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CONSELHO EDITORIAL

Bruno Félix Segatto (Editor Chefe)


Camila Albani Petró (Editora de Texto)
Claudio Klippel (Editor de Layout)
Débora Priscila Graeff (Editora de Seção)
Erick Vargas da Silva (Editor de Texto)
Erico Teixeira de Loyola (Editor de Seção)
Felipe Schulz Praia (Editor de Seção)
Graziele Corso (Editora-Gerente)
Guilherme Kichel de Almeida (Editor de Seção)
Guilherme Machado Nunes (Editor de Seção)
Hildebrando Maciel Alves (Editor de Texto)
Maria Karina Ferraretto (Editora de Seção)
Marina Gris da Silva (Editora de Seção)
Maurício Brum (Editor de Texto)
Micaele Irene Scheer (Editora de Seção)
Rafael Filter Santos da Silva (Editor de Texto)
Wellington Rafael Balém (Editor de Texto)

CONSELHO CONSULTIVO

Federico José Alvez Cavanna, UNESPAR


Jefferson Cano, UNICAMP
Marlene de Fáveri, UDESC
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz, UNICENTRO
Diorge Alceno Konrad, UFSM
Anderson Zalewski Vargas, UFRGS
Fábio Duarte Joly, UFOP
Margaret Marchiori Bakos, PUCRS.
Márcia Santos Lemos, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
Rafael Athaides UFMS
Thaís Leão Vieira, UFMG
Leandro Pereira Gonçalves, UFJF
Vitor Amorim de Angelo, Universidade Vila Velha
Nilo Dias de Oliveira, PUC-SP
Gilberto Calil, Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Taís Campelo Lucas, PUC-RS
Caroline Bauer, UFPel
Márcia Kuniochi, UFRG
Angelo Assis, Universidade Federal de Viçosa
Nilton Pereira, UFRGS
Sonia Miranda, Universidade Federal de Juiz de Fora
Fernanda Pandolfi, UFMG
João Fábio Bertonha, UEM
Luiz Alberto Grijó, UFRGS
Rodrigo Tavares, UFPR
Cássia Daiane Silveira, UNICAMP
Ivan Paolo Fontanari, IPHAN/RS
Jacqueline Hermann, UFRJ
Enrique Padrós, UFRGS
Karl Schurster, UPE
Charles Machado Domingos, IFSUL

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 2-4, Jul. 2015


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José Alberto Baldissera, UNISINOS
Glaucia Konrad, UFSM
Cláudio Vasconcelos, UNIRIO
Igor Salomão Teixeira, UFRGS

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 2-4, Jul. 2015


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REVISÃO
Conselho Editorial

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Bruno Félix Segatto

Imagem de Capa: The Library (1967) de Jacob Lawrence (1917-2000).


Edição de capa: Claudio Klippel
AEDOS
Revista do Corpo Discente do Programa de
Pós-Graduação em História da UFRGS
Porto Alegre V.7 N.16 2015-07-20
ISSN 1984-5634

AEDOS Porto Alegre Vol. 7 N. 16 513 p. Jul. 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL


Reitor: Carlos Alexandre Netto
Vice-Reitor: Rui Vicente Oppermann

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretora: Soraya Maria Vargas Cortes
Vice-Diretora: Maria Izabel Saraiva Noll

AEDOS Revista do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da


UFRGS
Publicação do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


Avenida Bento Gonçalves,
9500. Caixa postal 15055
CEP: 91501-970
Bairro Agronomia – Porto Alegre – RS

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 2-4, Jul. 2015


Editorial

O Conselho Editorial da Revista Aedos apresenta, em seu décimo sétimo número, os


anais de um evento cujo tema é bastante caro e concerne à grande parte da comunidade de
historiadoras e historiadores. As comunicações selecionadas compuseram a “XX Jornada de
Ensino de História e Educação: 20 anos de pesquisa e Ensino de História”, que ocorreu na
FURG - Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande, RS), entre os dias 3 e 6 de
novembo de 2014. Este evento, organizado pelo Grupo de Trabalho de Ensino de História e
Educação da Anpuh-RS, inspirou o título e a imagem de capa do presente número.
Além da Seção Comunicações, este número também está composto por sete artigos de
tema livre, duas resenhas e uma entrevista. Os textos apresentados, apesar de não estarem
organizados por uma temática específica, demonstram a diversidade de possibilidades de
investigação dentro do conhecimento histórico. Acreditamos que com esta publicação, o
Conselho Editorial da Revista Aedos reafirma seu compromisso de colaborar com a
divulgação de pesquisas e debates acadêmicos nos diversos campos da História.

Bruno Félix Segatto (Editor-Chefe)


Graziele Corso (Editora-Gerente)

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 5, Jul. 2015


Apresentação

O Grupo de Trabalho de Ensino de História e Educação da Seção Rio Grande do Sul


da Associação Nacional de História (ANPUH-RS) comemorou em 2014 vinte anos de
construção de caminhos coletivos e organizados no campo da docência em História.
Caracteriza-se por realizar anualmente Jornadas com o objetivo de socializar sua produção e
construir um espaço de diálogo aberto a professores de História e Pedagogia, congregando
docentes e licenciandos da Educação Básica e da Educação Superior em reflexões dentro do
campo do Ensino da História. A presença de graduandos vinculados ao Programa Institucional
de Bolsa de Incentivo à Docência (PIBID), assim como de mestrandos dos Mestrados
Profissionais em Ensino de História, tem constituído um diferencial das últimas Jornadas
realizadas pelo Grupo de Trabalho (GT).
Para a realização de uma Jornada acontece um processo de escolha de uma instituição
de Ensino Superior, a partir de reuniões de trabalho com as coordenações institucionais e com
os representantes do GT. Essa trajetória organizativa anual resulta de um desejo de dar
continuidade aos esforços de militantes que ao longo das últimas décadas dedicaram-se a
construir um caminho de aposta no ensino de História como espaço de diálogos e de
reconhecimentos de diferenças e de indissociabilidades diversas, tais como: teoria e prática,
ação e reflexão, escola e universidade, licenciatura e bacharelado, passado e presente, história
e memória.
No ano de 2014, a XX Jornada ocorrida na Universidade do Rio Grande (FURG), na
semana de três a seis de novembro, teve como temática central a própria história do Grupo de
Trabalho (GT): 20 anos de pesquisa e ensino de História. Temas como Ensino de História,
Tempo Presente e Direitos Humanos destacaram-se nas conferências de abertura e
encerramento, acompanhados de outras abordagens realizadas em oficinas e bate-papos, tais
como: ditadura civil-militar, culturas juvenis, história e cultura afro-brasileira, povos
indígenas, cinema, canções, patrimônio, entre outros. A culminância dos diálogos
estabelecidos foi experimentada, como tradição da Jornada, nas comunicações abertas,
constituídas como espaços onde graduandos e professores conectam-se em movimentos de
partilha, valorização e escuta.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 6-7, Jul. 2015


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A publicação de textos que ora apresentamos resulta exatamente dessa experiência de


produção reflexiva no campo do Ensino de História e na especificidade da pluralidade de
vozes que aí se apresentam. O resultado é um convite à leitura do que vem sendo vivido e
pensado nos diferentes tempos-espaços do Rio Grande do Sul.

Grupo de Trabalho de Ensino de História e Educação

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 6-7, Jul. 2015


A música como possibilidade de aplicabilidade da Lei 10.639/03 no Ensino de História

Gabriela Teixeira Gomes1


Carmem G. Burget Schiavon2
Júlio César Madeira3

Resumo: O presente trabalho apresenta resultados parciais de um projeto desenvolvido em turmas de 8º ano e 8ª
série do Ensino Fundamental II, no contexto de uma escola pública do município de Pelotas, em 2014. Em linhas
gerais, o projeto teve por objetivo a aplicabilidade da Lei 10.639/03 no ensino de História por intermédio da
Música. Para tanto, dividiu-se as atividades em quatro ciclos, os três primeiros são formados por três etapas e o
último por apenas uma e, em cada um dos ciclos, aborda-se sobre um estilo musical diferente, sendo esses o
Reggae (afro-jamaicano), o Rap (afro-jamaicano) e o Samba (afro-brasileiro) e, no último ciclo, os alunos
produzem um vídeo. Na primeira etapa, são realizadas palestras tendo como foco os estilos musicais, suas
características, o contexto em que se originaram, os traços da cultura africana e afrodescendente nesses estilos
musicais, bem como a presença desses na cultura brasileira. Na segunda etapa, fomenta-se um debate com as
turmas buscando o diálogo relacionado à diversidade cultural e étnico-racial presentes no Brasil, da relação da
juventude com esses estilos musicais, do racismo, da discriminação racial, etc. Na terceira etapa, os alunos
produzem relatórios sobre o que foi discutido (trabalhado) a partir das palestras e dos debates. Por fim, no quarto
ciclo, os alunos – divididos em grupos – produzem uma canção ou uma paródia de uma música já existente de
modo que estejam ligadas aos estilos musicais abordados nas palestras e nos debates, com vistas à difusão de
estratégias para implementação da Lei 10.639/03 de modo curricular.
Palavras-chave: Lei 10.639/03, Ensino de História, Música.

Music as possibility of application of Law 10.639/03 through the History classes

Abstract: Herein, partial results of a project developed in classes of 8th grade of Elementary School, in the
context of a public school in the city of Pelotas in 2014, are showed. In general, the project aims at applicability
of Law 10,639 / 03 in teaching history through music. To do so, we divided the activities into four cycles. The
first three are formed by three steps, and the last by only one, and each cycle is based on a different musical
style, incluiding Reggae (african -jamaican), Rap (african-Jamaican) and Samba (african-Brazilian) and, in the
last cycle, students must produce a video. In the first stage, talks are held focusing on musical styles,
characteristics, context in which it originated, the traces of African culture and African descent in these musical
styles as well as the presence of these in Brazilian culture. In the second stage, a debate is conducted with
groups seeking related to cultural diversity and racial-ethnic dialogue present in Brazil, the relationship of youth
with these musical styles, regarding racism, racial discrimination, etc. In the third stage, students must produce
reports on what was discussed (homework) from the lectures and discussions. Finally, in the fourth cycle, the
students - divided into groups - produced a song or a parody of an existing song so that they are linked to the
musical styles covered in the lectures and discussions, with a view to disseminating strategies for
implementation of the Law 10,639 / 03 curriculum mode.
Keywords: Law 10,639/03, History Class, Music.

1
Universidade Federal do Rio Grande. Contato: gomes.gabrielateixeiragomes@gmail.com
2
Universidade Federal do Rio Grande: Contato: cgbschiavon@yahoo.com.br
3
Universidade Federal do Rio Grande. Contato: juliocesarmadeira@gmail.com
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Introdução

O Brasil é um país multicultural, formado por diferentes grupos étnicos que


contribuíram e contribuem de forma igualitária para a formação do país. Contudo, a cultura da
população negra, como a dos indígenas, foi delegada ao esquecimento e a marginalização,
colaborando para a criação de estereótipos de inferioridade e selvageria, que ainda habitam o
imaginário social. Essas concepções acentuam o crescimento do racismo e da discriminação
racial existentes no Brasil, provocando danos irreparáveis a toda sociedade. Nessa esteira, as
militâncias do Movimento Negro constituem-se como grandes transformadoras de uma
realidade que ainda exclui os negros dos bancos escolares e das Universidades, concentram a
maior parte da população negra em zonas periféricas e com alto índice de desigualdade social,
menospreza e desqualifica a cultura e a história dos africanos e seus descendentes. Assim, o
“movimento negro é o sujeito político que canaliza os interesses, as reivindicações e o projeto
político da coletividade negra” (DOMINGUES, 2005, p. 28).
Nesse contexto, é sancionada a Lei 10.639/03 que tornou obrigatório o ensino de
História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas instituições públicas e privadas de ensino
básico de todo o país. Ela é fruto das militâncias e lutas do Movimento Negro e de outros
segmentos da sociedade em prol de uma educação igualitária, respeitosa à diversidade étnico-
racial e cultural, livre do racismo, da discriminação racial e da desigualdade social. Passada
mais de uma década da promulgação da Lei 10.639/03, entre avanços e recuos, ela tem sido
inserida nos contextos escolares brasileiros; todavia, muitos desafios ainda se fazem presentes
no campo para a sua real implementação.
Dentro deste contexto, pretende-se nas páginas que se seguem apresentar algumas
reflexões pertinentes à implementação da Lei 10.639/03, bem como apresentar resultados
parciais de um projeto desenvolvido em turmas de 8º ano e 8ª série do Ensino Fundamental II,
no contexto de uma escola pública do município de Pelotas, em 2014. Em linhas gerais, o
projeto tem por objetivo a aplicabilidade da Lei 10.639/03 no Ensino de História por
intermédio da música, buscando fomentar a integração entre cultura afro, música, e ensino de
história, promovendo ações que visam o debate e a reflexão sobre o racismo e a discriminação
racial, que atingem vertiginosamente a população negra, e valorizar a cultura e história dos
afrodescendentes.

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O caminho da legislação antirracista no Brasil

Com a pressão de diversos movimentos – não só o abolicionista como da própria


organização negra – foram criadas uma série de leis que iniciaram o processo de libertação da
população negra da escravidão e o fim do regime escravista no Brasil. Entretanto, os
conteúdos dessas leis acabaram em certos pontos sendo ineficazes frente à realidade social
desse povo. Como, por exemplo, a Lei dos Sexagenários que determinava a libertação de
escravos com mais de 60 anos. Sabe-se, no entanto, que a possibilidade de uma pessoa
escravizada chegar aos 60 anos no Brasil constituía-se como um caso raro e isolado. Mesmo
após a abolição, em 1889, não existia nenhuma legislação que atendesse a demanda dos
negros, ao contrário, criou-se leis que prolongaram a situação precária imposta pela elite
branca.
A população negra passou a ter seus direitos assegurados a partir do século XX. A
criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e da Declaração dos Direitos
Humanos, em 1948, iniciaram esse processo. O Brasil passou a caracterizar o racismo como
crime sujeito a pena em 1951, e, em 1988, por meio da Constituição Federal, transformou o
racismo e a discriminação racial em crimes inafiançáveis por meio do “inciso Artigo 42 do
Artigo 5º que trata da prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível” (BRASIL,
2006, p. 251). Juntamente com essas leis estão as Leis “[...] 7.716/1989, 8.081/1990 e
9.459/1997, que regulam os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor e estabelecem
as penas aplicáveis aos atos discriminatórios e preconceituosos, entre outros, de raça, cor,
religião, etnia ou procedência nacional” (BRASIL, 2006, p.251).
Embora, a legislação tenha avançado em relação à punição de atos racistas, é
necessário que haja a conscientização da sociedade de que o racismo é uma construção
histórica fortemente enraizada no cotidiano brasileiro e que não representa “simplesmente
uma herança do passado [...] vem sendo recriado e alimentado ao longo de toda a nossa
história [...]” (BRASIL, 2006, p.18). Ao mesmo tempo, a legislação precisa ser cumprida de
forma efetiva, sendo os casos de racismo denunciados e punidos de acordo com a lei.

A ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial no Brasil

Durante três séculos o Brasil participou ativamente da escravização de milhões de


africanos e afrodescendentes, que foram arrancados de seu continente e forçados a
abandonarem suas famílias, crenças, valores, costumes, ritos, mitos, memórias e histórias.

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Entretanto, diferentemente do que as teorias racistas apregoavam e, apesar das inúmeras


adversidades, os africanos e seus descendentes reagiram bravamente a escravidão resistindo
ao domínio do colonizador, seja por meio de rebeliões como a Revolta dos Malês, Sabinada,
Balaiada, dos Quilombos espalhados pelo Brasil a fora, seja por meio de seus inúmeros e
complexos cultos religiosos, da fuga, da guerra, dos batuques e tambores incapazes de serem
silenciados pelos estalos das chibatas.
As justificativas utilizadas para legitimar o domínio dos europeus baseavam-se em
teorias que afirmavam a inferioridade dos africanos. Os estudos do filósofo alemão Friedrich
Hegel baseados no pensamento dominante do século XVIII e XIX, apontam a incapacidade
dos africanos de produzirem sua própria história ao mesmo tempo lhes tarjando o título de
incivilizados e selvagens, desse modo a “[...] África não é uma parte histórica do mundo. Não
tem movimentos, progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela [...]” (HEGEL,
1995, p. 174). De acordo com Kabengele Munanga (1986, p. 9) a “[...] ignorância em relação
à história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos étnicos [...]
predispuseram o espírito europeu desfigurar completamente a personalidade moral do negro e
suas aptidões intelectuais [...]”, levando-o a “tornar-se sinônimo de ser primitivo, inferior,
dotado de uma personalidade pré-lógica [...]” (MUNANGA, 1986, p. 9).
Durante o último quartel do século XIX e após a abolição da escravidão, a imigração
no Brasil ganhou ainda mais força, sob a justificativa da falta de mão de obra no país.
Todavia, a imigração não foi amplamente estimulada apenas com a finalidade de aumentar o
contingente de imigrantes que pudessem ofertar sua força de trabalho, mas com o forte
propósito de “branquear” a população brasileira. Haja vista que se acreditava que quanto mais
branca fosse a nação brasileira mais próxima ela estaria da civilidade e superioridade – essa
teoria é conhecida como ideologia do branqueamento. Segundo Nina Rodrigues (2008), a
miscigenação do Brasil era um sinal de degeneração, portanto, dever-se-ia branquear o mais
rápido possível a sociedade brasileira. A ideologia do branqueamento “divulga a ideia e o
sentimento de que as pessoas brancas seriam mais humanas, teriam inteligência superior e por
isso teriam o direito de comandar e dizer o que é melhor para todos” (BRASIL, 2006, p. 237).
O mito da democracia racial é outro fator que é pauta dos debates e reflexões sobre o
racismo e traz inserido em suas bases o discurso de que os diferentes grupos étnico-raciais que
compõem o Brasil convivem de forma harmoniosa, democrática e pacífica, sendo tratados de
forma igualitária e respeitosa, tendo suas culturas valorizadas e seus direitos preservados.
Entretanto, essa não é a realidade do país, de forma que não seriam necessárias as ações
afirmativas que são: “conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades

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raciais e sociais, orientadas para a oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir
desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e
discriminatória” (BRASIL, 2006, p. 233).
As teorias racistas perpetuaram-se ao longo de décadas, e embora uma infinidade de
medidas no campo jurídico, social e educacional estão sendo feitas, é preciso compreender
que elas devem ser contínuas, pensadas a curto, médio e longo prazo. A esse propósito, deve-
se considerar também que no campo educacional, muitos movimentos se têm feito, embora
ainda sejam mais presentes em ações isoladas, no sentido de valorizar as diferentes culturas
formadoras da história brasileira. Dessa forma, a busca pela aceitação da diferença e da
diversidade deve basear-se no respeito e na igualdade.

Algumas reflexões sobre cultura

Atualmente, o termo cultura possui inúmeras definições, de acordo com Peter Burke
(2008, p. 43) “o termo cultura costumava se referir às artes e as ciências. Posteriormente, foi
empregado para equivalentes populares- música folclórica, medicina popular e assim por
diante”. Burke (2008, p.43) salienta que na última geração “a palavra passou a se referir a
uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante) e práticas
(conversar, ler e jogar)”. No primeiro quartel do século XX, o antropólogo Bronislaw
Malinowski definiu cultura de uma forma ampla, entendendo-a como “as heranças de
artefatos, bens, processos técnicos, ideias, hábitos adquiridos pelo homem como membro da
sociedade” (BURKE, 2008). Seguindo na linha antropológica, Claude Lévi-Strauss considera
cultura como “um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente humana. O seu
trabalho tem sido o de descobrir na estruturação dos domínios culturais - mito, arte,
parentesco e linguagem- os princípios da mente que geram essas elaborações culturais”
(LARAIA, 2014, p. 61).
Diversos estudos antropológicos do século XIX criaram teorias traçando uma linha
evolutiva das diferentes culturas, outros seguiram linhas de pensamento negando à existência
dessa multiplicidade cultural e defendendo a bandeira na cultura única.
Nessa esteira, podem-se citar as análises de Edward Taylor, que definiu cultura como
“todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e outras aptidões e
hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade” (BURKE, 2008, p. 43). Embora
Taylor tenha definido o termo cultura de forma mais ampla, ele explica em sua obra intitulada
Primitive Culture (1871) que a diversidade cultural deriva da existência de desigualdades nos

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estágios de evolução da cultura (LARAIA, 2014). As análises de Taylor sinalizam


características fortemente arraigadas ao pensamento do século XIX. Por exemplo, a divisão
das culturas em “superiores” e “inferiores” legitimava muitas ações que corroboraram no
sentido de justificar a exploração de grupos humanos como os africanos e indígenas,
colocando a Europa como o centro das culturas superiores. Observa-se isso nos postulados do
filósofo alemão Friedrich Hegel ao apontar que o continente africano era desprovido de
História por ser constituído por criaturas incivilizadas e selvagens (HEGEL, 1995).
A cultura pode ser considerada um sistema simbólico a partir dos pensamentos dos
antropólogos Clifford Geertz e David Schneider. Nesse sentido, Geertz aponta que a cultura
não é “[...] um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de mecanismos de
controle, planos, regras, instituições (que os técnicos de computadores chamam de programa)
para governar o comportamento” (LARAIA, 2014 p. 62). Já, para Schineider, cultura pode ser
considerada como:

[...] um sistema de símbolos significados. Compreende categorias ou unidades e


regras sobre relações e modos de comportamento. O estado epistemológico das
unidades ou ‘coisas’ não depende da sua observação: mesmo fantasmas e pessoas
mortas podem ser categorias culturais (LARAIA, 2014, p. 63).

A última geração de historiadores construiu uma relação muito próxima com a


Antropologia, o que corroborou para a ampliação do termo “cultura” enriquecendo “o âmbito
das análises, caminhando, de forma positiva, para a abertura do campo científico da História
Cultural” (BRASIL, 2008, p. 77). Peter Burke alerta que “um dos aspectos mais
característicos da prática da história cultural entre as décadas de 1960 e 1990 foi a virada em
direção à antropologia” (BURKE, 2008, p. 44).
Essa relação entre História e Antropologia, além de proporcionar uma ampliação do
termo “cultura” no plural, levou alguns historiadores a usarem uma nova abordagem
conhecida como antropologia histórica ou história antropológica.
A cultura e a educação estão atreladas de maneira indissociável, pois não existem
sujeitos aculturados. De acordo com Vera Lúcia Candau, “não há educação que não esteja
imersa nos processos culturais do contexto em que se situa” (2011, p. 13). Partindo desse
prisma, a escola deve compreender que não existem culturas superiores ou inferiores, como
também não existem raças inferiores ou superiores, portanto, é papel dos (as) educadores (as),
coordenadores (as), gestores (as) e comunidade escolar transmitir e construir esses valores
junto aos alunos, para que se busque a cada dia o respeito e valorização da diversidade e a
igualdade entre os seres humanos.

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Desafios e possibilidades de implementação da Lei 10.639/03 - Projeto “Música Afro na


Escola”

A Lei Federal 10.639/03 altera a LDB de 1996 a partir dos artigos 26 A e 79 A e 79 B


tornando obrigatório o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em instituições
de ensino públicas e privadas de nível básico de todo o território Nacional:

Art.26-A - Nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
Parágrafo Primeiro – O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes a
História do Brasil.
Parágrafo segundo – Os conteúdos referentes a História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar, em especial, nas áreas da
Educação Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras.
Art. 79-B – O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ―Dia
Nacional da Consciência Negra (BRASIL, 2003).

A sua sanção é um avanço na educação, pois a Lei traz como foco a História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira dentro das escolas de educação básica e, posteriormente, estende-
se ao Ensino Superior pelo Parecer CNE/CP 3/2004, que também institui as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico Raciais. Assim, a Lei Federal
apresenta-se como um dos instrumentos capazes de colaborar com o fim do racismo e da
marginalização da cultura das populações negras, reforçada com a ideologia do
branqueamento e com o mito da democracia racial.
Para estarem em consonância com os postulados da Lei 10.639/03, as escolas devem
dirigir suas ações, observando a multiplicidade de culturas presentes em seus contextos,
contemplando e valorizando todas elas, a fim de propiciar a construção de um espaço
democrático e igualitário, de forma que alunos negros, indígenas, brancos e de outras etnias
consigam enxergar-se dentro desses lugares, vendo a inserção de sua história e a de seus
antepassados inserida no cotidiano escolar. Juntamente a isso e com a finalidade que sejam
rompidas as concepções alicerçadas em teorias racistas e discriminatórias, a escola deve
promover contínuas ações que possibilitem uma educação para as relações étnico-raciais.
Pensar que o racismo, a discriminação racial, o preconceito, a diversidade étnico-racial,
sexual e cultural não são temáticas a serem pensadas e repensadas dentro do cotidiano escolar,
gera situações de exclusão e marginalização de muitos alunos e alunas com os quais se
convive diariamente: “quanto mais fingir-se que o trato pedagógico e ético da diversidade não

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 8-21, Jul. 2015


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é uma tarefa da escola e dos educadores, mais conflituosas e delicadas se tornarão as relações
entre o “eu” e o “outro” no interior das escolas e no dia a dia das salas de aula” (GOMES,
2006, p. 29).
Estudos como o de Luiz Carlos Paixão (2006) sinalizam a existência de uma forte
resistência do professorado, de gestores, coordenadores e instituições educacionais à
aplicabilidade da Lei dentro do espaço escolar. Assim, os entraves vão desde o desinteresse de
educadores pela temática, a falta de recursos e formações continuadas que os capacitam para o
trato com a diversidade étnico-racial, a adequação de currículos e planos políticos
pedagógicos que estejam em consonância com os postulados da Lei 10.639/03, até as
justificativas de que a lei é arbitrária sendo desrespeitosa com a autonomia das escolas e dos
docentes.
Quanto à questão curricular percebe-se que, inúmeras vezes, negros, indígenas,
mulheres, homossexuais etc., são excluídos dos currículos escolares, levando à construção de
representações e visões deturpadas e preconceituosas que perpassam no imaginário do
professorado e do alunado. Nessa perspectiva, a compreensão de que o Brasil é um país
pluriétnico e multicultural e de que as construções dos currículos e dos planos políticos
pedagógicos das escolas devem ter entre seus pilares essas concepções, são os primeiros
passos para a construção de uma escola aberta e respeitosa à diversidade, livre do racismo e
que seja capaz de implementar de forma definitiva a Lei 10.639/03.
A inserção da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículos escolares é
uma discussão que ainda tem muitos caminhos a seguir, mas sabe-se que “essa lacuna está
sendo revista paulatinamente [...] e deverá ser eliminada por causa do papel histórico que os
africanos trazidos para o Brasil desempenharam na construção da sociedade brasileira”
(BRASIL, 2008, p. 89).
No ambiente escolar onde se desenvolveu o Projeto “Música Afro na Escola”, o
currículo da disciplina de História está de acordo com os postulados da Lei 10639/03, embora
a inserção de conteúdos e temáticas relacionados à História e Cultura dos africanos e
afrodescendentes, estando os afro-brasileiros incluídos, foi um processo dificultoso, haja vista
que existem outros professores que ministram o componente curricular de História nessa
instituição e convencê-los da importância de romper com o silenciamento do currículo diante
da marginalização de diferentes grupos étnicos (entre estes os negros e os indígenas) foi um
dos entraves encontrados.
Com o intuito de implementar a Lei 10.639/03, buscou-se estruturar um Projeto capaz
de integrar o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, a música e as vivências

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do discentes. Pois, a música possibilita um diálogo entre o universo da escola e a vida


cotidiana, possibilitando a abordagem de diferentes temáticas, assim o
“uso da música é importante por situar os jovens diante de um meio de comunicação
próximos de sua vivência, mediante o qual o professor pode identificar o gosto, a estética da
nova geração” (BITTENCOURT, 2011, p. 379).
A proposta de utilizar a música como instrumento de ensino-aprendizagem provém de
pontos norteadores essenciais no que tange a um aprendizado significativo e estruturante. O
primeiro ponto trata-se do fato de que a música “é uma das manifestações culturais mais
presentes em nossas vidas, ela compõe nosso repertório psíquico, social e emocional, além de
se manifestar no cotidiano das diversas sociedades, em suas várias formas” (CANO;
OLIVEIRA; ALMEIDA; FONSECA, 2012, p. 61). O segundo refere-se à necessidade de
aproximar e relacionar a realidade dos discentes com o universo dos assuntos que seriam
trabalhados no Projeto, isto é, deseja-se a partir da música que faz parte do dia a dia dos
alunos promover a valorização da cultura e história dos afrodescendentes, ações de combate
ao racismo e a discriminação, bem como o respeito à diversidade cultural e étnico-racial. O
terceiro ponto trata-se do fato de romper com as metodologias tradicionais que permeiam as
práticas docentes.
A seleção dos estilos musicais que estão sendo trabalhados deu-se por intermédio de
listas de escolhas nas quais os alunos deveriam colocar quais os estilos musicais que eles mais
gostavam e escutavam. Assim, ao fazer a análise dessas listas concluiu-se que a maioria
desses alunos tem afinidade com o Reggae, o Rap e o Samba, somada a essa afinidade há o
fato desses estilos musicais terem origem afrodescendente o que veio a ser um facilitador.
Além disso, esses estilos musicais trazem propostas diferenciadas ao introduzir “aspectos da
vida cotidiano que expressam discriminações étnicas” (BITTENCOURT, 2011, p. 2011).
Dividiu-se as atividades do Projeto em quatro ciclos. Os três primeiros são formados
por três etapas e o último por apenas uma. Em cada um dos ciclos, aborda-se sobre um estilo
musical diferente, sendo esses o Reggae (afro-jamaicano), o Rap (afro-jamaicano) e o Samba
(afro-brasileiro) e, no último ciclo, os alunos produzem um vídeo. Na primeira etapa foram
realizadas palestras tendo como foco os estilos musicais, suas características, o contexto em
que se originaram, os traços da cultura africana e afrodescendente nesses estilos musicais,
bem como a presença desses na cultura brasileira. Na segunda etapa, fomenta-se um debate
com as turmas buscando o diálogo relacionado à diversidade cultural e étnico-racial presentes
no Brasil, da relação da juventude com esses estilos musicais, do racismo, da discriminação
racial, etc. Na terceira etapa, os alunos produzem relatórios sobre o que foi discutido

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(trabalhado) a partir das palestras e dos debates. Por fim, no quarto ciclo, os alunos –
divididos em grupos – produzem uma canção ou uma paródia de uma música já existente de
modo que estejam ligadas aos estilos musicais abordados nas palestras e nos debates, com
vistas à difusão de estratégias para implementação da Lei 10.639/03 de modo curricular.
O primeiro ciclo de palestras teve como temática o estilo musical Reggae. Os
relatórios produzidos pelos alunos demonstraram que uma parcela considerável desconhecia a
origem do Reggae e suas características. Dos 90 relatos analisados, apenas 12 (13,33%)
faziam referência a conhecimentos prévios de aspectos relacionados ao estilo musical. Quanto
ao eixo norteador dos relatórios que tratava da opinião dos alunos quanto ao projeto, 86
utilizaram termos como: diferente, interessante, legal, ótimo e bom para definir sua concepção
sobre o projeto. Pode-se observar essa informação a partir dos trechos abaixo retirados dos
relatórios.45

Na minha opinião é importante aprendermos sobre o reggae porque podemos ver


que muitas pessoas veem a cultura rastafari com muito preconceito e dizem que
quem escuta reggae é maconheiro, é marginal. Gostei do projeto porque ele fala de
algo que eu vivo todos os dias (RELATO DA ALUNA 16 DA TURMA 83, 2014).

Eu acho que esse projeto é muito legal, porque a gente aprende coisas novas culturas
novas eu gostei bastante [...] O reggae é uma forma de resistência. O reggae faz
parte da nossa história (RELATO DA ALUNA 3 DA TURMA 83, 2014).

[...] tem pessoas que tem preconceito com esse tipo de música esse é o mundo que
nós vivemos de preconceito todos nós já sofremos [...] Eu achei muito bom essa
matéria por que fala de preconceito e eu aprendi que não se faz preconceito com que
as pessoas fazem tem gente que fala só faz coisa de negros, mas essa pessoa não se
enxerga e eu gostei muito dessa matéria[...] (RELATO DO ALUNO 7 DA TURMA
82, 2014).

Achei interessante falar sobre o reggae, porque reggae é vida, é paz resistência, a
gente tinha que ter mais projeto como esse porque é ótimo saber da cultura
afrodescendente, porque todo mundo tem um pouco de afrodescendente, vivemos
num país de muitas culturas e formas de pensar [...] o projeto e as músicas que
cantamos na aula foi tudo ótimo e muito legal. (RELATO DO ALUNO 21 DA
TURMA 8º C, 2014).

Os resultados obtidos no primeiro ciclo de palestras e atividades foram satisfatórios,


embora esse projeto seja uma ação isolada desenvolvida nessa escola, pois há pouco interesse
dos colegas em participar. Em aulas posteriores, através de conversas e debates, observou-se
que muitos alunos passaram a compreender aspectos relacionados ao racismo, a discriminação
racial e ao preconceito, posicionando-se de forma crítica e construtiva diante da realidade

4
Utilizou-se termos de consentimento para a utilização dos relatórios produzidos pelos alunos em trabalhos
científicos, no entanto, identidade dos alunos será mantida em sigilo. Serão utilizadas a numeração dos cadernos
de chamada e a turma para fazer a identificação.
5
Optou-se por transcrever os trechos tal como os alunos escreveram.

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brasileira e da sua própria realidade, além de interpretarem a música ouvida por eles como
cultura.
Em um dos debates realizados com a turma 8ºC, duas falas realizadas pelos alunos
chamaram a atenção. A primeira por relatar um episódio de racismo e a segunda por
apresentar um pensamento racista.

Professora a gente sofre isso todo dia, pode olhar se tiver um preto na rua mal
vestido ele é ladrão e vagabundo, se tiver um branco ele é pobre e coitado. Um dia
eu tava numa loja do centro e entrei pra compra um boné, tu acredita que o
segurança me seguiu a loja toda. Tava achando que eu ia rouba alguma coisa.
Depois diz que negro e branco tem o mesmo direito nesse país [...] (DIÁRIO DE
CAMPO DA AUTORA PRINCIPAL – RELATO DO ALUNO 23 DA TURMA 8º
C, 2014).

Não sou a favor das cotas acho que os negros assim como os brancos devem ter os
mesmos direitos, tem muito negro que se faz de coitado, quando na verdade eles
também são mais racistas que nós brancos [...]. (DIÁRIO DE CAMPO DA
AUTORA PRINCIPAL – RELATO DO ALUNO 23 DA TURMA 8º C, 2014).

Os relatos acima descritos demonstram o quanto ainda há o que ser feito em relação à
promoção de uma educação para as relações étnico- raciais. Nessa perspectiva, deve-se tomar
consciência do nosso papel enquanto educadores e, para além disso, lutar incessantemente em
prol da igualdade racial em nossa sociedade.
O planejamento prévio do projeto foi essencial no sentido de seguir uma linha
metodológica, contudo, não há como prever como será todo o processo, por isso alterações
são feitas quando necessárias, pois com um “engessamento” do projeto perder-se-ia muitas
experiências e resultados, por isso arranjos e rearranjos são inevitáveis.
Atualmente, estão sendo desenvolvidas as atividades do segundo ciclo de palestras que
tratam do Rap - o Rap e o Movimento Hip-Hop “têm uma relação mais próxima com nossos
alunos, sendo a música habitual do mundo deles, o que, por sua vez, pode ser um fator
importante a considerar para a aproximação do estilo musical (e a música em si) com as aulas
de História” (CANO; OLIVEIRA; ALMEIDA; FONSECA, 2012, p. 65).
O segundo ciclo já foi finalizado, todavia não serão expostos os resultados nesse texto.
Entre os produtos resultantes do segundo ciclo estão a criação de rimas produzidas pelos
alunos somadas aos relatórios As rimas de Rap que “tem servido como referência para a
produção de composições por parte dos próprios alunos das escolas[...]” (BITTENCOURT,
2011, p. 379). A música abaixo de autoria da aluna Natália Fagundes da turma 83 é um dos

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trabalhos resultantes do segundo ciclo de palestras e atividades do Projeto “Música Afro na


Escola”.6

UM RAP NOS MEUS PENSAMENTOS! SOU NEGRA E EXISTO!


Brasil, país de todos que imaginam a democracia
Brasil, país de todos que imaginam como ela seria
Enxergando a placa, mas atrás de beleza e só tendo uma certeza
Não sabemos onde isso vai parar

Mas para variar, eu não percebo que para os outros meu amigo era só mais um preto
diante de todo esse preconceito
Onde fica nosso direito?
Por uma sociedade igual
Por uma diferença ser considerada normal

Qualquer palhaço na televisão


Acrobatas, lutando por saúde e educação
Essa desilusão, nós vemos a corrupção,
Vemos o futuro morrendo na mesma televisão

E essa desigualdade insiste em nos rodear


Injusta, social, racial
que não se sabe quando vai terminar

Mas tenho certeza que ela ainda vai matar futuros jovens, adolescentes
que esperam um futuro promissor, mas sofrem preconceito, discriminação
por uma mente fechada de uma burguesia sem razão

Mas e essa legião que ainda acredita numa solução


Que escreve suas canções, suas poesias, seus sonhos
Que segue convicção seus planos

E não esqueça abra sua mente


Sacuda a poeira e junte-se a gente
E agora para terminar, só falta colocar a melodia e cantar.

Considerações finais

O processo de implementação da Lei Federal 10.639/03 exige atenção e cuidado no


trato com a diversidade étnico-racial, no estudo teórico-metodológico do campo na qual ela
está inserida, na formação continuada de professores, políticas de ações afirmativas, projetos
escolares, debates e reflexões, mudança de posturas, alterações e adequações nos currículos
escolares e projetos políticos pedagógicos, reformulações curriculares das Universidades e,
acima de tudo, vontade de querer transformar um país marcado pela discriminação racial, pelo
racismo e pela desigualdade social.

6
A aluna e os pais autorizaram a divulgação do seu nome por meio do termo de consentimento e autorização de
próprio punho dos responsáveis.

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Embora exista uma série de medidas que viabilizem a aplicabilidade da Lei Federal
10.639/03, não existe uma fórmula perfeita, pois cada contexto educacional é formado por
uma realidade social, econômica e cultural. Assim, optou-se por utilizar a música como um
instrumento de ensino-aprendizagem e como uma possibilidade de inserção da Lei no
contexto de uma escola pública que se encontra em processo de adaptação, apesar das
inúmeras resistências. Essa escolha deve-se a alguns apontamentos já explicitados ao longo do
texto.
Os resultados parciais obtidos com o Projeto “Música Afro na Escola” são satisfatórios
e somam-se a outros resultados de projetos já concluídos ou em fase de desenvolvimento, os
quais representam um avanço nas práticas pedagógicas que visam à promoção de uma
educação para as relações étnico-raciais, à valorização da cultura afrodescendente e ao
combate ao racismo e a desigualdade social. Cabe ressaltar que não existem práticas
pedagógicas perfeitas, afinal, somos eternos aprendizes, portanto elas precisam ser
continuamente transformadas, adaptadas, readaptadas.
Por fim, deve-se pensar na importância do processo de ensino-aprendizagem da
História, de que forma se ensina e se constrói o conhecimento histórico, respeitando as
vivências, experiências e cultura dos alunos, tendo em vista que eles não são depósitos de
conteúdos e, sim, construtores de suas próprias histórias.

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem
ou ainda por sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar,
podem ser ensinadas a amar.
Nelson Mandela

Referências

BRASIL. Lei no 10.639/03, de 9 de janeiro de 2003 . Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acessado em: 23 de ago. de
2013

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SECAD, 2006.

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humanas e suas tecnologias. 3ed. Brasília: SEB, 2008.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História fundamentos e métodos. 4.


ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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CANO, Márcio Rogério de Oliveira (Coord.); OLIVEIRA, Regina de Soares; ALMEIDA,


Vanusia Lopes de; FONSECA, Vitória Azevedo. A reflexão e a prática no ensino de
História. 1. ed. São Paulo: Blucher, 2012.

DOMINGUES, Petrônio. A Insurgência de Ébano: A História da Frente Negra Brasileira


(1931-1937). 2005. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo.

GOMES, Nilma Lino. Diversidade Cultural, currículo e questão racial: desafios para a
prática pedagógica. IN: ABRAMOWICZ, Anete; BARBOSA, Maria de ABRAMOWICZ,
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HEGEL, Friedrich. Filosofia da História. Brasília: UnB, 1995.

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CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática


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Universidade Federal do Paraná, 2006.

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Alternativa metodológica para trabalhar gênero em sala de aula

André Luis Ramos Soares1


Carolina Bevilacqua Vedoin2
Helen da Silva Silveira3
Leticia Schio4

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo expor e problematizar a metodologia desenvolvida na atividade
“Construção de estereótipos no Brasil Colônia”, referente ao estudo de gênero. Foi realizada através do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid/UFSM), e aplicada em turma de 2º ano de
Ensino Médio da Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi, no ano de 2014. A história das mulheres
ainda é um assunto pouco trabalhado em sala de aula, por isso, houve a necessidade de planejar a atividade em
torno desse tema, a fim de reconhecer a mulher como sujeito histórico, visto que construiu a história juntamente
com os homens e não de forma secundária. A temática da atividade foi referente ao período colonial brasileiro,
mais especificamente o nordeste açucareiro e como a partir desse construiu-se estereótipos sobre as mulheres e
os papéis privados e sociais que ocupavam. Para problematizar tais estereótipos realizou-se uma dinâmica em
que os alunos deveriam fixar em painéis bonecas brancas, negras e indígenas em espaços ocupados no Brasil
Colonial e como pensam ser no Brasil atual. Essa metodologia de ensino em história teve como objetivo
provocar a reflexão sobre como o passado influencia na formação das mentalidades atuais, visto que a história se
compõe de rupturas, mas também de continuidades.
Palavras-chave: Gênero, metodologia, ensino, história, estereótipo.

Methodological alternative to work gender in class

Abstract: This abstract aims to expose and problematize the methodology developed in the activity
“Construction of stereotypes in Colonial Brazil”, relative to gender studies. The activity was realized through the
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid/UFSM), and it was applied in class second year
of High School Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi, in 2014. Women's history is still a subject
scarcely worked in class and, for this reason, there was the necessity of planning the activity surrounding this
subject, in order to recognize the woman as a historical player, since she constructed history alongside men, and
not in a secondary role. The theme of the activity refers to the Brazilian colonial period, specifically the sugar-
producing Northeast, and how by it the stereotypes on women and the private and social roles they occupied
came to be. To problematize such stereotypes it was realized a dynamic where the students had to delegate
white, black and indian dolls to determined places in Colonial Brazil and to think where do the dolls belong to in
contemporaneous Brazil. This methodology of teaching history had as its aim to provoke the reflection on how
the past influences the formation of contemporaneous ways of thinking, since history is composed not only of
ruptures, but also of continuities.
Keywords: Gender, methodology, teaching, history, stereotype.

1
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: alrsoaressan@gmail.com
2
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: karolvedoin@hotmail.com
3
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: helen.dasilvasilveira@gmail.com
4
Docente na Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi. E-mail: leticiaschio@yahoo.com.br

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23

O presente artigo tem como objetivo expor e problematizar uma alternativa


metodológica para trabalhar gênero em sala de aula. A prática pedagógica aqui apresentada
foi aplicada em turma de 2º ano de Ensino Médio, na Escola Estadual de Educação Básica
Augusto Ruschi, Santa Maria, RS. A atividade ocorreu no turno da noite em dois encontros,
totalizando quatro períodos, cada um deles com 40 minutos, nos dias 10 e 17 de setembro de
2014. Foi desenvolvida através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência,
subprojeto História 2014 da Universidade Federal de Santa Maria (Pibid/UFSM). O projeto
Pibid é financiado pela Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior, cujo objetivo é inserir licenciandos em escolas de educação básica durante a
graduação. Dessa forma, oportuniza o contato com o âmbito escolar antes do estágio
supervisionado, que ocorre somente no final dos cursos de licenciatura. Também visa
valorizar a prática docente, visto que os professores da rede pública de ensino participam da
formação dos graduandos através da supervisão das práticas pedagógicas. Ademais, propicia
aos licenciandos a pesquisa, o planejamento e a realização das atividades, a coexistência entre
a teoria e a prática.
A atividade desenvolvida teve como eixos temáticos papéis de gênero, relações de
poder e sexualidade, pois é perceptível que são assuntos por vezes menosprezados e
discriminados, e não vistos como objetos de estudo dos historiadores e professores de história.
Devido a isso, os alunos “talvez até passem por todas as séries escolares sem nenhum contato
com um dos conceitos mais instigantes presente na historiografia das últimas décadas, desde
que ficou claro que as relações de gênero são uma dimensão importantíssima das relações
sociais” (PINSKY, 2009, p. 29), o que acarreta a reprodução de estereótipos, pois se atribui
funções aos homens e às mulheres como se fossem naturais e não construções históricas.
Sendo assim, a importância de trabalhar gênero em sala de aula é desconstruir os
papéis sociais impostos às mulheres e aos homens. O ensino de história permite mostrar como
se construiu esses papéis ao longo do tempo e que, portanto, não são biológicos. Segundo
Pinsky (2009), é necessário que os alunos compreendam as diferenças entre o natural e o
social, ou seja, que as concepções sobre o que é “ser mulher” e o que é “ser homem” foram
produzidas em determinado contexto social e podem ser modificadas. Portanto, por “gênero”
compreende-se um conceito:

Para marcar uma distinção entre cultura e biologia, social e cultural. Assim, quando
a palavra sexo é utilizada, vem à mente a biologia, algo ligado à natureza. O termo
gênero, por sua vez, faz referência a uma construção cultural: é uma forma de
enfatizar o caráter social e, portanto, histórico, das concepções baseadas nas
percepções das diferenças sexuais (PINSKY, 2009, p. 30).

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No que concerne ao estudo do Brasil Colônia, existe relevância pelo fato de ser o
início da formação do país, o que permite o entendimento dos estereótipos que permeiam a
nossa sociedade. Nesse sentido, os locais privados e sociais que as mulheres ocupavam eram
restritos se comparados aos dos homens e, atualmente, perpetua-se essa lógica de perceber a
realidade, em que as mulheres devem ficar limitadas a determinados espaços. Acerca disso, é
necessário salientar que não existia “a mulher” do período colonial, mas “as mulheres”, haja
vista que os códigos morais e os padrões sociais eram impostos de forma diversa às diferentes
etnias e classes.
Em relação às mulheres nativas, quando os portugueses aqui chegaram no século XV,
tendo eles os primeiros contatos com os povos originários, viram nessas mulheres uma
semelhança com as mouras, já que possuíam pele morena, cabelos e olhos pretos, o que
despertou o interesse dos recém-chegados. José Azevedo e Silva (2004, p. 94) afirma que “o
imaginário da “moura encantada” é, pois, transportado pelos portugueses para o Brasil. A
figura da índia evoca a imagem dessa moura encantada”. Inicialmente, houve um
estranhamento por parte dos dois universos simbólicos que se conheciam: os portugueses e os
povos originários. Os primeiros vinham de uma Europa pudorosa, já os segundos tinham uma
visão de mundo em que andar nu ou seminu não se enquadrava no conceito de errado e isso
contribuiu para a sexualização da mulher indígena, assim denominada pelos colonizadores. O
trecho seguinte apresenta essa ideia, mas analisada a partir de uma visão em que a mulher
representa a “devassidão”, justificando os desejos sexuais dos colonizadores:

O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da


Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos
clérigos, dos outros, deixavam-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as
primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas
desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de
espelho. (FREYRE, 1986, p. 128 apud LACERDA, 2010, p. 41).

O extermínio sistemático dos povos originários relegou à mulher indígena uma


posição de invisibilidade social, sendo vista ainda como o ser que usa roupas o suficiente para
apenas “tapar as vergonhas”. Também de que é incapaz de tornar-se uma pessoa letrada para
galgar postos de trabalhos importantes, quando na verdade, foi o descaso e a omissão do
Estado que tornou as condições de vida dessas mulheres difícil, visto que elas não possuíam
em sua grande maioria acesso a recursos básicos como assistência médica, escolas e moradia
digna, impedindo o seu acesso a diferentes espaços.
Além disso, é importante ressaltar que a colonização e a exploração ocorreram para
além das terras, mas também no corpo feminino. Há uma comparação entre o feminino e a

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 22-35, Jul. 2015


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natureza, sendo assim, pode-se dizer que “o corpo feminino simboliza metaforicamente a terra
conquistada” (ALMEIDA, 2007, p. 462 apud LACERDA, 2010, p. 29). Isso podia ser
justificado, pois o homem colonizador reconhecia-se como “civilizado”, enquanto a mulher
nativa nua aproximava-se mais do “natural”, legitimando a exploração sexual. Portanto, assim
como a terra foi utilizada para responder aos anseios da colonização, a mulher também, tanto
as nativas e as negras, como objetos sexuais e para a reprodução quando não havia mulheres
brancas, bem como as brancas da elite, para exercerem sua função de esposas submissas e
mães. A autora Lacerda (2010) discute essa metáfora entre a mulher e a natureza e ressalta
que as simbologias criaram-se a partir das dúvidas existentes em relação ao corpo feminino,
por exemplo, a amamentação, a gravidez e a menstruação. O corpo da mulher era um mistério
para a mentalidade colonial, bem como as terras desconhecidas, que deveriam ser desbravadas
e colonizadas. Sendo assim, “esta série de identificações, produzidas pelo universo masculino,
fazia no Brasil colonial pertencerem ao mesmo imaginário a natureza e a mulher, cercadas das
noções de enigma e de perigo.” (LACERDA, 2010, p. 34) Nesse sentido, ressalta-se que

Não obstante este fato, entre nós a identificação terra-mulher ganhou contornos
profundos que se imbricaram com a relação de colonização. A metáfora recíproca
entre as figuras significou tanto identificação simbólica entre a mulher (primeiro a
indígena, e depois a africana a mestiça e também a branca) e a terra, quanto
similitude nas práticas de dominação e exploração, até à devastação. (LACERDA,
2010, p. 28).

Em meados do século XVI iniciou-se o tráfico atlântico negreiro, a fim de


comercializar negros de diferentes partes do continente africano para escravizá-los no Brasil
colonial. A África é um continente heterogêneo, devido a isso, “não havia unidade cultural,
racial ou linguística entre os escravos africanos que desse ensejo a sua unificação ou a
formação de núcleos solidários” (LACERDA, 2010, p. 44). Apesar disso, diversas formas de
resistência foram articuladas, desde as que entravam em oposição com a estrutura
escravocrata, quanto às negociações diárias, haja vista que “na verdade, escravos e senhores
manipulam e transigem no sentido de obter a colaboração um do outro; buscam – cada qual
com os seus objetivos, recursos e estratégias – os “modos de passar a vida”, como notou
Antonil” (REIS e SILVA, 1989, p. 16). Nesse sentido, os negros escravizados eram
objetificados diante das relações de poder da escravidão colonial brasileira.
Nesse contexto, as mulheres negras sofriam duplamente: com o trabalho forçado e
com a exploração sexual, visto que “muitos escravocratas partiam do pressuposto de que o
acesso sexual às escravas era prerrogativa natural de sua propriedade” (STEARNS, 2010, p.
125). A hiperssexualização da mulher negra está introjetada nas mentalidades do Brasil atual,

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estereótipo construído historicamente a partir do período colonial. Essas relações de poder não
eram simples, apenas homem branco/mulher negra, por exemplo, o negro escravizado podia
vingar-se do seu senhor por ter abusado de sua mulher, mas também violentar fisicamente sua
esposa, culpabilizando-a. Além disso, comumente havia ódio entre as mulheres brancas e as
negras, pois as traições dos senhores eram frequentes e suas esposas transferiam os
sentimentos desprezíveis às “amantes”. Os trechos a seguir descrevem esse contexto:

Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de luces as negras das


senzalas. Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos,
a rapazes brancos já podres de sífilis das cidades. Porque por muito tempo dominou
no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor depurativo que uma
negrinha virgem (FREYRE, 1986, p. 338 apud LACERDA, 2010, p. 49).

No ambiente voluptuoso das casas-grandes, cheias de crias, negrinhas, mulecas,


mucamas, é que as doenças venéreas se propagaram mais à vontade, através da
prostituição doméstica – sempre menos higiênica que nos bordéis (FREYRE, 1986,
p. 340 apud LACERDA, 2010, p. 49).

A negra-massa, depois de servir aos senhores, provocando às vezes ciúmes em que


as senhoras lhes mandavam arrancar todos os dentes, caíam na vida de trabalho
braçal dos engenhos e das minas em igualdade com os homens. Só a essa negra,
largada e envelhecida, o negro tinha acesso para produzir crioulos (RIBEIRO, 2006,
p. 148 apud LACERDA, 2010, p. 49).

Na atualidade, a sua imagem ainda é muito ligada ao espaço privado, a alguém que
realiza os serviços domésticos e serve aos prazeres sexuais masculinos. Os ofícios domésticos
continuam sendo os principais, haja vista que muitas vezes não possuem acesso aos estudos, o
que implica em baixa escolaridade impedindo-as de competir no mercado de trabalho por
melhores serviços e salários, tudo isto dificulta romper com as barreiras da discriminação que
perpetua o estereótipo de mulher que não possui interesse em transformar a sua condição de
vida.
Gilberto Freyre discute em sua obra Casa Grande e Senzala (1933) acerca das relações
sexuais entre senhor/escrava, a miscigenação e, por isso, acredita na “amenidade” da
escravidão. Com a atividade desenvolvida objetivou-se expor e dialogar sobre papéis de
gênero, exploração sexual e a construção de estereótipos das mulheres do período colonial,
mais especificamente do nordeste açucareiro, onde havia as lavouras de açúcar, os engenhos e
as casas grandes e senzalas. Portanto, o livro Casa Grande e Senzala contribuiu para
problematizar essa temática, mas com um olhar crítico sobre a obra, pois compartilha de
teoria historiográfica que não considera coerção nas relações entre senhor e escrava. É
importante ressaltar que as negras inúmeras vezes eram estupradas, mas também havia
relações sexuais com consentimento, no entanto, muitas o faziam para não receberem
punições e por medo de sua condição como escravas piorar, ou seja, a coerção existia mesmo

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quando havia consentimento. Além disso, como eram sexualizadas ao extremo, utilizavam
disso como forma de resistência, realizando a luxúria de seus senhores poderiam de forma
razoável melhorar suas condições de vida. Por exemplo, os senhores às vezes “confiavam-nas
à proteção de amigos ou concediam-lhes alforria, ou então, instalavam-nas em pequeno sítio,
com um ou dois escravos para servi-las” (PRIORE, 2014).
É necessário lembrar que apesar de a obra de Gilberto Freyre ter quebrado com a visão
inferiorizante do negro, ele dá um caráter benevolente à escravidão, o que foi criticado a partir
dos anos de 1950, principalmente pela chamada Escola Paulista que colocou em dúvida o
conceito de “democracia racial”, mostrando que entre os anos de 1950 e 1960 os negros
ocupavam os piores postos de trabalho e constituíam a grande maioria dos analfabetos do
Brasil. A democracia racial defendida por Freyre tinha em seus princípios de que o
preconceito no Brasil seria apenas de classe e não de cor, e que os elementos culturais
africanos, portugueses e indígenas haviam se misturado, formando a cultura brasileira. No
entanto, tendo em vista que os indígenas eram sempre retratados como povos que habitavam
essa terra antes da colonização e desapareceram por completo após a chegada dos
portugueses, além de haver também a ideologia do branqueamento no Brasil a partir do século
XIX, percebe-se que não houve igualdade entre as diferentes etnias.
Sendo assim, é importante ter em mente que a teoria da democracia racial foi utilizada
para legitimar o discurso de que havia igualdade de cor no Brasil, portanto, que as condições
para a ascensão social e para a melhor qualidade de vida não dependiam de etnia, mas sim
apenas de esforço individual. No entanto, houve negligência por parte do Estado e da alta
sociedade para com a população das etnias negras e indígenas, levando-as à marginalização
social. Atualmente essas etnias constituem, em sua maioria, a massa dos pobres urbanos das
grandes cidades, morando em favelas, onde faltam as condições mínimas para a dignidade da
pessoa humana.
No que concerne às mulheres brancas, há diferenciações entre as ricas e as pobres, mas
iremos nos deter às mulheres da elite rural, as moradoras das casas grandes. Segundo Priore
(2014), elas detinham dote que levavam aos maridos no casamento e para que essas terras e
esses escravos não fossem divididos entre filhos legítimos e ilegítimos, deviam ser fiéis aos
seus esposos para a manutenção da riqueza, embora a fidelidade não fosse recíproca. É
importante lembrar que “na elite, ocorriam também casamentos de meninas com homens bem
mais velhos. Às vezes as esposas eram tão jovens, tendo apenas completado 13 ou 14 anos,
que o casal tinha que esperar algum tempo para ter relações sexuais” (PRIORE, 2014), ou
seja, havia coerção nos casamentos do período colonial, enquanto a menina devia casar

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virgem, o homem já teria tido outros relacionamentos íntimos em sua vida. A família,
portanto, era patriarcal, o senhor era dono não só das suas terras, mas também dos escravos,
da sua esposa e dos seus filhos, e nesse contexto, a mulher branca devia comportar-se de
acordo com “a moral e os bons costumes”, ou seja, vestir-se de forma recatada e ser submissa
ao marido, assim teria honra.
O espaço que ocupavam era o privado, em que deveriam exercer o papel de mães e
esposas e para sair ao espaço público deveriam estar sempre acompanhadas, pelo marido,
irmão, pai ou por uma mulher escrava. Portanto, na sociedade colonial “o processo normativo
servia para que elas cumprissem seu papel de mães e esposas obedientes, difusoras do
catolicismo e responsáveis pelo ‘povoamento ordenado da colônia’” (PRIORE, 1993, p.17 e
p. 334 e 2000, p. 22 apud LACERDA, 2010, p. 35). Sendo assim, as mulheres negras e
indígenas eram, em sua maioria, sexualizadas ao extremo, já as mulheres brancas não deviam
demonstrar interesse sexual, diferentes formas de opressão e violência, que construíram
estereótipos sobre esses sujeitos históricos: a “devassa”, justificando a exploração sexual, a
“pura”, que não possui desejos.
O fato de haver historicamente, incluindo a formação sociocultural do Brasil,
complexos de valores e padrões, normas que visam ditar os comportamentos, de tal modo
homogeneizando as práticas, constrói os estereótipos. Tais regras institucionalizadas na
sociedade visam introjetar conteúdo conservador, sexista e racista, por conseguinte coibindo
uma livre expressão dos sujeitos históricos e sociais. É importante ressaltar que a autonomia e
a emancipação surgiram com resistência diária e luta do gênero feminino, portanto, as
mudanças ocorridas ao longo do tempo, no que concerne aos espaços ocupados pelas
mulheres, não se fizeram naturalmente, mas sim com movimentos sociais e também com o
fazer histórico na vida cotidiana de pessoas que contribuíram com sua prática social
contestando os valores tradicionais.
Os estereótipos são construídos não somente a partir das diferenciações de cor e
gênero, mas também de classe social. Uma mulher branca pobre terá menos oportunidades de
quem pertence a classes mais abastadas, que possui melhores perspectivas de estudo e
condições financeiras para se qualificar para o competitivo mercado atual. No entanto, ainda
que pertençam às classes mais altas, não possuem total liberdade, visto que o machismo as
torna alvo de violência doméstica e as obriga a enquadrar-se em certos padrões de
comportamento que as impedem de vestir-se da maneira desejada ou de relacionar-se com
quem escolher.

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Com a atividade procurou-se observar as continuidades históricas, assim como havia


diferentes normas sociais às mulheres brancas, negras e indígenas no período colonial,
atualmente existem padrões impostos de forma diversa ao mundo feminino, levando em conta
a cor, a classe social e a orientação sexual. Mesmo pertencentes ao mesmo sexo a sociedade
lhes atribui diferentes características, a consequência é a forma como cada uma terá que traçar
caminhos para alcançar determinados objetivos. Sendo assim, devido ao tratamento desigual,
o acesso a uma posição importante de trabalho torna-se mais difícil a uma mulher indígena do
que a uma mulher branca, por exemplo.
Não obstante, a mulher não é uma agente passiva de sua própria história, ela está em
constante labuta, construindo estratégias de resistência a fim de fazer as suas reivindicações.
As mulheres negras e indígenas precisam lutar por uma equidade social que ainda não foi
estendida a elas. Nesse âmbito, o ensino de história é capaz de abarcar a grande pluralidade de
contextos em que foram forjados os caminhos percorridos pelos vários grupos sociais ao
longo do tempo, mas para que isso ocorra é preciso que a escola ande junto com as mudanças
sociais e ouça o meio em que está inserida, desmontando discursos sobre a passividade desses
grupos com a sua própria história. Nos últimos anos isso tem acontecido lentamente, pois os
conteúdos trabalhados em sala de aula vêm sofrendo alterações, mas temáticas como a
história das mulheres ainda possuem pouco espaço em atividades, haja vista que há um vasto
campo de pesquisa acadêmica nessa área.
É preciso que o professor e a professora de história se mantenham atualizados,
procurando meios de trazer aos educandos algo que vá além da aula tradicional e não
corresponda às necessidades dos alunos atualmente. As mulheres estão entrando para as
universidades e conquistando postos de trabalho de alto nível, tudo isso é fruto de lutas
reivindicatórias e diárias travadas por elas, nesse sentido a história em sala de aula deve
reconhecer e mostrar aos alunos que a mulher não cumpre um papel secundário na sociedade,
pelo contrário, ela é protagonista juntamente ao homem. Entretanto, é preciso não cair em
generalizações, pois as mulheres não são um grupo homogêneo e, mesmo depois de diversas
conquistas, as necessidades continuam a ser diferentes.
Por isso é importante que a escola esteja em consonância com o mundo acadêmico,
pois a historiografia contemporânea vem contemplando o grande universo feminino a partir
da diversificação dos estudos históricos, isso ajuda a distinguir a multiplicidade de posições
no espaço público e privado ocupado pelas mulheres em diferentes momentos. Quando essas
pesquisas chegam à sala de aula, consegue-se explicar aos educandos que as ligações
estabelecidas entre homens e mulheres produziram as imposições de padrões sociais, ou seja,

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a forma como se estabelecem as relações entre os sexos é uma construção histórica. Assim,
através da reflexão, desnaturaliza-se a ideia muitas vezes impregnada no nosso imaginário de
que o período presente é imóvel, e de que o passado não tem nenhuma influência nele.
Esse horizonte guiou toda a atividade que desenvolvemos em sala de aula, que teve
dentre os objetivos levar para o sistema básico de ensino uma visão acerca do sujeito
feminino, mostrando a mulher enquanto agente histórico, autora de ações que tiveram impacto
direto sobre sua realidade. Dentre essas ações estão os atos de resistência articulada por elas
que foram os mais dinâmicos e diversos, haja vista que o protagonismo era heterogêneo
contrapondo a imagem de um ser dócil e frágil que não tinha forças para reagir.
Procuramos mostrar aos discentes que mais do que resistir abertamente à opressão, as
mulheres também articulavam estratégias de negociações diárias, visando melhorar a vida
doméstica e escrava, e com o passar do tempo foram surgindo a necessidade de conquistar
outros espaços. Fatores como a abolição da escravatura, o processo de industrialização e a
república, fizeram emergir a vontade de ocupar novos espaços e direitos, originaram-se lutas
maiores do que amenizar a vida que levavam, as pautas passaram a ser o direito de trabalhar
fora e de participar do processo político do país. Além disso, surgiram lutas para poder
frequentar a escola, mas a grande maioria continuava a ser obrigada a casar-se, tornando-se
muitas vezes alvo de violência doméstica, além da obrigação de ter filhos, resultando em
protestos contra tais imposições, objetivando-se a liberdade de escolher quando ter seus filhos
e com quem se casar.
Com isso se evidencia que a vida que as mulheres têm hoje com acesso a diversos
setores sociais, além dos direitos que anteriormente eram exclusivos dos homens, é fruto de
anos de reivindicações por mais autonomia, quebrando com a ideia de que esses direitos são
resultantes naturais do processo democrático. No entanto, mesmo após tantas conquistas, as
características de comportamento que uma mulher deve ter continuam sendo fortemente
padronizada, devido à perpetuação no tempo de estereótipos e continuidade de pensamentos
do período colonial. Com a exposição aos alunos dessas construções sociais objetivou-se a
reflexão sobre a veracidade que as rotulações assumiram, além das dificuldades encontradas
atualmente pelas diferentes mulheres brasileiras, que mudam mais uma vez o caráter de luta
por direitos de cada uma delas.
A metodologia desenvolvida procurou abarcar esses conteúdos. No primeiro momento
da atividade, ocorreu a aula teórica para explicar acerca do período colonial, em que o Brasil
não era um país, mas sim um domínio ultramarino português, onde se construiu o que
conhecemos por colônia para a exploração dos recursos naturais. Problematizou-se a

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existência de diferentes relações sociais e de trabalho entre os lusitanos, responsáveis por


comandar a exploração e as mais diferentes etnias nativas e africanas, sendo essas subjugadas
e escravizadas, criando uma sociedade hierarquizada. Explicou-se aos alunos de forma sucinta
a escravidão indígena e africana, haja vista que para pensar sobre as relações existentes em
casas grandes e em senzalas, em um Brasil desenvolvendo a economia do açúcar, era preciso
primeiramente explicar como se desenvolveu esse processo e a estrutura escravocrata. Além
disso, discutiu-se sobre o pensamento católico que veio junto com os colonizadores
portugueses e que colocava os povos originários como selvagens e sem fé, deslegitimando as
suas culturas e, também, os africanos como seres amaldiçoados, o que justificava a dizimação
dos nativos e a escravidão dos negros.
As mulheres desse período se encontravam em diferentes posições nessas hierarquias e
relações de poder, atribuídas de acordo com a função que possuíam na colônia, que envolvia
exploração sexual e obrigação de procriar, ou seja, havia diferentes grupos étnicos
convivendo, mas as imposições eram diferentes. A religião católica também colocava a
mulher como um ser inferior ao homem, sendo, portanto, oprimida e alvo de violência, ao
qual resistiam da forma que podiam, encontrando espaços de negociação de forma a abrandar
as rígidas relações que as reprimiam. A partir disso se explicou que o seu “rótulo” seria de
acordo com o estamento em que se encontravam, já que era esse que determinava sua função
social e/ou de trabalho.
O segundo momento da atividade consistiu na aplicação de uma dinâmica que visava
problematizar os estereótipos femininos. Solicitou-se aos alunos que fixassem bonecas
brancas, negras e indígenas em painéis, onde havia espaços privados (sala e cozinha) e sociais
(salão de festas e academia), no local em que eles imaginavam que as mulheres estavam no
Brasil Colonial e como pensam ser no Brasil atual. Com isso pode-se perceber como a turma
percebia as rupturas e as continuidades do processo histórico, além de dialogar acerca dos
espaços privados e sociais que as mulheres de diferentes etnias ocupavam no período colonial
e atualmente, o que muitas vezes passa despercebido ao olhar cotidiano. Segue abaixo
imagem que representa o painel utilizado com os alunos:

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Fig. 1: painel elaborado pelos autores

A turma dividiu-se em três grupos para a realização da dinâmica, os quais montaram


os seus painéis. Cada grupo apresentou um resultado diferente, e a partir deles foram
realizadas discussões:

Fig. 2: painel elaborado pelos autores

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Fig. 3: painel elaborado pelos autores

Fig. 4: painel elaborado pelos autores

Essa metodologia de ensino em história teve como objetivo provocar a reflexão sobre
como o passado influencia na formação das mentalidades atuais, visto que a história se
compõe de rupturas, mas também de continuidades. A partir dessa reflexão, procuramos
mostrar como absorvemos e reproduzimos ideias e práticas sem percebermos, citando também
a mídia e os meios de comunicação de massa que perpetuam formas de perceber a realidade,
por exemplo, a versão que mais conhecemos sobre esse momento foi eternizada pela obra de
Gilberto Freyre, largamente utilizada para a produção de novelas e séries televisivas, e que

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constroem versões sobre o passado. Também explicou-se aos alunos que o fato de as mulheres
terem conseguido se libertar da opressão e proibições, mas terem continuado a serem
rotuladas, deve-se ao fato de não existir uma ruptura total com o passado, que sempre deixa
marcas ou heranças.
A atividade conseguiu dar conta dos objetivos estabelecidos, conseguindo levar os
alunos à reflexão sobre como se estabeleceram as relações de gênero do nosso país, o que
provocou questionamentos sobre as formas de ver o mundo, através de um olhar
contemplativo acerca da história das mulheres. A metodologia aplicada de dividir a atividade
em dois momentos, onde a prática e a teoria se complementavam teve sucesso, pois conseguiu
prender a atenção dos alunos fazendo-os interagir em grupos para chegarem a uma conclusão
em conjunto. O interesse dos estudantes se mostrou pelo seu envolvimento, ou seja, pelas
perguntas feitas por eles durante a aula teórica, o que demonstra o quanto estavam atentos,
visto que pensar sobre os papéis de gênero envolve a realidade de todos, já que eles são
agentes histórico-sociais e querem compreender o seu lugar no contexto em estão inseridos.
Por fim, ressaltamos que o nosso objetivo é socializar essa experiência que visava discutir
papéis de gênero, construção e perpetuação de estereótipos femininos na educação básica, a
fim de que possa servir como uma alternativa aos professores das escolas da rede pública de
ensino, adaptando a cada realidade escolar.

Referências

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global Editora, 1933.

LACERDA, Marina Basso. As mulheres no Brasil Colonial. In: Colonização dos corpos:
Ensaio sobre o público e o privado. Patriarcalismo, patrimonialismo, personalismo e violência
contra as mulheres na formação do Brasil. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em:
<http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/acessoConteudo.php?nrseqoco=56439>. p. 25- 63.

PINSY, Carla Bassanezi. Gênero. In: Novos temas nas aulas de história. São Paulo:
Contexto, 2009. p. 29- 53.

PRIORE, Del Mary. A mulher casada. Disponível em: <http://historiahoje.com/?p=1056>.


Acessado em 09 de outubro de 2014.

PRIORE, Del Mary. Casamento e virgindade nos tempos coloniais. Disponível em:
<http://historiahoje.com/?p=2497>. Acessado em 09 de outubro de 2014.

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REIS, João José; SILVA, Eduardo. Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia. In:
Negociação e conflito. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 13- 21.

SILVA, José Azevedo e. O forjar da realidade sócio-cultural. In: O Brasil Colonial. Coimbra,
2004. p. 93- 100.

STEARNS, Peter N. A sexualidade na era do comércio e das colônias. In: História da


Sexualidade. São Paulo: Contexto, 2010. p. 107- 131.

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Atividades desenvolvidas em sala de aula através do Pibid

Moisés Abraão Stein1

Resumo: Juntamente com meus colegas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID),
desenvolvemos dentro da sala de aula algumas atividades que foram realizadas com aulas práticas, que foi a
atividade com cerâmica e em seguida o trabalho de sitio arqueológico. Na atividade com cerâmica os alunos
tiveram que fazer potes com argila conforme foi trabalhado em sala de aula, neste contexto cada criança fez seu
pote de maneira diferente uma das outras e, em seguida, pintaram com as cores que os povos indígenas usavam
quando faziam suas cerâmicas. Na parte do sitio arqueológico os alunos tiveram uma simulação deu uma
escavação de um sito arqueológico onde encontravam restos de cerâmicas (parte de campo). E na parte de
laboratório os estudantes foram levados para um museu, onde tiveram que montar as partes das cerâmicas que
encontraram neste sitio que escavaram. Tanto na parte de campo, como na parte de laboratório, as crianças
tiveram que trabalhar em equipe. Ao final das atividades desenvolvidas os alunos perceberam que tanto na parte
da construção da cerâmica como na parte do sitio arqueológico, o trabalho deveria ser feito em equipe. Também
viram qual a função do arqueólogo, qual o seu trabalho, pois antes pensavam que o trabalho do arqueólogo fosse
o de achar ossos de dinossauros.
Palavras-chaves: PIBID, Cerâmica, Sitio arqueológico, Aulas práticas.

Summary: Together with my colleagues PIBID, we develop within the classroom some activities that were
carried out with practical lessons, which was working with pottery and then the work of archaeological site. In
activity with ceramics students had to make pots with clay as was working in the classroom, this contest each
child made his pot differently one of the other and then painted with colors that indigenous people used when
they made their ceramics. Already in the archaeological site of the students had a simulation gave an excavation
of an archaeological located where they found remains of ceramics (fieldwork). And in the lab students were
taken to a museum, where they had to assemble the parts of the ceramics found that place that feels excavated.
Both in the field and in the laboratory the children had to work in teams. At the end of the activities the students
realized that both in the construction of ceramics as part of the archaeological site, the work should be done in
teams. Also viewed the function of the archaeologist, what's your job, because before thought that it was the
work of the archaeologist to find dinosaur bones.
Keywords: Pibid, Ceramics, Archaeological Site, Practical classes.

Introdução

Inicialmente, eu e meus colegas do PIBID, tivemos a ideia de trabalhar a cerâmica dos


povos indígenas do Rio Grande do Sul. Antes, no entanto, apresentamos quais os povos
existiam aqui no Estado, porque as crianças desconheciam o assunto e nem compreendiam o
que era a cerâmica. Trabalhamos os povos dos campos, povos das florestas, do litoral, dos
cerritos e os povos dos pinheirais. Vimos também que cada um deles é identificado por uma

1
Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). Contato: moisesstein25@gmail.com

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 36-49, Jul. 2015


37

tradição: Tradição Taquara, Tradição Umbu, Humaitá, Vieira e Sambaquianos. E, neste


contexto, separamos estes povos em pré-cerâmicos e ceramistas.

Povos Pré-cerâmicos

Os povos dos campos foram os primeiros a vir para o Sul, seus vestígios são
classificados como Tradição Umbu. Abrigavam-se em cavernas e em algumas delas até
fizeram desenhos que são chamados de arte rupestre. Sobre a arte rupestre podemos informar
que:

O homem pré-histórico deixou quase toda a arte rupestre existente no Rio Grande do
Sul. Os motivos gravados nas rochas são bastante simples: formas geométricas,
traços, triângulos e linhas que se cruzam, dificultando saber o que significa. É muito
difícil datar a arte rupestre. Em muitas grutas com motivos gravados, existem
artefatos dos primeiros caçadores que povoaram o estado, sendo possível que fossem
os autores das gravuras (1200 ANOS DE HISTORIA E PRÉ-HISTÓRIA DO RIO
GRANDE DO SUL, 2013, p. 39).

Os povos das florestas são grupos nômades que vivem pertos dos rios. Sua
alimentação é baseada na dieta de frutas e do pinhão e também da caça e da pesca, pois estes
povos eram caçadores e coletores. Neste contexto Custódio (2004) destaca que os vestígios
encontrados dos povos de florestas são classificados como da Tradição Humaitá, e que estes
povos viveram e se desenvolveram nas florestas até o aparecimento dos Guaranis que
influenciaram na cultura. Os povos do litoral formaram os sambaquis, que são os amontoados
de restos de conchas, moluscos. “Alguns sambaquis apresentam ossos de peixes, de aves, de
animais terrestres e aquáticos” (CUSTÓDIO, 2004, p. 12). Podemos dizer que os grupos que
ocuparam os sambaquis, são os grupos das florestas e dos campos. Algumas das ferramentas
destes povos do litoral são feitas de osso, como anzóis e também artefatos de pedra polida
como pesos para as redes.

Povos Ceramistas

Os vestígios dos povos dos cerritos são conhecidos como da Tradição Vieira. São
moradores do Sul do Rio Grande do Sul, conhecidos como povos dos campos que formaram
aterros que são chamados de cerritos. “Os aterros ou cerritos são montes artificiais facilmente
reconhecíveis pelos pesquisadores” (1200 ANOS DE HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA DO
RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 39). Estes aterros possuíam variados tamanhos e formas

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 36-49, Jul. 2015


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circulares e algumas elípticas, de acordo com Instituto Anchietano de Pesquisa São Leopoldo.
(1991, p. 109).

Os cerritos são pequenas elevações do terreno, com forma aproximadamente


circular, oval ou elíptica, compostos principalmente de terra, ou com grande
quantidade de restos de alimentos humanos, que podem chegar até 100 m de
diâmetro e 7 m de altura. Encontram-se na proximidade das lagoas ou em banhados
ao longo dos rios. Geralmente vem agrupados, mas há também os solitários.

Os povos dos pinheirais habitavam lugares onde existiam mata de araucárias. Sua
alimentação era composta por variedade de frutas, raízes e vegetais, tinham também na época
do outono, o pinhão. Este grupo também praticava a caça e a pesca que faziam parte de sua
dieta. Eram construtores de casas subterrâneas que serviam para se protegerem do frio. “Eram
casas geralmente circulares, algumas parcialmente enterradas, cobertas por fibras vegetais.
Agrupadas, formavam pequenas aldeias dispersas na floresta” (CUSTÓDIO, 2004, p. 14).
Seus vestígios são conhecidos como pertencente à Tradição Taquara. É importante ressaltar
que algumas das casas subterrâneas eram bem sofisticadas na sua arquitetura, pois possuíam
uma bancada para se acomodar, onde poderiam fazer suas atividades. No centro da casa tinha
um aprofundamento maior que servia para fazer a fogueira.

Cerâmica

Depois da parte teórica sobre os povos pré-cerâmicos e os ceramistas, trabalhamos


com os alunos a parte prática sobre a cerâmica. Levamos argila para a sala de aula para que
cada aluno fizesse um pote de argila conforme seu conhecimento. Neste momento as crianças
já sabiam que algumas cerâmicas eram lisas e outras decoradas como na tradição taquara:

São vasilhas muito pequenas e finas, de coloração escura e, às vezes, polida.


Algumas vasilhas apresentam decorações feitas com instrumentos pontiagudos
quando a argila ainda estava mole: traços em linhas paralelas ou zigue-zague e
pontos são mais comuns. Também se decorava a cerâmica envolvendo-a com cestos
para deixar uma espécie de ‘impressão’ dos traçados (1200 ANOS DE HISTORIA E
PRÉ-HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 77).

No estudo da cerâmica os alunos perceberam que no grupo dos Guaranis os homens


faziam o trabalho mais pesado como cortar o mato, buscavam alimentos através da coleta e da
caça e também guerreavam com outros grupos. “A cerâmica era feita pelas mulheres que
necessitavam para os afazeres da casa de recipientes com tamanhos diferentes” (1200 ANOS
DE HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 91). O tamanho
dependia para da utilidade, pois as grandes eram para conservar as bebidas das festas; as

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panelas que eram menores e serviam para cozinhar os alimentos e menor ainda eram as tigelas
que usavam para servir o alimento. Portanto podemos dizer que as mulheres ficavam com
trabalhos mais leves, como: cozinhar e fazer a cerâmica. E as crianças ajudavam a cuidar dos
menores. Ainda sobre a cerâmica dos Guaranis, enfatiza Custódio:

Suas vasilhas cerâmicas eram feitas a partir de roletes de barro, unidos e alisados
com as mãos. As superfícies externas eram pintadas nas cores vermelho, preto e
branco ou decoradas com marcas de dedos e unhas. As maiores serviam para
preparar bebidas, ou para enterrar seus mortos. (CUSTÓDIO, 2004, p. 15)

Dentro deste aprendizado as crianças tinham feito seus potes com a argila que foi
levada por nós, professores do PIBID. Alguns fizeram nos seus potes as marcas em formas de
linhas paralelas e outros os fizeram lisos. Também teve diferença nos tamanhos onde alguns
fizeram maiores e outros menores e na espessura também percebemos as diferenças, alguns
mais finos e outros mais grossos. Deixamos os potes secarem e na aula seguinte foi a vez de
pintar.
Para a pintura dos potes levamos tintas de cores, preto, vermelho, verde e branco e
cada criança pintou seu pote. Alguns pintaram de uma cor e outros de várias cores. Alguns
ainda queriam misturar as cores para formar outros tons, mas explicamos que os indígenas
não faziam misturas das cores. Depois de ter a cerâmica pronta, as crianças notaram que era
um trabalho bem desenvolvido para aquela época, levando-se em conta as decorações e
pinturas que eram feitas. Então refletiam: como que foi inventada a cerâmica?

Seria difícil dizer como é que a cerâmica foi inventada. [...]; certas pessoas dizem
que a cerâmica foi descoberta quando um recipiente foi cozido acidentalmente pelo
calor do sol, mas é difícil encontrar provas que confirmam isto. O mais provável é
que a cerâmica, em virtude do clima social e econômico do período neolítico, tenha
sido inventada várias vezes nas condições sedentárias, então possíveis. Alguns dos
primeiros recipientes poderão ter sido cozidos ao sol, não restam dúvidas. A maioria
dos eruditos aceita a tese de que a cerâmica foi inventada independentemente na
América algum tempo depois de 3000 a.C. (CELORIA, 1978, p. 50-51).

Algumas cerâmicas ficaram muito secas e quebraram então as crianças queriam saber
se tinha como consertar e se a cerâmica dos povos indígenas também quebrava. E o que esses
povos faziam quando quebrava e não tinha mais utilidade. Conforme 1200 Anos de História e
Pré-História do Rio Grande do Sul (2013, p.91) “os recipientes maiores, depois de velhos e
inúteis, serviam ainda para enterrar os mortos, que eram cobertos por panelas e acompanhados
de tigelas com alimentos”. Dentro deste contexto partimos para a arqueologia, sendo
trabalhada a teoria e depois a prática onde nossos alunos tiveram a parte prática em duas
etapas, uma de campo e outra de laboratório, desenvolvida no museu. Quando perguntamos o
que eles sabiam sobre arqueologia, vimos que o conhecimento era muito fraco e alguns não

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sabiam nada. Outros se baseavam no personagem Indiana Jones, que pensavam que o
arqueólogo fosse o que fazia as escavações em busca de ossos de dinossauros, que
arqueologia era o estudo dos dinossauros.

Arqueologia

Primeiramente, antes de nos ir para trabalho de campo, precisamos saber: o que é


arqueologia? E de acordo com Ribeiro:

Definiríamos a arqueologia como uma ciência que busca a reconstituição das


tradições culturais extintas e tenta descobrir sua evolução ou decadência, expansão
no tempo e no espaço ao ambiente. Com isso, também respondemos parcialmente o
que busca o arqueólogo com seu trabalho. Além de conhecimento técnico [...], a
pessoa que vai tentar este tipo de atividade, necessita conhecer as leis da cultura e o
modo como os diversos povos organizam a sua vida, em todos os aspectos,
incluindo-se os espirituais e sociais. Aparentemente nos parece ser isto impossível,
pois o arqueólogo só lida com restos materiais de uma cultura (RIBEIRO, 1977, p.
14).

E os materiais mais comuns de serem encontrados nos sítios arqueológicos são as


cerâmicas e também o mais importante, pois como vimos às cerâmicas grandes quando não
serviam mais eram utilizadas para enterrar os mortos, por isso talvez sejam as mais fáceis de
achar. A arqueologia se confunde muito com a paleontologia que é uma ciência que estuda os
seres vivos que já existiram nos períodos históricos.
Celoria (1978) deduz que a arqueologia estuda o passado do homem através dos
vestígios que podem ser restos de materiais ou comidas como também restos de uma fogueira.
A arqueologia não é só uma ciência – trata-se de uma arte e suas técnicas podem ser aplicadas
em qualquer período histórico.
O trabalho da arqueologia se divide em duas partes: o trabalho de campo e o trabalho
de laboratório. E este trabalho de campo foi feito na escola com os alunos. Foram quebrados
pelos professores vasos de barro de tamanho pequeno e os pedaços foram enterrados sem a
presença dos alunos.

Trabalho de campo

O trabalho de campo está dividido em três partes: coleta artificial sistemática,


prospecção e escavação. Temos também diversos tipos de materiais para levar no trabalho de
campo alguns deles: caderno com capa dura e com muitas folhas, máquina fotográficas, metro
de carpinteiro, sacos de pano e de plástico, papel para embrulhar (pode ser o papel sanitário),

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peneiras, tesouras, pá de lixo ou de jardineiro ou até pazinha de pedreiro, caixa de madeira,


vassourinha e pincel, cordão, etiquetas, estacas de madeiras, vidros com bocas largas, material
escolar e material de camping, mochila cantil entre outras coisas...
O trabalho de campo do arqueólogo é uma atividade mais complicada, não é um
trabalho muito bom, pois depende muito do clima. Por exemplo, se chover não tem como
fazer uma escavação, além disso, o arqueólogo ao fazer o trabalho de campo precisa saber que
vai estar no campo ou mato e lá existem diversos tipos de animais, alguns mais perigosos
como cobras, aranhas e outros. O arqueólogo precisa estar preparado para tudo que pode vir
acontecer em seu trabalho. Também deve levar roupas para frio e para o calor, pois nunca
sabe como vai estar o clima. É importante também levar comida, água para beber e outros
mantimentos nunca se sabe quanto tempo vai ficar em uma escavação, às vezes pode levar
dias, semanas ou até meses. Deve estar preparado para ficar longe da família e se dedicar ao
mundo do trabalho que escolheu.
Na escola quando aplicamos a prática de campo não nos preocupamos muito com isso
e os materiais também foram levados: pá de jardineiro e de pedreiros, pincéis, cordão, estaca,
sacos plásticos, papel e caneta. O tipo de trabalho de campo realizado na escola foi de coleta
superficial sistemática:

Coleta superficial sistemática consiste em coletar todo o material de superfície


encontrado. Não poderá haver escolha, pois, então, deixara de ser sistemático e toda
a tarefa posterior estará perdida. Isto baseia-se na técnica estatística da amostragem.
Caso haja material cerâmico (fragmentos de vasilhames), recomenda-se marcar uma
área de 3 x 3m, e recolher tudo dentro dela (RIBEIRO, 1977, p. 19).

Os alunos escolheram um local onde deduziram que poderiam encontrar os fragmentos


dos materiais quebrados, eles escolheram o local devido a rastros de pessoas e também pela
coloração da terra que parecia estar mexida. Em seguida limparam este local e demarcaram
colocando as estacas e o cordão, depois de feito isso começou o trabalho de escavar. Toda vez
que achavam alguma coisa deveriam limpar com o pincel, depois pegar e colocar dentro de
um saco plástico com um número ou com o nome deles e não poderiam ser misturados outros
pedaços que seriam encontrados separados em outro local, pois cada um teria um saco
diferente. “Se existirem dois ou mais focos de cerâmica, recomenda-se a técnica
anteriormente descrita para cada um deixar o material separado (levará, posteriormente,
número de catálogo diferente)” (RIBEIRO, 1977, p. 19). Também não se pode misturar a
cerâmica com outros materiais em um mesmo saco, como cerâmica, lítico, ossos ou conchas.

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Como os objetos foram enterrados cinco dias antes da escavação estava fácil para
serem encontrados. E a limpeza também era bem tranquila, pois estavam na terra de areia com
isso facilitava as escavações. Ainda é importante ressaltar que:

Uma escavação arqueológica é um trabalho de especialistas treinados para descobrir


informação preciosas, que podem esclarecer partes de nossa história. Todo trabalho
é pouco e, a medida que se faz a escavação, o trabalho vai sendo registrado por meio
de desenhos, fotografias e anotações (CUSTÓDIO, 2004, p. 21).

Como os alunos não tinham máquinas fotográficas, só faziam os registros por meio de
anotações dos materiais que encontravam. E sobre a terra peneirada, conforme Custódio
(2004, p. 21) “a terra escavada é peneirada e os objetos encontrados são identificados e
embalados.” Aqui a terra não era peneirada, por ser só uma noção de um sítio arqueológico.
Sobre a outra técnica de trabalho de campo que é a de corte experimenta segundo
Ribeiro (1977) é conhecido também como prospecção onde é feita uma sondagem para ver se
existem outras culturas diferentes das que aparecem por cima, na superfície, assim acabam
vendo se é necessária uma escavação ou se não. Caso for escavado são feitos quadros de 1,5m
x 1,5m ou de 2m x2m. Menor não pode ser, pois se os objetos estiverem muito profundos
dificulta a escavação, pois às vezes pode ter cultura sob cultura e então existem várias
camadas umas sobre as outras, assim se tornando com profundidade enorme.
Este tipo de sítio arqueológico também foi feito, foi este o que mais gostaram e que mais deu
trabalhos para as crianças, porque nós, professores do PIBID, tínhamos enterrado os objetos
em várias camadas. Percebemos aqui a dificuldade que tiveram quando encontravam as
camadas diferentes, pois achavam que os fragmentos encontrados eram dos mesmos objetos e
então acabavam misturando. Alertamos para que cuidassem da coloração dos objetos. Objetos
de coloração diferente pertenciam a camadas diferentes, culturas diferentes.
A técnica de escavação no trabalho de campo, por sua vez, não foi realizada a parte
prática com os alunos, e sobre está técnica argumenta Ribeiro (1977) que não é para escavar
por escavar, é necessário que tenha algum conhecimento técnico para este tipo de prática, não
sendo assim para os colecionadores. Os mecanismos são os mesmos da técnica de prospecção,
fazer quadrícula de 1 x 1m, também fazer anotações e fotografar, aqui a única coisa que se
pode escolher é que entre as quadrículas se pode deixar um espaço de 20cm. As anotações
sempre são importantes porque os sítios sempre vão ser diferenciados, onde nunca um vai ser
igual ao outro.
Nesta técnica não realizamos a parte prática porque é parecida com a outra que já tinha
sido realizada, então não foi necessário, até porque as crianças já compreenderam mais fácil
só na parte teórica.

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Trabalho de laboratório

Como já tinha sido dito o trabalho do arqueólogo se divide em duas partes, que é a de
trabalho de campo e a de trabalho de laboratório, então depois dos alunos terem feito a parte
do trabalho de campo onde resgataram os fragmentos dos materiais, partiram, então, para o
trabalho de laboratório. Na parte de laboratório os alunos deveriam juntar as parte que tinham
sido encontradas para poder colar ver o que formava. E como no trabalho de campo, no
trabalho de laboratório também precisa de alguns materiais que são de extrema importância
para conseguir realizar a tarefa.

Material necessário: cola do tipo Tenaz para a cerâmica e para o lítico, além desta,
outra mais forte, nanquim, canetas, escovas, medidor de ângulos para material lítico;
medidor de aberturas de vasos, cerâmica; caixas para acondicionamento do material,
verniz ou esmaltes, secador de material com seis gavetas de tela de 60 x90cm,
divididas ao meio, fichas, arquivos de aço, caixas de areia, pias, mesa para análise de
1,8 x 3,5m aproximadamente, paquímetro, mapas do Exército (1:50.000), Escala de
Mohs, da dureza 2até 5, lupa de no mínimo 10 aumentos, martelo ou troques, mesa
de desenho etc. (RIBEIRO, 1977, p. 27).

Como era só uma atividade e não um trabalho profissional não usamos todos estes
materiais. Foi levado somente o básico, a cola tenaz, pois os únicos objetos que as crianças
teriam para colar eram a cerâmica. Foi levado também pincel para tirar alguma sujeira. Mesa
havia no local onde foi realizada a atividade. Pia não foi necessário para limpar os objetos
porque não estavam muitos sujos, tinham sido enterrados na areia apenas três dias antes da
escavação.
É importante lembrar que os objetos são levados para o laboratório para serem limpos
e, em seguida, deve se fazer a catalogação e após é feito o estudo, restauração e, por último, a
conservação. Assim os objetos são comparados uns com os outros e feito estudo sobre eles,
chegando assim a interpretações históricas.
Chegando ao laboratório é feita a lavagem do material encontrado. “Para o lítico, uma
escova dura, para a cerâmica, uma macia” (RIBEIRO, 1977, p. 27). Enquanto para os
materiais feitos de ossos e madeira não é necessário lavar.
Para lavar a cerâmica pintada, precisa-se ter o cuidado para que os desenhos não se
apaguem, mas em nossa atividade não tínhamos cerâmica pintada. Após a lavagem é feita a
secagem do material e coloca-se um número de catálogo neste material. Feito isso vem uma
terceira parte que consiste em analisar este material e estudar, vão medir a espessura a altura,
ver de qual material é feito, ver outros objetos parecidos para comparar, então vai se descobrir
a qual cultura pertenceu. Também se preocupa em saber a idade deste material. E como saber

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a idade deste determinado objeto? Isso é realizado através dos métodos de datações, a relativa
e a absoluta.
Dentro do método de datação relativa temos as datações de estratigrafia, achados de
vários objetos unidos ou depósitos, a tipologia de método cronológico e a corologia ou
cronologia comprada.

Para a datação absoluta temos: a) sedimentos glaciais (varves); dendrocronologia; c)


potássio de flúor; e) isótopos de hidrogênio (água); f) urânio-chumbo; g) cronologia
astronômica em relação com os últimos geológicos da terra; h) análise de obsidiana;
i) termoluminescência (análise do magnetismo ou imantação termonuclear); j)
cronologia arqueológica comparada absoluta; l) carbono-14 (C-14) (RIBEIRO,
1977, p. 31).

Sobre o carbono -14 os alunos ficaram interessados, querendo saber o que era este C-
14.Explicamos então como se formava, enfatizando o tempo de meia vida. Este foi um
assunto bem interessante não tivemos aula prática aqui, só a teoria.

O carbono 14 é formado a partir da colisão entre raios cósmicos e o nitrogênio 14,


encontrando na atmosfera terrestre. Esse isótopo do carbono liga-se facilmente com
o oxigênio, formando o gás carbônico (14CO2), que é absorvido pelas plantas.
Quando um ser vivo morre, a quantidade de carbono 14 diminui, o que implica em
um decaimento radioativo. O tempo de meia vida do carbono 14 (14C) é de 5730
anos. Isto significa que se um organismo morreu há 5730 anos terá a metade do
conteúdo de 14C. O tempo de meia vida de um elemento radioisótopo é o tempo
necessário para que se desintegre a metade de sua massa, que pode ocorrer em
segundos ou em bilhões de anos, dependendo do grau de intensidade do
radioisótopo. Ou seja, se tivermos 200 g de massa de um elemento radioativo, cujo
tempo de meia vida é de 10 anos, após esses 10 anos o elemento terá 100 g de
massa. Assim sendo, a idade radiocarbono da amostra fóssil pode ser obtida
comparando a radioatividade específica 14C/12C desta amostra. Nesse caso, quanto
menor é a quantidade de carbono 14 encontrada na amostra mais antiga ela é. Para
descobrir a quanto tempo um organismo morreu, determina-se a quantidade de
elétrons que o organismo emitiu por minuto por grama de material, que hoje em dia
é de aproximadamente de 15 elétrons emitidos por minuto por grama de amostra
(CAVALCANTE, 2014).

Museus

Todo este trabalho da parte da parte de laboratório foi feito dento de um museu porque
nós não tínhamos um laboratório. Os alunos foram levados para um museu de arqueologia.
Chegando ao museu os alunos começaram a montar suas cerâmicas que tinha achado nas
simulações dos sítios arqueológicos que tinham sido feitas na escola nas semanas anteriores.
Após terminarem a tarefa de juntar as peças, puderam ver a exposição que tinha neste local.
Viram então as urnas funerárias de cerâmica, como também cachimbos, tigelas, alguns dentes
de animais e tantas outras coisas. Tudo o que viram foi feito pelas tribos indígenas que
viveram no Rio Grande do Sul há muito tempo e que o tempo deixou guardado nos sítios

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arqueológicos, onde mais tarde foi resgatado pelos arqueólogos, foi limpo em seguida
consertado, colado e por fim montaram uma exposição no Museu que fica exposto para
visitação.
Destaco também que apesar de não ter um laboratório de arqueologia para ser feito
trabalho de reconstrução, eu e meus colegas do PIBID, poderíamos ter desenvolvido a
atividade dento da sala de aula. Mas não foi feito dentro da sala e sim foi no museu, porque
achamos importante fazer uma visita ao museu. Ainda é importante lembrar que para fazer
uma visita ao museu e necessário ter um objetivo, e não levar apenas por levar. Pois para o
aluno uma visita ao museu segundo Abud; Silva; Alves é uma oportunidade de sair da sala de
aula de um ambiente onde só se tem repetição e ir para um lugar diferente, conhecer um
espaço novo e pessoas novas, ter o aprendizado através das exposições.

O museu é um espaço complexo, no qual convergem diferentes dimensões e


processos da produção do conhecimento: coleta, pesquisa, guarda, conservação e
comunicação. É uma instituição permanente, sem finalidade lucrativa, a serviço da
sociedade e de se desenvolvimento. Como espaço de produção de conhecimento
aberto ao público, sua função é adquirir, conservar, pesquisar comunicar e exibir
evidências materiais do homem e de seu ambiente para fins de pesquisa, educação e
lazer. Assim, o papel social dos museus é definido, na atualidade, por sua função
educativa (ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p. 127).

No museu percebemos que os alunos ficavam fascinados com os objetos que viam,
pois eram objetos antigos que até agora tinha visto apenas imagens nos livros ou fotografias e
com esta visita ao museu conseguiram ver na frente de seus olhos estes objetos reais. Muitos
pensavam que no museu não tinha nada de importante, que só possuía coisas velhas e inúteis.
Por isso que é importante levar os alunos ao museu sejam crianças ou adolescentes. Levando-
os ao museu tiramos o pensamento errado que tem sobre este local assim percebendo que
existem várias coisas de importante, bonitas e interessantes em um museu.

Essa visão, comum entre crianças, jovens e adultos dos diferentes grupos
socioeconômicos, mostra representações do passado, da memória e da História como
sinônimos de ‘antiguidade’, algo distante no ‘tempo-espaço’, com poucas relações
com o presente e quase nenhuma relação com o futuro (ABUD; SILVA; ALVES,
2010, p. 127).

Acreditamos que o ensinar história dentro de um museu os alunos conseguem um


aprendizado muito mais rápido por absorverem o conteúdo de maneira diferente, de um jeito
prático onde, além disso, tudo pode se questionar, fazendo perguntas, para si mesmos assim
tendo um amplo conhecimento e raciocínio rápido.
Ao ver os objetos podem num piscar de olhos reconstruírem o passado, tendo assim
um amplo aprendizado, desenvolvendo uma imaginação fantástica. Nos espaços históricos
como museus além do aluno poder sair sala de aula, continua sendo aula, mais diferenciada e

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mais prazerosa, mais divertida, saindo daquela repetição diária. Diferente de dentro da sala de
aula, no espaço do museu, a curiosidade era maior ao ver os objetos expostos. Como em todo lugar
tem regras no museu não foi diferente. Alguns queriam tocar e pegar os objetos, mas não podiam
como também não era permitido correr. “Quando visitamos um museu, temos contato com seu acervo,
suas coleções de objetos e outros documentos, por meio da exposição. Toda exposição é construída
para narrar, para dizer algo sobre o tema em questão” (ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p. 134).
Dentro do museu é importante que o aluno possa fazer diversas atividades como a de
observação onde vai ser o momento de descoberta que pode ser feito através de percepção
visual ou perguntas com o objetivo de identificar o objeto. Temos também a atividade de
registro, que é o momento de investigação, buscando relações entre o mundo das coisas e as
pessoas que construíram, o aluno pode fazer desenhos dos objetos, fotografias mapas e
maquetes o objetivo aqui é de fixar aspectos relevantes, aprofundar a observação e
desenvolver a memória, o pensamento lógico intuitivo e operacional. Na atividade de
exploração é o momento de analisar, interpretar, onde se pode fazer uma análise do problema,
fazer questionamento sendo o objetivo de desenvolver a capacidade de análise e de
julgamento crítico. Outra atividade que pode ser feita é de apropriação, momento da
reinvenção, de dar significados às informações onde pode se fazer a recriação, interpretação
através de expressão, como pintura, escultura, danças, textos, filmes vídeo, teatro. O objetivo
aqui pode ser de promover o envolvimento afetivo, participação criativa e valorização do bem
cultural.
Nos museus não se pode colocar tudo a mostra, pois isso cansa os olhos de quem o
visita, deve se mostrar pouco para se tornar interessante e neste contexto enfatiza Celoria:

Felizmente, hoje em dia, as pessoas que vêem os museus como lugares sombrios,
aborrecidos e poeirentos já são poucas. Todavia, muitas delas não compreendem que
um bom museu deveria ser como o iceberg proverbial: a maior parte da massa sob a
superfície. Se tudo estiver à mostra, o visitante depressa cansará seus olhos e seu
espírito. Assim um bom museu exibe apenas 1% de suas coleções. As peças exibidas
são escolhidas pela sua beleza, ou como características de determinados locais, ou
ainda porque são espécimes representativos de uma data especificas. As peças
exibidas devem ser mudadas a intervalos que não sejam demasiado longos.
(CELORIA, 1978, p. 152).

Como vimos em um museu não deve colocar todos seus objetos expostos de uma só
vez, mas sim de ir trocando de tempo em tempo, para que as pessoas possam ir visitar mais
que uma vez. Trocando os objetos sempre teremos uma coleção diferente e assim terá mais
público para este espaço histórico, e quem já foi vai querer ir de novo para conhecer a nova
coleção.

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Também no caminho da escola para o museu fizemos o conhecimento do caminho,


perguntando aos alunos se eles sabiam os nomes das ruas que estávamos passando, como
também mostrávamos alguns prédios históricos que possui a cidade. Viam também o espaço
urbano como foi modificado. Até fora do prédio do museu os alunos conseguira ver o espaço,
o pátio grande que possui este museu possibilita fazer várias atividades. No dia em fomos ao
museu fazer o nosso trabalho de laboratório e a visitação, havia chovido e estava tudo
molhado, mas nem isso impediu nossos alunos de fazerem brincadeiras no pátio. Após as
tarefas realizadas dentro do museu fomos para o pátio onde as crianças fizeram um lanche
junto com os professores e, em seguida, fizeram uma caminhada em uma trilha no meio da
mata, observando o ambiente, a flora e fauna, foi encontrado até bugio nesta trilha.
Ao retornar à escola as atividades não tiveram fim, apesar de naquele dia já estar
terminando o horário de aula. Na semana seguinte seguiu-se com a atividade, pois seria a vez
de tirar as dúvidas como também colocar suas curiosidades e fatos interessantes da visita ao
museu.
As atividades que propomos aos alunos foram muito bem desenvolvidas, pois desde a
parte que começamos a trabalhar com os povos indígenas do Rio Grande do Sul foram
surgindo outros assuntos: a cerâmica, o sítio arqueológico que foi feito em duas etapas: parte
campo e parte de laboratório que foi onde fomos para o museu.
Percebi que nas atividades das aulas teóricas foi mais lento o processo de
aprendizagem, que absorviam mais conhecimentos nas aulas práticas que eram aulas
diferenciadas das que estavam acostumados. Nestas aulas percebi que os alunos tinham o
gosto pela atividade, todos queriam participar e todos trabalhavam em grupos, diferentes das
aulas teóricas. As crianças se tornaram mais próximas de nós, professores do PIBID, porque
sabiam que sempre teríamos uma aula divertida e diferente para passar para eles. Ficavam
esperando o dia de chegarmos de novo.
Sempre que era feita uma atividade conseguíamos fazer ligação para a próxima aula e,
com isso, nossos alunos aprendiam com mais facilidade, pois querendo ou não era uma
continuidade da aula anterior. Desde os indígenas até a atividade do museu foram vistos e
lembrados os indígenas do Rio Grande do Sul; no trabalho da cerâmica foram lembrados os
povos ceramistas; no sítio arqueológico também foram lembrados estes povos e no museu,
que foi a etapa final, foram mencionados todos os povos. Foi também no museu que se
lembraram, de suas cerâmicas, porque neste espaço do museu estavam as urnas funerárias,
algumas quase inteiras, outras só alguns pedaços e tinha aquelas que estavam inteiras com
todos os pedaços achados e colados.

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No museu o conhecimento foi maior, além de ver os objetos conseguiam refletir e


construir a história dentro do que estudaram, vimos que compreenderam melhor o tempo e o
espaço. E as dúvidas se terminaram ali mesmo, pois a imaginação deixava cada um
reconstruir a história. Neste momento vimos como foram importantes às aulas práticas e a
visita ao museu, mesmo fora da sala de aula a aprendizagem é contínua.
Mas as atividades ainda não terminaram mesmo depois, voltando do museu para
dentro da sala, conversamos sobre o que gostaram e vimos nesta conversa que o conteúdo foi
bem aprendido com esta maneira de passar as aulas através de atividades práticas. Como na
ida e tanto na volta, da escola para o museu, e do museu para a escola, vimos o meio urbano,
prédios históricos e nomes de algumas ruas, nossas próximas atividades ainda vão dar
continuidade, pois vai ser sobre os imigrantes que chegaram à cidade e o patrimônio que estes
colonizadores deixaram como seus costumes e suas casas. Nesta próxima atividade vão poder
comparar através de mapas e passeios como era quando existiam os indígenas, depois como
ficou quando chegaram os primeiros imigrantes e como a cidade está atualmente. As
atividades continuadas sempre são relembradas e questionadas coisas das aulas anteriores,
assim o aprendizado é mais rápido e fica mais fácil de gravar os conteúdos com estas formas
práticas.

Referências

ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo Cardoso. Ensino de
História. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

CAVALCANTE; Kleber G. Datação do Carbono 14. Disponível em


<http://www.mundoeducacao.com/fisica/datacao-carbono-14.htm>. Acesso em: 11 jul. 2014.

CELORIA, Francis. Arqueologia. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1978.

CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Os primeiros habitantes do Rio Grande do Sul.


UNISC; IPHAN, 2004.

Instituto Anchietano de Pesquisa São Leopoldo. Pré-história do Rio Grande do Sul. São
Leopoldo, Unisinos, 1991. 178p.

RIBEIRO, Pedro Augusto Mentz. Manual de introdução a arqueologia. Porto Alegre,


livraria Sulina, 1977.

1200 anos de história: arqueologia e pré-história do Rio Grande do Sul. Catálogo da


exposição organizado pelo Museu da UFRGS. Porto Alegre. 2013. 116p.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 36-49, Jul. 2015


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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 36-49, Jul. 2015


Collegio Allemão do Rio Grande em tempos de nacionalização do ensino

Maria Angela Peter da Fonseca1

Resumo: Nesta comunicação, privilegiam-se os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Collegio Allemão do Rio
Grande de 1938, elucidando tempos de transição na educação teuto-brasileira urbana no período de Nacionalização
da Educação. Entre as fontes utilizadas destacam-se: os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande –
1938; entrevistas com o professor Arno Ristow, Rio de Janeiro - 2005 e 2011 e com a ex-aluna Erica Pohlmann
(Frank), Rio Grande – 2012. O professor Arno Ristow ministrou aulas no Collegio Allemão do Rio Grande, em 1933
e a ex-aluna Erica Pohlmann (Frank) frequentou o educandário nos primeiros anos da década de 1930. O ensino
passou a ser ministrado através dos princípios da moderna pedagogia, no entanto a língua alemã continuou ocupando
um lugar de destaque na instituição de ensino primário e complementar, mista, em caráter laico. Através dos
Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, de 1938, pode-se perceber os efeitos da Nacionalização do
Ensino no Rio Grande do Sul e, mais especificamente, em Rio Grande. A língua alemã passou a ocupar o status de
língua estrangeira, apesar de receber cuidado especial, como uma consequência por tratar-se de um colégio mantido
por uma sociedade escolar alemã, cuja diretoria era teuto-brasileira e fluente tanto em língua portuguesa como em
língua alemã. Os ajustes nos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, demonstram a necessidade de os
objetivos e os fins que regiam o Collegio Allemão do Rio Grande, adequarem-se à legislação educacional brasileira
com o intuito de permanecerem.
Palavras-chave: Collegio Allemão do Rio Grande, Estatutos, Sociedade Escolar Allemã.

Rio Grande German school in times education nationalization

Summary: In this communication, the focus is the Statutes German School Society the Rio Grande German School,
1938, elucidating transition times in German-Brazilian urban education during Education Nationalization. Among
the sources used are: the Statutes German School Society of Rio Grande – 1938; interviews with Professor Arno
Ristow, Rio de Janeiro - 2005 and 2011 and the former student Eric Pohlmann (Frank), Rio Grande – 2012. Arno
Ristow teacher has taught at the Rio Grande German School in 1933 and the former student Eric Pohlmann (Frank)
attended the breed in the early years of the 1930s. Teaching came to be moved through the principles of modern
pedagogy, however the German language continued to occupy a prominent place in the institution of primary and
complementary teaching mixed in secular character. Through the Statutes German School Society the Rio Grande
German School, 1938, can see the effects of Nationalization of Education in Rio Grande do Sul and, more
specifically, in Rio Grande. The German language has come to occupy the status of foreign language, despite
receiving special care, as a result because it is a school maintained by a german school society whose board was
German-Brazilian and fluent both in Portuguese language and in German language. The adjustments in the statutes
of the German School Society the Rio Grande, demonstrate the need for the goals and purposes governing the Rio
Grande German School, conform to the Brazilian educational legislation in order to remain.
Keywords: Rio Grande German School, Statutes, German School Society.

Introdução

1
Universidade Federal de Pelotas. Contato: mariangela@via-rs.net

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 50-63, Jul. 2015


51

Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, de cunho quanti-
qualitativo, que vem sendo desenvolvida no doutorado em Educação, da Faculdade de Educação,
da Universidade Federal de Pelotas e socializada no Centro de Estudos e Investigações em
História da Educação - CEIHE - que contempla o tema História da Educação Teuto-Brasileira
Urbana na Região Sul do Rio Grande do Sul, nos séculos XIX e XX. Nesta comunicação,
privilegiam-se os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Collegio Allemão do Rio Grande de
1938, elucidando tempos de transição na educação teuto-brasileira urbana no período de
Nacionalização da Educação.
Entre as fontes utilizadas destacam-se: os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio
Grande – 1938; entrevistas com o professor Arno Ristow, Rio de Janeiro - 2005 e 2011 e com a
ex-aluna Erica Pohlmann (Frank), Rio Grande – 2012. O professor Arno Ristow ministrou aulas
no Collegio Allemão do Rio Grande, em 1933 e a ex-aluna Erica Pohlmann (Frank) frequentou o
educandário nos primeiros anos da década de 1930.
O Collegio Allemão do Rio Grande foi fundado no ano de 1898 pela Sociedade Escolar
Allemã do Rio Grande. A maioria dos membros dessa sociedade pertencia à Comunidade
Evangélica Allemã e era composta por comerciantes e industriais radicados em Rio Grande. À
semelhança do Collegio Allemão de Pelotas, o Collegio Allemão do Rio Grande teve um tempo
de existência, em torno de 44 anos, quando, então, suas atividades foram interrompidas por
ocasião da Segunda Guerra Mundial. Da mesma forma a proposta educacional dessas instituições
contemplava o cuidado com o bem cultural denominado Deutschtum, ao cultivar valores e
tradições milenares dos imigrantes alemães com a cidadania brasileira.
O pesquisador alemão Giesebrecht (1899), em seu relatório de viagem pelos estados
litorâneos brasileiros, fez menção a esses educandários em Rio Grande e em Pelotas, e também
ao Collegio Allemão de Porto Alegre fundado em 1886, mantido pela Sociedade de Beneficência
Alemã de Porto Alegre, hoje Colégio Farroupilha.
A partir da análise dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande de 1938,
elucida-se a reformatação do ensino em um colégio teuto-brasileiro urbano em Rio Grande em
que são enfatizados os princípios da moderna pedagogia em consonância com a legislação do
Brasil. Através dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, de 1938, pode-se
perceber os efeitos da Nacionalização do Ensino no Rio Grande do Sul e, mais especificamente,
em Rio Grande.

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No que diz respeito aos ajustes nos estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande,
esses demonstram a necessidade de os objetivos e os fins que regiam o Colégio Rio-Grandense,
adequarem-se à legislação educacional brasileira com o intuito de permanecerem. Em
decorrência da proximidade da Segunda Guerra, no ano seguinte, em 1939, apesar dos
professores estrangeiros ainda poderem exercer a docência, foi proibido o exercício de direção de
escola aos estrangeiros, ficando este resguardado aos brasileiros e/ou teuto-brasileiros.
Os estatutos dos 40 anos anteriores de funcionamento do Colégio Rio-Grandense, ou seja,
da sua fundação, em 1898 até 1938, foram revogados a contar da aprovação dos estatutos de
1938. A partir desses dados questionamos: o que permaneceu e o que mudou a partir de 1938?
Essa e outras questões demandam novas fontes que certamente serão investigadas em outros
estudos.

A questão da Nacionalização do Ensino e as Escolas Teuto-Brasileiras no Rio Grande do


Sul

O Brasil, nas primeiras décadas do século XX, foi permeado por discussões em torno do
nacionalismo emergente, presente em cenários diversos, tanto internos como externos. Este
movimento veio a ter o seu ápice nas décadas de 30 e 40 do mesmo século, quando conflitos
internacionais entre nações do hemisfério norte, especialmente a Alemanha, culminaram com a
eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Nesse período, vigorou no Brasil, o Estado Novo, que, segundo Werle (2005) trouxe
alterações significativas, pautando e definindo o campo político e educacional, que apresentava
como alvo a constituição da nacionalidade através de programas de educação nacionalista.
De acordo com Bastos,

durante o Estado Novo (1937-1945), a educação foi insistentemente articulada a uma


política de “reconstrução nacional”. Tal política, voltada para a reordenação da
sociedade e do Estado, apostava na modernidade cultural e institucional e contava com a
Escola como agência de difusão e propaganda de normas de convivência social
inspiradas em valores marcadamente autoritários (BASTOS, 1994, p. 11).

Pode-se observar esta ideia, no discurso do Ministro da Educação e Saúde Pública,


Gustavo Capanema, em 1937, no qual definiu os princípios e as aspirações da política
educacional, situando

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a educação como um dos instrumentos do Estado (...), quando passou a ser considerada
como uma função social de excepcional relevo, e a sua finalidade já não é simplesmente
ministrar noções e conhecimentos assentados, mas essencialmente preparar a criança e o
adolescente para viver em sociedade, (...). Educar é rigorosamente socializar o ser
humano. Despertar no indivíduo o máximo de eficiência, (...), eis aí a finalidade visada
pela nova pedagogia. A formação do “novo” homem está a exigir uma “nova” Educação
e novas instituições escolares (BASTOS, 1994, p. 23).

Na proposta político-pedagógica do Estado Novo, entraram em cena os educadores


profissionais que verteram do movimento internacional da Escola Nova, em vigor desde o último
quarto do século XIX, alguns princípios que nortearam a questão da educação, que foram
conjugados com a questão emergente do nacionalismo, com a necessidade de unificação do
território nacional. Tratava-se da construção de uma identidade nacional brasileira.
Conforme Souza,

o Estado assume, de qualquer forma, as funções de tutor e tradutor; pode arrogar-se o


cargo de tutor da nação porque é capaz de traduzir a alma do povo e encarná-la em sua
própria essência. (...) a identificação entre nação e povo torna-se essencial. O Estado
Novo exprime a essência da nação e retira daí sua validade. (...) Cabe aos intelectuais,
segundo Vargas, transformarem-se em agentes construtores desta interpretação,
codificando-a, e, neste processo, assumindo a tarefa de emancipação cultural (SOUZA,
2004, p. 95).

Nas primeiras quatro décadas do século XX, um significativo número de escolas teuto-
brasileiras no Rio Grande do Sul partilhava o espaço urbano e rural com a emergente escola
pública brasileira. Neste terreno conflituoso em que se deu a configuração da identidade nacional,
muitos foram os esforços de docentes, nas escolas teuto-brasileiras, para conjugar memória e
cidadania.
Tanto na cidade como na zona rural, os imigrantes alemães e os teuto-brasileiros, em sua
maioria, protestantes luteranos, incentivados por governos positivistas, fundaram escolas para
seus filhos. Muitas dessas escolas concretizaram-se a partir de sociedades escolares, às vezes de
cunho religioso, responsáveis pela manutenção de escolas e igrejas, fomentando a vida cultural
entre os pares.
As escolas teuto-brasileiras, no período anterior à nacionalização do ensino, tinham em
seus currículos o ensino, predominantemente em língua alemã. No entanto, entre um ir e vir, no
intervalo das duas guerras mundiais, que abalaram as relações diplomáticas entre o Brasil e a
Alemanha, e as proibições e permissões do ensino em/de língua estrangeira no Brasil, no final da
década de 1930, esse ensino em língua alemã foi definitivamente proibido.

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Por motivo da nacionalização do ensino, houve uma modelação e uma conformação no


sistema escolar brasileiro, que foi se unificando, no que diz respeito à obrigatoriedade da língua
portuguesa e à elaboração de um código das Diretrizes da Educação Nacional propalada pelo
Ministro Capanema em 1937, através da criação de secretarias e diretorias concernentes à
educação em nível federal, estadual e municipal.
No entanto, as escolas teuto-brasileiras que conseguiram reconfigurar seu perfil étnico,
conjugando valores e tradições culturais e religiosas, com a cidadania brasileira, certamente
permaneceram, através do auxílio dedicado de muitos professores teuto-brasileiros. Para tal
empreendimento a observação das leis da nacionalização do ensino foi condição sine qua non
para a sua continuidade.

Rio Grande na Região Sul do Rio Grande do Sul

Os imigrantes alemães que se instalaram na região sul do Rio Grande do Sul, a partir da
segunda metade do século XIX, assim o fizeram, e em grande número, na zona rural, abrangendo,
principalmente, as regiões coloniais de São Lourenço do Sul, Pelotas, Canguçu e Morro Redondo
(FONSECA, 2007). No entanto, as regiões urbanas também receberam representantes dessa etnia,
que se instalaram com mão de obra qualificada ensejando o desenvolvimento econômico,
principalmente de Pelotas e Rio Grande.
No final do século XIX, a cidade do Rio Grande, em função do porto marítimo,
apresentou um significativo crescimento econômico direcionado ao abastecimento do mercado
nacional sendo que suas principais mercadorias eram os produtos têxteis e alimentares (HEINZ,
2010). Na área urbana de Rio Grande, estabeleceu-se uma pequena elite industrial e comercial,
proprietários de firmas de importação e exportação, composta por imigrantes alemães e teuto-
brasileiros. Esse grupo desenvolveu um florescente comércio, fundou indústrias, escolas, igrejas e
sociedades culturais diversas. Pode-se citar a Fábrica de Tecidos Rheingantz, a Fábrica de
Charutos Poock e dezenas de casas comerciais com filiais, inclusive, em Porto Alegre (LONER,
2001).
Em relação à educação teuto-brasileira urbana, no final do século XIX, nesta região,
foram fundados diversos colégios entre eles, o Collegio Allemão do Rio Grande. Pode-se citar
também o Collegio Allemão de Pelotas. Esses educandários de ensino primário e complementar

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foram fundados por Sociedades Escolares Allemãs compostas, em sua maioria, por industriais e
comerciantes, membros das Comunidades Evangélicas Allemãs.
De acordo com o que foi mencionado anteriormente, a trajetória do Collegio Allemão do
Rio Grande e do Collegio Allemão de Pelotas assemelha-se ao tempo de existência, que foi em
torno de 44 anos, tendo suas atividades encerradas por ocasião da Segunda Guerra Mundial.

O Colégio Rio-Grandense – Rio Grande – 1933

O Collegio Allemão do Rio Grande, denominado posteriormente Colégio Rio-Grandense,


foi fundado no ano de 1898 pela Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande. A maioria dos
membros dessa sociedade pertencia à Comunidade Evangélica Allemã do Rio Grande que, 12
anos depois, erigiu o Templo São Miguel para a realização dos cultos protestantes luteranos.
A reabertura das aulas do ano de 1903 foram anunciadas, em jornal local, para o dia 16 de
fevereiro, assinadas pelo Reverendo, Professor e Diretor Bruno Stysinski, pontuando, entre outras
informações, os valores das mensalidades e elencando as matérias lecionadas.

Collegio Allemão
Rua Benjamin Constant, 147
Dirigido pelo Reverendo Bruno Stysinski
Reabre as aulas no dia 16 do corrente.
Funciona todos os dias úteis das 8 à 1 hora.
Curso primário 12$000
Curso secundário 15$000
Serão leccionadas as matérias seguintes: portuguez, allemão, francez, arithemetica,
algebra, geometria, physica, historia natural, historia universal, geografia geral e do
estado, historia do Brazil, desenho, canto, gymnastica e trabalho de agulha.
Quanto ao ensino de latim, inglez, musica etc., trata-se com o diretor.
A directoria adquirio um novo professor suisso, esperado do Rio de Janeiro pelo
Victoria.
(O ECHO DO SUL, 1903, p. 3)

De acordo com Witt (1996), Bruno Stysinski era um ex-jesuíta convertido ao luteranismo
que veio para o Brasil em 1896 e, a partir de 1901 até 1905, exerceu o pastorado e a direção da
escola em Rio Grande, dados que conferem com a nota do jornal acima citada, mais
especificamente em relação à direção do Collegio Allemão do Rio Grande. O professor foi
pioneiro na metodologia da história, publicando Grundriss der Geschichte Brasiliens
(Compêndio de História do Brasil), em 1914, pela editora Rotermund em São Leopoldo
(KREUTZ, 1994, p. 105).

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No entanto, na década de 1930, em pleno período de efervescência em relação à


nacionalização do ensino, chegou ao porto de Rio Grande, no final de janeiro de 1933 - num
vapor da Companhia de Navegação Costeira, vindo do porto de Itajaí-SC - o professor teuto-
brasileiro Arno Ristow, recém-formado no Seminário Evangélico de Formação de Professores
(Lehrerseminaren) de São Leopoldo (ENTREVISTA COM ARNO RISTOW, 2005 e 2011).
Esse professor dirigiu-se ao Collegio Allemão do Rio Grande, então sob nova
denominação: Colégio Rio-Grandense, para apresentar-se e encarregar-se da docência de Língua
Portuguesa no ensino primário.

Ao chegar à cidade de Rio Grande, pude apreciar os prédios e as instalações do Colégio


Rio-Grandense. Fiquei fascinado. Localizado na rua Barão de Cotegipe número 415,
ocupava uma área bastante grande, indo o terreno até a rua dos fundos. Suas salas de
aula eram amplas e muito bem equipadas. Possuía um rico museu e até salas de esportes,
guarnecido de vários aparelhos de ginástica, como argolas, barras paralelas etc. Para as
aulas de canto orfeônico havia um bom piano (RISTOW, 1992, p. 145).

De acordo com dona Erica Pohlmann Frank, que ingressou no Colégio Rio-Grandense
com sete anos completos, há exatamente 80 anos, o colégio era mantido por uma sociedade
escolar da qual faziam parte alguns de seus familiares. No primeiro ano ela estudou na cartilha
Meine Bunte Fibel publicada pela editora Rotermund. No ano seguinte conheceu Herr Ristow,
um jovem professor que ministrou aulas no Collegio Allemão do Rio Grande, então denominado
Colégio Rio-Grandense, como já foi anunciado (ENTREVISTA COM ERICA POHLMANN
FRANK, 2012).
Ao estudar aspectos da memória do professor Arno Ristow e da ex-aluna Erica Pohlmann
Frank, fundamenta-se em Halbwachs (1990), que afirma que a memória do indivíduo depende do
seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a
profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse
indivíduo. Halbwachs, inspirado no sociólogo Dürkheimm, acreditava que os fatos sociais
consistem em modos de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotados de um poder
coercitivo pelo qual se lhe impõem.
Segundo Halbwachs,

a interpretação social da capacidade de lembrar é radical. [...] não se trata apenas de um


condicionamento externo de um fenômeno interno, isto é, não se trata de uma
justaposição de “quadros sociais” e “imagens evocadas”. Mais do que isso, entende que
já no interior da lembrança, no cerne da imagem evocada, trabalham noções gerais,
veiculadas pela linguagem, logo, de filiação institucional. É graças ao caráter objetivo,
transubjetivo, dessas noções gerais que as imagens resistem e se transformam em
lembranças (HALBWACHS, 1990, p. 23).

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Halbwachs (1990) vinculava a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última à


esfera da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade. Nesse sentido, o produto da
memória-hábito, que faz parte do conceito de adestramento cultural de Bergson, aproxima-se do
conceito de memória coletiva de Halbwachs. Portando podemos perceber que tanto a ex-aluna
como o professor entrelaçam as memórias tendo como fio condutor os grupos de convivência,
sendo o Collegio Allemão do Rio Grande a instituição aglutinadora e acionadora das lembranças.
O professor Arno Ristow relembra com alegria sua primeira experiência docente que se
deu em Rio Grande.
Vivi uma época muito feliz na cidade de Rio Grande. Dei-me muito bem com os alunos,
participando de seus folguedos nos recreios, pois vários deles tinham quase minha idade.
Fiz amizade com moços do Clube de Regatas Barros e tornei-me sócio da agremiação.
De tarde costumava ir à sede do Clube para nadar e remar (RISTOW, 1992, p. 145).

Todavia, no final do ano, apesar de ter desempenhado perfeitamente suas tarefas docentes,
e - por ser brasileiro nato - ter sido convidado para ser diretor da instituição, transferiu-se para
Pelotas com o objetivo de assumir a docência na Escola Teuto-Brasileira de Três Vendas.
Atestado do Colégio Rio-Grandense
Rio Grande, 15 de dezembro de 1933
Rua Barão de Cotegipe, 415 – Rio Grande do Sul
A Diretoria do Colégio Rio-Grandense, abaixo assinada, atesta que o Sr. Arno Ristow
lecionou em nosso Colégio desde o princípio d’este ano escolar até hoje. Ao Sr. Ristow
foi confiado em primeiro plano o ensino da língua portuguesa e podemos afirmar que ele
desincumbiu-se perfeitamente de sua tarefa e a nosso pleno contento. O Sr. Ristow deixa
nosso Colégio por sua própria vontade para aceitar um lugar em outra escola. Ass.
Fernando Bromberg, Presidente – Wolfgang Mittermaier, Secretário (RISTOW, 1992, p.
146).

O professor Arno Ristow encaminhou-se para a cidade vizinha, no início de 1934 e,


desempenhou suas atividades na Escola Teuto-Brasileira de Três Vendas, uma escola de ensino
primário inserida em uma comunidade evangélica allemã. Nesta ocasião também ministrou aulas
de Português no Collegio Allemão de Pelotas. Portanto, sua estada no Collegio Allemão do Rio
Grande foi anterior ao registro dos novos estatutos da instituição.

Os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande

A partir da análise dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande de 1938,
percebe-se a reformatação do ensino em um colégio teuto-brasileiro urbano em Rio Grande.
Enfatizam-se os princípios da moderna pedagogia em consonância com a legislação do Brasil.

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Os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, em seu Capítulo I Da


Sociedade e seus Fins, artigo 1, descrevem o Collegio Allemão do Rio Grande, como um colégio
de ensino primário, fundamental e complementar, misto

Artigo 1. A Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, onde tem séde e fôro, fundada
em 6 de outubro de 1898, tem por fim a manutenção de um colégio de ensino primário,
fundamental e complementar, mixto, denominado “Colegio Rio-Grandense”, instalado
actualmente em edifício próprio á rua Barão de Cotegipe ns. 409 e 415.

As alíneas “a”, “b” e “c” do artigo 1, informam características em relação ao ensino, a


observação à legislação do Brasil, ao status da língua alemã, à laicidade da instituição, ao
recebimento de qualquer criança em idade escolar e ao privilégio dos filhos dos sócios.

a) O ensino será ministrado pelos princípios da moderna pedagogia e de accôrdo com a


legislação do país em vigor, dispensando-se, quanto ao ensino das línguas estrangeiras,
especial cuidado á língua allemã que terá a preferência.(grifo meu)
b) O colegio não tem ligação alguma com qualquer confissão ou credo religioso.
(grifo meu)
c) É admissível como alumno qualquer criança na idade escolar, á juíso da Directoria,
devendo os filhos dos sócios gosar da preferencia e de privilegios quanto á mensalidades
e taxas escolares.

Considera-se relevante destacar o caráter laico da instituição ao enfatizar a desvinculação


de qualquer confissão ou credo religioso. Contraditoriamente, a maioria dos membros da
sociedade pertencia à Comunidade Evangélica Allemã do Rio Grande o que, de certa forma,
imprimiu um ethos protestante luterano ao corpo docente e discente do Colégio Rio-Grandense.
No Capítulo II Dos Sócios, no artigo 4 pode-se observar a responsabilidade dos sócios no
cumprimento aos estatutos e ao regimento escolar interno.

Artigo 4. Os sócios patenteam pela sua admissão que bem conhecem o fim da Sociedade
e que queiram apoia-la por todos os meios ao seu alcance, obrigando-se principalmente
ao pontual pagamento da mensalidade e ao cumprimento e acatamento das
disposições destes estatutos, do regimento escolar interno (grifo nosso), das
resoluções da Directoria e deliberações da Assembléa Geral, podendo ser excluídos se
procederem por qualquer modo contrários aos interesses e finalidades da Sociedade ou
se não pagarem suas mensalidades por mais de quatro mezes consecutivos.

Conforme o Capítulo III “Da Directoria”, artigo 5, parágrafo único, observa-se a


especificidade da composição da diretoria da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande ao
condicionar a escolha dos três membros: Presidente, Secretário e Tesoureiro, como teuto-
brasileiros e bilíngues.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 50-63, Jul. 2015


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Artigo 5. A sociedade é dirigida e administrada por uma Directoria eleita por maioria de
votos d’uma Assembléa Geral e composta de treis membros a saber: o Presidente, o
Secretario e o Thesoureiro.
Parágrafo Único: os membros da Directoria devem ser de descendência allemã e
saber falar simultânea – e corretamente o vernáculo e o allemão (grifo meu).

No artigo 7 elenca-se a competência da Diretoria que abrange o contrato, a dispensa e os


salários do diretor e dos professores, a admissão de sócios e alunos e o privilégio de assistir às
aulas.

Artigo 7. Compete á Directoria:


Contractar e dispensar o diretor e demais professores;
Estipular os salarios do corpo docente, joias e demais taxas escolares devidas pelos
alunos e as reducções cabíveis;
Decidir sobre a admissão ou demissão de sócios e alunos, sobre reclamações e dessidios,
sobre a conservação do edifício e inventario;
Elaborar o regimento interno escolar.
Em cumprimento de sua missão podem os membros da Directoria entrar á qualquer hora
no edifício escolar, assistir ás aulas e examens.

O artigo 9 reserva ao diretor do colégio a prerrogativa de ser ouvido em todos os casos


referentes ao ensino no educandário.
Artigo 9. As deliberações da Directoria são validadas quando tomadas com dois votos e
protocolladas e assignadas no respectivo livro. Em todas as occasiões em que se trata de
assumptos internos de ensino deve ser presente e ouvido o diretor do colegio. Dois
conselheiro, paes de alunos do colégio, eleitos pela Assembléa Geral Ordinaria,
assistirão á Directoria nos casos de questões e problemas de character educacional.
Presidente Kurt Fraeb
Secretario Carl Hulverscheidt
ThesoureiroWolfgang Mittermaier.

No Capítulo IV Das Assembléas, o artigo 10 ratifica o poder soberano da Assembléa


Geral em todos os assuntos da sociedade. E os artigos de 11 a 14 caracterizam as assembleias
gerais e extraordinárias garantindo ao presidente o voto de qualidade.
Capítulo IV Das Assembléas
Artigo 10. A Assembléa Geral é o poder soberano da Sociedade e discute e delibera
validamente sobre todos os assumptos que dizem respeito aos interesses da Sociedade.
D’ella só poderão fazer parte os sócios quites com a Thesouraria.
Artigo 11. A Assembléa Geral Ordinária terá lugar nos mezes de Março ou Abril de cada
anno e será convocada pela Directoria com a seguinte ordem do dia:
Relatorio anual da Directoria e especialmente da Thesouraria;
Eleição de dois fiscais para examen da caixa;
Eleição da nova Directoria;
Propostas da Directoria e dos sócios, devendo ser as destes últimos comunicadas por
escripto á Directoria com treis dias de antecedência.
Artigo 12. Assembléas Geraes Extraordinarias poderão ser convocadas em qualquer
época ou por iniciativa da Directoria ou á pedido escripto e motivado de pelo menos
quinze sócios, podendo deliberar unicamente sobre os assumptos constantes da ordem do
dia.

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Artigo 13. A Assembléa Geral sómente poderá deliberar com o comparecimento de dez
sócios no mínimo inclusive os membros da Directoria. Não havendo este numero legal
deverá ser convocada uma segunda Assembléa no prazo de oito dias que delibera
validamente com qualquer numero de sócios.
Artigo 14. As deliberações são tomadas por simples maioria de votos, tendo o Presidente
voto de qualidade.
Compete também ao Presidente indicar a forma da votação.

Em relação à alteração dos estatutos, no Capítulo V, essa somente poderá acontecer


mediante a resolução de uma Assembléa Geral Extraordinária e com voto de 75% dos presentes.

Capítulo V. Das alterações dos estatutos


Artigo 15. As alterações dos estatutos poderão ser feitas por resolução d’uma Assembléa
Geral Extraordinaria convocada especialmente para esse fim, e com o voto de ¾ dos
presentes.

No que diz respeito ao Capítulo VI Da Duração e dissolução da Sociedade, essa terá


tempo indeterminado, e sua dissolução poderá se dar por 87,5% do voto dos sócios por ato de
uma Assembléa Geral Extraordinária.

Artigo 16. A duração da Sociedade é por tempo indefinido. Ella só poderá ser dissolvida
por acto d’uma Assembléa Geral Extraordinaria e pelo voto de sete oitavas partes dos
sócios.

O último artigo dos estatutos, enfoca a questão do patrimônio da sociedade, que, em caso
de dissolução, ficará por cinco anos à disposição de um educandário que possivelmente possa dar
continuidade ao Collegio Allemão do Rio Grande, denominado, então, Colégio Rio-Grandense.

Artigo 17. Resolvida que seja a dissolução da Sociedade fica o seu patrimônio durante
cinco anos á disposição de um estabelecimento idêntico n’esta Cidade que talvez possa
suceder ao Colegio Rio-Grandense. Terminado este prazo será o patrimônio entregue á
instituições do mesmo genero n’este Estado.
Estes estatutos foram discutidos e aprovados pela Assembléa Geral Extraordinaria do dia
19 de Setembro de 1938 e substituem e revogam os anteriores.
Rio Grande, 19 de Setembro de 1938.
Carl Hulverscheidt

Por meio da análise dos Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, de 1938,
pode-se perceber os efeitos da Nacionalização do Ensino no Rio Grande do Sul e, mais
especificamente, em Rio Grande. A língua alemã passou a ocupar o status de língua estrangeira,
apesar de receber cuidado especial, como uma consequência, por tratar-se de um colégio mantido
por uma sociedade escolar allemã, cuja diretoria era teuto-brasileira e fluente tanto em língua
portuguesa como em língua alemã.

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Os ajustes nos estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, demonstram a


necessidade de os objetivos e os fins que regiam o Collegio Allemão do Rio Grande, adequarem-
se à legislação educacional brasileira com o intuito de permanecerem. “Estes estatutos foram
discutidos e aprovados pela Assembléa Geral Extraordinaria do dia 19 de setembro de 1938 e
substituem e revogam os anteriores.” Rio Grande, 19 de setembro de 1938. Carl Hulverscheidt
Secretario
Em decorrência da proximidade da Segunda Guerra, no ano seguinte, em 1939, apesar dos
professores estrangeiros ainda poderem exercer a docência, foi proibido o exercício de direção de
escola aos estrangeiros, ficando esse resguardado aos brasileiros e/ou teuto-brasileiros. No
entanto, também a docência veio a ser reservada somente aos brasileiros e/ou teuto-brasileiros.
Os estatutos dos 40 anos anteriores de funcionamento do Colégio Rio-Grandense, ou seja,
da sua fundação, em 1898 até 1938, foram revogados a contar da aprovação dos estatutos de
1938. A partir desses dados questiona-se: o que e como permaneceu e o que e como mudou a
partir de 1938? Essas e outras questões demandam novas fontes de pesquisa que certamente serão
investigadas em outros estudos.

Palavras finais...

Através da análise do documento: Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande


de 1938, percebe-se que o ensino no Collegio Allemão do Rio Grande passou a ser ministrado
através dos princípios da moderna pedagogia, de acordo com a legislação do país em vigor.
No entanto, a língua alemã, mesmo considerada como uma língua estrangeira, continuou a
ocupar um lugar de destaque na instituição de ensino primário e complementar, mista, em caráter
laico. Entre rupturas e permanências, o Collegio Allemão do Rio Grande ajustou-se às leis de
nacionalização do ensino com o intuito de servir à comunidade e educar, principalmente, os
filhos dos teuto-brasileiros.
Por meio do culto à memória de seus maiores os teuto-brasileiros tomaram posse de suas
heranças culturais centenárias, fizeram-se história, para as transmitirem aos seus descendentes.
Assim, a memória e o amor ao ethos alemão foram cultivados e conjugados com a cidadania e o
respeito aos valores da pátria brasileira.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 50-63, Jul. 2015


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Dessa forma, os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, constituem-se em


lugar de memória, servindo como evocadores de lembranças de outros tempos, juntamente com a
memória oral das falas do professor Arno Ristow e da ex-aluna Erica Pohlman Frank.
Segundo Nora (1993), os lugares de memória expressam o anseio de retorno a ritos que
definem os grupos, a vontade de busca do grupo que se auto-reconhece e se autodiferencia indo
ao encontro de resgate de sinais de appartanance grupal.
Para finalizar, se a história não se apropriar de lembranças e memórias de grupos em vias
de extinguirem-se, elas não se tornarão em lugares de memória. Parafraseando Nora (1993, p. 9),
“a memória é viva, sempre carregada de grupos vivos [...]. A memória emerge de um grupo que
ela une [...], se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”.
Nesse sentido, os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, objeto desse
estudo, funcionam como um “lugar de memória”, que, na concepção de Nora (1993), nasce e vive
do sentimento de que não existe memória espontânea, por isso é necessário criar arquivos, manter
datas, organizar celebrações.
No caso, os Estatutos da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, normatizavam,
regiam, diziam como deveria ser o ensino, e elencavam os meios e os modos através dos quais
deveria funcionar o Collegio Allemão do Rio Grande a partir de 1938, em tempos de transição e
implantação da Nacionalização do Ensino no Brasil, sem abdicar do cultivo e transmissão da
memória étnica, tão cara aos descendentes desse grupo de imigrantes alemães e teuto-brasileiros.

Referências

BASTOS, Maria Helena Câmara. O Novo e o Nacional em Revista: A Revista do Ensino do


Rio Grande do Sul (1939-1942). 1994. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

ENTREVISTA com Erica Pohlmann Frank 2012.

ENTREVISTA com Professor Arno Ristow, 2005 e 2011.

ESTATUTOS da Sociedade Escolar Allemã do Rio Grande, 19/09/1938.

FONSECA, Maria Angela Peter da. Estratégias para a Preservação do Germanismo:


(Deutschtum): Gênese, e Trajetória de um Collegio Teuto-Brasileiro Urbano em Pelotas
(1898-1942). 2007. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 50-63, Jul. 2015


63

GIESEBRECHT, Franz. Die Deutsche Schule in Brasilien. Berlin: Deutsch Brasilicher, 1899.
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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 50-63, Jul. 2015


Considerações sobre as práticas pedagógicas e a utilização dos quadrinhos no espaço
escolar: metodologias, vivências, professores

Eduard dos Santos Leite 1


Julia Silveira Matos 2

Resumo: A presente pesquisa, financiada pelo CNPq na condição de bolsa para iniciação científica, pretende
discutir como as práticas pedagógicas de ensino são apropriadas pelos docentes e, dessa forma, reinventadas
conforme a sua realidade escolar. Da mesma forma, como as ferramentas auxiliares, como livro didático,
cinema, música, televisão, internet, entre outras tantas tecnologias, se inserem no dia a dia do professor e, da
mesma forma, como ele utiliza dessas possibilidades, como se adapta. Focamos nesse trabalho mais a relação
entre livros didáticos e as histórias em quadrinhos. Dessa forma, pretende-se realizar um histórico dos usos
destas ferramentas no Brasil, de forma a demonstrar que não são novidades tais métodos de ensino, mas o que
faz a diferença é como o professor os utiliza em sala de aula, partindo da sua experiência de vida, do seu
acúmulo teórico e não tanto da ferramenta em si.
Palavras-chave: Metodologia; livros didáticos; história.

Abstract: This research, funded by CNPq provided scholarship for undergraduate research, will discuss how the
pedagogical practices of teaching are appropriate for teachers and thus reinvented as your school reality.
Likewise, as auxiliary tools such as textbooks, movies, music, television, internet, among many other
technologies, fall on a day-to-day teacher and, likewise, how it uses these possibilities, as fits. We focus in this
work over the relationship between textbooks and comics. Thus, we intend to conduct a historical uses of these
tools in Brazil, in order to demonstrate that such methods are not new to teaching, but what makes the difference
is how the teacher uses in the classroom, from his experience of life, his theoretical accumulation, rather than the
tool itself.
Keywords: Methodology; textbooks; history.

Introdução

Para a prática docente, pensar e repensar, problematizar, desconstruir e reconstruir o


saber são atitudes cotidianas, praticamente indissolúveis do ser professor. Se há requisitos
básicos para um professor, o mais significativo deles é, para além dos saberes que possui,
duvidar destes. Isso impossibilita o imobilismo cognitivo, coloca o profissional em campo
desconhecido, de incertezas. Sendo o professor um curioso por natureza – revelando-se dessa
maneira como também um pesquisador, acumulando em sua gênese o consagrado tripé
ensino-pesquisa-extensão, o campo das incertezas não lhe é estranho, pelo contrário: é desta

1
Acadêmico de História na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), bolsista CNPq. Contato:
duduandstv_lg@hotmail.com
2
Doutora em História pela PUCRS, professora de História da Universidade Federal do Rio Grande. Contato:
jul_matos@hotmail.com

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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terra que ele tira o fruto que alimenta sua capacidade como profissional e, acima de tudo,
como humano. Para o professor de História isso é tanto mais grave, visto que se torna, a cada
minuto, mais complexa a sua tarefa.
Para que falemos de uma práxis renovada é necessário nos atermos em instrumentos
que, dialeticamente, interagem entre si e são os principais afetados nesse processo: a
metodologia e a teoria da História. Qual a abordagem que devemos ter com os alunos?
Ensinar sob qual viés teórico e historiográfico? Diante dos atuais debates no campo da
História, é correto utilizar determinada ferramenta ou dar enfoque a determinado fato
histórico em detrimento de outro? São perguntas que pululam na cabeça dos professores e
iniciantes na docência, rendendo debates acalorados e sendo o motivo da existência de várias
cadeiras de cunho pedagógico nos cursos de licenciatura. Tudo muito enriquecedor. Mas algo
se perde neste emaranhado de opiniões, teorias, metodologias e experiências. Há um charme
no “novo”, no “diferente”. Se há o diferente, obviamente há o “igual”, aquilo que
costumeiramente se chama de uma prática “conservadora”, “tradicional” e, num arroubo de
preconceito teórico, “positivista”. Então surgem milhares de fórmulas revolucionárias,
metodologias inovadoras com tecnologia de última geração, teorias que amplificam a visão do
observador tal qual um telescópio. A decepção quando se descobre que a maioria foi
construída e pensada para e em contextos passados e que, poucas trazem algo completamente
novo. O professor de História, na ânsia de melhorar sua prática, de estabelecer um melhor
diálogo com o discente, acaba perdendo de vista toda uma construção do ensino de História e
das práticas docentes.
O que tenho em vista neste artigo não é um empirismo puro e simplesmente, nem
renegar todas as teorias e metodologias construídas até agora. Ele aponta para a necessidade
de, antes de tudo, verificar a condição em que se realiza a prática, o tipo de aluno, o meio em
que o local de ensino se encontra, a condição social dos indivíduos envolvidos, etc. Assim,
escapando das saídas miraculosas e das soluções diferentes e imediatas, retomando as
primeiras lições sobre historiografia e extirpando antigos preconceitos, podemos fazer daquilo
que é “simples” a melhor das experiências de ensino-aprendizagem.
Para expor melhor esta ideia, organizei este artigo em subtítulos: no primeiro,
analisarei as diversas teorias da História que permeiam o fazer do docente deste campo do
conhecimento e como cada uma pode inserir-se no cotidiano escolar; em um segundo
momento será feita a análise de dois livros didáticos com propostas semelhantes, mas que,
diante de seu contexto político, obtiveram diferentes resultados, bem como aceitação por parte
dos professores; por fim, as conclusões prévias do trabalho.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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Portanto, o procedimento metodológico para análise dos livros é a Análise de


Conteúdo. Para embasar o argumento, proponho um debate com vários autores da mesma
temática (educação, livros didáticos e ensino de História).
Teorias e Metodologias: conceitos e preconceitos

A Pedagogia crítica, encabeçada por Paulo Freire, representou grande mudança de


paradigmas no cenário educacional brasileiro. Engajados em fazer uma revisão da prática
perpetuada durante o regime civil-militar, a sociedade e, em especial, os professores começam
a pôr em prática o que Paulo Freire teoriza sob o conceito de "Educação Popular":

É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando,


desde o princípio mesmo de sua experiência, se convença definitivamente de que
ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua
produção ou sua construção (FREIRE, 2011, p. 24).

