere-se aos resultados parciais da minha dissertação do Mestrado Profissional em
História, Pesquisa e Vivências de Ensino – Aprendizagem. Nesse sentido, destaca-se também que este trabalho é
uma interpretação dos resultados de uma pesquisa sobre a narrativa dos estudantes a cerca do gênero feminino a
partir de produções cinematográficas brasileiras utilizadas no ensino da disciplina de História. Portanto,
conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais as temáticas de gênero e sexualidade são previstas como temas
transversais e devem ser trabalhados em sala de aula. Afinal, essas são questões necessárias de serem
problematizadas com os estudantes, pois dizem muito da forma como vivemos e das relações que estabelecemos
na atualidade. Além disso, visando a divulgação entre os alunos sobre a nossa sétima arte e proporcionando
também a valorização do cinema nacional, foram selecionados os seguintes filmes para a análise de gênero:
Acorda Raimundo, Acorda!, Vida Maria, Filhas do Vento e Olga. Sendo que o projeto foi aplicado no ano letivo
2013, na turma do nono ano B (oitava série), composta por seis meninas e quatro meninos com uma faixa etária
entre 14 e 16 anos de idade, estudantes da Escola Municipal Cidade do Rio Grande (CAIC/FURG) localizada na
zona oeste da cidade do Rio Grande/RS. Por fim, baseado na exposição e interpretação dos filmes, nas
realizações das tarefas e nas 40 entrevistas feitas por mim através da história oral com os aprendizes, foi possível
analisar como esses alunos percebem o gênero feminino na nossa atualidade.
Palavras-chave: Educação, Ensino de História, Gênero Feminino, Filmes.
Abstract: This article refers to the partial results from my Master´s degree thesis on History, Research and
Teaching Experiences – Learning. Therefore, We must highlight this article is an interpretation of the results of a
research on the students´ narrative about the female gender based on Brazilian Cinematographic productions
used for History classes. Thus, according to the National Curriculum Standards, the themes of gender and
sexuality are foreseen as transversal themes and they must be worked out in the classroom. After all, these are
necessary questions to be problematized with the students because they say a great deal of the way we live and
relationships we establish nowadays. Besides all this, we focus on the disclosure of the Seventh Art among the
students and the valorization of the national cinema. The following movies have been selected to gender
analyzes: “Acorda Raimundo, Acorda!”, “Vida Maria”, “Filhas do Vento” e “Olga”. The Project has been
conducted during the school year of 2013 in the “Ninth Year B (eighth grade)” with a group composed of six
girls and four boys and their age group being from fourteen to sixteen years old at CAIC/FURG ( a city-run
school in Rio Grande – RS). Finally, based on the exhibition and interpretation of the movies, assignments and
forty interviews made by me through oral history with the learners, it was possible to analyze these students
realizing the female gender nowadays.
Key-words: Education, History Teaching, Female Gender, Movies.
Introdução
Na minha trajetória enquanto educadora percebo uma grande carência, nos conteúdos
dos livros didáticos de História, referente ao gênero feminino e suas contribuições na história
1
Mestranda em História (Profissional) Universidade Federal do Rio Grande. Contato:
kmkucharski@hotmail.com
No dia 18 de maio de 1994 foi inaugurado o CAIC “Cidade do Rio Grande” que está
localizado na cidade do Rio Grande, no km 8 da Avenida Itália, no interior da Universidade
Federal do Rio Grande- FURG.
Por meio da união entre a Universidade e a Prefeitura do Rio Grande com um sistema
de gestão compartilhada foi construída a Escola Municipal de Ensino Fundamental Cidade do
Rio Grande, a qual compõe o complexo CAIC.
Através de um acordo estabeleceu-se a responsabilidade da Prefeitura do Rio Grande
com os recursos humanos e a merenda escolar desse local, enquanto coube a Universidade,
cumprimento dos Direitos Humanos aos sujeitos envolvidos, também existe nesse mesmo
local o Centro de Referências em Direitos Humanos (CRDH).
Vários projetos também são desenvolvidos vinculados ao Programa Mais Educação e
possibilitando uma geração de renda aos estudantes, também existe o projeto “Acreditar é
Investir” que seleciona os alunos candidatos através de uma análise socioeconômica e perfil
dos mesmos para trabalhar num estágio remunerado nos mais variados setores da escola ou da
universidade. Nesse sentido, podemos perceber que este local procura promover a inclusão
social das comunidades localizadas próximas ao centro CAIC/FURG.
A partir do contexto apresentado, sobre a escola Municipal Cidade do Rio Grande
(CAIC/FURG) é possível perceber a diversidade cultural que compõe esse ambiente que em
maio deste ano completou 20 anos de lutas, conquistas e sonhos.
Destaca-se também que é nesse mesmo local, diferente de certos espaços escolares por
estar localizada no interior da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e pelos seus
projetos executados em parceria com essa mesma instituição, que atuo na rede Municipal de
Educação como professora da disciplina de História desde o ano de 2009.
Dessa forma, na busca por novos saberes, através da minha formação continuada,
assim como, a partir da compreensão e interação com o ambiente em que estou inserida como
professora pesquisadora, anseio em minhas práticas educativas desenvolver aulas que possam
proporcionar dinâmicas relacionadas com as experiências dos estudantes.
Nesse sentido, minha proposta de trabalho em sala de aula é aproximar os conteúdos
da disciplina de História com o cotidiano vivenciado pelos alunos. Para tanto, é necessário
levar em consideração os conhecimentos prévios dos estudantes sobre os assuntos abordados
na classe, escolher métodos que possam facilitar o processo de aprendizagem e que também
permitam uma interação efetiva desses estudantes com o tema abordado.
Vale salientar que, foi principalmente devido às características peculiares desse local
que pratica reuniões semanais de formação com professores, que possui uma infraestrutura
diferente de muitos espaços escolares e busca promover a inclusão social da comunidade
escolar, que escolhi este local para desenvolver o meu projeto sobre a análise de gênero. Além
disso, devido à diversidade existente entre os sujeitos inseridos nos ambientes escolares,
torna-se necessário aumentarmos o debate sobre gênero nesses locais.
didáticos aos alunos, sem proporcionar uma aprendizagem autônoma. Conforme apresentam
os Parâmetros Curriculares Nacionais: História- PCNs (1998):
Os métodos tradicionais de ensino - memorização e reprodução – passaram a ser
questionados com maior ênfase. Os livros didáticos difundidos amplamente e
enraizados nas práticas escolares foram criticados nos conteúdos e nos exercícios
propostos. A simplificação dos textos, os conteúdos carregados de ideologias, os
testes ou exercícios sem exigência de nenhum raciocínio foram apontados como
comprometedores de qualquer avanço no campo curricular formal. (Parâmetros
Curriculares Nacionais: história, 1998, p. 28).
Somente quando a história deixar de ser aprendida como mera absorção de um bloco
de conhecimentos positivos, e surgir diretamente da elaboração de respostas e
perguntas que se façam ao acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela
ser apropriada produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação
cultural da vida prática humana. (RÜSEN, 2010, p. 44)
Para algumas autoras que trabalham com o conceito de “sistema sexo/ gênero” o
subtrato biológico existe e não pode ser esquecido ou driblado teoricamente. Para
outras, aquelas que se fundamentam no caráter simbólico arbitrário, o gênero deve
ser compreendido radicalmente como uma construção histórico/cultura, portanto,
arbitrária, desvinculada do biológico. Nesse contexto, há também teorias que
relativizam as duas posições anteriores [...] (PEREIRA, 2004, p. 178).
Dessa forma, entende-se que homens e mulheres são produtos da sociedade em que
vivem, onde o gênero é uma construção social do indivíduo. Sendo que, em toda construção
social existe sempre uma relação de poder conforme também destaca a autora.
Nesse sentido, é necessário destacar que o gênero é uma representação social de uma
determinada época, portanto, pode ser modificada ao longo do tempo. Conforme apresentam
as pesquisas de Louro (2013):
Ao aceitarmos que a construção do gênero é histórica e se faz incessantemente,
estamos entendendo que as relações entre homens e mulheres, os discursos e as
representações dessas relações estão em constante mudança. Isso supõe que as
identidades de gênero estão continuamente se transformando (LOURO, 2013, p. 39).
Também é preciso salientar que cada vez mais esse tema vem ganhando espaço na
mídia, através de produções cinematográficas e novelas brasileiras. Assim como, nos meios
acadêmicos o assunto vem ganhando espaço e se destacando principalmente através de
pesquisas e publicações sobre o mesmo. De acordo com Nilson Dinis (2008):
De acordo com a autora precisamos compreender que não existe somente o gênero
feminino e o gênero masculino, principalmente devido às diversidades que compõem a
identidade de cada sujeito. Portanto não podemos generalizar indivíduos a partir de algumas
características sem analisar as inter-relações existentes entre homens e mulheres ao longo da
história.
E nesse sentido, trabalhar com o tema gênero na sala de aula também pode ser uma
possibilidade para a formação do saber histórico de nossos alunos conforme poderemos
perceber logo a seguir. Pois, segundo as pesquisas de Pinsky (2010):
Capacitar os estudantes para perceber a historicidade de concepções, mentalidades,
práticas e formas de relações sociais é justamente uma das principais funções da
História. Ao observar que as ideias a respeito de que é “ser homem” e “ser mulher”,
os papéis considerados femininos e os masculinos ou a condição das mulheres, por
exemplo, foram se transformando ao longo da história (como e por que), os alunos
passam a ter uma visão mais crítica de suas próprias concepções, bem como das
regras sociais e verdades apresentadas como absolutas e definitivas no que diz
respeito às relações de gênero. Também adquirem uma compreensão maior dos
limites e possibilidades dos seres históricos (estudantes entre eles), pois dentro das
determinações históricas também é possível fazer escolhas, mesmo em aspectos que,
por sua aparente ligação com a biologia, se mostram dificílimos de serem mudados
(e melhorados). (PINSKY, 2010, p. 32-33).
Dessa forma, as informações apresentadas para os alunos a partir das imagens e dos
diálogos anunciados nos vídeos selecionados para a pesquisa podem propiciar momentos de
reflexão sobre os valores e sentimentos humanos, estimular o senso crítico sobre os problemas
sociais existentes e fomentar novas interpretações sobre o mundo em que estamos inseridos.
Destaca-se que foi um longo processo a escolha dos possíveis filmes nacionais que
poderiam ser utilizados em minhas pesquisas sobre gênero. Minha proposta sempre foi
trabalhar apenas com produções cinematográficas brasileiras, pois as mesmas facilitam a
compreensão dos alunos que em seu cotidiano utilizam-se do mesmo idioma apresentado
nessas obras, desconsiderando assim, a necessidade de empregar legendas nesses filmes.
Portanto, visando assim, valorizar nossa 7ª arte como um recurso didático viável,
porém pouco conhecido em diversos espaços escolares que preferem ainda trabalhar mais
com produções cinematográficas estrangeiras. Sendo que, apesar dessas obras possuírem
significativa qualidade artística, elas também acabam apresentando em suas histórias uma
cultura em muitos momentos bem diferente da nossa realidade.
Entretanto, ao longo dessa trajetória, fiz algumas modificações na minha proposta de
pesquisa e resolvi utilizar também curtas-metragens, os quais, pudessem se adequar melhor a
realidade da comunidade escolar, proporcionando assim, resultados mais significativos no
projeto.
Nessa mesma perspectiva, para uma melhor compreensão sobre a análise de gênero a
partir dos filmes selecionados por mim, também fez-se o uso da oralidade na pesquisa, ou
seja, através da metodologia da história oral foram realizadas as entrevistas pela educadora
com seus educandos. De acordo com MEIHY (1996):
[...] a história oral implica uma percepção do passado como algo que tem
continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado
no presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. Nesta medida, a
história oral só oferece uma mudança para o conceito de história, mas mais do que
isso, garante sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a
sequência histórica e a sentir-se parte do contexto em que vivem (MEIHY, 1996, p.
10).
Portanto, a partir dessa metodologia, foi possível proporcionar aos alunos outras
formas de refletir sobre a relação entre a sociedade em que estão inseridos, analisando as
experiências provenientes do cotidiano e os filmes assistidos e a participação deles no
processo de ensino e aprendizagem. Pois, “a história oral é concebida como um meio para a
(re)construção de identidades e de transformação social”. (FERREIRA, 2009, p.93)
Destaca-se, que para conseguir chegar aos resultados das minhas pesquisas sobre a
análise de gênero a partir de produções cinematográficas, após a realização de todas as 40
entrevistas, também foi necessário realizar a transcrição das mesmas.
Dessa forma, proporcionando uma maior percepção dos alunos enquanto sujeitos
históricos, para a realização da pesquisa sobre a análise de gênero foram selecionados quatro
filmes nacionais “Acorda Raimundo, Acorda” (1990), “Vida Maria” (2006), “Filhas do
Vento” (2005) e “Olga” (2004).
Ao serem selecionados e analisados os filmes, foi possível compreender que a
proposta inicial dos produtores dessas obras citadas acima não era especificamente abordar
apenas as questões sobre o gênero. E nesse sentido, também se verificou que estas quatro
obras cinematográficas utilizadas como elemento educativo proporcionavam um leque de
possibilidades no processo de ensino-aprendizagem em sala de aula. Conforme apresentam as
pesquisas de Napolitano (2011):
Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao
mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o
lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma
obra de arte. Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados
e “difíceis”, os filmes têm sempre alguma possibilidade para o trabalho escolar. O
importante é o professor que queira trabalhar sistematicamente com o cinema se
perguntar: qual o uso possível deste filme? A que faixa etária e escolar ele é mais
adequado? Como vou abordar o filme dentro da minha disciplina ou num trabalho
interdisciplinar? Qual a cultura cinematográfica dos meus alunos? (NAPOLITANO,
2011, p. 11-12).
Nesse sentido, de acordo com o autor citado acima, os filmes históricos utilizados no
ensino da disciplina da história são apenas a representação de um evento ocorrido
antigamente. Portanto, não devem ser apresentados como uma forma fidedigna do passado
para os nossos educandos.
Considerando o que foi aqui exposto até o momento, podemos perceber que
atualmente a utilização desse recurso didático em sala de aula oferece muitas possibilidades
no campo da educação, principalmente na disciplina de História. Conforme salienta
Bittencourt (2009):
Atualmente, com a contribuição de vários estudos interdisciplinares de
antropólogos, linguistas, sociólogos e demais teóricos da comunicação, os
historiadores podem dispor de uma metodologia mais abrangente para analisar tanto
filmes de ficção como documentários ou filmes científicos [...]. Com base na
proposta metodológica dos especialistas da área, podemos repensar um método de
ensino adequado sobre o uso de filmes na escola. Fica evidente que não existe um
modelo simplificado para introduzir os alunos na análise crítica da imagem
cinematográfica, mas pode-se destacar a impossibilidade de deter-se apenas na
análise do conteúdo do filme. É preciso ir além (BITTENCOURT, 2009, p. 375).
Por fim, é necessário destacar que os resultados dessa pesquisa sobre gênero feminino
a partir dos filmes utilizados como recursos didáticos na sala de aula e a participação das seis
alunas e dos quatro alunos também nas entrevistas realizadas através da metodologia da
história oral, serão melhores analisados na continuidade das minhas pesquisas. Nesse sentido,
também será possível refletir sobre qual foi o significado desse estudo sobre gênero na vida
desses educandos.
Referências
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Editora FGV, 2004.
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PINSKY, Carla Bassanezi. In: Novos temas na sala de aula/ Carla Bassanezi Pinsky
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alunos sobre a relação entre filmes e aprendizagem histórica. In: História & Ensino,
Londrina, v. 16, n.1, p. 25-39, 2010.
Resumo: Este artigo aborda uma reflexão e compreensão dos alunos do Ensino Médio da Escola Técnica Estadual
Senador Ernesto Dornelles no estudo das religiões afro-brasileiras. Como fundamentação teórica tratou-se do
conceito e importância do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e a discussão da Lei nº 10.639/03, um dos
balizadores da constituição de uma educação antirracista no cotidiano escolar. Como metodologia, foi realizada uma
entrevista com seis alunos participantes. A questão que norteou a entrevista levou em conta principalmente o
significado para eles do estudo de um dos principais elementos da cultura afro-brasileira. Conclui-se que os alunos
compreendem que o estudo das religiões afro-brasileiras atua como forma de combater o racismo e de exaltar a
história e cultura do povo negro para a nossa sociedade.
Palavras-chave: Cultura afro-brasileira, Lei nº 10.639/2003, Racismo, Relações étnico-raciais, Educação.
Abstract: This article presents a reflection and understanding of high school students from the Technical School
Senator Ernesto Dornelles the study of african-brazilian religions. As a theoretical foundation treated the concept and
importance of teaching history and Afro-Brazilian Culture and discussion of Law nº. 10.639/03, one of the hallmarks
of the constitution of an anti-racist education in daily school. As methodology, the interview with participants 6
students was used. The question that guided the interview took into account primarily the meaning for them of the
study of one of the main elements of african-brazilian culture. We conclude that students understand that the study of
african-brazilian religions act in order to combat racism and to exalt the history and culture of black people to our
society.
Keywords: African-brazilian culture, Law nº 10.639/2003, Racism, Racial ethnic relations, Education.
Introdução
Este artigo que, se propõe a refletir sobre a compreensão dos alunos do Ensino Médio no
estudo das religiões afro-brasileiras, consolida minha experiência de estágio supervisionado II,
em uma turma do primeiro ano, no turno da tarde, na Escola Técnica Estadual Senador Ernesto
Dornelles, localizada no Bairro Centro Histórico, em Porto Alegre. A turma era composta por 38
alunos no caderno de chamada, contudo nas aulas normalmente estavam presentes entre 18 e 22
alunos.
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: lueci22@yahoo.com.br
A Lei 10.639/03 é fruto deste trabalho e da sociedade, pois referenda uma conquista
histórica, de ativistas e militantes, que há muito vem trabalhando para efetivação de políticas
afirmativas. Demanda esta que, após sua legalização apresenta-se como política obrigatória para
todas as escolas da rede escolar brasileira. Também podemos dizer que a mesma se vincula a
medidas afirmativas, de caráter inconclusivo, “[...] a da preservação e a valorização da memória
afro-brasileira”. (MACEDO, 2012, p. 32).
Destaca-se que a referida Lei sancionada em 2003 foi regulamentada em 2004 através do
Parecer nº CNE/CP. 003/2004, aprovado em 10 de março de 2004, do Conselho Nacional de
Educação que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o ensino de História e Culturas Afro-Brasileiras e Africanas. Este
documento se constituiu em uma referência pedagógica nos aspectos da formação docente, dos
currículos, das práticas docentes e, especialmente, na sua proposição política de combate ao
Ou seja, ao que tudo indica, a lei considerou que era necessário não somente introduzir o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos ensinos Fundamental e Médio, como
também qualificar os professores para ministrarem esse ensino. A legislação federal,
segundo o nosso entendimento, é bem genérica e não se preocupa com a implementação
adequada do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Ela não estabelece metas
Isto é, deve haver condições oferecidas para a aprendizagem com o objetivo de capacitar
professores em procedimentos didático-pedagógicos aplicáveis em História Africana e Cultura
Afro-Brasileira, e estas iniciativas devem partir de secretarias Municipais de Educação e de
Universidades. A UFRGS, através do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social
(DEDS), teve essa iniciativa em 2013 através de uma ação de extensão à distância de capacitar
professores de oito redes municipais de ensino, localizadas em Porto Alegre e municípios da
região metropolitana.
É preciso sempre recordar que os movimentos sociais negros, como também muitos
intelectuais engajados na luta antirracista, levaram muitos anos para conquistar a obrigatoriedade
do estudo da história do continente africano e dos africanos, na luta dos negros no Brasil, da
cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional brasileira.
Contudo, temos que ressaltar que torná-los obrigatórios, embora seja condição necessária,
não é condição suficiente para sua implementação de fato. Ou seja, é necessário reforçar sempre
que a pressão sobre os governos municipais, estaduais e federal para que esta Lei seja executada,
para que não se transforme numa Lei “esquecida” do nosso sistema jurídico.
Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver,
de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da
cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte
do seu dia-a-dia. [...] Feijoada, samba, capoeira resultaram de criações dos africanos que
vieram escravizados para o Brasil, bem como de seus descendentes, e representam
formas encontradas para sobreviver, para expressar um jeito de sentir, de construir a
vida. Assim, uma receita de feijoada, vatapá, ou de qualquer outro prato, contém mais do
que a combinação de ingredientes, é o retrato de busca de soluções para a manutenção da
vida física, de lembrança dos sabores da terra de origem. Do mesmo modo, a capoeira,
hoje um jogo cujo cultivo busca o equilíbrio do corpo e do espírito, nasceu como
instrumento de combate, de defesa (SILVA, 2005, p. 155).
encaminhada pelos movimentos sociais. O objetivo é romper com o silêncio que persiste nos
currículos tradicionais e ampliar o espaço da África e dos africanos na memória coletiva do
Brasil, que é considerado o país de maior população afrodescendente do mundo. (MACEDO,
2013). Como se tem conhecimento, muitas escolas ainda não incluíram a temática de História e
Cultura da África em seus currículos. Uma relação com este fato pode ser feita em Silva (2008, p.
97), que menciona:
O legado da sociedade escravista reflete, ainda hoje, um rastro de injustiça. O local onde
podem vir a ocorrer mudanças na forma de combater essas injustiças é o ambiente
escolar. Acontece que o ambiente escolar, tradicionalmente concebido, não está
preparado para tratar dessas questões porque continua sendo representante de um modelo
pedagógico de transmissão cultural que necessita ser revisto com urgência.
Com isso, deve-se levar em conta que o sincretismo religioso estabelecido no nosso país é
uma demonstração de assimilação cultural a que muitas comunidades, especialmente a negra,
foram submetidas devido ao preconceito e ao racismo. E pensando na questão religiosa, é que me
volto para contextualizar este estudo.
2
Grifos do autor.
que retratam e refletem muito bem sobre a contribuição do povo negro para a nossa sociedade,
bem como ressaltar sua resistência e denúncia da exclusão social e destacar a história e a
identidade dos negros. São eles: o artigo de Juarez Dayrell, intitulado como “O rap e o funk na
socialização da juventude” e o trabalho de conclusão de curso de autoria de Simone Ribeiro,
intitulado “Uma pedagogia em movimento: contribuições da capoeira na construção da
autonomia”.
O professor, ao abordar os conteúdos de cultura afro-brasileira, deve fazer
antecipadamente uma reflexão e ter uma posição pessoal, pois isso é fundamental,
principalmente, quando a temática será religiosa.
início a trazer importantes elementos ao debate que estava se desenvolvendo. A contribuição que
estes deram foi no sentido de enriquecer o debate da intolerância religiosa. Estes por iniciativa
própria, sendo que não estavam em avaliação, trouxeram para a discussão em sala de aula
características e origens de tradições religiosas como o Vodu e Wicca. Queriam falar sobre estas,
principalmente por muitas pessoas não as conhecerem e por ter por elas conhecimentos
“infundados”, como um dos alunos entrevistados afirmou.
Falando um pouco destes alunos entrevistados, vale destacar que os mesmos têm idade
que variam de 15 a 16 anos, nenhum destes mora no bairro onde está localizada a Escola. A
maioria mora na Zona Sul de Porto Alegre e dois na Zona Leste. A estudante 5 (denominação
atribuída para manter o anonimato dos alunos), de 15 anos, é a única do grupo que trabalha.
Mesmo trabalhando, a mesma era muito participativa em sala de aula e com uma boa escrita. O
estudante 1, que não largava do celular de jeito nenhum, sempre auxiliava na aula fazendo
consultas na internet pelo seu celular mesmo. Sim, usamos o celular a favor da aula. Alguns
colegas o chamavam de guri mais popular da escola. A estudante 2 era muito comunicativa,
leitora das obras sobre Wicca e bem descolada. O estudante 3 era muito participativo, o aluno que
sentava bem na frente da professora e sempre tinha uma contribuição para os assuntos
trabalhados em aula, desde o início da prática de estágio. O estudante 4, no começo, parecia um
pouco distante, o mais sério, mas depois de umas aulas já conversava com todos, sempre
participando em alguma discussão em sala de aula. O estudante 6 chegou um pouco depois de
iniciada minha prática de estágio. Veio transferido de outra escola de Ensino Médio, uma das
maiores do Estado. Como frequentador já há alguns anos de rodas de capoeira, trouxe para o
debate em sala de aula as principais características desta, fazendo uma ótima apresentação do
tema.
Dessa exposição de características acima que fiz dos alunos informantes da pesquisa, só
tenho a acrescentar que com suas contribuições em sala de aula foi possível estabelecer condições
para um aprimoramento de ideias, de questionamento e diálogo.
Este foi um momento que percebi a importância da Lei nº 10.639/2003, pois a mesma
“[...] implica na abertura de espaços para o questionamento do fazer pedagógico de todo o
sistema de ensino que, historicamente, construiu sua estrutura sob bases sociais que excluem a
população afrodescendente”. (SILVA, 2008, p. 94).
Portanto, a experiência de estágio contribuiu para que a escola fortaleça sua função social,
escolhendo um dialogismo com o cotidiano escolar como fator de articulação. E esse dialogismo
possibilitou compreensões diferentes, como reflexões também foram possibilitadas. E esta
compreensão está traduzida em palavras descritas a seguir.
Estudante 2:
Bom, vejo que há um valor muito importante em estudar religiões afro-brasileiras, pois
isso pode acabar parcialmente com os estereótipos que a sociedade ao passar dos anos
acabou criando com os negros. [...] O estudo sobre isso não deveria ser apenas para
alunos do 1º ano do Ensino Médio, pois seria maravilhoso se crianças do Fundamental
aprendessem sobre isso. Talvez estaríamos reformulando nossa sociedade de uma forma
não perfeita, claro, mas deixando claro que os negros e suas religiões não são do mal.
Estudante 3:
Este estudo é importante para quebrar séculos de preconceito racial advindos dos anos de
escravatura [...]. Todos temos nossa cultura e costumes, e durante muitos anos essa
cultura riquíssima vinda da África foi discriminada com preconceitos infundados ou pura
ignorância sem necessidade. [...] Isso para mim é estudar a história, uma vez que metade
da África tem muito mais cultura que toda a Europa junta.
Estudante 4:
Eu achei um estudo muito interessante, pois com ele aprendemos sobre novas culturas e
religiões diferentes, como o Candomblé. São religiões parecidas com a que mais
conhecemos (Cristianismo), só que cada uma com as suas variações, crenças, algumas
comemoram algumas datas do Cristianismo. Eu nunca tinha estudado sobre tais religiões
e gostei de aprender sobre uma outra cultura. [...] aprender sobre outros países e outras
pessoas que não sejam do Brasil também faz parte para entender a História.
Estudante 5:
É muito importante estudar sobre as religiões afro-brasileiras, pois assim aprendemos
tudo como realmente funciona, aprendemos um pouco de cada uma delas e assim
também tiramos nossas dúvidas sobre ‘tais’ histórias que a sociedade inventa na maioria
das vezes, como por exemplo, o vodu, que conhecemos como uma religião que pratica o
mal, quando na verdade não é bem assim que funciona. [...] Essas religiões sofrem com
o preconceito da sociedade e temos que ter em mente que devemos respeitar cada
religião, principalmente quando não conhecemos seus princípios e seus valores,
devemos nos informar antes de fazer qualquer crítica sobre tal assunto só porque
‘ouvimos falar’. E para mim, estudar sobre as religiões afro-brasileiras é aprender
história, pois é importante que saibamos a origem de tudo isso e esse é um papel que a
história exerce.
Estudante 6:
O estudo sobre as religiões afro-brasileiras é de suma importância, afinal, grande parte
dos nossos descendentes são de origem afro. Aprendi muitas coisas que antes eu não
sabia, tipo: eu não sabia que na África falavam vários tipos de língua, muito menos que
falavam francês. [...] E aprender história é estudar fatos históricos que marcaram
determinada época ou momento, então, sim, isso que nós estamos aprendendo com a
professora [...] é estudar história.
A partir das respostas dos alunos à questão proposta, segue uma reflexão geral da
compreensão que os mesmos tiveram durante as aulas.
Desta forma, as aulas de cultura afro-brasileira acabaram por propiciar aos alunos
posicionamentos mais críticos, por meio da contextualização e do aprendizado de novos
conceitos, resultado da análise de fatores sociais, que foi o que aconteceu, pois os mesmos
relataram suas experiências sociais, bem como afirmaram que devemos respeitar cada religião,
juntamente com seus princípios e valores e, principalmente, não desrespeitar e agir
preconceituosamente quando desconhecemos os princípios e características dessas religiões. Foi
como disse o estudante 3 (2014): “Durante muitos anos essa cultura riquíssima vinda da África
foi discriminada com preconceitos infundados ou pura ignorância”.
Na descrição acima, fica evidente um clima favorável de respeito às diferenças. Como
afirma Rocha (2009, p. 28):
Como foi aberta a possibilidade de espaço de uma construção que priorize uma visão
positiva das diferentes culturas, temos que aproveitar deste mesmo espaço para edificar entre
alunos e professores relações mútuas de respeito entre as diferentes identidades.
Já a estudante 2 (2014) destaca que:
O estudo sobre isso não deveria ser apenas para alunos do 1º ano do Ensino Médio, pois
seria maravilhoso se crianças do Fundamental aprendessem sobre isso. Talvez
estaríamos reformulando nossa sociedade de uma forma não perfeita, claro, mas
deixando claro que os negros e suas religiões não são do mal.
Quando ela usou a expressão “reformulando”, como ela mesma disse, que só vinha essa
palavra na sua mente, pensou-se: será que seria no sentido de uma reconstrução? Será que teria
um sentido de readaptação? Sigo no pensamento de “preparo”, ou melhor dizendo: que este
indivíduo está em formação para desde cedo conhecer temas que historicamente são marcados
pelo preconceito e fazer com que este em sua caminhada escolar respeite as diferenças, credos e
etnias e saiba das contribuições que o povo negro trouxe para a formação da nossa sociedade.
Houve também aqueles “surpresos”, como o estudante 4 (2014), por encontrar no estudo
de uma das práticas religiosas afro-brasileiras a semelhança com o espiritismo e com elementos
do catolicismo. Ele afirma que gostou de aprender sobre “uma outra cultura”, justamente por não
ter conhecimento sobre.
A recepção desde o princípio de iniciação dos conteúdos de cultura afro-brasileira foi
positiva e é partir daí, que destaco e ressalto o diálogo. Esse dialogar com o cotidiano escolar foi
um instrumento de inclusão e interação de assuntos, antes ausentes dos conteúdos disciplinares,
mas presentes durante o estágio de docência, possibilitando uma experiência positiva de prática
para a educadora e, igualmente, na vida dos educandos.
Considerações Finais
acrescentar, ela ressalta ainda que a temática da história e cultura afro-brasileira deveria estar
presente desde o ensino Fundamental para que as crianças cresçam “reformulando” nossa
sociedade e desmistificando os estereótipos.
Mas o mais importante aqui foi sentir que os alunos tiveram a compreensão que este
estudo serviu para refletir sobre os séculos de preconceitos advindos da escravidão, que serviu
para aprender sobre religiões que antes não tinham conhecimento, mas que acabaram por ver que
estas mesmas têm semelhanças tão próximas com o Cristianismo.
Conclui-se, então, que a compreensão destes alunos foi ao encontro do que se desejava,
principalmente quando estamos falando de promover a educação de cidadãos atuantes e
conscientes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica; cidadãos com uma consciência
viva e ativa e com um pensamento crítico contribuindo para uma educação antirracista.
Referências
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OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. Recife: Edições Bagaço, 2005.
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Alegre: Triunfal Gráfica e Editora; Editora da UFRGS, 2013. p.111-142.
ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Pedagogia da Diferença: a tradição oral africana como
subsídio para a prática pedagógica brasileira. Belo Horizonte: Nandyala, 2009.
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SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In:
MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília, DF: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes
arts. 26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 3o (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’."
Resumo: Este artigo explora as potencialidades do uso dos jogos no ensino de história. Para tanto, tece,
inicialmente, algumas considerações acerca da utilização dessa metodologia na sala de aula de história. A fim de
expor a experiência aqui compartilhada, o artigo aborda a elaboração do plano de aula e a construção do pife da
mitologia egípcia. O plano dividiu-se em três etapas: 1) abordagem inicial do conteúdo; 2) elaboração de uma
produção escrita, pelos alunos, que objetivou explorar o conceito de politeísmo e 3) a construção do jogo
temático pela professora e a sua utilização em sala de aula. Durante a elaboração deste jogo, foi criado um
baralho específico e sua aplicação inspira-se no jogo de cartas chamado “Pife”. Dessa forma, o presente texto,
além de disponibilizar o material produzido, tem por finalidade contribuir para a discussão sobre as
possibilidades didáticas associadas ao uso deste tipo de ferramenta no ensino de história.
Palavras-chave: jogos, mitologia, ensino de história.
Abstract: This article explores the potentialities of using games in the teaching of history. For this purpose,
develops some considerations about the using of this methodology on history’s classes. In order to expose the
experience shared in this text, the preparation of the lesson plan and of the game is discussed. The plan was
divided in three stages: 1) initial approached of the content; 2) preparation of a written production, by students,
to explore the concept of polytheism and 3) The creation of a themed game, by the teacher, and their use in the
classroom. During the development of this game, a specific deck was created and its application is inspired by
the card game called “Pife”. Thus, this text, besides providing the material produced, aims to contribute to the
discussion on the instructional possibilities associated with the use of such a tool in the teaching of history.
Keywords: games, mythology, teaching of history.
Considerações Iniciais
1
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: gabicorrea.s@hotmail.com
manifestações culturais das sociedades passadas, no caso aqui da egípcia, de forma diversa
das abordagens de grande parte dos livros didáticos, que frequentemente privilegiam temas
relativos à política e à sucessão das dinastias e faraós. Nesse sentido, uma abordagem didática
que se detenha no estudo da religiosidade das sociedades antigas pode ser bastante
enriquecedora. Com isso, buscou-se investir na construção do raciocínio histórico por parte do
aluno em relação às temáticas estudadas, no sentido de que se partiu, por exemplo, do estudo
do conceito de monoteísmo, familiar para os adolescentes inseridos em uma sociedade
predominantemente cristã, para a compreensão das manifestações religiosas caracterizadas
pelo politeísmo.
Por outro lado, uma segunda reflexão que direcionou a criação do jogo deve-se ao fato
de que, ao longo do tempo de experiência como professora da escola básica, foi possível
observar que as temáticas relacionadas à mitologia – seja ela grega, romana, egípcia ou
nórdica – são atraentes para os jovens estudantes. Isso se deve a múltiplos fatores, entre os
quais a massiva exploração de tais conteúdos pela mídia em geral e pelos jogos eletrônicos.
Como é sabido, o espaço da sala de aula de história não tem o monopólio sobre os conteúdos
históricos e isso não precisa ser um obstáculo para a sua problematização na escola.
Ademais, em termos mais abstratos, sabemos que diversas são as relações possíveis
entre brincar e aprender. Embora não raro as palavras jogo e brincadeira sejam
acompanhadas, em nossa cultura, de status social rebaixado em função da associação entre
elas e inconsequência, improdutividade e prazer, a proposta de atividade aqui oferecida para o
debate parte do pressuposto de que brincar ou jogar apresenta um amplo campo de
possibilidades para o ensino de história, sendo este ato fundamentalmente formativo
(FORTUNA, 2013). Desse modo, o pife da mitologia egípcia pode ser uma ferramenta para
permitir a aprendizagem dos conceitos e sociedades passadas, para além do seu
reconhecimento (PEREIRA; GIACOMONI, 2013).
A opção por criar um jogo de cartas em plena era de amplo acesso às mídias sociais e
à internet foi consciente e estrategicamente refletida. Apesar da grande difusão da internet e
dos aparelhos de celular com tecnologia necessária para o acesso à rede entre os alunos, ainda
não é possível falar de uma universalização destes instrumentos entre os estudantes da escola
pública. Além disso, nem sempre a sala de informática das escolas da rede estadual existe ou,
se existe, está disponível para o uso de programas necessários para o uso de jogos eletrônicos.
Mas, é preciso apontar, há uma ampla gama de possibilidades de trabalho com os jogos
eletrônicos no ensino de história e elas podem e devem ser exploradas de acordo com o
contexto de cada escola.
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Com isso, podemos afirmar que as características fundamentais do jogo são: 1) ele é
uma atividade voluntária e não está sujeito a ordens; 2) o jogo é livre, é ele próprio liberdade;
3) o jogo não é vida “corrente”, nem vida “real”: é uma evasão da vida real para uma esfera
temporária de atividade com orientação própria: “Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de
absorver inteiramente o jogador.” (HUIZINGA, 2000, p. 12). O jogo é, portanto, um intervalo
em nossa vida quotidiana.
Outro traço importante do jogo é que ele cria ordem e é ordem, porquanto introduz na
confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma
ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu
caráter próprio e de todo e qualquer valor. Ademais, o jogo tem a habilidade de lançar sobre
nós uma espécie de feitiço: é fascinante e cativante. Está cheio das duas qualidades mais
nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia.
O elemento de tensão, por sua vez, desempenha no jogo um papel essencialmente
importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao
desenlace, o jogador quer que alguma coisa “vá” ou “saia”, pretende “ganhar” à custa de seu
próprio esforço. O jogo é tenso. É este elemento de tensão e solução que domina em todos os
jogos solitários de destreza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, os jogos de
armar, as paciências, o tiro ao alvo, e quanto mais estiver presente o elemento competitivo,
mais apaixonante se torna o jogo. Mas, apesar de seu ardente desejo de ganhar, o jogador deve
sempre obedecer às regras do jogo. Aquele que desobedece é o “desmancha prazeres”, que
priva o jogo da ilusão (palavra que significa ‘em jogo’ – de inlusio, illudere ou inludere). O
jogo, enfim, é carregado de um potencial mobilizador que, se bem explorado nas aulas de
história, pode contribuir para aprendizagens significativas.
Além de toda a caracterização que Huizinga desenvolve sobre o jogo, ele também
realiza uma análise sobre a sua presença na sociedade. Uma de suas manifestações é de
grande relevância para os objetivos desde artigo e do jogo que ele visa apresentar. Conforme
o autor, as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início,
inteiramente marcadas pelo jogo.
Um exemplo disso é o mito, que é também uma transformação ou uma “imaginação”
do mundo exterior. O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos
fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da
mitologia, há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira e a
seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto, verificaremos que as sociedades
primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados
a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo, tomando-se aqui
o verdadeiro sentido da palavra.
Tendo em vista que a atividade abordada neste artigo vale-se da mitologia egípcia
como forma de estudo de determinada sociedade antiga e considerando as reflexões do autor
aqui citado, é possível apontar que o pife da mitologia egípcia é jogo sobre o jogo, que pode
colaborar para a compreensão das crenças da sociedade egípcia. Nesse sentido, nas linhas que
seguem serão elaboradas algumas considerações sobre as relações entre religiosidade e
mitologia na sociedade egípcia, que foram levadas em conta na construção do plano de aula e
do pife da mitologia egípcia.
O jogo sobre a mitologia egípcia não caiu de paraquedas na sala de aula de história,
tampouco foi pensado sem experiências prévias. A ideia de sua criação surgiu depois de ter
trabalhado outras formas de jogo entre os alunos, como, por exemplo, uma espécie de quiz
temático, que consiste em um jogo de perguntas e respostas sobre quaisquer conteúdos, com
uma série de regras para a sua aplicação, que utilizei muitas vezes em diversos conteúdos. A
aplicação do quiz colaborou para consolidar minha percepção de que a potencialidade da
dinâmica dos jogos poderia ser melhor explorada no estudo da história. Daí a iniciativa de
incorporar outras atividades lúdicas ao plano de aula.
Assim, além dos temas tradicionais frequentemente ligados à história política também
surgem temas novos associados às demandas da atualidade, como, por exemplo, a história das
mulheres, das relações de gênero e da religiosidade. Além disso, na perspectiva do autor, é
pertinente investir nos aspectos lúdicos da atividade intelectual como história em quadrinhos,
palavras-cruzadas ou mesmo desenhos feitos pelos alunos.
Apesar das mudanças apontadas por Funari, de modo geral (há algumas exceções de
razoável qualidade) ainda reserva-se pouco espaço nos livros didáticos para o estudo da
religiosidade egípcia, que muitas vezes está inserida na seção “cultura”, a qual engloba
religião, engenharia, arquitetura, artes, medicina ou ainda se reduz à exploração das pirâmides
e da mumificação. É necessário destacar, contudo, que em muitos destes materiais vêm
incorporando excertos de fontes primárias que, mesmo não sendo devidamente exploradas
pelos autores do livro, podem subsidiar o estudo desta sociedade, se bem utilizadas pelo
professor. Além disso, alguns poucos também têm inserido o estudo da história egípcia em
um capítulo “Egito e outras sociedades africanas”, o que, apesar de reduzir as demais
sociedades africanas no rótulo genérico de outras, tem o mérito de marcar o pertencimento do
Egito ao continente africano, que não raro é pensado pelo senso comum como pertencente ao
continente europeu.
Este texto, entretanto, não quer se deter na já batida crítica ao livro didático, mas, sim,
apontar possibilidades outras de abordagem de conteúdos nem sempre privilegiados pelos
materiais disponíveis no ambiente escolar, o que, sabemos, de forma nenhuma se restringe ao
estudo do Egito Antigo. Com isso, entendo ser possível pensar no professor como um
profissional que, em geral, tem autonomia para selecionar e, por que não, produzir alguns de
seus suportes metodológicos.
Em relação aos novos temas apontados por Funari, são relevantes as reflexões de
Eliane Moura da Silva (2010). Para desenvolver o problema, é oportuno, então, ter em conta
o conceito de religião, que, para a autora, pode ser definido como um conjunto de crenças
dentro de universos históricos e culturais específicos. Dessa forma:
A autora, com base no Censo brasileiro de 2000, afirma que o Brasil é uma nação
cristã, de maioria católica, com forte crescimento dos evangélicos pentecostais: 73% da
população diz ser católica e 15,4%, evangélica. Somos, portanto, esmagadoramente cristãos
monoteístas.
Nesse sentido, não raro outras formas de religiosidade aparecem no discurso midiático
associadas a ataques terroristas ou ao uso das famigeradas burcas. Em geral, tais imagens
colaboram para que impere a incompreensão e o estereótipo. Para esta autora, pois, impõe-se
a necessidade de compreender o outro para além de seus véus e templos, rituais e orações. É
necessário que sejamos educados para entender os aspectos e a originalidade das religiões, as
formas de mobilização e como se situam no tempo e no espaço. Esta é uma tarefa urgente dos
professores e educadores preocupados com a tolerância fundamental para o respeito entre
pessoas.
O estudo de manifestações religiosas diferentes das predominantes pode contribuir,
acredito, para exercitar o olhar para a alteridade. Atividade complexa, mas para a qual o
conhecimento histórico tem muito a oferecer. A ênfase aqui dada aos cultos politeístas
egípcios é, evidentemente, apenas uma entre tantas possibilidades de pensar a questão, que
nem de longe a esgota. A fim de destacar algumas ideias centrais fundamentais para a
elaboração da primeira etapa do plano de aula indicado acima, serão expostas a seguir
algumas reflexões sobre a cultura e religiosidade egípcias.
De acordo com Margaret Bakos (2009), o Egito estava dividido em nomos, grandes
extensões de terras, onde se fundavam cidades (niwts) e aldeias (demis). Nessas
circunscrições, escribas e outros funcionários reais estabeleciam um organizado controle
sobre a produção agrícola e artesanal da região. Representados sobre a terra pelo Faraó, os
deuses presidiam a ordem cósmica, exprimida pela verdade – Maat – e pela justiça, tendo
cada nomo, cada cidade o seu deus protetor.
A agricultura era uma atividade fundamental entre os egípcios. Muitos mitos, por sua
vez, apontam para esta importância. Segundo a autora, o aproveitamento do vale fertilizado
pela aluvião do Nilo, através do trabalho braçal rotineiro e obrigatório do homem,
simbolizava a luta travada entre os deuses Osíris e Seth, com a vitória daquele através de seu
filho Hórus. Além do trabalho, o ser humano era convocado a contribuir para a vitória da terra
negra (vale fértil do Nilo) deificando e adorando as forças da natureza, mediante rezas e
oferendas cotidianas. O nível das inundações do rio Nilo (o ideal era uma enchente de sete a
oito metros), por seu turno, era vital para a população, uma vez que quando as águas voltavam
ao seu leito – no outono – a terra ficava coberta com um solo fértil adicional. Sobre este
assunto, é ilustrativo o seguinte comentário de Bakos:
No que se refere aos deuses criadores, cada cidade importante colocava o seu deus em
primeiro plano, sendo as mudanças dinásticas muitas vezes acompanhadas pela mudança da
capital. Tais acontecimentos obrigavam os teólogos na nova capital a integrar diversas
tradições cosmogônicas, identificando o principal deus local com o demiurgo. Quando se
estava às voltas com deuses criadores, a assimilação era facilitada pela sua semelhança
estrutural. Mas os teólogos elaboraram, além disso, sínteses audaciosas, assimilando sistemas
religiosos heterogêneos e associando-lhes figuras divinas claramente antagônicas.
Parece-me, nesse sentido, que um dos pontos fortes da argumentação de Eliade é que o
grande estudioso das religiões alerta para as descontinuidades dos cultos, de modo que chama
a atenção do leitor para a armadilha de homogeneizarmos as crenças dos egípcios que
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e então bater. Inicialmente, todos os jogadores recebem seis cartas. O jogador compra e
descarta uma carta por jogada. Se desejar, ele pode comprar uma carta do lixo, mas deve ficar
com todas as cartas que lá estavam, deixando apenas uma no lixo. Sendo assim, vence quem
fizer três pares e não ficar com nenhuma carta na mão além destes pares.
A propósito da atividade lúdica, é apropriado lembrar o que afirma Fortuna (2004).
Esta pressupõe a ação, provoca a cooperação e a articulação de pontos de vista, estimulando a
representação e engendrando a operatividade. Além disso, e fundamentalmente, as interações
que oportuniza favorecem a superação do egocentrismo, desenvolvendo a solidariedade e a
empatia e podem introduzir, através do compartilhamento de jogos e brinquedos, novos
sentidos para o seu uso. Com isso, está claro que o uso do jogo no ambiente escolar está
diretamente associado ao estímulo às interações. O pife da mitologia egípcia, por ser jogado
em grupos (de quatro a cinco jogadores), é um exemplo disso. Uma outa sugestão é que o
professor faça parte destes grupos (preferencialmente se deslocando entre eles) e tome parte
na brincadeira.
O pife da mitologia egípcia foi jogado por sete turmas de primeiro ano do Ensino
Médio. De modo geral, gerou relativo impacto utilizar a aula de história para simplesmente
jogar. Como já apontado anteriormente, a experiência do jogo nas aulas de história já havia
sido implementada nestas turmas, mas ainda não havíamos jogado durante todo o período.
Como esperado, a recepção foi múltipla e, evidentemente, nem todos os alunos acharam a
brincadeira tão divertida. Houve uma dificuldade inicial para completar os pares, visto que
para fazê-lo é necessário saber casá-los. Para facilitar esta tarefa, foram entregues cartas com
as regras do jogo e com todos os pares possíveis de serem combinados no baralho. Com o
suporte deste material, rapidamente a maioria compreendeu as regras do jogo e a forma de
jogá-lo.
Ressalte-se que, apesar das dificuldades iniciais, houve uma expressiva mobilização
dos estudantes no sentido de compreender o jogo e de tentar vencê-lo. É possível afirmar que,
nas palavras de Huizinga, o jogo absorveu inteiramente os jogadores e criou um intervalo em
nossa vida escolar quotidiana. Penso que foi, pois, uma atividade profícua no sentido de
concluir o estudo da sociedade egípcia brincando. Algumas turmas foram convidadas a opinar
sobre o jogo e, de forma sintomática, houve a frequente associação das palavras aprender e
brincar nas respostas. Por fim, me parece que também foi possível, através do pife da
mitologia egípcia, contribuir para que os alunos pudessem imaginar – criar imagens mentais –
sobre a sociedade estudada.
Da mesma forma que Carla Meinerz (2013), compreendo o jogo como prática cultural
que pressupõe a interação social, e esta temática foi explorada a partir do reconhecimento do
“potencial presente na apropriação do lúdico em experimentações pedagógicas de construção
do conhecimento histórico na escola.” (MEINERZ, 2013, p. 103). É fundamental, contudo,
ressaltar, como aponta a autora, que a proposta de uso de jogos em sala de aula não se quer
uma solução milagrosa para garantir o aprendizado e o desejo de estudar história. Ela vem
somar para diversificar a ação e não substituir propostas já existentes. Foi dessa forma que o
plano de aula acima exposto buscou introduzir esta possibilidade didática.
A fim de compartilhar e tornar acessível a experiência aqui relatada para aqueles que
desejarem reproduzi-la, segue nos anexos deste artigo o material produzido. Penso que o
sistema do pife é uma possibilidade para diversos conteúdos, não se restringindo em seu
formato apenas ao conteúdo abordado no plano de aula que este texto compartilhou. Dessa
forma, o professor/professora pode adaptar esta ferramenta, se assim o desejar, para outros
planejamentos e objetivos.
Considerações Finais
Referências
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2009.
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e das crenças religiosas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978, tomo I, vol. I, p. 109-140.
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“democratização” da imortalidade como um processo sócio-político. Dissertação de Mestrado,
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PEREIRA, N. M. & SEFFNER, F. “O que pode o ensino de história? Sobre o uso de fontes na
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Rá: http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A1#mediaviewer/File:Re-Horakhty.svg
Neftis: http://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%A9ftis#mediaviewer/File:Nepthys.svg
Osíris: pt.wikipedia.org/wiki/Osíris
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Resumo: O artigo desenvolve uma proposta de ação educativa que aborda objetos como possibilidades de fonte
histórica, relacionando discussões em torno da sua temática: História, Objetos e Memória. A ação utiliza-se, na
sua execução, da exibição de excertos de filmes para oferecer diferentes pontos de interpretação, discussão e
análise sobre como os objetos podem ser importantes fontes de memória e história. Entendemos que a memória é
um elemento de ligação entre o sujeito histórico e os fatos que o objeto pode evocar. Assim o intuito da ação é
promover, a partir disso, um ensino de história relacionando e envolvendo a realidade de visão do educando.
Palavras-chave: objeto, história, memória, educando, filme.
Abstract: The paper develops a proposal for action that addresses educational possibilities as objects of
historical source, relating discussions around its theme: History, Objects and Memory. The action is used in its
execution, the display of film clips to offer different points of interpretation, discussion and analysis of how
objects can be important sources of memory and history. Understanding that memory is a liaison between the
subject and the historical facts that the object can evoke. Thus the aim of the action is to promote, from this, a
related teaching history and involved the reality of vision of the student.
Keywords: object, history, memory, student, film
Apresentação
Este artigo visa demonstrar como foi planejada uma ação educativa que pode ser
realizada tanto em sala de aula, como em espaços de memória (arquivos, museus históricos
etc.), a partir de conceitos que são trabalhados tanto nas aulas de história como nas de
educação para o patrimônio, geralmente pouco vistas pelos estudantes dentro da escola. Além
de nossa conceituação, abordamos também, discussões e prognósticos, visto que toda
experiência possui seus limites enquanto relação de diálogo tanto com os estudantes, como
entre nós, educadores mediadores da atividade e autores do artigo.
1
Graduado Lic. História (UFRGS) – Téc. Assuntos Culturais – Museu de Comunicação Social Hipólito José da
Costa. Contato: gcaste@ig.com.br
2
Marcelo Bahlis – Graduando do curso de História (UFRGS) – Bolsista PIBID. Contato: bahlis_@hotmail.com
Para delimitar nossa abordagem que relaciona história, memória e objeto, entendemos
que é necessário conceituar tais termos para que o leitor consiga compreender a linha de
raciocínio que buscamos trilhar. Dentro da historiografia podem-se encontrar diversas
opiniões sobre os conceitos estudados e pensamos que seja importante situar as palavras
referentes aos conceitos utilizados ao longo do texto. Pensar o que é história e como é trilhado
este conhecimento científico ao diferenciá-lo da memória é um dos objetivos que passamos a
expor. Do mesmo modo, vamos demonstrar também como são utilizados estes conceitos em
uma metodologia de oficina educativa para a aproximação das reflexões que a mesma
pretende despertar.
Mesmo tendo o passado como matéria-prima de seu conhecimento, história e memória
carregam abordagens diferentes em seu uso e apropriações. Entende-se que, mesmo o passado
que já aconteceu, dentro de uma global infinidade totalizante de fatos particulares, coletivos,
relevantes ou não aos processos sociais, não significa que o mesmo seja sempre sinônimo de
história. O que nos interessa aqui é o sentido que este passado adquire. Como primeiro passo,
trilhamos um breve caminho de conceituar minimamente o que é história e como se dá o seu
fazer, ao criar uma oposição entre esta ciência e outras formas de conhecimento.
Dado? Não, criado pelo historiador e, quantas vezes? Inventado e fabricado, com a
ajuda de hipóteses e conjecturas, por um trabalho delicado e apaixonante... Elaborar
um fato é construí-lo. Se quisermos, uma questão dá-nos uma resposta. E, se não há
questão, não fica mais que o nada (LE GOFF, 1990, p. 31).
Passado não é história e também não é memória. O passado é o tempo que passou
[...] que somente toma sentido quando o tomamos através de fragmentos, de
vestígios, de documentos e o atualizamos, desde nosso presente. [...] A verdade não
está, então, no passado, mas no discurso. A História não é o passado, mas o discurso
que o presente nos permite construir sobre o tempo que passou (PEREIRA, 2014, p.
83).
Enquanto a história possui seus métodos de pesquisa e tenta reconstruir dentro de seus
limites com o foco nos fatos, aquilo que já não existe mais, a memória só retém do passado
aquilo que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém
(PETERSEN, 2013, p. 313). Cabe ressaltar aqui que entendemos a memória como objeto da
história, material do conhecimento, fonte para a pesquisa histórica, que privilegia delimitar as
rupturas e acidentes do passado, enquanto a memória trazida ao presente pelos grupos que a
preservam, é caracterizada pelo sentido de continuidade, onde não se destaca as
singularidades de cada período passado. Mary Del Priore reflete sobre o trabalho do
historiador e diz que "sabemos que a memória resgata o passado para servir ao presente e ao
futuro. Está aí uma boa razão para nos preocuparmos com ela" (PRIORE, 2006, p. 51).
Foucault contribui para a presente discussão e buscamos na Microfísica do Poder um
fragmento de um texto seu sobre o fazer do conhecimento histórico através da genealogia:
conhecemos ou do que nós somos não existe a verdade e o ser, mas exterioridade do
acidente (FOUCAULT, 2012, p. 21).
Aprender História pode significar tanto saber sobre um passado estranho, que nos
inspira à criatividade, quanto a um pensar nosso, presente, como experiência
singular, que faz com que tenhamos que pensar criativamente sobre nosso modo de
vida (PEREIRA, 2014, p. 100).
Seguindo neste modo de pensar, queremos destacar o papel importante que tem o
conhecimento construído junto aos estudantes, ou seja, o de incluir a percepção da
singularidade de cada momento histórico e de cada experiência individual que serve para a
ligação entre os estudantes e a matéria História. Destarte, propomos uma atividade que tenha
nos objetos, o disparador para se pensar as memórias individuais de cada aluno. Visto que,
cada experiência pessoal pode ter algum potencial gerador contribuinte para o interesse da
análise do motor da história e, assim como escreve Nora: “o dever da memória faz de cada
uma o historiador de si mesmo” (NORA, 1993, p. 17). Nesta mesma linha de raciocínio,
entende-se que a memória é um elemento pessoal conector na relação entre o objeto e o
sujeito que constitui o conhecimento histórico: “a memória individual, assim como a memória
coletiva, são na verdade a fonte e a base fundamental para o pleno exercício de nossa vida
consciente e de nossa inserção na vida social” (HORTA, 2000, p. 28). Assim não podemos
desprezar a carga de vida contida nos sujeitos educandos, pois:
Ramos escreve: "Na medida em que são vestígios do passado recente ou mais
longínquo, os objetos também se constituem em um ‘cruzamento de itinerários possíveis’”
(RAMOS, 2004, p. 62). Os objetos carregam historicidade e não falam por si. Seus diferentes
usos ao longo da história podem nos mostrar que são fontes que devem ser criticadas. Torna-
se tempo de não mais nos pensarmos como sujeitos autocentrados, onde se pensa
condicionadamente os objetos apenas como dominados para uso humano. Desejamos assim
como Ramos “uma nova ‘abertura ecológica’, capaz de enxergar a vida que há nos objetos”
(Idem, p. 61). Pensando assim, os objetos existem enquanto relacionados com a humanidade e
vão ser o ponto de partida e encontro da ação educativa em voga.
Temos o hábito de querer entender a história contida nos documentos e nos
esquecemos de nos ater ao fato de que os objetos também têm história para contar. Pois, afinal
de contas, vivemos cercados de objetos, seja através do uso, seja pela produção dos mesmos.
O homem nunca foi o animal mais forte, mais veloz ou mais adaptado. Porém o
desenvolvimento da sua capacidade de pensar e fabricar objetos levou-o a sobrepujar as
dificuldades do ambiente produzindo meios e formas para superá-lo, driblá-lo e, até mesmo,
destruí-lo ou alterá-lo. Desta forma percebe-se que a humanidade está sempre produzindo
objetos para “facilitar a vida” e acelerar os processos produtivos. A questão é que a tecnologia
está sempre em transformação, assim como os costumes humanos que se modificam,
tornando-se normal a substituição dos objetos que nos cercam de tempos em tempos. Isso faz
vir à tona, na disciplina de história, a pertinente discussão sobre a atualidade da sociedade de
consumo, a qual não podemos ignorar, deixar de historicizar, ou mesmo, contextualizar para
compreender a nossa relação com os objetos através do tempo. Como aponta Ramos:
Assim, demonstrar a historicidade que está contida nos objetos é um dos principais
intentos desta ação. Entretanto, não somente do modo mais usual. Ou seja, o objeto e a sua
trajetória fabril (que marca era? De que elemento foi feito? Fabricação?), mas a sua relação
para com os sujeitos históricos como uma forma de “testemunha simbólica” de determinado
feito, um conector para o acionamento da memória pessoal relacionada a um fato ou processo
histórico. Trazendo à tona para os educandos a abrangência do fazer histórico, através da ação
e do contato com os objetos.
Segundo Ramos, é de fundamental importância para a compreensão da história,
desenvolver a capacidade de ler objetos:
No cotidiano, usamos uma infinidade de objetos: desde a televisão até uma roupa.
Por outro lado, pouco pensamos sobre os objetos que nos cercam. Se pouco
refletimos sobre nossos próprios objetos, a nossa percepção de objetos será também
de reduzida abrangência. Sem o ato de pensar sobre o presente vivido, não há meios
de construir conhecimento sobre o passado. E o próprio conhecimento do já
pressupõe referências ao pretérito (RAMOS, 2004, p. 21).
Pensando sob esta orientação, que dá aos objetos um caráter de fonte histórica tanto
como os documentos, é que pensamos a atividade a ser desenvolvida com os alunos de Ensino
Médio da Escola Estadual de Ensino Médio Irmão Pedro, localizada no bairro Floresta, em
Porto Alegre. Mais do que nunca os objetos devem ser historicizados tanto em sala de aula,
como no museu e pensar este debate com os jovens torna-se fundamental para uma nova
abordagem deste aspecto da história, capaz de enriquecer as competências multidisciplinares
dos educandos no desenvolvimento das atividades na sala de aula.
A metodologia da Ação
O professor deve agir e interferir nessa relação do aluno com a imagem, estimulando
o seu potencial de crítica. Essa é a obrigação que se tem de criar condições para
ressaltar, esclarecer, instigar à luz das referências já existentes, os
conhecimentos adquiridos que permitam a leitura da película. (CASTRO; BONOW;
LUCAS, 2002, p. 170)
comentar a função de reflexão que os estudos sobre cultura material trazem, pressupondo
exatamente isto: a vida que há nos objetos, a historicidade constitutiva dos objetos, que
permite novas aventuras para o ato de conhecer o nosso mundo e o mundo de outros tempos e
outros espaços (RAMOS, 2004, p. 151-152).
Isto posto, passamos a próxima parte do texto que vai expor como são propostas as
reflexões sobre os excertos dos filmes exibidos aos educandos. Cada trecho é projetado aliado
a um ponto de reflexão que está exposto nos subtítulos que se seguem. Após cada exibição é
aberta a roda de discussões para que se lavre o terreno de interpretação que os educandos
perceberam ao observar o ponto escolhido do filme tendo como ponto de pauta a frase guia
que media os diálogos possíveis do debate.
Quando se aborda uma bala de arma de fogo como objeto que serve como fonte
histórica, se aborda a capacidade de criação da produtividade humana, não apenas para o bem
e para o útil, mas também para a destruição. Pois, no filme, o objeto (o projétil) é abordado
como um meio para se apresentar um contexto, criando-se uma atmosfera de rotina onde “a
bala” vai de lá para cá sendo produzida, selecionada, armazenada e transportada. Inclusive
passa por perigos ao quase cair no mar, mas no final, o destino de uso deste objeto na sua
peculiaridade se cumpre e a bala vai ser usada em um conflito. Ela é carregada junto a outras
balas “irmãs” que são disparadas. Ela, a bala, poderia ter sido lançada ao ar, ser usada para
treinar alvo, poderia terminar na carroceria de um carro ou mesmo no reboco de uma parede,
mas de todos os destinos possíveis ela consegue atingir um ser humano de forma fatal,
causando um choque nos desavisados que se deixavam levar por uma simples abertura dos
créditos da película.
Nossa vida é um museu. Um objeto, uma ou várias memórias? Uma vida iluminada
Seriam duas cenas do início do filme onde o personagem Wall-E está no planeta Terra
devastado e cheio de lixo para compactar e, em meio a este contexto, ele interage de forma
inusitada e engraçada com vários tipos de objetos que foram deixados para trás tentando
assim entender como eles funcionavam ou como eram utilizados e, deste modo se sentir
menos solitário. Ao final destas cenas ele entra na sua “casa” e lá nos deparamos com
inúmeros objetos colocados em uma ordem de classificação tal qual uma “reserva técnica” de
museu.
Percebe-se que este lugar (a casa de Wall-E) é quase um gabinete de resgate da
história humana na Terra através de objetos diversos. O interessante deste excerto é que ele
facilita introduzir, junto aos educandos, sobre o que se pode deduzir de alguém ou algum
lugar, somente pela investigação dos objetos. Colocar os educandos para imaginar a Terra
sem a existência humana, sobrando apenas os objetos para "contar a história" é algo bem
interessante para a reflexão, pois como a nossa história, sem a nossa presença para explicar,
seria interpretada?
entra em contato e refletir: este documento realmente fala quem ela é, ou foi? O que passou?
O que a fez sofrer? O que a fez feliz? O que a fez lutar? O que a calou? O que ela viveu?
Diante disto, refletir com os educandos: pensem vocês, o que querem deixar para que
se lembrem de vocês no futuro? Será que só um documento poderia falar o que vocês foram?
Pontos como estes podem render uma discussão fértil sobre o que eles pensam sobre o que vai
ser deixado pelo protagonismo deles, assim como, o que eles estão vendo sobre aqueles que já
viveram.
parte do que nós somos. Saber disto é parte do transcender, é parte do avanço no processo de
nós. Como ressalta Ramos:
O mais importante é dialogar com o que já foi feito, para quem e contra quem foi
feito. Tratar a cultura em sua constituição conflituosa, dialogar com o passado, não
para sentir saudade ou tentar salvá-lo do esquecimento, mas para interpretá-lo como
fonte de conhecimento a respeito das nossas idas e vindas nos mapas da
temporalidade. Se vamos apagando as marcas do pretérito, perdemos o potencial
educativo de experimentar as diferenças temporais, de sentir a estética do tempo
como forma de entender o que éramos, o que somos e o que poderemos ser
(RAMOS, 2008, p. 188).
A ação usa o conceito prático de memória para puxar como o educando também é
produtor e protagonista dos processos da história. Então, ao se fazer a aproximação entre
história e o sujeito educando, a questão sobre como a memória se faz útil é importante quando
se realiza esta oficina. Pois a memória é pessoal e acaba trazendo o educando pelo emotivo,
ou seja, é a relação pessoal deste sujeito com algum elemento do vestígio humano que ajuda a
despertar nele a sua noção de inclusão como sujeito protagonista num todo histórico.
Consequentemente, a finalidade desta ação é inserir problematizações que gerem
reflexões sobre a nossa condição de criaturas e criadores no tempo.
Conhecer o passado de modo crítico significa, antes de tudo, viver o tempo presente
como mudança, como algo que não era, que está sendo e que pode ser diferente.
Mostrando relações historicamente fundamentadas entre objetos atuais e de outros
tempos, o museu e a sala de aula ganham substâncias educativas, pois há relações
entre o que passou o que está passando e o que pode passar (RAMOS, 2008, p. 190-
191).
Assim, esta ação põe em evidência nos espaços educativos formais e não formais
(escola, espaços de memória, museus etc.) a questão na qual à medida que vivemos não
consideramos o que fazemos ser significante, a ponto de acreditar que não historicizamos as
coisas ao nosso redor, mas historicizamos sim! Hoje realizamos isso o tempo inteiro com o
nosso cotidiano, seja por meio das “coisas velhas” que guardamos no fundo dos nossos
guarda-roupas, seja com postagens de fatos e fotos nas redes sociais. Isto acaba sendo uma
forma, digamos, descompromissada de criar uma narrativa sobre nós mesmos.
A historicização da vida nem sempre precisa ser reduzida a conceitos de como
devemos interpretar os fatos ditos históricos. O ponto é considerar com respeito o
conhecimento trazido pela carga de vida do sujeito educando, valorizando e compreendendo
outras formas pessoais de apropriação da história. Do mesmo modo, problematizar junto aos
mesmos como Nora ao definir memória e história:
Memória e história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe
uma a outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os
usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.
A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe
mais. A memória é um fenômeno sempre atual um elo vivido no eterno presente; a
história, uma representação do passado. [...] A memória se enraíza no concreto, no
espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a
história só conhece o relativo (NORA, 1993, p. 9).
A questão também é produzir uma ação que vá além do curioso, que seja uma
experiência inclusiva de reflexão, situando o educando também enquanto sujeito participante
do processo histórico. A identificação pela diferença nos parece ser o horizonte do ensino de
História, ao dialogar com os estudantes sobre a valorização dos contextos históricos
analisados. Para não cometer o erro do anacronismo histórico de transportar para o passado as
características do tempo atual. A pessoa que estuda história deve estar ciente da singularidade
do presente, assim pode notar que nada é permanente para o estudo da história, porém deve-se
estar atento ao fato que as recordações e os objetos não possuem tal lógica. Portanto,
buscamos com essa atividade expor aos estudantes que a história se encontra ao seu redor e
dentro de cada um e manejar estas identidades e apropriações são maneiras de estar
consciente de sua individualidade ou do campo de forças em perpétua disputa que caracteriza
os homens.
Ora, a proposta aqui defendida para as políticas patrimoniais e, especialmente, para
as políticas museológicas, não se ancora na preservação de uma suposta “identidade
cultural” ou do “resgate do nosso passado”, e sim no direito a diversidade histórica,
o direito à multiplicidade das memórias como pressuposto básico para a construção
de um potencial crítico diante da nossa própria historicidade. Assim, a preservação
tem o intuito de dar a todos nós o direito de saborear a diferença, de perscrutar as
marcas de outros tempos, criando em nós a consciência de que somos seres
historicamente constituídos. Se vamos apagando a materialidade do pretérito, que
está, por exemplo, na própria configuração urbana vamos esvaziando o jogo do
tempo, aniquilando o processo educativo de entrar em contato com o tanto de
experiência vivida que pode ser encontrada no mundo dos objetos (RAMOS, 2008,
P.188).
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. Rua de mão única. 3 ed. São Paulo: Brasiliense,
1993.
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CASTRO, Nilo André Piana de; BONOW, Stefan Chamorro; LUCAS, Taís Campelo.
Imagens da história na indústria cinematográfica. IN: PADRÓS, Henrique Serra (org.).
Ensino de história: formação de professores e cotidiano escolar. Porto Alegre: EST, 2002,
p. 163-180.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 25ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Graal,
2012.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Introdução ao estudo da História: temas e textos - Porto
Alegre: Edição das autoras, UFRGS, 2013.
Referência Cinematográfica
CHEIRO do ralo, O. Direção: Heitor Dhalia. Estúdio: Branca Filmes; Geração Conteúdo;
Tristero Filmes, 2006
UMA vida iluminada. Direção: Liev Schreiber, Estúdio: Warner Bros., 2005.