Essa “transmissão de conhecimentos” prontos e acabados, como se o discente fosse


apenas um receptáculo em que o professor teria a missão humanizadora de colocar saberes
selecionados de forma a moldar o cidadão perfeito é identificado com o período de 1964 a
1985. De fato, as condições políticas do Brasil à época influenciavam diretamente na matriz
educacional brasileira: o dever cívico, o furor patriótico e o nacionalismo eram estimulados,
como bem aponta Martins (2001). Com o fim deste período, a “herança maldita” no campo da
educação começa a ser combatida. Ganham ressalto escritos de cunho materialista e autores
marxistas, como o próprio Freire, com o objetivo de renovar uma prática educacional viciada
pelo civismo exacerbado. Estas questões estão em pauta mesmo na elaboração da nova
Constituição em 1988, com o debate acerca do Plano Nacional de Educação (PNE) e os
sucessivos embates entre os governos da era republicana democrática pós-1990. Neste
momento mexer com as políticas públicas da educação é tanto necessário quanto perigoso: o
campo é um barril de pólvora e qualquer passo em falso pode acabar em terrível desastre para
o agente político. Neste tenso ambiente, os professores tentam adaptar-se à nova realidade
democrática, às novas tecnologias, à complexidade de tratar com alunos de diferentes
realidades sociais, às conhecidas mazelas do sistema de ensino brasileiro (turmas cheias,
infraestrutura precária, salários baixos, criminalidade e a influência do tráfico de
entorpecentes no ambiente escolar, etc.) e a toda novidade metodológica e teórica no campo
da educação. Este movimento ocorre ininterruptamente até os dias atuais, visto a profusão de
trabalhos e pesquisas sobre ensino, bem como eventos abordando a temática e a importância
que os programas de formação continuada têm na carreira do docente. Tudo isto com vistas a

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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combater o “modo tradicional” de educação, identificado, por vezes, como “positivista” no


campo histórico. Freire, o vanguardista da renovação, alerta para o erro: “O erro na verdade
não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto do
seu ponto de vista, é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele.” (FREIRE, 2011,
p. 16)
Esta crítica ao modelo metódico/historicista é briga antiga, comprada pelos
materialistas marxistas no fim do século XIX, contrariados com a importância que os estudos
dos membros da Revue de Questions Historiques davam à “nação”, foi também incorporada
na década de 1930, pela chamada “Nova História” que os integrantes dos Annales
tencionavam. Temos, então, o confronto de ideias entre duas obras monumentais para o fazer
historiográfico: Introduction Aux Études Historiques, de C. Langlois e C. Seignobos, a bíblia
dos metódicos, e Apologie de l’histoire, de Marc Bloch, o corão da historiografia pós-1940.
Importante compreender também o contexto de produção das obras: a primeira, diante de uma
Europa imponente, convidativa à construção de grandes mitos glorificantes; a segunda, uma
Europa desacreditada e uma disciplina histórica em crise, num cenário de destruição e
pobreza pós-primeira guerra mundial e na iminência de outra. Vemos assim a decadência do
modelo positivista de sociedade, ou seja, o progresso até a sociedade positiva, elaborado por
Comte no século XVIII e que habitava os sonhos da intelligentsia europeia até então. Após as
guerras, tudo que fosse identificado com o positivismo (cientificismo, método, nação,
diplomacia, progresso) foi minado por críticas. Para Seignobos sobra, então, a alcunha de
“positivista”. Freitas questiona esta rotulação:

Quanto à adjetivação ‘positivista’, atribuída a Seignobos, tanto Prost quanto Charles


são enfáticos: Seignobos não se adequa ao rótulo com perfeição. O autor não pode
ser criticado por um falso ‘culto aos documentos’. Ele próprio concebia a
documentação como meio e não como fim. Não seguiu estritamente os passos do
método e foi obrigado a adaptá-los à sua área de estudos – história moderna. Além
disso, Seignobos criticava os alemães por negligenciarem a composição,
privilegiando a publicação e a crítica de textos (FREITAS, 2006, p. 277).

Entende-se que, para evitar tipificações, é necessária uma profunda pesquisa sobre o
autor. Mas ao longo dos combates pela história (para usar o título de uma obra das mais
críticas aos metódicos, elaborada por Lucien Febvre) cristalizou-se a repulsa pela
historiografia de Seignobos. Aparentemente, a Sociologia saiu vitoriosa:

Esse conflito em torno de métodos denuncia o confronto entre duas candidatas à


hegemonia: a história – que queria conservar, difundir e afirmar sua autoridade não
só sobre ramos da antropologia, demografia, geografia, como também em estudos
dos hábitos e instituições – e a jovem sociologia que já ensaiava sua autonomia
(FREITAS, 2006, p. 269).

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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A pesquisa acurada sobre a obra dos metódicos nos põe alguns paradigmas, sem
dúvida: a pretensão da história universal e da verdade histórica; o fim da disciplina como um
acabamento das ciências políticas e sociais, subjugando todas as ciências humanas a um
cabresto histórico-metódico; o fetiche pelas “origens”, a historicização; o euro-centrismo; a
neutralidade imprescindível do fazer histórico. Problemáticas abordadas incessantemente
pelos críticos. Mas são seus representantes que fundaram noções de pesquisa e métodos dos
quais não se pode separar do fazer do historiador atual: a tríade heurística, análise e síntese; a
noção de fonte histórica, sendo estas “os traços deixados pelos homens”; o caráter indireto do
saber histórico, pois sempre há entre o historiador e o saber uma fonte, um intermediário que
repassa informações; a fundação da História como ciência pela capacidade de generalização.
Alega-se, como última crítica, o estilo “seco e analítico” dos metódicos. Devemos atentar, no
entanto, que
[...] se forem observadas a partir do contexto institucional do período – escolhas
pessoais, responsabilidades com o sistema de ensino -, as contradições perdem
sentido, pois foi, segundo Prost, o próprio Seignobos quem optou por aplicar as
operações do conhecimento histórico – análise e síntese – à didática. Toda a sua
carreira foi voltada para o ensino. Sua epistemologia era, portanto, uma
epistemologia de professor: muito diferente da geração dos Annales já bem situada
institucionalmente para praticar uma epistemologia do pesquisador (FREITAS,
2006, p. 276).

Seignobos dava importância para o estritamente factual como forma de valorizar a


ciência histórica frente às outras ciências no campo do ensino, preocupação compreensível à
época de seus escritos e que não será a das gerações posteriores. A Escola Metódica é
fundação e institucionalização, e não reforma, como os Annales, ou revolução, como as
tendências “pós-modernas”, “relativistas”, “neo-kantianas” – denominações que também não
passam de rotulações com fim depreciativo. A crítica ao modelo metódico/historicista não só
é importante como também necessária; mas quando se torna julgamento, valoração, como se
houvesse um “tribunal historiográfico”, perde sua função enriquecedora do conhecimento,
tornando-se um preconceito teórico.
Passando para uma segunda via, percebemos o quanto a banalização das teorias e
metodologias históricas distorce a compreensão do conhecimento historiográfico. Pois um
docente que não cumpre com sua função (a saber, falta muitas aulas, não demonstra interesse,
trabalha prioritariamente com o livro didático e com aulas expositivas) é visto como
“antiquado”, “atrasado”, “tradicional”. Tudo isto se resume em um sinônimo, repetido à
exaustão: positivista. Mesmo historiadores com ênfase no político e/ou econômico,
materialistas de toda ordem, são vistos como “positivistas”.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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O rótulo ganha força e o sentido teórico do conceito (pois conceito é sumamente


diferente de rótulo) perde-se nas brumas da ignorância. Ora, para o primeiro caso, a resposta é
simples: um metódico, no mínimo, tem uma disciplina definida, um método, uma visão
histórica, conhecimento sobre a causa, etc. É diferente um professor desqualificado, de um
professor com determinada concepção teórica. Isso nos leva ao segundo caso: a especialidade
de um determinado professor ser o político ou econômico não faz dele um incapacitado para
tratar de outras questões. Ele aborda o conhecimento dentro do seu porto seguro, que é esta
área. Se isto não surte efeito no que tange ao processo de ensino-aprendizagem, é o momento
dos alunos demonstrarem insatisfação – e eles a demonstram, de variadas formas. Cabe ao
docente captar estes sinais e repensar seu ofício. O que deve ser rejeitado é a ortodoxia e a má
qualificação, o despreparo.
Mas por que todo este preâmbulo suscitando um debate que certamente renderá
opiniões diversas? Antes de partir para a análise das fontes propriamente ditas, gostaria de
ressaltar a questão da complexidade histórica. Como Hobsbawm, com espetacular felicidade,
aponta: “pelo menos em parte, a história não é mais nenhuma opção intelectual amena. Mas
esse é um detalhe relativamente trivial.” (HOBSBAWM, 2013, p. 89). A História fica mais
complexa a cada minuto que passa. As ações humanas e os vestígios deixados por elas, base
de todo o trabalho de um historiador, acumulam-se por toda parte, inclusive em um mundo
totalmente paralelo – ou alguém há de negar que a Internet tornou-se um grande museu para
aqueles sedentos pela contemporaneidade? Torna-se também mais complexa a tarefa do
docente, não mais o dono do saber, mas aquele que fornece os instrumentos e as capacidades
necessárias para o aluno lidar com as informações e os conhecimentos, que estão por toda a
parte. Em uma palavra: interpretação.
Edgar Morin trata com singularidade da questão. Argumenta que a marca da
contemporaneidade no que tange o tratamento do saber é a “hiperespecialização”, ou seja, os
estudiosos fazem ciência por “migalhas” e perdem uma noção macro, impossibilitados assim
de fazer ligações com o real, com a sociedade. Dirá que

[...] a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços


separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as
possibilidades de compreensão e reflexão, eliminando assim as oportunidades de um
julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo (MORIN, 2001, p. 14).

Esse reducionismo é também relacionado por Morin com o individualismo presente na


sociedade contemporânea, no que ele chama de “enfraquecimento do senso de
responsabilidade [...] o enfraquecimento da solidariedade” (MORIN, p. 18). Muitas pessoas se

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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isolam, dificultando o diálogo fundante entre as partes, bem como entre diferentes campos do
saber. Isto, naturalmente, irá influenciar diretamente o processo de ensino-aprendizagem, na
medida em que

Na escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar
as disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os problemas, em
vez de reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a
separar o que está ligado; a decompor, e não a recompor; e a eliminar tudo que causa
desordens ou contradições em nosso entendimento (MORIN, 2001, p. 15).

Neste sentido, da complexidade do mundo em que atuamos, procuro atentar o quão


importante é o professor, ou o aspirante a tal função, ser aberto a qualquer proposta
metodológica, pois não é o “novo” necessariamente melhor, muito menos ferramentas e
atividades diferentes, bem como a aula dita “tradicional” pode não render bons estudos. É
tudo uma questão de tato e pesquisa meticulosa do docente sobre o espaço em que está
ministrando a aula, as oportunidades que lhe são oferecidas e as que ele pode criar. Uma aula
“revolucionária”, que sensibiliza o aluno e o faz crescer como pessoa e cidadão, não é a que
utiliza das últimas tecnologias ou a sabatina tradicional; é aquela em que ele se vê como
produtor e produto do conhecimento, em que há identificação com o que está aprendendo.
Sem preconceitos teóricos, portanto:

[...] no fim das contas, acabamos num safári em que a ‘caça’ é de elementos que
permitam informar se o objeto estudado é positivista/tradicional, marxista ou ligado
à história nova que se reivindica como filiada à École des Annales, ou, de maneira
ainda mais simplista, se o objeto pode ser catalogado como conservador ou
renovado (CERRI, 1997, p. 45).

Acabar com o preconceituar infundado é fundamental para que nossas práticas como
professores tenham um salto qualitativo.

Análise das fontes: o livro didático de Julierme de Abreu e Castro

As fontes que utilizarei para embasar meus argumentos são dois livros didáticos:
“História”, de José Roberto Martins Ferreira, coleção lançada pela editora FTD em 1989; e
“História do Brasil para Estudos Sociais”, coleção lançada pelo IBEP em 1975. As duas
coleções abrangem o Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries). Assim, pretendo demonstrar que
uma metodologia inovadora à época – a utilização de Histórias em Quadrinhos nos livros
didáticos – pode revelar-se engessada ou sendo um instrumento utilizado aquém do seu
potencial. Antes da análise da fonte propriamente dita, temos que levar em conta a estrutura
que a envolve, pois o objeto não o é sozinho: a fonte está inserida em determinado momento
histórico, e seus símbolos e estruturas convergem necessariamente para esta realidade.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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Fica nítido, exposta as datas de publicação das coleções, que elas estão separadas por
quase duas décadas, de intensas mudanças no cenário político e ideológico brasileiro. Os
livros de Julierme de Abreu e Castro estão inseridos na época de forte repressão do regime
civil-militar brasileiro. A disciplina de História havia sido extinguida do quadro do Ensino
Fundamental, juntamente com outras da área de Ciências Humanas, reorganizadas em uma
ampla disciplina denominada “Estudos Sociais”, no campo da legislação, a Lei 5692/71. Este
novo ordenamento das disciplinas foi um baque para os docentes da área, perdendo sua
autonomia como historiadores, geógrafos ou sociólogos, para ministrar aulas sobre assuntos
que não estavam preparados. Este projeto, no entanto, vinha de longo prazo. Itamar Fraco
analisa como Murilo Mendes, catedrático das décadas de 1930 e 1940, inspirado por ideias
pedagógicas americanistas, planejava uma reforma das Ciências Humanas já em 1935:

As finalidades do ensino de história preconizadas pelos especialistas – dos


professores de histórias e, notadamente, dos historiadores de ofício – foram
examinadas e logo descartadas. Numa sociedade em mudança, deveria vigorar o
ponto de vista ‘rigorosamente educacional’, os critérios dos pedagogos já
explicitados: os interesses da personalidade do adolescente, as exigências de uma
democracia (ITAMAR, 2006, p. 235-236).

Nestes novos paradigmas, para Murilo, a História perdia função como saber
autônomo: somente com a integração das outras ciências ela perderia seu caráter de “culto aos
vultos do passado” para tornar o mundo inteligível ao discente através da experiência
histórica; assim,
[...] o ensino de história não teria valor em si. Sua importância, e daí a sua
finalidade, seriam justificadas pelo necessário predomínio das ciências sociais no
currículo do secundário – história, geografia, economia, sociologia, educação cívica
e ciência política. [...] [a História] deveria incorporar a ‘finalidade máxima’ dos
estudos sociais, qual seja, a de ‘conseguir uma compreensão e uma apreciação do
ambiente social do aluno, de forma a que ele possa contribuir eficazmente no
desenvolvimento do bem estar coletivo’ (ITAMAR, 2006, p. 236).

A História manteria seu posto de ciência máxima, designado por Marx e Seignobos,
mas teria de dividir espaço com as outras ciências sociais, pois só assim seu ensino teria um
objetivo condizente com a nova sociedade democrática que se pretendia fundar. Porém,
Murilo Mendes teria de esperar seu projeto pedagógico concretizar-se quatro décadas depois
de seus escritos, com significativas mudanças de rumo. A aproximação com as ideias norte-
americanas eram uma base em comum. Porém, os fins não eram mais “democráticos”, mas
sim de forma a “aumentar a eficiência” dos estudos, bem como para o melhor exercício da
cidadania. O ensino deveria seguir as diretrizes ideológicas do período, que eram a ordem, a
disciplinarização e a não valorização da opinião do aluno, conforme a ordem política
autoritária e centralizadora. Para tanto, foram despendidas medidas econômicas que

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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facilitariam esta nova ordenação das disciplinas, como cursos preparatórios para os
professores, totalmente pagos pelo Estado e isenções fiscais para editoras que elaborassem
livros didáticos dentro dos padrões do regime. É o caso do Instituto Brasileiro de Edições
Pedagógicas (IBEP), fundado em 1965, que existe até os dias atuais. Em texto de
apresentação da editora, esta se orgulha de ter “capital genuinamente brasileiro”, como não
poderia ser diferente, pois sua sustentação deu-se em um período de intensa nacionalização de
empresas brasileiras, de apostar e beneficiar aquelas que nasceram na pátria. Assim, o IBEP
constrói sua história como editora patrocinando as obras didáticas e paradidáticas no regime
militar e, como está no próprio texto já referenciado anteriormente, “participou de todos os
programas educacionais do governo para o fornecimento de livros didáticos desde a sua
fundação.” Esta é a editora pela qual Julierme lançará sua obra.
Julierme de Abreu e Castro, bacharel em História, Geografia, Antropologia e
Geologia, possuía já na época do lançamento da fonte supracitada alguma experiência no
ramo das obras didáticas. Também lecionou em várias instituições durante sua carreira,
realizando pesquisas e publicando estudos nas diversas áreas em que é formado. O surgimento
da disciplina de Estudos Sociais facilitou sua inserção no mercado das obras didáticas, visto
ser ele um dos poucos acadêmicos a transitar com facilidade por diversas áreas do
conhecimento e ainda ter experiência como docente. E a obra aqui analisada de Julierme
realmente foi distinta para sua época: um livro didático de “História do Brasil” inteiramente
concebido no formato de Histórias em Quadrinhos. Com a ajuda dos desenhos de Rodolfo
Zalla e Eugênio Colonnese, a proposta inovadora foi lançada para as escolas de todo o país.
No início dos livros, há sempre a “carta ao professor”, uma espécie de editorial em que o
autor justifica-se por ter elaborado o livro com determinada proposta. Julierme enfatiza que a
“guerra santa às revistas de historietas em quadrinhos” não faz mais sentido no campo
educacional, pois “A técnica do quadrinho é válida tanto para a historieta do pato como para
os mais ‘sérios’ temas de qualquer campo da educação”, e que esta técnica teria vantagem
sobre as enciclopédicas obras tradicionais, pois é “tão eficiente quanto um bom filme”,
atraindo a atenção do mais disperso dos alunos (CASTRO, 1975).
Julierme considera a tática viável com alunos imaturos e que, gradualmente, eles vão
homogeneamente amadurecendo a fim de compreenderem signos mais complexos. Assim, há
a infantilização das Histórias em Quadrinhos. Esse é um detalhe crucial para entendermos a
crítica aqui feita: a falta de complexidade atribuída a um objeto que reúne diferentes tipos de
narrativas como as HQ’s. Vergueiro nos elucida a questão:

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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[...] as revistas de histórias em quadrinhos versam sobre os mais diferentes temas,


sendo facilmente aplicáveis em qualquer área. [...] Elas podem ser utilizadas tanto
como reforço a pontos específicos do programa como para propiciar exemplos de
aplicação dos conceitos teóricos desenvolvidos em aula. [...] essas informações são
absorvidas na própria linguagem dos estudantes, muitas vezes dispensando
demoradas e tediosas explicações por parte dos professores (VERGUEIRO, 2009, p.
22).

A capacidade de destrinchar dois ou mais tipos de narrativas imprescindíveis para a


fruição da HQ é um quesito básico a ser considerado. Depende de como a obra vai estimular
estes sentidos e as conexões que eles constroem.
Marco Tulio, em sua dissertação de mestrado, faz crítica à obra de Julierme no que
tange à visão histórica contida, factual e política. É válida, porém não é o suficiente para
desmerecer a obra, visto que as condições que o regime em vigor no Brasil impunha não
possibilitavam outra saída. Nossa crítica é no sentido do aproveitamento do potencial
dinâmico da HQ, onde a obra falha espetacularmente. Os desenhos são estáticos, não há
movimentação dos “personagens” (que são nada mais do que sujeitos históricos destacados na
linha do tempo pelo autor) nos quadros, nem sequência de cenários, um enredo propriamente
dito. Assim, a proposta inovadora resume-se a retratos de cenários históricos com uma grande
caixa de texto explicando o momento histórico, suas nuances e quem são os representados
graficamente no quadro. Não há o que interpretar, nem espaço para a problemática essencial,
a dúvida ou o questionamento. Os desenhos servem, assim, como mera ilustração, sem
maiores signos a serem desvendados pelo discente. Também não á verossimilhança por parte
do leitor, fator fundamental para o entendimento e a apreciação de uma HQ, pois o traço
procura ser o mais próximo do “real”, mas acaba pecando na imobilidade. Dom Pedro II,
Napoleão, Tiradentes, Robespierre, todos parecem estátuas do passado que, não possuindo
significado aparente, necessitam de uma caixa de texto para dar-lhes uma razão de ser.
Um último aspecto que pretendo abordar sobre a obra de Julierme é a iteratividade,
como definida por Umberto Eco:

Se examinarmos o esquema iterativo do ponto de vista estrutural, perceberemos que


nos encontramos em presença de uma típica mensagem de alta redundância. [...] O
gosto pelo esquema iterativo apresenta-se, portanto, como um gosto pela
redundância. A fome da narrativa de entretenimento baseada nesses mecanismos é
uma fome de redundância. Sob esse aspecto, a maior parte da narrativa de massa é
uma narrativa marcada pela redundância (ECO, 2008, p. 269).

Essa redundância se cristaliza na obra de Julierme pela repetição incessante de fatos históricos
e da simplificação da “história dos vitoriosos” e que estes seriam os exemplos morais a serem
seguidos.
[...] o sentido da tradição, as normas do viver associado, os princípios morais, as
regras de comportamento operativo válidas no âmbito da sociedade burguesa

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oitocentista, [...] tudo isso constituía um sistema de comunicações previsíveis que o


sistema social emitia endereçado aos seus membros, e que permitiam que a vida
transcorresse sem saltos imprevistos, sem perturbação dos quadros de valores (ECO,
2008, p. 270).

A percepção destes princípios, no desenrolar da obra também são frutos do contexto


político-ideológico do momento.
A iteratividade também aparece nos exercícios do livro; a parte por essência interativa
da obra. A contradição se dá no momento em que a atividade proposta pela obra é o aluno
transcrever o diálogo de dois sujeitos históricos presentes no livro.
Assim, por uma série de fatores convergentes, a promissora ideia de Julierme perde
força didático-pedagógica. Tenta um discurso interdisciplinar – a obra inicia ressaltando a
importância da Geografia e do espaço, além do tempo, para se pensar a história,
assemelhando-se o argumento ao da GeoHistória formulada por Fernand Braudel – mas
esquece-o no decorrer da obra; propõe um novo tipo de linguagem – as HQ’s – mas não
explora todas as suas possibilidades como narrativa e acaba por travesti-la de enciclopédia
histórica ilustrada por desenhos. A utilização das HQ’s, “inovadora”, não quebra antigos
paradigmas, mas, neste caso, é adaptada a eles.

Análise das fontes: o livro didático de José Roberto Martins

A outra obra utilizada aqui como fonte está em um período diametralmente oposto à
de Julierme. “História”, coleção para o Ensino Fundamental (5ª a 8ª série), de José Roberto
Martins, foi lançada pela editora FTD, em 1989, no processo que se chama
“redemocratização” no Brasil. As liberdades políticas haviam voltado; vivia-se no campo do
ensino aquilo que foi apontado no começo deste artigo, uma desconstrução da moral cívica
defendida pelos militares, tendo como base essencial uma virada marxista. Já é perceptível a
mudança no título da obra: não tratamos mais de Estudos Sociais, mas sim da disciplina
autônoma História. A organização curricular ainda carregava alguns esqueletos dos antigos
Estudos Sociais, como Organização Social e Política Brasileira e Educação Moral e Cívica e
toda uma geração de professores formados sob a ótica da integração das disciplinas, mas os
livros didáticos de Estudos Sociais foram gradualmente sendo deixados de lado. Não havia
ainda um programa de livros didáticos de grande proporção, ele só aparece em 1996, na
esteira de várias reformas educacionais, como o PNE (1998) e a LDB (1996).
A FTD é uma editora mais antiga que o IBEP, atravessando boa parte da história
editorial brasileira. Dos livros de gramática para os colégios Maristas no início do século XX

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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para grandes coleções de História no século XXI, permeando várias áreas, principalmente a
literatura infantil e mesmo Estudos Sociais, passou por várias transformações durante sua
trajetória.
José Roberto Martins é licenciado em História, possuindo Mestrado e Doutorado em
Ciências Sociais. Em sua obra é perceptível a sua vertente teórica: o materialismo histórico.
Nos segundo capítulo do livro destinado à 5ª série, está definido que “Para nós que estamos
estudando História, o que interessa são as diferenças sociais, não as físicas.” (MARTINS,
1989, p. 5). Assim, desloca-se a importância do espaço, do geográfico, para as mudanças
sociais ocorridas na sociedade. Outro trecho destacado no livro da 8ª série, sobre a Revolução
Industrial, reforça este ponto:

Entretanto, as conquistas democráticas não melhoraram muito as condições de vida


da população mais pobre. Os operários e os pequenos camponeses eram a maioria,
mas a sociedade era controlada pela burguesia e pela Classe Média. A igualdade
política não tinha trazido a igualdade social (MARTINS, 1989, p. 136).

A grande crítica marxista às revoluções burguesas dos séculos XVIII-XIX: a


democracia republicana havia mantido a desigualdade social gigantesca entre patrão e
operário.
E mesmo revisões historiográficas estão presentes: “De fato, se alguém deveria ser
homenageado pelo descobrimento do Brasil, esse alguém seria os antepassados dos homens
que Cabral encontrou aqui. Na verdade o que Cabral fez foi provar aos europeus que havia
terras nesta parte do mundo” (MARTINS, 1989, p. 61). Ou seja, a desconstrução de um
conceito firmemente estabelecido, o do “descobrimento” do Brasil pelos portugueses. Assim,
realça o papel dos indígenas no processo histórico brasileiro. No livro da 8ª série, designa-se o
período ditatorial como uma “época sombria”. É surpreendente que logo após o fim do regime
tal abordagem já apareça explicitamente. Os exercícios do livro reforçam a questão social:
“Explique: ‘as ideias das pessoas estão ligadas à sociedade e ao grupo social a que
pertencem’.” ou “Explique: ‘as ideias de cada um dependem da sua experiência de vida’.” são
exemplos de atividades comumente propostas pelo livro. O homem é um “ser social”, ou seja,
é a sociedade o determinante para a constituição do homem, como Marx define:

O caráter social é, pois, o caráter geral de todo o movimento; assim como é a própria
sociedade que produz o homem enquanto homem, assim também ela é produzida
por ele. A atividade e o gozo também são sociais, tanto em seu modo de existência,
como em seu conteúdo, atividade social e gozo social (MARX, 1987, p. 175).

Está claro o materialismo de Marx e aplicação destes preceitos por Martins em sua
obra. Mas apenas os apresento aqui como análise indispensável da teoria com que mina fonte
se embasa. A época é diametralmente oposta à de Julierme justamente por permitir a quebra

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 64-78, Jul. 2015


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de paradigmas em livros “oficiais”, autorizados e aprovados por instituições do Estado,


possam circular. Como ressaltado anteriormente, meu objetivo não é valorar metodologias e
teorias. O que considero essencial na obra de Martins que a diferencia de Julierme é a
utilização dos desenhos.
Enquanto em Julierme temos um traço que se aproxima do “real”, aqui temos figura,
não em disposição quadrinística, mas em pontos estratégicos das páginas, de modo a ilustrar e
chamar a atenção para determinada característica ou aspecto do que está se falando; permite
maior sensibilidade no movimento; assim, quando vemos uma série de sombras ao horizonte
andando em uma planície deserta, a maior sensação de movimento do que retratar um
Neanderthal caçando um animal tal qual se imagina a cena real. Cerri (2006) nos aponta as
vantagens da caricatura. “A utilização do traço figurativo e não caricatural tem um
significado, pois esse mecanismo confere maior verossimilhança à história contada.” (CERRI,
2006, p. 3448). Não utilizando dos quadrinhos, só o traço já confere um sentido sequencial
maior, mesmo que as imagens não possuam ligação aparente entre si. Assim, Martins
consegue aproveitar em seu livro didático boa parte do potencial quadrinístico, aguçar a
capacidade da leitura, sem as divisões por quadros. Para isso contribui o texto, que se
complementa a imagem, não a explica. O desenho fala por si, ele emite símbolos próprios a
serem decifrados pelo docente.

Considerações finais

A partir da análise destas fontes e da argumentação apresentada, esperamos ter


elucidado uma questão que inquieta-nos: a necessidade de se ter uma teoria e uma
metodologia definida, mas não a entender como verdade absoluta, pois não é esse em absoluto
o papel delas. É necessário investigar toda a situação em que se dará a prática docente para
que ela obtenha os melhores resultados. Novas tecnologias são atraentes, mas não apagam a
utilidade de métodos já estabelecidos ou de plataformas tradicionais, como livros e o próprio
quadro negro. O livro didático e as Histórias em Quadrinhos são instrumentos válidos para o
processo de ensino-aprendizagem tanto quanto outros. Somente uma utilização
problematizada permite o melhor aproveitamento de cada material. Então, sobre teoria, Rüsen
diria que:

Sua contribuição mais importante para o estudo da história poderia consistir no fato
de que os estudiosos aprendem, no processo mesmo de obtenção da competência
profissional, a não dissociar sua própria subjetividade da objetividade do
pensamento científico, mas sim de emprega-la frutiferamente na construção dessa

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objetividade. A teoria da história pode auxilia-los, pois, a assegurar uma porção de


independência intelectual no trato da experiência histórica (RÜSEN, 2001, p. 42).

A teoria nos permite a fundamentar um olhar próprio sobre a História, a historiografia,


as ações humanas no tempo e no espaço e, principalmente, a problematizar o ocorrido: é essa
a função primordial do historiador e que o professor de História, em qualquer nível do ensino,
deve passar aos seus alunos: que os fatos são questionáveis, que o que passou deve ser
estudado constantemente, visto e revisto. Se a teoria cumprir esse papel, se a metodologia nos
permitir, através de suas ferramentas, a melhor análise da fonte, ela estará cumprindo seu
papel.

Referências

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considerações. IN: EDUCERE – Congresso de Educação da PUCPR. Curitiba: Champagnat,
2006.

CASTRO, Julierme de Abreu. História do Brasil para estudos sociais 5ª / 6ª série. São
Paulo: IBEP, 1975.

CERRI, Luis Fernando. As concepções de história e os cursos de licenciatura. Revista de


história regional, Florianópolis, v.2, n.2, 1997.

ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

FERREIRA, José Roberto Martins. História: 5ª / 6ª / 7ª / 8ª Série. São Paulo: FTD, 1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. 2ª


reimp. da 43ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREITAS, Itamar. Histórias do ensino de história no Brasil (1890-1945). São Cristóvão:


Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2006.

HOBSBAWM, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

MARTINS, Cláudia Regina Kawka. O ensino de História no Paraná, na década de


setenta: práticas de professores. Revista Educar, Curitiba, n. 17, p. 197-213. 2001.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

RÜSEN, Jorn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica.


Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.

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VILELA, Marco Tulio Rodrigues. A utilização dos quadrinhos no Ensino de História:


avanços, desafios e limites. Dissertação de Mestrado. Faculdade Metodista de São Paulo. São
Bernardo do Campo, fevereiro de 2012.

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Documentos escolares: organização e usos pedagógicos (um exercício no acervo do
CAp/UFRGS)

Alejandro Romero1
Benito Bisso Schmidt2
Carlos Jarenkow3
João Paulo Buchholz4

Resumo: O presente artigo pretende trabalhar o uso de fontes primárias em sala de aula no ensino de história.
Fazendo parte do subprojeto história do Pibid UFRGS 2014-2018, são pesquisadas e refletidas as possibilidades e
potencialidades do uso pedagógico de documentos históricos oriundos da própria instituição escolar e em que medida
estes podem contribuir para uma maior problematização dos conteúdos que estão sendo trabalhados na sala de aula,
permitindo uma compreensão qualitativamente melhor da complexidade da produção de conhecimento histórico. A
título de exemplo, neste artigo são abordados especialmente os temas referentes à ditadura militar e ao imperialismo
cultural nas décadas de 60 e 70.
Palavras-chave: arquivos escolares – documentos históricos – ditadura – dominação cultural – ensino de história.

Abstract: This article intends to work using primary sources in the classroom for teaching history. Part of the
subproject História of the PIBID UFRGS 2014-2018, are researched and reflected the possibilities and potential of
pedagogical use of historical documents coming from school institution itself and to what extent they can contribute
to greater questioning of the contents that are being worked on in the classroom, allowing a qualitatively better
understanding of the complexity of the production of historical knowledge. For example, in this article are
particularly address issues related to the military dictatorship and cultural imperialism in the 60s and 70s.
Keywords: school archives – historical documents – dictatorship – cultural domination – teaching of history.

Desde o primeiro semestre de 2014, um grupo ligado ao subprojeto História do Programa


Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) vem atuando junto ao Colégio de Aplicação dessa instituição (doravante CAp). O
foco geral das atividades deste subprojeto são as articulações entre memórias escolares, relações
de poder (com ênfase nas étnico-raciais, de gênero, de pertencimento religioso e de classe) e
ensino de História. No caso específico do CAp, tais questões se mostram relevantes para
entendermos a situação da escola hoje, bem como sua (falta de) identidade institucional. Por

1
Bolsista PIBID/UFRGS. Contato: allejo.romero@gmail.com
2
Doutor em História, docente da UFRGS e coordenador PIBID/UFRGS-CAp. Contato: benitobs@terra.com.br
3
Bolsista PIBID/UFRGS. Contato: carlos.jarenkow@gmail.com
4
Bolsista PIBID/UFRGS. Contato: joao.buchholz@gmail.com
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muito tempo, de acordo com os indícios disponíveis, sobretudo depoimentos e práticas


comemorativas, o colégio, criado em 1954, representava-se e apresentava-se como uma
“instituição diferenciada”, que, por sua ligação estreita com a UFRGS, era um laboratório de
práticas pedagógicas inovadoras e avançadas, abrigando alunos que se distinguiam da média por
sua inteligência e criatividade. Esses últimos, em consonância com tal imaginário, durante seu
período escolar, e mesmo após ele, estabeleciam fortes vínculos “de turma”, do tipo “nós, do
Colégio de Aplicação”, o que até hoje se manifesta em atividades comemorativas ao ano de
formatura ou em aniversários redondos do estabelecimento.
Porém, nas últimas décadas, percebe-se um abandono dessa representação indenitária,
motivado, ao que parece, especialmente por dois acontecimentos: a mudança geográfica do CAp
e a alteração na forma de recrutamento dos alunos. Até a década de 1990, o Colégio funcionou no
mesmo prédio da Faculdade de Educação, no centro de Porto Alegre, o que concretizava
espacialmente a ligação do primeiro com as “práticas pedagógicas inovadoras” desenvolvidas
pela segunda. A partir deste período, o estabelecimento transferiu-se para o Campus do Vale,
distante do centro, com mais independência e também, pode-se dizer, mais isolado do conjunto
da Universidade. No que tange à seleção dos discentes, essa foi modificada também nos anos 90,
de prova para sorteio, o que implicou uma forte mudança no perfil do alunado: daquele que era
aprovado em complicados testes psicotécnicos e de conhecimento (e que, portanto, tendia-se a
ver como especial) para o escolhido aleatoriamente.
A partir da fala de alguns docentes do CAp, percebe-se que tais transformações fizeram
com que a escola deixasse de ter uma identidade institucional específica e passasse a ser
percebida, em especial, por sua heterogeneidade, principalmente em relação ao corpo discente, já
que na mesma sala encontramos filhos de classes sociais bem diferenciadas, incluindo-se, por
exemplo, desde aqueles provenientes de camadas médias intelectualizadas (filhos de professores
universitários) até alunos oriundos de grupos populares (filhos dos moradores das “vilas”
próximas ao Campus do Vale). Tal situação, por sua peculiaridade em um cenário de forte
segregação social nas escolas, se constitui em objeto de interesse para a equipe do subprojeto
História do CAp, por propiciar, potencialmente, uma rica discussão sobre a “tríade” memórias
escolares/relações de poder/ensino de história.
Parece-nos significativo ressaltar que não é nosso objetivo construir ou, muito menos,
“resgatar” uma identidade para a escola. Sabemos que as identidades são relacionais,

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 79-93, Jul. 2015


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historicamente construídas e em constante transformação, sujeitas a usos, abusos, tensões e


conflitos. Nossa proposta é muito mais compreender de que maneira se constituiu a “não
identidade” atual do Colégio e sua situação de receptáculo da heterogeneidade e como tal
processo pode ser matéria de atividades pedagógicas no campo da História.
A fim de darmos conta minimamente deste desafio e de compreendermos com mais
refinamento tal processo, indo além da simples “impressão”, resolvemos exercitar o ofício do
historiador entre coordenadores, supervisor e bolsistas do Pibid - História que atuam no CAp. E
tal exercício começou com a análise dos arquivos do Colégio. Tivemos acesso inicialmente aos
documentos da Comissão de Ensino da instituição, originalmente Gabinete de Ensino. Essa
documentação compreende documentos como exemplos de provas de seleção, atas de reunião,
pareceres de conselhos de classe, relatórios de acompanhamento psicológico, entre outros, e tem
como datas-limite o ano de 1954 até os anos 2000, sendo que nosso foco de atenção na pesquisa
desenvolvida até agora tem sido o intervalo entre 1954 e 1990. Nossa tarefa inicial foi então
reconhecer a documentação, higienizar e desmetalizar o material e organizá-lo segundo sua
proveniência, seus tipos documentais e sua ordem cronológica. Posteriormente, prosseguiremos
organizando o material das comissões de Pesquisa e de Ensino, também colocadas à nossa
disposição pela Direção do CAp. Desse trabalho, pretendemos ter como resultados um banco de
dados que permita localizar rapidamente o material desejado, tanto pela direção, para fins
administrativos, quanto pelos professores, estagiários e bolsistas interessados em utilizar os
documentos contidos no acervo com fins pedagógicos, especialmente nas aulas de História.
Na continuidade do trabalho, pretendemos elaborar e executar um projeto de Memorial
para o CAp que não seja meramente celebrativo nem se converta em um “gabinete de
curiosidades”, mas que possa efetivamente auxiliar a instituição a pensar sobre si,
compreendendo certos caminhos que conduziram a sua configuração atual. Pareceu-nos
apropriado que a linha mestra desse memorial seja justamente a diversidade, as múltiplas
identidades que convivem e se chocam no quotidiano escolar, configuradas por variadas relações
de poder e de pertencimento. Assim, reencontramos o foco temático de nosso Pibid.
Na constituição deste Memorial, não nos limitaremos aos documentos oficiais da
instituição, mas buscaremos outros tipos de fontes e acervos, incluindo-se, por exemplo,
fotografias, cultura material, depoimentos e documentação privada.

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Neste artigo, queremos nos referir especialmente aos usos pedagógicos que podem ser
feitos dessa documentação oficial, produzida pelo próprio colégio originalmente para fins
administrativos. Tais documentos - como atas, projetos, correspondências, modelos de provas,
relatórios, etc. - aparentemente tão áridos, aborrecidos e opacos, podem se revelar muito
estimulantes quando contextualizados e interrogados desde o ponto de vista histórico. Afinal,
como sabemos muito bem, ao menos desde o estabelecimento da École des Annales, os
documentos só falam quando perguntados pelos historiadores. Esse exercício de análise de
documentos, como queremos mostrar, pode ser bastante proveitoso nas aulas de História, tanto
para dar conta de determinados “conteúdos”, quanto, e principalmente a nosso ver, para permitir
aos alunos compreender como se constrói o conhecimento histórico, com suas possibilidades e
limites. Obviamente o uso de documentos nas aulas de História não é nenhuma novidade,
servindo esses, por vezes, como mera ilustração ou “prova da verdade” de determinadas análises,
e, nos melhores casos, como material provocador de reflexões e debates. Porém, queremos
insistir na potencialidade do uso pedagógico de documentos escolares, seguidamente menos
“monumentais” que uma Carta de Pero Vaz de Caminha ou uma notícia de jornal sobre a
Segunda Guerra Mundial, só para citar alguns exemplos frequentes nos livros didáticos, mas
certamente ricos por dizerem respeito ao próprio espaço escolar onde transita o discente.
Para concretizarmos a nossa proposta, apresentaremos inicialmente uma breve reflexão
sobre o documento histórico e seu uso em sala de aula. A seguir, traremos dois exemplos de
documentos localizados no Fundo Comissão de Ensino CAp-UFRGS, seguidos de sugestões para
seu uso nas aulas de História. Desta forma, esperamos alertar para a variedade e riqueza destes
materiais e para seu potencial como recurso didático.

O documento nas aulas de História: usos e abusos

Nas últimas décadas o ensino de história vem transformando-se de modo a incorporar


novas linguagens que facilitem e enriqueçam o aprendizado e, de certa forma, permitam a
compreensão da complexidade da história, tanto enquanto processo quanto como forma de
conhecimento do mundo. Nesse movimento, verifica-se a inclusão de novas mídias como
músicas, filmes, internet, obras de ficção, jornais, etc.; de novas atividades como exercícios
diferenciados, jogos, brincadeiras, teatro e também de novas abordagens que permitem estudar

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 79-93, Jul. 2015


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História a partir de outros pontos de vista em relação aos métodos tradicionais de ensino, como a
simples aula expositiva.
Acompanhando esse processo, os documentos considerados históricos – levando em conta
que todo documento pode ser histórico dependendo da pergunta que a ele é feita - entram no rol
desses novos elementos com a proposição de conferir não apenas vida e clareza, como também
complexidade às aulas de História. Tal valoração do documento no ensino de História tem sido
explorada pelos livros didáticos, porém seguidamente, apenas sob a forma de “boxes” onde
alguns documentos surgem – na íntegra ou fragmentados – para reforçar ou “comprovar” as
afirmações feitas na parte principal dessas publicações; esse mesmo caso ainda aplica-se às
imagens, que servem, em muitos casos, somente para reafirmar em outra linguagem o texto
escrito. Postura semelhante para com o documento é assumida, muitas vezes, quando o docente
acaba por utilizá-lo para comprovar a veracidade das informações de sua aula expositiva, como se
dissesse: “Vejam! O que eu estou falando é verdade, olhem só este registro que comprova!”.
Contudo, este tipo de recurso ao documento, executado tanto pelos livros didáticos quanto pelos
docentes, perpetua uma relação com as fontes históricas que há muito foi abandonada pela
história acadêmica: a noção de correspondência direta entre o relato e o fato. Em tal perspectiva –
que em muito se assemelha à concepção de história dita “tradicional” – o documento surge como
uma evidência, uma verdade advinda diretamente do passado que comprova o relato sobre a
História.
Podemos incluir essa “invasão” dos documentos no ensino de História no mesmo
movimento da “revolução documental” que, na academia, transformou o conceito de documento
histórico ao trazer novos temas e novos atores à agenda de pesquisa do historiador. Se a história
das mentalidades, do cotidiano, do íntimo, das relações de poder, dos subalternos, só para citar
alguns exemplos, ganharam repercussão gigantesca na produção histórica das últimas décadas do
século XX, o mesmo pode ser afirmado em relação a tipos de documentos que em muito se
diferenciam do tradicional documento “oficial” ou político-diplomático. A própria noção de
documento histórico abriu-se completamente para novos olhares. Nessa revolução, alguns
estudiosos tiveram grande importância, como Michael Foucault (1969) e Jacques Le Goff (1988),
os quais debateram a questão do documento/monumento. Nilton Pereira e Fernando Seffner ao
tratarem da questão, sintetizaram que:

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Os documentos são monumentos que as gerações anteriores deixaram. Eles são


construções a partir de onde os homens procuraram imprimir uma imagem de si mesmos
para as gerações futuras. Desde o início, eles são monumentos construídos, nunca rastros
deixados ao acaso de modo acidental. (PEREIRA e SEFFNER, 2008, p. 116).
Se partirmos dessa premissa, a persistência da ideia de uma correspondência relato/fato no
ensino de História hoje representa um descompasso típico dos diferentes tempos entre a pesquisa
histórica, a história ensinada na academia e a aula de história no ensino básico. É preciso,
acreditamos, que o documento utilizado em sala de aula não sirva para reforçar o status de
verdade da aula expositiva do professor, mas sim para promover interrogações, questionamentos
sobre as condições de produção do artefato em questão e do próprio conhecimento histórico. Isto
é, problematizar as circunstâncias políticas, econômicas, sociais e culturais de surgimento,
preservação e utilização dos “vestígios do passado”, lançar questões aos documentos e promover
o entendimento de que esses, por si mesmos não dizem nada “em absoluto”, só se tornando fontes
quando interrogados desde o presente.
Foi tomando por base essa forma de olhar e explorar os documentos em sala de aula que
pensamos a utilização dos arquivos da própria instituição de ensino como material pedagógico.
Como dissemos antes, a partir da organização dos documentos da Comissão de Ensino do CAp,
verificaram-se as potencialidades do material encontrado e organizado para tratar de diversas
temáticas como moral, gênero, família, comunidade, política, circularidade e dominação cultural,
entre outros objetivos; tudo isso de modo a verificar as continuidades e as rupturas dessas
categorias no tempo, ou seja, historicizando-as.
Se escolhermos, por exemplo, em meio aos vários documentos presentes nos arquivos
escolares, uma prova de determinada disciplina, certo instrumento de seleção de uma escola, ou
ainda algum teste psicológico ou de lógica oriundos dessa instituição, podemos, com base em tais
materiais, e através de certas questões, lançar hipóteses sobre a própria história da educação em
sua articulação com os conflitos políticos e sociais em determinado período histórico. Esse olhar
a partir de fontes da instituição de ensino, além de muito frutífero, permite que o estudante tenha
à sua disposição um objeto mais relacionado com a sua experiência (no caso, a escolar) do que,
por exemplo, um acordo diplomático assinado entre países. Tomemos o caso da ditadura recente
no Brasil: ao abordarmos um tema como o controle ideológico e o medo de ideias não
condizentes com as da Doutrina de Segurança Nacional, a diferença entre utilizar documentos
oficiais burocráticos do DOPS e trabalhar com documentos escolares que apontem na direção de
um controle sobre a circulação de ideologias entre os estudantes é muito grande. Afinal, a escola

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não pode ser considerada como uma instância à parte da sociedade e da vida política, um “outro”
da história. Dessa maneira, o olhar histórico para ela não pode ser diferente daquele que lançamos
a outros agentes individuais e coletivos. A instituição escolar, é claro, faz parte, assim como
outras instituições sociais, de uma trama de múltiplas temporalidades, de relações de dominação e
resistência, de uma rede de diferentes lógicas culturais e sociais que interagem entre si por meio
de alianças, conflitos, tensões, entre outros elementos. Sendo assim, o arquivo escolar permite
tanto a apreensão do contexto histórico mais amplo – principalmente quando “cruzado” com
outras fontes primárias e secundárias – quanto a aproximação com problemas que são geralmente
comuns à experiência do estudante, como receber um parecer do Conselho de Classe ou fazer
uma visita ao SOE.
Em suma, a entrada dos documentos históricos em sala de aula, juntamente com diversas
novas linguagens que fazem parte do universo de possibilidades que o professor tem de lidar, cria
novos desafios, mas também abre grandes possibilidades à aprendizagem e à compreensão
histórica no ensino básico. Como ressalta Selva Guimarães (2003, p. 164): “ao incorporar
diferentes linguagens no processo do ensino de história, reconhecemos não só a estreita ligação
entre os saberes escolares e a vida social como também a necessidade de reconstruirmos nosso
conceito de ensino e aprendizagem”. Dessa maneira, teremos mais uma “arma” para
enfrentarmos velhas questões como o desinteresse na aula de História “distante” da vida real e a
simplificação abusiva de determinados “conteúdos”, buscando estabelecer associações e
reflexões que permitam ao aluno perceber nos documentos escolares a relação entre as
experiências compartilhadas e as transformações vivenciadas nos períodos históricos estudados.
Vejamos a seguir alguns exemplos dessa riqueza documental oriunda do Fundo Comissão de
Ensino CAp.

Alguns exemplos de usos didáticos de documentos escolares nas aulas de História

Cuidado com as ideias de fora de casa!

Como dissemos antes, desde a sua criação até o princípio da década de 90, o CAp aplicou
um processo seletivo conhecido popularmente como “vestibulinho”, realizado para selecionar os
alunos considerados mais aptos para frequentar a escola. Nele, os candidatos realizavam provas

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como as de História, Geografia, Matemática, Língua Estrangeira e Redação. Além disso, havia
testes psicológicos aos quais os alunos deveriam se submeter. Estes variavam conforme o ano.
Um, aplicado em 1970, foi escolhido por nós a fim de evidenciar a preocupação do colégio com
os estudantes que nele iriam ingressar. Como este teste psicológico pode ser útil para ser utilizado
em aulas de História? Antes de respondermos a essa pergunta, se faz necessário delinear
minimamente o contexto político no qual ele foi aplicado.
Durante a ditadura que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, houve uma preocupação
muito forte por parte do governo no que se diz respeito à juventude. Esta se dava principalmente
pelo fato de uma parcela significativa dos grupos de esquerda ser composto por jovens, como
aponta Alessandra Gasparotto:

Ao analisar os processos reunidos pelo projeto Brasil Nunca Mais, Marcelo Ridenti
concluiu que, dos 3.698 processados por ligação com grupos de esquerda cuja ocupação
era conhecida, 24,5% eram estudantes. Em relação aos denunciados por vinculação a
organizações armadas, esse número se amplia para 30,7% (583, num total de 1.897). [...]
Impunha-se então que se buscasse conquistar este segmento, antes que grupos
“terroristas” o fizessem. Autoridades civis e militares ligadas ao governo difundiam a
ideia de que o “processo subversivo visa infiltração na juventude”, alertando pais e
professores para que estivessem atentos quanto aos perigos aos quais os filhos estavam
expostos. (GASPAROTTO, 2012, p. 182)

A autora ainda examina campanhas que foram veiculadas tanto pelo governo como pela
própria imprensa da época na tentativa de evitar que os jovens adquirissem ideias as quais não
faziam parte do perfil desejado pelo governo e que ferissem os núcleos familiares mais
conservadores da sociedade (GASPAROTTO, 2012).
Outra maneira de se evitar, na visão das autoridades, a difusão de ideias de esquerda, era
mudando o sistema de ensino. Durante os anos de 1960 até meados dos anos 1980, predominou,
tanto nas universidades como nas escolas, a pedagogia tecnicista. Ela propunha uma educação na
qual tanto professores como alunos fossem meros instrumentos de um processo educativo maior,
ou seja, os dois principais agentes da educação deveriam estar devidamente enquadrados em um
mecanismo educativo que visava uma “racionalidade” e uma “neutralidade”, formando assim
alunos alienados e não questionadores. A pedagogia tecnicista tinha uma proposta que almejava o
progresso tecnológico e o conservadorismo cultural e político (SAVIANNI, 2012).
Dito isto, parece claro que a ditadura brasileira já foi muito estudada sob diversos prismas
pelos historiadores e pesquisadores de outros campos disciplinares. As questões abordadas por
tais estudiosos são variadas: aparatos repressivos, guerrilhas urbanas, abertura econômica ao

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capital estrangeiro, censura, tortura, abertura, anistia, etc. Enfim, são muitos os temas referentes
ao período que podem e devem ser abordados em sala de aula. Dentre esses, também figura a
questão do controle social e a falta de liberdade política, ideológica e religiosa, os quais emergem
como pilares da atividade por nós proposta mais abaixo.
O “teste psicológico” aplicado no CAp é muito mais do que um meio de avaliar a suposta
“sanidade mental” de um aluno; é praticamente um teste político, ideológico, religioso e moral,
que se insere muito bem no contexto histórico descrito anteriormente. Ele materializa o temor da
escola, enquanto instituição pública, e de amplos setores da sociedade brasileira no período,
especialmente as camadas médias, junto das quais o anticomunismo era um ingrediente cultural
importante, das ideias ditas “subversivas”. Neste sentido, verifica-se que o teste deveria
selecionar alunos que não corressem riscos de serem seduzidos por propostas contrárias ao
regime vigente e à “família brasileira”. Assim, tal instrumento avaliativo visava saber como o
jovem se portaria quando entrasse em contato com ideias “diferentes” e, portanto, potencialmente
“perigosas”.
A partir unicamente do documento encontrado no Fundo Comissão de Ensino do CAp,
não temos como saber qual seria o tipo de resposta considerado como “normal” ou “adequada”,
mas com nossos conhecimentos referentes ao contexto do regime ditatorial, podemos sugerir que
essa deveria ser aquela julgada em consonância com a preservação da ordem religiosa, familiar e
política defendida pelos militares. Vejamos então o que diz o teste:

I. Um jovem adquiriu fora de sua casa opiniões religiosas e políticas, que estavam em
conflito direto com as idéias de seus pais. Neste momento, está de visita em sua própria
casa e se discutem assuntos religiosos e políticos.
Imagine e expresse espontaneamente o que lhe ocorrer, escrevendo:
O que ele fez e porque.
Como ele se sentiu.

Acreditamos que este teste pode ser utilizado como uma fonte histórica significativa para
se compreender uma das formas de controle social da ditadura, que é justamente a tentativa de
cercear a divulgação de ideias de esquerda entre os jovens, considerados ao mesmo tempo “o
futuro da nação” e “um perigo em potencial”, pois, na visão dos agentes da repressão, mais
suscetíveis à “contaminação subversiva”. Além disso, a fonte possibilita situar o próprio aluno
como agente histórico, já que ele faz parte da própria instituição produtora do documento. Desta
forma, trabalha-se, simultaneamente, sentimentos de pertencimento e de alteridade em relação

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àquele contexto, o que permite a realização de comparações entre o sistema escolar vigente hoje e
o sistema escolar daquele tempo.
Sabemos que as fontes são inesgotáveis e podem servir a diversas interpretações. O
documento apresentado pode se prestar, inclusive, para problematizar a própria construção do
conhecimento histórico, levando-se em conta elementos como: a necessidade de se contextualizar
e de se interrogar, desde o presente, os vestígios do passado para que eles “falem”; as
possibilidades e limites de cada fonte para nos contar sobre tempos pretéritos; entre outros.
Pensamos preliminarmente em uma maneira de utilizar esse documento na aula de
História, lembrando que o melhor momento para tanto, parece-nos, é aquele em que se aborda o
tema da ditadura brasileira iniciada em 1964, por se tratar de um “vestígio” daquele período. Tal
atividade, como já foi dito, tem como objetivo propiciar uma reflexão por parte do aluno a
respeito do controle social estabelecido durante o período de exceção em seu desejo de extirpar as
ideias contrárias ao sistema; além disso, podem ser trabalhados, a partir do documento, conceitos
como os de ideologia, liberdade de expressão, religiosa e política, alienação e conservadorismo.
Sugerimos, assim, utilizar o “teste psicológico” antes do início de qualquer explanação a
respeito do tema referido. Deve-se então informar aos alunos a origem do documento, a data e o
contexto histórico em que foi produzido sem fornecer, entretanto, muitas outras pistas. Porém,
seria proveitoso que os alunos já possuíssem algum conhecimento relacionado às disputas
políticas e a questões religiosas discutidas no contexto em tela. Caso não possuam, torna-se
importante fazer uma breve exposição sobre diferentes posicionamentos nos dois âmbitos. Seria
interessante também perguntar aos alunos o que eles entendem por testes psicológicos, se já
realizaram algum ou se eles têm alguma ideia de como funcionam e para que servem (como os
testes psicotécnicos utilizados para tirar carteira de motorista ou em seleções de emprego).
Provavelmente, durante este primeiro contato, os alunos não entenderão muito bem do
que se trata a atividade e nem terão compreensão do significado do documento. A ideia do
estranhamento é normal e produtiva, pois se torna condição de possibilidade do conhecimento.
Nesse sentido, a sensação de estranheza que o aluno manifesta pode ajudá-lo a estabelecer
comparações entre a sociedade brasileira atual, ou seja, democrática (sem deixar de levar em
conta todos os limites desta democracia), e aquela que viveu a ditadura. A falta de sentido para o
aluno pode ajudá-lo a se colocar no lugar daquele jovem dos anos 70, para quem talvez a questão
proposta no teste fizesse todo sentido. Podemos assim, como mediadores do conhecimento,

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questionar porque em um teste supostamente “psicológico” eram apresentadas questões de ordem


política e religiosa e como a resposta dada poderia influenciar na admissão de um jovem ao CAp.
Sendo assim, esta primeira atividade pretende despertar a curiosidade do aluno referente ao tema
do controle social imposto pela ditadura. Posteriormente, o professor poderia fornecer outros
materiais que contribuam para o conhecimento do período, voltando sempre que possível à
reflexão a respeito do documento, abrindo a aula para debates e reflexões a respeito da escola em
que estudam em diferentes contextos políticos.
Como já ressaltamos mais acima, as formas pelas quais se pode trabalhar com a fonte aqui
destacada são inúmeras, por isso apresentamos apenas uma sugestão no sentido de estimular o
uso dos documentos dos arquivos escolares nas aulas de História.
No caso abordado, a grande questão que procuramos evidenciar é que um vestígio do
passado escolar como o “teste psicológico” pode permitir a reflexão não apenas sobre a sociedade
e a escola em que se vive e estuda, como também sobre projetos de sociedades e escola
alternativos, ao possibilitar ao aluno colocar-se no lugar daquele jovem que vivia uma realidade
completamente diferente. Além deste exercício de alteridade, o estudante também pode refletir a
respeito das conquistas alcançadas com a redemocratização, como aquelas referentes à liberdade
de expressão, política, ideológica e religiosa, além de pensar sobre as permanências daquele
período enraizadas até hoje tanto nas escolas como na sociedade em geral (práticas violentas e
autoritárias, por exemplo). Dessa maneira, visualiza-se uma concepção de templo mais plural,
complexa e diversificada.

O aluno cyborg

O uso de documentos históricos em sala de aula, conforme vimos antes, não é nenhuma
novidade. Evidentemente nos parece bastante positivo trazer este recurso para o contexto de
ensino-aprendizagem, porém, deve-se ter em mente alguns cuidados. Em primeiro lugar,
insistimos, o documento (seja ele escrito, visual, oral, etc.) não deve ser utilizado como mera
ilustração do conteúdo abordado. Nesse sentido, devemos atentar (e evitar) a fácil associação
entre documento e verdade. Por conta do status de comprovação que os documentos –
inicialmente apenas os escritos e oficiais – adquiriram no final do século XIX, a concepção destes
como reflexos da realidade ainda persiste nos dias de hoje, apesar das múltiplas críticas dirigidas

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a tal ideia. Portanto, acreditamos, o documento não deve ser levado à sala de aula para comprovar
ou exemplificar a interpretação já apresentada pelo professor, mas, sim, pensado como um
vestígio do passado, um indício de relações sociais e também uma narrativa a ser interrogada
desde o presente. Dessa maneira é possível demonstrar aos alunos que o conhecimento sobre o
passado não está dado ou pronto, mas depende das questões que formulamos com base nas
preocupações do nosso tempo, com base nos documentos do passado – pensando aqui documento
de maneira ampliada, como qualquer vestígio de ações humanas pretéritas – os quais se, por um
lado, nos permitem vislumbrar certos aspectos das sociedades humanas ao longo do tempo,
também silenciam sobre outras.
Através dessas perguntas aos documentos e do reconhecimento de suas possibilidades e
limites, é possível apresentar um pouco aos estudantes o que é o oficio do historiador e como se
processa a constituição do conhecimento histórico, evidenciado a distância entre o passado e o
conhecimento produzido sobre ele. Neste sentido, o documento que apresentaremos adiante,
também localizado no Fundo Comissão de Ensino do Cap, traz muitas potencialidades para
ampliar a noção de documento histórico dos alunos e indicar certas formas de interrogá-lo.
Este documento apresenta uma particularidade em relação a maioria dos outros materiais
do acervo que estamos organizando, pois não foi criado por professores ou funcionários do CAp
e sim por um aluno (embora induzido por uma proposta da instituição). Trata-se de uma redação
escrita para a prova de Linguagem do processo de seleção para o ingresso na 6° série do I Grau,
no ano de 1975. A seguir, transcrevemos o documento para depois sugerir alguns caminhos para
sua interpretação e exploração didática. Segue o enunciado da atividade:

ATIVIDADE CRIADORA: O autor, no texto que acabas de analisar, fala-nos das


transformações por que passou um homem, ao trocar os seus olhos pelos olhos de um
poeta.
Agora, usando sua criatividade, elabora um texto em que a personagem principal
(homem, mulher, criança...) troca os seus olhos pelos de uma outra pessoa.
ATENÇÃO: No teu texto é necessário que descrevas tanto a personagem principal com
aquela que cede os seus olhos.

E então a redação do estudante:

(Título: O Cyborg)
Um coronel da aeronáutica americana, Steve Austin num teste de um novo avião se
acidentou e perdeu as duas pernas e um braço e um olho, esmagados.
Tratou-se de conseguir-lhe um substituto de seu olho, pernas e braço.
Como não podia trocar as suas pernas e seu braço, se fez, duas pernas cibernéticas e um
braço cibernético. O olho foi conseguido de um jogador de futebol que morreu de parada
cardíaca.

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No outro dia se fez a operação em Steve Austin. A operação foi muito bem sucedida, e o
coronel da aeronáutica americana tinha agora os seus elementos perdidos.
Quando já podia ir para casa, com enorme espanto sentiu que havia recuperado a vista,
no caminho de casa foi observando o caminho com muita atenção.
O seu doutor foi lhe visitar e ele perguntou:
- Doutor isto tudo que estou vendo é novo?
A resposta foi esta:
- Não, tudo é igual, a mesma coisa.
Nova pergunta feita pelo coronel:
- De quem foi este olho que agora é meu?
Nova resposta:
- Este olho foi do camisa numero 8 do Nova York Cosmos, não me lembro o seu nome.
- Muito obrigado, por ter, conseguido que eu recupera-se a minha visão que é o mais
importante, das partes que eu perdi.
Um mês depois foi trabalhar novamente.
E tudo correu muito bem o resto da sua vida.

O texto acima, escrito pelo aluno, incorpora a referência a um seriado estadunidense


chamado “O homem de seis milhões de dólares”, que foi exibido na rede norte-americana ABC
de 1974 a 1979. O personagem Steve Austin e todo o enredo da redação são os mesmos do
seriado, com exceção do personagem que doa seus órgãos ao protagonista. No texto do estudante,
o doador é um jogador do New York Cosmos, clube para o qual Pelé acabara de ser transferido.
Pode-se notar na redação a rapidez da circulação de informações através da televisão, já
que tanto o seriado quanto a transferência de Pelé para o Cosmos eram acontecimentos bastante
noticiados. Mesmo assim foram impactantes para o jovem estudante, que transformou tais
informações em matéria-prima para a sua redação, deslocando-se da referência original proposta
na prova, calcada na literatura, para uma referência da cultura de massas, cada vez mais difundida
pelas novas tecnologias de informação, especialmente, no contexto de produção do documento,
pela televisão.
Alguns trabalhos, como “Tio Sam chega ao Brasil”, do historiador Gerson Moura (1993),
abordam os impactos da política de boa vizinhança estadunidense, durante os anos 40 e início dos
50. Já o documento transcrito acima pode servir à reflexão relativa ao impacto da influência
cultural estadunidense em plena década de 1970.
Diferentemente do documento analisado anteriormente, onde o “personagem principal” é
a própria instituição, aqui o personagem é justamente o aluno. É ele quem nos dá elementos para
analisar um contexto histórico. Para tanto, não temos como realizar uma atividade parecida com a
anterior. Ainda que seja possível aplicar o mesmo enunciado para os alunos hoje em dia, ele não
seria tão efetivo para fins de método comparativo, visto que as redações podem ser das mais
diversas.

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Um dos usos que pensamos é o de apresentar o documento e, então, problematizá-lo,


pensando na questão da luta cultural entre Estados Unidos e União Soviética no contexto da
Guerra Fria. Um primeiro exercício seria exibir um episódio do seriado “O homem de seis
milhões de dólares” colocando-o em seu contexto. Posteriormente, poderíamos ver com os alunos
que tipo de seriados eles assistem, as semelhanças e diferenças em relação ao seriado da década
de 70, avaliando se a forte influência estadunidense ainda prevalece (o que nos parece ser o caso).
Além disso, podemos também utilizar a fonte para que os próprios alunos tentem
problematizá-la, pensando quais elementos da cultura norte-americana nela estão presentes.
Ainda na mesma linha de raciocínio, é possível discutir se ainda temos elementos desta cultura
em nossa sociedade, em outros âmbitos como o cinema, a música, a publicidade, a moda, etc.
Dessa maneira, o tema “imperialismo cultural” torna-se vivo e “encarnado” na própria história da
escola.

Para concluir

O objetivo deste artigo foi apontar algumas possibilidades de exploração didática nas
aulas de História de documentos pertencentes a arquivos escolares. Normalmente estes acervos
são utilizados para pesquisas em história da educação, mas nos parece que eles também são
riquíssimos no sentido de propiciar reflexões sobre diferentes agentes, períodos e processos
históricos, conforme procuramos aqui exemplificar com o “teste psicológico” e com a redação a
respeito do cyborg localizados no Fundo Comissão de Ensino do CAp. Por dizerem respeito ao
espaço onde estudam os alunos, podem favorecer a compreensão das relações entre identidade e
alteridade, permanência e transformação, passado e conhecimento histórico, entre outras.
Esta proposição só reforça a importância de considerarmos estes arquivos não só em sua
funcionalidade imediata, mas também como importantes patrimônios históricos, capazes de nos
fazer pensar sobre o passado, o presente e o futuro de nossas sociedades e, mais especificamente,
de nossas escolas.

Referências

FOUCAULT, Michael. A Arqueologia do Saber. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2012.

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GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: A retratação pública de integrantes de


organizações de resistência à ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975). Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional, 2012.

GUIMARÃES, Selva. Didática e Prática de Ensino de História. 12ª ed. Campinas: Papirus,
2003.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 6ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

NIKITIUK, Sônia. Repensando o Ensino de História. 6ª ed. São Paulo: Cortez editora, 2007, p.
51-72.

PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que pode o ensino de história? Sobre o uso de
fontes em sala de aula. Anos 90, Porto Alegre, v.15, nº28, p.113-128, 2008.

ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a história a partir do imaginário de aluno. In: SAVIANI,


Dermival. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3 ed. rev. Campinas, SP: Autores
Associados, 2010.

MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

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Ensino de História e suas possibilidades para a construção da educação do campo

Juliana de Sousa Almeida1

Resumo: A Educação do Campo parte da perspectiva de educar para a organização, tendo como objetivo que os
trabalhadores do campo se assumam enquanto sujeitos de transformação. Tendo em vista que o principal
potencial transformador da História é a oportunidade que ela oferece de praticar a “inclusão histórica”, esse
trabalho, ao analisar as práticas de Ensino de História existente em duas escolas inseridas no meio rural, busca
obter uma maior compreensão sobre o papel dessa disciplina para a construção de uma educação na perspectiva
da Educação do Campo. Ao fazer uma análise a partir da realidade dessas escolas, da comunidade onde estão
inseridas, das práticas pedagógicas e experiências de vida dos professores de História, a pesquisa propõe uma
reflexão sobre as possibilidades e desafios que se apresentam a partir do contexto atual do campo. Esse contexto
é resultado de um processo histórico de precarização da vida do agricultor camponês e da negação ou
desvalorização de suas particularidades, mas também de formação de um processo pedagógico de luta por um
projeto contra-hegemônico para o campo, protagonizado pelos agricultores camponeses. A pesquisa se encontra
em andamento, sendo que o processo de reunião dos dados está em fase de finalização, neste artigo analisam-se
os dados referentes a uma das escolas investigadas.
Palavras-chave: Educação do Campo, Ensino de História, Movimentos Sociais.

Abstract: The “Field Education”2 starts from the perspective of educating for organization, aiming that the
Rural workers recognize themselves as transformation actors. Knowing that the History transformation potential
is the opportunity that it offers to practice the "historic including", this paper, analysing the practices of History
teaching in two schools, located in the rural area, aims to understand the role of this discipline for the
construction of an education in the “Field Education” perspective. The analysis starts from the reality of those
schools, of the community where they're are part of, the pedagogical practices and also of the life experiences of
the History teachers, this research proposes a reflexion concerning the possibilities and challenges existing in the
current rural context. This context is the result of a historical process of the peasant life precariousness and the
denial of his particularities, but also of the creation of a pedagogical process of a struggle for a counter-
hegemonic project, played by the peasants. The research is in progress, the organization of the database is about
to be finalized, in this article the analysis is related to one of the studied schools.
Keywords: Rural Education, History Education, Social Movements.

Introdução

Os estudos sobre a história da educação rural no Brasil demonstram que a escola no


campo emerge e se expande como parte de um projeto de desenvolvimento que visava à
adequação do campo às necessidades do modo de produção (CALAZANS, 1993). Dessa
forma, a escola do campo no Brasil, ao longo de sua história tem se caracterizado

1
Universidade Federal de Pelotas. Orientadora: Profª. Dra. Lisiane Sias Manke. Contato:
juli.desousa@gmail.com
2
N.E: this author marks a different approach from “Rural Education”, that would endorse a traditional way of
teaching, to “Field Education”, which would address the specific needs of those directly involved in agriculture.
While the first would be more market-oriented, the second would benefit from the knowledge and needs from
those directly involved with agriculture, which could build their own perspective on “Education”.

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predominantemente como um instrumento de reprodução do projeto hegemônico de


sociedade.
Diante desse contexto, com o objetivo de superar as concepções e práticas da educação
rural, os trabalhadores do campo organizados em movimentos sociais iniciam a discussão,
reflexão e elaboração de um projeto de Educação do Campo aliado aos interesses,
necessidades e identidades dos camponeses. Surge assim, a Educação do Campo como uma
perspectiva de educação que, aliada ao projeto contra-hegemônico, contribui para um novo
projeto de escola, exigindo a discussão e reflexão sobre o projeto de desenvolvimento que se
coloca para o campo. Assim, lutar pela Educação do Campo é construir o protagonismo dos
sujeitos no processo histórico, através da mobilização, da luta por um projeto de campo que
compreenda as necessidades desses sujeitos.
Nesse sentido, a Educação do Campo diferencia-se da educação rural (para o campo),
constituindo-se como um projeto contra-hegemônico de educação, que segundo Caldart
afirma-se para pôr fim às tentativas de “fazer das pessoas que vivem no campo instrumentos
de implantação de modelos que as ignoram ou escravizam, e da visão estreita de educação
como preparação de mão-de-obra a serviço do mercado” (2002, p. 19). Os trabalhadores do
campo buscam pensar a educação que os interessa enquanto sujeitos de diferentes culturas,
como sujeitos das ações e não apenas sujeitos às ações de educação e desenvolvimento.
Esse trabalho parte do entendimento de que a crítica aos problemas da escola, às
práticas dos professores e do cotidiano escolar, não fazem sentido sem uma análise profunda
sobre o papel histórico da escola, da crítica a um modelo que tem reproduzido ideologias de
dominação, e do reconhecimento de que a Educação é caminho estratégico para uma
humanização mais plena e assim, a construção de novas relações sociais e materiais.
A partir dessas concepções teóricas, foram investigadas duas escolas, a Escola
Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Dr. Jaime Faria, situada no terceiro distrito do
município Cerrito e a Escola Estadual de Ensino Fundamental (EEEF) Oziel Alves Pereira,
situada no quinto distrito do município de Canguçu. A primeira escola constitui-se uma escola
polo, resultado das políticas de fechamento das escolas multisseriadas nas últimas décadas,
enquanto a segunda, localiza-se dentro de um assentamento da reforma agrária e é resultado
da luta pela terra, tendo sua identidade vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra. É importante salientar que esse trabalho ainda está em andamento, a reunião dos
dados encontra-se em fase de conclusão e já foi iniciada a análise e reflexão sobre os dados de
uma das escolas, a EMEF Dr. Jaime Faria, as reflexões geradas na análise desses dados serão
discutidas no presente artigo.

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Para ajudar na compreensão dos diferentes contextos em que as escolas estão


inseridas, foram aplicados questionários a toda comunidade escolar (país, professores e
funcionários). Esse instrumento teve base nos seguintes eixos: idade, formação/escolaridade,
principais atividades que exerce, tempo de trabalho, local de residência, tempo que reside no
local, atividades de lazer, relação com a escola e com a História da comunidade. Até o
momento os questionários referentes a EMEF Dr. Jaime Faria já foram sistematizados, sendo
que 25 pessoas entre professores e funcionários participaram da pesquisa, bem como 56
estudantes e 37 pais e responsáveis.
As respostas dos questionários auxiliaram na preparação de entrevistas
semiestruturadas que serão realizadas com as professoras de História de ambas as escolas. A
escola Jaime Faria atualmente conta com duas professoras lecionando a disciplina, enquanto a
Escola Oziel Alves Pereira tem apenas uma. As entrevistas com as professoras de história
buscaram compreender as concepções e práticas que estas têm sobre o Ensino de História. Na
escola Jaime Faria já foi realizada uma dessas entrevistas, conforme é exposto no
desenvolvimento do presente artigo.
Além das entrevistas foram feitas observações livres em sala de aula e no ambiente
escolar de modo a compreender as práticas de ensino-aprendizagem que envolve o conteúdo
de História. Na escola Dr. Jaime Faria, três dessas observações em sala de aula já foram
realizadas.
Para Fernandes (2008), o campo é dividido em diferentes territórios que são
organizados de formas distintas, a partir de diferentes relações sociais. Logo, para a Educação
do Campo, não é possível a construção de uma educação libertadora sem o debate sobre como
se organizam esses territórios, as estratégias de reprodução social dos trabalhadores do
campo, assim como sua organização. O agricultor familiar camponês organiza o seu território
visando, primeiramente, à reprodução social da família, buscando desenvolver todas as
dimensões da vida no campo. Portanto, se faz necessária a compreensão das dinâmicas de
organização do campo, a fim de compreender o papel da escola e do ensino de história nas
relações sociais engendradas em tal território. Por esse motivo, além do estudo de revisão
bibliográfica sobre o contexto histórico do campo, foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com agricultores camponeses da região, tendo em vista a compreensão de
suas estratégias de trabalho, sua relação com a História da comunidade e com a escola. Na
escola Dr. Jaime Faria, dois agricultores já forma entrevistados.
A escola Dr. Jaime Faria é uma escola de Ensino Fundamental do terceiro distrito de
Cerrito, uma região do campo chamada Vila Freire. Essa região também é conhecida como

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Cerrito Velho, pois foi o local de origem do município de Cerrito. A escola, desde sua
fundação em 1937, passou por várias modificações resultantes das políticas para a Educação
em nível nacional. Essas mudanças podem ser identificadas nos diversos nomes que a escola
recebeu ao longo dos anos e representam as diversas fases da educação rural no país 3, que vão
desde as origens do ruralismo pedagógico4 até a adequação das escolas do campo ao modelo
urbano.
A partir das observações e dos questionários sobre o perfil da comunidade escolar,
algumas considerações sobre o contexto da escola podem ser observadas. A escola sempre
agregou estudantes da região e também já foi uma escola no modelo multisseriado. Com a
política de nucleação, o número de estudantes cresceu muito e atualmente a escola chega a
atender em média de 130 a 180 estudantes de localidades diversas 5, inclusive de outros
municípios. Essa nova realidade demandou modificações tanto na estrutura da escola quanto
nas práticas pedagógicas, exigindo à adequação dos professores a nova realidade.
Os alunos chegam a percorrer com o transporte escolar distâncias de até 20 km da
escola. Muitos desses alunos estudavam em escolas que foram fechadas com a política de
fechamento das multisseriadas, e, ainda, alunos que vêm de escolas menores, que possuem
ensino até as séries iniciais, como é o caso da EMEF Felipe dos Santos, que fica localizada
em uma região próxima, conhecida como Marmeleiro. Essa escola, sendo multisseriada,
leciona até o quarto ano das séries iniciais, depois dessas sérias a grande maioria dos alunos
muda para a Dr. Jaime Faria.
A escola conta com um quadro de 19 professores e cinco funcionários. Diferente da
realidade de muitas outras escolas, nas quais a maioria dos professores vem da cidade, do total
dos professores da Jaime Faria, apenas cinco não moram na Vila Freire. Dos 14 professores
moradores da localidade, muitos moram na região há muitos anos, sendo que parte
significativa desses professores foram alunos da escola e tem entre 20 a 30 anos de carreira.
Os professores têm uma extensa formação, com especializações e pós-graduação. A escola
atende das séries iniciais às finais do Ensino Fundamental. Os estudantes têm duas aulas
semanais de História. A maioria dos professores lecionou essa disciplina em algum momento,
pois a escola conta com apenas uma professora com formação especifica em Licenciatura em
3
Grupo Escolar do Cerrito Velho em 1937; Grupo Escolar Dr. Jaime Faria em 1952; Escola Rural Dr. Jaime
Faria em 1960; Escola Estadual de primeiro Grau Completo Dr. Jaime Faria em 1979; Escola Municipal de
Ensino Fundamental Dr. Jaime Faria em 1998 até os dias atuais.
4
Sobre o “ruralismo pedagógico” ver CALAZANS (1993) “Para compreender a Educação do Estado no Meio
Rural (Traços de uma trajetória)”.
5
Pertencentes ao 3º Distrito de Cerrito: Vila Freire; Marmeleiro; Colheco; Passo da Rosa; Coxilha dos
Bandeiras; Catimbau; Passo do Machado; Alto Alegre; Passo dos Aires; Alto do Patinho. E ainda de outros
municípios: Coxilha das Flores/Canguçu.

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História. Essa professora, atualmente, dá aula dessa disciplina para as séries finais, outra
professora, que tem formação em pedagogia e foi entrevistada para a presente pesquisa,
leciona essa disciplina nas séries iniciais.
Dentre os diversos projetos nos quais a escola Dr. Jaime Faria está envolvida é
importante destacar a atuação do Observatório da Educação do Campo CAPES/INEP 6.
Principalmente por conta desse projeto, a escola, desde 2011, passa por um processo de
reconhecimento enquanto escola do campo e busca pensar em um projeto de escola mais
voltada para a perspectiva da Educação do Campo. Isso significa uma mudança profunda na
escola, onde as concepção e práticas em educação se transformam, dessa forma evidencia-se a
importância de reflexões sobre o Ensino de História que contribuam na construção da escola
do campo.

A Escola e as Tensões entre a Educação Rural e Educação do Campo

A escola do campo, ao longo da história da educação rural no Brasil, constituiu-se,


predominantemente, como um espaço de reprodução do projeto hegemônico de
desenvolvimento para o campo. Calazans (1993) nos mostra que a escola no campo nasce
com o fim da escravidão e o desenvolvimento de outros setores agrícolas, assim era esperado
que a escola preparasse pessoas com formação necessária para suprir essa necessidade, dessa
forma a educação no campo surge de forma tardia e descontínua.
Ocorreram muitas mudanças em nível nacional sobre o projeto de escola para o
campo, que hora objetivam manter o sujeito no campo, como o ‘ruralismo pedagógico’, hora
como mecanismo de preparação para a vida na cidade, como acontece nos dias atuais. Em
todos esses projetos nota-se um traço em comum, e que é característico da escola sobre o
modo de produção capitalista, o de preparação da classe trabalhadora como mão de obra para
o mercado.
Na perspectiva da classe dominante, historicamente, a educação dos diferentes grupos
sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de habilitá-los técnica, social e ideologicamente

6
O Observatório da Educação do Campo/ CAPES-INEP é um projeto em rede realizado nos estados do Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná tendo por título “Realidade das escolas do campo na Região Sul do
Brasil: diagnóstico e intervenção pedagógica com ênfase na alfabetização, letramento e formação de
professores”. A coordenadora regional do projeto é a Drª Sonia Beltrame, da UFSC, enquanto no núcleo RS o
Observatório da Educação do Campo é vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas,
sendo coordenado pela Drª Conceição Paludo.

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para o trabalho. Trata-se de subordinar a função social da educação para responder às


demandas do capital (FRIGOTTO, 2010, p. 28).
Assim, a educação escolarizada no meio rural se expande diante da necessidade de
preparar os trabalhadores do campo para os avanços tecnológicos que buscavam introduzir no
campo uma alternativa para garantir o aumento da produtividade. Essa “preparação” não se
resumia a formação técnica para o trabalho, mas, sobretudo, tornava-se papel da escola no
meio rural conformar os trabalhadores ideologicamente ao projeto capitalista de
desenvolvimento para o campo, assumido como o único possível.
No capitalismo o campo é, essencialmente, um lugar de produção, o território
camponês, uma possibilidade de transformação em território do capital. Essa lógica reduz o
campo e suas relações apenas às questões econômicas. O projeto de escola no meio rural tem
reproduzido essa lógica ao longo de sua história, submetendo os interesses dos moradores do
campo a um projeto de escola vinculado às mudanças nas estruturas sócio-agrárias do país, ou
seja, o Estado historicamente se alinha a concepções e políticas de uma educação para o
campo, voltada para o desenvolvimento de modelos econômicos. Assim, a educação para o
campo é geralmente pensada na perspectiva do capital, o Estado historicamente alinha suas
políticas às concepções de educação que visam:

[...] estender modelos, conteúdos e métodos pedagógicos planejados de


maneira centralizadora e autoritária, ignorando a especificidade e
particularidade dos processos sociais, produtivos, simbólicos e culturais da
vida do campo (FRIGOTTO, 2010, p. 14).

Frigotto (2010) propõe uma reflexão sobre a função social dos processos educativos na
produção e reprodução das relações sociais. Para o autor, a educação ao mesmo tempo é
constituída e também constituinte dessas relações. Sendo campo de disputa hegemônica, a
educação articula aos interesses de classe as concepções, a organização dos processos e
conteúdos educativos na escola. Dessa forma, a escola do campo é constituída a partir do
processo histórico de desenvolvimento do capitalismo no campo. Sendo, assim, um
mecanismo de reprodução de relações sociais dominantes, as quais perpetuam relações de
produção.
A partir das contradições históricas, ocorre a organização da classe trabalhadora do
campo em torno das estratégias para reprodução a partir da organização social, de acordo com
seus interesses enquanto classe, visando apresentar resistência ao projeto hegemônico e
protagonizar outro modelo de desenvolvimento. Um desses movimentos, de grande alcance
político, é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que, segundo Ribeiro (2010), é

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resultado da ditadura militar, em 1980, que não pode mais sufocar os conflitos que decorrem
das contradições entre capital e trabalho no campo. Os movimentos populares rurais “propõe
romper séculos de políticas de expropriação/proletarização e dominação do campesinato
brasileiro, inserem a educação do campo em projeto popular de sociedade (...)” (RIBEIRO,
2010, p. 189).
A constituição originária da educação do campo como uma perspectiva de educação
que, aliada ao projeto de contra hegemonia, visa à superação das concepções e práticas da
educação rural.
A superação da educação rural vista apenas como uma formação mercadológica e a
recente concepção de educação do campo foram constituídas por uma longa trajetória de luta
e discussões no interior dos movimentos sociais, das entidades, representações civis e sociais
dos sujeitos do campo. A mudança na compreensão desse conceito reflete muito mais do que
uma simples nomenclatura. Ela é inevitavelmente o resultado de um olhar politicamente
referendado na busca pelos direitos sociais e na defesa da seguinte trilogia: educação,
sociedade e desenvolvimento, fatores indispensáveis para a concretização de projetos político-
pedagógicos que busquem encarar a realidade e atender as necessidades das populações do
campo. Sendo assim, essas são ações que pressionam as lideranças governamentais na criação
e organização de políticas públicas para os trabalhadores e trabalhadoras do campo
(SANTOS, 2012, p. 3).
Conforme Santos (2012), a Educação do Campo, enquanto movimento7, teve origem
nas experiências de resistência dos territórios camponeses envolvendo a luta pelo direito não
apenas de acesso à educação, mas também ao direito a uma educação de qualidade, vinculada
às problemáticas sociais vividas no campo, sobretudo, articulada com a luta por uma nova
sociedade. Portanto, como destaca Frigotto “[...] trata-se de uma pedagogia que não começa
na escola, mas na sociedade e voltada para a sociedade, sendo a escola um espaço
fundamental na relação entre o saber produzido nas diferentes práticas sociais e o
conhecimento científico” (2010, p.15).
Nesse sentido, a Educação do Campo, diferencia-se da educação rural (para o campo),
constituindo-se como um projeto contra-hegemônico de educação, que segundo Caldart

7
O movimento por uma Educação do Campo, desde 1998, com a primeira “Conferência Nacional por uma
Educação Básica do Campo” ganha âmbito nacional, envolvendo cada vez mais ONGs, movimentos sociais,
sindicatos, proporcionaram importantes conquistas de políticas públicas para projetos e ações educativas, como a
aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação do Campo, em 2002, a qual tenta contemplar a
diversidade do meio rural “[...] educação de qualidade social para todos os povos que vivem no campo, com
identidades diversas, tais como, Pequenos Agricultores, Sem Terra, Povos da Floresta, Pescadores, Quilombolas,
Ribeirinhos, Extrativistas, Assalariados Rurais”. (CNE/CEB nº 1, p. 2).

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afirma-se para pôr fim às tentativas de “[...] fazer das pessoas que vivem no campo
instrumentos de implantação de modelos que as ignoram ou escravizam, e da visão estreita de
educação como preparação de mão-de-obra a serviço do mercado” (2002, p. 19). Os
trabalhadores do campo buscam pensar a educação que os interessa enquanto seres humanos,
sujeitos de diferentes culturas, enquanto classe trabalhadora do campo, como sujeitos das
ações e não apenas sujeitos às ações de educação e desenvolvimento. A Educação do Campo,
portanto, parte de uma experiência organizada dos trabalhadores do campo e da perspectiva
de educar para a organização, tendo como objetivo que os trabalhadores do campo se
assumam enquanto sujeitos da história.
Dessa forma, a educação e pedagogia do campo8 partem da particularidade e
singularidade dadas pela realidade dos sujeitos que vivem no campo, mas sem cair no
localismo ou particularismo, negando o conhecimento de uma universalidade histórica rica.
(FRIGOTTO, 2010, p. 15).
Segundo Lima e Bezerra:

“[...] a educação do campo vislumbra uma nova concepção pedagógica


construída a partir das vivências cotidianas e das experiências dos
camponeses, da luta pela terra, do trabalho, enfim da vida do homem do
campo. É uma educação que busca novas formas de aprendizagem social, da
produção de conhecimentos, de valores, de transmissão de saber”. (LIMA,
BEZERRA, 2011, p. 5)

O que se busca é uma educação sob a perspectiva da compreensão da realidade para


além das aparências, caminhando para que esses homens e mulheres produzam as ações
necessárias para transformá-la. Para tanto, torna-se imprescindível à articulação do projeto de
escola com o projeto de uma nova sociedade, que supere os limites materiais colocados ao
processo da formação humana (FRIGOTO, 2012).
A escola do campo pensada no contexto dos movimentos de trabalhadores do campo
organizados tem como ponto de partida sua organização e luta pelo projeto de uma nova
sociedade, sendo seu projeto pedagógico parte desse processo. Entretanto, a maioria das
escolas públicas localizadas no campo, de modo geral, não se constitui como parte de um
processo de organização e luta dos trabalhadores, mas sim como resultado de uma política
educacional direcionada ao projeto hegemônico de campo, conforme se discutiu
anteriormente. Sendo assim, nesses contextos, discutir um projeto de escola e de educação

8
A escola itinerante, a pedagogia da alternância, a revitalização das escolas multisseriadas e o Programa de
Educação Integral e Escola de Tempo Integral do Campo são algumas das experiências de organização de
práticas pedagógicas voltadas para uma Educação do Campo, construindo aos poucos alternativas as atuais
maneiras de aprender e ensinar no campo.

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aliado aos interesses dos trabalhadores do campo e a perspectiva de uma nova sociedade,
torna-se um grande desafio.

Ensino de História e Educação do Campo na EMEF. Dr. Jaime Faria

A escola em foco nessa pesquisa se localiza em um contexto rural, onde a relação com
a terra esta muito evidenciada por conta do trabalho. Na escola, os professores relatam estar
cada vez mais difícil encontrar estudantes que queiram permanecer no campo, a perspectiva
na maioria das vezes está em ir para a cidade. O número de estudantes que quer continuar os
estudos cresceu, porém a continuação dos estudos sempre está relacionada ao encontro de um
bom emprego na cidade, já que para muitos, não é necessário estudo para a “lida” no campo.
Para a Educação do Campo, é impossível qualificar a escola sem fazer a leitura crítica
da realidade onde ela esta inserida, ou seja, dos processos históricos pelo qual essa realidade
se constitui. Portanto, uma escola na perspectiva da Educação do Campo deve proporcionar
uma educação que não busque fixar o sujeito no campo, mas deve contribuir para que o
educando seja livre para fazer suas próprias escolhas a partir de uma compreensão crítica
sobre o contexto histórico do campo. É o sujeito do campo que deve ter a compreensão
necessária para fazer uma leitura crítica da realidade a partir de suas próprias experiências,
valores e interesses. Nesse ponto pode encontrar-se o grande potencial do Ensino de História
enquanto mecanismo de compreensão dos processos e transformações da sociedade.
Segundo Hobsbawm (1997) os jovens são levados a aprender a história na escola não
para compreenderem a sua sociedade e como ela muda, mas para legitimá-la, para aprová-la e
orgulhar-se dela. A função do historiador é de não permitir uma visão imobilista da História,
que serve apenas como mecanismo de justificação de ideologias para manutenção de sistemas
excludentes. A escola tem um potencial transformador na medida em que fundamenta seus
trabalhos a partir das experiências históricas concretas dos sujeitos, nesse caso, a classe
trabalhadora do campo.
A falta de expectativa em relação à vida no campo também influencia na expectativa
em relação à escola. Um dos agricultores entrevistados e sua esposa, que trabalham com a
produção de leite na região da Vila Freire, quando questionados sobre a importância da escola
no meio rural deram respostas evasivas. Os entrevistados concordam que a escola é
importante, mas não sabem dizer o motivo de sua própria afirmação e acreditam que para a
vida no campo, a escola não ajuda muito, mas é importante para aprenderem a ler, para tirar

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carteira de motorista, documentações e afins. Acreditam que é a vida na cidade que exige
mais estudo (informação verbal9). Esse fato é sintomático porque sabemos que os saberes dos
camponeses são diversos e riquíssimos, porém estão sendo substituídos e esquecidos, por não
serem valorizados. Dessa forma se torna necessário que esses fazeres e saberes estejam na
escola, o Ensino de História também deve ter valiosas contribuições nesse sentido na medida
em que se comprometa em articular a realidade local, saberes, memórias e culturas dos
sujeitos da escola e das diversas ruralidades existentes, as diversas expressões da vida no
campo, ajudando a forjar a identidade da escola do campo.
Podemos perceber que as escolas do campo são resultados de políticas públicas que
transferem modelos e conteúdos prontos e pensados por outros que não conhecem a realidade
de cada escola. O modelo de escola urbana é simplesmente implementado no campo sem
levar em consideração suas especificidades. O Ensino de História pode contribuir no processo
de situar o sujeito em relação ao seu passado e comunidade, contribuindo para a formação de
sua consciência social.
Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado (ou da
comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado é, portanto, uma dimensão
permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e
outros padrões da sociedade humana. (HOBSBAWM, 1997, p. 25)
Assim, torna-se necessário que a escola reconheça as particularidades do local e
compreenda que essas particularidades também forjam a escola, sendo parte de sua história.
Entretanto, sem isolar a História de seu contexto mais amplo. Seguindo o pensamento de
Hobsbawm:
“[...] Os historiadores, conquanto microcosmos, devem se posicionar em
favor do universalismo, não por fidelidade a um ideal ao qual muitos de nós
permanecemos vinculados, mas porque essa é a condição necessária para o
entendimento da história da humanidade, inclusive a de qualquer fração
específica da humanidade. Pois todas as coletividades humanas são e foram
necessariamente parte de um mundo mais amplo e mais complexo”.
(HOBSBAWM, 1997, p. 378).

Dessa forma torna-se necessário que as lutas, a História dos conflitos de resistência ao
projeto hegemônico de campo, estejam presentes nas aulas de História. Pois é através de uma
visão dialética e não linear da História, que é possível proporcionar ao educando as
ferramentas para a formação de sua consciência social. Nas aulas de História observadas,
entretanto, o que acontece é que pouco se explana sobre o campo, nesse sentido mais amplo, e

9
Entrevista com pequeno agricultor, autor pede anonimato, cedida à Juliana de Sousa Almeida. Cerrito, 15 de
setembro de 2014.

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mesmo quando isso ocorre, segue a lógica não dialética da História, em que se perde a visão
dos conflitos e resistências do povo enquanto parte do processo histórico.
A questão da abordagem do campo em sala de aula foi muito discutida na entrevista
com a professora de História e as observações em sala de aula possibilitaram uma maior
compreensão da prática docente na escola Dr. Jaime Faria. Até o momento, uma professora
que leciona a disciplina de História do 1º ao 4º ano foi entrevistada, ela é professora há
aproximadamente 30 anos, formada em Pedagogia. Também já foram realizadas três
observações nas aulas de História.
A professora entrevistada é formada há 18 anos, cursou Pedagogia em um curso não
presencial na cidade de Pedro Osório10. Ela fez algumas tentativas anteriores de cursar
Estudos Sociais, mas mudou de planos e optou pela Pedagogia, pois era o que as condições
permitiam. Ela não possui especialização e relata que procura participar de todas as formações
continuadas possíveis, porém na área da História dificilmente encontra cursos e o último que
participou foi em meados de 2005. Do início de sua carreira até os dias atuais a professora já
lecionou a disciplina de História, Português e Ciências na escola Dr. Jaime Faria para as séries
iniciais e EJA.
As perguntas feitas na entrevista com a professora da escola Dr. Jaime Faria tiveram
vários eixos. Primeiramente buscou-se conhecer sobre o histórico da carreira da professora
como docente, tanto na própria escola quanto em outras, bem como sua formação. Também
foi considerado importante saber como a professora compreende a História e a importância
que ela tem para sua formação enquanto pessoa, bem como o porquê de ela achar importante
lecionar História, tanto de maneira mais abrangente, quanto especificamente naquela região.
A entrevistada também foi questionada sobre a importância da História da comunidade e da
escola. Essas perguntas foram mais direcionadas as concepções teóricas sobre a história e o
ensino de história. Posteriormente, a entrevista foi no sentido de aprofundarmos no
conhecimento sobre as práticas do professor. Para isso foi questionado sobre o processo de
organização das aulas, da seleção dos conteúdos, do material de referência. Também foi
perguntado sobre os principais desafios que se colocavam para o ensino de história na escola.
A professora entrevistada demonstra dificuldades em relacionar a disciplina de
História com a realidade do campo, segundo ela, isso se torna difícil na medida em que não
pode desviar-se dos conteúdos. A professora aponta que faz relações com a localidade,
citando o campo através de exemplos comparativos. Nota-se pela entrevista e também é

10
Entrevista com professora das séries iniciais. Cedida para Juliana de Sousa Almeida. Cerrito, 15 de setembro
de 2014.

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possível perceber pelas observações, que existe uma perspectiva bastante limitada sobre o que
seria essa articulação dos conteúdos com a realidade da comunidade. Essa articulação se dá de
fato, quando não se faz apenas relações, mas uma leitura crítica da realidade local,
relacionando-a com um contexto mais amplo, e assim, construir conhecimento no sentido da
emancipação. Esse é o desafio para o professor de História que pense a partir de uma
perspectiva da Educação do Campo, que o estudante consiga perceber a influência desses
processos mais amplos, econômicos, culturais e sociais na realidade objetiva e que esses
processos históricos são construídos pela sociedade e podem ser transformados por ela. Como
ocorre nas extensas experiências concretas de luta dos camponeses e demais movimentos
sociais dos trabalhadores ao longo da história.
Quando questionada sobre a importância da História da sua vida, a entrevistada
destaca:
“Eu acho que é tudo né. Porque assim, sem o passado, como viver o
presente? Até a questão da própria família, começando na minha linha do
tempo. Qual foi minha origem? Se eu estou aqui, como que eu cheguei aqui?
O que eu espero? O que eu quero? Para onde eu vou? [...] Então eu acho que,
sem o estudo da História e sem pensar nela, não sei eu acho que eu me
sentiria perdida. [...] Ela é inicio, meio e nossa caminhada no dia a dia. E ela
envolve o todo se a gente pensar, ela caminha paralelo com todas as
disciplinas na realidade, uma coisa depende da outra. [...] Envolve o todo, eu
já olho sempre pela questão da linha do tempo, a que eu tanto não achava
muito engraçado no inicio, mas que hoje eu vejo que é tão legal né, que é
uma coisa desde do nosso nascimento, quer dizer, antes, desde dos nossos
antepassados e que agente vai além do que a gente estudo, do entorno né”.
(entrevista com professora das séries iniciais, 2014).

Em uma de suas falas, a professora afirma que é importante estudar história porque o
aluno deve valorizar o passado para saber o que é o presente. Ela defende que a história não é
“decoreba”, que precisamos compreender a história para mudar as coisas de hoje. Para isso, a
professora coloca que começa pela vida dos alunos, tentando relacionar os acontecimentos
históricos com a referência da vida cotidiana. Para a docente, a intenção da escola é valorizar
a localidade e em todas as aulas levar um pouco da comunidade, pois todos fazem parte da
História e pensar o papel das crianças nesse meio:

“Quando a gente está lendo eu tento comparar com algo aqui ou falar
determinada coisa. Agora mesmo no 4º ano eles têm a escravidão, isso
mesmo eu costumo falar, a gente trabalha muito pouco, mas eu sempre
coloco a questão dos indígenas, o porque da escravidão, de terem aceito
todos os colonos que vieram para cá, os imigrantes, toda aquela história
teorias, seria maravilhoso, aqui tem bastante alemão, italiano, eu coloco para
eles. A questão do clima, das nossas terras e aqui eu coloco agora mesmo
com a questão da escravidão, que aqui nós temos bastante cerca de pedra,
pois tinha muito escravo. Então a gente tenta colocar, “Aqui nessa localidade
tinha”, porque tem mais pessoas de pele negra, ou porque ouve mais a
miscigenação né, a questão da etnia, alimentação, porque a gente gosta de tal

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coisa. Outra coisa, deixa eu pensar...os alimentos, agricultura, esses dias eu


falei alguma outra coisa estou tentando lembrar, arte não porque a gente não
tem quase nada deles...eu acho a parte melhor de trabalhar de colocar é a
parte da escravidão dos negros que foram trazidos para cá” (entrevista oral
com professora das séries iniciais, 2014).

Entretanto, percebe-se que esse discurso se distancia bastante da prática da docente.


Ela se considera uma professora bastante tradicional, muito apegada ao texto e ao livro
didático. Como referências para selecionar os conteúdos, ela afirma utilizar o livro didático,
televisão e acontecimentos da comunidade, bem como a internet, mas predominantemente
utiliza o livro. Nas observações, sempre utilizou o livro e a leitura em aula é sua principal
metodologia.
Quando questionada sobre quais seus critérios de seleção dos conteúdos, o que
prioriza, ela responde que segue o livro didático e passa os conteúdos selecionados pela
Secretaria Municipal de Educação (SMED), pois o que importa é que se o aluno muda de
escola, ele já tenha visto os conteúdos necessários. Pensando dessa forma, o professor acaba
priorizando os conteúdos e engessa o processo educativo. Quando isso acontece com a
disciplina de História, acabamos por não envolver o aluno, pois muitas vezes nem o próprio
professor enxerga o sentido daquilo que ensina, faz apenas para cumprir etapas. Isso acaba
naturalizando o fato de que a educação é pensada de cima para baixo. A Educação do Campo
propõe a quebra desse ciclo, fazendo com que o sujeito do campo (professor, aluno,
comunidade) pense a educação que precisa, a partir das suas necessidades.
Antes de fazer a crítica ao apego engessado aos conteúdos por parte do professor, é
necessário compreender que nas escolas públicas o mesmo acaba ficando preso a estrutura
educacional, que prioriza os conteúdos. Contudo, para pensar uma educação de qualidade para
o campo, é necessário assumir outra perspectiva e lutar dentro e fora da escola para romper
com o monopólio da sala de aula como único espaço de saber.
A utilização do livro didático da maneira narrada pela professora se torna problemática
na medida em que esses livros (e demais leituras e fontes históricas) se não problematizados,
acabam por reproduzir o que a Educação do Campo busca combater, a reprodução da
ideologia da classe dominante, muitas vezes transmitida pela “história oficial”. Uma das
principais possibilidades do Ensino de História está em fazer com que o estudante justamente
questione a história oficial e a real importância desses “grandes vultos” que a própria
professora cita. Dessa forma o educando pode conseguir visualizar “a que e para que”, em
muitos casos, a História tem servido. Só através dessas problematizações é que o exercício de
se pensar a localidade, os sujeitos, se torna efetivo, ocorrendo a desconstrução da história

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tradicional. Assim, fazer relações com o cotidiano do aluno apenas para explicar o conteúdo
programático sugere que os conhecimentos locais não são mostrados como parte do saber
histórico, tornando-se mais difícil a construção do conhecimento por parte do estudante, no
sentido da emancipação.
Em relação os principais desafios colocados para o ensino de História, a professora
aponta:
“Olha, às vezes eu acho que é a própria família, quando tu pensas em fazer
algo novo...vocês que estão estudando não tem ideia. Se eles não levarem um
questionário de cabo a rabo para a casa os pais acham que não foi uma aula
de História. (...) pois tem pai que te cobra, ele quer avaliação, ele quer aquela
história bem do tempo dele, que é questionário de cabo a rabo. E o maior
desafio mesmo, além da família, é chamar a atenção do aluno” (entrevista
oral com professora das séries iniciais, 2014).

O pensamento tradicional da história e do ensino de história observado na família pela


professora é resultado de um processo educativo que construiu essa perspectiva. Na escola
pesquisada, percebe-se que em muitas vezes a prática da professora reproduz esse pensamento
e isso é resultado do processo de formação da mesma. A professora tem pouca formação
voltada para o ensino de história e para a educação especifica para o campo, porém já tem 30
anos de experiência de sala de aula11. Isso sugere que aprendeu muita coisa na prática
docente, o que é bastante interessante, porém muitos anos na sala de aula sem uma renovação
efetiva de perspectiva podem acabar fazendo com que o professor deixe de refletir sobre suas
próprias práticas, sobre o papel da escola e da educação na nossa sociedade. Sabe-se que isso
não é um acaso, mas resultado de um projeto de educação que não é pensado pelos sujeitos,
onde o professor não precisa ser pesquisador de suas práticas.
A entrevistada também chama atenção para a dificuldade de chamar a atenção do
aluno, e no trecho abaixo, argumenta:

“[...] mas na História [...] acho que devia haver alguma coisa, como
aconteceu em 2005, como a questão do estudo da arqueologia, e eles deram
palestra, chamou a atenção e a gurizada toda gostou né, porque tudo que eles
faziam tinha um fundamento. Se eu não mostro uma coisa de fundamento e
que chame a atenção deles também. É complicado. Eu acho que é pouca
prática né, a gente fica muito na teoria e falta prática de campo, pesquisa de
campo, como se diz né. Vamos sair, vamos caminhar, lá no cemitério, ali tem
túmulos muito antigos. E agente acaba deixando, acho que é um erro até do
próprio professor. Vai ficando para depois. Esse ano mesmo foi muito
apertado... E aquilo que eu te falei, acaba a história ficando meia de lado e a
gente acaba não tirando tempo para fazer essa pesquisa de campo que
ajudaria” (entrevista oral com professora das séries iniciais, 2014).

11
Os questionários aplicados sobre o perfil dos professores sugerem que essa é uma realidade da maioria dos
professores, no que diz respeito ao tempo de profissão na escola Dr. Jaime Faria e a formação.

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A professora reconhece a importância de práticas diferenciadas e bem fundamentadas


e aponta que muitas vezes o professor deveria dar mais atenção para mudança de prática e não
ficar apenas na teoria. Ao longo da entrevista e também no trecho acima, a professora aponta
que as pessoas em geral não valorizam a disciplina de História, mas em nenhum momento
relaciona essa desvalorização a estrutura da escola ou da educação:

“[...] é bem por ai... O desafio é chamar a atenção do aluno. E às vezes, eu


acho que o que falta é nós mesmos, a gente, professor se motivar para trazer
alguma coisa desafiadora (...). Mas acho que a maior questão de desafio é eu
chamar a atenção do meu aluno, acho que nesse sentido a gente poderia
repensar e acho que precisaria também de alguma coisa de fora, mais oficina
por exemplo, de História. (...) mas para história eu não vi nada muito assim
que me fomentasse a procurar. Então eu acho que a gente está precisando de
mais oficina aqui, de repente né, alguma coisa nova” (entrevista oral com
professora das séries iniciais, 2014).

Nessa fala, a entrevistada se questiona sobre a necessidade de renovação, porém


relaciona a solução dessa demanda a algo vindo de fora para dentro, resultado de uma
educação centralizadora conforme explanado anteriormente. Os sujeitos, ao pensarem a
Educação do Campo, constroem uma perspectiva que alinha as práticas a seu contexto de vida
e sua visão de mundo.
A própria professora aponta diversas possibilidades de se explorar a localidade no
aprender e ensinar história. Os amplos saberes do camponês, subjetivos e objetivos, que
provem de sua estreita relação com a terra e produz uma visão de mundo diferenciada. As
diversas identidades que existem no campo, colonos, quilombolas, indígenas, assentados. A
comunidade escolar necessita se enxergar como protagonistas dessas mudanças dentro da
escola, a exemplo dos movimentos sociais, como o MST, onde se colocam na escola não
apenas como expectadores da mudança, mas sujeitos de mudanças, sendo o seu processo de
luta pedagógico.
A professora ressalta que o professor precisa de motivação, de fato, entende-se que o
poder público deve muito ao professor, como a valorização de sua profissão, salários
compatíveis, formação continuada e graduação de qualidade, para que os professores tenham
as condições objetivas de desenvolver sua consciência social, política, enxergar seu papel na
escola e na sociedade, ou seja, que o professor consiga se colocar enquanto sujeito dos
processos dentro e fora da escola. A Educação do Campo, se mantendo sempre a luz das
experiências dos movimentos sociais, é uma importante oportunidade de articulação entre a
comunidade escolar em torno dos seus interesses, do professor refletir sobre suas práticas,
pressionar as autoridades para mudanças na estrutura da escola, num processo de ensinar e
aprender constante.

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Considerações Finais

Esse trabalho procurou apontar algumas discussões preliminares a partir do processo


de pesquisa em andamento, como um exercício de reflexão, tentando compreender o que
acontece dentro da escola e fazer a crítica não descontextualizada, mas procurando
demonstrar que esses processos fazem parte de um sistema de formação e construção de uma
escola que atende a outros interesses. E a partir disso, evidenciar que é possível pensarmos
outra escola a partir das experiências de resistência do território camponês protagonizados
pelos movimentos sociais, que a partir de seu cotidiano, seus saberes, valores, de seu processo
de luta por acesso a educação e qualidade de vida, constroem a Educação do Campo.
Percebe-se, ainda que como análise inicial, que as concepções relacionadas ao ensino
de História na escola pesquisada estão mais ligadas, implícita ou explicitamente, a concepções
tradicionais da escola rural do que com a perspectiva da Educação do Campo. Dessa forma, a
partir de diferentes possibilidades e desafios, se evidencia a importância do estudo sobre a
Educação do Campo enquanto instrumento de articulação entre a escola e a comunidade por
meio do Ensino de História, na oportunidade de integrar os sujeitos do campo enquanto
protagonistas de sua História. Dessa forma torna-se necessário que as lutas, a História dos
conflitos de resistência ao projeto hegemônico de campo estejam presentes. Pois é através de
uma visão dialética e não linear da História, que é possível proporcionar ao educando as
ferramentas para a formação de sua consciência social.

Referências

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Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Diário Oficial da União.
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In: THERRIEN, Jacques; DAMASCENO, Maria Nobre (orgs). Educação e escola do
campo. Campinas: 1993, p. 15 – 40.

CALDART, Roseli. Educação do Campo: Notas para uma análise de percurso. In:
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Entre textos e imagens: ensino de história uma abordagem generificada dos livros
didáticos dos anos noventa e dois mil, do acervo do LEH/UFPEL

Mariana Mirapalheta Insaurriaga1


Rejane Barreto Jardim

Resumo: O presente artigo analisa o Livro Didático de História como fonte e objeto de estudo. O texto que
segue tem como propósito através de uma abordagem generificada discutir as relações de Gênero, no que
compreende o manual nos capítulos que abordam o período medieval. Sendo assim, nossa proposta será de
perceber como as intrincadas relações de gênero se fazem presentes nos livros didáticos. A partir disso, o
propósito será de analisá-las através dos textos e das imagens contidas nos manuais. O trabalho empírico se
debruçou em cinco livros didáticos entre a última década dos anos noventa e a primeira dos anos dois mil. Os
exemplares foram escolhidos através dos critérios de: editoras de maior expressão no mercado do livro didático
(bloco das dez primeiras) segundo o P Nacional do Livro Didático (PNLD) e ano de publicação.
Palavras-Chave: Livro didático. Ensino de História. Gênero. PNLD.

Abstract: This article analyzes History textbooks as a source and object of study. The subsequent text intends
through a gendered approach to discuss gender relations, which includes chapters in manuals that discuss the
medieval period. So, our proposal is to understand how the intricate gender relations are present in textbooks.
From this, the purpose is to examine them through texts and images contained in the manuals. The empirical
work leaned in five textbooks from the last decade of the nineties and the first years of the 2000’s. The editions
were selected using the criteria of: publishers with the highest expression in the textbook market (the first ten)
according to PNLD and year of publication.
Keywords: Textbook. History of Education. Gender. PNLD.

“Como janelas da alma, os olhos possibilitam experiências múltiplas, entretanto, é


pela experiência crítica, por não tomar como dado aquilo que nos chega aos olhos,
que é possível conquistar um olhar inteligente”. (MAUAD, 2007, p. 113)

Introdução

O Brasil é um dos países que mais investe na compra de livros didáticos para o Ensino
Fundamental e Médio. São milhões de exemplares distribuídos gratuitamente para todas as
regiões do país. Esses investimentos se expressam em números astronômicos no que se refere
à avaliação, aquisição e distribuição do livro didático.

“Em 2010, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o SNL (Sindicato Nacional dos
Editores de Livros) divulgaram o estudo Produção e Vendas do Setor Editorial
Brasileiro, 2009, encomendado para Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas
(Fipe), com representatividade de 78% do mercado editorial do Brasil. O estudo

1
Universidade Federal de Pelotas. Contato: mari.insaurriaga@gmail.com

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indicava que 51% dos livros vendidos no Brasil, em 2009, considerando-se o


faturamento, foram didáticos; 15% científicos, técnicos e profissionais; 10%
religiosos e 24% obras gerais”. (CASSIANO, 2013, p. 169).

Nesse contexto, o livro didático é um suporte de ensino de extrema importância dentro


da sala de aula e entre os estudiosos do tema é unânime o entendimento no que diz respeito a
sua assídua presença na vida diária não só de professores, como de educandos. Sendo assim,
entender os processos que se fazem presentes desde sua produção até a sua chegada à escola é
de relevante importância.
Em muitas escolas do Brasil o livro didático é o único meio que o professor e seus
educandos possuem como acesso a um material de suporte diferenciado para realizarem suas
pesquisas, pois em muitos lugares nem mesmo o livro didático é uma realidade.
O Brasil por ser um país de dimensões territoriais imensas, de situação econômica e
gestão bem distinta de um estado para outro, torna a realidade escolar das populações que
frequentam a escola um pouco complexa. No entanto, isso não se reflete somente na
infraestrutura dos espaços da escola, mas na alimentação disponibilizada para os educandos,
nos efetivos de professores e funcionários, assim como no acesso aos materiais didáticos pela
escola e sua permanência na mesma.
Tanto o livro didático, quanto as políticas referentes a este ao longo do tempo foram
sofrendo drásticas mudanças. No que tange ao livro didático, a partir dos anos 1960 ele
começa a mudar significativamente, não só no que diz respeito a parte física do livro, como
no seu foco de atuação.
Segundo Bittencourt (2013), o livro didático está presente no cotidiano escolar de
alunos e professores há pelo menos dois séculos. Desde suas primeiras aparições nas escolas,
seja como ferramenta pedagógica ou não, vem sofrendo diferentes alterações. Ademais,
podemos percebê-las mais expressivamente a partir da década 1960, onde o foco do Livro
Didático passa não mais a ser o professor e sim o aluno. Com isso, nesse momento o livro
começa a sofrer alterações em questões como, linguagem, ideologia, formatação, papel, cores,
imagens e etc.
A partir de 1985 com algumas políticas públicas voltadas para educação como é o caso
do PNLD, passa-se a dar acesso aos materiais didáticos com mais abrangência, porém,
também, nos é claro que, muitos lugares continuam, ainda, não recebendo estes materiais, seja
por distribuição inadequada ou por falta de um senso escolar revisionista:

“A circulação, em se tratando de livro didático no Brasil, é uma operação complexa,


exatamente pela materialidade desse objeto: imagina-se, por exemplo, a logística
envolvida para que os 160 milhões de exemplares, adquiridos pelo Programa

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Nacional de Livro Didático (PNLD), cheguem simultaneamente no início do ano


letivo em todos os recantos do território brasileiro”. (MUNAKATA, 2012, p. 184)

O PNLD foi instituído pelo governo federal, oficialmente, por meio do Decreto n° 91
542, de 19 agosto de 1985, objetivando o Ensino Fundamental (CASSIANO, 2013), e,
reestruturado em 1993, posteriormente em 2007 ampliou-se do Ensino Fundamental e abarcou
os estudantes do Ensino Médio, também, (Guia do Livro Didático, 2015). Percebemos a partir
desse momento um aumento no acesso a estes materiais através das escolas de todo país. Foi,
em um primeiro momento, uma proposta de disponibilizar livros didáticos gratuitos para
todas as instituições escolares dos anos iniciais. Já nos primeiros anos do século XXI este
programa se expandiu atingindo os educandos que frequentavam o Ensino Médio e a
Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Em 1996 passa-se então a avaliar-se esses livros adquiridos pelas escolas, através de
uma junta de profissionais que a partir de um montante de critérios preestabelecidos
classificavam estes materiais. Assim, o PNLD faz uma seleção dos livros didáticos mais aptos
e que comportem todos os critérios exigidos, gerando um documento denominado “Guia do
Livro Didático”, em que estão expressos os critérios avaliativos e os livros mais adequados
frente às avaliações e passíveis de escolha dos professores (MUNAKATA, 2012). Assim:

“[...] O mecanismo que leva o Livro Didático até as mãos do estudante na escola
compreende várias etapas: lançamento de edital para editoras; avaliação dos livros, a
cargo de especialistas recrutados nas escolas e Universidades públicas de todo o
Brasil; escolha dos livros pelos professores, mediante o Guia do Livro Didático;
aquisição dos exemplares e distribuição dos mesmos sob a tutela do FNDE”.
(OLIVEIRA; SANTOS; MENEZES; SILVA; JESUS SANTOS, 2007, p. 54)

Vejamos a Figura 1, aonde constam as classificações segundo os critérios do


Ministério da Educação (MEC) referentes aos livros do PNLD de 2012. A partir desta lista os
professores podem então escolher seus livros. Na figura da próxima página aparecem os
títulos e suas classificações. Além dessa tabela do “Guia do Livro Didático”, existe uma
resenha para cada livro selecionado pelo programa, para que os professores possam ser
auxiliados na hora da escolha do material.
As escolhas dos professores se dão muitas vezes de forma inversa as expectativas do
PNLD. Os dados estatísticos do (MEC, 2001), nos mostram que os livros mais escolhidos
pelos professores durante a década de 1990 e 2000 foram os livros “não recomendados” ou
aqueles “recomendados com ressalvas” (MUNAKATA, [entre 1995 e 2014], p.92).
Frente a isso se coloca toda uma discussão que não aprofundaremos nesse trabalho.
Porém, se faz importante mencionar, pois os livros escolhidos pelo presente trabalho foram
livros que circularam durante o período abordado dentro das escolas, logo passaram pelas

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escolhas dos professores, pelo menos no que diz respeito àqueles que compreendem os anos
pós 1996. Frente a esta situação, levantam-se alguns debates referentes a “péssima escolha”
entre os professores mesmo tendo em mãos os guias “facilitadores”. Observa-se que esse
debate, fruto de algumas pesquisas superficiais, marcadas por posturas extremistas, tendem a
sugerir o professorado como o culpado por estas escolhas, consideradas “equivocadas”. No
entanto, debate este, como já dito, superficial e sem uma abordagem para além dos dados do
PNLD, MEC e INP. É importante ter cuidado quando lidamos somente com dados, e não
adentramos nas especificidades que levaram estes professores a fazerem determinadas
escolhas.

Figura 1.

Fonte: Guia do Livro Didático: PNLD 2012: História, 2011: 23. Acessado em: 11/10/2014 às 18h:
51min

Diversos são os motivos que podem perpassar esta escolha do professorado brasileiro,
uma delas, muito levantada nos debates, seria justamente o que comentei acima, a má
formação dos professores do Ensino Básico e Médio. Contudo, entendemos que essa
indagação não pode ser totalmente negligenciada, porém também segundo as leituras de
Munakata compreendemos que os professores não são os únicos culpados como nos parece a
partir das colocações mesmo que cautelosas do MEC.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 112-130, Jul. 2015


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Seria muito cômodo responsabilizar os professores por todos os processos de má


formação dos educandos por conta de suas escolhas distintas das idealizadas pelos programas
educacionais, e por toda sorte de problemas que a escola e a educação nacional vêm sofrendo
nas últimas décadas. De um lado, o tom geral do debate parece encaminhar a reflexão para o
fato de os professores serem uma categoria profissional mal remunerada e mal formada, e,
que não teria problema algum carregarem mais esse fardo. De outro lado, ao Estado não
caberia responsabilidade alguma, pois este cria os “programas perfeitos”, cabendo aos mal
formados e mal pagos profissionais da educação, passivamente, apenas aplicarem seus
programas “perfeitos”.
Nessa lógica os professores simplesmente devem opinar pelo melhor, se estes estão
escolhendo errado frente à indicação do PNLD através do Guia do Livro Didático, as
responsabilidades não são mais do Estado e, sim das péssimas escolhas realizadas pelos
“péssimos profissionais”. Na contramão dessa abordagem reducionista, a responsabilidade
não seria de um possível distanciamento entre as políticas educacionais e a realidade Escolar?
Culpar o professorado é muito fácil, quando não sabemos nem mesmo como são efetuadas as
avaliações dos critérios que norteiam o livro didático. Esses critérios são muito amplos, −
como vimos na imagem 1 − dando uma margem enorme de interpretação segundo a
subjetividade de cada avaliador, por isso, torna-se um problema sério reduzirmos essa
complexa teia e culpar somente os professores.
Vejamos a citação abaixo no que diz respeito a esse distanciamento:

“Embora essa hipótese [de má formação] não possa ser descartada, o que surpreende
é a ausência gritante da possibilidade de equívocos nas avaliações realizadas pelo
PNLD. Não é possível que os próprios avaliadores tenham uma formação
inadequada? Como o avaliador é avaliado? Como é recrutado? A esse respeito, o
Guia de Livro Didáticos, em várias edições, é extremamente lacônico”.
(MUNAKATA, [entre 1995 e 2014], p. 93)

Dito isso, percebemos a importância de entender o estudo do livro didático como uma
fonte complexa, e, além disso, como diz (BITTENCOURT, 2011) é um objeto de muitas
“facetas”, logo não podemos analisá-lo sem perceber suas relações com mercado, com as
políticas educacionais, como veículo portador de um sistema de valores, além disso, como um
suporte pedagógico. Ademais, para além dessas questões também devemos percebê-lo no
sentido que envolve diversos sujeitos no seu processo tanto de fabricação, como de consumo
(BITTENCOURT, 2013):

A análise da produção do livro didático também traz à tona a diversidade dos


sujeitos que dela participam: autores, editores de texto, editores de arte, redatores,

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preparadores de texto e revisores, leitores críticos, consultores, pessoal de


publicidade e marketing, divulgadores e etc”. (MUNAKATA, 2012, p. 187).

Partindo de todas essas questões iremos fazer uma abordagem dos livros didáticos com
um “olhar generificado”. A proposta aqui consiste em realizar um estudo desses materiais no
sentido de percebê-los para além de uma fonte, mas entendendo os diversos agentes que
interpassam sua criação e distribuição. Partindo deste princípio vamos nos ater as questões
intrincadas nas relações de gênero dentro dos manuais. Esse estudo será realizado no que
compreende o recorte temporal da Idade Média dentro livro didático, o propósito será de
analisar imagem e texto, observando como essas relações de gênero dialogam dentro do
mesmo.
Para que nosso estudo seja possível precisamos entender o contexto que ele foi e está
sendo forjado, para que possamos ter um melhor entendimento do livro didático tanto como
nosso objeto estudo, quanto fonte de pesquisa.
Os estudos e debates sobre o livro didático nos últimos trinta anos vêm se ampliando,
os pesquisadores do tema como Choppin e Bittencourt mostram a sua complexidade e
múltiplas “facetas”. Dentre as primeiras dificuldades de se estudar os manuais didáticos estão
as poucas pesquisas sobre o tema e a sua difícil conceituação.
Partindo dessa problemática, as reflexões de (BATISTA; GALVÃO, 2009) nos
apresentam o livro didático como um objeto de difícil definição, que deve ser estudado a luz
de seu tempo, pois este não tem um conceito pronto, por que passou por diversas mutações ao
longo da história. Assim, a partir das leituras destes autores fica claro que, convencionou-se,
no século XIX e XX através de uma conceituação feita em 1984 por um grupo de estudiosos
fixarem o livro didático em um suporte por excelência. O livro então passa a ser associado a
uma forma privilegiada de registro, onde o impresso foi vinculado a áreas bem delimitadas,
onde algumas disciplinas faziam parte, e a História constituiu-se uma dessas ciências (p. 13).
Porém, dentro dessa complexidade de conceituar os autores nos mostram que tanto no
presente, ou em um futuro próximo esse conceito vem se ampliando. Sendo assim, trazem os
diversos suportes que abarcam os materiais didáticos. Para estes dois autores o suporte livro
didático se constitui também em:

[...] imagem digital presa a uma tela de computador. Se ainda, da mobilidade do


presente movemos os olhos para o passado o “livro didático” é também tabela,
translado, folheto, já que materiais destinados ou adequados á instrução; é também –
como apontam estudos - um conjunto de manuscritos, como cartas pessoais e
documentos de cartório, [...], e, por fim, livro de doutrina cristã, gramática,
exemplares da constituição, cartazes com diferentes combinações de sílabas e [etc.]
(BATISTA; GALVÃO, 2009, p. 13-4)

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Entendo os diferentes suportes que podem constituir-se no Livro Didático, e que ao


longo dos anos ele foi se articulando com diversos fatores intrínsecos às metodologias
empregadas pelos professores na sua prática diária. Porém, o meu aporte teórico será baseado
na autora Circe Bittencourt, onde no livro Ensino de História Fundamentos e Métodos a
autora nos traz uma divisão bem delimitada do que seriam os diversos materiais didáticos.
Como minha pesquisa utiliza esses manuais na contemporaneidade e seu suporte está fixado
pelas normas do PNLD, não me ative a esclarecimentos profundos sobre os conceitos ao
longo do tempo. Porém, compreendo o livro didático como objeto complexo que adquire
diversos suportes.
A autora Circe Bittencourt divide estes materiais em duas categorias: os que ela
denomina como “Suportes Informativos e Documentos”.
Para a autora “suportes informativos, correspondem a todo discurso com intenção de
comunicar elementos do saber das disciplinas escolares” (BITTENCOURT, 2011, p. 296).
Também dizem respeito a todos aqueles materiais que já no seu processo de criação são
pensados diretamente para a escola como material pedagógico. Seu vocabulário obedece a
uma linguagem própria que se ajusta a questões de idade, onde devem seguir uma
conformidade pedagógica segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação.
Bittencourt diz que esses materiais fazem parte da indústria cultural e veem na escola seu
principal mercado consumidor. Então, esses suportes informativos são: todas as publicações
de livros didáticos e paradidáticos, atlas, dicionários, apostilas, cadernos, além das produções
de vídeos, CDs, DVDs, assim como materiais de computador (CD-ROMs, jogos, etc.).
Já os “Documentos”, encaixam-se em outro grupo de materiais didáticos. Pertencem a
todo o conjunto de signos, visuais ou textuais, que foram ou são produzidos em uma
perspectiva que não a mesma dos saberes das disciplinas escolares, e foram posteriormente
incorporados pelos professores com uma finalidade pedagógica em suas aulas.
Esses documentos não foram produzidos com intenção de pertencerem ao espaço
escolar, porém, passaram a pertencer ao universo escolar pelo fenômeno da ressignificação.
Seu objetivo era de atingir um público mais amplo e diversificado, porém acabou sendo
inserido nas atividades escolares.
Então o que seriam esses “Documentos”? Eles não são produzidos necessariamente
pela indústria cultural e comportam aqueles suportes como disse acima que não tem como
destino específico à escola. “São contos, lendas, filmes de ficção ou documentários
televisivos, músicas, poemas, pinturas, artigos de jornal ou revistas, leis, cartas, romances”

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etc., toda sorte de documentos produzidos para um público mais amplo e incorporado pelo
professor a suas aulas (BITTENCOURT, 2011, p. 297).
O conceito de livro didático utilizado neste artigo baseia-se nas normas do PNLD e
segundo a conceituação da autora (BITTENCOURT, 2011). A pesquisa está inserida em um
período no qual os livros devem estar articulados a um padrão de suporte para serem aceitos
pelo programa do livro didático, sendo assim nosso suporte será preferencialmente o que a
autora Bittencourt chama de “suportes informativos”.
As pesquisas sobre o livro didático começam a surgir timidamente a partir da Escola
dos Annales, ou melhor, da terceira geração dos Annales, onde o conceito de fonte é ampliado
e esses temas que ficavam na marginalidade das pesquisas começam, mesmo que
timidamente, a aparecer. Os estudos sobre o livro didático surgem junto com a história do
livro e da leitura. Não seria diferente com os estudos de gênero e história das mulheres, que
nesta mesma fase passa-se a incorporar as pesquisas históricas.

As Mulheres e a História das Lutas

As mulheres tiveram na história um espaço à parte dos homens e permeiam a história


como se não tivessem existido, sofrendo desde a modernidade o fenômeno de invisibilidade.
Assim, a autora (SCOTT, 1995) nos diz que gênero é utilizado para nos indicar que qualquer
informação sobre as mulheres, é necessariamente uma informação, também, sobre os homens,
“um implica no estudo do outro”. O mundo da mulher faz parte do mundo do homem, ao
estudar um estamos estudando o outro. A partir desse pressuposto queremos identificar nos
livros didáticos como através das imagens e dos conteúdos percebemos as relações de gênero.
Portanto, fazem parte do alargamento das fontes e objetos de pesquisa as lutas dos
movimentos sociais, no nosso caso de estudo, o movimento feminista, que nos anos 1960
através das suas pautas também contribuíram para que esses temas começassem não só a
serem discutidos na sociedade, como dentro das Universidades refletindo então em
dispositivos como os livros didáticos.
Os manuais didáticos representam um modelo de sociedade, um modelo de história,
ele molda, ele fabrica conjunturas e verdades, versões sobre o passado e sobre os homens e
mulheres das sociedades neles apresentadas. Portanto, este trabalho tem como objetivo fazer
uma análise crítica sobre esses manuais, a ponto de identificar o lugar que está delegado ao
feminino nesse dispositivo que entra pela “porta da frente nas Escolas”. Dito isso, perceber as

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 112-130, Jul. 2015


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relações de gênero no livro didático pode nos dizer muito mais de nossa sociedade atual do
que das próprias relações no período medieval. Conforme Choppin:

“Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos


corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época
e local, e possui como característica comum apresentara sociedade mais do modo
como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o Livro Didático como
gostariam de que ela fosse, do que ela realmente é. Os autores de livros didáticos
não são simples espectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o
agente. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade para
educar as novas gerações, fornecendo uma imagem deformada, esquematizada,
modelada, frequentemente de forma favorável: as ações contrárias à moral são quase
sempre punidas exemplarmente; os conflitos sociais, os atos delituosos ou a
violência cotidiana são sistematicamente silenciados” (CHOPPIN, 2004, p. 557).

Diante disto, nossa intenção é dar visibilidade ao invisível, buscando os não ditos
destes manuais. Assim, para pensar o universo feminino na produção do livro didático não
podemos deixar de rastrear os começos infindáveis da história das mulheres. Farei uma breve
contextualização dos acontecimentos protagonizados pelas mulheres no que se refere aos
espaços de lutas e suas reivindicações no que compreende o final do século XIX até o auge
das lutas feministas nos anos 1960 e 1970.
Foi então a partir das lutas feministas que propunham a resistência e busca por
direitos, que, passamos a perceber uma flexibilidade pequena, mas substancial para com a
realidade vigente das mulheres em sociedade. Nesse fervor de lutas seus direitos passam a ser
ampliados. Em um primeiro momento no sentido das mulheres obterem o direito de votar e
serem votadas, logo em seguida abrangendo seu amplo “leque” de luta, e passam a
adentrarem a todos os espaços da sociedade.
Partindo deste princípio entendo que os movimentos sociais foram de extrema
importância para que as condições de invisibilidade não só em sociedade, como através até
mesmo de mecanismos ideológicos como o próprio livro didático tivessem mudanças reais.
A luta das mulheres foi e tem transformando mesmo que a “doses” pequenas o
contexto diário destas, assim a partir da tomada de consciência e busca por seus direitos pode-
se garantir parte de algumas demandas substanciais. Além disso, “o desenvolvimento de
[novos campos do saber] tais como a história das mentalidades e a história cultural reforça o
avanço na abordagem do feminino” (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 285). Por conta disso, passa-
se a estudar um pouco mais não só o cotidiano dessas mulheres, como também cria-se um
espaço de luta através da militância de muitos intelectuais do próprio movimento feminista.
Submetidas à invisibilidade social na história, as mulheres por longos séculos
estiveram sempre à sombra dos homens e quando apareciam era de forma tímida ou quando

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em posições privilegiadas como no caso da nobreza, quando se tratava das rainhas. Mulheres
estas que pertenciam à nobreza e, sobretudo, na maior parte das vezes estavam ali para
enaltecer e afirmar ainda mais a posse e o poder que o sexo masculino tinha sobre elas.
Porém, a partir do final do século XIX com as frentes de lutas feministas e na segunda metade
do século XX com a nova Escola Cultural Francesa, pode-se então ampliar o rol de estudos
onde as mulheres passam a fazer parte das pesquisas e suas histórias emergem frente a esses
períodos de escuridão e misoginia. Sobretudo, por que, a própria escrita da História sempre,
ou quase sempre, foi feita pelos homens.
Assim, para que possamos entender um pouco dessa retomada vejamos o processo de
luta das mulheres ao longo da história. Os movimentos sociais feministas na sua origem
podem ser divididos em “ondas” para melhor pensar sua história. O feminismo de “primeira
onda” teve seu início no final do século XIX, tinha como objetivo conquistar direitos
políticos, como a possibilidade de votar e de serem eleitas. Além disso, reivindicavam
trabalho remunerado, estudo, propriedade e herança (PEDRO, 2005).
Já no que tange ao feminismo de “segunda onda” que ocorreu depois da Segunda
Guerra Mundial, tinha-se como reivindicação às lutas pelo direito do corpo, ao prazer e contra
o patriarcado – que se constituiu no poder dos homens sobre as mulheres no período em
questão – assim, a palavra de ordem entoada pelas feministas era “o privado também é
político”. Então, foi justamente, na “segunda onda” que a categoria gênero foi criada, a ponto
de não mais explicar as relações homem/mulher através do determinismo biológico e, sim,
pensado e articulado com a cultura. Porém, a palavra gênero ainda não é utilizada nessa
“segunda onda” era só o sentido representado e contido na nomenclatura, assim palavra
utilizada pelas feministas no que tange a oposição ao “Homem” era “Mulher” (Idem).
Por fim, e não menos importante, a “terceira onda” foi uma espécie de reformulação e
análise interna do próprio movimento feminista, pois já não se podia explicar as mulheres
com as mesmas especificidades. Assim, a partir da década de 1990 entendeu-se que as
mulheres além de sua condição inferior referente ao gênero/sexo, ainda carregavam marcas da
“etnia” e da “classe social”, por isso, novas análises e discussões se deram nesse âmbito
(Idem).
No Brasil os movimentos se deram de forma muito fragmentada, com múltiplas
manifestações, objetivos e pretensões bem distintas. A sua história, desde os primeiros
momentos, mas, mais ainda no que tange principalmente pós anos 1960, quando de seu pico,
foi pautada por esta multiplicidade (PINTO, 2003).

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O feminismo no Brasil foi construído a partir das demandas e peculiaridades do país.


Não foi algo importado e que renegou as contradições e lutas presentes no Brasil. Desde o seu
início o movimento feminista brasileiro encontrou-se em manifestações que se remetem a um
campo de luta muito particular.
E o campo da educação não ficaria alheio a estas mudanças. As discussões foram de
extrema importância para que aos poucos pudéssemos observar as inserções dessas questões
na sociedade e no próprio livro didático mesmo que timidamente.

Os livros didáticos através de um olhar das relações de gênero

Como já foi abordado anteriormente vamos nos deter ao Livro Didático (LD) como
fonte e objeto de pesquisa. Nossa metodologia de análise partiu da seguinte seleção de livros:
Saber e Fazer História; História Geral: Antiga e Medieval; História Memória Viva: da Pré-
História a Idade Média; Projeto Araribá: história e História Geral e do Brasil, foram os
títulos pesquisados para elaborar as reflexões deste trabalho.
Nossa pesquisa se concentrou nos livros do Laboratório de Ensino de História da
Universidade Federal de Pelotas (LEH) e do meu acervo pessoal. O trabalho foi realizado em
quatro etapas. O primeiro momento foi de reconhecimento do acervo no arquivo do
laboratório (LEH), o segundo foi de escolha desses livros, o terceiro foi à análise dessas
fontes quantitativamente e a quarta e última etapa, e nem por isso, menos importante foi a
análise desses LDs entre conteúdos e imagens. Resumindo a análise qualitativa da pesquisa.
Nosso primeiro movimento de reconhecimento dos livros abarcou-os como um todo.
No entanto, nos dedicamos a duas abordagens quantitativas, uma no que diz respeito ao livro
no seu todo e a outra no capítulo dedicado a análise qualitativa. O objetivo é identificar
quantas imagens apareciam na obra toda e no capítulo no que se refere ao feminino e as
relações de gênero, e, quantos box são apresentados ao longo dos capítulos. Esse trabalho foi
feito em todos os livros analisados, vejamos a tabela abaixo, onde estão divididos os livros e
seus resultados.

Tabela 1. (Dados dos livros no todo).


Livro Didático Ano/ Editora Nº de Páginas Imagem Box
Nº-1 1996/ Scipione 152 14 00
Nº-2 1991/ Saraiva 158 9 1
Nº-3 2007/ Moderna 248 40 6

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Nº-4 2013/ Scipione 344 21 4


Nº-5 1999/ Saraiva 160 27 1

Através do levantamento dos dados percebemos que os livros com datação mais atuais
são os que contem mais número de páginas, de imagens e box. Os livros mais antigos
comprovam o que a nossa bibliografia vem explicitando frente ao avanço dos LDs nos
últimos anos. Esses livros antigos além de conterem poucas imagens e em alguns casos
nenhum box, são muito resumidos, com papel de pouca qualidade e uma produção gráfica
bem simples. Porém, um detalhe interessante que percebi foi o grande número de mapas que
possuem os capítulos.
Vamos observar os mesmos dados só que agora nos capítulos que serão destinados a
análise qualitativa. No livro todo, os dados já são escassos, quando nos dedicamos a recortar
mais nosso foco de pesquisa dentro do livro didático esses dados se tornam ainda mais
escassos.

Tabela 2. (Dados dos livros no que compreende os capítulos de História Medieval).


Livro Didático Ano/ Editora Nº de Páginas Imagem Box
Nº-1 1996/ Scipione 152 4 00
Nº-2 1991/ Saraiva 158 4 1
Nº-3 2007/ Moderna 248 3 2
Nº-4 2013/ Scipione 344 4 1
Nº-5 1999/ Saraiva 160 1

Logo, o que nos é visível com os dados dos capítulos específicos, é que os números
independentemente das obras mais antigas ou das mais novas não oscilam, muito pelo
contrário, eles se mantêm. Diferentemente do que acontece com a obra no todo.
Percebendo isso, nosso foco agora será problematizar esses dados e confrontá-los com
o interior dos capítulos destinados ao nosso problema de pesquisa.
Em todos os livros analisados o espaço para o feminino e suas relações de gênero é
extremamente reduzido. Os textos quase não mencionam as mulheres e sua relação em
sociedade, quando mencionam e de forma breve e pontual.
É difícil encontrar livros que deleguem um espaço dentro do corpo do texto para
mostrar que as mulheres fizeram parte da sociedade medieval, e, que também foram sujeitos
da história. Quando são referenciadas nesses textos estão em caixas box, e de uma forma
tímida, pouco aprofundada e na grande parte das vezes estão ligadas sempre a mesma

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temática. Mesmo quando trocamos de livros percebemos o feminino sempre ou quase sempre
ligado a virgem, ao casamento, a heroína, e, em alguns casos, estão associadas à arte, onde
aparecem representadas em quadros ou esculturas.
Outro detalhe interessante é que essas mulheres raramente estão sozinhas nas imagens,
aparecem sempre acompanhadas de seus esposos, pais ou irmãos. No entanto, quando estão
sozinhas é na forma da Virgem Maria ou em obras de arte como a da Mona Lisa e etc.
As rainhas e as heroínas são os modelos mais frequentes dos editores de livros
didáticos, dificilmente não aparecem. Mas uma das mulheres mais representadas nos livros
que tenho observado empiricamente é Joana D’Arc. Ela está em boa parte deles. Reparei essa
mulher como heroína e herética, uma dicotomia constante. Percebi que está ligada a duas
coisas muito presentes no período medieval, à religião e à guerra. Essas mulheres que estão
representadas nos livros estão sempre ligadas a uma ordem da sociedade muito maior do que
elas representam na realidade. Quando heroína tem um perfil masculino, pois está vestida e se
comportando como homem. Quanto herética e punida, está servindo de exemplo aos fiéis
cristãos. Vejam bem, que as mulheres aparecem sempre em segundo plano, nunca estão como
protagonistas da história.
As imagens femininas que aparecem nos capítulos e unidades estudadas são raras
como já foi mencionado anteriormente. Mas o mais grave é que essas figuras iconográficas
dialogam pouquíssimo com o texto, assim como a caixa box. Ficou evidente o seu papel de
adorno dentro do texto, pois na maioria dos livros analisados as imagens contidas estavam ali
assim como o box, como forma de enxerto dos textos.
A imagem é um texto sem palavras, é um material pedagógico de extrema importância
para se trabalhar em sala de aula. Assim como outros materiais didáticos ela aproxima do
estudante realidades que eles não viveram. Deixa próximo o período que comporta a história
recuada ao tempo presente ou coisas e lugares que eles jamais terão acesso ao longo de suas
vidas (NAPOLITANO, 2003). Por isso, a importância delas estarem “amarradas” ao texto,
mais que simples adornos ao projeto gráfico do livro, é uma ferramenta de ensino e, logo, um
objeto complexo. Circe Bittencourt nos diz que “atualmente as obras didáticas estão repletas
de ilustrações que parecem concorrer, em busca de espaço, com o texto escrito” (2013, p. 69).
Porém essas imagens pouco ou quase nada são problematizadas, isto foi constatado através
desta pesquisa.
Estão expressos no Guia do Livro Didático de 2015, os seguintes critérios aos quais os
avaliadores devem perceber este material. As obras que não respeitarem estas abordagens são

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eliminadas do processo, estes critérios elencados no quadro abaixo submetem os manuais ao


crivo dos avaliadores segundo o requerido pelo PNLD:

Quadro 1:
Avaliação das imagens (projeto gráfico do Livro Didático).
Segundo o Guia do Livro Didático 2015, PNLD 2014.

As imagens devem:
Critério 38.
- ser claras e precisas, adequadas às finalidades para as quais foram
elaboradas;
- retratar adequadamente a diversidade étnica da população
brasileira, a pluralidade social e cultural do país (p. 135).

Quando, de caráter científico, respeitar as proporções reais dos


Critério 39. objetos e seres representados, a identificação e as formas de acesso a esse
material:

- no caso de gráficos e tabelas, apresentar títulos, fontes e datas;


- no caso de mapas e outras representações gráficas do espaço,
devem apresentar legendas, escala, coordenadas e orientações em
conformidade com as convenções cartográficas (p.136).

Disponibilidade das informações necessárias à leitura e


Critério 40. entendimento de imagens, gráficos, tabelas, mapas e infográficos:

- estar acompanhadas dos respectivos créditos e da clara


identificação da localização das fontes ou dos acervos de onde foram
reproduzidas (idem).

Porém, entendemos os limites do livro didático enquanto uma “mercadoria” que


obedece a critérios de mercado como, por exemplo, os próprios direitos autorais das imagens.
Assim, como o aparato ideológico e técnico que está contido no processo de criação do LD
(BITTENCOR, 2011, p. 73). Os critérios observados no quadro acima, formulados através
das obrigatoriedades do “Guia do Livro Didático”, nos parece de extrema relevância e de
inserção inquestionável.
Além disso, também entendemos a importância do professor, pois cabe a este na
maioria das vezes a escolha do material utilizado nas suas aulas e não seria diferente com o
LD. A escolha do livro é um ato político, pois sabemos o tão complexo que é essa ferramenta
de trabalho que esteve e ainda está extremamente presente na vida de professores e
educandos. Seja como forma de montar seu cronograma de aula ou de aproximação do

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conhecimento mais abstrato, o livro de classe sempre ou quase sempre esteve vinculado as
aulas de história.
Circe Bittencourt traz em seu texto “Livros Didáticos Entre textos e Imagens” (2013) a
colaboração das reflexões do historiador Ernest Lavisse no que se refere às imagens. Este
autor de inúmeras obras didáticas na França, em suas contribuições sobre o tema, nos diz que
a imagem serve para o aluno “ver as cenas históricas”, e que este era o objetivo principal que
as justificava, ele também diz que quanto maior o número de imagens melhor será a
contribuição para o aprendizado,
[..] pois as ilustrações concretizam a noção altamente abstrata de tempo histórico,
ainda diz que as gravuras serviam para facilitar a memorização dos conteúdos. Nesse
sentido, as vinhetas ou legendas explicativas, colocadas abaixo de cada ilustração,
indicavam o que o aluno deveria observar e reforçava a ideia contida no texto.
(LAVISSE apud: BITTENCOURT, 2013, p. 75)

Na grande maioria dos Livros Didáticos que observei ao longo da pesquisa, e os que
pude ter acesso através dos meus estágios nas escolas públicas, não percebi uma preocupação
em integrar imagem-texto, salvo alguns exemplares atuais é raro identificarmos esta estrutura
do livro como tão importante quanto o texto escrito. Os livros didáticos são feitos por muitas
“mãos especializadas”, vários sujeitos estão envolvidos nesse processo, isso por si só já faz
com que o autor perca um pouco da autonomia sobre o texto. Quanto às imagens muitas vezes
nem mesmo é o autor que faz a seleção. Como nos diz Roger Chartier (2002), autores não
fazem livros e, sim, os editores, autores escrevem textos. Por isso, perceber o LD como uma
mercadoria sujeita as alterações de mercado, é importante para que não se faça análises
precipitadas, assim como entender o papel do autor dentro dessa produção pode nos prevenir
de conclusões levianas.
Por fim, chegamos à conclusão da extrema importância do professor como mediador
no manuseio do livro em aula. Junto com todas as etapas pela qual passam os livros didáticos
até que estes cheguem ao seu verdadeiro destino que é a mão do educando e de seus
professores, esse objeto sofre inúmeras intervenções, muitas vezes proporcionando resultados
finais díspares das propostas pedagógicas das escolas, ou até mesmo contendo sérios
problemas.
Ademais, sabemos que os livros passam pelo crivo de avaliadores do PNLD, mas isso
não nos garante que todos os descompassos contidos neles possam ser resolvidos. Problemas
pontuais como distanciamentos culturais, sociais e políticos são recorrentes nos manuais.
Portanto, não esqueçamos que os livros são portadores de uma ideologia, seja ela do
Estado, pois desde a sua aparição estão ligados às políticas governamentais, ou até mesmo a

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própria ideologia dos produtores desse material. Como produto da indústria cultural o LD diz
muito mais sobre o modelo que as sociedades devem ser, do que como ela realmente é. Ele
expressa signos de seu tempo, por isso, devemos olhá-lo à luz de sua contemporaneidade, para
que não ocorram distorções anacrônicas (BATISTA; GALVÃO, 2009).
Acreditamos que já tenha ficado clara a complexa ferramenta que o livro de classe se
constitui. Perceber as relações de gênero dentro deste é importante, pois permite através das
rupturas e “avanços” que a história vem sofrendo que seja possível ao professor tratar de
assuntos tão delicados, como preconceitos étnicos, raciais, xenofobia, gênero, sexualidade.
São questões de extrema importância e que estão intricadas nas relações sociais, logo estão
presentes dentro da escola e dos seus materiais didáticos. Portanto, é papel do professor,
saber, transformar os silêncios ou as distorções, como o preconceito e a discriminação em um
suporte didático, para mostrar para o seu educando as contradições sociais e históricas de
produção das diferenças sociais.

Conclusão

Ao longo da pesquisa vimos ainda o quanto assuntos como gênero e Histórias das
Mulheres se tornou algo silenciado nos materiais didáticos e não só neles, na literatura em
geral. No entanto, nos parece talvez que a expressão certa não seja tornou-se, e sim é como se
dá o silenciamento ao longo da História. As relações de gênero nos mostram que o feminino
está contido no masculino e vice-versa, que ao estudar um estamos estudando o outro
(SCOTT, 1995). Porém, a literatura escolar muito tem a revisar seus livros, até que estas
relações mostrem as omissões da história. Séculos e séculos de invisibilidades e
silenciamentos para com as mulheres.
Os livros pesquisados não fizeram nada além de citar as mulheres em alguma parte
brevemente, quando dedicaram alguns parágrafos foi em caixa box, deslocada do corpo do
texto, ou através de imagem enxertada do lado do texto, sem fazer relação sequer com o
feminino de forma coerente.
Essa relação do feminino em sociedade raramente aparece nos livros didáticos, quando
aparecem é para mostrar a mulher como, boa mãe e esposa, no mundo do trabalho, no
máximo como tecelã, como religiosa dedicada e casta e em alguns momentos como educadora
de uma parcela de infantes mal-educados que deveriam se doutrinar através do galanteio da
dama, segundo as regras do romance de cavalaria ou pelas normas do amor cortês. Vejamos
que nada muito além aparece sobre as mulheres, quando atingem um pseudo protagonismo

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estão ligadas à arte ou à religião, sempre cercadas pelo homem único “protagonista da
história”.
O Ensino de História nesse contexto torna-se importante para que possamos refletir
sobre essas questões na produção do LD à luz dos tempos históricos, mas, não só através dele,
porém, não se limitando apenas ao LD, indo além dele, compreendendo os vários materiais
didáticos elencados ao longo deste artigo. Entender os distanciamentos e aproximações que
comportam todos os sujeitos que interferem no desenrolar da vida na escola e de seus
materiais de ensino, fazem-se de extrema importância a partir do momento que entendemos
que não são neutros, logo carregam inúmeros juízos de valores, ideologias, representações,
preconceitos e projetos de sociedade.

Fontes

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História e cultura afro-brasileira: delineando novas práticas pedagógicas

Aristeu Castilhos da Rocha1

Resumo: O objetivo deste artigo é contribuir para romper com o "silêncio" que existe a respeito do ensino de
História e Cultura Afro-brasileira mesmo há mais de dez anos da aprovação da lei 10.639/2003. Para tanto,
buscou-se primeiramente organizar uma contextualização baseando-se na legislação e na pesquisa bibliográfica.
A seguir encaminhamos algumas possibilidades pedagógicas pontuadas nas nossas experiências, visando
focalizar a potencialidade da temática em questão e a dinamização do processo de ensino e aprendizagem de
História.
Palavras-chave: História, Cultura Afro-brasileira, Ensino e Aprendizagem.

History and culture afro-brazilian: outlining new teaching historia

Abstract: The aim of this paper is to contribute to breaking the "silence" that exists regarding the teaching of
History and Afro-Brazilian culture even more than ten years since the approval of Law 10.639 / 2003. To this
end, we sought to first organize a context based on the law and literature. Then we send some pedagogical
possibilities scored in our experiments aiming to focus the potential of the theme in question and the dynamics of
teaching and learning history process.
Keywords: History, Afro-Brazilian Culture, Teaching and Learning.

Introdução

Ao aceitar a incumbência de escrever este artigo lembremo-nos de uma interessante


passagem de Alberto da Costa e Silva em “Um Rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o
Brasil na África”. No referido livro o pesquisador destaca: “É necessário e urgente que se
estude, no Brasil, a África – pregava incansável, na metade do século XX, mestre Agostinho
da Silva” (SILVA, 2003, p. 283). Refletindo a partir dessa ideia, percebemos a atualidade do
pensamento deste intelectual português (1906-1994), e é possível chamar a atenção com
urgência para a necessidadede intensificação desses estudos abarcando, também, a História e
a Cultura Afro-brasileira.
Na produção deste artigo, apresentamos a contextualização temática permeada por
breves reflexões teóricas e a seguir compartilhamos com os colegas e leitores algumas
possibilidades sugeridas na oficina “História e Cultura Afro-brasileira: delineando novas

1
Doutor em História (PUCRS), Docente, Pesquisador e coordenador do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros e Indígenas) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha - Campus Júlio de
Castilhos. Professor colaborador do PPG - Mestrado Profissional em Ensino de História, UFSM. Contato:
aristeu@jc.iffarroupilha.edu.br

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 131-148, Jul. 2015


132

práticas pedagógicas”, ministrada durante a XX Jornada de Ensino de História e Educação,


organizada pela ANPUH/RS (Associação Nacional dos Professores de História) e FURG
(Universidade Federal de Rio Grande) de 3 a 6 de novembro de 2014. Dessa forma,
esperamos contribuir para que outros olhares para esta temática sejam possíveis.

Contextualização

As relações entre o Brasil e a África inserem-se em um processo histórico de longa


duração e repleto de interações sociais, humanas e culturais. Essas relações inauguram um
espaço de expansão das navegações, disputas comerciais, tratativas políticas, trocas culturais,
diversidade de povos e etnias e migrações forçadas de homens e mulheres africanos
escravizados que de acordo com Flávio dos Santos Gomes calcula-se “em dez milhões, ou
mais, a quantidade transportada para as várias regiões das Américas, entre os séculos XVI e
XIX, tendo o Brasil recebido 40% destes” (GOMES, 2003, p. 448).
A chegada dos povos africanos assenta-se no processo colonizador sob a orientação da
teoria econômica do mercantilismo: latifúndio, monocultura e escravidão. A partir dessa
realidade, articula-se o negro como força básica de trabalho no ciclo do açúcar (Engenhos), da
Mineração (Datas) e do Café (Fazendas). Além dessas situações, eles desempenharam
diversas atividades em múltiplos espaços: doméstico, carregadores, banheiros, alfaiates,
sapateiros, pedreiros, carpinteiros, vendedores, etc. Os africanos e seus descendentes
contribuíram significativamente e, juntamente com outras etnias, para formação do povo e da
cultura brasileira. Para que isso fosse possível, os negros tiveram que vencer muitas
adversidades – como explica Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva:

Ao serem tirados do convívio de suas famílias e nações, transportados como


mercadorias e explorados em seus conhecimentos e em sua força física, os
escravizados viveram radicalmente a experiência de significar o mundo e de se
constituírem como seres humanos (SILVA, 2010, p. 43).

A evolução histórica brasileira é marcada por muitos fatos históricos que vão definir a
sociedade e o século XIX: “Independência” política (1822) importante para o delineamento
do Estado Nacional que faz a opção pela imigração, defende a ideologia do branqueamento e
determina a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. Na esteira desses
acontecimentos, ocorre a abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República
(1889). No período pós-abolição, a sociedade brasileira vivencia uma série de transformações
que não contemplam os ex-escravos relegados à exclusão social. A liberdade tão sonhada não

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 131-148, Jul. 2015


133

propiciou “às populações negras o acesso à terra, à moradia, à educação, enfim, aos bens
produzidos nesse processo histórico para garantir uma vida digna” (SILVA, 2010, p. 144).
Esses povos que chegaram ao Brasil oriundos da Guiné, Angola, Moçambique, Costa
do Ouro (atual Gana) mesmo sobrevivendo enquanto escravos, traziam consigo e
preservavam ideias, mitos, ritos, crenças, símbolos, experiências, comidas, cores, conceitos,
gestos, indumentárias, sons ritmos, instrumentos, palavras e habilidades. Na realidade, todas
essas vivências se constituíram em elementos importantes para inaugurar um movimento
transatlântico que seria decisivo no processo de reelaboração da cultura africana no brasil.
Os povos africanos, apesar de explorados e oprimidos, há cinco séculos vêm
elaborando o que Petrolhina Silva denomina de “africanidades” (SILVA, 2005, p. 155), ou
seja, partes importantes da cultura brasileira têm seu nascedouro na África. Para compreender
essa História, no entendimento de José Rivair Macedo é preciso “ir além da informação dos
fatos e recuperar os diferentes contextos e processos pelos quais seus povos atuaram ao longo
dos tempos, como sujeitos detentores dos rumos de seu destino” (MACEDO, 2013, p. 7-8).
Nesse processo de relações sociais escravista, desigual, racista, multicultural e
conflituosa, o negro participa e vivencia diferentes experiências históricas e encontra, ao
longo do tempo, interessantes formas de resistência como: fugas, assassinatos, suicídios,
abortos, religiosidade, terreiros, quilombos, capoeira, Clubes Sociais Negros e Clubes de
Samba. Essas iniciativas levam-nos a crer que o africano escravizado no Brasil não aceitou
passivamente a condição de oprimido e com todas as adversidades resistiu criando
alternativas que influenciaram, decisivamente, no modo de ser, viver, apontar suas demandas
e, assim, “lutaram por melhores condições de vida e pela sua liberdade, contribuíram espaços
para afirmação de solidariedade e para a manifestação de sua cultura e visões de mundo”
(MATTOS, 2007, p. 215).
Durante a evolução histórica brasileira entre os meados do século XIX e princípios do
XX, as elites econômicas brancas consideravam o negro como obstáculo para a consolidação
do Brasil enquanto estado-nação. Enquanto isso as populações africanas ao assumir cada uma
das formas de resistência, anteriormente mencionadas, dinamizaram paulatinamente
importantes atitudes que vão desencadear o processo de formação do Movimento Negro.
Essas ações serão reafirmadas a partir da década de 1930 inicialmente sob a liderança
de Abdias do Nascimento, Grande Othelo e Ruth de Souza. Esses militantes ganharam o
apoio e instigaram opositores. Durante os anos de 1930 e nas décadas seguintes (1940, 1950)
organizaram importantes pautas: publicação de artigos em jornais (o “Alfaiatae”, o “Kosmos”,
“A Voz da Raça”, “o Clarin d’Alvorada”); cursos de alfabetização; a FNB (Frente Negra

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Brasileira, 1931); o TEM (Teatro Experimental do Negro, 1944); o I Congresso do Negro


Brasileiro, em 1950. Todas essas iniciativas entrelaçavam educação e cultura, mas também
defendiam a inclusão social dos afrodescendentes.
Durante o desenvolvimento dessas práticas, as lideranças já mencionadas ganharam o
incentivo de intelectuais como Jorge Amado, Edison Carneiro, Roger Bastide, Pierre Verger,
Guerreiro Ramos, entre outros que passaram apoiar a causa. Entretanto as importantes
conquistas desses movimentos não conseguiram impedir que o mito da democracia racial
chegasse ao auge. A mesma refletia como afirma Luiz Fernandes de Oliveira “o senso comum
popular, assim como as teorias ‘científicas’ no campo das ciências humanas durante as
décadas de 1950 e 1960” (OLIVEIRA, 2011, p. 249).
Nos anos de 1960 e 1970 o mundo vivenciou importantes movimentos que abalaram,
em diferentes regiões, a ordem econômica, política, social e cultural. Nesse contexto ocorre,
por exemplo, os movimentos feministas e estudantil (Europa), as guerras de “independência”
(África), a Guerra do Vietnã (Ásia) e ação dos movimentos guerrilheiros (América Latina).
É neste cenário que as questões relativas aos povos negros ganharam outra conotação.
A partir da década de 1960, dinamiza-se o movimento dos negros nos EUA pelos direitos
civis, movimento pelas independências das colônias localizadas na África (para citar alguns
exemplos: Guiné-Bissau – 1937; Angola – 1975; Moçambique – 1975; Cabo Verde – 1975)
além de reflexões iniciais a respeito do conceito de “Consciência Negra”. Na sequência ocorre
“ênfase nas lutas anticolonialistas, decorrendo o pan-africanismo, rumo a uma África livre e
descolonizada; violentos conflitos raciais na África do Sul, com o regime do Apartheid;
Nelson Mandela e Steve Biko se transformam em símbolos mundiais contra o racismo”
(OLIVEIRA, 2011, p. 253).
No Brasil ocorre o Golpe (1964) e a implantação do Regime Militar (1964-1984)
alicerçado na ideologia da Segurança Nacional direcionando os rumos do país via ordem,
desenvolvimento e integração nacional. Inaugura-se um tempo de repressão: o Congresso é
fechado, os partidos políticos são extintos, proibiu-se as organizações, eliminou-se o pessoal
da esquerda e reprimiu-se os negros e seus defensores. O povo negro sobreviveu “invisível”
entre os grupos desprestigiados socialmente e sob a ótica da “democracia racial” onde sofre,
intensamente, as consequências da produção das desigualdades entre ricos e pobres.
Tendo em vista essa realidade é que, na segunda metade da década de 1970, a
sociedade brasileira começou a dar sinais de possíveis mudanças tendo como ponto de partida
as ações desencadeadas pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) com o apoio da ala de

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vanguarda da Igreja Católica e movimentos sociais que passaram a reivindicar a Anistia, as


eleições diretas e a organização do processo constituinte.
Entre os movimentos sociais organizados nos anos de 1970, pode se destacar o
Movimento Negro Unificado (MNU), (1978). Em meio a esse contexto o conceito:

de movimento negro se torna comum a partir das entidades e grupos negros surgidos
na década de 1970, para designar coletivos de negros e negros que procuravam
valorizar a própria cultura, lutar contra o racismo e reivindicar melhores condições
de vida (OLIVEIRA, 2011, p. 244).

A reativação do Movimento Negro Unificado (1978) ocorre sob a influência, no plano


externo, das lutas pelos direitos civis dos afro-americanos e dos movimentos pelas
“independências” das colônias africanas. No plano interno, enquanto isso, acontecia o que
Pereira (1999) chamaria de “Choque Social”, pois, continuava vigente o êxito do mito da
“democracia racial” e por isso alguns setores esquerdistas acreditavam que ações do MNU
não causariam nenhum impacto.
A partir dessa realidade, o MNU desenvolve várias ações pela valorização da escola
pública, democratização do ensino, denuncia o racismo e a ideologia dominante no interior
das escolas, faz críticasa livros didáticos, ao currículo e à formação de professores. Nessa
esteira promove o seminário “O Negro e a Educação”, publica os “Cadernos de Pesquisas”,
vivencia o centenário da Abolição (1988), colabora para a Constituição de (1988), comemora
os 300 anos da morte de Zumbi (1995) e a seguir dá início às discussões a respeito das ações
afirmativas.
Nessas reflexões e práticas, destaca-se a participação de intelectuais e figuras
históricas do Movimento Negro: Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, Joel Rufino dos Santos,
Henrique Cunha Jr, Carlos Hasenbalg, Léila Gonzalez, Luiza Helena de Barros, Sueli
Carneiro, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, etc. No Rio Grande do Sul, segundo Luiz
Gonçalves e Petronilha Silva, “a evocação do primeiro 20 de novembro ocorreu em 1971,
como ação do professor e poeta Oliveira Silveira no Grupo Palmares, em Porto Alegre”
(GONÇALVES e SILVA, 2000). Oliveira vai além das discussões e propõe o dia 20 de
novembro como o Dia da Consciência Negra em homenagem ao herói negro “Zumbi dos
Palmares”.
Posteriormente, na década de 1990, o MNU consegue redimensionar o olhar para o dia
13 de Maio passando a considerá-lo “Dia Nacional de Denúncia contra o racismo”. Quanto ao
20 de novembro adota-se, nacionalmente, a ideia de Oliveira Silveira,criando-se, dessa forma,
a “Semana Nacional da Consciência Negra”.

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É oportuno lembrar que a reafirmação do movimento negro no Brasil, na década de


1970, coincide com as mudanças mencionadas por Pereira: “o samba e outras manifestações
culturais de matrizes africanas haviam se consolidado como legítima cultura popular
brasileira” (PEREIRA, 2008). Para que essa revalorização do samba aconteça é
importantíssima a participação de compositores e interpretes como: João Nogueira, Martinho
da Vila, Paulinho da Viola, Candeia, Clara Nunes, Alcione, Beth Carvalho, Noca da Portela,
Roberto Ribeiro, Clementina de Jesus, Elizeth Cardoso, Nei Lopes, Chico Buarque de
Holanda, Paulo Cezar Pinheiro, Cartola, Nelson do Cavaquinho, Dona Ivone Lara, entre
outros.
Trata-se de um movimento significativo para História da África e da Cultura afro-
brasileira. Na realidade a sua ressignificação permite outros e novos olhares para as
“africanidades” que passam a ser interpretadas enquanto patrimônio cultural brasileiro. Nessa
perspectiva é que militantes históricos agilizam tratativas visando dar visibilidade para a
História e a Cultura afro-brasileiras, propondo sua inserção nos debates da constituinte, LDB
e legislações que viessem em sua decorrência.
A Constituição Brasileira, promulgada em 1988, traz em seu bojo importantes avanços
como a inclusão de questões relativas ao meio ambiente, povos indígenas e educação. De
acordo com Maria Alice Rezende Gonçalves e Ana Paula Alves Ribeiro, a Constituição
“contemplou a questão da diversidade cultural nacional por meio de artigos como o número
215, que se refere à proteção das manifestações das culturas populares indígenas e afro-
brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório brasileiro”
(GOLÇALVES E RIBEIRO, 2012, p. 14). Quanto ao ensino de História aponta que o mesmo
deverá levar em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias na formação do povo
brasileiro. Por outro lado, torna-se interessante evocar uma pertinente passagem de Valter
Roberto Silvério quando este enfatiza: “temos uma constituição inclusiva e uma hegemonia
do nacional excludente” (SILVÉRIO, 2010, p. 94). No entanto, as mudanças constitucionais
presentes na Carta de 1988, ao reconhecerem a pluralidade cultural da nação, lançaram as
bases para transição de um país de “uma só nação”, de “um só povo”, para um país de
“múltiplas culturas”, de “várias etnias e raças”.
A seguir, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) nº 9394/1996 inova quanto aos aspectos
pedagógicos da educação e inclui o dia 20 de novembro como o “Dia Nacional da
Consciência Negra”. Vai além do que determina a Constituição Federal (1988) ao enfatizar
que o ensino de História do Brasil deve focalizar a contribuição das matrizes indígenas,
africanas e europeias no nosso processo de formação social e cultural.

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Na sequência, em 1997, foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais que


orientam o processo educativo nas diferentes regiões brasileiras. De acordo com os
Parâmentros Curriculares Nacionais, “o grande desafio da escola é investir na superação da
discriminação e dar a conhecer a riqueza representada pela diversidade etnoculturalque
compõe o patrimônio sociocultural brasileiro” (PCN’s, 1997, p. 32). Os PCN’s destacam a
necessidade de inserirmos nas abordagens a pluralidade cultural enquanto observamos certo
“silêncio” em relação às culturas indígenas e africanas.
A Conferência Mundial contra o Racismo, discriminação Racial, a Xenofobia e as
intolerâncias correlatadas (Durban, 2001) ratificou parte das deliberações da Conferência das
Américas (Santiago, 2000). Tornou o conceito “afrodescendente” como “linguagem
consagrada” pela ONU; promoveu avanços nas respostas governamentais em direção ao
combate ao racismo, à discriminação e as às desigualdades raciais. Por outro lado,
recomendou iniciativas de ação afirmativas com recurso e programas para os
afrodescendentes, vítimas de preconceitos, nas áreas da saúde, educação, habitação,
eletricidade, água potável, meio ambiente, etc. A delegação brasileira “além de levar as
reivindicações históricas do Movimento Negro, um dos itens exigidos foi aintrodução dos
estudos de História da África e História do Negro nos currículos escolares brasileiros”
(OLIVEIRA, 2012, p. 119-120).
Ao se redefinir a Conferência de Durban (2001), Alain Kaly, por sua vez, defende: “é
possível defender a “África” como inspiradora de mudanças, tendo precipitado as decisões
políticas para a implementação das políticas públicas compensatórias” (KALY, 2013, p. 186).
Nelas, os impactos positivos são, entre outros, o ensino de História e Cultura da África, dos
afrodescendentes e povos indígenas.
Na continuidade desse processo extremamente rico e complexo marcado pela
emergência de movimentos sociais, discussões, projetos e ações visando atenuar as
desigualdades é aprovada a Lei 10.639/2003 em meio a um intenso debate social com especial
destaque para a participação do movimento negro. A Lei 10.639/2003 tornou obrigatório na
Educação Básica o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana no Brasil.
Ao se referir a temática da lei 10.639/2003, José Rivair Macedo por sua vez assim se
manifesta: “o objetivo é romper com o silêncio que persiste nos currículos tradicionais e
ampliar o espaço da África e dos Africanos na memória coletiva do Brasil, que é considerado
o país com maior população afrodescendente do mundo” (MACEDO, 2013, p. 7). A mesma
reúne elementos sugestivos de mudanças importantes no ensino da disciplina escolar de
História “em virtude de ela apresentar tradições curriculares consolidadas e que trazem como

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marca o protagonismo do homem branco em detrimento dos processos vivenciados pelos


africanos em nossa sociedade” (TORRES E FERREIRA, 2014, p. 89).
A aprovação da Lei 10.639/2003 se aglutina a um contexto de debates, enfrentamento
ao racismo, organização de programas de ações afirmativas, luta pelos direitos dos povos
indígenas e populações afrodescendentes. De certa forma a lei 10.639/2003 no entendimento
de Júnia Sales Pereira atendeu criticamente “o ensino de história centrada nas narrativas
etnocêntricas, em que registros de história afro-brasileira foram ignorados ou silenciados, ou
compareceram, via de regra, de forma estereotipada” (PEREIRA, 2011, p. 148).
A seguir, em 2004, são publicados as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana, que regulamento a alteração da lei 9394/1996 pela lei 10.639/2003. A sua leitura
revela a valorização da diversidade e propõe estratégias pedagógicas visando a superação das
desigualdades étnico-raciais. Além disso, as Diretrizes Curriculares Nacionais salientam que
“não se trata de mudar o foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano,
mas de ampliar o foco dos currículos escolares para diversidade cultural, racial, social e
econômica brasileira” (DCN’s, 2004, p. 17).
Em 2008, a Lei 10.639/2003 foi modificada por outra, a lei ordinária nº 11.645/08, de
março de 2008, que inclui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura afro-brasileira,
africana e indígena no currículo escolar. É evidente que essa gama de acontecimentos
acrescidos da nova legislação vai causar impacto na Educação Brasileira. Ao estudar o
conteúdo estabelecido pela lei 11.645/08 e a integração com as propostas de educação étnico-
raciais explicitadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (2004), Circe Bittencourt
argumenta:

Ambas as propostas relacionam-se aos esforços de determinados setores da


sociedade para superação de “um imaginário étnico-racial’ que privilegia a brancura
e valoriza principalmente as raízes europeias de sua cultura, ignorando ou pouco
valorizando as outras, que são a indígena, a africana, a asiática” (BITTENCOURT,
2013, p. 102).

Em meio a essas tensões, surgem reflexões e questionamentos a respeito do ensino de


História e da escola na Educação Básica. Nessa perspectiva Selva Guimarães adverte:
“respeitar, valorizar e incorporar a história e a cultura afro-brasileira e indígena na educação
escolar são atitudes que não podem, a meu ver, ser tratadas como meros preceitos legais, mas
um posicionamento crítico perante o papel da História como componente formativo da
consciência histórica e cidadã dos jovens” (GUIMARÃES, 2013, p. 80).

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Delineando novas práticas

Após a fundamentação respaldada na legislação e nos autores que se debruçaram sobre


a temática, pretendemos, neste texto, apresentar algumas possibilidades para a abordagem da
História e Cultura Afro-brasileira. Muitos são os caminhos que permitem a sua realização,
mas escolhemos inserir neste escrito as sugestões apresentadas na oficina que fomos
incumbidos de ministrar. Tomemos inicialmente a literatura, cinema e a música como
caminhos. A seguir, partilhamos outras reflexões e alternativas.
Ao realizar as reflexões teóricas revisamos os aportes científicos, retomamos conceitos
como uma elaboração teórica e cultural, sugerimos temáticas, indicamos fontes e alternativas.
Delineando esse caminho, retomamos um texto antecedente (ROCHA, 2013) quando
procuramos estabelecer diálogos entre ensino e pesquisa em História utilizando “linguagens
alternativas”, tais como: imagens pictóricas, gráficas, fotografias, textos, letreiros, cartazes,
documentos escritos, artigos de jornal, obras literárias, mapas, cultura material, história oral,
acervo de museus, filmes, documentários e músicas, enfim, as inúmeras “linguagens
expressivas”.
A literatura é um texto que, como outro texto qualquer, é permeado pela subjetividade
de seu autor, mas nem por isso ele deixa de ter importância e relevância. Pelo contrario,
reconhecidamente a subjetividade é algo a ser considerado e deve permear também os estudos
históricos. No ensino, o uso da literatura pode, portanto, ser pensado como um importante
recurso de interpretação e reflexão sobre a História.
Entre tantas características desse uso, podemos ressaltar que os textos literários podem
trazer dimensões que os textos mais “históricos”, por vezes, podem não produzir. A história e
a literatura, nesse entendimento, representam formas diferenciadas de apresentar o ser
humano e as suas relações com a sociedade, a cultura, enfim, com o mundo. A literatura
representa o ser humano no tempo a partir de narrativas descompromissadas com os
acontecimentos. A história, por sua vez, vale-se do presente para recolher, selecionar e
interpretar fontes do passado e busca, dessa forma, construir narrativas comprometidas com a
realidade vivenciadas pelos seres humanos em diferentes contextos e temporalidades.
Nesta perspectiva, a História e a Literatura não podem ficar aprisionadas a uma
narrativa repleta de batalhas, heróis, mitos, símbolos, crenças, tradições ou a ótica onde os
índios são preguiçosos, as mulheres menos inteligentes e os negros supersticiosos.
Defendemos que ambas precisam abrir espaço para novas temáticas, onde negros, índios,
mulheres, desfavorecidos economicamente, etnicidade, diversidade, pluralidade cultural,

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cidadania, direitos humanos, tenham asseguradas as suas presenças como objetivo de


discussão.
Os textos literários nos remetem para dimensões do cotidiano. Por outro lado
permitem a sua interligação com o leitor e/ou estudante. Isto nos leva a refletir a respeito do
que diz Margarida Oliveira: “a literatura é um texto que como outro texto qualquer é
permeado pela subjetividade do seu autor, mas nem por isso ele deixa de ter importância e
relevância” (OLIVEIRA, 2013, p. 222). Na realidade são produções que podem nos ajudar na
compreensão de contextos e de sujeitos históricos.
É nesta linha que passamos a propor a literatura como fonte de ensino e pesquisa em
História. Em outras palavras, uma literatura tendo como pano de fundo o contexto histórico e
a realidade socioeconômica. É nessa linha de pensamento que passamos a sugerir atividades
coma as seguintes obras literárias: “Bruna e a galinha d’Angola” (Gergilda de Almeida);
“Histórias Africanas para contar e Recontar” (Rogério Andrade Barbosa); “Menina Bonita do
Laço de Fita” (Ana Maria Machado); “A Cor da Vida” (Semíramis Pateno); “Gosto de África,
estórias de lá e daqui” (Joel Rufino dos Santos); “A Ovelha Negra” (Aibê Bernardo); “Mota
Coqueiro” (José do Patrocínio); “Meu Amor Negro” (drama/preceitos de Maria Kupstas); “O
Cortiço e o Mulato” (Aluísio de Azevedo); “A Escrava Isaura” (Bernardo Guimarães); “As
Minas do Prata” (José de Alencar); “O cabeleira” (Franklin Távora); “As Vítimas-algozes:
quadros da escravidão, O Moço Loiro” (Joaquin Manuel Macedo); “Pai contra Mãe”
(Machado de Assis); “O Bom-crioulo” (Adolfo Caminha); “Lendas Negras” (folclore de
JulioHemilioBras e Salmo Dansa); “Três Anjos Mulatos do Brasil” (Biografia Pe José
Mauricio, Mestre Valentin, Aleijadinho; autor: Rui de Oliveira); “África Eterna” (Rui de
Oliveira). Esses dois livros trazem uma abordagem histórica, geográfica, cultural e literária;
“Essa Nega Fulô; Invenção do Orfeu” (Jorge de Lima); “Jubiabá; Mar Morto; Tenda dos
Milagres” (Jorge Amado); “O Horto” (Auta de Souza; RN 1876/1901); “Úrsula” (Maria
Firmina dos Reis; MA 1825/1917). Várias obras sobre o cotidiano do Rio de Janeiro do
século XIX (João do Rio – 1881/1921), Quarto de Despejo, Pedaços de Fome, Provérbios,
Diário de Bitita (Carolina Maria de Jesus); Estórias Quilombo (MEC, 2008); Contos Crioulos
da Bahia (Mestre Didi); Um Defeito de Cor (2007, Ana Maria Gonçalves); Contos Africanos
dos países de língua portuguesa (PNBE, 2011); Kizomba, andanças e festanças -1998, Ópera
negra – 2001; Memórias Póstumas de Teresa de Jesus – 2002; O Nascimento do Samba –
2014 (Martinho da Vila).
No campo da poesia, sugerimos as criações de Castro Alves; Oliveira Silveira; Lima
Barreto; Jorge de Lima; Maria Rita Py Dutra; Solano Trindade; Henrique Cunha; Esmeralda

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Ribeiro; etc. Quando unimos literatura e linguagem musical encontramos relíquias nas obras
de Noel Rosa, Candeia, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nei Lopes, Luiz Carlos da Vila,
Mauro Duarte, João Nogueira, Paulo Cezar Pinheiro entre outros. A Literatura Negra
Brasileira de acordo com Selma Maria da Silva:

Faz uma releitura dos espaços/tempos de cotidiano particularizado pelas tensões


étnicas e culturais. As representações estéticas desse fenômeno concretizam-se
através das representações das relações entre as categorias sociais e culturais na
poética de escritores negros (SILVA, 2012, p. 45).

Sob esta ótica, recomendamos a utilização de obras literárias como ferramentas


imprescindíveis para a construção do conhecimento histórico. A leitura, a interpretação e
análise de romances, crônicas, poesias, contos, textos literários e/ou jornalísticos podem
tornar-se instrumentos e estratégias importantes para um ensino de História agradável e
interessante.

História e Cinema

Uma alternativa que tornam enriquecedoras e atraentes as atividades de ensino de


História é o cinema. Os filmes representam uma temática, um tempo histórico, um
personagem, um povo, uma cultura, uma época. Podemos afirmar que é um processo intenso,
onde se aglutinam ideias, sentidos, verdades, mitos, medos, crenças, imaginações, sonhos,
emoções, amores. Além disso, a historicidade do filme:

assim como de outras fontes, situa-se tanto em seu fazer, na sua lógica constitutiva,
como em seus temas, nas leituras, sensibilidades e olhares que suscita. Como
produto cultural, o filme, seja ficcional, seja documentário, tem uma história e
múltiplas significações (GUIMARÃES, 2013, p. 265).

Cabe destacar, deste modo, que as relações pedagógicas que envolvem os filmes e o
conhecimento são o fato de ambos se constituírem em construções mentais, as quais precisam
ser produzidas de forma intensa e criteriosa. Para a utilização de filmes em situações de
ensino é importante frisar que o mesmo precisa estar em sintonia com os conteúdos
abordados, ser escolhido no coletivo da sala de aula, a sua projeção deve ser antecedida de
uma orientação e/ou contextualização por parte do professor, pois a atenção e concentração
dos alunos são fundamentais para sua compreensão. Após a projeção, é importante que seja
realizada uma análise oral seguida do preenchimento de uma ficha teórica que contenha,
inclusive, uma síntese sobre o filme.

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Para sua análise é interessante que sejam observados os seguintes aspectos: contexto
histórico, temática, acontecimentos principais, personagens, cenários, lugares, tempo em que
ocorre a narrativa, linguagem, fotografia, sonoplastia, iluminação, figurinos, equipe de
produção, direção. No entanto, é pertinente lembrar que não basta assistir aos filmes. Como
diz Bittencourt, “é preciso preparar os alunos para a leitura crítica dos filmes, começando por
uma reflexão sobre os próprios a que eles assistem” (BITTENCOURT, 2004, p. 376).
Por sua vez, no que tange ao filme histórico, Peter Miskell argumenta que “o que se
torna importante não é tanto os detalhes factuais e sim o sentido transmitido pelo filme, ou
seja, a mensagem que envia aos espectadores e a autenticidade histórica daquela mensagem”
(MISKELL, 2011, P. 290). Assim, se bem utilizados, os filmes podem tornar-se um recurso
valioso e indispensável no processo ensino–aprendizagem de História.
De acordo com esse olhar sugerimos filmes cujos temas estão ligados às questões da
História e Cultura da África e dos Afro-brasileiros, os quais podem passar a ter importância
no bojo das discussões ou da construção do conhecimento em História, entre eles podemos
indicar: “Frente a Frente com o Inimigo”; “Último Rei da Escócia”; “África dos meus
Sonhos”; “Cleópatra”; “Duma”; “A Rainha do Sol”; “Zulu”; “Sarafina!”; “Madalena – Luta
pela Liberdade”; “Poder de um Jovem”; “Lugar Nenhum na África”; “Um Grito de
Liberdade”; “Bamako”; “A outra História Americana”; “Crash”; “No Limite”; “Em Defesa da
Honra”; “Mississipi em Chamas”; “Tempo de Glória”; “Malcon X”; “Os deuses devem estar
loucos”; “Invictus (Madalena)”; “Amistad”; “Batalha de Argel”; “Diamante Negro”; “Amor
Sem fronteira”; “Hotel Ruanda”; “Entre Dois Amores”; “Lágrimas do Sol”; “Fala Tu;
“Cafundó”; “Besouro”; “As Filhas do Vento”; “Quanto vale ou é por quilo”; “Quilombo”;
“Xica da Silva”; “O Paí-o”; “Chico Rei”; “Meu Tio Matou um Cara”; “Macunaíma”; “Cidade
dos Homens”; “Carandiru”; “Cidade de Deus”; “Madame Satã”; “Neto Perde sua Alma”;
“Palmares”; “Carlota Joaquina”; “Princesa do Brasil”; “A Cor Púrpura”; “Adivinhe quem
vem para jantar”; “Ray”; “O Jardineiro Fiel”; “12 Anos de Escravidão”; “ As Filhas do Vento
“, “Castro Alves: Retrato Falado do Poeta”; “Abolição”; “Atlântico Negro: na rota dos
Orixás”; “Mestre Bimba”; “Kiriku e a Feiticeira”. Um documentário interessante é “Vista
Minha Pele” (Joel Zito Araújo).
Com certeza a interpretação de um filme também tem algo de subjetivo e é resultado
de toda a bagagem de conhecimento que a pessoa construiu. O filme, cultura visual, se insere
em uma infinidade de linguagens como desenhos, pintura, caricatura, fotografia, quadrinhos e
cinema entre outras fontes para o ensino e pesquisa em história.

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A incorporação de filmes no processo de aprendizagem no ensino de história “pode


contribuir de forma significativa para a educação histórica, ética e estética dos indivíduos”
(GUIMARÃES, 2013, p. 269).

História e Música

Outra linguagem alternativa interessantíssima é a música, a qual é uma das mais


criativas manifestações artísticas e culturais de um povo e forma de comunicação que faz
parte de nossas vidas. Quando falamos em música lembramo-nos de sons (melodias), de letra
(mensagem), temas, vozes, gestos, vestimentas, paixões, lugares e culturas.
A utilização da música nos remete a necessidade de sugerirmos atividades que
orientam para o levantamento de informações, estudo de símbolos, figuras de linguagem,
amores, etnicidades, cotidiano, trabalho, valores, ideias, modos, comportamentos,
mentalidades, identidades, regionalismos, questões sociais, econômicas e políticas, e
diversidades; originando, inclusive, novas formas de organização de conteúdos.
É pertinente lembrar que as letras das músicas também reforçam clichês, representam
evidências, registros de fatos, eventos sociais, manifestações culturais e conceitos que devem
ser analisados à luz de seu contexto sociocultural. Tal atividade, com certeza, colabora para a
elaboração de conceitos espontâneos, bem como nas suas relações com os conceitos
científicos. Por outro lado, segundo Selva Guimarães “a incorporação de canções desperta o
interesse dos alunos, motiva-os para as atividades, sensibiliza-os em relações aos diversos
temas e desenvolve a criatividade” (GUIMARÃES, 2013, p. 286).
É enorme a potencialidade histórica e cultural da música, no Brasil e no mundo.
Convém atentar para o fato de que a música, aliada a um conteúdo inovador, pode constituir-
se em um componente lúdico e cognitivo para a conscientização, indagação, inserção social,
sensibilização, experiências individuais e coletivas bem como estratégia didática para um
ensino de história inovador, valorativo e coerente com as necessidades da sociedade
contemporânea.
A música no cotidiano do espaço escolar precisa ultrapassar os contornos de adorno e
agregar-se aos estudos de História Cultural. Em meio a esse processo, abre-se um enorme
espaço para a discussão da música popular Brasileira (MPB), principalmente as ligadasao
samba, tendo em vista as suas origens históricas ligadas à África e aos negros brasileiros. Os
principais elementos da música africana no entendimento de Helena Theodoro “são de caráter
rítmico-percussivo, coreográfico, místico-religioso, vocal, lexical e humorístico. Esses

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elementos viriam a fazer parte direta da estrutura musical brasileira” (THEODORO, 2005, p.
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Passamosa elencar algumas músicas que tratam de temáticas sintonizadas com às
questões da África e da História e Cultura Afro-brasileira. O desafio é inseri-las nas
abordagens, procurando, sob o ponto de vista didático, explorá-las da melhor forma possível.
Entre elas podemos citar: “Pelo Telefone” (Dunga); “Aquarela do Brasil” (Ari Barroso,
“Lindo e Trigueiro”); “Canta Brasil” (Alcyr Pires Vermelho); “Canto das Três Raças” (“Um
canto de revolta pelos ares”); “Brasil Mestiço”; “Santuário da Fé”; “Jogo de Angola”; “Deusa
dos Orixás”; “O Mar Serenou”; “Morena de Angola” (eternizadas na voz de Clara Nunes);
“Embala eu (Clementina de Jesus)”; “Sorriso Negro” (Dona Ivone Lara); “Dia de Graça”
(Candeia); “Kizomba”; “Festa da Raça” (Luíz Carlos da Vila, “Valeu Zumbi... o grito forte
dos Palmares); “Carta a Mandela”; “Nas Veias do Brasil” (Beth Carvalho); “Balaio de Sinhá”,
“Terreiro Brasil”, “Kissanga (Graça Braga)”; “Preceito”, “Oxum Olá”, “Conceição da Praia”,
“Jardim das Oliveiras” (Luiza Dionísio); “Milagres do Povo” (Caetano Veloso/Gilberto Gil);
“Todo o camburão tem um pouco de navio negreiro” (Rappa); “Lavagem Cerebral” (Gabriel,
O Pensador); “Retrato em Claro e Escuro” (Racionais MC’s) e “Black isBeautiful”/Preto é
Bonito, (Marcos e Paulo Sérgio Valle), entre outras.
Nesse mesmo enfoque também as músicas infantis podem ser trabalhadas
criticamente, principalmente “Escravos de Jó” e “Boi da Cara Preta”. Vale à pena dar uma
pesquisada nas composições de Arlindo Cruz, Leci Brandão, Noca da Portela, Paulinho da
Viola, João Nogueira, Paulo Cezar Pinheiro, Nei Lopes, Jorge Aragão, Almir Guineto,
Martinho da Vila; buscar o repertório de Alcione, Clara Nunes, Margarete Menezes, Teresa
Cristina, Fundo de Quintal, Diogo Nogueira, Graça Braga, Luiza Dionísio, Aline Calixto,
Thaís Macedo, Clara Moreno, Fabiana Cozza.
Os sambas-enredo das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, principalmente,
constituem-se em um vasto universo em que as temáticas afro-brasileiras sempre estão
presentes. Como exemplo, lembramos os enredos “IluAyê, terra da vida” (Portela, 1972);
“Negro”, “Liberdade: Realidade ou Ilusão” (Mangueira, 1988), “Tambor” (Salgueiro, 2009).
Sugerimos que sejam revisitados sambas de enredos apresentados pelas escolas: Beija-Flor,
Estácio de Sá, Império Serrano, etc.
A riqueza histórica, poética e melódica da MPB, principalmente nos gêneros que
guardam a ancestralidade africana e indígena, se bem explorados metodologicamente, podem
se construir em uma vertente fértil para o enriquecimento do ensino de História. É necessário
sublinhar a importância das práticas pedagógicas alicerçadas em linguagens mentais e

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produções de saberes históricos por parte dos alunos. Esse processo quando bem conduzido
pode desencadear, conforme Milton Duarte, “reflexões, práticas ou interpretações históricas
auxiliando na construção da consciência histórica dos principais sujeitos envolvidos no
processo ensino-aprendizagem” (DUARTE, 2013, p. 220).
Salientamos, portanto, a pertinência de aprendizagens significativas para o avanço de
conquistas sociais, democráticas e humanas. Ainda sob esta ótica, nos referimos à interessante
possibilidade de inserir atividades lúdicas no processo educativo. Esses encaminhamentos
podem contribuir para que ocorra a aprendizagem da história através da música.

Considerações finais

Na busca pela inserção da História e Cultura Afro-brasileira nas práticas pedagógicas


em História, entendemos ser pertinente ressaltarmos ainda alguns pontos significativos para a
sua abordagem tais como: partir da atualidade das questões afro-brasileiras, enfatizar a
diversidade social e cultural desses povos, abordar os conceitos enquanto uma construção
histórica e cultural, levantar dados e saber onde e como se encontram os afrodescendentes,
analisar as informações do censo 2010; destacar a participação desses povos em todos os
momentos históricos e culturais entre a África e o Brasil, explorar imagens, mapas, textos
jornalísticos, documentários sobre a temática em questão, pesquisar sobre as famílias afro-
descendentes e a sua participação na história da comunidade local e regional, trabalhar as
relações étnico-raciais, etc. Por outro lado, é fundamental que a abordagem dessas histórias e
culturas propiciem aprendizagens significativas.
Ensinar e aprender História requer um diálogo permanente com diferentes saberes e
fontes. Ao aceitarmos este desafio direcionando o nosso foco para a História e a Cultura Afro-
brasileira, precisamos estar convictos que a contribuição da História não é só “a compreensão
da própria realidade e a formação da identidade, mas também a concepção da diferença, da
alteridade- tanto para ensinar a convivência nas sociedades que hoje são, na maioria,
multiculturais, quanto para ensinar a julgar o próprio sistema político e social em que se vive”
(CERRI, 2011, p. 126).
Na realidade é imperiosa a necessidade de superar o caráter territorial dos saberes,
focalizar os conteúdos de forma contextualizada e, a partir de uma pedagogia ativa, provocar
mudanças conceituais e a proposição de diálogos interdisciplinares estimulando outros
caminhos para novos estudos. Nessas perspectivas, convergimos com o pensamento de
Oliveira que incentiva “ relacionar o ensino de História a outras disciplinas, pode ser bastante

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enriquecedor. Afinal, apostar na interdisciplinaridade é buscar novos enfoques para a


educação” (OLIVEIRA, 2013, p. 225).
Ao produzirmos este artigo, explicitamos a nossa responsabilidade, teorizamos,
relacionamos múltiplos sujeitos, instauramos possibilidades de diferentes interpretações,
compreendemos o significado de nossas práticas culturais como lutas pelas ações afirmativas,
sublinhamos mudanças, mas, com certeza, não esgotamos o tema. Com a socialização deste
esperamos contribuir para que novas práticas pedagógicas em História sejam possíveis.

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Memória escolar: perspectivas sobre educação e aprendizado infantil

Bruna Garcia Martins1


Daniel Porciúncula Prado2

Resumo: O presente artigo utiliza as narrativas de professoras de História do 3º e 4º ano da Escola Admar
Corrêa da cidade de Rio Grande/RS para compreender sua perspectiva acerca do processo de formação da
identidade infantil e também perceber como é aplicado o trabalho com as fontes que não estão presentes no
material didático, trabalhando com a perspectiva do projeto “Memórias”. Salientamos a importância da
utilização da memória como fonte para o ensino de História local, pois a localidade não dispõe de um patrimônio
edificado para auxiliar nesta prática. Aliar Memória e História é uma das práticas que mais está sendo adotada
pelas professoras, resultando na formação de uma roda de conversa entre a comunidade e as crianças.
Propiciando a prática da História Oral dentro da sala de aula, desenvolvem-se novas perspectivas acerca do
Ensino e do papel da Cultura para a formação da Identidade.
Palavras-Chave: História. Memória. Ensino. Identidade.

Abstract: This article uses the narratives of teachers of History of the 3rd and 4th year of Admar Corrêa School,
in the city of Rio Grande/RS, to understand their perspective about children's identity formation process and also
and how the work is applied to the sources that are not present in the courseware, working with the prospect of
"Memories" project. We stress the importance of using memory as a source for teaching local history, because
the location does not have tangible heritage sites to assist in this practice. Allying Memory and History is one of
the best practices that are being adopted by teachers, resulting in round talks between the community and the
kids. Fostering the practice of oral history in the classroom develops new insights on the role of Education and
Culture for the formation of identity.
Keywords: History. Memory. Teaching. Identity.

Introdução

Este trabalho é parte de um projeto iniciado no ano de 2014 e busca salientar a


utilização da memória como a base para o trabalho com a Educação patrimonial nas Escolas.
Neste momento é utilizada a perspectiva das professoras da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Admar Corrêa localizada no Bairro Santa Tereza em Rio Grande, para
caracterizar o processo de formação da identidade das crianças, refletido a partir da inserção
do Projeto “Memória” na Escola.
Visando a identificar os agentes formadores da instituição, o programa de pesquisa e
ensino realizou em parceria com as professoras uma extensa procura pela origem da História

1
Pós-graduanda do PPGH-FURG Mestrado Profissional. Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Email:
brunagmartan@gmail.com
2
Professor da FURG. Email: danielhistprado@yahoo.com.br

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de sua instituição e o resultado obtido está sendo estudado e organizado para elaborar um
livro que conte a História do Patrono Admar Corrêa.
Durante o levantamento bibliográfico, os pesquisadores encontraram algumas
referências à professora fundadora do estabelecimento de ensino, que anos mais tarde fundou
a escola trabalhada. É devido a essa pesquisa que se tornou possível localizar a professora
Maria Cândida e realizar a entrevista que atualmente compõe o livro-tombo da instituição.
Dentre as atividades trabalhadas, uma delas reflete a importância da História local para
o processo de formação da identidade cultural do Bairro. Foi a Roda de Conversa realizada
entre os moradores e as professoras, onde se buscou fortalecer os laços entre a comunidade e a
escola, que desenvolveu novas perspectivas para o trabalho com a Educação infantil.
O projeto foi aplicado em turmas do 3º ano, refletindo-se sobre a concepção de Tempo
e as relações entre o passado e o presente. Para realizar essa discussão a professora buscou
reproduzir objetos que dialogam com o cotidiano dos alunos, de modo que os orientasse sobre
o contexto social em que estão inseridos. Esse processo recorrente nas escolas é caracterizado
pela professora Katia Maria Abud (2012) como o responsável pelo sistema de ensino baseado
na “decoração de datas e acontecimentos”, o que gera uma ideia da necessidade de estabelecer
um sistema cronológico para explicar os fatos históricos. Porém, o trabalho efetivado pelas
docentes busca aproximar as crianças de sua história através do contato com os elementos
edificados dentro da comunidade, gerando a apropriação dos fatos históricos do qual
descendem, assim, a autora, mesmo criticando este modelo de ensino, alega que é importante
para a formação da identidade infantil utilizar essa sistematização de tempo porque é a
compreensão sobre a experiência familiar contrastada com a experiência pessoal.
Este contexto auxilia para a construção e a aplicação de um ensino inovador e cuja
noção de tempo se vincula aos fatos vívidos em seu curto período de vida. A proposta que se
desenvolveu para o trabalho com o patrimônio também desfruta de um caráter transformador.
Se desvinculando do espaço escolar ele adentra os lugares de memória e incentiva a utilização
de novas fontes, a professora Hilda Jaqueline de Fraga reflete sobre esses espaços destinados
a rememoração e concluiu que:

“O estabelecimento de práticas docentes nesses espaços educativos não-formais tem


procurado potencializar o contato dos professores de História com os aparelhos
culturais, tanto no sentido de explorá-los como laboratórios para aprendizagens
significativas, em se tratando do ensino de História, quanto para a efetivação de um
processo educativo mais amplo, que possibilite a maior democratização de seu
acesso pela população” (FRAGA, 2013, p. 99)

Segundo sua concepção, a utilização do meio ambiente que compõe o quadro social
em que estão inseridos se configura como um parâmetro essencial para o ensino de História

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nas séries iniciais, pois a patrimonialização deste meio se originou do reconhecimento como
parte da identidade do povoado. Dessa forma, a iniciativa do trabalho com o conceito de
tempo e espaço assume o papel de instigar a curiosidade para efetivar a compreensão sobre a
dimensão simbólica de sua História.
Apesar de ser uma tarefa que exige uma compreensão profunda sobre sua própria
identidade, as nossas fontes relatam que há um grande envolvimento destinado a conclusão
das propostas, visto que os alunos conseguem perceber que o lugar trabalhado compõe a sua
cultura, o que se proporciona através de uma memória que foi herdada.
A educação patrimonial aplicada neste contexto, busca incentivar os alunos a
perceberem dentro do diálogo entre o tempo e a História as diversas culturas que compõem o
quadro social do bairro, possibilitando o trabalho com variadas fontes que são percebidas
dentro da vida diária e privada do discente. Na busca por tornar a memória mais presente no
âmbito escolar, a diretora examina novos horizontes para proporcionar um panorama sobre os
patrimônios presentes na comunidade.
O resultado vem se revelando cada vez mais atrativo aos jovens, pois há uma quebra
dentro do sistema de ensino da escola que propõe dispor uma maior autonomia para a
expressão pessoal, ou seja, através das atividades de incentivo à manifestação cultural, os
alunos começam a interagir mais com a História local e a pesquisar sobre o processo de
construção da vila, onde por vezes retratam questões discutidas com a família sobre o passado
ambiental do local.
Ainda, durante essa pesquisa, os alunos começam a compreender mais nitidamente
como ocorreu o assentamento das famílias oriundas de outras localidades e procuram interagir
com essa perspectiva na medida em que reconhecem que são descendentes destas pessoas que
se estabeleceram em sua localidade. Neste momento, a problemática do tempo se torna
presente na medida em que o passado começa a ser moldado neste processo de percepção
“que, reduzido a medidas (horas, dias, semanas), torna-se o tempo social, fundamenta a
construção do conceito de tempo histórico pelos alunos.” (ABUD, 2012, p. 13), isso porque
para as crianças, cuja principal característica é retratada pela curiosidade, a expectativa em
conhecer melhor as diferenças pessoais e também as visões que revelam fragmentos de outros
tempos e que são trabalhados através do contato físico se torna mais atrativo do que aquelas
atividades ligadas à compreensão de datas e tempo.
Compreendemos que, para continuar com a atenção das crianças voltadas para o
trabalho em sala de aula, é necessário transpor os limites físicos e induzir a um quadro mental
cuja imaginação pode ser acessada através de relatos sobre a construção das suas moradias. A

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partir dessa experiência, a apropriação do meio em que vive se torna mais evidente e alcança
uma maior amplitude. Ao encaminhar a conversa realizada na sala de aula para dentro do
espaço privado, o aluno busca confrontar o conhecimento adquirido com as memórias que
compõe o seu âmbito familiar, gerando assim a aproximação da família na vida escolar.

O projeto “Memórias” e o auxilio para a formação de uma identidade local

O projeto “Memórias” foi criado pela Secretaria de Educação e Cultura (SMEC) de


Rio Grande/RS, que, em parceria com os representantes das escolas da cidade, sorteava
aquelas que seriam contempladas com a sua proposta. Uma das escolhidas para a atuação
deste plano foi a Escola Admar Corrêa, onde o projeto se propôs a resgatar a História de seu
patrono Admar Corrêa, utilizando-se de narrativas, imagens e vídeos. O projeto incita o
trabalho interdisciplinar e a ampliação dos conceitos dos alunos sobre a sua identidade
cultural.
Quando falamos no trabalho com a identidade, embasamo-nos no pensamento em
Michael Pollak (1992) que se refere à formação da identidade como sendo caracterizada pelo
local de nascimento, onde esta criança já está inserida em uma cultura delimitada pelas
fronteiras físicas, e o pertencimento de seu grupo, na região em que vive e adere ao
conhecimento do saber-fazer de seu contexto social. Para a escola Admar Correa é importante
incentivar o aluno a perceber essa História que o rodeia e torná-lo capaz de se apropriar
desses laços e usufruir de um modo que traga o beneficio para a memória local, como a
proposta e a iniciativa do Projeto “Memórias”.
No ano de 2014 a Escola completa 25 anos de existência e dentro das atividades
realizadas ao longo deste ano esteve a preocupação em retomar a memória, foco do projeto,
que em parceria com a secretaria de turismo de Rio Grande iniciou propostas que abarcam a
Educação Patrimonial e Ambiental partindo da compreensão dos próprios alunos sobre os
temas em questão. Esse processo de identificação e legitimação de um patrimônio que
correspondesse às características da identidade local é o principal objetivo do projeto que tem
sua base firmada dentro de uma educação que rompe com os padrões conservadores e insere a
comunidade como um todo dentro do contexto de apropriação.
Para efetivar o trabalho é necessário definir o que compreendemos sobre o emprego e
a utilização da palavra patrimônio. Neste artigo usufruímos do termo patrimônio segundo o
viés do organizador do livro “Educação Patrimonial: Reflexões e Práticas”, Átila Bezerra
Tolentino, que alega que um conjunto de bens que possui valores com significados que

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abarquem um grupo é o que representa o patrimônio e se encontra entrelaçado ao significado


de cultura, ou seja, ele consiste em uma herança cultural perpetuada pelos homens. Sendo
assim, o que é produto deste grupo social e caracteriza a sua diferença perante os demais
povos do mundo é o que chamamos de identidade, então tudo o que é produzido
conscientemente e atribuído um valor para a produção é o Patrimônio Cultural da
comunidade.
É importante salientar que quando citamos os patrimônios identificados pelo aluno,
eles não estão presos apenas nos que estão edificados, mesmo que o trabalho com a memória
de um bem cultural realizado junto às crianças seja uma atividade de difícil conclusão, pois a
falta de contato com o que é material incentiva uma leitura de tempo muito distante que não
corresponde com o tempo experimentado pelo aluno. A escola utiliza as ,emórias dos
moradores como forma de aproximar o passado do presente.
Segunda a diretora Claudia Louzada,

“A gente tem uma boa parceria, porque agora mesmo no aniversário da escola a
gente trouxe as pessoas mais antigas do bairro para um momento de conversa com
os nossos professores. Eu acho que a gente tem muita parceria e muita troca de
experiência com o pessoal da comunidade, principalmente com o pessoal mais
antigo, que ainda têm essa história muito viva”. (Entrevistada: Claudia Louzada, 46
anos, 22 de Setembro de 2014)

Percebemos que o primeiro passo para a utilização da oralidade como fonte para o
ensino de História materializou-se sob a troca do conhecimento entre a comunidade e a
escola, sendo um processo que resulta na utilização e apropriação dos alunos pelo saber da
comunidade local, e que, por sua vez, gera a preocupação em salvaguardar as características
da localidade. Ainda compreendemos com a fala da diretora, que o principal objetivo deste
projeto está sendo atingido na medida em que a comunidade usufrui de um contato mais
direto com as gerações mais novas e que propicia a utilização de suas memórias como uma
fonte importante de estudo e ensino.
O contato gerado pela atividade extracurricular garante a essas crianças uma visão
mais ampla da História e a sua interação com os diversos conhecimentos que compõe a nossa
cultura e ainda visa torná-las capazes de perceber e reproduzir dentro do seu cotidiano as
manifestações culturais e as suas relações com o desenvolvimento do local, gerando a
percepção sobre a evolução urbana do espaço do bairro.
Para realizar essa análise sobre a História do bairro Santa Tereza, o projeto se
direcionou para o trabalho com as crianças do 3º ano (4ª série) e iniciou a introdução de um
conceito de História sob um âmbito mais pessoal para os jovens. Em outras palavras, foi
utilizando de seu meio de convivência, de suas relações pessoais e das narrativas dessas

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pessoas que são as mais antigas do bairro, que os professores planejam despertar o interesse
pelas questões que envolvem identidade e patrimônio. Para a autora Katia Maria Abud (2012),
a proposta de ensino utiliza os objetos que estão mais perto temporalmente do aluno, que
predispõe a utilização de um material concreto e que se relacionam com a vida pessoal do
discente. Isso acaba por usufruir de uma ligação cultural já estabelecida pela criança com seus
pais e com a sua memória herdada, gerando um procedimento que busca incentivar a
apropriação total do significado de sua História, principalmente aquele que se refere à
História da localidade.
Graças a essa base proporcionada nos 3º anos e aos parâmetros estabelecidos dentro do
Projeto Político Pedagógico do 4º ano, se encontra frisada a necessidade do trabalho com a
Educação Patrimonial, no entanto o ensino de História dessa série é mais voltado para uma
prática e percepção sobre a cidade no seu âmbito Histórico, resultando num incentivo sobre a
formação da identidade rio-grandense. Nesta turma, que já obteve a base para o conhecimento
sobre a identidade e patrimônio, é mais fácil percebermos como eles compreendem este
processo, pois os alunos acabam realizando saídas do espaço escolar e da sua zona de
conforto, que seria a vila em que residem, e se deslocam para um local onde sua concepção
sobre a formação de sua identidade será aprimorada. O projeto “Memórias” contribuiu para
este processo, pois ao contrário do que é estabelecido para a série anterior, cuja preocupação é
iniciar a curiosidade sobre sua localidade, o trabalho com a História da cidade é mais denso e
complexo, pois um fator que agrava a dificuldade deste trabalho é que nem todos os alunos
desta classe visitam ou visitaram alguma vez o Centro Histórico da cidade e tiveram um
contato com seus saberes.
Para combater este quadro de baixo interesse pela identidade de Rio Grande, a
proposta era induzir os alunos a refletir o significado do “ser Gaúcho” e estabelecer o seu
papel dentro da sociedade. O trabalho em sala de aula permite aos alunos compreender
melhor a História ao mesmo tempo em que estão em contato no tempo presente com o objeto
trabalhado.
Percebemos também que o projeto proposto à escola apóia-se sob uma face ambiental
onde busca retratar todas as peculiaridades que registram a evolução e degradação ambiental
sofrida pelo local, onde valendo-se do uso de imagens, áudio e saídas de campo as professoras
incitam o questionamento sobre a mudança e os impactos ambientais causados aos moradores.
O resultado tem sido satisfatório, porque são através desses diálogos que se registram as
iniciativas dos jovens que buscam a mudança dentro do quadro socioambiental que a
localidade possui. As crianças, no geral, demonstraram que se interessam pela proposta na

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medida em que ela interage diretamente com sua vida cotidiana, pois por ser a maioria deles
oriunda do próprio bairro Santa Tereza e que está em contato com o Saco da Mangueira
convivem diariamente com o acúmulo de lixo e detritos que a água traz.
A importância do meio ambiente para esses alunos certifica que as atividades
trabalhadas na escola, que buscam a apropriação da cultural local, tem tido um profundo
impacto na formação de suas identidades, pois os tornaram capazes de perceber os problemas
enfrentados pelo bairro e sugerir mudanças que confrontem esse entrave que afeta o quadro
social.
Uma ramificação do Projeto “Memórias” está em fase de elaboração e consiste na
formulação de uma parceria entre a escola e a prefeitura da cidade, de modo que com a saída
da sala de aula e o registro dos pontos que possuem o maior acúmulo de lixo (o que será feito
pelos alunos através de fotografias), os jovens percebam a riqueza que a comunidade possui e
desfrutem desse local como parte de sua identidade contribuindo para a preservação do bairro.
Essa iniciativa tem como um dos objetivos atingir também os familiares destas crianças para
que voltem seu olhar para um desenvolvimento mais sustentável, onde o papel dos
professores é retratar as principais causas dessa degradação e o dos discentes é refletir sobre o
processo e propor as mudanças, tornando possível iniciar uma preocupação mais expansiva
sobre o acúmulo de lixo e as doenças transmitidas.
Este processo gera o desenvolvimento de uma cultura local e a convivência com os
saberes das gerações anteriores da família. Salientamos que há uma discussão incentivada
pelos conhecimentos da criança que é embasada ao passo que vivenciam a História do local
na sala de aula. Elas buscam compreender os processos de modificações sofridas ao longo dos
anos, e ainda, ao retornar ao colégio, propõem a discussão sobre o que puderam observar em
suas casas e procuram mostrar sua própria resposta sobre o desenvolvimento e os motivos que
levaram o bairro a ser da forma como hoje se encontra.
A diretora da instituição caracteriza esse processo como uma forma de demonstração
de sua apropriação cultural, de modo que retratem o seu conhecimento sobre o processo de
degeneração cultural do local (Entrevistada: Claudia Louzada, 46 anos, 22 de Setembro de
2014).
De acordo com Leandro Henrique Magalhães (2009), o patrimônio é o elemento
fundamental para a formação e percepção de uma identidade e possui seu suporte em uma
ampla possibilidade de fontes e objetos. Ele ainda está em constante mudança sendo possível
distinguir novas percepções ou novos patrimônios. Percebemos então que a prática da
vivência no contexto histórico do local trabalhado é o que garante a legitimidade da

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apropriação para estes alunos e a necessidade do trabalho com o patrimônio edificado é o que
auxilia no processo de aprendizagem e torna plausível a reprodução dos conhecimentos dos
alunos frente ao que considera como parte de sua identidade.
Mesmo tendo a preocupação em preservar a memória, é difícil o trabalho com
patrimônios que não estejam edificados, pois as crianças não conseguem compreender com
total clareza o motivo que leva o local ser considerado como parte de sua História, pois está
temporalmente afastado de si. A estratégia adotada pelas professoras consiste então, em
realizar, periodicamente, saídas de campo que visam a diferentes perspectivas sobre a
educação, que incentivam a reflexão sobre o que faz parte de sua identidade e selecione
aqueles que contribuem para a formação local.
Segundo a professora Sandra Ulguim, essas saídas demonstram também um
importante fator sobre a realidade do local que em meio ao processo de melhoria e
pavimentação do bairro, contrastam as diferentes classes sociais que coexistem neste espaço e
compõem o quadro social do local. Segundo a professora do 4º ano, é interessante organizar
essas saídas, pois os alunos percebem que a escola busca fazer parte do seu cotidiano e
conhecer a realidade em que vivem e, com estes gestos, também se estreita as relações entre a
escola e a comunidade, resultando num processo de valorização de sua História e dos
patrimônios que a compõem, permitindo até os mais jovens desenvolverem laços de
afetividade e a indagação sobre as condições atuais do local.
Neste contexto percebemos que a expectativa do projeto proposto é validar a escolha
do que é representativo para estas crianças, induzindo à valorização e à apropriação destas
seleções e diminuindo a distância entre a educação e o cotidiano do aluno. Essa prática de
aproximação se fortifica na medida em que os discentes percebem que aquela História que
está sendo trabalhada faz parte de sua identidade ou o personagem é parte de sua família.
As professoras ainda salientam que há a necessidade de reforçar esse trabalho com as
saídas de campo, de modo que se vivencie essa cultura que está sendo trabalhada. Elas
compreendem ainda que esse projeto visa à inserção das diversas manifestações culturais que
compõem o quadro da sociedade e favorecem o seu diálogo e identificação, usufruindo de
uma importante fonte de estudo: a memória.

Breve Histórico da Escola Municipal de Ensino Fundamental Admar Corrêa

O estabelecimento de ensino Admar Corrêa conviveu com a História do Bairro Santa


Tereza, onde está situada. Construída há 25 anos, sua trajetória é bastante intensa quando

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falamos sobre as dificuldades enfrentadas para a construção de uma escola capaz de oferecer
ensino às crianças do pequeno vilarejo, cujo prédio inicial é vinculado a um caráter
patrimonial para a vizinhança.
Formada inicialmente como uma escolinha particular, ela atuava sob o nome de Escola
Maria Gorete nas Casas Pretas3 e atendia um número limitado de alunos, pois o local era
pequeno e de simples acomodações. Os alunos eram alfabetizados pela professora Maria
Cândida num sistema de ensino bastante rigoroso, no entanto, pelo fato do Bairro Santa
Tereza abrigar pessoas oriundas de classes baixas, o número de interessados em inscrever as
crianças neste estabelecimento de ensino aumentou significativamente de modo que se
necessitasse de um maior espaço para prestação dos serviços. (Entrevistada: Claudia Louzada,
46 anos, 22 de Setembro de 2014)
Foi devido a uma parte da casa doada por sua família que se supriram as necessidades
iniciais. Porém, o aumento dos alunos precisava de uma inspeção pedagógica e um quadro de
funcionários que auxiliasse a professora para que continuasse funcionando nesse espaço. A
chegada da inspetora só auxiliou no processo de aumento dos interessados. Era evidente que o
serviço ofertado era de uma grande qualidade, não apenas pelo número de alunos que a escola
possuía, mas também pelo fato de que havia uma grande dedicação por parte dos professores
que eram recebidos positivamente pelos alunos.
No entanto, para que o local pudesse prosseguir com seu sistema de educação era
necessário um grande aumento nas dependências dessa escola. O resultado dessa necessidade
foi a utilização completa de todas as dependências da casa, o que permitiu que as aulas
prosseguissem e se perpetuassem até meados de 1988. Nessa mesma época a professora
decidiu se aposentar e não mais lecionar, o que culminaria no encerramento das atividades da
escola. É nesse panorama que surge a figura de Admar Corrêa4, que interessado em seguir
com os trabalhos de Maria Cândida, propôs um acordo à professora. Ele doaria sua casa para
que o Município construísse a escola caso ela disponibilizasse o material necessário para que
o trabalho de lecionar continuasse fluindo positivamente no local.
Com o novo espaço construído e a doação do material realizado pela professora
Cândida, surgiu a Escola Admar Corrêa, em 1989, que contava com o auxílio do Porto do Rio
Grande para que suas atividades continuassem em andamento. Foi estabelecido que o

3
Foram as primeiras casas a serem construídas na vila Santa Tereza e que eram destinadas a habitação dos
funcionários de altos cargos do Porto.
4
Morador do Bairro e capataz do Porto do Rio Grande. As cores da Escola Admar Corrêa se utilizam desse
aspecto para homenageia tanto o Porto, que auxiliava fortemente a escola nos anos iniciais, como o Patrono do
colégio.

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firmamento do projeto “Embale uma Escola” seria aplicado nesta instituição. Basicamente ele
consistia no apadrinhamento por parte de uma empresa. Esse projeto auxiliou na melhoria das
dependências físicas e na disponibilidade dos materiais necessários para continuar o trabalho
e foi com esse auxilio que a escola se manteve em funcionamento.
Podemos perceber que dentro dessa proposta se iniciava uma interação entre o Porto
do Rio Grande e a escola. Desde 1989 a escola vem sofrendo contínuas mudanças e
aperfeiçoamentos em sua infraestrutura, visando a atender o maior número de alunos
possíveis e buscando proporcionar uma boa qualidade de ensino. Graças a essa ajuda foram
viabilizadas as condições necessárias para que o Admar Corrêa se tornasse uma escola capaz
de ofertar o Ensino Fundamental completo (Entrevistada: Sandra Ulguim, 49 anos, 8 de
outubro de 2014).
Logo, graças ao auxílio do Porto, a escola foi transferida para um prédio novo e
definitivo cujo número de alunos que ela abriga chega a quase 500, que são oriundos de
diferentes bairros que contornam a cidade. Ainda é importante salientar que com essa
ampliação da capacidade da infraestrutura foi possível desenvolver um diálogo melhor com a
comunidade, pois atualmente a escola se utiliza de passeios e da oralidade como fonte de
ensino.

A utilização da História Oral como subsídio para o ensino da História da Escola.

A História Oral e a ampliação das fontes permitem que o trabalho com a História local
contribua tanto para a pesquisa histórica quanto para a formação de uma identidade do bairro.
A memória utilizada como base para essa propagação de conhecimento permite definir os
lugares de memória influenciados pelo coletivo que se resguardou nos menores detalhes,
reavendo cotidianamente seus aspectos que se perpetuaram e atualmente estão presentes nas
lembranças dos idosos. Através do projeto “Memórias”, essas recordações registram o
processo de identificação do aluno com o espaço a que está inserido e tudo o que virá a
compor essa identidade.
Utilizamos a memória como principal fonte de pesquisa para este trabalho para
compreendermos o processo de formação de uma identidade coletiva. Segundo Pollak, “a
história está se transformando em histórias, histórias parciais e plurais, até mesmo sob o
aspecto da cronologia” (1992, p.10), e podemos desfrutar de uma ferramenta de estudo
extremamente interessante e convidativa, pois seu foco é voltado para uma ciência mais

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humana e o trabalho torna-se mais sensível, pois exige do entrevistador um domínio sobre
suas emoções e palavras ao lidar com as pessoas.
As memórias estão minuciosamente entrelaçadas com os sentimentos e percepções
sobre as mudanças nos espaços que se está inserido e seu principal aspecto é que ela retrata o
passado com a voz do presente. No caso do projeto “Memórias”, ela permite que, ao
introduzir o idoso dentro do contexto escolar atual, se possa desenvolver uma nova
compreensão sobre o processo de formação da localidade baseada na interação entre o novo e
o velho, o que garante que ambos os lados contribuam com suas concepções sobre a
identidade e permitam a reflexão sobre o significado do seu patrimônio e a importância do
meio em que se localizam.
Como já foi elucidado, o presente artigo está embasado nos relatos das professoras da
escola de educação básica para compreender o processo de formação e pertencimento da
cultura local pelos alunos. Ao mesmo tempo em que busca incentivar a utilização de fontes
não convencionais para a prática do ensino de História, utilizamos a memória para preencher
as lacunas deixadas pelo tempo. É de nosso interesse utilizar os métodos da oralidade como
forma de incentivar o aluno a se perceber um sujeito ativo no processo histórico.
Segundo Katia Maria Abud, “narrar é prática humana” (2012, p. 15), o que significa
que como todo objeto confeccionado pela mão de obra humana, está destinado a ser analisado
e produzir novos saberes a partir de sua fonte, a memória também compõe este quadro de
análise. Neste momento em que ela se dedica a observação do passado e reflexão das
concepções que resultaram na elaboração das características mentais e emocionais de um
individuo, se constrói uma lógica que justifica as experiências vividas. Esse processo de
elaboração de uma linearidade capaz de criar uma cronologia resulta na formação de um
tempo histórico que está detalhadamente alicerçado sobre a elaboração do conceito de tempo,
resultado do que foi experimentado na infância que por sua vez reflete na memória a falta
dessa precisão.
Compreendemos que apesar de serem processos complexos eles estão interligados.
Contudo, como utilizar esta concepção para a prática da Educação Patrimonial na
comunidade?
Sabemos que tempo, memória e História são processos ligados entre si e que
dialogam diretamente. Mesmo que o tempo da memória não seja o mesmo vivenciado pela
História, a utilização desta fonte de pesquisa é de grande importância quando se procura
trabalhar com a História do tempo presente, pois proporciona perspectivas atuais sobre o
passado. O caso da escola, que experimentou carência de material sobre sua origem e que

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encontrou nos relatos e narrativas as respostas para a construção de sua identidade,


proporciona o incentivo à produção de projetos que busquem retratar as peculiaridades da
memória sob o seu aspecto histórico surgindo iniciativas de revalorização do patrimônio local.
A História Oral dispõe de importantes métodos para a realização desta salvaguarda
isso porque ela ainda possuiu técnicas próprias de registro e leitura que garantem o diálogo e a
interdisciplinaridade. Graças a essa especificidade foi possível o trabalho em conjunto para a
efetivação da pesquisa escolar que procura retratar a história do Patrono, sendo que também
corresponde aquela vivenciada pelo bairro. Pelo fato da comunidade experimentar sua
História diariamente, o trabalho com a oralidade pode ser realizado em qualquer lugar, o que
permite a “fuga” dos padrões de ensino e a introdução de novas temáticas para o trabalho com
os alunos, esse processo se converte como um importante fator aliado da escola porque é
diante da capacidade da H, o que permite o desenvolvimento de habilidades sociolinguísticas
e a experiência de um compromisso que não havia sido desenvolvido.
De acordo com as fontes, a escola originou-se nas primeiras casas construídas no
bairro. Formada inicialmente como um estabelecimento particular, ela atuava sob o nome de
Escola Maria Gorete que atendia um número limitado de alunos nas antigas construções
denominadas “Casas Pretas”5. Sabendo desse contexto, as professoras buscam trabalhar com
saídas de campo que retratam a evolução do bairro ao longo de sua existência. Ainda é
possível aos alunos vislumbrar os aspectos físicos de um patrimônio cultural, o que resulta na
experiência física de aproximação com a sua História. Pollak alega que essa formação de
identidade é o resultado do constante contato com o local de seu nascimento delimitado pelos
limites da cultura que se está inserido.
Concluímos que a memória é parte fundamental para o processo de construção da
cultura e identidade de um grupo social, e é papel da História Oral o de proporcionar os
mecanismos necessários para a salvaguarda deste conhecimento. Compreendemos também, a
importância dos sujeitos a quem essas lembranças pertencem, pois dispõem de relatos do
cotidiano que, por vezes, não estão presentes nos livros. Portanto, proporcionamos um
fragmento da História local sob uma nova percepção e também incentivamos a utilização da
H.O. dentro do contexto escolar.

Considerações finais

5
Foram as primeiras casas a serem construídas na vila Santa Tereza e que eram destinadas a habitação dos
funcionários de altos cargos do Porto.

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O ingresso na sala de aula permite ao aluno desfrutar de um convívio com diversas


outras identidades culturais e pensamentos oriundos das demais classes sociais que em
contato compõem a formação psicológica e moral da criança. Caracterizamos esses fatos
como os responsáveis pelo pertencimento da criança à sua cultura e identidade social,
salientando que este é parte de um resultado atribuído ao contato com colegas de mesma
idade. Ao propor o trabalho com a escola, buscamos perceber como a identidade infantil
absorvida da família interage com a proposta pela integração com os colegas proporcionada
pela escola e também como estas crianças compreendem a história local. A partir do que é
ensinado pelo ambiente escolar que, carente de material que embasem seus argumentos e
produções, dispõem do conhecimento dos moradores para projetar as aulas que caracterizam o
bairro, baseando-se na maioria das vezes nas memórias dos idosos.
Diante dos diversos quadros e grupos sociais que compõem a formação do bairro
Santa Tereza e apoiando-se nas diferentes categorias culturais que se relacionam no local,
propor uma identidade única para estas crianças torna-se um grande desafio visto que o
processo de formação local está embasado e ligado no estabelecimento de diversos grupos
sociais alicerçados sob suas culturas próprias e formas de expressão. A escola inserida neste
contexto se propõe a perceber essa realidade social e transpor a problemática envolvida com o
meio sociocultural ao propor novas estratégias para a permanência e participação do aluno em
aula. Assim as professoras indicam formas de troca de conhecimento ao permitir a abertura
em seu sistema de ensino para o estabelecimento e discussão das experiências infantis.
Ao analisarmos as entrevistas, percebemos que também é unânime em todos os relatos
a diferenciação que atribuem à evolução da Educação enquanto ciência do saber. As
professoras relatam que enquanto há uma grande desvalorização da figura do professor, no
lado oposto encontra-se uma brecha que auxilia e propõe diferentes procedimentos para o
trabalho e propicia o material para esta realização. Tendo em vista essa possibilidade é grande
a comunicação entre os professores interessados em usufruir deste sistema para que suas aulas
se tornem mais atrativas. O contato com o meio ambiente gera uma cadeia de reações nos
alunos que desenvolvem interesses em continuar a contribuir para a preservação de seu meio,
pois eles podem praticar o que é teorizado na sala de aula.
Ainda é possível visualizarmos o grande esforço da escola para incluir a família dentro
desses planos, onde sua meta é focada em viabilizar o contato direto e total do aluno com a
sua História sob uma perspectiva histórica e valorizada, onde ela dialoga, escuta e reage frente
às necessidades do local. Essa quebra com o procedimento autoritário garante autenticidade e

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maior participação em seu contexto gerando um maior interesse pelo ensino de História, sua
prática cotidiana e a sua relação com o presente.
De acordo com as fontes, a escola assumiu esse papel que pode ser relacionado com o
conceito de “família” do aluno, pois todo o seu trabalho tem-se voltado para garantir a
permanência e a participação nas vivências e atividades propostas e tornou-se necessário que
sua preocupação se dirigisse também para o bem-estar dos discentes, resultando no
aparecimento de novos valores ligados ao estabelecimento de ensino e que gera um processo
denominado “Memória Herdada”, que, segundo a professora Carla, é devido ao fato de que é
grande o número de pais que outrora estudaram no estabelecimento e conviveram com as
dificuldades da época e que com isso acabam por reivindicar posturas mais participativas dos
filhos sobre a metodologia do ensino e os projetos do Admar Corrêa.
Essa sensibilização em buscar no povoado as características necessárias para a
formação de uma nova perspectiva educativa que desfrute de uma essência que carrega o
sentimento de apropriação de um passado, não tão distante, é o resultado obtido através da
implementação de trabalhos voltados para a Educação Patrimonial local onde o contato com
essa História presente e a sua relação com o pertencimento a estas lembranças permite reaver
e adentrar um espaço de aprendizagem e proporcionar novas perspectivas que serão delegadas
aos ouvintes.
Percebemos então que a escola busca desenvolver laços de afeição entre a educação e
o educando, de maneira que ressalte as peculiaridades de seu cotidiano e reflita sobre a sua
concepção de identidade em um diálogo apropriado para a idade do aluno, assim, mesmo com
o PPP incentivando o trabalho com uma Educação Patrimonial que abarque os patrimônios da
localidade, a escola trabalha visando à inserção do aluno neste quadro onde ele é o agente
principal da escolha e eleição daquilo que compõe a sua identidade. Essa essência, que revela
as ligações minuciosamente elaboradas entre a escola, o saber e a comunidade, reflete a
preocupação em proporcionar uma educação inovadora capaz de refletir a complexa estrutura
social e ambiental sob a perspectiva da criança, do mais novo. Assim essa educação que
proporciona as bases para os processos de salvaguarda dos patrimônios, cuja preocupação
depara-se com a característica de ser o responsável por retomar as linhas que vinculam a
História e a memória, define os parâmetros do que é ser um local de memória e busca incitar a
percepção pessoal sobre os vínculos com o objeto.
A título de conclusão, compreendemos que o esforço das professoras direcionado ao
incentivo do processo de percepção, avaliação e apropriação de sua cultura é uma espécie de
investimento a longo prazo, onde apenas o contato direto alicerçado sob a História do prédio

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ou local fornecerá os caminhos certos para o desenvolvimento de uma identidade em crianças


de pouca idade. A memória aqui trabalhada busca vincular-se aos processos de
compartilhamento das “representações sociais” que coexistem na localidade onde através do
contato com o patrimônio edificado possam ser relembradas e vislumbrar uma nova leitura
sobre o passado.

Fontes

LOUZADA, Claudia. 22 de setembro de 2014. Entrevista concedida a autora.

SANTOS, Carla Rosana dos. 15 de julho de 2014. Entrevista concedida a autora.

ULGUIM, Sandra Rodrigues. 08 de outubro de 2014. Entrevista concedida a autora.

Referências

ABUD, Katia Maria. Tempo: a elaboração do conceito nos anos iniciais de escolarização.
In: Historiae. Vol. 3 (1). Rio Grande: Editora da FURG, 2012.

FRAGA, Hilda Jaqueline de. Percursos docentes em lugares de Memória. In:


GASPAROTTO, Alessandra. FRAGA, Hilda Jaqueline de. BERGAMASCHI, Maria
Aparecida. Ensino de história no CONESUL - Patrimônio Cultural, territórios e
fronteiras. Porto Alegre: Evangraf/ UNIPAMPA Jaguarão, 2013.

MAGALHÃES, Leandro Henrique. Educação Patrimonial: da teoria à prática. Londrina:


Ed.UniFil, 2009.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos históricos. Vol.5, nº10. Rio
de Janeiro:1992.

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Musicando a História e Historiando a Música em Escolas de Caxias do Sul (2008-2014)

Franciele Cettolin1

Resumo: Entre os desafios existentes no Ensino de História encontramos, constantemente, o que apresenta a
necessidade de tornar essa ciência mais significativa e, ao mesmo tempo, mais atrativa. Para tanto, novas
metodologias no ensino são pensadas a fim de alcançar este objetivo, e, entre elas, o uso da interdisciplinaridade tem
sido um dos caminhos encontrados para que esse desígnio se cumpra. Uma das possibilidades para o estudo de
metodologias interdisciplinares que podem ser utilizadas na sala de aula é o ensino de história aliado ao ensino de
música, já que com a promulgação da Lei 11.760/2008, a música torna-se conteúdo obrigatório na educação básica.
Preocupado com esta questão, este estudo se propõe a criar possibilidades deste uso, entendendo que primeiramente,
faz-se necessário refletir sobre História, Música e Ensino, no que diz respeito à compreensão de ambas as disciplinas
e seus aspectos estruturais e fundamentais. O presente texto constitui o resultado parcial de uma pesquisa e pretende
elucidar o trabalho com conteúdos musicais em sala de aula, visando concretizar o que propõe a lei.
Palavras-chave: História. Música. Ensino. Interdisciplinaridade.

Abstract: Among the existing challenges in Teaching History, constantly find the one with the need to make this
more meaningful and at the same time more attractive science. For this, new teaching methodologies are thought to
achieve this goal, and, among them, the use of interdisciplinarity has been one of the paths found for this purpose is
fulfilled. One of the possibilities for the study of interdisciplinary methodologies that can be used in the classroom is
the teaching of history allied to music education since the enactment of Law 11.760/2008, the music becomes
mandatory content in basic education. Concerned about this issue, this study proposes to create possibilities of this
use, understanding that first, it is necessary to reflect about history, music and education, with regard to the
understanding of both subjects and their structural and fundamental aspects. This text is the partial result of research
and aims to elucidate the work with musical content in the classroom, aiming to realize the proposed law.
Keywords: History. Music. Education. Interdisciplinarity.

Para discutir a respeito do tema interdisciplinar proposto, é necessário compreender e


contextualizar as áreas envolvidas. Inicia-se a reflexão apresentando as mudanças e permanências
na legislação que abordam o ensino da arte e, principalmente, as possibilidades que se abrem
após a aprovação da lei que estabelece a música como conteúdo obrigatório na educação básica.
Na sequência, discute-se o Ensino de História e o Ensino de Música, primeiramente separados e,
por fim, sobre as possibilidades no Ensino entre esses dois campos disciplinares integrados.

1
Universidade de Caxias do Sul – UCS. Contato: fran_cett@terra.com.br

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Legislação e Ensino da Arte

Ao abordar o tema legislação é relevante lembrar que ele constitui um instrumento


privilegiado de análise de uma situação considerada entre o desejável e o real, o que geralmente
revela contradições. Além disso, é necessário recordar que as políticas públicas, assim como as
educacionais, estão de acordo com uma correlação de forças complexas, situadas historicamente
e que envolvem distintos interesses. Tal quadro, por sua vez, mesmo com sua complexidade,
caracteriza-se por sua assimetria, ou seja, existem interesses políticos e econômicos dominantes e
que possuem mais influência dentro do espaço social. Assim sendo, entendemos a aparato legal
brasileiro como fruto de um contexto histórico democrático e marcado pelas mais diversas
disputas, por isso destacamos a sinuosidade desse cenário e a tarefa intricada de analisá-lo.
Na tentativa de entender o processo de implementação das artes no Brasil, duas
legislações são essenciais, a saber, a lei de nº 5692 de 1971 e a e a atual LDB de 1996. A
primeira, gerada sob regime militar, alterou a LDB de 1961, e estabeleceu como obrigatório no
ensino de 1º e 2º graus a Educação Artística. Esse componente escolar compreende como ensino
de arte as diversas linguagens artísticas, assim como sua habilitação. No entanto, apesar da
progressiva expansão da rede pública de ensino e das oportunidades físicas de acesso à escola que
traz a lei de 1971, a polivalência no ensino das artes, em muitos contextos, pouco a pouco, torna-
se sinônimo de artes plásticas ou visuais, ainda que, nesse período, o ensino da música tenha
configurado um maior alcance social do que anteriormente:
Assim, indicada nos termos normativos tanto para a formação do professor quanto para o
1º e 2º graus, a polivalência marca a implantação da Educação Artística, contribuindo
para a diluição dos conteúdos específicos de cada linguagem, na medida em que prevê
um trabalho com as diversas linguagens artísticas, a cargo de um único professor.
(PENNA, 2012, p. 125)
Dessa forma, também no ensino de música, o currículo tem sido marcado por uma
simplificação dos conteúdos, e, cada vez mais, parece trazer características de indefinição,
ambiguidade e multiplicidade. Do ponto de vista pedagógico, também são relevantes os
questionamentos das práticas e qualidade de ensino, e, por conseguinte, da formação pedagógica
necessária. Difunde-se, inclusive, a necessidade de se recuperar o ensino específico das artes,
pautado em cada uma das diferentes linguagens.
A LDB de 1996 trouxe esses questionamentos e acrescentou que o ensino da arte, como
componente curricular obrigatório, deveria contemplar “especialmente suas expressões

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regionais”. No entanto, as velhas dúvidas sobre como implementar a abordagem na escola


continuaram. Os PCNs também trouxeram especificações a respeito da Educação Artística no
Ensino Fundamental e Médio, que trataram igualmente das mesmas modalidades. Nesse sentido,
com o intuito de oferecer alternativas de trabalho para as escolas e para os professores da área, o
Ministério da Educação lançou, em 2006, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Esse
documento trouxe a ideia de que o ensino das diferentes modalidades deveria corresponder à
formação específica do profissional. Assim, as decisões sobre este tipo de ensino, ficaram a cargo
de cada estabelecimento.
Essa nova concepção trouxe esclarecimentos, porém não resolveu o problema por
completo. Na grande maioria das vezes, a flexibilidade de escolha das escolas não permite que se
contemplem todas as linguagens. Sabe-se que muitas vezes, essas escolhas estão ligadas ao fator
custo/benefício da instituição e é comum a dificuldade de se concretizar em virtude da carga
horária muito reduzida do ensino de artes. Outro fator é que, nas séries iniciais do Ensino
Fundamental, existe a unidocência, e há indicativos de que nem todos os cursos Superiores de
Pedagogia trabalham as artes de forma sistemática e consciente. Muitas vezes, as atividades são
baseadas na tradição pedagógica desse nível de ensino, não cumprindo seu verdadeiro papel.
Dessa forma, infelizmente, muitos jovens acabam por não ter acesso ao ensino de música. Neste
sentido, Bourdieu lembra a importância do acesso à cultura: “Autorizar a instituição escolar a
desempenhar a função que lhe incumbe de fato e de direito, a saber, desenvolver em todos os
integrantes da sociedade, sem qualquer distinção, a aptidão para as práticas culturais comumente
consideradas mais nobres.” (BOURDIEU, 2003b, p. 158).
Visando garantir a efetiva presença do ensino de música na prática escolar, em 18 de
agosto de 2008 o Governo Federal sancionou por meio do Ministério da Educação, a Lei nº
11.769 que alterou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica:

Art. 26. [...]


§ 6º A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente
curricular de que trata o § 2º deste artigo." (NR)
Art. 2º ( VETADO)
Art. 3º Os sistemas de ensino terão 3 (três) anos letivos para se adaptarem às exigências
estabelecidas nos arts. 1º e 2º desta Lei.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 18 de agosto de 2008; 187º da Independência e 120º da República.

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167

É importante ressaltar o entendimento a respeito do parágrafo 6º da Lei nº 11.769, o qual


observa que, apesar da sua obrigatoriedade, ela não precisa ser exclusiva. Sendo assim, entende-
se a música como conteúdo e não como disciplina. Quanto aos conteúdos musicais, os parâmetros
estabelecem com grande flexibilidade: “[...] os conteúdos podem ser trabalhados em qualquer
ordem, conforme decisão do professor, em conformidade com o desenho curricular de sua
equipe”. Dessa forma, o trabalho interdisciplinar, previsto inclusive pela LDB, é uma das
soluções plausíveis para o atendimento da legislação.
A lei prevê que a música deve existir na educação básica, em algum momento, em alguma
série, no entanto, o fator interpretativo permite muitas vezes o descaso do seu cumprimento. O
que muitas vezes acaba acontecendo é a falta de planejamento estrutural e uma realidade em que
os profissionais das demais áreas não se sentem capacitados para tal função. Além disso,
problemas de infraestrutura escolar contribuem para agravar a situação. Bellochio e Garbosa
chamam a atenção para o cumprimento da legislação vigente,
[...] entendemos que devemos mobilizar força políticas e pedagógicas conjuntas, entre as
várias instâncias implicadas na realização educacional desse país, para que possamos
cumprir a Lei com profissionalismo e propostas que realmente potencializem a educação
básica. Nosso desejo é que a música na escola possa trazer um mundo diferente, possa
contribuir para a construção de uma nova escola, na qual as ações compartilhadas tão
presentes na realização musical tornem-se referência para a vida dos estudantes.
(BELLOCHIO & GARBOSA, 2010, p. 10)

É necessário que a escola entenda a música como um agregador de conhecimentos,


habilidades e competências que tem potencial para, juntamente com outros campos do
conhecimento, transformar a realidade escolar e atender as necessidades específicas do seu
alunado. Um ponto de partida, sem dúvida, é a conscientização profissional.
Ainda no que diz respeito aos profissionais, um dos itens da Lei, o Art. 2º da LDB
recomendava que: “O ensino da música será ministrado por professores com formação específica
na área.”, foi vetado pelo seguinte motivo disposto na legislação:

No tocante ao parágrafo único do art. 62, é necessário que se tenha muita clareza sobre o
que significa ‘formação específica na área’. Vale ressaltar que a música é uma prática
social e que no Brasil existem diversos profissionais atuantes nessa área sem formação
acadêmica ou oficial em música e que são reconhecidos nacionalmente. Esses
profissionais estariam impossibilitados de ministrar tal conteúdo na maneira em que este
dispositivo está proposto.
Adicionalmente, esta exigência vai além da definição de uma diretriz curricular e
estabelece, sem precedentes, uma formação específica para a transferência de um
conteúdo. Note-se que não há qualquer exigência de formação específica para
Matemática, Física, Biologia, etc. Nem mesmo quando a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional define conteúdos mais específicos como os relacionados a diferentes

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culturas e etnias (art. 26, § 4o) e de língua estrangeira (art. 26, § 5o), ela estabelece qual
seria a formação mínima daqueles que passariam a ministrar esses conteúdos.

A opção pelo veto, de um lado, trouxe a possibilidade de profissionais sem formação


acadêmica atuarem no ensino de música, o que é uma realidade no caso do Brasil. Por outro lado,
abre precedentes para que esse ensino não possua a qualidade didática e pedagógica exigida pelos
PCNs.
Mesmo sendo a música um conteúdo, na maioria das vezes, torna-se inviável de ser
trabalhada por um profissional da música, mas as diversas disciplinas podem estabelecer
relações. Dessa forma, o estabelecimento de parcerias entre professores de música e professores
de outras áreas, utilizando-se propostas interdisciplinares, produzindo experiências significativas,
tanto para professores quanto para alunos, encaminha-se como uma possibilidade, a ser
considerada nesse processo.

Historiando para musicar

A história não remete apenas ao passado, é uma ciência em constante construção. Dessa
forma, é importante que todos que se interessam e têm contato com a História - professores,
historiadores, estudantes de História - tragam presente as relações possíveis no tempo e no espaço
em estudo. Além disso, assim, faz-se essencial perceber que a História utilizada na linguagem
cotidiana, na grande maioria das vezes não é a mesma que aquela estabelecida como campo de
conhecimento específico da academia. Portanto, não há um conceito único de História, nem
mesmo um significado que consiga dar conta de todos os sentidos que a palavra consegue
assumir.
Apesar de se tratar de uma ciência que tem como raízes o estudo do passado, não é uma
ciência do passado, mas está em contínua construção, assinala Bloch (2001). O autor enfatiza
também a importância da História como uma ciência em construção, abordando discussões acerca
das especificidades do conhecimento histórico. Nesse sentido, além da ideia da continuidade, ele
nos traz uma percepção inovadora a respeito do objeto da História:

O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do
passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa. Para
quem duvidasse, bastaria lembrar o que, há pouco mais de um século, aconteceu sob
nossos olhos. Imensos contingentes da humanidade saíram das brumas. (BLOCH, 2001,
p. 75)

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Percebe-se que a construção conceitual da História tem se modificado conforme as


necessidades de época. A citação de Bloch remete à década de 1940, quando havia a necessidade
de romper com a ideia de que apenas as ciências exatas eram consideradas como ciência, ou seja,
coube aos humanistas justificarem o seu ofício como científico, significando para além da arte. O
pensamento de Bloch visa não apenas estudar os fatos isolados, mas compreender, problematizar,
contextualizar a discussão. Ele pretendia dar liberdade ao historiador para não se ater apenas a
documentos oficiais, seguindo outras possibilidades de análises de fontes, documentos e escrita,
dando apoio a novas etapas metodológicas. Outra contribuição para o processo de construção de
conceito de História foi estruturado por Peter Burke:

Dada a multiplicidade de identidades sociais e a coexistência de memórias sociais, de


memórias alternativas (memórias de família, memórias locais, memórias de classe,
memórias nacionais, etc.), é certamente mais produtivo pensar em termos pluralísticos
sobre os usos que a recordação pode ter para diferentes grupos sociais que podem ter
diferentes pontos de vista quanto ao que é significativo ou digno de memória. (BURKE,
2000, p. 9)
Dada algumas referências estruturantes para a construção da ideia de História e memória,
é necessário escolher a linha teórica que melhor representa a análise deste estudo. Neste caso,
faz-se uso do conceito de História cultural de Roger Chartier, pois além de permitir o diálogo
com os outros estratos a serem utilizados no trabalho, como a música e o ensino, entende as
diferentes representações sociais construídas pelo homem:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade


de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo
que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos
com a posição de quem os utiliza. [...] as percepções do social não são de forma alguma
discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa dos outros, por ela menosprezados, a legitimar
um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e
condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando
sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se
enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta
importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um
grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus,
e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é,
portanto, afastar-se do social – como julgou uma história de vistas demasiado curtas -,
muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais
decisivos quanto menos imediatamente materiais. (CHARTIER, 1990, p. 17)

Esse movimento que ocorre ao longo do século XX emanou importantes discussões as


quais ainda se encontram em aberto, pois a História, como ciência em construção, não garante
verdade nenhuma, e, portanto, como tal está em constante desconstrução e construção. Nesse

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sentido, faço uso das ideias propagadas por Jörn Rüssen, as quais aproximam a História do
sentido de consciência histórica:

Pela análise da narrativa histórica ganha-se acesso ao modo como o seu autor concebe o
passado e utiliza as suas fontes, bem como aos tipos de significância e sentidos de
mudança que atribui à história. Ele espelha por isso, tácita ou explicitamente, um certo
tipo de consciência histórica, isto é, as relações que o seu autor encontra entre o passado
e o presente e, eventualmente, o futuro, no plano social e individual. No que concerne à
Educação Histórica formal, ela será um meio imprescindível para as crianças e jovens
exprimirem as suas compreensões do passado histórico, e consciencializarem
progressivamente a sua orientação temporal de forma historicamente fundamentada.
(RÜSSEN, 2001, p. 12)

Ao aproximar os conceitos de História à realidade nacional, percebe-se que a


historiografia brasileira foi e é influenciada por modelos estrangeiros: positivismo, marxismo,
nova história e suas inflexões como a história cultural e a história das mentalidades:

O atraso de 10 ou 15 anos que marcou a difusão dessas correntes no Brasil foi, em


grande parte, responsável por tais confusões, pois todas essas inovações da
historiografia, principalmente européia, chegaram juntas ou, pelo menos, se difundiram
juntas nos anos 1980. E assim prosseguiu o desacerto, com corrigendas progressivas de
todos, embora muito lentas” (VAINFAS, 2009, p. 233).

A chegada tardia acima mencionada merece ser interpretada a partir da percepção de que
o processo educacional brasileiro também foi tardio, ou seja, apenas no início do século XIX foi
possível a abertura de imprensa e de bibliotecas. No entanto, esse processo tardio não tem
representado perdas significativas para a história nacional, pois se percebe que, tanto os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), quanto as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)
têm proporcionado a aproximação da história nacional com a produção internacional e, isso se
reflete também no ensino de História.
O ensino de História se deu somente a partir do momento em que houve delimitação entre
a história e as demais disciplinas, ou seja, quando ocorre a profissionalização e a
institucionalização do conhecimento histórico nas universidades. Saviani apresenta o contexto,

E a escola é erigida, então, como o instrumento por excelência para viabilizar o acesso a
essa cultura. Com efeito, em se tratando de uma cultura que não é produzida de modo
espontâneo, natural, mas de forma sistemática e deliberada, requer-se, também, para a
sua aquisição, formas deliberadas e sistemáticas. Assim, a sociedade moderna não podia
mais se satisfazer com uma educação difusa, assistemática e espontânea, passando a
requerer uma educação organizada de forma sistemática e deliberada, isto é,
institucionalizada, cuja expressão objetiva já se encontrava em desenvolvimento a partir
das formações econômico-sociais anteriores, através da instituição escolar. A escola foi,
pois, erigida na forma principal e dominante de educação (SAVIANI, 1991a, p. 86).

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Mais recentemente, aconteceu a associação desse conhecimento com a organização de


espaços patrimoniais, sejam públicos ou privados. Dessa forma, a história passou a obter
reconhecimento, inclusive pelo público de não historiadores.
O caso brasileiro, traz-nos uma realidade diferenciada quando se trata de ensino de
História, uma vez que a própria história do Brasil passou por processos de dominação e
supremacia da cultura europeia, apresentando como consequências, a defasada estrutura social,
política e econômica. Outro ponto relevante é situar o lugar da pesquisa historiográfica ou da
pesquisa no campo da história no Brasil. O que parece prevalecer é a ideia de uma comunidade
de pesquisadores com expressão diminuída se relacionada com autores estrangeiros, que na
maioria das vezes, não tratam o caso brasileiro. E ainda, a persistência das dicotomias cria um
abismo no qual deveriam existir relações sólidas, uma vez que ensino e pesquisa, teoria e prática,
licenciatura e bacharelado, universidade e escola, professor de educação básica e de educação
superior, todos parecem ser antônimos quando investigamos as trajetórias nos campos da história.
A produção historiográfica é importante para a construção de ideia de ensino de História,
principalmente, quando conjugada com as demais reproduções do conhecimento histórico, pois
essas estão fundamentadas nas representações sociais e na construção do imaginário popular. Ou
seja, a história ensinada, para ser entendida, depende também da ressignificação do sujeito que
está construindo o conceito. Jörn Rüssen contribui com essa ideia, ao escrever sobre a
importância do pensamento e da cultura histórica, vista sob a perspectiva do humanismo
intercultural:
Contudo, esta recusa em olhar a história como uma disciplina escolar para uma
cidadania com enfoques particulares não significa que ela seja encarada como um saber
inerte, para simples deleite subjetivo; espera-se que o aparato conceitual da história
habilite os jovens a desenvolverem de forma objetiva, fundamentada porque assente na
análise crítica da evidência, as suas interpretações do mundo humano e social,
permitindo-lhes, assim, melhor se situarem no seu tempo. A consciência histórica será
algo que ocorre quando a informação inerte, progressivamente interiorizada, torna-se
parte da ferramenta mental do sujeito e é utilizada, com alguma consistência, como
orientação no quotidiano. (RÜSSEN, 2001, p. 16)

Ensinar história não pode ter como objetivo único a análise e o entendimento dos
conteúdos que estão no livro didático. Ensinar história é produzir além de saberes, razões, é
posicionar-se politicamente, estabelecendo relações entre passado e presente, é causar sentidos e
emoções para que haja significado, é aumentar as possibilidades de viver e pensar o vivido. Além
disso, ensinar História não pode acontecer apenas com pressupostos metodológicos próprios, mas
com aportes de outros campos disciplinares. A ideia de campo é emprestada de Bourdieu:

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A teoria geral da economia dos campos permite descrever e definir a forma específica de
que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital,
investimento, ganho), evitando assim todas as espécies de reducionismo, a começar pelo
economismo [...]. Compreender a gênese social de um campo, e aprender aquilo que se
faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se
joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar
necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não motivado os atos dos produtores e
as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir [...]
(BOURDIEU, 2003, p. 69).

As lutas travadas pelos sujeitos buscam o capital como bem maior e tendem, mesmo
sendo simbólicas, se espalhar em outras esferas sociais, gerando consequências significativas.
Esses agentes, de forma nenhuma sofrem essas consequências passivamente, mas agem,
dissimulam, omitem poder, dentro de uma sociedade totalmente ativa. Nesse caso, temos
claramente campos distintos que emanam ideias no âmbito das relações sociais que se cruzam,
formando um palco para o exercício da violência em prol do capital simbólico. Todas as regras,
discursos, atos, ações e práticas que se determinam nesse jogo, também são naturais dos campos
e de certa forma servem como ferramenta para a legitimação dos atos.

Musicalizando para Sensibilizar

A música é considerada uma das expressões artísticas mais antigas da humanidade e fazer
música é algo fisicamente natural e naturalmente humano. Convivemos diariamente com ela, pois
ouvimos música no carro, no chuveiro, na escola, na rua. Além disso, a sonoridade está presente
na natureza e não há sequer um lugar no mundo que não possua sons característicos:

Temos a capacidade auditiva de detectar apenas determinadas frequências sonoras,


dando àquelas que não escutamos o nome de “silêncio”; mas o silêncio na Terra de fato
não existe, caso contrário não teríamos vibração e, portanto, não teríamos vida. Nós,
nossa vida e tudo que a cerca, poderíamos ser considerado como música também, com a
distinção não sermos uma organização sonora feita pelo ser humano simplesmente
estamos insertos numa “estrutura musical” enorme e extremamente complexa, a qual não
dominamos por completo. (FERREIRA, 2012, p. 15)

Sendo a música uma linguagem culturalmente construída, ela caracteriza-se por ser um
fenômeno histórico e cultural. Por meio dela é possível comunicar ideias, sentimentos e ações
produzidos na sociedade. Sua importância relaciona-se ao fato de, como linguagem, pode
produzir conhecimentos. Utilizando-se os seus parâmetros de sons, vozes, ritmos e até mesmo do
silêncio, que se caracterizam diferentes experiências de espaço e tempo. Por exemplo, quando
estudamos música, é necessário aprender regras de combinação de sons, bem como da sua

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organização anteriormente definidas. Os signos que compõem as partituras demonstram o


processo de criação, uma vez que também sofreram alterações, mediados pela cultura espacial e
temporal.
Adorno (2011) contribui com esse pensamento, afirmando que “[...] é perfeitamente
óbvio, que nem todos nós vivemos ao mesmo tempo”. Utilizando-se essa ótica é impossível
aceitar que a música como produção humana é igual em todas as partes do mundo, que não há
influência de uma parte sobre outra e que o seu desenvolvimento se dá em uma escala igual ou
pelo menos parecida em todas as partes. Salienta-se que apesar da música ser algo natural e
universal no sentido de estar em todos os lugares, ela não é necessariamente uniforme e
hegemônica. Lidar com estas diferenças é aceitar a cultura do outro é entender que a alteridade
existe e é uma produção de lugar/tempo. Na mesma linha, Penna corrobora que:

Trata-se, na verdade, de uma sensibilidade adquirida, construída num processo – muitas


vezes não consciente - em que as potencialidades de cada indivíduo (sua capacidade de
discriminação auditiva, sua emotividade etc.) são trabalhadas e preparadas de modo a
reagir ao estímulo musical. Se o educador acreditar que a questão da sensibilidade é dada
ou não de berço, ou que, em termos de música, “não há nada para entender, basta
escutar”, então tornará inútil o seu próprio trabalho. (PENNA, 2012, p. 31-32)

Além das considerações acima, a autora acrescenta a importância dos estilos musicais.
Afirma que todas as manifestações musicais diferenciadas, desde a música popular até aquela
promovida pela indústria cultural – todas são música. Sendo assim, para o ensino da música, ou
musicalização é preciso compreender e explicitar os estilos musicais. Dessa forma a música não
pode ser um pressuposto dado que se autodetermina ou se basta e ela necessita ser questionada,
assim como as demais manifestações artísticas e a própria ciência.
Possuindo a musicalização a possibilidade de interagir com a história, é mister considerar
que isso permite o avanço sobre a consciência não apenas histórica, mas também cidadã. Para
Aronoff (1974, p. 34) “[...] a música é uma experiência humana. Não deriva das propriedades
físicas do som como tais, mas sim da relação do homem com o som”. Assim, se a relação homem
e som representam experiência humana, logo o ensino da música nas aulas de História permite
reflexões sobre a cidadania, pois essa necessita ser construída com significado e não apenas ser
imposta por ordem institucional. Dessa forma, o ensino de música pode tornar-se parte da prática
cidadã.
Para tanto, é preciso haver a consciência de que uma aula de música deve ter como
objetivo primeiro a ampliação de sua concepção. Assim, dois principais itens devem ser

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lembrados. Primeiramente é necessária a busca por diversas alternativas, e entre elas, a


experimentação é algo de fundamental importância não só no ensino da música, mas das mais
diversas formas de aprendizagem. Em segundo lugar, mas não menos importante, é que o
professor não deve prender-se a um determinado padrão musical, e possibilitar a apresentação de
gêneros diversos para seus alunos. Ambas as premissas, além de levar em conta a vontade do
aluno e sua realidade, têm como objetivo oferecer outros caminhos, que segundo Penna é o de
musicalizar, ou seja, torna-se sensível à música de modo que a pessoa reaja, mova-se com ela.

Na perspectiva abordada, portanto, musicalizar é desenvolver instrumentos de percepção


necessários para que o indivíduo possa ser sensível a música, apreendê-la, recebendo o
material sonoro/musical como significativo. Pois nada é significativo no vazio, mas
apenas quando relacionado e articulado ao quadro das experiências acumuladas, quando
compatível com os esquemas de percepção desenvolvidos. (PENNA, 2012, p. 33)

A educação por meio da sensibilização do aluno é uma visão que tem ganhado força e
críticas positivas no que diz respeito principalmente ao ensino da arte. A importância das artes
vem sendo discutida desde os filósofos antigos, por ser mutável e variável de acordo com o
momento histórico e a perspectiva de análise. Dessa forma, a concepção de arte ainda é analisada
como uma manifestação em construção e como afirma Penna considerando as experiências
acumuladas.
Por carregar consigo aspectos utópicos que vão além do que é compreendido como
racional e real, a arte pode ser julgada, erroneamente, como algo distante da ética. Essa, que se
baseia em caracteres normativos de razão prática, também de primeira mão, não agrega
elementos que possam ser utilizados no mundo artístico. HERMANN (2001) acredita que o
entrelaçamento entre ética e estética é algo comum a partir do momento que: “[...] um juízo moral
não se realiza sem elementos estéticos, assim como um julgamento estético contém elementos de
razão prática”. Ou seja, fica inviável a separação prática e teórica desses dois elementos, uma vez
que um depende do outro para se concretizarem.
Estas relações, por vezes, abrem caminho para a alteridade, a partir do momento que são
capazes de enxergar o outro, de reconhecer o estranhamento, ou mesmo, a afinidade existente.
Sem dúvidas, mudanças na moral da sociedade e mesmo da vida política, não dependem apenas
de nós, mas sim de estruturas maiores, como por exemplo, as inovações culturais. Nisso, a arte
tem uma importância grandiosa, pois a leitura que os artistas fazem da realidade, cria novas
formas de ver o mundo, novas linguagens, novas metáforas. É a partir disto que se criam os
limites das decisões éticas:

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Considerando, sobretudo as éticas racionalizadas, a relação com o outro se torna alvo de


muitas críticas, porque nossas ações, ao atender demandas universais, negligenciam as
particularidades dos contextos e sacrificam a alteridade, indicando a pouca efetividade
de princípios éticos abstratos. (HERMANN, 2001, p. 8)
Tanto a ética quanto a estética, atuam para o estranhamento, e esse por sua vez atua na
moral. O estranhamento que nos faz pensar sobre as crenças, ou até mesmo as convenções que
seguimos e que estão enraizadas na nossa cultura. A educação tem como arma o uso dessa
ferramenta para atingir o princípio de sensibilidade ao outro, principalmente quando dialoga com
a arte.
Um dos dilemas da educação é o não alcance efetivo do seu público. A partir do momento
que se reconhece o outro, também é possível reconhecer a si mesmo. Por isso a alteridade é o
fruto da quebra de barreiras entre a ética e a estética, as que estão socialmente convencionadas
em nossa sociedade, Quando ocorre a quebra de barreiras, acontece a redenção da sensibilidade.
Portanto, sem a arte, a ética sozinha não conseguiria cumprir o papel de livrar-nos dos conceitos e
estereótipos construídos pelas grandes estruturas. Falta, portanto um reconhecimento das atitudes
e uma vontade de mudança, para que a arte esteja presente na vida escolar, não somente
cumprindo um papel subalterno como o faz.

Relacionando Música e História

A realização de um trabalho interdisciplinar faz-se cada vez mais necessária. No Brasil,


essa sistematização chegou há não muito mais que uma década e trouxe consigo diversas
significações que, por vezes, mostram-se contraditórias. A própria bibliografia especializada é
escassa no meio nacional, o que faz com que o uso de metodologias interdisciplinares seja
camuflado e, muitas vezes, distorcido, não mostrando seu verdadeiro valor e não cumprindo com
os objetivos propostos. Ivani Fazenda, além de trazer a definição do termo, faz considerações a
respeito do caso brasileiro:
‘Interdisciplinaridade’ é um termo utilizado para caracterizar a colaboração existente
entre disciplinas diversas ou entre setores heterogêneos de uma mesma ciência.
Caracteriza-se por uma intensa reciprocidade nas trocas, visando a um enriquecimento
mútuo. Surge como crítica a uma educação por “migalhas”, como meio de romper o
encasulamento da Universidade e incorporá-la à vida, uma vez que a torna inovadora ao
invés de mantenedora de tradições. (FAZENDA, 1996, p. 73)

A autora pontua que a interdisciplinaridade, apesar de não ser uma ciência, é um ponto de
encontro entre a renovação nas atitudes referentes ao ensino e a aceleração do processo de

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pesquisa e do conhecimento científico, o que projeta uma aproximação entre a atividade


profissional e a formação escolar. Sem dúvida, a reflexão é válida no sentido da tomada de
consciência que o homem tem de si, seja, a utilidade, o valor e a aplicabilidade da
interdisciplinaridade estão diretamente ligados às demandas do ser humano:

Todavia, essa necessidade é muitas vezes camuflada por certas realidades distorcidas. O
verdadeiro espírito interdisciplinar nem sempre é bem compreendido. Há o perigo de que
as práticas interdisciplinares se tornem ou práticas vazias, produtos de um modismo em
que, por não ter nada que discutir, discute-se em mesas-redondas, como salienta
Althusser, em Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas, ou constituem-se em meras
proposições ideológicas, impedindo o questionamento de problemas reais (FAZENDA,
1996, p. 84).

Para complementar a análise, Rago e Neto fazem uma crítica à funcionalidade da


interdisciplinaridade, evidenciando os questionamentos das relações de poder intrínsecas no
modelo disciplinar adotado pela modernidade,

Não se trata, aqui, de mostrar – nem, muito menos, de denunciar – o acento catastrofista,
denuncista, prometeísta, salvacionista e prescritivista das bases filosóficas que
sustentaram o movimento pedagógico pela interdisciplinaridade. O que me parece mais
interessante é constatar que aquele que talvez tenha sido o movimento pedagógico mais
próximo a articular uma crítica da disciplinaridade tenha, de fato, passado ao largo de
uma problematização radical acerca das disciplinas e de seu papel de dominação da
Modernidade (RAGO & NETO, 2008, p. 33).

Por meio disso, cabe-nos pensar sobre a real finalidade das relações interdisciplinares,
que, na teoria, são perfeitamente exequíveis, porém, na prática, existe uma série de questões que
não permite um trabalho apropriado. Apesar do grande passo que é pensar a educação
interdisciplinar, devem-se levar em conta os aspectos históricos que contribuem para as
dificuldades na mudança das práticas e no entendimento desse tipo de ensino. Assim mesmo,
levantar questões acerca do uso dessas novas metodologias pode contribuir para a constituição de
um espaço gerador de debates e reflexões, que promovam ações a favor de mudanças na estrutura
escolar e sugestões plausíveis para o trabalho interdisciplinar.
Na legislação brasileira, existe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que recomenda o
trabalho interdisciplinar nas escolas, uma vez que essa entende a interdisciplinaridade da seguinte
forma:
A Interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de
conhecimento produzida por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação e a
influência entre eles – questiona a visão compartimentada (disciplinar) da realidade
sobre a qual a escola, tal como é conhecida, historicamente se constitui. (LDB, 1996, p.
31)

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Nas escolas, a realidade mais comum é encontrar as possibilidades aquém dos obstáculos.
O desconhecimento dos professores, a falta de formação específica, a acomodação pessoal e
coletiva, a baixa remuneração, o pouco reconhecimento, o vício da linearidade, são apenas alguns
desafios a serem vencidos. Entre as possibilidades, estão os benefícios da transformação profunda
para quem ensina e para quem aprende, a observação da relação das disciplinas sem negligenciar
nenhuma delas, uma equipe especializada, engajada e dinâmica, uma nova articulação de espaço
e tempo que favoreça os encontros para o planejamento e a utilização de uma linguagem comum.
A determinação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) coloca a
interdisciplinaridade como essencial no currículo escolar, e ainda diz que ela pretende criar uma
nova postura para a educação, através do rompimento dos limites das disciplinas e sua
consequente integração em conceitos globalizantes. Dessa forma, novas abordagens dentro das
disciplinas devem ser buscadas. No caso proposto, tanto a História quanto a música podem
estabelecer ações para que se chegue aos objetivos propostos, porém anteriormente, é necessário
refletir acerca de algumas questões sobre o tema.
Recentemente, a música tem se tornado objeto de pesquisa de historiadores e, aos poucos,
isso vem refletindo formas de como utilizar esse recurso em sala de aula. No Brasil, as primeiras
pesquisas datam dos anos 1970 e mais significativamente dos anos 1980. No exterior, um dos
pioneiros sobre o tema foi o historiador britânico Eric Hobsbawn (2007), que analisou o contexto
social do jazz norte-americano, gênero que se desenvolveu e espalhou-se pelo mundo ocidental.
Outro autor de referência para os estudiosos, sobretudo de música popular, é Adorno (1986), um
dos expoentes da Escola de Frankfurt e conhecido como o “pai dos estudos de música popular”.
Sua pesquisa relata sobre os males da indústria cultural como produtora de sujeitos passivos e
alienados, promovidos principalmente pela estética e crescimento do consumismo.
Como no Brasil a maior parte dos estudos refere-se ao gênero de música popular, Adorno
tem ajudado a entender as relações da indústria fonográfica que abrangem o consumidor, o
produtor/divulgador e a música, e, ainda compreender a música como expressão cultural e
artística. Segundo Napolitano (2002, p. 7), a preferência de análise no Brasil por esse tipo de
gênero se dá pela sua característica de ser “[...] a intérprete de dilemas nacionais e veículo de
utopias sociais; canta o futebol, o amor, a dor, um cantinho e o violão”.
O uso da Música como recurso didático-pedagógico é plausível no momento em que
cumpre o papel de estabelecer relações entre o aluno e a sua própria realidade. Além disso, as

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diversas disciplinas do currículo escolar podem e devem aderir ao trabalho com a música em sala
de aula individualmente ou mesmo com a intenção de constituir um projeto interdisciplinar. Nas
aulas de História, sobretudo, é possível utilizar a música com o intuito de introduzir temas
relacionados a diversos aspectos da vida cotidiana, como por exemplo, discriminações étnicas,
relações de gênero, patriotismo, censura, trabalho, contexto e outros temas. Assim como a
História, a música é filha de seu tempo, seu espaço, sua circunstância. Dessa forma, colabora a
Secretaria de Educação de São Paulo,

A História é necessária por ser uma das mais importantes expressões de humanidade,
como é a Música, por exemplo. Tanto a História como a Música parecem disciplinas
sem utilidade, porém basta imaginar um mundo em que elas não existissem para
perceber sua importância (2008, p. 41).

A música, além de ser uma importante fonte histórica, está diariamente presente na vida
de estudantes dos mais diversos níveis. Muitas experiências artísticas podem revelar a
possibilidade de se confrontar a História oficial, não contada nos livros didáticos e desprezada no
discurso de muitos professores, contribuindo para a ampliação da visão de mundo. A linguagem
musical, em outra perspectiva, ao mesmo tempo em que permite abordar a realidade do aluno,
pode possibilitar o entendimento de outros conceitos históricos, transitando por movimentos de ir
e vir, passado e presente, rupturas e permanências, semelhanças e diferenças, podendo dinamizar
a reflexão do saber histórico.
O professor ainda tem a possibilidade de escolher o gênero musical a ser trabalhado
mediante o gosto dos alunos ou ainda um gênero desconhecido por eles. Ambas as possibilidades
abrem variadas análises nos conteúdos a serem trabalhados. Porém, apesar de todas essas
vantagens, o uso da música gera algumas questões. De acordo com alguns estudos,

Se existe certa facilidade em usar música para despertar interesse, o problema que se
apresenta é transformá-la em objeto de investigação. Ouvir música é um prazer, um
momento de diversão, de lazer, o qual, ao entrar na sala de aula, se transforma em uma
ação intelectual. Existe enorme diferença entre ouvir música e pensar música
(BITTENCOURT, p. 379-380).

Para um melhor entendimento do poder de transformação da música, é importante que se


tenha claro um referencial de estudos no campo da produção historiográfica sobre o tema.
Entender como os historiadores pensam a música é essencial para que haja possibilidades de
transformação da música para ser ouvida em música para ser compreendida. Entender que estes
processos coexistem, formando uma cena musical repleta de subculturas, como revela Adorno

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(2011), também é uma característica importante para a significação da música em sala de aula.
Este cenário corresponde a: “Um espaço cultural no qual um leque de práticas musicais
coexistem, interagem umas com as outras dentro de uma variedade de processos de diferenciação,
de acordo com uma ampla variedade de trajetórias e interinfluências” (NEGUS, 1999, p. 22).
Pensar a música como linguagem é certamente criar espaços pedagógicos para o exercício
da diversidade. É utilizando o seu discurso metafórico, que a música produz sentidos não
explicitados, e, além disso, contribui para a apreensão referente às múltiplas territorialidades
produzidas no contexto da contemporaneidade. Swanwick esclarece esse aspecto, situando a
relevância desse ensino no contexto da leitura de mundo,

[...] o discurso musical, embora inclua elementos de reflexão cultural, também torna
possível a refração cultural, ver e sentir de outras maneiras. Não “recebemos” cultura
meramente. Somos intérpretes culturais. O ensino de música, então, torna-se não uma
questão simplesmente de transmitir cultura, mas algo como um comprometimento com
as tradições em um caminho vivo e criativo, em uma rede de conversações que possui
muitos sotaques diferentes (SWANWICK, 2003, p. 46).

Neste caso, o ensino de determinado estilo musical, reflete especialmente um modelo de


sociedade, geralmente local. Por exemplo, o sertanejo, reflete uma sociedade rural, do interior do
Brasil, originalmente caipira, de subsistência. À medida que este estilo sai de suas fronteiras,
deixa de ser local e passa a incorporar novas características sociais e culturais, fruto das
transformações da sociedade, redefinindo assim novas territorialidades. Portanto, é
completamente inteligível o estudo das ciências humanas, nesse caso da história aliado ao ensino
da música.

As conexões entre grupos específicos e seus estilos de vida e posições sociais estão
marcadas na expressão musical que produzem. Isso não significa, necessariamente, que a
música é o reflexo da sociedade; ela também produz a sociedade, pois ela, como os
demais objetos está em movimento, sofre transformações e se reestrutura de forma
diferenciada. Por exemplo, a música é modificada e modifica a medida em que é
incorporada ao circuito comercial. Transformada em produto, adquire novas
características que lhe imprimem movimentos que, por sua vez, resultam em
transformação da sociedade (TONINI, 2013, p. 4).

Entender os aspectos de territorialidade e diversidade é prática essencial para o professor


de história que busca um trabalho integrado, além de ser uma possibilidade metodológica.
Preferencialmente, quando se trabalha música em sala de aula como um recurso para ensinar os
conteúdos de forma lúdica, o professor opta pelo estudo das letras. Esse trabalho logicamente
pode ser interessante no sentido de propor o estudo do contexto social, cultural e político da

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época, porém não contempla um dos principais aspectos da música: a sonoridade. Na maioria das
vezes, a música entra na sala de aula como poesia, isto é, referindo apenas à letra.
As letras podem proporcionar a construção de conceitos e a reflexão sobre temáticas do
cotidiano, todavia a articulação das informações se dá de forma fragmentada. Ainda que essas
ações sejam relevantes, elas significam um estudo de texto. Poucas vezes utiliza-se a importante
vivência sonora que essa linguagem proporciona. Quando isso acontece, a proposta está
associada quase sempre à música como aspecto figurativo, isto é, como fundo musical. Neste
caso, efetivamente, é utilizada como algo secundário, que, por vezes, pode tornar mais atrativo o
trabalho do professor, entretanto não atinge o objetivo associado à musicalidade.
Para tornar real e possível uma proposta de ensino de História integrado com música, é
necessário, antes de tudo, oferecer acesso ao material básico do processo musical: o som. Ou seja,
o foco inicial não é o ensino das notas ou dos elementos musicais convencionais, mas a criação
de possibilidades de o aluno experimentar um espaço musical com o intuito de democratizar o
acesso à arte e à cultura.

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Nossas Mega Construções

Gilnei Daniel Júnior1


Juliano da Silva de Bastos2
Ricardo Kemmerich3

Resumo: Pretendemos neste texto, problematizar e justificar as atividades em andamento na Escola Santa Marta,
localizada na comunidade do Bairro Nova Santa Marta Nossas Mega Construções, através do ensino de História
em consonância de uma perspectiva sustentável, a permacultura. As atividades fazem parte do subprojeto
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - Pibid/História/UFSM, onde suas atividades têm como
pretensão melhorar a qualidade do ensino dos conteúdos de História nas redes públicas e efetivar a aproximação
entre academia e a realidade escolar e da comunidade no entorno. A história do Bairro Nova Santa Marta, onde
hoje se situa a Escola Estadual Santa Marta é marcada por conflitos e conquistas. Possui uma área de
aproximadamente 1200 hectares na região oeste de Santa Maria (RS), território este da antiga Fazenda Santa
Marta, que fora desapropriada pelo governo do estado do Rio Grande do Sul no ano de 1978. O tema
sustentabilidade já faz parte do cotidiano das escolas de hoje e possibilita o diálogo com conteúdos variados,
sendo, portanto uma importante ferramenta na prática pedagógica, além de conferir, de forma mais palpável, a
aproximação de conteúdos teóricos e práticos. Para isso, serão elencados nesse artigo, o ensino de história a
partir da permacultura, partindo inicialmente da contextualização da história da formação do Bairro e a
formação de sua identidade, da relação do homem com o meio ao longo da história, em especial nossa sociedade
capitalista e a construção nos alunos de uma autonomia que os possibilitem enxergar as relações de um todo a
partir da História.
Palavras-chave: permacultura, história, identidade, sustentabilidade.

Abstract: We intend this paper to question and justify ongoing activities in Santa Marta School, located in New
Town Santa Marta "Our Mega Constructions community, through the teaching of history in line for a sustainable
perspective, permaculture. The activities are part of the subproject PIBID / History / UFSM where their activities
have the intention to improve the quality of education of the contents of history in the public networks and effect
a rapprochement between the academy and the school and the community surrounding reality. The history of
New Subdivision Santa Marta, where today the State School Santa Marta is located is marked by conflicts and
conquests. It has an area of approximately 1200 hectares in west Santa Maria (RS), this territory of the former
Santa Marta, which had been expropriated by the state government of Rio Grande do Sul in the year 1978. The
issue of sustainability is already part of the daily school today, and allows dialogue with varied contents, thus
being an important tool in teaching practice, besides conferring, more tangibly, the approach of theoretical and
practical content. For it will be listed in this article, the teaching of history from permaculture, initially starting
from the context of the formation of the District and the formation of their identity, the relationship of man with
the environment throughout history, especially in our society capitalist and the construction of autonomy in
students that enable them see the relationships of a whole from the history.
Keywords: permaculture, history, identity, sustainability.

1
Graduando em História pela UFSM – E-mail: gilnei_daniel2011@hotmail.com
2
Mestrando em História pela UFSM – E-mail: julianowbastos@gmail.com
3
Graduando em História pela UFSM = E-mail: rikrdo_kemmerich@hotmail.com

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Introdução

O Pibid - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - objetiva, em


âmbito nacional, inserir o acadêmico de cursos de licenciatura de universidades públicas ou
privadas no âmbito escolar. É uma iniciativa para o aperfeiçoamento e a valorização da
formação de professores para a educação básica, desenvolvida por Instituições de Educação
Superior (IES) em parceria com escolas de educação básica da rede pública de ensino. Assim,
o programa promove a inserção dos estudantes no contexto das escolas públicas desde o início
da sua formação acadêmica, para que desenvolvam atividades didático-pedagógicas, com as
orientações de um docente do curso de licenciatura e de um professor da escola.
O subprojeto Pibid História da UFSM circunscreve-se como um programa de
extensão, donde suas atividades têm como pretensão melhorar a qualidade do ensino de
história nas redes públicas e efetivar a aproximação entre a Universidade e as realidades
escolar e da comunidade na qual está inserida. Atualmente, atua em quatro escolas da rede
pública estadual em Santa Maria: Escolas Santa Marta, Augusto Ruschi, Paulo Lauda e Érico
Veríssimo.
Pretendendo problematizar e justificar as atividades desenvolvidas na Escola Santa
Marta, localizada na comunidade do Bairro Nova Santa Marta, o trabalho Nossas Mega
Construções, prevê estimular os estudantes para com o ensino da História, em consonância
com a perspectiva sustentável, a chamada permacultura. Dentro desta ótica, a permacultura
será abordada de forma a fomentar ações saudáveis, tanto individualmente quanto em grupos,
além de estimular a percepção de si e de suas famílias, como agentes ativos na modificação
dos espaços antrópicos. Para tanto, estão sendo desenvolvidas atividades práticas sustentáveis,
com enfoque na problematização da história do bairro, tendo o processo de formação de
identidades como tema central e como fator de inclusão na escola.
O confinamento social, decorrente da marginalização do Bairro (ausência de ofertas de
ensino ou atividades lúdicas e de lazer suficientes, por exemplo), em suas mais diversas
clivagens, geram sentimentos de despertencimento do corpo social. Há então a sensação de
apartheid em relação ao Estado, pois este não oferece estratégias de amparo, fazendo então da
escola, um baluarte de representação daquilo que não se pode acessar. Assim, a aproximação
do corpo escolar e da comunidade, exige que a relação escola/comunidade trate dos
problemas e anseios do local.
A escola enquanto instituição de ensino formal e obrigatório, nem sempre consegue
fazer com os estudantes vejam sentido nos conhecimentos ofertados. A ausência de sentido

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naquilo que se faz leva à evasão escolar, e\ou ao aprendizado deficitário e sem significado.
Para a superação deste quadro, é necessário que os alunos entendam a lógica por detrás da
instituição escolar, bem como dos conhecimentos nela produzidos. Para isso, serão elencados
nesse artigo, o ensino de história a partir da permacultura, partindo inicialmente da
contextualização da história da formação do Bairro, produção das identidades, da relação do
homem com o meio ao longo da história, em especial nossa sociedade capitalista e a
construção, por parte dos alunos, de ações autônomas que os possibilitem enxergar as relações
sociais a partir da sua história.

O Local, a Memória e a Identidade

A história do Bairro Nova Santa Marta, onde hoje se situa a Escola Estadual Santa
Marta, é marcada por conflitos e conquistas. Possui uma área de aproximadamente 1.200
hectares na região oeste de Santa Maria (RS), território que antigamente pertencia a Fazenda
Santa Marta, desapropriada pelo governo do estado do Rio Grande do Sul no ano de 1978. Em
1980, teve 39 de seus 1.200 hectares utilizados para a construção da CoHab (Companhia de
Habitação do Estado do Rio Grande do Sul) Santa Marta, com 872 moradias. No ano de 1984,
através da Lei Estadual 7.933/1984, fora autorizada a doação de aproximadamente 340
hectares à CoHab, com a pretensão de que, nos próximos cinco anos, fosse construído um
conjunto residencial. A despeito da doação, a construção do conjunto residencial nunca se
efetivou, o que motivou, no dia 7 de dezembro de 1991, famílias integrantes do Movimento
Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), a ocuparem a área da antiga Fazenda Santa Marta.
Assim teve origem a maior ocupação urbana em área pública da história do Rio Grande do
Sul. Essa é a origem da maior parte dos estudantes atendidos pela EEEB Santa Marta.
Na formação urbana de Santa Maria podem ser distinguidas três regiões de ocupação:
o centro – sendo este a referência, Camobi – onde a UFSM e a Base Aérea são os principais
referenciais e a zona oeste – onde o distrito industrial se encontra. A zona oeste é a ocupação
mais recente de Santa Maria, nela se concentra a maior parte da população pobre e é onde está
localizada a Cohab Santa Marta. O bairro Nova Santa Marta é marcado pela desigualdade
social e pelo descaso do poder público. Como compõe o recente processo de povoamento da
região oeste da cidade, sofre com as condições precárias de infraestrutura, com saneamento
básico insuficiente, moradias improvisadas com material encontrado nas ruas e vias de
trânsito sem pavimentação, sendo asfaltada somente a principal.

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O cenário reflete as condições marginais do bairro e é expresso pela falta de


infraestrutura, pela sujeira e, inclusive, pela denominação atribuída aos moradores pelo
restante da população da cidade: invasores, o que acaba denotando a ocupação como invasão.
Deve-se ter o entendimento que essa periferia urbana que se formou ao longo dos morros das
grandes metrópoles se deu por algum motivo, afinal essa periferia não é constituída de
acrófilos.
Em Santa Maria, esses contingentes populacionais, ao serem marginalizados,
procuram ocupar espaços que estão sendo mal utilizados, ou em função do acesso, ou de
câmbio de valorização e desvalorização imobiliária. Há, portanto, uma gama de fatores que
influem nas ideias construídas em torno desses problemas, como a falta de moradia, Não
possuindo moradia, os moradores não possuem endereço. Sem um endereço postal, não é
possível se matricular na escola ou mesmo ter acesso ao SUS. Sem casa, sem ensino, sem
trabalho, o ciclo da marginalização se mantém.
As referências culturais do mundo dito globalizado e seu aparente caráter sincrético
(não que não o seja) dá-nos a impressão de que as identidades em níveis locais e regionais
passam a ter menor visibilidade. É compreensível então, que esses grupos busquem os
alicerces que formam sua identificação em elementos que lhes são próximos e formem
referências para a compreensão de seu mundo e sua localização específica nele. A identidade,
enquanto elemento de pertença de um grupo ou lugar está diretamente ligada à trajetória
histórica de uma comunidade e sua relação com o meio onde vive, além de suas práticas
culturais. Nora, ao relacionar memória e identidades, afirma que:
[...] é a vida, sempre carregada por grupos vivos, e nesse sentido, ela está em
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações,
susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. [...] A memória se
enraiza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto, [...] é um absoluto
(NORA, 1993, p. 9).

Assim, é a memória que baliza a identidade, estimulando positivamente ou não, a


autoestima, na tentativa de superar o paradigma da desigualdade institucionalizada, onde:
O abandono da visão unilinear também foi impulsionado pelo processo de
descolonização do mundo após o fim do segundo conflito mundial, que se
desenrolou nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado. Aqueles que só faziam
parte da história só por serem colonizados e quando colonizados, tendo aí que se
conformar com um tipo de história eurocêntrica e preconceituosa, passaram a
reivindicar a sua história. (OLIVEIRA, 2010, p. 25)

Os referenciais mnemônicos são trabalhados de forma a construir uma determinada


visão, compreensão de mundo, legitimando práticas e conferindo sentido as ações dos grupos.
Por exemplo, no século XIX para o XX tivemos a emergência de diversos Estados-nação,

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alicerçados sempre em cima de uma história, geralmente longínqua, a partir de uma


determinada memória, para que se legitimassem e estabelecessem os limites das práticas
culturais dentro de um território específico, garantindo a coesão nacional.
A memória, portanto, está atrelada ao poder, pois pode ela determinar as relações de
dominação entre colonizados e colonizadores, ou ser carregada de juízos de valores bastante
específicos. Como exemplo, lembremos do discurso de legitimação de dominação das
Américas pela história eurocêntrica onde Portugal “descobre” esta terra. Ou ainda, em Santa
Maria, onde ao antigo vale da “Garganta do Diabo”, por conferir altas taxas de suicídio no
local, a comunidade foi estimulada a denominá-lo Vale do Menino Deus. Tratam-se,
obviamente, de exemplos diferentes, mas que ilustram o sentido daquilo que estrutura a
memória coletiva.
O ensino de história, enquanto processo de aprendizado em que as experiências com o
passado humano são interpretadas e tomadas como referência, conferem orientação para a
prática de vida como cidadão ativo e dá sentido para a formulação de identidades. Sendo
assim, a educação, enquanto orientadora do ser humano e de suas relações nos grupos sociais,
deve ser pensada em consonância com um projeto de sociedade que se almeje. O estímulo ao
pensamento crítico da realidade e da inserção do indivíduo nela, fundam os alicerces para o
desenvolvimento de um ator social capaz de atuar e refletir sobre os anseios pessoais e
comunitários. O desenvolvimento de consciência histórica a partir da problematização da
ocupação do Bairro Nova Santa Marta e de reflexões que possibilitem capacitar os indivíduos
a agir nos meios antrópicos de forma sustentável e consciente, são os objetivos principais das
práticas pedagógicas que este artigo pretende discutir.

A História: a Relação Homem, Espaço e Tempo

Que é o tempo afinal? ─ perguntou Hans Castorp, comprimindo o nariz com


tamanha violência, que a ponta se tornou branca e exangue. ─ Quer me dizer isto?
Percebemos o espaço com os nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Muito
bem! Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Pode me responder essa
pergunta? Bem vê que não pode. Como é possível medir uma coisa da qual, no
fundo, não sabemos nada, nada, nem sequer uma única das suas características?
Dizemos que o tempo passa. Está bem, deixe-o passar. Mas para que possamos
medi-lo… Espere um pouco! Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que
decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a
nossa consciência, não é. Somente o supomos, para a boa ordem das coisas, e as
nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções [...]
(MANN, 1952, p. 83)

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O tempo, enquanto referencial do devir humano e de suas experiências, sempre


instigou as mais profundas reflexões. A história, entendida aqui como ciência, se faz das
relações entre os homens, em um espaço e tempo específicos. É, portanto, a história, o estudo
dos processos humanos que transcorrem através do tempo, no espaço. O homem enquanto ser
que consome, precisa de espaço para sobreviver e de recursos que satisfaçam suas
necessidades, a princípio, vitais. Sua relação com o espaço dá-se, então, a partir de seus
recursos e o tempo de sua oferta (tempo de aquisição\tempo de espera). Tempo construído a
partir das necessidades dos grupos sociais, sobre o período das chuvas, das secas, das
colheitas, das estações do ano, das fases da lua. Durante o processo de humanização e de
sedentarização, o homem teve que se relacionar de maneira mais racionalizada com os
elementos da natureza. Passou então, para além de apenas consumir recursos, à sua produção
e administração, ao mesmo tempo em que pôde sustentar atividades ociosas.
Na Antiguidade, o trabalho e seu antípoda o ócio, constituíam pontos que regiam o
tempo, ou seja, arar, semear, colher, procurar, caçar, limpar, armazenar, e o ócio, podendo ser
criativo – a filosofia, por exemplo, é trabalhosa, mas reside no ócio, o dia e a noite. Assim
como Mann, quando explicita através de seu personagem Castorp que o tempo é uma
convenção, podemos entendê-lo como sendo objetificado a partir das mudanças ou
referenciais de permuta ou estagnação.
Como o jovem Castorp, diversos filósofos e historiadores trataram de tentar entender o
tempo. Dentre eles, Braudel, integrante do grupo que compôs a segunda geração da Escola
dos Annales, o qual baseou o tempo histórico em heterogeneidades ou temporalidades
diferentes, compreendendo os processos a partir de três instâncias fundamentais. Assim,
Braudel pensou uma divisão tripartite do tempo: a longa duração, o tempo conjuntural e o
factual. Para ele, o tempo curto representava o tempo dos eventos - o factual. Embora haja a
divisão estabelecida pelo francês entre os tempos históricos, eles transcorrem associados
constantemente entre as demais temporalidades. Fala, portanto, do evento como algo, até certa
medida expressivo, um acontecimento, de significações múltiplas a partir de um tempo muito
maior do que sua verdadeira duração, por conseguinte, uma conjuntura, um contexto.
O evento constitui, então, uma parte que se anexa de forma bastante evidente ou não a
toda uma série de acontecimentos. Os eventos, ou seja, o tempo factual, relaciona-se a um
tempo maior, uma determinada conjuntura, como por exemplo, um regime, que por
conseguinte se relaciona a uma estrutura maior, uma superestrutura, ou um tempo de duração
mais longo, secular - uma concepção ou prática econômica que influi sobremaneira nas
relações de grupos humanos, como o capitalismo e seus desdobramentos.

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Desse modo, dá-se ênfase para a produção da história econômica e social, conferindo
uma visão mais ampla do que apenas uma história política, porque: “Ontem, um dia, um ano
podiam parecer boas medidas para um historiador político. Mas, uma curva dos preços, uma
progressão demográfica, o movimento dos salários [...] reclamam medidas muito mais
amplas” (BRAUDEL, 1978, p. 47).
Assim, uma alta de preços, por exemplo, pode associar-se uma seca em um
determinado local do continente que prejudique a produção de batatas. Temos a forma de
abordagem histórica de análise de uma conjuntura (seca), inserido em um mundo regido pelo
capitalismo e sua variação máxima, o capital:
Só se disciplinará, só se definirá a palavra capitalismo, para colocá-la a serviço
exclusivo da explicação histórica, se a enquadrarmos seriamente entre as duas
palavras que a subentendem e lhe conferem seu sentido: capital e capitalista. O
capital, realidade tangível, massa de meios facilmente identificáveis,
permanentemente em ação; o capitalista, o homem que preside ou procura presidir à
inserção do capital no processo incessante de produção a que todas as sociedades
estão condenadas; o capitalismo e, grosso modo (mas só grosso modo), a forma
como se conduz, para fins usualmente pouco altruístas, esse jogo constante de
inserção. (BRAUDEL, 1987, p. 20)

O modo como nós entendemos o mundo e nossas relações dentro dele são ditados pela
longa duração, porque são onde os homens estão enraizados. Nossas crenças pairam
inconscientemente sobre nossas decisões, nossos valores nos dirigem a moral de nossas ações.
Assim, a partir da difusão do capitalismo mundial com as grandes navegações do século XVI,
propiciaram-se mudanças nas relações de exploração nos mais variados continentes. Foi após
a revolução industrial que as tensões entre a exploração desenfreada sobre o meio ambiente -
a produção de massas para o consumo de massas - típica de uma cultura urbana em ascensão,
começa a desequilibrar a relação entre homens e o meio. Além desse desequilíbrio, o
individualismo cada vez mais severo entre os homens, desconsidera que suas ações façam
parte de um conjunto de múltiplas ações de indivíduos que formam um todo.
Como antes dito, as relações entre o homem e o meio se modifica conforme as novas
concepções de mundo se constroem. Na Europa medieval, com uma população quase que
totalmente rural, a exploração do meio não chegava a desequilibrá-lo, pois este ainda não era
ocupado por uma grande massa, nem era afetado por uma grande demanda de consumo. Hoje,
consolidado o paradigma de produção e consumo de massas surgidas no seio do capitalismo,

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o tempo de longa duração, transformou as relações do presente em momentos desconexos de


um processo maior, ou pelo menos, aparentam a desconexão para quem se insere nele.
Outra questão importante a levarmos em consideração é a aceleração do tempo
histórico. Processo, que até o momento, parece inevitável. A aceleração vivenciada
atualmente confirma a noção de tempo imposta pelo sistema capitalista. O tempo do
trabalho, o tempo da fábrica. Tempo sem fronteiras, marcado pela mundialização e
imediatização constante, em que o capital opera e onde tudo consome e mercantiliza.
Uma volatização total, em que somos obrigados a comportamentos efêmeros e
superficiais, sendo nossas relações com o passado desestabilizadas e desmontadas.
(OLIVEIRA, 2010, p. 26)

A Permacultura, Interdisciplinaridade e o Ensino de História

A permacultura:
Es el diseño y desarrollo de hábitats sustentables para el hombre, espetando los
patrones y sistemas de la naturaleza. Generalmente los desarrollos de permacultura
se hacen en terrenos y se aplican para el rescate de ecosistemas y restauración
ambiental. Mollison y Holmgren acuñaron para su nuevo concepto el término
permaculture, una fusión de los términos ingleses permanent agriculture (agricultura
permanente). ( s.a.,2012, p. 3).