Resumo: A proposta do artigo consiste em abordar a busca pela salubridade no Rio Grande do Sul da Primeira
República articulando estudos produzidos pela historiografia e fontes documentais relacionadas ao trabalho do
governo na área da Saúde Pública, dentro do marco cronológico de 1889 a 1930. Na abordagem do tema,
pretendo usar os conceitos foucaultianos de medicina social e governamentalidade para analisar ideias e ações
do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) em prol da salubridade da população.
Palavras-chaves: Historiografia; Saúde Pública; Rio Grande do Sul; Primeira República.
The Government and the quest for health in Rio Grande do Sul the First Republic
Summary: The aim of this paper is to address the quest for health in Rio Grande do Sul the First Republic
disseminating studies produced by historiography and documentary sources related to government work in the
area of Public Health, within the chronological marker from 1889 to 1930. In addressing the issue, intend to use
Foucault's concepts of governmentality and social medicine to analyze ideas and actions Rio-Grandense
Republican Party (RRP) for supporting the health of the population.
Keywords: Historiography; Public Health; Rio Grande do Sul; First Republic.
1
Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Bolsista, modalidade: CAPES – PROSUP. Professor de História na rede municipal de São Leopoldo. E-
mail: fabianoqr@yahoo.com.br
[...], a política adotada, no Rio Grande do Sul, em relação à saúde teve como
principal preocupação o saneamento das cidades, principalmente as três maiores,
Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Esses centros precisariam de obras de
abastecimento de água e esgoto subterrâneos, que dependiam de avultadas somas, o
que teria provocado o atraso na execução, segundo as falas do governo. A realização
dessas obras e de outras medidas de saúde não deviam prejudicar os cofres públicos,
executando as medidas dentro das possibilidades condizentes com a divisa
“conservar, melhorando”. (WEBER, 1999, p. 54)
2
Sobre este assunto, a autora afirmou que: “O governo gaúcho defendia que cada indivíduo deveria ser educado
nos princípios da ciência para, então decidir o que adotar quanto à sua saúde. Nessa perspectiva, mantinha-se a
defesa da liberdade profissional especialmente quanto à Medicina, que, junto com a liberdade religiosa, permitiu
que se instalassem diversas práticas de cura no Estado ao longo das quatro primeiras décadas da República.”
(WEBER, 1999, p. 32).
3
Decreto n. 44, 02 de abril de 1895. AHRS. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado, p. 626.
Querer atribuir o incremento da varíola, que foi a única epidemia que estragos fez,
exclusivamente às condições insalubres do nosso meio, é inadmissível.
4
O jornal Echo do Sul circulou entre 1858 e 1934, foi criado na cidade de Jaguarão e posteriormente transferido
para a cidade do Rio Grande. Segundo o historiador Francisco das Neves Alves, no começo da República, o
jornal manteve uma postura de resistência ao governo do PRR, “[...] combatendo os situacionistas em alguns dos
mais graves momentos que marcaram a agitada transição Monarquia-República na conjuntura rio-grandense-do-
sul. Contrário ao sistema castilhista-borgista, o periódico manteve este espírito oposicionista mesmo após o
encerramento da Revolução Federalista. Somente a partir do final da primeira década do século XX, o diário rio-
grandino promoveria uma mudança em sua conduta editorial, no intento de adaptar-se à nova fase em que
adentrara o jornalismo, através da proposta de manter-se como uma publicação “independente” de vínculos
partidários, buscando garantir, assim, a sua sobrevivência, a qual se estenderia até a década de 1930 (ALVES,
2005, p. 73).
5
No período da Primeira República a Intendência exercia a administração pública municipal na esfera do Poder
Executivo; neste período, em cada município do Brasil, havia um Intendente eleito para coordenar os trabalhos
do Executivo.
6
O Conselho Municipal era composto pelos vereadores e representava o Poder Legislativo no âmbito dos
municípios.
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
368
[...] entre 1880 e 1911, os óbitos e sepultamentos na cidade ocorreram numa linha
ascendente, cujos maiores picos coincidem com surtos epidêmicos, causados por
diferentes moléstias, tais como o cholera, a peste bubônica, mas principalmente a
varíola. Nesse ínterim, é relevante destacar os estudos desenvolvidos por W. R.
Hearn, ex-cônsul inglês e pelo clínico Augusto Duprat, em cujo relatório enviado à
Inglaterra em 1897, afirmaram que os coeficientes de mortalidade no Rio Grande
oscilavam entre 37 e 53 por mil, superior ao das mais infectas cidades da Índia e do
Oriente, como das mais populosas da Europa, no mesmo período. (QUARESMA,
2012, p. 105-106).
O que acontecia na cidade portuária do Rio Grande, não deve ser considerado uma
exceção para o Estado do Rio Grande do Sul na época. Centros urbanos como Porto Alegre,
Santa Maria8 e Pelotas9 também apresentavam condições precárias de salubridade e
provocavam a preocupação da comunidade médica gaúcha.
7
Relatório do Capitão Dr. Juvenal Octaviano Miller Intendente do Município, apresentado ao Conselho
Municipal em sessão de 4 de setembro de 1905 e correspondente ao período de 1º de julho de 1904 a 30 de junho
de 1905. Rio Grande: O Intransigente, 1905, p. 9.
8
Sobre as questões referentes a salubridade e a Saúde Pública na cidade de Santa Maria, recomenda-se o estudo
dos seguintes textos: Saneamento urbano em Santa Maria (QUEVEDO, 2003); A peste em Santa Maria: a
cidade sitiada,1912-1924 (PRESTES, 2010) e Santa Maria e a Medicina na passagem do século (WEBER;
QUEVEDO, 2001).
9
A situação sanitária em Pelotas – segunda maior cidade do Rio Grande do Sul no período da Primeira
República – foi abordada por Lorena Almeida Gill, no estudo intitulado Um mal de século: tuberculose,
tuberculosos e políticas de saúde em Pelotas (RS) 1890-1930. (GILL, 2004) e no artigo A cidade de Pelotas (RS)
e as suas epidemias, 1890-1930. (GILL, 2010).
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
369
realização dos despejos fecais no Arroio Santa Bárbara, próximo ao núcleo urbano da cidade.
No entanto, em 1905, o Centro Médico de Pelotas denunciou na imprensa o aparecimento de
casos de Febre Tifóide na área em torno da Xarqueada Valladares e considerou estes casos
como consequência dos despejos feitos pelo Serviço de Asseio Público naquele local. A
posição do Centro Médico foi rebatida pelo então Delegado de Higiene Municipal, Dr. José
Calero, em uma matéria publicada no jornal Opinião Pública, no dia 2 de junho de 1905.
Com bases nas estatísticas da Diretoria de Higiene, Calero alegou que os despejos de “
materias fecaes” feitos pelo Asseio Público, não poderiam ter provocado o elevado
número de casos de Febre Tifóide em Pelotas. Segundo Calero, os casos registrados no 1º
Distrito de Pelotas seriam procedentes “de uma fonte denominada de Prainha, de onde se
supriam de água os estabelecimentos em que teria se manifestado a doença”, e a partir desta
fonte e da circulação de trabalhadores na área, a doença teria alcançado o 2º Distrito. (GIL,
2005, p.12)
As discussões produzidas em torno da encampação do Asseio Público em Pelotas
indicam que no começo da República existiam diferentes teorias que explicavam a
transmissão de doenças. Segundo George Rosen, no final do século XIX, os médicos estavam
divididos entre a “teoria miasmática ou infeccionista”, que relacionava as epidemias com a
atmosfera; a “posição contagionista estrita” que via nos contágios específicos a causa de
surtos infecciosos e epidêmicos; e a teoria do “contagionismo limitado ou contingente” que
articulava a atuação de agentes particulares (os micróbios e bactérias) e condições gerais do
ambiente para a transmissão de uma determinada doença (ROSEN, 1994, p. 202). A
coexistência dessas teorias é um fator importante para explicar o interesse do PRR pela
manutenção da salubridade urbana – interesse que justificava os investimentos do poder
público na limpeza urbana, no saneamento, na fiscalização de alimentos e nas práticas de
desinfecção.
A atuação do PRR na área da saúde pública não era sustentada apenas pela influência
do positivismo, ela também encontrava respaldo nas discussões de epidemologia que estavam
em curso na época. Neste sentido, é importante ressaltar que uma parte da comunidade
médica sul rio-grandense discordava da política de saúde pública do PRR, sobretudo no que
diz respeito ao livre exercício da Medicina e à relutância do governo para interferir nas
práticas de cura da sociedade.
A existência de médicos que criticavam o trabalho do PRR foi abordada Lizete
Oliveira Kummer. Na sua pesquisa, a autora destacou a mobilização da Faculdade de
13
A regulamentação contrariava o princípio positivista de liberdade profissional e, consequentemente, era objeto
de divergência entre a cúpula do PRR e membros da comunidade médica gaúcha.
14
A leitura da Dissertação de Kondörfer nos permite afirmar que o discurso higienista do PRR apresentava
semelhanças com o discurso produzido pelo governo estadual de São Paulo no respectivo período. A
comparação pode ser feita com base no livro de Heloísa Pimenta Machado, intitulado A higienização dos
costumes: educação escolar e saúde no projeto do projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (1918-1925).
Comparando os dados obtidos pela Fundação Rockefeller no Rio Grande do Sul com
os obtidos em outros estados brasileiros, Kondörfer observou uma diferença importante: no
Rio Grande do Sul, 64% das pessoas examinadas afirmaram “possuir algum tipo de instalação
sanitária, enquanto em Minas Gerais esse índice era de 7,5% e em São Paulo, de 24,2%.”15 A
diferença destacada, apesar de expressiva, não deve ser considerada como indicativo de maior
salubridade urbana nas cidades gaúchas, pois sabemos que durante o período da cooperação
entre o Rio Grande do Sul e a Fundação Rockefeller (1920-1923), apenas os municípios de
Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas possuíam redes de esgoto construídas.
No começo da década de 1920, alguns municípios gaúchos possuíam o serviço de
Asseio Público para remoção dos cubos e latrinas com matérias fecais e, através deste serviço,
buscavam preservar a salubridade urbana. Diante da precariedade do saneamento na maior
parte das cidades gaúchas, a decisão do governo estadual em firmar o acordo de cooperação
entre a Fundação Rockefeller pode ser interpretada como um movimento do poder público na
15
É interessante ressaltar que esta diferença observada pela autora não foi considerada pelos técnicos da
Fundação Rockefeller como um fator importante na interpretação dos baixos índices de ancilostomíase
encontrados no Rio Grande do Sul (KONDÖRFER, 2012, p. 182).
direção de uma política de saúde pública mais pautada em critérios técnicos e científicos.
Seguindo esta linha de interpretação, a presença dos norte-americanos realizando exames de
saúde e promovendo palestras de educação higiênica para a população gaúcha, foi uma forma
de qualificar o trabalho do governo estadual, sobretudo no que diz respeito à produção das
estatísticas sanitárias - peças fundamentais no planejamento e execução de políticas públicas
na área da saúde.
observada é que a vacinação em larga escala, adotada pelos ingleses na segunda metade do
século XIX, também não encontrava espaço no modelo de saúde pública do PRR devido a
influência do positivismo na cúpula do Partido Republicana Rio-Grandense.
Prosseguindo no exercício comparativo, podemos observar que uma semelhança entre
o surgimento da medicina social na Europa e as ações do PRR no governo do Rio Grande do
Sul estava na preocupação do poder público gaúcho com a salubridade urbana. Foucault
considerou esta preocupação como uma das principais marcas da medicina europeia nos
séculos XVIII e XIX.16 No caso específico do Brasil, importa ressaltarmos que o interesse do
governo pelos fatores que prejudicavam a saúde da população urbana não foi uma invenção
dos republicanos. O interesse já existia no período imperial quando as municipalidades
atuavam na promoção da higiene pública respaldadas pelo Regulamento das Câmaras
Municipaes do Império e auxiliadas por Comissões de Higiene Pública de âmbito
provincial.17
Neste sentido, podemos afirmar que o PRR optou pela continuidade de um modelo de
saúde pública que atribuía aos municípios à maior parte das responsabilidades na prevenção
das doenças. O efeito colateral desta opção foi a insuficiência dos recursos financeiros
municipais. O efeito positivo foi que as municipalidades passaram a dedicar maior atenção ao
problema do saneamento, sobretudo quando a ciência passou a reconhecer o papel da água na
transmissão de doenças como a Cólera e a Febre Tifóide.
O município de Porto Alegre foi o primeiro a enfrentar o problema do saneamento de
forma mais incisiva através da encampação do Asseio Público e da construção da Ferrovia do
Riacho para afastar o despejo dos cubos com “materias fecaes” da área central da cidade. A
decisão de construir a Ferrovia do Riacho foi baseada no parecer de uma Comissão Médica
consultada pela Intendência em 1893, esta Comissão recomendou que os cubos do Asseio
16
Na sua análise sobre o processo de implantação da medicina social na Europa, Michel Foucault destacou a
preocupação do governo com a salubridade da população. Para promover a salubridade, tornou-se necessário
“[...] estar atento a tudo o que possa causar as doenças em geral. Vai ser então o caso, principalmente nas
cidades, do ar, do arejamento, da ventilação, estando tudo isso evidentemente ligado a teoria dos miasmas, e
vamos ter toda uma política de um novo equipamento, de um novo espaço urbano que será submetido,
subordinado a princípios, a preocupação de saúde: largura das ruas, dispersão dos elementos que podem produzir
miasmas e envenenar a atmosfera, os açougues, os matadouros, os cemitérios. Portanto toda uma política do
espaço urbano ligada a esse problema de saúde.” (FOUCAULT, 2008, p. 436)
17
Como exemplo do trabalho do governo imperial na promoção da saúde pública, tomando o Rio Grande do Sul
como referência espacial, importa citar a dissertação de Mestrado de Vladimir Ferreira Ávila, intitulada Saberes
históricos e práticas cotidianas sobre o saneamento: desdobramentos na Porto Alegre do século XIX (1850 –
1900). Ávila analisou correspondências da Câmara Municipal e da Comissão de Higiene da Província e
encontrou divergências de prioridades entre essas duas esferas do poder público. Para os interessados no assunto,
recomenda-se também a leitura da tese de Nikelen Acosta Witter, intitulada Males e Epidemias: sofredores,
governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX).
Público fossem despejados no local conhecido como Ponta do Dionísio, cerca de doze
quilômetros da área central de Porto Alegre (MACHADO, 2010). Em 1895, as obras estavam
avançadas e havia previsão de inaugurá-las no ano seguinte, mas problemas de ordem
fundiária e danos provocados pelas cheias do Guaíba protelaram a sua inauguração e
demandaram modificações no traçado da ferrovia. Depois de um litígio judicial entre a
Intendência e José Joaquim de Assumpção, proprietário das terras onde a municipalidade
pretendia realizar o despejo dos cubos, o traçado da estrada foi redirecionado para a Ponta do
Melo. (ÁVILA, 2010, p. 168-169)
Prosseguindo no seu objetivo de melhorar a salubridade urbana, a Intendência
encampou a Companhia Hydraulica Guahybense em 1904 e iniciou o serviço público de
abastecimento de água (RÜCKERT, 2013). A construção da rede de esgoto na área central da
cidade, discutida pelas autoridades políticas ainda no final do século XIX, foi executada no
período de 1907 a 1912. Mas apesar das diversas ações da municipalidade em prol da
salubridade urbana, Porto Alegre continuou apresentando índices elevados de mortalidade ao
longo da Primeira República.18
Tornar o espaço urbano salubre não era uma preocupação exclusiva da Intendência de
Porto Alegre. A cidade de Pelotas seguiu o mesmo caminho que a capital do estado e iniciou
estudos para a construção de uma rede de esgoto ainda no período imperial. Em 1889, o
governo provincial aprovou o projeto de saneamento elaborado pelo engenheiro Howyan por
solicitação da municipalidade de Pelotas.19 Com a Proclamação da República, coube aos
republicanos conduzir a execução das obras. E para a decepção da sociedade pelotense, o
Projeto Howyan foi considerado tecnicamente incorreto pela empresa contratada para a sua
construção e foi abandonado pela Intendência (XAVIER, 2010).
Iniciou-se então, um novo e demorado ciclo de estudos que contou com um projeto do
engenheiro Guilherme Ahrons, passou pela encampação da Empreza de Asseio Público
(1903) e da Companhia Hydraulica Pelotense (1908) e culminou com o projeto do engenheiro
18
Os dados apresentados por Weber comprovam esta afirmação: “O coeficiente de mortalidade por mil
habitantes manteve-se elevado ao longo de todo o período, principalmente na capital. Porto Alegre apresentava,
em 1913, um elevado índice de mortalidade, 25.70, se comparada a outras cidades como, por exemplo, o Rio de
Janeiro, com um índice de 20.85, ou Londres, de 14.62, ou Buenos Aires, de 15.50.” (WEBER, 1999, p. 62).
19
Sobre o projeto de Howyan, Saturnino de Brito afirma que: “Em fevereiro de 1887 a Câmara de Pelotas
convidou engenheiros de todos os países a apresentarem um projeto de esgotos para a cidade. Uma comissão de
médicos, engenheiros e outras pessoas competentes escolheram o projeto do engenheiro G. Howyan em agosto
de 1887 e esse ato foi aprovado pela Assembleia [...]. Um projeto de lei mandando executar os trabalhos foi
imediatamente sancionado pelo Presidente da Província, representando o governo. [...] O sistema era unitário.
Não foi encontrada a memória descritiva do projeto, mas um relatório do autor, datado de 07 de fevereiro de
1891, [...].” (BRITO, 1944, p. 85. Vol. XIII)
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
376
Alfredo Lisboa, aprovado pela municipalidade e pelo governo estadual em 1910.20 As obras
realizadas a partir do projeto de Alfredo Lisboa mudaram a condição sanitária de Pelotas em
dois aspectos: ampliaram a oferta de água (atendendo a uma antiga demanda da população) e
proveram a cidade de uma rede de esgoto. A construção da rede de esgoto possibilitou o
gradual abandono do Asseio Público e foi uma expressiva interferência do governo nos
hábitos de higiene da população pelotense.
Rio Grande foi o terceiro município do estado que se mobilizou para obter projetos de
saneamento. Depois de registrar por diversas vezes a necessidade de ampliar o abastecimento
de água e de construir uma rede de esgoto, a Intendência contratou o engenheiro Francisco
Saturnino Rodrigues de Brito para elaborar um plano de saneamento para a cidade. Em 1909
Saturnino de Brito apresentou o Projeto de Saneamento do Rio Grande, propondo um
conjunto de obras para o abastecimento de água e outro para a construção da rede de esgoto.
O Projeto de Saturnino de Brito, apesar de aprovado pela municipalidade e pela Secretaria de
Obras Públicas do Estado no mesmo ano da sua elaboração, só foi executado a partir de 1917.
Neste intervalo de tempo, a Intendência providenciou a encampação do Asseio Público e da
Companhia Hydráulica Rio-Grandense e buscou obter a colaboração financeira do Estado –
uma colaboração que encontrava respaldo jurídico no Artigo 49 da Constituição Estadual.21
As experiências de saneamento nas três principais cidades do Rio Grande do Sul
apresentaram diferenças nas datas de elaboração dos projetos e execução das obras, mas
também apresentaram algumas semelhanças: a encampação de empresas que prestavam
serviços na área do saneamento; a dificuldade na passagem dos projetos para a fase de
execução das obras; o endividamento das municipalidades; a criação de um quadro de
funcionários envolvidos para administrar o abastecimento de água e a rede de esgoto, e a
produção de leis e regulamentos especificamente voltados para o saneamento.
A gradual expansão das ações do poder público na área do saneamento, observada na
administração do PRR, pode ser interpretada a partir do conceito foucaultiano de
governamentalidade. O autor usou este conceito para analisar o processo de formação de uma
20
A aprovação do projeto de Alfredo Lisboa pelo governo estadual foi assegurada através da Lei nº 109 de 21 de
outubro de 1910.
21
A colaboração entre o estado e a Intendência do Rio Grande para a execução das obras de saneamento da
cidade foi objeto de um contrato assinado entre as duas partes no dia 11 de janeiro de 1917 (Decreto nº 2.233).
Composto de um artigo introdutório especificando que o empréstimo seria usado nas obras de saneamento da
cidade e contendo 15 cláusulas, o contrato autorizava a Intendência a emitir apólices no valor de 8.500:000$000
à juros de 8% e com prazo de 50 anos para resgate. Na condição de fiador do empréstimo, o governo estadual
procurou assegurar o controle sobre a emissão e pagamento das apólices, inclui uma cláusula referente ao
acompanhamento das obras e definiu qual seria o procedimento adotado caso o município não cumprisse as suas
obrigações. (Relatório do Capitão Dr. Alfredo Soares do Nascimento apresentado ao Conselho Municipal. Rio
Grande: Oficinas a vapor do “Rio Grande”, 1917, p. 10).
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
377
“arte de governar” iniciada na Europa do século XVI e modificada ao longo dos séculos
seguintes. No texto intitulado A governamentalidade,22 Foucault apresentou três fases
importantes no desenvolvimento da “arte de governar”: a primeira diz respeito a introdução
das questões econômicas no exercício político; a segunda foi a discussão sobre a soberania do
Estado que marcou o século XVII; e a terceira ganhou forma na transformação da população
como o problema principal do governo.
A terceira fase da “arte de governar” foi a mais complexa e, segundo Foucault, a sua
viabilidade só foi possível a partir da produção de estatísticas sobre o coletivo da população.
Inicialmente, a estatística foi usada pelo Estado para organizar suas finanças, e
posteriormente, ela foi direcionada para a compreensão dos fenômenos populacionais.
22
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 25º edição. São Paulo: Graal, 2012, p. 407-431. O texto
corresponde a aula ministrada por Foucault no Collège de France, em 1º de fevereiro de 1978.
Considerações finais
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Resumen: Los ejercicios de memoria histórica realizados en el escenario escolar sobre el conflicto armado
colombiano hacen parte de los requerimientos establecidos en el marco jurídico para la paz y la política
educativa, en esta medida, es pertinente pensar conceptual y metodológicamente propuestas de pedagogías de la
memoria que favorezcan el tratamiento del pasado. El presente trabajo expone a través de una revisión
bibliográfica y la adopción de la memoria como objeto historiográfico algunos puntos de conexión entre la
enseñanza de la historia del tiempo presente y las elaboraciones de memoria en espacios escolares y no-
escolares.
Palabras claves: Memoria, enseñanza de la historia, pedagogías de la memoria.
Abstract: Historical memory exercises conducted in the school setting on the Colombian armed conflict are part
of the requirements established in the legal framework for peace and education policy, to that extent, it is
pertinent to think conceptually and methodologically proposals pedagogies of memory conducive to dealing with
the past. This paper presents through a literature review and adoption of memory as historiographical object
some points of connection between the teaching of the history of the present and the working memory in school
and non-school spaces.
Keywords: Memory, teaching of the history, pedagogies of memory
Introducción
Lo malo, para el orden establecido, es que, si enseñamos las cosas de este modo, si
invitamos a nuestros estudiantes a entender que el pasado no es un camino único
cuyo trazado está exactamente fijado por los manuales, sino un campo abierto
recorrido por luchas y proyectos muy diversos, donde podemos encontrar caminos
que lleven a futuros distintos, estaremos despertando en él una consciencia crítica,
no sólo hacia el pasado sino hacia el presente. Y eso es, precisamente, lo que se
quiere impedir que hagamos (Fontana, 2003, p. 114-115).
1
Licenciada en Ciencias Sociales por la Universidad Pedagógica Nacional de Colombia y Maestría en Historia
por la Universidade Federal de Mato Grosso. Email: lorewait88@gmail.com
2
Licenciado en Ciencias Sociales por la Universidad Pedagógica Nacional de Colombia. Email:
afamayas@unal.edu.co
3
Profesor titular de la Universidad Nacional de Colombia sede Bogotá del Departamento de Historia,
Coordinador del Programa de posgraduación, conocido por su amplio trabajo académico.
consideramos que las mismas preguntas que motivaron a Edward Carr en su libro clásico
¿Qué es la historia? y a Marc Bloch ¿para qué sirve la historia? deberían continuar vigentes en
nuestras reflexiones acerca de la enseñanza de la historia, siendo que la constitución histórica
del sentido refleja la materialización de un enunciado en torno a la perspectiva de tiempo, la
evolución temporal del mundo y la consciencia e identidad histórica que responde a un
proyecto de futuro intencionalmente planeado.
Las aproximaciones conceptuales y metodológicas adelantadas desde los años ochenta
con proyectos como History Project 13-16 en Inglaterra, las discusiones del grupo Clio en
España o las investigaciones en didáctica de la historia en Alemania después de la caída del
Muro de Berlin, sobre entienden la preocupación de una generación académica por replantear
las formas de saber y aprender historia, al concebir esta como una construcción social abierta
a producciones individuales y colectivas, a la que convenía procurar otros caminos distintos a
los de la validación de proyectos nacionales y legitimación de regímenes políticos.4
Las inquietudes respecto a las concepciones de mundo que circulaban en la escuela a
finales del siglo XX, deberán ser comprendidas teniendo en cuenta las transformaciones
epistemológicas del campo historiográfico desde finales de los años setenta, cuando los dos
grandes paradigmas en los que reposaba el proyecto histórico de occidente fueron
cuestionados ante el surgimiento de nuevos objetos y enfoques de estudios sociales. El
estructuralismo y la historia seriada cuantificada con base estadística, afrontaron el
surgimiento de la “nueva historia”, la microhistoria, la historia reciente y los estudios de la
memoria bajo el protagonismo del paradigma narrativista.
En esta medida, la enseñanza de la historia también paso por cambios que reflejan la
orientación cultural de un mundo de postguerra, con nuevas formas de argumentación y
experimentación extradisciplinares de construcción de conocimiento, esta redefinición
comprometió los procesos de educación escolar a una transición, mucho más lenta que en la
academia, pero expresada en propósitos pedagógicos de experiencia, orientación e
interpretación de la historia para la vida practica.
Ahora bien, el desafío cognitivo tanto para profesores como para estudiantes radica en
valorar un pensamiento creador, constructor de problemas e inspiración investigativa teniendo
en cuenta funciones y sentidos del saber histórico en el tiempo presente. Así, la enseñanza de
la historia pasó a preguntarse por la relevancia actual del conocimiento histórico impartido en
4
Carretero, Mario; Rosa, Alberto; González María. Enseñanza de la historia y memoria colectiva. 1 ed. Buenos
Aires: Paidós, 2006. “Entre los dos tipos de lógica que han articulado la enseñanza escolar de la historia en el
origen de los Estados liberales y hasta mediados del siglo: la racionalidad critica de la ilustración y la emotividad
identitaria del romantismo. Ambas han constituido la impronta de la historia escolar”.
5
Traducción de portugués a español realizada por los autores. Versão portugués: “A demonstração das chances
de racionalidade do pensamento histórico -essenciais para a história como ciência- consistem em afirmar que a
ciência da história abre uma chance de vida em seu âmbito. O que seria uma razão, de que a história como
ciência fosse capaz, se não se dirigisse a raiz mesma da ciência: os processos com os quais os homens se
esforçam por viver humanamente”.
La historia del tiempo presente, resulta ser una discusión sobre un enfoque
historiográfico rodeado de cientos de preceptos y denotaciones en torno al trabajo del presente
con un saber histórico y escrito de nuestro tiempo, construyendo elementos con los que se
apropia el pasado. De tal suerte puede señalarse que la historia del tiempo presente oscila
entre la voluntad de mostrar una innovación metodológica, su pertinencia con el oficio del
historiador y la realidad interdisciplinar.
La definición del tiempo presente está sujeta al cambio de las unidades temporales del
siglo XX. En el “siglo corto”, tal como lo denominaría Eric Hobsbawm, la idea del presente,
como un después de fin de la guerra en 1945, se interrumpió en 1991 con la desaparición de la
Unión Soviética, año en la que se cerró el ciclo iniciado en 1917 con la revolución de octubre.
Los acelerados cambios geopolíticos de fines de siglo recibieron el ultimátum del
acontecimiento como escenario inmediato del futuro contemporáneo. En esta medida, el
tiempo presente pasó a ser un régimen temporal, es decir, “una manera de traducir y de
ordenar experiencias del tiempo -modos de articular el pasado, presente y futuro- y de darles
sentido” (Hartog, 2013, p. 139).
Se puede comprender el tiempo presente como propuesta metodológica y conceptual
que traspasa la temerosa línea entre memoria e historia establecida en el estatuto del pasado
lejano. Hace parte de un cúmulo de cuestionamientos emergentes en la Europa post-segunda
Guerra Mundial, con el presupuesto de la concepción narrativista de la historia y las nuevas
epistemologías del sujeto, que sugieren otro tipo de elaboración de pasado. En palabras de
Monteiro: “La cuestión del presente emerge al generar una ambigüedad o tensión entre el
tiempo de la explicación teórica y su narrativa que es, al mismo tiempo, la narrativa de la
historia relatada que se refiere a otro presente, aquel de los acontecimientos
narrados”(Monteiro, 2012, p. 164).
Así las cosas, la interconexión entre historia, memoria y narrativa, en cuanto
construcción, comprensión y explicación temporal del pasado, espacio de experiencia del
historiador, evocación múltiple de posibilidades y articulaciones con el presente, y horizonte
de expectativas en el futuro, demuestra la variedad en la concepción de pasado-presente,
historia-memoria, esta última, como recurso interlocutor necesario para la comprensión y
reconstrucción del pasado.
6
Peter Lee y Rosaly Ashby, son reconocidos por sus aportes en el campo de la enseñanza de la historia,
especialmente con el proyecto “CHATA: Concepts of History and Teacher Approaches”, desarrollado en Gran
Bretaña, con ejes de reflexión acerca de cómo los niños y jóvenes piensan la historia.
7
Son cuatro niveles propuestos por Asbhy y Lee: 1) El conocimiento del pasado se da por supuestos; 2) la
evidencia es la información privilegiada sobre el pasado; 3) Las evidencias son las bases para realizar inferencias
del pasado; 4) conciencia de historicidad.
De este modo, los cambios afrontados por la enseñanza de la historia son generados en
un contexto marcado por exigencias de conocimientos más complejos enfrentados a un
conjunto de demandas sociales y educativas con significado en la estructura política y
económica de finales del siglo XX y principios del XXI (Osandón, 2007). Conforme a esto, la
historia escolar pasa de ser un espacio en donde solo adquieren sentido lo nacional y aun lo
regional, a la inclusión de otras formas de ser, hacer y aprender.
Esta disyuntiva ha colocado en mesa de discusión los objetivos de la enseñanza de la
historia en pro de la formación de una conciencia histórica, la problematización de nuevas
cuestiones de memoria, identidad y narrativa repercutió en el significativo impulso de
investigación sobre la enseñanza de la historia, sumado a la consolidación de programas de
pos graduación en historia con un enfoque en la enseñanza- aprendizaje de los que han
surgido diversas lecturas sobre el campo.
Decimos, entonces, que el conocimiento histórico escolar ha estado permeado por las
discusiones historiográficas, a pesar de ello, continuamos siendo testigos de una amplia
brecha entre producción académica y escuela. Por eso continuamos validando que existen
8
Traducción de portugués a español realizada por los autores. Versão portugués: “A aprendizagem histórica
referenciada na formação da consciência histórica propõe o desenvolvimento da capacidade de se orientar no
tempo (passado) e sobre o tempo (presente), construindo-o e analisando-o para torná-lo significativo para nós.
Paralelamente, pressupõe que a aprendizagem histórica é um processo dinâmico no qual a pessoa que está
aprendendo está mudando e isso significa que saber história é diferente de pensar historicamente correto. Saber
história é entender o passado como um passado histórico, nem morto, nem prático”.
Además de los fines, la Ley decretó la enseñanza en áreas obligatorias entre las que
figuran: las Ciencias sociales, historia, geografía, constitución política y democracia. De esta
forma, las Ciencias Sociales fueron comprendidas como área de obligatoria enseñanza en las
9
La movilización de maestros y maestras, que se conoce como “Movimiento Pedagógico” y ha sido uno de los
capítulos más significativos del magisterio en la historia reciente en Colombia
10
La Ley General de Educación en Colombia fue sancionada por el Congreso de la República el 8 de febrero de
1994. El articulado completo se puede consultar en: http://www.mineducacion.gov.co/1621/articles-
85906_archivo_pdf.pdf. Consultado el 31 de Octubre de 2014. En adelante, los apartados tomados de la Ley
estarán entre comillas, para evitar una excesiva citación de un mismo documento ya referenciado.
Esa falta de culto por la Historia puede ser una de las razones por las cuales
Colombia es uno de los países con un menor nivel de patriotismo en el mundo, pues,
si se quiere, historia y patriotismo son conceptos que van unidos. Cuba y México
son tal vez los países más nacionalistas del continente, y no hay niño que no conozca
todos los detalles de sus revoluciones, la vida de sus héroes y el precio de lo
conseguido (Semana, 2012, p. 12).
Antes de saber lo que la historia dice de una sociedad, es necesario saber cómo
funciona dentro de ella. Esta institución se inscribe en un complejo que le permite
apenas un tipo de producción y la prohíbe otros, Tal es la doble función del lugar. el
torna posibles ciertas investigaciones en función de coyunturas y problemáticas
comunes. pero torna otras imposibles; excluido el discurso que es su condición en un
momento dado; representa el papel de la censura con relación a los postulados
presentes (sociales, económicos, políticos) en el análisis (De Certau, 2006, p. 76).11
11
Traducción de portugués a español realizada por los autores.
12
Ver colección Santillana año 2011. Textos escolares Sistema Uno, en donde se incluye temáticas de guerra
sucia años 80, narcotráfico, grupos paramilitares y guerrilla.
Bajo esta premisa ética nos posicionamos como educadores, considerando que más
allá de la enseñanza de procesos históricos recientes se debe trabajar para lograr un cambio
que apunte a la superación del estado de cosas actuales en Colombia. Se trata, entonces, de
buscar estrategias de formación política que desarrollen ciudadanos críticos, comprometidos
con su realidad social.
La pedagogía de la memoria, entonces, encuentra varios elementos epistemológicos en
común con la teoría crítica de la sociedad, así como de la pedagogía crítica. Desde nuestros
análisis, la pedagogía de la memoria en Colombia se debe plantear:
13
Las experiencias han sido tomadas del Banco de Experiencias del Centro de Memoria, Paz y Reconciliación,
iniciativa del Distrito Capital, disponibles en: http://centromemoria.gov.co/pedagogia/experiencias/.
14
Río localizado en la región occidental de Colombia, comprende el Departamento de Nariño, llega directamente
a Bahía de Tumaco.
15
Barranquilla Capital del Departamento del Atlántico ubicada en el Caribe Colombiano.
16
Centro de Memoria Histórica, Recuerdos de una estudiante, Crónica realizada por María Laura Idárraga
Álzate,http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/index.php/iniciativas-de-memoria/iniciativas-desde-
region/41-iniciativas-desde-region/127-recuerdos-la-importancia-de-la-memoria
tratar el pasado reciente, más aun, cundo este corresponde a características de violencia
extrema.
Consideraciones Finales
Referencias
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Resumo: Reativado com o Concílio de Trento (1545-1563), o Tribunal do Santo Ofício passou a frequentar as
terras brasileiras no final do século XVI, atuando até o século XVIII. Neste sentido, apresentamos neste trabalho
como o Tribunal do Santo Ofício agia na busca pela preservação da ortodoxia do catolicismo religioso, criando
novos mecanismos como as visitações que pudessem averiguar e apurar os casos de judaizantes, blasfêmias,
desvios sexuais e morais e as práticas mágico-religiosas na Capitania de Mato Grosso na segunda metade do
século XVIII.
Palavras-chave: Santo Ofício; Visitações; Capitania de Mato Grosso.
The actions of the Holy Office in the Captaincy of Mato Grosso: second half of the eighteenth century
Abstract: The Holy Office Tribunal was reactivated with the Council of Trento (1545-1563) and began to attend
the Brazilians land at the late sixteenth century acting until the eighteenth century. In this sense, we present in
this work the how the Holy Office Tribunal acted in the quest to preserve the orthodoxy of the religious
Catholicism creating new mechanisms as the visitations to ascertain and investigate the cases of Judaizers,
blasphemy, sexual and moral deviations and the magical-religious practices in the Captaincy of Mato Grosso
second half of the eighteenth century.
Keywords: Holy Office; Visitations; Captancy of Mato Grosso.
Introdução
O objetivo desse artigo é apresentar a ação empreendida pelo Tribunal do Santo Ofício
na Capitania de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII, cujo intuito consistia em
combater as práticas e os comportamentos considerados em descompassos com os dogmas da
Igreja Católica. Para tanto, tomamos como base para nossas argumentações, a documentação
deixada pelo visitador Manoel Bruno Pina em sua visita a Capitania em 1785, assim como a
Devassa da Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, além de relatos contidos nos
Anais3.
O período colonial brasileiro foi marcado por uma multiplicidade de formações
culturais, presentes desde o início da conquista e ocupação da América pelos portugueses,
1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso.
2
Graduada em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso.
3
Estamos nos referindo aos Anais de Vila Bela (1734-1789) e Annaes do Senado da Câmara da Vila Real do
Bom Jesus do Cuiabá (1727).
quando diversas etnias indígenas e africanas praticavam seus cultos e manifestavam suas
crenças. No entanto, tais práticas não eram aprovadas pela Igreja Católica, já que o
catolicismo era a única religião permitida por Portugal para se instalar nas terras da colônia,
de acordo com o regime do Padroado. Este pacto fora firmado entre a Igreja Romana e o
Estado, tornando o catolicismo a única religião legítima do Império Português.
Não apenas as crenças e cultos dos nativos serão tidos como contrários aos dogmas
religiosos da Igreja Católica, posteriormente, as religiões dos africanos trazidos para serem
escravos também passaram a ser concebidas como afrontas aos dogmas católicos, o que fez
com que a Igreja interviesse com o intuito de dissuadi-los dos cultos às suas divindades os
convertendo ao cristianismo. Havia também a questão da moral e da sexualidade que
trouxeram grandes preocupações para a Santa Madre Igreja. Entretanto, atuando contra os
preceitos cristãos estabelecidos pela Igreja, não estavam envolvidos apenas índios e negros,
mas os próprios brancos colonizadores, que ao desembarcarem nas novas terras não tardaram
muito para se unir com várias índias ao mesmo tempo, “adotando sem demora a poligamia
indígena” (VAINFAS, 1997, p. 234).
Isto causava grande desespero aos padres jesuítas e também a outras ordens
“empenhados em promover matrimônio in facie ecclesiae, como convinha, aliás, aos agentes
eclesiásticos da colonização”, (VAINFAS, 1997, p. 232). A frequência dessas relações
aumentou com a vinda dos escravos africanos trazidos para a colônia. Nos séculos XVII e
XVIII houve “uma participação cada vez maior dos negros- africanos e crioulos” (VAINFAS,
1997, p. 234) na relação do concubinato. A inserção dos negros nas terras brasílicas não
provocaria apenas a elevação dos casos de concubinato, mas desenvolveriam também os
amancebamentos e casos de sodomia.
Naquele contexto social vigente, a Igreja trataria logo de agir para reprimir tais
atitudes contra a fé e a moral, sempre muito prezadas pela mesma, utilizando-se, portanto, da
Inquisição moderna.
Um caso citado nos Anais de Vila Bela, no ano de 1787, nos permite perceber alguns
aspectos do universo religioso da Capitania de Mato Grosso, visto como um espaço
compartilhado por homens e mulheres que praticavam quotidianamente a norma da fé. O
fragmento foi escolhido por se referir a uma das maiores infrações aos preceitos da
cristandade, o furto da partícula sagrada, ou seja, a hóstia sagrada. O documento descreve o
furto praticado pelo soldado José Joaquim Ribeiro, que, dirigindo-se a igreja matriz para
confessar e comungar, no momento da comunhão tirou a partícula da boca com um lenço e a
guardou, logo em seguida desertou-se juntamente com mais dois soldados dragões para o
domínio Espanhol.
Assim que a fuga foi percebida pelo governador da Capitania, Luís de Albuquerque, o
mesmo mandou partir “(...) os ajudantes auxiliares Manoel Rebelo Leite e o anspeçada4
Francisco da Silva Rondon e sete pedestres, bem armados e montados” (ANAIS DE VILA
BELA, p. 268). Quando os desertores foram encontrados houve troca de tiros, e no confronto
José Joaquim Ribeiro, que trazia em seu pescoço pendurada por uma fita a partícula sagrada,
foi morto.
O tema central desse relato contido nos anais de Vila Bela é a ocorrência de um grave
crime: o roubo de uma partícula considerada sagrada aos olhos de todos os que tomaram
conhecimento do fato. Diante deste caso percebemos a força e a influência que a fé exercia
neste período, sendo o homem indissociado das razões da alma. O trecho que citamos a seguir
refere-se às ações empreendidas pelos agentes envoltos no processo, assim que tomaram
conhecimento sobre o ocorrido:
O que nos chama a atenção no fragmento citado é a ação dos agentes envolvidos no
episódio, desde militares às pessoas que se apresentam horrorizadas diante de tal situação, e
até mesmo o governador, que ao ser informado sobre o ocorrido, é imbuído de uma profunda
indignação e imediatamente decreta luto geral por três dias, ao mesmo tempo em que propõe
rezar na igreja pelo pecado cometido pelo soldado morto que tentara a deserção. Notamos
mediante as medidas tomadas pelas autoridades locais, a gravidade do ato, como por exemplo,
4
O termo era utilizado no período para designar aquele que era graduado à praça, posto militar acima de soldado
e subordinado ao cabo.
a decisão de fazer uma procissão em ação de graças para levar a partícula sagrada de volta à
igreja, e proceder a Devassa do autor do crime, que nesse momento já estava morto.
A Igreja nesse momento atuava junto ao Estado, o que lhe permitia interferir no meio
social. Nossa pretensão é utilizar este fragmento para discorrer a respeito do poder da Igreja
conjuntamente com o Estado sobre a sociedade em geral, no intuito de mantê-la submissa ao
seu controle. Nessa perspectiva, é totalmente compreensível a gravidade do roubo relatado no
fragmento enunciado.
Este controle, no entanto, só é possível dentro de uma sociedade muito ligada às
questões religiosas, o que é bastante nítido em todas as fases deste fragmento. Como, por
exemplo, no momento em que o soldado acredita que levando consigo a dita partícula
sagrada, nada de ruim poderia lhe ocorrer, inclusive a morte.
Lucien Febrve em sua obra “O problema da incredulidade no século XVI: a religião de
Rabelais” (2009) examina a figura de Rabelais para discutir seu objeto, a incredulidade. Para
Febvre, Rabelais não poderia ter sido ateu pela simples razão de que o século XVI
desconhecia o conceito de descrença5.
Febvre considera que no século XVI não existia a possibilidade de não ser cristão,
pois, desde o nascimento, a criança se achava inserida no universo do cristianismo e não se
livrava deste nem mesmo no momento da morte, “pois essa morte era cristã necessária e
socialmente, pelos ritos a que ninguém podia furtar-se” (FEBVRE, 2009, p. 292). Ou seja, do
começo ao fim da vida o ser humano passava por vários ritos cristãos: o batismo, o
casamento, a benção na hora das refeições, a extrema unção na hora da morte, entre outros
momentos. Em toda a sua vida ele estava marcado pelo selo cristão, tudo dependia da Igreja,
até o tempo determinado pelo badalar dos sinos localizados no alto de suas torres.
No século XVI, talvez de maneira mais rígida, a Igreja exercia o papel de tribunal
auxiliar do Estado, assim como suas catedrais davam lugar para assembleias, eleições e
reuniões de todos os tipos. Enfim, a Igreja estava estabelecida em pleno coração da vida dos
homens, de “sua vida sentimental, de sua vida profissional, de sua vida estética, se pode
empregar essa grande palavra; de tudo o que os ultrapassa e de tudo o que os liga (...). Tudo
isso atesta, mais uma vez, a influência insidiosa e total da religião sobre os homens (...)”
(FEBVRE, 2009, p. 304).
Na América portuguesa a Igreja Católica se fez presente desde o início da colonização,
aparecendo como discurso legitimador da expansão. As primeiras ações em prol da instituição
5
Lucien utiliza-se do caso de Rabelais para analisar a questão da incredulidade no século XVI.
da moral e religião cristã se deram com os missionários jesuítas através da evangelização dos
gentios, já nos primeiros anos do processo de colonização ainda no século XVI, “atendendo a
política do Estado português e aos interesses da própria ordem” (SANTOS, 2011, p. 5). Para
tanto, utilizou-se da política de aldeamento, também denominada de missões.
A Igreja Católica teve um papel crucial na estruturação da colonização, na medida em
que, além da catequização propriamente dita, a atuação, sobretudo dos padres jesuítas nos
primeiros anos da colonização, também favorecia o domínio dos europeus na América
Portuguesa, cumprindo-se assim o papel principal do programa de colonização empreendido
pela Coroa: o de colonizar o Novo Mundo e cristianizar os gentios (REIS, 2014). Nesse
sentido a “nova ordem tornou-se sujeito do processo de colonização graças à execução de
uma política de desbravamento do Novo Continente, na tentativa de salvar os infiéis,
atendendo a política do Estado português e aos interesses da própria ordem” (SANTOS, 2011,
p. 5).
No Concílio de Trento (1545-1563), além das missões jesuíticas, também será
destacado o valor das visitas para apurar e corrigir as práticas que não estivessem de acordo
com as normas morais e religiosas cristãs, criando o Tribunal da Inquisição. No entanto, estes
mecanismos criados no Concílio de Trento entram em crise durante a era pombalina, fazendo-
se necessários novos mecanismos destinados à vigilância e controle dos fiéis. Reformula-se o
mecanismo das visitas, passando estas a serem visitas eclesiásticas e diocesanas, utilizando
para isso um corpo de agentes inquisitoriais, destacadamente Comissários e Familiares.
equilíbrio de uma sociedade colonial mineradora com a implantação de suas normas e de seus
valores morais” (CORBALAN, 2006, p. 17-18).
E será justamente neste contexto que teremos a atuação do corpo do Santo Ofício,
representado pelas visitas eclesiásticas como forma de manter uma sociedade obediente aos
princípios sacros e, com isso, livre de pecados. Ou seja, a Igreja atuante seria como uma
vigilante constante da fé.
A Capitania de Mato Grosso não recebeu nenhuma visita do Santo Ofício da
Inquisição como as capitanias do Nordeste, a exemplo de Pernambuco. Tampouco as
visitações eclesiásticas a vasculharam à procura de cristãos novos. No entanto, houve forte
presença das visitas e atuação de “familiares” cuidando da moralidade e zelando pela
manutenção da fé. Carlos Rosa (1996) nos informa que desde os tempos de arraial do Bom
Jesus do Cuiabá já havia forte presença de eclesiásticos na capitania – entre 1721 e 1750
foram no mínimo 44 sacerdotes. Além destes, havia também os “familiares”, representantes
laicos do Santo Ofício que desde os anos 1730 já atuavam na capitania.
Nos “Annaes do Senado da Câmara da Vila Real do Bom Jesus do Cuyabá”, referente
ao ano de 1727, percebemos a presença de um visitador nomeado pelo Bispo do Rio de
Janeiro:
Tribunal da Santa Inquisição acusado de cometer o pecado nefando com um moleque. O que
talvez justifique o registro no Tribunal da Santa Inquisição (TEIXEIRA DE SÁ, 2010).
Voltando à esfera privada na qual atuavam as visitas eclesiásticas, podemos perceber a
atuação direta de eclesiásticos inquirindo e resolvendo a seu modo casos de adultério, como o
que ocorre com Joana da Costa, mulher de Jozé Monteiro de Castro. Esta fora denunciada
pelo povo e por pessoas “fidedignas” ao eclesiástico Bruno de Pina, que ao tomar suas
decisões em prol de evitar maior escândalo, foi denunciado pelo Doutor Juiz de Fora da Vila
Antonio Rois Gayezo, em carta escrita ao governador Luiz de Albuquerque. A dita Joana,
mulher casada, pretendia fugir com um eclesiástico da casa de Custódio Francisco Machado.
Diante da situação o padre ordenou que prendessem a referida mulher pelos seus atos,
e afirmou ter mandado prendê-la enquanto verificava a fama pública a ela atribuída. No
terceiro dia do ocorrido deste fato, o Vigário eclesiástico mandou soltar a mulher e a levou
para a casa de um homem chamado Jerônimo Francisco do Lago, homem casado, conhecido
pela honra de sua casa, na esperança de que com o exemplo possa reconciliá-la com seu
marido. No entanto, o homem que acolhe a Joana em pouco tempo a quer fora de sua casa,
porque a mesma continua com sua má conduta, agora a desonrando.6
A utilização deste caso em nosso trabalho se dá com o intuito de demonstrar como a
Igreja atuava em todas as esferas da vida das pessoas. Percebemos também que havia um
eclesiástico envolvido no caso, a quem o padre vigário mandou que saísse da Vila. Esta ordem
foi descumprida até quando ele retorna a esta. Isto nos leva a pensar que havia um sentimento
mais profundo entre a mulher e o Eclesiástico. O envolvimento de padres em casos de
adultérios e violação do celibato eclesiástico não fica restrito somente a Capitania em questão.
Houve vários padres denunciados ao Santo Ofício da Inquisição em diversas partes da
colônia. Exemplo disto é o caso do Frei João de São José Queirós, averiguado durante a
última visitação do Santo Ofício da Inquisição, também na capitania mineira do século XVIII.
Três padres, José Rodrigues Pontes, Francisco Justiniano Pereira de Carvalho e Sebastião José
da Freiria, residentes em São João Del Rei, Comarca do Rio das Mortes, foram remetidos ao
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa pelo fato do padre José Rodrigues ter-se
casado através de uma cerimônia matrimonial realizada pelos outros dois padres. O caso dos
padres da capitania mineira não é um caso de sacerdotes envolvidos em adultério, mas com
ele podemos perceber o envolvimento de pessoas integrantes do meio religioso em diversos
casos contrários a doutrina religiosa, não estando limitados apenas aos leigos.
6
Carta do Capelão Vigário da Vara do Distrito de Cuiabá Manoel Bruno Pina ao Governador e Capitão-General
da Capitania de Mato Grosso Luís de Albuquerque Pereira Melo e Cáceres. 1873, dezembro, 01, Vila do Cuiabá.
Por isto aos Povos em grandes confusões, que divididos em diversos pareceres
afirmavam uns ser verdadeiramente excomungado, e outros que não, negando-lhe a
maior parte do povo a fala, uns crentes, outros a maior cautela salvavam as
consciências, sendo muito poucos os que lhe falavam (ANNAES DO SENADO DA
CAMARA DA VILA REAL DO BOM JESUS DO CUYABÁ, p. 57, fls.12).
Bruno Pina, ao ser nomeado Visitador Geral, tem a função de percorrer todo o
território das Comarcas para identificar e proceder com as diligências, assim como também
pôr em dias as faltas que encontrar, procedendo com o sacramento da confirmação (crisma) e
do matrimônio, para o “sossego da alma dos fiéis e evitar ofensas a Deus”. Além disso, o
visitador deveria ir a todas as Capelas, Oratórios e Igrejas que houvessem no distrito e
registrar todas as irmandades e confrarias “com clareza e declarações”, bem como a falta de
sacerdotes, e registrar também os que existem.
A visita diocesana de 1785 na Capitania de Mato Grosso tinha como objetivo, assim
como expressa o documento, de degredar “os vícios, erros, escândalos, e abusos” (DVGCEC,
1785, p. 7), além desses serviços feitos a Deus, citados anteriormente.
A seguir, o documento traz as observações de como as pessoas deviam proceder ao ter
conhecimento, por “fama pública” ou mesmo por conhecimento próprio, e que no prazo de
seis meses, deveriam se dirigir para realizar a denunciação dos ditos pecados ao Visitador sob
pena de excomunhão maior. Esta denunciação devia ser feita com zelo e devoção a Deus, não
por ódio ou desejo de vingança, mas visando a salvação do próximo.
No mesmo edital são listados os pecados que deviam ser identificados e delatados ao
Visitador. O primeiro pecado expresso no edital é referente ao conhecimento ou boatos sobre
alguém que pratique o gravíssimo crime de heresia ou apostasia, tendo, vivendo, dizendo ou
fazendo alguma coisa contra a Santa Fé Católica. A seguir são indicados mais 40 artigos de
crimes que deviam ser identificados na sociedade e denunciados. Entre eles estão, possuir ou
ler livros hereges, de pessoas que proferiram alguma blasfêmia contra o nome de Deus ou
Santos, se tem conhecimento de pessoas feiticeiras ou que faz uso para fazer mal a alguém, se
alguém benze ou advinha, sem a licença do Bispo ou de seu Provisor, caso ocorra um homem
ou mulher casados com duas mulheres ou homens, se algum clérigo está casado, entre vários
outros.
Cabe, antes de continuar a trabalhar com os crimes que deveriam ser identificados e
denunciados, retificar que em alguns casos a Igreja cedia uma espécie de licença para os
praticantes de magias destinadas a curar doenças do corpo, devido a grande falta de médicos e
remédios para as doenças, com os quais a sociedade convivia diariamente.
As dificuldades em relação à saúde estiveram sempre presentes na Capitania de Mato
Grosso, entre estes estavam problemas pelo excesso de horas trabalhadas, a variação de
temperatura, calor excessivo durante o dia e muito frio à noite, a presença de insetos, a
condição das águas fazia com que o corpo sucumbisse às diversas moléstias, como diarreias,
sezões, febres, entre outros males tão comuns nesse período (SÁ JÚNIOR, 2009).
O Capitão Gaspar Luis de Amorim branco, solteiro 53 anos (...) prometeu dizer
verdade sobre o que fosse-o perguntado. E sendo-lhe perguntado pelos artigos da
visita, que todos lhe foram lidos (...) disse ao artigo quinto que Patricio Antunes
homem bastardo acusado de benzer crianças de lombrigas, e ainda de sessões, por
ouvir a Luzia de tal, mulher de Manoel Bicudo e ainda não sabe ele testemunha se
benze com licença, ou sem ela (...) (DVGCEC, 1785, p. 11). Luciano Jose da Silva
homem branco, solteiro natural da freguesia de Santa Cruz de Goyas (...) morador
desta freguesia onde vive de seu oficio de carpinteiro testemunha jurada aos Santos
Evangelhos (...) sendo perguntado pelos interrogatórios da Visita que todos lhe
foram lidos e declarados disse no interrogatório quinto que sabe que Bernardo da
Cunha Chaves cura de lombrigas com bênçãos, e isto por ouvir a ele dito (...) e que
ele testemunha ignora se tem ou não licença para o fazer (...) (DVGCEC, 1785, p.
76).
Voltando a uma das visitações de Bruno Pina, percebemos que estas, além de proceder
às devassas, deviam também pôr em dia os sacramentos e rituais da Igreja (tais como a
comunhão, a crisma e a celebração dos matrimônios). Assim, estas seguiam um cerimonial
semelhante em todas as partes, a exemplo de Pernambuco. Ao ser encarregado da visita, o
Bispo de Pernambuco se dirige a todas as capelas, igrejas e oratórios verificando o andamento
destas, da mesma forma Bruno Pina deveria proceder na Comarca de Cuiabá e Vila Bela da
Santíssima Trindade. No itinerário da Visita realizada pelo Bispo notamos que se trata mais
de um diário, pois o mesmo relata diariamente suas ações nas diversas capelas, igrejas, e
oratórios que visitou. Tudo com muita espera e participação da população, tratando-se de um
evento em todas as localidades onde passava.
Dia 29. Fui a Matriz celebrar pelas 8 horas e as 10 voltei à fazenda; houve prática de
crisma, e finalizado este ato, confessei até ao meio dia, e de tarde crismei. Neste
mesmo dia promovi a reedificação da igreja matriz por estar mui indecente e
arruinada (...) No dia 30. Deligenciei o casamento de um rapaz, que tinha infamado
sua mulher, e despensei um preto Itamaracá para cazar uma preta sua concubina e de
seu pai. As 10 horas fui para a matriz, onde crismei até as 3 horas, havendo antes
quatro confessores em exercício dos sacramentos da penitencia e eucaristia por
desobriga. Escrevi ao Reverendo Vigário proprietário para que houvesse de
regressar para a freguesia, sob a pena da santa obediência (RIHGB, 1892,Tomo LV,
p. 8).
O Capitão Gaspar Luis de Amorim branco(...) prometeu dizer verdade sobre o que
fosse-o perguntado. E sendo-lhe perguntado pelos artigos da visita, que todos lhe
foram lidos (...) pela mesma razão de público escândalo sabe que o João da Cunha
homem branco natural de São Paulo onde é casado segundo ele testemunha ouve
dizer, vive amancebado na mesma vizinhança (...) com Violante Buene parda viúva.
Da mesma sorte disse que Clemente dos Santos pardo fora casado em São Paulo (...)
vive amancebado com Quiteria dos Santos índia solteira (...) vivendo portas adentro
e tendo filhos, e isto sabe pelo escândalo notório (...) (DVGCEC, 1785, p. 11-2).
busca de melhores condições de vida, fortuna e status social, que ao partir deixavam para traz
famílias inteiras, mães, esposas, filhos e noivas. No entanto, aqueles que conseguiam chegar
ao sertão das minas da Capitania, ultrapassando vários limites quase que intransponíveis,
acabavam se fixando, formando famílias na região e construindo algum patrimônio o que,
segundo a autora, faziam com que esses homens e mulheres não mais arriscassem um difícil e
sofredor retorno. Muitos conseguiram conquistar terras, escravos, status social e poder, o que
acabava por tornar inviável uma possível volta ao lar.
Natural da região do Minho, Valentim Martins da Cruz deixa a costa portuguesa assim
como tantos outros homens em direção à colônia na segunda metade do século XVIII. Após
algum tempo instalado no Rio de Janeiro, segue para as minas do Mato Grosso. No ano de
1781, Valentim já havia se tornado senhor do engenho chamado de São Romão, e proprietário
de terras e animais, o que conferia grande prestígio e poder a quem os possuía neste período.
No entanto, Valentim era homem solteiro e vivia com uma escrava também solteira, de nome
Joaquina, com quem tinha vários filhos.
O relacionamento ilícito de Valentim fora citado em “10 das 30 denúncias” levadas ao
conhecimento de Bruno Pina quando este esteve na região de Chapada dos Guimarães no mês
de setembro. O primeiro a denunciar Valentim era um lavrador, de nome Martinho, que o
acusa de concubinato. Foi seguido por José Duarte Pereira, que também acusa o casal do
crime de concubinato, mas em sua denúncia deixa claro não se tratar apenas de uma relação
fundamentada na necessidade sexual, pois segundo o mesmo “tem visto a afabilidade com que
trata [ele, Valentim] a mesma escrava” (CRIVELENTI, 2007, p. 100).
Francisco, homem casado em Portugal que também morava na região da Chapada dos
Guimarães, foi acusado por Alvarenga de adultério, pois vivia em concubinato com uma
parda forra, de nome Maria da Silva, que era casada com João de Campos. Segundo outra
denúncia, o marido de Maria consentia no concubinato.
Outro caso bastante interessante é o de Clemente, um pardo forro que viera para as
minas de Mato Grosso deixando sua mulher em São Paulo. Vivia amancebado com uma índia
chamada Quitéria. No entanto, a mulher de Clemente tenta se juntar novamente ao marido,
diante do não retorno deste, que nos leva a concluir ser por falta de vontade do mesmo, ela
vem de São Paulo, mas volta “deixando-o no mesmo estado com Quitéria” (DVGCEC, 1785).
Em 23 de junho de 1785 a visita na freguesia do Bom Jesus do Cuiabá foi suspensa. O
visitador teria que proceder à visita da freguesia de São Luís da Vila Maria do Paraguai, a
pedido do Pároco, pelo fato de haver grande número de índios espanhóis desertando e
“conduzindo ao mesmo tempo mulheres alheias e também por se acharem muito remotas
algumas testemunhas que devem jurar com circunspeção nesta devassa.” (DVGCEC, 1785, p.
25).
A visita à Vila Maria do Paraguai foi solenemente iniciada em 4 de julho de 1785,
seguindo os mesmos rituais da freguesia de Cuiabá. Feitas a procissão dos defuntos, visita da
pia batismal, altar e parâmetros da Igreja, foram lidos os artigos e ouvida a primeira
testemunha, João de Almeida Pereira, Cabo da Esquadra de dragões desta Vila. O que mais
nos chama atenção no depoimento desta primeira testemunha é o grande número de índios
castelhanos que desertavam da colônia espanhola para viverem ilicitamente (segundo os
espanhóis) na colônia portuguesa.
(...) ao interrogatório dezessete disse (...) que Manoel Leme Prado moço solteiro
vive concubinado com Floriana (...) moça solteira (...) da mesma sorte vivem
escandalosamente de portas a dentro Domingos Francisco pardo forro solteiro com
Maria Rodrigues mulher cujo marido desertou para Castella a muitos anos (...) que
também Sebastião de tal homem bastardo solteiro vive escandalosamente
amancebado com Anna índia castelalhana e casada na província de Moxos em
Espanha (...) que também vivem amancebados Sanjago índio solteiro com
Margarida de tal casada em Espanha, e ambos castelhanos e moradores nesta
freguesia. Que também o índio chamado Felipe Bonito índio Castelhano com Maria
também índia casada, e ambos castelhanos, casados com os consortes na Espanha
que da mesma sorte Toribio com Maria ambos índios espanhóis, e lá casados vivem
concubinados (...)(DVGCEC, 1785, p. 27-8).
(...) Francisco Pereira bastardo morador nesta freguesia casado segundo ouvio ele
mesmo, o qual vive a muitos anos amancebado com uma parda mestiça solteira e
também moradora nesta freguesia chamada Tereza Soares e isto sabe por fama, e
escândalo que de si dão, e que também Antonio Fernandes homem bastardo cujo
estado ele ignora (...) o qual vive a muitos anos, digo a alguns anos amancebado
nesta mesma missão com Francisca de Pinho parda mestiça cujo estado ele ignora
(...) (DVGCEC, 1785, p. 77-8).
sabem que alguma pessoa seja feiticeira, faça feitiços ou use deles para querer bem
ou mal, para ligar ou desligar para saber as coisas ocultas ou adivinhar ou para outro
qualquer efeito ou invoque os demônios ou com eles tenha pacto expresso ou tácito,
ainda que disso seja enfamado. (DVGCEC, 1785, p. 7).
Francisco de Oliveira Garcia homem branco (...) disse (...) que sabe por fama
pública neste Arrayal que o capitão Domingos Carlos de Oliveira tem um escravo
cujo nome ele testemunha ignora, mas que por alcunha muxiba, o qual negro he
feiticeiro, e cura de feitiço neste Arrayal, e que ele testemunha morrera um escravo
que se queixava de malleficios que o mesmo lhe fizera, (...) e que dito Capitão Seu
Senhor- recebe jornal do mesmo escravo que adquire pelas suas curas como pagarão
Francisco Joze, e Francisco de Souza (...) (DVGCEC, 1785, p. 50).
Francisco Joze de Oliveira (...) testemunha referida por Francisco de Oliveira Garcia
(...) declarado ter ouvido dizer que um escravo do capitão Domingos Carlos de
Oliveira, chamado (...) o muxiba, e nome verdadeiro Domingos, e feiticeiro (...) e
que enquanto ter ele testemunha ter pago jornais a seu Senhor he menos verdade,
pois suposto chamou ao tal escravo para curar huma sua inteada de huma dor na
perna, este fez a tal cura com raízes e a fomentaçoens (...) (DVGCEC, 1785, p. 60).
Pedro José do Amaral capitão de ordenanças branco casado (...) disse que ouvio
Francisco de Oliveira queixar-se de que hum negro do Capitão Domingos Carlos de
Oliveira (...) chamado por alcunha o Muxiba por lhe havia morto hum negro com
feitiços, e ele testemunha ouvio curar de feitiços em casa de Ursula de Campos
sogra dele (DVGCEC, 1785, p. 66).
O caso de Moxiba nos chama atenção pelo maior cuidado que o visitador lhe dedica,
convocando às testemunhas referidas nas denúncias feitas sobre o escravo para prestar
esclarecimentos. Percebemos que Moxiba foi delatado nove vezes durante a visita de Bruno
Pina em 1785.
Quanto à ocorrência de feiticeiras, temos o caso de Francisca de Senne, que foi
classificada como ascendente indígena na documentação, sendo também a mais denunciada
por praticar feitiçarias. Como podemos ver no trecho a seguir: “João Fernandes dos Reis
homem pardo, casado (...) ouvira dizer a Clemente Teixeira índio desta Missão, que Francisca
de Senne, parda mestiça era feiticeira ou fazia feitiços com que danificava nesta Missão (...)
(DVGCEC, 1785, p. 81)”.
Outro a denunciar Francisca, se apresentando como testemunha referida7, é Clemente
Ferreira da Costa, um indígena que ao ser interrogado afirmou que “(...) Francisca de Senne
índia (...) parda mestiça, casada (...) é feiticeira ou faz feitiços pela fama que a mesma tem em
toda a esta Missão (...) (DVGCEC, 1785, p. 83-4)”. Chamamos a atenção ao fato de que a
testemunha refere-se a um indígena estar denunciando outro indígena, nesse caso uma mulher.
Isso nos leva a concluir que diante da intimação do Visitador em prestar depoimentos, não
existem motivos para poupar ninguém, nem mesmo àqueles que pertencem a seu grupo social.
Francisca de Senne ainda será delatada mais quatro vezes, e na grande maioria das denúncias
as testemunhas não afirmam saber que a mesma é feiticeira, mas que “ouviu dizer”.
Ao nos ater na análise de crimes como a prática da magia e feitiçaria, assim como nos
atos de concubinatos e amancebamentos, percebemos que eles além de predominarem nos
autos da devassa da visita geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, são também os que
parecem preocupar mais os visitadores por atentarem aos preceitos de ‘bom cristão’ e
‘família’, pregados pela Igreja. No entanto, na devassa produzida durante a visita de Bruno
Pina encontramos também denúncias relacionadas a crimes de sodomia, incestos, blasfêmias,
entre outros.
A pouquíssima ocorrência destes crimes é perceptível nas penas impostas pelo
Visitador aos denunciados. Apenas dois denunciados foram penalizados por culpa de incesto
no primeiro grau de afinidade. Um homem e uma mulher, ambos do grupo indígena,
remetidos à prisão pelo crime. Por crime de concubinato foram condenadas 26 pessoas, em
sua maioria prevalecem bastardos, pardos forros, mestiços forros, índios, índios mestiços,
negros forros e pardos mestiços.
7
Testemunha referida é aquela que é convocada pelo tribunal da Visita após ser citada em outra denúncia.
Considerações finais
Referências
Devassa da Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá. (1785), Visitador Bruno Pina,
Série Visitas Pastorais, Notação VP3, Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro –
ACMRJ (transcrição datilografada).
MONTEIRO, L.M. A Inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício no
extremo sul da América Portuguesa (1680-1821). 2011. 220 fls. Dissertação (Mestrado em
História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2011.
ROSA, C. A. A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá: vida urbana em Mato Grosso no
século XVIII: 1722-1808. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1996.
_________, M. T. O universo mágico das curas: o papel das práticas mágicas e feitiçarias no
universo do Mato Grosso setecentista. In. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Rio de
Janeiro, v. 16, n. 2, abr/ jun, 2009, p. 325-344. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v16n2/04.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2013.
_______, R. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997.
Karl Schurster2
Resumo: Este artigo tem como objetivo um estudo sistemático sobre a abertura de um novo campo disciplinar
na Europa, no final dos anos 1970 do século passado, chamado de história do tempo presente. Através de uma
forte influência da historiografia alemã, em especial a Alltagsgeschichte, a historiografia francesa, com a direção
do professor François Bédarida, cambia do Comitê de Altos Estudos da Segunda Guerra Mundial para a criação
do Instituto de História do Tempo Presente, em Paris, tendo com sua matriz inicial as grandes guerras mundiais.
Nosso foco, nesse artigo, é não só percorrer os caminhos teóricos propostos pelos estudos em história do tempo
presente, mas procurar entender sua relação com a metodologia comparativa, partindo do pressuposto de que
toda história do tempo presente é história comparada, e da relação desse campo disciplinar com os estudos dos
fascismos.
Palavras-chave: Tempo Presente, História Comparada, Fascismos, Nazismo.
Abstract: This article aims a systematic study about a new disciplinary study in Europe, by the end of the last
century 70’s, called history of the present time. Through a strong influence of the German historiography,
especially the Alltagsgeschichte, the French historiography, with direction by Professor François Bédarida, goes
to the Second World War High Studies Committee to the creation of the Present Time History Institute, in Paris,
having as an initial matrix the great world wars. Our focus, at the article, it is not just to walkthrough theoretical
fields proposed by the studies in present time history, but also try to understand its relationship with the
comparative methodology, starting from the supposition that all the present time history is comparative history,
and the relationship of that disciplinary field with the fascism studies.