Muitos atribuem à história o papel de compreender o presente, a partir do passado,


para que assim se pense o futuro. A história não está a serviço de dar quaisquer medidas, nem
de prever o futuro, entretanto é ela que pode exemplificar consequências em cima de atitudes
já exploradas no passado:
[...] eu apenas poderia falar do que já está em vias de transformação. Eu não poderia,
por exemplo, dizer que andar de carro será tido um dia como algo terrivelmente
estúpido porque destrói a natureza. Hoje, já muita gente pensa assim. Por isso, seria
um mau exemplo. Mas a história vai mostrar que muito do que todos nós temos por
evidente não passará no teste da história. (GAARDER, 1996, p. 392)

Foi a partir das revoluções industriais que a cultura de massas, próprias do capitalismo
urbano industrial, que as relações entre homem e meio inegavelmente quebraram com o
equilíbrio ambiental. A quebra de visão do todo nos distancia de uma relação mais harmônica
e sadia com o meio. A permacultura constitui então, um conjunto de práticas norteadas por
três eixos fundamentais: aquilo que é socialmente justo, economicamente viável e
ambientalmente sustentável. Desse modo, a permacultura faz parte de um projeto holístico, ou
seja, um projeto que pretende levar em consideração a totalidade de relações observáveis no
meio e de sua administração racional e harmônica.
Como já explorado antes, as práticas de exploração do meio, intensificadas pelo
capitalismo industrial de nosso século, gerou toda uma mobilização técnico-científica e
intelectual, onde a compreensão de desenvolvimento perpassou necessariamente no controle
da natureza, ou se preferir, em sua negação. Esse descontrole ou equívoco no trato com o que
é natural e o que é civilizado fez com que as mais novas gerações, já sentindo os problemas

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desta exploração, pensassem sobre a sustentabilidade ou em formas de produção e consumo


cada vez menos agressivas ao meio.
Nesse sentido, a necessidade da introdução da temática sustentabilidade, se deu no
Brasil e no mundo, através de um contexto de crise ambiental. Desse modo, as demandas
geradas dentro da sociedade refletem-se dentro das instituições escolares. Estas, por
manifestarem a sociedade em si, posto que não se operam fora dela, têm o compromisso, em
princípio, de sanar, em um primeiro momento, os anseios sociais, e por tabela, num segundo
momento, as exigências do mercado, portanto econômicas, na oferta de um ensino, capaz de
oferecer elementos para a efetivação desse diálogo. Dessa forma, o Estado brasileiro, a partir
da Resolução CP/CNE nº 2/2012, objetiva a educação ambiental nos seguintes pontos,
ratificando o que já fora disposto na LDBEN de 1996, sendo assim, o decreto pretende:

I. Sistematizar os preceitos definidos na citada Lei, bem como os avanços que


ocorreram na área para que contribuam com a formação humana de sujeitos
concretos que vivem em determinado meio ambiente, contexto histórico e
sociocultural, com suas condições físicas, emocionais, intelectuais,
culturais; II. estimular a reflexão crítica e propositiva da inserção da Educação
Ambiental na formulação, execução e avaliação dos projetos institucionais e
pedagógicos das instituições de ensino, para que a concepção de Educação
Ambiental como integrante do currículo supere a mera distribuição do tema pelos
demais componentes; III. orientar os cursos de formação de docentes para a
Educação Básica; IV. orientar os sistemas educativos dos diferentes entes federados.
Segundo a Resolução CP/CNE nº 2/2012, a educação ambiental deve:
Ser componente integrante, essencial e permanente da educação nacional, devendo
estar presente, de forma articulada, nos níveis e modalidades da educação básica e
da educação superior, para isso devendo as instituições de ensino promovê-la
integradamente nos seus projetos institucionais e pedagógicos. Ser desenvolvida
como uma prática educativa integrada e interdisciplinar, contínua e permanente em
todas as fases, etapas, níveis e modalidades, não devendo, como regra, ser
implantada como disciplina ou componente curricular específico.
Ser incorporado conteúdo que trate da ética socioambiental das atividades
profissionais, nos cursos de formação inicial e de especialização técnica e
profissional, em todos os níveis e modalidades.

Se, a partir do século XIX temos a formação das respectivas áreas do conhecimento,
ou mesmo sua divisão e compartimentação, agora no século XXI, presenciamos uma
retomada do intercâmbio cada vez maior entre elas. A história e seu caráter interdisciplinar
incontestável ensejam dentro do ensino, a possibilidade de trabalhar-se com eixos
transversais.
Devemos ter em mente que para um homem consumir, deve também produzir, e que,
para produzir, deve consumir. Na física, podemos prever a quantidade de energia necessária
para se elevar um simples tijolo de 500 gramas, onde um homem comum poderia fazer com a
energia da farinha dos grãos de trigo que fazem seu café da manhã. Podemos, na história

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então deduzir que, para a construção da Muralha da China, exigiu uma complexa rede de
demandas, ou seja, foi necessário a formação de uma cadeia de produção, perpassando a terra,
o homem, as coisas e suas transformações. De proporções bíblicas, a muralha demandou
milhares de homens para sua construção. Estes homens necessitaram de água, comida, bem
como matéria-prima. Todos estes aspectos podem ser trabalhados com o intuito de promover
uma visão diferenciada, onde uma perspectiva de todo possa ser elaborada.
Para além da história do presente, as problematizações feitas a partir do tema
sustentabilidade e bioconstrução, focando sempre na permacultura e seus eixos fundamentais
(o que é ambientalmente sustentável, socialmente justo e economicamente viável) sua
proposta de trabalho possibilita conectar conteúdos que vão desde a Antiguidade ao Brasil
Colônia. As técnicas utilizadas na permacultura não são novidades, muito pelo contrário, parte
do resgate de hábitos e tecnologias há muito esquecidas ou deixadas de lado em função de
como nos organizamos hoje. O teto verde, por exemplo, foi muito utilizado por índios
kaingangs no Rio Grande do Sul e culturas europeias nórdicas. O adobe também é uma
técnica anterior ao tijolo queimado de olaria e foi utilizada pelos povos da Antiga
Mesopotâmia, pelos chineses, egípcios e europeus (em especial os portugueses). No Brasil,
por exemplo, sua Igreja mais antiga foi construída com tecnologia de adobe e localiza-se em
Pernambuco, próximo a Recife.

A Mega Construção: autonomia e permacultura

O trabalho educativo é o de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo


singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos
homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos
elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie
humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à
descoberta das formas mais adequadas de atingir esse objetivo (SAVIANI apud
DUARTE, 2012, p. 49).

A educação e o ensino desempenham papéis a eles outorgados pela lógica social. Mas
quais seriam estes papéis? É a partir da revolução das formas de produção, ou seja, a partir da
transformação da natureza em capital, que os tentáculos da força econômica surgem dentro
dos Estados, desenvolvem-se dentro deles e então o esmorecem, os subvertem ao capital.
Dentro desta lógica, a educação tem demonstrando, ao longo dos anos no Brasil, como sendo
um espaço de produção e reprodução da lógica da exploração e da manutenção de
desigualdades própria da sociedade capitalista.

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A análise da História da Educação no Brasil tem denunciado a inexistência de políticas


públicas de Estado que demonstrem a adoção de diretrizes voltadas para o pleno
desenvolvimento do aluno. Hoje, a construção da cidadania transcende os vínculos de um
Estado ou instituição. Como a escola não é um corpo que opera em separado do conjunto das
outras classes sociais, reproduz em sua organização os anseios da sociedade burguesa. Ao
tomar para si referenciais que não contemplam sua realidade, acaba por gerar insatisfações. A
superação desse modelo de educação e o estabelecimento de uma organização que leve em
conta todos os sujeitos envolvidos com um projeto de sociedade mais harmonioso, tem em
seu horizonte uma educação que objetive a emancipação e a autonomia dos alunos do ponto
de vista da consciência da inserção destes estudantes no mundo.
No Brasil, a pedagogia crítica se desenvolveu a partir do final do primeiro século XX,
e como um de seus maiores expoentes temos Paulo Freire. Freire parte da realidade escolar
dos alunos, vinculando os conteúdos trabalhados com a realidade, de modo que o que é
ensinado se torne palpável, promovendo a valorização cultural desses grupos, em um processo
de alfabetização sem o distanciamento do estudo e da realidade. Parte do pressuposto de
desenvolver competências de interpretação da realidade, sendo a partir dessa interpretação
que podemos ligar o livro sobre pedagogia histórico-crítica de Demerval e Saviani, como
sendo uma pedagogia que procura dentro do processo de educação, à historicização de
práticas e conceitos, ou seja, a contextualização dos conhecimentos produzidos e adquiridos
de modo a promover a emancipação dos sujeitos a partir da compreensão da realidade, para
além dos aparatos ideológicos da sociedade capitalista.
Esse consiste o seio da pedagogia histórico-crítica, possibilitar a compreensão da
realidade para além dos aparatos ideológicos. Esses aparatos ideológicos fazem com que:

[...] os homens produzem idéias ou representações pelas quais procuram explicar e


compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com
o sobrenatural. Essas idéias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos
homens o modo real como as relações sociais foram produzidas e a origem das
formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento
da realidade social chama-se ideologia (CHAUÍ, 1995, p. 21).

Assim, partimos da historicização dos conhecimentos, ou seja, da valorização da


cultura humana cumulativa que foi historicamente construída, como base para o entendimento
da vida e das relações sociais para orientação futura e desenvolvimento social como um todo.
Não seria, porém, contraditório buscar elementos para uma reflexão ontológica
sobre a educação na obra de Demerval e Saviani, que se destacou pela defesa do
caráter essencialmente histórico das relações entre educação e sociedade? Duarte
salienta que essa contradição existiria se a ontologia fosse entendida como uma
reflexão filosófica metafísica, idealista, que considerasse a essência das coisas como
algo independente da realidade social concreta (DUARTE, 2012, p. 40).

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Assim, a ontologia da educação busca compreender a essência historicamente


constituída do processo de formação dos indivíduos humanos como seres sociais e não uma
essência desvinculada da história, pois esta essência adquiriu sentido dentro da história. É,
portanto, da análise dos processos historicamente concretos de formação dos indivíduos e de
como, por meio desses processos, vai se definindo no interior da vida social um campo
específico de atividade humana, o campo da atividade educativa. Quando a ontologia é
entendida, então, a partir da historicização, na perspectiva do materialismo histórico e
dialético a essência passa a ser vista como algo que é gerado ao longo do processo histórico e,
portanto, algo que só pode ser compreendido com base numa perspectiva histórica.
O uso de técnicas variadas produzidas pelos homens ao longo da história possibilitam
a problematização de práticas que visem a sustentabilidade e maior respeito ao meio que os
cerca. O uso dessas técnicas em sala de aula enseja uma percepção maior sobre os materiais
que nos cercam, e como nós efetuamos sua produção e descarte. A reutilização consciente
desses materiais usando técnicas de permacutura permite a formação de autonomia nos
estudantes em que pese o desenvolvimento teórico e prático dos conteúdos em sala de aula.
Autonomia no sentido de perceberem-se, ao usar essas técnicas em casa, ou na rua, que eles
são capazes de olhar o meio com outros olhares e prever sua cadeia de transformação. Assim,
conscientes de suas ações no meio, podem agir com maior autonomia.

Não basta a contemplação da realidade, a indiferença da constatação e da explicação


apartada de seus fenômenos, é preciso transformá-la. Assim, o momento da
aplicação do conhecimento corresponde a essa perspectiva de disponibilizar o
conhecimento aos cidadãos para o planejamento de ações que modifique a realidade
local. É importante que para se tratar de um momento intervencionista, de anúncio
de proposições para a ação coletiva, seu planejamento e organização pedagógica
precisam priorizar problematizações mais flexíveis e abertas que as sistematizadas
nos dois momentos anteriores, para como síntese, garantir a participação consciente
e diversificada de educandos e educandas como agentes efetivos da transformação a
partir de suas práticas produtivas, criadoras e sociais (GOUVEA, 1999, p. 88).

Este projeto pretende capacitar os alunos, onde inicialmente, através da modificação


do pátio da escola para que os próprios tenham um local melhor de convívio, irão durante o
processo, aprender a trabalhar com materiais e formas de construção anteriores à revolução
industrial (e/ou seus refugos), que complexificaram os processos, normatizaram e
introduziram materiais extremamente onerosos nas construções típicas do consumo de
massas. Demonstrando como a simplicidade e a mudança de visão sobre o que os cerca pode
lhes aumentar a perspectiva de mundo e proporcionar transformações positivas em seus
futuros.

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Considerações Finais

Este trabalho iniciou suas atividades com o uso de pallets (visto que alguns trabalhos
já foram desenvolvidos na escola com esse material) e madeira acumulada no pátio da escola,
de forma a reaproveitar este material ressignificado da condição de lixo para matéria-prima.
Este projeto, iniciado com uma Atividade Norteadora, teve sua proposta apresentada para a
turma do segundo ano do Ensino Médio e partiu das necessidades dos próprios alunos,
baseada na cartografia social elaborada pelo subprojeto. Assim, pretende-se ampliar para além
dos muros da escola, diminuindo as distâncias entre a comunidade escolar e a comunidade do
bairro.
Explícito anteriormente, as atividades do subprojeto Pibid/História - UFSM, encontram-se
ainda em fase de desenvolvimento. Por isso, seu embasamento teórico e seu diálogo com a
prática, a partir de reflexões dentro dos conteúdos de história, ou seja, a constituição da
práxis, não permanece estanque. Desse modo, a prática pedagógica e o ensino de história,
devem ser constantemente revisionados. Pretendemos , no decorrer das atividades na EEEB
Santa Marta, possibilitar a formação de uma autonomia crítica nos estudantes participantes do
“Nossas Mega Construções” a partir de um acúmulo de referenciais adquiridos com o estudo
de história.

Referências

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo - SP: Editora Perspectiva, 1978.

BRAUDEL, Fernand. A Dinâmica do Capitalismo. Rio de Janeiro – RJ: Rocco, 1987.

CHAUÍ, Marilena de S. O que é ideologia? São Paulo - SP: Editora Braziliense S.A., 1995.

COGGIOLA, Osvaldo. O Poder e a Glória: Crescimento e Crise no Capitalismo de Pós-


Guerra (1945-2000). Porto Alegre: Editora Pradense, 2010.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Ambiental. Resolução n. 2, de 15 de junho 2012. Resolução CNE/CP 2/2012.

Diário Oficial da União, Brasília, 18 de junho de 2012 – Seção 1 – p. 70.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro - RJ: Paz e Terra, 2008.

GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo – SP: Cia
das Letras, 1996.

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GOUVÊA, A.F.S. da. A busca da organização curricular crítica: das falsas significativas às
práticas contextualizadoras. Qualificação – Dissertação de Mestrado/USP – São Paulo, 1999.

JACQUES, M. G. C. Identidade. In: M. N. Strey et al. Psicologia Social Contemporânea.


Petrópolis – RJ: Vozes, 1998. s. a. Manual de Agricultura Urbana. Arvol, Guadalajara,
México, 2012.

LIBÂNEO, J.C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M.S. Educação Escolar: políticas, estrutura e
organização. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

NORA, Pierre. Entre Memória e História – A Problemática dos Lugares: IN: Projeto História:
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do departamento de História
da PUC-SP, n. 10. São Paulo: Educ, 1993.

SAVIANI, Demerval; DUARTE, Newton. A pedagogia histórico-crítica e luta de classes na


educação escolar. Campinas - SP: Autores Associados, 2012.

MANN, Tomas. A Montanha Mágica. São Paulo – SP: Editora Nova Fronteira S.A., 1952.

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O Gato do Rabino vai à Sala de Aula: Estratégias e Abordagens no Ensino de História das
Religiões

Cristine Fortes Lia 1


Daniel Clós Cesar2

Resumo: As estratégias de ensino de história precisam ser constantemente repensadas, no sentido de abarcar os
novos temas e ampliar o diálogo com as novas linguagens de docentes e discentes. O cinema constitui-se como um
campo a ser explorado pelo professor historiador, podendo ser abordado como fonte, objeto e meio de representação
histórica. “O Gato do Rabino” é uma animação de produção francesa, ambientada na Argélia, no final de 1920.
Como protagonistas principais estão o rabino e seu gato que, após devorar um papagaio, passa a falar. O enredo
básico da animação é uma viagem em busca dos judeus que vivem no “Oriente”. Essa animação permite um conjunto
de indagações para o ensino de história das religiões, dentro de uma perspectiva de transversalidade e
multiculturalismo. A tolerância evidenciada pelas personagens proporciona uma reflexão sobre as práticas de
intolerância cultural do mundo contemporâneo. Este estudo busca apresentar as estratégias de utilização de “O Gato
do Rabino” como meio de ensino de história, identificando modelos práticos para serem empregados em sala de aula.
Palavras-chave: Ensino. História. Religiões. Cinema. Tolerância.

Abstract: Strategies for teaching history must be constantly rethought in order to embrace the new themes and
expand the dialogue with the new languages of teachers and students. The cinema was established as a field to be
explored by historian teacher, can be approached as a source, object and medium pageant. "The Rabbi's Cat" is an
animation of French production, set in Algeria at the end of 1920. The main protagonists are the rabbi and his cat
after devouring a parrot starts to speak. The basic story animation is a journey in search of the Jews living in the
"East." This animation allows a set of questions for the teaching of the history of religions, within a perspective of
mainstreaming and multiculturalism. The tolerance shown by the characters provides a reflection on the practices of
cultural intolerance of the contemporary world. This study aims to present strategies for using "The Rabbi's Cat" as a
means of teaching history, identifying practical to be used in the classroom models.
Keyworks: Education. History. Religions. Cinema. Tolerance.

Religião e Religiosidades na Sala de Aula

Escrever sobre história das religiões é um assunto relativamente novo, isso se levarmos
em conta o campo de conhecimento da História, diferente de outros campos do conhecimento
como a Filosofia, a Antropologia e o da Sociologia. Mas quando nos atemos ao campo da
historiografia, a abordagem, principalmente nos livros didáticos, é limitada e bastante
conservadora.

1
Universidade de Caxias do Sul – E-mail: crisflia@bol.com.br
2
Universidade de Caxias do Sul – E-mail: daniel.clos@gmail.com

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História das religiões é comumente confundida com ensino religioso. Ensinar história das
religiões para muitos professores de história é incômodo, pois muitos tendem a ver o ensino das
religiões como a defesa de um credo ou disseminação de uma religião. Esse afastamento provém
de uma tendência em “confirmar a secularização da sociedade” (LIA, 2012, p. 551), o que
condenou a marginalidade do conhecimento histórico.
O ensino de história das religiões no ensino Médio e Fundamental é quase inexistente. O
que existe é um apanhado de pequenos quadros explicativos – que pouco ou nada explicam –
sobre religiões do passado. Esses quadros e comentários encontrados nos livros didáticos estão na
contramão dos temas transversais como a pluralidade cultural, pois não são utilizados para criar
mecanismos de integração e aproximação dos diferentes credos, pelo contrário, apenas reforçam
visões de dominação, preconceito em relação a povos, nos quais as diferenças culturais são
consideradas como atrasos em função das religiosidades professadas. O que promove o
afastamento do culturalmente diferente e a criação de uma hierarquia das manifestações
religiosas, divididas entre as que são consideradas mais evoluídas e as que permanecem em
estágio de estagnação.
Percebe-se, principalmente nos livros didáticos, uma desconexão do ensino das religiões e
religiosidades com o ensino de história. Ainda que a própria historiografia afirme, de alguma
forma, uma profunda ligação da religião com o Estado, com o cidadão, com a cultura e como
modo de vida de diferentes sociedades, ao chegar à sala de aula este conhecimento é
descaracterizado e transformado em “partículas de saber” ministrados em doses desconexas,
visando apenas o “exótico” (LIA, 2012. p. 551) e não como fator que modela e define
comportamentos sociais.
No entanto como podemos ensinar a história dos primeiros povos daquilo que hoje
chamamos América se, a religião – ou religiosidade – algo intensamente intrínseco a vida dos
ameríndios, é posto como algo secundário e pouco relevante? Como é possível administrar a
separação do cotidiano dos índios americanos ou dos egípcios da religião, quando seus
calendários agrários, suas práticas de caça e pesca, seus atos de guerra e a própria escolha de seus
líderes eram guiadas pelas deidades por eles criadas?
Segue-se a isso uma grande produção de comentários e quadros temáticos nos livros de
história do Ensino Fundamental e Médio, que fazem apenas classificações e generalizações, com
pouca ou nenhuma distinção entre os diferentes grupos étnicos. Para os povos monoteístas,

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politeístas ou antropozoomorfistas é criado um modelo explicativo com quadros comparativos


religiosos, que por fim, acabam por premiar determinadas crenças em detrimento de outras. O
que em seu “auge” era significativo para a construção de uma sociedade é hoje abordado como
simples fato mitológico de um povo antigo e que não possuí nenhuma conexão com o presente.

O ensino de religiosidades é, muitas vezes, percebido dentro deste contexto, que


considera obsoleta a abordagem dos processos de crenças e mitos das civilizações, por
serem temas cronologicamente distanciados do mundo contemporâneo. E, portanto, não
constituem matriz explicativa para os acontecimentos do presente. (LIA, BALEM, 2013.
p. 140).
Distante, no entanto, do que é escrito e publicado, principalmente nos materiais didáticos,
o ensino de história das religiões é muito mais relevante que um pequeno quadro “não-
explicativo”, pois em nenhum momento da história humana a religião ou as religiosidades
estiveram fora do contexto social. A experiência religiosa faz parte de qualquer sociedade antiga
ou contemporânea.
Diferentes grupos utilizaram a religião como elemento agregador na construção de
cosmovisões de sociedade. Atualmente a religião continua como uma marca indelével na
sociedade, seja quando ela serve para defender posicionamentos, seja quando ela é o alvo do que
deve ser abolido, tornando com que a própria negação da religião demonstre sua importância na
construção de uma sociedade e seu impacto na cultura de um povo.
De grande importância para este trabalho é o conceito de religião que será utilizado.
Trata-se de uma questão delicada, pois recentemente (maio de 2014), a Justiça Federal do Rio de
Janeiro não considerou o candomblé e a umbanda religiões. Sob acusações de intolerância
religiosa e reafirmação de estereótipos desqualificadores, a Justiça Federal do Rio de Janeiro
reconsiderou o conceito empregado na primeira decisão judicial.
No entanto, para fins acadêmicos, é necessário encontrar uma base mais sólida para nos
orientar, para tanto, o conceito de religião que será utilizado neste trabalho é o mesmo empregado
pela Sociologia em apontar como religião aquelas que possuem um mito criador e um texto
sagrado. Logo: Entende-se por religião as crenças professadas por judeus, cristãos e muçulmanos;
por serem aquelas que apresentam narrativa de mito criador: uma única divindade, um deus, que
criou todas as coisas.
Nesse sentido, os grupos historicamente monoteístas têm religião e os fiéis de outras
crenças são portadores de religiosidades (LIA; RADÜNZ. 2013. p. 245). Isso não significa que as
religiões monoteístas são consideradas neste trabalho como hierarquicamente superiores as

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demais representações religiosas, não existe nenhum suporte para fazer tal afirmação ou defender
a hierarquia religiosa. Mas, serão as monoteístas as aqui trabalhadas, em função da animação O
Gato do Rabino focar seu roteiro em judeus, cristãos e muçulmanos.

Cinema e Ensino de História

O cinema sempre esteve ligado a abordagens históricas. Independentemente do caráter de


sua produção, documental ou ficcional, revela as sensibilidades da sociedade e da época me que
foi produzida. Muitas vezes, esteve a serviço do Estado, propagando e reforçando ideologias. Sua
abrangência, como observa Marc Ferro (1988), ultrapassa as intenções ideológicas de seus
criadores, consistindo em uma das mais amplas formas de leitura do passado e do presente.
A obra cinematográfica foi incorporada, a partir dos anos 1970, como um novo campo do
fazer histórico através da Nova História (MORETTIN, 2011) por muito tempo sendo vista como
um tema menor a ser abordado pelo historiador foi ampliando seu espaço enquanto temática e
metodologia para pesquisa e ensino. Nas primeiras décadas do século XXI, o cinema se constitui
como um campo extremamente fértil para a pesquisa histórica:

As primeiras relações entre as duas instâncias – cinema e história – desenvolveram-se


quando o cinema começou a representar, de diversas maneiras, a história ou os
ambientes históricos. Isso sem falar que não tardaria para que os historiadores
percebessem a chance de tratar o cinema como objeto de estudo e como fonte histórica
para compreender o mundo contemporâneo, tendo em vista que o cinema logo se
transformou em um poderoso agente capaz de agir e interferir na própria história (campo
de acontecimentos). Estas três instâncias – as possibilidades de tratar o cinema como
meio para representação da história, como objeto de estudo para história e como fonte
histórica para compreender o mundo contemporâneo – foram percorridas pelos
historiadores no século XX, sobretudo a partir das últimas décadas. (BARROS,
NÓVOA, 2012, p. 7-8).
O cinema permite uma perspectiva única sobre a época que retrata e sobre aquela na qual
o filme foi produzido. Quanto mais a história promove a interdisciplinaridade, construindo uma
nova linguagem própria através do diálogo com outras linguagens, como a literatura, a fotografia,
entre outras, mais a fonte fílmica amplia seu potencial para a construção do conhecimento
histórico. Para Barros (BARROS, 2012, p. 62) é possível estabelecer seis relações entre o cinema
e a história, a de “[...] fonte histórica, representação histórica, instrumento para o ensino de
história, linguagem e modo de imaginação aplicável à história, tecnologia de apoio para a
pesquisa histórica, agente histórico”.

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A obra fílmica também tem seu espaço garantido na sala de aula. Professores de história
se utilizam do cinema como estratégia para enriquecer suas abordagens e, principalmente, para
criar uma imagem de determinados acontecimentos e épocas, permitindo que o aluno tenha uma
experiência sensível diante de realidades marcadas pela distância no tempo e no espaço. No
entanto, o filme não deve ter a função ilustrativa de um conteúdo, menos ainda deve ser a
referência única sobre um assunto.
O cinema, seja ficcional, baseado em contexto histórico ou documentário deve servir
como um produto cultural cuja análise da produção já consiste na primeira fase de análise para o
educando. Um filme não pode compor uma aula sem ser analisado dentro da perspectiva de quem
o produziu, onde foi produzido e em que momento. Por não ser produto de um historiador,
precisa ser analisado como fonte específica, dentro das características que conferem sentido à
obra cinematográfica. A história de um filme fala muito sobre o contexto no qual foi produzido.
A ausência de informações sobre o mesmo pode gerar falta de interesse dos alunos,
portanto não pode ser exibido sem ser contextualizado. Da mesma forma, recortes precisam ser
criteriosamente estudados, para não gerar uma compreensão de acordo com as intenções do
professor, impedindo o educando de produzir seu próprio conhecimento sobre a película
apresentada. Sua análise também não deve se limitar em reconhecer os erros de caráter histórico
que se apresentam no mesmo, a desconstrução é uma estratégia válida, desde que a análise não se
limite a ela. A busca pela imperfeição da narrativa histórica pode mascarar importantes reflexões
sobre o título assistido.
Um filme deve compor uma aula promovendo uma experiência específica para os alunos,
permitindo o reconhecimento de diferentes linguagens e o contato com a interdisciplinaridade. A
imagem tem o poder de fixar uma ideia com mais intensidade do que o texto escrito e, quando em
movimento, possibilita a inserção do educando espectador a uma realidade nova, na qual será
capaz (através do auxílio do professor) de desenvolver habilidades e competências, que
contribuirão para a compreensão do tema estudado.
O cinema na sala de aula deve ser tratado como uma fonte documental, através da qual
várias leituras de diversos contextos históricos podem ser feitas. Deve ser pensado como um meio
de sensibilização e como um objeto de análise. Sendo ainda uma estratégia prazerosa para a
abordagem de variados assuntos.

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Um Filme para Aulas de História das Religiões


Criado a partir de uma das mais premiadas graphic novel francesa, O Gato do Rabino (Le
chat du rabino) é uma adaptação do texto ilustrado do francês Joann Sfar, quadrinista e cineasta.
O desenho animado, uma produção lançada no mercado mundial em 2012, foge um pouco ao
estilo comercial das animações contemporâneas. Faz pouco uso de tecnologias digitais – existe o
uso, mas ela não é percebida facilmente pelo espectador no produto final – e remete-se
visualmente aos desenhos produzidos pelos estúdios da Disney na década de 1980 e 1990, que,
apesar de novas tecnologias envolvidas na produção do filme, preservavam o estilo da arte
sequencial de décadas anteriores, ou melhor ainda, o estilo limpo dos desenhos de Hergé, autor
do personagem Tin-tin, que inclusive faz uma aparição no filme.
O filme é uma adaptação dos dois primeiros livros de Sfar e apresenta algumas
desconexões, existe um pouco de dificuldade para compreender exatamente o que está
acontecendo no início do filme, assim como sua dinâmica, por vezes o filme parece acelerar para
“pular” alguma cena, outras, no entanto, premia o espectador com diálogos, não demorados, mas
completos, onde é possível fazer uma análise mais profunda dos personagens, da ideia e
construção da religiosa de cada um, da cosmovisão de mundo dos diferentes dogmas
apresentados no filme.
O ambiente, ou pano de fundo, da animação francesa é bastante peculiar. Trata-se de
Argélia dos anos 1930, colônia francesa no norte da África. Um ambiente aparentemente um
pouco incomum para trabalhar temas que envolvam o judaísmo, o islã e o cristianismo
atualmente, já que este tema parece estar mais deslocado, no momento, para a Península Arábica,
Palestina e Golfo Pérsico, isto é, bem mais a leste que o país africano.
Isso é importante e interessante quando pensamos em uma animação para ser utilizada nas
aulas de História. Ao “afastar” geograficamente e temporalmente os judeus e muçulmanos da
Península Arábica e da Palestina proporcionamos ao aluno um novo olhar sobre algo já
conhecido dele. Aqui abro um espaço para “explicar” o já conhecido dos alunos. Não há um
único dia que um noticiário brasileiro não vincule uma notícia sobre a questão palestina ou os
conflitos árabes e judeus.
Logo, é difícil que um aluno, mesmo de séries finais do Ensino Fundamental, ainda não
tenha presenciado uma cena de bombardeio a Gaza, ou de um foguete sendo lançado contra os
arredores de Tel-Aviv, ou ainda não tenha visto uma imagem do Muro das Lamentações ou da

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Cúpula da Rocha. Essas imagens ou “lembranças” que o aluno pode ter, são como afirmou Paulo
Freire em sua obra Pedagogia da Autonomia, um conhecimento prévio ou saberes trazidos pelo
aluno para dentro da sala de aula e que deve ser explorado pelo professor no processo de ensino-
aprendizagem, como quando ele instiga o docente a questionar o aluno dentro de sua realidade,
como no exemplo dos lixões (FREIRE, 2002, p. 3).
O oriente médio conhecido pelos alunos brasileiros é aquele apresentado pela grande
mídia que tem sua perspectiva, normalmente, ajustada com a política israelense e ocidental. É um
conhecimento que, via de regra, apresenta muçulmanos como pessoas pouco confiáveis,
perigosas e potencialmente inclinadas ao terrorismo contra judeus e cristãos. A região é
conhecida como sendo um lugar de conflito e sempre é destacada a amplitude da diferença nas
relações entre judeus e muçulmanos, apresentando sempre um avanço e supremacia tecnológica
dos israelenses, frente ao “atraso e decadência” do modo de vida palestino, uma clara relação ao
que a própria mídia faz em relação à cultura no Brasil, quando põem em conjuntos diferentes
símbolos da música ou da arte, como sendo algo originalmente ou particularmente das zonas ricas
ou pobres dos grandes centros urbanos.
Ao afastar geograficamente, isto é, sair da Palestina e de Jerusalém e se mudar para o
Norte da África e Argel, desenha-se um novo plano de fundo, um novo cenário para as mesmas
questões, a convivência entre cristãos, judeus e muçulmanos, mas fora do ambiente onde,
tradicionalmente, o aluno (e até mesmo o professor), veem como uma área de guerra, conflito e
destruição mútua entre os envolvidos. Fazendo um afastamento temporal, isto é, indo para um
período anterior ao Estado israelense, muda-se a abordagem de quem busca a terra prometida,
mas não a temática. Não é um judeu palestino ou muçulmano que buscam um estado, uma terra
onde todos vivem em harmonia, mas um judeu russo, com um aspecto físico diferente daqueles
vistos pelos alunos do Fundamental quando estão na sala de jantar na hora do noticiário nacional.
Este novo cenário apresentado na animação de Sfar é relevante para primeiro, tirar o
próprio professor de sua área de conforto. Um tema que certamente é pouco abordado nos cursos
de história nas universidades brasileiras é a economia e sociedade no norte da África no início do
século XX. A abordagem feita tanto na academia como por livros didáticos do Ensino
Fundamental e Médio, é de uma África passiva aos desmandos de uma Europa entre guerras, que
explora o continente sem nenhuma oposição, e que de alguma forma tornou as relação
homogêneas naquele espaço geográfico.

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Os livros remetem-se a um passado bastante distante (séculos XIV e XV), no período dos
primeiros estados modernos, para contemplar uma explicação da unificação de Portugal e
Espanha com a expulsão dos muçulmanos desses territórios e, posteriormente, esses personagens
simplesmente somem dos livros. Quando muçulmanos novamente reaparecem com alguma
relevância histórica nos livros didáticos, já estamos em meados do século XX na criação do
Estado de Israel e no século XXI com o atentado de 11 de setembro de 2001. E aí o cenário e as
relações entre judeus, muçulmanos e cristãos já são outras.
O professor então necessita reciclar-se. Conhecer o norte da África colonial do século XX
exige um momento de pesquisa do docente, como afirma Paulo Freire: “[...] não há ensino sem
pesquisa e pesquisa sem ensino” (FREIRE, 2002, p. 32). Isso pode ser bastante complicado se
pensarmos que a grande carga horária a que são submetidos os professores e o pouco incentivo e
promoção de programas de qualificação por parte dos entes governamentais, deixam o professor
em situação bastante delicada frente ao desafio da pesquisa. No entanto, o ensino é uma via de
mão dupla, “[...] quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE,
2002, p. 25), logo ao tornar o tema significativo para si, o professor estará mais capacitado para
tornar o tema significativo para o aluno.
Esta talvez seja a maior dificuldade de trabalhar um filme, ou nesse caso, uma animação
em sala de aula. É necessário ver O Gato do Rabino como uma fonte para descobertas, como uma
fonte real de pesquisa e estudo, um ponto de partida para o aprofundamento em discussões
significativas para a sala de aula, como a interação entre diferentes credos, o preconceito racial e
religioso, a religiosidade e o ateísmo, por exemplo. O filme O Gato do Rabino não é a história de
um gato, tampouco é um enredo para ser interpretado como uma história de amor entre um felino
falante e sua dona, é uma animação que busca discutir temas relevantes na contemporaneidade
afastando-se historicamente e geograficamente daquele discurso e ambiente previamente
conhecido pela sociedade ocidental contemporânea.

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Figura 1. O preconceito religioso e racial. Em Argel, judeus e muçulmanos não podiam frequentar restaurantes
franceses. Na cena, o rabino e seu primo desafiam a “tradição” local graças à companhia de um leão, que também é
um símbolo judaico

O Gato do Rabino: Como Usar em Sala de Aula

Não é nossa pretensão criar neste artigo um guia definitivo para uso do filme O Gato do
Rabino em sala de aula. No entanto, por se tratar de um texto produzido para um evento de
Ensino de História, queremos aqui sugerir como essa animação poderia ser abordada em uma
aula de história. As propostas aqui não são sugestões fechadas e preparadas para um determinado
grau de escolarização, eles servem como base para que o docente, como pesquisador, possa fazer
as adaptações que julgar necessárias para aplicá-lo tanto no Ensino Médio como no Ensino
Fundamental.
O universo da animação é composto basicamente de cinco personagens humanos
principais: um rabino, Abraham Sfar; Mohammed Sfar, um ulemá (aqui estamos fazendo uma
interpretação livre, pois em nenhum momento o filme afirma categoricamente isso, mas entende-
se que o personagem é versado na doutrina islâmica) com parentesco com o rabino judeu, um
judeu russo fugitivo da Revolução Russa de 1917 e um cristão ortodoxo russo que vive na
Argélia. Esses personagens são cercados de outros personagens, como uma turba de judeus
ortodoxos, a filha do rabino e uma africana negra. E há um gato que, como personagem principal
do desenho, desempenha o papel de provocar o diálogo entre os humanos, tirando de si o foco e

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lançando sobre os outros personagens que reagem de variadas formas aos questionamentos do
felino.
Parte dos personagens, após receberem uma caixa de livros vinda da distante União
Soviética com um “imigrante” judeu russo dentro dela, inicia uma viagem em busca de uma terra
onde judeus vivem em harmonia, uma espécie de Terra Prometida. Vale ressaltar que o filme está
ambientado no contexto da década de 1930, portanto, não existe ainda um estado judeu. O elo
entre todas essas religiões durante a viagem é um velho veículo francês (Citroen), ornamentado
com um brasão onde aparece um águia bicéfala representando o império russo com uma estrela
de Davi no peito. O que seria uma excelente representação para uma verdadeira Arca de Noé de
credos, o que também não deixa de ser um elo entre as três religiões retratadas no filme, já que o
evento do dilúvio faz parte do mito criador de todas as três religiões.

Figura 2. A Arca de Noé de Sfar: judeus, cristão e muçulmano em um antigo carro-trator


da Citroen de 1925

O filme é longo, portanto, o uso de cenas selecionadas ou editadas pode ser mais eficiente
levando-se em conta períodos de aula que duram entre 45 e 50 minutos. Faremos então nesta
última parte do texto, uma seleção de cenas que podem ser úteis na construção de uma aula de
história das religiões utilizando o filme supracitado.
Vilela aponta um aspecto interessante da arte sequencial, “o anacronismo, o verossímil e o
inverossímil” (VILELA, 2012, p. 120). E vamos utilizar esses recursos para sugerir a utilização

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do desenho em sala de aula. O anacronismo já é bastante utilizado pelos professores de história,


aliás, parece existir nos professores de história uma tendência quase que natural em estragar o
filme para os outros, vemos com muito mais frequência historiadores preocupados em apontar os
“erros” do filme do que procurando fazer uma leitura de porque eles foram construídos assim.
Mas este é um conceito importante e que parece ser bastante óbvio para um professor de
história, mas, pode ser abstrato demais e também de difícil compreensão por parte dos alunos
(VILELA, 2012, p. 120). Um dos anacronismos do filme é a própria filha do rabino. Este
anacronismo pode ser presenciado no seu vestuário e também no seu discurso. Ela tem um
relacionamento de contestação junto ao pai, lê e escreve melhor que o pai, um rabino em
formação, e conversa sobre temas sexuais com amigas. Particularmente, algumas cenas da
animação são bastante peculiares, principalmente as que possuem alguma sugestão sexual, a
desenhos europeus, algo que seria bastante reprimido em desenhos produzidos pelo mercado
estadunidenses.

Figura 3. A filha do rabino conversa com amigas no pátio da casa. Seu vestuário não condiz muito com a tradição
judaica e uma de suas amigas fuma enquanto falam do “interessante” rabino

Essa inadequação apresentada no filme pode ser uma deixa interessante para discutir o
papel da mulher na sociedade. Sfar em seu texto gráfico propõe uma personagem com um perfil
forte, ainda quem não seja uma personagem principal no filme, ela tem uma participação
relevante em seu discurso e no seu comportamento. Ela obviamente não representa o padrão

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feminino da mulher judia do início do século XX no norte da África. E Sfar, talvez se utilizou
desse “desconhecimento” do norte da África naquele período para construir a sua personagem,
que mais lembra, visualmente, uma odalisca do oriente.
Ainda há outro exemplo envolvendo a jovem judia, no momento em que ela serve de
modelo para o judeu russo que a está pintando. A cena é presenciada e desaprovada por outro
rabino. Assim, a moça exige o respeito do mestre judeu pelo fato deste estar em sua casa. O que
torna o ator mais interessante é que ela acaba passando por cima da autoridade de seu pai que se
faz presente no local, demostrando, dessa forma, a inversão de papel na tradição judaica que, no
segundo quarto do século XX, dificilmente seria tolerada.

Figura 4. A filha do rabino é pintada pelo jovem judeu russo e discute com um velho rabino sobre sua autonomia

É papel do professor, em situações como essa, não apenas apontar o erro como uma forma
de mostrar a “ignorância” histórica do autor. Não deve ser esse o nosso foco como educadores,
mas sim de, a partir desses anacronismos, criar um ponto de partida para discussões relevantes
sobre a construção de um conhecimento com informações historicamente “mais” corretas a
respeito daquele período. Não pode ser o objetivo de um professor desmerecer o trabalho do
artista que não é historiador, mas pelo contrário, dar um sentido histórico a sua obra tornando-a
útil para o ensino de história e não o contrário.

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As cenas que sugerem certa verossimilhança histórica são o que notamos de mais incrível
na película. Uma delas é quando os dois primos, um rabino judeu e um xeque muçulmano, se
encontram a caminho do túmulo de um ancestral em comum. É interessante que os animais dos
dois, um gato e um burro, possuem construções diferentes a respeito do ancestral, um afirma ser
ele um importante xeque muçulmano e outro, um rabino. Esse momento da história remete ao
passado comum de judeus e muçulmanos, que apontam seu ancestral mais antigo como sendo
Abraão, um personagem encontrado tanto na Bíblia como no Alcorão.

Figura 5. Na figura aparece a pergunta feita pelo gato ao perceber que o muçulmano possuí o mesmo
sobrenome de dono, um judeu

Esta cena é bastante interessante para fazer uma aproximação entre judeus e muçulmanos,
algo que pode ser extremamente complexo para alunos do Ensino Fundamental e Médio que
estão acostumados a ver seguidores desses dois credos em lados opostos, como é apresentado
continuamente pela mídia. A cena que se segue ao encontro mostra grande proximidade entre os
dois e também um respeito pelas diferentes cosmovisões religiosas construídas por cada um
deles.
Outra cena é quando a turma que dirige pelo deserto encontra-se com um grupo de
nômades muçulmanos. É uma cena interessante para fazer uma quebra no paradigma da
homogeneização das religiões. Assim como ocorre na simbologia do cristianismo, como por
exemplo, com suas inúmeras derivações de ramos (característica também lembrada pelo filme no

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momento em que o cristão russo entre em um templo da igreja católica romana na cidade de
Argel), o Islã apresenta como insígnias diferentes ramos e uma grande diversidade na forma de
interpretar o livro sagrado. Na cena, mesmo o muçulmano que acompanha o grupo, vê-se
deslocado, por não compactuar com a forma como os nômades fazem sua leitura do mundo.

Figura 6. O rabino tenta “aproximar” islamismo e judaísmo pela cultura e “gastronomia” como forma de acalmar os
ânimos dos guerreiros nômades após uma discussão religiosa.

No Brasil, uma nação onde a população é majoritariamente nominalmente cristã, pode-se


observar uma infinidade de placas denominacionais relativas ao cristianismo, principalmente não
católicas, que não apresentam apenas uma diversidade nominal (nome de igrejas), mas teológica
e doutrinária, sendo muitas delas não reconhecidas por outras. Isso pode explicar, por exemplo, a
real representatividade da bancada evangélica no Congresso Nacional ou influência de
evangélicos na política, um tema muito presente nas últimas eleições nacionais.
Por fim, o inverossímil é o mais claro nesta animação. Na verdade, o nome do filme
sugere um personagem totalmente inverossímil. Um gato que, após comer um papagaio começa a
falar, se apaixona por sua dona e decide que precisa ter o seu Bar Mitzvá para se tornar um judeu.
Obviamente trata-se de um recurso do quadrinista ao produzir a sua história. O gato serve como
aquele que, por não estar inserido na sociedade humana, pode questionar Deus, questionar a
religião, a tradição, a moral dele é a de um gato, não a de um humano judeu ou muçulmano.

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É importante ao professor observar bastante os diálogos entre o gato e seu dono, a


desconstrução que ele faz da religião ao questionar a forma como ela foi construída. O gato não
fala a verdade, o gato é curioso. Dessa maneira, o felino não pode ser visto como quem tem a
razão no diálogo, mas sim como o aluno, curioso para aprender e descobrir, partindo de seus
pressupostos.

Figura 7. Ao devorar o papagaio a gato “rouba” a sua habilidade de falar

Conclusões

O cinema é uma excelente fonte para a sala de aula. Uma ferramenta que pode auxiliar
professor e aluno a expandirem seu conhecimento. As atividades com filmes permitem também a
interdisciplinaridade da História, Língua Portuguesa e Artes e podem ser um estímulo para que
alunos e professores desenvolvam a competência da comunicação pela representação gráfica.
Ao assistir um desenho animado ou ler uma história em quadrinhos, o aluno pode ser
estimulado a escrever seus próprios roteiros, que, assim como o autor do filme em questão,
mostraram muito de sua visão de mundo e como ele se vê nesse contexto. As representações
gráficas que o aluno faz reproduzem isso.
Aulas de história com filmes não podem se tornar um momento de tédio para os alunos
nem de hora descanso para professores, mas momentos de intenso debate e conhecimento. E cabe

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ao professor proporcionar este ambiente, instigando seus alunos a indagarem as representações da


película sem desanimá-los tecendo críticas severas aos anacronismos apenas como forma de
desmerecer a obra do artista. Pelo contrário, os anacronismos podem servir como representação
gráfica nos desenhos dos próprios alunos, como por exemplo, desenhar um cardeal católico do
século XVI chegando de Ferrari a igreja, como uma forte crítica humorística a vida abastada do
alto-clero católico medieval frente a uma sociedade campesina muito pobre.
Filmes como O Gato do Rabino podem servir como excelente ponto de partida para a
pesquisa das religiões, de como uma convivência relativamente pacífica em algumas regiões
tornou-se conflituosa com o passar das décadas, de porque a mídia faz representações
tendenciosas pendendo para determinados grupos religiosos etc.

Referências

FERRO, Marc. O filme uma contra-análise da sociedade. In.: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre
(orgs.) História: novos objetos. 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa-21ª Edição-


São Paulo. Editora Paz e Terra, 2002.

LIA, Cristine Fortes. História das religiões e religiosidades: contribuições e novas abordagens.
AEDOS. Porto Alegre. PPGH-UFRGS, n. 11 vol. 4 - Set. 2012.

LIA, Cristine Fortes; RADÜNZ, Roberto. Os monoteístas no mundo contemporâneo: judeus,


cristãos e muçulmanos. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá. ANPUH, v. V,
n.15, jan/2013.

LIA, Cristine Fortes; BALEM, Wellington Rafael. Os vivos, os mortos e os não nascidos: as
religiões consideradas mortas e o ensino de história Revista Latino-Americana de História.
PPGH-Unisinos, v. 2, n. 6, São Leopoldo, 2013.

MORETTIN, Eduardo. O cinema com fonte histórica na obra de Marc Ferro. In.: CAPELATO,
Maria Helena [et al.] (org.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. 2 ed. São
Paulo: Alameda, 2011.

NÓVOA, Jorge, BARROS, José D’Assunção (orgs.). Cinema-história: teoria e representações


sociais no cinema. 3 ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012.

VILELA, Túlio; VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Como usar as histórias quadrinhos
em sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto. 2012.

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O Livro Didático e as aulas de História: o que dizem os alunos?

Lisiane Sias Manke1

Resumo: No final do século XX a circulação do livro didático foi ampliada, consolidando esse material como
principal aporte didático no contexto escolar. De modo semelhante, as pesquisas envolvendo o livro didático como
fonte e objeto de estudo também ganharam espaço e representatividade. Nesta pesquisa tem-se por objetivo
compreender os usos do livro didático de História no contexto escolar, observando, especialmente, a relação que os
alunos estabelecem com esse material. Assim, vislumbra-se dar conta dos processos pelos quais o conhecimento
histórico escolar é apreendido por aqueles que passam pela escola, como também os mecanismos que aproximam ou
distanciam os indivíduos desse conhecimento. O estudo envolveu dez instituições da rede pública de ensino da
cidade de Pelotas, nas quais foram aplicados questionários semiobjetivos a um total de 146 alunos das séries finais
do Ensino Fundamental, durante o primeiro semestre de 2014. O questionário respondido pelos alunos apresentava
questões relacionadas à disciplina de história e ao uso do livro didático nas aulas. Entre os dados analisados observa-
se que 85% dos alunos que responderam o questionário declaram que gostam da disciplina de História, contudo, o
índice não é o mesmo em relação ao gosto pelo livro didático.
Palavras-chave: Ensino de História, Livros didáticos, Alunos

Textbook and history classes: what students say?

Abstract: In the late twentieth century, textbook circulation was expanded, consolidating this material as the main
teaching contribution in the school context. Similarly, research involving textbook as source and object of study also
gained space and representation. This research has been aimed at understanding the uses of history textbook in the
school context, specially observing the relationship that students have with this material. Thus, the research focuses
on comprehend the processes by which school historical knowledge is learning by those who go through school, as
well as the mechanisms that bring individuals closer or distant from that knowledge. The study encompassed ten
public school institutions in the city of Pelotas, in which semi-objective questionnaires were administered to a total
of 146 students from middle school, during the first semester of 2014. The questionnaire answered by the students
presented questions related to the history class and to the use of textbook in class. Among the data analyzed, it is
observed that 85% of the students who answered the questionnaire state that they like the classes. However, the
percentage is not the same in relation to how students like textbooks.
Keywords: History Teaching, Textbooks, Students.

Introdução

A centralidade do livro didático no processo de ensino-aprendizagem da disciplina de


História é expressiva, sendo por vezes o único material didático utilizado pelos milhares de
professores e estudantes das escolas públicas brasileiras. Nas últimas décadas do século XX, com
a ampliação das políticas públicas nesta área, a circulação do livro didático foi ampliada,

1
Departamento de História – ICH/UFPel. Contato: lisianemanke@yahoo.com.br

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215

consolidando-se como principal aporte didático no contexto escolar. De modo semelhante, as


pesquisas envolvendo o livro didático como fonte e objeto de estudo também ganharam espaço,
permitindo compreender as questões político-ideológicas que envolvem a organização, a
produção, a comercialização e a distribuição dos livros didáticos, assim como sua presença no
cotidiano escolar, isto é, como são interpretados e utilizados pelos seus agentes sociais. Conforme
Bittencourt (2013), o livro didático de História possui centralidade nos debates acadêmicos,
sendo objeto de avaliações contraditórias, fato que contribui para demonstrar sua supremacia no
cotidiano escolar.
Em relação aos estudos que contemplam o livro didático, Choppin (2004) afirma que a
complexidade desse material, a multiplicidade de suas funções, a coexistência de outros suportes
educativos e a diversidade de agentes que ele abarca, produziu um dinamismo científico nesta
área, de modo que os pesquisadores têm se ocupado em compreender esse objeto cultural sob
diferentes ângulos, que compreendem duas grandes categorias de análise: as que concebem o
livro didático como um documento histórico, ocupando-se em analisar os conteúdos dos quais o
livro é portador, e aquelas que o consideram como objeto físico, que foi fabricado,
comercializado, e idealizado em função de certos usos. (CHOPPIN, 2004). Considerando o livro
didático como um produto da indústria cultural e partindo do pressuposto de que os conteúdos e
os métodos de ensino que são propostos nestes materiais não asseguram por si só sua aplicação e
desenvolvimento da forma como foram planejados, o enfoque desta investigação direciona-se em
compreender o consumo efetivo que professores e alunos fazem desse produto cultural.
Deste modo, esta pesquisa tem por objetivo compreender os usos do livro didático de
História no contexto escolar, observando, especialmente, a relação que os alunos estabelecem
com este material didático. Para tanto, desenvolveu-se um estudo envolvendo dez instituições da
rede pública da cidade de Pelotas, nas quais foram aplicados questionários semiobjetivos a um
total de 146 alunos das séries finais do Ensino Fundamental, durante o primeiro semestre de
2014. O questionário respondido pelos alunos apresentava questões relacionadas à disciplina de
História e ao uso do livro didático nas aulas; entre estas, nove questões objetivas e cinco
dissertativas. A pesquisa foi realizada com o auxílio dos estagiários do curso de licenciatura em
História da UFPel que, ao realizarem o estágio obrigatório no Ensino Fundamental, se
voluntariaram a colaborar com a pesquisa de campo. Os alunos estagiários foram orientados a
aplicarem o questionário no início do estágio, de modo que ficasse claro que as informações

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 214-228, Jul. 2015


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solicitadas eram referentes às aulas ministradas pelo professor titular da turma. Além dos
questionários, os relatórios de observação do contexto escolar também compõem o rol de fontes
analisadas. Esses relatórios versam sobre o contexto escolar e sobre as práticas de ensino,
observadas antes do início da regência. Deste modo, ressalta-se a significativa participação dos
licenciandos do curso de História, que através dos relatórios de observação e da aplicação dos
questionários, colocaram em evidência vários indícios sobre o uso dos livros didáticos de
História, possibilitando o maior alcance da pesquisa na rede pública de ensino da cidade de
Pelotas.
Assim, vislumbra-se dar conta dos processos pelos quais o conhecimento histórico escolar
é apreendido por aqueles que passam pela escola, como também os mecanismos que aproximam
ou distanciam os indivíduos desse conhecimento. O estudo se justifica ao se considerar que as
experiências individuais e coletivas que envolvem o saber histórico são alimentadas,
especialmente, por práticas provenientes dos espaços escolares e do modo pelo qual este
conhecimento escolar é direcionado. Considera-se que as pesquisas que se ocupam em investigar
a relação dos alunos com o conhecimento histórico, o uso dos materiais didáticos, a construção e
a permanência desse saber para além das avaliações escolares, assim como a constituição de um
imaginário coletivo sobre o passado da humanidade, ainda requerem investimento de estudos,
uma vez que, tais pesquisas podem contribuir significativamente para estabelecer as bases do
processo de ensino-aprendizagem.

O livro didático e as aulas de História

Em se tratando especialmente dos livros didáticos de História, que conforme Bittencourt


(2009) é um dos livros disciplinares mais pesquisados, as investigações centraram-se por muito
tempo nos conteúdos escolares, em uma perspectiva ideológica. Contudo, aos poucos este
enfoque foi sendo acrescido de outros aspectos, tais como a relação entre conteúdo escolar e
métodos de aprendizagem expressos nessa literatura, as articulações entre conteúdo e livro
didático como mercadoria, os vínculos entre políticas públicas e a escolha do livro, e por fim, os
usos que professores e alunos fazem deste material. Conforme Munakata, a renovação temática
partiu da recusa de “um certo idealismo ingênuo que abordava o livro (didático) como um
simples conjunto de ideias e valores que deveriam ser condenados (ou aprovados) segundo uma

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certa ortodoxia” (MUNAKATA, 2012, p. 183). De igual modo, para Choppin (2004) “um
interesse particular vem sendo dado, de uns 20 anos para cá, às questões referentes ao uso e à
recepção do livro didático.” (CHOPPIN, 2004, p. 564). Para o autor, o manual não é um livro que
lemos, mas que usamos, e neste ponto centra-se a complexidade dos livros didáticos e de sua
análise. “É a tomada de consciência da dimensão dinâmica do manual (ele só existe, em
definitivo, pelos usos que dele fazemos) o que falta à maioria dos trabalhos de análise”.
(CHOPPIN, 2002, p. 23). Neste sentido, compreender as experiências vivenciadas em sala de
aula, tendo o livro didático como centro do processo, ganha especial significado e requer
investimento investigativo.
Em relação aos usos do livro didático, Bittencourt (1996), ao problematizar o seu papel no
processo de aprendizagem da leitura e da escrita nas últimas décadas do século XIX e início do
século XX no Brasil, evidencia o histórico controle escolar sobre o ato de ler. Controle esse
advindo das autoridades educacionais, dos autores e editores de livros e dos professores, que
determinavam os protocolos de leitura a serem seguidos:

A iconografia dos livros didáticos, (...) reforçava esse mecanismo de impor uma
disciplina do corpo no ato de ler. Em vários livros de leitura, pode-se observar
reproduções de cenas de crianças lendo em grupo mas, sobretudo, individualmente,
tendo posturas controladas para segurar o livro e como manuseá-lo, seguindo-se às
ilustrações, textos que prescreviam todos os cuidados que os alunos deveriam ter para
com o livro, inclusive com conselhos sobre as formas de ler à noite por causa do perigo
das lamparinas. (BITTENCOURT, 1996, p. 98).

Controle, conflito, resistência... o espaço escolar em sua complexidade. Como os alunos


reagem à mediação dos professores, às regras impostas pelas autoridades educacionais ou ao
direcionamento do ato da leitura inscrito no próprio texto? Qual a apropriação dos conteúdos em
práticas efetivas de leitura realizadas em livros didáticos no contexto escolar?
O livro didático possivelmente seja o livro mais lido no contexto escolar. Contudo, como
afirma Munakata (2000, p. 578), é o tipo de livro que raramente é lido na íntegra, embora suas
páginas devam ser revisitadas reiteradamente. As práticas de leitura desse suporte são bastante
diversificadas e normalmente estão vinculadas a situação de ensino e aprendizagem, envolvendo
dois leitores, o aluno e o professor, que estabelecem “entre si certa relação de poder: mesmo que
o leitor final seja o aluno, não cabe a este escolher o livro”. (MUNAKATA, 2000, p. 579).
Contudo, embora o livro didático seja utilizado com a mediação do professor, que indica o que
será lido e com qual finalidade, ele é produzido e pensado para um determinado público: o

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alunado. Com bem expressa Batista (2000), “a destinação a esse leitor é evidente na organização
e na linguagem dos textos e impressões e em sua utilização. O prefácio e a apresentação dos
livros se dirigem ao aluno; nos exercícios e atividades, as instruções também […]” (BATISTA,
2000, p. 551).
De igual modo, os livros didáticos por estarem vinculados às instâncias institucionais
refletem uma dada imagem das práticas da leitura, ou seja, a literatura escolar parece estar
normalmente vinculada ao cumprimento das práticas de ensino-aprendizagem. O suporte do livro
didático, assim como outros, encerra a intenção de controlar a recepção por parte do aluno leitor,
que fica entre duas categorias contraditórias, de um lado, suas vivências e experiências anteriores,
que são trabalhadas no ato da leitura, e, por outro, a necessidade de condicionar sua leitura a
própria constituição do texto, organizado com o propósito de atingir determinados objetivos.
(BARBOSA, 2009). Neste sentido, algumas questões requerem aprofundamento investigativo no
que concerne as especificidades do uso do livro didático: que leituras são realizadas neste suporte
didático? Leituras que seguem a ordem dos conteúdos trabalhados, que pulam algumas páginas,
que dão ênfase para alguns box de texto, que esquecem outros, que desvinculam as imagens do
texto, ou ainda, que são realizadas de forma coletiva, levando a produção de sentidos coletivos, o
que anularia as referências individuais.
Nesse sentido, considera-se que o livro didático está normalmente vinculado aos
contextos de ensino-aprendizagem, sendo utilizado com a mediação de um professor e, portanto,
não é lido, mas usado no contexto escolar, como orienta Choppin (2002). Conforme Rüsen (2001,
p. 112), a verdadeira finalidade dos livros didáticos de História é tornar possível, impulsionar e
favorecer a aprendizagem da história. Assim, para o autor é impossível uma análise do livro
didático sem alguns critérios normativos da aprendizagem histórica, que consiste em um processo
de desenvolvimento da consciência histórica. Deste modo, o livro didático deve possibilitar a
ampliação das competências: perceptiva, interpretativa e de orientação. Para o autor, entre as
características irrenunciáveis para um livro adequado, estaria a capacidade de argumentação, que
ultrapassa a mera exposição dos conteúdos, levando os alunos a desenvolverem a capacidade de
argumentar, criticar e julgar. Ainda, em relação aos aspectos metodológicos, seria imprescindível
que observasse os procedimentos mais significativos do pensamento histórico, de forma a exercer
na prática: “o desenvolvimento de problemas, o estabelecimento e a verificação de hipóteses, a

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investigação e a análise do material histórico, a aplicação crítica de categorias e padrões de


interpretação globais”. (RÜSEN, 2001, p. 123).
Contudo, por mais completo que possa ser esse material didático, no sentido de contribuir
para o desenvolvimento da consciência histórica, não se pode deixar de considerar os usos que
dele são feitos no contexto escolar. Como bem expressa Schmitd (2013) é no espaço da sala de
aula que professores e alunos de História travam um embate, que ocorre um espetáculo cheio de
vida e de sobressaltos. O professor tem a possibilidade de ensinar o aluno a adquirir as
ferramentas do saber fazer, do saber fazer bem, lançando os germes do saber histórico. “Ao
professor cabe ensinar o aluno a levantar problemas e a reintegrá-los num conjunto mais vasto de
outros problemas, procurando transformar, em cada aula de História, temas em problemáticas.”
(SCHMIDT, 2013, p. 57). Por sua vez, os alunos enquanto receptáculos de informações, conteúdo
e materiais didáticos, expressam, por vezes, queixas, revoltas e embates, buscando “convencer-se
por si mesmo da validade do que lhes é proposto, desejam pensar por si mesmos, ser
reconhecidos, ser libertados em sua originalidade na compreensão e no resgate de sua história”.
(SCHMIDT, 2013, p. 56).
Assim, ao se considerar o uso que se faz do livro didático, deve-se atentar para o poder do
professor que conduz as práticas de ensino, mesmo que os alunos tenham papel ativo no processo
de aprendizagem, a mediação do professor é evidente e inevitável; ele definirá o livro que será
usado, como será usado, e para quê será utilizado. Contudo, conhecer a sala de aula, os embates,
sobressaltos, e vivências que decorrem unicamente desse espaço, requer ouvir os alunos também,
que se não são responsáveis pelo direcionamento das práticas escolares, as influenciam
significativamente, seja indicando novas possibilidades de trabalho, seja boicotando os métodos
em vigência. Para tanto, na pesquisa empreendida buscou-se observar o que declaram os alunos
sobre a utilização do livro didático de história em circunstância de ensino-aprendizagem.

O que dizem os alunos?

Como já foi salientado, os dados analisados apoiam-se em vinte relatórios de observação


de estágio do Ensino Fundamental, realizados pelos licenciando do curso de História da UFPel,
durante o primeiro semestre de 2014, e, especialmente, em questionários aplicados por dez

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estagiários para 146 alunos das séries finais do Ensino Fundamental de dez escolas da rede
pública de ensino do município de Pelotas.
A primeira evidência que os dados permitem destacar é que dos 20 professores
observados, três não utilizam o livro didático em suas aulas (apesar de terem o livro à sua
disposição na escola), oito professores utilizam o livro durante as aulas, mas não permitem que os
livros saiam da escola, ou seja, os alunos não podem levar o livro para casa, devido a exigências
da escola ou do próprio professor. Os demais, nove professores, utilizam o livro didático e
permitem que os alunos levem o mesmo para casa. Deste modo, observa-se que das 20 turmas,
apenas nove tem a posse do livro didático, isto é, menos da metade dos alunos desta amostra têm
o direito de usufruir do livro didático de história na escola e em casa. Fato esse que contraria a
proposta do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que tem “como principal objetivo
subsidiar o trabalho pedagógico dos professores por meio da distribuição de coleções de livros
didáticos aos alunos da educação básica.” (MEC/PNLD). Portanto, conforme consta na página do
PNLD a distribuição é feita para os alunos, para subsidiar o trabalho dos professores, via escola
pública.
Em uma determinada escola, durante uma visita da supervisora de estágio a um dos
estagiários, foi possível constatar in lócus tal situação. O professor estagiário utilizou o livro
didático para a realização de uma atividade em que os alunos do sexto ano deveriam fazer um
desenho sobre temas que envolviam o conteúdo de Idade Média; o livro era consultado para
relembrar o conteúdo trabalhado e ajudar na decisão sobre o desenho que melhor representaria o
tema proposto. No final da aula, como não haviam concluído a atividade, o professor estagiário
solicitou que continuassem na próxima aula, pois não poderiam levar o livro para casa por
determinação da escola. Após a orientação do professor estagiário, uma aluna argumentou e pediu
por várias vezes para levar o livro, mas não foi atendida, mediante justificativa de que a direção
não permitia que os livros fossem retirados da escola. Outro caso, também questionável, é de uma
escola que permite aos alunos levarem o livro didático para casa, mas se no dia da aula de
História não estiverem com o livro são proibidos de assistirem a aula. Fato este que foi
presenciado por uma das estagiárias durante o período de observação, quando uma aluna ficou
sentada no refeitório durante a aula de História por ter esquecido seu livro.
Os 146 alunos que responderam o questionário utilizam o livro didático, em todas ou em
algumas aulas de História. E o que dizem em relação a estas aulas? Entre os dados analisados

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observa-se que 80% dos alunos que responderam o questionário gostam da disciplina de História.
Alguns desses alunos justificaram, na lacuna ao lado da pergunta, o motivo que os faz gostar da
disciplina, entre as respostas consta: “porque gosto de saber como foi a vida há um tempo atrás”;
“porque é interessante você aprender o surgimento de várias coisas, como chegamos e como nos
desenvolvemos”; “gosto pois assim aprendo coisas de quando eu não existia”; “porque o passado
chama atenção”; “adoro descobrir o que aconteceu com nossos antepassados”. A última resposta,
que foi dada por um aluno da oitava série, parece indicar aquilo que seria essencial em uma aula
de História, ou seja, a motivação para “descobrir” o passado. Contudo, muitos dos alunos que
justificaram o gosto pela disciplina parecem reproduzir o discurso mais difundido no meio
escolar, ao afirmarem que gostam de História por que é um conhecimento importante. Mas, qual
a importância desse conhecimento? Talvez, estes alunos não saberiam responder.
No contexto escolar o ensino de História deve ter como meta principal a motivação dos
alunos para esse conhecimento, sendo uma disciplina que propicia o questionamento, a dúvida, a
reflexão crítica sobre o passado e o presente, levando o alunado a envolver-se com o conteúdo
trabalhado. Para Schmidt (2010), considerar a experiência dos alunos no ensino de História
possibilita o diálogo entre o passado e o presente, e a consciência da possibilidade de intervenção
na realidade em que se vive. Para tanto, o ponto de partida seria a problematização do
conhecimento histórico:

Em primeiro lugar, significa partir do pressuposto de que ensinar História é constituir um


diálogo entre o presente e o passado, e não reproduzir conhecimentos neutros e acabados
sobre fatos que ocorreram em outras sociedades e outras épocas. [...] problematizar é,
também, construir uma problemática relativa ao que se passou com base em um objetivo
ou um conteúdo que está sendo estudado, tendo como referência o cotidiano e a realidade
presente dos alunos e do professor. (SCHMIDT, 2010, p. 56).

Como seria a metodologia de uma aula de História que leva em conta o conhecimento
experiencial dos alunos, que desperta a curiosidade e que motiva o aluno a “descobrir” o
passado? Os relatórios de observação do espaço escolar não ajudam a responder essa questão,
pois indicam aulas centradas na figura do professor, na ausência de diálogo, na transmissão de
conteúdos históricos trabalhados por professores sem formação específica em História, a exemplo
do que é descrito por uma das estagiárias em seu relatório: “os alunos não passam de ‘monges
copistas’ durante as aulas de História”. A análise dos questionários que os alunos responderam
confirma o que indicam os relatórios de estágio. Ao responderem uma das questões dissertativas,
sobre o que poderia melhorar nas aulas de História, indicam uma série de possibilidades

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metodológicas. As respostas analisadas apontam que a maioria dos alunos gostaria de assistir
filmes durante as aulas, e a segunda maior referência é sobre o uso de mídias digitais como
recurso didático, como o celular e o computador. Ainda, segundo as respostas, as aulas poderiam
contar com mais e melhores explicações sobre o conteúdo trabalhado, com menos cópia, com
maior interação entre os alunos, além de brincadeiras, teatros, passeios em museus, pesquisas, e
por fim, com “matérias que nos interesse”.
As indicações dos alunos correspondem à utilização de ferramentas importantes para o
processo de ensino-aprendizagem, que os estudos já realizados (NAPOLITANO, 2003;
BITTENCOURT, 2009) compreendem como recursos eficazes para a realização de aulas
interessantes e que auxiliam na compreensão dos processos históricos. Contudo, pode-se inferir
que os alunos fizeram referência a estas técnicas de ensino por já terem tido aulas em que tais
propostas foram efetivadas, possivelmente, o/a professor/a de História atual não trabalha nesta
perspectiva, ou utiliza tais recursos muito esporadicamente. Contudo, a resposta que certamente
resume o anseio dos alunos em relação ao uso de novas técnicas de ensino, é a que sugere
“matérias que nos interesse”. Essa indicação está relacionada a conteúdos que fazem sentido para
o aluno, que dialoguem com questões atuais e que ajudem a compreender as diferentes formas de
organização social. Compreende-se que o aluno terá interesse pela “matéria”, quando conseguir
estabelecer relações e compreender o sentido dessa aprendizagem. Para Bittencourt (2009) é
necessário ater-se especialmente as metodologias de ensino, que estão relacionadas à concepção
de ensino-aprendizagem que o professor possui, mais do que aos recursos utilizados, como bem
expressa:
[...] Tais concepções de ensino e aprendizado explicam por que um método tradicional
pode ser utilizado com tecnologia avançada. Pode estar presente mesmo com o emprego
de computadores, desde que a finalidade principal do uso desse suporte tecnológico seja
apenas facilitar a melhor transmissão do conhecimento, sem estabelecer as necessárias
relações entre o conhecimento do aluno e o escolar. Renova-se o instrumento, mas fica
mantido o método tradicional, ao consolidar a noção de que o saber histórico (ou o de
qualquer outra disciplina) significa apenas a absorção do que foi transmitido.
(BITTENCOURT, 2009, p. 230).

Assim, compreende-se que o uso dos recursos didáticos deve estar associado a
metodologias de ensino que proporcionem ao aluno a participação ativa no processo de ensino-
aprendizagem. Do contrário, os filmes, o computador, os passeios, estarão fadados a transmissão
de conhecimentos sem finalidade, que somente apresentam como objetivo final a avaliação.

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Nesta mesma perspectiva o livro didático de História também pode estar inserido no
contexto escolar, ou seja, como um instrumento de transmissão de conteúdos acabados, ou como
suporte que potencializa leituras seguidas de discussões, problematizações e debates, que
instiguem a produção de atividades interessantes que promovam o saber histórico. Contudo, os
dados coletados indicam que das dez turmas analisadas, sete utilizam o livro didático em todas as
aulas, nas demais, três turmas, somente em algumas aulas. O uso diário do livro didático aponta
para o protagonismo deste suporte, que não permite que outros recursos didáticos sejam inseridos
nas atividades realizadas. Como já salientado, em alguns casos os alunos que por ventura tenham
esquecido o livro são impedidos de entrarem em sala de aula, tamanha a importância deste para a
realização das aulas. Mas, se o livro didático é utilizado em todas as aulas, que uso os professores
e alunos fazem dele? Essa questão ainda merece maior investigação, embora a resposta dos
alunos aponte alguns indícios.
Quando questionados sobre como gostariam que o professor utilizasse o livro didático, as
respostas mais recorrentes foram no sentido de que o professor não utilizasse ou utilizasse menos
o livro, seguidas de outras indicações de uso, como: “para consulta no dia da prova”, “para
explicar a matéria”, “para fazer exercícios”, “só para ler”. A última afirmativa, “só para ler”, está
relacionada com a prática da cópia, que é observada em outras respostas dos alunos. Uma das
questões que compunha o questionário aplicado estava assim formulada: “Os textos do livro são
copiados para o caderno?” Com três alternativas de resposta: sim, não, às vezes. As respostas
indicam que a maioria das turmas costuma copiar, às vezes, os textos do livro didático para o
caderno, enquanto os alunos de uma das turmas sempre copiam o conteúdo do livro para o
caderno, ou seja, a prática se repete em todas as aulas. Outras repostas dos alunos também
denunciam este aspecto, quando consideram que as aulas de História poderiam ser melhores se
tivessem menos cópia. Não é possível afirmar com que propósito os professores adotam a prática
da cópia do livro didático para o caderno, haja vista que o PNLD fornece um livro para cada
aluno matriculado em escola pública. Uma hipótese a ser considerada seria a de manter os alunos
ocupados durante as aulas, pois enquanto desempenham o papel de “monges copistas” mantêm o
silêncio na sala de aula.
A prática da cópia também é evidenciada em uma reportagem da revista Nova Escola,
publicada em janeiro de 2010, que indica que no Brasil os alunos copiam muito, por muito tempo
e sem finalidade didática. Em pesquisa realizada pelo economista americano Martin Carnoy, que

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comparou 36 escolas de Cuba, Chile e Brasil, o pesquisador concluiu que o tempo destinado a
copiar nas escolas brasileiras é três vezes maior do que nas salas de aula cubanas. O propósito
desta atividade estaria especialmente relacionado à exercitação mecânica para o treino da
ortografia, ao preenchimento do tempo e à reprodução no caderno dos exercícios apresentados no
livro didático. Percebe-se, desse modo, o quanto é necessário avançar, para que aulas de História
com real sentido para alunos e professores sejam práticas recorrentes nas escolas.
Em relação à materialidade e ao conteúdo do livro didático os alunos foram motivados a
escreverem o que eles mais gostavam e o que eles não gostavam no seu livro. A principal queixa
dos alunos foi direcionada aos textos longos e difíceis e aos exercícios (sem especificarem o
motivo de não gostarem dos exercícios). Essa questão pode ser associada a outra pergunta
objetiva que solicitava aos alunos responderem se entendiam o que liam no livro didático, tendo
três alternativas: sim, com facilidade; sim, quando leio duas vezes ou mais; não, os textos são
muito confusos. Para 54% dos alunos a leitura se torna compreensível quando leem duas ou mais
vezes, enquanto 17 % dos alunos afirmam não entender o que leem no livro. Esse fato pode ser
compreendido de duas maneiras: pela forma com que o professor media a leitura em sala de aula,
estipulando protocolos de leitura, solicitando leituras parciais do texto ou vinculando a leitura à
obrigação de responder questionários, ou mesmo ainda, pela própria estrutura dos textos
didáticos. Para Rüsen (2011) o texto didático deve utilizar um nível de linguagem adequado à
capacidade de compreensão do aluno, além disso, a competência entre os diferentes meios de
comunicação também reduz a capacidade e a motivação dos alunos para a leitura. Deste modo, o
texto didático não pode se limitar a considerar apenas as possibilidades de compreensão, mas
deve também estabelecer relação com as experiências e expectativas dos alunos. Como afirma o
autor:
Ao se dirigir aos alunos, não se deveria esquecer que a experiência histórica tem um
potencial próprio de encantamento que se pode aproveitar como oportunidade de
aprendizagem. O espanto e a diferença do passado podem ser apresentados de uma
maneira que se acredita ser interessante e curiosa. (...) Um meio provado para
estabelecer uma boa relação com o aluno é dirigir-se a ele explicitamente. (...) Um livro
didático somente é útil se realmente se pode trabalhar com ele em sala de aula. Por isso,
uma característica como livro de trabalho é irrenunciável. Um livro didático que
contenha somente uma exposição da história será completamente inadequado para
estimular as competências anteriormente mencionadas. Instigará como processo de
aprendizagem a mera recepção de conhecimento e se descuida inadmissivelmente do
lado ativo e produtivo da consciência histórica. (RÜSEN, 2011, p. 117).

Neste sentido, o texto didático não pode deixar de estabelecer relações com o presente,
considerando a experiência histórica dos alunos, de modo a oportunizar a aprendizagem e a

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motivação para a leitura. Contudo, para além do conteúdo e da proposta pedagógica apresentada
no livro, o papel do professor no cotidiano da sala de aula não pode ser desconsiderada. Como
bem afirma Bittencourt:
As práticas de leitura do livro didático não são idênticas e não obedecem necessariamente
às regras impostas por autores e editores ou por instituições governamentais. Assim,
mesmo considerando que o livro escolar se caracteriza pelo texto impositivo e diretivo
acompanhado de exercícios prescritivos, existem e existiram formas diversas de uso nas
quais a atuação do professor é fundamental. (BITTENCOURT, 2013, p. 74).

Ao responderem sobre o que mais gostam no livro didático os alunos evidenciam na


grande maioria das respostas o gosto pelas imagens, em segundo lugar aparece a resposta: “não
gosto de nada” e, por fim outras indicações como: “textos com curiosidades” e “textos com
acontecimentos históricos”. O gosto dos alunos pelas imagens dos livros didáticos pode ser uma
indicação do não gosto pela leitura, ao sugerirem que ficar olhando as imagens isoladas dos
textos pode ser a única atração que o livro apresenta. Contudo, sabe-se que as imagens
desempenham um papel importante na constituição do texto didático, embora tenham sido
utilizadas durante muito tempo somente como ilustração. Para Rüsen (2011) as ilustrações
alcançaram relevante função na constituição dos livros didáticos, contudo, para que cumpram seu
papel devem:
Admitir e estimular interpretações, possibilitar comparações, mas, sobretudo fazer
compreender aos alunos e alunas a singularidade da estranheza e o diferente do passado
em comparação com a experiência do presente, e apresentar o desafio de uma
compreensão interpretativa. Naturalmente, que se lhes imponha como obrigação que
fascinem esteticamente os alunos não implica que as imagens não guardem nenhuma
relação reconhecível com os textos e com os box ou caixas de texto que as acompanham.
Mas sua fascinação deve incitar que o âmbito de experiências se estenda a outros materiais
e a interpretar a pesquisa em cada caso por meio dos elementos da apresentação. (RÜSEN,
2011, p. 120).

“Fascinar esteticamente os alunos”, essa parecer ser uma evidência da experiência dos
alunos que participaram desta pesquisa. Contudo, conforme bem expressa Bittencourt (2013),
“questões como essa precisam ser levantadas considerando que pouco se conhece sobre as formas
de leitura de imagens utilizadas em sala de aula, independentemente do suporte didático em que
elas são apresentadas.” (p.70). Como são realizadas as leituras de imagens nos livros? As imagens
são utilizadas em paralelo ao texto? Elas influenciam os sentidos atribuídos o texto lido pelos
alunos? São algumas das questões que devem ser empreendidas no decorrer dessa pesquisa que
envolve o uso do livro didático pelos alunos.

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Considerações finais

Os dados analisados até o momento permitem observar que 80% dos alunos que
responderam o questionário gostam da disciplina de História, mas o índice não é o mesmo em
relação ao gosto pelo livro didático. Quais os motivos para isso? Seria o conteúdo do livro
didático ou o modo como ele é utilizado na sala de aula? Os alunos fazem algumas indicações
que ora colocam aspectos próprios ao livro didático em evidência, ora a metodologia empregada
pelo professor, como por exemplo: os textos longos e de difícil compreensão, as atividades do
livro, as cópias do livro para o caderno, entre outros.
Embora se compreenda que o livro didático sistematiza um conjunto de conteúdos, que
expressam valores e ideologias de grupos dominantes, além de apresentar concepções
pedagógicas que indicam os modos como os conteúdos devem ser trabalhados, ele não é prática
per si. Para entender o papel do livro didático no contexto escolar é imprescindível considerar as
práticas que envolvem o seu uso e os efeitos de sentido produzidos por aqueles que dele se
apropriam. Conforme Bittencourt (2013), o papel do livro didático na escola é variável, sua
utilização passa pela intervenção de alunos e professores que realizam práticas diferentes de
leitura e trabalhos escolares. “Os usos que professores e alunos fazem do livro didático são
variados e podem transformar esse veículo ideológico e fonte de lucro das editoras em
instrumento de trabalho mais eficiente e adequado às necessidades de um ensino autônomo.”
(BITTENCOURT, 2013, p. 73).
Entende-se que a sala de aula é lugar de diferentes saberes, de variadas formas de ensino-
aprendizagem e que a relação que os alunos estabelecem com o conhecimento histórico depende,
especialmente, da concepção de ensino de História que embasa a prática dos professores dessa
disciplina escolar. Os dados que foram analisados neste texto não tiveram outro objetivo, que não
o de problematizar as práticas escolares e os (des)usos do livro didático de História no contexto
escolar, levantando questões que deverão ser perseguidas com o andamento da pesquisa. Um
aspecto bastante evidente, a partir do que foi exposto, é que pouco se sabe sobre os embates que
professores e alunos travam no espaço da sala de aula (SCHIMIDT, 2013), sendo necessário
avançar neste sentido, especialmente, dando voz aos alunos, de modo a compreender as práticas
escolares que lhes envolvem.

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Referências

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REVISTA NOVA ESCOLA. Cópia: tempo perdido.


http://revistaescola.abril.com.br/formacao/formacao-continuada/copia-tempo-perdido-didatica-
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SCHMITD, Maria A. A Formação do professor de História e o cotidiano da sala de aula. In:


BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2013.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 214-228, Jul. 2015


O (não) lugar da mulher no livro didático de história: um estudo longitudinal sobre
relações de gênero e livros escolares (1910-2010)

Letícia Mistura1
Flávia Eloisa Caimi2

Resumo: A história das mulheres vem ganhando visibilidade como campo historiográfico nas últimas décadas,
mas se trata de abordagem relativamente recente. Na história escolar, ainda hoje, as mulheres aparecem
nominalmente em determinadas efemérides, em situações inusitadas, por vezes heroicas, sendo pouco
visibilizadas como sujeitos de direitos e restritamente reconhecidas como parte substancial da compreensão
histórica, do conhecimento do passado e da formação para a cidadania. Este estudo coloca em diálogo o livro
didático de História como objeto e fonte de pesquisa documental e as questões de gênero, como recurso
metodológico de análise histórica, com o propósito de visualizar a presença/ausência feminina na produção
didática brasileira ao longo do século XX e início do século XXI. Para tal, analisou-se um corpus documental
constituído de 11 obras didáticas de história destinadas à educação básica, publicadas entre as décadas de 1910 e
2010, sendo uma obra por década. Os resultados preliminares apontam, principalmente, para uma preocupante e
significativa distância entre a renovação historiográfica que inclui as relações de gênero como possibilidade
metodológica e o conteúdo perscrutado nos livros didáticos de História.
Palavras-chaves: Ensino de História, Livro Didático, Relações de Gênero.

Abstract: The history of women is gaining visibility as historiographical field since a couple decades, but it is a
relatively recent approach. In school history, even today, women appear nominally under certain ephemeris, in
unusual situations, sometimes heroic, being somewhat visualized as an individual of rights and narrowly
recognized as a substantial part of the historical understanding of past knowledge and training for citizenship .
This study puts into dialogue the History textbook as a source and object of documentary research and the
gender issues, as a methodological resource for historical analysis, in order to visualize the presence/absence of
women in Brazilian didactic production throughout the twentieth century and early twenty-first century. To this
end, we analyzed a documentary corpus of eleven textbooks of History aimed to basic education, published
between the 1910s and 2010, with an edition per decade. Preliminary results point primarily to a significant and
troubling gap between the historiographical renewal that includes gender relations as methodological possibility
and the historical content scrutinized in History textbooks.
Keywords: History teaching, Textbook, Gender Relations.

Introdução

Durante as últimas três décadas, considerável parte da produção científica sobre o


ensino de história no Brasil trouxe ao centro das investigações o protagonismo do livro
didático de história como recurso multifacetado nos espaços escolares e objeto cultural de
ampla difusão social. O livro didático de história (LDH) recebe, nos espaços de discussão

1
Letícia Mistura (UPF) - leticiamistura@gmail.com
2
Flávia Eloisa Caimi (UPF) - caimi@upf.br
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acadêmica, em âmbitos nacional e internacional, variados tratamentos metodológicos, que


iniciam pela história dos livros e impressos2 e se direcionam, a partir da história da educação e
da história do ensino de história, a campos específicos da produção dos saberes disciplinares,
escolares e acadêmicos.
Disputado por interesses de diversos campos de investigação, o livro didático tem
assumido o status de documento histórico, veículo de transmissão, aceitação/transgressão,
determinação, imposição e legitimação de saberes. Ainda, como instrumento pedagógico,
conquistou um lugar hegemônico nos ambientes escolares. Superando suas próprias barreiras
de atuação ao impor-se como parte de uma cadeia de relações de poder muito maior do que
sua instrumentalização no processo de ensino-aprendizagem, o livro didático de história
transcende os discursos que o inscrevem como documento histórico, em seus diversos
contextos de idealização, fabricação, disseminação e uso. Com isso, vem se tornando o
próprio sujeito de sua historicidade uma vez que carrega, em si, marcos de permanências e
rupturas de sistemas e ideários políticos, arroubos de ideologias e discussões nos âmbitos de
produção pedagógico, historiográfico, editorial e social.
Justifica-se aqui a pertinência de uma investigação que busque compreender o livro
didático como repositório e veículo de preciosos vestígios de sua temporalidade. Intenta-se,
desta forma, (re)construir linhas concomitantes, concorrentes e dialógicas entre a produção
didática e os discursos historiográficos tomando uma amostra constituída por 11 livros
didáticos publicados entre os anos de 1910 e 2010, buscando-se não somente a verificação da
existência ou não de diálogos entre os saberes escolar e acadêmico, mas a compreensão da
formas como tais diálogos ocorrem. Para tal, utilizar-se-á das relações de gênero como
categoria de análise histórica, por sua emergente força nos complexos político, ideológico e
teórico que convivem com as discussões científicas – pedagógicas e historiográficas – em que
se insere o livro didático de história.
Propõe-se, portanto, a abordagem deste trabalho em três seções. Nas duas primeiras, se
fará a exposição/discussão dos dois focos centrais de estudo, o livro didático de história como
objeto de pesquisa e a categoria de gênero, como tema de análise histórica. Na terceira seção
se articulará a análise do corpus documental – 11 obras didáticas que compõe mais de uma
centena de anos de produção didática (1910 a 2010), sendo um livro didático correspondente a
cada década.

O livro didático como objeto de pesquisa

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Ao investigar-se a produção didática em determinado recorte histórico,


invariavelmente se enfrentará a etapa de definição do objeto de investigação. Mais do que
localizá-lo conjunturalmente, o ato de pesquisar o livro didático exige o tratamento de
questões teóricas prévias e adjacentes à própria existência da fonte, como a historicidade de
seu uso conceitual, as dinâmicas ideológicas e de poder que estão vinculadas ao objeto, seu
envolvimento em espaços socioculturais e políticos e, finalmente, seu lugar no processo
pedagógico de ensino-aprendizagem. Neste sentido, faz-se importante e necessário esclarecer
algumas questões que auxiliem no delinear do objeto que será estudado, já que a própria
escolha do livro didático como objeto de pesquisa está vinculada às problemáticas que
emergem daquelas questões. Na seqüência, elencar-se-á três “facetas” que, juntas, localizarão
o livro didático como um objeto-sujeito ímpar nas investigações do campo da educação, da
história e do ensino de história. Discutir-se-á o livro didático a partir de três enfoques
principais: 1) como fonte documental em sua historicidade e condição de instrumento
didático-pedagógico; 2) como uma necessidade conjuntural, justificando a pesquisa com o
livro didático; 3) como suporte cultural que contempla uma consistência estrutural.

O livro didático como fonte documental

O contexto historiográfico que faz despontar o livro didático como objeto e fonte
documental no labor das pesquisas históricas está inserido no movimento de transição
paradigmática do século XX que, entre suas diversas discussões, refletiu sobre o sentido, o
caráter e o uso dos documentos no trabalho do historiador. No movimento conhecido como
Annales, há uma inquietude em torno da expansão das concepções de “documento” – que, em
si, está conectada a um movimento expansionista de maior dimensão teórica. Tem a
preocupação de incluir o homem, na chamada “nova história”, em sua totalidade e
particularidade, como sujeito histórico, vindo a caracterizar como “fonte histórica” todo o
material que diz respeito a qualquer homem, em suas dimensões temporais e espaciais.
Portanto, torna-se parte do trabalho do historiador realizar a escolha e a crítica dos
documentos-fonte que seleciona conforme seus interesses científicos. O historiador, desta
forma, torna-se efetivo na escrita da história, e, segundo Jacques Le Goff (2003, p. 538), é
responsável pela desconstrução da “montagem” da história, da qual os documentos são
responsáveis, por configurarem, em si, toda a historicidade da sociedade que os fabricou.
Em outro âmbito paradigmático, conhecido como “positivista” ou “escola metódica”,
o documento – sempre em formato de texto – “falava” e detinha em si toda a história que
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poderia ser conhecida, portanto, sem a existência de um documento que a comprovasse como
oficial, a história não existiria. O movimento dos Annales não somente desconstrói a
pretensão da unilateralidade textual do documento e da fonte histórica, mas contribui para a
ampliação do próprio conceito carregado pelo documento, que se mostrou insuficiente ao ser
entendido apenas como aporte textual. Justifica-se, pois, o livro didático como fonte
documental, uma vez que provém de um tempo e de um espaço determinados; é produto e
veículo destes, contendo em si uma forma particular de “documentação”; por fim, inscrito
nele está a noção de um “conhecimento”, necessário, em sua completude, à educação de seus
usuários, naquele contexto.
Este tema envolve, ainda, a problemática referente à conceituação de “livro didático”,
provavelmente a mais veiculada questão teórica relacionada ao objeto, da qual se enervam
variados estudos em plurais conjunturas. Alain Choppin (2004) atribui a dificuldade de
definição conceitual do livro didático à diversidade de vocábulos e instabilidade dos usos
lexicais destes – principalmente em se tratando de pesquisas em âmbito internacional. Já
Circe Bittencourt (2011) discute a problemática conceitual de definição do livro como
material didático pela sua caracterização como um tipo específico de livro, identificável por
suas particularidades e pelos usos culturais a que está sujeito. A autora atenta, ainda, para o
fenômeno do “esquecimento”, observado tanto em professores quanto em estudantes, de que o
livro didático é também um livro e, portanto, produto da idealização de seu autor, da
construção de seu processo editorial e de dinâmicas do mercado de consumo em que está
inserido.
Podem-se incluir, nesse sentido, as preocupações da chamada “história dos livros” em
investigar os processos de circulação da palavra impressa, o que situa os livros – e também as
produções didáticas, como define Robert Darnton (1995), como força na história. Este autor
toma como campo da atuação da história dos livros o processo de comunicação de ideias,
objetivando o entendimento das mudanças do comportamento humano após o contato (sempre
mais) íntimo com a palavra impressa. Partindo do pressuposto de que o livro didático é
provavelmente o único livro-texto não ficcional a que muitos de seus usuários têm acesso,
ainda pode-se validar esta vinculação como uma consideração sobre os meandros da produção
didática. Pode-se inquirir: em que medida os livros didáticos modificaram, modificam ou
almejam modificar, por seu conteúdo, seus usuários, em sua maioria professores e estudantes?
Keith Hoskin (1990) traz algumas reflexões fundamentadas na historicidade dos livros
didáticos em seu papel pedagógico. Segundo o autor, embora não tenha sido um produto
direto da Revolução da Imprensa (que traz como marco ocidental a criação da imprensa por
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Johannes Gutenberg, no século XV), esta influiu diretamente na forma dos textos escolares,
que viriam a compor os livros didáticos em sua concepção moderna, uma vez que possibilitou
o uso de recursos escritos e pictóricos num mesmo suporte pedagógico, sendo possível a
transmissão de uma linguagem didática antes inalcançável. Tal fenômeno, a partir dos séculos
XVIII e XIX quando, segundo Darnton (1995), ocorre uma massificação de leitores e leituras,
deu margem a uma posterior revolução, em termos didáticos, que incluiu a avaliação (por
meio de testes e equivalências de notas em sistema numérico) como forma finalizadora do
processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, o livro didático é um ponto central de uma
nova forma de aprendizagem na Europa ocidental, o que viria a influenciar, posteriormente e
de forma decisiva, os moldes da educação e do uso de suportes como o livro didático, pelo
sistema de ensino brasileiro.
Esta nova forma de aprendizagem, por meio de um livro didático, que se torna um
compêndio de conteúdos disciplinares e cadernos de exercícios, está diretamente ligada às
necessidades conjunturais de um suporte didático que, em sua continuidade, demonstra fazer
parte de uma já consistente estrutura educacional.

As necessidades conjunturais, o livro didático e seu locus estrutural

O livro didático como suporte pedagógico de ensino, no Brasil, esteve historicamente


condicionado às necessidades conjunturais, por relações de poder que transcenderam seu
papel de repositório de conhecimento adequado à instrução escolar de jovens estudantes,
fazendo com que operasse como veículo ideológico, sempre a serviço das conjunturas
políticas.
Para Choppin (2004, p. 553), o livro didático vem cumprindo, historicamente, uma
pluralidade de funções no meio escolar, a saber: a) função referencial; b) função instrumental;
c) função ideológica e cultural e d) função documental. Por sua vez, as conjunções e
consonâncias dos trabalhos de Caimi (1999) e Fonseca (2006) ajudam a traçar uma linha
histórica do livro didático no sistema de ensino brasileiro, apontando momentos decisivos,
tanto para o ensino de história quanto para o livro didático como instrumento pedagógico.
Esses momentos decisivos seriam o período Imperial, o primeiro governo de Getúlio Vargas,
o regime civil-militar e a subsequente “redemocratização”.
Se tomarmos como premissas válidas as “funções” escolares do livro didático e
combiná-las à historicidade do ensino de história e sua relação com o objeto, encontraremos
correspondências acuradas. Buscamos contemplar, neste momento, uma síntese das funções
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escolares do livro didático como organizadas por Choppin (2004), cotejando-a com uma
sequência de dados históricos organizados segundo os trabalhos de Caimi (1999) e Fonseca
(2006), para enfim organizarmos uma segunda síntese de correspondências, que facilitará a
visualização final das funções decisivas que o livro didático assumiu, no ensino de história,
em cada um dos quatro momentos políticos da história do Brasil.

As funções do livro didático segundo Alain Choppin

Choppin (2004) define a primeira função, a referencial, como aquela em que o livro
didático configura um papel curricular: nem sempre equivale ao programa curricular em si,
mas o orienta ou se articula a este de alguma forma, como “suporte privilegiado dos
conteúdos educativos, o depositário dos conhecimentos [...] que um grupo social acredita que
seja necessário transmitir às novas gerações” (CHOPPIN, 2004, p. 553). A função
instrumental diz respeito ao uso metodológico do livro didático como efetivo instrumento
didático, servindo de mediador para o aprendizado ou a apropriação dos conhecimentos
históricos. Na função ideológica e cultural, que é oriunda do século XIX, no contexto de
constituição dos Estados nacionais e criação de seus sistemas de ensino, o livro didático seria
o principal veículo de difusão dos valores culturais nacionais, como a língua, o civismo, os
símbolos pátrios, o passado comum. Nesta função, atuaria como legitimação das instâncias
ideológicas e reforço para a construção dos arquétipos identitários, servindo a interesses
políticos e doutrinações ideológicas, em variantes níveis de intensidade. Já em sua função
documental, o livro didático seria um suporte fundamental, narrativo (textual) e iconográfico,
que auxilia na formação crítica do estudante, por vias procedimentais de sua própria ação (de
leitura, reflexão ou contemplação).

Quadro 1 - Primeira síntese: as políticas educacionais públicas, o ensino de história e as


relações com o LDH em momentos da história do Brasil:*
Período Políticas públicas para a Ensino de história Relação com o LDH
educação
Império (1822- Adoção de modelos “Estudos históricos” dividem-se Livros didáticos são
1889) curriculares importados da em “história da civilização” predominantemente
França. (fundamentalmente a da Europa importados da França.
Ocidental) e “história pátria”,
que está em segundo plano,
configurando-se pelo estudo
de datas e batalhas, além das
biografias de homens ilustres. O
foco do ensino era a formação
do cidadão, produtivo e
obediente às leis estatais.

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Primeiro governo Centralização da política Consolidação da história como Livro didático produzido
de Getúlio Vargas nacional para o ensino e disciplina escolar, no Brasil, sob as
(1930-1945) unificação, sob ensino de história como orientações curriculares
responsabilidade do Estado, instrumento central da educação estatais, obrigatórias.
dos programas curriculares e política, em um apelo
dos conteúdos e metodologias nacionalista para a criação de
de ensino. uma “consciência patriótica”,
sob o estudo de exemplos de
vultos significativos para a
história pátria – alguns de
natureza religiosa também
foram mantidos.
Regime Civil- Redefinição, pelo novo Aprofundamento das Autoridade do livro
Militar (1964-1985) regime, dos objetivos da características do ensino de didático (atitude passiva e
educação, além de história anteriores. Permanece o receptiva do aluno).
interferências na formação de estudo biográfico de brasileiros Produção e controle das
professores e de suas célebres – agora, de acordo com obras didáticas
metodologias, para controle os interesses pertencentes aos diretamente ligadas ao
ideológico e eliminação de personagens do novo regime. Estado.
possibilidades de resistência Noção disseminada
ao regime. Inclui-se entre as “historicamente” de que a
disciplinas específicas a sociedade era natural e
educação moral e cívica para harmonicamente hierarquizada.
controle ideológico da Inexiste espaço para
população. interpretações ou análises - a
história tinha como função
preparar o jovem para o
cumprimento de seus deveres
básicos como cidadão, para com
a sua comunidade, o Estado e a
Nação. Os sujeitos históricos
continuam sendo os grandes
vultos positivos que conduzem
a nação.
Redemocratização: Necessidade de mudanças no Existe a tomada dos modelos O mercado editorial e a
décadas de 1980 e ensino de história, diversos marxistas de conceituação e publicação de livros
1990 meios de discussão se periodização da história, que didáticos se expandem;
envolvem, impulsionando a emerge em sua função social, professores e autores têm
criação de novas propostas infraestrutural e vinculada à liberdade de ação. É o
curriculares, sem necessidade política. A partir dos anos 1990, momento de
de obedecer às determinações movimento de transição e redimensionamento do
estatais. renovação historiográfica Programa Nacional do
brasileira, que procura Livro Didático e dos
acompanhar as tendências da contratos de compra de
nova história francesa e da livros didáticos pelo
historiografia social inglesa; o Estado, que se torna o
ensino de história avança para maior comprador do
um relacionamento consciente produto.
com a produção historiográfica
- há uma preocupação
generalizada com a sintonia
entre o saber científico e o
escolar, um desejo sensível de
incorporação das novas
tendências historiográficas no
ensino de história.
*Tabela organizada pelas autoras, com base nas obras de Caimi (1999) e Fonseca (2006).

Quadro 2 - Segunda síntese: Correspondências entre o ensino de história, o livro


didático de história e as suas funções segundo Choppin*

FUNÇÃO PERÍODO

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a) Função referencial Império (1822-1889)


Primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945)
Regime Civil-Militar (1964-1985)
b) Função instrumental Regime Civil-Militar (1964-1985)
c) Função ideológica e cultural Império (1822-1889)
Primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945)
Regime Civil-Militar (1964-1985)
d) Função documental Redemocratização (1980-1990)
*Tabela elaborada pelas autoras, com base nas obras de Choppin (2004), Caimi (1999) e Fonseca (2006).

Embora as correspondências sejam feitas com base nos conceitos de cada função de
modo líquido, existem adequações necessárias a cada período histórico da educação brasileira.
Fundamentalmente, porém, as funções do livro didático corroboram as do ensino de história
no Brasil e os usos do livro didático não só como instrumento pedagógico, mas também como
veículo ideológico e cultural. Esta utilização permite que se observe uma continuidade na
história da educação brasileira – o livro didático como o principal referencial de
conhecimento escolar e amálgama de interesses políticos, ideológicos e culturais e se entenda
a questão do livro didático como uma consistente estrutura da problemática do ensino de
história no Brasil.
E é neste sentido, na problemática utilização do livro didático – e do livro didático de
história, especificamente – como um veículo de transmissão de saberes selecionados e
sistematizados a partir de objetivos determinados fora do âmbito escolar, pelas esferas
controladoras do poder político e, cada vez mais, do poder econômico, que se insere uma das
abordagens preocupantes destes “modelos” pré-definidos: as identidades e as relações de
gênero.

O gênero como possibilidade de interpretação histórica e sua vinculação com o livro


didático

Nesta parte do trabalho discute-se o conceito de “gênero” como uma categoria com
estatuto e possibilidades de servir a interpretações históricas diversas. Procura-se
compreender, ainda, de que forma, em sua historicidade, a emergência das temáticas de
gênero contribuiu e tem contribuído científica e socialmente para a emancipação teórica e
cultural dos sujeitos envolvidos em seu processo.
Joan Scott (1992) adota o termo “movimento” da história das mulheres para identificar
as dimensões políticas e teóricas das complexas relações nos campos político, ideológico e
teórico, que viriam a instituir o conceito de “gênero” com o significado que

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contemporaneamente lhe atribuímos. Segundo Scott (1992, p. 64) a origem do campo


historiográfico que compõe a chamada “história de gênero” está nos movimentos feministas
dos anos 1960, ocorridos, sobretudo nos Estados Unidos da América. Embora configure em
parte um legado de fato, o processo não se deu de forma linear e nem significou o abandono
definitivo da causa feminista no âmbito político. A autora defende que o movimento
feminista “fabricou” e legitimou uma identidade de gênero3 feminina e coletiva. Isso
significou uma junção de interesses das mulheres que, na academia, buscavam a igualdade e o
fim do preconceito profissional e das mulheres que, generalizadamente, buscavam essa
igualdade em todos os âmbitos sociais a partir da sua militância. Com base na alegada e
existente heterogeneidade entre as historiadoras e os historiadores, as profissionais
acadêmicas feministas do campo da história incitaram diversas questões sobre a detenção do
“conhecimento” histórico, que estaria diretamente ligado aos produtores deste, no corpo
unitário historicamente masculinizado e indicaria posições perigosas das relações de poder na
epistemologia da história.
Este movimento encontrou eco, ainda segundo Scott, nas demandas do movimento
feminista pela inclusão da mulher na história e enquanto se aproximava das esferas acadêmica
e historiográfica em vias de ampliar a escrita da história, também se afastou daquele âmbito
exclusivamente político. Necessário observar que a inclusão da mulher na história e a
proposta de uma “história das mulheres” contém ambiguidades, pois, segundo Scott (1992,
p.7), “é ao mesmo templo um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslocamento
radical dessa história”. E assim se configura, pois promove a desconstrução de vários dos
pressupostos da disciplina e propõe rompimento com muitas das noções naturalizadas pela
história, principalmente aquelas que dizem respeito ao “sujeito histórico” e às comparações
das diferenças geralmente propostas por análises históricas, como, no caso, as de “homens” e
“mulheres”, em que ambos os conceitos são tomados como categorias naturais, fixas, dadas e
a-históricas.
As agitações internas da disciplina, notadamente a partir das décadas de 1980 e 1990,
assim como o desdobramento da história social em suas múltiplas abordagens e aberturas para
as identidades e representações, trouxe proximidade com as discussões da história das
mulheres sobre o significado das “diferenças”. Contemplando também as discussões da
unidade inquestionável apresentada pelo “sujeito histórico” vigente, o termo “gênero” elegeu-
se como aplicável para se relacionarem as diferenças entre os sexos. Contudo, com o
crescimento do debate observou-se também uma distorção no que diz respeito às diferenças
internas às próprias concepções de “homem” e “mulher”, ou “masculino” e “feminino”, o que
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instigou a questão das diferenças dentro da diferença. Esta questão “trouxe à tona um debate
sobre o modo e a conveniência de se articular o gênero como uma categoria de análise”
(SCOTT, 1992, p. 88) e, finalmente, assim se expandiu o foco da história das mulheres, que
passou a compor, lentamente, um leque mais amplo, denominado história de gênero.
A partir de então, o campo de possibilidades do gênero na composição de uma
categoria completa e autônoma – não somente “complementar” – na escrita da história, foi
explorado por diversos pesquisadores e inspirou a produção de inúmeras coletâneas que
4
buscaram historiar seu surgimento, discutir seus propósitos e apresentar suas ambições.
atualmente, o campo da história das mulheres, ou de gênero, expandiu-se rapidamente pelas
discussões de variadas disciplinas, incluindo não somente a história, mas o estudo das
relações sociais, compondo diálogos profícuos em diversos meios teóricos. Um deles é a
teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 2011), que problematiza a categoria de
gênero como intrínseca a uma estrutura histórica de relações humanas e influencia – e é este o
ponto principal de chegada – na vida familiar e escolar das crianças e de jovens.
O trabalho de Trindade e Souza (2009), por exemplo, busca estreitar as vias de ligação
entre a temática de gênero e a educação, vendo esta como o reflexo cultural de sociedades e
elo de reflexão e análise interpretativa da realidade social e de sua construção. É neste meio
escolar, segundo os autores que, de forma privilegiada, é operacionalizada a manutenção de
vários dos pressupostos conceituais culturais, sociais e disciplinares, nos processos de ensino-
aprendizagem. Inclusos aqui estão, claramente, papéis representativos e normativos de
gênero, coletivamente compartilhados, que evoluem perigosamente para questões como as
causas do fracasso escolar e a disseminação de tradicionais pressupostos homogeneizadores
dos indivíduos sociais.
Partindo da premissa de que a identidade de gênero diz respeito a cada indivíduo
particularmente e é espaço de diversidade, as relações de gênero no processo escolar podem
se configurar em fragilidades pela apresentação e manutenção de papéis normativos
“femininos” e “masculinos”.
O livro didático de história é, no caso da disciplina, o veículo que traz todas as
conceituações externas, a serviço da escola, do professor e do estudante. Quando usado – e
assim o é, frequentemente5 – como plano curricular, o livro didático de história passa a ocupar
papel soberano na sala de aula. Anteriormente apresentou-se o livro didático de história como
um promissor objeto de pesquisa, especialmente no contexto do ensino de história brasileiro,
uma vez que a ele foram atribuídos muitos papéis ao longo do tempo, que o superestimaram e
o ambicionaram como instrumento de formação nacionalista, disciplinador ideológico e
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doutrinador identitário. Cabe, agora, inquerir: de que forma tem sido, ao longo do tempo,
tratados os papéis, as identidades e as relações de gênero nos livros didáticos de história
brasileiros? O que podemos inferir a partir destas representações e de que forma puderam ou
podem influenciar no processo de educação de crianças e jovens? Avançamos, portanto, para
a terceira e última parte deste estudo, procurando, se não responder, ao menos abrir espaços
de discussão e reflexão para tais questões.

O Livro Didático de História e a categoria de gênero: interlocuções possíveis

Diversos estudos6 têm trazido à discussão, em variadas abordagens, as relações entre o


gênero, como categoria de análise histórica (e social, portanto) e o livro didático de história,
que atua, histórica e contemporaneamente, como veículo não somente do conhecimento
histórico, mas de um modo específico de conhecimento, configurado particularmente para o
ensino, de acordo com variadas formas de apropriação e conjuntamente às mudanças internas
à própria ciência histórica, no e para o âmbito educacional. Buscar-se-á, nesta seção,
identificar a presença (ou ausência) das figuras femininas no corpus documental selecionado,
a saber, 11 produções didáticas da História do Brasil editadas no período de 1910 até 2010.
Julga-se ser interessante perscrutar o aparecimento das figuras femininas na escrita da história
escolar como pressuposto do lugar ocupado pelas relações de gênero e como foram
operacionalizadas para sua utilização na escolarização de crianças e jovens. Ademais, poderão
ser inferidos diversos aspectos sobre as intenções “escondidas” aquém dos livros didáticos,
ainda que nem sempre instrumentalizados de forma explícita, como já comentado nas seções
anteriores deste estudo.
As obras didáticas que constituem a amostra, é importante salientar, não devem
assumir o estatuto de um estudo findo, nem tampouco absoluto em seus resultados. Servem,
além do propósito já justificado, para perscrutar a possibilidade de utilização da categoria de
gênero como instrumento de análise histórica e de ampliação dos espaços de reflexão sobre as
relações e identidades de gênero nos processos, ambientes e sujeitos escolares, por meio do
papel que os livros didáticos têm nestes meios. Assim, as obras foram selecionadas, uma
correspondente a cada década, de acordo com sua disponibilidade para pesquisa no arquivo
histórico local. As obras que contemplam as décadas de 1910 a 1970 foram selecionadas na
Biblioteca Auxiliar do acervo pertencente ao Arquivo Histórico Regional, da Universidade de
Passo Fundo/RS. Os exemplares das décadas de 1980 a 1990 foram escolhidos a partir do
acervo do Centro de Documentação da Faculdade de Educação da mesma universidade e as
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obras das décadas de 2000 e 2010 compunham o arquivo pessoal das autoras. O quadro a
seguir apresenta a constituição final da amostra.

Quadro 3 – Corpus documental

Ano de Referência
publicação
1918 PEQUENA História do Brasil. Colecção FTD. S/L, Livraria Francisco Alves, 1918. 4. ed.
1928 RIBEIRO, João. História do Brasil: curso superior. Segundo os programas do Collegio
Pedro II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1928. 543 p.
1936 LOBO, Esmeralda. História do Brasil: série de mapas e quadros sinóticos. Rio de Janeiro:
Editores J. R. de Oliveira e Cia., 1936.
1941 CESARINO JR, Antônio Ferreira. História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1941.
1955 TAUNAY, Alferdo d’Escragnolle; MORAES, Dicamôr. História do Brasil para o
segundo ano colegial. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.

1966 HERMIDA, Antônio José Borges. Compêndio de História do Brasil. 50 ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1966.
1972 ESAÚ, Elias; PINTO, Luiz Gonzaga de Oliveira. História do Brasil: estudo dirigido. s/l,
Ibep, 1972.
1987 COTRIM, Gilberto; ALENCAR, Álvaro Duarte. História do Brasil: para uma geração
Consciente. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987.
1996 e COTRIM, Gilberto. História & Consciência do Brasil 1. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
1997 ______. História & Consciência do Brasil 2. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
2000 PEREIRA, Denise Manzi Frayze; KOSHIBA, Luiz. História do Brasil. 7. ed. São Paulo:
Atual Editora, 2000.
2010 BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro
milênio. 2. ed. Vol. 2. São Paulo: Moderna, 2010.
Fonte: Organização das autoras.

A sistematização dos dados contempla os períodos mais facilmente identificáveis pela


organização dos próprios livros didáticos, que são os três principais períodos políticos da
história brasileira: Colônia, Império e República. Em primeiro lugar, foram sistematizados
fichamentos a partir da leitura flutuante (BARDIN, 1977) das obras, registrando-se todas as
menções a figuras ou representações femininas existentes nos livros didáticos estudados.
Após, esquematizou-se um fichamento global, onde emergiram quatro categorias
generalizadas de “aparições” femininas no conteúdo dos livros: 1) Mulheres indígenas, 2)
Escravas africanas ou afrodescendentes, 3) Membros de linhagens reais e 4) Outras. Esta
última categoria consubstancia uma diversidade de sujeitos, em geral figuras femininas
relacionadas a movimentos artístico-culturais e personagens da história, cuja presença é mais
frequente nos livros didáticos das décadas mais recentes. Desta forma, são igualmente
recortadas as localizações temporais das citações selecionadas. A análise das obras será
operacionalizada a partir da observação da forma como estes aparecimentos (ou

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esquecimentos) são tratados pelos livros didáticos de história que compõem a amostra.
Colocando em termos mais gerais, se buscará compreender “como” aparecem as identidades
de gênero femininas e o que dizem sobre as relações de gênero em cada uma das obras.
Pretende-se, assim, compor linhas iniciais da forma como foram “impostos” determinados
papéis de gênero na escolarização, justificados e legitimados pelo ensino de história.
Sistematizaram-se tais dados, para posteriores inferências, pela orientação da
periodização tripartite clássica. No período colonial, a primeira categoria, composta pelas
mulheres indígenas, aparece em sete das 11 obras. As formas como essas mulheres são
descritas sugerem uma dupla posição de inferioridade nas relações de gênero: aparecem, na
relação com os homens portugueses, sempre oferecidas como esposas (prática que, em uma
das obras é descrita como “barbarização de costumes”7) e, em relação aos homens índios,
como despojos de guerras entre tribos, bem como em posições menos privilegiadas e
“tradicionalmente” femininas da divisão das tarefas interna às aldeias. A categoria 2,
representada pelas escravas africanas e afrodescendentes, aparece em apenas duas das 11
obras, como mucamas – em serviços domésticos. A terceira categoria, reservada às aparições
de mulheres representantes de linhagens reais, aparece de forma consistente em todas as
obras, embora não caracterize “importância” histórica. Seu tratamento se dá, invariavelmente,
em anexo às aparições de seus pares masculinos: são citadas apenas a título de “aparição”, de
forma a esclarecer sucessões dinásticas ou eventos como casamentos, nascimentos e óbitos.
A categoria 4, denominada outras, esteve contemplada por apenas quatro das 11 obras. Nelas
aparecem, além de órfãs portuguesas enviadas à colônia para “dignificar” o lar e a
descendência dos colonizadores, duas descrições que se dedicam a explicar o sistema do
patriarcado sem, contudo, apresentar qualquer crítica a tal prática. Estas obras das décadas de
1920 e 1950, apresentam, na primeira, uma determinação dos “deveres intrínsecos” aos sexos:
as mulheres deveriam costurar, enquanto os homens deveriam comerciar; os homens eram os
geradores e as mulheres responsáveis pela amamentação das crias8. Na segunda temos uma
descrição precisa de como funcionava um lar colonial9:
O chefe da casa podia castigar seu escravo, seu criado, seus filhos, e até sua própria
espôsa, castigar e emendar de más manhas, diz o texto da lei. [...] O lar era uma
prisão mourisca, onde a mulher, alheia ao mundo, mais ou menos feliz, mais ou
menos conformada, vivia, amava, tinha filhos, criava-os, sorria, chorava, até que a
morte viesse e lhe cerrasse os olhos. Na casa colonial passava a existência entre um
oratório de jacarandá, uma rêde, uma esteira, fazendo rendas, bordados, cosendo,
engordando e aprendendo a falar mal com os escravos. 10

No livro didático referente à década de 2010 há um texto apêndice sobre a mulher no


período colonial, que se utiliza de um caso aparentemente isolado – a presença feminina nas

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Bandeiras – para argumentar contra a visão generalizada da historiografia chamada


tradicional, que tratara o sexo feminino como frágil. Porém, a discussão pretendida por meio
do texto complementar permanece no nível teórico, pois inquire aos leitores apenas questões
do âmbito historiográfico, não aprofundando de nenhuma forma a problematização do tema
nas questões de gênero.
No período imperial, a primeira categoria, referente às mulheres indígenas, não
aparece em nenhuma das obras. No mesmo recorte temporal, a categoria das escravas
africanas e afrodescendentes aparece em seis das 11 obras analisadas. Na metade das obras
(três, portanto) figuram como personagens quando se citam os trâmites da Lei do Ventre
Livre, que determinava a liberdade para as crianças filhas de escravas, de acordo com suas
determinações específicas. Na outra metade das obras, referentes às décadas de 1980, 1990 e
2010, as escravas africanas aparecem em situações de desordem social trazidas pela
escravidão: seus filhos mestiços, quando bastardos, teriam sido na maioria das vezes
renegados pelos pais; sofriam abusos sexuais e desprezo generalizadamente – aqui, pode-se
atentar para a existência de certo anacronismo quando se fala do “preconceito” sofrido pelas
escravas negras quando alforriadas. A categoria das mulheres membros de linhagens reais,
como ocorre no período anterior, recebe apenas o tratamento estritamente necessário, sendo
citadas quando de sucessões dinásticas, nascimentos ou mortes, de forma generalizada, por
todas as obras. Corroborando com o contexto político, também aparecem algumas figuras
femininas no poder imperial, atuando em breves regências, sem que, contudo, se explorem
suas funções. Como destaque, há na obra da década de 1960 uma página que contém
reproduções de assinaturas de personagens do império, subtitulada “Assinaturas de homens
ilustres do Brasil e da América”. Entre todas as assinaturas de personagens masculinos, assina
“Isabel, Condessa d’Eu”, reforçando o pertencimento masculino, pelo casamento, no nome da
princesa brasileira. Na categoria Outras, observam-se aparições heterogêneas em cinco das
obras. Há alguns comentários em três destas sobre a inexistência ou descaso com a educação
feminina, que é separada da masculina em virtude de “funções sociais” distintas aos dois
sexos. Novamente, a questão das “funções” nunca é explorada em profundidade pelas obras,
sequer é discutida. Outras mulheres civis, populares, são comentadas como vendedoras
(quando esposas de “desclassificados”) e nas questões da inexistência de seu direito de voto,
em apenas duas décadas, sendo a primeira ocorrência presente nas obras de 1990 e 2010 da
amostra e a segunda, apenas na década de 1990.
Finalmente, no período republicano, não há destaque para as mulheres das três
primeiras categorias (mulheres indígenas, mulheres escravas africanas e afrodescendentes,
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 229-246, Jul. 2015
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mulheres de linhagens reais), cabendo à categoria Outras dois tipos de abordagem, em seis
das 11 obras. O primeiro tipo de abordagem, que consta em quatro obras, explora a temática
das mulheres em aspectos mais públicos, citando nomes de figuras dos contextos artístico-
culturais brasileiros, como por exemplo, da maestrina e compositora Cacilda Borges Barbosa,
das escritoras Rachel de Queiroz e Ana Miranda e da pintora Anita Malfatti. Na segunda
abordagem, quatro obras tratam o tema das mulheres como classe de gênero, quando inclusas
no sufrágio, direito de voto concedido pela Constituição Federal de 1934. O livro da década
de 2010 traz, em boxe, a atenção para a questão da especificidade das revistas dedicadas ao
público feminino no século XX, tanto as direcionadas às questões domésticas quanto as de
cunho feminista.
Pode-se constatar, pela análise empreendida sobre a amostra, que a representação do
gênero feminino é parca na maioria dos livros; que as mulheres são apresentadas de forma
homogênea em várias obras e são ignoradas por completo em muitas outras. Também se
observa um “desaparecimento” de algumas das categorias , como as mulheres indígenas e as
que compunham o grupo das escravas africanas ou mulheres afrodescendentes, que são
absolutamente “eliminadas” da história após a proclamação da República. Ainda, se observa
um crescimento das abordagens em torno da “mulher” como ser histórico, principalmente nos
livros didáticos referentes às três últimas décadas analisadas, as de 1990, 2000 e 2010. Mesmo
incorporando mais figuras femininas aos conteúdos, especialmente em espaços públicos, estas
ficam restritas a um grupo generalizado – nas questões de inclusão de seu direito de voto – ou
em um grupo muito específico e representativo – nas mulheres ícones de movimentos
artísticos, como Anita Malfatti e Zina Aíta, por exemplo. Quando são incluídas nas discussões
de fato, as mulheres ainda figuram nas bordas e margens das produções didáticas, em quadros
específicos e em situações pontuais, sem evidentes impactos sobre os processos históricos.

Algumas considerações finais

O livro didático parece ter, de fato, uma extrema dificuldade em integrar as renovações
historiográficas propostas pela história de gênero. Com isso, define papéis normativos não só
aos gêneros, mas também aos sujeitos históricos, que ainda aparecem predominantemente
circunscritos aos grandes personagens. As questões de gênero permeiam e fazem parte do
ambiente escolar, porém um dos grandes instrumentos do ensino de história ainda não dá
conta de suprir os questionamentos que a própria disciplina histórica já apropriou e discutiu.
O livro didático, por seu papel político, ideológico e cultural, ao mesmo tempo em que
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apresenta papéis masculinos como exemplos históricos e determina, ao longo do tempo, os


lugares permitidos à aparição feminina na história, sempre estreitos e genéricos, exclui
majoritariamente de seu discurso a mulher brasileira, civil e contemporânea.
Deve-se ter claro que tal resultado amostral não tem caráter absoluto ou conclusivo,
porém oferece subsídios a vários questionamentos que estão no cerne das discussões de
relações de gênero, do ensino de história e da educação brasileira.
Teve-se como caráter primário e foco principal deste estudo averiguar as
possibilidades de se operar o livro didático de história como objeto de pesquisa e as temáticas
de gênero como instrumento metodológico de análise histórica, verificando-se o tratamento
dado às questões de gênero no livro didático de história ao longo dos séculos XX e XXI. Tal
objeto amostral não esgota, nem tampouco finda as possibilidades de investigação neste
sentido, que pode ser ampliado em diversas perspectivas e abordagens, tendo em vista a
importante relação entre a educação, o ensino de história no Brasil e as temáticas de gênero.

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O processo de catalogação do acervo bibliográfico do laboratório de ensino de história

Jéferson Barbosa Costa1

Resumo: O livro didático, por um longo período, ficou à margem das pesquisas acadêmicas sendo visto, não raras
vezes, apenas como uma ferramenta didático-pedagógica. Contudo, atualmente no cenário acadêmico tem-se um
número relevante de produções que tomam o livro didático como objeto ou fonte de pesquisa, o que faz emergir a
importância da criação de acervos que preservem estes materiais. Mas não basta apenas reunir e disponibilizar os
livros didáticos para consulta, pois se trata de um material com diversas especificidades que precisam compor uma
unidade através de um método de organização e catalogação eficaz. Este artigo tem por objetivo exemplificar o
método de catalogação desenvolvido especificamente para organização do acervo do Laboratório de Ensino de
História, vinculado ao Departamento de História da UFPel. Entende-se como essencial a constituição de um espaço
onde pesquisadores encontrem livros didáticos bem conservados e devidamente catalogados, já que o fácil acesso ao
material proporciona meios para que estudos mais qualificados sejam realizados nesta área de crescente visibilidade
acadêmica.
Palavras-Chave: Livros didáticos. Acervo. Catalogação.

The cataloging process of the bibliographic collection from the history teaching laboratory

Abstract: For a long time, the textbook was left out from academic research and often seen just as a didactic-
pedagogic tool. However, in the current academic setting, there is a relevant number of productions that take the
textbook as a source or object of research, what brings out the importance of creating collections that preserve these
materials. It is not enough to gather and make available textbooks for consultation because they have different
specificities that, together, need to compose a unity, through an effective method of organizing and cataloging. This
article aims to illustrate the cataloging method specially developed to organize the Teaching History Laboratory
collection, linked to the History Department of Universidade Federal de Pelotas (UFPel). It is understood as essential
to establish a place where researchers find well-maintained and properly cataloged textbooks, since the easy access
to the material provides ways so that more qualified studies are done in this area of growing academic visibility.
Keywords: Textbooks. Collection. Cataloging.

Introdução

As pesquisas que utilizam os livros didáticos como fonte ou objeto de estudo têm por
entrave o fato de serem raros os acervos que mantenham a salvaguarda deste material. Do mesmo
modo, inexistem fontes sobre a organização e constituição de acervos específicos de livros
didáticos, o que constitui uma adversidade para que haja uma mudança nessa situação. Entende-
se como essencial a constituição de um espaço onde pesquisadores encontrem livros didáticos

1
Universidade Federal de Pelotas. Orientadora: Profª orientadora Drª. Lisiane Sias Manke. Contato:
jeferson.b.costa@gmail.com

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 247-266, Jul. 2015


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bem conservados e devidamente catalogados, já que o fácil acesso ao material proporciona meios
para que estudos mais qualificados sejam realizados nesta área de crescente visibilidade
acadêmica. Visando contribuir para a desconstrução dessas adversidades, esta produção
exemplificará o método de catalogação desenvolvido especificamente para organização de um
acervo de livros didáticos.
O livro didático, por um longo período, ficou à margem das pesquisas acadêmicas, sendo
visto, não raras vezes, apenas como uma ferramenta didático-pedagógica. Ao abordar fatores que
contribuem para o descaso que comumente era aplicado aos livros didáticos, Choppin atenta ao
fato de que para pais, alunos e professores os livros didáticos são objetos pertencentes ao
cotidiano, muitas vezes sem constituir nada de raro, exótico ou singular. Além disso, o livro
didático é produzido em dezenas de milhões, o que o faz um produto ‘comum’ e uma mercadoria
perecível, que perde valor de mercado e torna-se obsoleto quando ocorrem mudanças
metodológicas ou quando há a necessidade de que fatos atuais sejam abordados em sala de aula.
(CHOPPIN, 2002, p. 6-7) Contudo, atualmente no cenário acadêmico tem-se um número
relevante de produções que tomam o livro didático como objeto ou fonte de pesquisa, sobretudo
desde o advento da Nova História Cultural, que, ao ampliar o conceito de fonte, possibilitou
mudanças na forma de perceber e compreender os livros didáticos.
São diversos os teóricos que enfatizam o papel do livro didático em pesquisas, bem como
instrumento que nos permite vislumbrar diversos parâmetros da sociedade. Em relação à História
da Educação, Munakata (2012), considera que o livro didático pode conter os elementos que mais
nos auxiliem na compreensão das práticas didático-pedagógicas, pois diante da “impossibilidade
de observação direta das situações de ensino de outrora, o livro didático pode conter elementos
que mais se aproximam dos programas curriculares então efetivados.” (MUNAKATA, 2012, p.
190).
Não cabe aqui, contudo, um maior aprofundamento nas possibilidades de pesquisas que se
abrem a partir desta nova percepção em relação aos livros didáticos. Primeiro, por este não ser o
tema central do artigo. Segundo, porque teóricos como Munakata (2012), Corrêa (2000) e
Moreira (2012) realizaram esta tarefa com excelência, lançando mão de diferentes argumentos
que comprovam essa afirmação. Se através do estudo de diversas produções dessa área, podem-se
conhecer as possibilidades de pesquisas com livros didáticos, do mesmo modo deveriam ser
encontrados acervos deste material, o que não ocorre. Poucos são os acervos bibliográficos que

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contemplem os livros didáticos, paralelamente, inexistem normatizações para a catalogação e


organização de livros didáticos em acervos específicos, o que cria diversos óbices para um
trabalho inicial de criação de um local com políticas específicas de armazenamento de livros
didáticos, por tratar-se de um material que possui especificidades que interferem diretamente na
padronização de sua catalogação e disposição no espaço físico do acervo.
Entende-se que é imprescindível para um acervo de livros didáticos, que haja
comunicação entre a administração do acervo e a comunidade para o qual ele é destinado, do
contrário, o objetivo de proporcionar facilidade de acesso ao material em questão, acaba não
sendo atingido. Também é passível que ao implantar um sistema de organização e catalogação,
seja levada em consideração a criação de ferramentas que possibilitem que pesquisadores de
outras localidades consigam visualizar títulos, autores, editoras, datas de publicação e outras
informações sobre cada exemplar sem o deslocamento até o acervo. Entende-se também que a
constituição de acervos contribui para a preservação deste material que pode proporcionar aos
pesquisadores “subsídios para a constituição de uma memória ou de uma história de um grupo
social” [...] e que “um acervo constituído por tal diversidade necessita de um eficiente trabalho de
armazenamento, que envolve atividades de higienização, restauração, organização e
catalogação.” Possibilitando, assim, uma “melhor visualização e uso dessas fontes.” (CARDOSO,
2011, p. 29).

O acervo, os softwares utilizados e as informações sobre cada exemplar

O acervo bibliográfico que será evidenciado no decorrer deste trabalho pertence ao


Laboratório de Ensino de História – LEH –, vinculado ao Departamento de História da
Universidade Federal de Pelotas – UFPel. O LEH foi fundado no ano de 2000 e desde então
arrecada livros didáticos, através de doações ou de aquisições próprias. Nesses 14anos de
existência, algumas possibilidades de catalogação foram aplicadas e todas elas cumpriram
eficazmente a proposta para a qual foram pensadas à época. Ocorre que a atual proporção do
acervo bibliográfico do LEH, trouxe consigo a necessidade de que um projeto de catalogação
maior fosse implantado.
O acervo conta com cerca de 900 exemplares de livros didáticos da disciplina de História,
havendo exemplares que vão do início do século XX até a atualidade – contemplando, portanto,

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uma parte significativa da história desta disciplina escolar. O acervo conta também com vasta
gama de materiais relacionados aos livros didáticos. Bittencourt (2011) relata que no Brasil
sempre foi comum que o livro didático viesse acompanhado do Manual do Professor. No LEH
temos diversas publicações mais antigas, onde esses manuais encontram-se separados dos seus
respectivos livros didáticos. O mesmo se repete com os “Cadernos de Atividades”, que nas
décadas de 80 e 90, pelo que podemos observar no acervo, eram produzidos separados de seus
respectivos livros. O acervo possui também significativa quantidade de revistas acadêmicas da
disciplina de História.
Os livros didáticos do Laboratório de Ensino de História são consultados para pesquisas
diversas desde 2002. Nos últimos anos, a maior quantidade de livros adquiridos – por doações ou
através de compras em sebos – tem influenciado diretamente no maior número de pesquisas
realizadas no acervo. Além disso, os livros didáticos mais recentes são emprestados aos
graduandos do Curso de Licenciatura em História, que os utilizam como ferramenta de apoio
durante o período de estágio e a professores da Educação Básica, que procuram o acervo em
busca de maior conhecimento acerca de coleções e/ou autores de livros didáticos.
Devido a esses fatores, tornou-se necessário um maior controle sobre toda a coleção e
uma melhor organização física do acervo, bem como um sistema de buscas e/ou referências que
possibilitassem fácil acesso ao material em questão. Até então, o Laboratório de Ensino de
História organizava seu acervo através do software MiniBiblio, que não permite que haja uma
mudança nos códigos de cada item após terem sido incluídos no acervo e, além de limitar as
palavras-chaves utilizadas nas pesquisas, há também o impedimento de que novos campos de
organização e categorias de catalogação sejam criados pelo usuário. O software MiniBiblio é
apresentado em arquivo executável, com formato .exe., o que também significa que o arquivo de
inicialização pode ser confundido com alguma espécie de vírus e com isto, ser deletado ou ter seu
funcionamento bloqueado dependendo do software antivírus instalado no computador.
O novo método de catalogação que foi então implantado, possui seu embrião na disciplina
de Organização de Arquivos Históricos, pertencente ao currículo do Curso de Bacharelado em
História da UFPel. A disciplina se divide em duas partes: na teórica, temos a oportunidade de
estudar parâmetros organizacionais, de armazenamento e higienização de acervos dos mais
variados materiais; na parte prática, a turma é dividida em grupos que estagiam em acervos da
cidade de Pelotas. Foi durante esta disciplina que os estagiários Jéferson Barbosa Costa, Caroline

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Matoso Duarte e Nicole Angélica Schneider começaram a pensar uma proposta de catalogação
para o acervo bibliográfico do LEH. Contudo, mesmo o Laboratório tendo sido previamente
escolhido como local para nosso estágio, a disciplina não contemplou discussões teóricas
específicas para a organização e catalogação de livros didáticos, o que se deve a inexistência de
fontes sobre este tema. Um indicador da ausência de acervos didáticos e da dificuldade de
contemplar tais especificidades de catalogação pode ser observado também nos parâmetros
universais de catalogação, como a CDD (Classificação Decimal de Dewey), presente em 135
países e que não possui um código específico para livros didáticos.
Para contornar essa situação, foram realizadas diversas reuniões com a coordenação do
Laboratório para que fossem definidos e sistematizados os processos de catalogação e disposição
dos exemplares. Optou-se em manter os livros ordenados respectivamente por autor e ano, pois se
entende que esta forma de organização seja a que mais facilita a realização de pesquisas em um
acervo que cobre um amplo período, com vasta gama de autores.
Definido o parâmetro a ser seguido quanto à organização física do acervo, foi pensado e
posto em prática um modelo de organização e catalogação especificamente criado para o acervo
do LEH, que se deu através de softwares que foram utilizados para garantir maior eficácia e
praticidade, tanto para organização do acervo, como para consulta do mesmo.
Como ferramentas para possibilitar que o novo método de catalogação fosse implantado,
optaram-se pelos softwares OCLC Dewey Cutter Program e Microsoft Office Excel. O primeiro
realiza a criptografia de palavras, convertendo-as em numerais precedidos de sua letra inicial,
fornecendo assim um código alfanumérico correspondente a cada palavra. Este software tem a
função, nesse caso, de criar parte dos códigos únicos a cada exemplar a partir da codificação do
último sobrenome e do nome dos autores. O software possui interface clara e objetiva: basta o
usuário escolher uma tabela/plataforma de catalogação e digitar a palavra que se deseja
transformar em código no campo text. Para o trabalho no acervo, utilizamos a tabela Cutter
Sanborn Four-Figure Table, para que o código alfanumérico seja criado com apenas uma letra.
Ao digitar a palavra “Cotrim”, por exemplo, o software gera o código alfanumérico C845.
Já o Microsoft Office Excel é usado para complementar a criação dos códigos e
possibilitar o início da catalogação. Este software exerce em nosso projeto duas funções
essenciais. De um lado é a plataforma de armazenamento dos dados, pois é nele que ficam
contidas todas as informações acerca dos exemplares. De outro é, concomitantemente, provedor

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dos parâmetros organizacionais que, a grosso modo, tem a função de gerir e nortear todo o
processo catalogação.
A planilha gerada pelo software Microsoft Office Excel é totalmente modificável,
tornando “infinita” a possibilidade de criação, seja de campos de pesquisas e métodos de
classificação, seja de organização geral do acervo. É possível modificar ou criar campos
personalizados de busca e de catalogação, além disso, pode-se classificar a visualização da
planilha a qualquer momento, a partir do item escolhido pelo usuário, como autor, editora, ano de
lançamento, número de páginas, etc. Existe também a possibilidade de que informações sobre
determinado livro listado no acervo sejam editadas ou reorganizado após sua inclusão no acervo e
o mesmo serve para o controle de empréstimos, doações, etc. O uso da planilha depende somente
de um dos vários softwares compatíveis com os arquivos .xls/.xlsx, que são encontrados nas mais
diversas plataformas utilizadas em dispositivos eletroeletrônicos em geral como computadores,
celulares e tablets.
Definidos os softwares a serem utilizados no processo de catalogação, o próximo passo
foi realizar a coleta das informações acerca de cada exemplar contido no acervo. À primeira vista,
esse trabalho pode parecer simples, embora demorado. O que acontece na prática, em um acervo
de livros didáticos que foram publicados desde o início do século XX até a atualidade, como já
era esperado pela equipe de trabalho, é que as publicações de períodos distintos não seguem um
mesmo padrão de divulgação de informações relativas à publicação. Por exemplo, existem no
acervo quatro obras do autor Agostinho Boni. Além de autor e título, o único dado que essas
publicações nos trazem diz respeito à editora FTD S.A., nenhum dos títulos faz qualquer
referência ao nível escolar ao qual é destinado, da mesma forma, não existem quaisquer
informações sobre a data de lançamento da publicação.
Para além desses títulos, no acervo existem outros 43 exemplares sem data de publicação
e 32 que não trazem informações sobre o nível escolar ao qual são destinados. Pode-se inferir que
para o uso destes livros os docentes guiavam-se pelo conteúdo e o nível das discussões
desenvolvidas. Também é comum, em publicações longínquas, que informações como público
alvo, data de publicação e até mesmo autor, estejam dispersas e/ou sem nenhuma evidência.
Ainda sobre estas publicações, é frequente que a data de publicação existente seja da obra
original e não da edição em questão. É essencial, portanto, que essas especificidades nunca

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fiquem à margem do processo de catalogação do acervo, pois um pequeno descuido pode resultar
em uma falha na obtenção das informações que poderá comprometer pesquisas futuras.
Ao final desse processo, foram coletadas informações de todos os livros didáticos para
preencher as colunas da planilha do Microsoft Office Excel desenvolvida para o acervo. São ao
todo 11 colunas: Código; Título; Autor; Ano; Editora; Edição; Nível Escolar; Páginas; Acervo;
Situação; e Palavras-chave. Em relação às regras de configuração dos dados que iriam compor
cada coluna, foram necessárias algumas escolhas, procurando padronizar ao máximo as
especificidades de dados que são encontrados nesse material que, como bem disse Bittencourt
(2004), é um objeto de múltiplas facetas. Trataremos de algumas.
A coluna Autor é preenchida com o nome completo do autor principal da obra. Portanto,
em casos de coautoria, somente um nome irá para a planilha, essa escolha deve-se a formação dos
códigos, que leva em consideração o nome do autor. A coluna Situação é preenchida para mostrar
se o livro em questão está disponível ou em empréstimo. Foi criada uma planilha em separado
para que em casos de empréstimos o acervo mantenha um controle sobre o locatário (nome
completo, e-mail, telefone e RG) data de retirada e de devolução da obra. A coluna Palavras-
Chave é preenchida através de cinco temas abordados na obra. Essa informação é retirada do
sumário de cada exemplar. O preenchimento das colunas Código e Nível Escolar, contudo,
demandam uma explicação mais detalhada que será tratada a partir de agora.

A formação dos códigos utilizados na catalogação do acervo do LEH

A formação dos códigos é uma etapa essencial em qualquer trabalho de organização ou


catalogação de um acervo bibliográfico. É através do código de cada exemplar que passamos
compreendê-lo e a localizá-lo dentro do acervo. Os pesquisadores que chegam ao laboratório, a
grosso modo, importam-se mais com os dados concretos sobre a obra, como autor, ano de
publicação, etc. Já para a equipe que coordena o acervo, as prioridades acabam sendo um pouco
diferentes. É essencial que haja uma visão diferenciada acerca do espaço e isso ocorre através de
uma forma diferente de localizar os exemplares. Os códigos são de suma importância nesse
processo, pois permitem que os livros sejam visualizados como peças que, aos olhos de quem as
compreendem, formam um sistema de diferentes engrenagens que embora com suas

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peculiaridades, movem-se todas em uma mesma direção sendo cada uma delas essencial para que
o “motor” – que nesse caso é um sistema de organização padronizada – funcione.
Com a intenção de facilitar a compreensão do leitor, durante a descrição do processo de
criação dos códigos procura-se exemplificar como o código foi pensado em cada etapa do
trabalho e quais os motivos serviram de agentes para que mudanças fossem necessárias. Além de
facilitar a compreensão do código definitivo, creio que isso seja de suma importância para que o
leitor compreenda que a prática não se deu através de uma “receita pronta”. Pelo contrário, em
diversas situações repensou-se o método de catalogação para adequá-lo a determinada
especificidade encontrada no acervo, o que demonstra a extrema dificuldade em integrar 900
obras, publicadas em períodos distintos, em um padronizado modelo de organização que atribui
códigos únicos a cada exemplar.
A ideia inicial foi formar um código produzido pelo software OCLC a partir do último
sobrenome do autor. A esta seção do código seriam adicionados os três últimos dígitos do ano de
publicação e, por fim, a letra inicial do título da publicação, mantendo assim uma possibilidade
de organizar o acervo por autor/ano. Caso o autor houvesse lançado exemplares diferentes em um
mesmo ano, os códigos seriam diferenciados com a adição de letras iniciais das palavras que
compunham o título de cada obra. De acordo com esse parâmetro, o livro História do Brasil de
Maria Januária Vilela Santos, publicado em 1984, ficaria com o código S2373.984H. Onde
S2373 é o código alfanumérico formado a partir do último sobrenome da autora (Santos); 984 os
três últimos dígitos do ano de publicação; e H a letra inicial do título. Caso houvesse um livro da
mesma autora, publicado no mesmo ano, o código seria diferenciado a partir das palavras que
compõem o título da obra. Sendo assim, o livro História da América, de mesma autora e ano de
publicação, ficaria com o código S2373.984.HA.
Nesta etapa do trabalho nos deparamos com três problemas. O primeiro deles: a maior
parte dos títulos – seguindo as normas de catalogação, ou seja, excluindo artigos e preposições –
começam com a letra H, fato corriqueiro em se tratando de livros de História que geralmente
levam o nome da disciplina no início do título da obra, ou seja, isto ocasionaria a repetição da
letra inicial na maioria dos códigos. O segundo é que existem coleções de livros didáticos
lançadas em um mesmo ano e cujos livros possuem mesmo título principal, só havendo distinção
em relação ao subtítulo e ao nível escolar ao qual são destinados. O último problema encontrado
é composto por duas características: existem diversos autores de mesmo sobrenome, que

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lançaram livros em um mesmo ano, o que poderia gerar códigos iguais para livros diferentes; na
mesma situação, existem obras com o mesmo título, lançados em um mesmo ano, mas de autores
diferentes. Este fato é comum devido à repetição frequentes de títulos como História do Brasil,
História Geral, e etc. Diante de todos esses óbices, foi preciso rever o processo de criação dos
códigos.
Como resolução, retirou-se do código a letra inicial do título. Manteve-se o código
alfanumérico criado a partir do último sobrenome do autor e adicionou-se a este um novo código,
formado a partir do nome inicial do autor. Essa mudança qualificou significativamente o código,
por distinguir autores de mesmo sobrenome. Essas duas seções do código, criadas a partir do
nome e sobrenome do autor, seriam seguidas pelo código referente aos três últimos dígitos do ano
de publicação. Finalmente, percebendo que a opção de distinguir os códigos de acordo com seu
título mostrou-se de baixa eficácia, optou-se por não mais utilizá-la. Em seu lugar, foi adicionado
um código criado manualmente que condiz com o nível escolar para o qual a publicação foi
produzida. O código referente ao já citado livro História do Brasil de Maria Januária Vilela dos
Santos, publicado em 1984, que na etapa anterior era S2373.984H, passou a ser
S2373.M332.984.6S. Fragmentando o código, podemos visualizar de forma mais clara como se
dá sua formação: S2373.M332 (o sobrenome Santos e o nome Maria, ambos criptografados
através do software OCLC Dewer Cutter Program). 984 (três últimos dígitos do ano de
publicação da obra). 6S (nível escolar ao qual o livro é destinado, nesse caso, sexta série).
A inserção do nível escolar é uma ação complexa, em se tratando de um código a ser
padronizado para a totalidade do acervo. Foi nessa etapa do trabalho que os códigos referentes a
cada nível escolar foram criados, tarefa que precisou ser minuciosamente pensada.
Acompanhando as mudanças educacionais e de políticas públicas, os livros didáticos são
produzidos de acordo com as denominações de sua época, o que acarreta em diferentes
nomenclaturas para um mesmo nível escolar. Deste modo, esse dado é preenchido de acordo com
siglas que foram criadas pela equipe do laboratório para que a padronização dos códigos fosse
possível. As siglas criadas para cada Nível Escolar contido nos livros até então catalogados são as
seguintes: 1C (Primeiro Colegial); CV (Curso Vestibular); EF (Ensino Fundamental); 1G
(Primeiro Grau); 2G (Segundo Grau); 7S (Sétima Série); 7A (Sétimo Ano); e EM (Ensino Médio).
Percebe-se que houve avanços significativos. Porém, através da investigação criteriosa,
realizada antes do início do processo prático de criação dos códigos, descobriu-se que este

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método ainda dava margem para a existência de códigos iguais para diferentes publicações. São
várias as reedições de livros didáticos e devido a isto, pode ocorrer, embora não seja um fato
frequente, que em um mesmo ano sejam publicados dois livros diferentes de mesmo autor
destinados a um mesmo nível escolar, um produzido naquele ano e uma obra anterior que tenha
sido reeditada. Como exemplo temos as publicações da 5ª edição de Educação Moral e Cívica –
Para uma geração consciente e da 4ª edição de OSPB – Para uma geração consciente, ambas do
autor Gilberto Cotrim, publicadas em 1984 e destinadas ao Primeiro Grau.
Ainda há casos onde livros diferentes são publicados para um mesmo nível escolar. Isto
ocorre com maior frequência em publicações de coleções de livros didáticos do final do século
XX. É certo que cada livro tenha sido produzido para um ano específico, mas essa informação
nem sempre é acessível através de uma análise dos conteúdos – já que diferem muito entre as
coleções – e nem é evidenciada nas publicações, que são destinadas geralmente todas para o
Primeiro/Segundo Grau ou para o Ensino Fundamental. É o caso, por exemplo, da coleção
História Passado e Presente de Sônia Irene do Carmo. O acervo do LEH conta com três
exemplares dessa coleção que foram publicados no ano de 1994 (Brasil Colônia; Antiga e
Medieval; e Moderna e Contemporânea) e todos eles são destinados para o Primeiro Grau.
Especificidades de coleções como História Passado e Presente foram descobertas através
de uma investigação, uma busca por conhecer cada vez mais o material a ser catalogado antes de
começar a prática e foi isso que proporcionou que fossem encontradas as especificidades que
aparecem em um acervo bibliográfico de livros didáticos e que se não tivessem sido pensadas a
priori comprometeriam o projeto como um todo. Exemplares de um mesmo autor, publicados em
um mesmo ano e destinados a um mesmo nível escolar, teriam que ter códigos distintos. Como
solução para esta última adversidade, optou-se por adicionar ao código um numeral referente a
cada exemplar. Portanto, os códigos das obras História Passado e Presente – Brasil Colônia e
História Passado e Presente – Antiga e Medieval, ficaram respectivamente C2878.S6989.994.1G
e C2878.S6989.994.1G.1.
Ainda sobre coleções, as mais recentes, principalmente as destinadas ao ensino médio,
embora geralmente possuam subtítulos diferentes, são diferenciadas na prática a partir do volume
referente a cada exemplar, sendo que comumente existem três volumes, um para cada ano. Para
solucionar esta peculiaridade, ao final do código de livros pertencentes a coleções foi adicionado
o volume referente ao exemplar. Portanto, em casos específicos o código é constituído por um

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elemento adicional. Vejamos, a coleção Conexões com a História, de Alexandre Alves, publicada
em 2010 e dividida em três volumes. O primeiro volume dessa coleção fica com o código
A474.A381.010.EM.V1. Fragmentando novamente, A474.A381(o sobrenome Alves e o nome
Alexandre, ambos criptografados através do software OCLC Dewer Cutter Program). 010(três
últimos dígitos do ano de publicação da obra). EM(nível escolar ao qual o livro é destinado, nesse
caso, Ensino Médio).V1(Volume 1).
Ainda no que diz respeito às adversidades encontradas durante o processo de criação dos
códigos, surge ainda outra questão, dessa vez referente aos livros didáticos que não possuem
algumas informações. Recapitulando, o código traz informações acerca de autor (prenome e
último sobrenome), ano de publicação, nível escolar e volume da coleção. Existem alguns
exemplares que não trazem informações sobre ano de publicação e nível escolar, apenas sobre
autor, como já foi visto. Para compor o campo referente a uma determinada informação omissa
no exemplar, utilizou-se o termo N/A.
O termo N/A, genericamente significa not applicable ou not available e pode ser
traduzido por “não aplicável” ou “não disponível”. Um exemplo é o livro História do Brasil para
Estudos Sociais, de Julierme de Abreu e Castro que não traz informações acerca do ano de
publicação da obra. Nesse caso o código fica C3551.J945.N/A.6S.V2. Para melhor compreensão,
novamente vamos à fragmentação do código. C3551.J945 (o sobrenome Castro e o nome
Julierme, ambos criptografados através do software OCLC Dewer Cutter Program). N/A (já que
não há informações sobre a data de publicação da obra). 6S (nível escolar ao qual o livro é
destinado, nesse caso, sexta série).V2 (Volume 2).
Ainda sobre o objeto de criar códigos únicos, ao catalogar um exemplar de um livro já
existente no acervo, a sigla “ex2” (abreviação de exemplar 2) é adicionada ao final do código. O
mesmo acontece caso exista um terceiro exemplar, cujo ao código será adicionada a sigla “ex3”.
Ficou acordado que o acervo teria no máximo três exemplares de cada livro, tendo em vista uma
maior organização, controle e também uma melhor utilização do espaço disponível.
Dito isto, percebe-se que é indispensável, portanto, que haja uma investigação criteriosa
que proporcione uma aproximação da equipe responsável pela catalogação com o material que irá
ser catalogado. Feita essa aproximação, a forma como a equipe passará a olhar o material tende a
mudar. Ao invés de enxergar um livro, um caderno, uma revista, enxerga-se uma peça de um
grande conjunto que se organizado da forma correta, funciona harmoniosamente.