Keywords: Present History, Comparative History, Fascism, Nazism
(...) en leur temps, un Thucydide ou un Michelet ne furent-ils pas, eux aussi, des historiens du
temps présent?
Pascal Balmand
Iniciar um debate sobre o tempo presente requer uma reflexão profunda sobre a
própria noção do termo, que se constitui hoje como conceito, sua validação, sua prática e sua
própria história. Muitos problemas de caráter teórico-metodológico estão associados a esta
noção, que não explicita, em si, uma definição fixa. Podemos pensar o presente? É possível
concebê-lo historicamente?
As primeiras ideias que temos associadas ao termo História do Tempo Presente são
obviedades, como história próxima, imediata, história em processo, ou mesmo História
Contemporânea – mesmo que na sua gênese francesa, a História Contemporânea e a História
do Tempo Presente signifiquem campos distintos. A intelectual argentina Beatriz Sarlo indica
que os intelectuais necessitam (re)pensar, esmiuçar, a ideia de tempo que deveria ser
preliminar à própria noção de presente ou de contemporâneo (SARLO, 2010). Uma das
questões abordadas tanto no livro Tiempo Presente quanto no livro Tiempo Passado é que a
escrita desse tipo de história tem como uma de suas especificidades a presença de uma
memória viva, que carrega consigo sua complexidade e diversidade, muitas vezes
transformando a memória em algo mais importante que a reflexão, transformando-a em
monumento. Entender e recordar são parte integrante do ofício do intelectual do presente. Um
não pode existir em detrimento do outro. O exercício de reflexão acompanhado de um
constante estranhamento de sua própria condição existencial no presente é condição sem a
qual o intelectual não poderia ler seu próprio tempo. Refletir sobre a História do Tempo
Presente é, em larga medida, construir uma visão com relação a certa ideia de passado –
espaço de experiências – ou em relação ao futuro – horizonte de expectativas.
Estas discussões não colocam em pautas as análises da crítica pós-moderna às
historiografias contemporâneas, deixando esta discussão para outro espaço, já que não
queremos nos encaminhar para uma problematização discursiva das narrativas intelectuais. A
leitura do presente indica a necessidade de um diagnóstico dos objetos e das conjunturas
estudadas, e é nesta leitura que pensamos tal ofício. A História do Tempo Presente auxilia na
formação de diagnosticadores do presente, de indivíduos capazes de estranhar (Entfremdung)
sua própria sociedade e sua condição nela. O conceito de diagnóstico 3, trazido para as
humanidades pelo filósofo Friedrich Nietzsche, pode ser entendido como a ação de determinar
uma doença segundo seus sintomas. O ofício do historiador do tempo presente, neste sentido,
muito se assemelha ao do médico. Partindo desta análise, o historiador do presente não estaria
pautado pela necessidade de “descobrir verdades ocultas”, mas sim de tornar legível seu
próprio tempo, dando aos problemas e acontecimentos presentes uma historicidade, fazendo
com que os eventos sejam problematizados. A função do diagnóstico do tempo presente é tirar
dos eventos, ocorridos no momento das análises, a ideia de algo posto, dado, natural, para,
através de uma teoria crítica de estranhamento, a própria condição do investigador mediante
seu objeto, o cotidiano, pensar sobre as implicações, os desdobramentos, do mesmo perante a
sociedade. Portanto, nossa intenção não se debruça sobre a realidade propriamente dita, mas
sobre aquilo que a torna possível, e como torná-la legível.
Não só as outras áreas de conhecimento, como a sociologia, a filosofia, a antropologia
e a geografia trouxeram em seus discursos uma limitação do fazer histórico, mas a própria
história, o próprio discurso histórico reduziu a prática histórica, quando centralizou seu modus
operandi, suas formas de fazer, sua operação (para utilizarmos um termo do teórico francês
Michel de Certeau) em grupos fechados de historiadores detentores de uma formula mágica,
quase alquímica da história.
Neste aspecto, entendemos que a História do Tempo Presente ainda se encontra num
espaço de lutas e debates para se afirmar como uma possibilidade de interpretação da história.
Lembremos, por exemplo, a possibilidade de ainda ocorrer a divisão entre uma História do
Tempo Presente e uma História Imediata, logo, aquilo que marcaria essa diferença seria: na
História Imediata, o autor-pesquisador se preocuparia com o evento ocorrente, não havendo,
portanto, um distanciamento entre o sujeito produtor do conhecimento histórico e o seu objeto
(fato) de pesquisa, dessa forma, é possível analisar-se o evento antes mesmo dele ter seu
desfecho, sendo ainda um terreno de intensos debates entre a história e o jornalismo,
principalmente pela necessidade de ação que os seus produtores carregam4; por outro lado, a
História do Tempo Presente apresenta-se como uma ampla e fértil abordagem para as análises
historiográficas contemporâneas, e, mesmo ocupando um lugar próximo à historiografia
imediata, a história do tempo presente é, acima de tudo, História, não havendo, portanto,
necessidade de demarcações de fronteiras epistemológicas, como na anterior. Acerca da
História do Tempo Presente, Serge Bernstein e Pierre Milza nos dizem:
Assim sendo, no texto aqui apresentado temos duas intenções maiores: entender como
se apresenta na historiografia contemporânea a História do Tempo Presente, seus paradigmas
e suas utilizações e como esta sofreu e sofre uma constante banalização na escrita da história.
Não há dúvidas sobre a assertiva de que a história do tempo presente constitui uma
racionalidade crítica da história. O campo de estudos da História do Tempo Presente se tornou
relativamente autônomo a partir de 1978-79 quando o CNRS (Centre National de la
Recherche Scientifique) francês decidiu criar um laboratório. A denominação tempo presente
foi criada, sobretudo, porque existia um outro laboratório no instituto que era o Institut
d'Histoire Moderne et Contemporaine criado em 1978. O Institut d'Histoire du Temps Présent
(IHTP) substituiu o Comitê de altos estudos da Segunda Guerra Mundial. Até o ano de 1991
seu fundador diretor foi o professor François Bédarida. Bédarida foi o primeiro historiador a
aponta que a historiografia atual tem convivido com a irrupção do presentismo. É cada vez
mais difícil continuar defendendo a efêmera ilusão do distanciamento, da subjetividade do
presente quando o mesmo se apresenta como uma demanda social. O tempo presente nasceu
da memória e da forma como ela agiu e age na gestão de traumas causados pela violência das
guerras, ou os usos políticos do passado. O estudo sistemático dos traumas dos grandes
conflitos e das experiências políticas que marcaram o século XX e continuam no novo século
renovam a responsabilidade social do historiador. Outras questões relativas a uma nova
agenda interacional se colocam como fundantes de um novo presente marcado por indecisões
e instabilidade.
O historiador francês Gerard Noiriel desponta como um dos mais severos críticos ao
modelo historiográfico do tempo presente. Noiriel considera contraditória as relações que este
modelo de história mantém com a demanda social e denuncia a importância extrema assumida
pela “lógica da perícia nos historiadores do tempo presente, que tende a transformar a história
numa espécie de juiz supremo que distribui os elogios e as reprimendas” (apud DOSSE, 2012,
p. 354). Talvez a visão da História do Tempo Presente na obra de Noiriel não esteja
englobando os estudos de Rousso e Bédarida. Longe de fazer um julgamento da história
Rousso e Bédarida estudaram la hantise du passé, a obsessão pelo passado que não passa (a
França de Vichy) enquanto seus pares estavam se debruçando em documentos sobre bruxarias
e hereges no medievo. A História do Tempo Presente foi de encontro ao conservadorismo
historiográfico que inclui fortemente a própria história francesa. Enquanto a história estava
estudando as questões relativas ao passado medieval e a história do absolutismo moderno uma
outra área do conhecimento estava preocupada com os desafios do presente: o cinema. A obra
de Marcel Ophuls, por exemplo, Le chagrin et la pitié: chronique d'une ville Française sous
l'Occupation, de 1969, representa a quebra no eterno silêncio dos historiadores.
Tecendo a metodologia
Toda História do Tempo Presente é uma História Comparada. Por mais que esta
afirmação pareça presunçosa aos olhos de quem lê, uma observação mais detalhada nos
levaria a este caminho. O método comparativo é mais frequentemente entendido como tendo
ocorrido entre duas ou mais nações, ou, pelo menos, dois lados de uma ou mais fronteiras.
Adotamos uma definição mais ampla de História Comparada: a comparação pode ocorrer
entre diferentes culturas ou até mesmo dentro de uma cultura, para identificar
seja o no papel do grande líder e seu carisma (sem negá-lo, contudo), seja na tese de ditadura
reflexa ou defensiva, com Ernst Nolte, ou mesmo na ideia de totalitarismo como chave
explicativa. As teses da revisão da revisão buscariam outros caminhos que apontariam para:
i. a natureza e as características do Estado são mais importantes do que a
personalidade do ditador;
ii. a atuação da chamada caótica coleção de burocracias rivais na expressão de
Kershaw e Broszat, seguindo a proposta de Franz Neumann, como característica
central do Estado fascista;
iii. o caráter de instável coalizão de blocos de poder, estes mesmos subdivididos
em facções competitivas e mutuamente hostis, como arranjo político típico dos
regimes ditatoriais.
Ian Kershaw e Martin Broszat fazem, então, uma dura e crítica análise do uso do
conceito totalitarismo para a história do nazismo. Para ambos a insistência em comparar os
regimes do Terceiro Reich e da URSS, e mesmo em avaliar o grau de “maldade” existente
entre os regimes, decorre do ambiente combatente da Guerra Fria e, pior de tudo, daquilo que
Kershaw chamou de german apologists attempting to white-wash the German past in various
ways. Para Kershaw/Broszat a teoria do totalitarismo possui vários pontos interessantes,
incluindo aí a análise do funcionamento de algumas instituições do Estado, mas não é capaz,
por sua generalidade, de produzir uma análise do próprio Estado, retendo-se em aspectos
formais das políticas de poder, como a propaganda enquanto categoria que tudo explica e que
resumo o próprio Estado, tendo como consequência uma relação enganosa e estupidificante
com a sociedade, que sucumbe à magia de homens como Josef Goebbels. Da mesma forma, o
caso da URSS precisaria de um instrumental teórico próprio e adequado – o que leva Kershaw
aos estudos de Moshe Lewin - ao tipo específico de ditadura que se desenvolveu sob o Partido
Comunista KERSHAW, 1997). Como procedimento metodológico impor-se-iam os estudos
das diversas instituições e burocracias que viabilizam o Estado ditatorial, como os corpos dos
altos funcionários, militares, diplomatas, polícias, da Justiça, professores, etc. Da mesma
forma, as novas burocracias emergentes – dos partidos – e sua colonização conflituosa do
Estado – quando se deparam com as burocracias especializadas já encastoadas (como os
militares, a polícia ou os diplomatas) explicam a crescente radicalização espontânea dos
regimes. Assim, a radicalização cumulativa e a correspondente corrida para satisfazer o
Führer – seja ele o homem providencial, o partido ou uma ideia coletiva - e/ou prestar
mesmo um atalho para a promoção, eliminando rivais mais habilitados –, o recurso à delação
como forma de resolver litígios não políticos ou ideológicos, e mesmo uma forma de
premiação, seria um dado importante para estudar o papel da sociedade civil, em especial da
colaboração/adesão, nos regimes ditatoriais.
O problema aqui seria superar tradições arraigadas neste tipo de estudo: de um lado, a
insistência de heroicizar o conjunto da sociedade como vítima do Estado e nivelar todos como
heróis da resistência. Logo após a derrubada ou colapso das ditaduras dá-se uma imensa
corrida para perfilar o maior número de pessoas como resistentes. É comum, mesmo, que o
próprio poder emergente se recuse a distinguir entre resistentes e colaboradores, na tentativa
de evitar novas divisões, como no caso da curta desnazificação alemã ou o limitado recurso a
julgamentos de colaboradores na França ou, ainda, a total ausência de desfascistização na
Itália ou Áustria, ou o esquecimento apaziguador buscado pelas elites políticas sul-
americanas – emergindo daí a visão do conjunto da nação, vítima e combatente.11
Outra discussão não realizada entre nós refere-se ao eterno retorno da explicação da
vigência, aceitação e adesão aos fascismos – e por antonomásia a todas as ditaduras – através
da propaganda. Para um grande número de pesquisadores a noção de propaganda acaba por
explicar tudo, sem uma preocupação em questionar o próprio sentido e alcance do termo.
Estaríamos mesmo hoje envenenados pelos truques, arranjos e montagens de Joseph Goebbels
aceitando suas próprias explicações – um tremendo autoelogio! – para o seu papel dominante
na construção do Reich e na aceitação popular do regime. Continuaríamos presos aos modelos
explicativos propostos por Jean-Marie Domenech, largamente adotados (embora muito pouco
citado) sobre o papel da propaganda política nos regimes de massas (DOMENECH, 1959). Na
verdade, desde os anos de 1950, Ernst Nolte já advertia para a singularidade da prática
política sob o fascismo (NOLTE, 1966; STERNHELL, 1978). Para Nolte a política fascista
não se faz da mesma forma que o agir político liberal – formal, regulado, arbitrado – ou
marxista – que se quer revolucionário e de novo tipo. Na verdade, o agir político fascista seria
uma metapolítica capaz de arrancar o homem comum da sua rotina enfadonha e
estupidificante para uma aventura em direção à transcendência. Claro, uma transcendência
totalmente teórica, longe da possibilidade de uma transcendência material e, portanto,
revolucionária. Assim, o agir político fascista não seria propaganda e, sim metapolítica.
Mais recentemente George Mosse (1918-1999), um historiador caracterizado pelo
inconformismo e pelas proposições novas e desconcertantes para a ortodoxia universitária,
propôs rever todo o conceito de propaganda no fascismo, trazendo o debate para a prática
política das massas.12 Neste sentido, cabe uma discussão de fundo que deve ser apreciada.
Podemos verdadeiramente entender os fascismos a partir de abordagem caudatária da teoria
política liberal? Esta é uma questão central. Um grande número de pesquisadores conclui
muito rapidamente que os fascismos – inclusive, é claro, o nazismo! – não formam um
pensamento coerente. Tratar-se-ia, bem mais, de um mal arrumado patchwork. Sua
capacidade de convencimento estaria no constante martelar da propaganda, que se
constituiria, desta forma, em chave para análise dos fascismos. Reside aqui um grave
problema de análise para a história dos fascismos: correríamos o risco, grave para cientistas
sociais, de atribuir ao martelar da propaganda à capacidade de convencimento e mesmo a
conquista do poder pelos fascistas. Ora, alguns trabalhos de grande fôlego, que mergulham
profundamente no agir fascista – como Nolte e Paxton – acabam por perceber a clara
diferença do fazer política liberal e do fazer política fascista aproximando a prática política
fascista do conceito, caro para Paxton, de paixões. O segredo da vitória fascista residiria bem
mais no apoio que recebeu das forças tradicionais das sociedades europeias, muito
especialmente dos partidos e movimentos conservadores e, mesmo, de liberais. Para Paxton
tais paixões mobilizadoras implicam no sentimento geral de frustração e perda, no
nacionalismo exacerbado e no sentimento de fazer parte de um grupo social vítima de uma
injustiça coletiva – somente aí, e em tais condições, a propaganda teria um papel a
desempenhar (PAXTON, 2007).
Estes são pontos, a nosso ver, extremamente pertinentes para a discussão dos
fascismos, mas também dos sentimentos de perda que embalam vastas camadas sociais na
Nova Ordem Mundial e, portanto, do advento da Ressurgência dos fascismos. Tais questões
abrem caminho para outros debates. Ao buscarmos as noções de participação, representação,
partido, etc. do pensamento liberal como ferramentas de análise dos fascismos estaríamos
produzindo o próprio diagnóstico de confusão, anarquia ou improvisação que são, tão
frequentemente, atribuídos aos fascismos. O que Mosse chama a atenção é que estes – a
mobilização massiva permanente – são, exatamente, os métodos do agir político fascista, com
suas características próprias e não reduzíveis ao mundo teórico liberal.
Nesse sentido, mais do que um retorno a história política, a História do Tempo
Presente possibilitou a abertura de um campo disciplinar voltado para o estudo contínuo e
sistemático de traumas coletivos, tendo as grandes guerras mundiais como seu maior
laboratório empírico. Nosso objetivo foi mostrar quais caminhos foram trilhados para a
consolidação nesse campo disciplinar na Europa, suas interfaces metodológicas com a história
comparada e como essa produção de saber interpretou o fenômeno dos fascismos num
momento em que parte do continente europeu optou pelo esquecimento em detrimento da
lembrança numa frustrada tentativa de seguir em frente e renegar um passado que se
queria/podia resgatar.
Não há como negar que a historiografia francesa foi nossa matriz, mesmo tendo
certeza que tivemos no Brasil uma vasta e pioneira experiência com o que chamamos de
História do Tempo Presente, primeiro de forma menos acadêmica, mas nem por isso menos
profunda, com Ferreira Gullar (*1930) e Hélio Oiticica (1937-1980) e algumas décadas mais
tarde com a criação do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da UFRJ (1994).
Acreditamos que a História do Tempo Presente no Brasil, a abertura desse campo de trabalho
e suas temáticas de pesquisa ainda serão fruto de outros artigos que poderão começar a
preencher essa urgente lacuna historiográfica.
1
Dedicamos esse texto ao prof. Francisco Carlos Teixeira da Silva, o fundador do campo disciplinar da história
do tempo presente no Brasil.
2
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ com estágio de pesquisa na
Freie Universität Berlin e Pós Doutorado na Universidade Federal Rural de Pernambuco com estágio
internacional na Universidade Nacional de la Plata/Argentina. Pesquisador do Grupo de Estudos Sociocultural da
América Latina, onde coordena a linha História do Tempo Presente. Professor permanente do Programa de Pós
Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, em Gestão do Desenvolvimento Local
Sustentável da Universidade de Pernambuco e Adjunto de Teoria e Metodologia da História da Universidade de
Pernambuco. Atualmente é bolsista do Instituto Yad Vashem em Jerusalém/Israel onde desenvolve pesquisa
sobre a memória do Holocausto e coordena o curso de graduação em História da Universidade Estadual de
Pernambuco e professor colaborador do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da
Universidade Nacional de La Plata/Argentina.
3
Ver: FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. Ver também:
DUARTE, Andre. Vidas em Risco: critica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2011. CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: editora 34, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre história. São Paulo: Loyola, 2005.
4
É, em certa medida o que ocorreu com Marc Bloch em um de seus últimos textos: A estranha derrota. Ver:
BLOCH, Marc. A estranha derrota. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
5
Esta abordagem da patologia e a total irracionalidade dos fascismos, uma recusa do historiador em buscar o
entendimento (Verstehen) do fenômeno (e não nos referimos ao explicar, Erklären) deve-se, em grande parte a
insistência de se pensar o fenômeno fascista do ponto vista político, moral e teórico do pensando iluminista, seja
em sua vertente liberal, seja em sua vertente marxista – exatamente o que os fascismos negavam. Este era um
ponto fulcral do “Historikerstreit” dos anos ´80 e que ao final dos anos ´90 ainda não fora debatido na
universidade brasileira.
6
O debate inicial da “Querela dos Historiadores” deu-se através de um pequeno, denso e desafiante artigo do Dr.
Ernst Nolte no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, no dia 6 de junho de 1986, intitulado: Vergangenheit, die
nicht vergehen will: Eine Rede, die geschrieben, aber nicht mehr gehalten werden konnte, servindo como um
gatinho para um debate que envolverá grandes nomes da historiografia contemporânea.
7
Um produto direto da “Querela dos Historiadores”, e com a capacidade de atingir milhões de pessoas – ao
contrário do debate acadêmico – foi o filme de Michael Verhoeven chamado Das Schreckliche Mädchen (Uma
cidade sem passado), de 1989, onde o esquecimento é visto como uma benção e a reconstrução e exposição do
passado como terrível (schrecliche).
8
O texto onde a aplicabilidade teórica desta discussão está posta é: DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. O
século Sombrio. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
9
NEUMANN, Franz. Behemoth. The Structure and Pratice of National-Socialism, 1933-1944. Nova York,
Lyndon & Co., 1944. Devemos destacar aqui um fato importante para a história do debate historiográfico sobre o
nazismo (e os fascismos em geral) na República Federal Alemã – quer dizer, antes da reunificação de 1991.
Embora a maior parte dos trabalhos historiográficos aceitem hoje a questão da dinâmica interna das ditaduras
fascistas e do choque de forças em seu interior (a tese da rivalidade interna entre os bloco of powers) nenhum
dos autores clássicos sobre o tema, incluindo Ian Kershaw, citam Neumann como o autor do primeiro trabalho a
defender e explicitar a tese da poliarquia (muitos inclusive utilizam o termo poliarquia sem citar a origem). Ver:
NEUMANN, Franz. Behemoth. Op. cit.
10
A leitura atenta das memórias de Albert Speer (1905-1981)– arquiteto de Hitler e depois ministro das
indústrias e dos armamentos - talvez o documento mais interessante sobre o funcionamento cotidiano do
Terceiro Reich - nos dá uma ampla visão do choque entre as diversas burocracias do Estado, do Partido, as
FFAA e o Gabinete com o recurso permanente entre as partes em conflito a arbitragem do Führer. Ver SPEER,
Albert. Spandauer Tagebücher, Hamburgo, Ullstein, 1991.
11
Tais visões da nação resistente e vítima foram popularizadas no pós-Segunda Guerra Mundial por grandes
produções de cinema que popularizaram o “heroísmo” coletivo e a unidade contra o inimigo. Esta é a versão, por
exemplo, do mito gaulista em Paris está em chamas? (Paris brûle-a-til?), de René Clement, 1966 ou da Itália
vitimada pelos nazistas e fascistas em Roma, cidade aberta (Roma, città aperta), de Roberto Rosselini, 1945.
12
O Trabalho inicial nesta direção, em inconformidade com o uso tradicional do conceito de propaganda,
foi MOSSE, George. Nazi Culture: Intellectual, Cultural and Social Life in the Third Reich. G.L. Mosse, 1966.
Em anos seguidos Mosse porduziu um bom número de obras sobre o tema, com destaque para: The
Nationalization of the Masses: Political Symbolism and Mass Movements in Germany from the Napolionic
wars throught the Third Reich, 1975.
Referência bibliográfica
BARROS, José de Assunção. História comparada: um novo modo de ver e fazer a história.
Rio de Janeiro: Revista de História Comparada, n 1 v. 1, 2007.
CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: editora 34, 2001.
DOSSE, François (Et Ali). Correntes Históricas na França. Séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2012.
DUARTE, Andre. Vidas em Risco: critica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
FEST, Joachin. Conversas com Albert Speer. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012.
GARCIA, Patrick. Histoire du temps présent. In: DELACROIX, C.; DOSSE, Frannçois;
GARCIA, Patrick; OFFENSTADT, N. Historiographies I e II. Concepts et débats. Paris:
Folio, 2010.
KULK, Otto Dov (February 2000). The Role of Hitler in the ‘Final Solution’. Yad
Vashem.http://www1.yadvashem.org/about_HOLocaust/studies/vol33/abs_Otto_Dov_Kulka.
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MOMMSEN, Hans. Herrschaftsalltag im Dritten Reich: Studien und Texte . Studies and
Texts), Munique, DTV, 1988.
MOSSE, George. Nazi Culture: Intellectual, Cultural and Social Life in the Third Reich.
G.L. Mosse, 1966.
SEIGNOBOS, Charles. História Comparada dos povos da Europa. São Paulo: José Olymio,
1945.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Os tribunais da ditadura. O uso da lei e da violência
nas ditaduras contemporâneas. Análise comparada dos Tribunais especiais no Terceiro
Reich, na Itália Fascista e no Estado Novo. São Paulo: Relatório de Pós Doutorado.
Universidade de São Paulo. 2001.
Resumo: Esta pesquisa objetivou investigar as representações memorialísticas e literárias de Chica da Silva nas
“Memórias do Distrito Diamantino”, 1868, de Joaquim Felício dos Santos e no romance histórico “Xica da
Silva”, 1976, do literário João Felício dos Santos a partir da utilização do conceito de representação. Busca
também discutir a aproximação entre História, Literatura e Memória Histórica e com os suportes metodológicos
da análise discursiva identificar as desigualdades socialmente construídas para a mulher negra que circulam no
discurso do texto literário e memorialístico.
Palavras-chave: História, Literatura, Memória Histórica, Representação, Chica da Silva
Abstract: This study investigated the representations and literary memorialísticas Chica da Silva in “Memórias
do Distrito Diamantino”, 1868, by Joaquim Felício dos Santos and the historical novel “Xica da Silva” in 1976,
the literary João Felício dos Santos from using the concept of representation. Search also discuss the connection
between History, Literature and Historical Memory and supports methodological discourse analysis to identify
socially constructed inequalities for black women that circulate in the discourse of the literary text and
memorialistic.
Keywords: History, Literature, Historical Memory, Representation, Chica da Silva
Introdução
sua vida, auferindo bens, tornando-se senhora de escravos, buscando comportar-se como um
membro da elite tejucana. A ex-escrava mostrou desvelo pelos filhos, não medindo esforços
para educá-los e inseri-los positivamente em uma sociedade excludente, demonstrando
também devoção no seguimento dos preceitos católicos.
O corpus documental desta pesquisa é composto por fontes impressas, um livro de
memórias e um romance literário. Fontes profícuas para pesquisadores que buscam
impressões de vidas, valores, anseios, sentimentos humanos e no caso deste trabalho,
representações sobre a figura feminina, repleta de significados. Isso não seria possível sem o
advento da História Social e Cultural como da História das Mulheres, que retiraram das
fímbrias da memória aspectos importantes do universo feminino. Ressalta-se que, no estudo
das representações memorialísticas e literárias se “(...) requer, necessariamente, a
interpretação da forma e do conteúdo das obras, ou seja, exige que sua análise interna seja
articulada aos contextos históricos e sociais” (FERREIRA, 2009, p. 83). Assim sendo, tornou-
se indispensável instituir uma tática para o estabelecimento da conversação entre texto e o
mundo circundante. Dessa forma utilizou-se como procedimento de investigação e
interpretação do documento, a análise do discurso, que visa “(...) explicitar como texto
organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeitos e sentidos” (ORLANDI, 2001, p.
26 – 27).
Sobre a fonte memorialística, vale ressaltar que pode ser escrita seja a partir da
investigação em arquivos, como a partir das memórias do autor, sejam elas sociais ou
particulares. Como verdadeiros autentificadores de uma ideologia regionalista, muitos
memorialistas não hesitaram em eternizar a história de sua região, edificando mitos
fundadores, como foi o caso de Chica da Silva, inscrita na memória regional encoberta sob o
véu do preconceito.
A literatura nos oferece um conjunto de possibilidades para novas leituras de
retentivas do passado. O diálogo entre história e literatura permite interpenetrar processos
sociais e processos simbólicos. No seu ofício, o historiador urde o enredo de sua trama
subjetivamente, assim como o literato, “tal como a literatura, a história, enquanto
representação do real constrói seu discurso pelos caminhos do imaginário” (LEENHARDT,
1988, p.12). Os historiadores, como artífices da história, utilizam de recursos ficcionais na
representação de fatos e acontecimentos, embora freados por alguma documentação. Pois,
Historiador não é literário.
Ainda que se escreva em forma “literária”, o historiador não faz literatura, e isso por
causa do fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo,
A literatura não pode ser sintetizada a uma mera realização estética, mas sim como
fenômeno cultural, que vem possibilitando ao historiador assumi-la como documento para as
suas observações e indagações, por trazer “(...) à luz alguns dos valores, comportamentos,
gestos, inclusive motivações e imaginários que serviam como guias para as ações das pessoas
em cada época” (CARNEIRO, 2006, p. 15). Por historiar e registrar o movimento que o
homem desempenha, suas perspectivas de mundo, suas aspirações, a literatura dá um
depoimento histórico, e como tal, deve ser inquirida segundo seus atributos característicos.
Dadas as mãos, história e literatura, aproximam-se das representações construídas sobre o
real.
apresentada pela primeira vez nas páginas das Memórias do Distrito Diamantino (1868) de
Joaquim Felício dos Santos. Se o conceito de representação remete a “(...) uma exposição,
uma reapresentação de algo ou alguém que se coloca no lugar de um outro, distante no tempo
e/ ou no espaço” (PESAVENTO, 2008, p. 40), percebe-se, a partir da obra de Joaquim Felício
dos Santos, a exibição de uma imagem repleta de valores de Chica da Silva que colocou-se no
lugar da “outra”, da mulher setecentista que habitou no arraial do Tejuco e que encontra-se
espacialmente e temporalmente distante do momento de escrita do autor.
Se a imagem-lembrança de Chica da Silva residia na mente dos diamantinenses e se os
fatos tidos como de sua vida passeavam pelas conversas populares através do campo volátil
da oralidade, a sua imagem passaria a se solidificar com maior intensidade no imaginário
social a partir da linguagem escrita de Joaquim Felício dos Santos, já que, “o imaginário
social se expressa por símbolos, ritos, crenças, discursos e representações alegóricas e
figurativas” (PESAVENTO, 1995, p. 24).
Joaquim Felício dos Santos no ano de 1853 conduziu a repartição dos bens no
rompimento da união conjugal do seu tio o tenente Feliciano Atanásio dos Santos com a neta
de Chica da Silva, Frutuosa Batista de Oliveira a única filha de Rita Quitéria Fernandes de
Oliveira (FURTADO, 2003). Também foi no ano de 1860 o representante legal dos legatários
de Chica da Silva num processo pela posse dos haveres do contratador João Fernandes de
Oliveira no Brasil (FURTADO, 2003). Ambos os processos, de repartição de bens e de ação
de posses no pleito judicial, serviram a Joaquim Felício dos Santos como “(...) material
inusitado para compor sua crônica colonial, pois nas horas vagas Joaquim Felício escrevia
uma história da região, publicada em capítulos, entre 1862 e 1864, no jornal local O
Jequitinhonha” (FURTADO, 2003, p. 265). Trata-se do primeiro jornal da cidade mineira de
Diamantina, fundado pelo próprio Joaquim Felício dos Santos no ano de 1860 (DUARTE,
2010).
Joaquim Felício dos Santos coadunou os vários artigos periódicos lançados no jornal
O Jequitinhonha numa obra intitulada como as Memórias do Distrito Diamantino, que se
tornou notória após a publicação em 1868 (FURTADO, 2003). De definida inclinação
republicana, Joaquim Felício dos Santos nas suas Memórias do Distrito Diamantino não
somente buscou elencar os principais fatos do cenário político da história diamantinense, mas
ao focalizar a fase de exploração de diamantes no Arraial do Tejuco, ressalta a história de
Chica da Silva, que inscrita na obra com feições de lenda, ganha o estatuto de personagem
histórica de alcance nacional.
(...) tinha as feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça rapada e coberta com
uma cabeleira anelada em caixos pendentes, como então se usava; não possuía,
graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, enfim não
possuía atrativo algum, que pudesse justificar uma forte paixão (SANTOS, 1956, p.
161).
representação de Chica da Silva possibilita uma explicação da realidade do autor que a pensou
e a retratou de maneira torpe, passando “(...) a encarnar o estereótipo da mulher negra e
escrava (...)” (FURTADO, 2003, p. 267). Cabe ressaltar que esta imagem foi estabelecida por
um corpo de valores culturais e sociais de um dado momento, não podendo ser crivada como
uma representação real ou não real, pois, “a força da representação se dá pela sua capacidade
de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se
inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade”
(PESAVENTO, 2005, p. 42).
Roger Chartier explica que as representações do mundo social “(...) são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza” (CHARTIER,
1988, p. 17). Pois, ao relacionarmos o conteúdo da crônica colonial de Joaquim Felício dos
Santos com a sua posição de enunciação relevante pelo seu posto de autoridade como
político4, jurista5 e romancista6, percebemos que o seu livro de memórias, pelo alcance e
circulação territorial tornou-se notório e de leitura indispensável para qualquer indivíduo que
se sinta atraído a saber mais sobre a história de Diamantina. Tal obra recria uma representação
feminina, tal mediatização é resultado de um discurso social masculino que não é neutro, mas,
ideológico, já que, “(...) a linguagem, em seu sentido mais amplo, desempenha papel
fundamental na definição e na manutenção da visão de mundo “masculina”, vigente na
maioria das sociedades ocidentais modernas” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 55). Joaquim
Felício dos Santos enquanto “membro da elite branca preconceituosa do século XIX (...)”
(FURTADO, 2003, p. 268) descreveu Chica da Silva como uma “mulata de baixo
nascimento” (SANTOS, 1978, p. 161), pois, “aquele que tem o poder simbólico de dizer e
fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada
em uma relação histórica de forças” (PESAVENTO, 2008, p. 41). A memória histórica de
Joaquim Felício dos Santos, dotada desse poder simbólico, projetou Chica da Silva para a
história. Embora, a partir dessa obra o nome dessa mulher setecentista não tenha sido
esculpido na tabula monumental que perpetua a memória dos grandes heróis brasileiros.
Chica da Silva tornou-se um mito que atravessou as páginas de memórias e romances,
sendo transportada dos livros para o cinema, teatro, música e mais recentemente foi
“popularizada” pela televisão. Mas, qualquer estudioso ao buscar a matriz de onde surgiram
tantas imagens7 sobre essa personagem, certamente se deparará com o discurso oficial de
Joaquim Felício dos Santos, já que o texto do memorialista marca a gênese das representações
sobre essa mulher setecentista. A obra deste autor servirá de base concreta para quase tudo
que se escreverá posteriormente sobre Chica da Silva. Embora o livro de Joaquim Felício dos
Santos apresente informações enganosas sobre essa mulher histórica, enquanto “relato
original” e “texto fundador” foi constantemente retomado pelos autores subseqüentes, que
tomavam o seu texto como “matéria prima” ou “fonte principal” para os seus escritos sobre a
vida da ex-escrava tejucana. Sendo assim, os que sucederam a Joaquim Felício dos Santos na
memória histórica só agregaram novos atributos à imagem de Chica da Silva, fazendo uma
releitura desta mulher movidos por valores de novos tempos, pois “as representações
apresentam múltiplas configurações e pode-se dizer que o mundo é construído de forma
contraditória e variada pelos diferentes grupos do social” (PESAVENTO, 2008, p. 41).
Diferenciando-se das inúmeras negras que eram envolvidas no mundo da
desclassificação e do esquecimento, sina comum a quase todas as mulheres de sua etnia,
Chica da Silva foi descrita como uma exceção, mulher sem igual nem semelhante, singular,
que fez acordar emoções conflitantes nos autores que a representavam. “Bruxa, sedutora,
perdulária, megera, mas também redentora e libertadora de seu povo” (FURTADO, 2003, p.
278) todas essas modalidades são carregadas de sentidos sociais e históricos, são como nos
diz Sandra Pesavento imagens que “(...) se internalizam no inconsciente coletivo e se
apresentam como naturais, dispensando reflexão” (PESAVENTO, 2008, p. 41). Cabendo ao
historiador da cultura traduzir, interpretar estas imagens cifradas que podem ser
historicizadas, já que, foram concebidas num determinado momento histórico.
A reabilitação de Chica da Silva por João Felício dos Santos: de escrava grotesca a
mulata sensual
João Felício dos Santos, na década de 1970, reabilita a aparência de Chica da Silva a
exornando com muita beleza, esbanjando graça e sensualidade em seu romance (SANTOS,
2007). A Chica da Silva de João Felício dos Santos, ou melhor, a Xica da Silva com “X” de
João Felício dos Santos, pois, como se justifica na nota introdutória da primeira edição do seu
romance “com X, como se escrevia no tempo em que viveu” (SANTOS, 1976, nota de
introdução). Mas, a mudança não se resume a uma mera modificação consonantal no nome de
Chica da Silva8, pois, ela passa a encarnar a partir dessa obra ficcional o estereótipo da mulata
tentadora e irresistível, tipo feminino cobiçado pelos homens por seus atrativos sexuais e por
sua acentuada beleza física e sensualidade aflorada, que são os seus grandes trunfos.
A imagem voluptuosa de Chica da Silva fantasiada por João Felício dos Santos tem
ligações com a própria conjuntura sócio-histórica de escrita da obra literária, a década de
1970, momento histórico de forte inquietação política e cultural, onde assisti-se mobilizações
libertárias com o desejo de uma maior liberação sexual que prometia “sacudir a velha moral, o
velho mundo pudico, autoritário, patriarcal, arcaico” (GUILLEBAUD, 1999, p. 176) e que
progressivamente fazia desvanecer a velha armadura social que defendia uma imagem
normatizada para a mulher como casta, assexuada e abnegada ao lar. João Felício dos Santos,
na década de 1970, concedeu a Chica da Silva a “alforria sexual”, transformando-a na mulata
fatal, luxuriosa e amoral. Esta imagem é reveladora de como o mito de Chica da Silva vai
sendo modernizado de acordo com os valores dos diferentes períodos históricos, como
também torna visível uma posição masculina machista que através da linguagem cria uma
representação feminina sexualizada e racializada. Vale ressaltar que as representações sobre a
mulata altamente sensualizada remetem aos tempos coloniais, mas cada época atualiza tais
representações a sua maneira, assim como faz João Felício dos Santos. Se o movimento da
Revolução Sexual da década de 1970 repercutiu para a escrita do romance de João Felício dos
Santos, influência maior foi recebida da obra Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto
Freyre que criou representações sobre a mulher negra e tornou-se um marco referencial sobre
as possibilidades de pensamento de sua época. João Felício dos Santos é contemporâneo de
Gilberto Freyre e ao observar o contexto de formação do romancista na década de 1930 e ao
analisar a sua obra literária percebe-se a influência das idéias sobre a mulher negra e sobre a
miscigenação que circulavam naquele contexto de lançamento e discussão da obra de Gilberto
Freyre.
Chica da Silva for transformada na mulata luxuriosa por João Felício dos Santos, tal
mudança, “(...) foi justificada com o argumento da falta de documentos históricos sobre o
assunto, e somente a sensualidade da mulher mestiça poderia servir como fio narrativo (...)”
ambiente privado e doméstico, ainda não conseguiu se livrar dos laços de novos padrões
comportamentais normativos impostos para as mulheres como também desvincular-se de uma
visão masculina opressiva e tendenciosa que busca dominar os corpos e desejos femininos.
Pois, Mary Del Priore questiona:
Quem é essa mulher “mais livre”? Aquela que deseja, nos anos 70, viver a liberação
sexual. Cada vez mais parecida com as mulheres fotografadas nas revistas
masculinas, ela é extremamente provocativa. Não porque queira. Mas porque o
homem assim a deseja. Conhecedora, pelo menos em tese, de milhares de técnicas
sexuais, é o oposto de sua avó do início de século. Leitora ávida dos conselhos de
psicólogos, médicos e terapeutas sexuais, ela domina, ou crê dominar, todos os
saberes exóticos. Ela é um objeto sexual que gosta de seu papel. Alguma
preocupação com o emocional ou o afetivo? Zero. O fundo musical da cena pode ser
um hit da época: “I can’t get no satisfaction” do grupo Rolling Stones (PRIORE,
2006, p. 331).
É neste momento histórico que o mito de Chica da Silva seria modificado. Como musa
inspiradora que transporta valores presentes no imaginário social e expectativas daqueles que
a conceberam e ainda como receptáculo captador dos desejos dos homens, Chica da Silva
passa a ser, na década de 1970, objeto das fantasias sexuais masculinas, projeção de um tipo
de mulher desbragada sexualmente, de corpo sempre disponível onde o sexo poderia ocorrer
sem restrições. Pois, “(...) o corpo da mulher também é o campo de exercício do poder
masculino” (SANT’ANNA, 1993, p. 13) e na obra literária Xica da Silva “(...) a voz que fala
pela mulher é a voz masculina” (SANT’ANNA, 1993, p. 12) que não exprime os verdadeiros
sentimentos femininos, pois, não se trata de uma mulher de carne e osso, mas, de uma
imagem idealizada do que os homens querem e esperam da mulher. Pois, “longe de ser um
problema recente, as relações que o eu desenvolve com seu outro, desde tempos imemoriais,
têm provocado medo, segregação e exclusão” (JOVCHELOVITCH, 1988, p. 69) o que ocorre
na obra de João Felício dos Santos, onde o “eu” do autor é uma voz que tenta se passar pela
voz da mestiça Xica da Silva, voz que se expressa por ela, que se posiciona por ela, mas que
em momento algum questiona o racismo, a existência de preconceitos ou promove a
desconstrução de estereótipos. Muito pelo contrário, o discurso de João Felício dos Santos
vem reafirmando determinismos raciais como um círculo vicioso de estereótipos
depreciativos contra a mulher mestiça. Dessa forma o autor passa a perder a passagem para
uma subjetividade feminina, como a capacidade de se pôr no lugar do outro(a), de expressar-
se como se fosse o outro(a) e de traduzir interiormente o outro(a) desprendido daquilo que ele
é, ou seja, perde o alcance de uma positiva alteridade.11
Como um produto cultural que acompanha a sua conjuntura histórica, a obra de João
Felício dos Santos tem também algo a dizer sobre a década de 1970. Sendo assim, a partir da
escrita do romance de João Felício dos Santos podemos perceber o momento histórico de
elaboração da obra. Para melhor entendermos as representações de Chica da Silva na obra de
João Felício dos Santos temos que estar atentos aos aspectos extra-textuais como os da
produção autoral da fonte literária, ou do universo histórico-estético do autor, que são
expressão de uma época e das relações sócio – culturais que o mesmo constitui como sujeito e
agente histórico dentro de uma trama social. Sendo assim, o entendimento do momento de
inscrição da obra como o conhecimento das influências históricas, literárias, estéticas do
escritor permitem a compreensão de como as ausências são presentificadas no modo como
João Felício dos Santos constrói “sua” Chica da Silva.
Na linha do chamado “romance histórico”,12 a obra ficcional de João Felício dos
Santos Xica da Silva de 1976, mostra-se reveladora de representações femininas que dizem
muito mais do tempo de escrita da obra do que do tempo em que se busca retratar. Como um
homem inserido no seu tempo, as imagens criadas por João Felício dos Santos desvelam a
realidade do período em que foram imaginadas, como da sociedade que as concebeu
(PESAVENTO, 2002). Sendo que, o modo como o sujeito histórico constrói estas
representações é mediante sua posição sócio-cultural (CHARTIER, 1988). Assim sendo, cabe
a perquisição: Quem foi João Felício dos Santos?
João Felício dos Santos13 nasceu na cidade de Mendes no Estado do Rio de Janeiro no
ano de 1911 vindo a falecer em 13 de junho de 1989 no mesmo Estado. Foi topógrafo,
publicitário, funcionário público federal e jornalista, profissão na qual atuou por longa parte
de sua vida, sendo que os seus primeiros escritos datam de 1938 (SANTOS, 2007). A
compreensão da vida do autor nos permite compreender as relações de forças, já que
“podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”
(ORLANDI, 2001, p. 31).
Em seus romances históricos14, João Felício dos Santos buscou expor importantes
etapas da história brasileira, “(...) como o ciclo minerador, a chegada da família real
portuguesa, a Inconfidência Mineira, a Guerra dos Farrapos e resgata personagens que se
tornaram célebres – Xica da Silva, Carlota Joaquina, Aleijadinho, Anita Garibaldi, Calabar,
entre outros”, (SANTOS, 2007, p. 239) sendo que muitos destes personagens foram
transportados para a narrativa fílmica, pela expressividade de suas biografias romanceadas,
“(...) os livros Xica da Silva; Carlota Joaquina; Ganga Zumba (premiado pela Academia
Brasileira de Letras) e Cristo de Lama foram adaptados para o cinema” (SANTOS, 2007, p.
239).
João Felício dos Santos, embora seja um ficcionalista, não deixa de ter o real como
referência (PESAVENTO, 2000), pois, existe a vontade do romancista “de fazer crer que as
coisas se passaram realmente assim” (LEENHARDT, 1998, p. 43), sendo alicerce tanto do
discurso histórico como do literário “a vontade de representar na linguagem os fatos e os
acontecimentos segundo a modalidade do verossímil” (LEENHARDT, 1998, p. 43). E para
dar este efeito de “real” na obra Xica da Silva, João Felício dos Santos fez leituras que o
ajudaram a construir o seu romance, a partir de obras memorialísticas como as Memórias do
Distrito Diamantino do seu parente Joaquim Felício dos Santos, Arraial do Tejuco, Cidade
Diamantina de Aires da Mata Machado Filho e também de obras literárias como o
Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles e o Tesouro de Chica da Silva de Antônio
Callado. Mas, vale salientar que o texto de Joaquim Felício dos Santos foi o mais revisitado
por João Felício dos Santos pelo fato de conter informações sobre a economia, política,
organização social do vetusto arraial do Tejuco. Aqui percebemos a memória discursiva e o
interdiscurso “definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente”
(ORLANDI, 2001, p. 31) estes já-ditos sobre Chica da Silva são retomados por João Felício
dos Santos. Já que o autor busca trazer memórias diversas da vida de Chica da Silva embora
não seja “fácil penetrar na vida privada nem na vida íntima situada no interior da vida
cotidiana, ou porque se confundem com a vida pública, ou porque, ao contrário, se escondem
atrás do próprio pudor em revelá-las” (FOISIL, 1993, p. 331)
Joaquim Felício dos Santos, como o primeiro criador de Chica da Silva, teria a sua
personagem histórica apropriada e ressignificada por seu sobrinho-neto João Felício dos
Santos, que a tornaria um mito como a mulata lasciva de sexualidade exacerbada. Neste ponto
já percebemos na obra de João Felício dos Santos o intradiscurso “que seria o eixo da
formulação, isto é, aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas.”
Ou seja, o que se diz e que se diferencia.
O conceito de apropriação segundo Roger Chartier “(...) visa uma história social dos
usos e das interpretações (...)” (CHARTIER, 2002, p. 68) como também, segundo o autor
“(...) enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreensões e a liberdade criadora”
(CHARTIER, 2002, p. 67). O que pode ser perceptível com a imagem de Chica da Silva que
foi sendo moldada como barro pelas mãos dos seus muitos artífices. Releituras foram feitas
do discurso oficial de Joaquim Felício dos Santos sobre Chica da Silva e representações
contraditórias foram construídas sobre esta mulher, como a de João Felício dos Santos. As
apropriações que se fizeram de Chica da Silva geraram lutas de representações por aqueles
que buscaram determinar a sua imagem, já que “as lutas de representações têm tanta
No que tange às correntes literárias, as obras de João Felício dos Santos têm fortes
indícios regionalistas. Porém, como diagnosticou Teófilo de Queiroz Júnior (1975), ao arrolar
diversas obras literárias de autores nacionais, do Barroco aos Movimentos Contemporâneos,
que independentemente das correntes literárias e dos seus respectivos momentos de
manifestação histórica há sempre a persistência literária do estereótipo da mulata e com João
Felício dos Santos não foi diferente. Pois, em duas de suas obras datadas de tempos
diferentes, João Abade de 1957 com a mulata Maria Olho de Prata e Xica da Silva que
protagoniza e intitula o romance de 1976 o estereótipo da mulata permanece o mesmo com
pouquíssimas alterações, embora a década de 1970 fortaleça a representação da mulata
sensual.
Se o comprometimento de um autor com uma corrente literária não necessariamente
provoca uma revisão ou modificação do estereótipo da mulata, vale ressaltar que as
peculiaridades estilísticas de cada autor podem fomentar em níveis diferenciados o
estereótipo. João Felício dos Santos, favorecido por sua desenvoltura e fluência narrativa,
criou um texto irreverente, humorado, espontâneo e de linguagem acessível ao grande público
o que dilatou o círculo de leitores de suas obras. Porém, a boa dose de irreverência na obra de
João Felício dos Santos, esconde o seu humor amoral e o seu machismo na descrição da sua
mulata que enternece os cinco sentidos masculinos, convidando-os ao pecado da luxúria com
seus muxoxos, carícias e manobras sexuais. Sendo ainda, através de um estilo humorado e
direto que João Felício dos Santos agride e vilipendia as suas mulatas.
Ainda sobre as peculiaridades estilísticas do autor, o fato de João Felício dos Santos
ter tido uma proximidade com o universo do carnaval15 por ser sido compositor de enredos
para grandes escolas de samba, alimentaram no autor o teor discriminatório e machista contra
a mulher negra tão reproduzido por esta festa de caráter popular, pois, “(...) o carnaval, como
exercício desreprimido de nossa ideologia ratifica um preconceito violento contra a mulher de
cor, disfarçado numa linguagem irônica e aliciadora” (SANT’ANNA, 1993, p. 33). E João
Felício dos Santos passa a apreender, anunciar, disseminar, e conservar esta representação
coletiva estereotipada e racista da mulata enquanto tipo nacional, como também os
preconceitos arraigados na cultura popular carnavalesca através de suas obras literárias. Pois,
no imaginário erótico masculino projetou-se a mulata como a rainha do carnaval, senhora que
merece deferência e prestígio. Exaltada como símbolo de brasilidade, cuja imagem no
carnaval quase sempre faz uma alusão estético-sexual ao corpo bonito, esguio e fogoso como
a dança insinuante. A mulata passa a ser no carnaval a mulher almejada como objeto de posse,
sempre associada à simpatia e a vulgaridade, a irresponsabilidade, malícia e amoralidade. E
assim uma posição reacionária masculina vai perpetuando um discurso discriminador sobre a
mulher negra em escala social, ideológica e cultural.
Aspecto também importante para compreendermos as peculiaridades estilísticas de
João Felício dos Santos na descrição de Xica da Silva como a mulata bela e desejada é o
conhecimento de suas influências literárias e estéticas, como também o do seu círculo
intelectual e literário. E um expoente da literatura que fez parte do círculo de amizades de
João Felício dos Santos e que tem características similares a ele no seu estilo literário foi o
romancista Jorge Amado.
Jorge Amado foi um escritor que através de seus romances construiu uma fantástica
atmosfera regional, através de muito bom humor, espontaneidade e fluência descritiva. Jorge
Amado foi amigo de João Felício dos Santos e ambos são influenciados pela mesma cultura
de tipificação da mulher, em particular da mulher negra. Nas obras de Jorge Amado as
mulatas constantemente se vêem enredadas numa trama de pretensão masculina, sempre
sujeitas à voluptuosidade dos homens. Sendo assim, mulatas como Rosenda, Gabriela, Ana
Mercedes16, e outras tantas idealizadas por Jorge Amado, não passam de representações
estereotipadas femininas, que encarnam as fantasias sexuais do homem branco que as
imaginou. Pois, para a mulata nas obras literárias de Jorge Amado
João Felício dos Santos passa a ser intensamente influenciado por um imaginário
coletivo construído sobre as mulheres negras e mulatas na produção cultural literária
brasileira, e os seus romances apresentam uma demasia de representações preconceituosas,
idealizadas e estereotipadas sobre a afetividade e sexualidade das personagens negras e
mulatas assim como nas obras literárias do seu amigo Jorge Amado, que defendia que no
Brasil havia um modelo harmonioso de relações afetivo/ sexuais inter-raciais, pois, como
afirmou o escritor em entrevista dada ao jornal “O Estado de São Paulo”: “Meu país é uma
verdadeira democracia racial...” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p. 112). Porém, por detrás do
manto da democracia racial se escondia o preconceito e a fria exclusão social que pesava
sobre as mulheres negras e mulatas. Na obra de João Felício dos Santos, o romance inter-
racial entre Chica da Silva e João Fernandes de Oliveira foi utilizado com o intuito de
reafirmar que o território brasileiro é livre de preconceitos raciais, já que “o mito de Chica da
Silva tem sido utilizado para sustentar a alegação de que, no Brasil, os laços de afeto e as
relações físicas entre brancos livres e mulheres de cor abrandaram a exploração inerente ao
sistema escravista em face do concubinato” (FURTADO, 2003, p. 23).
Sobre o momento histórico de elaboração da obra literária Xica da Silva de João
Felício dos Santos, como já falamos e aqui voltamos a ressaltar as décadas de 1960 e 1970,
período de inscrição do referido romance, representaram um momento histórico de intensas
transformações comportamentais femininas em decorrência dos inúmeros movimentos
libertários que emergiram como a luta feminista. Mas, foi a consolidação da Revolução
Sexual que desarmou os velhos princípios tradicionais morais que ditavam os
comportamentos relacionados à sexualidade humana como as relações interpessoais. Nesta
nova perspectiva a mulher passa a desenvolver novas posturas, condutas e procedimento
frente a sua sexualidade, já que as décadas de 1960 e 1970 destacaram-se pelo aparecimento
da pílula anticoncepcional e outros métodos contraceptivos que permitiram à mulher um
maior controle sobre a reprodução, pela reestruturação das relações entre homens e mulheres,
na redução dos casamentos formalizados, na modificação de costumes que possibilitaram às
mulheres vestir-se e comportar-se com maior liberdade, podendo expressar os seus desejos,
falar de sexo, prazer e paixão.
A revolução sexual foi um marco simbólico de transformação nos costumes e
comportamentos principalmente femininos, pois, a mulher se viu liberta do cárcere do lar e
casamento, como também de ser o fundamento para a solidez familiar. A mulher não mais
tinha que se contentar em viver no frio grotão da solidão, ou mesmo, assim como um molusco
que se esconde por debaixo de sua concha, ter que esconder a sua sexualidade e afetividade
por debaixo do invólucro calcário machista e patriarcal.
Entretanto, como adverte Rejane Esther Vieira
(...) o que mais chama a atenção nesta época é a atuação das mulheres na
sociedade, promovendo fortes mudanças. Elas avançaram na questão de
emancipação econômica e sexual, além da sua presença crescente nos
movimentos reivindicatórios e políticos da década. Ou seja, as mulheres
tiveram o desenvolvimento de uma ação mais direta e organizada, pois, os
movimentos feministas lutaram contra a ditadura e por problemas
específicos das mulheres tais como: sexualidade, o controle da concepção, o
aborto, o prazer sexual, a dupla jornada de trabalho, a discriminação
econômica, social e política. (VIEIRA, 2012, p. 8)
Na sua obra literária Xica da Silva, embora João Felício dos Santos tenha como
protagonista de seu romance uma mulher negra, o autor negligencia os resultados e conquistas
do movimento libertário feminista nas décadas de 1960 e 1970 que buscou “(...)
Conclusão
a união entre brancos e negras, como foi o caso de Chica da Silva e João Fernandes de
Oliveira.
As representações não nascem do vazio, mas a partir do corpo de valores presentes no
momento de sua feitura, assim, enquanto representante da elite social branca, defensor de
preceitos patriarcais e imbuídos de princípios tradicionais de forte teor preconceituoso,
Joaquim Felício dos Santos inscreve as suas memórias e cristaliza Chica da Silva nelas
negativamente. As representações na sociedade possuem a função de estabilização e de
dinamização de imagens, embora o discurso de Joaquim Felício dos Santos intencionasse
estabilizar Chica da Silva a figura da “negra espúria” de maus modos, as representações são
partilhadas e o discurso de Joaquim Felício dos Santos sobre Chica da Silva passou a ser
revisitado e atualizado, uma vez que as representações são apropriadas e ressignificadas.
Apropriando-se do “relato original” sobre Chica da Silva escrito por Joaquim Felício
dos Santos e dando a ele novos contornos, destaca-se o texto do seu sobrinho-neto João
Felício dos Santos, que para além da evidência anedótica do parentesco, inova por trazer uma
protagonista negra para o seu romance, embora que ao custo de aprisioná-la a estereótipos e
imagens questionáveis.
Se o estereótipo da mulata tem sua gênese no período colonial, percebemos reflexos
deste estereótipo sendo expressos na ficção literária de João Felício dos Santos na
contemporaneidade, visto que esta obra literária exemplifica o machismo do homem branco
pela mulata ao perpetuar relações de dominação e subordinação que são heranças da
sociedade escravista e que tanto a literatura afro-brasileira contemporânea18 tenta superar e
desconstruir.
1
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).
2
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).
3
Data do falecimento de Chica da Silva.
4
Foi “(...) deputado, senador e presidente do Senado da República (...)” (DUARTE, 2010, p. 202).
5
“(...) publicou diversas obras voltadas para a área jurídica, como o primeiro Projeto do Código Civil Brasileiro,
de 1882, e a formulação de leis e decretos” (DUARTE, 2010, p. 202).
6
“Publicou o “(...) romance Acayaca, de 1866, baseia-se em uma lenda indígena e está perfeitamente inserida no
espírito indianista do período romântico” (DUARTE, 2010, p. 155).
7
São caleidoscópicas as representações de Chica da Silva “Bruxa, sedutora, heroína, rainha ou escrava”
(FURTADO, 2003, p. 19).
8
Quando nos referirmos à personagem histórica utilizaremos a grafia “Chica da Silva”. E para nos referirmos à
personagem literária utilizaremos a grafia “Xica da Silva”.
9
O imaginário é um reservatório/motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências,
visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo individual/grupal,
sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo. O imaginário é uma
distorção involuntário do vivido que se cristaliza como marca individual ou grupal. Diferente do imaginado –
projeção irreal que poderá se tornar real - , o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real
como elemento propulsor (SILVA, 2003, p. 3).
10
Na análise do discurso “o autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa,
pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em que se constitui, assumindo a
responsabilidade pelo que diz” (ORLANDI, 2001, p. 76).
11
Segundo Sandra Jovchelovitch: “É, portanto, a positividade da alteridade que necessita ser discutida, pois é
nesta positividade que residem os elementos fundantes de toda a vida psíquica e social” (JOVCHELOVITCH,
1988, p.69).
12
O (...) romance histórico tem como um de seus objetivos apresentar uma perspectiva nova da narrativa
histórica. Esse redimensionamento é o primeiro intento de constituir uma narrativa que tem como objetivo a
construção de uma versão do fato histórico, identificada com a realidade. Essa visão sobre o romance histórico é
seguida por muitos outros romancistas que através da liberdade de criação, escrevem várias narrativas que
relativizam a concepção histórica no ocidente moderno. Esse redimensionamento originou uma literatura que
revisou o passado histórico no seu devido espaço e tempo, objetivando reinterpretá-lo. Essa forma de tomada de
consciência está relacionada ao reconhecimento de que a história se faz como discurso, em que a capacidade de
construção de imagens através da narração é um importante mecanismo de construção da história, e,
conseqüentemente, da construção das identidades (LACERDA, 2006, p. 38).
13
João Felício dos Santos “é autor de uma obra vasta na qual se destacam romances, contos, poesias, literatura
infantil, livros técnicos, argumentos e roteiros cinematográficos e o desenvolvimento de enredos carnavalescos”
(DUARTE, 2010, p. 203).
14
Entre os muitos títulos que publicou, destacam-se: João Abade, de 1958; Ganga Zumba, de 1962; Carlota
Joaquina, a rainha devassa, de 1968; Ataíde, azul e vermelho, de 1969; Xica da Silva, de 1976; A guerrilheira, o
romance da vida de Anita Garibaldi, de 1974; Insurreição de Queimado, s/d; Quilombo, de 1984; Cristo de
Lama, s/d; entre outro. (DUARTE, 2010, p. 203).
15
Vale ressaltar que não estamos lançando preconceitos contra o carnaval ou contra as sambistas das grandes
escolas. Mas, apenas argumentando que a relação do autor com o carnaval pode ter aumentado o machismo do
literário, o fazendo reforçar estereótipos raciais que se manifestam em suas obras literárias, em decorrência da
festa popular do carnaval comumente através de sátiras, músicas e imagens disseminar representações
preconceituosas principalmente sobre a mulher negra.
16
Rosenda da obra Jubiabá (1997), Gabriela do romance Gabriela, Cravo e Canela (1969) e Ana Mercedes da
obra literária Tenda dos Milagres, 1970.
17
O movimento do Cinema Novo do qual Cacá Diegues participava tinha como interesses o povo brasileiro e
sua história, mas reivindicava o direito da liberdade de expressão para contá-la. Para esse diretor, era importante
compreender e resgatar a tradição afro-americana na nossa sociedade contemporânea e, buscando concretizar
esse objetivo, transformou em película a história de dois ícones da presença africana no Brasil: Chica da Silva e
Zumbi dos Palmares. Essa releitura pretendia oferecer uma visão crítica ao espectador, sobretudo no tocante às
relações entre os portugueses e a elite brasileira de um lado e os escravos e marginalizados de outro
(FURTADO, 2003, p. 282-283).
18
“A literatura negro-brasileira vem exercitando, cada vez mais, o campo das polaridades que põem a nu o
preconceito, desde sua conotação mais sutil até a mais agressiva” (SILVA, 2010, p. 109). As polaridades têm
sido recursos empregados na literatura negro-brasileira para detectar os meandros camaleônicos da sociedade no
quesito raça. Nas relações senhor x escravizado, branco x negro, rico x pobre, o escritor encontra material amplo
de trabalho para desconstruir estereótipos e promover o diálogo, mesmo que este seja áspero (SILVA, 2010, p.
109).
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<http://www.administradores.com.br/_resources/files/_modules/academics/academics_781_2
0100228182530ffbb.pdf>. Acesso em: 21 de fev. 2012.
Resumo: Um dos maiores desafios enfrentados pelos colonizadores europeus na América portuguesa
quinhentista foi a adaptação ao novo ambiente, sobretudo no que tange o clima e aos recursos para obtenção de
alimentos. A alimentação era feita, em boa parte, de acordo com a disponibilidade dos gêneros alimentícios ali
existentes. Nesse sentido, os frutos nativos constituíam um quadro de variedades, juntamente com o açúcar, já
que esses exploradores costumavam se fixar nas faixas litorâneas, localidades nas quais se encontravam
plantações de cana-de-açúcar e engenhos. Através desta perspectiva, será analisado o quanto a dinâmica do
ambiente e flora da América portuguesa foram importantes no processo de fixação dos colonizadores, bem como
os valores atribuídos por estes aos frutos e ao açúcar do Novo Mundo. Estes valores estavam intimamente
relacionados ao conhecimento dos colonizadores frente às ordens prescritas por Hipócrates e Galeno, através da
teoria humoral. Deste modo, analisaremos os relatos de cronistas e viajantes do período. Assim, apontaremos de
que maneira os frutos e as conservas feitas com eles foram fundamentais na alimentação desses homens no
ambiente tropical, sob o ponto de vista logístico da dinâmica colonial.
Palavras-chave: Floresta tropical; América portuguesa; século XVI; frutos; conservas de frutos.
Abstract: One of the biggest challenges faced by European settlers in the sixteenth century Portuguese America
was the adaptation to the new environment, especially regarding the climate and resources for obtaining food.
The food was made, in large part, according to the availability of foodstuffs therein. In this sense, the native
fruits were a variety of frame, along with sugar, as these explorers used to settle in the coastal ranges, locations
where they were cane sugar mills and plantations. From this perspective, it will be analyzed how the dynamics of
the environment and Portuguese America flora were important in the setting process of the colonizers and the
values assigned by them to the fruits and the New World sugar. These values were closely related to knowledge
of the colonizers forward the orders prescribed by Hippocrates and Galen, through the humoral theory. Thus, we
analyze the chroniclers reports and travelers of the period. So, we will point out how the fruits and preserves
made with them were instrumental in feeding the men in tropic environment under the logistical point of view of
colonial dynamics.
Keywords: Tropical forest; Portuguese America; sixteenth century; fruits; preserved fruits
1
Resultados parciais de pesquisa de mestrado, financiada pela Capes.
2
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (PPH/UEM).
Membro do Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC/UEM). Contato:
juliannam.oliveros@gmail.com
3
Doutor em História das Ciências e da Saúde pela FIOCRUZ. Professor adjunto do Departamento de História e
do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Coordenador do Laboratório
de História, Ciências e Ambiente (LHC/UEM). Contato: chrfausto@gmail.com
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 465-479, Jul. 2015
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Introdução
O início da Era Moderna foi marcado pelos descobrimentos advindos das viagens
ultramarinas desencadeadas no século XV e intensificadas no século posterior. Com a
chegada dos europeus na América, durante o século XVI, uma nova concepção de mundo
começava a se formar e colocava, aos poucos, em dúvida todas as verdades em voga até
então, sobretudo, no que tange o mundo natural (BOORSTIN, 1989, p. 151-171; DEBUS,
2002, p. 35-54). A presença dos europeus no continente americano vai além da conquista de
uma nova possessão. Estes primeiros contatos foram profundamente caracterizados pela
aproximação daqueles homens com a natureza da nova colônia. Este processo foi marcado por
um intenso exercício de investigação, onde se observou, descreveu e classificou a fauna e a
flora local (OGILVIE, 2008). Os relatos produzidos acerca daquele novo ambiente revelam
uma constante preocupação em reconhecer e identificar as espécies do novo território
(SOUSA, 1587; CARDIM, 1580; LÉRY, 1578; STADEN, 1557; ANCHIETA, 1554-1594,
PEREIRA, 1561; GÂNDAVO, 1576; THEVET, 1557; SOARES, 1591).
Ao longo deste processo de reconhecimento da Mata Atlântica, tanto colonizadores
quanto cronistas, viajantes, missionários e todos aqueles que se propuseram a investigar o
novo território recém-descoberto não tardaram em concluir que a floresta tropical apresentava
uma série de obstáculos que dificultavam e comprometiam a permanência naquele ambiente
(DEAN, 2010; ODUN, 2004, RICKLEFS, 2013). Aos poucos, o Paraíso Terrestre se tornava
um verdadeiro éden hostil (DELAUMEU, 2003; GIUCCI, 1992, p. 196). Muitos destes
obstáculos eram representados, em boa parte, pela diversidade da vegetação tropical. As
variações no clima e no relevo, bem como uma infinidade de plantas e animais, totalmente
desconhecidos pelos europeus, foram prontamente sinalizados como problemas a serem
superados com urgência.
Ao tomarmos conhecimento de tais obstáculos, é coerente afirmar que muitos
percalços, decorrentes do processo de migração dos europeus para o Novo Mundo, estavam
relacionados a um reconhecimento daquele novo ambiente. A historiografia tradicional,
contudo, costuma apresentar tal aspecto do processo de colonização como uma tarefa que se
deu apesar de um comportamento idílico dos primeiros colonizadores (HOLANDA, 2011, p.
43).
Há, também, a perspectiva construída por Gilberto Freyre. Esta atribui o sucesso da
empreitada colonizadora, única e exclusivamente, à uma suposta predisposição que os
portugueses tinham em relação à vida nos trópicos, o que lhes renderia condições físicas e
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psíquicas para tal atuação. Disposição essa favorecida por uma pretensa semelhança climática
entre ambos os lugares, a qual impossibilitou perturbações físicas tão sérias como as sofridas
pelos colonizadores oriundos de regiões muito frias (2006, p. 69). Apesar da análise de Freyre
ter sido consideravelmente difundida, hoje se sabe que a mesma é infundada. Do ponto de
vista latitudinal, o clima de Portugal se aproxima muito mais ao da América do Norte do que
da América do Sul e, consequentemente, do Brasil (CROSBY, 2011, p. 23).
Tais perspectivas de análise acabam relacionando, de maneira direta, um pretenso
êxito do processo de colonização aos fatores físicos e genéticos, desconsiderando a
capacidade criativa dos seres humanos em resolver problemas. Ignora-se, também, os esforços
depreendidos pelos primeiros colonizadores que procuraram catalogar tanto a flora quanto a
fauna da colônia, em uma clara tentativa de superar obstáculos, através da construção de
saberes acerca daquele novo ambiente.
É válido ressaltar que, ao cruzarem o oceano, os colonizadores tiveram que promover
um processo em que as novas terras se tornassem cultiváveis, enfim, que se adequassem
àquilo que os europeus consideravam habitável (MORAN, 1994). Tarefa difícil quando as
possibilidades não correspondiam às preferências. Esses homens, sempre que possível,
buscavam antropizar o ambiente daquela nova colônia, convertendo-o em algo que lhe
parecesse mais similar à Europa (CROSBY, 2011, p. 181). Ação que não equivale a uma
simples adaptação ao ambiente tropical, através de um processo único de assimilação e
reprodução total de hábitos dos nativos indígenas, no qual ocorre o abandono de seus antigos
costumes.
era algo novo ao olhar europeu e, portanto, era necessária a realização de todo um processo de
investigação e reconhecimento do que podia ser ingerido sem ameaças de danos à saúde.