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A planilha que contém a lista de livros que constituem o acervo está sendo disponibilizada
para o público em geral pelas redes sociais, visando o acesso virtual ao acervo para um maior
número de pesquisadores de diferentes localidades. Também está em andamento o projeto de
criação de um site próprio para o Laboratório de Ensino de História que, entre outras atividades,
promoverá uma maior divulgação da planilha. Para quem é familiarizado com o software
Microsoft Office Excel, o uso da planilha acontece de forma simples e objetiva. Todavia,
pensando sempre em promover um fácil acesso, foi pensado um tutorial de uso da planilha que
será resumido a seguir e que proporcionará ao leitor uma visualização prática do uso do software
bem como de algumas das obras encontradas no acervo do Laboratório de Ensino de História da
Universidade Federal de Pelotas.

O uso da planilha e as pesquisas “virtuais” possíveis no acervo do LEH

Antes de começar a demonstrar as possibilidades práticas de pesquisa a partir da planilha


que contém a lista de livros bem como todas as informações acerca de cada exemplar existente no
acervo do LEH, cabe tecer dois comentários explicativos acerca das imagens que serão aqui
utilizadas. Em primeiro lugar e aqui começam algumas explicações para todos que não são
usuários do software Microsoft Office Excel, a largura de cada coluna é totalmente modificável.
As colunas tiveram sua largura reduzida para que fosse possível uma melhor visualização dos
dados que seriam inseridos neste texto. Cabe frisar também, e é essa a segunda observação, que
as cinco colunas presentes nas imagens foram escolhidas entre as 11 que compõem a planilha por
se considerar serem as de maior importância para exemplificar o funcionamento e a organização
do modelo de catalogação.

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Figura 1

A figura 1 nos traz informações acerca de 14 livros escolhidos aleatoriamente entre os 900
livros didáticos de História que compõem o acervo do LEH. Percebe-se na imagem que nenhuma
das colunas está organizada por ordem alfabética ou por valores. Nota-se também a existência de
cinco setas nos cantos direitos inferiores de cada coluna. É a partir dessas setas que se dá a
organização da planilha de acordo com a coluna escolhida pelo usuário.
Ao clicar com o botão esquerdo do mouse na seta localizada no canto inferior direito de
uma coluna, é aberta a janela de classificação de dados que possui diversas opções.

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Figura 2

As opções de classificação por ordem crescente e decrescente aparecem ligadas ao


alfabeto em colunas preenchidas por palavras. Em colunas preenchidas por números, as opções
serão de Classificar de Menor para Maior e Classificar de Maior para Menor. Ou seja, o processo
de organização seguindo uma ordem crescente dos dados adapta-se a todas as 11 colunas que
compõem a planilha. Na imagem 2, clicou-se na seta localizada no canto inferior direito da
coluna Autor, após aberta a janela de classificação de dados, clicou-se na opção que está com
fundo verde; Classificar de A a Z. O resultado obtido pode ser visto a seguir.

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Figura 3

Pode-se perceber que a agora a planilha está organizada de acordo com a coluna Autor. Se
olharmos mais atentamente, veremos que o design da seta referente à coluna Autor (a) foi
modificado, mostrando que é a partir desta coluna que a planilha está sendo organizada.
Como já foi dito, o mesmo pode se aplicar a qualquer coluna, o usuário pode organizar a
planilha por ordem alfabética de editoras ou por ordem crescente de ano, etc. O filtro de
classificação interfere em todas as linhas e colunas, pois é um sistema integrado e, portanto, ao se
optar por um parâmetro de organização diferente, linhas e colunas de toda a planilha serão
realocadas automaticamente sem que seja preciso nenhuma outra ação do usuário.

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Figura 4

A imagem 4 mostra o que acontece quando o usuário clica novamente na seta localizada
no canto inferior direito da coluna Autor. O foco agora será o campo Pesquisar e as opções de
preenchimento de células que estão logo abaixo. Essa ação permite realizar a pesquisa em
qualquer coluna, como será visto a seguir.

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Figura 5

Imaginemos que um pesquisador chegue ao LEH interessado em livros do autor Nelson


Piletti, é essencial que exista uma forma de realizar o recorte desejado entre os 900 livros do
acervo. Nesse caso, basta digitar “Piletti” no campo de pesquisa que os outros nomes são
excluídos da lista logo abaixo, onde aparecem somente os campos que contenham a palavra
digitada. Após digitar “Piletti” o usuário deverá clicar em OK e o resultado, que pode ser visto na
imagem 6, será que a planilha passará a mostrar somente as obras que foram publicadas pelo
autor Nelson Piletti. Este mesmo processo, de filtrar a planilha de acordo com o conteúdo
desejado pode ser realizado em qualquer coluna.

Figura 6

A partir da pesquisa realizada na etapa anterior, a planilha agora está mostrando somente
obras do autor Nelson Pilleti. Essa possibilidade, sem dúvida, facilita em muitos aspectos o
trabalho do pesquisador, mas as ferramentas proporcionadas pela planilha vão ainda mais além. O

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acervo do LEH conta com diversos livros de autores renomados como Gilberto Cotrim e Nelson
Piletti é para casos como esses que o procedimento a seguir será evidenciado.

Figura 7

Quando realizada a pesquisa por autor na etapa anterior, a planilha mostrará todos os
livros publicados pelo autor Nelson Piletti. Ocorre que a planilha ainda permite que outra
pesquisa seja feita sem que os resultados da primeira pesquisa sejam desconsiderados. Portanto,
podemos realizar uma pesquisa dentro dos resultados obtidos com a primeira pesquisa, é o que
está sendo feito na imagem 7. Dentre as obras publicadas por Nelson Piletti, no exemplo acima,
está sendo realizada uma pesquisa por todas as obras que tenham sido publicadas no ano de 2001.
O procedimento é exatamente o mesmo da imagem 5, só que neste foi digitado “2001” na
opção Pesquisar que surgiu após ter-se clicado na seta referente a coluna Ano. O resultado pode
ser visualizado a seguir.

Figura 8

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Depois de realizado esse processo, dentre todos os livros que compõem o acervo do LEH,
a planilha mostrará somente as obras de Nelson Piletti que tenham sido publicadas no ano de
2001. Também podemos visualizar a partir da imagem acima, que as setas das colunas Autor(a) e
Ano foram removidas, denunciando que estão ocorrendo pesquisas a partir desses dois
parâmetros.

Considerações finais

O presente texto, bem como o detalhamento do processo de criação dos códigos e o breve
tutorial acerca da utilização da planilha, tiveram por objetivo principal mostrar como se deu e
quais foram as adversidades encontradas durante o processo de criação de um método de
catalogação específico para livros didáticos. Espera-se ter obtido sucesso em demonstrar, ao
menos parcialmente, que ao longo de cerca de um ano e meio de trabalho, foram várias as
dificuldades encontradas, mas também foram vários os conhecimentos adquiridos.
Não se considera ter encontrado a forma ideal para a catalogação de livros didáticos, de
maneira alguma. Contudo, o método atual tem-se mostrado altamente eficaz para um acervo
específico: o Acervo Bibliográfico do Laboratório de Ensino de História. Através do
conhecimento prático adquirido, pode-se dizer que é necessário, antes de buscar métodos de
catalogação prontos, pensar as especificidades do acervo em questão, sem nunca esquecer que um
dos objetivos quando pensa-se a organização de um acervo é encontrar uma maneira para que
novas aquisições sejam organizadas sem que sejam necessárias mudanças no procedimento
utilizado. Para criar um método de catalogação, portanto, é preciso um trabalho de pesquisar “em
negativo”. É preciso ter conhecimento sobre quais doações o acervo poderá vir a receber e estar
pronto para adicioná-las através da lógica já utilizada.
Nesse primeiro momento, nosso principal objetivo foi alcançar o término da catalogação
dos livros didáticos, tendo em vista que a já citada utilização do acervo fez dessa uma
necessidade prioritária. A próxima etapa, que terá início no primeiro semestre de 2015, terá por
objetivo principal buscar informações que não estão presentes nos livros, como datas de
publicações e nível escolar. Tarefa que será realizada através de pesquisas na internet,
bibliotecas, arquivos de escolas e através do contato com editoras.

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O pouco interesse no desenvolvimento de pesquisas sobre livros didáticos eram “decorre


não somente das dificuldades de acesso às coleções, mas também de sua incompletude e sua
dispersão. Ou talvez, ao contrário, devido à grande quantidade de sua produção, a conservação
dos manuais não foi corretamente assegurada.” (CHOPPIN, 2002) Espera-se que a divulgação
deste método de catalogação, bem como da criação de códigos para cada exemplar, contribua
para o surgimento de novos acervos de livros didáticos ao mesmo tempo em que instigue e sirva
de apoio a iniciativas semelhantes que valorizem o livro didático como objeto ou fonte de
pesquisa. Já que, “no caso brasileiro, depara-se, de modo geral, com a ausência de acervos
específicos de manuais escolares, o que gera, para os pesquisadores, um sobre-esforço na
localização dos livros em acervos não especializados, onde, não estão, via de regra, catalogados”
(GALVÃO; BATISTA, 2009).

Referências

BITTENCOURT, Circe. Em foco: História, produção e memória do livro didático. Educação e


Pesquisa. vol.30, n.3. São Paulo, 2004.

BITTENCOURT, Circe. Livros e materiais didáticos de História. In Ensino de História:


fundamentos e métodos, p.293-324. Editora Cortez. São Paulo, 2011.

CARDOSO, Cancionila Janzkovski. A constituição de acervos para o estudo da história da


educação. Ensino Em Re-Vista, v.18, n.1. Uberlândia, jan./jun., 2011.

CHOPPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. Tradução: Maria Helena Camara Bastos.
História da Educação. ASPHE/FaE/UFPel, p.5-24. Pelotas, 2002.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. O estudo dos manuais
escolares e a pesquisa em história. In Livros escolares de leitura no Brasil: elementos para uma
história. Mercado das Letras. Campinas, 2009.

MUNAKATA, Kazumi. O livro didático: alguns temas de pesquisas. Revista Brasileira de


História da Educação, v.12, n.3 (30), p.179-197. Campinas, set/dez, 2012.

MOREIRA, Kênia Hilda. Livros didáticos como fonte de pesquisa: Um mapeamento da


produção acadêmica em história da educação. Educação e Fronteiras On-Line, v.2, n.4, p.129-
142. Dourados/MS, jan./abr., 2012.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 247-266, Jul. 2015


Projeto Conectividade: as ações afirmativas e o estudo da cultura afro-brasileira no
contexto do Telecurso 2000

Elisiane da Silva Soares1

Resumo: O estudo da cultura afro-brasileira é amparado pela Lei 10.639/03. Tendo ciência da importância da
mesma para o entendimento e reconhecimento do multiculturalismo da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo,
tendo presente que atualmente estamos cada vez mais em rede acredita-se que o tema A luta dos escravos,
produzido pela décima aula do Ensino Fundamental do Programa Telecurso 2000, possibilita vários
questionamentos referentes à representação da escravidão pelo programa. O presente artigo faz parte do Projeto
de Pesquisa Conectividade e apresenta uma proposta de estudo que intenta refletir sobre a contribuição do
Telecurso 2000 para o desenvolvimento de um indivíduo autônomo e crítico. Procura-se também estabelecer um
diálogo entre a Lei 10.639/03, os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1998 e as Diretrizes Curriculares
Nacionais de 2004 buscando mapear como estes apresentam esta proposta de estudo. A teleaula, nosso objeto de
análise, procura discutir e refletir os seguintes conceitos: escravidão, resistência, contribuições dos negros
africanos, entre outros. Também é possível estabelecer a necessidade reflexiva sobre as orientações teóricas, que
segundo o programa, o orientam, fundamentações estas baseadas nos pensadores como Paulo Freire, Dom
Helder Câmara, Célestin Freinet e Jean Piaget, os quais são considerados pela PRODUÇÃO como inspiração de
suas práticas, métodos e processos. Como conclusão provisória percebe-se a ausência de referencial dos teóricos
na metodologia presente na aula em estudo, assim como o distanciamento com a historiografia recente sobre o
tema.
Palavras-chave: História, cultura afro-brasileira, ações afirmativas, Telecurso 2000.

Abstract: The study of african-Brazilian culture is supported by Law 10,639/03. Being aware of the importance
of the same for the understanding and recognition of multiculturalism in Brazilian society and at the same time,
bearing in mind that we are currently increasingly networked believed that the theme The struggle of slaves
produced for the tenth class of elementary school Telecurso 2000 program features several questions concerning
the representation of slavery by the program. This article is part of Project Connectivity Research and proposes a
study that tries to reflect on the contribution Telecurso 2000 for the development of an autonomous and critical
individual. Also seeks to establish a dialogue between the Law 10639/03, the National Curriculum Guidelines of
1998 and the National Curriculum Guidelines 2004 seeking to map out how they present this proposed study.
The teleaula which is our object of analysis seeks to discuss and reflect the following concepts: slavery,
resistance, contributions of black Africans, among others. You can also establish the necessary reflective on
theoretical orientations, which according to the program, the guide, based on these foundations thinkers such as
Paulo Freire, Dom Helder Camara, Célestin Freinet and Jean Piaget which are considered as the inspiration for
the PRODUCTION of their practices, methods and processes. As an interim conclusion we notice the absence of
the theoretical framework in this study methodology in the classroom, as well as distancing the recent
historiography on the subject.
Keywords: History, african-Brazilian culture, affirmative action, Telecurso 2000.

Introdução

Durante muito tempo na Educação Básica o tema sobre a África e cultura afro-
brasileira foi abordado de forma secundária, com o estudo do continente africano sempre se
bastando de temáticas como o tráfico negreiro e a utilização da mão de obra escrava
1
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Contato: essoares1@ucs.br
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 267-281, Jul. 2015
268

precingindo sobre esses termos e colaborando, inclusive, na naturalização de determinados


estereótipos como, por exemplo, a sua suposta inferioridade e criminalização que ajudaram no
processo de sua exclusão e discriminação racial na sociedade o qual é percebido no nosso
cotidiano.
Essa situação, com o passar do tempo, passou a ser uma questão de direitos humanos,
questão em voga atualmente, podendo-se perceber que esta talvez seja uma preocupação e um
movimento que busca pela implementação de amparos legais em busca da criação de novos
espaços de sensibilização por meio de um olhar crítico e reflexivo. A partir da vigência da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no ano de 1996, esse quadro começou a passar por
sucessivas mudanças, as quais foram de fundamental importância para esse processo de
modificação metodológica do ensino sobre a cultura afro-brasileira. No ano de 1998 são
elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), diretrizes criadas pelo Governo
Federal com o intuito de orientar a educação brasileira, em disciplinas dirigidas para o Ensino
Fundamental e Médio. Com o currículo dividido por ciclos, o que abrange a área de História
passou a dar maior abrangência sobre os estudos africanos. As Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCN), criadas em 2004, tratam da Educação das Relações Étnico-Raciais e do
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, com amparo legal buscando
assegurar o direito igualitário no que se refere à cidadania e as condições básicas de vida, bem
como a garantir a igualdade na contribuição dos diversos grupos e culturas no processo
histórico brasileiro.
Não sejamos negadores de que avanços estão acontecendo, mas precisamos atentar
que, embora esses passos tenham sido percebidos em direção ao objetivo dessas ações
afirmativas, os mesmos vêm se apresentando de forma deveras lenta ou estagnando-se em
algum momento do seu percurso. Onze anos se passaram da promulgação da Lei Federal
10.639/03, que determina a inclusão do estudo da História da África e dos africanos no
currículo escolar de todas as escolas públicas ou particulares de Ensino Fundamental e Médio.
Estas, por sua vez, são coagidas a incluir em seus currículos temas que abarquem o ensino
sobre a cultura africana, as lutas desbravadas em busca da liberdade objetivando a
compreensão dos valores e da importância da contribuição deste grupo social na formação da
sociedade brasileira.
É possível perceber que nas últimas décadas a sociedade vem sendo atraída por meios
de comunicação como a televisão e as redes digitais que difundem as informações de um
modo prático e rápido. Tudo indica que, se não estivermos conectados, estaremos à mercê de
um atraso informacional e fadados ao acomodamento diante dos acontecimentos mundiais.
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Considerando este cenário, nos dedicamos ao estudo da décima aula de História do Ensino
Fundamental do programa Telecurso 2000, modalidade de ensino à distancia aprovada pelo
MEC e apoiada pela Fundação Roberto Marinho, sendo veiculado em diferentes canais
televisivos (TV Globo, Canal Futura, TV Cultura, Rede Vida, TV Brasil, Globo Internacional,
dentre outros), com exibição em distintos horários durante a semana e disponível também na
web.
O artigo em desenvolvimento faz parte do Projeto Conectividad, vinculado ao curso de
graduação, de pós-graduação e Mestrado Profissional em História da Universidade de Caxias
do Sul (UCS). Este intenta refletir sobre a contribuição deste programa no desenvolvimento
da autonomia e da criticidade do indivíduo. Para isso buscamos embasamento teórico nos
pensadores Paulo Freire, Dom Helder Câmara, Célestin Freinet e Jean Piaget que, segundo o
Telecurso 2000, servem de inspiração de suas metodologias.
No primeiro capítulo apresentaremos o Projeto Conectividade e seus objetivos
estabelecendo as devidas relações entre a realidade midiática e o Telecurso 2000 amparados
no estudo de obras dos pensadores supracitados. No segundo, dialogaremos sobre o estudo da
cultura afro-brasileira e dos africanos e as ações afirmativas que o amparam e, no terceiro,
analisaremos a teleaula em abordagem buscando a percepção da contribuição do referido
programa quando se trata das obrigatoriedades legais, assim como sua aproximação à
historiografia recente sobre o tema em questão.

O Projeto Conectividade e suas atribuições

Diante da realidade já proferida, que a sociedade atual se encontra cada vez mais em
rede, surgiu a necessidade da análise da contribuição das mídias, sejam elas televisivas ou
digitais, para o desenvolvimento da capacidade de posicionamento do cidadão, de não se
deixar levar pelas propagandas que brilham diante dos nossos olhos. Aproveitando este
ensejo, o referido estudo apresenta como intento uma reflexão destinada ao programa
Telecurso 2000, analisando como este se propõe a contemplar as necessidades evidentes para
o desenvolvimento da criticidade e autonomia dos indivíduos que a ele estão ligados, através
da apreciação de teleaulas que abrangem a área de História.
Considerando que o material didático da programação é uma importante fonte, pois
está intrinsecamente ligado ao processo educacional, além de ser um modelo de educação à
distância, nos dispusemos a compreender este processo a partir de seus conceitos básicos,

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estrutura pedagógica e ensino, estabelecendo a necessidade reflexiva sobre as orientações


teóricas que, segundo o programa, guiam a sua metodologia.
Carmem Maia e João Mattar (2007) argumentam que a necessidade de desenvolver
modalidades de ensino à distância (EaD) se deve a diversos fatores, tais como a escassez de
tempo, a distância física entre educando e instituição de ensino, dentre tantos outros motivos
que provocam a demanda pela existência de um método de ensino do tipo. O EaD, assim,
apresenta-se de diversas maneiras: via teleaulas, através da internet ou mesmo de modo
semipresencial e supervisionado. Visto muitas vezes com preconceito, o EaD pode se
apropriar das tecnologias para desenvolver, com benefícios, novas práticas e interações
durante o ensino e a aprendizagem. Porém, é necessário atentar para deficiências existentes
nesse processo, pois é inevitável que, como qualquer meio educacional, exista a necessidade
de profissionais especializados, caso contrário o processo como um todo será deficiente.
Sobre Comunicação Audiovisual, apoiamo-nos nas obras de Elisabeth B. Duarte
(2007). A autora afirma que, frente aos diversos formatos televisivos existentes e
considerando as informações obtidas, é interessante discutir os processos em que a televisão
se utiliza de sua capacidade manipulatória em relação à realidade dos indivíduos, satisfazendo
seus anseios mais urgentes por meio das propagandas ou de qualquer programação que está
preocupada em mostrar aquilo que lhe é considerado útil, onde suas ideologias são
consideradas na maioria das vezes.
Para compreendermos esse sistema é fundamental que nos aproximemos do conceito
de modos de endereçamento através da contribuição de Elizabeth Ellsworth (2001). Sua obra
trata do referido conceito como sendo utilizado para estudos do cinema, onde é possível
compreender a forma como a produção prepara seus materiais e para que público se dirige.
Deste modo, é possível fazer um diálogo entre essas informações com o processo de ensino
que nos instiga a pensar quem é o educando e quais os seus interesses fluentes.
Esses conhecimentos prévios serviram de suporte teórico para que pudéssemos
analisar o Programa Telecurso 2000 em sua essência, considerando sua esfera discursiva
instaurada nas teleaulas, a qual mostra saber quem é o seu público assistente e o que estes
esperam saber em determinado momento sendo possível, até o momento, perceber as
concepções de aluno, de professor e de ensino de História do referido programa.
Neste sentido, consideramos que para o Telecurso o aluno está à mercê do professor,
pois o mesmo deve fixar o conteúdo e abarcar um conhecimento imenso diante de poucos
minutos de apresentação do programa. O que mais intriga é a estagnação do aluno diante do
aprendizado, onde não participa dos questionamentos, ou seja, o próprio apresentador é que
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define o que o aluno talvez queira saber por meio da frase: “Você deve estar se perguntado
que...”
O professor possui uma diversidade de personagens que a ele são atribuídos. Ele ora é
jornalista, ora é apresentador, narrador, ator, entre outras personificações que podem surgir
para representá-lo. Esses são os contribuintes para a transmissão do conhecimento que
podemos entender como uma série de “curiosidades” apresentadas durante o programa, pelo
tempo exímio em que são trabalhados os conteúdos.
Quanto às concepções de ensino, percebemos a divisão da teleaula em três momentos:
o primeiro é uma mobilização para adentrar ao tema que será estudado; o segundo é o
desenvolvimento do estudo, o qual é trabalhado de forma linear, utilizando-se de relações de
causa e efeito; e o terceiro é o momento da revisão onde é abarcado tudo o que foi
apresentado na devida teleaula, porém, sem incentivar o aluno a ir em busca de outras fontes
para reflexão. Quando isto é feito, o programa incentiva a estudar nos próprios materiais do
Telecurso. Por meio destas considerações é possível perceber a permanência da visão
tradicional de história linear e dos grandes feitos onde é necessária uma fixação dos conteúdos
abordados.
No site do Telecurso são apresentadas as metodologias utilizadas para sua produção,
onde é possível visualizar que o mesmo esclarece sua inspiração nas práticas de Paulo Freire,
Jean Piaget, Dom Helder Câmara e Célestin Freinet, porém não foi possível perceber esta
relação já que durante a análise realizada percebeu-se um distanciamento das ideias
apresentadas pelos pensadores.
Freire, através da Pedagogia da Autonomia nos apresenta propostas de práticas
pedagógicas que objetivam o desenvolvimento da autonomia dos educandos, valorizando e
respeitando sua cultura e seus conhecimentos empíricos junto a sua individualidade.
Piaget nos leva a perceber a colaboração da semiótica – que pode ser compreendida
como uma ciência que estuda como o ser humano interpreta os vários elementos da linguagem
utilizando seus sentidos e quais reações esses elementos provocam –, sendo que suas
descobertas tiveram grande impacto na pedagogia ao demonstrar que a transmissão de
conhecimentos é uma possibilidade limitada. Vem de Piaget a ideia de que o aprendizado é
construído pelo aluno e é sua teoria que inaugura a corrente construtivista.
A educação embasada na esperança foi defendida por Dom Helder Câmara, que
almejava a transformação da sociedade defendendo que a educação deveria ser popular
atingindo todas as camadas da mesma. Sua experiência foi a transmissão de aulas
radiofônicas, que acreditamos ser a inspiração pronunciada pela programação do Telecurso.
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Freinet em sua “pedagogia do trabalho” mostra a sua preocupação com a formação de


um ser social, atuante no presente. A base das suas propostas de ensino são as investigações
sobre o modo de pensar da criança e a construção de seu conhecimento. Para ele é
fundamental, para a aprendizagem, que haja a interação entre aluno/professor.
Sinalizando a fragilidade destes aspectos em relação ao programa Telecurso, surgiu o
interesse de averiguar a sua contribuição no que tange o estudo da cultura afro-brasileira e da
África, através da décima teleaula do Ensino Fundamental de História, considerando a sua
obrigatoriedade por meio das ações afirmativas que entenderam a necessidade desta
abordagem diante das situações problemáticas que se instauram em nossa sociedade. Quando
nosso olhar se volta a esse grupo social, normalmente está impregnado de estereótipos que
necessitam de um rompimento com esses arquétipos, questão norteadora deste artigo.

O ensino da cultura afro-brasileira e as ações afirmativas

O Brasil, no início do século XXI, começa a avançar rumo ao aprofundamento da


democracia, buscando com isso a superação das desigualdades sociais e raciais. Neste
contexto engajaram-se as instituições de ensino as quais devem abraçar essa nova situação
que emerge dos direitos democráticos, sociais e raciais, reformulando seus currículos e
ampliando suas práticas pedagógicas em busca da inclusão dos deveres legais.
Desta forma, ainda que sutilmente, podem ser observadas algumas mudanças no que
tange ao estudo das temáticas sobre a história e cultura africana e a sua fundamental
importância na formação da sociedade brasileira, por meio da criação da Lei n. 10.639/03 que
alterou o texto da LDB, tornado obrigatório o ensino da história africana nas escolas
brasileiras:
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo
da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB) decretava que as temáticas


referentes à história do Brasil abordadas nas escolas deveriam considerar os estudos sobre a
contribuição das diferentes etnias e culturas como as indígenas, africanas e europeias para a
formação do país. Desde então muitos debates têm sido observados nos sistemas de ensino,
favorecendo ou não esta inserção temática. Posteriormente, esses elementos foram
condensados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de 1998, da área de História, que
apresenta como um de seus principais objetivos do Ensino Fundamental a necessidade de

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educador e educando em valorizar e reconhecer o pluralismo do patrimônio sociocultural


brasileiro, assim como os de outras classes sociais, contrariando qualquer tipo de
discriminação. Os PCN sugerem uma série de conteúdos que podem ser utilizados como
norteadores do ensino. Um exemplo é a apresentação da seguinte proposta temática, que
abrange o estudo das
culturas tradicionais dos povos africanos, colonialismo e imperialismo na África,
descolonização das nações africanas, Estados Nacionais africanos, experiências
socialistas na África (Angola, Moçambique etc.); apartheid e África do Sul, fome e
guerras civis na África, guerras entre as nações africanas, povos, culturas e nações
africanas hoje (PCN, 1998, p. 71).

Os Parâmetros também abrangem os estudos das semelhanças e diferenças entre as


culturas, assim como as permanências da maneira de pensar, viver e fazer dos indivíduos e as
suas relações na sociedade, o que torna visível seu patrimônio para a posteridade.
Mesmo diante de tantas obrigações e sugestões, embora havendo algumas lacunas
contextuais, o estudo da cultura afro-brasileira e africana não vinha sendo totalmente adotado
pelos professores e encontrava-se ainda empobrecido nos materiais didáticos. Em função
disso, foram formuladas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCN), a
partir da percepção das fragilidades discutidas até o momento, mostrando a necessidade
dessas diretrizes voltadas para projetos aplicados “na valorização da história e cultura dos
afro-brasileiros e dos africanos, assim como comprometidos com a de educação de relações
étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem conduzir” (DCN, 2004, p. 9).
A Lei Federal 10.639/03, já referida no início deste capítulo, chama a atenção para a
necessidade de refletir sobre as inquietações a respeito da temática em estudo, é importante
destacar os movimentos negros que tiveram uma importante parcela de contribuição para
essas mobilizações legais. Embora a composição da lei seja sinteticamente apresentada, são
esclarecidas as devidas obrigatoriedades referentes ao estudo em questão, como o fato de que
a tarefa de especificar e regulamentá-la é atribuição do Conselho Nacional de Educação.
Quanto ao processo de ensino não há como esquecer que o estudo do tema em questão
vinha fugindo da realidade cultural, humana e social em que os africanos estavam inseridos
desde a saída de seu território até pisarem em solo brasileiro, sendo escravizados por longos
anos. Com isso, a história da escravidão por muitas vezes foi confundida com a história da
África.
Neste sentido, percebendo essas permanências, há de se pensar que o percurso de
normatização consecutiva parece ainda desconhecido e/ou negligenciado entre os educadores

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ou seria mesmo um descaso ante a educação? Isto nos remete ao que tanto se fala atualmente:
a questão de superação do racismo na sociedade em que muitos grupos estão engajados nesta
luta constante. A atitude do Estado neste sentido é fundamental na busca do desenvolvimento
da prática dessas ações afirmativas que intentam dar um novo rumo nas desigualdades
históricas que, neste caso, permeiam sobre a população afro-brasileira, pois de modo geral a
educação interfere de maneira significativa na concepção de representações sociais que
tendem a estigmatizar o objeto de estudo.
É necessária uma análise mais aprofundada na questão legal que apresenta
dificuldades na sua implementação, porém é possível destacar alguns problemas evidentes
como aqueles relacionados à formação do professor e o material didático especializado.
É percebido o esforço de universidades na tentativa de atender às determinações
legais, ao buscarem adequar o processo de formação e de especialização dos profissionais da
educação, mas ainda há muito a ser feito. A carência de qualificação profissional tem
atrasado, pode-se dizer, o êxito da progressão dessas ações afirmativas, mesmo que o
Ministério da Educação esteja empenhado em proporcionar programas de formação
continuada para os professores da área na tentativa de suprir essas necessidades.
Diante da dificuldade de apoio em materiais didáticos, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), juntamente com o MEC, lançaram
uma coleção que trata exclusivamente sobre história da África, com o objetivo de amparar os
educadores no ensino desta temática nas instituições educativas, colaborando para a
implantação da lei. A íntegra da coleção encontra-se disponível na página da Unesco,
podendo ser acessada por todos aqueles que almejem esse suporte. As obras encontram-se
divididas em temas como educação e diversidade das relações raciais.
Outro questionamento importante refere-se a quem cabe a obrigatoriedade desse
ensino, apenas à disciplina de História? Onde se encaixa a interdisciplinaridade nesta
situação? Certamente esta é uma prática trabalhosa, sendo necessários posicionamentos e
conhecimentos tornando temas considerados isolados em questões universais. Neste sentido,
Ivani Fazenda aponta que:

A interdisciplinaridade vem sendo utilizada como “panaceia” para os males da


dissociação do saber, a fim de preservar a integridade do pensamento e o
restabelecimento de uma ordem perdida. Antes que um “slogan”, é uma relação de
reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assumida
diante do problema do conhecimento, ou seja, é a substituição de uma concepção
fragmentária para unitária do ser humano. É uma atitude de abertura, não
preconceituosa, em que todo o conhecimento é igualmente importante. Pressupõe o
anonimato, pois o conhecimento pessoal anula-se diante do saber universal. É uma
atitude coerente, que supõe uma postura única diante dos fatos, é na opinião crítica

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do outro que se fundamenta a opinião particular. Somente na intersubjetividade,


num regime de copropriedade, de interação, é possível o diálogo, única condição de
possibilidade da interdisciplinaridade (FAZENDA, 2011, p. 10).

De imediato é possível perceber que não é um trabalho fácil, porém de fundamental


importância para a educação e para a sociedade, pois o nosso objeto de estudo, por exemplo,
não é uma questão da área de história somente, mas uma questão social, que deve e precisa ser
trabalhada nas diferentes disciplinas curriculares. A autora, contudo, acrescenta que é preciso
um olhar atento à prática interdisciplinar, que pode não ter um objetivo comum no ensino:
“Há o perigo de que as práticas interdisciplinares se tornem em práticas vazias, produtos de
um modismo em que, por não se ter nada que discutir, discute-se em mesas-redondas”
(FAZENDA, 2011, p. 84).
Como conclusão provisória, faz-se necessário compreender que a interdisciplinaridade
é possível, as leis obrigam, a especialização e os materiais didáticos são acessíveis, a
historiografia recente ampara de forma satisfatória as pesquisas sobre o tema, logo, não há
motivos para que o ensino da cultura afro-brasileira e africana seja negligenciado entre os
educadores.

O ensino da cultura afro-brasileira no contexto do Telecurso 2000

Considerando que a educação vai além dos muros da escola, como no caso já relatado
dos cursos disponibilizados pela modalidade EaD, é preciso salientar que as obrigatoriedades
curriculares são exatamente as mesmas no que tange ao ensino da cultura afro-brasileira,
principalmente no âmbito da educação básica.
Tendo presente o Projeto Conectividade, que analisa a contribuição do Programa
Telecurso 2000 para a educação, é pertinente buscar a presença dos aspectos supracitados no
desenvolvimento da décima aula no Ensino Fundamental, que apresenta como tema A luta dos
escravos, apresentado em apenas treze minutos e quarenta e dois segundos. No primeiro
momento foi possível perceber uma riqueza em detalhes passíveis de serem estudados
dialogando com a obrigatoriedade do ensino sobre a temática, assim como analisando o seu
contexto com a historiografia atual que possui outro olhar sobre o estudo africano.
Antes de tudo se faz necessário destacar que a historiografia tradicional brasileira
apresenta o estudo dos afro-brasileiros baseado na aprendizagem relacionada ao escravismo,
negligenciando questões voltadas ao pertencimento deste grupo social à sociedade,

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permanecendo a negação como sujeitos e sendo os mesmos reduzidos à condição de escravo.


Perante essas afirmações podemos acompanhar o pensamento de Correa quando afirma que:

O negro foi frequentemente associado na historiografia brasileira à condição social


do escravo. A menção ao primeiro remete-se quase automaticamente à imagem do
segundo. Negro e escravo foram vocábulos que assumiram conotações
intercambiáveis, pois o primeiro equivalia a indivíduos sem autonomia e liberdade e
o segundo correspondia – especialmente a partir do século XVIII – a indivíduo de
cor. Para a historiografia tradicional, este binômio (negro-escravo) significa um ser
economicamente ativo, mas submetido ao sistema escravista, no qual as
possibilidades de tornar-se sujeito histórico, tanto no sentido coletivo como
particular do termo, foram quase nulas (CORREA, 2000, p. 87).

Com isso é possível dizer que, de modo geral, o ensino da história e da cultura afro-
brasileira se resume, muitas vezes, à comemoração alusiva ao “Dia da Consciência Negra”, no
qual se realizam alguns trabalhos abrangendo os assuntos a ele ligados. No restante do ano,
contudo, percebe-se um reduzido interesse em abordar o tema. Esta metodologia de ensino é,
de certa forma, antiquada, não sendo capaz de desenvolver criticidade alguma nos educandos,
e nela é possível perceber a permanência do positivismo remanescente nos diversos modos de
ensino, fazendo com que os alunos desconheçam a história dos africanos no Brasil.
Este contexto se faz presente na teleaula em análise, onde esta é apresentada de uma
maneira um tanto relevante, pois o tema do encontro dos movimentos afro-brasileiros trata da
participação do negro na formação do país. Aos nossos olhos parece um importante destaque
no que diz respeito a este assunto, porém há muitos aspectos a serem observados, os quais
serão analisados a seguir.
Durante as falas da teleaula, onde aparecem um homem “negro” e um taxista “branco”
que dialogam durante o trajeto do local em que acontece um encontro de movimentos afro-
brasileiros até o hotel onde se hospeda o cliente, é possível perceber sucessivamente a
expressão “negro-africano” para se referir a qualquer situação relacionada com a história
africana e afro-brasileira, deixando transparecer exatamente o contrário do que objetiva a
teleaula, que trata da participação dos negros na formação do Brasil, negando o seu
pertencimento à nação brasileira no transcorrer dos anos. É importante destacar que toda a
teleaula se passa neste táxi, com algumas contribuições de apresentadores: narrador, repórter e
historiadores. Imagens e mapas são utilizados, os quais são de fundamental importância para
análise e também para situação geográfica dos assistentes.
Ao tratar do tráfico negreiro relacionado com outros imigrantes vindos para o Brasil,
há uma disparidade de ideias, pois afirma que o negro foi trazido à força para trabalhar no
Brasil, algo que não se contesta. Porém, ao comparar com os outros imigrantes (japoneses,

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alemães e italianos, por exemplo) a teleaula reforça que estes vieram por vontade própria, ou
seja, não tinham motivos justificáveis ou não foram forçados a irem em busca de outra nação,
buscar amparo.
Em meio à apresentação há a participação da professora de uma universidade que
tenta desmistificar a questão da violência durante a escravidão. De forma clara ela explana
que a violência não era uma barbaridade desmedida, pois os senhores equilibravam os
castigos: no pelourinho apenas um escravo era açoitado para que todos os outros aprendessem
na pele daquele que sofria. A professora ainda acrescenta que a simples presença do chicote e
do pelourinho já era suficiente para exemplificar o domínio senhorial sobre os seus escravos
que fugiam e lutavam contra esse domínio. É interessante refletir sobre esse paradoxo, pois se
o castigo horrendo era um exemplo para todos, mesmo assim os escravos lutavam e fugiam,
ou seja, o sofrimento de um no pelourinho não resolvia o problema das resistências.
Neste contexto é possível pensar apenas no castigo físico como forma de sofrimento?
Nada mais abalava esses escravos? E os direitos humanos, a cidadania já que eram
coisificados e vendidos como mercadoria? Quanto à questão desumana Saint-Hilaire, em sua
obra Viagem ao Rio Grande do Sul, descreve que:

O Sr. Chaves é considerado um dos charqueadores mais humanos, no entanto ele e


sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem
tremer diante dos seus patrões. Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos,
que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de
água e a prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do
que esta criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa a vida
tristemente apoiado à parede e é, frequentemente, martirizado pelos filhos do patrão.
Quando anoitece, o sono o domina, e quando não há ninguém na sala, põe-se de
joelhos para poder dormir; não é esta casa a única onde há este desumano hábito de
se ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se, quando necessário
(SAINT-HILAIRE, 1997, p. 119-120).

É impossível não perceber o estado de comoção do autor ao tratar desta criança que
desde pequena sofre e não tem perspectiva de se ver livre do seu destino. Destaca-se a
importância deste relato, pois mostra o tratamento a que eram dispensados os negros,
sinalizando ainda que o viajante demonstrava antipatia com os africanos e descendentes. Com
isso é fácil observar que o castigo físico não foi a única forma de violência contra os escravos,
portanto ao analisar este quadro é necessário aprofundar todos os aspectos presentes ao
contexto em estudo, caso contrário, parecerá que as situações desumanas em que os escravos
viviam não eram de nada sofridas.
Durante a análise da teleaulas, foi abordada a questão da fuga dos escravos que com
muita dificuldade despistavam o feitor, se livravam do capitão do mato e fugiam para um
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quilombo. Com isso eram procurados e quando precisavam se esconder nas cidades, o
apresentador destaca que eles se “misturavam com outros negros e mulatos libertos que
circulavam pelas ruas”. Durante esta fala é utilizado como pano de fundo um teatro
representando a bolsa de valores onde todos os homens usavam gravatas, logo eram
parecidos. Esta situação é relacionada com os escravos fugidos que se misturavam com
pessoas parecidas com eles, porém a encenação da bolsa de valores é realizada sem a presença
de negros.
Logo é abordada a situação das revoltas realizadas pelos “negros-africanos” que
lutavam em busca da liberdade e de imediato partindo para a contribuição destes no que trata
das palavras: religião, música e culinária. Martinho da Vila é o protagonista deste quadro
apresentando inicialmente uma série de palavras de origem africana que enriqueceram o
vocabulário brasileiro, diferenciando o português falado em Portugal e o português falado no
Brasil. É interessante quando ele trata da religião ao destacar que os afro-brasileiros fizeram
“outra religião”, como se ao chegar ao Brasil inventassem a nova religião antes desconhecida
no seu país de origem. Quanto à música, ele considera que neste aspecto é que o negro
influenciou muito, destacando que o Brasil é o país mais rico quando se trata de música
devido a sua variedade de ritmos. Ao falar da culinária há uma confusão de informações, visto
que Martinho se vê perdido em suas falas precisando retomar suas anotações para dar
prosseguimento no assunto. Neste aspecto é ressaltada a culinária, a cozinha baiana, mas e os
afro-brasileiros situados nos outros estados do Brasil, onde são enquadrados neste contexto?
Mas segundo o cantor o que contribuiu fundamentalmente foi a língua, ou seja, os outros
aspectos são menos importantes.
Voltando ao táxi, entre conversas, o diálogo se refere à busca pela liberdade. É aí que
o passageiro (negro), em sua interação com o taxista (branco), destaca que no século XIX a
liberdade passou a ser um direito de todos, onde a escravidão começou a ser combatida no
Brasil e nos países da América. Neste caso, é importante salientar que o processo não foi tão
simples assim, visto que até mesmo depois da assinatura da Lei Áurea, no final do século
(1888), ainda muitos negros viviam sob o regime da escravidão. Amparando este pensamento
Conforto escreve que:
Tamanho era o poder dos escravocratas que atitudes antiescravistas, já comum em
Londres, em Boston, no Chile ou no México, durante a primeira metade do século
XIX, eram simplesmente desdenhadas no Brasil. O escravo continuava sendo visto
como instrumento de trabalho desprovido de inteligência e até de humanidade
(CONFORTO, 2001, p. 36).

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Durante a revisão, bloco que acontece em todas as Teleaulas, é retomado tudo o que
foi apresentado. Neste espaço nota-se uma expressão destoante quando o apresentador resume
a maneira como os escravos foram trazidos nos navios negreiros e como eles se “adaptaram
criativamente a sua nova vida no Brasil”. A palavra criativamente pode ser definida como: de
forma inusitada e inovadora. Creio que os africanos foram corajosos ao enfrentar o Brasil
escravista lutando pela sua liberdade.
No momento em que o táxi chega ao seu destino e o passageiro paga a sua despesa, é
feita uma relação preconceituosa quanto ao trabalho e a liberdade no momento em que o
taxímetro fica “livre”. O taxista expressa que “eu é que tenho que ir à luta pra não ficar livre”,
ou seja, quem é livre não trabalha ou não gosta de trabalhar e neste sentido os escravos podem
ser considerados preguiçosos já que queriam ser livres.
No findar do vídeo há uma encenação de despedida do taxista e do “negro- africano”:
o primeiro expressa que “para saber mesmo o que foi a luta dos escravos, o melhor é estudar
só assim você vai ter uma noção verdadeira da importância dos negros na história do nosso
país”. Neste sentido é preciso destacar que não há uma indicação de estudo para apoio de seus
assistentes e no mais as fontes pictóricas presentes na Teleaula não aparecem como, por
exemplo, a imagem abaixo realizada por Jean Baptiste Debret.
É imprescindível o destaque das fontes utilizadas ainda mais por entender que História
é uma disciplina que exige a presença tanto de referências bibliográficas como as fontes
consultadas para elaboração de qualquer trabalho, pois desta forma o leitor, assistente ou
estudante é instigado a ir em busca de um conhecimento mais aprofundado desenvolvendo a
sua autonomia.
Jean Baptiste Debret - açoite público

Fonte: http://www.historia.seed.pr.gov.br/

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Considerações finais

O Projeto Conectividade é de fundamental importância para que possamos nos


aproximar primeiramente da análise do programa Telecurso 2000 em momento anterior a este
trabalho. Neste artigo foi possível realizar uma análise reflexiva de como o referido programa
tem se preocupado com o cumprimento da Lei 10.639/03 no desenvolvimento de suas
teleaulas.
Durante este processo intentamos para a realização de uma leitura pontual das ações
afirmativas por meio do diálogo entre a LDB, os PCN, a Lei 10.639 e os DCN, buscando
refletir sobre a obrigatoriedade dos estudos sobre a cultura africana e afro-brasileira nas
instituições de ensino, analisando como esta progressão vem acontecendo em nosso país.
Foi possível perceber que, mesmo em passos lentos, as referidas ações vêm tomando
corpo frente às necessidades do sistema educacional brasileiro. Porém, é preciso destacar que
ainda se faz necessária a formação constante dos profissionais do ensino para que possam
assumir suas posições como agentes da história, fazendo com que seus alunos também sintam
essa necessidade. Para isso as Universidades, assim como os órgãos governamentais, têm
procurado suprir essas lacunas e não se pode desprezar os movimentos realizados em prol de
um ensino mais justo quanto ao tema em discussão.
Quanto à análise da décima aula do ensino fundamental de história do Telecurso 2000
entendemos que, embora a intenção seja atender à obrigatoriedade do tema em questão, o
distanciamento da historiografia atual ainda é considerável. Percebemos a necessidade de
aportes teórico e metodológicos que são capazes de fundamentar os aspectos abordados pelo
programa. Quanto aos teóricos mencionados no primeiro capítulo foi possível perceber o
distanciamento das ideias dos mesmos com a formatação do programa. Um exemplo é quanto
à autonomia defendida por Paulo Freire que, através da sua Pedagogia da Autonomia, nos
propõe o desenvolvimento de práticas pedagógicas consideradas capazes de desenvolver a
autonomia nos aprendizes.
É preciso desconstruir o estudo da história da cultura afro-brasileira e africana somente
pelo aspecto da escravidão, buscando novos conhecimentos amparados pela historiografia que
seja capaz de quebrar os elos do preconceito quanto a este grupo social que ainda luta por seus
direitos e respeito. Também possibilitando a percepção sobre a permanência de estereótipos e
falsas imagens no que tange aos africanos, afro-brasileiros e a África.
É preciso, de resto, otimismo para crer que em breve o distanciamento entre
educandos e a África seja apenas de forma geográfica e que possamos realmente entender a
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 267-281, Jul. 2015
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fundamental colaboração dos afro-brasileiros e dos africanos para a construção do nosso país,
desde o século XVI até os dias atuais.

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Projeto Pomervida: vivências pedagógicas a partir de aspectos culturais locais

Carla Rejane Redmer Schneid1


Carmem G. Burgert Schiavon2

Resumo: O presente trabalho, objetiva-se discutira importância do desenvolvimento pedagógico ligado às


práticas culturais, no sentido de que a vida humana é construída nas vivências cotidianas. Abre-se, assim, outro
campo, onde as práticas pedagógicas tomam como ponto de partida as expressões da cultura, inspirados no modo
de vida das pessoas. Com base nisso, pretende-se relatar experiências vivenciadas em uma Escola da zona rural
do município de São Lourenço do Sul (RS), que utiliza como uma das metodologias de ensino e reconhecimento
cultural, o seu próprio modo de vida, a sua cultura. Com base neste exemplo prático, pretende-se identificar, por
meio de ações práticas já desenvolvidas, a importância de atividades pedagógicas diferenciadas em que o aluno
começa a se perceber como sujeito histórico, tendo em vista que ao encontrar na História, os referenciais
culturais da comunidade estudada e dos sujeitos envolvidos, propondo-se ações metodológicas capazes de
apontar saberes e princípios de pertencimento, através da cultura local.
Palavras-chave: Ensino, cultura local, pertencimento, diversidade.

Abstract: The present work, the objective is to discuss the importance of the pedagogical development linked to
cultural practices, in the sense that human life is constructed in everyday experiences. Opens thus another field
where the pedagogical practices take as its starting point the expressions of culture, inspired by the lifestyle of
the people. Based on this, we intend toreport experiences in a rural school of São Lourenço do Sul (RS), which
uses as one of the teaching methodologies and cultural recognition, his own way of life, their culture. Based on
this practical example, we intend to identify, through practical actions already developed, the importance of
differentiated learning activities in which the student begins to understand how historical subject in order to find
that in history, the cultural references of community studied and subjects involved, proposing methodological
actions capable of pointing knowledge and principles of belonging, through the local culture.
Keywords: education, local culture, belonging, diversity.

A título de introdução

As práticas escolares, principalmente, no que se refere ao ensino de História, têm sido


alvo de discussões e sugestões de atividades direcionadas ao cotidiano do aluno. Nesse
sentido, surge a importância do desenvolvimento pedagógico ligado às práticas culturais, no
sentido de que a vida humana é construída nas vivências cotidianas. Abre-se, assim, outro
campo, onde as práticas pedagógicas tomam como ponto de partida as expressões da cultura,
inspirados no modo de vida das pessoas. Com base nisso, pretende-se, neste trabalho, relatar
experiências vivenciadas em uma Escola da zona rural do município de São Lourenço do Sul

1
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: carlaredmer@bol.com.br
2
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: cgbschiavon@yahoo.com.br

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(RS), que utiliza como uma das metodologias de ensino e reconhecimento cultural, o seu
próprio modo de vida, a sua cultura.

A escola tem entre suas propostas pedagógicas o desenvolvimento de um projeto onde


os alunos são estimulados a compreender aspectos da sua própria cultura a partir da história
de seus antepassados, amparados principalmente na sua cultura, nos seus costumes, no seu
modo de viver. Para tanto, a Escola estruturou o “Projeto Pomervida”, que é desenvolvido
com base na pesquisa, no registro e nos relatos e informações dos sujeitos que compõem a
comunidade do entorno da escola. Cabe salientar que estas pesquisas, registros e relatos são
feitos pelos próprios alunos, sob a orientação dos professores das diversas áreas de ensino,
tratando-se assim, de um projeto interdisciplinar, constituído por atividades desenvolvidas em
várias disciplinas que compõem a grade curricular. Assim, com uma proposta diferenciada, o
Projeto Político Pedagógico da Escola encontra-se amparado na apropriação da história e da
cultura local, na valorização do trabalho rural e no respeito às demais culturas, ou seja, na
valorização à diversidade. Em termos de resultados, já foram realizados diversos trabalhos de
pesquisa envolvendo os alunos, suas famílias e a comunidade em geral e entre os pontos
fortes do projeto estão as atividades realizadas anualmente, que se caracterizam pela escolha
de um tema gerador do qual os alunos são instigados a pesquisar durante alguns meses, sendo
o seu resultado apresentado a toda a comunidade, em uma festa. Neste ano, 2014, esta
atividade está em sua terceira edição com o tema “Colônia em Festa: revivendo as festas e
celebrações da cultura local”. No ano passado, o tema foi o trabalho rural, com o título “Mãos
que trabalham, vidas que brotam” e, em 2012, foram abordados os aspectos culturais
relacionados à culinária típica da região com o título “Memórias e sabores da colônia”.
As duas primeiras edições caracterizavam-se, principalmente, pela pesquisa e coleta de
dados sobre os respectivos temas, documentados através de fotos. As fotos registradas pelos
próprios alunos foram o ponto de destaque da festa na comunidade. Desta maneira, registra-se
a própria cultura, com imagens do seu cotidiano, a partir do olhar de quem se sente
pertencente a esta cultura. Neste ano, houve uma pequena mudança na metodologia de
trabalho e de apresentação, sendo que a pesquisa dos alunos baseou-se em entrevistas com
pessoas de mais idade da comunidade do entorno da escola. Registrou-se, dessa forma,
através de textos coletivos construídos pelos alunos e por professores responsáveis, um
histórico das festas mais tradicionais ainda preservadas na comunidade. Os textos foram
expostos para a comunidade, organizados em banners, juntamente com fotos antigas, também
coletadas pelos alunos, representando as festas relatadas. Além disso, cada turma de alunos

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ficou responsável por uma apresentação artística, por meio da organização de teatro ou
dramatizações, representando as festas estudadas.
Com base nestas informações, pretende-se discutir a importância destas atividades
pedagógicas diferenciadas em que o aluno começa a se perceber como sujeito histórico, haja
vista que ao encontrar na História, os referenciais culturais da comunidade estudada e dos
sujeitos envolvidos, a Escola propõe uma ação metodológica capaz de apontar saberes e
princípios de pertencimento.

Relações entre ensino de história e o Projeto Pomervida

O ensino de História deve estar voltado para as relações do presente com o passado,
tornando a realidade mais próxima da perspectiva imediata dos jovens em processo de
aprendizagem, de modo que eles possam estabelecer suas relações com a realidade entre
passado e presente, desenvolvendo a consciência histórica. Além disso, o ensino de História
passa a ser compreendido como a consciência histórica no sentido prático da vida, tendo em
vista que o trabalho com a disciplina de História deve estar voltado para uma abordagem
sociocultural, que identifique as subjetividades das relações humanas, não se restringindo a
uma mera narração e apresentação da verdade “absoluta” construída historicamente.
Ademais, por meio da prática docente compreendem-se aspectos que devem ser
levados em conta na relação ensino-aprendizagem de modo que esta seja de qualidade e
desperte o interesse dos alunos. Entre estes aspectos, destaca-se a atenção voltada para a
cultura local. A cultura é o produto da ação humana e as relações sociais; por conseguinte,
guardam relação com a realidade; sendo que este tem presente, passado e futuro.
Compreender esse tempo humano no tempo histórico é entender que o mesmo está em
movimento, transformando-se a partir da ação.
Assim, para se trabalhar a História a partir da experiência de vida do aluno faz-se
necessário uma perspectiva teórico-metodológica que fale da vida das pessoas, das memórias
e das lembranças dos sujeitos de todos os segmentos sociais. Em outras palavras, é preciso dar
voz às histórias desses sujeitos, que sempre estiveram excluídos dos conteúdos ensinados.
Neste sentido, produzir ações de pesquisa e ensino relacionadas à cultura em que uma
comunidade escolar está inserida torna-se uma atividade primordial para que a educação faça
sentido para estes sujeitos, tendo em vista que ao encontrar na História os referenciais
culturais da comunidade estudada e dos sujeitos envolvidos, propõe-se uma metodologia
capaz de apontar saberes e princípios de pertencimento histórico.

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Dentro deste contexto, a história local tem sido apontada como necessária para o
ensino por possibilitar a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre
presente nos vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho e lazer – e,
principalmente, por situar os problemas significativos da história do presente.
Entre as diversas definições de cultura, Candau afirma que ela é o “compartilhamento
de práticas, crenças, lembranças produzidas em uma determinada sociedade” (CANDAU,
2011, p. 11). Ou, ainda, de acordo com Hall (1997), os seres humanos possuem sistemas de
significados que são utilizados para codificar, organizar ou regular sua conduta em relação
aos outros, dando sentido às nossas ações. O autor afirma ainda que os sistemas ou código de
significado:
[...] nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomadas em seu
conjunto, eles constituem nossas “culturas”. Contribuem para assegurar que toda
ação social é “cultural”, que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um
significado e, neste sentido, são práticas de significação [...] (HALL, 1997, p. 1).

Os produtos que se formam ou surgem a partir de uma cultura são bens culturais, pelos
quais se podem compreender e identificar a cultura de um povo, em determinado lugar e
momento histórico. Esses bens culturais podem ser materiais (objetos concretos) ou imateriais
(que não se materializam no tempo). Como afirma Pelegrini, “são um ‘legado vivo’ que
recebemos do passado, vivemos no presente e transmitimos às gerações futuras, reunindo
referenciais identitários, memórias e histórias, essenciais para a formação do cidadão”
(PELEGRINI, 2009, p. 22).
Nesse sentido, a memória passa a ter também um papel significativo, pois, ao mesmo
tempo em que proporciona a coesão entre os indivíduos com a mesma tradição e história,
também evidencia as diferenças culturais que podem favorecer a aceitação da diversidade
como um valor essencial para o convívio em sociedade (PELEGRINI, 2009, p. 24).
Desse modo, a memória passa a ser a base da identidade (BITTENCOURT, 2011, p.
168), sendo através dela que se chega à história local. De acordo com Pierre Nora, a memória
é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente
evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento.
Além da memória das pessoas, escrita ou recuperada pela oralidade, existem também
os “lugares de memória”, lugares de amplo significado, pois representam algum sentido
material, simbólico ou funcional para determinados indivíduos. Esses lugares de memória
podem ser representados por monumentos, praças, edifícios públicos ou privados, mas que
necessariamente constituem-se como bens culturais para a comunidade. Os lugares de
memória, para Pierre Nora, são lugares em todos os sentidos do termo, vão do objeto material

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e concreto, ao mais abstrato, simbólico e funcional, simultaneamente e, em graus diversos,


esses aspectos devem coexistir sempre. Nesse sentido, o autor afirma que:
Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos,
só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar
puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de
antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um
minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação simbólica, é, ao
mesmo tempo, um corte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente,
a um lembrete concentrado de lembrar (NORA, 1993, p. 21-22).

São, portanto, locais materiais e imateriais onde se cristalizaram a memória de uma


sociedade, de uma nação, locais onde grupos ou povos se identificam ou se reconhecem,
possibilitando existir um sentimento de formação da identidade e de pertencimento.
Ao se tratar da memória, torna-se necessário também trabalhar a noção de identidade.
Esta depende da memória para se constituir, visto que a busca da identidade individual ou
coletiva identifica o indivíduo e a sua sociedade, haja vista que os saberes e as práticas de
determinado grupo social são reproduzidos mediante recordações do passado. Nesta direção, a
historiadora Sandra Pesavento apresentou o conceito de identidades enquanto representação
social como um campo de pesquisa na historiografia, conforme se destaca abaixo:

[...] a identidade é uma construção simbólica de sentido, que organiza um sistema


compreensivo a partir da ideia de pertencimento. A identidade é uma construção
imaginária que produz a coesão social, permitindo a coesão social, permitindo a
identificação da parte com o todo, do indivíduo frente a uma coletividade, e
estabelece a diferença. A identidade é relacional, pois ela se constitui a partir da
identificação de uma alteridade. Frente ao eu ou ao nós do pertencimento se coloca a
estrangeiridade do outro (PESAVENTO, 2005, p. 89).

Para Castells, o conceito de identidades estrutura-se como o “processo de construção


de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais
interrelacionados, o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”
(CASTELLS, 1999, p. 22).
Observa-se, então, que existe uma relação clara e direta entre a identidade do
indivíduo com a cultura e a consequente valorização deste modo de viver, despertando um
sentimento de pertencimento. Este diz respeito à apropriação dos bens culturais pela
comunidade, com a finalidade de “retomar emoções, costumes, modos de viver e formas de
entender o mundo que se entrelaçam às reminiscências do tempo pretérito e corroboram para
a construção das identidades e coletivas no presente” (PELEGRINI, 2009, p. 35).
Ao se compreender este mecanismo, pode-se desenvolver um ensino de História que
tenha como objetivo primeiro a busca desta identidade do aluno, do seu pertencimento através
da identificação de sua cultura, para que a partir daí se faça esta conexão com a História

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propriamente dita, prevista como conteúdos programáticos dos Parâmetros Curriculares


Nacionais (PCNs), para que ele mesmo possa se compreender como sujeito da história.
Tornando-se este o ponto de partida, merecem destaque também, as temáticas
determinadas pela historiografia, para serem utilizadas no estudo da cultura de um
determinado grupo. De acordo com Barros (2008), a História Cultural abre esta possibilidade,
pois:
[...] as concepções que se acoplam mais habitualmente à de “cultura” para constituir
o universo de abrangência da História Cultural são as de “linguagem” (ou
comunicação), “representações”, e de “práticas” (práticas culturais realizadas por
seres humanos em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo, o que
em última instância inclui tanto as “práticas discursivas” como as “práticas não-
discursivas” (BARROS, 2008, p. 59).

Essa nova forma de interpretar os fatos busca fugir da História historicizante, uma
história que era mais fechada e não mantinha diálogo com as demais Ciências Humanas.
Abriu-se assim o campo para a problematização do social, como também, para com as
pessoas comuns, seus modos de viver, sentir e pensar a sua cultura. Nesse sentido, Barros
afirma que “toda vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura.
Ao existir, qualquer indivíduo já está produzindo cultura automaticamente, sem que para isto
seja preciso ser um artista, um intelectual ou um artesão” (BARROS, 2005, p. 3).
Para a Nova História Cultural, as práticas culturais envolvem todo o espaço da
experiência vivida e a cultura permite ao indivíduo pensar essa experiência, ou seja, criar
formulações de vivência. Todo simbolismo é fator de identidade e toda a cultura é cultura de
um grupo: “história é, ao mesmo tempo e indissociavelmente, social e cultural” (PROST,
1998, p. 135).
De acordo com as noções complementares de “práticas” e “representações” elaboradas
por Chartier, a cultura (ou as diversas formações culturais) poderia ser examinada no âmbito
produzido pela relação interativa entre estes dois polos. Assim, “tanto os objetos culturais
seriam produzidos ‘entre práticas e representações’, como os sujeitos produtores e receptores
de cultura circulariam entre estes dois polos, que de certo modo corresponderiam
respectivamente aos ‘modos de fazer’ e aos ‘modos de ver’” (BARROS, 2005, p. 5).
Desse modo, surge um interesse no estudo dos sujeitos produtores e receptores de
cultura e, nesta perspectiva, os objetos culturais passam a ser produzidos nesse meio assim
como os sujeitos produtores e receptores de cultura circulam entre esses dois polos
correspondendo aos “modos de fazer” e aos “modos de ver”. Assim, abrem-se as
possibilidades para o estudo dos usos e costumes e dos modos de viver em sociedade.

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Da mesma forma que houve esta mudança no campo historiográfico pode-se dizer que
ela se estende também aos modos de ensinar História ou pelo menos possibilitam a sua
discussão, sabendo-se que nem sempre estes novos modos de ensino são postos em prática de
imediato, sendo que na maioria das vezes, ocorre certa resistência às mudanças por parte dos
profissionais da área.
De qualquer forma, a mudança somente é possível na medida em que se abrem
possibilidades para um processo de ensino-aprendizagem mais dinâmico, que se aproxima da
realidade do aluno e faz algum sentido para a sua vida, despertando nele um interesse maior.
De acordo com a historiadora Margarida Dias de Oliveira, é necessário que se supere a
visão de que a História, como disciplina, representa o resgate de todo o passado e de todas as
sociedades, herança das concepções positivista e metódica preponderantes na escrita da
História no século XIX e que permaneceu na história escolar em grande parte do século XX,
como se constata, a seguir:
A necessidade de superação dessa visão é coerente, tanto com um consenso entre os
profissionais de História sobre a natureza dos estudos históricos quanto com
concepções de educação que entendem o aluno como sujeito do seu conhecimento e
que, portanto, têm por finalidade básica a construção de posturas investigativas por
parte dos estudantes (OLIVEIRA, 2010, p. 9).

Dessa maneira, percebe-se a necessidade de uma integração do aluno com o seu meio,
onde ele se possa se tornar um participante ativo na construção dos conhecimentos históricos,
para que estes façam algum sentido na sua vida.
Com a proposta de (re)significação do olhar do educando, através da sua
problematização a fim de que este perceba o seu entorno como construído historicamente e
que, portanto, como agente histórico, suas escolhas constituem uma construção histórica. De
acordo com Barros, “o ensino-aprendizagem da história local configura-se como um espaço-
tempo de reflexão acerca da realidade social e, sobretudo, referência para o processo de
construção das identidades desses sujeitos e de seus grupos de pertença” (BARROS, 2013, p.
303).
Dessa forma, a História local ganha significado e importância no Ensino Fundamental,
exatamente pela possibilidade de construir no sujeito o pensamento sobre a história individual
e da coletividade, apresentando as relações sociais que ali se estabelecem com a realidade
mais próxima.
Levando-se em consideração a formação histórica do município de São Lourenço do
Sul, mais especificamente a zona rural, tem-se como característica principal a colonização por
imigrantes alemães e pomeranos. Esta característica está presente também no entorno da

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Escola Municipal de Ensino Fundamental Martinho Lutero, na localidade denominada Santa


Augusta, colonizada pelos imigrantes a partir do ano de 1858 (ROCHE, 1969, p. 28).
As famílias dos alunos que frequentam a Escola Martinho Lutero são, em sua grande
maioria, descendentes de imigrantes pomeranos e mantêm várias características culturais
passadas há várias gerações, entre elas, destaca-se a agricultura familiar em pequenas
propriedades.
A princípio era uma agricultura de subsistência, com uma produção prioritariamente
ao consumo na própria propriedade, sendo comercializado somente o excedente. Com o
passar do tempo, esta produção aumentou e começou a ser exportada para várias regiões do
Estado, graças ao porto que existia às margens do Rio São Lourenço. A vila portuária adquiriu
importância econômica, pois funcionava como entreposto comercial entre a colônia e as
demais cidades lacustres do Rio Grande do Sul (HILSINGER, 2007, p. 89).
Com a modernização da agricultura brasileira, houve a necessidade de buscar novas
estratégias de reprodução social. Neste contexto, a fumicultura se afirmou como grande
alternativa de renda para os pequenos agricultores do município. Apesar destas mudanças no
âmbito econômico da comunidade aqui estudada, as características culturais se mantêm entre
estas gerações, principalmente, no que se refere aos modos de viver, aos costumes, às festas,
às tradições entre outros.
Neste sentido, o propósito do Projeto Pomervida serve, justamente, para valorizar esta
cultura, demonstrando que todo sujeito é parte da história, reconhecendo-se como tal. A
escola passa, então, a voltar seu olhar para este sujeito que construiu sua história, a sua
maneira, mostrando a sua importância num contexto histórico mais global.
O Projeto Pomervida está sendo desenvolvido na escola desde o ano de 2008, data da
inauguração da escola, com diversas atividades já desenvolvidas. Entre as atividades
desenvolvidas ao longo dos anos, merecem destaque a pesquisa dos alunos referentes aos
temas propostos e o envolvimento de toda a comunidade nestas atividades. A partir do ano de
2012, além das propostas que já eram trabalhadas, tem-se o acréscimo de mais uma atividade
de forte relevância para o Pomervida na Escola e na comunidade: a festa em homenagem ao
Dia dos Pais, com a apresentação da pesquisa feita pelos alunos referente a algum tema
relevante para a comunidade.
Como já foi citado anteriormente, a primeira edição da festa teve como tema a
culinária local, com o objetivo de que os alunos pesquisassem e apontassem as comidas
típicas da cultura da região. Com o título “Memórias e Sabores da Colônia”, os alunos
relataram, através de fotografias, as receitas que as mães e avós preparam para o dia a dia,

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muitas vezes passadas de geração em geração, mantendo viva a sua cultura e as tradições.
Nestas fotografias, foi possível perceber diversos aspectos da cultura local, entre elas, a
diferenciação que ainda fazem entre a comida preparada para o dia a dia, muito mais simples
e a comida “de domingo”, como é chamado o cardápio mais elaborado para o final de semana,
ou as comidas “de festa”, preparadas somente em momentos especiais. Além disso,
identificou-se também a diferenciação, para a mesma situação, da louça e utilitários que são
utilizados nos dois casos.
A culminância da pesquisa foi a festa preparada com vários pratos típicos servidos
para os convidados, inclusive, sobremesas, a partir das receitas trazidas pelos alunos ou até
mesmo preparadas por eles. Além disso, foi feita a exposição das fotos dos alunos, com a
apresentação dos pratos que são servidos em suas casas.
Já, no segundo ano da nova proposta do Pomervida, realizada em 2013, novamente os
alunos foram desafiados a pesquisar e registrar seu cotidiano, desta vez com o tema o trabalho
rural e o título “Mãos que trabalham, vidas que brotam”. A proposta era de que os alunos
registrassem, através de fotografia, o trabalho no campo, desde as atividades feitas somente
para a subsistência bem como a atividade de maior renda da família. Deste modo, foram
registrados desde o preparo da horta familiar, a coleta de ovos para consumo próprio, o trato
com os animais da propriedade, bem como o cultivo e a produção do fumo, que hoje é a
principal fonte de renda da grande maioria das famílias da região. Além disso, houve registros
dos pais que exercem outras profissões, que não a agricultura como, por exemplo, os
transportadores (motoristas), comerciantes, pastores e outros.
Pode-se perceber, na observação das fotos feitas pelos próprios alunos, uma mudança
de olhar para a captação da essência da pesquisa, ou seja, desta vez tornou-se muito mais fácil
para os alunos perceberem o objetivo do projeto: valorizar o modo de vida rural, a cultura.
Do mesmo modo em que foi feito na primeira edição, as fotos foram expostas para a
comunidade na festa em homenagem aos pais, havendo um grande interesse por parte da
comunidade, pela leitura das fotos.
Neste ano de 2014, a proposta foi a sensibilização dos alunos e da comunidade através
da identificação de suas festas e celebrações tradicionais, culminando com a atividade
intitulada “Colônia em Festa: Revivendo as festas e celebrações da cultura local”. As festas e
celebrações são classificadas como patrimônio imaterial da comunidade, pois são constituídas
historicamente por este grupo, promovendo sua identificação e sentimento de pertencimento.
São eventos coletivos em que se comemora ou rememora algum acontecimento.
Geralmente, são organizadas com antecedência e envolvem muitas pessoas, às vezes

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 282-294, Jul. 2015


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diferentes grupos da sociedade. De acordo com Thum (2009), as festas e suas


particularidades,
[...] representam um espaço de socialização, de unificação das pessoas, famílias,
onde a ‘solidariedade se faz presente’. Trata-se de uma forma de diálogo, proposta
pelas manifestações populares, entre aqueles e aquelas que dela participam, seja
como atuantes ou como público. É uma maneira de, como sujeito, comunicar um
jeito de ser só seu, que, a partir dessa sua postura, pode vir a englobar um número
significativo de pessoas ao seu redor (THUM, 2009, p. 73).

Em geral, as celebrações se repetem a cada ano, ou de tempos em tempos e são


passadas de geração para geração. Podem ter significado religioso, podem ser de caráter
cívico, ou relacionadas aos ciclos produtivos (como as “festas da colheita”, do “milho”, do
“fumo”); podem ser formas de marcar momentos especiais da vida de uma pessoa junto à sua
comunidade, como acontece nos rituais de passagem para a vida adulta (como a confirmação
ou as festas de casamento). Enfim, são inúmeras as motivações de uma comunidade para se
organizar e celebrar (IPHAN, 2014, p. 16).
Festas são momentos sociais nos quais os homens reafirmam laços de solidariedade,
praticam a sociabilidade, se harmonizam, se unem e, assim, constroem suas identidades
sociais. Nessas ocasiões, as atividades humanas voltam-se para a representação da existência
de um grupo, revelando seus traços culturais (CRUZ; MENEZES; PINTO, 2008, p. 16). Em
outras palavras, nos festejos, as práticas do passado chegam ao presente revelando
características culturais que identificam o lugar por meio de um aparato de bens simbólicos.
Nessa perspectiva, falar de manifestações culturais populares significa falar das
formas de expressão da cultura de um povo, que se traduzem por meio das festas e todo o
aparato simbólico que as acompanha e particularizam um lugar: rituais, canções, danças,
comidas, indumentárias, etc. Nessas manifestações, relações sociais são produzidas, ajudando
a manter a identidade.
Da mesma forma, na contemporaneidade, existe uma maior interação com outras
culturas, produzindo novas identificações “locais”. Estas identificações estão ligadas à
valorização de manifestações populares que englobam traços e características particulares que
distinguem cada região, tendo como base as suas raízes e tradições, recuperando assim, o
sentido de sua história. Ao mesmo tempo, estas identificações têm como referência as
características globais da modernidade, que envolvem relações culturais diversas.
A proteção, a preservação, a revitalização, a interpretação e a promoção do patrimônio
cultural têm sido pontos fundamentais para a valorização das culturas locais, contribuindo
também para o fortalecimento das identidades.

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292

Desse modo, o trabalho de pesquisa realizado pelos alunos da E.M.E.F. Martinho


Lutero, ancorado ao Projeto Pomervida, proporciona a salvaguarda de aspectos culturais
vividos pela comunidade, promovendo o sentimento de valoração do que faz parte da sua
história de vida e de seus antepassados, permitindo o seu autorreconhecimento cultural.
Para a edição de 2014, como tratava de festas e celebrações, utilizou-se uma
metodologia de apresentação um pouco diferenciada das outras edições, mantendo-se a
pesquisa como atividade fundamental para a coleta dos dados. Novamente foram utilizadas as
fotografias; contudo, desta vez, deu-se prioridade às fotografias antigas, ou seja, fotografias
registradas em festas ocorridas no “tempo dos pais, dos avós ou até mesmo bisavós”,
guardadas por várias gerações, fazendo-se um comparativo com as festas atuais, identificando
assim características que ainda se mantém ou que já não existem mais. As fotos e os relatos da
pesquisa foram reunidos em banners, expostos para a comunidade. Além disso, houve
dramatizações dos próprios alunos representando as festas e celebrações pesquisadas.
Ao tratar de temas referentes à cultura local, busca-se enfatizar que todo espaço ou
lugar possui uma significação de existência que o torna singular, definidor de uma identidade
que vem constituir o pertencimento e identidades. Tais práticas exercidas no cotidiano da
comunidade vêm consolidar referência a um grupo ou a uma comunidade.
Segundo Pelegrini (2009), ao estimular a comunidade a apropriar-se de seus bens
culturais, neste caso, através de seus modos de produzir, de comer ou de comemorar, estará se
retomando emoções, costumes, modos de viver e formas de entender o mundo que se
entrelaçam às reminiscências do passado e colaboram para construção das identidades
individuais e coletivas do presente. A preservação destes momentos e espaços de convivência
coletiva contribuem para os afetos que estimulam o sentido de pertencimento da comunidade.

Considerações finais

Com base no exposto, percebe-se que o projeto Pomervida está proporcionando o


desenvolvimento da pesquisa na escola, bem como a ação de registro da cultura local. Além
disso, fica claro que muitas ações e projetos desenvolvidos na escola que, à primeira vista
parecem muito simples, têm um conteúdo muito profundo e se tornam muito significativos no
contexto pedagógico, o qual visa reconhecer a importância da cultura para a formação da
cidadania de seus alunos. Ademais, tem-se observado também uma mudança de
comportamento entre os alunos. Percebem-se manifestações de orgulho e reconhecimento e a
consciência da necessidade de salvaguarda de vários aspectos culturais vividos por eles na

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 282-294, Jul. 2015


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comunidade, fato que não ocorria na fase inicial de execução do projeto. Ao despertar este
sentimento de valoração do que faz parte da sua história de vida e de seus antepassados nota-
se, também, um maior entendimento do significado de diversidade, ou seja, ao se auto-
reconhecer culturalmente, despertando o sentimento de conhecimento da importância das
outras culturas, diferentes da sua. A cultura “do outro” passa a ser entendida como
“diferente”, mas que merece o mesmo respeito que a sua própria cultura.

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Ser “Amélia” não me completa, me esvazia: um debate sobre gênero no Ensino de
História

Ketre Michele Rodrigues Kucharski1

Resumo: O presente artigo refere-se aos resultados parciais da minha dissertação do Mestrado Profissional em
História, Pesquisa e Vivências de Ensino – Aprendizagem. Nesse sentido, destaca-se também que este trabalho é
uma interpretação dos resultados de uma pesquisa sobre a narrativa dos estudantes a cerca do gênero feminino a
partir de produções cinematográficas brasileiras utilizadas no ensino da disciplina de História. Portanto,
conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais as temáticas de gênero e sexualidade são previstas como temas
transversais e devem ser trabalhados em sala de aula. Afinal, essas são questões necessárias de serem
problematizadas com os estudantes, pois dizem muito da forma como vivemos e das relações que estabelecemos
na atualidade. Além disso, visando a divulgação entre os alunos sobre a nossa sétima arte e proporcionando
também a valorização do cinema nacional, foram selecionados os seguintes filmes para a análise de gênero:
Acorda Raimundo, Acorda!, Vida Maria, Filhas do Vento e Olga. Sendo que o projeto foi aplicado no ano letivo
2013, na turma do nono ano B (oitava série), composta por seis meninas e quatro meninos com uma faixa etária
entre 14 e 16 anos de idade, estudantes da Escola Municipal Cidade do Rio Grande (CAIC/FURG) localizada na
zona oeste da cidade do Rio Grande/RS. Por fim, baseado na exposição e interpretação dos filmes, nas
realizações das tarefas e nas 40 entrevistas feitas por mim através da história oral com os aprendizes, foi possível
analisar como esses alunos percebem o gênero feminino na nossa atualidade.
Palavras-chave: Educação, Ensino de História, Gênero Feminino, Filmes.

Abstract: This article refers to the partial results from my Master´s degree thesis on History, Research and
Teaching Experiences – Learning. Therefore, We must highlight this article is an interpretation of the results of a
research on the students´ narrative about the female gender based on Brazilian Cinematographic productions
used for History classes. Thus, according to the National Curriculum Standards, the themes of gender and
sexuality are foreseen as transversal themes and they must be worked out in the classroom. After all, these are
necessary questions to be problematized with the students because they say a great deal of the way we live and
relationships we establish nowadays. Besides all this, we focus on the disclosure of the Seventh Art among the
students and the valorization of the national cinema. The following movies have been selected to gender
analyzes: “Acorda Raimundo, Acorda!”, “Vida Maria”, “Filhas do Vento” e “Olga”. The Project has been
conducted during the school year of 2013 in the “Ninth Year B (eighth grade)” with a group composed of six
girls and four boys and their age group being from fourteen to sixteen years old at CAIC/FURG ( a city-run
school in Rio Grande – RS). Finally, based on the exhibition and interpretation of the movies, assignments and
forty interviews made by me through oral history with the learners, it was possible to analyze these students
realizing the female gender nowadays.
Key-words: Education, History Teaching, Female Gender, Movies.

Introdução

Na minha trajetória enquanto educadora percebo uma grande carência, nos conteúdos
dos livros didáticos de História, referente ao gênero feminino e suas contribuições na história
1
Mestranda em História (Profissional) Universidade Federal do Rio Grande. Contato:
kmkucharski@hotmail.com

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015


296

da humanidade. Portanto, torna-se fundamental aprofundarmos em sala de aula e nos demais


espaços escolares os debates sobre as questões de gênero. Mas principalmente em todas as
instâncias da nossa sociedade é necessário rompermos o silêncio sobre o tema gênero.
Nessa perspectiva, é fundamental destacar que apesar das conquistas adquiridas com o
passar das décadas, infelizmente ainda percebo que nossa atual sociedade continua tão
preconceituosa e machista como quando eu ainda era uma criança. Nesse sentido,
principalmente através da mídia, frequentemente nos deparamos com cenas de negros,
mulheres e homossexuais sendo vítimas de violência verbal e física.
Diante disso, desafiada por essas adversidades ainda muito presentes no nosso
cotidiano, busquei algumas estratégias para refletir em conjunto com meus alunos sobre as
questões de gênero. Em meio ao contexto apresentado e objetivando aprofundar
significativamente o debate sobre gênero, torna-se necessário refletirmos sobre determinadas
problemáticas: e possível trabalhar as questões de gênero no ensino de História? Dialogar
sobre o tema gênero pode contribuir na formação da consciência histórica dos aprendizes?
Podem os alunos desenvolver uma maior sensibilidade em relação ao machismo enfrentado
pelas mulheres na sociedade atual? Como os filmes selecionados para a abordagem do tema e
utilizados como recurso didático podem contribuir para a aprendizagem dos alunos?
Nesse sentido, este artigo é uma interpretação dos resultados parciais de uma pesquisa
sobre a narrativa dos estudantes a cerca do gênero feminino a partir de produções
cinematográficas brasileiras utilizadas no ensino da disciplina de História.

O CAIC e a sua História: um Espaço onde Construo a minha Prática Docente em um


Infinito Aprendizado

No dia 18 de maio de 1994 foi inaugurado o CAIC “Cidade do Rio Grande” que está
localizado na cidade do Rio Grande, no km 8 da Avenida Itália, no interior da Universidade
Federal do Rio Grande- FURG.
Por meio da união entre a Universidade e a Prefeitura do Rio Grande com um sistema
de gestão compartilhada foi construída a Escola Municipal de Ensino Fundamental Cidade do
Rio Grande, a qual compõe o complexo CAIC.
Através de um acordo estabeleceu-se a responsabilidade da Prefeitura do Rio Grande
com os recursos humanos e a merenda escolar desse local, enquanto coube a Universidade,

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015


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através da Pró-Reitoria de Extensão da FURG, a responsabilidade no gerenciamento


administrativo do CAIC.
Portanto, a partir do sistema organizacional do Centro de Atendimento Integral à
Criança e ao Adolescente (CAIC) percebe-se que a origem deste local difere-se de muitos
espaços escolares. E de acordo com Silva (2014):
O CAIC/FURG constituía um espaço de inquietações, de inconformismo com a
situação socioeconômica dos seus sujeitos. Um espaço de lutas, de buscas e de
sonhos. Lutas sociais, busca pela cidadania e sonhos coletivos, todos concentrados
em um espaço físico que era visto, pela comunidade, como uma possibilidade de um
futuro melhor. (SILVA, 2014, p. 57).

Partindo dessa perspectiva, o Centro de Atendimento Integral à Criança e ao


Adolescente- CAIC/FURG permanece atendendo mais de dez comunidades economicamente
carentes, entre elas, os bairros Castelo Branco I e II, Nossa Senhora de Fátima, Vila Maria e
Leônidas. Salienta-se também que essas comunidades enfrentam os mais variados problemas
sociais, tais como: habitação inadequada, saúde pública precária e a falta de saneamento
básico.
O Centro de Atendimento Integral à Criança e ao Adolescente - CAIC/FURG atende
cerca de 890 estudantes através da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de
Jovens e Adultos (EJA). Para tanto, necessita de uma equipe formada por mais de 120
profissionais que, preocupados com a situação socioeconômica dos sujeitos, procuram atender
as necessidades da comunidade escolar. Esta instituição tem como missão proporcionar:
[...] um saber útil a toda a comunidade escolar e a sociedade através de uma proposta
pedagógica que acompanhe as necessidades tecnológicas e sociais, valorize a
historicidade do aluno, a realidade local, respeite a diversidade, as necessidades
cognitiva, psicofísica e social, bem como revele seus princípios éticos e humanos
universais, no propósito de contribuir na constituição de um sujeito cidadão dotado
de habilidades e competências cognitivas, capaz de gerir conflitos, valorizar a paz,
seja em sua dimensão pessoal, social ou profissional. (PROJETO..., 2011, p. 28).

Destaca-se que o centro possui 17 salas para o Ensino Fundamental, sala de


informática, atualmente desativada em função de obras necessárias para ampliação do prédio,
biblioteca, apoio pedagógico, ginásio de esporte, horta comunitária, teatro, entre outros.
Também possui um espaço voltado para a área da saúde através da Unidade Básica da Saúde
(UBS), que possui procedimentos de enfermagem, gabinete dentário, consultórios médicos e
promovem práticas educativas voltadas à saúde da comunidade escolar.
Nesse mesmo centro, contribuindo no atendimento da saúde e educação, encontra-se o
Núcleo de Desenvolvimento Humano (NDH), onde atuam profissionais da área da assistência
social, da psicologia, psicopedagogia e pediatria. Além disso, com o objetivo de assegurar o

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015


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cumprimento dos Direitos Humanos aos sujeitos envolvidos, também existe nesse mesmo
local o Centro de Referências em Direitos Humanos (CRDH).
Vários projetos também são desenvolvidos vinculados ao Programa Mais Educação e
possibilitando uma geração de renda aos estudantes, também existe o projeto “Acreditar é
Investir” que seleciona os alunos candidatos através de uma análise socioeconômica e perfil
dos mesmos para trabalhar num estágio remunerado nos mais variados setores da escola ou da
universidade. Nesse sentido, podemos perceber que este local procura promover a inclusão
social das comunidades localizadas próximas ao centro CAIC/FURG.
A partir do contexto apresentado, sobre a escola Municipal Cidade do Rio Grande
(CAIC/FURG) é possível perceber a diversidade cultural que compõe esse ambiente que em
maio deste ano completou 20 anos de lutas, conquistas e sonhos.
Destaca-se também que é nesse mesmo local, diferente de certos espaços escolares por
estar localizada no interior da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e pelos seus
projetos executados em parceria com essa mesma instituição, que atuo na rede Municipal de
Educação como professora da disciplina de História desde o ano de 2009.
Dessa forma, na busca por novos saberes, através da minha formação continuada,
assim como, a partir da compreensão e interação com o ambiente em que estou inserida como
professora pesquisadora, anseio em minhas práticas educativas desenvolver aulas que possam
proporcionar dinâmicas relacionadas com as experiências dos estudantes.
Nesse sentido, minha proposta de trabalho em sala de aula é aproximar os conteúdos
da disciplina de História com o cotidiano vivenciado pelos alunos. Para tanto, é necessário
levar em consideração os conhecimentos prévios dos estudantes sobre os assuntos abordados
na classe, escolher métodos que possam facilitar o processo de aprendizagem e que também
permitam uma interação efetiva desses estudantes com o tema abordado.
Vale salientar que, foi principalmente devido às características peculiares desse local
que pratica reuniões semanais de formação com professores, que possui uma infraestrutura
diferente de muitos espaços escolares e busca promover a inclusão social da comunidade
escolar, que escolhi este local para desenvolver o meu projeto sobre a análise de gênero. Além
disso, devido à diversidade existente entre os sujeitos inseridos nos ambientes escolares,
torna-se necessário aumentarmos o debate sobre gênero nesses locais.

Os Desafios na Disciplina de História na Educação Contemporânea

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015


299

No Brasil, sabemos que em muitos momentos, os educadores precisam enfrentar o


desrespeito e a desvalorização da profissão de professor. Porém para nós educadores da
disciplina de História também é necessário superarmos uma visão predominante e distorcida
sobre a pouca ou nenhuma necessidade de se aprender esta disciplina, pois para muitos alunos
a disciplina de História significa apenas o estudo do passado, sem possuir nenhuma relação
com o presente e o futuro. Mas, sobre as relações entre passado, presente e futuro, conforme
apresenta Schmidt (2009):
Ensinar história hoje pressupõe ter o tempo como significante para que o sujeito, a
partir de temporalidades diversas, possa perceber que aprender história é reconhecer
em outros tempos e sujeitos experiências, valores e práticas sociais. Principalmente
é proporcionar ao aluno reconhecer-se enquanto sujeito do seu tempo e com isto
conseguir que ele reconheça outros sujeitos em tempos diversos. (SCHMIDT, 2009,
p. 106)

Nesse sentido, infelizmente, podemos perceber que vários estudantes se desconhecem


enquanto sujeitos históricos de seu tempo, entendendo a História apenas como algo vinculado
ao passado, realizada somente por grandes homens, “os heróis da História” e
consequentemente, distantes da sua realidade.
Nesse sentido, permaneceu durante muitos anos e ainda permanece em algumas
pessoas a ideia de que a História é inalterável e foi construída somente por “grandes homens”
da elite dominante. Sendo que esses mesmo “heróis” também foram os únicos responsáveis
pela criação da Nação, assim como também seria de sua total responsabilidade os cuidados
com futuro destino do país.
Completando essa problemática, através dos métodos de memorização muitos alunos
apenas decoram essa matéria que permanece na inexistência de sentido. Segundo as análises
de Rüsen (2010): “A metodologia de instrução na sala de aula ainda é um problema
importante. [...], o ensino de História em sala de aula tem tendido a se tornar uma atividade
mecânica”. (RÜSEN, 2010, p. 33). Portanto, cabe ao professor buscar novas metodologias
que estimulem de forma mais atrativa a construção do saber histórico desses alunos.
Porém, infelizmente muitos educadores apenas transmitem os extensos conteúdos de
História, encontrados nos livros didáticos, aos alunos de forma pronta e acabada,
desconsiderando assim todo um processo de elaboração do conhecimento por parte dos
alunos. “Uma das críticas mais pertinentes sobre os métodos tradicionais focaliza a
insuficiência deles na formação intelectual ou no desenvolvimento do espírito crítico dos
alunos”. (BITTENCOURT, 2009, p. 230.)
Cabe aos educadores romperem com o modelo de aulas tradicionais, onde os
professores, muitas vezes por comodismo, apenas transmitem os conteúdos dos livros
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015
300

didáticos aos alunos, sem proporcionar uma aprendizagem autônoma. Conforme apresentam
os Parâmetros Curriculares Nacionais: História- PCNs (1998):
Os métodos tradicionais de ensino - memorização e reprodução – passaram a ser
questionados com maior ênfase. Os livros didáticos difundidos amplamente e
enraizados nas práticas escolares foram criticados nos conteúdos e nos exercícios
propostos. A simplificação dos textos, os conteúdos carregados de ideologias, os
testes ou exercícios sem exigência de nenhum raciocínio foram apontados como
comprometedores de qualquer avanço no campo curricular formal. (Parâmetros
Curriculares Nacionais: história, 1998, p. 28).

Nessa perspectiva, é necessário que os educadores busquem em suas aulas desenvolver


metodologias que estimulem os sujeitos envolvidos no ensino-aprendizagem a praticar o ato
de pensar historicamente. Conforme destaca Sobanski (2009):

De acordo com a perspectiva da Educação Histórica, os estudantes passaram a ser


compreendidos como agentes da sua própria formação, com ideias históricas prévias
sobre a História e com várias experiências, assim como o professor passou a ter um
papel de investigador constante, necessitando problematizar suas aulas em diversas
situações. Nesse sentido, ao contrário do que muitos acreditam, o professor também
é um pesquisador. Ele é o historiador que trabalha com documentos e elabora o
conhecimento em suas aulas de História. Nesse processo de cognição é a partir do
presente de cada um que o conhecimento sobre o passado acontece. (SOBANSKI,
2009, p. 11).

À vista disso, os professores precisam assumir a função de mediadores, procurando


sempre relacionar os fatos históricos com o tempo presente, contextualizando,
problematizando e destacando as permanências e rupturas históricas apresentadas em nossa
atual sociedade.
Dessa forma, as informações que os educadores passam aos educandos precisam ser
transformadas em conhecimento e este, por sua vez, deverá ser utilizado na vida prática do
aluno. Nesse processo, a disciplina de História precisa dialogar com as experiências vividas
pelos estudantes. Nesse sentido, conforme apresenta Rüsen (2010):

Somente quando a história deixar de ser aprendida como mera absorção de um bloco
de conhecimentos positivos, e surgir diretamente da elaboração de respostas e
perguntas que se façam ao acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela
ser apropriada produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação
cultural da vida prática humana. (RÜSEN, 2010, p. 44)

Sendo assim, minha pesquisa pretende analisar as possibilidades de aprendizagem


através do tema gênero nas filmografias, fazendo com que os estudantes percebam-se como
sujeitos participativos capazes de interpretar, questionar e relacionar a sociedade em que estão
inseridos com algumas questões apresentadas nos filmes trabalhados em sala de aula.

Na Busca por uma Educação Autêntica o Gênero como Proposta

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015


301

Ao analisarmos as instituições de ensino, sabemos que elas não apenas ensinam


conteúdos e produzem conhecimento, mas também potencializam as diversas relações sociais
dentro e fora desse espaço contribuindo no processo de formação do caráter dos indivíduos.
Conforme apresenta Guaracira Louro (2013): “O que fica evidente, sem dúvida, é que a
escola é atravessada pelos gêneros; é impossível pensar sobre instituição sem que se lance
mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e feminino”.
(LOURO, 2013, p. 93)
Diante disso, torna-se fundamental compreendermos primeiramente o conceito gênero.
Entretanto, também é necessário salientar que existem alguns conflitos entre determinadas
autoras na definição de gênero. Segundo Verbena Pereira (2004):

Para algumas autoras que trabalham com o conceito de “sistema sexo/ gênero” o
subtrato biológico existe e não pode ser esquecido ou driblado teoricamente. Para
outras, aquelas que se fundamentam no caráter simbólico arbitrário, o gênero deve
ser compreendido radicalmente como uma construção histórico/cultura, portanto,
arbitrária, desvinculada do biológico. Nesse contexto, há também teorias que
relativizam as duas posições anteriores [...] (PEREIRA, 2004, p. 178).

Assim, podemos identificar a complexidade existente na definição sobre o conceito


gênero. Entretanto, saliento a definição sobre gênero segundo as análises de Joan Scott, pois,
para essa autora, o gênero pode ser definido de duas formas:
O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações
de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre à
mudança nas representações de poder, mas a direção da mudança não segue
necessariamente um sentido único (SCOTT, 1989, p. 21).

Dessa forma, entende-se que homens e mulheres são produtos da sociedade em que
vivem, onde o gênero é uma construção social do indivíduo. Sendo que, em toda construção
social existe sempre uma relação de poder conforme também destaca a autora.
Nesse sentido, é necessário destacar que o gênero é uma representação social de uma
determinada época, portanto, pode ser modificada ao longo do tempo. Conforme apresentam
as pesquisas de Louro (2013):
Ao aceitarmos que a construção do gênero é histórica e se faz incessantemente,
estamos entendendo que as relações entre homens e mulheres, os discursos e as
representações dessas relações estão em constante mudança. Isso supõe que as
identidades de gênero estão continuamente se transformando (LOURO, 2013, p. 39).

Também é preciso salientar que cada vez mais esse tema vem ganhando espaço na
mídia, através de produções cinematográficas e novelas brasileiras. Assim como, nos meios
acadêmicos o assunto vem ganhando espaço e se destacando principalmente através de
pesquisas e publicações sobre o mesmo. De acordo com Nilson Dinis (2008):

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015


302

Diversidade sexual e de gênero também tem sido um tema constante na mídia,


através das novelas, do cinema, da publicidade, dos programas de auditório para
jovens, das revistas voltadas para o público adolescente etc., o que certamente tem
forçado a escola a debater o tema, trazido às vezes espontaneamente pelos/as
próprios /as alunos/as. No entanto, essa excessiva discursividade da mídia em
relação ao tema nem sempre tem resultado em uma diminuição dos sintomas de
sexismo e homofobia. [...] Pois, em um momento histórico em que mais se fala
sobre educar para a diferença, vivemos um cenário político mundial de intolerância
que se repete também no espaço da vida privada, em determinada dificuldade
generalizada em nos libertarmos de formas padronizadas de concebermos nossa
relação com o outro. (DINIS, 2008, p. 478-479).

Portanto, devido às diversas cenas de violência que constantemente presenciamos no


mundo em que nos cerca, urge cada vez mais a necessidade de dialogarmos, principalmente
nas instituições de ensino, sobre as relações de gênero existentes nas famílias, escolas, bairros,
comunidades e em todas as instâncias da sociedade.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais as temáticas de gênero e sexualidade
são previstas como temas transversais e devem ser trabalhados em sala de aula. Contudo,
infelizmente esses temas permanecem sendo inseridos nos espaços escolares, principalmente
através de projetos de curta duração ou como tema transversal, somente por alguns
professores mais preocupados com o significado de tais temáticas na vida dos educandos.
Além disso, torna-se necessário destacar que historicamente a construção do conceito
gênero originou-se para dar visibilidade às mulheres que por muito tempo se viram confinadas
ao espaço doméstico e submetidas à obediência dos homens de sua família. “A história das
mulheres e a história de gênero estão interligadas, este situa-se no campo relacional, porque
só se concebe mulheres se elas forem definidas em relação aos homens”. (COLLING, 2004,
p.28) E essa relação entre o masculino e o feminino em muitos momentos foi uma construção
social opressora para as mulheres.
Nesse sentido, ao longo dos séculos as mulheres estão lutando para conquistar seu
lugar na sociedade de forma igualitária aos homens, assim como, o seu reconhecimento
enquanto sujeitos históricos que também contribuem para a construção da história local,
nacional e universal.
Na busca de uma sociedade justa, que realmente garanta os direitos humanos para
todos os indivíduos, torna-se necessário aprofundarmos os diálogos sobre esse tema, evitando
assim, perpetuarmos visões equivocadas e preconceituosas sobre as relações de gênero.
Segundo as análises de Matos:
Há que se aprofundar a análise não apenas das experiências masculinas e femininas
no passado, senão também da conexão entre história passada e prática atual. Na
realidade, existem muitos gêneros, muitos “femininos” e “ masculinos”, e temos que
reconhecer a diferença dentro da diferença. Desse modo, mulher e homem não
constituem simples aglomerados; elementos como cultura, classe, etnia, geração e

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ocupação devem ser ponderados e intercruzados numa tentativa de desvendamento


mais frutífera, por meio de pesquisas específicas que evitem tendências a
generalizações e premissas preestabelecidas. Sobrevém a preocupação de desfazer
noções abstratas de “mulher” e “homem”, como identidades únicas, a - históricas e
essencialistas, para pensar a mulher e o homem como diversidade no bojo da
historicidade de suas inter-relações. (MATOS, 1997, p. 107).

De acordo com a autora precisamos compreender que não existe somente o gênero
feminino e o gênero masculino, principalmente devido às diversidades que compõem a
identidade de cada sujeito. Portanto não podemos generalizar indivíduos a partir de algumas
características sem analisar as inter-relações existentes entre homens e mulheres ao longo da
história.
E nesse sentido, trabalhar com o tema gênero na sala de aula também pode ser uma
possibilidade para a formação do saber histórico de nossos alunos conforme poderemos
perceber logo a seguir. Pois, segundo as pesquisas de Pinsky (2010):
Capacitar os estudantes para perceber a historicidade de concepções, mentalidades,
práticas e formas de relações sociais é justamente uma das principais funções da
História. Ao observar que as ideias a respeito de que é “ser homem” e “ser mulher”,
os papéis considerados femininos e os masculinos ou a condição das mulheres, por
exemplo, foram se transformando ao longo da história (como e por que), os alunos
passam a ter uma visão mais crítica de suas próprias concepções, bem como das
regras sociais e verdades apresentadas como absolutas e definitivas no que diz
respeito às relações de gênero. Também adquirem uma compreensão maior dos
limites e possibilidades dos seres históricos (estudantes entre eles), pois dentro das
determinações históricas também é possível fazer escolhas, mesmo em aspectos que,
por sua aparente ligação com a biologia, se mostram dificílimos de serem mudados
(e melhorados). (PINSKY, 2010, p. 32-33).

A partir dessas análises percebe-se a necessidade de trabalharmos em nossas aulas as


permanências ocorridas ao longo do tempo no que se refere às relações de gênero. Assim
como também apresentar as possibilidades de mudanças nas relações sociais enquanto sujeitos
históricos capazes de transformar o ambiente em que vivem a partir de escolhas.
Portanto, por entender que pouco ou quase nada é apresentado nos livros didáticos
sobre a ação feminina na história, busquei enquanto professora pesquisadora iniciar minhas
pesquisas selecionando as possíveis obras cinematográficas brasileiras que pudessem
proporcionar uma análise sobre o gênero feminino. Conforme destacam as pesquisas de
Coloda (1972):
O cinema é um poderoso instrumento de cultura e formação. Transmite ideias. Torna
próximo o mundo, divulga costumes, levando a conhecer a terra e as pessoas dos
diversos meios sociais. Cria laços entre cidades, povos, países. Dá um conhecimento
mais profundo dos homens , principalmente no plano psicológico, revelando pessoas
que sofrem, lutam, amam, fazendo o espectador participar de seus dramas. Põe o
mundo artístico ao alcance de todos, dando ocasião a que outras artes se expressem
por meio do cinema. Levanta grandes problemas da vida: o valor da existência, a
dignidade humana, a família, Deus etc. (COLODA, 1972, p. 13).

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Dessa forma, as informações apresentadas para os alunos a partir das imagens e dos
diálogos anunciados nos vídeos selecionados para a pesquisa podem propiciar momentos de
reflexão sobre os valores e sentimentos humanos, estimular o senso crítico sobre os problemas
sociais existentes e fomentar novas interpretações sobre o mundo em que estamos inseridos.
Destaca-se que foi um longo processo a escolha dos possíveis filmes nacionais que
poderiam ser utilizados em minhas pesquisas sobre gênero. Minha proposta sempre foi
trabalhar apenas com produções cinematográficas brasileiras, pois as mesmas facilitam a
compreensão dos alunos que em seu cotidiano utilizam-se do mesmo idioma apresentado
nessas obras, desconsiderando assim, a necessidade de empregar legendas nesses filmes.
Portanto, visando assim, valorizar nossa 7ª arte como um recurso didático viável,
porém pouco conhecido em diversos espaços escolares que preferem ainda trabalhar mais
com produções cinematográficas estrangeiras. Sendo que, apesar dessas obras possuírem
significativa qualidade artística, elas também acabam apresentando em suas histórias uma
cultura em muitos momentos bem diferente da nossa realidade.
Entretanto, ao longo dessa trajetória, fiz algumas modificações na minha proposta de
pesquisa e resolvi utilizar também curtas-metragens, os quais, pudessem se adequar melhor a
realidade da comunidade escolar, proporcionando assim, resultados mais significativos no
projeto.
Nessa mesma perspectiva, para uma melhor compreensão sobre a análise de gênero a
partir dos filmes selecionados por mim, também fez-se o uso da oralidade na pesquisa, ou
seja, através da metodologia da história oral foram realizadas as entrevistas pela educadora
com seus educandos. De acordo com MEIHY (1996):
[...] a história oral implica uma percepção do passado como algo que tem
continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado
no presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. Nesta medida, a
história oral só oferece uma mudança para o conceito de história, mas mais do que
isso, garante sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a
sequência histórica e a sentir-se parte do contexto em que vivem (MEIHY, 1996, p.
10).

Portanto, a partir dessa metodologia, foi possível proporcionar aos alunos outras
formas de refletir sobre a relação entre a sociedade em que estão inseridos, analisando as
experiências provenientes do cotidiano e os filmes assistidos e a participação deles no
processo de ensino e aprendizagem. Pois, “a história oral é concebida como um meio para a
(re)construção de identidades e de transformação social”. (FERREIRA, 2009, p.93)

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Posteriormente, na continuidade desse trabalho em desenvolvimento, também


poderemos perceber de forma mais abrangente os resultados dessa pesquisa através utilização
da história oral.
Nesse sentido, segundo as análises de Meihy (2013) destaca-se que: “assim, a história
oral ganha destaque entre as possibilidades de se pensar registros e estudos de grupos
silenciados de diversas maneiras e dos excluídos dos mecanismos de registro da história e
demais disciplinas” (MEINY, 2013, p.107).
Diante dessa observação, nas minhas análises sobre gênero foi possível perceber que a
metodologia da história oral realizada geralmente na biblioteca da escola Cidade do Rio
Grande (CAIC/FURG) gerou momentos de nervosismo em alguns estudantes que nunca
haviam participado de nenhum projeto sobre o assunto.
Entretanto, para a maioria dos educandos as entrevistas ocorriam de forma mais
descontraída, possivelmente representavam um momento de alívio por poderem falar sobre o
que vivenciam e o que pensam das atuais relações entre mulheres e homens, relacionando-as
com as histórias apresentadas nos filmes assistidos. Portanto, conforme salienta Verena
Alberti (2004):
Cabe ao pesquisador que trabalha com entrevistas de história oral atentar para a
preciosidade de unidades narrativas [...] porque elas são capazes de comunicar
experiências que vão além de trajetória particular de determinado entrevistado,
dando conta de formas de elaborar o mundo próprias a uma geração, [...]
(ALBERTI, 2004, p. 110-111)

Destaca-se, que para conseguir chegar aos resultados das minhas pesquisas sobre a
análise de gênero a partir de produções cinematográficas, após a realização de todas as 40
entrevistas, também foi necessário realizar a transcrição das mesmas.
Dessa forma, proporcionando uma maior percepção dos alunos enquanto sujeitos
históricos, para a realização da pesquisa sobre a análise de gênero foram selecionados quatro
filmes nacionais “Acorda Raimundo, Acorda” (1990), “Vida Maria” (2006), “Filhas do
Vento” (2005) e “Olga” (2004).
Ao serem selecionados e analisados os filmes, foi possível compreender que a
proposta inicial dos produtores dessas obras citadas acima não era especificamente abordar
apenas as questões sobre o gênero. E nesse sentido, também se verificou que estas quatro
obras cinematográficas utilizadas como elemento educativo proporcionavam um leque de
possibilidades no processo de ensino-aprendizagem em sala de aula. Conforme apresentam as
pesquisas de Napolitano (2011):
Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao
mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o

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lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma
obra de arte. Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados
e “difíceis”, os filmes têm sempre alguma possibilidade para o trabalho escolar. O
importante é o professor que queira trabalhar sistematicamente com o cinema se
perguntar: qual o uso possível deste filme? A que faixa etária e escolar ele é mais
adequado? Como vou abordar o filme dentro da minha disciplina ou num trabalho
interdisciplinar? Qual a cultura cinematográfica dos meus alunos? (NAPOLITANO,
2011, p. 11-12).

Partindo dessa perspectiva, o professor pesquisador que comprometer-se na seleção e


utilização do cinema em sala como um instrumento didático eficaz na educação
contemporânea estará possibilitando um aprendizado muitas vezes mais envolvente e
significativo aos seus educandos que estão acostumados com diversas tecnologias no seu
cotidiano. Nesse sentido, Souza (2010) em sua proposta de pesquisa sobre a utilização do
cinema nas aulas de História, destaca que:
[...] é a defesa da utilização dos filmes em sala de aula a partir de uma seleção crítica
do material por parte do professor, utilizando as produções cinematográficas como
fontes, textos geradores, ou objetos de análise, propondo análises destes filmes aos
alunos, como forma de inovar, diversificar, dinamizar, e tornar mais produtivas as
aulas de História. É o que se costuma chamar de “bom uso das ferramentas
audiovisuais”. (SOUZA, 2010, p. 26)

A partir dessa premissa, ao trabalhar com o cinema em sala de aula estamos


aproximando os alunos de uma aprendizagem mais lúdica. Além disso, “é por meio de suas
diversas linguagens que o cinema coloca à mostra as relações do adolescente com ele mesmo,
o outro, a sociedade o mundo” (PIMENTEL, 2011, p. 22).
Portanto, a utilização desse recurso pode auxiliar no processo de formação do caráter
dos adolescentes que através da interpretação das imagens apresentadas pelos filmes podem
enriquecer o seu senso crítico e moral. Também de acordo com as análises de Pimentel
(2011):
O cinema surge como oportunidade de colocar ao adolescente outros desafios que
atuem como filtros prazerosos no contato que ele tem com o mundo, estimulando
seu desejo de saber que depende de representações das práticas e não de discursos
distanciados da vida. Com o cinema, por meio dos efeitos que provoca, o
adolescente pode reconhecer, na medida em que for capaz de observar a si mesmo,
novas oportunidades e desejos de alterar suas condutas. (PIMENTEL, 2011, p. 183)

No entanto, ao pensarmos na utilização dos filmes históricos como um recurso


didático para o ensino da disciplina de História precisamos destacar alguns cuidados
necessários sobre certas informações apresentadas nessas produções cinematográficas.
Conforme as análises sobre a relação entre cinema e história, Napolitano (2011) destaca em
sua obra que:
Trata-se de refletir acerca da capacidade de reflexão histórica proposta pelo cinema,
a partir de sua linguagem própria, sem cobrar dos filmes uma encenação fidedigna
dos eventos ocorridos. É como material fragmentado, parcial e muitas vezes
anacrônico em relação aos eventos representados, que o filme pode se revelar como
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015
307

documento histórico da época e da sociedade que o produziu. (NAPOLITANO,


2011, p. 84).

Nesse sentido, de acordo com o autor citado acima, os filmes históricos utilizados no
ensino da disciplina da história são apenas a representação de um evento ocorrido
antigamente. Portanto, não devem ser apresentados como uma forma fidedigna do passado
para os nossos educandos.
Considerando o que foi aqui exposto até o momento, podemos perceber que
atualmente a utilização desse recurso didático em sala de aula oferece muitas possibilidades
no campo da educação, principalmente na disciplina de História. Conforme salienta
Bittencourt (2009):
Atualmente, com a contribuição de vários estudos interdisciplinares de
antropólogos, linguistas, sociólogos e demais teóricos da comunicação, os
historiadores podem dispor de uma metodologia mais abrangente para analisar tanto
filmes de ficção como documentários ou filmes científicos [...]. Com base na
proposta metodológica dos especialistas da área, podemos repensar um método de
ensino adequado sobre o uso de filmes na escola. Fica evidente que não existe um
modelo simplificado para introduzir os alunos na análise crítica da imagem
cinematográfica, mas pode-se destacar a impossibilidade de deter-se apenas na
análise do conteúdo do filme. É preciso ir além (BITTENCOURT, 2009, p. 375).

Nesse sentido, sabendo que o cinema funciona como um meio de representação ou


interpretação sobre determinado assunto, aprofundar o debate sobre o gênero nas aulas de
História, através de produções cinematográficas, torna-se no mínimo viável nas práticas de
ensino.
Para tanto, trabalhar com filmes como recurso didático e dialogando com a
metodologia da história oral pode contribuir significativamente nos resultados das
investigações sobre gênero. Dessa forma, de acordo com Barros (2012):
O cinema apresenta-se como tecnologia adicional para a história oral_ acrescentando
uma nova dimensão à coleta de depoimentos_ [...] A fonte fílmica, que, aliás, integra
ao discurso verbal as dimensões da visualidade e da oralidade, enquadra-se
compreensivamente no mesmo movimento de expansão de temáticas e de
possibilidades de novas fontes historiográficas. (BARROS, 2012, p. 60-61)

Por fim, é necessário destacar que os resultados dessa pesquisa sobre gênero feminino
a partir dos filmes utilizados como recursos didáticos na sala de aula e a participação das seis
alunas e dos quatro alunos também nas entrevistas realizadas através da metodologia da
história oral, serão melhores analisados na continuidade das minhas pesquisas. Nesse sentido,
também será possível refletir sobre qual foi o significado desse estudo sobre gênero na vida
desses educandos.

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308

Referências

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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 295-309, Jul. 2015


Tecendo Falas e Problematizando Olhares no Cotidiano Escolar: a Compreensão dos
Alunos do Ensino Médio no Estudo das Religiões Afro-Brasileiras

Lueci da Silva Silveira1

Resumo: Este artigo aborda uma reflexão e compreensão dos alunos do Ensino Médio da Escola Técnica Estadual
Senador Ernesto Dornelles no estudo das religiões afro-brasileiras. Como fundamentação teórica tratou-se do
conceito e importância do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e a discussão da Lei nº 10.639/03, um dos
balizadores da constituição de uma educação antirracista no cotidiano escolar. Como metodologia, foi realizada uma
entrevista com seis alunos participantes. A questão que norteou a entrevista levou em conta principalmente o
significado para eles do estudo de um dos principais elementos da cultura afro-brasileira. Conclui-se que os alunos
compreendem que o estudo das religiões afro-brasileiras atua como forma de combater o racismo e de exaltar a
história e cultura do povo negro para a nossa sociedade.
Palavras-chave: Cultura afro-brasileira, Lei nº 10.639/2003, Racismo, Relações étnico-raciais, Educação.

Abstract: This article presents a reflection and understanding of high school students from the Technical School
Senator Ernesto Dornelles the study of african-brazilian religions. As a theoretical foundation treated the concept and
importance of teaching history and Afro-Brazilian Culture and discussion of Law nº. 10.639/03, one of the hallmarks
of the constitution of an anti-racist education in daily school. As methodology, the interview with participants 6
students was used. The question that guided the interview took into account primarily the meaning for them of the
study of one of the main elements of african-brazilian culture. We conclude that students understand that the study of
african-brazilian religions act in order to combat racism and to exalt the history and culture of black people to our
society.
Keywords: African-brazilian culture, Law nº 10.639/2003, Racism, Racial ethnic relations, Education.

Introdução

Este artigo que, se propõe a refletir sobre a compreensão dos alunos do Ensino Médio no
estudo das religiões afro-brasileiras, consolida minha experiência de estágio supervisionado II,
em uma turma do primeiro ano, no turno da tarde, na Escola Técnica Estadual Senador Ernesto
Dornelles, localizada no Bairro Centro Histórico, em Porto Alegre. A turma era composta por 38
alunos no caderno de chamada, contudo nas aulas normalmente estavam presentes entre 18 e 22
alunos.

1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: lueci22@yahoo.com.br

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 310-329, Jul. 2015


311

A Escola oferece o Ensino Médio Politécnico e Cursos Técnicos Profissionalizantes.


Logo, na primeira semana de observação em sala de aula, período que faz parte do estágio
supervisionado, pude ver que muitos alunos da turma de primeiro ano concluíram o Ensino
Fundamental em outras escolas, geralmente na escola localizada no seu bairro de origem.
Destaca-se aqui que poucos moram próximos à escola que fica na região central de Porto Alegre.
A maioria dos alunos mora em regiões mais distantes, porém escolheram a Escola por terem a
intenção de fazer um dos cursos profissionalizantes que a escola oferece, também pela escola de
seu bairro de origem não oferecer o Ensino Médio, como também por ser um facilitador pela
procura de um estágio remunerado, pois a Escola Ernesto Dornelles está localizada na região
central da cidade.
Na apresentação do Programa de Conteúdos das séries correspondentes ao Ensino Médio,
pude verificar a ausência dos conteúdos sobre História e Cultura Afro-Brasileira, não apenas na
disciplina de História, mas também nas áreas de Educação Artística e de Literatura. Isso virou um
ponto para reflexão da prática de estágio de docência, pois a escola abarca a juventude e falar da
juventude é trabalhar com a diversidade. Então, por que não incluir essa temática e discussão na
minha proposta de estágio de docência no Ensino Médio? Por que não propor algo diferente que
desenvolva e fortaleça espaços para uma reflexão-ação no cotidiano escolar, que leve,
principalmente, a uma construção e vivência de práticas antirracistas e antidiscriminatórias, não
deixando de ressaltar a Lei Federal nº 10.639 de 2003?
Então, a partir das aulas sobre os elementos da Cultura Afro-Brasileira, refletimos sobre a
cultura legada por um povo que passou e ainda passa por ações discriminatórias e
problematizamos os olhares. Dessa forma, o aluno foi convidado a responder uma questão que
abrangeu o significado para ele, o que aprendeu e se aprendeu sobre as religiões afro-brasileiras é
aprender história.
O resultado dessa compreensão está descrito logo a seguir, mas que fique claro que o
objetivo dessa experiência foi cumprido, principalmente na perspectiva de uma educação crítica,
de maneira a tocar de forma sensibilizante em assuntos com vistas à superação do racismo e do
preconceito na comunidade escolar.

Ensino de História, Racismo e Educação das Relações Étnico-Raciais

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 310-329, Jul. 2015


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Como forma de dar um maior embasamento à temática discutida, abordarei aqui a


discussão da Lei Federal 10.639, de 9 de janeiro de 2003, em sua proposição política de combate
ao racismo e às discriminações raciais no âmbito dos sistemas de ensino, além de trazer a
importância do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e o cotidiano escolar.

Os Caminhos da Lei Nº 10.639: Implementação e a Qualificação de Professores em


Procedimentos Didático-Pedagógicos

A lei nº 10.639/2003 (Anexo A) é o resumo de uma longa caminhada de lutas,


engajamentos e projeções de um segmento social atualmente denominado como Movimento
Negro Organizado (MNO). No dia 9 de janeiro de 2003, o Presidente da República sancionou a
Lei 10.639/03 alterando a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial das redes de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dar outras providências.
Como complementa Oliveira (2008):
Ela torna obrigatório, entre outras proposições, nos currículos escolares o estudo da
História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira
e o negro na formação da sociedade brasileira. Penso que, à luz de uma história de 500
anos de Brasil, é um convite para repensar configurações naturalizadas pelo espírito
cultural ocidental, que delineou a tônica do modo pelo qual fomos constituídos como
civilização.

A Lei 10.639/03 é fruto deste trabalho e da sociedade, pois referenda uma conquista
histórica, de ativistas e militantes, que há muito vem trabalhando para efetivação de políticas
afirmativas. Demanda esta que, após sua legalização apresenta-se como política obrigatória para
todas as escolas da rede escolar brasileira. Também podemos dizer que a mesma se vincula a
medidas afirmativas, de caráter inconclusivo, “[...] a da preservação e a valorização da memória
afro-brasileira”. (MACEDO, 2012, p. 32).
Destaca-se que a referida Lei sancionada em 2003 foi regulamentada em 2004 através do
Parecer nº CNE/CP. 003/2004, aprovado em 10 de março de 2004, do Conselho Nacional de
Educação que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o ensino de História e Culturas Afro-Brasileiras e Africanas. Este
documento se constituiu em uma referência pedagógica nos aspectos da formação docente, dos
currículos, das práticas docentes e, especialmente, na sua proposição política de combate ao

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 310-329, Jul. 2015


313

racismo e às discriminações raciais no âmbito dos sistemas de ensino. Em um de seus trechos,


constatei que:

A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos


currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões
pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que,
além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar
devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há
cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas
decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população
negra, ao contrário, dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se
enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes
de construir uma nação democrática. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2004, p. 8).

Dessa forma, é importante ressaltar um entendimento de ampliar o foco dos currículos


escolares, levando em conta a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Por isso,
nesta perspectiva, cabe às escolas a inclusão no contexto dos estudos e atividades,
proporcionando diariamente o conhecimento sobre as contribuições histórico-culturais do povo
negro.
É importante destacar aqui que a relatora deste Parecer foi a Professora Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva, que por indicação do Movimento Negro, foi conselheira da Câmara de
Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, mandato 2002-2006. Atualmente ela é
docente no Departamento de Metodologia do Ensino e no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de São Carlos. É pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros NEAB/UFSCar e milita em grupos do Movimento Negro. Menciono a professora
Petronilha, pois a mesma participa ativamente da produção de conhecimentos e da construção de
políticas públicas, com vasta participação em eventos científicos em todo o Brasil, na América
Latina, África e Europa.
É necessário ter clareza que o art. 26ª acrescido a Lei 9.394/1996 instiga bem mais do que
a inclusão de novos conteúdos. A mesma exige que se repensem as relações étnico-raciais,
sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino condições oferecidas para aprendizagem,
“objetivos tácitos e explícitos da educação oferecida pelas escolas”. (MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO, 2004, p. 8).

Ou seja, ao que tudo indica, a lei considerou que era necessário não somente introduzir o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos ensinos Fundamental e Médio, como
também qualificar os professores para ministrarem esse ensino. A legislação federal,
segundo o nosso entendimento, é bem genérica e não se preocupa com a implementação
adequada do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Ela não estabelece metas

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para implementação da lei, não se refere à necessidade de qualificar os professores dos


ensinos Fundamental e Médio para ministrarem as disciplinas referentes à Lei nª 10.639,
de 9 de janeiro de 2003, menos ainda, o que é grave segundo nosso entendimento, à
necessidade de as universidades reformularem os seus programas de ensino e/ou cursos
de graduação, especialmente os de licenciatura, para formarem professores aptos a
ministrarem ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. (MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO, 2005, p. 33).

Isto é, deve haver condições oferecidas para a aprendizagem com o objetivo de capacitar
professores em procedimentos didático-pedagógicos aplicáveis em História Africana e Cultura
Afro-Brasileira, e estas iniciativas devem partir de secretarias Municipais de Educação e de
Universidades. A UFRGS, através do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social
(DEDS), teve essa iniciativa em 2013 através de uma ação de extensão à distância de capacitar
professores de oito redes municipais de ensino, localizadas em Porto Alegre e municípios da
região metropolitana.
É preciso sempre recordar que os movimentos sociais negros, como também muitos
intelectuais engajados na luta antirracista, levaram muitos anos para conquistar a obrigatoriedade
do estudo da história do continente africano e dos africanos, na luta dos negros no Brasil, da
cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional brasileira.
Contudo, temos que ressaltar que torná-los obrigatórios, embora seja condição necessária,
não é condição suficiente para sua implementação de fato. Ou seja, é necessário reforçar sempre
que a pressão sobre os governos municipais, estaduais e federal para que esta Lei seja executada,
para que não se transforme numa Lei “esquecida” do nosso sistema jurídico.

Ensino de História, Cultura Afro-Brasileira e Cotidiano Escolar

Os africanos, quando chegaram ao Brasil, passaram a conviver com diversos grupos


sociais, como portugueses, crioulos, indígenas e africanos originários de diferentes partes da
África. Nessa grande mistura social, os mesmos tentavam a garantia de sobrevivência,
estabelecendo relações com seus companheiros de cor e origem, passando a construir espaços
para a prática da solidariedade e recriando sua cultura e visões de mundo. Dessa forma,
integraram irmandades católicas, praticaram o islamismo, o candomblé e reuniram-se em
batuques e capoeiras. (MATTOS, 2009).
Diante disso, os africanos influenciaram profundamente a sociedade brasileira e deixaram
contribuições importantes para o que hoje denominamos de cultura afro-brasileira.

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Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver,
de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da
cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte
do seu dia-a-dia. [...] Feijoada, samba, capoeira resultaram de criações dos africanos que
vieram escravizados para o Brasil, bem como de seus descendentes, e representam
formas encontradas para sobreviver, para expressar um jeito de sentir, de construir a
vida. Assim, uma receita de feijoada, vatapá, ou de qualquer outro prato, contém mais do
que a combinação de ingredientes, é o retrato de busca de soluções para a manutenção da
vida física, de lembrança dos sabores da terra de origem. Do mesmo modo, a capoeira,
hoje um jogo cujo cultivo busca o equilíbrio do corpo e do espírito, nasceu como
instrumento de combate, de defesa (SILVA, 2005, p. 155).

Para a autora, o estudo da cultura afro-brasileira tem um significado de compreensão e de


conhecer os trabalhos e a criatividade dos africanos e de seus descendentes no Brasil, “[...] de
situar tais produções na construção da nação brasileira”. (SILVA, 2005, p. 156).
A importância da aprendizagem da cultura afro-brasileira ou “africanidades” (SILVA,
2005), no meio escolar, está no propósito que se valorizem igualmente as distintas e
diversificadas raízes das identidades dos diferentes grupos que constituem o povo brasileiro; que
procurem a compreensão e ensinem a respeitar diferentes modos de ser, viver, conviver e pensar;
que se discutam as relações étnicas, no Brasil, e analisem a perversidade da assim designada
“democracia racial” (SILVA, 2005, p. 157); que se encontrem maneiras de levar e refazer
concepções relativas à população negra, forjadas com base em preconceitos, que subestimam sua
capacidade de realização e de participação da sociedade; que se identifiquem e ensinem a
manusear fontes em que se encontram registros de como os descendentes de africanos estão, nos
quase 500 anos de Brasil, construindo suas vidas e sua história, no interior do seu grupo étnico e
no convívio com outros grupos; que permitam aprender a respeitar as diferentes expressões
culturais negras que, juntamente com as demais de diferentes raízes étnicas, compõem a história e
a vida de nosso país e, por último, que se situem histórica e socialmente as produções de origem
e/ou influência africana, no Brasil, e proponham “[...] instrumentos para que sejam analisadas e
criticamente valorizadas”. (SILVA, 2005, p. 157).
Como percebemos a importância na aprendizagem no cotidiano escolar nos lançam
desafios para que a atuação do educador perante seus alunos seja de incentivar a ampliação ou
reformulação de suas concepções prévias, orientando-os a pesquisar, debater, trocar ideias e
argumentar com estas ideias.
A partir do ano de 2003, a Lei Federal nº 10.639 tornou obrigatório o ensino da História e
Cultura da África e dos afrodescendentes no ensino Fundamental e Médio e já sabemos que não
foi uma decisão unilateral de cima para baixo, mas o atendimento de uma reivindicação

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encaminhada pelos movimentos sociais. O objetivo é romper com o silêncio que persiste nos
currículos tradicionais e ampliar o espaço da África e dos africanos na memória coletiva do
Brasil, que é considerado o país de maior população afrodescendente do mundo. (MACEDO,
2013). Como se tem conhecimento, muitas escolas ainda não incluíram a temática de História e
Cultura da África em seus currículos. Uma relação com este fato pode ser feita em Silva (2008, p.
97), que menciona:
O legado da sociedade escravista reflete, ainda hoje, um rastro de injustiça. O local onde
podem vir a ocorrer mudanças na forma de combater essas injustiças é o ambiente
escolar. Acontece que o ambiente escolar, tradicionalmente concebido, não está
preparado para tratar dessas questões porque continua sendo representante de um modelo
pedagógico de transmissão cultural que necessita ser revisto com urgência.

No entendimento do autor, as instituições do sistema educacional acabam por negar


formalmente o acesso ao conhecimento em sua expressão de diversidade, étnico-cultural, ao fazer
“[...] repercutir a noção de existência no Brasil de racismo velado, ancorado num pretenso
discurso democrático”. (SILVA, 2008, p. 97).
Então, a pergunta que se faz é: quais conteúdos deverão ser selecionados para o
reconhecimento e a valorização da História e das Culturas Afro-Brasileiras? A resposta estará
direcionada àqueles que criem possibilidades de combate racismo, às discriminações e
preconceitos, propiciando o desenvolvimento de atitudes, valores e, principalmente, o respeito
aos direitos humanos.
Os conteúdos disciplinares poderão contribuir para a desconstrução de equívocos e
preenchimentos das lacunas deixadas pela historiografia oficial quanto à trajetória
histórica do povo negro no Brasil, como também quanto aos povos africanos, aos quais
nós, brasileiros, estamos ligados pelos laços da história e da ancestralidade. O
reconhecimento dos elos existentes entre a História do Brasil, a História da África e suas
culturas, certamente levará ao reconhecimento e valorização das africanidades presentes
na cultura brasileira. (ROCHA, 2009, p. 24).

Este reconhecimento é fundamental para que o Brasil atue na construção, sem


fragmentações, de sua verdadeira identidade e se fortaleça como nação.
Outro desafio a se vencer pelo professor é o de aceitar mudanças de postura e se
posicionar como um aprendiz quanto ao tema racial. É necessário que o professor estude e revise
os conteúdos referentes à temática de História e Cultura Afro-Brasileira, estando aberto e
receptivo aos novos conhecimentos no sentido de completar sua formação universitária. Para
Rocha:
[...] é essencial estar bem preparado ética e pedagogicamente, dominar os conteúdos, as
habilidades, as capacidades, as competências, os instrumentos e os valores que possam

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garantir aprendizagens prazerosas para todos(as) os(as) educandos(as). Portanto, a


Escola deve investir na construção de uma pedagogia anti-racista, voltada para a
afirmação das identidades negras em suas diferenças. Para isto, terá como objetivo
consolidar uma cultura escolar cotidiana de reconhecimento e respeito às diversidades,
às peculiaridades, e ao repertório cultural do povo negro, sem hierarquizá-los (ROCHA,
2009, p. 25).

Dessa forma, somente assim, a educação se tornará um espaço inclusivo e de


disseminação, junto à comunidade em geral, “[...] do imaginário de racismo presente na
sociedade brasileira e da urgência de se construírem estratégias de luta contra as suas formas de
manifestação, principalmente no ambiente escolar”. (ROCHA, 2009, p. 26).
É importante que se lembre que a educação é uma importante ferramenta no sentido de
perpetuar as tradições, há muito tempo consolidadas. Para Silva:

No entanto, uma perspectiva de educação crítica leva em conta a necessidade de uma


constante problematização, estabelecendo condições para o surgimento de um saudável
conflito de ideias, visando a aprimorar as relações sociais nessa nossa sociedade plural,
inclusive no que tange à questão religiosa, donde historicamente religiões de matriz
africana foram tratadas como caso de polícia, até pouco mais da metade do século
passado (SILVA, 2008, p. 101).2

Com isso, deve-se levar em conta que o sincretismo religioso estabelecido no nosso país é
uma demonstração de assimilação cultural a que muitas comunidades, especialmente a negra,
foram submetidas devido ao preconceito e ao racismo. E pensando na questão religiosa, é que me
volto para contextualizar este estudo.

O Contexto das Falas e Olhares: Estágio de Docência em História

Nas aulas ministradas do estágio de docência dos dias 26 de junho, 3 de julho e 10 de


julho de 2014 o assunto foi cultura afro-brasileira, onde foram trabalhados três elementos: a
religiosidade, capoeira e movimento hip-hop, respectivamente. Os focos em questão foram a
intolerância religiosa, o preconceito e as letras de canções usadas como forma de contestação e
denúncia contra o racismo e desigualdades sociais.
Para as três aulas foi utilizado o manual de História e Cultura Afro-Brasileira, de autoria
de Regiane Augusto de Mattos (2009), que foi pensando e elaborado de forma didática tanto para
os professores, quanto para alunos, funcionando como um guia esclarecedor e abrangente. Mas
além da utilização desse guia esclarecedor e abrangente, foi necessária a leitura de outras obras

2
Grifos do autor.

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que retratam e refletem muito bem sobre a contribuição do povo negro para a nossa sociedade,
bem como ressaltar sua resistência e denúncia da exclusão social e destacar a história e a
identidade dos negros. São eles: o artigo de Juarez Dayrell, intitulado como “O rap e o funk na
socialização da juventude” e o trabalho de conclusão de curso de autoria de Simone Ribeiro,
intitulado “Uma pedagogia em movimento: contribuições da capoeira na construção da
autonomia”.
O professor, ao abordar os conteúdos de cultura afro-brasileira, deve fazer
antecipadamente uma reflexão e ter uma posição pessoal, pois isso é fundamental,
principalmente, quando a temática será religiosa.

Os temas da diversidade religiosa, da tolerância, do estado laico e das liberdades laicas,


da liberdade de consciência e de crença, são questões que exigem reflexão e posição
pessoal. Uma professora precisa refletir sobre seus valores e opiniões acerca destes
temas mais do que outros profissionais, pois sua função é educar, seu exemplo e
opiniões têm influência sobre seus alunos. (RAMOS; KAERCHER, 2013, p. 119).

Para a aula de Cultura Afro-Brasileira – Religiosidade, dentre tantas práticas religiosas,


abordei apenas o candomblé, umbanda e batuque, onde destaquei suas características, como são
praticados seus cultos e semelhanças com outras religiões praticadas em nosso país. Um
momento que vale destacar da aula foi a surpresa de alguns alunos em “descobrir” que a
umbanda agregava elementos do espiritismo kardecista e do catolicismo, inclusive,
comemorando algumas datas festivas concomitantemente com as da Igreja Católica. Mas nessa
aula foi possível uma discussão, levando em conta cinco conceitos escritos em letras grandes em
cartazes que foram fixados ao redor da sala. Os conceitos eram aqueles que mais estavam
relacionados no tocante à questão da intolerância religiosa, como: preconceito, perseguição
religiosa, estereótipo, laicidade e racismo. A partir da relação possibilitada por estes conceitos e
das experiências sociais de cada um, pode-se iniciar um diálogo com esse cotidiano escolar, onde
os alunos puderam dar relatos de preconceitos que eles mesmos e suas famílias já haviam sofrido
por praticarem religiões de matriz africana. O fato de terem colocado o relato de suas
experiências sociais foi muito importante para a discussão e por dar uma abertura para que
pudessem ser entrevistados posteriormente, dando seu ponto de vista quanto à questão proposta
(APÊNDICE A).
Não mencionei anteriormente, mas os seis alunos que participaram da questão proposta da
entrevista não foram escolhidos por acaso. Estes foram os alunos que se propuseram desde o

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início a trazer importantes elementos ao debate que estava se desenvolvendo. A contribuição que
estes deram foi no sentido de enriquecer o debate da intolerância religiosa. Estes por iniciativa
própria, sendo que não estavam em avaliação, trouxeram para a discussão em sala de aula
características e origens de tradições religiosas como o Vodu e Wicca. Queriam falar sobre estas,
principalmente por muitas pessoas não as conhecerem e por ter por elas conhecimentos
“infundados”, como um dos alunos entrevistados afirmou.
Falando um pouco destes alunos entrevistados, vale destacar que os mesmos têm idade
que variam de 15 a 16 anos, nenhum destes mora no bairro onde está localizada a Escola. A
maioria mora na Zona Sul de Porto Alegre e dois na Zona Leste. A estudante 5 (denominação
atribuída para manter o anonimato dos alunos), de 15 anos, é a única do grupo que trabalha.
Mesmo trabalhando, a mesma era muito participativa em sala de aula e com uma boa escrita. O
estudante 1, que não largava do celular de jeito nenhum, sempre auxiliava na aula fazendo
consultas na internet pelo seu celular mesmo. Sim, usamos o celular a favor da aula. Alguns
colegas o chamavam de guri mais popular da escola. A estudante 2 era muito comunicativa,
leitora das obras sobre Wicca e bem descolada. O estudante 3 era muito participativo, o aluno que
sentava bem na frente da professora e sempre tinha uma contribuição para os assuntos
trabalhados em aula, desde o início da prática de estágio. O estudante 4, no começo, parecia um
pouco distante, o mais sério, mas depois de umas aulas já conversava com todos, sempre
participando em alguma discussão em sala de aula. O estudante 6 chegou um pouco depois de
iniciada minha prática de estágio. Veio transferido de outra escola de Ensino Médio, uma das
maiores do Estado. Como frequentador já há alguns anos de rodas de capoeira, trouxe para o
debate em sala de aula as principais características desta, fazendo uma ótima apresentação do
tema.
Dessa exposição de características acima que fiz dos alunos informantes da pesquisa, só
tenho a acrescentar que com suas contribuições em sala de aula foi possível estabelecer condições
para um aprimoramento de ideias, de questionamento e diálogo.
Este foi um momento que percebi a importância da Lei nº 10.639/2003, pois a mesma
“[...] implica na abertura de espaços para o questionamento do fazer pedagógico de todo o
sistema de ensino que, historicamente, construiu sua estrutura sob bases sociais que excluem a
população afrodescendente”. (SILVA, 2008, p. 94).

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Portanto, a experiência de estágio contribuiu para que a escola fortaleça sua função social,
escolhendo um dialogismo com o cotidiano escolar como fator de articulação. E esse dialogismo
possibilitou compreensões diferentes, como reflexões também foram possibilitadas. E esta
compreensão está traduzida em palavras descritas a seguir.

Procedimentos Metodológicos para a Escuta dos Jovens

Tratou-se de um estudo de cunho qualitativo, realizado sob a forma de um estudo


exploratório. Optou-se pela abordagem qualitativa, devido a mesma ressaltar um processo de
interpretação e reflexão das informações coletadas sobre a compreensão dos alunos no estudo das
religiões afro-brasileiras. E torna-se fundamental que a mesma seja “[...] apresentada de forma
descritiva”. (OLIVEIRA, 2005, p. 41).
Com relação ao estudo exploratório, Gil (2009), explica que seu objetivo principal
envolve o aprimoramento de ideias, além de envolver um levantamento bibliográfico. Além
disso, “[...] esse tipo de estudo se constitui em um primeiro passo para a realização de uma
pesquisa mais aprofundada”. (OLIVEIRA, 2005, p. 72). Com isso, a opção pelo tipo de estudo e
abordagem me remete para um estudo mais aprofundado futuramente.
A entrevista foi utilizada como forma de coleta das informações.

Apresentação das Informações

A seguir são apresentadas as informações coletadas por meio da entrevista (APÊNDICE


A). Para fins de organização e para manter o anonimato dos seis alunos que participaram da
entrevista, utilizei a seguinte denominação:
Estudante 1;
Estudante 2;
Estudante 3;
Estudante 4;
Estudante 5;
Estudante 6.

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A questão a ser respondida era: Qual o significado (valor/importância) do estudo das


religiões afro-brasileiras nas aulas de História ministradas pela professora estagiária?
O que aprenderam?
Estudar isso é aprender História?
Vejamos a resposta dos alunos:
Estudante 1:
O estudo das religiões afro-brasileiras nas aulas de história ministradas pela professora
foi importante para conhecermos um pouco mais sobre a história em geral e suas
diferentes áreas culturais, resgatando um pouco das origens sociais e mostrando a
importância das conquistas de uma raça. [...] tendo uma influência importante na
formação social em geral. Esse tipo de estudo é muito importante nos tempos atuais, pois
ainda presenciamos muitos preconceitos raciais e exaltar a história das religiões afro-
brasileiras é mais uma forma de combater o preconceito.

Estudante 2:
Bom, vejo que há um valor muito importante em estudar religiões afro-brasileiras, pois
isso pode acabar parcialmente com os estereótipos que a sociedade ao passar dos anos
acabou criando com os negros. [...] O estudo sobre isso não deveria ser apenas para
alunos do 1º ano do Ensino Médio, pois seria maravilhoso se crianças do Fundamental
aprendessem sobre isso. Talvez estaríamos reformulando nossa sociedade de uma forma
não perfeita, claro, mas deixando claro que os negros e suas religiões não são do mal.

Estudante 3:
Este estudo é importante para quebrar séculos de preconceito racial advindos dos anos de
escravatura [...]. Todos temos nossa cultura e costumes, e durante muitos anos essa
cultura riquíssima vinda da África foi discriminada com preconceitos infundados ou pura
ignorância sem necessidade. [...] Isso para mim é estudar a história, uma vez que metade
da África tem muito mais cultura que toda a Europa junta.

Estudante 4:
Eu achei um estudo muito interessante, pois com ele aprendemos sobre novas culturas e
religiões diferentes, como o Candomblé. São religiões parecidas com a que mais
conhecemos (Cristianismo), só que cada uma com as suas variações, crenças, algumas
comemoram algumas datas do Cristianismo. Eu nunca tinha estudado sobre tais religiões
e gostei de aprender sobre uma outra cultura. [...] aprender sobre outros países e outras
pessoas que não sejam do Brasil também faz parte para entender a História.

Estudante 5:
É muito importante estudar sobre as religiões afro-brasileiras, pois assim aprendemos
tudo como realmente funciona, aprendemos um pouco de cada uma delas e assim
também tiramos nossas dúvidas sobre ‘tais’ histórias que a sociedade inventa na maioria
das vezes, como por exemplo, o vodu, que conhecemos como uma religião que pratica o
mal, quando na verdade não é bem assim que funciona. [...] Essas religiões sofrem com
o preconceito da sociedade e temos que ter em mente que devemos respeitar cada
religião, principalmente quando não conhecemos seus princípios e seus valores,

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devemos nos informar antes de fazer qualquer crítica sobre tal assunto só porque
‘ouvimos falar’. E para mim, estudar sobre as religiões afro-brasileiras é aprender
história, pois é importante que saibamos a origem de tudo isso e esse é um papel que a
história exerce.

Estudante 6:
O estudo sobre as religiões afro-brasileiras é de suma importância, afinal, grande parte
dos nossos descendentes são de origem afro. Aprendi muitas coisas que antes eu não
sabia, tipo: eu não sabia que na África falavam vários tipos de língua, muito menos que
falavam francês. [...] E aprender história é estudar fatos históricos que marcaram
determinada época ou momento, então, sim, isso que nós estamos aprendendo com a
professora [...] é estudar história.

A partir das respostas dos alunos à questão proposta, segue uma reflexão geral da
compreensão que os mesmos tiveram durante as aulas.

Tecendo Análises a Partir das Respostas dos Jovens

Após os conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira terem sido incluídos na proposta


de ensino do estágio, foi sentido pela fala dos alunos que o estudo das religiões afro-brasileiras,
esse saber, esse conhecimento sobre as mesmas atua de forma a lutar contra o racismo,
preconceito, discriminação e de forma a exaltar a história do povo negro, bem como incorporar a
cultura, a situação de marginalizado e seus reflexos,

[...] ao traçar constantes diálogos entre o tema étnico-racial e os demais conteúdos


trabalhados na escola, o que estabelecerá maior interlocução entre a vida diária dos(as)
estudantes, suas condições de vida e as situações de desigualdade por muitos enfrentadas
na sociedade e na escola. (ROCHA, 2009, p. 27).

Desta forma, as aulas de cultura afro-brasileira acabaram por propiciar aos alunos
posicionamentos mais críticos, por meio da contextualização e do aprendizado de novos
conceitos, resultado da análise de fatores sociais, que foi o que aconteceu, pois os mesmos
relataram suas experiências sociais, bem como afirmaram que devemos respeitar cada religião,
juntamente com seus princípios e valores e, principalmente, não desrespeitar e agir
preconceituosamente quando desconhecemos os princípios e características dessas religiões. Foi
como disse o estudante 3 (2014): “Durante muitos anos essa cultura riquíssima vinda da África
foi discriminada com preconceitos infundados ou pura ignorância”.
Na descrição acima, fica evidente um clima favorável de respeito às diferenças. Como
afirma Rocha (2009, p. 28):

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O desenvolvimento de um clima organizacional favorável à formação sistemática da


comunidade escolar quanto à educação das relações étnico-raciais e o respeito às
diferenças, no qual sejam abolidos do cotidiano apelidos depreciativos, situações
vexatórias de discriminação e racismo, assim como as falas de desrespeito e
desvalorização, relativas às questões de gênero, religiosidade, orientação sexual, idade,
raça, etnia, serão outro aspecto a ser observado sistematicamente.

Como foi aberta a possibilidade de espaço de uma construção que priorize uma visão
positiva das diferentes culturas, temos que aproveitar deste mesmo espaço para edificar entre
alunos e professores relações mútuas de respeito entre as diferentes identidades.
Já a estudante 2 (2014) destaca que:

O estudo sobre isso não deveria ser apenas para alunos do 1º ano do Ensino Médio, pois
seria maravilhoso se crianças do Fundamental aprendessem sobre isso. Talvez
estaríamos reformulando nossa sociedade de uma forma não perfeita, claro, mas
deixando claro que os negros e suas religiões não são do mal.

Quando ela usou a expressão “reformulando”, como ela mesma disse, que só vinha essa
palavra na sua mente, pensou-se: será que seria no sentido de uma reconstrução? Será que teria
um sentido de readaptação? Sigo no pensamento de “preparo”, ou melhor dizendo: que este
indivíduo está em formação para desde cedo conhecer temas que historicamente são marcados
pelo preconceito e fazer com que este em sua caminhada escolar respeite as diferenças, credos e
etnias e saiba das contribuições que o povo negro trouxe para a formação da nossa sociedade.
Houve também aqueles “surpresos”, como o estudante 4 (2014), por encontrar no estudo
de uma das práticas religiosas afro-brasileiras a semelhança com o espiritismo e com elementos
do catolicismo. Ele afirma que gostou de aprender sobre “uma outra cultura”, justamente por não
ter conhecimento sobre.
A recepção desde o princípio de iniciação dos conteúdos de cultura afro-brasileira foi
positiva e é partir daí, que destaco e ressalto o diálogo. Esse dialogar com o cotidiano escolar foi
um instrumento de inclusão e interação de assuntos, antes ausentes dos conteúdos disciplinares,
mas presentes durante o estágio de docência, possibilitando uma experiência positiva de prática
para a educadora e, igualmente, na vida dos educandos.