É pertinente atentar para o fato de que, no século XVI, as viagens empreendidas em
barcos à vela poderiam levar meses. A importação de qualquer tipo de gênero alimentício,
vindo da Europa ou de qualquer outro continente, se mostrava inviável, não somente por
conta da duração das viagens e do alto custo que tal empreendimento implicava, mas também
porque algumas técnicas de conservação, desenvolvidas nos países ibéricos, não previam a
exposição dos alimentos a altas umidades e, principalmente, a considerável quantidade de
insetos, fungos e mofos endêmicos do Novo Mundo (GUERREIRO, 1999, p. 149-157). No
caso da introdução de animais domésticos vindos da Europa, em especial galinhas, porcos e
gado, apesar da adaptação destes ter se mostrado, a médio prazo, bem-sucedida (CROSBY,
2011, p. 197), não podemos ignorar que as técnicas de criação e, destacadamente, o preparo
da carne destes animais, tiveram de ser revistas (CONCEIÇÃO, SANTOS; BRACHT, 2013,
p. 147-149), como bem nos mostra André Thevet:
Quanto ao javali, este é bem mais difícil de ser capturado. O javali europeu é um
pouco diferente do americano. Este, além de ser feroz e perigoso, possui presas mais
compridas e salientes. É inteiramente negro e não tem cauda. Nas costas, possui um
tubo respiratório, do mesmo tamanho que o marsuíno, o qual lhe permite respirar
dentro d’água. Pode-se escutar ao longe o formidável guincho que ele emite e o som
produzido pelo bater de seus dentes quando o animal está comendo ou fazendo
qualquer outra coisa. De certa feita pudemos ver um exemplar capturado pelos
selvagens. Apesar de estar fortemente amarrado pelos indígenas, o bicho conseguiu
escapar ali sob nossas próprias vistas (1978, p. 161).
necessitam de ciclos solares, regimes sazonais ou temperatura média semelhantes à sua terra
de origem, pois nem sempre animais e plantas reagem adequadamente a ambientes distintos
daqueles onde se desenvolveram (DIAMOND, 2011, p. 185).
De fato, é coerente dizer que os portugueses tiveram de mudar, em boa parte, o seu
esquema alimentar. Uma das culturas eleitas nessa mudança foi a mandioca (Manihot spp.),
que passou a constituir a base de sua alimentação, mostrando-se fundamental para a
manutenção da vida nos trópicos (SILVA, 2005, p. 79-92). Por intermédio dos relatos de
cronistas e viajantes, que estiveram na colônia nesse período, é possível detectar essa
transformação na alimentação trivial dos colonizadores, como no caso de Gabriel Soares de
Sousa que revela a falta de trigo para a confecção de pães – alimento imprescindível nas
refeições portuguesas –, mas que esses eram feitos com mandioca e que eram até mais
saborosos e de melhor digestão que os feitos com farinha do Reino (SOUSA, 1971, p. 180). É
evidente que os colonizadores portugueses não abriram mão de suas receitais tradicionais.
Porém, reinventaram-nas com novos ingredientes. O que contradiz a percepção de que esses
homens abriram mão de suas tradições alimentares pela falta dos seus ingredientes de costume
(TEMPASS, 2008, p. 2).
Porém, esses novos ingredientes muitas vezes não agradavam o paladar europeu,
tornando-se difíceis de ingerir. O consumo de ratos, cobras, lagartos e rãs se mostrou, por
vezes, em algo mais que uma opção (HUE, 2008, p. 9), frente à corrente escassez de víveres
que assolavam a vida desses homens, resultando em sérios períodos de fome. Como nos
mostra Hans Staden, em 1557, “[...] ficamos ali dois anos, no meio de grandes perigos e
sofrendo fome [...]” (1900, p. 33). Uma evidencia de que a alimentação, para além de ser um
ato cotidiano, também poderia ser um problema diário, fato que revela boa parte dos
problemas gerados em torno da alimentação.
A fome pode ser analisada como um dos únicos fatores que podem influenciar na
escolha de alimentos que não correspondem ao sistema alimentar de uma sociedade
(PANEGASSI, 2009, p. 397). Assim, o consumo de conservas de frutos, por exemplo, pode
ser encarado como uma questão de necessidade à sobrevivência destes na América
quinhentista se considerarmos a maneira como seus elementos fundamentais, frutos e açúcar,
eram consumidos na Europa.
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mais frequência em relação aos pratos salgados (ALGRANTI, 2005, p. 36). E essa pode ser
uma justificativa para a razão do preparo e consumo corriqueiro das conservas.
Alguns autores afirmam que consumo de doces na América portuguesa quinhentista
era, frequentemente, justificado pela ideia de que o gosto por esse tipo de alimento, unido aos
conhecimentos técnicos dos portugueses, foi adotado na nesta nova realidade como uma
tentativa de preservar seus saberes e suas tradições culinárias (ALGRANTI, 2005, p. 33-52).
Porém, tal afirmativa se confronta com o caráter distinto atribuído aos doces em ambos os
lugares, pois os doces, até aquele momento, eram confeitados, na maioria dos casos, com mel,
não nos esquecendo que para este era atribuído propriedades medicinais. Sidney Mintz
ressalta que foi somente na metade do século XVII, com o desenvolvimento das plantações de
cana-de-açúcar (Saccharum sp.) no Novo Mundo, que o açúcar começou a baixar de preço,
tornando-se mais acessível a outros segmentos da sociedade europeia e assim, deixando de
ser, gradativamente, um meio de ostentação, ou seja, um produto consumido apenas pela
nobreza. Associado a isso, o aumento da oferta de açúcar corroborou para a adoção deste
como conservante, adoçante e, por fim, alimento (2010, p. 121). Dessa forma, ainda no século
XVI, o açúcar e seus produtos derivados não tinham caráter exclusivo de alimento na Europa,
diferente do significado que, mais rapidamente, adquiriram na Colônia.
A disseminação do consumo do açúcar na colônia se dá, por um lado, graças a uma
importante cultura gastronômica e médica europeia. Afinal, a própria introdução do cultivo da
cana-de-açúcar na América Portuguesa, deixa claro o preciosismo que tal produto possuía no
século XVI. Por outro lado, devemos nos lembrar que a dependência da substância sacarose
não era algo muito difícil de se desenvolver. Deste modo, o relativo sucesso e prestígio que o
açúcar teve entre os primeiros colonizadores não se deu somente por conta de fatores
mercantis. O prazer do consumo, bem como as propriedades energéticas e conservantes do
mesmo, certamente contribuíram para um consumo considerável do mesmo no cotidiano da
colônia. A questão do gosto, deste modo, deve ser elencada como um fator relevante. O
realçar dos sabores, como no caso de frutos considerados insossos, ou mesmo a intenção de
atenuar propriedades, por vezes, consideradas desagradáveis como o amargor de alguns
frutos, gerava o que Sidney Mintz (2010, p. 123) chamou de sensações na boca, tornado
alguns frutos desconhecidos em alimentos mais agradáveis aos novos paladares.
Como já foi apontado, a disponibilidade dos alimentos estava submetida a algumas
variáveis. Deste modo, é provável que, em alguns momentos, os colonizadores tiveram de
consumir, por exemplo, frutos imaturos, ou seja, que estavam verdes. Gabriel Soares de Sousa
evidencia isso ao descrever as mangabas (Hancornia speciosa), dizendo que “[…] quando
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estas mangabas não estão bem maduras, travam na boca como as sorvas verdes em Portugal, e
quando estão inchadas são boas para conserva de açúcar, que é muito medicinal e gostosa
[…]” (1971, p. 170).
Nesses casos, o acréscimo de caldas se encaixa muito bem como uma alternativa em
transformar a ingestão (necessária) desses frutos verdes em algo mais prazeroso, visto os
“poderes” já ressaltados do açúcar. A questão da adoção de uma técnica que, além de permitir
o consumo de um alimento energético, também permitia a conservação deste em um
ambiente, por vezes, rico em microfauna e insetos, também se mostrava consideravelmente
oportuna. Pensemos na facilidade logística que os frutos conservados em calda de açúcar
podiam ter no dia a dia desses colonizadores, pois mergulhar frutos em caldas se mostrou uma
técnica de conservação muito eficaz e, tendo em vista que esses homens tinham uma rotina de
trabalho, por vezes, exaustiva, as conservas de frutos podiam ser estocadas e disponibilizadas
não somente na cozinha ou despensa daqueles que ficavam em suas casas, mas também nos
embornais e alforges dos que circulavam e trabalhavam nos carreadores, matas e plantações
da colônia (SILVA, 2005, p. 47).
Analisando as conservas pelas suas propriedades gustativas, é possível considerá-las
também enquanto uma fonte de prazer gastronômico. Além disso, como já comentado, as
conservas também se revelavam importantes fornecedoras das calorias e energia necessárias à
sobrevivência daqueles colonizadores que estavam expostos a uma rotina desgastante. Além
do mais, as conservas de frutos promoviam outros benefícios em relação à saúde, já que os
doces coloniais eram ricos em sacarose, substância esta que é rapidamente absorvida pelo
organismo e convertida em energia, sendo também uma fonte de bem-estar (MINTZ, 2010, p.
121). Esse bem-estar pode ser constatado nas descrições sobre as qualidades do ananás
(Ananas comosus), onde Soares de Sousa afirma que “[…] desta fruta se faz muita conserva,
aparada da casca, a qual é muito formosa e saborosa, e não tem a quentura e umidade de
quando se como em fresco […] (SOUSA, 1971, p. 181), revelando que os portugueses
mantiveram a percepção hipocrático-galênica acerca das qualidades dos alimentos,
confirmando-se em outras passagens do mesmo autor, como sobre a fruta guti (Licania
salzmannii), da qual “[…] faz-se desta fruta marmelada muito gostosa, a qual tem grande
virtude para estancar câmaras de sangue […]” (SOUSA, 1971, p. 173). Ou, ainda, Fernão
Cardim, que revela que pacoba assada com canela e açúcar “[…] é gostosa e sadia, maxime
para os enfermos de febres […]” (1980, p. 63).
Tendo em vista essas descrições, é possível afirmar que os portugueses mantinham, de
maneira muito clara, a percepção de que os alimentos possuíam uma relação íntima com as
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boticas e mezinhas. Curioso notarmos que tais princípios, por vezes, impeliam à adoção de
condutas quando do consumo dos frutos encontrados na colônia, sobretudo os frescos que, em
português coloquial, significava que eram frios. Tais cuidados alimentares se justificavam por
conta de que, dentro do princípio hipocrático-galênicos um consumo desregrado de alimentos
com determinadas qualidades poderia gerar um desequilíbrio humoral. No caso dos frutos
frescos estes poderiam estimular um excesso de fleuma, algo que, obviamente era
compreendido enquanto um processo de adoecimento.
A imersão destes em caldas de açúcar figurava enquanto uma saída para se manter o
equilíbrio dos humores no ambiente tropical, já que o açúcar era considerado enquanto um
alimento e mezinha repleto de propriedades terapêuticas. Para além dos princípios que
guiaram os colonizadores na América quinhentista no consumo frequente conservas de frutos,
é relevante notarmos que a ingestão destes alimentos calóricos foi fundamental na superação
de um percalço nutricional comum neste período, ou seja, a insuficiência calórica.
A contribuição das conservas, neste caso, se faz no sentido de que possibilitavam que
os frutos fossem ingeridos com mais praticidade e eficiência logística, sem contarmos que
muitos não são facilmente consumidos quando imaturos (verdes). Tais detalhes eram
consideravelmente importantes se levarmos em conta o fato de que tais homens se
encontravam em um ambiente onde o desperdício de alimentos era algo impensável, e que
todas as alternativas deveriam, de alguma maneira, ser aproveitadas. Desse modo, obtinha-se
as calorias e nutrientes indispensáveis à subsistência em um ambiente que ainda se aprendia a
explorar.
Fazendo-se valer dessas considerações, é inadequado pensar o consumo de doces no
Brasil colonial enquanto mera guloseima ou passatempo, como sugeriu o folclorista Luís da
Câmara Cascudo, em seu “História da alimentação no Brasil”. Longe de serem meras
distrações gastronômicas, os doces tinham, entre colonizadores, importantes propriedades
medicinais. Para além do paradigma que guiava o consumo de frutos em calda entre aqueles
homens, os frutos em calda também se mostravam enquanto uma importante fonte de caloria.
Desta forma, não podemos ignorar que a análise do consumo de frutos e doces pelos
colonizadores, na América portuguesa do século XVI, nos permite não somente o estudo de
hábitos alimentares, mas também as qualidades e possibilidades nutricionais destes.
Quando analisamos as descrições dos primeiros moradores da colônia portuguesa, é
possível verificar que o processo de obtenção de alimentos consistia em uma tarefa, por vezes,
complexa e que, não raramente, demandava grandes esforços, uma vez que as técnicas de
cultivo e espécies trazidas da Europa, nem sempre frutificaram no novo ambiente.
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Dessa forma, a união das frutas com o açúcar pode ser entendida também enquanto
uma estratégia para tornar as refeições mais prazerosas, tendo em vista as características
transformadoras do produto em relação ao sabor. Afinal, além da superação da fome aqueles
homens também buscavam, sempre que possível, manter suas tradições alimentares,
procurando relacionar os novos ingredientes aos sabores pátrios. As conservas, deste modo, se
enquadram nessa perspectiva de manutenção dos costumes, pois eram os doces, alimentos que
figuravam com certa predileção entre os portugueses. Entretanto, muito mais do que uma
questão de prazer demandada por uma melancolia gustativa, os doces podem ser identificados
enquanto gêneros de primeira necessidade, pois correspondiam à, por vezes restrita, gama de
opções alimentícias que poderiam fornecer as calorias necessárias para que o processo de
colonização dessa continuidade.
Conclusão
doce se tornar muito estimado entre a população lusa. É importante ressaltar que os frutos
também não correspondiam, até então, à alimentação básica dos portugueses, devido às
ressalvas existentes nas prescrições médicas dominantes na Europa. Porém, os frutos
compunham o limitado elenco de opções de alimentos na colônia quinhentista, fato que leva à
análise da adição de caldas de açúcar aos frutos como uma tentativa de tornar os frutos em
alimentos próprios para consumo, proporcionado às qualidades medicinais do produto.
Outras justificativas podem colaborar para o entendimento dos motivos que
impulsionaram o consumo das conservas de frutos, podendo ser também uma tentativa de
tornar os sabores desconhecidos em algo mais prazeroso de se comer, bem como uma maneira
de se conservar esses alimentos, bem como aproximá-los de sabores já conhecidos. Existem
várias possibilidades relativas à razão da confecção destas conservas de frutos, entretanto, um
dos fatores mais importantes reside no fato de que o seu consumo foi fundamental para a
sobrevivência dos colonizadores na América portuguesa quinhentista, visto que a rotina
desgastante daqueles homens exigia o consumo considerável de fontes calóricas disponíveis
na colônia.
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Acesso em: 30 jun. 2012.
Resumo: A revista “O cruzeiro” foi um dos periódicos que no século XX construiu padrões de comportamento
através de suas colunas femininas e seus conselhos, afirmando o modelo tradicional de mulher. Sendo uma
revista de grande expressão nacional durante anos, “O cruzeiro” colocava em suas colunas, por exemplo, o que
as mulheres deveriam fazer para cuidar de sua aparência, para seus namorados, noivos e, principalmente, para
que seus maridos lhes dessem a devida atenção dentro do lar. A beleza ou o embelezamento seria uma maneira
da mulher mostrar ao seu homem que o amava, já que estava se cuidando para ele, como dizia a coluna
“Elegância e beleza”. Mas, não só de beleza viviam as mulheres dentro de seus lares, pois também deveriam se
tornar mães, demonstrando que a felicidade no lar estava completa somente com a chegada da maternidade em
suas vidas, o que era reforçado pela coluna “Da mulher para a mulher”.
Palavras-chave: “O cruzeiro”, Colunas femininas, Mulheres.
Abstract: The magazine "Cruise" was one of the journals in the twentieth century constructed patterns of
behavior by their female speakers and their advice, saying the traditional model of woman. Being a magazine of
great national expression for years, "Cruise" put in his columns, for example, that women should do to take care
of their appearance, for their boyfriends, boyfriends and particularly their husbands to give them the due
attention in the home. The beauty or embellishment would be one way a woman show her man that she loved
him, because he was caring for, as he said the "beauty and elegance" column. But not only the beauty of the
women lived in their homes, because they should also become mothers, demonstrating that happiness in the
home was complete with the arrival of motherhood in their lives, which was reinforced by the column "From
woman to woman ".
Key-words: "The Cruise", Female speakers, Woman.
Introdução
[...] que despia suas mulheres das saias longas e as urbanizava com biquínis, blush e
pó-de-arroz, ou seja, que buscava moldar o comportamento feminino com novas
formas de vestir e de se mostrar para a sociedade. Essa imagem que incluía a
utilização da maquiagem e de produtos femininos de beleza como símbolo de
moderno e novo ilustravam as capas desde a primeira edição. Apresentava-se, então,
não apenas a primeira revista moderna do país, mas um novo meio de retratar o
universo feminino (SERPA, 2003, p. 12).
3
Logo, quando colocarmos informações acerca da revista “O cruzeiro” ou discursosde seus/suas articulistas,
estaremos considerando essas estratégias dos próprios articuladores da revista em criar pseudônimos para
conquistar cada vez mais o público leitor.
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 480-495, Jul. 2015
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Porém, Serpa também coloca que embora a revista se afirmasse como “moderna” e
construtora da “nova mulher”, não mostrou sequer a posição feminina acerca do voto, nos
anos 30, que gerou polêmicas, no período, deixando transparecer seu posicionamento, quanto
ao papel das mulheres, pelo qual elas seriam incapazes de lidar com questões políticas,
devendo se dedicar somente à maternidade; aos cuidados da casa, do esposo e do
embelezamento, pois não haveria como conciliar tantas coisas com a política. A revista “O
cruzeiro” teria dessa forma, discursos ambíguos, quando se tratava das representações que
faziam acerca do feminino, que ora deveria seguir a modernidade, ora seguir a tradição em
seus comportamentos. E sua ambiguidade discursiva irá perpassar toda trajetória de
exemplares produzidos, ao longo do século XX.
A ambiguidade é percebida quando vemos que as falas das articulistas tinham como
objetivo aconselhar ou prescrever para as mulheres o desenvolvimento dos chamados “dotes
ou dons femininos”, entendidos enquanto algo natural, inerente a elas. Geralmente, essas
colunas enfatizavam para suas leitoras atributos como o de ser mãe, esposa, dona-de-casa,
definindo-as por características como a pureza, doçura, resignação, tudo isso somado a uma
vida mais reservada ao privado, a casa e ao lar. Essas identidades construídas seriam ideal
socialmente para as mulheres. Por outro lado, para os homens, atribuía-se o espírito
aventureiro, o trabalho fora de casa, a vida pública e todos as características que lhe seguiam,
como a boemia, as farras, os namoros e as relações fora do casamento.
Assim, a partir dos conselhos e ensinamentos acerca das maneiras de mulheres e
homens se comportarem diante de suas relações, configuravam-se construções sociais e
culturais das relações de gênero. Tais discursos, enfatizando os valores morais e os bons
costumes para as moças fizeram parte de uma rede de enunciados que tinham a intenção de
orientar as condutas femininas, construindo modelos, dentre os quais o de que para as moças
era necessário “[...] o casamento feliz coroado pela maternidade e um lar impecável”
(BASSANEZI, 2012, p. 481).
afinal era para eles que elas tinham que se embelezar e não por qualquer outro motivo.
Segundo a articulista da coluna sobre beleza feminina, as mulheres casadas deveriam lembrar
que já tinham conquistado seus esposos e, portanto, deveriam saber como mantê-los presos.
O marido enquanto homem mais importante de sua vida era em quem a esposa deveria
primeiramente pensar, mas as outras mulheres, ou seja, solteiras, com namorado ou noivas
tinham que também pensar nos seus pares, pois eles seriam os “homens de suas vidas”4.
Os cuidados para atrair a atenção masculina eram muitos, e, nesse sentido, as colunas
sobre beleza eram praticamente um guia para as mulheres seguirem, mantendo o tratamento
das várias partes do seu corpo, como a pele, os olhos, o nariz, a boca, as mãos, os pés. Todas
essas partes do corpo feminino deveriam estar em conformidade com o todo, tendo sempre
equilíbrio entre elas. E para tanto tinha também as dicas sobre dietas para manter a saúde e a
beleza, dicas para uma melhor maneira de se vestir, andar, falar e noções de comportamento
em geral.
Elza Marzullo, na revista “O cruzeiro”, deu muitas dicas e conselhos sobre elegância e
beleza, na sua coluna já citada, entre os anos 50 e 60. Ela, enquanto articulista dessa seção,
mostrava sempre estar a par das novidades referentes às questões médicas e científicas
relacionadas à saúde e à beleza feminina. Isso porque percebemos em praticamente todas as
suas dicas que o público feminino se baseia num saber especializado da época. Vejamos o que
ela disse acerca da questão que fala sobre peso e altura, em “equilíbrio estético”:
Manter a boa aparência era essencial para as mulheres em geral, por isso Marzullo
enfatiza que a estatura feminina deveria estar de acordo com seu peso. Uma mulher
desproporcional seriauma mulher que não se cuidava, pois quanto à altura não podia fazer
nada,diferentemente do item referente ao peso. Poderia emagrecer, para que seu corpo ficasse
4
Nas colunas que tratavam de dar dicas sobre como cuidar da beleza feminina, percebemos o quanto a mulher
casada era culpabilizada se por acaso seu esposo arranjasse outra mulher fora de casa. As articulistas colocavam
praticamente justificando pelo temperamento masculino e o provável “desleixo” feminino com a aparência a
responsabilidade do homem ter procurado uma relação extra conjugal, era como se o descuido da mulher, quanto
a sua aparência, levasse o homem a trair a esposa. BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In:
PRIORE, Mary. Histórias das mulheres no Brasil. 9ed. São Paulo: São Paulo: Contexto, 2010.
na medida certa. Baseada nos conhecimentos científicos, a articulista sabia a relação e a altura
e peso, para poder indicar com exatidão o peso e a altura, das mulheres ideias. Caso fosse uma
mulher desleixada, que não se cuidasse, não arranjaria marido, por sua própria culpa.
Muitos conselhos que apareciam nas colunas femininas dedicavam-se aos cuidados
com os cabelos. Parece que essa área do corpo feminino sempre causou preocupação entre
elas. Existia a preocupação se os cabelos femininos estavam secos, quebradiços, opacos, com
caspa, enfim, todos os problemas que afligiam os cabelos femininos. E quando o cabelo se
mostrava com algum desses problemas entrava em cena os conselhos e dicas da articulista,
mostrando qual o melhor caminho a seguir para tê-los bonitos e sedutores. Esses cuidados
muitas vezes poderiam ser feitos na própria casa da mulher que necessitasse de cuidados
capilares. Os ingredientes eram na maioria das vezes, os caseiros, nos quais as mulheres
poderiam tirar da própria cozinha.5 Nesse sentido era que Elza Marzullo falava sobre os
“amigos e inimigos dos cabelos” dizendo que:
Os cabelos eram realmente uma grande preocupação entre as mulheres, por isso quase
sempre nas colunas apareciam fórmulas e formas de cuidar dos cabelos. Assim como existiam
ingredientes caseiros e até estranhos para melhorar o estado deles, existiam as dicas básicas de
cuidados capilares como lavar com determinado tipo de água, quente ou fria, o uso de escovas
específicas para não aumentar a oleosidade do couro cabeludo, os cuidados com problemas
como a caspa, os cortes ideais para manter os cabelos saudáveis.
E esses cuidados tomavam por base sempre os conhecimentos especializados, mesmo
que a fórmula fosse a mais simples, como na luta contra a queda de cabelo. Problema que os
especialistas já tinham pesquisado e chegado a uma conclusão: “Mais um congresso em que
especialistas de vários países concluem que na luta contra a queda excessiva do cabelo, só
existe, de positivo, um remédio: a higiene” (MARZULLO, 1960, p. 105).
A higiene era um ponto bastante enfocado por Elza Marzullo, o banho diário também
era como uma maneira de cuidar da aparência, mas sem deixar de lado o saber científico. Pois
com o tema: “O valor do banho diário”, Marzullo mostrou que não passava a dica sem saber
5
E os ingredientes poderiam às vezes ser bastante estranhos, como “ovos de esturjão, da truta e até da formiga e
da borboleta”, que, segundo a articulista, surtia bons efeitos. MARZULLO. Elza. “Amigos e inimigos dos
cabelos III”, de 13 de julho de1963.
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quais os cuidados deveriam ser tomados para que o banho conseguisse ser visto como “um
banho de beleza”:
O banho diário tem o valor de um tratamento de beleza. Uma fricção diária com
água morna, um bom sabonete e uma boa escova, faz alguma coisa além de uma boa
limpeza. Ativa a circulação da pele, vitalizando-a e facilitando a eliminação de
toxinas, assim como ajuda a pele como órgão que é, regulador da temperatura.
Quando você está muito cansada, o banho restaura as energias e acalma a tensão
nervosa. [...] Se você lavar o rosto e passar um creme de beleza antes do banho, o
efeito será maior, porque a combinação do creme com o vapor da água de colônia
ajuda a expelir os cravos, dá mais suavidade e colorido ao seu rosto. (Revista O
cruzeiro, 19/12/1953, p. 101).
Com relação às roupas, também era comum acontecerem as dicas. Estar vestida com
sobriedade era o ideal para qualquer mulher. Muito mais para as mocinhas que tinham que
seguir todas as regras de comportamento, levando-se em consideração que seria de seu
interesse a conquista de um namorado, ela deveria sair de casa preparada com uma boa
aparência e vestida adequadamente para que as pessoas percebessem que tipo de mulher ela
era, decente, de boa família, o que mostrava pela sua roupa e por sua maquiagem, pó, batom,
rímel e base.
Para as moças consideradas de família, eram indicadas as cores mais discretas. Assim
conseguiam ser respeitadas por todos, como colocava Marzullo: “A encantadora e correta
aparência da mocinha que obtém seu primeiro emprego é de capital importância para
conquistar o respeito e a simpatia dos colegas e superiores” (Elza Marzullo, 1959, p.109).
Além da maquiagem com tons delicados e discretos, a roupa não poderia ser extravagante,
decotada, transparente, mas ao contrário: deveria estar sempre simples e discreta, sendo uma
maneira da moça ser considerada uma mulher “séria”, respeitável, sobretudose iria trabalhar.
Roupas provocantes poderiam deixá-la exposta demais, assim como as artistas de Hollywood,
chamando a atenção da forma como qualquer moça “séria” não poderia querer. Pois, para a
moça que se dizia “séria” não era bom chamar a atenção dessa maneira, mas sim através de
suas atitudes bem regradas e de um bom comportamento, que a levaria a ser enxergada em seu
local de trabalho como uma moça que sabia chamar a atenção da melhor forma possível,
através da discrição.
Havia também as dicas para evitar as varizes das pernas. As pernas bonitas e sem
varizes eram o sonho de toda mulher, principalmente a casada, que em geral já tinha passado
por uma gravidez, motivo pelo qual era comum se desenvolver esses problemas nas pernas
femininas. Embora essa afirmação tenha sido combatida por Elza Marzullo: “Não é verdade
que a maternidade deixa sempre algum sinal de sofrimento venoso nas pernas; se o organismo
é preparado a enfrentar a gestação, isso não se dá (Elza Marzullo, 1960, p. 97). A
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maternidade, defendida por Marzullo, já que entendida como um “dom natural” da mulher,
não poderia trazer consequências más para o corpo feminino, pois segundo a articulista, o
corpo da mulher seria próprio para a gestação, então por que esse momento da maternidade
traria algum malefício à mulher?
A defesa da maternidade estava em conformidade com as regras sociais da época,
onde se tornar mãe era observado como uma questão “divina”, o que se confirmava com a
biologia do corpo da mulher, seu útero, órgão que dava a ela a possibilidade de gerar a vida.
Sendo assim, para a mulher “[...] a maternidade seria a realização máxima da vida.”
(FERREIRA, 2006, p.50)
Os discursos indicados para as mulheres que vinham das colunas dando dicas de
beleza tinham a intenção não só de embelezá-las, mas também de prepará-las para serem
futuras e boas esposas, que sabendo como agradar seus esposos através dos cuidados com a
aparência, poderiam manter bem o matrimônio, não deixando sua relação com o marido cair
na tristeza de um lar desfeito.
Infeliz seria você, se não fosse mãe! A construção da maternidade na coluna “Da
mulher para mulher”
A maternidade foi mais um dos temas bastante frequentes nas colunas femininas de “O
cruzeiro”. Nelas, a condição de mãe foi construída com a identidade feminina que levava a
mulher ao seu mais alto grau de realização pessoal. Tornar-se mãe, aparecia nessas colunas,
simbolizando o auge da vida de uma mulher, auge que só alcançado com a vinda dos filhos, e
o exercício da maternidade.
Segundo Bassanezi (2012), havia uma expectativa muito grande sobre a chegada de
um filho nos lares até meados dos anos 60, porque a chegada dele confirmava o sucesso
daquele matrimônio. Esperava-se que apósa chegada do bebê, o casal se unisse ainda mais,
fortalecendo dessa maneira o matrimônio. A esposa estaria nesse sentido cumprindo “seu
destino natural”, gerando filhos, construindo uma família, fazendo sua obrigação, enquanto
esposa. A chamada “vocação natural” de cuidar dos filhos, ser carinhosa, zelosa e cuidadosa
com eles, era uma questão bastante enfatizada, nas colunas femininas, que reforçavam essa
construção de mulher-mãe ideal dizendo que as mulheres poderiam somente sentir a plenitude
na sua vida, tornando-se mães. Isso porque a construção da mulher-mãe fazia parte de toda
uma ideia de nação com ordem e progresso que as responsabilizava e encarregava-as da
formação moral das novas gerações, incutindo-lhes virtudes cívicas. Essa construção nos
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remete aos anos 20 e 30 do século XX, mas que se estende até boa parte do restante do século,
como as décadas de 50 e 60.
Porém, tentando desmistificar essa construção da mulher-mãe Badinter (1985),
historicizou o conceito de amor materno, mostrando como ocorreu essa construção, deixando
claro que tornar-se mãe não pode ser tomada como uma questão que está inscrita na natureza
feminina. A construção da mulher-mãe foi criada enquanto uma condição inerente à mulher,
porém a autora afirma que tal construção nada mais é do que um mito:
Essa construção idealizada para o feminino que tornou a mulher mãe, criticado por
Badinter, foi mais uma das construções feitas pela coluna feminina da revista “O cruzeiro”.
Nela, os conselhos que foram dados às mulheres enfatizavam sempre que a boa esposa para
isso tinha que se tornar uma boa mãe também. E sendo uma boa mãe, a mulher alcançaria o
auge de sua vida, pois a maternidade era vista como uma vocação feminina e nada poderia
mudar esse destino biológico da mulher, por isso no momento em que ela tornava-se mãe,
tinha que deixar de lado muitas questões de sua vida, dedicando boa parte de seu tempo ao(s)
filho(s).
A seção “Da mulher para a mulher” da revista “O cruzeiro” nos anos 50 e 60 deu
muitos conselhos às mulheres casadas, com relação aos cuidados que uma boa mãe deveria ter
com seus filhos. O que era muito importante às mães saber no século XX, visto como “século
das crianças”, segundo Ferreira,que observou a partir das propagandas observadas nas
revistas, em especial “O cruzeiro”, quais seriam esses cuidados tidos pelas mães, dados por
meio das muitas informações médicas e pediátricas, e também das propagandas específicas
para as crianças, como a alimentação, cuidados com a higiene, saúde, enfim, cuidados que
demandavam que as mães estivessem atentas às necessidades dos seus filhos, mostrando-se
boas mães. Com a Puericultura, ciência que se dedica ao estudo com os cuidados com o ser
humano, principalmente na infância, construíram-se discursos para legitimar seu saber acerca
do cuidado com as crianças, embora seu discurso continue construindo a mulher a partir do
conhecimento acerca de seu corpo, como é o caso da relação útero/maternidade. O que trouxe,
nesse período, uma demanda maior de aconselhamentos dedicados às mães, cobrando mais e
mais cuidados com os filhos.
Para que as mulheres, entendidas pelos discursos emitidos pelas colunas femininas,
como mães em potencial, recebessem bem os conselhos dados pela coluna feminina era
necessário que primeiramente compreendessem bem a grandeza de seu papel enquanto mãe. E
por isso a articulista Maria Teresa afirma, explicando sempre a maternidade, enquanto uma
questão intrínseca à mulher:
sofrimento, que seria compensado pelas “alegrias da maternidade”. O amor da mãe por seu
filho seria então muito maior do que por si mesma, o que foi entendido como sabedoria da
natureza, colocá-la como o “único ser capaz de dar a luz”. A dedicação da mãe a seu filho,
excluindo da sua vida qualquer outro interesse, mostraria a grande capacidade de doação de
uma “mãe devotada”.
Assim, entendido pelas mães qual era seu papel, o de ser uma “mãe devotada”, como a
psicologia afirmava, restava a elas saber desempenhá-lo. Saber “ser mãe”. E para se tornar
uma boa mãe, era preciso que a mulher soubesse tomar as atitudes devidas com relação aos
cuidados com os filhos. Um dos cuidados que aparecem na coluna feminina da revista “O
cruzeiro” era a orientação que a mãe deveria dar a sua filha, quando mocinha, para que ela
não trilhasse um mal caminho por falta de conselhos maternos. Uma boa mãe tinha que estar
sempre atenta às necessidades de seus filhos, porque fazia parte do “cardápio de suas
obrigações maternas”. E existia uma grande preocupação e cuidados com a relação que
deveria existir entre mães e filhas:
[...] pouco se diz da mãe que orienta mal a filha. Quando os pais são bem casados, a
filha em geral encontra ambiente adequado para que sua adolescência desabroche
num clima apropriado. Mas quando o pai e a mãe vivem brigando, será obrigação de
um ou de outro (de preferência da mãe que tem mais convivência com a filha)
compensar com uma assistência mais assídua e mais acurada os inconvenientes que
aquêle estado de desentendimento entre os pais proporciona à formação da filha.
Infelizmente, porém, há muita mãe que, longe de se fazer amiga da filha, torna-se-
lhe quase um algoz (...) (BADINTER, 1985, p. 307).
Os aconselhamentos das mães para com as filhas era uma constante da coluna de
Maria Teresa. E ela deixava claro que muitas mães não estavam desempenhando suas
obrigações com as filhas, o que poderia resultar num namoro, noivado ou casamentos
desastrosos, pois sem os bons conselhos de uma mãe, a filha poderia ficar meio perdida. Por
isso a mãe estar presente era imprescindível para que a filha conseguisse discernir o certo e o
errado. Sem deixar que as brigas e discussões acontecidas entre marido e mulher
atrapalhassem os momentos que mãe e filha deveriam vivenciar juntas.
Algumas mães, segundo as colunas femininas, deixavam a filha solta demais, sem
lhes dar os devidos conselhos sobre a vida. Enquanto outras poderiam ser zelosas demais e
assim sufocar os filhos e filhas. Equilíbrio era necessário nessa relação entre mães e filhas
para que a filha não fizesse escolhas erradas. Assim como as mães deveriam ter tempo para
aconselhar suas filhas, também deveriam saber que ter filhos era uma dádiva, um
complemento de sua felicidade conjugal.
Portanto, para as mulheres casadas, segundo o que era colocado pela articulista da
coluna feminina “Da mulher para a mulher”, por estarem completas e felizes, pela família que
tinham, com esposo e filhos, não era permitido nenhuma reclamação, e se elas reclamassem,
estariam tentando ir contra a natureza feminina, questão que trazia muitos problemas no lar. O
casamento, como era colocado pelas articulistas, somente, estaria completo, se tivesse além de
um esposo feliz, bem cuidado por sua esposa, também os filhos. A ausência da felicidade na
vida dos membros da família apontaria para um matrimônio incompleto. Nesse sentido, é que
Maria Teresa, ao receber em sua seção de cartas a reclamação de uma leitora alega que:
Uma mulher que se eleja ao auge se considerar infeliz possuindo filhos, um lar que
ela mesma diz não haver motivos para reclamações, uma mulher que chega ao
cumulo de maldizer as panelas e as fraldinhas dos inocentes de sua própria carne,
não deveria ter nascido mulher. (Revista O cruzeiro, 20/07/ 1963, p. 80).
A mulher, enquanto mãe, não podia fazer reclamação de sua vida doméstica e,
principalmente, não reclamar dos filhos. Esses significavam a plenitude feminina, pois tornar-
se mãe era o símbolo maior da realização da mulher, e sua justificativa ia muitas vezes além
da questão biológica, indo também para a questão religiosa, o que dava uma força maior a
construção que afirmava, e ainda afirma que a função principal da mulher era procriar, e sem
isso não haveria sentido sua existência.
Sendo assim, reclamar de sua “natureza” era ir contra os “desígnios naturais” de seu
corpo e dos ensinamentos religiosos. E para que não acontecesse esse tipo de coisa a
articulista Maria Teresa argumenta através da religião o papel tradicionalde que as mulheres
deveriam cumprir sem reclamar. Pois reclamar era mesmo que renegar a obra divina que tinha
lhe dado o dom de poder gerar filhos. Sendo radical: “(...) Infeliz seria você, se lhe fosse
negada a virtude de ser mãe. (...)” (Maria Teresa, 1963, p. 104).
A crítica de Maria Teresa com relação a algum tipo de reclamação feita por uma
leitora nos mostra o quanto o modelo feminino materno tinha força nos anos 60. A
representação da mulher-mãe e da família ideal, segundo Bassanezi, permanecia forte, tendo o
pai a responsabilidade por trazer para casa o sustento, enquanto que a mãe sabia que
“pertencia aos filhos” e ao lar e dessa maneira não tinha o direito de escolha ou de transferir
suas obrigações para uma empregada doméstica, babá, alguém que tomasse conta dos afazeres
domésticos6. Para não ser observada como uma mulher irresponsável e sem amor pelos filhos,
6
Embora existissem mulheres que, na segunda metade do século XX, já utilizassem as “facilidades da vida
moderna”, como a água encanada, fogão à gás (embora o fogão à lenha continuasse muito popular), e aparelhos
elétricos como o ferro de passar e a geladeira (que fez desaparecer nas ruas os carregadores de gelo). Donas de
casa com mais recursos podiam contar também com aspirador de pó, batedeira, enceradeira, e, tempos mais
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 480-495, Jul. 2015
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a única alternativa que tinha era ela mesma realizar todas essas tarefas geralmente designadas
para as mulheres, principalmente no que se referia ao cuidado com os filhos. Fazendo sua
parte a esposa, dona de casa e mãe, estaria seguindo seu destino, sendo a mulher ideal.
Para as mães desquitadas além da preocupação natural com os filhos, havia outros
tipos, pois pelo fato dela estar separada além de ser vista como “uma mulher qualquer”, ficava
com ela toda a responsabilidade com relação aos filhos. Resultava desse conflito uma gama de
sentimentos que pesavam juntamente com as outras tantas atribuições femininas. Exemplo
disso é que a leitora Maria de Lurdes, demonstrando muito receio acerca da criação e
educação dos filhos, estando desquitada, desabafa: “Tento ser para eles pai e mãe. Mas é uma
tarefa quase impossível e tenho medo do fracasso. Como conseguir que mais tarde eles
tenham um lar feliz, firme, se o lar deles é tão falho?” (Maria Teresa, 1963, p. 90).
As mulheres desquitadas, durante os anos 50 e boa parte dos anos 60, segundo
Bassanezi, sofriam muito preconceito, eram desrespeitadas, sendo vistas pela sociedade como
mulheres que influenciariam mal outras mulheres. As mulheres que estivessem separadas de
seus esposos não deveriam ter outros relacionamentos; eles tinham que ser evitados para que
elas não perdessem a guarda de seus filhos. Por isso, o controle social recaía com bastante
força sobre as mulheres, enquanto que para os homens desquitados isso seria completamente
diferente, pelo fato de quenão era imoral ter outra mulher após se separar de sua primeira
esposa.
Gomes (2012), em sua pesquisa acerca do desquite ou separação nos anos 1960 e 70,
verificou que as mulheres que se desquitavam, durante a década de 60, eram muitas vezes
observadas como transgressoras, o que trazia consequências desagradáveis, tanto para elas
próprias como para seus filhos, pois elas seriam apontadas na rua como “a desquitada” e seus
filhos como “os filhos da desquitada” ou “os filhos (as) sem pai”. A historiadora percebeu que
havia um grande medo da decadência do modelo familiar dominante, que era o formado pela
mulher, esposo e filhos, onde a esposa deveria ser totalmente dedicada ao lar, aceitando a
todas as atitudes do seu marido, mesmo que fossem atitudes que não a fizessem feliz.
Gomes coloca também que nos artigos dos jornais pesquisados, as mulheres eram
alertadas a se manteremem seus lares, dando prioridade as suas vidas de esposas, mães e
donas de casa, aconselhamentos que enfatizavam a vida em família, acima de qualquer coisa.
Isso, porque as mulheres estavam cada vez mais “fugindo do lar” e em busca de trabalho para
tarde, máquina de lavar roupa. BASSANEZI, Carla. A era dos modelos rígidos. In: BASSANEZI, Carla;
PEDRO, Joana Maria (orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto. 2012.
contribuir no sustento da família, ou simplesmente com o objetivo de acumular bens. Por isso,
os artigos deixavam claro que para conseguir uma vida conjugal e familiar, elas tinham
sempre de mostrar-se voltadas aos interesses do casamento e em nenhuma hipótese deveriam
se comportar de forma a reduzir suas oportunidades de ser uma boa esposa e cumprir sua
“sagrada missão de mãe”. Dessa maneira,apesar da crescente dessacralização do sexual, a
procriação e a educação dos filhos deveriam continuar a ser prioritárias, pois os projetos
pessoais ou profissionais não se poderiam estar acima da função natural de ser mãe.
Portanto, com tantas exigências na vida das mulheres, quando elas se tornavam
esposas e mãe e depois se desquitavam se sentiam sobrecarregadas, sabendo como a
sociedade cobraria delas uma conduta exemplar para uma boa criação de seus filhos. E como
a leitora que desabafou com a articulista da coluna “Da mulher para a mulher”, as próprias
mulheres desquitadas se cobravam, pensando não ser capazes de dar aos filhos sem a presença
do pai, uma boa educação, atenção suficiente, enfim, todas as necessidades que uma família
necessitaria. Pela maneira como a articulista falou dos desabafos feitos na sua coluna, é
visível a ideia de que se o casamento não foi construído solidamente, provavelmente foi
porque a esposa não cuidou suficientemente dele, do esposo e daí o resultado seria problemas
como o da leitora Maria de Lurdes. Então, entendemos o motivo das mulheres desquitadas
terem tantos medos acerca de suas novas vidas e dos cuidados com os filhos, uma grande
responsabilidade para elas, num momento em que o masculino era tão valorizado, enquanto o
provedor familiar, em detrimento da mulher.
O que de certa forma é compreensível pela construção social e cultural machista que
foi ensinada às mulheres desde crianças de que somente os homens poderiam manter um lar,
com relação não só ao aspecto econômico, mas também em relação à educação e à
manutenção da união familiar como um todo. Ao falar sobre os desabafos feitos, a articulista
da coluna “Da mulher para mulher” deixou claro sua posição, quanto aos problemas
enfrentados pelas mulheres ao colocar:
No fundo o dilema é um só: o casamento assentado em bases pouco (ou quase nada)
sólidas ou consumado num clima de romantismo, posteriormente destruído ao
contato com a realidade. Daí resultam as questões de Nina e Maria de Lurdes, às
voltas com as “férias separadas” e “a educação dos filhos.” (Revista O cruzeiro,
13/07/1963, p. 90)
Pela maneira como a articulista fala dos desabafos feitos, na sua coluna, é visível a
ideia de que se o casamento não foi construído solidamente, provavelmente foi porque a
esposa não cuidou suficiente dele e daí o resultado são os problemas como o da leitora Maria
de Lurdes. Então, entendemos o motivo das mulheres desquitadas terem tantos medos acerca
de suas novas vidas e dos cuidados com os filhos, já que a elas era atribuída uma grande
responsabilidade, num momento em que o masculino era tão valorizado, enquanto o provedor
familiar, em detrimento da mulher.
Referências bibliográficas:
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: PRIORE, Mary. Histórias das
mulheres no Brasil. 9ed. São Paulo: São Paulo: Contexto, 2010.
______. A era dos modelos rígidos. In: BASSANEZI, Carla; PEDRO, Joana Maria (orgs.).
Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto. 2012.
CAMPOS, Daniela Queiróz. Espectros dos anos dourados. Imagem, arte gráfica e civilidade
na coluna Garotas da revista O cruzeiro (1950-1964). Dissertação de Mestrado em História
pela PUC, Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 236 pgs. 2010.
______. A mulher é seu útero. A criação da moderna medicina feminina no Brasil. Revista
Antíteses, vol. 1, n. 1, jan.- jun. de 2008, pp. 174-187.
ROCHA. Olivia Candeia Lima. Discursos e imagens sobre mulheres nas primeiras
décadas do século XX na cidade de Teresina. Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
Fontes consultadas:
O que tem em comum Arturo Frondizi, Jânio Quadros e João Goulart, além de terem
sido presidentes de seus países? A resposta mais evidente é que nenhum deles concluiu o seu
mandato. Frondizi foi deposto pelos militares argentinos em 28 de março de 1962, Quadros
renunciou à presidência do Brasil em 25 de agosto de 1961 e Goulart foi alijado do poder por
um golpe civil-militar em 1 de abril de 1964.
Além disso, há, ainda, outro ponto de contato entre esses três personagens: todos eles
patrocinaram, em um período muito próximo, mudanças nas relações exteriores de seus países
que ficaram conhecidas por políticas externas independentes. E mais ainda: procuraram
aproximar o Brasil e a Argentina na defesa da autonomia da América Latina num momento de
extrema tensão ocasionado pela emergência da Revolução Cubana que modificou o estatuto
da Guerra Fria no continente americano.
É disto que trata o livro Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a
questão cubana (1959-1964), de autoria de Leonardo da Rocha Botega.1 Adaptado de sua
dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal de Santa Maria, o livro, agora,
aumentará a circulação da consistente pesquisa elaborada pelo seu autor em um grande
número de fontes primárias, com destaque para os anos iniciais da Revista Brasileira de
Relações Internacionais com seus números que foram editados entre 1958 e 1964. Some-se a
isso o expressivo número de 140 referências bibliográficas que colaboraram para que o livro
tenha uma rica densidade teórica bem como uma ampla perspectiva da História do fim dos
anos 50 e inícios dos 60 do Século XX.
1
Doutor em História pela UFRGS. Professor de História no IFSUL- Campus Charqueadas. Email:
csmd@terra.com.br
Nesse capítulo inicial, o autor produz uma visão panorâmica sobre a Argentina, o
Brasil e Cuba, tendo como elemento comparativo das realidades históricas de cada um desses
países o nacionalismo. Aqui é importante frisar, como o fez Eric Hobsbawm, 4 que o
nacionalismo é um conceito histórico e que, portanto, ele se modifica ao longo do tempo,
podendo se localizar nos mais extremos espectros políticos. Porém, no tempo e no espaço da
Argentina, Brasil e Cuba dos anos 1950, houve a coincidência de o nacionalismo assumir “um
caráter cada vez mais à esquerda no contexto da Guerra Fria”, 5 constituindo assim uma
preocupação para os Estados Unidos que procuraram –durante a VII Reunião de Consulta dos
Ministros de Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, realizada entre 22 e 29 de
agosto de 1960 na Costa Rica – impor “a adoção de sanções econômicas e de medidas
coercitivas ao governo de Cuba”.6 Não obtiveram sucesso em razão da forte oposição da
Argentina, do Brasil e do México,7 que incluíram na Declaração de San José que “nenhum
Estado americano pode intervir em outro Estado americano com o propósito de impor-lhes
suas ideologias ou princípios políticos, econômicos e sociais”8.
Leonardo Botega reconstitui a trajetória política de Arturo Frondizi além de discutir
teoricamente a ideologia de seu projeto de desenvolvimento conhecido por desarrollismo, que
visava superar tanto os entraves patrocinados pelo latifúndio quanto pela exploração
imperialista. Também analisa a difícil situação do presidente argentino que se encontrava sob
fogo cruzado, entre a extrema-direita patrocinada pelos militares anticomunistas e
antiperonistas e pelos peronistas que o consideravam um traidor, pelo fato de ter permitido
que o capital estrangeiro explorasse o petróleo de seu país.
Nesse capítulo primeiro, o autor também, analisou a polarização vivida pelo Brasil no
“tempo da experiência democrática (1945-1964)”,9 culminando com a eleição de Jânio
Quadros – quando Afonso Arinos de Melo Franco implementou a Política Externa
Independente (PEI) – e sua intempestiva renúncia que “permanece ainda alvo de debates.
Porém, mesmo sem provas documentais, a literatura de história e ciências sociais concorda
Botega conclui que há muitos pontos de aproximação entre as duas políticas externas:
ambas estão calcadas no nacionalismo, buscam um paradigma de maior autonomia para suas
relações exteriores, procuram fazer da política externa uma ferramenta na busca pelo
desenvolvimento econômico-social, criticam a deterioração dos termos de troca nas relações
econômicas entre os países mais industrializados e os países em vias de industrialização,
frisam que não são neutralistas mas que procuram a independência dentro do bloco ocidental
(ambos são acusados pelos adversários de estarem a serviço de Moscou), pretendem manter
boas relações com os EUA (Frondizi e Goulart discursaram no Congresso dos Estados
Unidos), e, por fim, que são defensores dos princípios de autodeterminação dos povos e de
não-intervenção.
É justamente sobre os princípios de autodeterminação dos povos e de não-intervenção
que trata o terceiro capítulo do livro, ao analisar de que forma Argentina e Brasil colocaram
em prática suas políticas externas independentes quando da crise da “questão cubana”.
Por “questão cubana” se entendia a adoção do socialismo a partir da declaração de que
“o que os imperialistas não podem nos perdoar é que fizemos uma Revolução Socialista
debaixo do nariz dos Estados Unidos e que defenderemos com nossos fuzis esta Revolução
Socialista (...) Viva a Revolução Socialista! Viva Cuba Livre”15 feita por Fidel Castro, e sua
incompatibilidade com o sistema interamericano. Ressalte-se que essa modificação no
estatuto da Revolução Cubana se deu em 16 de abril de 1961, um dia após tropas de exilados
cubanos financiados pela CIA terem realizado um ataque com grande saldo de vítimas fatais
em Cuba e um dia antes da tentativa de invasão conhecida como Baía dos Porcos, o que
permite entender essas palavras como um pedido de socorro à URSS para a defesa da
Revolução Cubana.
Em razão de Cuba ter se declarado socialista, primeiro o Peru e posteriormente a
Colômbia (ambas com apoio estadunidense) invocaram o Tratado Interamericano de Aliança
Recíproca (TIAR) para convocar uma Reunião de Consulta dos Chanceleres da Organização
dos Estados Americanos (OEA) com o objetivo de “intervir coletivamente através da OEA em
Cuba”16. Tanto o Brasil, como a Argentina e também o México, se posicionaram de forma
contrária até que “o próprio Fidel Castro acabou dando munição para os seus adversários. No
discurso de inauguração da Universidade Popular, em 2 de dezembro de 1961, declarou ‘sou
marxista leninista e serei marxista-leninista até o último dia de minha vida’”17. Desse modo,
ficava muito difícil, em termos políticos, barrar a convocação da Reunião.
Dado a polêmica da questão, nenhum país quis sediar a Reunião de Consulta, exceto o
Uruguai. Assim, a VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos se realizou em
Punta del Este entre 23 e 31 de janeiro de 1962. San Tiago Dantas, representando o grupo
composto por Brasil, Argentina, México, Bolívia, Chile e Equador e Haiti (o Uruguai oscilava
entre a posição brasileira e a posição colombiana pela expulsão de Cuba), defendeu que a ilha
não fosse excluída do sistema americano sob o risco de estarem-na jogando aos braços dos
soviéticos.
Os Estados Unidos, sob a liderança do Secretário do Departamento de Estado, Dean
Rusk, exerceram pressões sobre o Brasil, a Argentina e os outros países que eram contra a
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 496-501, Jul. 2015
500
expulsão de Cuba. Outras pressões eram exercidas pelos setores mais à direita internamente
nos países, como o fez o exército argentino e alguns ex-chanceleres brasileiros. Contudo, foi
um dos mais fracos países do continente que acabou sucumbindo às pressões dos EUA: o
Haiti foi o necessário 14º voto para a aprovação da íntegra do texto de resolução apresentado
por Rusk.
Leonardo Botega analisa as repercussões internas das posições do Brasil e da
Argentina, que acabaram se abstendo de votar o texto completo de Rusk. Percebeu os apoios e
as oposições às políticas externas independentes. No caso brasileiro, de forma mais imediata,
a posição em Punta del Este acabou sendo um empecilho para San Tiago Dantas ser aprovado
pelo Congresso como primeiro-ministro em junho daquele mesmo ano. No caso argentino, a
pressão foi tão intensa que o país rompeu relações diplomáticas com Cuba em 8 de fevereiro
e, mesmo cedendo desse modo aos militares, o presidente Frondizi foi deposto em 29 de
março de 1962. Dois anos depois, tendo como uma das justificativas salvar o Brasil do
comunismo, João Goulart também foi golpeado por militares e por civis.
Do belo trabalho de pesquisa realizado por Leonardo da Rocha Botega fica uma
questão em aberto: até que ponto os golpes militares não foram, também, resultado das
políticas externas independentes, ou talvez, resultado da posição frente a questão cubana?
1
BOTEGA, Leonardo da Rocha. Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana
(1959-1964). Porto Alegre: Letra & Vida, 2013.
2
Basta lembrar que a Operação Pan-americana (OPA) proposta por Juscelino Kubitschek em maio de 1958 não
despertou maior interesse de Eisenhower. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política
exterior do Brasil. 3ª edição ampliada. Brasília: Editora da UNB, 2010, p. 293-294.
3
BOTEGA, op.cit., p. 29.
4
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
5
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O nacionalismo latino-americano no contexto da Guerra Fria. In: Revista
Brasileira de Política Internacional. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ano 37, nº 2,
1994, p. 55-56.
6
BOTEGA, op.cit., p. 43.
7
As posições da política externa independente mexicana, em especial com sua relação com a questão cubana,
são abordadas em profundidade por Altmann. ALTMANN, Werner. México e Cuba: revolução, nacionalismo,
política externa. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 77-86.
8
BOTEGA, op.cit., p. 44.
9
A expressão é de Jorge Ferreira e Lucília Delgado. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves
(orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
10
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime
democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 25.
11
GOTT, Richard. Cuba: uma nova História. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 211.
12
WEINER, Tim. Legado de Cinzas: uma história da CIA. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 208-217.
13
FRONDIZI, Arturo. A Luta Antiimperialista: etapa fundamental do processo democrático na América
Latina. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1958. DANTAS, San Tiago. Política Externa Independente. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
14
BOTEGA, op.cit., p. 104.
15
Fidel Castro apud MÁO JÚNIOR, José Rodrigues. A Revolução Cubana e a Questão Nacional (1868-1963).
São Paulo: Núcleo de Estudos D’O Capital, 2007, p. 354.
16
BOTEGA, op.cit., p. 184.
17
Idem, p. 185.
BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da
obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 347p.
um extenso tecido social que, embora forjado sobre diversos ecossistemas e integrando povos
culturalmente muito distintos – desde a Índia até a Espanha – manteve elementos de uma
identidade comum: o idioma árabe, considerado sagrado e perfeito por ter sido a escolha de
Deus para anunciar sua mensagem ao mundo, através de Maomé; e a fé islâmica, responsável
pela unidade dos fiéis no corpo da Umma, a comunidade muçulmana que supera fronteiras
políticas e étnicas diante da supremacia religiosa.
Dada a amplitude desta ocupação, a análise de referenciais da geografia cultural é
central à discussão de Bissio. Conceitos como espaço social e lugar, aplicados à concepção da
identidade, permeiam sua discussão, marcando o pertencimento e a exclusão na sociedade
islâmica. Centrada no processo de urbanização, a fé muçulmana encontrou local privilegiado
para sua divulgação nas cidades, organizando o espaço e caracterizando as relações sociais ali
estabelecidas. A cidade construiu-se em torno da mesquita, onde coabitavam profissão de fé,
exercício do poder político e jurídico e práticas educacionais. No plano territorial, o
desenvolvimento da cartografia manteve-se ativo durante a expansão muçulmana, vistas as
exigências dos Cinco Pilares do islamismo3, dentre as quais se destacam a necessidade de orar
cinco vezes ao dia na direção de Meca e realizar, ao menos uma vez na vida, a peregrinação
aos lugares sagrados do Islã. O domínio do espaço era condição para exercício da fé e foi a
comunhão religiosa sobre o espaço que garantiu a continuidade da Umma.
O exercício da justiça árabe-muçulmana fazia-se a partir do Corão, o livro sagrado, e
da Sunna, a compilação dos ditos e feitos do Profeta. Com o aumento da complexidade social
árabe-islâmica, fazia-se necessário coletar o máximo de informações úteis à construção da
jurisprudência, visto esta basear-se nos exemplos advindos da vida e obra de Maomé. O
objetivo inicial da viagem, portanto, era a coleta dos hadiths: atitudes, decisões e silêncios de
Maomé, que compõem a Sunna e caracterizam o exercício da justiça islâmica na xaria.
Através da viagem, buscava-se reconstruir as experiências do Profeta, pela coleta de tradições
junto aos familiares daqueles que conviveram com ele. A viagem levava ao conhecimento.
Além do acesso ao saber, a escrita geográfica trazia à luz a grandiosidade do mundo
construído pelos muçulmanos. Este, entretanto, vivia momentos de crise. No século XIV, o
Mediterrâneo árabe caia diante dos impactos da Peste Negra e da fragmentação política. Com
este pano de fundo, Bissio aborda o contexto histórico vivenciado por Khaldun e Battuta,
importantes na configuração de suas obras. A autora argumenta que se vivia um período no
qual o passado glorioso era mais importante que o incerto futuro, inspirando os escritores
muçulmanos a produzir textos que garantissem à posteridade o conhecimento daquele
momento histórico.
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Ibn Khaldun, sobre quem já se disse ter sido o criador da Sociologia, se propôs a
produzir uma obra de História peculiar à época: os homens eram o sujeito histórico e o objeto
de estudo era a sociedade muçulmana. Partindo da trajetória de vida deste autor, o impacto da
Peste Negra em sua formação e sua atuação política no Magrebe, na Espanha (Al-Andaluz) e
no Egito, Bissio destaca a contribuição de Khaldun às Ciências Humanas, pouco estudada na
tradição ocidental. O deslocamento da História para o mundo dos homens, em detrimento de
ser realização da vontade divina; a compreensão da unidade do gênero humano e a explicação
do desenvolvimento das civilizações através da geografia, ecologia e biologia caracterizam
grande ruptura com a epistemologia vigente no período, muito embora alimentada pelas
concepções muçulmanas acerca do mundo.
Documentos produzidos para serem monumentos4 de uma sociedade em decadência,
os textos de Battuta e Khaldun apontam o uso pragmático da escrita como recurso à
integração dos espaços e entendimento da sociedade, aproximando homens e Estados que,
embora não mais organizados numa estrutura política única, o califado, seguiam na comunhão
de uma identidade linguístico-religiosa (apesar das dissidências, como sunitas e xiitas). Um
dos conceitos desenvolvidos por Ibn Khaldun – assabiyya, o espírito do corpo político –
decorre de suas experiências ao percorrer o Magrebe neste momento, dado à derrocada de
Estados e ao sentimento, captado por ele, de deslocamento do eixo civilizacional, que se
movia do sul para o norte, com a emergência da Cristandade europeia e a redução das cidades
muçulmanas, outrora as mais populosas, urbanizadas e ativas do período.
Na teoria das civilizações de Khaldun, o conceito umran tem sentido em civilização,
seja na universalidade da sociedade humana ou na concretude de uma população sobre um
território. A vida em sociedade é condição da existência humana, conforme Khaldun, e sua
essência está na complementaridade entre o polo rural e o urbano. No primeiro residem os
valores como força, lealdade, temperança, que fortalecem o espírito político (assabiyya); no
segundo está o luxo, os excessos e prazeres, que o enfraquecem. Contudo, o urbano é o
espaço central da vida social e religiosa. O equilíbrio se constitui na trajetória cíclica da
história, com ascensão e queda de impérios que conquistam as cidades, se apoderam delas e se
enfraquecem nelas. A umran é transmitida de um império a outro, resultando num sistema de
civilização bipolar, cíclico e relativamente estável.
Enquanto Khaldun busca compreender as leis que regem a sociedade, Battuta aponta a
unidade da umma como ponto central de sua análise. Ao longo da rihla na qual descreve o
périplo realizado, o viajante marroquino dedica-se a apresentar a universalidade da umma.
Sua narrativa, exposta por Bissio, conjuga as necessidades do saber com a atenção dedicada
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1
Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a
qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: thiago.mota@ymail.com.
2
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.
3
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica.
Aparecida: Santuário, 2010.
4
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp. 2003.
5
BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e
Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.292.
A presente entrevista foi concedida por Joaquín Daglio, diretor, roteirista, responsável
pela pesquisa e entrevistas do aclamado documentário argentino Padres de la Plaza: 10
recorridos posibles. De forma muito gentil Joaquin combinou um encontro em um café no
bairro Palermo, em Buenos Aires, e me recebeu com muita disposição para uma conversa em
que tratamos de diversas temáticas diretas ou indiretamente abarcadas com o assunto do
documentário. Exponho aqui parte dessa conversa.
Daglio nasceu em 1975 na cidade de Buenos Aires e é graduado pela UBA
(Universidade de Buenos Aires) em Diseño de Imagen y Sonido. Além de se dedicar enquanto
diretor cinematográfico, também é músico/compositor, estudou atuação e dramaturgia,
trabalhou com teatro, curta metragens, como operador de câmera e assistente de produção
para diferentes instituições.2 Segundo as informações dadas no site oficial do documentário, a
ideia inicial do projeto veio com o próprio Joaquín, que produziu o filme através de um
trabalho de grupo do qual participaram estudantes e profissionais da área de Comunicação,
bem como outros de Diseño de Imagen y Sonido – fato que acabou envolvendo também a
UBA no projeto.
A temática do documentário tem caráter bastante inovador, apesar de Daglio expor de
forma muito clara e enfática que esse não é o ponto de partida, muito menos o central, do
projeto. Abordar as memórias e “desmemorias” de alguns pais, mais de 30 anos depois do
golpe, através de uma narrativa que vai entrelaçando seus depoimentos e suas histórias,
levando em consideração o fato de não estarem tão acostumados a falarem sobre o ocorrido
quanto às mães, faz do filme um riquíssimo material de análise. O documentário apresenta
relatos de dez pais que aceitaram participar do projeto contando suas trajetórias de vida e de
atuação a partir do desaparecimento de seus filhos além, obviamente, da vivência de
1
Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista na “Missão de estudos
CAPG/CAPES” - Argentina em 2014. Contato: natasha.dias.castelli@hotmail.com
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Durante 2001 y 2002 trabajé como camarógrafo para el archivo oral de Memoria
2
Informações cedidas pelo site do documentário. Disponível em: PADRES DE LA PLAZA
<http://www.padresdelaplaza.com.ar/index.php?body=12&id=1>. Acesso em 10/02/2014.
3
Importante evidenciar que o prêmio recebeu este nome em homenagem a uma das fundadoras do movimento
Madres de Plaza de Mayo que foi sequestrada e desaparecida em 1977. Até os dias de hoje Azucena é estimada
pelas organizações de direitos humanos, bem como, é referência para as Madres que inclusive levavam em seu
símbolo a flor, cujo nome é azucena, atravessada pela sigla do movimento: MPM (Madres de Plaza de Mayo).
4
DECRETO Nº 1.200/2003. PREMIO ANUAL “AZUCENA VILLAFLOR DE DEVICENTINI”. Disponível
em: <http://www.derhuman.jus.gov.ar/pdfs/DECRETO_1200-2003.pdf>. Acesso em: 20/01/2014. O prêmio é
entregue pelo (a) Presidente da República através de um objeto simbólico e um diploma de honra e
reconhecimento.
5
PREMIOS DEMOCRACIA 2012. Disponível em: <http://www.premiosdemocracia.org.ar/>. Acesso em:
22/01/2014. Este prêmio existe desde 2009 e visa contemplar grupos e/ou pessoas que realizem atividades em
favor dos valores democráticos.
6
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro; CPDOC/FVG, v.
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"Oficialmente", una de las motivaciones para que el documental fuera hecho es de que
tanto usted cuanto los productores nacieran en los años de la última dictadura argentina
y se sensibilizan con esa historia que además de hacer parte de sus vidas personales hace
parte de sus vidas en cuanto argentinos y latino americanos, a final las víctimas del
Terrorismo del Estado (TDE) son muchísimas y se entrelazan a historia de todos, ¿no?
¿De dónde proviene esta inquietud con relación a los padres? Ese interés en saber más
(específicamente) sobre estas víctimas y sus memorias ¿sobre todo lo que pasó? Este
proyecto si no fue el primero en tratar este tema fue uno de los primeros, ¿no?
¿Crees que ellos fueron quedando en segundo plano? En relación a los otros familiares...
2, nº 3, 1989, p. 3-15.
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El sociólogo Michael Pollak comprende que este trabajo de historia oral es una parte
muy importante del proceso de revelar dichas “memorias subterráneas”. ¿Cómo fue este
proceso de "dar voz" aquellos que aún no habían hablado?
el vínculo que se desprende de una cercanía, el compromiso del que escucha con el que habla,
trabajamos a partir de una única cámara en mano que registrara en acto esa intimidad, que
interactuara con lo que sucedía, que no fuera ajena a la situación (hubiera resultado
contradictorio escindir la imagen de una misma situación en diferentes puntos de vista, la
articulación de dos cámaras hubiera compuesto una mirada distante e impersonal). Esa única
cámara acompañó de modo espontáneo las intervenciones de cada entrevistado centrándose
en el fluir de la acción, retratando a cada padre desde una distancia que no disminuyó ni
amplificó sus gestos. Fue significativo, entonces, que su propio pulso quedara registrado, el
uso de un trípode hubiera agregado estabilidad, firmeza y seguridad al encuadre, con el
perjuicio de que esto pueda leerse como indiferencia frente a las palabras del entrevistado. Por
otra parte, era importante respetar el contexto que cada uno de los padres había elegido para
las entrevistas, no tergiversarlo, así decidimos trabajar la puesta en escena a partir de los
elementos que se presentaban en cada locación. Otra cuestión importante era captar lo honesto
y espontáneo de los testimonios, lo revelador de la palabra del padre y su relación con aquel
contexto, por lo que fue vital la búsqueda de un registro sonoro nítido y preciso en donde se
destacara la voz del padre, pero donde también participara el sonido ambiente, incorporando
la presencia del contexto en cada situación. Por último, un factor decisivo era lograr entrelazar
los diez recorridos individuales para poder componer un relato coral en el que se pudieran
advertir los efectos de una misma tragedia a través del carácter heterogéneo de los
testimonios. Este diálogo entre diez relatos fue posible gracias al trabajo que hicimos junto al
montajista Eduardo Morales, con quien buscamos una estructura donde cada secuencia
retomara lo dicho en la anterior y fuera construyendo el recorrido de los padres a partir de este
retorno. En cuanto a la necesidad de lograr un relato crudo, editamos el material evitando
artificios que buscaran subrayar lo trágico de cada testimonio e indujeran la emoción del
espectador, interpretando el ritmo necesario para cada secuencia, acompañando la palabra de
los padres.
No creo que haya existido algo así como un “período de olvido”, creo que a los padres,
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513
a diferencia de las madres, les resulto muy difícil poner en palabras sus dolor, compartir sus
sentimientos, dar a conocer sus recorridos. Definitivamente podemos suponer que esa
dificultad está relacionada con el rol del padre y con el hecho de ser hombres, y que hoy, ya
ancianos, a algunos de ellos les resultaba necesario sortear esa dificultad y dejar sus
testimonios para la posteridad.
Los documentales son una forma didáctica y más accesible a la información, incluso
históricas. ¿Cuál es la importancia (pensando en la divulgación de la historia, en
derecho a la memoria y la verdad) de un proyecto como ese que proporcionó espacio a
estos actores reales?
Nuestro trabajo fue generar ese espacio desde donde ellos pudieron hablar, pero el
mérito definitivo es el de estos padres, que tuvieron la valentía de dejar sus testimonios luego
de tantos años sin dar a conocer públicamente sus vivencias.
Hace casi 4 años que se exhibió el documental, ¿cuál fue la devolución del público?
El documental tuvo una muy buena devolución tanto de los organismos de Derechos
Humanos como del público en general. También sucedió así con los cuatro capítulos para TV
que hicimos junto al canal Encuentro con el material que quedó fuera de la película. En Brasil
fue visto en Rio de Janeiro y San Pablo, en el marco de un festival de cine al que pude
concurrir junto a Rafael Beláustegui (padre de tres hijos desaparecidos: Valeria, José y
Martín), allí recibimos muy buenas críticas del público, que luego de las funciones se
acercaba respetuosamente a Rafael para hablar y expresarle su afecto, fue muy conmovedor
para Rafael, que vivió y trabajó en San Pablo durante la dictadura argentina.