Considerações Finais

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A Escola é um espaço público e local de promoção do pensamento crítico. O professor


deve sempre levar em conta que ensinar História é mais do que transmitir conhecimentos, mas
um momento de criar possibilidades de reflexão, pois a mesma tem em sua composição uma
integração de diversas culturas e particularidades. Tendo em vista a aproximação com esse
contexto, o que se procurou aqui foi extrair desse espaço de trocas culturais um diálogo com o
cotidiano escolar, na perspectiva de contribuir para mudanças na sociedade e, principalmente, de
formação da cidadania.
Devemos ter em mente que a escola é uma das instituições sociais de construção e
veiculação do racismo. E se a escola está inserida nessa cultura é esperado que se veja dentro dela
cenas de racismo, ou seja, momentos em que brancos reproduzem os valores que foram ensinados
a ter em relação aos negros e momentos nos quais negros reproduzem a submissão ao preconceito
e à humilhação de que são vítimas.
Dessa forma, o tecer falas e o problematizar olhares foram no sentido de criar um
ambiente de diálogo, levando em conta a valorização das experiências sociais dos alunos em
relação aos elementos da cultura afro-brasileira, especificamente a religião, dentre essa dimensão
que influenciou profundamente, deixando importantes contribuições para a sociedade brasileira.
Já a compreensão, retratou e expôs a capacidade do aluno de entender o significado e importância
do estudo das religiões afro-brasileiras ministrados durante o estágio do Ensino Médio.
O resultado foi falas com importantes reflexões por parte dos alunos entrevistados.
Alguns destacaram que este estudo foi importante por conhecerem um pouco mais sobre a
história e cultura afro-brasileira, além disso, ponderaram esse resgate das origens sociais e a
influência na formação social em geral. Eles entendem que o preconceito racial está enraizado na
sociedade e exaltar a história das religiões afro-brasileiras é uma forma de combater esse
preconceito, valorizando a cultura do povo negro. Aqui, recordemos da Lei nº 10.639/03, pois
para garantir a educação de qualidade para todos deve se passar pelo reconhecimento e pela
valorização da diversidade étnico-racial e cultural do povo brasileiro (LOPES, 2009), com
destaque para o negro, ou seja, cada vez mais, há a necessidade de refletir sobre a diversidade
sociocultural e a criação de mecanismos institucionais para superar a desigualdade étnico-racial,
presente nos diferentes níveis de ensino da educação brasileira.
Não se pode deixar de mencionar o valor de aprender, destacada por outro aluno, que está
em acabar com rótulos direcionados às religiões afro-brasileiras que a sociedade criou. Para

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acrescentar, ela ressalta ainda que a temática da história e cultura afro-brasileira deveria estar
presente desde o ensino Fundamental para que as crianças cresçam “reformulando” nossa
sociedade e desmistificando os estereótipos.
Mas o mais importante aqui foi sentir que os alunos tiveram a compreensão que este
estudo serviu para refletir sobre os séculos de preconceitos advindos da escravidão, que serviu
para aprender sobre religiões que antes não tinham conhecimento, mas que acabaram por ver que
estas mesmas têm semelhanças tão próximas com o Cristianismo.
Conclui-se, então, que a compreensão destes alunos foi ao encontro do que se desejava,
principalmente quando estamos falando de promover a educação de cidadãos atuantes e
conscientes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica; cidadãos com uma consciência
viva e ativa e com um pensamento crítico contribuindo para uma educação antirracista.

Referências

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências. Brasília, DF, 2003. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 28 jun. 2014.

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LOPES, Vera Neusa. História e cultura afro-brasileira. Revista do Professor, Porto Alegre, ano:
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MACEDO, José Rivair. Os educadores em face da legislação antirracista: o desafio necessário.


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<http://www.bibliotecadigital.ufrgs.br/da.php?nrb=000825122&loc=2012&l=772a7dcaa1ca83b4
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ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Pedagogia da Diferença: a tradição oral africana como
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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 310-329, Jul. 2015


327

Apêndice A – Questão da Entrevista

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL


FACULDADE DE EDUCAÇÃO
EDU02X11 Estágio de Docência em História II – Ensino Médio

Professora Estagiária: Lueci Silveira


Período do estágio: 10/3/2014 a 10/7/2014
Local de Estágio: Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles
Turma: 104

A questão proposta a seguir norteará o estudo da professora estagiária. As respostas serão


analisadas e servirão para a reflexão no desenvolvimento de um artigo.

1) Qual o significado (valor/importância) do estudo das religiões afro-brasileiras nas aulas


de História ministradas pela professora estagiária?
O que aprenderam?
Estudar isso é aprender História?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
__________________________________________
Observação: Em hipótese alguma o entrevistado será identificado, mas na apresentação das
respostas, o mesmo “ganhará” uma designação como forma de ser identificado no artigo. Você
gostaria de sugerir um nome/apelido/codinome no qual gostaria de ser identificado? Caso sim,
escreva aqui: ___________________________.

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Anexo A – Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo
Mensagem de veto
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática "História e Cultura Afro-Brasileira",
e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu


sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes
arts. 26-A, 79-A e 79-B:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de


todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileiras.

§ 3o (VETADO)"

"Art. 79-A. (VETADO)"

"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’."

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 310-329, Jul. 2015


329

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 10.1.2003.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 310-329, Jul. 2015


Uma Abordagem sobre Jogos e Ensino de História: a Proposta do Pife da
Mitologia Egípcia

Gabriela Correa da Silva1

Resumo: Este artigo explora as potencialidades do uso dos jogos no ensino de história. Para tanto, tece,
inicialmente, algumas considerações acerca da utilização dessa metodologia na sala de aula de história. A fim de
expor a experiência aqui compartilhada, o artigo aborda a elaboração do plano de aula e a construção do pife da
mitologia egípcia. O plano dividiu-se em três etapas: 1) abordagem inicial do conteúdo; 2) elaboração de uma
produção escrita, pelos alunos, que objetivou explorar o conceito de politeísmo e 3) a construção do jogo
temático pela professora e a sua utilização em sala de aula. Durante a elaboração deste jogo, foi criado um
baralho específico e sua aplicação inspira-se no jogo de cartas chamado “Pife”. Dessa forma, o presente texto,
além de disponibilizar o material produzido, tem por finalidade contribuir para a discussão sobre as
possibilidades didáticas associadas ao uso deste tipo de ferramenta no ensino de história.
Palavras-chave: jogos, mitologia, ensino de história.

Abstract: This article explores the potentialities of using games in the teaching of history. For this purpose,
develops some considerations about the using of this methodology on history’s classes. In order to expose the
experience shared in this text, the preparation of the lesson plan and of the game is discussed. The plan was
divided in three stages: 1) initial approached of the content; 2) preparation of a written production, by students,
to explore the concept of polytheism and 3) The creation of a themed game, by the teacher, and their use in the
classroom. During the development of this game, a specific deck was created and its application is inspired by
the card game called “Pife”. Thus, this text, besides providing the material produced, aims to contribute to the
discussion on the instructional possibilities associated with the use of such a tool in the teaching of history.
Keywords: games, mythology, teaching of history.

Considerações Iniciais

O objetivo do presente texto é compartilhar uma experiência desenvolvida com alunos


da escola básica pública que explora as potencialidades do uso de jogos no ensino de história.
A atividade teve como público-alvo os alunos do primeiro ano do Ensino Médio, da rede
estadual de ensino do Rio Grande do Sul, na cidade de Porto Alegre, no Colégio Estadual
Paula Soares.
A ação em questão consiste na criação e utilização em sala de aula de um jogo de
cartas sobre a mitologia egípcia. A ideia de elaborar um jogo sobre este tema partiu de
algumas reflexões gestadas durante o exercício da docência entre alunos do Ensino Médio.
Por um lado, uma destas reflexões foi a de que seria oportuno desenvolver um instrumento
que pudesse dar conta de uma proposta de história ensinada mais atenta às representações e às

1
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: gabicorrea.s@hotmail.com

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 330-347, Jul. 2015


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manifestações culturais das sociedades passadas, no caso aqui da egípcia, de forma diversa
das abordagens de grande parte dos livros didáticos, que frequentemente privilegiam temas
relativos à política e à sucessão das dinastias e faraós. Nesse sentido, uma abordagem didática
que se detenha no estudo da religiosidade das sociedades antigas pode ser bastante
enriquecedora. Com isso, buscou-se investir na construção do raciocínio histórico por parte do
aluno em relação às temáticas estudadas, no sentido de que se partiu, por exemplo, do estudo
do conceito de monoteísmo, familiar para os adolescentes inseridos em uma sociedade
predominantemente cristã, para a compreensão das manifestações religiosas caracterizadas
pelo politeísmo.
Por outro lado, uma segunda reflexão que direcionou a criação do jogo deve-se ao fato
de que, ao longo do tempo de experiência como professora da escola básica, foi possível
observar que as temáticas relacionadas à mitologia – seja ela grega, romana, egípcia ou
nórdica – são atraentes para os jovens estudantes. Isso se deve a múltiplos fatores, entre os
quais a massiva exploração de tais conteúdos pela mídia em geral e pelos jogos eletrônicos.
Como é sabido, o espaço da sala de aula de história não tem o monopólio sobre os conteúdos
históricos e isso não precisa ser um obstáculo para a sua problematização na escola.
Ademais, em termos mais abstratos, sabemos que diversas são as relações possíveis
entre brincar e aprender. Embora não raro as palavras jogo e brincadeira sejam
acompanhadas, em nossa cultura, de status social rebaixado em função da associação entre
elas e inconsequência, improdutividade e prazer, a proposta de atividade aqui oferecida para o
debate parte do pressuposto de que brincar ou jogar apresenta um amplo campo de
possibilidades para o ensino de história, sendo este ato fundamentalmente formativo
(FORTUNA, 2013). Desse modo, o pife da mitologia egípcia pode ser uma ferramenta para
permitir a aprendizagem dos conceitos e sociedades passadas, para além do seu
reconhecimento (PEREIRA; GIACOMONI, 2013).
A opção por criar um jogo de cartas em plena era de amplo acesso às mídias sociais e
à internet foi consciente e estrategicamente refletida. Apesar da grande difusão da internet e
dos aparelhos de celular com tecnologia necessária para o acesso à rede entre os alunos, ainda
não é possível falar de uma universalização destes instrumentos entre os estudantes da escola
pública. Além disso, nem sempre a sala de informática das escolas da rede estadual existe ou,
se existe, está disponível para o uso de programas necessários para o uso de jogos eletrônicos.
Mas, é preciso apontar, há uma ampla gama de possibilidades de trabalho com os jogos
eletrônicos no ensino de história e elas podem e devem ser exploradas de acordo com o
contexto de cada escola.
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O Uso dos Jogos no Ensino de História: uma Possibilidade Metodológica

Desde os primeiros anos de minha formação acadêmica, no curso de licenciatura em


história, me perguntava sobre como ensinar uma história que tivesse sentido na vida dos meus
alunos e que fosse, ao mesmo tempo, prazerosa. Ao longo de minha formação fui também
consolidando a convicção de que o processo de ensino-aprendizagem seria significativo, entre
outras coisas, se fosse possível despertar o gosto dos estudantes pela disciplina de história.
É claro que o fato de eu gostar da disciplina que leciono facilitaria meu trabalho, mas
durante as experiências de estágio docente percebi que isso definitivamente não seria o
suficiente. Gradualmente, já enquanto professora na escola básica, passei a reforçar a
percepção de que a habilidade de imaginar o passado – no sentido de criar imagens mentais –
é de grande importância para apreciar o seu estudo. Talvez daí se origine a insistência em
diversas perguntas feitas pelos alunos que podem deixar o professor sem resposta, ou seja, o
bombardeio que muitas vezes nos fazem com detalhes extremamente específicos. Para além
da constatação de que tais questionamentos sempre são oportunos para desenvolver a
discussão sobre o ofício do historiador e de alertá-los para o fato de que a máquina do tempo
ainda não foi inventada, a angústia de nem sempre estar pronta para oferecer as respostas que
me solicitavam me fazia pensar sobre a motivação da pergunta. Passei, então, a concluir que
isso se relacionava, ainda que não de modo exclusivo, à necessidade de imaginar os assuntos
abordados em aula – quanto mais detalhada a descrição, mas fácil a criação de imagens
mentais acerca do assunto.
Foi uma surpresa perceber que a maior parte dos estudantes se identificava com a
disciplina quando conseguiam, abstratamente, se deslocar até o passado. Com isso, constatei
que havia um interesse pela história, cabia a mim explorá-lo. Sabemos que existem muitas
formas de fazê-lo. Meu intuito aqui é explanar sobre uma entre tantas. Neste momento, entra a
função da relação entre o jogo e o ensino. Em alguns momentos de minha trajetória enquanto
docente em formação fui estimulada, por determinados professores, a pensar na
potencialidade do uso de jogos como ferramenta de ensino. Influenciada por tais reflexões,
passei a investir na utilização de jogos no ensino de história.
Nesse sentido, as considerações de Johan Huizinga (2000) são pertinentes. O autor
pensa o jogo como forma significante, como função social. Para ele, se verificarmos que o
jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa “imaginação” da realidade (ou
seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o
valor e o significado dessas imagens e dessa “imaginação”. Sendo assim, o jogo guarda em si
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 330-347, Jul. 2015
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uma possibilidade metodológica para estimularmos a imaginação do passado em nossos


alunos.
Para Huizinga, o jogo é fato mais antigo que a cultura, que sempre pressupõe a
sociedade humana, visto que os animais não esperaram o homem para iniciar a atividade
lúdica. O jogo é uma função significante, ou seja, encerra um determinado sentido: no jogo
existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um
sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Embora seja difícil estabelecer uma
definição para o que é jogo, Huizinga identifica alguns aspectos que podem caracterizá-lo:

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e


determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas,
mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de
um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da "vida
quotidiana". (HUIZINGA, 2000, p. 30)

Com isso, podemos afirmar que as características fundamentais do jogo são: 1) ele é
uma atividade voluntária e não está sujeito a ordens; 2) o jogo é livre, é ele próprio liberdade;
3) o jogo não é vida “corrente”, nem vida “real”: é uma evasão da vida real para uma esfera
temporária de atividade com orientação própria: “Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de
absorver inteiramente o jogador.” (HUIZINGA, 2000, p. 12). O jogo é, portanto, um intervalo
em nossa vida quotidiana.
Outro traço importante do jogo é que ele cria ordem e é ordem, porquanto introduz na
confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma
ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu
caráter próprio e de todo e qualquer valor. Ademais, o jogo tem a habilidade de lançar sobre
nós uma espécie de feitiço: é fascinante e cativante. Está cheio das duas qualidades mais
nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia.
O elemento de tensão, por sua vez, desempenha no jogo um papel essencialmente
importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao
desenlace, o jogador quer que alguma coisa “vá” ou “saia”, pretende “ganhar” à custa de seu
próprio esforço. O jogo é tenso. É este elemento de tensão e solução que domina em todos os
jogos solitários de destreza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, os jogos de
armar, as paciências, o tiro ao alvo, e quanto mais estiver presente o elemento competitivo,
mais apaixonante se torna o jogo. Mas, apesar de seu ardente desejo de ganhar, o jogador deve
sempre obedecer às regras do jogo. Aquele que desobedece é o “desmancha prazeres”, que
priva o jogo da ilusão (palavra que significa ‘em jogo’ – de inlusio, illudere ou inludere). O

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jogo, enfim, é carregado de um potencial mobilizador que, se bem explorado nas aulas de
história, pode contribuir para aprendizagens significativas.
Além de toda a caracterização que Huizinga desenvolve sobre o jogo, ele também
realiza uma análise sobre a sua presença na sociedade. Uma de suas manifestações é de
grande relevância para os objetivos desde artigo e do jogo que ele visa apresentar. Conforme
o autor, as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início,
inteiramente marcadas pelo jogo.
Um exemplo disso é o mito, que é também uma transformação ou uma “imaginação”
do mundo exterior. O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos
fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da
mitologia, há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira e a
seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto, verificaremos que as sociedades
primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados
a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo, tomando-se aqui
o verdadeiro sentido da palavra.
Tendo em vista que a atividade abordada neste artigo vale-se da mitologia egípcia
como forma de estudo de determinada sociedade antiga e considerando as reflexões do autor
aqui citado, é possível apontar que o pife da mitologia egípcia é jogo sobre o jogo, que pode
colaborar para a compreensão das crenças da sociedade egípcia. Nesse sentido, nas linhas que
seguem serão elaboradas algumas considerações sobre as relações entre religiosidade e
mitologia na sociedade egípcia, que foram levadas em conta na construção do plano de aula e
do pife da mitologia egípcia.

Da Construção do Plano de Aula e do Pife da Mitologia Egípcia

O jogo sobre a mitologia egípcia não caiu de paraquedas na sala de aula de história,
tampouco foi pensado sem experiências prévias. A ideia de sua criação surgiu depois de ter
trabalhado outras formas de jogo entre os alunos, como, por exemplo, uma espécie de quiz
temático, que consiste em um jogo de perguntas e respostas sobre quaisquer conteúdos, com
uma série de regras para a sua aplicação, que utilizei muitas vezes em diversos conteúdos. A
aplicação do quiz colaborou para consolidar minha percepção de que a potencialidade da
dinâmica dos jogos poderia ser melhor explorada no estudo da história. Daí a iniciativa de
incorporar outras atividades lúdicas ao plano de aula.

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A construção do plano de aula sobre Egito Antigo levou em consideração a


necessidade compreensão do conceito de politeísmo, tantas vezes enigmático para os
estudantes. A fim de desenvolver esta abordagem, algumas aulas, em variados formatos,
foram dedicadas a tal temática. De modo geral, o conceito foi trabalhado em cerca de oito
aulas de cinquenta minutos – este tempo abrangeu todas as etapas do plano de aula, uma vez
que o conceito esteve “onipresente” ao longo de todo o planejamento e sua aplicação.
O plano de aula foi, então, dividido em três etapas. A primeira delas previa aulas
expositivo-dialogadas sobre a sociedade egípcia e acerca do significado da religiosidade
naquele contexto. A segunda consistia na elaboração de trabalho em grupos sobre alguns
contos da mitologia egípcia, de escolha dos alunos, contidos no livro “Melhores História da
Mitologia Egípcia”, de Carmem Seganfredo (2006). Neste momento, os alunos foram
estimulados a pensar determinados aspectos da sociedade egípcia compreensíveis através de
suas crenças. A terceira etapa, por fim, centrava-se no uso do jogo em sala de aula. A
experiência aqui descrita pressupôs o uso do jogo em sala em sua versão final, tendo sido ele
desenvolvido pela professora. É possível, contudo, criá-lo com o envolvimento dos alunos, o
que pode ser bastante profícuo. Nos próximos parágrafos, explanarei acerca de cada uma
destas etapas.
Para embasar a primeira etapa do plano de aula, são importantes as reflexões de alguns
autores que se dedicam ao estudo da história antiga e/ou egípcia e da história das religiões.
Nesse sentido, foram considerados, essencialmente, os textos de Pedro Paulo Funari (2010),
Eliane Moura da Silva (2010), Mircea Eliade (1978) e Margaret Bakos (2009). Farei,
portanto, alguns apontamentos sobre o que considero fundamental no pensamento de cada um
dos pesquisadores.
De acordo com Funari, o ensino de história antiga vem se transformando no Brasil nos
últimos 20 anos, tanto no ensino superior e na formação de professores, como nos livros
didáticos e de apoio, bem como na própria prática de sala de aula. Assim, a visão eurocêntrica
e estereotipada já não é a única encontrada nos livros didáticos. Surgida no século XIX
europeu, a postura tradicional identificava a História como o estudo do Ocidente, racional e
dominador do mundo, que teria surgido, nas formas de civilização às beiras do Nilo, Tigre e
Eufrates, passado, como se fosse uma tocha, para a Grécia, depois para Roma, para ressurgir
no mundo moderno. Essa visão, profundamente elitista e europeia vem cedendo lugar a
concepções menos limitadas do mundo antigo. O Egito, por exemplo, não é mais apenas a
terra dos faraós, mas também de muitas e muitas aldeias e não apenas de continuidades, mas
também de mudanças.
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Assim, além dos temas tradicionais frequentemente ligados à história política também
surgem temas novos associados às demandas da atualidade, como, por exemplo, a história das
mulheres, das relações de gênero e da religiosidade. Além disso, na perspectiva do autor, é
pertinente investir nos aspectos lúdicos da atividade intelectual como história em quadrinhos,
palavras-cruzadas ou mesmo desenhos feitos pelos alunos.
Apesar das mudanças apontadas por Funari, de modo geral (há algumas exceções de
razoável qualidade) ainda reserva-se pouco espaço nos livros didáticos para o estudo da
religiosidade egípcia, que muitas vezes está inserida na seção “cultura”, a qual engloba
religião, engenharia, arquitetura, artes, medicina ou ainda se reduz à exploração das pirâmides
e da mumificação. É necessário destacar, contudo, que em muitos destes materiais vêm
incorporando excertos de fontes primárias que, mesmo não sendo devidamente exploradas
pelos autores do livro, podem subsidiar o estudo desta sociedade, se bem utilizadas pelo
professor. Além disso, alguns poucos também têm inserido o estudo da história egípcia em
um capítulo “Egito e outras sociedades africanas”, o que, apesar de reduzir as demais
sociedades africanas no rótulo genérico de outras, tem o mérito de marcar o pertencimento do
Egito ao continente africano, que não raro é pensado pelo senso comum como pertencente ao
continente europeu.
Este texto, entretanto, não quer se deter na já batida crítica ao livro didático, mas, sim,
apontar possibilidades outras de abordagem de conteúdos nem sempre privilegiados pelos
materiais disponíveis no ambiente escolar, o que, sabemos, de forma nenhuma se restringe ao
estudo do Egito Antigo. Com isso, entendo ser possível pensar no professor como um
profissional que, em geral, tem autonomia para selecionar e, por que não, produzir alguns de
seus suportes metodológicos.
Em relação aos novos temas apontados por Funari, são relevantes as reflexões de
Eliane Moura da Silva (2010). Para desenvolver o problema, é oportuno, então, ter em conta
o conceito de religião, que, para a autora, pode ser definido como um conjunto de crenças
dentro de universos históricos e culturais específicos. Dessa forma:

Apesar de sua extrema variedade, os fenômenos religiosos aparecem como um tipo


característico de esforço criador em diferentes sociedades e condições que
procurando colocar ao alcance da ação e compreensão humanas tudo o que é
incontrolável, sem sentido, conferindo valor e significado para a existência das
coisas e dos seres. As representações de Deus, deuses ou seres sobrenaturais, a
organização da fé, doutrinas ou instituições, mundos do além, salvação, são
fenômenos históricos, criações específicas de impulsos e silêncios, numa trama de
acontecimentos e fatos singulares que variam grandemente, tanto no tempo quanto
no espaço. (SILVA, 2009, p. 207)

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A autora, com base no Censo brasileiro de 2000, afirma que o Brasil é uma nação
cristã, de maioria católica, com forte crescimento dos evangélicos pentecostais: 73% da
população diz ser católica e 15,4%, evangélica. Somos, portanto, esmagadoramente cristãos
monoteístas.
Nesse sentido, não raro outras formas de religiosidade aparecem no discurso midiático
associadas a ataques terroristas ou ao uso das famigeradas burcas. Em geral, tais imagens
colaboram para que impere a incompreensão e o estereótipo. Para esta autora, pois, impõe-se
a necessidade de compreender o outro para além de seus véus e templos, rituais e orações. É
necessário que sejamos educados para entender os aspectos e a originalidade das religiões, as
formas de mobilização e como se situam no tempo e no espaço. Esta é uma tarefa urgente dos
professores e educadores preocupados com a tolerância fundamental para o respeito entre
pessoas.
O estudo de manifestações religiosas diferentes das predominantes pode contribuir,
acredito, para exercitar o olhar para a alteridade. Atividade complexa, mas para a qual o
conhecimento histórico tem muito a oferecer. A ênfase aqui dada aos cultos politeístas
egípcios é, evidentemente, apenas uma entre tantas possibilidades de pensar a questão, que
nem de longe a esgota. A fim de destacar algumas ideias centrais fundamentais para a
elaboração da primeira etapa do plano de aula indicado acima, serão expostas a seguir
algumas reflexões sobre a cultura e religiosidade egípcias.
De acordo com Margaret Bakos (2009), o Egito estava dividido em nomos, grandes
extensões de terras, onde se fundavam cidades (niwts) e aldeias (demis). Nessas
circunscrições, escribas e outros funcionários reais estabeleciam um organizado controle
sobre a produção agrícola e artesanal da região. Representados sobre a terra pelo Faraó, os
deuses presidiam a ordem cósmica, exprimida pela verdade – Maat – e pela justiça, tendo
cada nomo, cada cidade o seu deus protetor.
A agricultura era uma atividade fundamental entre os egípcios. Muitos mitos, por sua
vez, apontam para esta importância. Segundo a autora, o aproveitamento do vale fertilizado
pela aluvião do Nilo, através do trabalho braçal rotineiro e obrigatório do homem,
simbolizava a luta travada entre os deuses Osíris e Seth, com a vitória daquele através de seu
filho Hórus. Além do trabalho, o ser humano era convocado a contribuir para a vitória da terra
negra (vale fértil do Nilo) deificando e adorando as forças da natureza, mediante rezas e
oferendas cotidianas. O nível das inundações do rio Nilo (o ideal era uma enchente de sete a
oito metros), por seu turno, era vital para a população, uma vez que quando as águas voltavam

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ao seu leito – no outono – a terra ficava coberta com um solo fértil adicional. Sobre este
assunto, é ilustrativo o seguinte comentário de Bakos:

Uma inscrição esculpida durante o período Ptolomaico na ilha de Siheil, recordava


uma ‘fome’ que supostamente ocorreu no Egito durante o reinado de um rei
identificado, por alguns historiadores, como Djoser da terceira Dinastia (2.600 a.C.).
Em um sonho, Khnum anunciou para o rei que o fracasso da inundação devia-se a
terem sido negligenciados os deuses das regiões das cataratas. O Rei, por decreto,
restabeleceu os territórios e as oferendas aos deuses, assegurando que a enchente
atingiria o nível desejado. A espécie humana curvava-se, nesse período histórico, à
natureza, cujo trato devia obedecer aos rituais: temia mutilar um deus se não
cortasse da maneira usuária uma pedra ou enterrasse uma semente [...]. (BAKOS,
2009, p. 79-80)

Os antigos egípcios reconheciam, pensavam e tratavam os objetos cósmicos como


deuses ou deusas: o sol era adorado como Re, a lua como Thot, o céu como Nut e a terra como
Geb. Um eclipse solar era um episódio assustador, significando que o astro fora engolido pela
serpente, animal peçonhento do deserto. A cosmovisão dos egípcios, por sua vez, se formou
de diversos mitos, acolheu sincretismos de um para o outro, também sofreu influências
estrangeiras contemporâneas e mudanças, ao longo dos três mil anos de história faraônica.
Acerca desta questão, são relevantes as considerações de Mircea Eliade (1976).
Conforme o autor, foram a religião e o dogma da divindade do Faraó que
contribuíram, desde o início, para modelar a estrutura da civilização egípcia. Além disso, foi
meditando sobre o mistério da morte que o gênio egípcio realizou a derradeira síntese
religiosa:
Como em todas as religiões tradicionais, a cosmogonia e os mitos das origens (a
origem do homem, da realeza, das instituições sociais, dos rituais, etc.) constituíam
o essencial da ciência sagrada. Naturalmente, existiam vários mitos cosmogônicos,
que davam destaque a deuses diferentes e localizavam o começo da criação em um
sem-número de centros religiosos. Os temas alinham-se entre os mais arcaicos:
emergência de um outeiro, de um lótus ou de um ovo sobre as Águas Primordiais.
(ELIADE, 1976, p. 112)

No que se refere aos deuses criadores, cada cidade importante colocava o seu deus em
primeiro plano, sendo as mudanças dinásticas muitas vezes acompanhadas pela mudança da
capital. Tais acontecimentos obrigavam os teólogos na nova capital a integrar diversas
tradições cosmogônicas, identificando o principal deus local com o demiurgo. Quando se
estava às voltas com deuses criadores, a assimilação era facilitada pela sua semelhança
estrutural. Mas os teólogos elaboraram, além disso, sínteses audaciosas, assimilando sistemas
religiosos heterogêneos e associando-lhes figuras divinas claramente antagônicas.
Parece-me, nesse sentido, que um dos pontos fortes da argumentação de Eliade é que o
grande estudioso das religiões alerta para as descontinuidades dos cultos, de modo que chama
a atenção do leitor para a armadilha de homogeneizarmos as crenças dos egípcios que
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supostamente teriam se mantido uniformes aos longos de milênios. As dinâmicas de


continuidades e rupturas são, portanto, indicadas pelo autor (por exemplo, temos a tentativa,
com o faraó Akhenaton, de estabelecimento do culto monoteísta, que foi um verdadeiro
fracasso).
O mito, ademais, era uma forma de explicação para processos naturais que estavam
sem resposta no pensamento egípcio, tais como a criação do mundo, da raça humana e o pós-
morte (ROCKENBACK, 2013). Os mitos também passavam um tipo de moral, concepção de
ordem e caos, e valores éticos que deveriam ser seguidos e ensinados às próximas gerações.
Além disso, os mitos representaram coisas que acontecem na vida do ser humano e
podem transpassar tempos históricos e espaços sociais. Marina Rockenback (2013), ao
analisar o mito de Ísis e Osíris a partir da versão de Plutarco, afirma que a dualidade é uma
forte característica da mentalidade egípcia. Tal dualidade é vista no mito, porquanto nele estão
presentes a noite e o dia, o deserto e o Nilo, o bem e o mal, esposo e esposa. Não podemos ver
o dual como algo do avesso, a dualidade não é apenas composta de partes contrárias ou
antagônicas, essas partes são também complementares; é necessária, portanto, a presença dos
dois para que o um possa existir.
Conforme a autora, a própria relação entre os deuses e o homem é de forma oposta e
complementar, pois os deuses apresentam características e ações semelhantes as dos humanos.
Contudo, também apresentam poderes que os homens não possuem: “O mundo divino e o
mundo terreno precisam estar em Maat, ou seja, precisam estar em equilíbrio, e é assim com
todos os outros aspectos, segundo a civilização egípcia, porque o equilíbrio é fundamental
para uma vida plena.” (ROCKENBACK, 2013, p. 170).
A partir dos mitos, então, podemos observar muitos dos valores e normas da sociedade
egípcia. Um dos aspectos desta sociedade que podemos encontrar nestas narrativas é a sua
relação com a morte. Assim, para os egípcios antigos a morte não era algo ruim, era apenas
uma transição. Vivia-se a vida terrena, a qual se devia seguir e cumprir tudo que o torna-se
um homem pleno, verdadeiro e de valores. Após a morte, acreditava-se que o indivíduo
passava por um julgamento, feito por Osíris, no qual seu coração devia ser leve como uma
pena, para que tivesse o direito de ter a sua vida no submundo, caso contrário era condenado à
inexistência, acabava ali então a sua jornada.
Tendo isso em conta, a segunda etapa do desenvolvimento do plano de aula aqui
descrito teve por objetivo solicitar aos alunos que apontassem determinados aspectos da
sociedade egípcia perceptíveis através do estudo dos seus mitos. Com isso, buscava-se
também explorar o conceito de politeísmo e suas implicações. Para tanto, foi solicitada a
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 330-347, Jul. 2015
340

elaboração, pelos estudantes, de um trabalho escrito. A fonte utilizada para a escrita do


trabalho, além dos materiais utilizados nas aulas introdutórias, foi o livro “Melhores Histórias
da Mitologia Egípcia”, de autoria de Carmem Seganfredo (2006). A opção por selecionar
alguns contos deste material se deu em função de que a autora aborda os principais mitos
egípcios a partir de uma linguagem razoavelmente acessível para o público jovem. Esta foi,
também, uma possibilidade de trabalhar de forma interdisciplinar, uma vez que pude contar
com a colaboração da professora de Literatura, que também desenvolveu o estudo da narrativa
em suas aulas.
O trabalho escrito foi uma estratégia para estimular a leitura e a escrita, habilidades
fundamentais, sobretudo no Ensino Médio (SEFFNER & PEREIRA, 2008). Além disso,
também foi oportuna para diagnosticar a apropriação da temática pelos alunos até o momento
em questão. A atividade foi em grupo e os resultados foram satisfatórios no sentido de que
denotaram, na média, apreensão do conceito de politeísmo e de certas características dos
egípcios compreensíveis a partir de suas narrativas mitológicas.
É necessário, ainda em relação a segunda etapa do plano, indicar que é muito
importante evidenciar para os alunos quais são as principais fontes históricas para o estudo do
conjunto de mitos egípcios. É possível e desejável, inclusive, que se utilizem estas fontes em
sala (SEFFNER & PEREIRA, 2008a), selecionando alguns trechos de orações do O livro dos
mortos do antigo Egito (2005), por exemplo. Esta pode ser uma atividade alternativa àquela
desenvolvida na segunda etapa aqui compartilhada.
Por fim, é ainda necessário percorrer a terceira etapa indicada no início desta seção. A
fim de sistematizar e buscar abordar o conteúdo estudado de forma lúdica e divertida, foi
construído um jogo que pudesse dar conta de divertir e retomar alguns dos aspectos estudados
nas aulas anteriores. Um dos principais objetivos a serem atingidos com o jogo, pois, refere-se
à fixação do conceito de politeísmo, no sentido de atentar à multiplicidade de deuses que
conformam as crenças egípcias.
Nesse sentido, é pertinente apontar as definições e regras gerais do jogo aqui proposto,
visto que, como lembra Huizinga (2000), todo o jogo é marcado por brincadeira e seriedade,
sendo a existência de um conjunto de regras parte dele. O baralho, que foi criado
especialmente para este jogo, contém 56 cartas e é composto por cartas que correspondem a
nove deuses egípcios, que se repetem. Cada um deles tem uma carta correspondente, que
descreve as suas características, formando assim um par. O par é formado por uma carta com
a imagem do deus e outra com um texto que o descreve. Existem três pares de cada divindade
em todo o baralho (ver exemplos de cartas nos anexos). O objetivo do jogo é formar três pares
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 330-347, Jul. 2015
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e então bater. Inicialmente, todos os jogadores recebem seis cartas. O jogador compra e
descarta uma carta por jogada. Se desejar, ele pode comprar uma carta do lixo, mas deve ficar
com todas as cartas que lá estavam, deixando apenas uma no lixo. Sendo assim, vence quem
fizer três pares e não ficar com nenhuma carta na mão além destes pares.
A propósito da atividade lúdica, é apropriado lembrar o que afirma Fortuna (2004).
Esta pressupõe a ação, provoca a cooperação e a articulação de pontos de vista, estimulando a
representação e engendrando a operatividade. Além disso, e fundamentalmente, as interações
que oportuniza favorecem a superação do egocentrismo, desenvolvendo a solidariedade e a
empatia e podem introduzir, através do compartilhamento de jogos e brinquedos, novos
sentidos para o seu uso. Com isso, está claro que o uso do jogo no ambiente escolar está
diretamente associado ao estímulo às interações. O pife da mitologia egípcia, por ser jogado
em grupos (de quatro a cinco jogadores), é um exemplo disso. Uma outa sugestão é que o
professor faça parte destes grupos (preferencialmente se deslocando entre eles) e tome parte
na brincadeira.
O pife da mitologia egípcia foi jogado por sete turmas de primeiro ano do Ensino
Médio. De modo geral, gerou relativo impacto utilizar a aula de história para simplesmente
jogar. Como já apontado anteriormente, a experiência do jogo nas aulas de história já havia
sido implementada nestas turmas, mas ainda não havíamos jogado durante todo o período.
Como esperado, a recepção foi múltipla e, evidentemente, nem todos os alunos acharam a
brincadeira tão divertida. Houve uma dificuldade inicial para completar os pares, visto que
para fazê-lo é necessário saber casá-los. Para facilitar esta tarefa, foram entregues cartas com
as regras do jogo e com todos os pares possíveis de serem combinados no baralho. Com o
suporte deste material, rapidamente a maioria compreendeu as regras do jogo e a forma de
jogá-lo.
Ressalte-se que, apesar das dificuldades iniciais, houve uma expressiva mobilização
dos estudantes no sentido de compreender o jogo e de tentar vencê-lo. É possível afirmar que,
nas palavras de Huizinga, o jogo absorveu inteiramente os jogadores e criou um intervalo em
nossa vida escolar quotidiana. Penso que foi, pois, uma atividade profícua no sentido de
concluir o estudo da sociedade egípcia brincando. Algumas turmas foram convidadas a opinar
sobre o jogo e, de forma sintomática, houve a frequente associação das palavras aprender e
brincar nas respostas. Por fim, me parece que também foi possível, através do pife da
mitologia egípcia, contribuir para que os alunos pudessem imaginar – criar imagens mentais –
sobre a sociedade estudada.

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Da mesma forma que Carla Meinerz (2013), compreendo o jogo como prática cultural
que pressupõe a interação social, e esta temática foi explorada a partir do reconhecimento do
“potencial presente na apropriação do lúdico em experimentações pedagógicas de construção
do conhecimento histórico na escola.” (MEINERZ, 2013, p. 103). É fundamental, contudo,
ressaltar, como aponta a autora, que a proposta de uso de jogos em sala de aula não se quer
uma solução milagrosa para garantir o aprendizado e o desejo de estudar história. Ela vem
somar para diversificar a ação e não substituir propostas já existentes. Foi dessa forma que o
plano de aula acima exposto buscou introduzir esta possibilidade didática.
A fim de compartilhar e tornar acessível a experiência aqui relatada para aqueles que
desejarem reproduzi-la, segue nos anexos deste artigo o material produzido. Penso que o
sistema do pife é uma possibilidade para diversos conteúdos, não se restringindo em seu
formato apenas ao conteúdo abordado no plano de aula que este texto compartilhou. Dessa
forma, o professor/professora pode adaptar esta ferramenta, se assim o desejar, para outros
planejamentos e objetivos.

Considerações Finais

Este artigo compartilhou e analisou a elaboração de um plano de aula para o estudo da


sociedade egípcia, cujo enfoque foi o estímulo à compreensão do conceito de politeísmo. De
modo geral, houve a preocupação em colaborar para que os alunos desenvolvessem
aprendizagens significativas no sentido de que pudessem historicizar as relações entre as
sociedades e suas formas de religiosidade.
O plano de aula esteve dividido em três etapas, que foram discutidas ao longo do
texto. A primeira delas contemplou a abordagem inicial da temática, a segunda a elaboração
de uma produção escrita a partir da leitura de uma versão dos mitos egípcios e a terceira
introduziu a atividade do pife da mitologia egípcia.
Sendo assim, na terceira etapa do planejamento introduziu-se o uso de jogos como
metodologia para o ensino de história. Penso que tal atividade, ao estabelecer um intervalo em
nosso cotidiano escolar e ao estimular a brincadeira associada ao estudo da história, colaborou
para que os estudantes pudessem criar imagens mentais sobre o passado e, consequentemente,
compreendê-lo melhor.

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343

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Hemus, 2005.

Imagens das cartas do baralho (inseridas no anexo 1) extraídas de Wikipédia:

Thot: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tot#mediaviewer/File:Thoth.svg

Ísis: http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dsis#mediaviewer/File:Isis.svg

Sekhmet: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sekhmet#mediaviewer/File:Sekhmet.svg

Hórus: http://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%B3rus#mediaviewer/File:Horus_standing.svg

Anúbis: http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%BAbis#mediaviewer/File:Anubis_standing.svg

Rá: http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A1#mediaviewer/File:Re-Horakhty.svg

Neftis: http://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%A9ftis#mediaviewer/File:Nepthys.svg

Osíris: pt.wikipedia.org/wiki/Osíris

Seth: http://pt.wikipedia.org/wiki/Seth#mediaviewer/File:Set.svg

Textos das cartas do baralho adaptados de:

BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e Mitos do Antigo Egito. Porto Alegre, EDUPUCRS,
2009.

ROCKENBACK, Marina. “Mitos, rituais funerários e valores sociais no Egito Antigo (1550-
1070 a.C.).” Revista Mundo Antigo (NEHMAAT-UFF/PUCG), Campos dos Goytacazes (RJ)
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SEGANFREDO, Carmem. As Melhores Histórias da Mitologia Egípcia. Editora L&PM,


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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 330-347, Jul. 2015


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Site “Só História”: http://www.sohistoria.com.br/ef2/egito/p2.php. Último acesso em


14/10/14.

Anexo 1 – Pife da Mitologia Egípcia: baralho

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Você e o museu: Objetos, História e Memória

Gabriel Castello Costa 1


Marcelo Bahlis 2

Resumo: O artigo desenvolve uma proposta de ação educativa que aborda objetos como possibilidades de fonte
histórica, relacionando discussões em torno da sua temática: História, Objetos e Memória. A ação utiliza-se, na
sua execução, da exibição de excertos de filmes para oferecer diferentes pontos de interpretação, discussão e
análise sobre como os objetos podem ser importantes fontes de memória e história. Entendemos que a memória é
um elemento de ligação entre o sujeito histórico e os fatos que o objeto pode evocar. Assim o intuito da ação é
promover, a partir disso, um ensino de história relacionando e envolvendo a realidade de visão do educando.
Palavras-chave: objeto, história, memória, educando, filme.

Abstract: The paper develops a proposal for action that addresses educational possibilities as objects of
historical source, relating discussions around its theme: History, Objects and Memory. The action is used in its
execution, the display of film clips to offer different points of interpretation, discussion and analysis of how
objects can be important sources of memory and history. Understanding that memory is a liaison between the
subject and the historical facts that the object can evoke. Thus the aim of the action is to promote, from this, a
related teaching history and involved the reality of vision of the student.
Keywords: object, history, memory, student, film

Apresentação

Este artigo visa demonstrar como foi planejada uma ação educativa que pode ser
realizada tanto em sala de aula, como em espaços de memória (arquivos, museus históricos
etc.), a partir de conceitos que são trabalhados tanto nas aulas de história como nas de
educação para o patrimônio, geralmente pouco vistas pelos estudantes dentro da escola. Além
de nossa conceituação, abordamos também, discussões e prognósticos, visto que toda
experiência possui seus limites enquanto relação de diálogo tanto com os estudantes, como
entre nós, educadores mediadores da atividade e autores do artigo.

Objetos, História e Memória: problematizações sobre como estes conceitos dialogam em


uma ação

1
Graduado Lic. História (UFRGS) – Téc. Assuntos Culturais – Museu de Comunicação Social Hipólito José da
Costa. Contato: gcaste@ig.com.br
2
Marcelo Bahlis – Graduando do curso de História (UFRGS) – Bolsista PIBID. Contato: bahlis_@hotmail.com

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 348-363, Jul. 2015


349

Para delimitar nossa abordagem que relaciona história, memória e objeto, entendemos
que é necessário conceituar tais termos para que o leitor consiga compreender a linha de
raciocínio que buscamos trilhar. Dentro da historiografia podem-se encontrar diversas
opiniões sobre os conceitos estudados e pensamos que seja importante situar as palavras
referentes aos conceitos utilizados ao longo do texto. Pensar o que é história e como é trilhado
este conhecimento científico ao diferenciá-lo da memória é um dos objetivos que passamos a
expor. Do mesmo modo, vamos demonstrar também como são utilizados estes conceitos em
uma metodologia de oficina educativa para a aproximação das reflexões que a mesma
pretende despertar.
Mesmo tendo o passado como matéria-prima de seu conhecimento, história e memória
carregam abordagens diferentes em seu uso e apropriações. Entende-se que, mesmo o passado
que já aconteceu, dentro de uma global infinidade totalizante de fatos particulares, coletivos,
relevantes ou não aos processos sociais, não significa que o mesmo seja sempre sinônimo de
história. O que nos interessa aqui é o sentido que este passado adquire. Como primeiro passo,
trilhamos um breve caminho de conceituar minimamente o que é história e como se dá o seu
fazer, ao criar uma oposição entre esta ciência e outras formas de conhecimento.

O historiador é profundamente empirista. Ele em preocupação com a fonte, com o


dado, com o fato, com o processo. Quando você pergunta a alguém o que está
estudando em História, recebe uma resposta do tipo: 'Ah eu estou estudando a
Revolta da Vacina'. Uma coisa bastante definida no tempo, um processo delimitado.
O antropólogo pode se interessar, por exemplo, por campesinato ou religião de
modo geral, seja na Nova Guiné, na América Latina ou no Caribe. O historiador se
sente seguro se o que ele disser for apoiado em grande quantidade de documentação.
Por isso tem dificuldade em generalizar (CARDOSO, 2012, p. 54).

Com base na citação de Ciro Flamarion Cardoso conceituamos o fazer histórico a


partir de sua metodologia. A história é feita com fontes, dados do passado que a partir das
perguntas que lhe são feitas, são interpretadas por quem as faça. Não há história sem fontes,
porque são essas as peças do passado que o historiador tem para analisar. Note que há
diferença entre saber que os fatos do passado são objetos de análise do conhecimento
histórico, e a visão positivista que vê o fato histórico como um dado do passado que já o
representa por si só - visão presente no conhecimento histórico do século XIX.
É a partir das perguntas que surgem as interpretações sobre o passado. O clássico de
Marc Bloch "Apologia da História" (2001), situado na primeira geração dos Annales, que
revolucionou o conhecimento histórico, crê na história como ciência dos homens no tempo, ao
que compreende que o passado e o presente estão em uma relação de construção e
reinterpretação constante.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 348-363, Jul. 2015


350

Dado? Não, criado pelo historiador e, quantas vezes? Inventado e fabricado, com a
ajuda de hipóteses e conjecturas, por um trabalho delicado e apaixonante... Elaborar
um fato é construí-lo. Se quisermos, uma questão dá-nos uma resposta. E, se não há
questão, não fica mais que o nada (LE GOFF, 1990, p. 31).

Ao situar o historiador no tempo de quem pesquisa e escreve sobre um fato, em uma


relação de sujeito e objeto da ciência histórica, Le Goff diria que a abordagem da primeira
geração dos Annales mostrou o caráter científico e abstrato do conhecimento histórico (Idem,
p. 23). Ao conscientizar os historiadores de que ao mesmo tempo em que o passado pode ser
reconstruído e reinventado - com base em métodos de pesquisa, o autor ressaltou a posição no
tempo em que o historiador se encontra e que a distância em relação às fontes é um dever para
não cometer anacronismo de transportar seus valores para o objeto de estudo. O autor da
terceira geração dos Annales, diferente de Bloch, vê a história como ciência do passado, mas
considera o trabalho do historiador como de reinterpretação dos objetos de estudo. Pode ser
observado que nas duas abordagens, um fato é comum: o passado é datado, estranho e possui
uma distância intransponível ao historiador. Este passado não pode ser trazido de volta como
já existiu um dia, porém pode ser reinterpretado por pensarmos que ele é uma construção.

Passado não é história e também não é memória. O passado é o tempo que passou
[...] que somente toma sentido quando o tomamos através de fragmentos, de
vestígios, de documentos e o atualizamos, desde nosso presente. [...] A verdade não
está, então, no passado, mas no discurso. A História não é o passado, mas o discurso
que o presente nos permite construir sobre o tempo que passou (PEREIRA, 2014, p.
83).

Enquanto a história possui seus métodos de pesquisa e tenta reconstruir dentro de seus
limites com o foco nos fatos, aquilo que já não existe mais, a memória só retém do passado
aquilo que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém
(PETERSEN, 2013, p. 313). Cabe ressaltar aqui que entendemos a memória como objeto da
história, material do conhecimento, fonte para a pesquisa histórica, que privilegia delimitar as
rupturas e acidentes do passado, enquanto a memória trazida ao presente pelos grupos que a
preservam, é caracterizada pelo sentido de continuidade, onde não se destaca as
singularidades de cada período passado. Mary Del Priore reflete sobre o trabalho do
historiador e diz que "sabemos que a memória resgata o passado para servir ao presente e ao
futuro. Está aí uma boa razão para nos preocuparmos com ela" (PRIORE, 2006, p. 51).
Foucault contribui para a presente discussão e buscamos na Microfísica do Poder um
fragmento de um texto seu sobre o fazer do conhecimento histórico através da genealogia:

A genealogia demarca os acidentes, os ínfimos desvios, ou ao contrário, as inversões


completas os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento
ao que existe e tem valor para nós, é descobrir que na origem daquilo que nós

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 348-363, Jul. 2015


351

conhecemos ou do que nós somos não existe a verdade e o ser, mas exterioridade do
acidente (FOUCAULT, 2012, p. 21).

Ao conceituar o conhecimento histórico, buscamos aliar este conhecimento à história


ensinada em espaços escolares e pensar como esta pode servir aos estudantes, colocando-os
também como sujeitos do processo. Mullet e Marques nos trazem perspectivas para a sala de
aula que são úteis à construção do saber que buscamos. Os autores citam a narrativa como
expressão da linguagem histórica que valoriza as experiências como "alguém que viajou e traz
histórias para contar. “A história contada pelo narrador entrelaça sua própria experiência com
aquelas de quem ele recebeu a narração. O narrador não conta uma história 'pura' em si”
(PEREIRA, 2014, p. 96). Tal abordagem foi trazida por nós para a realização da atividade, de
modo que nessa perspectiva valoriza-se as memórias individuais onde a história ensinada não
traria de antemão uma matéria estática mas um campo de possibilidades do saber, onde
diferentes concepções estariam interligadas e em releituras constantes. Tal atitude pedagógica
possibilita pensar o conhecimento histórico a partir do reconhecimento de que também somos
seres produtores de história.
O conhecimento histórico dentro da sala de aula estaria assim sendo exercido onde os
alunos pensariam nos objetos de uma forma mais crítica. Cria-se, assim, uma visão que pode
ser diferente da visão antiga para com o objeto, ao passo que se percebe a amplitude de visões
que o conhecimento histórico possibilita em seus conteúdos.

Aprender História pode significar tanto saber sobre um passado estranho, que nos
inspira à criatividade, quanto a um pensar nosso, presente, como experiência
singular, que faz com que tenhamos que pensar criativamente sobre nosso modo de
vida (PEREIRA, 2014, p. 100).

Seguindo neste modo de pensar, queremos destacar o papel importante que tem o
conhecimento construído junto aos estudantes, ou seja, o de incluir a percepção da
singularidade de cada momento histórico e de cada experiência individual que serve para a
ligação entre os estudantes e a matéria História. Destarte, propomos uma atividade que tenha
nos objetos, o disparador para se pensar as memórias individuais de cada aluno. Visto que,
cada experiência pessoal pode ter algum potencial gerador contribuinte para o interesse da
análise do motor da história e, assim como escreve Nora: “o dever da memória faz de cada
uma o historiador de si mesmo” (NORA, 1993, p. 17). Nesta mesma linha de raciocínio,
entende-se que a memória é um elemento pessoal conector na relação entre o objeto e o
sujeito que constitui o conhecimento histórico: “a memória individual, assim como a memória
coletiva, são na verdade a fonte e a base fundamental para o pleno exercício de nossa vida

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consciente e de nossa inserção na vida social” (HORTA, 2000, p. 28). Assim não podemos
desprezar a carga de vida contida nos sujeitos educandos, pois:

[…] a tarefa do educador é enriquecer e organizar os múltiplos elementos que, ao


longo da vida, vamos acumulando em nossa memória, o “mobiliário da mente” [...],
que é composta não só de palavras e ideias, mas também de imagens visuais,
sensações, odores, gostos, sentimentos e vivências, adquiridos através dos
mecanismos da percepção e das trocas comunicativas que estabelecemos em nosso
meio ambiente social e cultural. Todos esses elementos se entrelaçam em nosso
cérebro, mais particularmente no “locus” da nossa memória, como uma teia de
conexões e relações, como um emaranhado de lianas numa floresta de dados,
verbais, visuais, sensoriais, que uma vez ativados pelos processos ou funções
mentais superiores (de que trata Vygotsky), vão sustentar a formação de conceitos,
de ideias, de julgamentos, e a criação de novas formulações, no processo do
pensamento consciente, da reflexão da análise crítica que nos permite tomar
decisões e chegar à conclusão em nossa vida quotidiana (Idem).

Ramos escreve: "Na medida em que são vestígios do passado recente ou mais
longínquo, os objetos também se constituem em um ‘cruzamento de itinerários possíveis’”
(RAMOS, 2004, p. 62). Os objetos carregam historicidade e não falam por si. Seus diferentes
usos ao longo da história podem nos mostrar que são fontes que devem ser criticadas. Torna-
se tempo de não mais nos pensarmos como sujeitos autocentrados, onde se pensa
condicionadamente os objetos apenas como dominados para uso humano. Desejamos assim
como Ramos “uma nova ‘abertura ecológica’, capaz de enxergar a vida que há nos objetos”
(Idem, p. 61). Pensando assim, os objetos existem enquanto relacionados com a humanidade e
vão ser o ponto de partida e encontro da ação educativa em voga.
Temos o hábito de querer entender a história contida nos documentos e nos
esquecemos de nos ater ao fato de que os objetos também têm história para contar. Pois, afinal
de contas, vivemos cercados de objetos, seja através do uso, seja pela produção dos mesmos.
O homem nunca foi o animal mais forte, mais veloz ou mais adaptado. Porém o
desenvolvimento da sua capacidade de pensar e fabricar objetos levou-o a sobrepujar as
dificuldades do ambiente produzindo meios e formas para superá-lo, driblá-lo e, até mesmo,
destruí-lo ou alterá-lo. Desta forma percebe-se que a humanidade está sempre produzindo
objetos para “facilitar a vida” e acelerar os processos produtivos. A questão é que a tecnologia
está sempre em transformação, assim como os costumes humanos que se modificam,
tornando-se normal a substituição dos objetos que nos cercam de tempos em tempos. Isso faz
vir à tona, na disciplina de história, a pertinente discussão sobre a atualidade da sociedade de
consumo, a qual não podemos ignorar, deixar de historicizar, ou mesmo, contextualizar para
compreender a nossa relação com os objetos através do tempo. Como aponta Ramos:

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Enfrentar a sociedade de consumo é, ou deveria ser, o pressuposto básico de qualquer


atividade relacionada ao uso de objetos em aulas de história, pois a consciência
histórica não trata do passado isolado e sim das várias tramas entre pretérito e
presente, sem esquecer do campo de expectativas ligado ao futuro. O estatuto atual
do objeto é, portanto, ponto de partida. Só assim torna-se viável, por exemplo, as
chamadas “visitas educativas” aos museus ou quaisquer outros “lugares de
memória”. (RAMOS, 2008, p. 181).

Seguindo na mesma discussão em torno da sociedade guiada pelo consumo, a


apropriação que os objetos ganham, gera um debate importante acerca da história dos objetos.
Baudrillard diria que:
Estamos no tempo dos objetos. No passado, não muito distante, havia uma
perenidade que hoje não se vê: os objetos viam o nascimento e a morte de gerações
humanas. Atualmente são os homens que assistem ao início e ao fim dos objetos
(BAUDRILLARD, 1995, p. 15).

Assim, demonstrar a historicidade que está contida nos objetos é um dos principais
intentos desta ação. Entretanto, não somente do modo mais usual. Ou seja, o objeto e a sua
trajetória fabril (que marca era? De que elemento foi feito? Fabricação?), mas a sua relação
para com os sujeitos históricos como uma forma de “testemunha simbólica” de determinado
feito, um conector para o acionamento da memória pessoal relacionada a um fato ou processo
histórico. Trazendo à tona para os educandos a abrangência do fazer histórico, através da ação
e do contato com os objetos.
Segundo Ramos, é de fundamental importância para a compreensão da história,
desenvolver a capacidade de ler objetos:
No cotidiano, usamos uma infinidade de objetos: desde a televisão até uma roupa.
Por outro lado, pouco pensamos sobre os objetos que nos cercam. Se pouco
refletimos sobre nossos próprios objetos, a nossa percepção de objetos será também
de reduzida abrangência. Sem o ato de pensar sobre o presente vivido, não há meios
de construir conhecimento sobre o passado. E o próprio conhecimento do já
pressupõe referências ao pretérito (RAMOS, 2004, p. 21).

Pensando sob esta orientação, que dá aos objetos um caráter de fonte histórica tanto
como os documentos, é que pensamos a atividade a ser desenvolvida com os alunos de Ensino
Médio da Escola Estadual de Ensino Médio Irmão Pedro, localizada no bairro Floresta, em
Porto Alegre. Mais do que nunca os objetos devem ser historicizados tanto em sala de aula,
como no museu e pensar este debate com os jovens torna-se fundamental para uma nova
abordagem deste aspecto da história, capaz de enriquecer as competências multidisciplinares
dos educandos no desenvolvimento das atividades na sala de aula.

A metodologia da Ação

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Esta atividade constitui-se em duas etapas de abordagens diferentes, a primeira onde


são passados excertos de alguns filmes e, após a leitura visual destes, utiliza-se uma
interpretação crítica histórica do pequeno trecho selecionado. Cabe ressaltar que os filmes
selecionados não possuem, necessariamente, na íntegra de seus roteiros, um apelo histórico,
porém, as partes escolhidas trazem em si um momento de reflexão sobre os objetos, a
memória e o fazer histórico. Já a segunda parte da atividade está relacionada mais diretamente
à realidade dos alunos, onde estes pensariam suas vidas e objetos que lhes são significativos,
dentro da história.
Pensamos que estes trechos despertam a curiosidade para a reflexão da relação
cotidiana dos alunos com os objetos, trazendo à tona a função de memória que os mesmos
carregam. Também se pensou que a linguagem visual, muito difundida atualmente em vídeos
curtos pela internet, está sendo cada vez mais utilizada pelos jovens, assim é interessante que
o professor, em sua função educadora, proponha a utilização destas linguagens, enquanto
ferramenta didática para estimular a realização de discussões construtivas sobre a leitura
visual de trechos das imagens em ação, muitas vezes carregadas de inúmeras possibilidades
de significados e interpretações.
No artigo “Imagens da História na Indústria Cinematográfica” (2002), os autores Nilo
Castro, Stefan Bonow e Taís Lucas afirmam que “quando as principais referências para
diversão e cultura são a TV e o cinema, as pessoas tornam-se mais suscetíveis às
manipulações dos meios de comunicação, hoje quase onipresentes”. Nestas páginas,
gostaríamos de deixar clara nossa posição que defende a sala de aula como um espaço de
reflexão e debate e, portanto, de disputas entre posicionamentos perante fatos da sociedade.

O professor deve agir e interferir nessa relação do aluno com a imagem, estimulando
o seu potencial de crítica. Essa é a obrigação que se tem de criar condições para
ressaltar, esclarecer, instigar à luz das referências já existentes, os
conhecimentos adquiridos que permitam a leitura da película. (CASTRO; BONOW;
LUCAS, 2002, p. 170)

Deste modo, a questão da utilização dos excertos de filme na oficina se trata de um


tipo de ferramenta que vai introduzir o tema Objetos, Memória e História de forma leve e
interpretativa sendo uma proposta de reflexão que se faz a partir de fragmentos específicos
das películas escolhidas que tenham determinadas cenas relacionadas com os conceitos
abordados no título da oficina.
Dentro das potencialidades que os trechos dos filmes trabalham se busca extrapolar a
função cotidiana do objeto para uma função também de memória relacionada ao contexto que
os objetos são “testemunhas”. Ou seja, como apresenta Francisco Régis Lopes Ramos ao

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comentar a função de reflexão que os estudos sobre cultura material trazem, pressupondo
exatamente isto: a vida que há nos objetos, a historicidade constitutiva dos objetos, que
permite novas aventuras para o ato de conhecer o nosso mundo e o mundo de outros tempos e
outros espaços (RAMOS, 2004, p. 151-152).
Isto posto, passamos a próxima parte do texto que vai expor como são propostas as
reflexões sobre os excertos dos filmes exibidos aos educandos. Cada trecho é projetado aliado
a um ponto de reflexão que está exposto nos subtítulos que se seguem. Após cada exibição é
aberta a roda de discussões para que se lavre o terreno de interpretação que os educandos
perceberam ao observar o ponto escolhido do filme tendo como ponto de pauta a frase guia
que media os diálogos possíveis do debate.

O objeto e a sua história: O senhor das armas

O excerto de "O Senhor das Armas" é sobre a introdução do filme, onde se vê a


fabricação de uma bala, dentro de um depósito, junto a milhares de balas que também ali se
encontram. Junto ao trecho que se refere à abertura do filme segue como trilha sonora do
mesmo a música "For What It's Worth" da banda "The Buffalo Springfield". Assim, as balas
não deixam de seguir seu rumo, partindo de um estágio de desenvolvimento para outro, onde
pessoas trabalham em um ambiente de fábrica, a diante, os projeteis acabam sendo
armazenadas dentro de uma caixa. Enquanto a música segue em seu refrão deixando um
aviso: "I think it's time we stop / Children, what's that sound? / Everybody look what's goin'
down. (Eu acho é hora de pararmos. / Crianças, que som é aquele? / Todos olham o que está
acontecendo). A caixa com as balas é aberta, e surge na tela um ambiente de guerra. Após
instantes, onde outros projéteis tomam diversos rumos, um tiro é disparado e a bala acaba na
cabeça de um jovem negro, em um local fictício que a película possivelmente reproduz como
sendo em alguma parte da África.
A partir deste ponto, busca-se contextualizar a cena com a importância dos objetos
criados pelo homem e sua função primordial. A cena segue a história de uma bala, desde sua
criação, seus diferentes contextos, até o momento em que ela cumpre a função para a qual foi
criada, machucar à outros. Pensando em analisar junto com os educandos, a história deste
objeto. Perguntamos: “e se a bala pudesse se comunicar? O que acham que ela diria?” Em um
juízo de valor, perguntamos “o que este final causou aos mesmos que estavam vendo o
filme?”.

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Quando se aborda uma bala de arma de fogo como objeto que serve como fonte
histórica, se aborda a capacidade de criação da produtividade humana, não apenas para o bem
e para o útil, mas também para a destruição. Pois, no filme, o objeto (o projétil) é abordado
como um meio para se apresentar um contexto, criando-se uma atmosfera de rotina onde “a
bala” vai de lá para cá sendo produzida, selecionada, armazenada e transportada. Inclusive
passa por perigos ao quase cair no mar, mas no final, o destino de uso deste objeto na sua
peculiaridade se cumpre e a bala vai ser usada em um conflito. Ela é carregada junto a outras
balas “irmãs” que são disparadas. Ela, a bala, poderia ter sido lançada ao ar, ser usada para
treinar alvo, poderia terminar na carroceria de um carro ou mesmo no reboco de uma parede,
mas de todos os destinos possíveis ela consegue atingir um ser humano de forma fatal,
causando um choque nos desavisados que se deixavam levar por uma simples abertura dos
créditos da película.

Nossa vida é um museu. Um objeto, uma ou várias memórias? Uma vida iluminada

Há dois trechos selecionados de "Uma vida Iluminada". No primeiro, mostra um


menino pequeno, que vai crescendo aos poucos e guardando objetos que seleciona segundo o
que lhe é interessante. Após, alguns momentos, o rapaz cresce e já é adolescente quando se
vira para uma parede e a tela mostra um local todo decorado com objetos e nomes de pessoas.
São objetos escolhidos pelo rapaz, de pessoas que passaram em sua história e deixaram
alguma coisa que, para o rapaz, tem valor de memória e ele guarda segundo sua própria
lógica.
Pode-se a partir deste excerto, trabalhar com a questão da organização de objetos,
visto que todos os guardamos segundo uma lógica particular. Assim como também os museus
possuem seu modo de guardar objetos com alas e seções próprias, cada um tem seu modo de
organização e pode, eventualmente, em diferentes volumes e modos, guardar objetos ou
vestígios que falem ou lembrem algum determinado momento específico da sua vida.
Quando vemos a história deste personagem notamos a importância que ele dá aos
objetos a sua volta, enquanto fontes e possibilidades de lembrar e reconstruir a sua própria
história e as suas relações de vida. Deste modo, quantas vezes nós não fazemos o mesmo,
muitas vezes sem perceber e, claro, sem a meticulosidade do personagem em questão, mas
algumas vezes revivemos mesmo que brevemente, fatos da nossa vida remexendo em objetos
e documentos que, porventura, guardamos em uma gaveta, caixa ou porão de casa?

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No segundo excerto, apresenta-se o fato de o rapaz visitar parentes antigos na Ucrânia


e, então num jantar o rapaz impressiona-se com a comida local e os costumes próprios dos
Ucranianos. O rapaz vegetariano, então, recebe apenas uma batata na hora da ceia. Quando a
batata do rapaz cai no chão, o costume local estabelece que a porção seja dividida entre todos.
São culturas próprias que em um país distante não se compreende muito bem, caso não se
esteja imerso na cultura do povo local. Ao final de toda a Odisseia necessária para a vinda de
sua comida (a batata), ele a guarda exatamente por esta representar a vivência de um fato
estranhamente diferente e memorável com seus novos amigos durante esta viagem.

O que um objeto pode valer? O cheiro do Ralo

O trecho selecionado, utiliza uma sequência de imagens em que há um penhor de


antiguidades aonde as mais diversas pessoas com dificuldades financeiras vão para vender
objetos antigos, nutrindo a esperança de que o dono do mesmo compre seus objetos. Para isso,
os personagens utilizam de toda uma argumentação contando uma história carregada de
memória, visando persuadir o lojista de que aquele objeto tem, de fato, algum tipo de valor. A
memória é retomada aqui como em Walter Benjamin (1993) que buscou nas suas
reminiscências do passado, uma seleção que privilegiasse sensações afetivas, suscitadas por
indagações do presente. Voluntariamente o autor seleciona certas lembranças para contar sua
cidade do passado, de modo que estas lembranças são vistas pelo olhar do presente. Ao se
situar no tempo em que estas lembranças são fatos do passado, o autor possibilita que tais
recordações possam receber novos sentidos, através de um novo contexto e, ao rememorar sua
cidade invadida pelos nazistas, o processo de recordar acaba por selecionar o que é
conveniente ser lembrado no tempo presente.
Este pequeno trecho do filme suscita algumas questões pertinentes para a reflexão,
quais estas: o que um objeto pode valer ou significar diante de algum fato histórico? E,
principalmente, como se pode atribuir valor histórico a algo? Introduzindo a discussão sobre:
como se cria um monumento ou um patrimônio histórico?

E se só restasse objetos? Wall-E

Seriam duas cenas do início do filme onde o personagem Wall-E está no planeta Terra
devastado e cheio de lixo para compactar e, em meio a este contexto, ele interage de forma
inusitada e engraçada com vários tipos de objetos que foram deixados para trás tentando

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assim entender como eles funcionavam ou como eram utilizados e, deste modo se sentir
menos solitário. Ao final destas cenas ele entra na sua “casa” e lá nos deparamos com
inúmeros objetos colocados em uma ordem de classificação tal qual uma “reserva técnica” de
museu.
Percebe-se que este lugar (a casa de Wall-E) é quase um gabinete de resgate da
história humana na Terra através de objetos diversos. O interessante deste excerto é que ele
facilita introduzir, junto aos educandos, sobre o que se pode deduzir de alguém ou algum
lugar, somente pela investigação dos objetos. Colocar os educandos para imaginar a Terra
sem a existência humana, sobrando apenas os objetos para "contar a história" é algo bem
interessante para a reflexão, pois como a nossa história, sem a nossa presença para explicar,
seria interpretada?

O que nós produzimos e a nossa biografia: V de Vingança

A cena reproduzida neste momento é o da leitura da carta, encontrada pela


personagem Eve (Natalie Portman) e que foi escrita pela presa política que esteve aprisionada
naquela cela. No documento (epístola) que é lido, ela entra em contato com a biografia
daquela pessoa e acaba por conhecer e compartilhar das suas experiências de vida, os seus
sentimentos de medo, coragem, amor, em meio a um contexto de governo repressivo e
fascista. O interessante aí é demonstrar aos educandos se: o que é produzido por, para e sobre
eles, realmente pode falar sobre a história deles? O RG deles é o que define o que eles são ou
o que podem ou poderiam ser? Diante disto, a questão seria comentar sobre o momento em
que nós, historiadores, entramos em contato com os documentos para investigar e assim poder
entender o passado de alguém ou algum lugar. Mas neste processo, é irresistível não imaginar
o que a pessoa (objeto da pesquisa) sentiu, o que falou, como se comportava ou vivia. Ou seja,
um documento originário de uma administração burocrática impessoal pode realmente falar o
que aquela pessoa ou movimento foi?
Este filme, a princípio, não estava nos planos quando se pensava a ação, mas ao revê-
lo em função das manifestações de junho de 2013, nos deparamos com esta parte da película
em específico. Assim é importante comentar aos educandos que quando se estuda história,
aprendemos quais podem ser as fontes, ou mesmo os indícios que permitem o estudo e a
pesquisa, para que, deste modo, possamos compreender o passado o qual investigamos. Os
documentos, os objetos, os prédios, os espaços, os costumes, as fotografias e todos estes em
fins. Entretanto, é irresistível não pensar nas pessoas envolvidas nos documentos que você

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entra em contato e refletir: este documento realmente fala quem ela é, ou foi? O que passou?
O que a fez sofrer? O que a fez feliz? O que a fez lutar? O que a calou? O que ela viveu?
Diante disto, refletir com os educandos: pensem vocês, o que querem deixar para que
se lembrem de vocês no futuro? Será que só um documento poderia falar o que vocês foram?
Pontos como estes podem render uma discussão fértil sobre o que eles pensam sobre o que vai
ser deixado pelo protagonismo deles, assim como, o que eles estão vendo sobre aqueles que já
viveram.

O tempo passa! E o que fica? UP-Altas Aventuras

Este excerto é mais para enceramento da atividade e demonstra a possibilidade que


temos de poder recriar o passado. Principalmente, ressaltar sobre a importância do
esquecimento e a possibilidade que temos de reconstruir e restaurar algo que não
lembrávamos mais e assim poder revisitar ou sentir sensações.
Há dois momentos da película que são destacados para a ação. O primeiro é a
resumida história de Carl e Ellie, desde o casamento, passando pelos momentos de felicidade,
de tristeza e de superação, até o falecimento de Ellie, e a solidão que Carl passou a viver após
este fato. O segundo, o momento em que Carl revisita o álbum de fotografias de sua vida com
Ellie e percebe, pela primeira vez, que ela o havia preenchido com fotos e objetos de todos os
momentos de sua vida juntos, demonstrando agradecida o quando a sua “aventura” de vida
fora plena e feliz com Carl e, assim pedindo para que Carl seguisse a sua jornada vivendo
novas “aventuras”.
Nisto o trecho trabalha de maneira simples e tocante a importância do esquecimento e
a possibilidade que isto oferece para podermos reconstruir a história. A casa voadora do filme
e os objetos da mesma representam o grande amor vivido pelo Sr. Carl Friederich junto a
Ellie, ao ponto de que, a convivência nesta casa provocava junto ao Sr. Carl o resgate
imediato de várias memórias, fazendo com que o mesmo se sentisse mais triste e solitário.
Assim, o filme nos mostra que a preservação dos objetos é importante, mas que não devemos
ser reféns da memória, para que junto a isto possamos evoluir, transcender, progredir e seguir
o processo, pois a final de contas, o que ocorreu antes também faz parte do que nós somos,
mas principalmente do que ainda nos tornaremos.
À memória, neste caso, é dado o seu devido lugar como elemento pessoal, individual e
motivador junto aos educandos. Na aplicação dessa atividade educativa é importante, pois é
algo que faz parte do nosso sempre autoconstruir. Não podemos ser reféns dela, mas ela faz

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 348-363, Jul. 2015


360

parte do que nós somos. Saber disto é parte do transcender, é parte do avanço no processo de
nós. Como ressalta Ramos:

O mais importante é dialogar com o que já foi feito, para quem e contra quem foi
feito. Tratar a cultura em sua constituição conflituosa, dialogar com o passado, não
para sentir saudade ou tentar salvá-lo do esquecimento, mas para interpretá-lo como
fonte de conhecimento a respeito das nossas idas e vindas nos mapas da
temporalidade. Se vamos apagando as marcas do pretérito, perdemos o potencial
educativo de experimentar as diferenças temporais, de sentir a estética do tempo
como forma de entender o que éramos, o que somos e o que poderemos ser
(RAMOS, 2008, p. 188).

Considerações finais: discussão e análise sobre as reflexões pretendidas na ação

A ação usa o conceito prático de memória para puxar como o educando também é
produtor e protagonista dos processos da história. Então, ao se fazer a aproximação entre
história e o sujeito educando, a questão sobre como a memória se faz útil é importante quando
se realiza esta oficina. Pois a memória é pessoal e acaba trazendo o educando pelo emotivo,
ou seja, é a relação pessoal deste sujeito com algum elemento do vestígio humano que ajuda a
despertar nele a sua noção de inclusão como sujeito protagonista num todo histórico.
Consequentemente, a finalidade desta ação é inserir problematizações que gerem
reflexões sobre a nossa condição de criaturas e criadores no tempo.

Conhecer o passado de modo crítico significa, antes de tudo, viver o tempo presente
como mudança, como algo que não era, que está sendo e que pode ser diferente.
Mostrando relações historicamente fundamentadas entre objetos atuais e de outros
tempos, o museu e a sala de aula ganham substâncias educativas, pois há relações
entre o que passou o que está passando e o que pode passar (RAMOS, 2008, p. 190-
191).

Assim, esta ação põe em evidência nos espaços educativos formais e não formais
(escola, espaços de memória, museus etc.) a questão na qual à medida que vivemos não
consideramos o que fazemos ser significante, a ponto de acreditar que não historicizamos as
coisas ao nosso redor, mas historicizamos sim! Hoje realizamos isso o tempo inteiro com o
nosso cotidiano, seja por meio das “coisas velhas” que guardamos no fundo dos nossos
guarda-roupas, seja com postagens de fatos e fotos nas redes sociais. Isto acaba sendo uma
forma, digamos, descompromissada de criar uma narrativa sobre nós mesmos.
A historicização da vida nem sempre precisa ser reduzida a conceitos de como
devemos interpretar os fatos ditos históricos. O ponto é considerar com respeito o
conhecimento trazido pela carga de vida do sujeito educando, valorizando e compreendendo

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 348-363, Jul. 2015


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outras formas pessoais de apropriação da história. Do mesmo modo, problematizar junto aos
mesmos como Nora ao definir memória e história:

Memória e história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe
uma a outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os
usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.
A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe
mais. A memória é um fenômeno sempre atual um elo vivido no eterno presente; a
história, uma representação do passado. [...] A memória se enraíza no concreto, no
espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a
história só conhece o relativo (NORA, 1993, p. 9).

A questão também é produzir uma ação que vá além do curioso, que seja uma
experiência inclusiva de reflexão, situando o educando também enquanto sujeito participante
do processo histórico. A identificação pela diferença nos parece ser o horizonte do ensino de
História, ao dialogar com os estudantes sobre a valorização dos contextos históricos
analisados. Para não cometer o erro do anacronismo histórico de transportar para o passado as
características do tempo atual. A pessoa que estuda história deve estar ciente da singularidade
do presente, assim pode notar que nada é permanente para o estudo da história, porém deve-se
estar atento ao fato que as recordações e os objetos não possuem tal lógica. Portanto,
buscamos com essa atividade expor aos estudantes que a história se encontra ao seu redor e
dentro de cada um e manejar estas identidades e apropriações são maneiras de estar
consciente de sua individualidade ou do campo de forças em perpétua disputa que caracteriza
os homens.
Ora, a proposta aqui defendida para as políticas patrimoniais e, especialmente, para
as políticas museológicas, não se ancora na preservação de uma suposta “identidade
cultural” ou do “resgate do nosso passado”, e sim no direito a diversidade histórica,
o direito à multiplicidade das memórias como pressuposto básico para a construção
de um potencial crítico diante da nossa própria historicidade. Assim, a preservação
tem o intuito de dar a todos nós o direito de saborear a diferença, de perscrutar as
marcas de outros tempos, criando em nós a consciência de que somos seres
historicamente constituídos. Se vamos apagando a materialidade do pretérito, que
está, por exemplo, na própria configuração urbana vamos esvaziando o jogo do
tempo, aniquilando o processo educativo de entrar em contato com o tanto de
experiência vivida que pode ser encontrada no mundo dos objetos (RAMOS, 2008,
P.188).

Referências

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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 348-363, Jul. 2015


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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 348-363, Jul. 2015


O Poder Público e a busca pela salubridade no Rio Grande do Sul da Primeira
República

Fabiano Quadros Rückert1

Resumo: A proposta do artigo consiste em abordar a busca pela salubridade no Rio Grande do Sul da Primeira
República articulando estudos produzidos pela historiografia e fontes documentais relacionadas ao trabalho do
governo na área da Saúde Pública, dentro do marco cronológico de 1889 a 1930. Na abordagem do tema,
pretendo usar os conceitos foucaultianos de medicina social e governamentalidade para analisar ideias e ações
do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) em prol da salubridade da população.
Palavras-chaves: Historiografia; Saúde Pública; Rio Grande do Sul; Primeira República.

The Government and the quest for health in Rio Grande do Sul the First Republic

Summary: The aim of this paper is to address the quest for health in Rio Grande do Sul the First Republic
disseminating studies produced by historiography and documentary sources related to government work in the
area of Public Health, within the chronological marker from 1889 to 1930. In addressing the issue, intend to use
Foucault's concepts of governmentality and social medicine to analyze ideas and actions Rio-Grandense
Republican Party (RRP) for supporting the health of the population.
Keywords: Historiography; Public Health; Rio Grande do Sul; First Republic.

A historiografia da Saúde Pública no Rio Grande do Sul da Primeira República

A historiografia sul rio-grandense produziu nos últimos anos um expressivo volume de


pesquisas que abordaram a saúde pública em diferentes períodos da história do Rio Grande do
Sul. Para o período específico da Primeira República, cabe destacar, por ordem cronológica
de produção, os seguintes estudos: Beatriz Teixeira Weber (1999), Lizete Oliveira Kummer
(2002); Raquel Padilha da Silva (2009), Paulo Sérgio Quaresma (2012), e as pesquisas de Ana
Paula Kondörfer (2007; 2013).
A obra de Weber, intitulada As artes de curar, pode ser considerada um marco nos
estudos de História da Saúde Pública no Rio Grande do Sul; nela, a autora abordou as
principais características da política de saúde pública do governo estadual e destacou a

1
Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Bolsista, modalidade: CAPES – PROSUP. Professor de História na rede municipal de São Leopoldo. E-
mail: fabianoqr@yahoo.com.br

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015


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influência do positivismo sob os líderes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).


Segundo Weber, as intervenções do Estado na prevenção e contenção de doenças foram
condicionadas pela ideia de que não cabia ao governo interferir nos assuntos privados, exceto
em casos de epidemia ou calamidade pública.2 Em nome do princípio positivista de respeito
às liberdades individuais, o governo estadual permitiu o livre exercício da medicina, evitou
isolar enfermos e recorreu à vacinação somente em situações extremas.
A resistência em interferir nas práticas de cura era uma das marcas da política de saúde
pública do PRR, a outra, era a sua preocupação com a promoção da salubridade urbana e com
o saneamento. Os estudos existentes indicam que o interesse do governo estadual pelo
abastecimento de água e pela construção de redes de esgoto foi direcionado prioritariamente
para Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas – as primeiras cidades que receberam auxílio do
Estado para projetos, obras e serviços de saneamento. Sobre este aspecto específico da relação
do PRR com a saúde pública, Weber afirma que:

[...], a política adotada, no Rio Grande do Sul, em relação à saúde teve como
principal preocupação o saneamento das cidades, principalmente as três maiores,
Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Esses centros precisariam de obras de
abastecimento de água e esgoto subterrâneos, que dependiam de avultadas somas, o
que teria provocado o atraso na execução, segundo as falas do governo. A realização
dessas obras e de outras medidas de saúde não deviam prejudicar os cofres públicos,
executando as medidas dentro das possibilidades condizentes com a divisa
“conservar, melhorando”. (WEBER, 1999, p. 54)

Juridicamente, as atribuições do governo estadual e dos municípios na área da saúde


pública foram fixadas pela Constituição Estadual, promulgada em 1891. Posteriormente, o
governo criou o Regulamento para o Serviço de Higiene, aprovado em 2 de abril 1895,
definindo as diretrizes da política estadual de saúde pública. Deste documento, importa
destacarmos a seguinte parte:

Art. 1º - O serviço sanitário do Estado do Rio Grande do Sul comprehende:


1º O estudo de todas as questões relativas á hygiene do Estado.
2º A adopção dos meios tendentes a prevenir, combater ou attenuar as molestias
endemicas, epidemicas e transmissiveis.
3º O saneamento das localidades e habitações.
4º A indicação dos meios de melhorar as condições sanitarias das populações
industriaes e agricolas.

2
Sobre este assunto, a autora afirmou que: “O governo gaúcho defendia que cada indivíduo deveria ser educado
nos princípios da ciência para, então decidir o que adotar quanto à sua saúde. Nessa perspectiva, mantinha-se a
defesa da liberdade profissional especialmente quanto à Medicina, que, junto com a liberdade religiosa, permitiu
que se instalassem diversas práticas de cura no Estado ao longo das quatro primeiras décadas da República.”
(WEBER, 1999, p. 32).

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015


366

5º A inspecção sanitaria das escolas, fabricas, officinas, hospitaes, hospicios, prisões


e todas as demais habitações collectivas.
6º A organisação, direcção e distribuição dos socorros de assistencia publica, em
casos de molestias que se possam tornar epidemicas, adoptando os meios para obstar
o seu desenvolvimento.
7º A fiscalisação sanitaria dos grandes trabalhos de utilidade publica, distribuição de
aguas, cemiterios, remoção de immundicies e quaesquer outras obras que interessem
a saúde publica.
8º A fiscalisação dos serviços destinados á alimentação publica, do fabrico e
consumo de bebidas nacionaes e extrangeiras, naturaes ou artificiaes.
9º A organisação da estatistica demographo-sanitaria.
10º. A fiscalisação do exercicio da medicina em qualquer de seus ramos e da
pharmacia.
11º. A policia sanitaria sobre tudo o que, directa ou indirectamente, possa influir na
salubridade das cidades, villas ou povoações do Estado.3

O Regulamento para o Serviço de Higiene, criado pelo governo gaúcho em 1895,


indica uma preocupação dos líderes do PRR com a prevenção de doenças. Cabia ao governo
inspecionar a higiene de locais estratégicos como hospitais, escolas, fábricas e “habitações
coletivas”; e ao mesmo tempo, fiscalizar os “grandes trabalhos de utilidade pública”, dentre os
quais estavam o abastecimento de água e a “remoção de immundicies.” O texto expressa uma
preocupação com a “salubridade das cidades, villas ou povoações do Estado” e indica que a
prioridade do PRR era a construção de uma política sanitária preventiva.
Em 1907, o governo estadual implantou um novo Regulamento para o Serviço de
Higiene. Neste documento, a liberdade do exercício da Medicina foi reafirmada e houve uma
redução nas atribuições da política sanitária do Estado. No Regulamento de 1895, cabia ao
governo estadual a responsabilidade “por tudo que pudesse influir na salubridade das
populações”, mas a partir de 1907, a Diretoria de Higiene passou a ser responsável apenas
“pelos casos de doenças provocadas por epizootias ou casos que pudessem adquirir caráter
semelhante, de acordo com um decreto específico de 1900 que trata de doenças de animais.”
(WEBER, 1999, p. 52)
A redução nas responsabilidades sanitárias do Estado pode ser facilmente percebida na
comparação dos dois Regulamentos, mas ela não deve ser confundida com um desinteresse do
PRR pela saúde pública. Seguindo a Constituição Estadual, a cúpula do Partido Republicano
Rio-Grandense entendia que cabia aos municípios, com a colaboração do Estado, a promoção
da chamada “medicina preventiva” através de obras de saneamento e a urbanização. Estamos
então diante de uma política de saúde pública que não regulamentou o exercício da Medicina
e evitou usar a vacinação em larga escala e, ao mesmo tempo, buscou interferir nas condições

3
Decreto n. 44, 02 de abril de 1895. AHRS. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado, p. 626.

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367

de salubridade das cidades, sobretudo através de obras de saneamento e da fiscalização dos


produtos destinados a alimentação.
Analisando os efeitos da política de saúde pública do PRR no município do Rio
Grande, Raquel Padilha da Silva pesquisou a epidemia de peste bubônica que atingiu aquela
cidade em 1903 e 1904. Um aspecto interessante nesta pesquisa é a diferença entre os textos
do jornal Echo do Sul,4sobre os problemas sanitários que afetavam a cidade do Rio Grande e o
discurso oficial registrado nos documentos da Intendência.5 A autora constatou que no
período crítico da Peste Bubônica o assunto não foi destacado nos relatórios da Intendência.
Os documentos da municipalidade descreviam uma série de ações que estavam sendo
executadas em prol da salubridade urbana, mas não reconheciam o quadro precário da saúde
pública existente na cidade e amenizavam a gravidade da epidemia que estava em curso. A
avaliação de Silva sobre o desempenho do PPR na área da saúde pública foi negativa, pois,
segundo a autora:

Governos municipal e Estadual não investiam na educação para saúde pública, ou


seja, na conscientização da população, mas também não se detiam ao combate às
doenças com tratamentos e remédios já desenvolvidos na época. O Estado e a
municipalidade preferiam negar as crises epidêmicas a ter que tratá-las como
prioridade. (SILVA, 2009, p. 32)

Paulo Sérgio Quaresma também explorou o contexto sanitário da cidade do Rio


Grande no período da Primeira República, com ênfase na epidemia de varíola do biênio 1904-
1905. Assim como Silva, Quaresma observou divergências entre o discurso oficial sobre a
salubridade da cidade e as matérias publicadas no jornal Echo do Sul. No relatório
apresentado ao Conselho Municipal6 em 1905, o intendente Juvenal Miller registrou sua
insatisfação com o comportamento da imprensa durante a epidemia de varíola.

Querer atribuir o incremento da varíola, que foi a única epidemia que estragos fez,
exclusivamente às condições insalubres do nosso meio, é inadmissível.

4
O jornal Echo do Sul circulou entre 1858 e 1934, foi criado na cidade de Jaguarão e posteriormente transferido
para a cidade do Rio Grande. Segundo o historiador Francisco das Neves Alves, no começo da República, o
jornal manteve uma postura de resistência ao governo do PRR, “[...] combatendo os situacionistas em alguns dos
mais graves momentos que marcaram a agitada transição Monarquia-República na conjuntura rio-grandense-do-
sul. Contrário ao sistema castilhista-borgista, o periódico manteve este espírito oposicionista mesmo após o
encerramento da Revolução Federalista. Somente a partir do final da primeira década do século XX, o diário rio-
grandino promoveria uma mudança em sua conduta editorial, no intento de adaptar-se à nova fase em que
adentrara o jornalismo, através da proposta de manter-se como uma publicação “independente” de vínculos
partidários, buscando garantir, assim, a sua sobrevivência, a qual se estenderia até a década de 1930 (ALVES,
2005, p. 73).
5
No período da Primeira República a Intendência exercia a administração pública municipal na esfera do Poder
Executivo; neste período, em cada município do Brasil, havia um Intendente eleito para coordenar os trabalhos
do Executivo.
6
O Conselho Municipal era composto pelos vereadores e representava o Poder Legislativo no âmbito dos
municípios.
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
368

Propagou-se, é verdade, infelizmente, com algum vigor, ceifando vidas preciosas;


mas, (SIC) ao estragos das epidemias, tremendo desequilíbrios devastadores, todas
as cidades estão sujeitas.
Demais, essa a que desgraçadamente assistimos, teve a aumentar o seu ciclo
devastador, o abatimento moral produzido na massa geral da população pelo alarme
alvissareiro da reportagem moderna.
A emoção oriunda dessa campanha trouxe tal perturbação aos espíritos que a única
preocupação constante, invariável, era a moléstia reinante. Não houvesse os
interessados em alvejar as autoridades republicanas, exagerando os fatos, alarmando
a população, e teria, a moléstia passado quase despercebida, como as numerosas
vezes que tem irrompido nesta cidade. 7

Culpando a imprensa pelo agravamento da epidemia, a Intendência reforçava o seu


discurso sobre a “normalidade” das condições sanitárias em Rio Grande – o mesmo discurso
que encontrava respaldo nos documentos da Diretoria de Higiene do Estado pesquisados por
Raquel Padilha da Silva (SILVA, 2009). Felizmente, a História já acumulou certa experiência
na crítica aos documentos produzidos pelo poder público, e existe uma disposição dos
historiadores para considerar fatores como a intencionalidade do documento, além de um
empenho para confrontar a versão do governo com informações registradas em outras fontes.
Quaresma consultou os registros de óbito da Associação de Caridade Santa Casa do Rio
Grande e constatou que:

[...] entre 1880 e 1911, os óbitos e sepultamentos na cidade ocorreram numa linha
ascendente, cujos maiores picos coincidem com surtos epidêmicos, causados por
diferentes moléstias, tais como o cholera, a peste bubônica, mas principalmente a
varíola. Nesse ínterim, é relevante destacar os estudos desenvolvidos por W. R.
Hearn, ex-cônsul inglês e pelo clínico Augusto Duprat, em cujo relatório enviado à
Inglaterra em 1897, afirmaram que os coeficientes de mortalidade no Rio Grande
oscilavam entre 37 e 53 por mil, superior ao das mais infectas cidades da Índia e do
Oriente, como das mais populosas da Europa, no mesmo período. (QUARESMA,
2012, p. 105-106).

O que acontecia na cidade portuária do Rio Grande, não deve ser considerado uma
exceção para o Estado do Rio Grande do Sul na época. Centros urbanos como Porto Alegre,
Santa Maria8 e Pelotas9 também apresentavam condições precárias de salubridade e
provocavam a preocupação da comunidade médica gaúcha.

7
Relatório do Capitão Dr. Juvenal Octaviano Miller Intendente do Município, apresentado ao Conselho
Municipal em sessão de 4 de setembro de 1905 e correspondente ao período de 1º de julho de 1904 a 30 de junho
de 1905. Rio Grande: O Intransigente, 1905, p. 9.
8
Sobre as questões referentes a salubridade e a Saúde Pública na cidade de Santa Maria, recomenda-se o estudo
dos seguintes textos: Saneamento urbano em Santa Maria (QUEVEDO, 2003); A peste em Santa Maria: a
cidade sitiada,1912-1924 (PRESTES, 2010) e Santa Maria e a Medicina na passagem do século (WEBER;
QUEVEDO, 2001).
9
A situação sanitária em Pelotas – segunda maior cidade do Rio Grande do Sul no período da Primeira
República – foi abordada por Lorena Almeida Gill, no estudo intitulado Um mal de século: tuberculose,
tuberculosos e políticas de saúde em Pelotas (RS) 1890-1930. (GILL, 2004) e no artigo A cidade de Pelotas (RS)
e as suas epidemias, 1890-1930. (GILL, 2010).
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369

Doenças como a varíola, a febre tifóide, a peste bubônica e a tuberculose marcaram o


começo da República em Pelotas e demandaram ações articuladas entre o governo estadual e
a municipalidade. No caso específico do combate à varíola em Pelotas, sabemos que o uso da
vacina foi uma prática gradualmente ampliada pelo poder público. Segundo Lorena Almeida
Gill, em 1897 o Delegado de Higiene vacinava diariamente e realizava palestras em escolas
para convencer as crianças da importância da vacinação contra a varíola. Em 1905 já existiam
9 postos de vacinação no município e no surto epidêmico ocorrido no biênio 1915-1916, a
Intendência comprou 15 mil tubos da linfa e intensificou a vacinação em “postos de Saúde, na
Santa Casa e até nos domicílios.” (GILL, 2005, p. 9).
Os documentos pesquisados por Lorena Gill indicam que a Febre Tifóide foi a doença
que mais provocou preocupações da municipalidade com o saneamento em Pelotas.10 Uma
parte das preocupações estava voltada para o abastecimento de água que foi iniciado na
cidade pela Companhia Hydraulica Pelotense em 1875; outra parte estava voltada para o
destino das “materias fecaes”. Diante das dificuldades enfrentadas pela Intendência para
construir uma rede de esgoto para Pelotas, em 1903 a municipalidade optou pela encampação
do Asseio Público e investiu na reorganização deste serviço.11 Para ampliar o número de
usuários, a municipalidade institui a obrigatoriedade da adesão ao Asseio Público e incluiu na
Lei de Orçamento de 1904 uma tabela com as taxas que seriam cobradas pela remoção dos
cubos.12 A escolha de um novo ponto para o despejo e lavagem dos cubos também foi parte
da estratégia da municipalidade de Pelotas que comprou a antiga Xarqueada Valladares e
instalou nesta propriedade, nas margens do Canal São Gonçalo, o novo ponto de despejo das
“materias fecaes”.
Com esses procedimentos, a administração municipal buscou diminuir a insalubridade
do ambiente urbano, até então comprometida pela precariedade do Asseio Público e pela
10
Segundo Lorena Gill, os números referentes a febre tifóide em Pelotas para o período entre 1891 e 1916,
foram: “[...] 896 casos fatais ou a média anual de 34 com a porcentagem média anual de 2,7% sobre a letalidade
geral” (2005, p. 14)
11
No final de 1903, as negociações entre a Empreza Asseio Pelotense e a Intendência foram concluídas e o
material usado no serviço foi adquirido pela municipalidade ao custo de 28:000$. (Diário Popular, 30 de
Dezembro de 1903)
12
O jornal Diário Popular publicou o valor das taxas fixadas pela Intendência após a encampação do serviço:
“Asseio Publico – Pelo § 6 das Disposições Transitórias, que figuram na Lei do Orçamento para o corrente anno,
ficou a intendência habilitada - “A efectuar a organização administrativa do serviço de matérias fecaes, lixo e
águas servidas dos domicílios, serviço que será feito obrigatoriamente, mediante as seguintes taxas, cobradas
por trimestre, adiantadamente, dos respectivos domiciliários: Matérias Fecaes e Lixo: 1ª classe, 8 vezes ao mez,
por trimestre 7$500, 2ª classe, 15 vezes ao mez, por trimestre 12$000, 3ª classe, diariamente, por trimestre
15$000. Para mais de um cubo na 3ª classe, será feito o abatimento, no total de 20%. Águas servidas: Por cubo
diário, por trimestre 4$000. Para mais de um cubo será feito o abatimento de 20%. Nos domicílios denominados
cortiços, os respectivos proprietários serão responsáveis pelo pagamento das taxas devidas a este serviço. A
despeza com o pessoal e conservação do material empregado no serviço de remoção de matérias fecaes e águas
servidas, far-se-á exclusivamente com a renda produzida pelo mesmo.” (Diário Popular. 06 de janeiro de 1904)
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
370

realização dos despejos fecais no Arroio Santa Bárbara, próximo ao núcleo urbano da cidade.
No entanto, em 1905, o Centro Médico de Pelotas denunciou na imprensa o aparecimento de
casos de Febre Tifóide na área em torno da Xarqueada Valladares e considerou estes casos
como consequência dos despejos feitos pelo Serviço de Asseio Público naquele local. A
posição do Centro Médico foi rebatida pelo então Delegado de Higiene Municipal, Dr. José
Calero, em uma matéria publicada no jornal Opinião Pública, no dia 2 de junho de 1905.
Com bases nas estatísticas da Diretoria de Higiene, Calero alegou que os despejos de “
materias fecaes” feitos pelo Asseio Público, não poderiam ter provocado o elevado
número de casos de Febre Tifóide em Pelotas. Segundo Calero, os casos registrados no 1º
Distrito de Pelotas seriam procedentes “de uma fonte denominada de Prainha, de onde se
supriam de água os estabelecimentos em que teria se manifestado a doença”, e a partir desta
fonte e da circulação de trabalhadores na área, a doença teria alcançado o 2º Distrito. (GIL,
2005, p.12)
As discussões produzidas em torno da encampação do Asseio Público em Pelotas
indicam que no começo da República existiam diferentes teorias que explicavam a
transmissão de doenças. Segundo George Rosen, no final do século XIX, os médicos estavam
divididos entre a “teoria miasmática ou infeccionista”, que relacionava as epidemias com a
atmosfera; a “posição contagionista estrita” que via nos contágios específicos a causa de
surtos infecciosos e epidêmicos; e a teoria do “contagionismo limitado ou contingente” que
articulava a atuação de agentes particulares (os micróbios e bactérias) e condições gerais do
ambiente para a transmissão de uma determinada doença (ROSEN, 1994, p. 202). A
coexistência dessas teorias é um fator importante para explicar o interesse do PRR pela
manutenção da salubridade urbana – interesse que justificava os investimentos do poder
público na limpeza urbana, no saneamento, na fiscalização de alimentos e nas práticas de
desinfecção.
A atuação do PRR na área da saúde pública não era sustentada apenas pela influência
do positivismo, ela também encontrava respaldo nas discussões de epidemologia que estavam
em curso na época. Neste sentido, é importante ressaltar que uma parte da comunidade
médica sul rio-grandense discordava da política de saúde pública do PRR, sobretudo no que
diz respeito ao livre exercício da Medicina e à relutância do governo para interferir nas
práticas de cura da sociedade.
A existência de médicos que criticavam o trabalho do PRR foi abordada Lizete
Oliveira Kummer. Na sua pesquisa, a autora destacou a mobilização da Faculdade de

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Medicina de Porto Alegre em prol da regulamentação da profissão médica.13 Segundo


Kummer, os membros daquela instituição de ensino, frequentemente criticavam o trabalho da
Diretoria de Higiene do Estado e reivindicavam a valorização da medicina científica. Na
concepção destes médicos, a regulamentação da profissão e a ampliação das ações do poder
público na área da saúde deveriam ser prioridades para o governo estadual (KUMMER,
2012).
Os estudos de Silva, Kummer e Quaresma, apesar de não sinalizarem ruptura com a
interpretação historiográfica iniciada por Beatriz Weber sobre o modelo de Saúde Pública do
PRR, apresentam uma concepção mais flexível da dinâmica deste modelo. As pesquisas
realizadas nos últimos anos reconhecem a forte influência do positivismo sob os líderes do
PRR, porém, apontam outros fatores que devem ser considerados na avaliação da eficiência
ou ineficiência das ações do governo gaúcho em prol da saúde da população.
Um importante exemplo das inovações historiográficas produzidas nos últimos anos
pode ser encontrado nas pesquisas de Ana Paula Kondörfer sobre a educação sanitária no
governo do PRR e sobre a experiência de cooperação entre a Fundação Rockefeller e o Estado
do Rio grande do Sul. O primeiro tema foi abordado na dissertação de Mestrado, intitulada
“Melhor prevenir do que curar”: a higiene e a saúde nas escolas públicas gaúchas (1893-
1928); nela, a autora destacou o empenho da Diretoria de Higiene do Estado para reduzir as
taxas de mortalidade infantil. Os documentos produzidos pela Diretoria de Higiene registram
um discurso higienista que insistia na necessidade da escola pública ser um espaço de
prevenção de saúde e de difusão de práticas higiênicas.14 Kondörfer afirma que a promoção da
educação pública em prédios próprios, servidos de boa ventilação, boa iluminação e água
filtrada era uma prioridade para o médico Protásio Alves – um dos principais articuladores da
política de saúde pública do PRR.
Na sua tese de Doutorado, Ana Paula Kondörfer pesquisou a cooperação entre a
Fundação Rockefeller e o governo do Rio Grande do Sul. A cooperação foi direcionada para o
diagnóstico e o combate da Ancilostomíase. Ela interessava ao governo na medida em que

13
A regulamentação contrariava o princípio positivista de liberdade profissional e, consequentemente, era objeto
de divergência entre a cúpula do PRR e membros da comunidade médica gaúcha.

14
A leitura da Dissertação de Kondörfer nos permite afirmar que o discurso higienista do PRR apresentava
semelhanças com o discurso produzido pelo governo estadual de São Paulo no respectivo período. A
comparação pode ser feita com base no livro de Heloísa Pimenta Machado, intitulado A higienização dos
costumes: educação escolar e saúde no projeto do projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (1918-1925).

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015


372

possibilitava ao governo a qualificação das suas estatísticas sanitárias e oferecia critérios


científicos para a escolha dos investimentos que deveriam ser feitos na área da saúde pública.
As informações coletadas nos arquivos da Fundação Rockefeller e nos documentos do
poder público estadual representam um importante subsídio para a composição de um quadro
sanitário para o Rio Grande do Sul na década de 1920. Com base nos dados apresentados pela
autora, sabemos que os maiores índices de Ancilostomíase foram encontrados em
Montenegro, na Ilha dos Marinheiros (município do Rio Grande), em Torres e em Conceição
do Arroio. No interior do Estado, nas cidades de Bagé, Bento Gonçalves, Caxias do Sul e
Passo Fundo, os técnicos da Fundação Rockefeller encontraram os mais baixos índices da
doença no Brasil. (KONDÖRFER, 2012, p. 181) Na maior parte dos municípios pesquisados,
a ancilostomíase não foi considerada um problema grave, mas os exames alertavam outro
problema: o elevado número de verminoses encontradas na população.

As verminoses em geral, porém, apresentavam índices elevados em praticamente


todos os municípios, inclusive nas localidades do interior.
[...]
Em termos bastante gerais, a doença atingia, no Rio Grande do Sul, principalmente
pessoas do sexo masculino, com idades entre seis e 18 anos (48,7% das 2011
pessoas examinadas nesta faixa etária apresentaram diagnóstico positivo para a
doença) e 19 e 40 anos (34,2% das 1141 pessoas examinadas nesta faixa etária
apresentaram diagnóstico positivo para a doença), que se dedicavam a atividades
agrícolas e cujas habitações não possuíam latrinas. (KONDÖRFER, 2012, p. 181)

Comparando os dados obtidos pela Fundação Rockefeller no Rio Grande do Sul com
os obtidos em outros estados brasileiros, Kondörfer observou uma diferença importante: no
Rio Grande do Sul, 64% das pessoas examinadas afirmaram “possuir algum tipo de instalação
sanitária, enquanto em Minas Gerais esse índice era de 7,5% e em São Paulo, de 24,2%.”15 A
diferença destacada, apesar de expressiva, não deve ser considerada como indicativo de maior
salubridade urbana nas cidades gaúchas, pois sabemos que durante o período da cooperação
entre o Rio Grande do Sul e a Fundação Rockefeller (1920-1923), apenas os municípios de
Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas possuíam redes de esgoto construídas.
No começo da década de 1920, alguns municípios gaúchos possuíam o serviço de
Asseio Público para remoção dos cubos e latrinas com matérias fecais e, através deste serviço,
buscavam preservar a salubridade urbana. Diante da precariedade do saneamento na maior
parte das cidades gaúchas, a decisão do governo estadual em firmar o acordo de cooperação
entre a Fundação Rockefeller pode ser interpretada como um movimento do poder público na
15
É interessante ressaltar que esta diferença observada pela autora não foi considerada pelos técnicos da
Fundação Rockefeller como um fator importante na interpretação dos baixos índices de ancilostomíase
encontrados no Rio Grande do Sul (KONDÖRFER, 2012, p. 182).

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direção de uma política de saúde pública mais pautada em critérios técnicos e científicos.
Seguindo esta linha de interpretação, a presença dos norte-americanos realizando exames de
saúde e promovendo palestras de educação higiênica para a população gaúcha, foi uma forma
de qualificar o trabalho do governo estadual, sobretudo no que diz respeito à produção das
estatísticas sanitárias - peças fundamentais no planejamento e execução de políticas públicas
na área da saúde.

Medicina social e governamentalidade no Rio Grande do Sul da Primeira República

Pretendo explorar nesta parte específica do texto, os conceitos foucaultianos de


medicina social e governamentalidade. Estes conceitos serão deslocados do campo filosófico,
onde foram construídos por Michel Foucault, e aplicados na interpretação da política de
Saúde Pública desenvolvida pelo PRR ao longo da Primeira República. E para evitar
equívocos no entendimento da proposta, devemos descartar a ideia de “validar” ou “refutar”
os conceitos de Foucault. O nosso objetivo consiste em articular o pensamento foucaultiano
com a história da saúde pública no Rio Grande do Sul da Primeira República.
O primeiro conceito foucaultiano que nos interessa é o de medicina social. No capítulo
5 da obra Microfísica do Poder, Foucault apresenta, em linhas gerais, o desenvolvimento da
medicina social na Alemanha, na França e na Inglaterra. Para o caso alemão e, mais
especificamente, para o caso da Prússia do final do século XVIII, Foucault destaca o rigoroso
controle imposto pelo governo sobre a formação e as práticas médicas, controle padronizado
que caracterizava uma incipiente “medicina de Estado”. Na França do final do século XVIII, a
intervenção médica concentrou-se no controle sobre as populações urbanas, criando a
chamada “medicina urbana” francesa, marcada por uma crescente valorização das práticas de
higiene e do rigoroso controle sobre as estatísticas demográficas. O modelo de medicina
social inglês surgiu nas primeiras décadas do século XIX e apresentou como diferenciais a
ênfase na preocupação com a saúde dos pobres, as práticas de assistência social e o uso da
vacinação em grande escala.
No plano cronológico e geográfico, a política de Saúde Pública do Rio Grande do Sul
na Primeira República está distante das experiências que Michel Foucault usou para pensar o
surgimento da medicina social. Mas, apesar desta distância espacial e temporal, algumas
comparações podem ser construídas. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o PRR evitava
interferir na formação dos médicos e no exercício da medicina, distanciando-se do que os
alemães já faziam no final do século XVIII. Outra diferença que pode ser facilmente
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
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observada é que a vacinação em larga escala, adotada pelos ingleses na segunda metade do
século XIX, também não encontrava espaço no modelo de saúde pública do PRR devido a
influência do positivismo na cúpula do Partido Republicana Rio-Grandense.
Prosseguindo no exercício comparativo, podemos observar que uma semelhança entre
o surgimento da medicina social na Europa e as ações do PRR no governo do Rio Grande do
Sul estava na preocupação do poder público gaúcho com a salubridade urbana. Foucault
considerou esta preocupação como uma das principais marcas da medicina europeia nos
séculos XVIII e XIX.16 No caso específico do Brasil, importa ressaltarmos que o interesse do
governo pelos fatores que prejudicavam a saúde da população urbana não foi uma invenção
dos republicanos. O interesse já existia no período imperial quando as municipalidades
atuavam na promoção da higiene pública respaldadas pelo Regulamento das Câmaras
Municipaes do Império e auxiliadas por Comissões de Higiene Pública de âmbito
provincial.17
Neste sentido, podemos afirmar que o PRR optou pela continuidade de um modelo de
saúde pública que atribuía aos municípios à maior parte das responsabilidades na prevenção
das doenças. O efeito colateral desta opção foi a insuficiência dos recursos financeiros
municipais. O efeito positivo foi que as municipalidades passaram a dedicar maior atenção ao
problema do saneamento, sobretudo quando a ciência passou a reconhecer o papel da água na
transmissão de doenças como a Cólera e a Febre Tifóide.
O município de Porto Alegre foi o primeiro a enfrentar o problema do saneamento de
forma mais incisiva através da encampação do Asseio Público e da construção da Ferrovia do
Riacho para afastar o despejo dos cubos com “materias fecaes” da área central da cidade. A
decisão de construir a Ferrovia do Riacho foi baseada no parecer de uma Comissão Médica
consultada pela Intendência em 1893, esta Comissão recomendou que os cubos do Asseio
16
Na sua análise sobre o processo de implantação da medicina social na Europa, Michel Foucault destacou a
preocupação do governo com a salubridade da população. Para promover a salubridade, tornou-se necessário
“[...] estar atento a tudo o que possa causar as doenças em geral. Vai ser então o caso, principalmente nas
cidades, do ar, do arejamento, da ventilação, estando tudo isso evidentemente ligado a teoria dos miasmas, e
vamos ter toda uma política de um novo equipamento, de um novo espaço urbano que será submetido,
subordinado a princípios, a preocupação de saúde: largura das ruas, dispersão dos elementos que podem produzir
miasmas e envenenar a atmosfera, os açougues, os matadouros, os cemitérios. Portanto toda uma política do
espaço urbano ligada a esse problema de saúde.” (FOUCAULT, 2008, p. 436)
17
Como exemplo do trabalho do governo imperial na promoção da saúde pública, tomando o Rio Grande do Sul
como referência espacial, importa citar a dissertação de Mestrado de Vladimir Ferreira Ávila, intitulada Saberes
históricos e práticas cotidianas sobre o saneamento: desdobramentos na Porto Alegre do século XIX (1850 –
1900). Ávila analisou correspondências da Câmara Municipal e da Comissão de Higiene da Província e
encontrou divergências de prioridades entre essas duas esferas do poder público. Para os interessados no assunto,
recomenda-se também a leitura da tese de Nikelen Acosta Witter, intitulada Males e Epidemias: sofredores,
governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX).

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Público fossem despejados no local conhecido como Ponta do Dionísio, cerca de doze
quilômetros da área central de Porto Alegre (MACHADO, 2010). Em 1895, as obras estavam
avançadas e havia previsão de inaugurá-las no ano seguinte, mas problemas de ordem
fundiária e danos provocados pelas cheias do Guaíba protelaram a sua inauguração e
demandaram modificações no traçado da ferrovia. Depois de um litígio judicial entre a
Intendência e José Joaquim de Assumpção, proprietário das terras onde a municipalidade
pretendia realizar o despejo dos cubos, o traçado da estrada foi redirecionado para a Ponta do
Melo. (ÁVILA, 2010, p. 168-169)
Prosseguindo no seu objetivo de melhorar a salubridade urbana, a Intendência
encampou a Companhia Hydraulica Guahybense em 1904 e iniciou o serviço público de
abastecimento de água (RÜCKERT, 2013). A construção da rede de esgoto na área central da
cidade, discutida pelas autoridades políticas ainda no final do século XIX, foi executada no
período de 1907 a 1912. Mas apesar das diversas ações da municipalidade em prol da
salubridade urbana, Porto Alegre continuou apresentando índices elevados de mortalidade ao
longo da Primeira República.18
Tornar o espaço urbano salubre não era uma preocupação exclusiva da Intendência de
Porto Alegre. A cidade de Pelotas seguiu o mesmo caminho que a capital do estado e iniciou
estudos para a construção de uma rede de esgoto ainda no período imperial. Em 1889, o
governo provincial aprovou o projeto de saneamento elaborado pelo engenheiro Howyan por
solicitação da municipalidade de Pelotas.19 Com a Proclamação da República, coube aos
republicanos conduzir a execução das obras. E para a decepção da sociedade pelotense, o
Projeto Howyan foi considerado tecnicamente incorreto pela empresa contratada para a sua
construção e foi abandonado pela Intendência (XAVIER, 2010).
Iniciou-se então, um novo e demorado ciclo de estudos que contou com um projeto do
engenheiro Guilherme Ahrons, passou pela encampação da Empreza de Asseio Público
(1903) e da Companhia Hydraulica Pelotense (1908) e culminou com o projeto do engenheiro

18
Os dados apresentados por Weber comprovam esta afirmação: “O coeficiente de mortalidade por mil
habitantes manteve-se elevado ao longo de todo o período, principalmente na capital. Porto Alegre apresentava,
em 1913, um elevado índice de mortalidade, 25.70, se comparada a outras cidades como, por exemplo, o Rio de
Janeiro, com um índice de 20.85, ou Londres, de 14.62, ou Buenos Aires, de 15.50.” (WEBER, 1999, p. 62).
19
Sobre o projeto de Howyan, Saturnino de Brito afirma que: “Em fevereiro de 1887 a Câmara de Pelotas
convidou engenheiros de todos os países a apresentarem um projeto de esgotos para a cidade. Uma comissão de
médicos, engenheiros e outras pessoas competentes escolheram o projeto do engenheiro G. Howyan em agosto
de 1887 e esse ato foi aprovado pela Assembleia [...]. Um projeto de lei mandando executar os trabalhos foi
imediatamente sancionado pelo Presidente da Província, representando o governo. [...] O sistema era unitário.
Não foi encontrada a memória descritiva do projeto, mas um relatório do autor, datado de 07 de fevereiro de
1891, [...].” (BRITO, 1944, p. 85. Vol. XIII)
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
376

Alfredo Lisboa, aprovado pela municipalidade e pelo governo estadual em 1910.20 As obras
realizadas a partir do projeto de Alfredo Lisboa mudaram a condição sanitária de Pelotas em
dois aspectos: ampliaram a oferta de água (atendendo a uma antiga demanda da população) e
proveram a cidade de uma rede de esgoto. A construção da rede de esgoto possibilitou o
gradual abandono do Asseio Público e foi uma expressiva interferência do governo nos
hábitos de higiene da população pelotense.
Rio Grande foi o terceiro município do estado que se mobilizou para obter projetos de
saneamento. Depois de registrar por diversas vezes a necessidade de ampliar o abastecimento
de água e de construir uma rede de esgoto, a Intendência contratou o engenheiro Francisco
Saturnino Rodrigues de Brito para elaborar um plano de saneamento para a cidade. Em 1909
Saturnino de Brito apresentou o Projeto de Saneamento do Rio Grande, propondo um
conjunto de obras para o abastecimento de água e outro para a construção da rede de esgoto.
O Projeto de Saturnino de Brito, apesar de aprovado pela municipalidade e pela Secretaria de
Obras Públicas do Estado no mesmo ano da sua elaboração, só foi executado a partir de 1917.
Neste intervalo de tempo, a Intendência providenciou a encampação do Asseio Público e da
Companhia Hydráulica Rio-Grandense e buscou obter a colaboração financeira do Estado –
uma colaboração que encontrava respaldo jurídico no Artigo 49 da Constituição Estadual.21
As experiências de saneamento nas três principais cidades do Rio Grande do Sul
apresentaram diferenças nas datas de elaboração dos projetos e execução das obras, mas
também apresentaram algumas semelhanças: a encampação de empresas que prestavam
serviços na área do saneamento; a dificuldade na passagem dos projetos para a fase de
execução das obras; o endividamento das municipalidades; a criação de um quadro de
funcionários envolvidos para administrar o abastecimento de água e a rede de esgoto, e a
produção de leis e regulamentos especificamente voltados para o saneamento.
A gradual expansão das ações do poder público na área do saneamento, observada na
administração do PRR, pode ser interpretada a partir do conceito foucaultiano de
governamentalidade. O autor usou este conceito para analisar o processo de formação de uma

20
A aprovação do projeto de Alfredo Lisboa pelo governo estadual foi assegurada através da Lei nº 109 de 21 de
outubro de 1910.
21
A colaboração entre o estado e a Intendência do Rio Grande para a execução das obras de saneamento da
cidade foi objeto de um contrato assinado entre as duas partes no dia 11 de janeiro de 1917 (Decreto nº 2.233).
Composto de um artigo introdutório especificando que o empréstimo seria usado nas obras de saneamento da
cidade e contendo 15 cláusulas, o contrato autorizava a Intendência a emitir apólices no valor de 8.500:000$000
à juros de 8% e com prazo de 50 anos para resgate. Na condição de fiador do empréstimo, o governo estadual
procurou assegurar o controle sobre a emissão e pagamento das apólices, inclui uma cláusula referente ao
acompanhamento das obras e definiu qual seria o procedimento adotado caso o município não cumprisse as suas
obrigações. (Relatório do Capitão Dr. Alfredo Soares do Nascimento apresentado ao Conselho Municipal. Rio
Grande: Oficinas a vapor do “Rio Grande”, 1917, p. 10).
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015
377

“arte de governar” iniciada na Europa do século XVI e modificada ao longo dos séculos
seguintes. No texto intitulado A governamentalidade,22 Foucault apresentou três fases
importantes no desenvolvimento da “arte de governar”: a primeira diz respeito a introdução
das questões econômicas no exercício político; a segunda foi a discussão sobre a soberania do
Estado que marcou o século XVII; e a terceira ganhou forma na transformação da população
como o problema principal do governo.
A terceira fase da “arte de governar” foi a mais complexa e, segundo Foucault, a sua
viabilidade só foi possível a partir da produção de estatísticas sobre o coletivo da população.
Inicialmente, a estatística foi usada pelo Estado para organizar suas finanças, e
posteriormente, ela foi direcionada para a compreensão dos fenômenos populacionais.

De fato, se a estatística tinha até então funcionado no interior do quadro


administrativo da soberania, ela vai revelar pouco a pouco que a população tem uma
regularidade própria: número de mortos, de doentes, de regularidade de acidentes
etc.; que a população tem características próprias e que seus fenômenos são
irredutíveis aos da família: as grandes epidemias, a mortalidade endêmica, a espiral
do trabalho e da riqueza etc.; [...]. (FOUCAULT, 2012, p. 424)

Na interpretação construída por Foucault sobre a “arte de governar”, a estatística


assumiu um papel relevante para o governo conhecer as condições de saúde da população,
calcular suas taxas de natalidade e mortalidade, projetar sua expectativa de vida e seu
potencial econômico. Com base na estatística, o Estado pode qualificar suas ações para
atender as necessidades e aspirações da população e pode avaliar a eficiência ou ineficiência
dos seus investimentos e serviços.
Administrar com eficiência seria uma condição essencial para o que Foucault chamou
de governamentalidade. Está condição observada pelo autor em países da Europa também
existiu no Rio Grande do Sul da Primeira República. A bibliografia consultada indica que a
produção de estatísticas foi uma das preocupações do PRR, tanto no âmbito da burocracia
estadual, quanto no âmbito dos municípios.
As grandes obras de saneamento, executadas em Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande,
nas duas primeiras décadas do século XX, foram planejadas com base em estatísticas que
justificavam a necessidade dos investimentos do poder público nestas cidades.
Posteriormente, novas estatísticas foram produzidas para comprovar as relações entre o

22
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 25º edição. São Paulo: Graal, 2012, p. 407-431. O texto
corresponde a aula ministrada por Foucault no Collège de France, em 1º de fevereiro de 1978.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015


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saneamento e a redução das doenças e dos índices de mortalidade.23 Completava-se assim, um


ciclo de governamentalidade através do qual o governo do PRR definiu o saneamento como
uma prioridade e viabilizou a sua execução, no plano técnico dos projetos e no plano
financeiro das obras.
Na prática, a medicina social e a governamentalidade se articulavam e se
complementavam, na medida em que o governo sul rio-grandense foi gradualmente
aprimorando sua capacidade de registrar/quantificar e analisar as condições sanitárias da
população e foi definindo o saneamento como uma prioridade para o investimento dos
recursos públicos.

Considerações finais

A primeira consideração que merece destaque na conclusão deste artigo é o peso da


interpretação construída pela historiadora Beatriz Teixeira Weber no que diz respeito à
política de saúde pública do PRR. Depois da defesa da tese de Doutorado de Weber, em 1999,
novos estudos foram produzidos pela historiografia sobre este assunto, contudo, a influência
do positivismo sob os líderes do Partido Republicano Rio-Grandense continua sendo um tema
recorrente. Esta recorrência não representa um problema ou um aspecto negativo na
historiografia sul rio-grandense, mas entendo que existe uma margem para pensarmos o lado
positivo das ações do PRR, reconhecendo o saneamento como um fator de promoção da saúde
pública e aprofundando nosso conhecimento sobre o trabalho do PRR no abastecimento de
água e na construção da rede de esgotos.
Não há necessidade de rejeitar a influência do positivismo sob a cúpula do PRR e
seguir nesta direção seria um equívoco historiográfico. O que foi proposto no artigo como
alternativa para abordar o tema é a valorização desta influência. Penso que o mesmo
positivismo que justificava a objeção do governo estadual em regulamentar a prática da
Medicina e impor medidas terapêuticas mais rigorosas sobre a população, também nos oferece
23
No estudo das relações entre o saneamento e a redução das doenças e dos índices de mortalidade, devemos
considerar outros fatores que também contribuíram para que a redução ocorresse. Convém lembrarmos que a
chamada “curva demográfica” na mortalidade é um assunto polêmico, debatido por historiadores, economistas e
demógrafos. Uma das teorias mais conhecidas neste debate foi proposta por Thomas Mckeown que em 1978
atribuiu a diminuição da mortalidade ao aumento na oferta de alimentos disponíveis para a população. A teoria
de Mckeown, apesar de fundamentada em um amplo volume de dados estatísticos sobre a Europa, não
contempla fatores importantes como o crescimento da fecundidade ocorrido ao longo do século XIX, as novas
práticas de profilaxia (como o uso da vacina), ou as variações na taxa de óbito entre áreas urbanas e áreas rurais.
(MATÉS-BARCO, 1999, p. 219-221)

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 364-381, Jul. 2015


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uma pista para compreendermos a importância do saneamento para o PRR. Segundo os


princípios da “ordem” e do “progresso”, caberia ao governo criar as condições necessárias
para a manutenção da higiene e da saúde pública e, consequentemente, o abastecimento de
água e a construção de redes de esgoto, deveriam ser prioridades na agenda de Saúde Pública
do Estado. O positivismo é certamente um elemento indispensável para o entendimento do
que o PRR fez ou deixou de fazer em prol da salubridade urbana, mas fatores de ordem
técnica e financeira também merecem a nossa atenção.
Desde o começo do seu governo, o PRR expressou uma grande preocupação com o
controle das finanças públicas e muitas das suas decisões foram pautadas no cálculo da
viabilidade financeira. No plano técnico, é necessário pensarmos como o aparelho estatal do
PRR buscou responder ao desafio de criar e implantar projetos de saneamento, atendendo aos
princípios da higiene moderna e conciliando os interesses do governo estadual e dos
municípios.
A pesquisa realizada para a elaboração do artigo indica que o PRR articulou as
seguintes estratégias: (1) aprimorou a produção de estatísticas sanitárias, recorrendo ao
auxílio da Fundação Rockefeller e qualificando o trabalho dos profissionais da Diretoria de
Higiene e da Diretoria de Repartição Estatística; (2) criou a Comissão Estadual de
Saneamento para auxiliar os municípios na produção e execução de projetos para o
abastecimento de água e para construção de redes de esgoto; (3) colaborou financeiramente
com os municípios colocando-se como fiador de empréstimos contraídos pelas
municipalidades que estavam empenhadas na promoção do saneamento.

Recebido em: 27.04.2014. Aprovado em 02.06.2015.

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Construcciones y diálogos desde la enseñanza de la Historia Presente y las Pedagogías de
la Memoria en el escenario colombiano

Ingrid Lorena Torres1


Andres Felipe Amaya2

Resumen: Los ejercicios de memoria histórica realizados en el escenario escolar sobre el conflicto armado
colombiano hacen parte de los requerimientos establecidos en el marco jurídico para la paz y la política
educativa, en esta medida, es pertinente pensar conceptual y metodológicamente propuestas de pedagogías de la
memoria que favorezcan el tratamiento del pasado. El presente trabajo expone a través de una revisión
bibliográfica y la adopción de la memoria como objeto historiográfico algunos puntos de conexión entre la
enseñanza de la historia del tiempo presente y las elaboraciones de memoria en espacios escolares y no-
escolares.
Palabras claves: Memoria, enseñanza de la historia, pedagogías de la memoria.

Abstract: Historical memory exercises conducted in the school setting on the Colombian armed conflict are part
of the requirements established in the legal framework for peace and education policy, to that extent, it is
pertinent to think conceptually and methodologically proposals pedagogies of memory conducive to dealing with
the past. This paper presents through a literature review and adoption of memory as historiographical object
some points of connection between the teaching of the history of the present and the working memory in school
and non-school spaces.
Keywords: Memory, teaching of the history, pedagogies of memory

Introducción

Lo malo, para el orden establecido, es que, si enseñamos las cosas de este modo, si
invitamos a nuestros estudiantes a entender que el pasado no es un camino único
cuyo trazado está exactamente fijado por los manuales, sino un campo abierto
recorrido por luchas y proyectos muy diversos, donde podemos encontrar caminos
que lleven a futuros distintos, estaremos despertando en él una consciencia crítica,
no sólo hacia el pasado sino hacia el presente. Y eso es, precisamente, lo que se
quiere impedir que hagamos (Fontana, 2003, p. 114-115).

El pasado 23 de marzo de 2012 apareció en una revista de circulación nacional el


articulo denominado “La crisis de la Historia”, como producto de las reflexiones de los más
connotados historiadores del país, el artículo señala la pérdida sistemática de la enseñanza de
la historia en las aulas escolares resultado de la adaptación acrítica de una serie de medidas

1
Licenciada en Ciencias Sociales por la Universidad Pedagógica Nacional de Colombia y Maestría en Historia
por la Universidade Federal de Mato Grosso. Email: lorewait88@gmail.com
2
Licenciado en Ciencias Sociales por la Universidad Pedagógica Nacional de Colombia. Email:
afamayas@unal.edu.co

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 382-403, Jul. 2015


383

impulsadas desde el Ministerio de Educación Nacional (MEN). En palabras de Heraclio


Bonilla3:

Todo esto ha hecho que la enseñanza de esta materia en Colombia, no solo en


secundaria sino en todos los niveles, sea pésima [...] además de la mala formación de
los maestros, los textos actuales están desactualizados y evidencian una separación
entre lo que se publica y descubre en la academia y lo que se enseña en las aulas
escolares, que es una historia conservadora, clásica, del siglo antepasado (Semana,
2012, p. 12).

La discusión sobre la enseñanza de la historia desde los puntos de inflexión colocados


en esta discusión, no se deberían comprender como fenómeno particular, pues están inmersos
en las características de las reformas curriculares de la década de los años 90 implementadas
en diferentes países del hemisferio occidental. La necesidad de pensar la escuela conforme las
demandas del mundo global predeterminó la inclusión de la memoria, identidad y narrativa en
los estudios sociales desde finales de la década de los años 80.
La búsqueda de miradas holísticas, al mismo tiempo, que comprensiones de las
características de lo micro, se convirtió en reto para el siglo que comenzaba. La escuela se vio
confrontada ante estos novedosos postulados que fortalecían la idea dialógica entre pasado,
presente y futuro, en muchos casos en el marco de un “conjunto de graves problemas que
caracterizaron al mundo contemporáneo y cuya solución parece, cuando no imposible, al
menos muy difícil en el mediano y largo plazo, hacen imposible sostener la idea según la cual
lo mejor está por venir” (Levin, 2007, p. 161), al punto que nuestros días están saturados de
anclajes identitarios y auto afirmativos en el pasado y no en el futuro.
En esta medida, la historia escolar entró en escenarios de diversas discusiones nutridas
con los aportes de las líneas de investigación inscritas en las facultades de educación, la
profesionalización de la mayor parte del cuerpo docente de los niveles de educación media y
superior, y la categorización diferenciada de enseñanza de la historia, didáctica de la historia,
historia de la historia enseñada y aprendizaje histórico desmitificó la idea pasiva de
receptividad a cambio de la concepción de dinámicas de construcción, creación y discusión
dentro y fuera de la escuela.
De esta forma, la problemática puesta por los historiadores colombianos conforme su
preocupación por el deterioro en el manejo del contenido historiográfico en la sala de aula no
se reduce a los contenidos albergados en los currículos, sino que, se encuadra en un elemento
aún más importante, el sentido histórico del conocimiento histórico. En esta línea

3
Profesor titular de la Universidad Nacional de Colombia sede Bogotá del Departamento de Historia,
Coordinador del Programa de posgraduación, conocido por su amplio trabajo académico.

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consideramos que las mismas preguntas que motivaron a Edward Carr en su libro clásico
¿Qué es la historia? y a Marc Bloch ¿para qué sirve la historia? deberían continuar vigentes en
nuestras reflexiones acerca de la enseñanza de la historia, siendo que la constitución histórica
del sentido refleja la materialización de un enunciado en torno a la perspectiva de tiempo, la
evolución temporal del mundo y la consciencia e identidad histórica que responde a un
proyecto de futuro intencionalmente planeado.
Las aproximaciones conceptuales y metodológicas adelantadas desde los años ochenta
con proyectos como History Project 13-16 en Inglaterra, las discusiones del grupo Clio en
España o las investigaciones en didáctica de la historia en Alemania después de la caída del
Muro de Berlin, sobre entienden la preocupación de una generación académica por replantear
las formas de saber y aprender historia, al concebir esta como una construcción social abierta
a producciones individuales y colectivas, a la que convenía procurar otros caminos distintos a
los de la validación de proyectos nacionales y legitimación de regímenes políticos.4
Las inquietudes respecto a las concepciones de mundo que circulaban en la escuela a
finales del siglo XX, deberán ser comprendidas teniendo en cuenta las transformaciones
epistemológicas del campo historiográfico desde finales de los años setenta, cuando los dos
grandes paradigmas en los que reposaba el proyecto histórico de occidente fueron
cuestionados ante el surgimiento de nuevos objetos y enfoques de estudios sociales. El
estructuralismo y la historia seriada cuantificada con base estadística, afrontaron el
surgimiento de la “nueva historia”, la microhistoria, la historia reciente y los estudios de la
memoria bajo el protagonismo del paradigma narrativista.
En esta medida, la enseñanza de la historia también paso por cambios que reflejan la
orientación cultural de un mundo de postguerra, con nuevas formas de argumentación y
experimentación extradisciplinares de construcción de conocimiento, esta redefinición
comprometió los procesos de educación escolar a una transición, mucho más lenta que en la
academia, pero expresada en propósitos pedagógicos de experiencia, orientación e
interpretación de la historia para la vida practica.
Ahora bien, el desafío cognitivo tanto para profesores como para estudiantes radica en
valorar un pensamiento creador, constructor de problemas e inspiración investigativa teniendo
en cuenta funciones y sentidos del saber histórico en el tiempo presente. Así, la enseñanza de
la historia pasó a preguntarse por la relevancia actual del conocimiento histórico impartido en

4
Carretero, Mario; Rosa, Alberto; González María. Enseñanza de la historia y memoria colectiva. 1 ed. Buenos
Aires: Paidós, 2006. “Entre los dos tipos de lógica que han articulado la enseñanza escolar de la historia en el
origen de los Estados liberales y hasta mediados del siglo: la racionalidad critica de la ilustración y la emotividad
identitaria del romantismo. Ambas han constituido la impronta de la historia escolar”.

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la escuela y su connotación social y cultural en el futuro, su pertinencia para la comprensión y


orientación de vida de los sujetos, es decir, la historia como clave para la formación de
consciencia histórica.

[...] la demostración de las oportunidades de la racionalidad del pensamiento


histórico - esenciales para la historia como ciencia- consiste en afirmar que la
ciencia de la historia abre una oportunidad de vida en su ámbito (...) con procesos
con los cuales los hombres se esfuerzan por vivir humanamente (Rüsen, 2007, p.
16).5

La indagación sobre los fundamentos de los estudios históricos y su interrelación con


la vida práctica, aun se torna distante, porque las posibilidades de generar con sujetos del
común operaciones cognitivas que comprometan la construcción y socialización de nociones
históricas, continua siendo un ejercicio reducido, que se justifica a partir de la idea de que el
“común” no comprende la producción de la disciplina histórica porque es altamente
especializada en el dominio de un método y grado de cientificidad que responde al carácter
científico de la Historia y lugar social del historiador.
En el marco de estas discusiones, este artículo presenta algunas reflexiones que son
resultado del análisis sobre la pertinencia de la enseñanza de la Historia con perspectiva de
tiempo presente en el escenario colombiano, llevando en consideración las directrices
nacionales de la política educativa que orienta la formación de sujetos desde el enfoque de
desarrollo de competencias, y por otro lado las recomendaciones de la normativa jurídica del
marco para la paz conforme las responsabilidades del sector educativo de promover
pedagogías de la memoria.
En este sentido, primero se presenta un rápido balance del horizonte conceptual de la
noción de tiempo presente, con el fin de ubicar las principales características de este enfoque
historiográfico, su pertinencia y limitaciones por cuenta de la cercanía temporal, que a pesar
del uso de diferentes criterios cronológicos, metodológicos y epistemológicos, de una u otra
forma colocan en evidencia las luchas por la memoria y el pasado reciente, reflejadas en
diversos campos, al ser los actores sociales protagonistas y constructores de historia de su
tiempo.
En segundo momento, se realiza una radiografía del contexto normativo de la
educación colombiana señalando los principales derroteros de la política educativa del país,

5
Traducción de portugués a español realizada por los autores. Versão portugués: “A demonstração das chances
de racionalidade do pensamento histórico -essenciais para a história como ciência- consistem em afirmar que a
ciência da história abre uma chance de vida em seu âmbito. O que seria uma razão, de que a história como
ciência fosse capaz, se não se dirigisse a raiz mesma da ciência: os processos com os quais os homens se
esforçam por viver humanamente”.

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enfatizamos especialmente en tres elementos que direccionan el planteamiento de la


enseñanza de las Ciencias Sociales; el primero, la Ley General de Educación (Ley 115 de
1994); el segundo, Lineamientos Curriculares de 1998; y por último, los denominados
Estándares de Competencias de 2004. A esta normatividad se agrega la reflexión en torno a
los vínculos que unen al marco jurídico para la paz con la enseñanza de la historia reciente del
conflicto armado interno, en un posible escenario de posconflicto en el país.
En tercer lugar nos acercamos a la caracterización de la enseñanza de la historia
presente en Colombia, con el fin de llamar la atención sobre las implicaciones de abordar un
periodo temporal que como el caso de la realidad colombiana se encuentra ceñido a fuertes
eventualidades del conflicto armado aún inacabado, lo que nos significa hablar de historia
reciente en medio de la persistencia de la guerra, con todos los retos que esta situación
implica, más aún, cuando la historia escolar continúa siendo un elemento importante en la
construcción de la cultura identitaria nacional y la transmisión de la memoria histórica.
Finalizamos con un cuarto apartado dedicado a ilustrar algunas experiencias
pedagógicas de ejercicios de memoria e historia presente en el contexto colombiano, llamando
la atención sobre pedagogías de la memoria, queriendo subrayar la importancia de buscar
canales que comuniquen las diversas formas de entender la construcción de consciencia
histórica como elemento fundamental para elaboraciones del pasado traumático y la
formación de sujetos críticos y respetuosos de los derechos humanos.
A nivel metodológico, el trabajo tomó como referente el análisis documental, el cual
ha ido posicionándose en el campo académico de las Ciencias Sociales. Desde nuestra
perspectiva esta metodología “(…) constituye un proceso ideado por el individuo como medio
para organizar y representar el conocimiento registrado en los documentos, cuyo índice de
producción excede sus posibilidades de lectura y captura” (Peña & Pirela, 2007, p. 59). Con
este referente, se emprendió la elaboración de este escrito, el cual se realizó en dos fases: la
primera, consistió en la recolección y lectura de textos de orden historiográfico, así como
jurídicos, con los que se busca presentar el panorama de la enseñanza de la historia y el
surgimiento de la memoria como temática escolar. En segundo momento, la búsqueda y
lectura de información estuvo centrada en las experiencias pedagógicas que tiene como
epicentro el tema de la memoria. Las lecturas realizadas, en ambas fases, estuvieron
orientadas por ítems definidos previamente por los autores, a saber, memoria histórica,
enseñanza de la historia, pedagogías de la memoria. Si bien estos aspectos guiaron la lectura,
en el ejercicio mismo surgieron otras preocupaciones que, por supuesto, escapan a los
objetivos iniciales de este trabajo.

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Pensar la enseñanza de la Historia en momentos del “Fin de la Historia”

La historia del tiempo presente, resulta ser una discusión sobre un enfoque
historiográfico rodeado de cientos de preceptos y denotaciones en torno al trabajo del presente
con un saber histórico y escrito de nuestro tiempo, construyendo elementos con los que se
apropia el pasado. De tal suerte puede señalarse que la historia del tiempo presente oscila
entre la voluntad de mostrar una innovación metodológica, su pertinencia con el oficio del
historiador y la realidad interdisciplinar.
La definición del tiempo presente está sujeta al cambio de las unidades temporales del
siglo XX. En el “siglo corto”, tal como lo denominaría Eric Hobsbawm, la idea del presente,
como un después de fin de la guerra en 1945, se interrumpió en 1991 con la desaparición de la
Unión Soviética, año en la que se cerró el ciclo iniciado en 1917 con la revolución de octubre.
Los acelerados cambios geopolíticos de fines de siglo recibieron el ultimátum del
acontecimiento como escenario inmediato del futuro contemporáneo. En esta medida, el
tiempo presente pasó a ser un régimen temporal, es decir, “una manera de traducir y de
ordenar experiencias del tiempo -modos de articular el pasado, presente y futuro- y de darles
sentido” (Hartog, 2013, p. 139).
Se puede comprender el tiempo presente como propuesta metodológica y conceptual
que traspasa la temerosa línea entre memoria e historia establecida en el estatuto del pasado
lejano. Hace parte de un cúmulo de cuestionamientos emergentes en la Europa post-segunda
Guerra Mundial, con el presupuesto de la concepción narrativista de la historia y las nuevas
epistemologías del sujeto, que sugieren otro tipo de elaboración de pasado. En palabras de
Monteiro: “La cuestión del presente emerge al generar una ambigüedad o tensión entre el
tiempo de la explicación teórica y su narrativa que es, al mismo tiempo, la narrativa de la
historia relatada que se refiere a otro presente, aquel de los acontecimientos
narrados”(Monteiro, 2012, p. 164).
Así las cosas, la interconexión entre historia, memoria y narrativa, en cuanto
construcción, comprensión y explicación temporal del pasado, espacio de experiencia del
historiador, evocación múltiple de posibilidades y articulaciones con el presente, y horizonte
de expectativas en el futuro, demuestra la variedad en la concepción de pasado-presente,
historia-memoria, esta última, como recurso interlocutor necesario para la comprensión y
reconstrucción del pasado.

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388

A nivel institucional, el enfoque de la historia reciente se nutrió de importantes aportes


realizados por la academia y objetos de investigación emergentes conforme la aproximación
de los enfoques cualitativos de la Historia Oral, Microhistora e historia popular. Así, en los
años 70 se registran los aportes del Institute of Comtemporany Britihs history of the
University of London en Inglaterra y el Institut d´Histoire du temps présent (IHTP) en Paris
Francia 1978, donde el tiempo presente se estableció como el período temporal comprendido
entre la Segunda Guerra Mundial y el presente, otorgando un lugar analítico a la triada
historia, narrativa y memoria. Siguiendo esta línea de comprensión, Pierre Norá (1979) situó
la Segunda Guerra como un acontecimiento monstruo, para la explicación de la memoria
colectiva del pueblo francés, dejando por sentado, que al igual que otro acontecimiento
histórico, la Segunda guerra es un referente debido a la significatividad otorgada en los
procesos de evocación.
El valioso trabajo del historiador francés Pierre Nora “Los lugares de la memoria”
llevado a cabo en los años ochenta es el mejor ejemplo para mostrar el dedicado interés por
recoger las representaciones de la memoria colectiva en Francia de segunda mitad del siglo
XX. A partir de la década de los años 70 hay una fuerte presencia del proyecto nacional de
conmemoración nutrido por la idea de acontecimiento simbólico, en un tiempo instaurado por
la memoria como patrimonio y mantenimiento de lo efímero, lo que Hartog (2013) denomina
“presente mesiánico”.
La dimensión temporal del presente, según Aróstegui reside, como mínimo, en dos
claves sustanciales: la historización y la acción intergeneracional, en primera instancia
caracterizan este enfoque como una construcción cultural de una historia vivida, escrita por
quienes la viven, fundamentada en realidades históricas que ponen en evidencia nuevas
concepciones de la forma y función de la historia (Aróstegui, 2004).
Es cierto que esta incorporación epistémica a la historiografía desató contrapuestos
que atienden los miedos enquistados en la amenaza de desaparición del régimen moderno y la
historiografía tradicional:

La construcción de una historiografía que refleje la historia vivida se enfrenta a


algunos problemas peculiares. Unos tienen un carácter epistémico sustancial, como
es el de la necesidad de documentar una experiencia de sujetos e instituciones que
no está acabada sino en curso en el momento en que esta historia se construye. Pero
existen problemas de orden más pragmática y entre ellos están los de la calidad y
cantidad de información disponible: la lucha contra la resistencia a la información
pública, la tergiversación y ocultamiento, la inaccesibilidad. Otro problema es que la
revolución tecnológica del último cuarto del siglo XX nos ha llevado a una situación
absolutamente nueva en cuanto al carácter de las fuentes de la historia y la
transmisión de información, precisamente porque hemos entrado en la época del

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informacionalismo, de la redundancia y los ruidos, de la información que es


“desinformación” (Aróstegui, 2004, p. 42).

La década de los años ochenta marcó el replanteamiento de tendencias historiográficas


que habían cimentado la construcción de conocimiento y conciencia histórica. El paradigma
estructuralista y la historia Galeliana, caracterizada por tratamiento cuantificado y estadístico
de los datos, son complementados y en algunos casos sustituidos por tendencias apoyadas en
la diversificación conceptual y metódica de las Ciencias Sociales y la Literatura.
Sin lugar a dudas este tipo de debates no se transportó rápidamente al escenario
escolar, sin embargo, la idea de disciplinarización de la historia también comenzó a
enfrentarse a discusiones acerca del sentido de la enseñanza y aprendizaje. Los cambios
paradigmáticos se acercaron paulatinamente a partir de las demandas del contexto escolar el
acercamiento y uso de las fuentes en sala de aula, los procesos cognitivos para crear
asociaciones temporales que permitieran la comprensión del presente de los sujetos
pedagógicos.
Entre los estudios pioneros que dieron cabida a la problematización de la educación
histórica se encuentra el trabajo practico realizado entre 1982 y 1985 por Asbhy y Lee6 en el
Institute of Education de Londres donde propusieron algunos niveles categóricos7 para
caracterizar el acercamiento y comprensión del pasado por estudiantes. Además de los
valiosos aportes que han ido surgiendo en las diferentes latitudes, a partir de demandas
sociales que involucran el análisis sobre la historia escolar, Dennis Shemilt en Reino Unido,
Isabel Barca en Portugal, el filósofo alemán Jorn Rüsen, el grupo Clio en Espana, la Red de
ensenanza del tiempo presente en Argentina, Maria Auxiliadora Schmidt en Brasil y la Red de
ensenanza de historia en Mexico, entre otro trabajos desenvueltos en Oriente y Africa.
En esta lógica, la reflexión en torno a los estadios de comprensión de los contenidos
históricos en el escenario escolar, se tornaron un generador de cuestiones, propuestas,
conjeturas, consideraciones y conclusiones refugiadas en la pertinencia de la historia del
presente dentro del currículo escolar. Amezola, al igual que Carretero identifican estos
cambios dentro de transformaciones educativas afrontadas por algunos países occidentales
durante la década de los noventa, a cuenta del orden mundial planteado bajo la idea de
globalización e implantación de modelos neoliberales.

6
Peter Lee y Rosaly Ashby, son reconocidos por sus aportes en el campo de la enseñanza de la historia,
especialmente con el proyecto “CHATA: Concepts of History and Teacher Approaches”, desarrollado en Gran
Bretaña, con ejes de reflexión acerca de cómo los niños y jóvenes piensan la historia.
7
Son cuatro niveles propuestos por Asbhy y Lee: 1) El conocimiento del pasado se da por supuestos; 2) la
evidencia es la información privilegiada sobre el pasado; 3) Las evidencias son las bases para realizar inferencias
del pasado; 4) conciencia de historicidad.

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Los planes de estudio de Historia consideraron la inclusión de la historia presente,


junto a discursos de ciudadanía y promoción de Derechos Humanos, con afirmaciones
reiteradas sobre la necesidad de que niños y jóvenes conozcan su pasado para comprender el
presente, y lo signifiquen en torno a líneas procesales y multicausales:

Desde ese momento, los planes de la Historia enseñada cambiaron su centro de


gravedad, que se trasladó del pasado nacional de la primera mitad del siglo XIX –
que había sido durante más de cien años el período clave para la educación patriótica
que se transmitía en las aulas– a la época contemporánea, dentro de la cual se
reservaba un espacio amplio para el estudio del pasado reciente. (Amézola; Dicroce;
Garriga, 2009, p. 105)

De este modo, los cambios afrontados por la enseñanza de la historia son generados en
un contexto marcado por exigencias de conocimientos más complejos enfrentados a un
conjunto de demandas sociales y educativas con significado en la estructura política y
económica de finales del siglo XX y principios del XXI (Osandón, 2007). Conforme a esto, la
historia escolar pasa de ser un espacio en donde solo adquieren sentido lo nacional y aun lo
regional, a la inclusión de otras formas de ser, hacer y aprender.
Esta disyuntiva ha colocado en mesa de discusión los objetivos de la enseñanza de la
historia en pro de la formación de una conciencia histórica, la problematización de nuevas
cuestiones de memoria, identidad y narrativa repercutió en el significativo impulso de
investigación sobre la enseñanza de la historia, sumado a la consolidación de programas de
pos graduación en historia con un enfoque en la enseñanza- aprendizaje de los que han
surgido diversas lecturas sobre el campo.

El aprendizaje histórico referenciado en la formación de la consciencia histórica


propone el desenvolvimiento de la capacidad de orientarse el tiempo (pasado) y
sobre el tiempo (presente), construyéndolo y analizándolo para tornarlo significativo
para nosotros. Paralelamente, presupone que el aprendizaje histórico es un proceso
dinámico en el cual la persona que está aprendiendo está cambiando y eso significa
que saber historia es diferente a pensar históricamente correcto. Saber historia es
entender el pasado como un pasado histórico, ni muerto, ni práctico. (Schmidt;
Cainalli, 2010, p. 70)8

Decimos, entonces, que el conocimiento histórico escolar ha estado permeado por las
discusiones historiográficas, a pesar de ello, continuamos siendo testigos de una amplia
brecha entre producción académica y escuela. Por eso continuamos validando que existen

8
Traducción de portugués a español realizada por los autores. Versão portugués: “A aprendizagem histórica
referenciada na formação da consciência histórica propõe o desenvolvimento da capacidade de se orientar no
tempo (passado) e sobre o tempo (presente), construindo-o e analisando-o para torná-lo significativo para nós.
Paralelamente, pressupõe que a aprendizagem histórica é um processo dinâmico no qual a pessoa que está
aprendendo está mudando e isso significa que saber história é diferente de pensar historicamente correto. Saber
história é entender o passado como um passado histórico, nem morto, nem prático”.

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391

posibilidades de colocar discusiones contemporáneas en el nivel escolar, como el caso de la


historia del tiempo presente.
Las condiciones históricas que acompañaron la segunda mitad del siglo XX ceñidas a
realidades traumáticas de violencias políticas límite como el holocausto nazi, las dictaduras en
Centro América y el Cono Sur, el Apartheid, entre otros, imprimieron en la enseñanza del
tiempo presente una posibilidad de mirar el pasado cercano con el objetivo de comprender lo
que había acontecido conforme el entendimiento de responsabilidades jerárquicas dentro de la
estructura estatal y la elaboración de traumas.
Así, el pasado reciente se ha convertido en objeto de enseñanza priorizando, en la
mayoría de los casos, “la comprensión de las sociedades como producto del desarrollo y de
las luchas históricas” (Funes, 2006, p. 93), donde el pasado deja de ser analizado como un
elemento neutral y adquiere una dimensión política, filosófica, social y ética que hace de su
enseñanza un terreno de disputas y luchas por lo que se recuerda y lo que se olvida.

Política educativa y escuela: una sugerencia para elaboración del pasado

Después de una intensa movilización de maestros9, que buscó reivindicar el saber


pedagógico en una sociedad que habitualmente ha despreciado la labor docente, se logró el
establecimiento de la Ley General de Educación (Ley 115 de 1994) que orienta el sistema
educativo colombiano a nivel básico y medio.
Entre los fines de la educación planteados en esta Ley se señalaron, entre otros,

[....] 4. La formación en el respeto a la autoridad legítima y a la ley, a la cultura


nacional, a la historia colombiana y a los símbolos patrios.
5. La adquisición y generación de los conocimientos científicos y técnicos más
avanzados, humanísticos, históricos, sociales, geográficos y estéticos, mediante la
apropiación de hábitos intelectuales adecuados para el desarrollo del saber.
6. El estudio y la comprensión crítica de la cultura nacional y de la diversidad étnica
y cultural del país, como fundamento de la unidad nacional y de su identidad.10

Además de los fines, la Ley decretó la enseñanza en áreas obligatorias entre las que
figuran: las Ciencias sociales, historia, geografía, constitución política y democracia. De esta
forma, las Ciencias Sociales fueron comprendidas como área de obligatoria enseñanza en las

9
La movilización de maestros y maestras, que se conoce como “Movimiento Pedagógico” y ha sido uno de los
capítulos más significativos del magisterio en la historia reciente en Colombia
10
La Ley General de Educación en Colombia fue sancionada por el Congreso de la República el 8 de febrero de
1994. El articulado completo se puede consultar en: http://www.mineducacion.gov.co/1621/articles-
85906_archivo_pdf.pdf. Consultado el 31 de Octubre de 2014. En adelante, los apartados tomados de la Ley
estarán entre comillas, para evitar una excesiva citación de un mismo documento ya referenciado.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 382-403, Jul. 2015


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instituciones escolares adquiriendo cierta importancia en la idea de la concepción holística del


mundo. Con base en esta Ley en el año 2002 se crearon los Lineamientos Curriculares para
las diversas áreas del currículo escolar, basados en los requerimientos dictados por la Ley
General de Educación de 1994:

ARTICULO 78. Regulación del currículo. El Ministerio de Educación Nacional


diseñará los lineamientos generales de los procesos curriculares y, en la educación
formal establecerá los indicadores de logros para cada grado de los niveles
educativos, tal como lo fija el artículo 148 de la presente ley. Los establecimientos
educativos, de conformidad con las disposiciones vigentes y con su Proyecto
Educativo Institucional, atendiendo los lineamientos a que se refiere el inciso
primero de este artículo, establecerán su plan de estudios particular que determine
los objetivos por niveles, grados y áreas, la metodología, la distribución del tiempo y
los criterios de evaluación y administración. Cuando haya cambios significativos en
el currículo, el rector de la institución educativa oficial o privada lo presentará a la
Secretaría de Educación Departamental o Distrital o a los organismos que hagan sus
veces, para que ésta verifique el cumplimiento de los requisitos establecidos en la
presente ley (Ministerio de Educación, 1994, Art 78.)

Para Ciencias Sociales se plantearon los siguientes ejes:


- La defensa de la condición humana y el respeto por su diversidad:
multicultural, étnica, de género, y opción personal de vida, como recreación de la
identidad colombiana
- Sujeto, Sociedad Civil y Estado comprometidos con la defensa y promoción
de los deberes y derechos humanos, como mecanismo para construir la democracia y
buscar la paz
- Mujeres y hombres como guardianes y beneficiarios de la madre-tierra”
- La necesidad de buscar desarrollos económicos sostenibles que permitan
preservar la dignidad humana
- Nuestro planeta como un espacio de interacciones cambiantes que nos
posibilita y limita
- Las construcciones culturales de la humanidad como generadoras de
identidades y conflictos
- Las distintas culturas como creadoras de diferentes tipos de saberes valiosos
(ciencia, tecnología, medios de comunicación)
- Las organizaciones políticas y sociales como estructuras que canalizan
diversos poderes para afrontar necesidades y cambios. (Ministerio de Educación
Nacional, 2002.)

En esta línea de reglamentación se crean posteriormente los denominados Estándares


Curriculares. Según el Ministerio de Educación, éstos son “son criterios claros y públicos que
permiten conocer lo que deben aprender nuestros niños, niñas y jóvenes, y establecen el punto
de referencia de lo que están en capacidad de saber y saber hacer en cada una de las áreas y
niveles” (Ministerio de Educación Nacional, 2004, p. 5). Para el caso de las Ciencias Sociales,
los estándares plantean tres ejes básicos, a saber: Relaciones con la historia y la cultura;
Relaciones espaciales y ambientales, y Relaciones ético-políticas.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 382-403, Jul. 2015


393

No deja de ser paradójico que mientras la Ley General de Educación consagró la


Historia como saber básico para la formación de estudiantes en Colombia, las reformas
posteriores le quitaron peso dentro del currículo. Así mismo, la enseñanza de lo que
genéricamente se empezó a denominar Ciencias Sociales desdibujó la enseñanza de la
disciplina histórica y geográfica, saberes que otrora habían ocupado un lugar privilegiado en
la formación escolar:

En la concepción oficial del Ministerio de Educación Nacional desaparecen la


historia y geografía y todas las disciplinas específicas -en un país en donde nunca se
ha consolidado ninguna de ellas ni siquiera en el ámbito de la investigación
especializada- para subsumirse en una nebulosa en la que hay de todo un poco [...] al
mismo tiempo que disminuye la intensidad horaria consagrada a los mismos (Vega,
2008, p. 35).

Desde la perspectiva de sus impulsores, el saber social implica un intercambio


permanente de conocimiento producido desde las distintas disciplinas de las Ciencias Sociales
que la rígida formación disciplinar no posibilita. Al superar las clásicas barreras tradicionales
entre historia y geografía, involucrando saberes provenientes de la Sociología y la
Antropología, se estaría ampliando el espectro de conocimiento en función del análisis de las
complejas realidades contemporáneas.
La implementación de estas orientaciones en el escenario escolar colombiano no está
exenta de contradicciones. Por un lado, se encuentran las posiciones que colocan en discusión
el descuido del conocimiento “propio” de la disciplina histórica tras el abandono de datos
específicos necesarios para la construcción de una identidad nacional.

Esa falta de culto por la Historia puede ser una de las razones por las cuales
Colombia es uno de los países con un menor nivel de patriotismo en el mundo, pues,
si se quiere, historia y patriotismo son conceptos que van unidos. Cuba y México
son tal vez los países más nacionalistas del continente, y no hay niño que no conozca
todos los detalles de sus revoluciones, la vida de sus héroes y el precio de lo
conseguido (Semana, 2012, p. 12).

La crítica de parte de los historiadores hacia la historia escolar, encuentra su


fundamento en el extremo desconocimiento del pasado, a cambio del protagonismo del
presente. Esto no es algo nuevo, la discusión sobre el manejo del presente en la escuela se ha
colocado como un dualismo ante el pasado, se trata del temor que existe sobre la inmediatez,
no tan solo por las condiciones historiográficas mencionadas anteriormente, sino por, las
exigencias del mundo contemporáneo donde el pasado parece perder cada vez más validez
respecto a la dictadura del instante.
Por otro lado, es necesario comprender que la enseñanza de la historia está pasando
por una serie de transformaciones en cuanto forma y fondo, que le han permitido redefinir sus

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394

objetivos y mecanismos de alcance, situando así la formación histórica de orden


memorialístico en un lugar desactualizado dentro del mismo discurso historiográfico, a
cambio, se espera que el rigor académico de hacer historia llegue en diferentes niéveles al
escenario escolar propendiendo el carácter investigador-científico en estudiantes y profesores,
mediante el cual encuentren aplicabilidad a la historia en su tiempo y espacio.
Finalmente, conviene decir, para tranquilidad de quienes abogan por el conocimiento
de la historia nacional-patria, que el punto álgido de la discusión no radica en el tratamiento
de esa información, sino en la comprensión y análisis de la misma para la formación de una
consciencia histórica.
La construcción de la nación colombiana ha quedado relegada, cuando no eliminada
de los planes de estudio escolares. Abordar la enseñanza de la historia desde una perspectiva
nacional no pretende desconocer los cambios operados en el sistema mundial en las últimas
décadas; por el contrario, de lo que se trata es de establecer relaciones entre la historia
nacional, regional y mundial en los diferentes niveles de escolaridad.

La escuela colombiana en temporalidades del presente.

Las indagaciones sobre el quehacer de la historia, las motivaciones por mantener


contenidos disciplinares en el currículo escolar y los avatares del presente en torno a
postulados del fin de la historia, son elementos discursivos que encajan perfectamente en la
necesidad de reflexiones propositivas respecto al campo de la enseñanza de la Historia en
Colombia, permeados por presupuestos del debate historiográfico de los últimos años,
especialmente del régimen de historicidad presentista, como se le ha denominado al enfoque
historiográfico del tiempo presente.
En este escenario, la escuela no es ajena a la discusión, por el contrario, la
representación del pasado y la evocación de lo ausente hacen parte del ejercicio continuo de
reafirmación de la identidad nacional, especialmente cuando se trata de una memoria
equipada con la oficialidad de una historia fundada a través de la alianza con la
rememoración, memorización y conmemoración.
Una memoria ejercitada en el plano institucional, a la que tampoco se le puede
considerar como inmune ante las narrativas no oficiales, con la que Ricoeur llama la atención
por ser memoria impuesta íntimamente relacionada con la historia oficial, aprendida y
celebrada públicamente, “una memoria enseñada; la memorización forzada se halla así

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enrolada en beneficio de a rememorización de las peripecias de la historia común” (Ricoeur,


2013, p. 116)
La apuesta por mantener en la escuela un escenario privilegiado para la producción y
reproducción de determinado conocimiento histórico supera la sola idea de manutención de la
historia nacionalista - heroica, que según la explicación de Carretero (2007) se encuadra en
objetivos románticos de la consagración de las historias nacionales como mecanismo de
construcción y perduración de la memoria histórica, no ajena a intereses políticos acerca de lo
que significa pensar históricamente y las implicaciones de orientar a los sujetos en la
dimensión temporal de sus vidas.
El historiador francés Michel De Certau en la reflexión plateada sobre la connotación
de la escrita de la historia propone situar el análisis en la comprensión del lugar que ocupa la
historia y el historiador bajo un examen crítico. En este sentido, para pensar la construcción
histórica, si se permite o prohíbe, hay que empezar por comprender el lugar que ocupa dentro
de esa sociedad:

Antes de saber lo que la historia dice de una sociedad, es necesario saber cómo
funciona dentro de ella. Esta institución se inscribe en un complejo que le permite
apenas un tipo de producción y la prohíbe otros, Tal es la doble función del lugar. el
torna posibles ciertas investigaciones en función de coyunturas y problemáticas
comunes. pero torna otras imposibles; excluido el discurso que es su condición en un
momento dado; representa el papel de la censura con relación a los postulados
presentes (sociales, económicos, políticos) en el análisis (De Certau, 2006, p. 76).11

La incorporación de determinadas temáticas en el escenario escolar ayuda a


comprender el complejo entramado de los procesos históricos y sociales, tanto de orden
nacional como mundial. Como se menciono anteriormente el surgimiento y la consolidación
del enfoque de enseñanza de la historia reciente, ha tomado inusitada fuerza en los últimos
lustros, particularmente en los países en los que se adelantaron importantes procesos de
reconstrucción de la memoria social durante la segunda mitad del siglo XX.
En Colombia, por su parte, las experiencias relacionadas con el enfoque de enseñanza
de la historia tomaron fuerza desde finales de los años noventa, siendo evidentes en algunos
de los postulados de los lineamientos curriculares en Ciencias Sociales; la enseñanza del
presente en el escenario nacional responde a una ola de discusiones que transitan entre los
conocimientos emitidos en la escuela y la producción académica, además de los discursos de
memorias subterráneas.

11
Traducción de portugués a español realizada por los autores.

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Si se mira con detenimiento, las experiencias pedagógicas relacionadas con este


ámbito son escasas, debido la dificultad en el abordaje del conflicto en medio del conflicto;
Así, lo revela un artículo de prensa, en que tomando las apreciaciones de la Federación
Nacional de Educadores FECODE se sostiene que: “Los docentes, además de ser blanco de
amenazas de los grupos armados, tienen problemas para enseñar historia o música, materias
que -según algunas denuncias- "molestan" a los miembros de organizaciones ilegales”
(Semana, 2011). Pese a este desolador panorama, en diferentes partes de la geografía nacional
se han liderado iniciativas que tienen como eje conceptual y pedagógico el enfoque de la
enseñanza de la historia reciente.
Las iniciativas de maestras y maestros que han encontrado caminos para traer a la
discusión histórica de sus clases temáticas del presente, en busca de la construcción de una
conciencia histórica en pro de formación de sujetos en derechos respetuosos de la paz.
El enunciado con el que comenzamos este texto, sobre la pérdida de importancia de la
enseñanza de la historia, no refiere de manera exclusiva al tratamiento del tiempo presente,
consideramos que hace parte de una discusión a nivel más amplio de la historiografía con la
idea de fin de la historia, sin embargo, aunque no esté expuesto de forma explícita, la
enseñanza del presente esta anudada al derecho de la memoria, y el dialogo con nuestros
pasados, por eso abogar por la importancia de imprimir en los contenidos del presente una
mirada crítica, remite de forma inmediata al análisis consciente de procesos pasados con los
que se desvirtúa el fin de la historia.
La presencia de experiencias pedagógicas dedicadas al trabajo de memorias e historia
del tiempo presente con relación al conflicto armado (como se señaló en las primeras líneas de
este apartado) y las vicisitudes propias de la realidad nacional han sido paulatinamente
incorporadas en textos escolares12, abriendo el espectro al conocimiento de los diferentes
actores del conflicto y sus versiones sobre la guerra.
Las discusiones mencionadas han posicionado en el espacio público las nuevas
perspectivas que, antaño, no eran consideradas en los planes de estudio de las instituciones
escolares. Tal como lo señala Renán Vega:

Los desarrollos de las ciencias sociales y el impacto de las transformaciones


mundiales de las últimas décadas no pueden pasar desapercibidas en el ámbito
escolar, por pena de mantenerse atados a unos saberes apolillados que no
proporcionen ninguna perspectiva crítica a los jóvenes y adolescentes
latinoamericanos (Vega, 2007, p. 328).

12
Ver colección Santillana año 2011. Textos escolares Sistema Uno, en donde se incluye temáticas de guerra
sucia años 80, narcotráfico, grupos paramilitares y guerrilla.

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397

Desde esta perspectiva la enseñanza de la historia y los múltiples procesos de


aprendizaje derivados de esta, son un llamado de atención a revisar de forma concienzuda
¿por qué enseñamos historia? ¿Por qué esa historia y no otra? ¿Cuáles son las relaciones entre
historia enseñada y memoria histórica?, a cuenta de muchas otras cuestiones, que seguramente
surgen en el proceso de reflexión, en el que se hace evidente que la historia escolar no es
neutra, pasiva y reproductiva, por el contrario, la investigación y sistematización de
experiencias pedagógicas demuestran que la practica en sala de aula se postula como un lugar
de enunciación colectivo e individual, con el que es necesario interlocutar, teniendo en cuenta
que en ella se hospedan los seres humanos por quienes pensamos en un futuro.

Apuestas y propuestas a la luz de pedagogías de la memoria. La escuela y la memoria


como apuesta de la enseñanza de la Historia

La acentuación de trabajos y discusiones que tienen como objeto el acercamiento y


esclarecimiento del pasado se presenta con más fuerza en colectividades pertenecientes a un
momento histórico caracterizado por la manifestación de un sentimiento conservacionista o
transicional; se trata de iniciativas emergentes en marcos de recuperación simbólica y material
de versiones históricas públicas, sociales, nacionales y regionales que envuelven versiones
oficiales y subterráneas.
A pesar del riesgo de adelantar un proceso pedagógico que involucre la memoria como
elemento de enseñanza de la historia reciente del país, existen algunas experiencias de orden
pedagógico que han mostrado la importancia de este tema para superar la impunidad que
impera en Colombia. Estas iniciativas se enmarcan dentro de lo que se empieza a denominar
como “pedagogías de la memoria”.
Si bien las reflexiones epistemológicas sobre esta “nueva” pedagogía aún están en
consolidación. La pedagogía de la memoria está encaminada a superar en alguna medida el
divorcio entre lo que se enseña y la realidad histórica que da cuenta del lugar de la historia
dentro de la sociedad. La propuesta consiste en abordar teóricamente el síntoma, entendiendo
el pasado como un nuevo territorio de la política.
Además de su apuesta educativa, la pedagogía de la memoria tiene una clara
intencionalidad política:

No se trata sólo de contar, se trata de impactar en la subjetividad, en las formas de


pensar y de actuar de las nuevas generaciones que son los receptáculos de esa
experiencia, que no tuvieron pero que les pertenece. A la educación se le adjudica un

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 382-403, Jul. 2015


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lugar central en el proceso democratizador, formando ciudadanos, promoviendo


valores (Raggio, 2004, p. 13).

Bajo esta premisa ética nos posicionamos como educadores, considerando que más
allá de la enseñanza de procesos históricos recientes se debe trabajar para lograr un cambio
que apunte a la superación del estado de cosas actuales en Colombia. Se trata, entonces, de
buscar estrategias de formación política que desarrollen ciudadanos críticos, comprometidos
con su realidad social.
La pedagogía de la memoria, entonces, encuentra varios elementos epistemológicos en
común con la teoría crítica de la sociedad, así como de la pedagogía crítica. Desde nuestros
análisis, la pedagogía de la memoria en Colombia se debe plantear:

A. la enseñanza de las Ciencias Sociales, particularmente de la Historia y la Geografía


como saber imprescindible para comprender la realidad nacional;
B. Establecer un diálogo entre el planteamiento de la política educativa y las propuestas
de elaboración de memoria, sin que esto implique la curricularización de la memoria
como conceptualización instrumentalizada;
C. Partir de reconocimiento de los ejercicios existentes, las narrativas y temporalidades
diversas. Esto significa tener en cuenta la producción de memorias de los diferentes
grupos sociales, para la promoción de un pensamiento histórico.
D. Se trata, entonces, de una pedagogía que no se basa en la idea de un pasado estático y
rígido. En este sentido, busca establecer la manera de poder recuperar la historia
social. Tal apuesta se inscribe dentro de las tradiciones historiográficas críticas, en
particular;
E. La pedagogía de la memoria es a la vez una propuesta de orden educativa y política.

Estos elementos de la pedagogía de la memoria han sido impulsados por varias


iniciativas adelantadas por comunidades ubicadas en diversos puntos de la geografía nacional.
Sin embargo, la mayoría de estas iniciativas responden al trabajo en organizaciones sociales
fuera del sistema educativo formal, lo que sugiere que aún queda un amplio camino en la
construcción de propuestas de tratamiento del pasado y las memorias en ejercicios escolares
formales, más aun, en el marco de respuesta a requerimientos específicos que surgen en el
contexto de transición para la escuela.

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 382-403, Jul. 2015


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Dentro de las múltiples iniciativas generadas desde organizaciones sociales,


destacamos las siguientes13.
Semillas de libertad y resistencia: Historias que se entrelazan para seguir resistiendo.
La propuesta está dirigida a las familias afrocolombianas que se asientan sobre los márgenes
del Río Caunapi14, en el pacífico colombiano. Desde su perspectiva, se busca establecer
relaciones con el territorio de comunidades afrodescendientes en el que se han creado
especiales vínculos a pesar de la presencia y acciones violentas de parte de distintos actores
del conflicto armado.
Esta experiencia señala, entre otras, cómo la guerra en Colombia ha afectado de
manera diferencial a las “minorías” étnicas:
Así como las comunidades afrocolombianas han emprendido procesos de pedagogía
de la memoria, también otras comunidades étnicas han trabajado en esta dirección.
En este sentido sobresale los esfuerzos de “los pueblos indígenas Misak Misak,
Yanacona y Pastos y es una propuesta para la Política Pública Indígena Distrital.
En el marco de los lineamientos de la Educación Propia, la propuesta busca la
protección de su memoria histórica como pueblos originarios, con base en una
propuesta de educación indígena y diálogo de saberes (Centro de memoria, paz y
reconciliación, 2014).

“Generación de paz” es una apuesta de docentes y estudiantes de educación básica y


media del Distrito Capital. Es una propuesta liderada desde y para los estudiantes con el
objetivo de crear posibilidades que nos permitan pensar en paz, partiendo de la construcción
de ciudadanos con formación política y consciencia histórica.
Montes de María, Barranquilla, Atlántico15, Colombia. Hacia una pedagogía de
la memoria desde las ciencias sociales en la I. E. Normal Montes de María: La propuesta
se enmarca en el reconocimiento de los retos de la enseñanza de las Ciencias Sociales en un
escenario de conflicto armado, como lo es la región de Montes de María. Los profesores de la
Normal de Montes de María contextualizan y caracterizan el territorio en donde se encuentra
ubicada la Institución educativa, como un espacio de temor que han dejado los actores
violentos. El objetivo es “lograr una formación de sujetos críticos mediante una pedagogía
centrada en la problematización de la realidad a partir de la pregunta, pero que al mismo
tiempo se fundamente en la memoria como punto de partida para la educación social y moral
del joven que se forme en unas competencias centradas en la acción, la narración y la
alteridad”.

13
Las experiencias han sido tomadas del Banco de Experiencias del Centro de Memoria, Paz y Reconciliación,
iniciativa del Distrito Capital, disponibles en: http://centromemoria.gov.co/pedagogia/experiencias/.
14
Río localizado en la región occidental de Colombia, comprende el Departamento de Nariño, llega directamente
a Bahía de Tumaco.
15
Barranquilla Capital del Departamento del Atlántico ubicada en el Caribe Colombiano.

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400

Granada, Antioquia, experiencia liderada por la asociación de víctimas Asovida,


recordar con los niños 2006: Granada es un municipio que pertenece al oriente antioqueño.
Está a dos horas de San Carlos y a diferencia de éste, hace mucho frío. Su gente es pujante,
solidaria y amable con los visitantes, porque para ellos todos pertenecen a la misma familia.
Es un pueblo en constante cambio y creación en donde prevalece la organización,
movilización y resistencia civil. Con una larga trayectoria dentro del conflicto armado,
caracterizado por la presencia de grupos armados y el dominio de los mismos sobre el
territorio, durante los últimos años de la década de los años noventa, se vio fuertemente
golpeado por la intervención de las Autodefensas Unidas de Colombia (A.U.C), quienes en su
afán de sojuzgar a presuntos colaboradores de grupos guerrilleros, arremetieron contra
campesinos trabajadores de la región, dejando como saldo un alto porcentaje de víctimas.
En el año 2006, las víctimas se organizan para reconocer y visibilizar a sus muertos
como seres humanos con derechos, a quienes no debió arrebatárseles la vida en medio de un
acto de retaliación entre actores armados. El objetivo de la iniciativa es recuperar el nombre
de sus familiares, como sujetos sociales y políticos, es decir rescatar “El buen nombre”.
La Asociación de Víctimas Unidas de Granada, emprendió una serie de acciones para
condensar esfuerzos en la reconstrucción del tejido social del Municipio. “El salón del
Nunca Más es una muestra de los procesos de memoria histórica que se lideran en el
municipio. Cuando uno ingresa por primera vez se encuentra muy oscuro y silencioso, pero
a medida que se encendían las luces, los rostros de las víctimas de paramilitares, guerrilleros
y ejército comenzaban a hablar su propia historia. En las paredes reposan expuestas las
heridas que dejaron los enfrentamientos, las masacres colectivas, las explosiones y la
destrucción del pueblo”16.
La presentación de estas iniciativas es tan sólo una pequeña muestra de la manera en la
que la pedagogía de la memoria se ha manifestado en diversos escenarios con el principal
objetivo de establecer procesos de reconstrucción y socialización de las diferentes memorias.
Del mismo modo la mayoría de propuestas se traducen en apuestas en donde la paz
encuentra lugar significativo en un futuro no lejano.
La reflexión sobre el papel activo de la escuela respecto a iniciativas de pedagogía de
la memoria sitúa un sin número de elementos que convergen en la discusión respecto a cómo

16
Centro de Memoria Histórica, Recuerdos de una estudiante, Crónica realizada por María Laura Idárraga
Álzate,http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/index.php/iniciativas-de-memoria/iniciativas-desde-
region/41-iniciativas-desde-region/127-recuerdos-la-importancia-de-la-memoria

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 382-403, Jul. 2015


401

tratar el pasado reciente, más aun, cundo este corresponde a características de violencia
extrema.

Consideraciones Finales

En el momento en que se elabora este artículo, un grupo de negociadores del gobierno


colombiano adelanta conversaciones para poner fin a la confrontación bélica entre la
insurgencia de las FARC y el Estado colombiano, situación que se extiende desde mediados
de siglo XX hasta nuestros días siendo provocadora de una de las tragedias humanitarias más
graves del hemisferio occidental.
Dada la magnitud del conflicto social y armado del país, hoy comprendemos que una
de las primordiales tareas de la escuela en el proceso de construcción de Memoria Histórica
como acción simbólica de reparación a las víctimas y apuesta colectiva para la consecución
de la paz, es la articulación de todo el sistema educativo con voluntad, decisión, disposición,
apertura y flexibilidad para emprender modificaciones, reacomodaciones y reestructuraciones
institucionales al interior de los escenarios y programas en los cuales se lleva a cabo la labor
educativa cotidiana.
En esta medida, vale la pena indagar sobre las posibilidades que tiene la escuela de
adoptar dentro de la cultura escolar el trabajo con la memoria, sin necesidad de incorporarla
de manera obligatoria a los currículos escolares. Esta cuestión da paso a un amplio debate en
torno al vínculo entre política educativa y políticas de la memoria, el cual desbordaría los
objetivos de este artículo; sin embargo, consideramos que es un imperativo ético y político la
vinculación de temas asociados con la historia reciente y el conflicto para que, desde los
escenarios educativos, se apunte a la formación de una cultura de paz, que rompa con las
dinámicas de intolerancia política que ha caracterizado la historia socio-política del país.
Cualquier propuesta en el marco de ejecución de política pública en Educación para
incluir en el escenario escolar nuevos contenidos conceptuales y metodológicos, debe poner
en discusión las apuestas educativas en relación con el conocimiento social que se enseña en
la escuela, verbigracia Cátedra de Estudios Afrocolombianos, Constitución Política y
Democracia, Educación Ética y Valores Humanos, Educación Ambiental y Educación en
Estilos de Vida Saludable, en discusión permanente con el tema de la memoria. Este diálogo
entre los saberes escolares debe propiciar puntos de encuentro y reflexión en torno a los
proyectos escolares, máxime si están en función de la construcción colectiva de una sociedad
en paz.

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402

La planeación y puesta en marcha de un proyecto transversal de memoria debe, no


obstante, reconocer los límites que encuentra en los escenarios escolares colombianos. Entre
estos puede mencionarse la mínima continuidad y repercusión en la comunidad que tienen los
proyectos educativos, así como la segmentación de los procesos pedagógicos, el desgaste de
la comunidad educativa (especialmente los docentes), entre otros.
La exposición de los aspectos anteriormente mencionados reposa en el interés por
reflexionar y problematizar las condiciones dadas para el encuentro de política educativa y
políticas de la memoria, sin que una se sobreponga a la otra, o lo que puede ser peor, sean
asumidas bajo la obligatoriedad jurídica del deber de hacer memoria, lo cual también puede
provocar un exceso de pasado con líneas tenues de análisis y comprensión de condiciones
históricas que permitieron que Colombia viviera este prolongado capítulo de conflicto.

Recebido em: 17.10.2014. Aprovado em: 27.02.2015.

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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 382-403, Jul. 2015


A atuação do Tribunal do Santo Ofício na Capitania de Mato Grosso (segunda metade
do século XVIII)

Giuslane Francisca da Silva1


Magna Tatiane Nunes Bolonha2

Resumo: Reativado com o Concílio de Trento (1545-1563), o Tribunal do Santo Ofício passou a frequentar as
terras brasileiras no final do século XVI, atuando até o século XVIII. Neste sentido, apresentamos neste trabalho
como o Tribunal do Santo Ofício agia na busca pela preservação da ortodoxia do catolicismo religioso, criando
novos mecanismos como as visitações que pudessem averiguar e apurar os casos de judaizantes, blasfêmias,
desvios sexuais e morais e as práticas mágico-religiosas na Capitania de Mato Grosso na segunda metade do
século XVIII.
Palavras-chave: Santo Ofício; Visitações; Capitania de Mato Grosso.

The actions of the Holy Office in the Captaincy of Mato Grosso: second half of the eighteenth century

Abstract: The Holy Office Tribunal was reactivated with the Council of Trento (1545-1563) and began to attend
the Brazilians land at the late sixteenth century acting until the eighteenth century. In this sense, we present in
this work the how the Holy Office Tribunal acted in the quest to preserve the orthodoxy of the religious
Catholicism creating new mechanisms as the visitations to ascertain and investigate the cases of Judaizers,
blasphemy, sexual and moral deviations and the magical-religious practices in the Captaincy of Mato Grosso
second half of the eighteenth century.
Keywords: Holy Office; Visitations; Captancy of Mato Grosso.

Introdução

O objetivo desse artigo é apresentar a ação empreendida pelo Tribunal do Santo Ofício
na Capitania de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII, cujo intuito consistia em
combater as práticas e os comportamentos considerados em descompassos com os dogmas da
Igreja Católica. Para tanto, tomamos como base para nossas argumentações, a documentação
deixada pelo visitador Manoel Bruno Pina em sua visita a Capitania em 1785, assim como a
Devassa da Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, além de relatos contidos nos
Anais3.
O período colonial brasileiro foi marcado por uma multiplicidade de formações
culturais, presentes desde o início da conquista e ocupação da América pelos portugueses,
1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso.
2
Graduada em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso.
3
Estamos nos referindo aos Anais de Vila Bela (1734-1789) e Annaes do Senado da Câmara da Vila Real do
Bom Jesus do Cuiabá (1727).

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 404-422, Jul. 2015


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quando diversas etnias indígenas e africanas praticavam seus cultos e manifestavam suas
crenças. No entanto, tais práticas não eram aprovadas pela Igreja Católica, já que o
catolicismo era a única religião permitida por Portugal para se instalar nas terras da colônia,
de acordo com o regime do Padroado. Este pacto fora firmado entre a Igreja Romana e o
Estado, tornando o catolicismo a única religião legítima do Império Português.
Não apenas as crenças e cultos dos nativos serão tidos como contrários aos dogmas
religiosos da Igreja Católica, posteriormente, as religiões dos africanos trazidos para serem
escravos também passaram a ser concebidas como afrontas aos dogmas católicos, o que fez
com que a Igreja interviesse com o intuito de dissuadi-los dos cultos às suas divindades os
convertendo ao cristianismo. Havia também a questão da moral e da sexualidade que
trouxeram grandes preocupações para a Santa Madre Igreja. Entretanto, atuando contra os
preceitos cristãos estabelecidos pela Igreja, não estavam envolvidos apenas índios e negros,
mas os próprios brancos colonizadores, que ao desembarcarem nas novas terras não tardaram
muito para se unir com várias índias ao mesmo tempo, “adotando sem demora a poligamia
indígena” (VAINFAS, 1997, p. 234).
Isto causava grande desespero aos padres jesuítas e também a outras ordens
“empenhados em promover matrimônio in facie ecclesiae, como convinha, aliás, aos agentes
eclesiásticos da colonização”, (VAINFAS, 1997, p. 232). A frequência dessas relações
aumentou com a vinda dos escravos africanos trazidos para a colônia. Nos séculos XVII e
XVIII houve “uma participação cada vez maior dos negros- africanos e crioulos” (VAINFAS,
1997, p. 234) na relação do concubinato. A inserção dos negros nas terras brasílicas não
provocaria apenas a elevação dos casos de concubinato, mas desenvolveriam também os
amancebamentos e casos de sodomia.
Naquele contexto social vigente, a Igreja trataria logo de agir para reprimir tais
atitudes contra a fé e a moral, sempre muito prezadas pela mesma, utilizando-se, portanto, da
Inquisição moderna.
Um caso citado nos Anais de Vila Bela, no ano de 1787, nos permite perceber alguns
aspectos do universo religioso da Capitania de Mato Grosso, visto como um espaço
compartilhado por homens e mulheres que praticavam quotidianamente a norma da fé. O
fragmento foi escolhido por se referir a uma das maiores infrações aos preceitos da
cristandade, o furto da partícula sagrada, ou seja, a hóstia sagrada. O documento descreve o
furto praticado pelo soldado José Joaquim Ribeiro, que, dirigindo-se a igreja matriz para
confessar e comungar, no momento da comunhão tirou a partícula da boca com um lenço e a

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 404-422, Jul. 2015


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guardou, logo em seguida desertou-se juntamente com mais dois soldados dragões para o
domínio Espanhol.
Assim que a fuga foi percebida pelo governador da Capitania, Luís de Albuquerque, o
mesmo mandou partir “(...) os ajudantes auxiliares Manoel Rebelo Leite e o anspeçada4
Francisco da Silva Rondon e sete pedestres, bem armados e montados” (ANAIS DE VILA
BELA, p. 268). Quando os desertores foram encontrados houve troca de tiros, e no confronto
José Joaquim Ribeiro, que trazia em seu pescoço pendurada por uma fita a partícula sagrada,
foi morto.
O tema central desse relato contido nos anais de Vila Bela é a ocorrência de um grave
crime: o roubo de uma partícula considerada sagrada aos olhos de todos os que tomaram
conhecimento do fato. Diante deste caso percebemos a força e a influência que a fé exercia
neste período, sendo o homem indissociado das razões da alma. O trecho que citamos a seguir
refere-se às ações empreendidas pelos agentes envoltos no processo, assim que tomaram
conhecimento sobre o ocorrido:

Cheio ele e todos os mais de horror e respeitosa veneração, se prostraram, adorando-


a profundamente; e que ele, ajudante, a passara para um caixilho de ouro, com que a
trazia. Ouvindo Sua Excelência esse caso tão extraordinário, logo, com o maior
respeito e veneração mandou depositar o caixilho no lugar mais decente do seu
palácio. Penetrado da maior dor, por um tão grande desacato e ofensa à divina
majestade, se persuadiu que aquele malvado e sacrílego monstro não só cometeu um
tão detestável roubo da sagrada partícula, mas que se encaminhara com ela a outras
grandíssimas ofensas, sacrilégios e injúrias, quais eram haver pegado na sagrada
partícula com as suas malditas mãos, levando-a exposta a grandes [ilegível]... da
viagem, e até a poder ser enterrada com ele.
Logo mandou Sua Excelência participar esse caso ao vigário da vara e [ilegível]...
desta Vila, o qual, acudindo logo, e com todos os sacerdotes e irmandades do
Santíssimo Sacramento, e o geral concurso da nobreza e povo, todos cheios de
horror e penetrados do mais vivo sentimento, por tão temerária e suprema ofensa,
levou a sagrada partícula debaixo de pálio para a igreja matriz, em numerosa
procissão, acompanhada de Sua Excelência, de seu ajudante-de-ordens e do doutor
provedor da Fazenda Real, o secretário do governo e oficiais militares, que todos
antecipadamente tinham concorrido ao palácio (ANAIS DE VILA BELA, p. 268).

O que nos chama a atenção no fragmento citado é a ação dos agentes envolvidos no
episódio, desde militares às pessoas que se apresentam horrorizadas diante de tal situação, e
até mesmo o governador, que ao ser informado sobre o ocorrido, é imbuído de uma profunda
indignação e imediatamente decreta luto geral por três dias, ao mesmo tempo em que propõe
rezar na igreja pelo pecado cometido pelo soldado morto que tentara a deserção. Notamos
mediante as medidas tomadas pelas autoridades locais, a gravidade do ato, como por exemplo,

4
O termo era utilizado no período para designar aquele que era graduado à praça, posto militar acima de soldado
e subordinado ao cabo.

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a decisão de fazer uma procissão em ação de graças para levar a partícula sagrada de volta à
igreja, e proceder a Devassa do autor do crime, que nesse momento já estava morto.
A Igreja nesse momento atuava junto ao Estado, o que lhe permitia interferir no meio
social. Nossa pretensão é utilizar este fragmento para discorrer a respeito do poder da Igreja
conjuntamente com o Estado sobre a sociedade em geral, no intuito de mantê-la submissa ao
seu controle. Nessa perspectiva, é totalmente compreensível a gravidade do roubo relatado no
fragmento enunciado.
Este controle, no entanto, só é possível dentro de uma sociedade muito ligada às
questões religiosas, o que é bastante nítido em todas as fases deste fragmento. Como, por
exemplo, no momento em que o soldado acredita que levando consigo a dita partícula
sagrada, nada de ruim poderia lhe ocorrer, inclusive a morte.
Lucien Febrve em sua obra “O problema da incredulidade no século XVI: a religião de
Rabelais” (2009) examina a figura de Rabelais para discutir seu objeto, a incredulidade. Para
Febvre, Rabelais não poderia ter sido ateu pela simples razão de que o século XVI
desconhecia o conceito de descrença5.
Febvre considera que no século XVI não existia a possibilidade de não ser cristão,
pois, desde o nascimento, a criança se achava inserida no universo do cristianismo e não se
livrava deste nem mesmo no momento da morte, “pois essa morte era cristã necessária e
socialmente, pelos ritos a que ninguém podia furtar-se” (FEBVRE, 2009, p. 292). Ou seja, do
começo ao fim da vida o ser humano passava por vários ritos cristãos: o batismo, o
casamento, a benção na hora das refeições, a extrema unção na hora da morte, entre outros
momentos. Em toda a sua vida ele estava marcado pelo selo cristão, tudo dependia da Igreja,
até o tempo determinado pelo badalar dos sinos localizados no alto de suas torres.
No século XVI, talvez de maneira mais rígida, a Igreja exercia o papel de tribunal
auxiliar do Estado, assim como suas catedrais davam lugar para assembleias, eleições e
reuniões de todos os tipos. Enfim, a Igreja estava estabelecida em pleno coração da vida dos
homens, de “sua vida sentimental, de sua vida profissional, de sua vida estética, se pode
empregar essa grande palavra; de tudo o que os ultrapassa e de tudo o que os liga (...). Tudo
isso atesta, mais uma vez, a influência insidiosa e total da religião sobre os homens (...)”
(FEBVRE, 2009, p. 304).
Na América portuguesa a Igreja Católica se fez presente desde o início da colonização,
aparecendo como discurso legitimador da expansão. As primeiras ações em prol da instituição

5
Lucien utiliza-se do caso de Rabelais para analisar a questão da incredulidade no século XVI.

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da moral e religião cristã se deram com os missionários jesuítas através da evangelização dos
gentios, já nos primeiros anos do processo de colonização ainda no século XVI, “atendendo a
política do Estado português e aos interesses da própria ordem” (SANTOS, 2011, p. 5). Para
tanto, utilizou-se da política de aldeamento, também denominada de missões.
A Igreja Católica teve um papel crucial na estruturação da colonização, na medida em
que, além da catequização propriamente dita, a atuação, sobretudo dos padres jesuítas nos
primeiros anos da colonização, também favorecia o domínio dos europeus na América
Portuguesa, cumprindo-se assim o papel principal do programa de colonização empreendido
pela Coroa: o de colonizar o Novo Mundo e cristianizar os gentios (REIS, 2014). Nesse
sentido a “nova ordem tornou-se sujeito do processo de colonização graças à execução de
uma política de desbravamento do Novo Continente, na tentativa de salvar os infiéis,
atendendo a política do Estado português e aos interesses da própria ordem” (SANTOS, 2011,
p. 5).
No Concílio de Trento (1545-1563), além das missões jesuíticas, também será
destacado o valor das visitas para apurar e corrigir as práticas que não estivessem de acordo
com as normas morais e religiosas cristãs, criando o Tribunal da Inquisição. No entanto, estes
mecanismos criados no Concílio de Trento entram em crise durante a era pombalina, fazendo-
se necessários novos mecanismos destinados à vigilância e controle dos fiéis. Reformula-se o
mecanismo das visitas, passando estas a serem visitas eclesiásticas e diocesanas, utilizando
para isso um corpo de agentes inquisitoriais, destacadamente Comissários e Familiares.

Em terras da Capitania de Mato Grosso... os agentes históricos envoltos no processo de


denúncias

Podemos então deslocar a questão da incredulidade para a Capitania de Mato Grosso,


pois, avançada no interior da colônia portuguesa, as rédeas da moralidade servem ao processo
de ocupação daqueles espaços. No fragmento exposto anteriormente podemos perceber essa
fé inabalável, presente entre as pessoas, assim como a influência e domínio que a Igreja
atrelada ao Estado exercia sobre as mesmas. Percebemos uma sociedade de forte conotação
religiosa; logo, diagnosticamos que a heresia, o pecado grave foi cometido não por falta de fé
ou descredito na Igreja, mas, pelo forte sentimento religioso (representada pelo símbolo
máximo da comunhão com Deus, a hóstia).
A Igreja e sua atuação no cenário da Capitania de Mato Grosso deve ser vista também
como suporte estrutural da sociedade e, principalmente, na “organização e na busca de

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equilíbrio de uma sociedade colonial mineradora com a implantação de suas normas e de seus
valores morais” (CORBALAN, 2006, p. 17-18).
E será justamente neste contexto que teremos a atuação do corpo do Santo Ofício,
representado pelas visitas eclesiásticas como forma de manter uma sociedade obediente aos
princípios sacros e, com isso, livre de pecados. Ou seja, a Igreja atuante seria como uma
vigilante constante da fé.
A Capitania de Mato Grosso não recebeu nenhuma visita do Santo Ofício da
Inquisição como as capitanias do Nordeste, a exemplo de Pernambuco. Tampouco as
visitações eclesiásticas a vasculharam à procura de cristãos novos. No entanto, houve forte
presença das visitas e atuação de “familiares” cuidando da moralidade e zelando pela
manutenção da fé. Carlos Rosa (1996) nos informa que desde os tempos de arraial do Bom
Jesus do Cuiabá já havia forte presença de eclesiásticos na capitania – entre 1721 e 1750
foram no mínimo 44 sacerdotes. Além destes, havia também os “familiares”, representantes
laicos do Santo Ofício que desde os anos 1730 já atuavam na capitania.
Nos “Annaes do Senado da Câmara da Vila Real do Bom Jesus do Cuyabá”, referente
ao ano de 1727, percebemos a presença de um visitador nomeado pelo Bispo do Rio de
Janeiro:

Veio também com o General na mesma monção o Padre Lourenço de Tolledo


Taques com os empregos de visitador, vigário da vara e Parocho desta Freguesia
provido pelo Exmo. Bispo do Rio de Janeiro Dom Fr. Antônio de Guadalupe.
Chegado o dito vigário começou a devassar de visita, prendeu o antecessor o Padre
Manoel Teixeira Rabello com grande estrépito (...) (ANNAES DO SENADO DA
CAMARA DA VILA REAL DO BOM JESUS DO CUYABÁ, p. 56-7, fls.12).

Em outros momentos do passado colonial na Capitania, temos notícias de visitadores


eclesiásticos desenvolvendo suas funções de “vasculhador de imoralidades e pecados contra a
fé”. Exemplo disso foi o Vigário José Pais de Almada, registrado nos Anais de 1785. Foi
apresentado à Câmara pelo vereador João Nunes Fernandes, como consta “Nesse mês de
junho abriu a visita eclesiástica o Reverendo Vigário José Pais de Almada, nomeado
subdelegado por Bruno de Pina, vigário da vara da igreja da Vila do Cuiabá, que tinha sido
nomeado visitador de toda a capitania” (ANAIS DE VILA BELA, p. 154).
Diferentemente das capitanias nordestinas, as visitas eclesiásticas que percorreram a
Capitania de Mato Grosso se prenderam a questões que envolviam a moralidade, como
também a grande incidência de práticas de magia e feitiçaria na capitania. Desde 1729 já
havia registro de um feiticeiro na capitania, era Manoel Francisco David, registrado no

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Tribunal da Santa Inquisição acusado de cometer o pecado nefando com um moleque. O que
talvez justifique o registro no Tribunal da Santa Inquisição (TEIXEIRA DE SÁ, 2010).
Voltando à esfera privada na qual atuavam as visitas eclesiásticas, podemos perceber a
atuação direta de eclesiásticos inquirindo e resolvendo a seu modo casos de adultério, como o
que ocorre com Joana da Costa, mulher de Jozé Monteiro de Castro. Esta fora denunciada
pelo povo e por pessoas “fidedignas” ao eclesiástico Bruno de Pina, que ao tomar suas
decisões em prol de evitar maior escândalo, foi denunciado pelo Doutor Juiz de Fora da Vila
Antonio Rois Gayezo, em carta escrita ao governador Luiz de Albuquerque. A dita Joana,
mulher casada, pretendia fugir com um eclesiástico da casa de Custódio Francisco Machado.
Diante da situação o padre ordenou que prendessem a referida mulher pelos seus atos,
e afirmou ter mandado prendê-la enquanto verificava a fama pública a ela atribuída. No
terceiro dia do ocorrido deste fato, o Vigário eclesiástico mandou soltar a mulher e a levou
para a casa de um homem chamado Jerônimo Francisco do Lago, homem casado, conhecido
pela honra de sua casa, na esperança de que com o exemplo possa reconciliá-la com seu
marido. No entanto, o homem que acolhe a Joana em pouco tempo a quer fora de sua casa,
porque a mesma continua com sua má conduta, agora a desonrando.6
A utilização deste caso em nosso trabalho se dá com o intuito de demonstrar como a
Igreja atuava em todas as esferas da vida das pessoas. Percebemos também que havia um
eclesiástico envolvido no caso, a quem o padre vigário mandou que saísse da Vila. Esta ordem
foi descumprida até quando ele retorna a esta. Isto nos leva a pensar que havia um sentimento
mais profundo entre a mulher e o Eclesiástico. O envolvimento de padres em casos de
adultérios e violação do celibato eclesiástico não fica restrito somente a Capitania em questão.
Houve vários padres denunciados ao Santo Ofício da Inquisição em diversas partes da
colônia. Exemplo disto é o caso do Frei João de São José Queirós, averiguado durante a
última visitação do Santo Ofício da Inquisição, também na capitania mineira do século XVIII.
Três padres, José Rodrigues Pontes, Francisco Justiniano Pereira de Carvalho e Sebastião José
da Freiria, residentes em São João Del Rei, Comarca do Rio das Mortes, foram remetidos ao
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa pelo fato do padre José Rodrigues ter-se
casado através de uma cerimônia matrimonial realizada pelos outros dois padres. O caso dos
padres da capitania mineira não é um caso de sacerdotes envolvidos em adultério, mas com
ele podemos perceber o envolvimento de pessoas integrantes do meio religioso em diversos
casos contrários a doutrina religiosa, não estando limitados apenas aos leigos.

6
Carta do Capelão Vigário da Vara do Distrito de Cuiabá Manoel Bruno Pina ao Governador e Capitão-General
da Capitania de Mato Grosso Luís de Albuquerque Pereira Melo e Cáceres. 1873, dezembro, 01, Vila do Cuiabá.

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Uma característica das visitas eclesiásticas é a acusação realizada pelo “povo”,


participando ativamente das ações da visitação, como podemos perceber no trecho a seguir:

Por isto aos Povos em grandes confusões, que divididos em diversos pareceres
afirmavam uns ser verdadeiramente excomungado, e outros que não, negando-lhe a
maior parte do povo a fala, uns crentes, outros a maior cautela salvavam as
consciências, sendo muito poucos os que lhe falavam (ANNAES DO SENADO DA
CAMARA DA VILA REAL DO BOM JESUS DO CUYABÁ, p. 57, fls.12).

O trecho é a continuação de uma das citações expostas anteriormente, que trata da


posição da população diante da ameaça de excomunhão a que está sujeito o Padre Manoel
Teixeira Rabello com a chegada do Vigário e Visitador Dom Fr. Antônio de Guadalupe. O
fato de ser um padre talvez seja um motivo para muitos não se manifestarem, mas assim
mesmo alguns se envolviam. Esses envolvimentos das pessoas em alguns casos ocorriam
muito disfarçadamente. Em ambos os casos expostos anteriormente, o caso da Joana e o caso
da prisão do padre Manoel Teixeira Rabelo, notamos esse envolvimento da população que se
apresenta como uma espécie de âncora para a ação eclesiástica.
A sociedade em geral de alguma maneira colaborava com os visitadores nas práticas
de identificar as pessoas, pois fazia parte do cotidiano estar em dia com os preceitos da Igreja.
Em casos como os amancebamentos, os visitadores não tinham tanto trabalho para identificá-
los, pois estes não eram bem vistos pela sociedade em geral, e logo eram denunciados aos
visitadores.
Essa prática de denunciar o outro é muito notável na “Devassa da Visita Geral da
Comarca Eclesiástica de Cuiabá” (doravante DVGCEC), realizada em 1785 pelo Presbítero e
Visitador Manoel Bruno Pina, na qual identificamos um leque diverso de denúncias de
práticas mágicas e feitiçarias, amancebamentos e concubinatos. Mario Sá (2009) em sua
análise sobre este universo da sociedade da Capitania de Mato Grosso, observa que a grande
maioria das testemunhas eram brancas, enquanto os denunciados são do maior ecletismo
social: membros da sociedade europeia, indígenas, africanos e seus descendentes.

O olhar eclesiástico sobre as questões privadas da Capitania de Mato Grosso

Os autos da Devassa da Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, como já


exposto anteriormente, constituem o único documento que se tem conhecimento de uma
devassa ocorrida na Capitania de Mato Grosso. No início do documento é descrita a
nomeação de Bruno Pina como Visitador de toda a Comarca de Cuiabá e Vila Bela da
Santíssima Trindade.

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Bruno Pina, ao ser nomeado Visitador Geral, tem a função de percorrer todo o
território das Comarcas para identificar e proceder com as diligências, assim como também
pôr em dias as faltas que encontrar, procedendo com o sacramento da confirmação (crisma) e
do matrimônio, para o “sossego da alma dos fiéis e evitar ofensas a Deus”. Além disso, o
visitador deveria ir a todas as Capelas, Oratórios e Igrejas que houvessem no distrito e
registrar todas as irmandades e confrarias “com clareza e declarações”, bem como a falta de
sacerdotes, e registrar também os que existem.
A visita diocesana de 1785 na Capitania de Mato Grosso tinha como objetivo, assim
como expressa o documento, de degredar “os vícios, erros, escândalos, e abusos” (DVGCEC,
1785, p. 7), além desses serviços feitos a Deus, citados anteriormente.
A seguir, o documento traz as observações de como as pessoas deviam proceder ao ter
conhecimento, por “fama pública” ou mesmo por conhecimento próprio, e que no prazo de
seis meses, deveriam se dirigir para realizar a denunciação dos ditos pecados ao Visitador sob
pena de excomunhão maior. Esta denunciação devia ser feita com zelo e devoção a Deus, não
por ódio ou desejo de vingança, mas visando a salvação do próximo.
No mesmo edital são listados os pecados que deviam ser identificados e delatados ao
Visitador. O primeiro pecado expresso no edital é referente ao conhecimento ou boatos sobre
alguém que pratique o gravíssimo crime de heresia ou apostasia, tendo, vivendo, dizendo ou
fazendo alguma coisa contra a Santa Fé Católica. A seguir são indicados mais 40 artigos de
crimes que deviam ser identificados na sociedade e denunciados. Entre eles estão, possuir ou
ler livros hereges, de pessoas que proferiram alguma blasfêmia contra o nome de Deus ou
Santos, se tem conhecimento de pessoas feiticeiras ou que faz uso para fazer mal a alguém, se
alguém benze ou advinha, sem a licença do Bispo ou de seu Provisor, caso ocorra um homem
ou mulher casados com duas mulheres ou homens, se algum clérigo está casado, entre vários
outros.
Cabe, antes de continuar a trabalhar com os crimes que deveriam ser identificados e
denunciados, retificar que em alguns casos a Igreja cedia uma espécie de licença para os
praticantes de magias destinadas a curar doenças do corpo, devido a grande falta de médicos e
remédios para as doenças, com os quais a sociedade convivia diariamente.
As dificuldades em relação à saúde estiveram sempre presentes na Capitania de Mato
Grosso, entre estes estavam problemas pelo excesso de horas trabalhadas, a variação de
temperatura, calor excessivo durante o dia e muito frio à noite, a presença de insetos, a
condição das águas fazia com que o corpo sucumbisse às diversas moléstias, como diarreias,
sezões, febres, entre outros males tão comuns nesse período (SÁ JÚNIOR, 2009).

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Na tentativa de resolver o problema da falta de assistência médica, os moradores da


Capitania de Mato Grosso tiveram que desenvolver um conjunto de práticas curativas, nas
quais mesclavam saberes africanos, ameríndios e europeus, aperfeiçoando e diversificando a
arte de curar (SÁ JÚNIOR, 2009). Enquanto na metrópole estes agentes sociais (benzedores,
curadores, rezadores) sofriam intensa perseguição, na Colônia eram toleradas algumas
“práticas mágicas de preservação e proteção do corpo”, devido à grande ausência de
profissionais da medicina, insuficientes para o vasto território colonial, problema que se
associava à escassez de medicamentos.
O pecado de praticar magia era considerado de forma mais branda pela Igreja. A
magia se ocupava da cura de doenças através de rezas e remédios, enquanto a feitiçaria,
segundo a Igreja, buscava forças do mal em outro mundo para solucionar e/ou criar problemas
(SÁ JÚNIOR, 2009). Diante disto, a Igreja se via obrigada a recuar perante alguns casos de
interferência dos benzedores e curadores, para poder curar as doenças que afligiam a
população. O caso de Patricio Antunes e Bernardo Cunha constituem dois casos de pessoas
praticantes de magia destinadas à cura do corpo. Porém, como podemos perceber, os
denunciantes ao apresentarem o caso ao Visitador não sabem se os denunciados tem ou não
licença da Igreja para realizar tal prática.

O Capitão Gaspar Luis de Amorim branco, solteiro 53 anos (...) prometeu dizer
verdade sobre o que fosse-o perguntado. E sendo-lhe perguntado pelos artigos da
visita, que todos lhe foram lidos (...) disse ao artigo quinto que Patricio Antunes
homem bastardo acusado de benzer crianças de lombrigas, e ainda de sessões, por
ouvir a Luzia de tal, mulher de Manoel Bicudo e ainda não sabe ele testemunha se
benze com licença, ou sem ela (...) (DVGCEC, 1785, p. 11). Luciano Jose da Silva
homem branco, solteiro natural da freguesia de Santa Cruz de Goyas (...) morador
desta freguesia onde vive de seu oficio de carpinteiro testemunha jurada aos Santos
Evangelhos (...) sendo perguntado pelos interrogatórios da Visita que todos lhe
foram lidos e declarados disse no interrogatório quinto que sabe que Bernardo da
Cunha Chaves cura de lombrigas com bênçãos, e isto por ouvir a ele dito (...) e que
ele testemunha ignora se tem ou não licença para o fazer (...) (DVGCEC, 1785, p.
76).

Voltando a uma das visitações de Bruno Pina, percebemos que estas, além de proceder
às devassas, deviam também pôr em dia os sacramentos e rituais da Igreja (tais como a
comunhão, a crisma e a celebração dos matrimônios). Assim, estas seguiam um cerimonial
semelhante em todas as partes, a exemplo de Pernambuco. Ao ser encarregado da visita, o
Bispo de Pernambuco se dirige a todas as capelas, igrejas e oratórios verificando o andamento
destas, da mesma forma Bruno Pina deveria proceder na Comarca de Cuiabá e Vila Bela da
Santíssima Trindade. No itinerário da Visita realizada pelo Bispo notamos que se trata mais
de um diário, pois o mesmo relata diariamente suas ações nas diversas capelas, igrejas, e

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oratórios que visitou. Tudo com muita espera e participação da população, tratando-se de um
evento em todas as localidades onde passava.

Dia 29. Fui a Matriz celebrar pelas 8 horas e as 10 voltei à fazenda; houve prática de
crisma, e finalizado este ato, confessei até ao meio dia, e de tarde crismei. Neste
mesmo dia promovi a reedificação da igreja matriz por estar mui indecente e
arruinada (...) No dia 30. Deligenciei o casamento de um rapaz, que tinha infamado
sua mulher, e despensei um preto Itamaracá para cazar uma preta sua concubina e de
seu pai. As 10 horas fui para a matriz, onde crismei até as 3 horas, havendo antes
quatro confessores em exercício dos sacramentos da penitencia e eucaristia por
desobriga. Escrevi ao Reverendo Vigário proprietário para que houvesse de
regressar para a freguesia, sob a pena da santa obediência (RIHGB, 1892,Tomo LV,
p. 8).

A falta de padres condicionava a população, principalmente aqueles que residiam mais


distantes das vilas, a ficarem em dívida com as obrigações espirituais, pois somente nas
visitas podiam cumpri-las. Dessa forma, compreendemos as razões para que os visitadores
procedessem aos sacramentos do matrimônio, confirmação, batismo, entre outras atividades
que buscavam legalizar a condição dos fiéis diante da Igreja e, consequentemente, de Deus.
Bruno Pina diante das incursões que realizara nas capitanias de Minas Gerais, Bahia,
ao Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e a Mato Grosso, concluiu que eram “elevadíssimos os
índices de concubinato e particularmente momentânea a disposição das populações em
corrigirem suas ações, bem como permaneciam reincidentes nas mesmas faltas” (VILELA,
1995, p. 176).
Fernando Torres Londoño (1992), ao discutir as questões de concubinato na Capitania
de Mato Grosso, constatou que a maioria dos homens que vinha para a capitania chegavam
desacompanhados de suas mulheres (LONDOÑO, 1992 apud VILELA, 1995, p. 176-7). A
vinda destes homens para o garimpo fez nascer novas famílias, não era raro que já fossem
casados em outras localidades. Durante a visita de Bruno Pina em 1785 a freguesia do Bom
Jesus da Vila do Cuiabá, registrou inúmeras denúncias contra homens e mulheres que já sendo
casados constituíssem famílias com outras mulheres e outros homens, como é o caso de João
da Cunha e Clemente dos Santos ambos denunciados pelo Capitão Luís de Amorim,

O Capitão Gaspar Luis de Amorim branco(...) prometeu dizer verdade sobre o que
fosse-o perguntado. E sendo-lhe perguntado pelos artigos da visita, que todos lhe
foram lidos (...) pela mesma razão de público escândalo sabe que o João da Cunha
homem branco natural de São Paulo onde é casado segundo ele testemunha ouve
dizer, vive amancebado na mesma vizinhança (...) com Violante Buene parda viúva.
Da mesma sorte disse que Clemente dos Santos pardo fora casado em São Paulo (...)
vive amancebado com Quiteria dos Santos índia solteira (...) vivendo portas adentro
e tendo filhos, e isto sabe pelo escândalo notório (...) (DVGCEC, 1785, p. 11-2).

Ao trabalhar o caso do minhoto Valentim, Crivelenti (2007) levanta a mesma questão


expressa na citação: homens que saíam de suas terras de origem para a região de minas em

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busca de melhores condições de vida, fortuna e status social, que ao partir deixavam para traz
famílias inteiras, mães, esposas, filhos e noivas. No entanto, aqueles que conseguiam chegar
ao sertão das minas da Capitania, ultrapassando vários limites quase que intransponíveis,
acabavam se fixando, formando famílias na região e construindo algum patrimônio o que,
segundo a autora, faziam com que esses homens e mulheres não mais arriscassem um difícil e
sofredor retorno. Muitos conseguiram conquistar terras, escravos, status social e poder, o que
acabava por tornar inviável uma possível volta ao lar.
Natural da região do Minho, Valentim Martins da Cruz deixa a costa portuguesa assim
como tantos outros homens em direção à colônia na segunda metade do século XVIII. Após
algum tempo instalado no Rio de Janeiro, segue para as minas do Mato Grosso. No ano de
1781, Valentim já havia se tornado senhor do engenho chamado de São Romão, e proprietário
de terras e animais, o que conferia grande prestígio e poder a quem os possuía neste período.
No entanto, Valentim era homem solteiro e vivia com uma escrava também solteira, de nome
Joaquina, com quem tinha vários filhos.
O relacionamento ilícito de Valentim fora citado em “10 das 30 denúncias” levadas ao
conhecimento de Bruno Pina quando este esteve na região de Chapada dos Guimarães no mês
de setembro. O primeiro a denunciar Valentim era um lavrador, de nome Martinho, que o
acusa de concubinato. Foi seguido por José Duarte Pereira, que também acusa o casal do
crime de concubinato, mas em sua denúncia deixa claro não se tratar apenas de uma relação
fundamentada na necessidade sexual, pois segundo o mesmo “tem visto a afabilidade com que
trata [ele, Valentim] a mesma escrava” (CRIVELENTI, 2007, p. 100).
Francisco, homem casado em Portugal que também morava na região da Chapada dos
Guimarães, foi acusado por Alvarenga de adultério, pois vivia em concubinato com uma
parda forra, de nome Maria da Silva, que era casada com João de Campos. Segundo outra
denúncia, o marido de Maria consentia no concubinato.
Outro caso bastante interessante é o de Clemente, um pardo forro que viera para as
minas de Mato Grosso deixando sua mulher em São Paulo. Vivia amancebado com uma índia
chamada Quitéria. No entanto, a mulher de Clemente tenta se juntar novamente ao marido,
diante do não retorno deste, que nos leva a concluir ser por falta de vontade do mesmo, ela
vem de São Paulo, mas volta “deixando-o no mesmo estado com Quitéria” (DVGCEC, 1785).
Em 23 de junho de 1785 a visita na freguesia do Bom Jesus do Cuiabá foi suspensa. O
visitador teria que proceder à visita da freguesia de São Luís da Vila Maria do Paraguai, a
pedido do Pároco, pelo fato de haver grande número de índios espanhóis desertando e
“conduzindo ao mesmo tempo mulheres alheias e também por se acharem muito remotas

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algumas testemunhas que devem jurar com circunspeção nesta devassa.” (DVGCEC, 1785, p.
25).
A visita à Vila Maria do Paraguai foi solenemente iniciada em 4 de julho de 1785,
seguindo os mesmos rituais da freguesia de Cuiabá. Feitas a procissão dos defuntos, visita da
pia batismal, altar e parâmetros da Igreja, foram lidos os artigos e ouvida a primeira
testemunha, João de Almeida Pereira, Cabo da Esquadra de dragões desta Vila. O que mais
nos chama atenção no depoimento desta primeira testemunha é o grande número de índios
castelhanos que desertavam da colônia espanhola para viverem ilicitamente (segundo os
espanhóis) na colônia portuguesa.

(...) ao interrogatório dezessete disse (...) que Manoel Leme Prado moço solteiro
vive concubinado com Floriana (...) moça solteira (...) da mesma sorte vivem
escandalosamente de portas a dentro Domingos Francisco pardo forro solteiro com
Maria Rodrigues mulher cujo marido desertou para Castella a muitos anos (...) que
também Sebastião de tal homem bastardo solteiro vive escandalosamente
amancebado com Anna índia castelalhana e casada na província de Moxos em
Espanha (...) que também vivem amancebados Sanjago índio solteiro com
Margarida de tal casada em Espanha, e ambos castelhanos e moradores nesta
freguesia. Que também o índio chamado Felipe Bonito índio Castelhano com Maria
também índia casada, e ambos castelhanos, casados com os consortes na Espanha
que da mesma sorte Toribio com Maria ambos índios espanhóis, e lá casados vivem
concubinados (...)(DVGCEC, 1785, p. 27-8).

Explicitamente sobre os casais formados na Vila Maria, podemos levantar a hipótese


de que algumas mulheres enfrentam a fronteira transladando para a colônia de Portugal, para
fugir de antigos relacionamentos.
O número de casos de amancebamentos e concubinatos levados à mesa do visitador
foi de quantidade significativa, conforme as denúncias registradas nos autos da Devassa Geral
da Comarca Eclesiástica de Cuiabá. Prevaleciam mais casos de concubinato do que
amancebamentos. No entanto, não podemos deixá-los de lado ao tratar deste universo
particular de regiões de minas.
Instaurada à Visita à Santa Ana do Sacramento, procedidos todos os rituais, a primeira
testemunha a se apresentar foi Antônio de Almeida Vidigal, homem branco, casado, de idade
de 31 anos. Ele traz ao conhecimento do visitador vários casos de amancebamentos, entre
eles:

(...) Francisco Pereira bastardo morador nesta freguesia casado segundo ouvio ele
mesmo, o qual vive a muitos anos amancebado com uma parda mestiça solteira e
também moradora nesta freguesia chamada Tereza Soares e isto sabe por fama, e
escândalo que de si dão, e que também Antonio Fernandes homem bastardo cujo
estado ele ignora (...) o qual vive a muitos anos, digo a alguns anos amancebado
nesta mesma missão com Francisca de Pinho parda mestiça cujo estado ele ignora
(...) (DVGCEC, 1785, p. 77-8).

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Também o capitão Domingos Carlos de Oliveira, homem branco, morador da


freguesia de Cuiabá, em suas denúncias delatará Antônio de Sá, pardo, mestiço morador do
Arraial de São Pedro de El Rey, cuja mulher Paula Rodrigues, também mestiça, vive
amancebada com Manoel Ferreira de Carvalho.
Dos casos de concubinato e amancebamento analisados e mesmo os que aqui não
citamos, percebemos que a grande maioria envolve escravos, mestiços, bastardos, pardos e
forros. Um impedimento para esta formalização dos relacionamentos ilícitos estava ligado à
documentação. Vainfas (1997) entende que a documentação necessária, assim como as taxas,
acabava por tornar o concubinato e os amancebamentos em uma espécie de saída para
brancos, negros, mestiços, indígenas, enfim, toda essa sociedade que de uma forma ou de
outra estava impedida de se casar em face eclesial. Consideradas relações escandalosas e
adúlteras, acabam indo de encontro com as exigências quase sempre “impossíveis de se
cumprir ao pé da letra, como a apresentação de registros de batismo, comprovação de origem
e o registro de óbito do cônjuge para os viúvos que queriam se casar novamente” (VAINFAS,
1992, p. 106).
O fato de estas relações representarem o maior número de denúncias nas devassas se
justifica no sentido que, tanto o concubinato como o amancebamento, estavam em
descompasso com as normas morais exigidas pela Igreja em relação ao casamento e a família,
característica muito presente nas justificativas utilizadas pelas testemunhas para responderem
ao motivo pelo qual possuíam conhecimento dos relacionamentos, e o escândalo que estes
provocam na sociedade. Sendo também os concubinatos menos tolerados pela igreja do que
os amancebamentos, justificando o maior interesse da população em denunciá-los.

Recorrendo a sortilégios: as práticas mágicas levadas ao visitador

Com frequência encontramos também nos autos da Devassa da Visita Geral da


Comarca Eclesiástica de Cuiabá denúncias relacionadas a feitiçarias, tais práticas, assim como
a magia, faziam parte do dia a dia dos moradores da Capitania de Mato Grosso, na tentativa
de resolver todos os tipos de problemas. Segundo Sá Júnior (2007), se a crença nestas práticas
era coletiva, o papel reservado a cada grupo social nela envolvido era diferenciado: enquanto
o branco era o cliente, o negro e o índio e seus descendentes eram os fazedores de curas e
feitiços.

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O envolvimento de negros e afrodescendentes na prática de feitiçaria foi bastante


comum. Um caso muito famoso é o da negra Maria Eugênia, que em 1778 foi delatada pelo
Capelão Jose Correa Leite por praticar feitiçaria. Segundo a carta escrita ao governador da
Capitania de Mato Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, Maria Eugênia,
ainda que presa em Cuiabá, “usava de certas feitiçarias, diabruras ou embustiárias ainda na
prisão em que se acha e que as praticava com um preto forro por nome Manoel, que toda a
noite ia falar aquela” (ROSA, apud SÁ JUNIOR, 2010, p. 137-8).
Comumente a feitiçaria estava sempre associada ao diabo, na própria pergunta dirigida
ao denunciador percebemos essa associação que torna a feitiçaria intolerável pelos visitadores
e também pela sociedade em geral. E talvez tendo consciência desta intolerância, a população,
mesmo àquela que talvez já tenha recorrido a esta prática, fará questão de apresentar os
feiticeiros ao visitador como forma de se proteger.

sabem que alguma pessoa seja feiticeira, faça feitiços ou use deles para querer bem
ou mal, para ligar ou desligar para saber as coisas ocultas ou adivinhar ou para outro
qualquer efeito ou invoque os demônios ou com eles tenha pacto expresso ou tácito,
ainda que disso seja enfamado. (DVGCEC, 1785, p. 7).

Um feiticeiro muito citado nas denúncias do auto da devassa da visita geral da


Comarca Eclesiástica de Cuiabá será o escravo Moxiba, classificado como feiticeiro curador
de enfermos, matador, preto adivinhador. Enfim, uma série de sinônimos atribuídos a
feiticeiros irá identificá-lo nas denúncias.

Francisco de Oliveira Garcia homem branco (...) disse (...) que sabe por fama
pública neste Arrayal que o capitão Domingos Carlos de Oliveira tem um escravo
cujo nome ele testemunha ignora, mas que por alcunha muxiba, o qual negro he
feiticeiro, e cura de feitiço neste Arrayal, e que ele testemunha morrera um escravo
que se queixava de malleficios que o mesmo lhe fizera, (...) e que dito Capitão Seu
Senhor- recebe jornal do mesmo escravo que adquire pelas suas curas como pagarão
Francisco Joze, e Francisco de Souza (...) (DVGCEC, 1785, p. 50).

Outras denúncias aparecem a seguir sobre Moxiba:

Francisco Joze de Oliveira (...) testemunha referida por Francisco de Oliveira Garcia
(...) declarado ter ouvido dizer que um escravo do capitão Domingos Carlos de
Oliveira, chamado (...) o muxiba, e nome verdadeiro Domingos, e feiticeiro (...) e
que enquanto ter ele testemunha ter pago jornais a seu Senhor he menos verdade,
pois suposto chamou ao tal escravo para curar huma sua inteada de huma dor na
perna, este fez a tal cura com raízes e a fomentaçoens (...) (DVGCEC, 1785, p. 60).
Pedro José do Amaral capitão de ordenanças branco casado (...) disse que ouvio
Francisco de Oliveira queixar-se de que hum negro do Capitão Domingos Carlos de
Oliveira (...) chamado por alcunha o Muxiba por lhe havia morto hum negro com
feitiços, e ele testemunha ouvio curar de feitiços em casa de Ursula de Campos
sogra dele (DVGCEC, 1785, p. 66).

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O caso de Moxiba nos chama atenção pelo maior cuidado que o visitador lhe dedica,
convocando às testemunhas referidas nas denúncias feitas sobre o escravo para prestar
esclarecimentos. Percebemos que Moxiba foi delatado nove vezes durante a visita de Bruno
Pina em 1785.
Quanto à ocorrência de feiticeiras, temos o caso de Francisca de Senne, que foi
classificada como ascendente indígena na documentação, sendo também a mais denunciada
por praticar feitiçarias. Como podemos ver no trecho a seguir: “João Fernandes dos Reis
homem pardo, casado (...) ouvira dizer a Clemente Teixeira índio desta Missão, que Francisca
de Senne, parda mestiça era feiticeira ou fazia feitiços com que danificava nesta Missão (...)
(DVGCEC, 1785, p. 81)”.
Outro a denunciar Francisca, se apresentando como testemunha referida7, é Clemente
Ferreira da Costa, um indígena que ao ser interrogado afirmou que “(...) Francisca de Senne
índia (...) parda mestiça, casada (...) é feiticeira ou faz feitiços pela fama que a mesma tem em
toda a esta Missão (...) (DVGCEC, 1785, p. 83-4)”. Chamamos a atenção ao fato de que a
testemunha refere-se a um indígena estar denunciando outro indígena, nesse caso uma mulher.
Isso nos leva a concluir que diante da intimação do Visitador em prestar depoimentos, não
existem motivos para poupar ninguém, nem mesmo àqueles que pertencem a seu grupo social.
Francisca de Senne ainda será delatada mais quatro vezes, e na grande maioria das denúncias
as testemunhas não afirmam saber que a mesma é feiticeira, mas que “ouviu dizer”.
Ao nos ater na análise de crimes como a prática da magia e feitiçaria, assim como nos
atos de concubinatos e amancebamentos, percebemos que eles além de predominarem nos
autos da devassa da visita geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, são também os que
parecem preocupar mais os visitadores por atentarem aos preceitos de ‘bom cristão’ e
‘família’, pregados pela Igreja. No entanto, na devassa produzida durante a visita de Bruno
Pina encontramos também denúncias relacionadas a crimes de sodomia, incestos, blasfêmias,
entre outros.
A pouquíssima ocorrência destes crimes é perceptível nas penas impostas pelo
Visitador aos denunciados. Apenas dois denunciados foram penalizados por culpa de incesto
no primeiro grau de afinidade. Um homem e uma mulher, ambos do grupo indígena,
remetidos à prisão pelo crime. Por crime de concubinato foram condenadas 26 pessoas, em
sua maioria prevalecem bastardos, pardos forros, mestiços forros, índios, índios mestiços,
negros forros e pardos mestiços.

7
Testemunha referida é aquela que é convocada pelo tribunal da Visita após ser citada em outra denúncia.

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Em relação às penas, diferentemente do que ocorria com os cristãos novos e hereges


nas visitações quinhentistas e seiscentistas, sendo estas o confisco de bens, quantias em
dinheiro a serem pagas ao órgão da inquisição ou mesmo a pior das penas, ser remetido ao
Tribunal de Lisboa para julgamento, as devassas por serem mais moderadas em relação à
visita inquisitorial, a pior pena que poderia ser imposta era a prisão remetida ao Tribunal que
tivesse autoridade sobre a localidade visitada. No entanto, nas devassas havia penas que
também envolviam pagamentos, como o caso de Antônio de Sá, pardo mestiço culpado pelo
“consentimento de dissolução” de sua mulher, que teve como punição pagar três oitavas e ser
convocado a comparecer diante do visitador para ser repreendido e admoestado (DVGCEC,
1785, p. 146).
Diante das penas estabelecidas podemos constatar que dentre os grupos sociais que
mais sofreram com a atuação das visitações estavam negros e índios, seus ascendentes,
mulheres destes grupos sociais, escravos e forros.

Considerações finais

Neste trabalho procuramos compreender como os visitadores eclesiásticos atuaram na


Capitania de Mato Grosso. Tendo como base as visitas eclesiásticas, foi possível analisar não
somente a participação popular nas visitações, mas também particularidades das relações
sociais que talvez sejam encontradas apenas em regiões de minas já que, diferentemente das
regiões mineiras da costa leste colonial, os territórios a oeste possuíam a peculiaridade de
integrar uma região fronteiriça.
Analisando o envolvimento popular nos casos apresentados, tanto do roubo da hóstia
sagrada como a devassa de Bruno Pina, concluímos que as visitas só se tornavam possíveis
pela influência que a fé exercia sobre as pessoas. No caso do roubo da partícula sagrada todas
se apresentam indignadas diante do pecado, o que acaba provocando uma grande comoção na
sociedade, até mesmo entre as elites.
Assim, utilizando o discurso da fé, a Igreja aliada ao Estado em favor da manutenção
de uma sociedade submissa ao controle religioso e político, utiliza-se de seus poderes para
vasculhar comportamentos, sentimentos mais pessoais, violando a vida privada dos
paroquianos.
Viver no mundo colonial era passar pelos olhares dos visitadores sobre o
comportamento das pessoas, suas atitudes, seus relacionamentos. Mas este olhar também pode

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ser modificado pelos próprios relacionamentos, atitudes e comportamentos de homens e


mulheres de seu tempo, numa verdadeira inversão das evidências.

Recebido em: 07.03.2015. Aprovado em: 17.06.2015.

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A História do Tempo Presente, o método comparativo e o debate sobre os fascismos1

Karl Schurster2

Resumo: Este artigo tem como objetivo um estudo sistemático sobre a abertura de um novo campo disciplinar
na Europa, no final dos anos 1970 do século passado, chamado de história do tempo presente. Através de uma
forte influência da historiografia alemã, em especial a Alltagsgeschichte, a historiografia francesa, com a direção
do professor François Bédarida, cambia do Comitê de Altos Estudos da Segunda Guerra Mundial para a criação
do Instituto de História do Tempo Presente, em Paris, tendo com sua matriz inicial as grandes guerras mundiais.
Nosso foco, nesse artigo, é não só percorrer os caminhos teóricos propostos pelos estudos em história do tempo
presente, mas procurar entender sua relação com a metodologia comparativa, partindo do pressuposto de que
toda história do tempo presente é história comparada, e da relação desse campo disciplinar com os estudos dos
fascismos.
Palavras-chave: Tempo Presente, História Comparada, Fascismos, Nazismo.

Abstract: This article aims a systematic study about a new disciplinary study in Europe, by the end of the last
century 70’s, called history of the present time. Through a strong influence of the German historiography,
especially the Alltagsgeschichte, the French historiography, with direction by Professor François Bédarida, goes
to the Second World War High Studies Committee to the creation of the Present Time History Institute, in Paris,
having as an initial matrix the great world wars. Our focus, at the article, it is not just to walkthrough theoretical
fields proposed by the studies in present time history, but also try to understand its relationship with the
comparative methodology, starting from the supposition that all the present time history is comparative history,
and the relationship of that disciplinary field with the fascism studies.
Keywords: Present History, Comparative History, Fascism, Nazism

(...) en leur temps, un Thucydide ou un Michelet ne furent-ils pas, eux aussi, des historiens du
temps présent?
Pascal Balmand

Iniciar um debate sobre o tempo presente requer uma reflexão profunda sobre a
própria noção do termo, que se constitui hoje como conceito, sua validação, sua prática e sua
própria história. Muitos problemas de caráter teórico-metodológico estão associados a esta
noção, que não explicita, em si, uma definição fixa. Podemos pensar o presente? É possível
concebê-lo historicamente?
As primeiras ideias que temos associadas ao termo História do Tempo Presente são
obviedades, como história próxima, imediata, história em processo, ou mesmo História
Contemporânea – mesmo que na sua gênese francesa, a História Contemporânea e a História
do Tempo Presente signifiquem campos distintos. A intelectual argentina Beatriz Sarlo indica

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 423-440, Jul. 2015


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que os intelectuais necessitam (re)pensar, esmiuçar, a ideia de tempo que deveria ser
preliminar à própria noção de presente ou de contemporâneo (SARLO, 2010). Uma das
questões abordadas tanto no livro Tiempo Presente quanto no livro Tiempo Passado é que a
escrita desse tipo de história tem como uma de suas especificidades a presença de uma
memória viva, que carrega consigo sua complexidade e diversidade, muitas vezes
transformando a memória em algo mais importante que a reflexão, transformando-a em
monumento. Entender e recordar são parte integrante do ofício do intelectual do presente. Um
não pode existir em detrimento do outro. O exercício de reflexão acompanhado de um
constante estranhamento de sua própria condição existencial no presente é condição sem a
qual o intelectual não poderia ler seu próprio tempo. Refletir sobre a História do Tempo
Presente é, em larga medida, construir uma visão com relação a certa ideia de passado –
espaço de experiências – ou em relação ao futuro – horizonte de expectativas.
Estas discussões não colocam em pautas as análises da crítica pós-moderna às
historiografias contemporâneas, deixando esta discussão para outro espaço, já que não
queremos nos encaminhar para uma problematização discursiva das narrativas intelectuais. A
leitura do presente indica a necessidade de um diagnóstico dos objetos e das conjunturas
estudadas, e é nesta leitura que pensamos tal ofício. A História do Tempo Presente auxilia na
formação de diagnosticadores do presente, de indivíduos capazes de estranhar (Entfremdung)
sua própria sociedade e sua condição nela. O conceito de diagnóstico 3, trazido para as
humanidades pelo filósofo Friedrich Nietzsche, pode ser entendido como a ação de determinar
uma doença segundo seus sintomas. O ofício do historiador do tempo presente, neste sentido,
muito se assemelha ao do médico. Partindo desta análise, o historiador do presente não estaria
pautado pela necessidade de “descobrir verdades ocultas”, mas sim de tornar legível seu
próprio tempo, dando aos problemas e acontecimentos presentes uma historicidade, fazendo
com que os eventos sejam problematizados. A função do diagnóstico do tempo presente é tirar
dos eventos, ocorridos no momento das análises, a ideia de algo posto, dado, natural, para,
através de uma teoria crítica de estranhamento, a própria condição do investigador mediante
seu objeto, o cotidiano, pensar sobre as implicações, os desdobramentos, do mesmo perante a
sociedade. Portanto, nossa intenção não se debruça sobre a realidade propriamente dita, mas
sobre aquilo que a torna possível, e como torná-la legível.
Não só as outras áreas de conhecimento, como a sociologia, a filosofia, a antropologia
e a geografia trouxeram em seus discursos uma limitação do fazer histórico, mas a própria
história, o próprio discurso histórico reduziu a prática histórica, quando centralizou seu modus

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 423-440, Jul. 2015


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operandi, suas formas de fazer, sua operação (para utilizarmos um termo do teórico francês
Michel de Certeau) em grupos fechados de historiadores detentores de uma formula mágica,
quase alquímica da história.

Neste aspecto, entendemos que a História do Tempo Presente ainda se encontra num
espaço de lutas e debates para se afirmar como uma possibilidade de interpretação da história.
Lembremos, por exemplo, a possibilidade de ainda ocorrer a divisão entre uma História do
Tempo Presente e uma História Imediata, logo, aquilo que marcaria essa diferença seria: na
História Imediata, o autor-pesquisador se preocuparia com o evento ocorrente, não havendo,
portanto, um distanciamento entre o sujeito produtor do conhecimento histórico e o seu objeto
(fato) de pesquisa, dessa forma, é possível analisar-se o evento antes mesmo dele ter seu
desfecho, sendo ainda um terreno de intensos debates entre a história e o jornalismo,
principalmente pela necessidade de ação que os seus produtores carregam4; por outro lado, a
História do Tempo Presente apresenta-se como uma ampla e fértil abordagem para as análises
historiográficas contemporâneas, e, mesmo ocupando um lugar próximo à historiografia
imediata, a história do tempo presente é, acima de tudo, História, não havendo, portanto,
necessidade de demarcações de fronteiras epistemológicas, como na anterior. Acerca da
História do Tempo Presente, Serge Bernstein e Pierre Milza nos dizem:

A história do Presente é primeiramente e antes de tudo história. Sem negar as


especificidades que a marcam, (...), seus objetivos, métodos, fontes, a história do
Presente não difere em nada da História do século XIX. (...) O historiador [do
presente] tenta restituir a evolução na duração que permite compreender por que o
processo chegou-se à situação presente: ele se dedica a descrever as estruturas cujas
transformações dão conta da emergência factual de fenômenos cuja gênese se situa
sempre a médio ou longo prazo (BERSTEIN; MILZA, 1999, 127-130).

Assim sendo, no texto aqui apresentado temos duas intenções maiores: entender como
se apresenta na historiografia contemporânea a História do Tempo Presente, seus paradigmas
e suas utilizações e como esta sofreu e sofre uma constante banalização na escrita da história.
Não há dúvidas sobre a assertiva de que a história do tempo presente constitui uma
racionalidade crítica da história. O campo de estudos da História do Tempo Presente se tornou
relativamente autônomo a partir de 1978-79 quando o CNRS (Centre National de la
Recherche Scientifique) francês decidiu criar um laboratório. A denominação tempo presente
foi criada, sobretudo, porque existia um outro laboratório no instituto que era o Institut
d'Histoire Moderne et Contemporaine criado em 1978. O Institut d'Histoire du Temps Présent
(IHTP) substituiu o Comitê de altos estudos da Segunda Guerra Mundial. Até o ano de 1991
seu fundador diretor foi o professor François Bédarida. Bédarida foi o primeiro historiador a

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diferenciar a noção de presente a de contemporâneo. Afirmou que toda operação


historiográfica parte do presente para o passado e que em sua época tanto Heródoto quanto
Tucídides se colocaram como historiadores do presente.
A grande revolução historiográfica apresentada pela École des Annales tinha se
mostrado em alguma medida conservadora, não em sua origem com Bloch e Febvre, mas nas
gerações seguintes que durante todo o fascismo e Guerra Fria se negaram a fazer uma edição
sobre a Alemanha Nazista e seus crimes. Se observarmos atentamente, os principais
historiadores europeus sobre método e teoria da história eram medievalistas de formação, logo
o presente estava esquecido pela história. Um exemplo disso é a obra de Charles Seignobos
que escrevia história contemporânea, mas sua formação era em Europa medieval. Autores
como François Dosse e Patrick Garcia afirmam que o modelo Francês da história econômica e
social privilegiava análises secundárias e entendia a política e os eventos históricos como um
efeito direto das estruturas, não abrindo espaço para a história contemporânea. (DOSSE et
alii, 2012)
Uma questão que trouxe bastante resistência do meio acadêmico à História do Tempo
Presente é o problema do arquivo. Era insuportável para alguns historiadores estudar um tema
que não tivesse um arquivo fixo. Isso também levava a reboque a noção de recuo como um
problema do historiador e da historicidade dos fenômenos. Ter arquivos estruturados e
organizados dava ao historiador uma zona de conforto e o devido afastamento objetivo do
passado que o mesmo necessitava para se eximir do presente. É dessa lacuna deixada pela
resistência historiográfica a História do Tempo Presente que surge a história imediata que
estava ligada diretamente a história da Guerra Fria e a necessidade de explicação dos
chamados conflitos de baixa intensidade.
Entre 1982-83 ocorre em Paris o seminário do professor Bédarida L'histoire du temps
présent et ses usagens: recherche, fundamentale et histoire appliquée. Para Bédarida a
história deveria responder e abordar as necessidades do conhecimento. Neste sentido, ele
afirma que a História do Tempo Presente tem como principal questão as demandas sociais
levando o historiador a refletir sobre a noção de responsabilidade. Num interessante debate os
historiadores Pieter Lagrou e Henry Rousso trataram do problema do marco cronológico do
tempo presente se questionando sobre uma possível matriz para esse modelo historiográfico.
Há, sem dúvida, um problema em definir um quadro cronológico aceitável para a história do
tempo presente. Talvez, o erro esteja na insistência desnecessária de procurar uma matriz para
um campo disciplinar, como disse Paul Ricoeur, que desfatalizou a história. François Hartog

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aponta que a historiografia atual tem convivido com a irrupção do presentismo. É cada vez
mais difícil continuar defendendo a efêmera ilusão do distanciamento, da subjetividade do
presente quando o mesmo se apresenta como uma demanda social. O tempo presente nasceu
da memória e da forma como ela agiu e age na gestão de traumas causados pela violência das
guerras, ou os usos políticos do passado. O estudo sistemático dos traumas dos grandes
conflitos e das experiências políticas que marcaram o século XX e continuam no novo século
renovam a responsabilidade social do historiador. Outras questões relativas a uma nova
agenda interacional se colocam como fundantes de um novo presente marcado por indecisões
e instabilidade.
O historiador francês Gerard Noiriel desponta como um dos mais severos críticos ao
modelo historiográfico do tempo presente. Noiriel considera contraditória as relações que este
modelo de história mantém com a demanda social e denuncia a importância extrema assumida
pela “lógica da perícia nos historiadores do tempo presente, que tende a transformar a história
numa espécie de juiz supremo que distribui os elogios e as reprimendas” (apud DOSSE, 2012,
p. 354). Talvez a visão da História do Tempo Presente na obra de Noiriel não esteja
englobando os estudos de Rousso e Bédarida. Longe de fazer um julgamento da história
Rousso e Bédarida estudaram la hantise du passé, a obsessão pelo passado que não passa (a
França de Vichy) enquanto seus pares estavam se debruçando em documentos sobre bruxarias
e hereges no medievo. A História do Tempo Presente foi de encontro ao conservadorismo
historiográfico que inclui fortemente a própria história francesa. Enquanto a história estava
estudando as questões relativas ao passado medieval e a história do absolutismo moderno uma
outra área do conhecimento estava preocupada com os desafios do presente: o cinema. A obra
de Marcel Ophuls, por exemplo, Le chagrin et la pitié: chronique d'une ville Française sous
l'Occupation, de 1969, representa a quebra no eterno silêncio dos historiadores.

Tecendo a metodologia

Toda História do Tempo Presente é uma História Comparada. Por mais que esta
afirmação pareça presunçosa aos olhos de quem lê, uma observação mais detalhada nos
levaria a este caminho. O método comparativo é mais frequentemente entendido como tendo
ocorrido entre duas ou mais nações, ou, pelo menos, dois lados de uma ou mais fronteiras.
Adotamos uma definição mais ampla de História Comparada: a comparação pode ocorrer
entre diferentes culturas ou até mesmo dentro de uma cultura, para identificar

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descontinuidades e, em seguida, focando em questões específicas para essa cultura. Estas


abordagens têm muito em comum, incluindo a consciência da utilidade da comparação e da
recusa de reduzir uma mudança a uma singularidade espacial. A História Comparada surge
como uma forte influência das ciências sociais e em meio a uma querela entre dois
importantes historiadores Seignobos e Simiand. Para Simiand a história comparada seria uma
recusa à história historicizante e consequentemente seu uso seria pouco científico. Para
Seignobos uma história que se requer social só pode ser por excelência comparada (JULIEN,
2010). No livro escrito em 1938, História Comparada dos Povos da Europa o historiador
francês Charles Seignobos aventura-se por um árduo e espinhoso caminho de comparação dos
povos europeus em vários momentos históricos. Seignobos afirma que a comparação revelou-
lhe traços comuns entre várias destas nações que a um historiador debruçado no estudo de um
único país ou de uma época não pareciam tão claros. Sua opção pela metodologia comparativa
o fez destacar semelhanças gerais e discernir como estas se formaram (SEIGNOBOS, 1945,
p.16). A comparação o levou a duas espécies de similitudes: uma resultante de condições
análogas, mas independentes e outras adquiridas por imitação de um modelo comum (Idem, p.
16). Seignobos coloca de forma inovadora que a comparação não estava presa apenas a
espaços, mas a processos. Nesse sentido, a comparação não mais se daria de forma partida,
onde primeiro de estudaria o país A depois o país B e, por fim, se compararia as semelhanças
e diferenças, mas através de temas comuns que mesmo com experiências distintas (singulares
em alguma medida) tornaria o incomparável comparável (DETIENE, 2004). Portanto, uma
História Comparada das ditaduras alemã e brasileira entre os anos 1930 e 1940 deveria ser
feita por análise comparada de processos de experiência política e não apenas a espacialidade
factual. Assim, temas como resistência, consenso, consentimento, colaboração, agir político,
violência aparecem como comparáveis dentro de suas próprias singularidades porque
comparar é tornar visíveis as diferenças, mais do que tornar claro as semelhanças. O que nos
chama atenção em processos políticos e sociais dentro de uma mesma temporalidade são mais
suas distinções do que semelhanças.
O historiador José de Assunção Barros afirma que a História Comparada é duplo ou
múltiplo campo de visão histórica e que apresenta bastante complexidade em sua
aplicabilidade (BARROS, 2007). Suas questões estão diretamente ligadas ao que Barros
questionou: O que comparar? Como comparar? Como tratar os resultados desta comparação?
Para estas perguntas não há fórmula que aponte uma cura real. Pensando com as indicações
do filósofo Paul Feyerabend a melhor metodologia não é aquela que adequa o objeto, mas a

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que sobrevive às mutações necessárias para ferramentar novas análises históricas


(FAYERABAND, 2011). Nesse sentido, a História do Tempo Presente e a História
Comparada são complementares na medida em que se apresentam como a intercessão entre
teoria e método.

O debate sobre os fascismos no tempo presente

O esforço de criação do Institut d´Histoire du Temps Présent, o IHTP, por François


Bédarida (em 1980), fora, em seu início, duramente criticado, obrigando-o a criar a nova
instituição fora do âmbito universitário parisiense. Assim, o IHTP foi criado como um
instituto autônomo sob o patrocínio do CNRS (BÉDARIDA, 1995). Da mesma forma, a
criação quase dez anos depois do Zentrum für Antisemitismusforschung/ZfA (Centro de
Pesquisas do Antissemitismo), um lócus de pesquisa do tempo presente na Alemanha, pelo
Dr. Wolfgang Benz, fora duramente criticado no âmbito do Instituto Friedrich Meinecke,
obrigando-se a um exílio como núcleo autônomo da Faculdade de Comunicação Social da
Universidade Técnica de Berlin.
Neste momento de criação do IHTP o ambiente acadêmico encontrava-se bastante
conturbado, tanto por conta dos conflitos políticos e militares oriundos da Guerra Fria como
das tensões sociais internas. É verdade que no caso francês e alemão pairava sob o passado
recente, um passado-presente em cada detalhe do cotidiano, mesmo nas ainda sombrias ruínas
urbanas de Berlin do início dos anos 1980, a sombra de tragédias imensuráveis. No caso
francês, não só a derrota e a humilhação da Ocupação (a estranha derrota, escreveu Marc
Bloch), mas, e acima de tudo, a colaboração. O mito da França resistente, da França
combatente, criado principalmente pelo gaullismo, obnubilava centenas de matizes, de
trajetórias e de estratégias de sobrevivência sob a Ocupação, inclusive, claro, a pura e simples
colaboração.
A História Contemporânea Francesa, incluindo aí os notáveis estudos da chamada
École des Annales havia se calado sobre esta época recente, imediata, e enfim, denominada de
história presente do país (BÉDARIDA, 2005). O silêncio dos historiadores – na nova série
dos Annales não houve sequer um artigo sobre a Ocupação/Colaboração ou sobre a
contribuição francesa ao Holocausto até 1994 (embora estivesse pontuada por dezenas de
artigos sobre a perseguição de bruxas e de curandeiros e pensadores heréticos na Idade Média
e nos Tempos Modernos), quando a medievalista Luci Valensi rompeu o véu do esquecimento
e a revista se penitenciou publicamente de sua ausência. Da mesma forma, na Alemanha, o

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mito da responsabilidade exclusiva de Adolf Hitler e seus seguidores imediatos (a Gestapo e


os quadros centrais do Partido Nacional-Socialista), como especificada na chamada Querela
dos Historiadores (Historikerstreit, dos anos de 1980, na Alemanha, e que nos marcaria
profundamente como balizamento teórico para o estudo das ditaduras, já tratada
anteriormente) pusera a nu as teses intencionalistas, centradas no caráter patológico de Hitler
e meia dúzia de líderes degenerados do Terceiro Reich.5 Os marcos deste silêncio – conjunto
da população alemã não sabia da existência dos campos e do que lá acontecia e fora ela
mesma, a população alemã, vítima do Nazismo (e tendo sido igualmente libertada pelos
Aliados, ocidentais, naturalmente!) – não resistiriam a uma série de pesquisas. Essa era a
versão apaziguadora da História Recente, do tempo presente, de Konrad Adenauer e dos
refundadores da Alemanha no imediato pós-1945 (após a Katastrophe). Este era o peso, nas
palavras de Ernst Nolte, de um passado que não quer passar (Vergangenheit, die nicht
vergehen will).6
Tal visão apaziguadora da História do Tempo Presente pode ser entendida, o que
devemos ter claro, como uma busca de uma saída política e emocional para amparar o esforço
de reconstrução e de instauração de um projeto de futuro, tanto na França quanto na
Alemanha. Da mesma forma, pode-se constatar, numa chave psicanalítica, a recusa defensiva
em reviver o trauma. Assim, a História do Tempo Presente constituía-se, desde sua origem,
em um assunto inconveniente, numa forma de cutucar feridas que deveriam ser curadas pelo
esquecimento, evitando sua exposição pública e repetitiva. Para muitos, e incluindo aí os que
viveram de formas diferenciadas a própria História dos Fascismos e das Ditaduras, toda a
história deste tempo estava involucrada em formas anestesiantes e pacificadores, visando
evitar que as feridas recentes voltassem a sangrar. Tratava-se de reunir os cacos da sociedade
que existira antes da tragédia – os fascismos no poder – e insistir em viver o presente da
melhor forma possível e contar, só esperança então (esperando Godot), com um futuro
melhor.7 Na maior parte das vezes, sob as benções da fratura ideológica da Guerra Fria –
ninguém queria, em verdade, saber exatamente o que acontecera durante a guerra e quem
fizera o que. Eram perguntas incômodas a qual os jovens alemães, no início dos anos 1980,
tratavam com ironia.
É interessante como o mito da unidade na resistência – válido para França da IV
República e transformado em história oficial na V República e que se torna um fenômeno
repetitivo em todos os momentos de pós-ditadura, com claros esforços de apresentação de
uma folha de serviços nem sempre confiável por uma série de personagens que, sob a

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ditadura, mantiveram-se, no máximo, em situação de atentismo – e o mito da vitimização –


fundamental para o apaziguamento político e emocional na Alemanha (todos vítimas de Hitler
e de seu bando de degenerados) e na Itália (invadida pela Alemanha e arrastada para a guerra
por uma má avaliação de Mussolini, até então um bom governante). Tal versão da história é
ensaiada hoje para alguns aspectos ou personagens do Terceiro Reich, como no caso de Albert
Speer (FEST, 2012), objetivando restaurar algumas das premissas sociais e políticas dos
fascismos – como a família Le Pen, na França; Jörg Haider, na Áustria; Gianfranco Fini, na
Itália ou multidões de torcedores fascistas do Borussia ou da Lazio. Nestes casos, impunha-
se, nas palavras de Jürgen Habermas, o passado como futuro, bastando recobrir a guerra –
uma fratura da razão, uma derrapagem da História - com uma boa camada de pátina do
esquecimento para seguir em frente. Outros, de forma astuciosa, compararão o Holocausto
com a matança dos índios norte-americanos, ou o uso da bomba atômica e, mesmo, a Guerra
do Vietnã – tudo isso banalizando o processo sistemático, planificado e industrial do Shoah.
Assim, a vitimização do conjunto da sociedade perante um Estado-máquina todo poderoso e
degenerado, manipulado e conquistado, por uma minoria, não só apaziguava as consciências
como, também, incluía-se nas teses explicativas da Guerra Fria e criava um paralelo, uma
continuidade, possível para demonizar o outro culto ao Estado potência representado pela
URSS. Temos, como historiadores, de analisar e questionar o peso da Guerra Fria sobre este
debate e sobre suas narrativas. Para alguns historiadores a Guerra Fria ainda não acabou.

O grande debate historiográfico: die Historikerstreit

A historiografia especializada em fascismos incorporou, em definitivo, os termos dos


debates da Querela dos Historiadores – die Historikerstreit -, dos anos de 1983 até 1986.
Qualquer discussão historiográfica contemporânea, incluindo aí a natureza e formas das
ditaduras e suas relações com a sociedade civil, deve levar em conta o debate que, ainda, está
em curso. Defrontavam-se os especialistas da chamada escola intencionalista, aqui nos
referimos a autores como Andreas Hillgruber, Eberhard Jäckel, Klaus Hildebrand e Karl
Dietrich Bracher, e a escola funcionalista, o próprio Hans Mommsen, (MOMMSEN, 1988),
avançando, mais tarde, em direção da tese chamada working toward the Führer, como
apresentada por Ian Kershaw num livro recente. Neste sentido, poderíamos resumir – com o
próprio Kershaw, e ainda Martin Broszat, Timothy Mason e Hans Ulrich-Wehler – algumas
das características que afastariam os modernos trabalhos sobre fascismos das teses baseadas

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seja o no papel do grande líder e seu carisma (sem negá-lo, contudo), seja na tese de ditadura
reflexa ou defensiva, com Ernst Nolte, ou mesmo na ideia de totalitarismo como chave
explicativa. As teses da revisão da revisão buscariam outros caminhos que apontariam para:
i. a natureza e as características do Estado são mais importantes do que a
personalidade do ditador;
ii. a atuação da chamada caótica coleção de burocracias rivais na expressão de
Kershaw e Broszat, seguindo a proposta de Franz Neumann, como característica
central do Estado fascista;
iii. o caráter de instável coalizão de blocos de poder, estes mesmos subdivididos
em facções competitivas e mutuamente hostis, como arranjo político típico dos
regimes ditatoriais.
Ian Kershaw e Martin Broszat fazem, então, uma dura e crítica análise do uso do
conceito totalitarismo para a história do nazismo. Para ambos a insistência em comparar os
regimes do Terceiro Reich e da URSS, e mesmo em avaliar o grau de “maldade” existente
entre os regimes, decorre do ambiente combatente da Guerra Fria e, pior de tudo, daquilo que
Kershaw chamou de german apologists attempting to white-wash the German past in various
ways. Para Kershaw/Broszat a teoria do totalitarismo possui vários pontos interessantes,
incluindo aí a análise do funcionamento de algumas instituições do Estado, mas não é capaz,
por sua generalidade, de produzir uma análise do próprio Estado, retendo-se em aspectos
formais das políticas de poder, como a propaganda enquanto categoria que tudo explica e que
resumo o próprio Estado, tendo como consequência uma relação enganosa e estupidificante
com a sociedade, que sucumbe à magia de homens como Josef Goebbels. Da mesma forma, o
caso da URSS precisaria de um instrumental teórico próprio e adequado – o que leva Kershaw
aos estudos de Moshe Lewin - ao tipo específico de ditadura que se desenvolveu sob o Partido
Comunista KERSHAW, 1997). Como procedimento metodológico impor-se-iam os estudos
das diversas instituições e burocracias que viabilizam o Estado ditatorial, como os corpos dos
altos funcionários, militares, diplomatas, polícias, da Justiça, professores, etc. Da mesma
forma, as novas burocracias emergentes – dos partidos – e sua colonização conflituosa do
Estado – quando se deparam com as burocracias especializadas já encastoadas (como os
militares, a polícia ou os diplomatas) explicam a crescente radicalização espontânea dos
regimes. Assim, a radicalização cumulativa e a correspondente corrida para satisfazer o
Führer – seja ele o homem providencial, o partido ou uma ideia coletiva - e/ou prestar

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voluntariamente sua colaboração ao regime dissolve a velha oposição Estado/Sociedade Civil


como chave explicativa das ditaduras.
Os grandes corpos autônomos da sociedade, tais como associações de empresários,
mídias, Igrejas e clubes e associações esportivas e culturais lançam-se no mesmo processo
visando garantir a assunção, pelo Estado, de seus programas básicos. Normalmente exprime-
se então o caráter classista, não determinado embora assumido, das ditaduras. Na maioria das
vezes, tais instituições da sociedade civil, adiantam-se aos processos de expurgos entregando,
excluindo e denunciando o outro conveniente existente em seus quadros. Desta forma,
acelerando a radicalização do Estado, acumulam capital político para a defesa de seus
interesses e o acatamento pelo Estado de seus próprios programas. Mesmo no nível mais
microssocial, no local de trabalho, por exemplo, indivíduos percebem nas ditaduras uma
instituição capaz de servir aos seus interesses mais imediatos, oferecendo-se para a delação e
espionagem de colegas e vizinhos, obtendo pequenas vantagens, tais como promoções,
adicionais financeiros ou melhores moradias (DA SILVA, 2001).
Neste contexto o papel da propaganda – como o uso de festas cívicas, do rádio, do
cinema e, mais tarde, da televisão - como mecanismos de convencimento/sedução de massas,
deve ser revisto e, bem mais compreendido, como a forma do típico agir político das
ditaduras, substituindo as formas clássicas do agir como descrito na teoria política clássica.
No seu papel, para além da sedução (Verzauberung), as manifestações massivas e públicas
das ditaduras, buscam compor uma identidade única, coletiva, e excluir o outro conveniente,
mantendo, através de uma religião laica, cívica ou racial de Estado e para o Estado, os laços
de lealdade, pertença e de adesão do indivíduo com o Estado ditatorial. Muitas vezes, em
sociedades industriais de massa, perpassadas por sentimentos frustrantes e depressivos de
alienação – Verfremdung, em Marx; Unbehagung, em Freud ou mesmo a Náusea em Sartre –
tais cerimônias rituais de massa, com uso massivo do corpo físico enquanto tela dos projetos
de futuro – restauram de forma neurótica um eu já aniquilado enquanto autonomia pessoal em
busca da felicidade.8
Assim, a proposta de poliarquia como formulada por Franz Neumann, envolvendo a
burocracia estatal, as forças armadas, a burocracia do Estado e a burocracia do Partido Nazista
enquanto blocos de poder seria uma chave explicativa muito mais rica do que as tradicionais
noções de monolitismo ou poder pessoal (sem falar nas teses patologizantes) e de um partido
inconteste do Führer.9 Tal explicação deveria, da mesma forma, ser desdobrada, por exemplo,
na rivalidade existente no interior do próprio Partido Nazista entre a burocracia de Gauleiter –

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os governadores locais – e o aparelho repressor, como as SS, a Gestapo e a RSHA e, de outro


lado, o Gabinete governamental, ainda preso às noções e práticas da gestão racional do
Estado, abrindo, em desdobramentos cada vez mais intensos, novas possibilidades de
pesquisa.10
É neste contexto que o debate sobre o caráter da liderança do Führer ganha relevância,
escapando das teorias escatológicas ou sobre a personalidade do Führer como fator
explicativo da história. Neste debate Hans Mommsen (nascido em 1930) e Ian Kershaw
(nascido em 1943) diferem ao tratar do papel da personalidade do líder. Assim, para além de
um ditador fraco, tese formulada pela primeira vez por Mommsen, teríamos em verdade a
possibilidade de pensar um ditador indiferente (lazy dictator) ou mesmo um ditador distante e
remoto. Visando buscar uma postura média, entre um Hitler onipotente e um Hitler
indiferente, Kershaw propôs a teoria denominada de working toward the Führer: o regime
assume um rápido processo de radicalização (cumulative radicalization) em vista das crises
internas, de um lado, e das disputas entre os blocos de poder, de outro. Neste sentido, a
burocracia do Estado, do partido e as FFAA disputam, por exemplo, interpretar as
proposições antissemitas, exterminacionistas, de intervencionismo econômico e as medidas
mais brutais de Hitler de forma cada vez mais aguda. Teríamos, então, que dar maior atenção
as initiatives coming from below in the ranks of the German bureaucracy perante um ditador
distante, ativo apenas nas questões militares e de política externa e sempre enfadado com a
administração cotidiana. Na expressão de Mommsen, em detrimento de um programa por
demais esquemático e pré-estabelecido desde o putsch da Cervejaria de Munique, em 1923,
deveríamos, para entender a racionalidade do nazismo, voltarmo-nos para a autonomia e
capacidade de auto-interpretação que os funcionários nazistas, imbuídos das diretivas do
Führer, realizavam diariamente em busca de satisfazer o líder e, assim, melhor colocar-se na
intensa disputa interna.
É nesta direção, de consenso provisório, que se busca a finalização do debate entre
funcionalistas e intencionalistas: uma burocracia disponível e atenta em cumprir os desejos do
Führer, mesmo quando não formulados sob a forma de ordens diretas (KULK, 2009). Esta
seria uma contribuição importante para o estudo comparativo das demais ditaduras, como o
caso das ditaduras clássicas e das ditaduras militares. No caso brasileiro, o debate sobre a
autonomia da comunidade de informações, as disputas no interior da burocracia de Estado – a
percepção, por funcionários, de que as ditaduras representavam a “hora do acerto de contas”
para velhas disputas de poder local ou institucional (que antecediam a própria ditadura) ou

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mesmo um atalho para a promoção, eliminando rivais mais habilitados –, o recurso à delação
como forma de resolver litígios não políticos ou ideológicos, e mesmo uma forma de
premiação, seria um dado importante para estudar o papel da sociedade civil, em especial da
colaboração/adesão, nos regimes ditatoriais.
O problema aqui seria superar tradições arraigadas neste tipo de estudo: de um lado, a
insistência de heroicizar o conjunto da sociedade como vítima do Estado e nivelar todos como
heróis da resistência. Logo após a derrubada ou colapso das ditaduras dá-se uma imensa
corrida para perfilar o maior número de pessoas como resistentes. É comum, mesmo, que o
próprio poder emergente se recuse a distinguir entre resistentes e colaboradores, na tentativa
de evitar novas divisões, como no caso da curta desnazificação alemã ou o limitado recurso a
julgamentos de colaboradores na França ou, ainda, a total ausência de desfascistização na
Itália ou Áustria, ou o esquecimento apaziguador buscado pelas elites políticas sul-
americanas – emergindo daí a visão do conjunto da nação, vítima e combatente.11
Outra discussão não realizada entre nós refere-se ao eterno retorno da explicação da
vigência, aceitação e adesão aos fascismos – e por antonomásia a todas as ditaduras – através
da propaganda. Para um grande número de pesquisadores a noção de propaganda acaba por
explicar tudo, sem uma preocupação em questionar o próprio sentido e alcance do termo.
Estaríamos mesmo hoje envenenados pelos truques, arranjos e montagens de Joseph Goebbels
aceitando suas próprias explicações – um tremendo autoelogio! – para o seu papel dominante
na construção do Reich e na aceitação popular do regime. Continuaríamos presos aos modelos
explicativos propostos por Jean-Marie Domenech, largamente adotados (embora muito pouco
citado) sobre o papel da propaganda política nos regimes de massas (DOMENECH, 1959). Na
verdade, desde os anos de 1950, Ernst Nolte já advertia para a singularidade da prática
política sob o fascismo (NOLTE, 1966; STERNHELL, 1978). Para Nolte a política fascista
não se faz da mesma forma que o agir político liberal – formal, regulado, arbitrado – ou
marxista – que se quer revolucionário e de novo tipo. Na verdade, o agir político fascista seria
uma metapolítica capaz de arrancar o homem comum da sua rotina enfadonha e
estupidificante para uma aventura em direção à transcendência. Claro, uma transcendência
totalmente teórica, longe da possibilidade de uma transcendência material e, portanto,
revolucionária. Assim, o agir político fascista não seria propaganda e, sim metapolítica.
Mais recentemente George Mosse (1918-1999), um historiador caracterizado pelo
inconformismo e pelas proposições novas e desconcertantes para a ortodoxia universitária,
propôs rever todo o conceito de propaganda no fascismo, trazendo o debate para a prática

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política das massas.12 Neste sentido, cabe uma discussão de fundo que deve ser apreciada.
Podemos verdadeiramente entender os fascismos a partir de abordagem caudatária da teoria
política liberal? Esta é uma questão central. Um grande número de pesquisadores conclui
muito rapidamente que os fascismos – inclusive, é claro, o nazismo! – não formam um
pensamento coerente. Tratar-se-ia, bem mais, de um mal arrumado patchwork. Sua
capacidade de convencimento estaria no constante martelar da propaganda, que se
constituiria, desta forma, em chave para análise dos fascismos. Reside aqui um grave
problema de análise para a história dos fascismos: correríamos o risco, grave para cientistas
sociais, de atribuir ao martelar da propaganda à capacidade de convencimento e mesmo a
conquista do poder pelos fascistas. Ora, alguns trabalhos de grande fôlego, que mergulham
profundamente no agir fascista – como Nolte e Paxton – acabam por perceber a clara
diferença do fazer política liberal e do fazer política fascista aproximando a prática política
fascista do conceito, caro para Paxton, de paixões. O segredo da vitória fascista residiria bem
mais no apoio que recebeu das forças tradicionais das sociedades europeias, muito
especialmente dos partidos e movimentos conservadores e, mesmo, de liberais. Para Paxton
tais paixões mobilizadoras implicam no sentimento geral de frustração e perda, no
nacionalismo exacerbado e no sentimento de fazer parte de um grupo social vítima de uma
injustiça coletiva – somente aí, e em tais condições, a propaganda teria um papel a
desempenhar (PAXTON, 2007).
Estes são pontos, a nosso ver, extremamente pertinentes para a discussão dos
fascismos, mas também dos sentimentos de perda que embalam vastas camadas sociais na
Nova Ordem Mundial e, portanto, do advento da Ressurgência dos fascismos. Tais questões
abrem caminho para outros debates. Ao buscarmos as noções de participação, representação,
partido, etc. do pensamento liberal como ferramentas de análise dos fascismos estaríamos
produzindo o próprio diagnóstico de confusão, anarquia ou improvisação que são, tão
frequentemente, atribuídos aos fascismos. O que Mosse chama a atenção é que estes – a
mobilização massiva permanente – são, exatamente, os métodos do agir político fascista, com
suas características próprias e não reduzíveis ao mundo teórico liberal.
Nesse sentido, mais do que um retorno a história política, a História do Tempo
Presente possibilitou a abertura de um campo disciplinar voltado para o estudo contínuo e
sistemático de traumas coletivos, tendo as grandes guerras mundiais como seu maior
laboratório empírico. Nosso objetivo foi mostrar quais caminhos foram trilhados para a
consolidação nesse campo disciplinar na Europa, suas interfaces metodológicas com a história

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comparada e como essa produção de saber interpretou o fenômeno dos fascismos num
momento em que parte do continente europeu optou pelo esquecimento em detrimento da
lembrança numa frustrada tentativa de seguir em frente e renegar um passado que se
queria/podia resgatar.
Não há como negar que a historiografia francesa foi nossa matriz, mesmo tendo
certeza que tivemos no Brasil uma vasta e pioneira experiência com o que chamamos de
História do Tempo Presente, primeiro de forma menos acadêmica, mas nem por isso menos
profunda, com Ferreira Gullar (*1930) e Hélio Oiticica (1937-1980) e algumas décadas mais
tarde com a criação do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da UFRJ (1994).
Acreditamos que a História do Tempo Presente no Brasil, a abertura desse campo de trabalho
e suas temáticas de pesquisa ainda serão fruto de outros artigos que poderão começar a
preencher essa urgente lacuna historiográfica.

Recebido em: 15.01.2015. Aprovado em: 03.05.2015.

1
Dedicamos esse texto ao prof. Francisco Carlos Teixeira da Silva, o fundador do campo disciplinar da história
do tempo presente no Brasil.
2
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ com estágio de pesquisa na
Freie Universität Berlin e Pós Doutorado na Universidade Federal Rural de Pernambuco com estágio
internacional na Universidade Nacional de la Plata/Argentina. Pesquisador do Grupo de Estudos Sociocultural da
América Latina, onde coordena a linha História do Tempo Presente. Professor permanente do Programa de Pós
Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, em Gestão do Desenvolvimento Local
Sustentável da Universidade de Pernambuco e Adjunto de Teoria e Metodologia da História da Universidade de
Pernambuco. Atualmente é bolsista do Instituto Yad Vashem em Jerusalém/Israel onde desenvolve pesquisa
sobre a memória do Holocausto e coordena o curso de graduação em História da Universidade Estadual de
Pernambuco e professor colaborador do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da
Universidade Nacional de La Plata/Argentina.
3
Ver: FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. Ver também:
DUARTE, Andre. Vidas em Risco: critica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2011. CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: editora 34, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre história. São Paulo: Loyola, 2005.
4
É, em certa medida o que ocorreu com Marc Bloch em um de seus últimos textos: A estranha derrota. Ver:
BLOCH, Marc. A estranha derrota. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
5
Esta abordagem da patologia e a total irracionalidade dos fascismos, uma recusa do historiador em buscar o
entendimento (Verstehen) do fenômeno (e não nos referimos ao explicar, Erklären) deve-se, em grande parte a
insistência de se pensar o fenômeno fascista do ponto vista político, moral e teórico do pensando iluminista, seja
em sua vertente liberal, seja em sua vertente marxista – exatamente o que os fascismos negavam. Este era um
ponto fulcral do “Historikerstreit” dos anos ´80 e que ao final dos anos ´90 ainda não fora debatido na
universidade brasileira.
6
O debate inicial da “Querela dos Historiadores” deu-se através de um pequeno, denso e desafiante artigo do Dr.
Ernst Nolte no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, no dia 6 de junho de 1986, intitulado: Vergangenheit, die
nicht vergehen will: Eine Rede, die geschrieben, aber nicht mehr gehalten werden konnte, servindo como um
gatinho para um debate que envolverá grandes nomes da historiografia contemporânea.
7
Um produto direto da “Querela dos Historiadores”, e com a capacidade de atingir milhões de pessoas – ao
contrário do debate acadêmico – foi o filme de Michael Verhoeven chamado Das Schreckliche Mädchen (Uma
cidade sem passado), de 1989, onde o esquecimento é visto como uma benção e a reconstrução e exposição do
passado como terrível (schrecliche).

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438

8
O texto onde a aplicabilidade teórica desta discussão está posta é: DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. O
século Sombrio. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
9
NEUMANN, Franz. Behemoth. The Structure and Pratice of National-Socialism, 1933-1944. Nova York,
Lyndon & Co., 1944. Devemos destacar aqui um fato importante para a história do debate historiográfico sobre o
nazismo (e os fascismos em geral) na República Federal Alemã – quer dizer, antes da reunificação de 1991.
Embora a maior parte dos trabalhos historiográficos aceitem hoje a questão da dinâmica interna das ditaduras
fascistas e do choque de forças em seu interior (a tese da rivalidade interna entre os bloco of powers) nenhum
dos autores clássicos sobre o tema, incluindo Ian Kershaw, citam Neumann como o autor do primeiro trabalho a
defender e explicitar a tese da poliarquia (muitos inclusive utilizam o termo poliarquia sem citar a origem). Ver:
NEUMANN, Franz. Behemoth. Op. cit.
10
A leitura atenta das memórias de Albert Speer (1905-1981)– arquiteto de Hitler e depois ministro das
indústrias e dos armamentos - talvez o documento mais interessante sobre o funcionamento cotidiano do
Terceiro Reich - nos dá uma ampla visão do choque entre as diversas burocracias do Estado, do Partido, as
FFAA e o Gabinete com o recurso permanente entre as partes em conflito a arbitragem do Führer. Ver SPEER,
Albert. Spandauer Tagebücher, Hamburgo, Ullstein, 1991.
11
Tais visões da nação resistente e vítima foram popularizadas no pós-Segunda Guerra Mundial por grandes
produções de cinema que popularizaram o “heroísmo” coletivo e a unidade contra o inimigo. Esta é a versão, por
exemplo, do mito gaulista em Paris está em chamas? (Paris brûle-a-til?), de René Clement, 1966 ou da Itália
vitimada pelos nazistas e fascistas em Roma, cidade aberta (Roma, città aperta), de Roberto Rosselini, 1945.
12
O Trabalho inicial nesta direção, em inconformidade com o uso tradicional do conceito de propaganda,
foi MOSSE, George. Nazi Culture: Intellectual, Cultural and Social Life in the Third Reich. G.L. Mosse, 1966.
Em anos seguidos Mosse porduziu um bom número de obras sobre o tema, com destaque para: The
Nationalization of the Masses: Political Symbolism and Mass Movements in Germany from the Napolionic
wars throught the Third Reich, 1975.

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Chica/Xica da Silva: Representações do mito na memória de Joaquim Felício dos Santos
e no romance de João Felício dos Santos

Vinícius Amarante Nascimento1


Regina Célia Lima Caleiro2

Resumo: Esta pesquisa objetivou investigar as representações memorialísticas e literárias de Chica da Silva nas
“Memórias do Distrito Diamantino”, 1868, de Joaquim Felício dos Santos e no romance histórico “Xica da
Silva”, 1976, do literário João Felício dos Santos a partir da utilização do conceito de representação. Busca
também discutir a aproximação entre História, Literatura e Memória Histórica e com os suportes metodológicos
da análise discursiva identificar as desigualdades socialmente construídas para a mulher negra que circulam no
discurso do texto literário e memorialístico.
Palavras-chave: História, Literatura, Memória Histórica, Representação, Chica da Silva

Abstract: This study investigated the representations and literary memorialísticas Chica da Silva in “Memórias
do Distrito Diamantino”, 1868, by Joaquim Felício dos Santos and the historical novel “Xica da Silva” in 1976,
the literary João Felício dos Santos from using the concept of representation. Search also discuss the connection
between History, Literature and Historical Memory and supports methodological discourse analysis to identify
socially constructed inequalities for black women that circulate in the discourse of the literary text and
memorialistic.
Keywords: History, Literature, Historical Memory, Representation, Chica da Silva

Introdução

Objetivou-se através deste artigo analisar as representações memorialísticas e literárias


de Chica da Silva na memória histórica de Joaquim Felício dos Santos (SANTOS, 1956) e no
romance histórico Xica da Silva (SANTOS, 2007) do escritor carioca João Felício dos Santos.
As maneiras de imaginar o “ser mulher” nas diferentes sociedades em que as mesmas
se encontraram introduzidas, seja por meio das apreciações masculinas seja por meio das
femininas, cunharam representações. Neste sentido, este trabalho teve como principal
questionamento: Que representações de Chica da Silva foram construídas na memória
histórica de Joaquim Felício dos Santos e na obra literária de João Felício dos Santos?
De acordo com Furtado (2003) Chica da Silva foi uma personagem histórica nascida
escrava entre os anos de 1731 e 1735 no arraial de Milho Verde, viveria no diamantífero
arraial do Tejuco entre 1750 e 1779 data do seu falecimento. Sua vida se ver intrínseca a do
contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira no qual manteve um relacionamento
assente tendo com este 13 filhos. Chica conseguiu alforria e logo buscou mudar os rumos de

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sua vida, auferindo bens, tornando-se senhora de escravos, buscando comportar-se como um
membro da elite tejucana. A ex-escrava mostrou desvelo pelos filhos, não medindo esforços
para educá-los e inseri-los positivamente em uma sociedade excludente, demonstrando
também devoção no seguimento dos preceitos católicos.
O corpus documental desta pesquisa é composto por fontes impressas, um livro de
memórias e um romance literário. Fontes profícuas para pesquisadores que buscam
impressões de vidas, valores, anseios, sentimentos humanos e no caso deste trabalho,
representações sobre a figura feminina, repleta de significados. Isso não seria possível sem o
advento da História Social e Cultural como da História das Mulheres, que retiraram das
fímbrias da memória aspectos importantes do universo feminino. Ressalta-se que, no estudo
das representações memorialísticas e literárias se “(...) requer, necessariamente, a
interpretação da forma e do conteúdo das obras, ou seja, exige que sua análise interna seja
articulada aos contextos históricos e sociais” (FERREIRA, 2009, p. 83). Assim sendo, tornou-
se indispensável instituir uma tática para o estabelecimento da conversação entre texto e o
mundo circundante. Dessa forma utilizou-se como procedimento de investigação e
interpretação do documento, a análise do discurso, que visa “(...) explicitar como texto
organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeitos e sentidos” (ORLANDI, 2001, p.
26 – 27).
Sobre a fonte memorialística, vale ressaltar que pode ser escrita seja a partir da
investigação em arquivos, como a partir das memórias do autor, sejam elas sociais ou
particulares. Como verdadeiros autentificadores de uma ideologia regionalista, muitos
memorialistas não hesitaram em eternizar a história de sua região, edificando mitos
fundadores, como foi o caso de Chica da Silva, inscrita na memória regional encoberta sob o
véu do preconceito.
A literatura nos oferece um conjunto de possibilidades para novas leituras de
retentivas do passado. O diálogo entre história e literatura permite interpenetrar processos
sociais e processos simbólicos. No seu ofício, o historiador urde o enredo de sua trama
subjetivamente, assim como o literato, “tal como a literatura, a história, enquanto
representação do real constrói seu discurso pelos caminhos do imaginário” (LEENHARDT,
1988, p.12). Os historiadores, como artífices da história, utilizam de recursos ficcionais na
representação de fatos e acontecimentos, embora freados por alguma documentação. Pois,
Historiador não é literário.

Ainda que se escreva em forma “literária”, o historiador não faz literatura, e isso por
causa do fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo,

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portanto, em relação ao passado do qual é a pegada. (...) Dependência, continuando,


em relação aos critérios de cientificidade e às operações técnicas relativas a seu
“ofício” (CHARTIER, 2001, p. 135).

A literatura não pode ser sintetizada a uma mera realização estética, mas sim como
fenômeno cultural, que vem possibilitando ao historiador assumi-la como documento para as
suas observações e indagações, por trazer “(...) à luz alguns dos valores, comportamentos,
gestos, inclusive motivações e imaginários que serviam como guias para as ações das pessoas
em cada época” (CARNEIRO, 2006, p. 15). Por historiar e registrar o movimento que o
homem desempenha, suas perspectivas de mundo, suas aspirações, a literatura dá um
depoimento histórico, e como tal, deve ser inquirida segundo seus atributos característicos.
Dadas as mãos, história e literatura, aproximam-se das representações construídas sobre o
real.

A representação histórica – mítica de Chica da Silva a partir do relato fundador de


Joaquim Felício dos Santos

O conceito de representação está no âmago da História Cultural, pois permite


compreender como os “indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das
representações que constroem sobre a realidade” (PESAVENTO, 2008, p. 39). Sobre a
definição do conceito de representação certifica o historiador Roger Chartier que:

(...) as acepções correspondentes à palavra “representação” atestam duas famílias de


sentido aparentemente contraditórias: por um lado, a representação faz ver uma
ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é
representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de
uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepção, a representação é o instrumento
de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma
“imagem” capaz de repô-lo em memória e de “pintá-lo” tal como é (CHARTIER,
1991, p. 184).

Assim sendo, a representação torna presente algo ou alguém ausente, pois,


“representar é, (...) fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é
um apresentar de novo, que dá ver uma ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que
recoloca uma ausência e torna sensível uma presença” (PESAVENTO, 2008, p. 40). O fazer
presente de algo ou alguém ausente se dará por mediação de uma “imagem” portadora de
sentidos e significados, cuja constituição deriva de valores modelados segundo determinadas
condições sociais, econômicas e políticas.
A lembrança de Chica da Silva permaneceu viva na memória e oralidade de homens e
mulheres no nordeste de Minas Gerais desde 1796.3 Porém, sua imagem seria presentificada,

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apresentada pela primeira vez nas páginas das Memórias do Distrito Diamantino (1868) de
Joaquim Felício dos Santos. Se o conceito de representação remete a “(...) uma exposição,
uma reapresentação de algo ou alguém que se coloca no lugar de um outro, distante no tempo
e/ ou no espaço” (PESAVENTO, 2008, p. 40), percebe-se, a partir da obra de Joaquim Felício
dos Santos, a exibição de uma imagem repleta de valores de Chica da Silva que colocou-se no
lugar da “outra”, da mulher setecentista que habitou no arraial do Tejuco e que encontra-se
espacialmente e temporalmente distante do momento de escrita do autor.
Se a imagem-lembrança de Chica da Silva residia na mente dos diamantinenses e se os
fatos tidos como de sua vida passeavam pelas conversas populares através do campo volátil
da oralidade, a sua imagem passaria a se solidificar com maior intensidade no imaginário
social a partir da linguagem escrita de Joaquim Felício dos Santos, já que, “o imaginário
social se expressa por símbolos, ritos, crenças, discursos e representações alegóricas e
figurativas” (PESAVENTO, 1995, p. 24).
Joaquim Felício dos Santos no ano de 1853 conduziu a repartição dos bens no
rompimento da união conjugal do seu tio o tenente Feliciano Atanásio dos Santos com a neta
de Chica da Silva, Frutuosa Batista de Oliveira a única filha de Rita Quitéria Fernandes de
Oliveira (FURTADO, 2003). Também foi no ano de 1860 o representante legal dos legatários
de Chica da Silva num processo pela posse dos haveres do contratador João Fernandes de
Oliveira no Brasil (FURTADO, 2003). Ambos os processos, de repartição de bens e de ação
de posses no pleito judicial, serviram a Joaquim Felício dos Santos como “(...) material
inusitado para compor sua crônica colonial, pois nas horas vagas Joaquim Felício escrevia
uma história da região, publicada em capítulos, entre 1862 e 1864, no jornal local O
Jequitinhonha” (FURTADO, 2003, p. 265). Trata-se do primeiro jornal da cidade mineira de
Diamantina, fundado pelo próprio Joaquim Felício dos Santos no ano de 1860 (DUARTE,
2010).
Joaquim Felício dos Santos coadunou os vários artigos periódicos lançados no jornal
O Jequitinhonha numa obra intitulada como as Memórias do Distrito Diamantino, que se
tornou notória após a publicação em 1868 (FURTADO, 2003). De definida inclinação
republicana, Joaquim Felício dos Santos nas suas Memórias do Distrito Diamantino não
somente buscou elencar os principais fatos do cenário político da história diamantinense, mas
ao focalizar a fase de exploração de diamantes no Arraial do Tejuco, ressalta a história de
Chica da Silva, que inscrita na obra com feições de lenda, ganha o estatuto de personagem
histórica de alcance nacional.

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As representações são determinadas pelos movimentos sociais, políticos e culturais


que emergem na sociedade, sendo que o relato fundador de Joaquim Felício dos Santos cria
uma representação de Chica da Silva marcada pelo período histórico em que esta imagem foi
concebida. Para construir esta representação Joaquim Felício dos Santos respaldou-se em
depoimentos de moradores locais, em informações apreendidas nos autos processuais em que
esteve envolvido enquanto advogado dos sucessores de Chica da Silva e principalmente nas
suas concepções e convicções particulares, que devem ser entendidas como pontos de
referência para o entendimento de sua época, já que as representações, enquanto “(...)
percepções do social não são de forma alguma discursos neutros” (CHARTIER, 1988, p. 17).
Como um homem do século XIX, Joaquim Felício dos Santos reconstrói a sua Chica
da Silva segundo os desígnios de sua época, quando “(...) a mulher e a família deviam regrar-
se pela moral cristã e onde imperavam os preconceitos contra ex-escravos, mulheres de cor e
uniões consensuais” (FURTADO, 2003, p. 266). Sendo que para os homens daquele tempo
“(...) as escravas eram sensuais e licenciosas, mulheres com as quais era impossível manter
laços afetivos estáveis” (FURTADO, 2003, p. 267).
Envolto por um imaginário preconceituoso do seu contexto histórico, Joaquim Felício
dos Santos não tolerava o fato de um homem branco, nababo e instruído ter uma afeição
duradoura por uma escrava, parda e filha de uma africana. Assim sendo, no seu livro
Memórias do Distrito Diamantino, Joaquim Felício dos Santos sob os suportes de valores
europeus e cristãos como também das suas preferências pessoais desenha a imagem de Chica
da Silva como uma mulher que:

(...) tinha as feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça rapada e coberta com
uma cabeleira anelada em caixos pendentes, como então se usava; não possuía,
graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, enfim não
possuía atrativo algum, que pudesse justificar uma forte paixão (SANTOS, 1956, p.
161).

Na obra do memorialista Joaquim Felício dos Santos, João Fernandes de Oliveira


personifica a figura do senhor absoluto do Tejuco, homem arbitrário, que reprimia os
moradores do arraial com sua tirania ao obrigar “(...) a elite local a se curvar à escrava
opressora e dominadora, que se vestia ricamente e tinha tudo o que o dinheiro e o poder
podiam comprar” (FURTADO, 2003, p. 268).
Embora pejorativa e negativa, assim é a origem da primeira representação de Chica da
Silva que desempenha um papel substitutivo do ausente vivido, já que a representação deve
ser “(...) entendida como relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma
valendo pelo outro porque lhe é homólogo (...)” (CHARTIER, 1991, p. 184). Se a

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representação de Chica da Silva possibilita uma explicação da realidade do autor que a pensou
e a retratou de maneira torpe, passando “(...) a encarnar o estereótipo da mulher negra e
escrava (...)” (FURTADO, 2003, p. 267). Cabe ressaltar que esta imagem foi estabelecida por
um corpo de valores culturais e sociais de um dado momento, não podendo ser crivada como
uma representação real ou não real, pois, “a força da representação se dá pela sua capacidade
de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se
inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade”
(PESAVENTO, 2005, p. 42).
Roger Chartier explica que as representações do mundo social “(...) são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza” (CHARTIER,
1988, p. 17). Pois, ao relacionarmos o conteúdo da crônica colonial de Joaquim Felício dos
Santos com a sua posição de enunciação relevante pelo seu posto de autoridade como
político4, jurista5 e romancista6, percebemos que o seu livro de memórias, pelo alcance e
circulação territorial tornou-se notório e de leitura indispensável para qualquer indivíduo que
se sinta atraído a saber mais sobre a história de Diamantina. Tal obra recria uma representação
feminina, tal mediatização é resultado de um discurso social masculino que não é neutro, mas,
ideológico, já que, “(...) a linguagem, em seu sentido mais amplo, desempenha papel
fundamental na definição e na manutenção da visão de mundo “masculina”, vigente na
maioria das sociedades ocidentais modernas” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 55). Joaquim
Felício dos Santos enquanto “membro da elite branca preconceituosa do século XIX (...)”
(FURTADO, 2003, p. 268) descreveu Chica da Silva como uma “mulata de baixo
nascimento” (SANTOS, 1978, p. 161), pois, “aquele que tem o poder simbólico de dizer e
fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada
em uma relação histórica de forças” (PESAVENTO, 2008, p. 41). A memória histórica de
Joaquim Felício dos Santos, dotada desse poder simbólico, projetou Chica da Silva para a
história. Embora, a partir dessa obra o nome dessa mulher setecentista não tenha sido
esculpido na tabula monumental que perpetua a memória dos grandes heróis brasileiros.
Chica da Silva tornou-se um mito que atravessou as páginas de memórias e romances,
sendo transportada dos livros para o cinema, teatro, música e mais recentemente foi
“popularizada” pela televisão. Mas, qualquer estudioso ao buscar a matriz de onde surgiram
tantas imagens7 sobre essa personagem, certamente se deparará com o discurso oficial de
Joaquim Felício dos Santos, já que o texto do memorialista marca a gênese das representações
sobre essa mulher setecentista. A obra deste autor servirá de base concreta para quase tudo

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que se escreverá posteriormente sobre Chica da Silva. Embora o livro de Joaquim Felício dos
Santos apresente informações enganosas sobre essa mulher histórica, enquanto “relato
original” e “texto fundador” foi constantemente retomado pelos autores subseqüentes, que
tomavam o seu texto como “matéria prima” ou “fonte principal” para os seus escritos sobre a
vida da ex-escrava tejucana. Sendo assim, os que sucederam a Joaquim Felício dos Santos na
memória histórica só agregaram novos atributos à imagem de Chica da Silva, fazendo uma
releitura desta mulher movidos por valores de novos tempos, pois “as representações
apresentam múltiplas configurações e pode-se dizer que o mundo é construído de forma
contraditória e variada pelos diferentes grupos do social” (PESAVENTO, 2008, p. 41).
Diferenciando-se das inúmeras negras que eram envolvidas no mundo da
desclassificação e do esquecimento, sina comum a quase todas as mulheres de sua etnia,
Chica da Silva foi descrita como uma exceção, mulher sem igual nem semelhante, singular,
que fez acordar emoções conflitantes nos autores que a representavam. “Bruxa, sedutora,
perdulária, megera, mas também redentora e libertadora de seu povo” (FURTADO, 2003, p.
278) todas essas modalidades são carregadas de sentidos sociais e históricos, são como nos
diz Sandra Pesavento imagens que “(...) se internalizam no inconsciente coletivo e se
apresentam como naturais, dispensando reflexão” (PESAVENTO, 2008, p. 41). Cabendo ao
historiador da cultura traduzir, interpretar estas imagens cifradas que podem ser
historicizadas, já que, foram concebidas num determinado momento histórico.

A reabilitação de Chica da Silva por João Felício dos Santos: de escrava grotesca a
mulata sensual

Como personagem literária Chica da Silva atravessou as amarrações colocadas pelas


explicações históricas, “a liberdade de reconstrução da realidade preencheu as lacunas da
história com a imaginação, recurso estilístico próprio do romance e agregou outras qualidades
ao mito” (FURTADO, 2003, p. 278). Se no século XIX Chica da Silva teve a sua aparência e
o seu caráter infamados pela inscrição mordaz de Joaquim Felício dos Santos, no século XX a
imagem de Chica da Silva será reatualizada por João Felício dos Santos, sobrinho-neto de
Joaquim Felício dos Santos. Embora pareça contrário ao senso comum, é um parente de
Joaquim Felício dos Santos que vai dotar Chica da Silva de características bem diferentes da
imagem descrita no relato fundador.
Diferentemente do seu predecessor, o célebre memorialista Joaquim Felício dos
Santos, que rispidamente aponta Chica da Silva como tendo um aspecto físico desagradável;

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João Felício dos Santos, na década de 1970, reabilita a aparência de Chica da Silva a
exornando com muita beleza, esbanjando graça e sensualidade em seu romance (SANTOS,
2007). A Chica da Silva de João Felício dos Santos, ou melhor, a Xica da Silva com “X” de
João Felício dos Santos, pois, como se justifica na nota introdutória da primeira edição do seu
romance “com X, como se escrevia no tempo em que viveu” (SANTOS, 1976, nota de
introdução). Mas, a mudança não se resume a uma mera modificação consonantal no nome de
Chica da Silva8, pois, ela passa a encarnar a partir dessa obra ficcional o estereótipo da mulata
tentadora e irresistível, tipo feminino cobiçado pelos homens por seus atrativos sexuais e por
sua acentuada beleza física e sensualidade aflorada, que são os seus grandes trunfos.
A imagem voluptuosa de Chica da Silva fantasiada por João Felício dos Santos tem
ligações com a própria conjuntura sócio-histórica de escrita da obra literária, a década de
1970, momento histórico de forte inquietação política e cultural, onde assisti-se mobilizações
libertárias com o desejo de uma maior liberação sexual que prometia “sacudir a velha moral, o
velho mundo pudico, autoritário, patriarcal, arcaico” (GUILLEBAUD, 1999, p. 176) e que
progressivamente fazia desvanecer a velha armadura social que defendia uma imagem
normatizada para a mulher como casta, assexuada e abnegada ao lar. João Felício dos Santos,
na década de 1970, concedeu a Chica da Silva a “alforria sexual”, transformando-a na mulata
fatal, luxuriosa e amoral. Esta imagem é reveladora de como o mito de Chica da Silva vai
sendo modernizado de acordo com os valores dos diferentes períodos históricos, como
também torna visível uma posição masculina machista que através da linguagem cria uma
representação feminina sexualizada e racializada. Vale ressaltar que as representações sobre a
mulata altamente sensualizada remetem aos tempos coloniais, mas cada época atualiza tais
representações a sua maneira, assim como faz João Felício dos Santos. Se o movimento da
Revolução Sexual da década de 1970 repercutiu para a escrita do romance de João Felício dos
Santos, influência maior foi recebida da obra Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto
Freyre que criou representações sobre a mulher negra e tornou-se um marco referencial sobre
as possibilidades de pensamento de sua época. João Felício dos Santos é contemporâneo de
Gilberto Freyre e ao observar o contexto de formação do romancista na década de 1930 e ao
analisar a sua obra literária percebe-se a influência das idéias sobre a mulher negra e sobre a
miscigenação que circulavam naquele contexto de lançamento e discussão da obra de Gilberto
Freyre.
Chica da Silva for transformada na mulata luxuriosa por João Felício dos Santos, tal
mudança, “(...) foi justificada com o argumento da falta de documentos históricos sobre o
assunto, e somente a sensualidade da mulher mestiça poderia servir como fio narrativo (...)”

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(FURTADO, 2003, p. 282) de uma história insólita, venturosa, de extravagâncias e


descomedimentos a história de “Xica da Silva e sua espantosa loucura” (SANTOS, 2007, p.
7). Ajustando-se ao imaginário coletivo9 do momento de escrita do autor,10 a imagem da
escrava Xica modelada no romance de João Felício dos Santos acompanha as mudanças da
década de 1970, a libertação da mulher de estereótipos de submissão, compostura e reclusão
no lar. Vale ressaltar porém, que João Felício dos Santos é menos influenciado pela revolução
sexual feministas ocorridas entre as décadas de 1960 e 1970, do que pela tradição de
pensamento sobre a mulata que remonta a Gilberto Freyre, autor esse, da mesma geração do
romancista. O contexto particular dos anos de 1970 tiveram sua parcela de influência na
concepção da obra, entretanto não poderíamos sobrevalorizar lutas femininas como possíveis
influências de um homem talvez mais interessado em outros modos de pensar a mulher do que
como um individuo livre sexualmente. Constância Lima Duarte ao descrever as lutas e
conquistas femininas, ressalta a década de 1970 como um momento buliçoso que foi “(...)
capaz de alterar radicalmente os costumes e tornar as reivindicações mais ousadas em algo
normal” (DUARTE, 2003, p. 17), pois, começou a ser debatido neste período questões
polêmicas como “(...) o aborto, a mortalidade materna, as mulheres na política, o trabalho
feminino, a dupla jornada e a prostituição” (DUARTE, 2003, p. 18). A denúncia da
persistência da desigualdade entre os sexos e a busca pela equiparação entre os direitos
políticos e civis da mulher em relação ao homem, foi uma das reivindicações do movimento
feminista neste período, que no Brasil contribuiu para que as mulheres “(...) se posicionassem
também contra a ditadura militar e a censura, pela redemocratização do país, pela anistia e por
melhores condições de vida” (DUARTE, 2003, p. 18).
Sexualidade feminina? Aborto? Direito ao prazer? A onda levantada pela revolução
erótica na década de 1970 trouxe à tona todas essas questões. Ao se erguer o mastro com a
bandeira que denotava o lema o “nosso corpo nos pertence” (DUARTE, 2003, p. 18), a
revolução sexual feminina possibilitou “(...) à mulher igualar-se ao homem no que toca à
desvinculação entre sexo e maternidade, sexo e amor, sexo e compromisso” (DUARTE, 2003,
p. 18). Mas, como argumenta Mary Del Priore, “se a revolução sexual foi, antes, considerada,
uma libertação diante das normas de uma sociedade puritana e conformista – a burguesa e
vitoriana – ela, atualmente promove uma sexualidade mecânica, sem amor, reduzida à busca
do gozo” (PRIORE, 2006, p. 11-12). Todavia, aqui ainda cabe um questionamento: Que
revolução sexual feminina foi esta? Pois, embora a mulher tenha sido parcialmente
desobrigada de seguir o cânone feminino arbitrário, que exigia da mulher uma entrega
oblativa à maternidade, uma sexualidade contida ao casamento e uma vida restrita ao

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ambiente privado e doméstico, ainda não conseguiu se livrar dos laços de novos padrões
comportamentais normativos impostos para as mulheres como também desvincular-se de uma
visão masculina opressiva e tendenciosa que busca dominar os corpos e desejos femininos.
Pois, Mary Del Priore questiona:

Quem é essa mulher “mais livre”? Aquela que deseja, nos anos 70, viver a liberação
sexual. Cada vez mais parecida com as mulheres fotografadas nas revistas
masculinas, ela é extremamente provocativa. Não porque queira. Mas porque o
homem assim a deseja. Conhecedora, pelo menos em tese, de milhares de técnicas
sexuais, é o oposto de sua avó do início de século. Leitora ávida dos conselhos de
psicólogos, médicos e terapeutas sexuais, ela domina, ou crê dominar, todos os
saberes exóticos. Ela é um objeto sexual que gosta de seu papel. Alguma
preocupação com o emocional ou o afetivo? Zero. O fundo musical da cena pode ser
um hit da época: “I can’t get no satisfaction” do grupo Rolling Stones (PRIORE,
2006, p. 331).

É neste momento histórico que o mito de Chica da Silva seria modificado. Como musa
inspiradora que transporta valores presentes no imaginário social e expectativas daqueles que
a conceberam e ainda como receptáculo captador dos desejos dos homens, Chica da Silva
passa a ser, na década de 1970, objeto das fantasias sexuais masculinas, projeção de um tipo
de mulher desbragada sexualmente, de corpo sempre disponível onde o sexo poderia ocorrer
sem restrições. Pois, “(...) o corpo da mulher também é o campo de exercício do poder
masculino” (SANT’ANNA, 1993, p. 13) e na obra literária Xica da Silva “(...) a voz que fala
pela mulher é a voz masculina” (SANT’ANNA, 1993, p. 12) que não exprime os verdadeiros
sentimentos femininos, pois, não se trata de uma mulher de carne e osso, mas, de uma
imagem idealizada do que os homens querem e esperam da mulher. Pois, “longe de ser um
problema recente, as relações que o eu desenvolve com seu outro, desde tempos imemoriais,
têm provocado medo, segregação e exclusão” (JOVCHELOVITCH, 1988, p. 69) o que ocorre
na obra de João Felício dos Santos, onde o “eu” do autor é uma voz que tenta se passar pela
voz da mestiça Xica da Silva, voz que se expressa por ela, que se posiciona por ela, mas que
em momento algum questiona o racismo, a existência de preconceitos ou promove a
desconstrução de estereótipos. Muito pelo contrário, o discurso de João Felício dos Santos
vem reafirmando determinismos raciais como um círculo vicioso de estereótipos
depreciativos contra a mulher mestiça. Dessa forma o autor passa a perder a passagem para
uma subjetividade feminina, como a capacidade de se pôr no lugar do outro(a), de expressar-
se como se fosse o outro(a) e de traduzir interiormente o outro(a) desprendido daquilo que ele
é, ou seja, perde o alcance de uma positiva alteridade.11
Como um produto cultural que acompanha a sua conjuntura histórica, a obra de João
Felício dos Santos tem também algo a dizer sobre a década de 1970. Sendo assim, a partir da

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escrita do romance de João Felício dos Santos podemos perceber o momento histórico de
elaboração da obra. Para melhor entendermos as representações de Chica da Silva na obra de
João Felício dos Santos temos que estar atentos aos aspectos extra-textuais como os da
produção autoral da fonte literária, ou do universo histórico-estético do autor, que são
expressão de uma época e das relações sócio – culturais que o mesmo constitui como sujeito e
agente histórico dentro de uma trama social. Sendo assim, o entendimento do momento de
inscrição da obra como o conhecimento das influências históricas, literárias, estéticas do
escritor permitem a compreensão de como as ausências são presentificadas no modo como
João Felício dos Santos constrói “sua” Chica da Silva.
Na linha do chamado “romance histórico”,12 a obra ficcional de João Felício dos
Santos Xica da Silva de 1976, mostra-se reveladora de representações femininas que dizem
muito mais do tempo de escrita da obra do que do tempo em que se busca retratar. Como um
homem inserido no seu tempo, as imagens criadas por João Felício dos Santos desvelam a
realidade do período em que foram imaginadas, como da sociedade que as concebeu
(PESAVENTO, 2002). Sendo que, o modo como o sujeito histórico constrói estas
representações é mediante sua posição sócio-cultural (CHARTIER, 1988). Assim sendo, cabe
a perquisição: Quem foi João Felício dos Santos?
João Felício dos Santos13 nasceu na cidade de Mendes no Estado do Rio de Janeiro no
ano de 1911 vindo a falecer em 13 de junho de 1989 no mesmo Estado. Foi topógrafo,
publicitário, funcionário público federal e jornalista, profissão na qual atuou por longa parte
de sua vida, sendo que os seus primeiros escritos datam de 1938 (SANTOS, 2007). A
compreensão da vida do autor nos permite compreender as relações de forças, já que
“podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”
(ORLANDI, 2001, p. 31).
Em seus romances históricos14, João Felício dos Santos buscou expor importantes
etapas da história brasileira, “(...) como o ciclo minerador, a chegada da família real
portuguesa, a Inconfidência Mineira, a Guerra dos Farrapos e resgata personagens que se
tornaram célebres – Xica da Silva, Carlota Joaquina, Aleijadinho, Anita Garibaldi, Calabar,
entre outros”, (SANTOS, 2007, p. 239) sendo que muitos destes personagens foram
transportados para a narrativa fílmica, pela expressividade de suas biografias romanceadas,
“(...) os livros Xica da Silva; Carlota Joaquina; Ganga Zumba (premiado pela Academia
Brasileira de Letras) e Cristo de Lama foram adaptados para o cinema” (SANTOS, 2007, p.
239).

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João Felício dos Santos, embora seja um ficcionalista, não deixa de ter o real como
referência (PESAVENTO, 2000), pois, existe a vontade do romancista “de fazer crer que as
coisas se passaram realmente assim” (LEENHARDT, 1998, p. 43), sendo alicerce tanto do
discurso histórico como do literário “a vontade de representar na linguagem os fatos e os
acontecimentos segundo a modalidade do verossímil” (LEENHARDT, 1998, p. 43). E para
dar este efeito de “real” na obra Xica da Silva, João Felício dos Santos fez leituras que o
ajudaram a construir o seu romance, a partir de obras memorialísticas como as Memórias do
Distrito Diamantino do seu parente Joaquim Felício dos Santos, Arraial do Tejuco, Cidade
Diamantina de Aires da Mata Machado Filho e também de obras literárias como o
Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles e o Tesouro de Chica da Silva de Antônio
Callado. Mas, vale salientar que o texto de Joaquim Felício dos Santos foi o mais revisitado
por João Felício dos Santos pelo fato de conter informações sobre a economia, política,
organização social do vetusto arraial do Tejuco. Aqui percebemos a memória discursiva e o
interdiscurso “definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente”
(ORLANDI, 2001, p. 31) estes já-ditos sobre Chica da Silva são retomados por João Felício
dos Santos. Já que o autor busca trazer memórias diversas da vida de Chica da Silva embora
não seja “fácil penetrar na vida privada nem na vida íntima situada no interior da vida
cotidiana, ou porque se confundem com a vida pública, ou porque, ao contrário, se escondem
atrás do próprio pudor em revelá-las” (FOISIL, 1993, p. 331)
Joaquim Felício dos Santos, como o primeiro criador de Chica da Silva, teria a sua
personagem histórica apropriada e ressignificada por seu sobrinho-neto João Felício dos
Santos, que a tornaria um mito como a mulata lasciva de sexualidade exacerbada. Neste ponto
já percebemos na obra de João Felício dos Santos o intradiscurso “que seria o eixo da
formulação, isto é, aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas.”
Ou seja, o que se diz e que se diferencia.
O conceito de apropriação segundo Roger Chartier “(...) visa uma história social dos
usos e das interpretações (...)” (CHARTIER, 2002, p. 68) como também, segundo o autor
“(...) enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreensões e a liberdade criadora”
(CHARTIER, 2002, p. 67). O que pode ser perceptível com a imagem de Chica da Silva que
foi sendo moldada como barro pelas mãos dos seus muitos artífices. Releituras foram feitas
do discurso oficial de Joaquim Felício dos Santos sobre Chica da Silva e representações
contraditórias foram construídas sobre esta mulher, como a de João Felício dos Santos. As
apropriações que se fizeram de Chica da Silva geraram lutas de representações por aqueles
que buscaram determinar a sua imagem, já que “as lutas de representações têm tanta

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importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um


grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e
o seu domínio” (CHARTIER, 1988, p. 17). E como acrescenta Georges Duby sobre as
representações que “numa determinada sociedade, coexistem vários sistemas de
representação, que (...) são concorrentes” (DUBY, 1995, p. 132) e determinadas pelas
relações de poder, como as imagens de Chica da Silva que refletem os antagonismos sociais.
João Felício dos Santos também passa a autenticar como registros do passado dignos
de consulta para ajudar na composição de suas obras literárias a oralidade, a partir do
momento em que durante as suas viagens pelo país, passa a recolher os relatos locais de
moradores sobre os muitos personagens históricos que tornariam protagonistas de suas obras
ficcionais. No caso de Chica da Silva pelo fato de sua lembrança estar sempre presente na
vida cotidiana dos diamantinenses, não foi difícil recolher da tradição oral muitas histórias
contraditórias contadas pelo povo sobre essa mulher que faz parte do universo simbólico do
nordeste de Minas.
Sob a pena do literário, a história vai sendo inscrita não necessariamente como foi,
mas, como poderia ter sido. E da mesma forma ocorre com os personagens históricos que ao
serem transportados da história para a narrativa literária ganham novos contornos enquanto
representações do real, não sendo descritos pelo literário como eram, mas, como poderiam
ser, pois, “a representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo,
mas uma construção feita a partir dele” (PESAVENTO, 2008, p. 40). Assim sendo, a Xica da
Silva personagem literária de João Felício dos Santos não é uma reprodução idêntica à Chica
da Silva mulher do século XVIII, como também não é o seu reflexo perfeitamente igual. Mas,
é sim uma representação, uma construção social gestada e gerida num determinado tempo.
Xica da Silva não foi a única personagem mulata a ser representada por João Felício
dos Santos. No seu romance histórico João Abade, o autor descreve a sua Maria Olho de Prata
como a mestiça devassa sempre animada para aventuras pecaminosas. Mas, para
compreendermos a imagem de Xica da Silva envolta numa aura de lubricidade e de forte
apelo sexual (sex appeal) produzida por João Felício dos Santos, temos que estar atentos a
alguns condicionantes, como os seguintes:

a) compromissos do escritor com correntes literárias; b) as peculiaridades


estilísticas de cada autor; c) o momento histórico em que a obra seja
elaborada; d) os recursos materiais que envolvem e afetam a produção,
atingindo também as expectativas e o gosto do público ao qual a obra
literária se destina (QUEIROZ JÚNIOR, 1975, p. 96).

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No que tange às correntes literárias, as obras de João Felício dos Santos têm fortes
indícios regionalistas. Porém, como diagnosticou Teófilo de Queiroz Júnior (1975), ao arrolar
diversas obras literárias de autores nacionais, do Barroco aos Movimentos Contemporâneos,
que independentemente das correntes literárias e dos seus respectivos momentos de
manifestação histórica há sempre a persistência literária do estereótipo da mulata e com João
Felício dos Santos não foi diferente. Pois, em duas de suas obras datadas de tempos
diferentes, João Abade de 1957 com a mulata Maria Olho de Prata e Xica da Silva que
protagoniza e intitula o romance de 1976 o estereótipo da mulata permanece o mesmo com
pouquíssimas alterações, embora a década de 1970 fortaleça a representação da mulata
sensual.
Se o comprometimento de um autor com uma corrente literária não necessariamente
provoca uma revisão ou modificação do estereótipo da mulata, vale ressaltar que as
peculiaridades estilísticas de cada autor podem fomentar em níveis diferenciados o
estereótipo. João Felício dos Santos, favorecido por sua desenvoltura e fluência narrativa,
criou um texto irreverente, humorado, espontâneo e de linguagem acessível ao grande público
o que dilatou o círculo de leitores de suas obras. Porém, a boa dose de irreverência na obra de
João Felício dos Santos, esconde o seu humor amoral e o seu machismo na descrição da sua
mulata que enternece os cinco sentidos masculinos, convidando-os ao pecado da luxúria com
seus muxoxos, carícias e manobras sexuais. Sendo ainda, através de um estilo humorado e
direto que João Felício dos Santos agride e vilipendia as suas mulatas.
Ainda sobre as peculiaridades estilísticas do autor, o fato de João Felício dos Santos
ter tido uma proximidade com o universo do carnaval15 por ser sido compositor de enredos
para grandes escolas de samba, alimentaram no autor o teor discriminatório e machista contra
a mulher negra tão reproduzido por esta festa de caráter popular, pois, “(...) o carnaval, como
exercício desreprimido de nossa ideologia ratifica um preconceito violento contra a mulher de
cor, disfarçado numa linguagem irônica e aliciadora” (SANT’ANNA, 1993, p. 33). E João
Felício dos Santos passa a apreender, anunciar, disseminar, e conservar esta representação
coletiva estereotipada e racista da mulata enquanto tipo nacional, como também os
preconceitos arraigados na cultura popular carnavalesca através de suas obras literárias. Pois,
no imaginário erótico masculino projetou-se a mulata como a rainha do carnaval, senhora que
merece deferência e prestígio. Exaltada como símbolo de brasilidade, cuja imagem no
carnaval quase sempre faz uma alusão estético-sexual ao corpo bonito, esguio e fogoso como
a dança insinuante. A mulata passa a ser no carnaval a mulher almejada como objeto de posse,
sempre associada à simpatia e a vulgaridade, a irresponsabilidade, malícia e amoralidade. E

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assim uma posição reacionária masculina vai perpetuando um discurso discriminador sobre a
mulher negra em escala social, ideológica e cultural.
Aspecto também importante para compreendermos as peculiaridades estilísticas de
João Felício dos Santos na descrição de Xica da Silva como a mulata bela e desejada é o
conhecimento de suas influências literárias e estéticas, como também o do seu círculo
intelectual e literário. E um expoente da literatura que fez parte do círculo de amizades de
João Felício dos Santos e que tem características similares a ele no seu estilo literário foi o
romancista Jorge Amado.
Jorge Amado foi um escritor que através de seus romances construiu uma fantástica
atmosfera regional, através de muito bom humor, espontaneidade e fluência descritiva. Jorge
Amado foi amigo de João Felício dos Santos e ambos são influenciados pela mesma cultura
de tipificação da mulher, em particular da mulher negra. Nas obras de Jorge Amado as
mulatas constantemente se vêem enredadas numa trama de pretensão masculina, sempre
sujeitas à voluptuosidade dos homens. Sendo assim, mulatas como Rosenda, Gabriela, Ana
Mercedes16, e outras tantas idealizadas por Jorge Amado, não passam de representações
estereotipadas femininas, que encarnam as fantasias sexuais do homem branco que as
imaginou. Pois, para a mulata nas obras literárias de Jorge Amado

(...) não é permitido ser esposa ou mãe, pois, é o símbolo da liberalidade


sexual. Ela não é respeitada nem como mulher nem como indivíduo. Sua
função é atrair os homens, ser explorada por eles e em troca explorá-los para
obter o que quer através do sexo. A aspiração individual que brota de
talentos fora desse domínio é, conseqüentemente, destruída ou denegrida no
interesse do estereótipo (BROOKSHAW, 1983, p. 142).

João Felício dos Santos passa a ser intensamente influenciado por um imaginário
coletivo construído sobre as mulheres negras e mulatas na produção cultural literária
brasileira, e os seus romances apresentam uma demasia de representações preconceituosas,
idealizadas e estereotipadas sobre a afetividade e sexualidade das personagens negras e
mulatas assim como nas obras literárias do seu amigo Jorge Amado, que defendia que no
Brasil havia um modelo harmonioso de relações afetivo/ sexuais inter-raciais, pois, como
afirmou o escritor em entrevista dada ao jornal “O Estado de São Paulo”: “Meu país é uma
verdadeira democracia racial...” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p. 112). Porém, por detrás do
manto da democracia racial se escondia o preconceito e a fria exclusão social que pesava
sobre as mulheres negras e mulatas. Na obra de João Felício dos Santos, o romance inter-
racial entre Chica da Silva e João Fernandes de Oliveira foi utilizado com o intuito de
reafirmar que o território brasileiro é livre de preconceitos raciais, já que “o mito de Chica da

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Silva tem sido utilizado para sustentar a alegação de que, no Brasil, os laços de afeto e as
relações físicas entre brancos livres e mulheres de cor abrandaram a exploração inerente ao
sistema escravista em face do concubinato” (FURTADO, 2003, p. 23).
Sobre o momento histórico de elaboração da obra literária Xica da Silva de João
Felício dos Santos, como já falamos e aqui voltamos a ressaltar as décadas de 1960 e 1970,
período de inscrição do referido romance, representaram um momento histórico de intensas
transformações comportamentais femininas em decorrência dos inúmeros movimentos
libertários que emergiram como a luta feminista. Mas, foi a consolidação da Revolução
Sexual que desarmou os velhos princípios tradicionais morais que ditavam os
comportamentos relacionados à sexualidade humana como as relações interpessoais. Nesta
nova perspectiva a mulher passa a desenvolver novas posturas, condutas e procedimento
frente a sua sexualidade, já que as décadas de 1960 e 1970 destacaram-se pelo aparecimento
da pílula anticoncepcional e outros métodos contraceptivos que permitiram à mulher um
maior controle sobre a reprodução, pela reestruturação das relações entre homens e mulheres,
na redução dos casamentos formalizados, na modificação de costumes que possibilitaram às
mulheres vestir-se e comportar-se com maior liberdade, podendo expressar os seus desejos,
falar de sexo, prazer e paixão.
A revolução sexual foi um marco simbólico de transformação nos costumes e
comportamentos principalmente femininos, pois, a mulher se viu liberta do cárcere do lar e
casamento, como também de ser o fundamento para a solidez familiar. A mulher não mais
tinha que se contentar em viver no frio grotão da solidão, ou mesmo, assim como um molusco
que se esconde por debaixo de sua concha, ter que esconder a sua sexualidade e afetividade
por debaixo do invólucro calcário machista e patriarcal.
Entretanto, como adverte Rejane Esther Vieira

(...) o que mais chama a atenção nesta época é a atuação das mulheres na
sociedade, promovendo fortes mudanças. Elas avançaram na questão de
emancipação econômica e sexual, além da sua presença crescente nos
movimentos reivindicatórios e políticos da década. Ou seja, as mulheres
tiveram o desenvolvimento de uma ação mais direta e organizada, pois, os
movimentos feministas lutaram contra a ditadura e por problemas
específicos das mulheres tais como: sexualidade, o controle da concepção, o
aborto, o prazer sexual, a dupla jornada de trabalho, a discriminação
econômica, social e política. (VIEIRA, 2012, p. 8)

Na sua obra literária Xica da Silva, embora João Felício dos Santos tenha como
protagonista de seu romance uma mulher negra, o autor negligencia os resultados e conquistas
do movimento libertário feminista nas décadas de 1960 e 1970 que buscou “(...)

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principalmente, destruir os mitos da inferioridade natural, resgatar a história das mulheres,


reivindicar a condição de sujeito na investigação da própria história, além de rever,
criticamente, o que os homens, até então, tinham escrito a respeito” (DUARTE, 1990, p. 70).
Pois, João Felício dos Santos, contrastando com todas as mudanças de seu tempo que buscam
alterar a condição feminina, ainda como herdeiro de um espólio machista advindo de uma
longa tradição patriarcal, representa Xica da Silva como a mulata hipersexualizada,
verdadeiro símbolo de liberdade sexual, conhecedora de uma cultura erótica que só a deixa
distante do modelo da mulher frígida e desenxabida de tempos anteriores.
Sobre os recursos materiais que envolvem a produção literária da obra Xica da Silva,
vale ressaltar que João Felício dos Santos utilizou dos meios dispensados pela imprensa
moderna que “(...) com seus alcances e limites, tem sido como recurso técnico, um fator
neutro, quando se trata de impedir a difusão do estereótipo literário de mulata. Mas interfere
eficientemente, quando se trata de promover e reforçar a difusão desse estereótipo”
(QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p. 97). Em muitos de seus romances João Felício dos Santos
buscou enriquecê-los com atrativos retratos, gravuras e ilustrações de autoria de artistas
renomados como Carybé, Poty, Xavier, Neto. Sendo esta uma manobra eficiente do autor para
tornar os seus romances vendáveis e notórios, pois, “difundindo amplamente as obras editadas
e tornando-as desejáveis pela força quase irresistível da propaganda, aí está como pode a
imprensa tornar vulnerável o gosto do público leitor” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p. 97).
Uma outra maneira de popularizar a personagem Xica da Silva e consequentemente a obra
literária de João Felício dos Santos, foi a iniciativa de transformar o romance em película por
Carlos Diegues em 1976, no mesmo ano de publicação do romance. Impelido pelo
movimento do Cinema Novo17, Carlos Diegues conjuntamente com João Felício dos Santos
escreveram o roteiro do filme Xica da Silva que “(...) democratizou o mito e o tamanho da
tela foi proporcional às dimensões que ele alcançou tanto no Brasil como no exterior”
(FURTADO, 2003, p. 282).
A trama literária de João Felício dos Santos é protagonizada pela escrava Xica, mulher
fogosa, sempre pronta a dar prazer aos homens, a requebrar-se dengosa pelas ruas
desalinhadas do arraial do Tejuco nas Minas setecentistas. Mucama do Sargento-Mor do
arraial do Tejuco Xica da Silva seduz com doçura e utiliza de seus atributos sexuais para
contornar situações. Com uma personalidade luxuriosa incontrolável, conquista o coração do
homem mais poderoso do Distrito Diamantino o contratador João Fernandes de Oliveira,
elevando-se socialmente passa a ter desejos hiperbólicos, esnobando a nobreza que antes a
humilhava. Xica da Silva é um exemplo de como os autores trabalham a figura da mulher

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negra na narrativa literária, a retratando de maneira estereotipada, idealizada e repleta de


preconceitos, pois, no romance, Xica da Silva “(...) incorpora a fantasia da escrava
sexualmente disponível. Ela é usada sexualmente por vários homens brancos (...) e parece
perfeitamente apreciar; ela aspira apenas encontrar uma melhor classe de senhor/amante”
(STAM apud GORDON, 2009, p. 4).
Xica da Silva através de sua beleza, graça, e talentos eróticos ganha o coração do
homem mais poderoso do Distrito Diamantino, o contratador João Fernandes de Oliveira, e
deste recebe a alforria e poder. De João Fernandes, Xica da Silva ganha tanto um grande
Palácio como um lago artificial com uma galera. Porém a Corte Portuguesa é avisada sobre
irregularidades no contrato como dos gastos exorbitantes de João Fernandes e manda um
fiscal, que prende o contratador. Xica da Silva termina a história pobre, humilhada e
apedrejada, tendo que novamente usar o seu corpo e o sexo como meios de barganha.
Segundo Nobert Elias “na sociedade civilizada, nenhum ser humano chega civilizado
ao mundo e que o processo civilizador individual que ele obrigatoriamente sofre é uma função
do processo civilizador social” (ELIAS, 1994, p. 15). Na obra de João Felício dos Santos
percebe-se a intenção de civilizar Xica da Silva e transformá-la em uma dama burguesa,
porém todos os esforços se mostram inúteis, já que na obra ela se mostra um ser inadaptável,
difícil de ser polido, de se transformar em “senhora”, uma vez que o autor busca afirmar a
imutabilidade da mulata para as coisas do sexo. Também é ressaltado na obra literária a falta
de raciocínio e a baixa capacidade intelectual da mulata que por mais que tentasse não
conseguia aprender a ler e a escrever, embora já escrevesse Roger Chartier que no século
XVII e XVIII no Antigo Regime havia um domínio desigual entre homens e mulheres no que
tange à leitura e à escrita, sendo que “os homens assinam mais que as mulheres”
(CHARTIER, 1991, p. 117) e sendo ainda a prática da escrita considerada “inútil e perigosa
para o sexo feminino” (CHARTIER, 1991, p. 117).
Como um tipo literário, foi imputado à mulata traços positivos, dentre eles cita-se
“bons sentimentos, senso de solidariedade humana, alegria, vigor físico, graça, beleza, senso
estético, gosto pela vida, certas habilidades domésticas, ou mais exatamente culinárias, muita
higiene pessoal e bastante musicalidades – afinação, ritmo e graça ao cantar e dançar”
(QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p 33). Mas, “não menos destacados são seus defeitos:
irresponsabilidade, sensualidade, amoralismo, infidelidade” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p
33). No romance de João Felício dos Santos, Xica da Silva, como uma legítima mulata, possui
quase todos os traços positivos atribuídos ao estereótipo literário da mulata, como também
todos os seus aspectos negativos.

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Conclusão

A partir dos subsídios da análise do discurso ressaltam-se alguns traços fundamentais


que perpassam a representação da mulata na obra de João Felício dos Santos, o primeiro traço
é que Xica da Silva é dona de uma sensualidade irresistível, o segundo é que o autor não se
cansa em ressaltar as características físicas de sua mulata, em terceiro, vale denotar que a
mulata na obra de João Felício dos Santos representa a “outra” dentro do que se convencionou
como núcleo estrutural familiar não servindo para o casamento, como quarto ponto enfatiza-se
que Xica da Silva passa a simbolizar a mulher-objeto na sociedade que o autor busca
representar, no quinto ponto, percebe-se que a protagonista da obra literária é estigmatizada,
infamada socialmente e qualificada pejorativamente por sua corolação de pele e no sexto e
último traço, a mulata traz uma propensão “nata” para as coisas do sexo, assim, ela é sempre
infiel. Essa infidelidade de Xica da Silva fica muito clara na obra em questão, na qual Xica da
Silva divaga entre o puro amor e o amor erótico e carnal. Mesmo abandonando sua antiga
vida de escrava e tornando-se senhora rica e livre ao viver em concubinato com João
Fernandes, ela ainda continua vista por uma ótica extremamente sexual, já que, embora Xica
da Silva ame João Fernandes de Oliveira, não consegue conter o seu comportamento libertino
e os seus instintos sexuais acabando por trair o contratador de diamantes com inúmeros
homens. Assim assenta-se a representação de Xica da Silva no romance histórico de João
Felício dos Santos ao estereótipo da mulata sexualizada que desperta o desejo carnal nos
homens.
Se representar é apresentar no presente algo ou alguém do passado, sendo que a
imagem presentificada é marcada com o timbre da que está ausente. Está reapresentação feita
no presente do ausente pode ser mediada através de uma palavra, figura, pintura, marca que
traz uma imagem do não presente, distante pelo próprio tempo e espaço. Assim, como é o
caso de Chica da Silva cuja memória volátil circulava entre os seus descendentes e entre os
moradores da cidade de Diamantina, mas que ausente, teria sua imagem presentificada pelo
memorialista Joaquim Felício dos Santos no século XIX de maneira preconceituosa e negativa
como a negra rude, boçal, mandona e perdulária, já que os sentidos e as significações dadas às
representações são historicamente construídas, dessa forma, a imagem de Chica da Silva
criada pelo memorialista em 1868 ancora-se com o seu tempo de escrita, no qual vigorava
preconceitos contra ex-cativos e mulheres negras, momento em que havia o repúdio da prática
do concubinato pelos preceitos católicos e que era lançado um forte olhar de reprovação sobre

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a união entre brancos e negras, como foi o caso de Chica da Silva e João Fernandes de
Oliveira.
As representações não nascem do vazio, mas a partir do corpo de valores presentes no
momento de sua feitura, assim, enquanto representante da elite social branca, defensor de
preceitos patriarcais e imbuídos de princípios tradicionais de forte teor preconceituoso,
Joaquim Felício dos Santos inscreve as suas memórias e cristaliza Chica da Silva nelas
negativamente. As representações na sociedade possuem a função de estabilização e de
dinamização de imagens, embora o discurso de Joaquim Felício dos Santos intencionasse
estabilizar Chica da Silva a figura da “negra espúria” de maus modos, as representações são
partilhadas e o discurso de Joaquim Felício dos Santos sobre Chica da Silva passou a ser
revisitado e atualizado, uma vez que as representações são apropriadas e ressignificadas.
Apropriando-se do “relato original” sobre Chica da Silva escrito por Joaquim Felício
dos Santos e dando a ele novos contornos, destaca-se o texto do seu sobrinho-neto João
Felício dos Santos, que para além da evidência anedótica do parentesco, inova por trazer uma
protagonista negra para o seu romance, embora que ao custo de aprisioná-la a estereótipos e
imagens questionáveis.
Se o estereótipo da mulata tem sua gênese no período colonial, percebemos reflexos
deste estereótipo sendo expressos na ficção literária de João Felício dos Santos na
contemporaneidade, visto que esta obra literária exemplifica o machismo do homem branco
pela mulata ao perpetuar relações de dominação e subordinação que são heranças da
sociedade escravista e que tanto a literatura afro-brasileira contemporânea18 tenta superar e
desconstruir.

Artigo enviado em: dd.mm.aaaa. Aprovado em: dd.mm.aaaa.

1
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).
2
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).
3
Data do falecimento de Chica da Silva.
4
Foi “(...) deputado, senador e presidente do Senado da República (...)” (DUARTE, 2010, p. 202).
5
“(...) publicou diversas obras voltadas para a área jurídica, como o primeiro Projeto do Código Civil Brasileiro,
de 1882, e a formulação de leis e decretos” (DUARTE, 2010, p. 202).
6
“Publicou o “(...) romance Acayaca, de 1866, baseia-se em uma lenda indígena e está perfeitamente inserida no
espírito indianista do período romântico” (DUARTE, 2010, p. 155).
7
São caleidoscópicas as representações de Chica da Silva “Bruxa, sedutora, heroína, rainha ou escrava”
(FURTADO, 2003, p. 19).
8
Quando nos referirmos à personagem histórica utilizaremos a grafia “Chica da Silva”. E para nos referirmos à
personagem literária utilizaremos a grafia “Xica da Silva”.
9
O imaginário é um reservatório/motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências,
visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo individual/grupal,

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sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo. O imaginário é uma
distorção involuntário do vivido que se cristaliza como marca individual ou grupal. Diferente do imaginado –
projeção irreal que poderá se tornar real - , o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real
como elemento propulsor (SILVA, 2003, p. 3).
10
Na análise do discurso “o autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa,
pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em que se constitui, assumindo a
responsabilidade pelo que diz” (ORLANDI, 2001, p. 76).
11
Segundo Sandra Jovchelovitch: “É, portanto, a positividade da alteridade que necessita ser discutida, pois é
nesta positividade que residem os elementos fundantes de toda a vida psíquica e social” (JOVCHELOVITCH,
1988, p.69).
12
O (...) romance histórico tem como um de seus objetivos apresentar uma perspectiva nova da narrativa
histórica. Esse redimensionamento é o primeiro intento de constituir uma narrativa que tem como objetivo a
construção de uma versão do fato histórico, identificada com a realidade. Essa visão sobre o romance histórico é
seguida por muitos outros romancistas que através da liberdade de criação, escrevem várias narrativas que
relativizam a concepção histórica no ocidente moderno. Esse redimensionamento originou uma literatura que
revisou o passado histórico no seu devido espaço e tempo, objetivando reinterpretá-lo. Essa forma de tomada de
consciência está relacionada ao reconhecimento de que a história se faz como discurso, em que a capacidade de
construção de imagens através da narração é um importante mecanismo de construção da história, e,
conseqüentemente, da construção das identidades (LACERDA, 2006, p. 38).
13
João Felício dos Santos “é autor de uma obra vasta na qual se destacam romances, contos, poesias, literatura
infantil, livros técnicos, argumentos e roteiros cinematográficos e o desenvolvimento de enredos carnavalescos”
(DUARTE, 2010, p. 203).
14
Entre os muitos títulos que publicou, destacam-se: João Abade, de 1958; Ganga Zumba, de 1962; Carlota
Joaquina, a rainha devassa, de 1968; Ataíde, azul e vermelho, de 1969; Xica da Silva, de 1976; A guerrilheira, o
romance da vida de Anita Garibaldi, de 1974; Insurreição de Queimado, s/d; Quilombo, de 1984; Cristo de
Lama, s/d; entre outro. (DUARTE, 2010, p. 203).
15
Vale ressaltar que não estamos lançando preconceitos contra o carnaval ou contra as sambistas das grandes
escolas. Mas, apenas argumentando que a relação do autor com o carnaval pode ter aumentado o machismo do
literário, o fazendo reforçar estereótipos raciais que se manifestam em suas obras literárias, em decorrência da
festa popular do carnaval comumente através de sátiras, músicas e imagens disseminar representações
preconceituosas principalmente sobre a mulher negra.
16
Rosenda da obra Jubiabá (1997), Gabriela do romance Gabriela, Cravo e Canela (1969) e Ana Mercedes da
obra literária Tenda dos Milagres, 1970.
17
O movimento do Cinema Novo do qual Cacá Diegues participava tinha como interesses o povo brasileiro e
sua história, mas reivindicava o direito da liberdade de expressão para contá-la. Para esse diretor, era importante
compreender e resgatar a tradição afro-americana na nossa sociedade contemporânea e, buscando concretizar
esse objetivo, transformou em película a história de dois ícones da presença africana no Brasil: Chica da Silva e
Zumbi dos Palmares. Essa releitura pretendia oferecer uma visão crítica ao espectador, sobretudo no tocante às
relações entre os portugueses e a elite brasileira de um lado e os escravos e marginalizados de outro
(FURTADO, 2003, p. 282-283).
18
“A literatura negro-brasileira vem exercitando, cada vez mais, o campo das polaridades que põem a nu o
preconceito, desde sua conotação mais sutil até a mais agressiva” (SILVA, 2010, p. 109). As polaridades têm
sido recursos empregados na literatura negro-brasileira para detectar os meandros camaleônicos da sociedade no
quesito raça. Nas relações senhor x escravizado, branco x negro, rico x pobre, o escritor encontra material amplo
de trabalho para desconstruir estereótipos e promover o diálogo, mesmo que este seja áspero (SILVA, 2010, p.
109).

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Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015


Doce amargo Mundo Novo: percalços ambientais e alimentação colonial na América
colonial portuguesa do século XVI 1

Julianna Morcelli Oliveros2


Christian Fausto Moraes dos Santos3

Resumo: Um dos maiores desafios enfrentados pelos colonizadores europeus na América portuguesa
quinhentista foi a adaptação ao novo ambiente, sobretudo no que tange o clima e aos recursos para obtenção de
alimentos. A alimentação era feita, em boa parte, de acordo com a disponibilidade dos gêneros alimentícios ali
existentes. Nesse sentido, os frutos nativos constituíam um quadro de variedades, juntamente com o açúcar, já
que esses exploradores costumavam se fixar nas faixas litorâneas, localidades nas quais se encontravam
plantações de cana-de-açúcar e engenhos. Através desta perspectiva, será analisado o quanto a dinâmica do
ambiente e flora da América portuguesa foram importantes no processo de fixação dos colonizadores, bem como
os valores atribuídos por estes aos frutos e ao açúcar do Novo Mundo. Estes valores estavam intimamente
relacionados ao conhecimento dos colonizadores frente às ordens prescritas por Hipócrates e Galeno, através da
teoria humoral. Deste modo, analisaremos os relatos de cronistas e viajantes do período. Assim, apontaremos de
que maneira os frutos e as conservas feitas com eles foram fundamentais na alimentação desses homens no
ambiente tropical, sob o ponto de vista logístico da dinâmica colonial.
Palavras-chave: Floresta tropical; América portuguesa; século XVI; frutos; conservas de frutos.

Bittersweet New World: environmental mishaps and colonial feeding in Portuguese


America sixteenth century.

Abstract: One of the biggest challenges faced by European settlers in the sixteenth century Portuguese America
was the adaptation to the new environment, especially regarding the climate and resources for obtaining food.
The food was made, in large part, according to the availability of foodstuffs therein. In this sense, the native
fruits were a variety of frame, along with sugar, as these explorers used to settle in the coastal ranges, locations
where they were cane sugar mills and plantations. From this perspective, it will be analyzed how the dynamics of
the environment and Portuguese America flora were important in the setting process of the colonizers and the
values assigned by them to the fruits and the New World sugar. These values were closely related to knowledge
of the colonizers forward the orders prescribed by Hippocrates and Galen, through the humoral theory. Thus, we
analyze the chroniclers reports and travelers of the period. So, we will point out how the fruits and preserves
made with them were instrumental in feeding the men in tropic environment under the logistical point of view of
colonial dynamics.
Keywords: Tropical forest; Portuguese America; sixteenth century; fruits; preserved fruits

1
Resultados parciais de pesquisa de mestrado, financiada pela Capes.
2
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (PPH/UEM).
Membro do Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC/UEM). Contato:
juliannam.oliveros@gmail.com
3
Doutor em História das Ciências e da Saúde pela FIOCRUZ. Professor adjunto do Departamento de História e
do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Coordenador do Laboratório
de História, Ciências e Ambiente (LHC/UEM). Contato: chrfausto@gmail.com
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466

Introdução

O início da Era Moderna foi marcado pelos descobrimentos advindos das viagens
ultramarinas desencadeadas no século XV e intensificadas no século posterior. Com a
chegada dos europeus na América, durante o século XVI, uma nova concepção de mundo
começava a se formar e colocava, aos poucos, em dúvida todas as verdades em voga até
então, sobretudo, no que tange o mundo natural (BOORSTIN, 1989, p. 151-171; DEBUS,
2002, p. 35-54). A presença dos europeus no continente americano vai além da conquista de
uma nova possessão. Estes primeiros contatos foram profundamente caracterizados pela
aproximação daqueles homens com a natureza da nova colônia. Este processo foi marcado por
um intenso exercício de investigação, onde se observou, descreveu e classificou a fauna e a
flora local (OGILVIE, 2008). Os relatos produzidos acerca daquele novo ambiente revelam
uma constante preocupação em reconhecer e identificar as espécies do novo território
(SOUSA, 1587; CARDIM, 1580; LÉRY, 1578; STADEN, 1557; ANCHIETA, 1554-1594,
PEREIRA, 1561; GÂNDAVO, 1576; THEVET, 1557; SOARES, 1591).
Ao longo deste processo de reconhecimento da Mata Atlântica, tanto colonizadores
quanto cronistas, viajantes, missionários e todos aqueles que se propuseram a investigar o
novo território recém-descoberto não tardaram em concluir que a floresta tropical apresentava
uma série de obstáculos que dificultavam e comprometiam a permanência naquele ambiente
(DEAN, 2010; ODUN, 2004, RICKLEFS, 2013). Aos poucos, o Paraíso Terrestre se tornava
um verdadeiro éden hostil (DELAUMEU, 2003; GIUCCI, 1992, p. 196). Muitos destes
obstáculos eram representados, em boa parte, pela diversidade da vegetação tropical. As
variações no clima e no relevo, bem como uma infinidade de plantas e animais, totalmente
desconhecidos pelos europeus, foram prontamente sinalizados como problemas a serem
superados com urgência.
Ao tomarmos conhecimento de tais obstáculos, é coerente afirmar que muitos
percalços, decorrentes do processo de migração dos europeus para o Novo Mundo, estavam
relacionados a um reconhecimento daquele novo ambiente. A historiografia tradicional,
contudo, costuma apresentar tal aspecto do processo de colonização como uma tarefa que se
deu apesar de um comportamento idílico dos primeiros colonizadores (HOLANDA, 2011, p.
43).
Há, também, a perspectiva construída por Gilberto Freyre. Esta atribui o sucesso da
empreitada colonizadora, única e exclusivamente, à uma suposta predisposição que os
portugueses tinham em relação à vida nos trópicos, o que lhes renderia condições físicas e
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 465-479, Jul. 2015
467

psíquicas para tal atuação. Disposição essa favorecida por uma pretensa semelhança climática
entre ambos os lugares, a qual impossibilitou perturbações físicas tão sérias como as sofridas
pelos colonizadores oriundos de regiões muito frias (2006, p. 69). Apesar da análise de Freyre
ter sido consideravelmente difundida, hoje se sabe que a mesma é infundada. Do ponto de
vista latitudinal, o clima de Portugal se aproxima muito mais ao da América do Norte do que
da América do Sul e, consequentemente, do Brasil (CROSBY, 2011, p. 23).
Tais perspectivas de análise acabam relacionando, de maneira direta, um pretenso
êxito do processo de colonização aos fatores físicos e genéticos, desconsiderando a
capacidade criativa dos seres humanos em resolver problemas. Ignora-se, também, os esforços
depreendidos pelos primeiros colonizadores que procuraram catalogar tanto a flora quanto a
fauna da colônia, em uma clara tentativa de superar obstáculos, através da construção de
saberes acerca daquele novo ambiente.
É válido ressaltar que, ao cruzarem o oceano, os colonizadores tiveram que promover
um processo em que as novas terras se tornassem cultiváveis, enfim, que se adequassem
àquilo que os europeus consideravam habitável (MORAN, 1994). Tarefa difícil quando as
possibilidades não correspondiam às preferências. Esses homens, sempre que possível,
buscavam antropizar o ambiente daquela nova colônia, convertendo-o em algo que lhe
parecesse mais similar à Europa (CROSBY, 2011, p. 181). Ação que não equivale a uma
simples adaptação ao ambiente tropical, através de um processo único de assimilação e
reprodução total de hábitos dos nativos indígenas, no qual ocorre o abandono de seus antigos
costumes.

Fatores naturais e culturais de um processo colonizatório

Alguns problemas cruciais ocuparam o cotidiano dos novos moradores da colônia


portuguesa durante o século XVI, dentre eles o ato de se alimentar. A ingestão de calorias,
uma ação essencial à sobrevivência de qualquer ser vivo, inicialmente se apresentou como
uma incógnita. Mas, quem tem fome, tem pressa. Assim, a incorporação dos elementos da
natureza tropical se mostrou uma alternativa fundamental na alimentação daqueles homens,
devido a importantes entraves logísticos.
A obtenção de alimentos estava, não raras vezes, relacionada à disponibilidade de
víveres em determinada região. Com isso, os colonizadores se tornavam, de certo modo,
dependentes de tais gêneros, limitando o acesso e escolha dos mantimentos a serem
consumidos (HOLANDA, 1994, p. 55-59). É importante observar que a paisagem da colônia
Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 465-479, Jul. 2015
468

era algo novo ao olhar europeu e, portanto, era necessária a realização de todo um processo de
investigação e reconhecimento do que podia ser ingerido sem ameaças de danos à saúde.
É pertinente atentar para o fato de que, no século XVI, as viagens empreendidas em
barcos à vela poderiam levar meses. A importação de qualquer tipo de gênero alimentício,
vindo da Europa ou de qualquer outro continente, se mostrava inviável, não somente por
conta da duração das viagens e do alto custo que tal empreendimento implicava, mas também
porque algumas técnicas de conservação, desenvolvidas nos países ibéricos, não previam a
exposição dos alimentos a altas umidades e, principalmente, a considerável quantidade de
insetos, fungos e mofos endêmicos do Novo Mundo (GUERREIRO, 1999, p. 149-157). No
caso da introdução de animais domésticos vindos da Europa, em especial galinhas, porcos e
gado, apesar da adaptação destes ter se mostrado, a médio prazo, bem-sucedida (CROSBY,
2011, p. 197), não podemos ignorar que as técnicas de criação e, destacadamente, o preparo
da carne destes animais, tiveram de ser revistas (CONCEIÇÃO, SANTOS; BRACHT, 2013,
p. 147-149), como bem nos mostra André Thevet:

Quanto ao javali, este é bem mais difícil de ser capturado. O javali europeu é um
pouco diferente do americano. Este, além de ser feroz e perigoso, possui presas mais
compridas e salientes. É inteiramente negro e não tem cauda. Nas costas, possui um
tubo respiratório, do mesmo tamanho que o marsuíno, o qual lhe permite respirar
dentro d’água. Pode-se escutar ao longe o formidável guincho que ele emite e o som
produzido pelo bater de seus dentes quando o animal está comendo ou fazendo
qualquer outra coisa. De certa feita pudemos ver um exemplar capturado pelos
selvagens. Apesar de estar fortemente amarrado pelos indígenas, o bicho conseguiu
escapar ali sob nossas próprias vistas (1978, p. 161).

As populações coloniais dos primeiros decênios da América portuguesa eram, em boa


parte, dependentes dos recursos alimentares existentes naquela nova colônia. O clima,
considerado irregular pelo europeu, não se mostrou muito adequado às técnicas europeias de
lavoura, primeiro por serem regradas pela definição e ritmo das quatro estações na Europa e,
segundo, por não existirem, em um primeiro momento na América portuguesa, espécies as
quais estavam secularmente habituados. A esse respeito, Alfred Crosby, Charles Mann e Ian
Morris afirmam que os ameríndios, por serem agricultores, possuíam espécies cultivadas,
plantas que eram produtivas e nutritivas, cujo valor os europeus prontamente reconheceram,
passando eles próprios a cultivá-las (2011, p. 182; 2007, p. 341; 2013, p. 465-469).
Devemos considerar que populações humanas, ao se estabelecem em novos territórios,
não se ajustam a eles com facilidade, geralmente procuram recriar o ambiente de sua pátria. O
próprio transporte, aclimatação e introdução de plantas e animais para as novas regiões
habitadas faz parte desta tentativa de reconstruir o universo ao qual se estava familiarizado
(FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2009, p. 17-18). As novas áreas a serem ocupadas, por vezes,

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 465-479, Jul. 2015


469

necessitam de ciclos solares, regimes sazonais ou temperatura média semelhantes à sua terra
de origem, pois nem sempre animais e plantas reagem adequadamente a ambientes distintos
daqueles onde se desenvolveram (DIAMOND, 2011, p. 185).
De fato, é coerente dizer que os portugueses tiveram de mudar, em boa parte, o seu
esquema alimentar. Uma das culturas eleitas nessa mudança foi a mandioca (Manihot spp.),
que passou a constituir a base de sua alimentação, mostrando-se fundamental para a
manutenção da vida nos trópicos (SILVA, 2005, p. 79-92). Por intermédio dos relatos de
cronistas e viajantes, que estiveram na colônia nesse período, é possível detectar essa
transformação na alimentação trivial dos colonizadores, como no caso de Gabriel Soares de
Sousa que revela a falta de trigo para a confecção de pães – alimento imprescindível nas
refeições portuguesas –, mas que esses eram feitos com mandioca e que eram até mais
saborosos e de melhor digestão que os feitos com farinha do Reino (SOUSA, 1971, p. 180). É
evidente que os colonizadores portugueses não abriram mão de suas receitais tradicionais.
Porém, reinventaram-nas com novos ingredientes. O que contradiz a percepção de que esses
homens abriram mão de suas tradições alimentares pela falta dos seus ingredientes de costume
(TEMPASS, 2008, p. 2).
Porém, esses novos ingredientes muitas vezes não agradavam o paladar europeu,
tornando-se difíceis de ingerir. O consumo de ratos, cobras, lagartos e rãs se mostrou, por
vezes, em algo mais que uma opção (HUE, 2008, p. 9), frente à corrente escassez de víveres
que assolavam a vida desses homens, resultando em sérios períodos de fome. Como nos
mostra Hans Staden, em 1557, “[...] ficamos ali dois anos, no meio de grandes perigos e
sofrendo fome [...]” (1900, p. 33). Uma evidencia de que a alimentação, para além de ser um
ato cotidiano, também poderia ser um problema diário, fato que revela boa parte dos
problemas gerados em torno da alimentação.

Confeitar os frutos para conservar os corpos: estratégias e táticas para atender


demandas nutricionais.

A fome pode ser analisada como um dos únicos fatores que podem influenciar na
escolha de alimentos que não correspondem ao sistema alimentar de uma sociedade
(PANEGASSI, 2009, p. 397). Assim, o consumo de conservas de frutos, por exemplo, pode
ser encarado como uma questão de necessidade à sobrevivência destes na América
quinhentista se considerarmos a maneira como seus elementos fundamentais, frutos e açúcar,
eram consumidos na Europa.
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É difícil, e até mesmo ingênuo, afirmar com propriedade que a alimentação no


continente Europeu se manifestava de maneira igualitária em todos os países, recusando as
preferências e disponibilidade de gêneros alimentícios particulares de cada um. Mas, é
possível afirmar que, no século XVI, em todas as nações europeias a alimentação ainda estava
indissociável da dietética, ou seja, baseada nas perspectivas de Hipócrates e Galeno acerca
dos humores existentes no corpo. Sendo eles o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis
negra, onde cada um desses humores correspondia a uma natureza material (ar, terra, fogo e
água) com qualidades particulares (seca, fria, quente e úmida) (TEMPASS, 2010, p. 51
MAZZINI, 1998; EDLER, 2006). Até a primeira metade do século XVI, a ordem prescrita
pelos médicos era a de que os alimentos a serem consumidos deveriam corresponder à
natureza do indivíduo. Após 1550, ocorre um processo de relaxamento por parte dos
comensais em relação a essas recomendações médicas, evidenciando, assim, que o objetivo
não era mais somente o de nutrir-se, mas também o de satisfazer o apetite. De fato, durante
boa parte da era Moderna, era difícil distinguir o alimento das mezinhas e boticas
(ALGRANTI, 2012, p. 16-17; CARNEIRO, 1994; FLANDRIN, 1998, p. 667-688).
Como exemplo de tal comportamento temos o consumo de frutas que, até então,
mantinham ressalvas por parte dos dietistas, devido suas características naturais (FLANDRIN,
1998, p. 670). Dessa forma, as frutas antecipavam a refeição principal, como uma espécie de
prato de entrada. Essa regra começou a ser transgredida, pois as frutas passaram a ocupar os
finais das refeições, mostrando sinais de que se enquadrariam nas chamadas sobremesas. Foi
nesse período que algumas mudanças transformaram a concepção acerca do sabor açucarado,
ligadas ao aumento progressivo do consumo do açúcar. Desde a Idade Média o açúcar era um
artigo de botica, raro e caro, destinado a corrigir os humores dos enfermos e considerado
nocivo aos que estavam com os humores em equilíbrio e gozavam de boa saúde (LEMPS,
1998, p. 612). De mezinha, o açúcar começou a ganhar espaço como alimento e, passou a
integrar as mesas das elites sociais. Assim, o gosto açucarado mostrou certa
incompatibilidade com os demais sabores, passando a figurar ao lado das frutas, no último
serviço como sobremesas.
Como herança de tempos passados, ainda no século XVI as frutas então não se
enquadravam como gêneros fundamentais, não fazendo parte da base alimentar dos
portugueses na Europa. Assim, seu consumo era indicado na forma de compotas ou
conservas, que tinham caráter medicinal devido às propriedades terapêuticas do açúcar. Essas
conservas eram consideradas verdadeiras iguarias, pois devido ao alto custo do açúcar,
correspondiam às mesas importantes da época. No decorrer do século XVI surgiram obras
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especializadas para a confecção desses doces, ou melhor, boticas, chamadas de compilações


de “segredo”, pois havia um grande distanciamento entre o ato de cozinhar e o de preparar
doces medicinais, onde o primeiro era tarefa de serviçais enquanto o segundo era algo
especial, ato nobre a ser realizado pelas esposas e mães que deveriam zelar pela saúde da
família (HYMMAN, 1998, p. 629).
Considerando as características alimentares dos portugueses na sua terra de origem,
certa incongruência é levantada em relação ao consumo das conservas de frutos na Europa e
na América tropical. Segundo Câmara Cascudo (CASCUDO, 2011, p. 241), na colônia os
doces não eram considerados alimentos e sim gulodices ou simplesmente auxiliadores da
digestão. Ideia confrontada pelas descrições dos colonizadores acerca de sua alimentação no
território, nas quais as conservas de frutos aparecem com frequência, figurando sempre ao
lado de gêneros considerados essenciais para sua subsistência, como a já citada mandioca, as
farinhas e os peixes moqueados, o que nos leva a entendê-las como itens fundamentais de
suas refeições diárias.
Boa parte das descrições dos frutos é acompanhada pelo apontamento de seus usos no
preparo de conservas, como podemos perceber através do depoimento de Soares de Sousa,
que diz “[...] os cajus silvestres travam junto do olho que se lhes bota fora, mas os que se
criam nas roças e nos quintais comem-se todos sem terem que lançar for a por não travarem.
Fazem-se estes cajus de conserva, que é muito suave […]” (SOUSA, 1971, p. 166).
Da mesma maneira como os víveres já apontados, os frutos aparecem como elementos
indispensáveis na alimentação dos colonizadores, pois compunham a limitada variedade de
alimentos disponíveis ricos em frutose no território tropical. Considerando que a maioria dos
frutos nativos eram novos aos olhos europeus e, por não fazerem parte, com frequência, do
universo alimentar português, muitas vezes, em um primeiro momento, não agradavam pelo
sabor. Esse é o caso do maracujá, fruta que “[…] enquanto não é bem madura, é muito azeda
[…]” (SOUSA, 1971, p. 178).
Como a maioria desses homens se fixava perto dos engenhos, havia uma oferta
considerável de açúcar de sacarose. A disponibilidade tanto de frutos quanto de açúcar
favoreceu uma união entre esses dois ingredientes. Curioso notarmos que se os frutos e o
açúcar não eram triviais na alimentação dos portugueses na metrópole, o mesmo, muito
provavelmente, não aconteceu na colônia. A diferença está na procedência do sabor doce,
visto que, na metrópole as suas receitas eram feitas com mel (VILHENA, 2000, p. 632).
Assim, é possível destacar a predileção dessa população por alimentos doces, fato que pode
ser evidenciado através de antigos tratados de culinária, onde as receitas doces aparecem com
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mais frequência em relação aos pratos salgados (ALGRANTI, 2005, p. 36). E essa pode ser
uma justificativa para a razão do preparo e consumo corriqueiro das conservas.
Alguns autores afirmam que consumo de doces na América portuguesa quinhentista
era, frequentemente, justificado pela ideia de que o gosto por esse tipo de alimento, unido aos
conhecimentos técnicos dos portugueses, foi adotado na nesta nova realidade como uma
tentativa de preservar seus saberes e suas tradições culinárias (ALGRANTI, 2005, p. 33-52).
Porém, tal afirmativa se confronta com o caráter distinto atribuído aos doces em ambos os
lugares, pois os doces, até aquele momento, eram confeitados, na maioria dos casos, com mel,
não nos esquecendo que para este era atribuído propriedades medicinais. Sidney Mintz
ressalta que foi somente na metade do século XVII, com o desenvolvimento das plantações de
cana-de-açúcar (Saccharum sp.) no Novo Mundo, que o açúcar começou a baixar de preço,
tornando-se mais acessível a outros segmentos da sociedade europeia e assim, deixando de
ser, gradativamente, um meio de ostentação, ou seja, um produto consumido apenas pela
nobreza. Associado a isso, o aumento da oferta de açúcar corroborou para a adoção deste
como conservante, adoçante e, por fim, alimento (2010, p. 121). Dessa forma, ainda no século
XVI, o açúcar e seus produtos derivados não tinham caráter exclusivo de alimento na Europa,
diferente do significado que, mais rapidamente, adquiriram na Colônia.
A disseminação do consumo do açúcar na colônia se dá, por um lado, graças a uma
importante cultura gastronômica e médica europeia. Afinal, a própria introdução do cultivo da
cana-de-açúcar na América Portuguesa, deixa claro o preciosismo que tal produto possuía no
século XVI. Por outro lado, devemos nos lembrar que a dependência da substância sacarose
não era algo muito difícil de se desenvolver. Deste modo, o relativo sucesso e prestígio que o
açúcar teve entre os primeiros colonizadores não se deu somente por conta de fatores
mercantis. O prazer do consumo, bem como as propriedades energéticas e conservantes do
mesmo, certamente contribuíram para um consumo considerável do mesmo no cotidiano da
colônia. A questão do gosto, deste modo, deve ser elencada como um fator relevante. O
realçar dos sabores, como no caso de frutos considerados insossos, ou mesmo a intenção de
atenuar propriedades, por vezes, consideradas desagradáveis como o amargor de alguns
frutos, gerava o que Sidney Mintz (2010, p. 123) chamou de sensações na boca, tornado
alguns frutos desconhecidos em alimentos mais agradáveis aos novos paladares.
Como já foi apontado, a disponibilidade dos alimentos estava submetida a algumas
variáveis. Deste modo, é provável que, em alguns momentos, os colonizadores tiveram de
consumir, por exemplo, frutos imaturos, ou seja, que estavam verdes. Gabriel Soares de Sousa
evidencia isso ao descrever as mangabas (Hancornia speciosa), dizendo que “[…] quando
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estas mangabas não estão bem maduras, travam na boca como as sorvas verdes em Portugal, e
quando estão inchadas são boas para conserva de açúcar, que é muito medicinal e gostosa
[…]” (1971, p. 170).
Nesses casos, o acréscimo de caldas se encaixa muito bem como uma alternativa em
transformar a ingestão (necessária) desses frutos verdes em algo mais prazeroso, visto os
“poderes” já ressaltados do açúcar. A questão da adoção de uma técnica que, além de permitir
o consumo de um alimento energético, também permitia a conservação deste em um
ambiente, por vezes, rico em microfauna e insetos, também se mostrava consideravelmente
oportuna. Pensemos na facilidade logística que os frutos conservados em calda de açúcar
podiam ter no dia a dia desses colonizadores, pois mergulhar frutos em caldas se mostrou uma
técnica de conservação muito eficaz e, tendo em vista que esses homens tinham uma rotina de
trabalho, por vezes, exaustiva, as conservas de frutos podiam ser estocadas e disponibilizadas
não somente na cozinha ou despensa daqueles que ficavam em suas casas, mas também nos
embornais e alforges dos que circulavam e trabalhavam nos carreadores, matas e plantações
da colônia (SILVA, 2005, p. 47).
Analisando as conservas pelas suas propriedades gustativas, é possível considerá-las
também enquanto uma fonte de prazer gastronômico. Além disso, como já comentado, as
conservas também se revelavam importantes fornecedoras das calorias e energia necessárias à
sobrevivência daqueles colonizadores que estavam expostos a uma rotina desgastante. Além
do mais, as conservas de frutos promoviam outros benefícios em relação à saúde, já que os
doces coloniais eram ricos em sacarose, substância esta que é rapidamente absorvida pelo
organismo e convertida em energia, sendo também uma fonte de bem-estar (MINTZ, 2010, p.
121). Esse bem-estar pode ser constatado nas descrições sobre as qualidades do ananás
(Ananas comosus), onde Soares de Sousa afirma que “[…] desta fruta se faz muita conserva,
aparada da casca, a qual é muito formosa e saborosa, e não tem a quentura e umidade de
quando se como em fresco […] (SOUSA, 1971, p. 181), revelando que os portugueses
mantiveram a percepção hipocrático-galênica acerca das qualidades dos alimentos,
confirmando-se em outras passagens do mesmo autor, como sobre a fruta guti (Licania
salzmannii), da qual “[…] faz-se desta fruta marmelada muito gostosa, a qual tem grande
virtude para estancar câmaras de sangue […]” (SOUSA, 1971, p. 173). Ou, ainda, Fernão
Cardim, que revela que pacoba assada com canela e açúcar “[…] é gostosa e sadia, maxime
para os enfermos de febres […]” (1980, p. 63).
Tendo em vista essas descrições, é possível afirmar que os portugueses mantinham, de
maneira muito clara, a percepção de que os alimentos possuíam uma relação íntima com as
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boticas e mezinhas. Curioso notarmos que tais princípios, por vezes, impeliam à adoção de
condutas quando do consumo dos frutos encontrados na colônia, sobretudo os frescos que, em
português coloquial, significava que eram frios. Tais cuidados alimentares se justificavam por
conta de que, dentro do princípio hipocrático-galênicos um consumo desregrado de alimentos
com determinadas qualidades poderia gerar um desequilíbrio humoral. No caso dos frutos
frescos estes poderiam estimular um excesso de fleuma, algo que, obviamente era
compreendido enquanto um processo de adoecimento.
A imersão destes em caldas de açúcar figurava enquanto uma saída para se manter o
equilíbrio dos humores no ambiente tropical, já que o açúcar era considerado enquanto um
alimento e mezinha repleto de propriedades terapêuticas. Para além dos princípios que
guiaram os colonizadores na América quinhentista no consumo frequente conservas de frutos,
é relevante notarmos que a ingestão destes alimentos calóricos foi fundamental na superação
de um percalço nutricional comum neste período, ou seja, a insuficiência calórica.
A contribuição das conservas, neste caso, se faz no sentido de que possibilitavam que
os frutos fossem ingeridos com mais praticidade e eficiência logística, sem contarmos que
muitos não são facilmente consumidos quando imaturos (verdes). Tais detalhes eram
consideravelmente importantes se levarmos em conta o fato de que tais homens se
encontravam em um ambiente onde o desperdício de alimentos era algo impensável, e que
todas as alternativas deveriam, de alguma maneira, ser aproveitadas. Desse modo, obtinha-se
as calorias e nutrientes indispensáveis à subsistência em um ambiente que ainda se aprendia a
explorar.
Fazendo-se valer dessas considerações, é inadequado pensar o consumo de doces no
Brasil colonial enquanto mera guloseima ou passatempo, como sugeriu o folclorista Luís da
Câmara Cascudo, em seu “História da alimentação no Brasil”. Longe de serem meras
distrações gastronômicas, os doces tinham, entre colonizadores, importantes propriedades
medicinais. Para além do paradigma que guiava o consumo de frutos em calda entre aqueles
homens, os frutos em calda também se mostravam enquanto uma importante fonte de caloria.
Desta forma, não podemos ignorar que a análise do consumo de frutos e doces pelos
colonizadores, na América portuguesa do século XVI, nos permite não somente o estudo de
hábitos alimentares, mas também as qualidades e possibilidades nutricionais destes.
Quando analisamos as descrições dos primeiros moradores da colônia portuguesa, é
possível verificar que o processo de obtenção de alimentos consistia em uma tarefa, por vezes,
complexa e que, não raramente, demandava grandes esforços, uma vez que as técnicas de
cultivo e espécies trazidas da Europa, nem sempre frutificaram no novo ambiente.
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Dessa forma, a união das frutas com o açúcar pode ser entendida também enquanto
uma estratégia para tornar as refeições mais prazerosas, tendo em vista as características
transformadoras do produto em relação ao sabor. Afinal, além da superação da fome aqueles
homens também buscavam, sempre que possível, manter suas tradições alimentares,
procurando relacionar os novos ingredientes aos sabores pátrios. As conservas, deste modo, se
enquadram nessa perspectiva de manutenção dos costumes, pois eram os doces, alimentos que
figuravam com certa predileção entre os portugueses. Entretanto, muito mais do que uma
questão de prazer demandada por uma melancolia gustativa, os doces podem ser identificados
enquanto gêneros de primeira necessidade, pois correspondiam à, por vezes restrita, gama de
opções alimentícias que poderiam fornecer as calorias necessárias para que o processo de
colonização dessa continuidade.

Conclusão

O processo de colonização da América portuguesa, quando analisado através dos


relatos e descrições das fontes de alimento encontradas na colônia, nos permite observar as
dificuldades com as quais os colonizadores se depararam, principalmente no que se refere à
obtenção de fontes de calorias, oriundas de domínios morfo-climáticos ao qual os
colonizadores ainda estavam pouco habituados. A mata fechada, bem como o clima quente e
úmido típicos da Mata Atlântica tiveram sua contribuição nas escolhas que os primeiros
colonizadores fizeram quando fundaram seus primeiros arraiais, vilas e cidades. Associado a
isto a questão da demanda por fontes de alimento também corroborou para que, naqueles
primeiros decênios de colonização, o litoral fosse a principal região eleita para
estabelecimentos coloniais.
Sendo assim, a busca por alimentos figurava enquanto uma das principais
preocupações cotidianas destes colonizadores, pois, além de, em um primeiro momento, não
terem conhecimento do que poderia ser ingerido com segurança, já que esse saber foi
adquirido aos poucos, através de todo um trabalho de reconhecimento da fauna e da flora
tropical, esses homens não estavam habituados aos sabores do Novo Mundo. Nesse sentido, o
fato de terem se alojado, primordialmente em áreas próximas ao litoral, proporcionou-lhes,
por exemplo, o acesso, relativamente fácil, ao principal produto da colônia, o açúcar.
Como já afirmamos, apesar do açúcar não figurar no sistema de alimentação trivial dos
portugueses em seu continente de origem, a doçaria portuguesa já era muito desenvolvida
naquele momento, sendo as receitas de doces feitas com mel as que contribuíram para o sabor
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doce se tornar muito estimado entre a população lusa. É importante ressaltar que os frutos
também não correspondiam, até então, à alimentação básica dos portugueses, devido às
ressalvas existentes nas prescrições médicas dominantes na Europa. Porém, os frutos
compunham o limitado elenco de opções de alimentos na colônia quinhentista, fato que leva à
análise da adição de caldas de açúcar aos frutos como uma tentativa de tornar os frutos em
alimentos próprios para consumo, proporcionado às qualidades medicinais do produto.
Outras justificativas podem colaborar para o entendimento dos motivos que
impulsionaram o consumo das conservas de frutos, podendo ser também uma tentativa de
tornar os sabores desconhecidos em algo mais prazeroso de se comer, bem como uma maneira
de se conservar esses alimentos, bem como aproximá-los de sabores já conhecidos. Existem
várias possibilidades relativas à razão da confecção destas conservas de frutos, entretanto, um
dos fatores mais importantes reside no fato de que o seu consumo foi fundamental para a
sobrevivência dos colonizadores na América portuguesa quinhentista, visto que a rotina
desgastante daqueles homens exigia o consumo considerável de fontes calóricas disponíveis
na colônia.

Recebido em: 22.04.2015. Aprovado em: 10.06.2015.

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A “esposa ideal”: dos cuidados com o corpo à maternidade

Andrea Cristina Marques1

Resumo: A revista “O cruzeiro” foi um dos periódicos que no século XX construiu padrões de comportamento
através de suas colunas femininas e seus conselhos, afirmando o modelo tradicional de mulher. Sendo uma
revista de grande expressão nacional durante anos, “O cruzeiro” colocava em suas colunas, por exemplo, o que
as mulheres deveriam fazer para cuidar de sua aparência, para seus namorados, noivos e, principalmente, para
que seus maridos lhes dessem a devida atenção dentro do lar. A beleza ou o embelezamento seria uma maneira
da mulher mostrar ao seu homem que o amava, já que estava se cuidando para ele, como dizia a coluna
“Elegância e beleza”. Mas, não só de beleza viviam as mulheres dentro de seus lares, pois também deveriam se
tornar mães, demonstrando que a felicidade no lar estava completa somente com a chegada da maternidade em
suas vidas, o que era reforçado pela coluna “Da mulher para a mulher”.
Palavras-chave: “O cruzeiro”, Colunas femininas, Mulheres.

Abstract: The magazine "Cruise" was one of the journals in the twentieth century constructed patterns of
behavior by their female speakers and their advice, saying the traditional model of woman. Being a magazine of
great national expression for years, "Cruise" put in his columns, for example, that women should do to take care
of their appearance, for their boyfriends, boyfriends and particularly their husbands to give them the due
attention in the home. The beauty or embellishment would be one way a woman show her man that she loved
him, because he was caring for, as he said the "beauty and elegance" column. But not only the beauty of the
women lived in their homes, because they should also become mothers, demonstrating that happiness in the
home was complete with the arrival of motherhood in their lives, which was reinforced by the column "From
woman to woman ".
Key-words: "The Cruise", Female speakers, Woman.

Introdução

As revistas há bastante tempo vem produzindo colunas dedicadas ao público feminino,


sendo responsáveis por construir padrões de comportamentos para as mulheres. Uma delas foi
a revista “O cruzeiro”2 que em suas colunas femininas as aconselhava a seguir o modelo
tradicional feminino, através de seus/suas jornalistas, homens e mulheres que trabalhavam na
construção da revista.
Temos que considerar algumas questões acerca da produção da revista “O cruzeiro”
que nos dão uma ideia de como acontecia sua fabricação na busca por um grande número de
1
Mestre em História/UFCG.
2
A revista “O cruzeiro” circulou por todo o Brasil a partir do ano de 1928 e tinha algumas colunas femininas
como “Da mulher para a mulher”, uma espécie de consultório sentimental; “Elegância e beleza”, que dava dicas
para que as mulheres se tornassem mais atraentes e “Lar doce lar”, que indicava as melhores receitas e maneiras
de resolver os problemas domésticos.

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leitores/leitoras, na tentativa de aumentar consequentemente seu número de vendas. Nesse


aspecto é que a historiadora Luciana Rosar Fornazari (2001), mostra estratégias para agradar
ao público consumidor onde, por exemplo, os temas ditos masculinos ficavam no primeiro
bloco da revista e a parte dedicada às mulheres ou às “questões femininas” ficavam num
segundo bloco, no final da revista, pois para o editor-chefe, Accioly Netto, as mulheres leriam
as revistas de trás para a frente. Essa e outras questões apontadas por Fornazari mostram
como se davam as relações de gênero no dia a dia dos jornalistas de “O cruzeiro”, como o fato
de Accioly Neto ter desqualificado a participação da diretora e presidente da revista Amélia
Whitaker, no período em que foi responsável pela coluna feminina “Da mulher para mulher”,
sob o pseudônimo de Maria Teresa3, considerando seus conselhos muito moralistas não
teriam sido bem aceitos pelas leitoras, o que fez com que Accioly Neto tomasse a frente da
coluna e usasse esse mesmo pseudônimo, que teria passado por outras várias personalidades
que constituíam a revista(FORNAZARI, 2001, p. 119)
Com “O cruzeiro”, houve uma revoluçãona maneira de fazer revista no país, onde
metade de suas páginas eram sobre assuntos relativos ao imaginário feminino. Nessa revista,
que circulou durante 46 anos pelo Brasil, haviam os discursos voltados para os cuidados com
o lar, os filhos e o esposo. Nesse artigo, por exemplo, trataremos dos conselhos sobre a
questão da beleza feminina, por meio da coluna “Elegância e beleza” e também acerca da
construção da maternidade, tema tratado na coluna “Da mulher para a mulher”. Colunas
femininas que produziram a imagem da “mulher moderna”. Pois, a revista enquanto veículo
de comunicação, chegou com o propósito de provocar mudanças, a exemplo de sua arte
gráfica que adotou técnicas pouco conhecidas no país, especialmente a rotogravura, processo
de baixo relevo, e no jornalismo implementou a reportagem.
Segundo Serpa (2003), a revista “O cruzeiro” usou toda essa técnica a serviço da
construção da “nova mulher”, pois mostrava imagens relacionadas às mudanças de um país,

[...] que despia suas mulheres das saias longas e as urbanizava com biquínis, blush e
pó-de-arroz, ou seja, que buscava moldar o comportamento feminino com novas
formas de vestir e de se mostrar para a sociedade. Essa imagem que incluía a
utilização da maquiagem e de produtos femininos de beleza como símbolo de
moderno e novo ilustravam as capas desde a primeira edição. Apresentava-se, então,
não apenas a primeira revista moderna do país, mas um novo meio de retratar o
universo feminino (SERPA, 2003, p. 12).

3
Logo, quando colocarmos informações acerca da revista “O cruzeiro” ou discursosde seus/suas articulistas,
estaremos considerando essas estratégias dos próprios articuladores da revista em criar pseudônimos para
conquistar cada vez mais o público leitor.
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Porém, Serpa também coloca que embora a revista se afirmasse como “moderna” e
construtora da “nova mulher”, não mostrou sequer a posição feminina acerca do voto, nos
anos 30, que gerou polêmicas, no período, deixando transparecer seu posicionamento, quanto
ao papel das mulheres, pelo qual elas seriam incapazes de lidar com questões políticas,
devendo se dedicar somente à maternidade; aos cuidados da casa, do esposo e do
embelezamento, pois não haveria como conciliar tantas coisas com a política. A revista “O
cruzeiro” teria dessa forma, discursos ambíguos, quando se tratava das representações que
faziam acerca do feminino, que ora deveria seguir a modernidade, ora seguir a tradição em
seus comportamentos. E sua ambiguidade discursiva irá perpassar toda trajetória de
exemplares produzidos, ao longo do século XX.
A ambiguidade é percebida quando vemos que as falas das articulistas tinham como
objetivo aconselhar ou prescrever para as mulheres o desenvolvimento dos chamados “dotes
ou dons femininos”, entendidos enquanto algo natural, inerente a elas. Geralmente, essas
colunas enfatizavam para suas leitoras atributos como o de ser mãe, esposa, dona-de-casa,
definindo-as por características como a pureza, doçura, resignação, tudo isso somado a uma
vida mais reservada ao privado, a casa e ao lar. Essas identidades construídas seriam ideal
socialmente para as mulheres. Por outro lado, para os homens, atribuía-se o espírito
aventureiro, o trabalho fora de casa, a vida pública e todos as características que lhe seguiam,
como a boemia, as farras, os namoros e as relações fora do casamento.
Assim, a partir dos conselhos e ensinamentos acerca das maneiras de mulheres e
homens se comportarem diante de suas relações, configuravam-se construções sociais e
culturais das relações de gênero. Tais discursos, enfatizando os valores morais e os bons
costumes para as moças fizeram parte de uma rede de enunciados que tinham a intenção de
orientar as condutas femininas, construindo modelos, dentre os quais o de que para as moças
era necessário “[...] o casamento feliz coroado pela maternidade e um lar impecável”
(BASSANEZI, 2012, p. 481).

A coluna “Elegância e beleza” e os conselhos para embelezar as mulheres

Na coluna “Elegância e beleza”, que falava sobre embelezamento feminino, é


perceptível a continuidade do discurso tradicional, quando tratavam de dar conselhos voltados
para o casamento, sua ideia principal. Embora que na coluna sobre beleza fossem mais
ressaltados os cuidados das mulheres com seu corpo e saúde, encontrava-se a ideia de que as
mulheres em geral tinham que estar belas e com saúde para seus namorados, noivos, maridos,
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afinal era para eles que elas tinham que se embelezar e não por qualquer outro motivo.
Segundo a articulista da coluna sobre beleza feminina, as mulheres casadas deveriam lembrar
que já tinham conquistado seus esposos e, portanto, deveriam saber como mantê-los presos.
O marido enquanto homem mais importante de sua vida era em quem a esposa deveria
primeiramente pensar, mas as outras mulheres, ou seja, solteiras, com namorado ou noivas
tinham que também pensar nos seus pares, pois eles seriam os “homens de suas vidas”4.
Os cuidados para atrair a atenção masculina eram muitos, e, nesse sentido, as colunas
sobre beleza eram praticamente um guia para as mulheres seguirem, mantendo o tratamento
das várias partes do seu corpo, como a pele, os olhos, o nariz, a boca, as mãos, os pés. Todas
essas partes do corpo feminino deveriam estar em conformidade com o todo, tendo sempre
equilíbrio entre elas. E para tanto tinha também as dicas sobre dietas para manter a saúde e a
beleza, dicas para uma melhor maneira de se vestir, andar, falar e noções de comportamento
em geral.
Elza Marzullo, na revista “O cruzeiro”, deu muitas dicas e conselhos sobre elegância e
beleza, na sua coluna já citada, entre os anos 50 e 60. Ela, enquanto articulista dessa seção,
mostrava sempre estar a par das novidades referentes às questões médicas e científicas
relacionadas à saúde e à beleza feminina. Isso porque percebemos em praticamente todas as
suas dicas que o público feminino se baseia num saber especializado da época. Vejamos o que
ela disse acerca da questão que fala sobre peso e altura, em “equilíbrio estético”:

Cada um de nós é um todo formado de partes que deve guardar entre si


determinadas proporções, para que o conjunto seja agradável. Beleza é proporção, é
harmonia, e se existe um desequilíbrio entre altura e peso, tudo deve ser tentado para
conseguir o equilíbrio estético que é a primeira garantia da graça feminina. (...)
guiando-se pelo quadro fornecido, bastará tomar como regra o seguinte; para 1,62m
de altura, peso de 57 quilos; 1,60m, peso 56 quilos; 1,58m, peso 54 quilos; 1,56m,
peso 53 quilos; 1,54m, peso 52 quilos. Com essa espécie de tabela lhe será fácil
verificar as suas deficiências ou excesso de peso, e procurar o melhor meio para a
correção do excesso ou da deficiência (...) (Revista O cruzeiro, 19/12/1953, p. 101).

Manter a boa aparência era essencial para as mulheres em geral, por isso Marzullo
enfatiza que a estatura feminina deveria estar de acordo com seu peso. Uma mulher
desproporcional seriauma mulher que não se cuidava, pois quanto à altura não podia fazer
nada,diferentemente do item referente ao peso. Poderia emagrecer, para que seu corpo ficasse

4
Nas colunas que tratavam de dar dicas sobre como cuidar da beleza feminina, percebemos o quanto a mulher
casada era culpabilizada se por acaso seu esposo arranjasse outra mulher fora de casa. As articulistas colocavam
praticamente justificando pelo temperamento masculino e o provável “desleixo” feminino com a aparência a
responsabilidade do homem ter procurado uma relação extra conjugal, era como se o descuido da mulher, quanto
a sua aparência, levasse o homem a trair a esposa. BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In:
PRIORE, Mary. Histórias das mulheres no Brasil. 9ed. São Paulo: São Paulo: Contexto, 2010.

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na medida certa. Baseada nos conhecimentos científicos, a articulista sabia a relação e a altura
e peso, para poder indicar com exatidão o peso e a altura, das mulheres ideias. Caso fosse uma
mulher desleixada, que não se cuidasse, não arranjaria marido, por sua própria culpa.
Muitos conselhos que apareciam nas colunas femininas dedicavam-se aos cuidados
com os cabelos. Parece que essa área do corpo feminino sempre causou preocupação entre
elas. Existia a preocupação se os cabelos femininos estavam secos, quebradiços, opacos, com
caspa, enfim, todos os problemas que afligiam os cabelos femininos. E quando o cabelo se
mostrava com algum desses problemas entrava em cena os conselhos e dicas da articulista,
mostrando qual o melhor caminho a seguir para tê-los bonitos e sedutores. Esses cuidados
muitas vezes poderiam ser feitos na própria casa da mulher que necessitasse de cuidados
capilares. Os ingredientes eram na maioria das vezes, os caseiros, nos quais as mulheres
poderiam tirar da própria cozinha.5 Nesse sentido era que Elza Marzullo falava sobre os
“amigos e inimigos dos cabelos” dizendo que:

Quando o cabelo se mostra quebradiço, opaco, sêco, é o momento de proporcionar-


lhe substâncias graxas da mesma natureza das que o alimentam e formam a camada
protetora. Estas substâncias se encontram nos óleos vegetais especialmente
fabricados, de modo a serem facilmente absorvidas (Revista O cruzeiro, 13/07/1963,
p. 90).

Os cabelos eram realmente uma grande preocupação entre as mulheres, por isso quase
sempre nas colunas apareciam fórmulas e formas de cuidar dos cabelos. Assim como existiam
ingredientes caseiros e até estranhos para melhorar o estado deles, existiam as dicas básicas de
cuidados capilares como lavar com determinado tipo de água, quente ou fria, o uso de escovas
específicas para não aumentar a oleosidade do couro cabeludo, os cuidados com problemas
como a caspa, os cortes ideais para manter os cabelos saudáveis.
E esses cuidados tomavam por base sempre os conhecimentos especializados, mesmo
que a fórmula fosse a mais simples, como na luta contra a queda de cabelo. Problema que os
especialistas já tinham pesquisado e chegado a uma conclusão: “Mais um congresso em que
especialistas de vários países concluem que na luta contra a queda excessiva do cabelo, só
existe, de positivo, um remédio: a higiene” (MARZULLO, 1960, p. 105).
A higiene era um ponto bastante enfocado por Elza Marzullo, o banho diário também
era como uma maneira de cuidar da aparência, mas sem deixar de lado o saber científico. Pois
com o tema: “O valor do banho diário”, Marzullo mostrou que não passava a dica sem saber

5
E os ingredientes poderiam às vezes ser bastante estranhos, como “ovos de esturjão, da truta e até da formiga e
da borboleta”, que, segundo a articulista, surtia bons efeitos. MARZULLO. Elza. “Amigos e inimigos dos
cabelos III”, de 13 de julho de1963.
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quais os cuidados deveriam ser tomados para que o banho conseguisse ser visto como “um
banho de beleza”:

O banho diário tem o valor de um tratamento de beleza. Uma fricção diária com
água morna, um bom sabonete e uma boa escova, faz alguma coisa além de uma boa
limpeza. Ativa a circulação da pele, vitalizando-a e facilitando a eliminação de
toxinas, assim como ajuda a pele como órgão que é, regulador da temperatura.
Quando você está muito cansada, o banho restaura as energias e acalma a tensão
nervosa. [...] Se você lavar o rosto e passar um creme de beleza antes do banho, o
efeito será maior, porque a combinação do creme com o vapor da água de colônia
ajuda a expelir os cravos, dá mais suavidade e colorido ao seu rosto. (Revista O
cruzeiro, 19/12/1953, p. 101).

Com relação às roupas, também era comum acontecerem as dicas. Estar vestida com
sobriedade era o ideal para qualquer mulher. Muito mais para as mocinhas que tinham que
seguir todas as regras de comportamento, levando-se em consideração que seria de seu
interesse a conquista de um namorado, ela deveria sair de casa preparada com uma boa
aparência e vestida adequadamente para que as pessoas percebessem que tipo de mulher ela
era, decente, de boa família, o que mostrava pela sua roupa e por sua maquiagem, pó, batom,
rímel e base.
Para as moças consideradas de família, eram indicadas as cores mais discretas. Assim
conseguiam ser respeitadas por todos, como colocava Marzullo: “A encantadora e correta
aparência da mocinha que obtém seu primeiro emprego é de capital importância para
conquistar o respeito e a simpatia dos colegas e superiores” (Elza Marzullo, 1959, p.109).
Além da maquiagem com tons delicados e discretos, a roupa não poderia ser extravagante,
decotada, transparente, mas ao contrário: deveria estar sempre simples e discreta, sendo uma
maneira da moça ser considerada uma mulher “séria”, respeitável, sobretudose iria trabalhar.
Roupas provocantes poderiam deixá-la exposta demais, assim como as artistas de Hollywood,
chamando a atenção da forma como qualquer moça “séria” não poderia querer. Pois, para a
moça que se dizia “séria” não era bom chamar a atenção dessa maneira, mas sim através de
suas atitudes bem regradas e de um bom comportamento, que a levaria a ser enxergada em seu
local de trabalho como uma moça que sabia chamar a atenção da melhor forma possível,
através da discrição.
Havia também as dicas para evitar as varizes das pernas. As pernas bonitas e sem
varizes eram o sonho de toda mulher, principalmente a casada, que em geral já tinha passado
por uma gravidez, motivo pelo qual era comum se desenvolver esses problemas nas pernas
femininas. Embora essa afirmação tenha sido combatida por Elza Marzullo: “Não é verdade
que a maternidade deixa sempre algum sinal de sofrimento venoso nas pernas; se o organismo
é preparado a enfrentar a gestação, isso não se dá (Elza Marzullo, 1960, p. 97). A
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maternidade, defendida por Marzullo, já que entendida como um “dom natural” da mulher,
não poderia trazer consequências más para o corpo feminino, pois segundo a articulista, o
corpo da mulher seria próprio para a gestação, então por que esse momento da maternidade
traria algum malefício à mulher?
A defesa da maternidade estava em conformidade com as regras sociais da época,
onde se tornar mãe era observado como uma questão “divina”, o que se confirmava com a
biologia do corpo da mulher, seu útero, órgão que dava a ela a possibilidade de gerar a vida.
Sendo assim, para a mulher “[...] a maternidade seria a realização máxima da vida.”
(FERREIRA, 2006, p.50)
Os discursos indicados para as mulheres que vinham das colunas dando dicas de
beleza tinham a intenção não só de embelezá-las, mas também de prepará-las para serem
futuras e boas esposas, que sabendo como agradar seus esposos através dos cuidados com a
aparência, poderiam manter bem o matrimônio, não deixando sua relação com o marido cair
na tristeza de um lar desfeito.

Infeliz seria você, se não fosse mãe! A construção da maternidade na coluna “Da
mulher para mulher”

A maternidade foi mais um dos temas bastante frequentes nas colunas femininas de “O
cruzeiro”. Nelas, a condição de mãe foi construída com a identidade feminina que levava a
mulher ao seu mais alto grau de realização pessoal. Tornar-se mãe, aparecia nessas colunas,
simbolizando o auge da vida de uma mulher, auge que só alcançado com a vinda dos filhos, e
o exercício da maternidade.
Segundo Bassanezi (2012), havia uma expectativa muito grande sobre a chegada de
um filho nos lares até meados dos anos 60, porque a chegada dele confirmava o sucesso
daquele matrimônio. Esperava-se que apósa chegada do bebê, o casal se unisse ainda mais,
fortalecendo dessa maneira o matrimônio. A esposa estaria nesse sentido cumprindo “seu
destino natural”, gerando filhos, construindo uma família, fazendo sua obrigação, enquanto
esposa. A chamada “vocação natural” de cuidar dos filhos, ser carinhosa, zelosa e cuidadosa
com eles, era uma questão bastante enfatizada, nas colunas femininas, que reforçavam essa
construção de mulher-mãe ideal dizendo que as mulheres poderiam somente sentir a plenitude
na sua vida, tornando-se mães. Isso porque a construção da mulher-mãe fazia parte de toda
uma ideia de nação com ordem e progresso que as responsabilizava e encarregava-as da
formação moral das novas gerações, incutindo-lhes virtudes cívicas. Essa construção nos
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remete aos anos 20 e 30 do século XX, mas que se estende até boa parte do restante do século,
como as décadas de 50 e 60.
Porém, tentando desmistificar essa construção da mulher-mãe Badinter (1985),
historicizou o conceito de amor materno, mostrando como ocorreu essa construção, deixando
claro que tornar-se mãe não pode ser tomada como uma questão que está inscrita na natureza
feminina. A construção da mulher-mãe foi criada enquanto uma condição inerente à mulher,
porém a autora afirma que tal construção nada mais é do que um mito:

Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário,


constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura,
ambições e frustrações. Como, então, não chegar à conclusão, mesmo que ela pareça
cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e, como tal, essencialmente
contingente? Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostrar-
se forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende da mãe, de
sua história e da História. Não, não há uma lei universal nessa matéria, que escapa
ao determinismo natural. O amor materno não é inerente às mulheres. É adicional.
(BADINTER, 1985, p. 367)

Essa construção idealizada para o feminino que tornou a mulher mãe, criticado por
Badinter, foi mais uma das construções feitas pela coluna feminina da revista “O cruzeiro”.
Nela, os conselhos que foram dados às mulheres enfatizavam sempre que a boa esposa para
isso tinha que se tornar uma boa mãe também. E sendo uma boa mãe, a mulher alcançaria o
auge de sua vida, pois a maternidade era vista como uma vocação feminina e nada poderia
mudar esse destino biológico da mulher, por isso no momento em que ela tornava-se mãe,
tinha que deixar de lado muitas questões de sua vida, dedicando boa parte de seu tempo ao(s)
filho(s).
A seção “Da mulher para a mulher” da revista “O cruzeiro” nos anos 50 e 60 deu
muitos conselhos às mulheres casadas, com relação aos cuidados que uma boa mãe deveria ter
com seus filhos. O que era muito importante às mães saber no século XX, visto como “século
das crianças”, segundo Ferreira,que observou a partir das propagandas observadas nas
revistas, em especial “O cruzeiro”, quais seriam esses cuidados tidos pelas mães, dados por
meio das muitas informações médicas e pediátricas, e também das propagandas específicas
para as crianças, como a alimentação, cuidados com a higiene, saúde, enfim, cuidados que
demandavam que as mães estivessem atentas às necessidades dos seus filhos, mostrando-se
boas mães. Com a Puericultura, ciência que se dedica ao estudo com os cuidados com o ser
humano, principalmente na infância, construíram-se discursos para legitimar seu saber acerca
do cuidado com as crianças, embora seu discurso continue construindo a mulher a partir do
conhecimento acerca de seu corpo, como é o caso da relação útero/maternidade. O que trouxe,

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nesse período, uma demanda maior de aconselhamentos dedicados às mães, cobrando mais e
mais cuidados com os filhos.
Para que as mulheres, entendidas pelos discursos emitidos pelas colunas femininas,
como mães em potencial, recebessem bem os conselhos dados pela coluna feminina era
necessário que primeiramente compreendessem bem a grandeza de seu papel enquanto mãe. E
por isso a articulista Maria Teresa afirma, explicando sempre a maternidade, enquanto uma
questão intrínseca à mulher:

[...] A maternidade é uma função especificamente feminina; suas marcas se gravam


ao mesmo tempo no espírito e no físico da mulher. É na maternidade que a mulher
descobre suas reservas de espírito. É no processo de criação e de educação de um
filho que a mulher tem oportunidade de observar os prodígios de amor de que é
capaz. Enquanto outras tarefas podem fazê-la sentir sua fraqueza, a da maternidade
dá-lhe oportunidade de revelar-se a si mesma, ás vezes maior do que jamais poderia
supor. Na administração de uma casa e também na criação dos filhos, a mulher pode
empregar com resultados os mais belos recursos pessoais. (Revista O cruzeiro,
04/12/1954, p. 110).

Os conselhos relativos à maternidade dados pela revista “O cruzeiro” em sua coluna


“Da mulher para a mulher” que era lida por várias mulheres, mas especialmente pelas
mulheres casadas, mas como havia o consenso de que toda mulher, nesse caso, dos anos 50 e
60, seria mãe em potencial, esses conselhos serviam para as solteiras e também, já que elas,
seguindo esse consenso, iriam se casar e, consequentemente,ter filhos também. Aparecendo,
ainda, em alguns momentos da revista, alguns conselhos para as mulheres, mães desquitadas.
Podemos perceber através do discurso de Maria Teresa que o corpo da mulher, ao se
modificar com a maternidade, estaria mostrando sua “verdadeira natureza”, sua “essência” de
mãe. O corpo da mulher, corpo construído historicamente para ser o núcleo central da
maternidade, que teria o dom da procriação e que se modificaria conforme as mudanças
corporais maternas fossem acontecendo, justificava seu “único destino”, que era o de tornar-
se mãe.
Essa construção da mãe ideal, na perspectiva de Badinter, ganhou mais ênfase a partir
do discurso da psicologia de que a “verdadeira mãe” seria aquela que se adaptaria às
necessidades do filho com delicadeza e sensibilidade. O que mostra como outros saberes,
como a psicologia, foram atravessando o saber médico que construiu o corpo feminino a partir
do final do século XIX, o reelaborando e criando a identidade materna para as mulheres no
século XX. A religião, nesse sentido, seria mais um saber que atravessou a chamada “ciência
da mulher”, o saber sobre o corpo feminino, desconstruindo o saber médico e o refazendo a
partir de outros enfoques. Dessa maneira, num misto desses discursos, psicológico, religioso,
médico, encontramos a afirmação de que a “verdadeira mãe” teria a capacidade de aceitar o
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sofrimento, que seria compensado pelas “alegrias da maternidade”. O amor da mãe por seu
filho seria então muito maior do que por si mesma, o que foi entendido como sabedoria da
natureza, colocá-la como o “único ser capaz de dar a luz”. A dedicação da mãe a seu filho,
excluindo da sua vida qualquer outro interesse, mostraria a grande capacidade de doação de
uma “mãe devotada”.
Assim, entendido pelas mães qual era seu papel, o de ser uma “mãe devotada”, como a
psicologia afirmava, restava a elas saber desempenhá-lo. Saber “ser mãe”. E para se tornar
uma boa mãe, era preciso que a mulher soubesse tomar as atitudes devidas com relação aos
cuidados com os filhos. Um dos cuidados que aparecem na coluna feminina da revista “O
cruzeiro” era a orientação que a mãe deveria dar a sua filha, quando mocinha, para que ela
não trilhasse um mal caminho por falta de conselhos maternos. Uma boa mãe tinha que estar
sempre atenta às necessidades de seus filhos, porque fazia parte do “cardápio de suas
obrigações maternas”. E existia uma grande preocupação e cuidados com a relação que
deveria existir entre mães e filhas:

[...] pouco se diz da mãe que orienta mal a filha. Quando os pais são bem casados, a
filha em geral encontra ambiente adequado para que sua adolescência desabroche
num clima apropriado. Mas quando o pai e a mãe vivem brigando, será obrigação de
um ou de outro (de preferência da mãe que tem mais convivência com a filha)
compensar com uma assistência mais assídua e mais acurada os inconvenientes que
aquêle estado de desentendimento entre os pais proporciona à formação da filha.
Infelizmente, porém, há muita mãe que, longe de se fazer amiga da filha, torna-se-
lhe quase um algoz (...) (BADINTER, 1985, p. 307).

Os aconselhamentos das mães para com as filhas era uma constante da coluna de
Maria Teresa. E ela deixava claro que muitas mães não estavam desempenhando suas
obrigações com as filhas, o que poderia resultar num namoro, noivado ou casamentos
desastrosos, pois sem os bons conselhos de uma mãe, a filha poderia ficar meio perdida. Por
isso a mãe estar presente era imprescindível para que a filha conseguisse discernir o certo e o
errado. Sem deixar que as brigas e discussões acontecidas entre marido e mulher
atrapalhassem os momentos que mãe e filha deveriam vivenciar juntas.
Algumas mães, segundo as colunas femininas, deixavam a filha solta demais, sem
lhes dar os devidos conselhos sobre a vida. Enquanto outras poderiam ser zelosas demais e
assim sufocar os filhos e filhas. Equilíbrio era necessário nessa relação entre mães e filhas
para que a filha não fizesse escolhas erradas. Assim como as mães deveriam ter tempo para
aconselhar suas filhas, também deveriam saber que ter filhos era uma dádiva, um
complemento de sua felicidade conjugal.

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Portanto, para as mulheres casadas, segundo o que era colocado pela articulista da
coluna feminina “Da mulher para a mulher”, por estarem completas e felizes, pela família que
tinham, com esposo e filhos, não era permitido nenhuma reclamação, e se elas reclamassem,
estariam tentando ir contra a natureza feminina, questão que trazia muitos problemas no lar. O
casamento, como era colocado pelas articulistas, somente, estaria completo, se tivesse além de
um esposo feliz, bem cuidado por sua esposa, também os filhos. A ausência da felicidade na
vida dos membros da família apontaria para um matrimônio incompleto. Nesse sentido, é que
Maria Teresa, ao receber em sua seção de cartas a reclamação de uma leitora alega que:

Uma mulher que se eleja ao auge se considerar infeliz possuindo filhos, um lar que
ela mesma diz não haver motivos para reclamações, uma mulher que chega ao
cumulo de maldizer as panelas e as fraldinhas dos inocentes de sua própria carne,
não deveria ter nascido mulher. (Revista O cruzeiro, 20/07/ 1963, p. 80).

A mulher, enquanto mãe, não podia fazer reclamação de sua vida doméstica e,
principalmente, não reclamar dos filhos. Esses significavam a plenitude feminina, pois tornar-
se mãe era o símbolo maior da realização da mulher, e sua justificativa ia muitas vezes além
da questão biológica, indo também para a questão religiosa, o que dava uma força maior a
construção que afirmava, e ainda afirma que a função principal da mulher era procriar, e sem
isso não haveria sentido sua existência.
Sendo assim, reclamar de sua “natureza” era ir contra os “desígnios naturais” de seu
corpo e dos ensinamentos religiosos. E para que não acontecesse esse tipo de coisa a
articulista Maria Teresa argumenta através da religião o papel tradicionalde que as mulheres
deveriam cumprir sem reclamar. Pois reclamar era mesmo que renegar a obra divina que tinha
lhe dado o dom de poder gerar filhos. Sendo radical: “(...) Infeliz seria você, se lhe fosse
negada a virtude de ser mãe. (...)” (Maria Teresa, 1963, p. 104).
A crítica de Maria Teresa com relação a algum tipo de reclamação feita por uma
leitora nos mostra o quanto o modelo feminino materno tinha força nos anos 60. A
representação da mulher-mãe e da família ideal, segundo Bassanezi, permanecia forte, tendo o
pai a responsabilidade por trazer para casa o sustento, enquanto que a mãe sabia que
“pertencia aos filhos” e ao lar e dessa maneira não tinha o direito de escolha ou de transferir
suas obrigações para uma empregada doméstica, babá, alguém que tomasse conta dos afazeres
domésticos6. Para não ser observada como uma mulher irresponsável e sem amor pelos filhos,

6
Embora existissem mulheres que, na segunda metade do século XX, já utilizassem as “facilidades da vida
moderna”, como a água encanada, fogão à gás (embora o fogão à lenha continuasse muito popular), e aparelhos
elétricos como o ferro de passar e a geladeira (que fez desaparecer nas ruas os carregadores de gelo). Donas de
casa com mais recursos podiam contar também com aspirador de pó, batedeira, enceradeira, e, tempos mais
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a única alternativa que tinha era ela mesma realizar todas essas tarefas geralmente designadas
para as mulheres, principalmente no que se referia ao cuidado com os filhos. Fazendo sua
parte a esposa, dona de casa e mãe, estaria seguindo seu destino, sendo a mulher ideal.
Para as mães desquitadas além da preocupação natural com os filhos, havia outros
tipos, pois pelo fato dela estar separada além de ser vista como “uma mulher qualquer”, ficava
com ela toda a responsabilidade com relação aos filhos. Resultava desse conflito uma gama de
sentimentos que pesavam juntamente com as outras tantas atribuições femininas. Exemplo
disso é que a leitora Maria de Lurdes, demonstrando muito receio acerca da criação e
educação dos filhos, estando desquitada, desabafa: “Tento ser para eles pai e mãe. Mas é uma
tarefa quase impossível e tenho medo do fracasso. Como conseguir que mais tarde eles
tenham um lar feliz, firme, se o lar deles é tão falho?” (Maria Teresa, 1963, p. 90).
As mulheres desquitadas, durante os anos 50 e boa parte dos anos 60, segundo
Bassanezi, sofriam muito preconceito, eram desrespeitadas, sendo vistas pela sociedade como
mulheres que influenciariam mal outras mulheres. As mulheres que estivessem separadas de
seus esposos não deveriam ter outros relacionamentos; eles tinham que ser evitados para que
elas não perdessem a guarda de seus filhos. Por isso, o controle social recaía com bastante
força sobre as mulheres, enquanto que para os homens desquitados isso seria completamente
diferente, pelo fato de quenão era imoral ter outra mulher após se separar de sua primeira
esposa.
Gomes (2012), em sua pesquisa acerca do desquite ou separação nos anos 1960 e 70,
verificou que as mulheres que se desquitavam, durante a década de 60, eram muitas vezes
observadas como transgressoras, o que trazia consequências desagradáveis, tanto para elas
próprias como para seus filhos, pois elas seriam apontadas na rua como “a desquitada” e seus
filhos como “os filhos da desquitada” ou “os filhos (as) sem pai”. A historiadora percebeu que
havia um grande medo da decadência do modelo familiar dominante, que era o formado pela
mulher, esposo e filhos, onde a esposa deveria ser totalmente dedicada ao lar, aceitando a
todas as atitudes do seu marido, mesmo que fossem atitudes que não a fizessem feliz.
Gomes coloca também que nos artigos dos jornais pesquisados, as mulheres eram
alertadas a se manteremem seus lares, dando prioridade as suas vidas de esposas, mães e
donas de casa, aconselhamentos que enfatizavam a vida em família, acima de qualquer coisa.
Isso, porque as mulheres estavam cada vez mais “fugindo do lar” e em busca de trabalho para

tarde, máquina de lavar roupa. BASSANEZI, Carla. A era dos modelos rígidos. In: BASSANEZI, Carla;
PEDRO, Joana Maria (orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto. 2012.

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contribuir no sustento da família, ou simplesmente com o objetivo de acumular bens. Por isso,
os artigos deixavam claro que para conseguir uma vida conjugal e familiar, elas tinham
sempre de mostrar-se voltadas aos interesses do casamento e em nenhuma hipótese deveriam
se comportar de forma a reduzir suas oportunidades de ser uma boa esposa e cumprir sua
“sagrada missão de mãe”. Dessa maneira,apesar da crescente dessacralização do sexual, a
procriação e a educação dos filhos deveriam continuar a ser prioritárias, pois os projetos
pessoais ou profissionais não se poderiam estar acima da função natural de ser mãe.
Portanto, com tantas exigências na vida das mulheres, quando elas se tornavam
esposas e mãe e depois se desquitavam se sentiam sobrecarregadas, sabendo como a
sociedade cobraria delas uma conduta exemplar para uma boa criação de seus filhos. E como
a leitora que desabafou com a articulista da coluna “Da mulher para a mulher”, as próprias
mulheres desquitadas se cobravam, pensando não ser capazes de dar aos filhos sem a presença
do pai, uma boa educação, atenção suficiente, enfim, todas as necessidades que uma família
necessitaria. Pela maneira como a articulista falou dos desabafos feitos na sua coluna, é
visível a ideia de que se o casamento não foi construído solidamente, provavelmente foi
porque a esposa não cuidou suficientemente dele, do esposo e daí o resultado seria problemas
como o da leitora Maria de Lurdes. Então, entendemos o motivo das mulheres desquitadas
terem tantos medos acerca de suas novas vidas e dos cuidados com os filhos, uma grande
responsabilidade para elas, num momento em que o masculino era tão valorizado, enquanto o
provedor familiar, em detrimento da mulher.
O que de certa forma é compreensível pela construção social e cultural machista que
foi ensinada às mulheres desde crianças de que somente os homens poderiam manter um lar,
com relação não só ao aspecto econômico, mas também em relação à educação e à
manutenção da união familiar como um todo. Ao falar sobre os desabafos feitos, a articulista
da coluna “Da mulher para mulher” deixou claro sua posição, quanto aos problemas
enfrentados pelas mulheres ao colocar:

No fundo o dilema é um só: o casamento assentado em bases pouco (ou quase nada)
sólidas ou consumado num clima de romantismo, posteriormente destruído ao
contato com a realidade. Daí resultam as questões de Nina e Maria de Lurdes, às
voltas com as “férias separadas” e “a educação dos filhos.” (Revista O cruzeiro,
13/07/1963, p. 90)

Pela maneira como a articulista fala dos desabafos feitos, na sua coluna, é visível a
ideia de que se o casamento não foi construído solidamente, provavelmente foi porque a
esposa não cuidou suficiente dele e daí o resultado são os problemas como o da leitora Maria
de Lurdes. Então, entendemos o motivo das mulheres desquitadas terem tantos medos acerca

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de suas novas vidas e dos cuidados com os filhos, já que a elas era atribuída uma grande
responsabilidade, num momento em que o masculino era tão valorizado, enquanto o provedor
familiar, em detrimento da mulher.

Tornar-se a mulher ideal significava estar de acordo as regras sociais e culturais


colocadas para elas, enquanto regras a ser cumpridas, normas a seguir. E, se as mulheres se
opusessem a essa prescrição, não seriam bem vistas socialmente, seriam desvalorizadas,
consideradas “levianas”. Por isso, subjetivar tais construções era a opção mais adequada para
as mulheres, sendo então boas esposas, donas de casas, mães, estariam fazendo a melhor
opção, considerando o que a sociedade esperava delas, torná-las mulheres ideais.
De acordo com esse modelo ideal de mulher, a mulher casadoura, que continuava tão
forte na segunda metade do século XX.

Recebido em: 02.11.2014. Aprovado em: 13.06.2015.

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Revista O cruzeiro, 04 de Dezembro de 1954.
Revista O cruzeiro, 13 de Julho de 1963.

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Revista O cruzeiro, 20 de Julho de 1963.

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Os primeiros anos 60 nas relações internacionais de Brasil e Argentina: a Revolução
Cubana e a latino-americanização da Guerra Fria

BOTEGA, Leonardo da Rocha. Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a


questão cubana (1959-1964). Porto Alegre: Letra & Vida, 2013. 232 págs.

Charles Sidarta Machado Domingos1

O que tem em comum Arturo Frondizi, Jânio Quadros e João Goulart, além de terem
sido presidentes de seus países? A resposta mais evidente é que nenhum deles concluiu o seu
mandato. Frondizi foi deposto pelos militares argentinos em 28 de março de 1962, Quadros
renunciou à presidência do Brasil em 25 de agosto de 1961 e Goulart foi alijado do poder por
um golpe civil-militar em 1 de abril de 1964.
Além disso, há, ainda, outro ponto de contato entre esses três personagens: todos eles
patrocinaram, em um período muito próximo, mudanças nas relações exteriores de seus países
que ficaram conhecidas por políticas externas independentes. E mais ainda: procuraram
aproximar o Brasil e a Argentina na defesa da autonomia da América Latina num momento de
extrema tensão ocasionado pela emergência da Revolução Cubana que modificou o estatuto
da Guerra Fria no continente americano.
É disto que trata o livro Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a
questão cubana (1959-1964), de autoria de Leonardo da Rocha Botega.1 Adaptado de sua
dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal de Santa Maria, o livro, agora,
aumentará a circulação da consistente pesquisa elaborada pelo seu autor em um grande
número de fontes primárias, com destaque para os anos iniciais da Revista Brasileira de
Relações Internacionais com seus números que foram editados entre 1958 e 1964. Some-se a
isso o expressivo número de 140 referências bibliográficas que colaboraram para que o livro
tenha uma rica densidade teórica bem como uma ampla perspectiva da História do fim dos
anos 50 e inícios dos 60 do Século XX.

1
Doutor em História pela UFRGS. Professor de História no IFSUL- Campus Charqueadas. Email:
csmd@terra.com.br

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Afinal, foi a Revolução Cubana de 1959 que trouxe a latino-americanização da Guerra


Fria. Até então, pouca importância davam os Estados Unidos da América (EUA) para o
subcontinente latino-americano.2 É assim que Botega abre o primeiro capítulo de sua obra:
Quando Fidel Castro, Ernesto Che Guevara, Raul Castro, Camilo Cienfuegos e
outros tomaram a capital Havana, em janeiro de 1959, sem sombra de dúvidas a
América Latina passava a viver um momento diferente em seu cenário político. O
forte poder de atração que esta exerceu sobre a esquerda trouxe para a América
Latina a “sombra” do conflito leste-oeste, atingindo em cheio a esfera de influência
dos Estados Unidos, principalmente ao definir no período 1960-1961 o seu caráter
socialista.3

Nesse capítulo inicial, o autor produz uma visão panorâmica sobre a Argentina, o
Brasil e Cuba, tendo como elemento comparativo das realidades históricas de cada um desses
países o nacionalismo. Aqui é importante frisar, como o fez Eric Hobsbawm, 4 que o
nacionalismo é um conceito histórico e que, portanto, ele se modifica ao longo do tempo,
podendo se localizar nos mais extremos espectros políticos. Porém, no tempo e no espaço da
Argentina, Brasil e Cuba dos anos 1950, houve a coincidência de o nacionalismo assumir “um
caráter cada vez mais à esquerda no contexto da Guerra Fria”, 5 constituindo assim uma
preocupação para os Estados Unidos que procuraram –durante a VII Reunião de Consulta dos
Ministros de Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, realizada entre 22 e 29 de
agosto de 1960 na Costa Rica – impor “a adoção de sanções econômicas e de medidas
coercitivas ao governo de Cuba”.6 Não obtiveram sucesso em razão da forte oposição da
Argentina, do Brasil e do México,7 que incluíram na Declaração de San José que “nenhum
Estado americano pode intervir em outro Estado americano com o propósito de impor-lhes
suas ideologias ou princípios políticos, econômicos e sociais”8.
Leonardo Botega reconstitui a trajetória política de Arturo Frondizi além de discutir
teoricamente a ideologia de seu projeto de desenvolvimento conhecido por desarrollismo, que
visava superar tanto os entraves patrocinados pelo latifúndio quanto pela exploração
imperialista. Também analisa a difícil situação do presidente argentino que se encontrava sob
fogo cruzado, entre a extrema-direita patrocinada pelos militares anticomunistas e
antiperonistas e pelos peronistas que o consideravam um traidor, pelo fato de ter permitido
que o capital estrangeiro explorasse o petróleo de seu país.
Nesse capítulo primeiro, o autor também, analisou a polarização vivida pelo Brasil no
“tempo da experiência democrática (1945-1964)”,9 culminando com a eleição de Jânio
Quadros – quando Afonso Arinos de Melo Franco implementou a Política Externa
Independente (PEI) – e sua intempestiva renúncia que “permanece ainda alvo de debates.
Porém, mesmo sem provas documentais, a literatura de história e ciências sociais concorda

Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 496-501, Jul. 2015


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que o presidente desejava dar um golpe de Estado”.10 Aborda a Campanha da Legalidade, o


governo parlamentarista com o reatamento de relações diplomáticas com a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o turbulento período presidencialista de João
Goulart, com sua desestabilização patrocinada pelos EUA e o golpe civil-militar de 1964.
Fechando esse capítulo, é realizada detida exposição acerca do desenvolvimento
histórico de Cuba, partindo de sua conquista em 1511 até o período da luta revolucionária –
enfatizando a relação com os Estados Unidos. Recupera a trajetória de Fidel Castro, desde
sua juventude nos anos 1940, passando pelo malogrado assalto ao Quartel de Moncada e seu
discurso de defesa intitulado A História me absolverá até chegar a luta em Sierra Maestra e a
revolução sair vitoriosa. A partir desse momento, o autor se concentra no esgotamento da
relação com os EUA, principalmente, em função da reforma agrária e da “nacionalização de
todas as propriedades norte-americanas (...) 36 engenhos de açúcar, todas as refinarias de
petróleo e instalações telefônicas e de fornecimento de energia elétrica” 11 e do episódio da
Baía dos Porcos, onde as forças de Castro vencem os invasores. Com isso, tem início a
verdadeira obsessão dos irmãos Kennedy sobre Cuba, não faltando planos de assassinar
Castro operados diretamente por Robert Kennedy através da Operação Mangusto, 12 bem
como a pressão cada vez mais intensa para excluir Cuba do convívio com os demais estados
americanos.
O segundo capítulo nos aproxima das políticas externas independentes da Argentina e
do Brasil. Através da análise da documentação produzida naquele período – discursos e
pronunciamentos dos responsáveis pelas políticas externas e dos presidentes dos dois países –
e de dois livros – um de autoria de Frondizi e outro de San Tiago Dantas 13 – o autor procurou
responder às seguintes questões:

Quais as fundamentações da política externa independente do governo Arturo


Frondizi e da política externa independente do Brasil? Quais suas bases conceituais?
Que leituras tinham da realidade latino-americana e mundial? Que pontos de vista as
aproximavam? 14

Botega conclui que há muitos pontos de aproximação entre as duas políticas externas:
ambas estão calcadas no nacionalismo, buscam um paradigma de maior autonomia para suas
relações exteriores, procuram fazer da política externa uma ferramenta na busca pelo
desenvolvimento econômico-social, criticam a deterioração dos termos de troca nas relações
econômicas entre os países mais industrializados e os países em vias de industrialização,
frisam que não são neutralistas mas que procuram a independência dentro do bloco ocidental
(ambos são acusados pelos adversários de estarem a serviço de Moscou), pretendem manter

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boas relações com os EUA (Frondizi e Goulart discursaram no Congresso dos Estados
Unidos), e, por fim, que são defensores dos princípios de autodeterminação dos povos e de
não-intervenção.
É justamente sobre os princípios de autodeterminação dos povos e de não-intervenção
que trata o terceiro capítulo do livro, ao analisar de que forma Argentina e Brasil colocaram
em prática suas políticas externas independentes quando da crise da “questão cubana”.
Por “questão cubana” se entendia a adoção do socialismo a partir da declaração de que
“o que os imperialistas não podem nos perdoar é que fizemos uma Revolução Socialista
debaixo do nariz dos Estados Unidos e que defenderemos com nossos fuzis esta Revolução
Socialista (...) Viva a Revolução Socialista! Viva Cuba Livre”15 feita por Fidel Castro, e sua
incompatibilidade com o sistema interamericano. Ressalte-se que essa modificação no
estatuto da Revolução Cubana se deu em 16 de abril de 1961, um dia após tropas de exilados
cubanos financiados pela CIA terem realizado um ataque com grande saldo de vítimas fatais
em Cuba e um dia antes da tentativa de invasão conhecida como Baía dos Porcos, o que
permite entender essas palavras como um pedido de socorro à URSS para a defesa da
Revolução Cubana.
Em razão de Cuba ter se declarado socialista, primeiro o Peru e posteriormente a
Colômbia (ambas com apoio estadunidense) invocaram o Tratado Interamericano de Aliança
Recíproca (TIAR) para convocar uma Reunião de Consulta dos Chanceleres da Organização
dos Estados Americanos (OEA) com o objetivo de “intervir coletivamente através da OEA em
Cuba”16. Tanto o Brasil, como a Argentina e também o México, se posicionaram de forma
contrária até que “o próprio Fidel Castro acabou dando munição para os seus adversários. No
discurso de inauguração da Universidade Popular, em 2 de dezembro de 1961, declarou ‘sou
marxista leninista e serei marxista-leninista até o último dia de minha vida’”17. Desse modo,
ficava muito difícil, em termos políticos, barrar a convocação da Reunião.
Dado a polêmica da questão, nenhum país quis sediar a Reunião de Consulta, exceto o
Uruguai. Assim, a VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos se realizou em
Punta del Este entre 23 e 31 de janeiro de 1962. San Tiago Dantas, representando o grupo
composto por Brasil, Argentina, México, Bolívia, Chile e Equador e Haiti (o Uruguai oscilava
entre a posição brasileira e a posição colombiana pela expulsão de Cuba), defendeu que a ilha
não fosse excluída do sistema americano sob o risco de estarem-na jogando aos braços dos
soviéticos.
Os Estados Unidos, sob a liderança do Secretário do Departamento de Estado, Dean
Rusk, exerceram pressões sobre o Brasil, a Argentina e os outros países que eram contra a
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expulsão de Cuba. Outras pressões eram exercidas pelos setores mais à direita internamente
nos países, como o fez o exército argentino e alguns ex-chanceleres brasileiros. Contudo, foi
um dos mais fracos países do continente que acabou sucumbindo às pressões dos EUA: o
Haiti foi o necessário 14º voto para a aprovação da íntegra do texto de resolução apresentado
por Rusk.
Leonardo Botega analisa as repercussões internas das posições do Brasil e da
Argentina, que acabaram se abstendo de votar o texto completo de Rusk. Percebeu os apoios e
as oposições às políticas externas independentes. No caso brasileiro, de forma mais imediata,
a posição em Punta del Este acabou sendo um empecilho para San Tiago Dantas ser aprovado
pelo Congresso como primeiro-ministro em junho daquele mesmo ano. No caso argentino, a
pressão foi tão intensa que o país rompeu relações diplomáticas com Cuba em 8 de fevereiro
e, mesmo cedendo desse modo aos militares, o presidente Frondizi foi deposto em 29 de
março de 1962. Dois anos depois, tendo como uma das justificativas salvar o Brasil do
comunismo, João Goulart também foi golpeado por militares e por civis.
Do belo trabalho de pesquisa realizado por Leonardo da Rocha Botega fica uma
questão em aberto: até que ponto os golpes militares não foram, também, resultado das
políticas externas independentes, ou talvez, resultado da posição frente a questão cubana?

Recebido em: 09.10.2014. Aprovado em: 09.06.2015.

1
BOTEGA, Leonardo da Rocha. Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana
(1959-1964). Porto Alegre: Letra & Vida, 2013.
2
Basta lembrar que a Operação Pan-americana (OPA) proposta por Juscelino Kubitschek em maio de 1958 não
despertou maior interesse de Eisenhower. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política
exterior do Brasil. 3ª edição ampliada. Brasília: Editora da UNB, 2010, p. 293-294.
3
BOTEGA, op.cit., p. 29.
4
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
5
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O nacionalismo latino-americano no contexto da Guerra Fria. In: Revista
Brasileira de Política Internacional. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ano 37, nº 2,
1994, p. 55-56.
6
BOTEGA, op.cit., p. 43.
7
As posições da política externa independente mexicana, em especial com sua relação com a questão cubana,
são abordadas em profundidade por Altmann. ALTMANN, Werner. México e Cuba: revolução, nacionalismo,
política externa. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 77-86.
8
BOTEGA, op.cit., p. 44.
9
A expressão é de Jorge Ferreira e Lucília Delgado. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves
(orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
10
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime
democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 25.
11
GOTT, Richard. Cuba: uma nova História. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 211.
12
WEINER, Tim. Legado de Cinzas: uma história da CIA. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 208-217.

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501

13
FRONDIZI, Arturo. A Luta Antiimperialista: etapa fundamental do processo democrático na América
Latina. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1958. DANTAS, San Tiago. Política Externa Independente. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
14
BOTEGA, op.cit., p. 104.
15
Fidel Castro apud MÁO JÚNIOR, José Rodrigues. A Revolução Cubana e a Questão Nacional (1868-1963).
São Paulo: Núcleo de Estudos D’O Capital, 2007, p. 354.
16
BOTEGA, op.cit., p. 184.
17
Idem, p. 185.

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Além da sombra do Ocidente: o mundo árabe que nós desconhecemos

BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da
obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 347p.

Thiago Henrique Mota (UFMG)1

Nos últimos anos, o Brasil tem se inserido no mundo na condição de potência


emergente, buscando consolidar-se no espaço internacional. Na academia, este processo tem
se refletido na ampliação dos temas de pesquisas, destacadamente nas Humanidades. Notam-
se esforços em incorporar África e América Latina na agenda de estudos, produzindo diálogos
e comparações úteis ao acréscimo do conhecimento e incorporação da diversidade. Entretanto,
outras regiões do globo, como o mundo árabe-islâmico, permanecem menos exploradas. Entre
os trabalhos dedicados a este tema, destaca-se a contribuição da professora do Departamento
de Ciência Política da UFRJ, Beatriz Bissio, aqui resenhada.
O livro O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn
Khaldun e Ibn Battuta é marcado pela trajetória da autora. Uruguaia naturalizada brasileira,
Bissio atuou muitos anos como jornalista. Cobriu guerras de libertação nacional em Angola e
em Moçambique, registrou o apartheid sul-africano e noticiou conflitos no Oriente Médio. Ao
percorrer os países islâmicos, diz-nos que ficou profundamente marcada pela errônea tese de
que existe uma profunda alteridade entre o mundo árabe-islâmico e o Ocidente. Munida desta
inquietação, graduou-se em Ciências Sociais (PUC-RJ) e doutorou-se em História (UFF).
Fruto de pesquisa realizada no doutorado, o livro analisa a civilização árabe-islâmica no
século XIV, destacando o espaço como categoria apta à integração do mundo muçulmano,
num período de fragilização política e cultural do Magrebe.
Afastando-se da perspectiva orientalista que circunscreve o mundo árabe-muçulmano
à condição de exótico2, Beatriz Bissio busca compreendê-lo a partir de dois de seus próprios
pensadores: Ibn Battuta e Ibn Khaldun. O primeiro foi um viajante marroquino nascido em
Tânger, em 1304, autor de Através do Islã, um relato de suas extensas viagens,
aproximadamente 120 mil quilômetros percorridos em quase três décadas. O outro, Ibn
Khaldun, era historiador e também viajante, nascido em Túnis, em 1332, autor do Livro das

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Experiências, em cuja primeira parte, Muqaddimah (ou Os prolegômenos da história


universal) está o foco da autora, que complementa suas análises com as outras partes da obra,
a História dos Berberes e a Autobiografia.
Dividido em duas partes e sete capítulos, o livro traz a preocupação de quem escreve
sabendo que grande parte de seu público tem pouco domínio do assunto sem, no entanto,
frustrar aqueles já versados no tema. Nos três capítulos da primeira parte, Bissio apresenta o
mundo árabe-islâmico, localiza o leitor no Mediterrâneo do século XIV (com vários mapas) e
apresenta suas personagens e fontes. A segunda parte é formada por quatro capítulos,
dedicada à verticalização da análise das representações do espaço no medievo islâmico. A
autora analisa o conceito de civilização presente nas obras, sobretudo na Muqaddimah, o
papel da viagem na compreensão e internalização do espaço no mundo árabe-muçulmano,
suas formas de representação na cartografia e nos saberes científicos da época e a
hierarquização do espaço: o urbano, em função da mesquita; o território em função de Meca.
No século IX, desenvolvia-se na Espanha e no Magrebe islâmicos um gênero literário
dedicado a descrever o espaço: os relatos de viagem. Decorrentes da exigência religiosa de
realizar a peregrinação a Meca, aplicável a todo fiel saudável e com condições financeiras, os
relatos foram produzidos por vários agentes: viajantes, espiões, mercadores, embaixadores. A
palavra rihla, termo árabe para viagem, périplo, logo se tornou o nome do gênero. No século
XIV, a rihla de Ibn Battuta tornava-se excepcional: saindo do Marrocos, o autor percorreu
Egito, Palestina, Síria, Iraque, Irã, península Arábica, China, Índia, Afeganistão, Turquia,
Rússia, Iêmen, Omã... motivado pela busca por conhecimento ao longo espaço islâmico.
O espaço é definido através da oposição entre os territórios do islamismo (dar al-
Islam) e aqueles ocupados pelos infiéis (dar al-kfur) e dedicados à guerra (dar al-harb), cuja
incorporação nas terras do islã, acreditava-se, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Essas
definições acerca da natureza do espaço são importantes para a compreensão das obras de
Khaldun e Battuta. O primeiro, modelo de sábio erudito islâmico, dedica-se na Muqaddimah a
compreender as leis universais da sociedade – ciência que afirma ser sua criação – através do
estudo e da viagem pelos espaços islâmicos, tendo o Magrebe como seu grande laboratório. Já
Battuta dedica-se a analisar e vivenciar a unidade formada neste espaço. Apesar de cultural e
historicamente heterogêneo, a fé islâmica e a língua árabe fizeram dele um território.
Recorrendo a edições dos textos de Battuta e Khaldun em diferentes idiomas, embora
não no árabe, Bissio destaca o papel do espaço e da viagem na caracterização da identidade
muçulmana do século XIV e anteriores, apontando a valoração atribuída pela religião islâmica
à busca do conhecimento. Através da expansão muçulmana, desde o século VII, formou-se
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um extenso tecido social que, embora forjado sobre diversos ecossistemas e integrando povos
culturalmente muito distintos – desde a Índia até a Espanha – manteve elementos de uma
identidade comum: o idioma árabe, considerado sagrado e perfeito por ter sido a escolha de
Deus para anunciar sua mensagem ao mundo, através de Maomé; e a fé islâmica, responsável
pela unidade dos fiéis no corpo da Umma, a comunidade muçulmana que supera fronteiras
políticas e étnicas diante da supremacia religiosa.
Dada a amplitude desta ocupação, a análise de referenciais da geografia cultural é
central à discussão de Bissio. Conceitos como espaço social e lugar, aplicados à concepção da
identidade, permeiam sua discussão, marcando o pertencimento e a exclusão na sociedade
islâmica. Centrada no processo de urbanização, a fé muçulmana encontrou local privilegiado
para sua divulgação nas cidades, organizando o espaço e caracterizando as relações sociais ali
estabelecidas. A cidade construiu-se em torno da mesquita, onde coabitavam profissão de fé,
exercício do poder político e jurídico e práticas educacionais. No plano territorial, o
desenvolvimento da cartografia manteve-se ativo durante a expansão muçulmana, vistas as
exigências dos Cinco Pilares do islamismo3, dentre as quais se destacam a necessidade de orar
cinco vezes ao dia na direção de Meca e realizar, ao menos uma vez na vida, a peregrinação
aos lugares sagrados do Islã. O domínio do espaço era condição para exercício da fé e foi a
comunhão religiosa sobre o espaço que garantiu a continuidade da Umma.
O exercício da justiça árabe-muçulmana fazia-se a partir do Corão, o livro sagrado, e
da Sunna, a compilação dos ditos e feitos do Profeta. Com o aumento da complexidade social
árabe-islâmica, fazia-se necessário coletar o máximo de informações úteis à construção da
jurisprudência, visto esta basear-se nos exemplos advindos da vida e obra de Maomé. O
objetivo inicial da viagem, portanto, era a coleta dos hadiths: atitudes, decisões e silêncios de
Maomé, que compõem a Sunna e caracterizam o exercício da justiça islâmica na xaria.
Através da viagem, buscava-se reconstruir as experiências do Profeta, pela coleta de tradições
junto aos familiares daqueles que conviveram com ele. A viagem levava ao conhecimento.
Além do acesso ao saber, a escrita geográfica trazia à luz a grandiosidade do mundo
construído pelos muçulmanos. Este, entretanto, vivia momentos de crise. No século XIV, o
Mediterrâneo árabe caia diante dos impactos da Peste Negra e da fragmentação política. Com
este pano de fundo, Bissio aborda o contexto histórico vivenciado por Khaldun e Battuta,
importantes na configuração de suas obras. A autora argumenta que se vivia um período no
qual o passado glorioso era mais importante que o incerto futuro, inspirando os escritores
muçulmanos a produzir textos que garantissem à posteridade o conhecimento daquele
momento histórico.
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Ibn Khaldun, sobre quem já se disse ter sido o criador da Sociologia, se propôs a
produzir uma obra de História peculiar à época: os homens eram o sujeito histórico e o objeto
de estudo era a sociedade muçulmana. Partindo da trajetória de vida deste autor, o impacto da
Peste Negra em sua formação e sua atuação política no Magrebe, na Espanha (Al-Andaluz) e
no Egito, Bissio destaca a contribuição de Khaldun às Ciências Humanas, pouco estudada na
tradição ocidental. O deslocamento da História para o mundo dos homens, em detrimento de
ser realização da vontade divina; a compreensão da unidade do gênero humano e a explicação
do desenvolvimento das civilizações através da geografia, ecologia e biologia caracterizam
grande ruptura com a epistemologia vigente no período, muito embora alimentada pelas
concepções muçulmanas acerca do mundo.
Documentos produzidos para serem monumentos4 de uma sociedade em decadência,
os textos de Battuta e Khaldun apontam o uso pragmático da escrita como recurso à
integração dos espaços e entendimento da sociedade, aproximando homens e Estados que,
embora não mais organizados numa estrutura política única, o califado, seguiam na comunhão
de uma identidade linguístico-religiosa (apesar das dissidências, como sunitas e xiitas). Um
dos conceitos desenvolvidos por Ibn Khaldun – assabiyya, o espírito do corpo político –
decorre de suas experiências ao percorrer o Magrebe neste momento, dado à derrocada de
Estados e ao sentimento, captado por ele, de deslocamento do eixo civilizacional, que se
movia do sul para o norte, com a emergência da Cristandade europeia e a redução das cidades
muçulmanas, outrora as mais populosas, urbanizadas e ativas do período.
Na teoria das civilizações de Khaldun, o conceito umran tem sentido em civilização,
seja na universalidade da sociedade humana ou na concretude de uma população sobre um
território. A vida em sociedade é condição da existência humana, conforme Khaldun, e sua
essência está na complementaridade entre o polo rural e o urbano. No primeiro residem os
valores como força, lealdade, temperança, que fortalecem o espírito político (assabiyya); no
segundo está o luxo, os excessos e prazeres, que o enfraquecem. Contudo, o urbano é o
espaço central da vida social e religiosa. O equilíbrio se constitui na trajetória cíclica da
história, com ascensão e queda de impérios que conquistam as cidades, se apoderam delas e se
enfraquecem nelas. A umran é transmitida de um império a outro, resultando num sistema de
civilização bipolar, cíclico e relativamente estável.
Enquanto Khaldun busca compreender as leis que regem a sociedade, Battuta aponta a
unidade da umma como ponto central de sua análise. Ao longo da rihla na qual descreve o
périplo realizado, o viajante marroquino dedica-se a apresentar a universalidade da umma.
Sua narrativa, exposta por Bissio, conjuga as necessidades do saber com a atenção dedicada
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ao mundo do islã, seus prazeres, aromas e sabores. A manifestação da fé muçulmana nos


lugares pelos quais passou, a solidariedade amparada no pertencimento à comunidade
religiosa e a peregrinação como lugar do encontro são destacados por Battuta. Meca é o
centro da umma e, para os muçulmanos do século XIV, as terras do islã eram a única parte do
mundo que importava, pois nelas estava a verdade da revelação a ser levada a outros lugares
ao redor do globo. Não obstante a desagregação política do califado abássida, a unidade
linguístico-religiosa foi capaz de manter-se, tendo a referência ao espaço como eixo central de
sua organização, na vida diária – através da mesquita – e na umma, por meio de Meca.
O sentido das viagens realizadas por Khaldun e Battuta pode ser melhor compreendido
se colocado em termos da teoria do conhecimento do islamismo. Diferentemente do
cristianismo, que prega separação entre mundo temporal e espiritual, o islã define a unidade
entre essas realidades. O Corão incita os fiéis a olharem o mundo com curiosidade, pois nele
se expressa a palavra de Deus. A religião estimula a ciência e, no período do medievo, a
produção científica muçulmana era enorme, legando às estantes da Cristandade a maior parte
das traduções da filosofia grega, que chegaram à língua latina através do árabe. A
incorporação dos conhecimentos e sua transformação, buscando atender às necessidades da
comunidade muçulmana, geraram um período de grande riqueza intelectual, expressa no
universalismo científico e religioso da umma.
Ao romper estereótipos e preconceitos acerca do islamismo, Beatriz Bissio convida-
nos a um novo olhar sobre o Oriente. Ao dialogar com Ibn Khaldun, repete-lhe as conclusões:
“o mundo parece estar mudando de natureza” 5, bem como é preciso que mudemos a natureza
de nosso olhar sobre ele. Sua leitura apresenta-nos a possibilidade de reflexão sobre mundo
além do panóptico europeu. Relações que se tecem e se reproduzem sem, necessariamente, ter
o Ocidente como causa ou objeto. Somos apresentados ao islã com olhar de proximidade, de
encanto e encontro. Unidos na natureza humana, mas também herdeiros do legado árabe-
muçulmano que nossa cultura ocidentalizante insiste em invisibilizar, vislumbramos um
mundo criativo, dinâmico, parte de nossa formação histórica. Um mundo que vai muito além
da sombra do Ocidente.

Recebido em: 19.07.2014. Aprovado em: 03.06.2015.

1
Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a
qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: thiago.mota@ymail.com.
2
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

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3
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica.
Aparecida: Santuário, 2010.
4
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp. 2003.
5
BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e
Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.292.

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Memórias de pais de desaparecidos políticos argentinos,
um diálogo das telas para a história

Natasha Dias Castelli1

A presente entrevista foi concedida por Joaquín Daglio, diretor, roteirista, responsável
pela pesquisa e entrevistas do aclamado documentário argentino Padres de la Plaza: 10
recorridos posibles. De forma muito gentil Joaquin combinou um encontro em um café no
bairro Palermo, em Buenos Aires, e me recebeu com muita disposição para uma conversa em
que tratamos de diversas temáticas diretas ou indiretamente abarcadas com o assunto do
documentário. Exponho aqui parte dessa conversa.
Daglio nasceu em 1975 na cidade de Buenos Aires e é graduado pela UBA
(Universidade de Buenos Aires) em Diseño de Imagen y Sonido. Além de se dedicar enquanto
diretor cinematográfico, também é músico/compositor, estudou atuação e dramaturgia,
trabalhou com teatro, curta metragens, como operador de câmera e assistente de produção
para diferentes instituições.2 Segundo as informações dadas no site oficial do documentário, a
ideia inicial do projeto veio com o próprio Joaquín, que produziu o filme através de um
trabalho de grupo do qual participaram estudantes e profissionais da área de Comunicação,
bem como outros de Diseño de Imagen y Sonido – fato que acabou envolvendo também a
UBA no projeto.
A temática do documentário tem caráter bastante inovador, apesar de Daglio expor de
forma muito clara e enfática que esse não é o ponto de partida, muito menos o central, do
projeto. Abordar as memórias e “desmemorias” de alguns pais, mais de 30 anos depois do
golpe, através de uma narrativa que vai entrelaçando seus depoimentos e suas histórias,
levando em consideração o fato de não estarem tão acostumados a falarem sobre o ocorrido
quanto às mães, faz do filme um riquíssimo material de análise. O documentário apresenta
relatos de dez pais que aceitaram participar do projeto contando suas trajetórias de vida e de
atuação a partir do desaparecimento de seus filhos além, obviamente, da vivência de

1
Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista na “Missão de estudos
CAPG/CAPES” - Argentina em 2014. Contato: natasha.dias.castelli@hotmail.com
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processos emotivos complexos.


O momento atual é bastante promissor com relação à visibilidade que a temática da
participação dos pais vem ganhando, principalmente após a exibição do filme. Foram
divulgadas notas jornalísticas sobre o tema, assim como entrevistas, e materiais diversos.
Também são muito recentes as premiações que homenageiam e dão reconhecimento aos pais
como atores do processo de luta pelos direitos humanos. Somente em dezembro de 2003,
através do decreto nº 1.200, o Ministerio de Justicia, Seguridad y Derechos Humanos da
Argentina instituiu o prêmio Azucena Villaflor de Devincentini3: “[...] destinado a reconocer
a los ciudadanos y/o entidades que se hubieren destacado por su trayectoria cívica en defensa
de los derechos humanos”.4 No ano de 2010, um grupo de Padres foi contemplado com o
prêmio, no mesmo ano do lançamento do documentário “Padres de la Plaza”. Dois anos mais
tarde, em 2012, a edição anual do evento “Premios Democracia”, organizado pelo “Centro
Cultural Caras y Caretas”, fez mais uma indicação na categoria de Direitos Humanos aos
Padres de Plaza de Mayo.5
Pensar a visibilidade dos pais num contexto recente remete às reflexões de Michael
Pollak6 quando discute que o silêncio e mesmo o esquecimento podem significar uma
ponderação das coisas que podem ou não ser ditas em cada época. Talvez a “época” dos pais
esteja apenas começando...

Me gustaría que usted se presentase. Sé que además de director también es músico, ya


trabajó con teatro, cortometrajes y aún actúas. ¿Dentre todas estas actividades este es su
primer trabajo con esta temática de memoria y dictadura?

Durante 2001 y 2002 trabajé como camarógrafo para el archivo oral de Memoria

2
Informações cedidas pelo site do documentário. Disponível em: PADRES DE LA PLAZA
<http://www.padresdelaplaza.com.ar/index.php?body=12&id=1>. Acesso em 10/02/2014.
3
Importante evidenciar que o prêmio recebeu este nome em homenagem a uma das fundadoras do movimento
Madres de Plaza de Mayo que foi sequestrada e desaparecida em 1977. Até os dias de hoje Azucena é estimada
pelas organizações de direitos humanos, bem como, é referência para as Madres que inclusive levavam em seu
símbolo a flor, cujo nome é azucena, atravessada pela sigla do movimento: MPM (Madres de Plaza de Mayo).
4
DECRETO Nº 1.200/2003. PREMIO ANUAL “AZUCENA VILLAFLOR DE DEVICENTINI”. Disponível
em: <http://www.derhuman.jus.gov.ar/pdfs/DECRETO_1200-2003.pdf>. Acesso em: 20/01/2014. O prêmio é
entregue pelo (a) Presidente da República através de um objeto simbólico e um diploma de honra e
reconhecimento.
5
PREMIOS DEMOCRACIA 2012. Disponível em: <http://www.premiosdemocracia.org.ar/>. Acesso em:
22/01/2014. Este prêmio existe desde 2009 e visa contemplar grupos e/ou pessoas que realizem atividades em
favor dos valores democráticos.
6
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro; CPDOC/FVG, v.
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Abierta (Acción Coordinada de Organizaciones argentinas de Derechos Humanos), esa fue mi


primera experiencia con la temática. En el caso del documental “Padres de la Plaza – 10
recorridos posibles” fue la primera vez que coordiné y participé de un equipo de
investigación.

"Oficialmente", una de las motivaciones para que el documental fuera hecho es de que
tanto usted cuanto los productores nacieran en los años de la última dictadura argentina
y se sensibilizan con esa historia que además de hacer parte de sus vidas personales hace
parte de sus vidas en cuanto argentinos y latino americanos, a final las víctimas del
Terrorismo del Estado (TDE) son muchísimas y se entrelazan a historia de todos, ¿no?

Efectivamente, la última dictadura argentina nos afectó a todos y es nuestra obligación


recordar y denunciar lo sucedido para que no se repita jamás. Lamentablemente, así como
sucedió también en otros países latinoamericanos, parte de la sociedad no sólo avaló las
torturas, secuestros y desapariciones de la dictadura militar (así como también el plan
económico neoliberal) sino también fue cómplice directa.

¿De dónde proviene esta inquietud con relación a los padres? Ese interés en saber más
(específicamente) sobre estas víctimas y sus memorias ¿sobre todo lo que pasó? Este
proyecto si no fue el primero en tratar este tema fue uno de los primeros, ¿no?

El interés radica básicamente participar activamente de la memoria colectiva de un


país que necesita de esos testimonios para construir Memoria, Verdad y Justicia. Si bien
nuestro proyecto no fue el primero en abordar la temática de los padres de los desaparecidos
(esposos de las Madres de Plaza de Mayo), fue la primera vez que se realizó un documental
audiovisual sobre ellos de manera conjunta.

¿Crees que ellos fueron quedando en segundo plano? En relación a los otros familiares...

2, nº 3, 1989, p. 3-15.
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La respuesta es compleja y necesita de un desarrollo que excede los límites de la


entrevista, ya que me resulta difícil responder de manera sintética. Creo que los padres han
quedado en un segundo plano principalmente por el impacto que tuvo en nuestra sociedad y
en el mundo la figura de las madres a través del inagotable trabajo de las Madres de Plaza de
Mayo, y también el de las Abuelas. Como dice Marcos Weinstein (padre de Mauricio,
estudiante desaparecido en 1978, cuando tenía los 18 años) en nuestro documental: “el rol de
los padres aparece como desdibujado porque no fue dibujado, en realidad. Nadie se ocupó de
dibujarlo durante los años.”

El sociólogo Michael Pollak comprende que este trabajo de historia oral es una parte
muy importante del proceso de revelar dichas “memorias subterráneas”. ¿Cómo fue este
proceso de "dar voz" aquellos que aún no habían hablado?

La mayor dificultad durante el rodaje fue dividir mi trabajo como director y mi


función como entrevistador. En cuanto a la modalidad de las entrevistas, y como lo que se
intentaba era lograr un clima íntimo y distendido, mi tarea fue buscar la mejor forma de
acompañar el relato de los padres, respetando sus tiempos y sus silencios, dejando que se
explayaran sin interrumpir el devenir de una oración o pretendiendo orientar su sentido,
interviniendo cuando resultara necesario, buscando la pregunta justa en el momento indicado.
Como entrevistador, procuré desarrollar distintos temas teniendo en cuenta lo difícil que les
resultaría a los padres poner en palabras sus historias frente a una cámara. Como director,
también debí encontrar la manera de lograr un clima que favoreciera la espontaneidad de los
padres, de evitar una actuación a partir de acciones pautadas - como cuando se les sugería
conversar caminando -, de elegir el recorrido más favorable para la entrevista. En ese sentido,
fue decisivo el trabajo del camarógrafo, Diego Castro. Una vez que quedaban definidos los
lugares en donde se llevaría a cabo la entrevista y planteados los posibles encuadres, la
cámara se dedicaba a captar la particularidad de cada encuentro.
El objetivo del documental era contar diez historias desde lo humano y no desde una
visión historicista. A partir de eso, pensamos un documental crudo y cálido. Crudo en tanto
mostrar estas historias sin ornamentos que pretendieran ilustrarlas; cálido en cuanto lograr que
la película reflejara el clima íntimo y distendido de las entrevistas, necesario por otra parte
para abordar lo doloroso de los testimonios. Teniendo en cuenta estos factores planteamos el
rodaje. Como la idea era mostrar la relación personal que se iba estableciendo con cada padre,
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el vínculo que se desprende de una cercanía, el compromiso del que escucha con el que habla,
trabajamos a partir de una única cámara en mano que registrara en acto esa intimidad, que
interactuara con lo que sucedía, que no fuera ajena a la situación (hubiera resultado
contradictorio escindir la imagen de una misma situación en diferentes puntos de vista, la
articulación de dos cámaras hubiera compuesto una mirada distante e impersonal). Esa única
cámara acompañó de modo espontáneo las intervenciones de cada entrevistado centrándose
en el fluir de la acción, retratando a cada padre desde una distancia que no disminuyó ni
amplificó sus gestos. Fue significativo, entonces, que su propio pulso quedara registrado, el
uso de un trípode hubiera agregado estabilidad, firmeza y seguridad al encuadre, con el
perjuicio de que esto pueda leerse como indiferencia frente a las palabras del entrevistado. Por
otra parte, era importante respetar el contexto que cada uno de los padres había elegido para
las entrevistas, no tergiversarlo, así decidimos trabajar la puesta en escena a partir de los
elementos que se presentaban en cada locación. Otra cuestión importante era captar lo honesto
y espontáneo de los testimonios, lo revelador de la palabra del padre y su relación con aquel
contexto, por lo que fue vital la búsqueda de un registro sonoro nítido y preciso en donde se
destacara la voz del padre, pero donde también participara el sonido ambiente, incorporando
la presencia del contexto en cada situación. Por último, un factor decisivo era lograr entrelazar
los diez recorridos individuales para poder componer un relato coral en el que se pudieran
advertir los efectos de una misma tragedia a través del carácter heterogéneo de los
testimonios. Este diálogo entre diez relatos fue posible gracias al trabajo que hicimos junto al
montajista Eduardo Morales, con quien buscamos una estructura donde cada secuencia
retomara lo dicho en la anterior y fuera construyendo el recorrido de los padres a partir de este
retorno. En cuanto a la necesidad de lograr un relato crudo, editamos el material evitando
artificios que buscaran subrayar lo trágico de cada testimonio e indujeran la emoción del
espectador, interpretando el ritmo necesario para cada secuencia, acompañando la palabra de
los padres.

Recuerdo ver en el documental la entrevista del padre Bruno Palermo y en un momento


él ha dicho que hacía poco tiempo, unos dos años, que hablaba respecto de sus
sentimientos sobre la desaparición de su hijo. ¿Podemos suponer que hubieron barreras
capaces de imponer un período de olvido?

No creo que haya existido algo así como un “período de olvido”, creo que a los padres,
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a diferencia de las madres, les resulto muy difícil poner en palabras sus dolor, compartir sus
sentimientos, dar a conocer sus recorridos. Definitivamente podemos suponer que esa
dificultad está relacionada con el rol del padre y con el hecho de ser hombres, y que hoy, ya
ancianos, a algunos de ellos les resultaba necesario sortear esa dificultad y dejar sus
testimonios para la posteridad.

Los documentales son una forma didáctica y más accesible a la información, incluso
históricas. ¿Cuál es la importancia (pensando en la divulgación de la historia, en
derecho a la memoria y la verdad) de un proyecto como ese que proporcionó espacio a
estos actores reales?

Nuestro trabajo fue generar ese espacio desde donde ellos pudieron hablar, pero el
mérito definitivo es el de estos padres, que tuvieron la valentía de dejar sus testimonios luego
de tantos años sin dar a conocer públicamente sus vivencias.

Hace casi 4 años que se exhibió el documental, ¿cuál fue la devolución del público?

El documental tuvo una muy buena devolución tanto de los organismos de Derechos
Humanos como del público en general. También sucedió así con los cuatro capítulos para TV
que hicimos junto al canal Encuentro con el material que quedó fuera de la película. En Brasil
fue visto en Rio de Janeiro y San Pablo, en el marco de un festival de cine al que pude
concurrir junto a Rafael Beláustegui (padre de tres hijos desaparecidos: Valeria, José y
Martín), allí recibimos muy buenas críticas del público, que luego de las funciones se
acercaba respetuosamente a Rafael para hablar y expresarle su afecto, fue muy conmovedor
para Rafael, que vivió y trabajó en San Pablo durante la dictadura argentina.

Buenos Aires, 14 de fevereiro de


2014.

Recebido em: 16.02.2014. Aprovado em: 17.06.2015.

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